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CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Luna Antunes Costa Monalisa Dias de Siqueira Cláudio Umpierre Carlan Cultura Acadêmica Editora Praça da Sé, 108 CEP 01001-900 – São Paulo, SP www.culturaacademica.com.br Semíramis Corsi Silva Flávia Regina Marquetti Pedro Paulo A. Funari organizadores MAGIA, ENCANTAMENTOS E FEITIÇARIA Copyright © 2023 organizadores CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ _____________________________________________ M194 Magia, encantamentos e feitiçaria/ organização Semíramis Corsi Silva ... [et al.]. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2023. 594 p.: il.; 16 x 23 cm. Vários autores. ISBN 978-65-5954-401-1 (DIGITAL) 1. Antiguidade Clássica. 2. Antropologia - História. 3. Diversidade Cultural. 4. Rituais. 5. Práticas mágicas. 6. Oráculos. I. Silva, Semíramis Corsi, 1982- II. Marquetti, Flávia Regina, 1960- III. Funari, Pedro Paulo Abreu, 1959 CDD 930 _____________________________________________ Índices para catálogo sistemático: Praça da Sé, 108 01001-900- São Paulo – SP Tel. (0xx11)3242-7171 Fax. (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br SUMÁRIO Prefácio Ivan Esperança Rocha ------------------------------------------------------------------------1 Introdução Semíramis Corsi Silva, Flávia Regina Marquetti e Pedro Paulo A. Funari -----------5 Parte 1 Rituais, oráculos e objetos mágicos Amuletos Mágicos Mesopotâmicos: entre religião e arte Katia Maria Paim Pozzer -------------------------------------------------------------------21 Íynx: o feitiço de amor e a religião de Afrodite e Eros na iconografia dos vasos ápulos (séc. IV AEC) Fábio Vergara Cerqueira --------------------------------------------------------------------44 Feitiçaria e Alquimia na China Antiga André da Silva Bueno ----------------------------------------------------------------------93 Escravidão e adivinhação no Império Romano: uma aproximação a partir das Sortes Astrampsychi Filipe Noé da Silva ------------------------------------------------------------------------119 Magia como Fenômeno transcultural: Lição I – como fazer um anel mágico (Libro de Astromagia, séc. XIII) Aline Dias da Silveira ---------------------------------------------------------------------133 Pomadas, poções e unguentos: as reuniões secretas diabólicas em manuscritos Alpinos do século XV Lívia Guimarães Torquetti dos Santos --------------------------------------------------165 Magia, truque e feitiço: as muitas faces do encantamento na literatura oral de Ifá Rogério Athayde ---------------------------------------------------------------------------194 Raios e ventos: narrativas mágicas sobre Santa Bárbara e Iansã Debora Simões de Souza -----------------------------------------------------------------214 Mulheres encantadas e os lagos mágicos: as estatuetas femininas das estearias do Maranhão Alexandre Guida Navarro ----------------------------------------------------------------231 O uso da magia egípcia no ensino: os amuletos em sala de aula Raquel dos Santos Funari -----------------------------------------------------------------263 Parte 2 Magos, feiticeiras e suas práticas O Corpo encantado. Do mito aos contos maravilhosos Flávia Regina Marquetti ------------------------------------------------------------------287 Gênero e Magia em Roma: as feiticeiras Canídia e Ságana na Sátira I, 8 de Horácio Semíramis Corsi Silva---------------------------------------------------------------------327 Maria, a mãe de Jesus, como uma maga: gênero, poder e magia entre os primeiros cristãos Juliana Batista Cavalcanti ----------------------------------------------------------------361 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (I AEC – I EC): um estudo de caso sobre as inscrições e os lugares de depósito Carlos Eduardo da Costa Campos -------------------------------------------------------376 Sem perdão: em busca de justiça (ou vingança?) usando defixiones na antiga Mogontiacum (Mainz) Renata Cazarini de Freitas ----------------------------------------------------------------398 Druidismo e Magia: Rituais Sagrados entre os Celtas Silvana Trombetta -------------------------------------------------------------------------434 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas Carlos Roberto Figueiredo Nogueira ----------------------------------------------------466 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia”: reflexões sobre as relações entre magia e scientia nos renascimentos dos séculos XV-XVI Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior----------------------------------------501 O Catimbó Nordestino Sandro Guimarães de Salles --------------------------------------------------------------534 “Evoé”: do delírio dionisíaco em Eurípides à macumba antropofágica na obra Bacantes do Teatro Oficina Dolores Puga -------------------------------------------------------------------------------559 Prefácio Ivan Esperança Rocha1 Toda a rica discussão apresentada nesse livro envolve os processos de encantamento, desencantamento do mundo e suas diversas abordagens religiosas, filosóficas, antropológicas e sociológicas, indicando suas imbricações no passado e permanências no presente, inclusive no Brasil. O berço natural do encantamento do mundo pode ser identificado nas sociedades primitivas, onde a relação dos indivíduos com forças indômitas instigou o uso de ritos mágicos em seu enfrentamento. A preocupação com a saúde das pessoas e dos animais, com a fertilidade dos campos e dos rebanhos, com o enfrentamento das adversidades climáticas e de vários outros obstáculos conduziu naturalmente num primeiro momento, ao exercício de práticas mágicas que, se por um lado, têm traços comuns a diferentes sociedades, também apresentam nuanças que as distinguem no tempo e no espaço, como visto nas culturas mesopotâmica, chinesa, romana, grega, judaica, dentre outras. Mesmo quando o movimento da “revolução urbana” exigiu o desenvolvimento de tecnologias para responder aos novos desafios sociais, políticos, administrativos, arquitetônicos, militares e diplomáticos, a magia, aliada ou não à religião, foi um caminho Possui doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo e livre docência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis). Atualmente é Professor Doutor da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis). É cocoordenador do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais da UNESP (NEAM). Foi cofundador da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR). De 2007 a 2011 foi vice-diretor e de 2011 a 2015 foi diretor da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Assis. Presidente do Conselho Curador da VUNESP de 2017 a 2022. 1 concomitante percorrido em busca de soluções. No entanto, quando as práticas mágicas começaram a contradizer as expectativas dos indivíduos, bem como das instituições políticas e religiosas, elas começam a encontrar oposição formal e informal. Neste livro, os autores tratam da presença da magia, do encantamento e da feitiçaria ao longo da história e discutem as diversas abordagens que foram feitas sobre o tema desde a Antiguidade, passando pelos mundos oriental, grego, romano e cristão, com uma ênfase no avivamento das discussões pautadas pelo racionalismo iluminista, que por algum momento assumiu o papel de responsável pelo desencantamento do mundo e combateu não apenas a religião, mas outras formas de expressão mística consideradas “irracionais” e até doentias. Os autores transitam com maestria nas obras de importantes autores que se debruçaram sobre o tema, como James Frazer que traça a partir de uma perspectiva evolucionista uma trajetória que começa na magia, passando pela religião e que culmina na ciência, e Weber e Nietzsche, que propõem um desencantamento do mundo que inclui o declínio das crenças mágicas e a dessacralização das atitudes humanas. Entende-se, no entanto, que este alinhamento teórico se distancia da realidade em que magia, religião e ciência não se excluem mutuamente. O movimento de banimento da magia inclui também tudo aquilo que se contrapõe ao instituído, ao estabelecido, a um status quo. O preconceito e a marginalização aumentam principalmente quando a magia, o encantamento e a feitiçaria são associados à ação de mulheres, minorias ou grupos subalternos, como visto claramente na Inquisição, mas ainda hoje manifestos. Há, portanto, uma longa e complexa história da magia e temas relacionados que identificam os responsáveis pela sistematização teórica mais densa do assunto nos primeiros autores cristãos. Justino, já no século II EC inicia uma forte polêmica entre a vida cristã e o paganismo, enfatizando as diferenças entre os milagres de Cristo e as práticas mágicas consideradas demoníacas, como as dos gnósticos Simão e Menandro da Samaria. Segundo este último, a gnose ajudava a entender e controlar as forças da natureza. Em consonância com Justino, Orígenes e Agostinho também se opõem às práticas mágicas. Entre os fundamentos bíblicos que sustentavam ideias sobre a magia está o episódio das pragas do Egito, em que a ação de Moisés se confronta com as dos magos da corte do Faraó no longo relato de Êxodo 8-11. Na Idade Média, surge uma distinção entre certas magias de índole natural, expressas por exemplo no exorcismo cristão, e magias consideradas demoníacas, o que levará a reavivar a sua incriminação pela Igreja a par da heresia e da bruxaria, responsáveis por alterações climáticas, econômicas e sociais. Magos, hereges e bruxas – no compasso da Reforma Protestante, sofreriam forte repressão, juntamente com judeus e outros grupos minoritários sendo demonizados e perseguidos, como registrado no Malleus Maleficarum, ou O Martelo das Bruxas, que definia as estratégias de combate à magia agora centrada na figura das bruxas, embora o Malleus fosse criticado pela própria Igreja por exageros e heterodoxias. Este trabalho mostra a presença abundante do tema da magia na literatura, no teatro, no cinema e nos quadrinhos, o que mostra o apelo que ainda desperta na sociedade atual, como é o caso dos livros de Harry Potter traduzidos para o cinema e para o teatro, que apresentam um embate entre práticas de bruxaria que mantêm a oposição entre o “mundo das luzes” e o “mundo das trevas”. A cultura material que emerge das escavações traz à luz elementos ligados ao mundo mágico antigo, como é o caso dos amuletos muito difundidos na Mesopotâmia e no Egito, prescritos para superar problemas nas mais variadas situações da vida quotidiana envolvendo todas as camadas sociais, e que se somam aos textos de encantamentos e fórmulas mágicas em várias línguas como a suméria, acádica e elamita. A Cabala judaica iria incorporar também muitos aspectos dos amuletos. O tema do encantamento e desencantamento do mundo tem sido associado a um movimento de reencantamento, que rompe com uma visão objetiva e causal do mundo, mas que ao mesmo tempo é interpretado como derivado da ciência e da tecnologia. Finalmente, é preciso dizer que esta coletânea reúne contribuições de importantes pesquisadores em discussões que têm levado a acalorados questionamentos e a buscas de alternativas para um mundo positivista e mecanicista que vê a ideia de progresso contínuo contraposta a fortes retrocessos em diversas frentes. Ao final da leitura, sentimos que, apesar da ampla discussão realizada pelos autores, ainda há espaços a serem explorados como a forma com que o islamismo se relaciona com a magia, ou a serem ampliados como a maneira com que as crenças e visões de mundo colonialistas marcaram sua relação com as comunidades indígenas. Introdução Semíramis Corsi Silva, Flávia Regina Marquetti e Pedro Paulo A. Funari Desde a Antiguidade Clássica, escritores tentam definir o que é magia. Plínio, o Velho, escritor e oficial romano, já identificava a magia como a arte composta pela medicina, religião e astrologia (História Natural, XXX, 11). Lembrando que a medicina, em sua origem grega, era associada à religião, possuindo diversas práticas e ritos, e oficializada nos santuários de Asclépio. Segundo Hubert (1887, p. 1494-1945), a palavra magia tem emprego variável, podendo indicar a ocupação e a religião dos magos ou dos sacerdotes da seita de Zoroastro. Mas a essa magia se opõe, geralmente, à pharmakeia, ciência das plantas maravilhosas, da astrologia, da alquimia e da adivinhação, e à goeteia, caracterizada pela prestidigitação e necromancia, ou mesmo associada às carpideiras (HUBERT, 1904, p. 1494). Foi a partir do Império Romano que os ritos e as práticas divergentes da religião oficial passaram a ser associados às práticas maléficas e tornam-se ilegais (HUBERT, 1904, p. 1500). O Dicionário Aurélio (1986, p. 1064) traz dentre as suas definições três que nos interessam: 1. de arte ou ciência oculta com que se pretende produzir, por meio de certo atos e palavras, e por interferência de espíritos, gênios e demônios, efeitos e fenômenos extraordinários, contrários às leis naturais. 2. Religião ou doutrina dos magos. 3. Sociol. Instituição baseada na crença da força sobrenatural, regulada pela tradição, e constituída de práticas, ritos e cerimônias em que se apela para as forças ocultas e se procura alcançar o domínio do homem sobre a natureza. A magia corresponde assim à tentativa de alterar uma ordem estabelecida e tida como natural por meio de ações ou agentes que operam em segredo. O aspecto maravilhoso, improvável e a incompreensibilidade são características das visões sobre tais práticas. Se observarmos a definição de milagre na religião dada pelo Dicionário Aurélio (1986, p. 1133), vemos que é “qualquer manifestação da presença ativa de Deus na história humana, ou sinal dessa presença, caracterizado sobretudo por uma alteração repentina e insólita dos determinismos naturais.” Grosso modo, o que difere a mágica dos milagres religiosos aceitos como presença ou sinal de Deus é ela estar fora dos cultos e religiões oficiais, regrados pelo Estado e pela sociedade de forma mais ampla. A magia assume contornos negativos ao longo dos séculos em um longo caminho de demonização do conhecimento e cura pelas ervas, dos ciclos da terra e, mesmo de saberes superiores que possibilitavam a compreensão das leis do universo, há uma aversão ao que é diferente, ao que não participa do mesmo grupo sócio-políticoreligioso. O desejo de poder e manutenção do status quo fez surgir nas sociedades, por meio de manipulação, o medo de culturas, conhecimentos, visões de mundo e religiões díspares, levando ao ataque a todo aquele que se encontra fora dos padrões adotados como naturais ou normais pelo seu grupo. Sabendo disso, este livro surge de uma inquietação: a bruxa continua a assustar. O uso espontâneo da expressão corrente “ela é uma bruxa” demonstra a persistência no imaginário do medo irracional. Esse sentimento de medo irracional pode levar e tem levado, ao longo do tempo, à estigmatização e mesmo a destruição do diferente. Teme-se o diferente dotado de poderes sobrenaturais que nos podem afetar. Esses sentimentos estão presentes em sociedades as mais diversas, em todos os continentes e em diferentes épocas, culturas e momentos. A morte de pessoas acusadas de bruxaria e que prejudicariam os outros é atestada em toda parte. Isso se aplica às sociedades atuais, em meio à difusão de que grupos ou indivíduos, por seu comportamento ou convicções, têm o poder de prejudicar os outros, o que chega a justificar a violência e até mesmo a sua destruição. Um exemplo brasileiro recente foi o famoso caso das Bruxas de Guaratuba, divulgado em diferentes mídias, resultando em um longo Podcast de 2018, em uma série de 2021 do canal de streaming Globoplay e nos livros O Caso Evandro: Sete acusados, duas polícias, o corpo e uma trama diabólica (2021) e Malleus: relatos de tortura, injustiça e erro judiciário (2021). Tratou-se da acusação do brutal assassinato de uma criança, ocorrido em 1992, contra um grupo de sete pessoas, tendo duas mulheres, as chamadas Bruxas da cidade de Guaratuba/PR, como principais mandantes e acusadas pelo crime. Após sentenciados e presos por anos, em um processo que envolveu a opinião pública em torno do tema da bruxaria e o preconceito contra práticas de matriz africana no Brasil, foi descoberto que os acusados confessaram sob tortura. Tal processo é o mais longo júri da história da justiça brasileira. Em janeiro de 2022, as duas mulheres condenadas receberam, por parte do estado do Paraná, um pedido de desculpas pelas torturas e erros processuais. Esse caso atesta como ainda permanecem vivas antigas crenças de bruxas assassinando crianças a fim de realizar seus rituais, presentes já em uma literatura bem remota, como em Horácio (Epodo 5) e Lucano (Farsália, VI, 558-559). Além disso, o caso de Guaratuba mostra como, no Brasil, o imaginário negativo em torno da magia se ressignifica cruzado com o preconceito contra as religiosidades afro-brasileiras. Sociedades ou grupos humanos auto definidos como agnósticos ou ateus não deixam de apresentar a crença em poderes ocultos de pessoas para prejudicar os outros. Esse tipo de sentimento tem sido acentuado no ambiente virtual tão propício ao medo conspiratório. A inquietação induziu-nos à reflexão, a pensar nos múltiplos e contraditórios aspectos da bruxaria em suas manifestações, narrativas e percepções. Há uma grande diversidade de aspectos sobre o tema, a começar por sua associação às mulheres, a tal ponto que chega a haver títulos hilários como: Na Rússia ortodoxa, as bruxas eram homens (https://zap.aeiou.pt/russia-ortodoxa-bruxas-homens-487307). “A bruxas eram homens”, não eram bruxos! Isso mostra tanto que há um viés de gênero, quanto sua delimitação cultural e histórica. Há bruxos também, claro. Além disso, a bruxaria não precisa ser ameaça, pode ser a favor do bem dos outros, às vezes chamada de “magia branca”, o que remete a uma oposição entre negro/negativo e branco/positivo. Negro não se refere, neste caso, à cor da pele, mas à dificuldade de enxergar o perigo, e branco à luz que tudo esclarece, mas não muda o uso racista de branco e negro aplicado à magia. Tudo isso inquieta-nos e pareceu-nos apropriado e importante juntar um grupo de estudiosas e estudiosos que pudessem refletir sobre os diversos e contraditórios aspectos da bruxaria ou da mágica, em diferentes culturas e épocas, a partir de diversas disciplinas acadêmicas, mas também tendo em vista a repercussão social do tema hoje no mundo e no Brasil, em particular. Convém tratar um pouco sobre como a magia/bruxaria foi (mal)dita pela ciência acadêmica, em busca da objetividade e da isenção. As últimas perseguições ou caça às bruxas oficiais ou sancionadas pelas instituições, na Europa, ocorreram no século XVIII. Isso já indica como o racionalismo iluminista foi marcante para a substituição da estigmatização religiosa e institucional pela moderna classificação cientificista da bruxaria como forma de perturbação mental. O filósofo Michel Foucault trata bem dessa passagem de uma sociedade moderna ocidental fundada no que chamou de poder soberano para o poder disciplinar (MUHLE, 2002/2003). Este fundase na razão, na classificação e controle. Ainda que a bruxaria continue a ser praticada em toda parte, inclusive na Europa, a razão iluminista viria a moldar o estudo acadêmico do tema por longo tempo. Prevaleceu uma contraposição entre religião e magia, ambas consideradas irracionais e ilusórias, mas diferenciadas de algo superior: a institucionalização da religião frente à atomização da bruxaria. Também, e como consequência, a religião pôde ser interpretada como normativa e estabilizadora das relações sociais, à diferença da bruxaria e sua função destrutiva da ordem. Havia, ainda, uma percepção imperialista e colonialista, para opor a religião institucional, se possível ocidental, mas não só, frente às práticas de indígenas africanas, americanas, asiáticas ou da Oceania. Napoleão apresentou-se como defensor do Islã, no Egito, pelo princípio prático de uma religião institucionalizada, qualquer uma, a favorecer o domínio (SPILLMAN, 1969). A magia fugia do controle. Napoleão defendia a religião institucionalizada, frente ao descontrole da magia. Edward Burnett Tylor (2012) em seu Cultura Primitiva (1871) teorizava a magia como perniciosa ilusão. James Frazer (1890), no seu O Ramo Dourado (1890) estabelecia uma ordem em uma visão evolucionista, da magia, para a religião, culminando na ciência. Os primeiros sociólogos e antropólogos, como Durkheim (2003) (As formas elementares da vida religiosa, 1912), Radcliffe Brown e Malinowski enfatizaram as funções sociais das práticas mágicas (HOMANS, 1941), com Evans-Pritchard (2013) completando com a inclusão da magia no âmbito da religião e na cultura. Max Weber (1919) chegou a propor um desencantamento (Entzauberung) do mundo, um declínio das crenças mágicas, frente à racionalização da modernidade ocidental. O conceito agenciado por Weber é Zauber, relacionado com a noção de poder, dýnamis, daí mágica, encanto, força superior. Até hoje, esse conceito weberiano de uma modernidade desencantada tem gerado muita discussão. Como quer que seja, as ciências sociais foram as grandes animadoras do estudo do tema, que tardaria mais a chegar à História, Filologia, Filosofia ou Arqueologia, sempre com grande influxo da teoria social proveniente da Antropologia, da Sociologia e mesmo da Ciência Política. Alguns momentos históricos mereceram particular atenção, com destaque para a modernidade, quando os ambientes católicos e protestantes perseguiram as bruxas (e os bruxos), aquelas pessoas todas acusadas de bruxaria. Pouco a pouco, ampliou-se esse interesse para outras épocas e culturas, da Sibéria e o seu xamanismo à África, Ásia, América, do presente ao passado pré-histórico mais recuado. Há, pois, muitos desafios ao tentar pensar sobre a inquietação mencionada logo de início. São diferentes disciplinas, diversas temporalidades e culturas, uma diversidade de perspectivas, o que mostra bem, a nosso juízo, a fertilidade e relevância do tema. A começar pelo fato de que a perseguição hoje, aqui e em muitas partes do mundo, continua a apresentar-se como uma caça às bruxas, às vezes com o uso aberto e explícito desse termo, outras vezes não, mas sem deixar de usar os mesmos conceitos. O adversário ou inimigo (satan, em hebraico, é o obstáculo, o advogado do diabo, aquele encarregado de apresentar um obstáculo, aproximado do persa Angra Mainyu, ou Espírito Destrutivo) é apresentado como manipulador de forças sobrenaturais para prejudicar os outros. Por isso, deve ser eliminado. Essas bruxas podem ser as de Salem, os judeus, os comunistas, os pequenos agricultores (kulaks), os praticantes de Umbanda e de Candomblés, entre tantos outros. Este volume insere-se neste contexto acadêmico e social de estudo e reflexão sobre estes e outros tantos aspectos da magia. Nossa reflexão parte, assim, tanto em termos de representações, como também de práticas. Os vinte capítulos que compõem este volume estão reunidos em dois grandes grupos: “Rituais, oráculos e objetos mágicos” e “Magos, feiticeiras e suas práticas”, buscando, desta forma, congregar discussões que se complementam, apesar de abordarem culturas e períodos divergentes. Abrindo o primeiro bloco de textos, em Amuletos Mágicos Mesopotâmicos: entre religião e arte, Katia Maria Paim Pozzer analisa o amuleto conhecido como a “Placa dos Infernos”, objeto artístico-mágico-religioso de grande excepcionalidade que pertence às práticas religiosas no mundo mesopotâmico. A “Placa dos Infernos” é uma placa em bronze fundido e esculpido, com duas faces e uma complexa iconografia, associando, em um único amuleto, as entidades demoníacas antagônicas Lamaštu e Pazuzu. Abordando a Íynx, instrumento mágico, Fábio Vergara Cerqueira nos brinda com um texto sobre essa pequena roda, por vezes adornada de pássaros, usada em rituais propiciatórios ao amor. Em Íynx: o feitiço de amor e a religião de Afrodite e Eros na iconografia dos vasos ápulos (séc. IV AEC), o autor analisa a iconografia encontrada no período e de como o objeto seria utilizado tanto por prostitutas quanto por jovens nubentes para propiciar os dons de Afrodite. André da Silva Bueno apresenta um tema pouco conhecido do público: Feitiçaria e Alquimia na China Antiga. Segundo o autor, a feitiçaria é indissociável da história chinesa desde suas origens. Os termos “feitiçaria”, “magia” e “bruxaria” são usados de forma sinonímica, na China, para designar as tradições mágico-xamânicas herdadas e desenvolvidas desde o neolítico, e que continuam a acompanhar a sociedade até os dias de hoje. No capítulo Escravidão e adivinhação no Império Romano: Uma aproximação a partir das Sortes Astrampsychi, Filipe Noé da Silva examina as Sortes de Astrampsico, um texto oracular composto por 91 perguntas (elencadas entre os números 12 e 103) e 103 dezenas de respostas, com o intuito de compreender os interesses associados à consulta oracular realizada por pessoas escravizadas. Já Aline Dias da Silveira brinda-nos com uma lição sobre como fazer um anel mágico, ensinamento que se encontra no Libro de Astromagia, século XIII. Produzido durante o reinado de Afonso X, de Castela e Leão, o Libro de Astromagia também é um livro de imagens, entendidas como talismãs, e esta é a função do anel de Mercúrio analisado neste capítulo intitulado Magia como Fenômeno transcultural: Lição I – como fazer um anel mágico (Libro de Astromagia, séc. XIII). Passando do século XIII para o XV, o capítulo Pomadas, poções e unguentos: as reuniões secretas diabólicas em manuscritos Alpinos do século XV, de Lívia Guimarães Torquetti dos Santos, aborda os relatos oriundos de diversos julgamentos sobre os sabás e feitiçaria, nos quais indivíduos são transportados pelos ares com a ajuda de pomadas e unguentos. Em um texto repleto de encantamento, Rogério Athayde nos oferece uma visão sobre a literatura oral de Ifá em Magia, truque e feitiço: as muitas faces do encantamento na literatura oral de Ifá. Segundo o autor, são muitas as coisas que encontramos em Ifá: (i) Ifá é outro nome de Orunmilá, a divindade iorubana da inteligência, do conhecimento e da sabedoria; (ii) Ifá é igualmente o sistema de divinação, organizado a partir de 256 Odu, ou “livros volumosos”; (iii) Ifá é o corpo literário, onde podem ser encontradas as histórias e o conhecimento ancestral dos iorubás; (iv) Ifá é a medicina tradicional, o conhecimento do herbário iorubano; (v) Ifá são os poemas, os esé Ifá, que os sacerdotes da religião são treinados a recitar longamente; (vi) Ifá, por fim, é também a capacidade de proferir “palavras de poder”, os ofó, encantamentos que assegurem a efetiva realização dos rituais sagrados. Em Raios e ventos: narrativas mágicas sobre Santa Bárbara e Iansã, Debora Simões de Souza, utilizando a metodologia da observação participante, analisa um conjunto de narrativas mágicas e míticas que contêm possíveis acontecimentos da vida de Santa Bárbara e Iansã, feitas por devotas da santa e da orixá, moradoras de Salvador, na Bahia. Na leitura proposta pela pesquisadora, as narrativas sobre a vida de Santa Bárbara e da orixá Iansã são forças, ou seja, são expressões que se configuram como elementos da magia. Com Alexandre Guida Navarro descortinamos o universo das Mulheres encantadas e dos lagos mágicos presentes nas estatuetas femininas das estearias do Maranhão. Fruto de seus últimos trabalhos de campo nas estearias maranhenses, o autor discute as diferentes possibilidades de interpretação sobre as estatuetas à luz das teorias arqueológicas e etnológicas das Terras Baixas da América do Sul, como, por exemplo, o xamanismo. Fechando o primeiro grupo de textos, Raquel dos Santos Funari nos oferece um material didático sobre como trabalhar O uso da magia egípcia no ensino: os amuletos em sala de aula. A partir do conceito de inventário das diferenças, a autora explora a particularidade dos amuletos egípcios antigos e as diferenças com o mundo contemporâneo, abordando, a partir deles, conceitos como historicidade e diversidade. O segundo grupo de capítulos, “Magos, feiticeiras e suas práticas”, principia com o texto O corpo encantado. Do mito aos contos maravilhosos, de Flávia Marquetti, que faz um levantamento, desde a Antiguidade Clássica até o século XIX, da imagem de magos, feiticeiras e do espaço que ocupam na sociedade. Correlacionando informações históricas e antropológicas ao imaginário e à tradição literária sobre as bruxas. Na sequência, Semíramis Corsi Silva discute, em Gênero e Magia em Roma: as feiticeiras Canídia e Ságana na Sátira I, 8 de Horácio, a criação literária das primeiras feiticeiras de Roma e, consequentemente, personagens de grande valor para nossa percepção de elementos de gênero na criação do estereótipo da mulher praticante de magia. Horácio é considerado o poeta romano que mais escreveu sobre o tema da magia, sendo Canídia e Ságana personagens literárias que contribuíram para o desenvolvimento de um imaginário sobre a magia, mais especificamente sobre a mulher feiticeira, que acabou ultrapassando as fronteiras do antigo Império Romano, constituindo-se como um protótipo da bruxa velha e má. Juliana Batista Cavalcanti aborda um tema pouco difundido e de grande interesse: Maria, a mãe de Jesus, como uma maga: gênero, poder e magia entre os primeiros cristãos. A partir da coleção de treze códices contendo cinquenta e dois textos diferentes, todos escritos em copta, oriundos da Biblioteca de Nag Hammadi, a autora explora como Maria, a mãe de Jesus, personifica um dos três pares místicos presentes na gnose valentiniana, carregando consigo mistérios ou conhecimentos que estão disponíveis apenas aos iniciados por meio de rituais como o batismo, a ceia, a câmara nupcial e a unção. Carlos Eduardo da Costa Campos e Renata Cazarini de Freitas abordam em seus respectivos capítulos as defixiones, textos de conteúdo mágico, geralmente contendo maldições que eram escritas em tábuas ou folhas de chumbo gravadas com incisões, do período romano. Em As tabellae defixionum do Lácio (I AEC – II EC): uma análise sobre os lugares de depósito, Carlos Eduardo da Costa Campos mostra-nos os caminhos percorridos pelas inscrições presentes nas áreas portuárias de Óstia e Minturno, assim como nas Vias Ostiense, Ápia e Nomentana. A análise dos locais de depósitos das defixiones indicam áreas de vinculação de forças energéticas que eram consideradas capazes de transportar a solicitação materializada na placa de maldição aos deuses ou espíritos, de modo a conectar os agentes da magia. Renata Cazarini de Freitas em Sem perdão: em busca de justiça (ou vingança?) usando defixiones na antiga Mogontiacum (Mainz), traduz e analisa seis placas encontradas em Mainz, estas evocam a figura dos sacerdotes de Cibele (Mater Magna) conhecidos como galli, que se castravam em rituais delirantes. Outros elementos compositivos do repertório das defixiones de Mainz são a punição com morte em espaço público e a impossibilidade de redimir-se pelo crime cometido em um santuário murado. Em Druidismo e Magia: rituais sagrados entre os celtas, Silvana Trombetta analisa como eram feitas as predições do futuro pelos druidas, realizadas através da leitura de vísceras de animais sacrificados, voos de pássaros, utilização de plantas alucinógenas e uso de objetos especificamente confeccionados para tal fim, como as runas ou as colheres divinatórias. Essas práticas eram comumente utilizadas entre os povos germânicos e escandinavos e seu uso associava-se às práticas de cura. Em Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas, de Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, o foco são os sabbats e as crenças do final da Idade Média e início dos tempos modernos na Espanha, quando todas as crenças que dão vida e solidez à existência da bruxaria europeia inexistem ou estão deformadas. Em sua análise, o autor estabelece a correlação entre bruxaria, grupos estrangeiros e culturas diferentes das autóctones. Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior nos brinda, em seu texto “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia”: reflexões sobre as relações entre magia e scientia nos renascimentos dos séculos XV-XVI, com a discussão sobre as fronteiras entre religião, magia e ciência, apresentando o quanto essa relação não é tão linear como geralmente alguns teóricos apresentam. Com grande embasamento teórico, o autor faz um extenso levantamento do pensamento sobre magia e alquimia no Renascimento, demonstrando que a habilidade técnica era semelhante à potência mágica no esforço de criação de maravilhas, ambas tinham como objetivo compreender e direcionar as relações simpáticas que moviam o mundo a fim de energizar seus próprios projetos. Em O catimbó nordestino, Sandro Guimarães de Salles discute o Catimbó, uma das primeiras manifestações da prática da Jurema em contextos não indígenas, e que ainda se mantém como uma das principais referências no cenário das religiões populares nordestina. Sandro explica que a Jurema, cujo nome deriva de uma planta de igual nome, consiste em um complexo semiótico e religioso, com origem nos povos indígenas no Nordeste, fundamentado no culto a entidades denominadas de mestres, caboclos ou reis. As imagens e os símbolos presentes nesse complexo remetem a um lugar sagrado, descrito pelos juremeiros como “reino encantado”, “encantos”, “cidades da Jurema”, entre outros. A planta de cujas raízes ou cascas se produz a bebida tradicionalmente consumida durante as sessões é o símbolo maior do culto. É ela a “cidade” do mestre, sua “ciência”, simbolizando ao mesmo tempo morte e renascimento. O Catimbó e a prática da Jurema entre os povos indígenas (do período colonial à contemporaneidade) expressam uma resistência à colonialidade, segundo o autor. Fechando o segundo bloco de textos, Dolores Puga nos traz para o contemporâneo e o universo da arte com “Evoé”: do delírio dionisíaco em Eurípides à macumba antropofágica na obra Bacantes do Teatro Oficina. Discorrendo sobre os ritos dionisíacos, thiasos, e as tragédias gregas, sobretudo As Bacantes, de Eurípedes, Puga apresenta o lado estrangeiro do mito/rito e de como ele chega ao Brasil atual com o Grupo Oficina. O grupo do diretor Zé Celso Martinez Corrêa construiu um vínculo de identificação sustentado pelo viés de práticas culturais julgadas, como as religiosidades africanas e afro-brasileiras, bem como os rituais Tupinambás. O exercício de apropriação cultural, Grécia/Brasil, apontado pela autora, dialoga com vários textos presentes na coletânea, ao apontarem a xenofobia e o desprezo por culturas diferentes como mote para a feitiçaria, compreendida grosso modo como coisa do demônio. Este livro traz contribuições brasileiras ao tema, com textos de pesquisadores e pesquisadoras nacionais. Esperamos, com isso, desvendar algumas questões ligadas à magia e revelar que o correto seria falarmos de atos mágicos e não de uma magia única, uma vez que essas práticas existem em diferentes sistemas culturais e compõem a trama de suas sociedades. Semíramis Corsi Silva Flávia Regina Marquetti Pedro Paulo A. Funari Referências Documentação HORACE. Odes and Epodes. Edited and Translated by Niall Rudd. Cambridge/London: Harvard University Press, 2004 (Loeb Classical Library). LUCAN. The Civil War (Pharsalia). Translated by J. D. Duff. Cambridge/London: Harvard University Press, 1928 (Loeb Classical Library). PLINIO. 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A crença em forças sobrenaturais que regiam a vida humana se expressou em inúmeras preces e rituais mágicos. Eles eram executados por especialistas, com o auxílio de amuletos que adquiriam propriedades apotropaicas graças a enunciação de encantamentos e a realização de gestos ritualísticos. Neste capítulo propomos analisar um objeto artístico-mágico-religioso de grande excepcionalidade, o amuleto conhecido como a “Placa dos Infernos” (ENGLER; STANBERG, 2020). Introdução A configuração política baseada nas cidades-Estado mesopotâmicas contribuiu para a formação de concepções religiosas múltiplas, com inúmeros divindades. Cada cidade-estado possuía uma divindade protetora e um panteão próprio, onde a sucessão no poder e as características espirituais dessas divindades se alteravam ao longo Bacharel e licenciada em História pela UFRGS, obteve Diplôme d'Études Approfondies em Histoire et Civilisations de L'Antiquité pela Université Paris I (Panthéon-Sorbonne) em 1993, concluiu doutorado em História na Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne) em 1996 e Pós-doutorado na Université de Paris X Nanterre em 2011. Atualmente é Professora Adjunta do Curso de História da Arte, no Instituto de Artes e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1 Katia Maria Paim Pozzer do tempo (POZZER, 2008). Segundo o imaginário mesopotâmico, essas divindades estavam divididas em dois grupos: as que habitavam os céus e aquelas que residiam no mundo inferior, também chamado de infernos. O primeiro grupo era formado por deuses responsáveis pelos acontecimentos na vida terrena dos homens. Já o segundo grupo era composto por entidades de categoria inferior, que ali se encontravam como punição por terem infringido regras morais e éticas que regiam a vida divina e que eram o espelho para o comportamento humano. Segundo essa concepção, o mundo inferior também era a morada definitiva dos mortos, um lugar do qual ninguém poderia sair. Na antiga Mesopotâmia, a magia fazia parte da vida cotidiana. Ela era usada para proteção contra os demônios, curar doenças, aumentar a potência sexual, conquistar a paixão de alguém, acalmar o choro das crianças, impedir os malefícios oriundos das atividades de divindades demoníacas, além de muitas outras funções. Assim, eles acreditavam que o gesto e a palavra possuíam capacidade de intervenção no meio natural que o cercava através da magia. Os conjuros repousavam na força da palavra, uma vez que na tradição semita, o verbo era criador. Assim, a enunciação de um bem ou de um mal era suficiente para garantir sua gênese. Já os ritos manuais tinham sua origem no poder do gesto, na capacidade destrutiva ou transformadora de diversos produtos naturais ou elementos primordiais como a água e o fogo (POZZER, 2017). 22 Amuletos Mágicos Mesopotâmicos Muitos dos textos preservados são encantamentos e fórmulas mágicas nas línguas suméria, acádica, elamita, entre outras, que descrevem rituais dirigidos ao mago, as ações que ele deveria fazer, as listas dos encantamentos a serem usados para cada caso, o que deveria ser dito por ele ou pelo paciente, e os amuletos contendo excertos de magia. Os encantamentos eram ritos orais complementares às operações e gestos mágico-religiosos, realizados para combater o mal que os afligia. Estes textos eram recitados por técnicos em curandeirismo e magia, os exorcistas, āšipu2, encarregados também de levar a cabo as ações ritualísticas mágicas que poderiam ser feitas em domicílios privados ou no templo e receitar os ingredientes e os fármacos (JOANNÈS, 2000, p. 43). O propósito do ritual mágico era revogar o sofrimento que impedia o bem-estar e o desfrute normal da vida concedida a cada um. E eles eram executados com o auxílio de amuletos de caráter apotropaico (BOTTÉRO, 1987-1990, p. 201). Os mesopotâmicos acreditavam que esses infortúnios eram uma punição divina, causada por uma ação contrária aos princípios éticos da sociedade ou, por alguma ofensa aos deuses. Assim, a literatura mágica tinha por objetivo a eliminação dos males que acometiam o homem, fossem eles causados pela possessão demoníaca ou decretados por quem administrava o destino, os deuses. CAD A/II 431, em sumério chamado de lú.maš.maš/lú.ka.pirig ou lú.mu7.mu7, e em acádico de mašmaššu/(w)âšipu. 2 23 Katia Maria Paim Pozzer Os Amuletos e o Poder das Imagens A discussão sobre o status da representação visual na Mesopotâmia é uma questão fundamental para a história da arte do Antigo Oriente Próximo. A noção axiomática de que a representação é um meio de imitação de coisas reais do mundo não é válida para entendermos a arte da antiguidade oriental, uma vez que eles acreditavam no poder dos significantes e de seu status como parte integrante do real (BAHRANI, 2003, p. 122.) No vocabulário mesopotâmico a palavra acádica Ṣalmu é utilizada para se referir a representação, podendo ser traduzida por estátua, relevo, monumento, pintura e imagem. A eminente assirióloga Irene Winter (2010, p. 80) diz que a imagem não é uma réplica natural, mas sim um código convencionado, culturalmente mediado, uma representação idealizada da realidade. A imagem na antiga Mesopotâmia não era considerada como semelhante à uma realidade original que estava presente em outro lugar, mas ela continha a realidade em si mesma (imagem). Esta noção de representação seja possível era baseada na ideia que o domínio do real incluía, por definição, múltiplas camadas e um complexo sistema de signos que Bahrani (2003, p. 127) descreve como “realmetasemiótico”. O que para o pensamento moderno é ilusão, para eles está no campo do conhecimento empírico. Esta é a razão porque os textos de adivinhação são lidos literalmente como os signos cuneiformes incorporados ao real. Para os mesopotâmicos tudo pode ser lido com 24 Amuletos Mágicos Mesopotâmicos um signo que se refere a algo além da superfície aparente. Assim, a representação visual pode ser codificada, incorporada ao real e ter uma influência profética. Não existem palavras em língua acádica para nomear amuletos ou talismãs. Os amuletos mesopotâmicos poderiam ter a forma de colares de pedra, de placas em metal com cenas figurativas gravadas, de pequenas estatuetas ou ainda de selos-cilindros. Estes objetos adquiriam valor mágico a partir da sua consagração, através de encantamentos e rituais realizados a este fim. O suporte material no qual o amuleto foi confeccionado também conservava propriedades apotropaicas que poderiam ser intensificadas pela aposição de pequenas inscrições de conjuros. Estes talismãs serviam para obter a proteção particular de uma divindade, para afastar elementos maléficos e para influenciar beneficamente a vida cotidiana. Os deuses citados nestes objetos estavam entre os mais importantes do panteão: Anu (deus do céu), Enlil (rei dos deuses), Ea (divindade responsável pela criação da humanidade), Adad (deus da tempestade), Šamaš (deus sol), Ištar (deusa do sexo e da guerra) e Gula (protetora da saúde), dentre outros (BLACK; GREEN, 1998). A iconografia dos monstros Nos estudos de arte mesopotâmica, a palavra demônio é usada para identificar representações híbridas, antropozoomorfas, já o termo monstro é utilizado para nomear criaturas formadas a partir de composições de diferentes animais. Segundo E. Porada (1987, p. 2-3) 25 Katia Maria Paim Pozzer o desenvolvimento da representação de monstros e de demônios na arte mesopotâmica se deu ao longo de cinco fases cronológicas. O período de Ubaid e Uruk (3700-2900 AEC) foi a fase formativa, quando elementos de diferentes animais se combinaram pela primeira vez para compor criações híbridas. No período acádico (2334-2004 AEC), os seres maléficos eram mostrados sendo capturados ou julgados, evocando uma visão otimista da realidade, baseada na estabilidade política. Na arte paleobabilônica (2004-1595 AEC) há muitas representações mesclando motivos benéficos e maléficos da humanidade. No período cassita e médioassírio (1796-1077 AEC) a ênfase é dada às imagens de seres híbridos, com corpo humano e cabeça de animal. Já a arte neoassíria e neobabilônica (911-539 AEC) acentua a representação de divindades maléficas e de demônios que seriam índices de um novo conceito de vida após a morte, onde o mundo inferior era habitado por essas criaturas (GREEN, 2006, p. 1847). Como seres irreais, os monstros são abstrações personificadas. Essas abstrações podem ser derivadas de suas associações com certos deuses e de seu comportamento descrito na arte e na literatura, onde um conjunto de elementos, com valores simbólicos naturais, compõem suas características. Em seu estudo sobre os espíritos protetores mesopotâmicos, Wiggermann (1992, p. 150) conclui que a formação de monstros foi um processo contínuo que começou no período protoliterado (4000-3000 AEC) e continuou ao longo do terceiro e do segundo milênio. 26 Amuletos Mágicos Mesopotâmicos O antropomorfismo foi um processo longo e contínuo que não afetou todo o panteão de uma única vez. A primeira divindade que assumiu a forma humana foi Inanna, ainda que uma de suas origens seja Vênus, a estrela da manhã. Um dos mitos que confere legitimidade ao governante na cidade de Uruk é baseado no casamento do rei com a deusa, e isto seria inconcebível sem o aspecto antropomorfo da divindade. A iconografia deste mito é representada no chamado Vaso de Uruk que mostra um homem trazendo presentes para a deusa (ou sua representante humana) e recebendo em troca o poder monárquico (BAHRANI, 2011, p. 136). No final do período Akkad (2334-2200 AEC), os deuses mais importantes como Nanna, Utu, Inanna, Enki, Ninurta, se tornaram antropomórficos. O estabelecimento da complementaridade formal entre seres divinos e animais revela uma característica essencial dos monstros e dos fenômenos inspiradores que eles representam. Ao contrário dos deuses antropomórficos, os monstros estão fora da ordem natural do mundo, eles são aberrações sobrenaturais, inesperadas, imprevisíveis e ameaçadoras. Essa alteridade determina as relações entre deuses e monstros até o final da civilização mesopotâmica. O monstro é um ser híbrido por natureza que tem como atribuição primordial perturbar a ordem cósmica e, secundariamente, ter funções apotropaicas (OUMI, 2019/2020, p. 158). Cada monstro está associado a um deus que opera no mesmo campo de ação, mas enquanto a divindade abrange o todo, o monstro 27 Katia Maria Paim Pozzer se restringe a uma parcela. Enquanto os deuses eram responsáveis por uma estabilidade duradoura, os monstros intervinham nos assuntos humanos, como a preservação da vida, a morte súbita e violenta, a proteção da paz e também a guerra e as ocorrências climáticas. Essa construção conceitual se organiza em torno da própria noção de monstruosidade, que surge como resultado de questões estéticas e críticas. A entidade mitológica aparece como uma construção metafísica, ideológica e figurativa que se refere a uma certa forma de ameaça, acidental e condicional, ou a um processo de deformação que visa alterar a relação com os outros, bem como o reconhecimento da humanidade desta alteridade. Assim, o conceito de construção monstruosa gira principalmente em torno da ideia da natureza do monstro e possibilita questionar sua relação com uma determinada sociedade, permitindo uma análise histórica dessas concepções e mentalidades (WIGGERMAN, 1992, p. 168). Essas criaturas monstruosas aparecem como o espelho de reflexos e concepções das sociedades antigas e como representação simbólica da alteridade. No Oriente, os monstros se situam em um território distante da comunidade de referência que veicula os mitos sobre eles, ou em um ambiente ctônico infernal. Esta localização geográfica do monstro remete à ideia de que o Outro é diferente, porque não compartilha o mesmo espaço físico da civilização urbana. Ainda que não tenham sido encontrados textos que orientem modelos iconográficos para a composição dos amuletos e das imagens dos demônios, verifica-se que os animais presentes nas composições 28 Amuletos Mágicos Mesopotâmicos monstruosas fazem referências à fauna local, como por exemplo o escorpião, o cão, a águia, o leão, entre outros. Os Demônios Lamaštu e Pazuzu Nos períodos neoassírio e neobabilônico, veremos surgir o mito que evoca duas divindades malignas do submundo Lamaštu e Pazuzu. A iconografia da deusa Lamaštu, filha de Anu, pode ser reconhecida pela sua presença em placas de pedra e cobre, algumas das quais com inscrições que a nomeiam. Da mesma forma, o deus Pazuzu, filho do deus Hanbu e rei dos demônios do vento, é representado por um grande número de estatuetas de pedra, cobre e barro cozido, contendo encantamentos e se referindo ao seu nome. Na Placa dos Infernos, o deus Pazuzu é mostrado ameaçando Lamaštu e forçando-a a voltar para o submundo, claramente indicado pelo rio do submundo em que seu barco flutua. Trata-se de um mito literário perdido, mas que pôde ser inferido a partir da arte. A iconografia dos amuletos mudou ao longo do tempo e tornou-se cada vez mais complexa. No início do III milênio AEC, a figura de Lamaštu ocupava toda a superfície do objeto, tinha poucos detalhes e, às vezes era acompanhada de um friso de triângulos profiláticos. No decorrer da segunda metade do II milênio AEC surgem mais variantes de sua representação, sendo os triângulos substituídos por emblemas simbolizando outras divindades. Masson (2014/2015, p. 24) aponta que no I milênio AEC Lamaštu é 29 Katia Maria Paim Pozzer acompanhada também de uma cena de exorcismo e uma série de sete cabeças de animais em posição de ataque. Não existe consenso quanto a origem desta divindade. Alguns defendem que ela tenha origem em uma figura presente na mitologia proto-elamita. Nos textos das lamentações há referências a ela como “uma mulher elamita” ou “amorrita” que podem ser interpretados como a constituição de uma alteridade, onde a figura do outro é monstruosa. No período de Ur III (2140-2004 AEC) seu nome sumério era DIM.ME, que pode ser traduzido por “corpo”, “figura” ou “fantasma” e ela fazia parte de um grupo de sete demônios que não possuíam características individuais. Seu nome acádico, Lamaštu, aparece nos textos bilíngues do final do III milênio e início do II milênio AEC e passa a receber o determinativo divino “dingir” antecedendo o seu nome próprio como indicativo de sua condição divina (MASSON, 2014/2015, p. 25, n. 85 e 86). Lamaštu é uma divindade importante pois é filha de Anu, deus dos céus e irmã de Ištar, a principal divindade feminina do panteão. Segundo a mitologia, Anu, seu pai, decide expulsá-la dos céus por mau caráter e afronta a princípios éticos e morais, quando ela pede para jantar a carne e o sangue dos humanos. Lamaštu torna-se, assim, uma divindade expulsa dos céus, por sua natureza malvada e cruel, pois ao cair na terra ela passa a atacar e assassinar bebês recémnascidos. Esse ato é repudiado pelos deuses uma vez que, segundo a mitologia mesopotâmica, os homens poderiam ser castigados por não 30 Amuletos Mágicos Mesopotâmicos servirem corretamente os deuses, regra que não se aplica às crianças evidentemente, incapazes de realizarem essas tarefas (WIGGERMAN, 2000, p. 243). Atualmente o conceito de demônio é um termo com conotação judaico-cristã, bastante diferente do imaginário antigo-oriental. Na Bíblia, o demônio era um anjo caído do céu. Segundo J. Baschet (2002, p. 321) a queda dos anjos constitui o ato de nascimento do Diabo e marca o ingresso do mal no Universo: (...) esse mito é narrado em 2 Pedro 2,4; Judas 6 e explica que a queda dos anjos se deu porque foram seduzidos pela beleza das mulheres e queriam se unir carnalmente a elas. Assim, os demônios eram anjos que habitavam os céus e foram punidos por seus desejos, foram criados bons, mas transformaram-se em maus por vontade própria. Os demônios levam os homens ao pecado pela tentação e pelo vício. Já os demônios mesopotâmicos são espíritos maus que prejudicam os mortais, são seres sobrenaturais de segunda classe que agiriam sob as ordens dos deuses para punir os homens por suas ofensas (BOTTÉRO, 1987, p. 277). Os textos mencionam que Lamaštu, às vezes, se fazia passar por ama-de-leite e seu leite era um veneno, outras vezes ela estrangulava seus mártires. Ainda que os recém-nascidos fossem suas vítimas favoritas, ela podia atacar pessoas de todas as idades, provocar depressão e febre e ainda destruir o meio ambiente (ARUZ, 2014, p. 264). Lamaštu ocupa uma posição única no panteão mesopotâmico como filha do deus Anu (céu) e arquétipo das forças do caos depois de 31 Katia Maria Paim Pozzer sua expulsão do céu. Seus crimes específicos são desconhecidos, mas o mito sugere que ela tenha pedido para se alimentar da carne dos bebês. Acredita-se que ela teria sido enviada a terra como punição por desrespeitar as regras da ordem cósmica, atacando mortais com intencionalidade e sem causa evidente e que este também seria um método de controle de natalidade, segundo o imaginário da época (SAID, 2020, p. 102). Outra entidade demoníaca da maior importância no imaginário mesopotâmico é Pazuzu. Documentos de cunho religioso identificam Pazuzu como filho do deus ctônico Hanbu e como rei dos demônios alados. Wiggerman (1992, p. 72) sustenta que o nome de Hanbi/Hanpa venha da raiz linguística oeste-semítica para HNP, significando “claudicar, ser pervertido” e que essas características corresponderiam a aparência monstruosa de Pazuzu. Existem algumas hipóteses que tentam explicar a origem de seu nome. Uma delas propõe que seu nome derivaria da raiz PZZ em aramaico e que pode ser traduzida como “ser impetuoso, ágil”. Outra sugere originar-se do babilônico “pessû”, cujo significado é anão. Esta interpretação propõe ainda uma associação iconográfica com a divindade egípcia Bes, um anão disforme, protetor das mulheres grávidas e dos recém-nascidos. Pazuzu possui o determinativo divino dingir precedendo seu nome e este é um caso único entre os demônios (BLOTTIÈRE, 2005, p. 42). 32 Amuletos Mágicos Mesopotâmicos Masson (2014/2015, p. 74) avança que o demônio Pazuzu surgiu no final do II milênio AEC3 como antagonista de Lamaštu, uma entidade demoníaca feminina que se individualizou e ganhou destaque na mitologia, neste mesmo período. O mito de Pazuzu, constantemente evocado na documentação, descreve uma confrontação dele com a “montanha potente” que resiste à sua autoridade. Ele é comparado à um “vento furioso” que acaba por submeter a montanha e seus habitantes maléficos. Assim, este demônio-deus vence seus inimigos utilizando-se de forças da natureza e de sua potência destruidora. A Placa dos Infernos Atualmente conservada pelo Departamento de Antiguidades Orientais do Museu do Louvre, em Paris, a placa do conjuro, conhecida como a “Placa dos Infernos” e identificada pelo código AO 22205, foi confeccionada na Assíria, entre 911 e 604 AEC e encontrada na Síria, segundo o catálogo online do museu. Trata-se de uma placa em bronze fundido e esculpido, com duas faces e uma complexa iconografia, associando, em um único amuleto, as entidades demoníacas antagônicas Lamaštu e Pazuzu (Musée du Louvre, 2022). 3 Ele está presente em um grande número de amuletos apotropaicos deste período. 33 Katia Maria Paim Pozzer Figura 1: Placa dos Infernos c. 911-604 AEC Bronze, 13,8 X 8,8 X 2,5 cm. Paris, Museu do Louvre Fonte: Aruz; Graff; Rakic, 2014, p. 264 Esta placa de bronze apresenta, no verso, quatro registros, demarcados com linhas entre eles. Na linha superior observamos um friso com os símbolos4 de importantes divindades (da esquerda para a direita): a tiara com chifres do deus Anu5; o bastão com cabeça de carneiro de Enki6; o raio de Adad7; a pá de Marduk8; o duplo estilete do deus Nabû9; a estrela de oito pontas de Ištar10; a lua crescente de Sîn11; a lamparina de Nuska12 e os sete círculos das Pleiades13. A O simbolismo associado às divindades é tema amplamente estudado e grande parte deles está estabelecido (Black; Green, 1998). 5 Anu, rei dos deuses. 6 Enki, aquele que concebeu a humanidade. 7 Adad, o deus da tempestade. 8 Marduk, o deus supremo de Babilônia. 9 Nabû, o deus da escrita. 10 Ištar, deusa do sexo e da guerra. 11 Sîn, o deus-lua. 12 Nuska, deus associado ao fogo e à luz. 13 Pleiades, a constelação astral, símbolo dos 7 demônios. 4 34 Amuletos Mágicos Mesopotâmicos segunda linha mostra sete demônios antropozoomorfos, com corpos humanos e cabeças de animais (da esquerda para a direita): pantera; leão; lobo; carneiro; íbex; águia e serpente. Os sete demônios, em posição de ataque, são representados com a cabeça de perfil e o tórax em posição frontal, portando um longo vestido, com o braço direito levantado. O terceiro registro contém uma cena de exorcismo ou de cura de um doente. Da esquerda para a direita vê-se uma lamparina que repousa sobre um tripé, o doente está em decúbito dorsal, com o braço direito elevado a frente, sobre uma estrutura que pode ser uma cama ou mesa. Ele está cercado por dois ašipu, representados de perfil e vestidos com a capa de homens-peixe14, segurando na mão esquerda um pequeno balde, tendo a mão direita levantada à frente. Ao lado, observa-se dois seres com corpo humano, cabeça de leão e garras de ave de rapina no lugar dos pés, representados um de frente para o outro, com as mãos direitas se tocando e a esquerda levantada, que podem ser identificados como ugallu, figuras protetoras de doenças ou demônios maléficos e ao seu lado vemos o deus Lulal-irra (BLACK; GREEN, 1998, p. 119-121). A linha inferior possui muitos elementos, mas destaca-se, no centro, a figura de Lamaštu, com cabeça de leão, corpo recoberto de pelos e garras no lugar dos pés. Ela está com a perna direita flexionada sobre um asno, que por sua vez, tem as patas dianteiras ajoelhadas dentro de uma embarcação que flutua em um rio com cinco peixes, e segura duas serpentes, uma em cada mão. Lamaštu amamenta um cão e um porco e sob sua perna esquerda há uma tênue figura de um escorpião, sua perna direita parece estar 14 Um tipo de exorcista, geralmente representado em dupla. 35 Katia Maria Paim Pozzer amarrada a um pequeno arbusto na beira do rio e duas tamargueiras (MASSON, p. 71, n. 325). No canto superior direito deste registro observa-se uma jarra de óleo, um cálice, uma fíbula, um pé de asno, um par de sapatos e um cobertor simbolizando as provisões necessárias para Lamaštu realizar sua viagem ao mundo dos mortos. Contudo, outro elemento traz grande originalidade a este amuleto. Sobre a parte superior da placa, temos uma escultura de vulto representando a cabeça e os dedos de Pazuzu, com a boca aberta em posição frontal e ameaçadora, literalmente agarrando a placa. O reverso mostra as costas de Pazuzu, suas quatro asas, o rabo de escorpião, o pênis em forma de cabeça de cobra e as garras de águia nas patas traseiras. A confecção da placa foi realizada com uso de técnica mista. Inicialmente o bronze foi derretido e depositado em um molde e, posteriormente, com a escultura fria, foi feita a gravação da imagem do reverso. Podemos sugerir uma leitura simbólica da iconografia deste amuleto, destacando alguns aspectos ali evocados. O primeiro elemento que chama a atenção é a associação entre Lamaštu e Pazuzu em um único objeto, onde a gestualidade deste último realça sua função protetora, uma vez que ele “segura fortemente” a placa e grita para espantar a demônio (sua boca aberta, com as presas à mostra remete ao ato de gritar). O segundo elemento é composto pelas duas primeiras linhas do verso, onde estão representados os principais atributos de divindades supremas do panteão. Na primeira linha, a evocação de símbolos e/ou objetos seriam suficientes para informar 36 Amuletos Mágicos Mesopotâmicos todos aqueles que visualizassem a placa sobre os deuses envolvidos nos rituais relacionados à Lamaštu. A segunda linha traz a versão antropozoomorfa dos setes demônios da qual, segundo a mitologia do período arcaico, Lamaštu fazia parte e estaria na sua origem, antes de seu processo de individualização nos textos. O terceiro elemento mimetiza um ritual de exorcismo, onde o paciente está cercado pelos sacerdotes e guardiões, que representa uma prática mágico-medicinal bastante difundida na Mesopotâmia. O último registo condensa os principais conjuros contra a demônio, representando Pazuzu em gesto de ataque. Lamaštu, por sua vez, está cercada de animais referenciados nos textos de sua mitologia. A vegetação, os objetos e a embarcação fazem uma clara alusão à viagem que Lamaštu é conjurada a realizar, para o mundo inferior, desfazendo, assim, a ameaça aos humanos. Ao contrário de outros demônios do antigo Oriente Próximo, Lamaštu tem uma mitologia composta por uma série de encantamentos e rituais em textos do II e do I milênio AEC acompanhada de uma rica iconografia. Em seu estudo sobre a Placa dos Infernos, Masson (2014/2015) apresenta algumas das inscrições dos amuletos de conjuros contra Lamaštu. O autor identifica três tipos de amuletos, segundo os diferentes períodos históricos. O tipo 1, do período paleobabilônico ao médio-babilônico e o tipo 2, do médioassírio contêm, em sua maioria, um encantamento que apresenta os méritos de Lamaštu, depois anuncia que ela é uma ameaça para a humanidade e encerra com um 37 Katia Maria Paim Pozzer conjuro dirigido diretamente a ela. A seguir apresentamos um excerto15 (MASSON, 2014/2015, p. 62): Oh Lamaštu, filha de Anu, eminente entre os deuses. Innin, a maior princesa Mas também pegajosa, grande demônio asâkku, Fantasma que oprime fortemente a humanidade: Esta Lamaštu exaltada não deveria se aproximar do homem, Possas tu estares ligada pelo destino dos céus, Ligada pelos destinos da terra! O terceiro tipo, prevalente nos períodos neoassírio e neobabilônico, apresenta a entidade maléfica diferentemente. O texto enuncia os sete nomes de Lamaštu e depois dirige um conjuro diretamente a ela, para enviá-la aos céus. A maioria dos conjuros menciona sua viagem ao mundo dos mortos, nas profundezas da terra. Exortá-la a ir para os céus rompe com a tradição textual, mas ao mesmo tempo alude à sua situação original de divindade superior que habitava os céus. O excerto16 diz (MASSON, 2014/2015, p. 62): “Dimme, criança de Anu”, é seu primeiro nome, O segundo é “irmã dos deuses das ruas”, O terceiro é “espada que corta o crânio”, O quarto é “ela que acende o fogo”, O quinto é “deusa do rosto furioso”, O sexto é “aquela que confiamos, a filha adotiva de Irnina”, O sétimo é “pelo poder dos grandes deuses tu possas ser conjurada” Com os pássaros do céu, voe! Uma cabeça em terracota conservada no Museu do Louvre (AO 2490) contém uma inscrição que diz: “Eu sou Pazuzu, o 15 16 Traduzido e adaptado pela autora. Traduzido e adaptado pela autora. 38 Amuletos Mágicos Mesopotâmicos deformado, filho de Hanpa, o rei dos maus demônios de lilû17 [...].” Porém Pazuzu é uma criatura ambígua, ao mesmo tempo que ele é considerado como uma entidade demoníaca assustadora, também é tido como uma divindade protetora, venerada no âmbito doméstico. Seu aspecto monstruoso seria responsável por sua eficaz capacidade de espantar os males. Daí decorre, também, a importância de sua iconografia e explicaria as centenas de amuletos encontrados em toda a Mesopotâmia, com sua representação plástica. Inúmeros exemplares de amuletos em argila, pedra, selos-cilindros, placas de bronze, etc., atestam seu caráter de devoção popular. Conclusão O antigo Oriente Próximo apresenta uma infinidade de práticas religiosas ligadas ao aspecto apotropaico dos demônios, como os rituais para afastar espíritos malignos e criaturas monstruosas que são evocados na Placa dos Infernos. Lamaštu, criatura híbrida, cujo corpo é o de uma mulher dotada de garras de ave de rapina e cabeça de leoa, aterroriza a humanidade, causando abortos e mortalidade infantil. A documentação Tríade de demônios noturnos composto por Lilû e Lilitû, um par de entidades demoníacas privadas de maridos e esposas, em busca de um parceiro. Lilû, demônio masculino, ataca mulheres durante o sono enquanto Lilitû, figura feminina estéril, ataca os homens. O terceiro membro é Ardat-Lili, uma virgem que nunca conheceu nenhum dos aspectos do amor e está destinada à esterilidade perpétua. Ela representa o fantasma de meninas que morreram antes de se casarem e terem filhos. Seus ataques visam romper casamentos, mas também ataca crianças pequenas para devorá-las (MASSON, 2014/2015, p. 74, n. 334). 17 39 Katia Maria Paim Pozzer textual revelou ritos de conjuros, onde o sacerdote colocava um colar de pedras no pescoço da mulher grávida a ser protegida, recitava um encantamento para afastar o monstro e descrevia seus inúmeros poderes. Um dos encantamentos dá a seguinte descrição do monstro: "Grande é a filha do altíssimo que tortura bebês [...] seu abraço é mortal, ela é cruel, furiosa, raivosa, predatória [...] ela toca as barrigas das mulheres que dão à luz, ela arrebata seus bebês de mulheres grávidas [...] sua cabeça é a cabeça de um leão, seu corpo é o corpo de um burro, ela ruge como um leão, ela uiva incessantemente como uma cadela demoníaca (WIGGERMAN, 2000, p. 242). A invocação lembra a origem do monstro e seus poderes. A cerimônia encerra com a oferta de provisões de comida ao monstro para que este deixe o corpo da vítima e fuja para longe, encontrando, assim, a escuridão. O anverso da Placa do Infernos celebra essa viagem de Lamaštu aos infernos, com o deus Pazuzu em posição de ataque, forçando-a a voltar para o submundo, representado pelo rio do mundo inferior, no qual seu barco flutua. O demônio Pazuzu é uma figura ambígua, pois ao mesmo tempo que é um monstro disforme e perigoso, simbolizando os ventos frios do Norte, é uma divindade popular com grande capacidade protetora contra Lamaštu. Fontes epigráficas atestam encantamentos usados para pedir sua proteção contra os ventos pestilentos vindos do Oeste, que se destaca na inscrição: “Eu sou Pazuzu, filho de Hanpa, rei dos demônios lilû. Eu mesmo subirei a poderosa montanha trêmula, os ventos que sopram contra ela são direcionados para o 40 Amuletos Mágicos Mesopotâmicos oeste. Eu mesmo quebrei suas asas […]” (FINKEL; GELLER, 1997, p. 137). Outros conjuros, ainda, pedem que Pazuzu interfira no contexto de práticas mágicas relacionadas à remoção do mal, e em particular, no exorcismo para cura de certas doenças infecciosas. A placa também evoca práticas de culto atestadas no antigo Oriente Próximo, com os homens-peixe, exorcistas especializados em rituais mágico-medicinais, como àqueles presentes na Placa do Infernos. A Placa do Infernos se constitui em um objeto artístico ímpar na iconografia mesopotâmica, pela sua beleza plástica, exímia técnica e por evocar uma complexa mitologia de monstros e demônios que aterrorizavam e protegiam a humanidade. Referências Documentação Musée du Louvre. Plaque de conjuration. AO 22205. Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/cl010120479. Acesso em: 06 jun. 2022. Bibliografia ARUZ, J.; GRAFF, S.; RAKIC, Y. (Eds.). Assyria to Iberia – at the Dawn of the Classical Age. New York: Metropolitan Museum of Art, 2014. BASCHET, J. Diabo. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.-C. (Orgs.). Dicionário Temático do Oceidente Medieval. Coordenador da tradução: Hilário Franco Júnior. Bauru: Edusc, 2006, p. 319-331. BAHRANI, Z. The Graven Image. Representation in Babylonia and Assyria. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003. BAHRANI, Z. Women of Babylon. London and New York: Routledge, 2011. 41 Katia Maria Paim Pozzer BLACK, J.; GREEN, A. 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IV AEC, associando-se a cenas de conotação amorosa, ligadas com frequência a Eros e a Afrodite, de quem este é um atributo, como em um loutrophoros conservado no Paul Getty Museum, em que vemos a deusa, identificada por uma inscrição acima de sua cabeça, em companhia de Zeus, identificado também por inscrição, sentado sobre seu trono, no interior do seu palácio – ela segura com a mão direita uma íynx, enquanto um pequeno Eros repousa sobre seu braço (Fig. 1). No entorno, relatos míticos visuais de várias das conquistas amorosas de Zeus, justificando assim por que Agradeço o suporte financeiro recebido da Humboldt-Foundation, Alemanha / Programa Pesquisador Experiente e Programa Alumni, da École française de Rome / Programa Pesquisador Residente, e do CNPq / Programa Bolsa Produtividade PQ-1d em Arqueologia Histórica. Sou grato ao apoio institucional do Instituto de Arqueologia Clássica e Arqueologia Bizantina / Universidade de Heidelberg, e ao Centre Jean Bérard, Nápoles. Meu agradecimento especial à colaboração de Reinhard Stupperich, Nicolas Laubry e Claude Pouzadoux. Os argumentos e conclusões são de responsabilidade exclusiva do autor. 2 Professor Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista Produtividade CNPq PQ1d em Arqueologia e Membro do COSAE/CNPQ - Comitê de Assessoramento em Antropologia, Arqueologia, Ciência Política, Direito, Relações Internacionais e Sociologia. Pesquisador Visitante na Universidade de Heidelberg - Instituto de Arqueologia Clássica. Pesquisador da Fundação Humboldt/Alemanha - modalidade Pesquisador Experiente - Arqueologia Clássica (desde 2014). Chercheur résident / pesquisador residente na École française de Rome. 1 44 Íynx o pintor escolheu usar como atributo da deusa esta rodinha mágica que simboliza seu poder de sedução. Figura 1: Loutrophoros ápulo de figuras vermelhas. Pintor de Louvre MNB 1148. c. 330 AEC Malibu, J.Paul Getty Museu, 86.AE.680. Public Domain. @ Paul Getty Museum - Open Content Program. Disponível em: https:// www.getty.edu/art/collection/object/103WEG. Acesso em: 30 mai 2023. Um exemplo de como o objeto costuma ser representado na iconografia ápula pode ser apreciado na peliké Dresden 526, datada de 340-330 AEC (Fig. 2a), em que uma mulher, à direita, no papel de oficiante de ritual de iniciação amorosa de futuros noivo e noiva (CASSIMATIS, 1993, p. 103-111; VERGARA CERQUEIRA, 2018a, p. 190), segura um espelho, com a mão esquerda apoiada sobre o joelho, e, com a direita estendida, uma íynx, suspensa por um fio duplo. 45 Fábio Vergara Cerqueira Figura 2a-b: Peliké ápula de figuras vermelhas. The Egnazia Group (RVAp 18/140). c. 340-330 BC. Dresden, Staatliche Kunstsammlungen, DR526. CVA Dresden 1, pr. 4-5. ©Skulpturensammlung, Staatliche Kunstsammlungen. Foto: Elke Estel/Hans-Peter Klut. Agradeço a colaboração de Barbara Anderson. A íynx que analisamos aqui, como parte do repertório iconográfico ápulo, é um dos signos recorrentes na constituição da semântica visual que representa o imaginário do amor na pintura de vasos da Magna Grécia, integrando uma rede de signos/objetos que compõem esta teia de significação (CASSIMATIS, 2000, p. 47; BAGGIO,2013; VERGARA CERQUEIRA, 2013), tais como o sistro ápulo, o espelho (VERGARA CERQUEIRA, 2018), a bola (SCHNEIDER-HERRMANN, 1971), o leque (BAGGIO, 2018, p. 43; SCHNEIDER-HERRMANN, 1977, p. 35), a phiale, a patera, a pia lustral (louterion) (CASSIMATIS, 2014, p. 155; GIACOBELLO, 2020, p. 199), a fita (tainia), a coroa (stéphanos), as aves (como o pato, o cisne, o pombo e o próprio passarinho chamado igualmente 46 Íynx íynx), as flores (como a rosa), as plantas (como o mirto, na forma de arbusto ou ramalhete) e frutas (como a romã e a maça) (GIACOBELLO, 2020, p. 199; LAMBRUGO, 2018, p. 248-249; TOUZÉ, 2009). A peliké de Dresden exemplifica bem, em suas duas faces, a representação destes signos/objetos nas cenas de rituais de iniciação amorosa (Fig. 2a-b). O mesmo sistema de signos, com as variações de seus arranjos, pode ser apreciado na pronochoe Londres F373, datada de 340-320 AEC (Fig. 3) O vaso do Museu Britânico apresenta a própria deusa Afrodite, sentada, ao centro, como amante, com um cisne no colo, que ela acaricia, diante da figura de seu amado Adônis, e, na sua retaguarda, Eros com uma bola e uma íynx. Entre ele e o diphros okladias (banco dobrável) em que se senta a deusa, um sistro ápulo, instrumento musical que na iconografia ápula vale também como atributo da deusa. No canto direito, no chão, uma rosa, no campo, uma rosácea, e, ainda, uma tainia e um stéphanos de folhas aberto. Figura 3: Pronochoe ápula de figuras vermelha. Proveniência: Ruvo, Apúlia. Grupo de Copenhague 4223. c. 340-320 AEC Londres, BM, F373 (1856,1226.50). 47 Fábio Vergara Cerqueira Compreender melhor a íynx, em suas várias dimensões, pode contribuir para uma melhor interpretação do imaginário do amor representado de modo tão frequente na pintura de vasos de tradição grega do Sul da Itália ao longo do século IV AEC – interpretação não só do imaginário, como da mística e das crenças, da magia e dos rituais praticados na esperança da felicidade amorosa. Figuras 4 e 5: pássaro íynx 4 e 5 prints de tela, do canal Animal Narrado, do youtube, minutagem 4’’48’ e 5’’20’ Na sequência veremos, porém, que o termo íynx não se referia somente a este objeto, mas também a um animal (GOW, 1934), a uma entidade religiosa (uma ninfa, que era uma maga) e a um feitiço (SEGAL, 1973; DETIENNE, 1972, p. 160) – além de outros 48 Íynx significados que incorpora com o passar do tempo – e que esses diferentes significados, ligados ao mesmo significante íynx, articulavam-se em um mesmo campo cultural de significação. O vocábulo íynx continha vários significados. A palavra, em si, era usada também para encantamentos amorosos. O termo designava ao mesmo tempo o objeto circular e um passarinho, que na verdade dava nome a esta rodinha. O pássaro íynx pertence a uma espécie de pica-pau eurasiano conhecida como Jynx torquilla, ou simplesmente “torcicolo”, medindo cerca de 16cm de comprimento. Com frequência é visto com o pescoço esticado (Fig. 4) e se caracteriza por um movimento singular ao torcer o pescoço em até 180º (Fig. 5), o que lhe permite e até mesmo simular uma cobra quando precisa defenderse (PIRENNE-DELFORGE, 1993, p. 283)3, como aponta a descrição de Aristóteles (História dos Animais, II.12.504a ; cf. Eliano, Da Natureza dos Animais, VI.19): Poucas são as [aves] que têm dois dedos voltados para a frente e dois para trás, como é o caso do chamado picapau [íynx]. Esta é uma ave pouco maior do que o tentilhão, com penas matizadas, e são seus traços particulares a disposição dos dedos e a língua, que se parece com a da serpente. De facto, pode projectá-la numa extensão de quatro dedos, e voltar a dobrá-la sobre si própria. É capaz de virar o pescoço para trás sem mover o resto do corpo, como as cobras. Tem garras grandes, mas de estrutura semelhante às da gralha. Solta gritos estridentes. Para uma descrição da espécie e seus movimentos singulares de cabeça, sugiro o vídeo “Torcicolo – o pássaro que imita serpente?! (Jynx Torquilla)”, no Canal “Animal Narrado” do Youtube (veja os movimento de pescoço a partir de 4’50’’). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ro1YbQ5GCcU Acesso em: 30 mai 2023. 3 49 Fábio Vergara Cerqueira A Íynx como objeto, como pássaro, como ninfa e como encantamento Como objeto mágico, podia ser usado por mulheres (Nico) ou homens (Jasão), apesar de que, na pintura de vasos, este dispositivo aparece como uma prerrogativa feminina (TORRES, 2002, p. 203). Um epigrama amoroso anônimo (Antologia Palatina, V.205) nos revela alguns aspectos sociais sobre a roda mágica: A íynx de Nico, que sabia atrair um homem do além-mar e tirar jovens do seu quarto, que era talhada na ametista diáfana e toda cravejada de ouro, Nico lhe consagrou, ó Cípria, como seu bem, seu tesouro, com a lã vermelha de um cordeiro macio em que está enrolada; ela recebeu de presente de uma maga de Larinse4. Assim, Nico era uma mulher, não uma maga, que recebeu a íynx de presente de uma feiticeira. Ela sabia manuseá-lo para satisfazer suas vontades sexuais, e, talvez quando o avanço da idade impõe, ela a dedicou como oferenda a Afrodite. Então, tratava-se de um objeto mágico usado por pessoas comuns, não exclusivamente por magos ou magas. Possivelmente, Nico era uma cortesã, que fazia uso da rodinha mágica para conquistar seus clientes sexuais, e assim, é grata a Afrodite, a quem oferece o instrumento quando já não faz mais uso dele. Sobre a materialidade, o objeto se compunha de um pequeno aro, perpassado por fios (Fig. 6), que, em sendo esticados, faziam-no girar (Fig. 7) daí a relação com o movimento de torção da cabeça do passarinho. Esticando e relaxando levemente os fios, girava para um lado, e depois para outro (GOW, 1934, p. 3; PIRENNE-DELFORGE, 4 Tradução livre. 50 Íynx 1993, p. 284). Esta roda giratória possuía uma finalidade mágica diretamente ligada à natureza mítica do pássaro que lhe dá nome. No mito narrado em Píndaro, Píticas 4.380, Afrodite presenteia esse pássaro a Jasão, conferindo-lhe poderes mágicos para conquistar a princesa Medeia. Esse poderoso encantamento de amor era do tipo agoge, ou seja, que fazia a vítima do feitiço perder o controle, e ir ao encontro de quem aplicava a magia (FARAONE, 1999, p. 56-57). Afrodite teria inventado este objeto mágico, prendendo o passarinho a uma pequena roda giratória, suspensa por quatro ou seis fios, que giraria e produziria um som. Figura 6: Proposta de reconstituição de uma íynx de acordo com pintura de vasos ápulos, em Gow, 1934, p. 1-13, fig. 4-5. Figura 7a-b: Peliké ápula de figuras vermelhas. Pintor de Licurgo. c. 360-345 AEC Ruvo, Museo Jatta, inv. 36727 (J 415). Foto: Fábio Vergara Cerqueira (2022). 51 Fábio Vergara Cerqueira No objeto em si, tal como testemunhado na iconografia da pintura de vasos e de outros suportes, diferentemente do referencial mitológico, não haveria um pássaro preso a ele (Fig. 2a, detalhe). Mas, em alguns objetos de terracota remanescentes do período arcaico, passíveis de identificação como a íynx enquanto roda mágica, há cabeças de passarinho ajustadas à roda (Fig. 8), que têm sentido funcional e simbólico ao mesmo tempo, com base em referências míticas. Figura 8: Íynx. Cerâmica. Período geométrico tardio. Proveniência: Faleron, Ática. 750–700 B.C. Boston, Museum of Fine Arts, 28.49. Disponível em: www.mfa.org. Acesso em: 30 mai 2023. Píndaro, Nemésias 4.56 relata ainda outra história, que teria cronologia anterior ao mito envolvendo Afrodite: Íynx na origem seria uma ninfa arcadiana, filha de Pan e de Eco, cujos encantamentos teriam feito Zeus se apaixonar por Io (ou pela própria ninfa), razão pela qual Hera a transformou neste pássaro. No loutrophoros de Malibu (Fig. 1), a presença de Afrodite, junto a Zeus em seu palácio no Olimpo, com a íynx, é ao mesmo tempo uma referência mítica à conquista de Io por Zeus e à garantia de sedução que o encantamento 52 Íynx de amor provocado por este objeto propiciaria. Lembra ainda, conforme Píndaro Píticas IV.10.212-215sq, que foi Afrodite que inventou este objeto mágico, prendendo o pássaro íynx a uma roda de madeira com quatro raios. Para Chantraine, o torcicolo seria um pássaro apropriado para ser usado na “magia amorosa precisamente em razão deste movimento de torsão que ele pode fazer ao redor de si, atrelado a uma roda que é posta em rotação para segurar a pessoa amada” (CHANTRAINE, 1968, p. 473). O vocábulo Íynx e seu campo de significação Vale olharmos com mais atenção a semântica e etimologia vinculadas à palavra ἴυγξ (íynx), bem como a termos a ela ligados por derivação a partir de seu radical. Além disso, os termos trcochístos e rhómbos são por vezes empregados com significados compartilhados ou cruzados. O primeiro significado de íynx apontado por Little, Scott, Jones (1940) é do pássaro chamado “torcicolo”, pica-pau eurasiano descrito acima, que leva o nome científico Jynx torquilla, como referência à denominação grega. Para Anatole Bailly, a designação serviria também em geral para “passarinho”. Ao mesmo tempo, o pássaro íynx, ao ser fixado a uma roda giratória, seria usado para restaurar o amor entre amantes infiéis, corroborando o relato mítico em Píndaro, Píticas, IV.10.212-215, que compreende também por derivação a denominação do objeto em si, a roda mágica. 53 Fábio Vergara Cerqueira Por conseguinte, o termo designa ainda “encantamento”, como em em Filóstrato, Vida de Apolônio de Tiana, VIII.7, onde usa ἴυγγας (íyngas) como “feitiço” para cura de doença, mas também “encantar” como poder de sedução, como aquele que o olhar da mulher exerce sobre o homem para persuadi-lo (HELIODORO, Etiópicas, VIII.5). Bailly (2020), mais explicativo, indica o uso do termo para designar “feitiço de amor”, “por que se serviam deste pássaro nos encantamentos mágicos”, como em Píndaro, Píticas IV.380. Xenofonte, Memoráveis, III.11.17 referia-se ao uso combinado das rodas mágicas (iýngōn), das poções (phíltron) e dos mantras entoados (epōdōn): εὖ ἴσθι ὅτι ταῦτα οὐκ ἄνευ πολλῶν φίλτρων τε καὶ ἐπῳδῶν καὶ ἰύγγων ἐστί. eu garanto que estas coisas não acontecem sem a ajuda de muitas poções mágicas, de encantamentos e de rodinhas mágicas5. Por extensão, o termo pode conotar atração, sedução, capacidade de encantar (ARISTÓFANES, Lisístrata, 1110), aproximando-se da deusa Peitó, elencada como sua mãe; ou, ainda, desejo afetivo arrebatador por alguém, não necessariamente sexual como em Ésquilo, Persas, 988-89. Ao longo do tempo, a sobrevida do termo conheceu outras apropriações místicas. No período tardio, encontra-se o uso do termo para designar divindades caldeias (PROCLUS, Comentário à República de Platão, II.213.). 5 Tradução livre. 54 Íynx O substantivo ἴυγξ (íynx) deriva do verbo ἰύζω (iýzō), “emitir um grito agudo” (BAILLY, 2020), e alto, conforme Homero, Iliada, XVII.66, ἰύζουσιν (iýzousin), e Odisseia, XV.162, οἱ δ᾽ ἰΰζοντες ἕποντο ἀνέρες ἠδὲ γυναῖκες, “e homens e mulheres saíram gritando”6. Mais tarde, “gritos lamentosos”, lúgubres, de tristeza ou de dor, como em Ésquilo, Persas, 280, pelo sofrimento diante da notícia da derrota diante dos gregos, ou em Sófocles, Traquínias, 782, onde Héracles “uiva” de dor, ἰύζων (iýzōn), por causa da túnica envenenada presenteada por Dejanira, em razão de sua traição. O substantivo ἰυγή designa, na mesma direção, “grito de dor” ou “lamento”, por exemplo em Heródoto, IX.43, mas também, um sibilar nervoso de alguns animais marinhos em razão da dor causada por um parasita (OPIANO DE APAMEIA, A Pesca, I.565). O substantivo ἰυγµός (iygmós), derivando igualmente de ἰύζω (iúzō) pode ser um grito de alegria (HOMERO, Ilíada, XVIII.572) Bailly (2020) traz ainda ἰυκτά (iyktá), “aquilo que faz um barulho agudo”, que canta gritando alto, como em Teócrito, Idílios, VIII.30, termo que deriva de ἰύζω (iúzō). Há dois outros termos que aparecem nas fontes com características que possam ser associadas ao pequeno objeto circular que analisamos aqui. O termo τροχίσκος (trochískos), diminuitivo de trochos, refere-se a uma pequena roda ou pequeno círculo, como em Apolodoro de Damasco, Poliorcéticas, 155.9. Neste caso, a possibilidade de ser associado à íynx é pela sua forma. Aristóteles, em 6 Tradução livre. 55 Fábio Vergara Cerqueira Mecânica, 848a.25, emprega o termo trochískos como referência às “pequenas rodas feitas de bronze e de ferro que oferecem como exvotos nos templos”. O segundo termo é ῥόµβος (rhómbos), aqui havendo uma sobreposição maior com o significado de íynx¸ visto que compartilham, entre outros aspectos, a condição de objeto sonoro que se faz soar na medida em que é posto em rotação. Era um instrumento atado à extremidade de uma corda e assim se fazia girar (FARAONE, 1993, p. 2), usado tanto no pastoreio, para atrair o gado, como nos mistérios. Recebia o mesmo nome um brinquedo de criança que era uma espécie de pião (Antologia Palatina [Leônidas], VI.309), incluído entre os brinquedos de Dioniso (LEVANIOUK, 2007). Bailly (2020) considera que todo objeto de forma circular seria, genericamente, um rhómbos. A palavra sugere o ato de girar, dar a volta em torno de si (ῥόµβον - rhómbon), em Píndaro, Ístmicas, IV.81[48]). Dada esta característica, em diferentes ocasiões é lembrado como um termo alternativo a íynx para designar a rodinha mágica. A confusão acontece já em Teócrito, que emprega íynx em Idílio, II.17, e rhómbos em II.30. Tavenner (1933) entende que o poeta usa os dois termos para se referir ao mesmo objeto. Penso que, com o segundo termo, Teócrito tem em mente mais a roda em si, que identifica a forma circular, do que o nome que identifique o objeto propriamente. Mas é principalmente em autores gregos e latinos do período imperial que o termo se torna mais comum como designação da 56 Íynx rodinha mágica, como em Ovídeo, Arte de Amar, I.8.7, que usa rhómbo para se referir a um dispositivo mágico, que a anciã chamada Dipsa – conhecedora da arte da magia, dos encantamentos da Cólquida e das virtudes das plantas – sabia como usá-lo, enrolando-o em um linho vermelho. Com o tempo, entre os latinos, consolida-se a forma rhómbus. Em Luciano, Diálogo das Cortesãs, IV.5, ao falar das hetairas Melitta e Bacchis, comenta como esta tirou do seu peito uma roda mágica (ῥόµβου - rhómbou) e a fez girar, recitando um encantamento composto por palavras bárbaras que fazem estremecer. Como objeto sonoro circular, o termo rhómbos foi empregado também para designar uma espécie de tambor ou pandeiro, como um týmpanon de maiores dimensões, usado no culto à deusa Reia e a Dioniso (Antologia Palatina [Faleco], VI.165; Ateneu. Banquete dos Sábios, 636a.38). Ao se chamar o týmpanon sagrado de grandes dimensões do culto de Cíbele como rhómbos, o foco está sendo colocado sobre o seu grande aro. Vê-se que a sonoridade apropriada a cultos mistéricos, assim como a práticas místicas e de magia, é um traço em comum entre a íynx e o rhómbos, nada obstante, em sua natureza musical, possam ser instrumentos distintos. A evidência arqueológica da Íynx Grace Nelson identificou uma íynx em um objeto circular raiado de terracota, proveniente do distrito de Faleron na Ática, decorado em estilo geométrico, datado do final do século VIII. A autora identifica as onze cabeças de pássaro como sendo da íynx, com 57 Fábio Vergara Cerqueira “pescoço longo esticado e cordas vocais inchadas, que indicam que os pássaros estão fazendo o seu chamado”, que, no caso da íynx, era um “chamado claro, flautado e com tom elevado”, que “podia ser ouvido a uma longa distância” (NELSON, 1940, p. 443). O grau de conservação da peça de Boston permitiu a proposição de como se apresentaria esta roda, com seus fios de suspensão, para fazê-la girar (Fig. 9). Figura 9: Proveniência: Faleron, Ática. 750–700 B.C. Boston, Museum of Fine Arts, 28.49. Disponível em: www.mfa.org. Acesso em: 30 mai 2023. Objetos semelhantes encontram-se conservados em outras coleções (PASQUIER, 1977, p. 377-378). Vassos Karageorgis (1989) publicou artigo acerca de duas rodas votivas encontradas em Chipre, hoje em Nicósia, uma no museu arqueológico, outra em uma coleção particular (Fig. 10a-b). De datação mais elevada que o exemplar de Boston, têm uma estrutura diferenciada, pois são dois aros não raiados. Mas, em comum, além dos pássaros ajustados sobre o aro, possuem também furos de suspensão. 58 Íynx Figura 10a-b: Íynx, terracota (“Roda 2 de Chipre”). Período Geométrico Cipriota III (850-750 AEC). Nicósia, Chipre, coleção particular. Karageorghis, 1989, p. 263-268, esp. p. 268, fig. 4-5. Cf. Íynx, terracota (“Roda 1 de Chipre). Período Geométrico Cipriota III (850-750 AEC). Nicósia, Chipre, Cyprus Museum. Karageorghis, 1989, p. 263-268, esp. p. 266, fig. 1-2. Uma rodinha beócia conservada no Museu do Louvre, de dimensões reduzidas (altura de 8 cm e diâmetro de 13,2 cm), datada da segunda metade do século VI AEC, é de estrutura mais simples, com três pássaros ajustados ao aro, sem furos de suspensão (Fig. 11). Figuras 11 e 12: Figura 11 - Roda de argila, com três pássaros. Prov.: Beócia. 550-500 AEC Paris, Louvre, CA 1512. © 2009 Musée du Louvre. Foto: Anne Chauvet. Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/ cl010259386#. Acesso em: 31 mai 2023 Figura 12: Roda de bronze, com cinco aves. Proveniência: santuário de Atena em Tegea. Dugas, 1921, p. 367, fig. 20, n. 201. 59 Fábio Vergara Cerqueira Também ocorrem rodas de bronze com cabeças de pássaro, como o exemplar encontrado no santuário de Atena Alea em Tegeia (Fig. 12). Nelson (1940) aponta como a roda enquanto tal, com seu formato circular, simboliza o sol, o que lhe potencializa enquanto objeto mágico. Em particular, a roda com quatro raios, enquanto objeto místico, possuía poderes mágicos por sua associação com o sol, sendo comum que estes objetos circulares se encontrassem em templos, suspensos, assim girando e produzindo som. Um exemplo é a rodinha de bronze do santuário de Dódona, com sua estrutura de suspensão, para fazer girar (Fig. 13) cujos efeitos sonoros são analisados por Charalampos B. Charisis (2017): uma íynx fazia parte das sessões oraculares, suspensa e girando ao vento, produzindo assim um som. Figura 13: Roda de bronze. Museu Arqueológico de Joanina (Épiro), inv. 617. Charisis, 2017, fig. 1. Foto: à esquerda, P.Tsikules - Museu Arqueológico de Joanina; à direita, Χ. Charisis. 60 Íynx Aristóteles (Mecânica, 848a.25) menciona essas pequenas rodas de metal dadas como oferendas nos templos. Assim, do ponto de vista do papel místico destes objetos nos santuários, essas rodas suspensas, combinadas ao uso também de sinos de vento (Fig. 14), contribuíam para compor uma atmosfera sonora propícia às potências espirituais que se auspicia nestes ambientes, do que se acreditava ser uma música vinda do divino. Já no período arcaico, tornou-se uma oferenda comum em santuários a divindades variadas esta rodinha, de metal ou terracota, com número variado de passarinhos empoleirados no aro, às vezes um só (NELSON, 1940, p. 346). Figura 14: Sino de vento, de bronze. Prov. Itália meridional, séc. VIII AEC Charisis, 2017, fig. 2γ. O ajuste do pássaro íynx a esta rodinha, que poderia ser genericamente denominada um rhómbos – ou mesmo uma íynx, visto 61 Fábio Vergara Cerqueira que passou a significar simplesmente roda (em razão da prática de se ajustar a ela a representação da ave de mesmo nome) – somaria a potência mágica dos dois objetos (a ave e a roda), ganhando assim um efeito mágico cumulativo (TAVENNER, 1933, p. 117). A singuralidade desta ave, não só pela rapidez dos movimentos circulares e histriônicos de sua cabeça, pela comprida e ágil língua retrátil que faz pensar em uma serpente, por seus gritos altos, algo flautados, algo sibilados, potencializou no imaginário grego antigo uma interpretação mística de sua natureza, tornando-lhe uma ave mágica. Não há um acordo entre os autores modernos sobre a ligação entre estas rodas encontradas no registro arqueológico – com pássaros empoleirados, feitas em metal ou cerâmica – e a íynx como roda mágica conhecida da literatura (Píndaro, Teócrito), a qual pode ser associada à rodinha presente na iconografia italiota. Enquanto alguns encontram elementos suficientes para identificá-las como exemplares da roda-íynx (NELSON, 1940; KARAGEORGIS, 1989), outros são mais céticos (DETIENNE, 1972, p. 162; Genière, 1958), por exemplo propõem tratar-se simplesmente de um kérnos. Percebe-se de qualquer modo uma razoável variedade nestes objetos circulares reportados pelo registro arqueológico, de metal ou terracota, com ou sem raios, com um ou vários pássaros, ou mesmo desprovidos destes. Porém, compartilham de um papel mágico-místico a eles associado, quer pelo 62 Íynx movimento giratório em ficando suspensos por fios (PASQUIER, 1977, p. 378), quer pelo som produzido (CHARISIS, 2017). É possível se pensar em uma linha de ancestralidade entre as rodas mágicas do período arcaico, arqueologicamente evidenciadas, e aquelas evidenciadas iconograficamente, no período clássico e protohelenístico, pela pintura de vasos e outros suportes, como os brincos e anéis, além dos espelhos etruscos. A estrutura raiada e a presença das aves sobre o aro guardam semelhança visual importante. Mas estes exemplares arqueológicos, alguns deles comprovadamente objetos associados a santuários, giravam pendurados por fios (como nos sinos de vento), diferentemente do que ocorria com o objeto testemunhado pela pintura de vasos. A evidência iconográfica da Íynx A evidência visual da íynx nos permite observar diferentes aspectos, tais como sua estrutura física, seu uso e manuseio, assim como as personagens e contextos a ela associados. Forma física da íynx Na pintura dos vasos ápulos, a íynx aparece como este objeto circular raiado, por via de regra com quatro raios (Fig. 3 detalhe e Fig. 15), mas às vezes o pintor sugere a possibilidade de um número maior (ou seria efeito do movimento?) (Fig. 1, detalhe). Pelo contraste de coloração, parece que a roda seja de metal, de bronze ou dourada, 63 Fábio Vergara Cerqueira enquanto a estrutura raiada devia ser de outro material, provavelmente madeira (Fig. 24). Essa rodinha é atravessada por uma longa cordinha dupla – na verdade, um único fio amarrado em uma das pontas. Na peliké Ruvo 36727 (Fig. 7), percebemos duas pontas do fio, na extremidade que a moça segura com a sua mão direita, indicando que ali foi dado o nó. Esse fio podia ser feito de uma “macia linha de lã vermelha de um cordeiro macio”, como lemos em um epigrama amoroso anônimo (Antologia Palatina, V.205). Figura 15: Peliké ápula de figuras vermelhas. The Tarrytown Group (RVAp p.542/354). c. 330-310 AEC Cremona, Museo Archeologico, D46. Castoldi; Volonté, 2022, p. 261-262, n. 402, pr. XXVII-XXVIII. A observação de um conjunto ampliado de iýnges aponta um aspecto dentado no perímetro do círculo, o que sugere um elemento estilizado que remete às cabecinhas do pássaro íynx (Fig. 16). Em alguns vasos, porém, a aparência difere. A rodinha aparece como uma circunferência com seu interior branco e rodeada por uma linha circular preta (Fig. 7). Não se trata de outro objeto, mas do efeito 64 Íynx visual quando posta em movimento giratório. Interessante observar que, mesmo ao representá-la em movimento, o pintor mantém o cuidado de mostrar as cabecinhas do passarinho que ornamentaria a roda mágica, como podemos constatar na peliké de Ruvo, apesar do apagamento parcial deste detalhe feito com adição de branco. Figuras 16 e 17: Figura 16 - Desenhos de íynx de acordo com pintura de vasos ápulos, em Gow, 1934, p. 1-13, fig. 4-5. Figura 17: Hydria ápula de figuras vermelhas. The Tarpoley Painter (RVAp 3/58). 400-380 AEC Londres, British Museum, F94 (1824,0501.20). CC BY-NC-SA 4.0 © The Trustees of the British Museum. Os pintores de vaso fazem referência também, alternativamente, a íynx como pássaro, como na hydria Londres F94 (Fig. 17) onde sua presença, identificada pelo pescoço esticado, visa ao mesmo efeito mágico que o uso da rodinha mágica. 65 Fábio Vergara Cerqueira Uso e manuseio da Íynx Um aspecto bastante interessante, em que a análise iconográfica permite avançar, é quanto ao modo de manuseio da íynx. É pouco comum ela aparecer suspensa no campo – mais adiante analisaremos um caso. Ela aparece mais usualmente sendo segurada pela mão de uma personagem, e basicamente de dois modos: com uma mão só, suspensa, quando notamos ser perpassada por um fio duplo (Fig. 1, 2, 3), ou sendo segurada com as duas mãos, pelas pontas deste fio duplo. Neste caso, o pintor pode representar a íynx em repouso ou sendo acionado o seu movimento giratório. Quando uma personagem segura a íynx pelos fios, em repouso, ela não pega a linha pela extremidade, como na peliké de Cremona (Fig. 15). Nesta posição, claramente o dispositivo não pode ser posto a girar. Já quando o pintor quer mostrar o dispositivo sendo usado na prática da magia, para efetuar o feitiço de amor, vemos que o fio duplo é preso aos dedos, especificamente com o indicador ou, às vezes, com o médio. Na peliké proto-lucânica de Metaponto (Fig. 18), um dos exemplares mais recuados da série italiota, datada do final do século V AEC, a noiva prende as pontas do fio usando o dedo indicador das duas mãos, mas o indicador da esquerda dobra-se para frente, parecendo ser uma posição realizada com o intento de gerar uma alteração no movimento giratório da íynx, ao puxar o fio. Na peliké de 66 Íynx Ruvo (Fig. 7), a noiva prende a extremidade direita do dispositivo com o indicador e a extremidade esquerda com o dedo médio. Figura 18a-b: Peliké proto-lucânica de figuras vermelhas. Proveniência: Metaponto, tumba 798. Pintor de Creusa. Final do séc. V AEC Metaponto, Museu Arqueológico. Foto: Fábio Vergara Cerqueira (2015). De excepcional interesse a cena representada em uma pyxis ática atribuída ao Pintor de Erétria, datada do último terço do séc. V AEC (Fig. 19). No entorno da kylix figuram cenas variadas de interesse nupcial, mostrando preparativos da noiva, com as personagens identificadas por inscrição. À direita da porta da casa, vemos a matrona Pontomedeia instruindo a jovem noiva, chamada Doso, em como manipular a roda mágica íynx. Figura 19a-b: Pyxis ática de figuras vermelhas. The Eretria Painter. Londres, British Museum, E744 (1874,0512.1). CCBY-NC-SA 4.0 - © The Trustees of the British Museum. 67 Fábio Vergara Cerqueira O mais comum era a posição horizontal ou levemente inclinada para esticar o duplo fio e fazer girar a roda. Mas encontramos também representações em que o movimento é feito com uma inclinação acentuada, praticamente vertical. Em um espelho etrusco hoje em Berlim, datado da segunda metade do século IV AEC, uma moça, sentada junto a um altar, faz a íynx girar, com os braços em uma posição bastante inclinada (Fig. 20). Em outro espelho etrusco, hoje em Perugia, datado do final do mesmo século, vemos no canto esquerdo a figura de Eros sentado, fazendo a íynx girar, em uma posição praticamente vertical (Fig. 21) Figura 20: Espelho etrusco de bronze decorado com incisão. Proveniência: Praeneste (Palestrina). Segunda metade séc. IV AEC Berlim, Staatliche Antikesammlungen, Fr 54. Zimmer, 1995, p. 156, fig. 35a. 68 Íynx Figura 21- Espelho etrusco inciso. Perugia, Museo Archeologico Nazionale, inv. 1004. 325-300 AEC Frascarelli, 1995, p. 74, fig. 6. Figura 22: Cratera em cálice ápula de figuras vermelhas. Pintor de Dario. 340-330 AEC Boston, Museum of Fine Arts, 1989.100. A peliké de Ruvo (Fig. 7) informa ainda outro detalhe importante: o duplo fio está enroscado (observamos com clareza na metade esquerda, pois no restante a coloração branca adicionada não se conservou). Isto resulta do seu movimento giratório, de sorte que a rodinha, após a linha dupla ter sido esticada com veemência, girará com força para um lado, até que o efeito deste movimento se esgote; e, como o fio ficou enroscado, iniciará então um movimento no sentido 69 Fábio Vergara Cerqueira oposto, e assim por diante, a cada vez com menos força, até que o impulso para este movimento giratório se esgote. Personagens mitológicos associados à Íynx: Eros e Afrodite Como apontamos inicialmente, a íynx é um atributo iconográfico da deusa Afrodite, como está claramente denotado no loutrophoros de Malibu (Fig. 1). Em uma cratera atribuída ao Pintor de Dario, hoje em Boston (Fig. 22), temos, no canto superior direito, uma cena de diálogo entre um rapaz sentado, com sandálias aladas, chapéu na mão esquerda e caduceu abaixado na mão direita, diante de um gênio alado, com um bambolê, apoiando-se no joelho da mulher sentada, à direita, que segura com a direita elevada um ramalhete e com a esquerda abaixada uma íynx. Podemos identificar aqui uma cena de diálogo entre Hermes e Afrodite, acompanhada por Eros. De tal modo a íynx se liga a Afrodite enquanto atributo, que mesmo seu paralelo etrusco, a deusa Thalna (identificada por inscrição), aparece representada com uma rodinha mágica em um espelho gravado por incisão do segundo quartel do século IV AEC7. Entretanto, é Eros que, tomando-a de empréstimo de sua mãe, aparece com mais frequência empunhando a rodinha mágica, chegando a Espelho de bronze etrusco, gravado por incisão. Segundo quartel do século IV AEC Paris, Louvre, inv. 1723. Emmanuel-Rebuffat, 1988, 3a-d. 7 70 Íynx tornar-se até mesmo um atributo seu, como veremos em alguns exemplares da joalheria grega proto-helenística. Na pronochoe de Londres (Fig. 3), nesta cena que representa o amor entre Afrodite e Adônis, Eros tem numa mão a íynx e na outra uma bola, enquanto no campo, suspenso, está um sistro ápulo. Aqui os três objetos se combinam como símbolos da potência amorosa e funcionam assim como metáfora de uma felicidade conjugal idealizada. Já nestas cenas em que Eros se desloca, voando, por vezes ocupando a narrativa de todo um lado do vaso, trazendo objetos ligados ao culto a Afrodite, ele muitas vezes leva uma íynx entre estes objetos8. É o caso da taça de Varsóvia (Fig. 23), em que, de um lado, Eros voa para a esquerda, levando consigo um sistro ápulo e uma íynx, dirigindo-se ao encontro da figura feminina do lado oposto da taça, sentada no chão diante de uma planta arbustiva (mirto), portando um stéphanos com fitas e uma bandeja com oferendas, entre elas um ramalhete de mirto. Aqui, o sistro ápulo e a íynx, em vez de símbolos, são parte dos sacra enquanto instrumental de culto, utilizados na performance do ritual a Afrodite – o primeiro, como instrumento musical, o último, como um objeto mágico, mas ao mesmo tempo sonoro. A janela ao fundo indica que o ritual, de natureza pré-nupcial, Eros na iconografia ápula com frequência funciona como uma ponte de ligação entre Afrodite e Dioniso, e este papel cultual dele como articulador das esferas destas duas divindades fica caracterizado pelos objetos que carrega, eventualmente combinando atributos das duas divindades, ou enfatizando um ou outro (HOFFMANN, 1966, p. 115-116; VERGARA CERQUEIRA, 2018, p. 291, 308). 8 71 Fábio Vergara Cerqueira ocorreria em um espaço externo próximo à unidade doméstica (VERGARA CERQUEIRA, 2022, p. 171). Figura 23: Taça ápula de figuras vermelhas. Varsóvia, Museu Nacional, 198126. CVA Varsóvia - Musée National V, pl. 10.3-4,7. Em alguns casos, o sistro ápulo dá lugar ao espelho, como objeto que acompanha a íynx. É o que nos mostra uma oinochoe trilobada do Vaticano, na qual vemos Eros apoiado em uma pilha de pedras, usando a íynx, ao mesmo tempo em que segura o espelho9. Novamente, aqui, os objetos representados não são apenas símbolos do domínio de Afrodite, mas sim parte do instrumental de culto. O que o pintor nos mostra, então, é Eros na ação de usar a íynx como dispositivo que alcança seu poder de magia da sedução ao girar, tendo aqui também o espelho um papel ritualístico. Oinochoe trilobada ápula de figuras vermelhas. Vaticano, Museu Gregoriano Etrusco, inv. 18070. c. 340-320 AEC The Patera Painter. 9 72 Íynx Figura 24: Peliké ápula em estilo di Gnathia. Grupo de Konakkis, Grupo de Harpa de Nápoles (C) (Webster, 1968, n. 9 / 1). c. 340-330 AEC São Petersburgo, Hermitage, B.4571. CVA Hermitage VI, pr. 2.1. Foto: Fábio Vergara Cerqueira (2017). Em uma ânfora ápula em estilo di Gnathia conservada em São Petersburgo (Fig. 24), vemos Eros representado como adolescente, nu, sentado sobre o manto vermelho jogado sobre o solo. Aparatado com colar e braceletes no braço e perna direita, tem na mão esquerda erguida um tympanon, enquanto, com a direita abaixada, traz uma íynx. Um detalhe significativo aqui: a membrana do tympanon é decorada com o desenho de um aro raiado, duplicando assim a mensagem do aro com quatro raios, reforçando o valor mágico desta forma, impregnado aqui também a este instrumento de percussão que podia acompanhar a íynx em determinados usos ritualísticos. Seguindo a interpretação de Gisela Schneider-Herrmann (1970, p. 100), aqui talvez tenhamos não propriamente a representação do gênio alado, mas sim de um oficiante de culto. 73 Fábio Vergara Cerqueira A relação do objeto mágico íynx com Eros está evidenciada não só na pintura de vasos, mas também em outros suportes, como no brinco de ouro Museu Britânico 1877,0910.16 (Fig. 25), proveniente de Cuma, na Eólia, do último terço do século IV, etruscos analisados acima. Em cada brinco o ourives representou, como delicados pingentes, pares de Erotes segurando uma íynx com as mãos, esticando o fio e, portanto, no ato de fazê-la girar para alcançar seu efeito mágico. Data da mesma época um anel de cobre dourado, encontrado em uma tumba na necrópole da cidade grega de Náucratis, no Delta do Nilo (Fig. 26), que representa Eros agachado, voltado para a esquerda, enquanto aciona o movimento giratório da íynx, logo, performando seu uso mágico para uma conquista amorosa. Figuras 25a-b e 26: Figura 25 - Brinco em disco-pirâmide, com dois pares de Erotes com íynx. Proveniente de Cuma, Eólia. c. 330-300 AEC Londres, British Museum 1877,0910.16 (J1672-3). CC BY-NC-SA 4.0 - ©Trustees of the British Museum. Figura 26: Anel de cobre dourado. c. 350-300 AEC Proveniência: Necrópole de Náucratis, Egito. Londres, British Museum, 1888,0601.1. CC BY-NC-SA 4.0 - ©Trustees of the British Museum. 74 Íynx Contextos associados à Íynx Na iconografia dos vasos ápulos, a presença da íynx se dá na maioria dos casos em cenas de rituais pré-nupciais, consorciando-se assim a uma série de outros signos/objetos que são articulados nas representações visuais destes rituais, os quais carecem de testemunho literário (VERGARA CERQUEIRA, 2022, p. 150;. SCHENEIDER HERRMANN, 1996, p. 113-116). A peliké de Dresden (Fig. 2) mostra em sua face secundária um ritual de iniciação amorosa do rapaz, oficiado por uma senhora. Nestas cenas, a íynx não costuma ser representada. Na cena principal, noivo e noiva já passaram pelos rituais próprios a cada gênero, e realizam uma das etapas do noivado, ele com um strigilis, ela com um espelho, objetos que indicam que ambos estão preparados para o casamento. Na retaguarda da noiva, uma senhora acompanha o ritual, abençoado pela presença de Afrodite (com sistro ápulo e espelho) e Eros, dispostos no campo superior. A senhora que monitora esta fase inicial do ritual de noivado, traz dois objetos usados em determinadas fases do ritual, o espelho e a íynx. Está presente aqui não como símbolo de Afrodite, mas como parte do instrumental ritualístico. Na peliké de Ruvo (Fig. 7), novamente Afrodite e Eros observam do alto o ritual, que agora é performado junto a uma pia lustral, abaixo da qual vemos uma roseira e, mais à direita, um mirto, plantas próprias ao reino da deusa do amor (TOUZÉ, 2009; LAMBRUGO, 2018, p. 343, 347-349). Aqui o pintor representa 75 Fábio Vergara Cerqueira exatamente o momento do ritual pré-nupcial em que a íynx é usada pela noiva, fazendo-a girar, para mobilizar sua potência mágica em prol da felicidade amorosa e sexual, a ser conquistada na vida conjugal pelas graças de Afrodite. Percebe-se como seu uso nos rituais prénupciais cabe à noiva e não ao noivo. Exemplo disto encontramos em um lebes gamikos de Nova Iorque (Fig. 27a-b), que representa cenas pré-nupciais em suas duas faces. Em um lado, temos (Fig. 27a) a noiva sentada sobre uma pilha de pedras, ao centro, ostentando em modo protocolar um espelho, diante do noivo, de pé, que lhe dirige uma coroa, pausada no ar acima do espelho – observe-se que Eros se aproxima para coroar o noivo. No lado oposto (Fig. 27b), estamos em um estágio mais da união entre os nubentes. Figura 27a-b: Lebes gamikos ápulo de figuras vermelhas. Group of New York 28.57.10 (RVAp II 18/190). c. 335-320 AEC Nova Iorque, Metropolitan 76 Íynx Museum, 17.46.2. Domínio Público. Disponível em: www.metmuseum.org. Acesso em: 30 ma 2023. Aqui a noiva, novamente a figura central, está sentada em um thronos, que representa o reconhecimento de seu status social de esposa – portanto avançou de nymphe para gyne. Quando o pintor coloca a noiva no thronos, seria uma indicação de que a cena ocorra no dia do casamento (SÖLDNER, 1993, 306; CAIN, 1989, p. 93; VERGARA CERQUEIRA, 2023). Abençoados por Afrodite e um par de Erotes dispostos no campo superior, noivo e noiva performatizam o ritual junto a um louterion, em presença da oficiante de culto, uma senhora, na retaguarda da noiva, com a mão levada ao espaldar do thronos. Esta senhora tem na mão uma bola, que representa a vida de infância que a futura esposa deixou para trás, mas o jogo de bolo possui também uma relação com o amor (recordando seu papel como ritual de transição de moças, para acessar à vida amorosa adulta), e até com a íynx, com um efeito de magia do amor, pelo movimento giratório (SCHNEIDER-HERRMANN, 1971, p. 125-126). O ato ritualístico desta etapa avançada da união entre os noivos se dá pelo encontro de dois objetos, a phiale, erguida pela noiva com a mão direita, e um stephanos, que o noivo segura acima da tigela com a sua direita. Cada um deles traz um objeto com a mão esquerda abaixada: ele, uma tainia (fita); ela, a íynx, o que indica o uso deste objeto em algum momento do noivado. A peliké de Cremona (Fig. 15) mostra-nos uma etapa avançada do noivado, realizada no espaço aberto, em que ambos, noivo e noiva, 77 Fábio Vergara Cerqueira sentam-se, lado a lado, ele sobre um diphros okladias e ela sobre um par de almofadas acomodadas sobre o solo10. O casal está flanqueado por duas senhoras, oficiantes do culto. A senhora diante da noiva traz uma bola e um sistro ápulo. Eros figura no campo superior, que é usualmente o campo das entidades neste esquema iconográfico, onde estas comparecem como símbolo visual de que as divindades aprovam o ritual. O deus, representado na forma infantil, traz um ramalhete de mirto e uma guirlanda, a qual ele aponta para um cisne, que simboliza a presença de Afrodite. Quero destacar aqui que o pintor representou o momento em que a noiva se prepara para acionar a íynx, pegando-a pelas pontas, para em seguida prender as extremidades em seu indicador ou médio, dar um estiraço no fio, e assim fazê-la girar. Algumas imagens deixam mais claro o uso da íynx durante ritual. Na peliké de Metaponto (Fig. 18), a noiva, sentada sobre um thronos, faz a íynx girar, voltando-se para um thymiaterion (incensário). Observe-se que o thronos e o incensário acomodam-se sobre um tablado (bema). Vinda da esquerda, uma mulher aproximase, trazendo uma phiale com oferendas. Também sobre o tablado, entre a noiva e o thymiaterion, um garoto, no qual podemos identificar a figura do pais amphitales. Este menino tem igualmente uma phiale A iconografia indica que a realização dos cultos a Eros e Afrodite podiam ocorrer com frequência em santuários abertos, sem monumentalidade arquitetônica, na natureza, em bosques, de uso não permanente (LIPPOLIS, 2001, p. 233-239; SCHNEIDER-HERRMANN, 1971, p. 91; TODISCO, 2010, p. 267; VERGARA CERQUEIRA, 2022, p. 170). 10 78 Íynx na mão, de onde pega a oferenda fumegante que deposita sobre o incensário. Mesmo que o thymiaterion e a fumigação sejam ligados à veneração de diversas divindades, guardam uma relação especial com Afrodite, pois seu culto envolve perfumes ligados a seu reino (PROST, 2008, p. 98-99; HERMANY et al., 2005, p. 68-69; SIMON et al., 2005, p. 258-259). Assim, a peliké proto-lucânica metapontina mostra a possibilidade de associação entre o uso mágico da íynx e a fumigação, como formas de se buscar os favores de Afrodite para a felicidade amorosa. Em uma peliké hoje no Vaticano, vemos uma mulher, vestindo chiton acinturado e aparatada com colar de pérolas no colo e envolvendo o coque11. Ela avança na direção de um altar, sobre o qual ela projeta, com a mão direita, um espelho. Com a mão esquerda, traz uma cista, com um ramalhete de mirto, cujas folhas podem ser jogadas sobre o altar, para exalarem sua fragrância apreciada pela deusa. Na mesma mão, traz uma íynx, suspensa pelo fio duplo. Ela está se dirigindo ao altar para usar estes objetos no ritual que incluirá, como elemento central, o acionamento da íynx, colocando-a em rotação, para obter da deusa Afrodite os favores amorosos desejados. Já no espelho de Praeneste (Fig. 20), nós vemos a personagem feminina acionando a íynx sentada ao lado do altar. Pelike ápula de figuras vermelhas. The Painter of Vatican Z3 (vaso epônimo). c. 340-320 AEC Vaticano, Museu Gregoriano Etrusco, inv. 18130 (Z3). 11 79 Fábio Vergara Cerqueira Figura 28: Prato ápulo de figuras vermelhas. The Alabastra Group. c. 330-325 a. C. Leiden, Rijksmuseum von Oudheden, Coleção SchneiderHerrmann, n. 198. Desenho: Lidiane Carderaro. Todisco, 2002, p. 99, pl. XXVII.3. O último testemunho visual que analisaremos neste estudo é um prato da coleção de Gisela Schneider-Herrmann (Fig. 28), doado em 1992 pela própria arqueóloga ao final de sua longa vida ao Rijksmuseum von Oudheden, de Leiden12. Pertence na verdade a um par de pratos com representação da dança com véu, que era uma dança circular, caracterizada pelo movimento giratório do corpo envolvido pelo manto esticado pelos braços escondidos sob este, e com o interesse especial despertado pelos diferentes graus de ocultação do rosto pelo véu ou pelo próprio manto (VERGARA CERQUEIRA, 2023; MARTIN, 2019; FRIESLÄNDER, 2001; HEYDEMANN, 1879). Era, portanto, uma dança que oscilava entre a pudicícia do corpo ocultado e a sensualidade das curvas que se revelavam sob o Doação feita como agradecimento, pois foi aí que ela e sua coleção se esconderam da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial. 12 80 Íynx manto. O prato de Leiden é o único exemplar da pintura de vasos ápulos que vincula esta dança claramente a um espaço sagrado, de realização de culto, visto que a dança ocorre em frente a um pilar com funcionalidade de altar (CASSIMATIS, 2014, p. 167-169; SCHNEIDER-HERRMANN, 1971, p. 125; VERGARA CERQUEIRA, 2018, p. 307-308), sobre o qual foram depositados dois pequenos objetos como sacrifício (ovos?). O prato da coleção Schneider-Herrmann mostra-nos que as comunidades do Sul da Itália do século IV AEC conheciam o uso ritualístico da dança com véu diante de altares. Mas o contexto espacial do prato ápulo não remete necessariamente a um santuário com monumentalidade arquitetônica edificada: o altar e a dançarina estão em um espaço aberto, na natureza, como indica a planta no chão, um mirto, que remete ao domínio de Afrodite. No entanto, no campo superior direito se vê uma janela ao longe, assim como na taça de Varsóvia (Fig. 23), que alude mais a um espaço edificado doméstico, como uma casa, do que a uma edificação templária. É possível então que esta moça performatizasse a dança com véu em um espaço religioso mais informal, ao ar livre e fora dos muros de um santuário, em altar posicionado mais próximo à residência (LIPPOLIS, 2001, p. 235; 2005, p. 95-101; VERGARA CERQUEIRA, 2022, p. 170), do mesmo modo que em outros cultos representados na pintura de vasos ápulos, sobretudo aqueles ligados à iniciação amorosa e à esfera de adoração à Afrodite e Eros 81 Fábio Vergara Cerqueira No prato de Leiden, seguindo o padrão de representação da dançarina velada (VERGARA CERQUEIRA, 2023; MARTIN, 2019; FRIESLÄNDER, 2001; HEYDEMANN, 1879), o manto cobre a cabeça e esconde os braços, o que é um dos aspectos essenciais desta coreografia. Mas, no momento da dança que o pintor quis representar, o rosto está completamente livre, de modo a vermos inclusive sua boca. Em frente à cabeça da dançarina, suspensa no campo, o pintor representou a íynx. Porém, tem mais um detalhe a ser observado: entre as cenas de dançarina velada na pintura dos vasos ápulos, trata-se do único caso em que a dançarina tem a boca claramente aberta, indicando que enquanto dança pronuncia palavras cantadas ou faladas – talvez algum encantamento, como aquele proferido pela cortesã Simaeta, conhecedora dos feitiços de amor (FARAONE, 2021, p. 651) , personagem central do Idílio II (“As Magas”), de Teócrito (c. 310 – 250 AEC), poeta natural de Siracusa, que viveu certo tempo na Magna Grécia, antes de se radicar por longo tempo em Cós, e, mais tarde, em Alexandria. Lembremos que entre o prato de Leiden e o Idílio de Teócrito a diferença é de pouco mais ou pouco menos de meio século. Há então um compartilhamento de ambiente geográfico e cultural próprio ao período helenístico inicial. Vale analisarmos neste prato um grau mais concreto de simbolismo do movimento giratório: gira a dançarina velada, gira a rodinha mágica, gira o pássaro mágico. Assim, o rodopio da dançarina 82 Íynx e da íynx aludem-se mutuamente, do ponto de vista simbólico, mas reforçam-se um ao outro, duplicando suas forças no campo mágicomístico. Há então um efeito mais profundo na associação entre a dança velada e a íynx neste ritual de performance coreográfica, ligado à finalidade mágica do objeto e à natureza mítica do pássaro que lhe dá nome. A presença da íynx então indica que a performance dançada diante do altar, representada no nosso prato, tem o escopo mágicomístico de um feitiço de amor, sendo compatível com o campo de ação de Afrodite e de Eros. Considerações finais: a Íynx, o feitiço de amor e seu uso ritualístico Em diferentes ocasiões algum personagem segura uma íynx em um ritual pré-nupcial, o que reforça a crença no seu poder místico propiciatório às conquistas amorosas e à esperança de felicidade na vida conjugal. O uso mágico da íynx, empregado em feitiços que demandam dádivas amorosas (PÍNDARO, Píticas, IV.10.216-220.), está exemplificado em Teócrito, Idílio, II.17sq., em que a palavra é usada em um mantra repetido por nove vezes, ῏Ιυγξ, ἕλκε τὺ τῆνον ἐµὸν ποτὶ δῶµα τὸν, “Íynx [roda mágica], traga para minha casa o meu homem”13. Trata-se do feitiço de amor que Simaeta pronuncia por dez vezes, evocando os poderes de íynx para trazer de volta o homem Tradução livre pelo autor. “Ó îunks, arrasta tu aquele homem até minha casa!”, na tradução de Giuliana Ragusa (2004, p. 22), muito próxima de “Ó íynx, arraste aquele homem até a minha casa”, de Milton Torres (2002, p. 188-189). 13 83 Fábio Vergara Cerqueira que ela ama, chamado Delphis. Cada refrão equivale a uma nova volta da íynx, que completa assim dez voltas ao todo, enquanto o encantamento é entoado (SEGAL, 1973, p. 33). Os usos e representações da íynx indicam uma situação em que as fronteiras entre magia e religião se dissolvem. Esse poder de dissolver fronteiras é de resto algo que o amor tem a capacidade de aplacar. E a natureza sonora da íynx guarda ainda um aspecto a ser considerado quanto esta potência mágica. A sua genealogia, sendo filha de Peitó e de Eco, a inscreve no domínio do som, aquele articulado pela palavra que seduz e aquele que é todas as vozes (DETIENNE, 1972, p. 162). Como lembra Pierre Chantraine (1968, p. 473), quanto à etimologia do termo, íynx é uma “formação expressiva, com em certos nomes de pássaros ou de instrumentos musicais: πῶυνξ (pōynx), στρίυξ (stríyx), σύρυνξ (sýrinx)”. De fato, o sufixo -ynx é recorrente na denominação de instrumentos musicais: além da sýrinx (flauta de Pã) apontada por Chantraine, podemos incluir a salpinx (trombeta) e a phorminx (cítara de tradição homérica com base arredondada). Daí que a natureza sonora é uma característica que é quase imanente à íynx. É possível que o tipo de som produzido pelo movimento giratório aplicado à íynx – som soprado, zumbido, flautado, sibilado, como sugerem as qualidades sonoras associadas ao termo – tivesse algum papel nos rituais ligados Afrodite e Eros, evocados pela 84 Íynx iconografia italiota, ou a outras divindades, como Sêmele, Ártemis e Hécate, evocadas no Idílio de Teócrito sobre as feiticeiras. Para Vesa Matteo Piludo (2010), “a roda ao girar faz um zumbido. A íynx produz um som acelerado, ventoso e zumbido. O resultado final soa como uma respiração pesada, que, no contexto, novamente tem conotações apaixonadas óbvias”. Ele acrescenta, “o som ventoso da íynx pode ser associado com o pneuma divino (onde se mesclam vento, respiração, espírito e, assim por diante, inspiração)”. Acredito que estas qualidades sonoras se somaram a outros aspectos analisados acima, para reforçar a crença na sua magia do amor. Nas fontes literárias, o poder mágico da íynx é solicitado para satisfazer vontades sexuais externas ao casamento, relacionamentos complicados, pouco duradouros, instáveis e malfadados, objetivando a sedução sexual e o desejo de reconquistar um amor perdido (TORRES, 2002, p. 195; p. 202; SEGAL, 1981, p. 76; 1973, p. 33). A magia de amor da íynx, na análise de Marcel Detienne (1972, p. 159-172), marcaria a antítese entre o casamento e a sedução, entre o amor legítimo e o ilegítimo. Ora, essa interpretação, balizada nas referências mitológicas e na evidência literária não encontra respaldo na iconografia dos vasos ápulos, que vincula o uso da íynx sim ao amor matrimonial. A pintura dos vasos italiotas dá ênfase ao uso mágico da íynx em rituais em que a futura esposa se prepara para a vida conjugal, expressando sua crença na intercessão mágica de Afrodite e Eros para alcançar sua felicidade amorosa... e sexual. 85 Fábio Vergara Cerqueira Referências Documentação Imagens Loutrophoros ápulo de figuras vermelhas.Pintor de Louvre MNB 1148. c. 330 AEC Malibu, J.Paul Getty Museu, 86.AE.680. Public Domain. @ Paul Getty Museum - Open Content Program. Disponível em https://www.getty.edu/art/collection/object/103WEG. Acesso em: 30 mai 2023. Peliké ápula de figuras vermelhas. The Egnazia Group (RVAp 18/140). c. 340-330 BC. Dresden, Staatliche Kunstsammlungen, DR526. CVA Dresden 1, pr. 4-5. ©Skulpturensammlung, Staatliche Kunstsammlungen. Foto: Elke Estel/Hans-Peter Klut. Agradeço a colaboração de Barbara Anderson. Pronochoe ápula de figuras vermelha. Proveniência: Ruvo, Apúlia. Grupo de Copenhague 4223. c. 340-320 AEC Londres, BM, F373 (1856,1226.50). 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Ele já sentia que seu tempo de vida estava acabando, mas continuava agarrado ao poder, e seguia agastado pelos rumores de conspirações que apareciam ocasionalmente na corte. Foi quando o ministro dos espiões Jiang Chong 江充 levou até o imperador a suspeita de que atos de magia estavam sendo praticados contra ele e, possivelmente, contra outros membros do governo. Wudi autorizou uma busca no palácio por objetos que pudessem indicar a prática da feitiçaria, e vários bonecos [‘Tongmu ouren’ 桐⽊偶⼈] foram desenterrados no jardim, junto com pequenos retalhos de seda com imprecações escritas. O soberano ficou apavorado: faziam anos que ele tinha pesadelos recorrentes com fantoches mágicos que vinham atacá-lo, e encontrar esses objetos apenas confirmava seus receios mais profundos. Anos antes, Wudi já decretara leis mais Tem graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (2002), doutorado em Filosofia pela Universidade Gama Filho (2005) e Pós-Doutorado em História Antiga pela UNIRIO. É professor adjunto de História Oriental na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 1 93 André da Silva Bueno severas para regular e supervisionar a prática da magia, e sentia que isso deixara muitos feiticeiros descontentes, relegando-os a um papel de segundo plano no cenário religioso. Parecia, pois, que o momento de uma grande vingança ou golpe se desenhava. A histeria tomou conta da corte, e as investigações tomaram proporções inimagináveis. Acusações foram feitas contra a imperatriz Wei Zifu 衛⼦夫 e seu filho, o príncipe herdeiro Liuju 刘据, e o processo descambou numa guerra civil aberta pelas ruas da capital imperial, que culminou na morte da imperatriz, do príncipe e de Jiang Chong, além de milhares de pessoas. Pouco tempo depois, Wudi descobriu que as concubinas do seu harém faziam avidamente os mais diversos tipos de feitiços para serem favorecidas e prenderem sua atenção. Com a ajuda de bruxos especialmente convocados para debelar esse ataque mágico, foram identificadas as mulheres e outros membros da corte envolvidos no caso, e mais centenas de pessoas – e até mesmo alguns clãs inteiros – foram condenados e executados. Antes de falecer poucos anos depois, Wudi ainda endureceria um pouco mais as leis contra feitiçaria, praticamente afastando-a da esfera imperial durante um bom tempo. Esse episódio ficou bastante conhecido não apenas por suas implicações políticas, mas por revelar a dimensão que a magia possuía no imaginário chinês antigo. Ele foi extensamente analisado por especialistas como Michael Loewe (1974), Hu Xinsheng 胡新⽣ 94 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga (1997), Xin Deyong ⾟德勇 (2016) e Chen Chao 陈超 (2017), que concordam que a feitiçaria teve aí um papel fundamental na definição das acusações, medos e paranoias que conduziram o processo de investigação do caso. Embora houvesse uma série de outras conspirações envolvidas nessa trama, os atos mágicos serviram como a grande causa e o problema fundamental a ser resolvido. Esse episódio mostra um aspecto pouco conhecido pelos leitores ocidentais sobre a história chinesa: a importância das práticas de feitiçaria [Wushu 巫术]. Como veremos, elas estavam intimamente ligadas às origens da civilização, e compunham um elemento importantíssimo na construção das crenças religiosas. Seria no período Qin 秦 - Han 漢 que uma mudança gradual se imporia na relação da sociedade com a feitiçaria, pelos mais diversos motivos. Nosso objetivo neste breve ensaio será, pois, apresentar um pouco sobre esse tema tão rico nas tradições culturais chinesas, fazendo um pequeno percurso histórico na antiguidade e apresentando algumas de suas práticas mais conhecidas. Origens históricas A feitiçaria é indissociável da história chinesa desde suas origens. Os termos ‘feitiçaria’, ‘magia’ e ‘bruxaria’ [Wushu 巫术] são usados de forma sinonímica, na China, para designar as tradições 95 André da Silva Bueno mágico-xamânicas herdadas e desenvolvidas desde o neolítico, e que continuam a acompanhar a sociedade até os dias de hoje [um outro termo, ‘Mofa’ 魔法 tem sido usado para indicar ‘mágica’ ou ‘magia’ ocidental, tendo surgido somente no século 19 ou 20 EC, e por isso não será usado aqui]. A historiografia tradicional chinesa produziu trabalhos importantes sobre o tema (LIN, 2016; YANG, 2018), mas a fundação da República em 1912 e depois, a ascensão do Marxismo em 1949 na China continental relegou as pesquisas sobre feitiçaria a um segundo plano. Foi no final do século 20 que estudos como ‘Feitiçaria na dinastia Han’ 漢代的巫者 de Lin Fujin 林富⼠ [1987], ‘Bruxaria Chinesa’ 中国巫术 de Zhang Zichen 张紫晨 (1990) ou ‘História da Feitiçaria Chinesa’ 中国巫术史 de Gao Guofan ⾼国藩 (1999) marcaram uma renovação nas pesquisas sobre as conexões entre as crenças mágicas chinesas e as origens ancestrais da cultura chinesa; mais recentemente, o mesmo Lin Fuji publicou ‘O Mundo dos Feiticeiros’ 巫者的世界 (2016), considerado o mais completo e seminal trabalho sobre o tema na historiografia contemporânea, no qual ele apresentava uma radiografia completa sobre a história e as práticas da bruxaria na China. Dois anos depois, o destacado pensador Li Zehou 李泽厚 publicou um importante estudo sobre as relações entre o desenvolvimento da filosofia chinesa e o xamanismo, 96 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga ampliando esse campo em novas e férteis direções (LI, 2018; ROSKER, 2021). O que esses trabalhos têm em comum? Eles exploram como a feitiçaria estava na base da organização cultural desde os primórdios da civilização chinesa. Para eles, os xamãs contribuíram significativamente para a construção do imaginário social e religioso, elaborando as primeiras crenças religiosas e explicando suas implicações no cotidiano da comunidade. Obras como O Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase, de Mircea Eliade (1998), serviram para nortear nossa compreensão epistêmica sobre o papel dos xamãs nas comunidades antigas; mas no caso chinês, elas precisam ser modificadas e ampliadas em certa medida. Li Yujie 李禹阶 (2020) mostrou como o crescente número de achados arqueológicos em tumbas neolíticas revela uma forte identidade entre as lideranças comunitárias e os xamãs, expressa por ornamentos e objetos ritualísticos como joias de jade, ossos e marfins esculpidos, máscaras e cerâmicas com pinturas de cunho mágico. Esses objetos integravam o arsenal do qual o bruxo se valia para desempenhar seu papel junto à sociedade, que se desdobrava em várias atividades diferentes [mas integradas], como veremos agora. Em primeiro lugar, cabia ao xamã a tarefa crucial de manter contato com o mundo espiritual, tanto no nível divinal [manifesta nas forças e símbolos naturais, como a Lua, o Sol, os rios, os ventos, o 97 André da Silva Bueno trovão, os animais] quanto com as almas desencarnadas dos membros da comunidade. Para isso, ele entrava em transe mediúnico, que podia se dar de duas formas diferentes: saindo do corpo físico para conversar diretamente com os espíritos e divindades, ou deixando que as mesmas assumissem seu corpo para manifestar suas vontades e avisos [usualmente conhecido como ‘possessão’]. Note-se que nesse momento da história chinesa – que os especialistas estimam entre o 8.000 a 7.000 anos atrás – as pessoas escolhidas para serem xamãs manifestavam desde a infância sinais de sensibilidade especial, e iniciavam cedo o treino na tarefa de se tornarem especialistas em artes mágicas, estudando-as ao longo de vários anos. Por isso, não havia distinção de sexo, e tanto mulheres quanto homens podiam ser xamãs, em chinês designados genericamente pelo termo ‘Wu’. Mas continuemos com as atividades dos xamãs: o intercâmbio com o mundo espiritual era fundamental para administrar a vida comunitária. Zhao Rongjun (2004) afirmou que o contato com as divindades servia para garantir a proteção e a continuidade da vida, expressa pelo conhecimento dos ritmos da natureza [a variação das estações, os ciclos dos astros], o desempenho das cerimônias e sacrifícios às divindades, e pela invocação da chuva. Em uma sociedade agrícola, tais conhecimentos eram cruciais para a sobrevivência. No mesmo sentido, as divindades podiam ajudar em processos de cura; elas podiam orientar o uso e a fabricação de 98 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga remédios e poções a partir de materiais naturais [dando partida a milenar farmacopeia chinesa], ou auxiliar no tratamento de doenças espirituais. Numa delas, por exemplo, a alma de uma pessoa ‘fugia’ para o mundo espiritual, e cabia ao xamã ir buscá-la em transe, guiado pelas divindades e espíritos familiares, trazendo-a novamente para seu próprio corpo. No dia-a-dia, xamãs também interpretavam sonhos, aconselhavam as pessoas em suas dúvidas particulares, davam orientações e agiam como uma espécie de ‘psicanalista’. Quanto aos espíritos que foram membros da comunidade, eles continuavam a supervisionar e auxiliar a vida de suas famílias, desenvolvendo-se aí a base do culto aos ancestrais, que se tornaria um pilar da mentalidade chinesa. Não raramente, eles vinham em sonhos dar avisos, ajudavam no processo de cura das doenças espirituais e auxiliavam os xamãs em suas tarefas. Ocasionalmente, eles podiam interferir [até certo ponto] na vida cotidiana, atuando sobre os indivíduos de modo benéfico ou maléfico, o que mantinha uma relação contínua do mundo material com o espiritual. Isso teria profundas implicações éticas, gradualmente delineando padrões de moralidade e ritualidade que estruturaram as regras sociais (CHU, 2008; ROSKER, 2021). Se xamãs podiam ser curandeiros, também podiam defender a comunidade ou servir a interesses particulares por meio de ações mágicas. Um dos conhecimentos que precisavam dominar era o da produção de venenos e poções mágicas, como filtros amorosos ou 99 André da Silva Bueno estimulantes para guerreiros. Também realizavam predições por meio dos mais variados oráculos, tais como o transe, sonho, o jogo de ossos, leitura de sinais da natureza, entre muitas outras formas. Além disso, eles expulsavam fantasmas e espíritos malévolos da comunidade, mas também sabiam como convocá-los para prejudicar alguém; e os chineses já conheciam o feitiço de imantação, no qual uma pequeno boneco de madeira [Tongmu ouren 桐⽊偶⼈] era produzido como réplica de alguém para gerar efeitos mágicos indiretos mediante a aplicação de agulhas, facas ou calor [o mesmo que teria sido usado contra Wudi, como citamos no início]. A compreensão dos ciclos naturais lhes permitiria, ainda, realizar feitiços para invocar pragas, pestes, secas, inundações, provocar tempestades ou causar desastres aos inimigos em meio a uma guerra. Como podemos notar, a feitiçaria xamânica abrangia os mais variados aspectos da vida, articulando as crenças em uma existência espiritual após a morte com a condução dos negócios cotidianos. Xamãs contribuíam dentro da comunidade para organizar os costumes, definir conceitos éticos norteadores, estabelecer relações políticas e econômicas e interpretar o imaginário religioso (WU, 1999; LI, 2020, p. 170). Podemos conectar as raízes de várias tradições chinesas com essas expressões da feitiçaria, tal como o culto aos ancestrais, derivado do contato com os espíritos familiares; a tradição fitoterápica herdada das experiências de curandeirismo; ou o pensamento cosmológico, 100 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga inferido pela gradual construção de sistemas que explicassem o ritmo da natureza. Wu Jindong (2002) defendeu que a feitiçaria seria a base das concepções religiosas e sociais da China antiga, e que teria continuamente servido de alicerce para o imaginário religioso dessa civilização; no mesmo sentido, Li Tiandao (2009) propôs que a estruturação estética dos elementos culturais chineses teria uma profunda conexão com a mundivisão cósmica do xamanismo chinês, estabelecendo padrões simbólicos que se reproduziriam nos mais diversos campos como música, poesia, arte e ciências naturais. Entre o popular e o institucional Em torno do terceiro milênio AEC, o processo de urbanização levou a uma complexificação das relações sociais, com o surgimento de novos grupos, classes e estamentos em ambientes cada vez mais diversos. O surgimento de clãs governantes nessas cidades gradualmente deslocou o espaço de poder do campo para as áreas urbanas, embora a China se mantivesse uma civilização agrária. O desenvolvimento tecnológico deu um grande salto, com um manejo sofisticado de metais, escultura e cerâmica que deu aos chineses, em torno do séc. 17 AEC, a capacidade de produção em massa de vários objetos (LEDDEROSE, 2000, p. 25-50). Os efeitos do surgimento das cidades e da formação de uma classe política reconfigurou a relação da sociedade com os xamãs101 André da Silva Bueno feiticeiros. Como vimos, a escolha desses especialistas se dava desde a infância a partir de um perfil específico, e esse processo de identificação-iniciação era evidentemente mais fácil de ser realizado dentro de uma comunidade aldeã. Nas cidades, a situação tornara-se diferente. O grande número de pessoas, bem como a formação de um corpo administrativo com bases clânicas, ensejou mudanças nas relações com os especialistas no sagrado. Eles mantiveram um prestígio significativo, e continuaram a ser convocados nas cortes para prestar sua assistência em assuntos mágicos, mas sua capacidade de atuação e influência ficou reduzida, em face do seu número limitado. Um dos resultados mais evidentes desse conjunto de mudanças foi o surgimento da escrita e seu oracular em carapaças de tartaruga e patelas bovinas no período Shang 商朝 [1500-1027 AEC], o que transferiu a capacidade de realizar augúrios para as mãos de nãofeiticeiros (Keightley, 1985). Vários dos conhecimentos xamânicos, como a astronomia, o calendário, o cerimonial e a farmacopeia se disseminaram na sociedade, e passaram por um processo de institucionalização [ainda que lento e relativamente limitado] que transferia, para o governo, a sua manutenção, difusão e reprodução. Ao longo da extensa dinastia Zhou [1027-221 AEC], a feitiçaria cedeu espaço à formação de uma religião oficial governamental, que pretendia conectar as divindades diretamente a classe governante, instituindo uma visão racionalizada da natureza que 102 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga a compreendia como um sistema ecológico complexo, mas não necessariamente mágico (BUENO, 2014). A atuação de xamãs ficou bastante restrita aos ambientes extra-urbanos, e suas concepções religiosas mantiveram-se mais presentes nos meios popular e rural. Um texto do séc. 5 AEC, o Guoyu 國語, explicava numa breve passagem como o desenvolvimento histórico da civilização chinesa havia dissipado a importância dos xamãs, através da mudança dos padrões religiosos: Antigamente, pessoas e espíritos não se misturavam. Nessa época, havia pessoas que eram sensíveis, determinadas e reverentes, e elas conseguiam alcançar a compreensão do que está acima e do que está abaixo, do que estava longe e do que é profundo. Por essa razão, os espíritos desciam neles. Os possuidores de tais poderes eram, se homens, chamados Xi 覡, e, se mulheres, Wu 巫. Eles cuidavam dos espíritos nos rituais, sacrificavam a eles e ensinavam as coisas espirituais. [...] Assim, o mundo dos espíritos e o mundo das pessoas permaneciam separados. Os espíritos enviavam suas bênçãos sobre as pessoas e aceitavam suas oferendas. Não havia calamidades naturais, e os pedidos eram atendidos. Mas no tempo do famigerado Shaohao 少昊 [imperador que teria reinado no século 26 AEC] os Jiuli 九黎 [tribos antigas semi-lendárias que teriam se tornado célebres por suas práticas de feitiçaria malévola] transformaram a virtude em desordem. Pessoas e espíritos começaram a se misturar, e cada família começou a fazer rituais que até então só os xamãs faziam. As pessoas passaram a desrespeitar os espíritos, e os espíritos passaram a incomodar as pessoas, surgindo aí as calamidades naturais. O sucessor de Shaohao, Zhuanxu 顓頊 [2514 AEC? – 2436 AEC?] [...] encarregou Chong, Governador do Sul, de cuidar dos assuntos do céu para determinar o lugar apropriado dos espíritos, e Li, Governador do Fogo, de cuidar dos assuntos da Terra, a fim de determinar o lugar próprio dos humanos. E é isso que significa ‘cortar a comunicação entre o Céu e a Terra’ (Guoyu 國語, 楚語下 10). 103 André da Silva Bueno Como podemos notar, o xamãs teriam tido um papel importante numa Era idealizada do passado chinês, mas a corrupção dos costumes e do uso da magia havia feito sua posição declinar, e fora necessário a intervenção de oficiais da corte para instituir o monopólio sobre a conexão com o mundo espiritual, o ato de ‘cortar a comunicação entre o Céu e a Terra’ [Jueditiantong 绝地天通]. Esse conceito se tornaria uma peça chave nas políticas públicas sobre a bruxaria no futuro, como veremos adiante. Mesmo assim, é preciso cuidado em delimitar radicalmente essas diferenças; como podemos perceber, mesmo a cultura ritual urbana derivava, em muitos aspectos, das tradições surgidas na feitiçaria, e a religiosidade chinesa antiga pode ser apropriadamente denominada como ‘Wujiao’ 巫教 [Ensinamento dos Xamãs] ou ‘Shenjiao’ 神教 [Ensinamento dos Espíritos]. O que começaria a mudar então a partir do século 3 AEC, durante o período Qin-Han? A feitiçaria no período Qin e Han A dinastia Qin [221-206 AEC] constituiu um breve, porém importantíssimo, período da história chinesa. Após uma demorada guerra civil, que se arrastou de 481 até 221 AEC [Zhanguo 戰國], o estado de Qin conseguiu reunificar o país em torno de um estado centralizado, imprimindo uma nova ordem burocrática de poder no 104 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga país. Nesse meio tempo, a China atravessou momentos importantes, como a revolução do pensamento ético-político promovida por pensadores como Laozi ⽼⼦[séc. 6 AEC], Confúcio 孔⼦[551-479 AEC], Mozi 墨⼦[470-391 AEC] e Hanfeizi 韓⾮⼦[280-233 AEC], entre outros, que trouxeram a luz o problema da racionalização filosófica sobre o conhecimento e a existência humana. Esse movimento contribuiu fortemente para a formação de uma intelectualidade atuante, que se distinguia dos xamãs por entender que os problemas do mundo se situavam em um plano imanente, ou seja, voltado para as relações entre os seres humanos e a natureza no plano físico da existência. Ainda que o primeiro monarca de Qin, Qinshi Huangdi 秦始皇 帝 [260-210 AEC] perseguisse as divergências políticas e filosóficas ao seu regime (Bueno, 2015), o princípio fundamental de manter o monopólio de uma razão de estado em suas mãos consolidou-se, e suas políticas públicas se conduziram a partir de um pensamento filosófico legalista. Isso significou um afastamento cada vez maior entre a esfera religiosa tradicional e popular, representada pela feitiçaria, e as instâncias governamentais urbanizadas. Qinshi Huangdi tentou construir para si uma dimensão messiânica, pretendendo reformular-se divinamente no imaginário chinês em um projeto malsucedido, mas que gerou impactos significativos na ideologia de governança (PINES, 2014). Mesmo assim, o soberano Qin não 105 André da Silva Bueno desprezava a magia de forma alguma, e investiu assiduamente em poções e remédios que pudessem estender sua vida [e que foram provavelmente, a causa de sua morte] (NEEDHAM, 1970). Foi nesse período que o governo imperial começou também a impor legislações mais severas sobre as práticas mágicas, pretendendo controlar seus efeitos e sua influência. Aparentemente, no desejo de controlar a sociedade, Qinshi Huangdi entendia que os feiticeiros poderiam agir de forma sutil contra o Estado e seu aparelho, e por isso, precisavam ser vigiados de perto (DUAN, 2014; YANG, 2018). Essas ações revelam que a elite burocrática imperial, apesar de intelectualizada, continuava a acreditar firmemente na feitiçaria, e é provável que recorressem a ela usualmente. A pressão política e social sobre os feiticeiros pode ter sido responsável pela disseminação mais intensa, nesse período, da magia Gu 蠱, um conjunto de práticas e feitiços malévolos que se tornaram muito comuns na China, como analisado por Li Hongru 李鸿儒, 2021, cujo trabalho explica a cultura do veneno Gu na antiguidade. As evidências da existência de Gu remontam ao período Shang e Zhou, e aparecem pontualmente nos oráculos e textos, mas sem uma explicação mais detalhada (LI, 2021; DU, 2016). É em Qin que começamos a saber no que consistia exatamente a prática Gu: acreditava-se que era possível produzir um veneno terrível a partir da mistura de várias toxinas naturais. Para isso, os magos despejavam em 106 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga um mesmo recipiente fechado animais peçonhentos como cobras, sapos, aranhas e escorpiões e deixavam que eles exterminassem uns aos outros. No final, o animal que sobrevivesse deveria ser o mais resistente, o mais venenoso, e seu corpo conteria uma mistura letal de toxinas. Sua peçonha [ou seu sangue] seria então retirada, guardada e usada em poções ou administrada contra as possíveis vítimas. Gu podia ser usado para envenenar inimigos e eliminá-los de modo fulminante, mas também podia ser diluído para criar feitiços de amarração amorosa. Supõe-se que o veneno Gu podia ser usado para dominar a mente das pessoas ou criar zumbis/vampiros [Jiangshi 殭 屍] sobre o controle do feiticeiro; para isso, deixava-se que lesmas nascessem dos corpos dos animais mortos na produção da peçonha. Elas eram recolhidas e então buscava-se um meio para que uma delas fosse inserida no corpo da vítima, fosse por alimentos ou por uma cavidade do corpo. Esse parasita, controlado magicamente a distância pelo feiticeiro, passaria a habitar dentro da pessoa infectada, tomando sua consciência e tornando-a submetida à vontade do mestre Gu. Para combater o feitiço Gu, havia dezenas de meios diferentes, que envolviam desde exorcismos aos mais diversos tipos de remédios herbais e minerais, mas o tratamento era considerado difícil e sofrido (YUAN, 1995). É possível que o grande número de parasitoses causadas por alimentos contaminados fosse o principal subsídio para a crença na efetiva ação dos feitiços Gu; seja como for, essa prática se 107 André da Silva Bueno consolidou como uma das principais ameaças mágicas na civilização chinesa. O potencial de perigo representado pela magia Gu atravessou o período Qin e chegou a dinastia Han [221 AEC – 206 EC], período em que viveu Wudi, o soberano citado na abertura deste capítulo. Embora a dinastia Han fosse muito mais condescendente e liberal do que Qin, em grande parte graças a adoção do Confucionismo com ideologia imperial, a feitiçaria continuou a ser uma preocupação central nas instâncias políticas. Uma legislação severa foi criada e aplicada após o incidente com o imperador, aumentando o controle e a supervisão sobre xamãs e pessoas que praticassem bruxaria (XIN, 2016, p. 122-124). Pessoas que fossem pegas praticando Gu deveriam ser executadas e esquartejadas, e as partes de seu corpo queimadas – descobriu-se, com o tempo, que os praticantes de magia tentavam obter partes desses mesmos corpos para realizar seus encantamentos e poções, por acreditar que eles continham o poder acumulado em vida, o Qi 氣[energia, pneuma] do feiticeiro. Ao mesmo tempo, a burocracia incorporou feiticeiros ‘oficiais’ na corte, especialistas em detectar e evitar ataques mágicos aos soberanos. Apesar deles serem recrutados entre os tradicionais xamãs, a magia continuaria sobrevivendo cada vez mais nos meios rurais, sendo rigorosamente filtrada nas práticas religiosas institucionalizadas. Como Lin Fuji [1987] observou, a teoria ‘Jueditiantong’ [Cortar a comunicação entre o Céu e a Terra] se 108 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga tornaria o centro de uma mudança nas atitudes estatais em relação à magia, marcando uma nova fase na vivência religiosa dessas crenças. A dinastia Han demarca o mais baixo nível de status da bruxaria na antiguidade chinesa frente a burocracia e as camadas intelectualizadas da sociedade [HU, 1996; MA, 2001]. Wang Chong 王充 [27-100 EC], uma dos críticos mais ativos desse longo período, afirmava que ‘quando se fala de exorcismos e sacrifícios, ele são inúteis; quando se fala de feiticeiros, eles não têm poder; tudo depende do ser humano e de suas virtudes, e não de fantasmas e de sacrifícios’ [Lunheng 論衡, 解除:12]. Tamanho desprestígio não era o único problema com que os feiticeiros teriam que lidar. Eles ainda enfrentariam uma nova ameaça a sua já combalida autoridade: os ‘Fangshi’ ⽅⼠. Da Feitiçaria à Alquimia Os eventos que atingiram a corte Han durante o reinado de Wudi não apontavam somente para um ‘declínio’ da magia, mas envolviam também a ascensão do ‘Fangshi’ ⽅⼠, um novo tipo de especialista mágico que começou a frequentar as altas rodas da sociedade chinesa. Desde a época de Qin, surgira um interesse renovado em métodos para prolongamento da vida e manutenção da saúde. Esse movimento vinha tanto da racionalização intelectual, que ensejou a 109 André da Silva Bueno construção de uma ciência médica, quanto da preocupação palpável contra conspirações e envenenamentos, uma prática comum nos meios políticos. Enquanto isso, o período de guerra civil que precedera a ascensão de Qin havia lançado ao mundo milhares de pensadores que estavam agora desempregados, com exceção daqueles que haviam se submetido ao regime severo da nova burocracia imperial. Isso significou um importante movimento de disseminação de saberes na sociedade, disponibilizando ao público um imenso acervo de conhecimentos e preocupações filosóficas, que permitiram a uma vasta parcela de pessoas repensar suas relações com o imaginário cultural e religioso. Os Fansghi surgiram na esteira desses acontecimentos. Embora seja difícil rastrear ou construir um perfil social de suas origens, sabemos que eles compartilhavam um conjunto de saberes estruturados de forma muito similar [para isso, podemos consultar o ainda referencial trabalho de De Woskin, 1983]. Não por acaso, os sinólogos ocidentais começaram a traduzir o termo como ‘alquimista’, já que algumas das propostas dos Fangshi iriam coincidir, inclusive, com seus homólogos da Europa. A concepção geral que permeava as ações e ideias desse grupo era de uma racionalização cientificizada das crenças e sistemas propostos pelos xamãs, afastando-as da esfera espiritual para a do mundo material (ELIADE, 1995, p. 63-65). Ou seja: segundo eles, seria possível elaborar medicamentos ou métodos 110 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga de cuidado com a saúde que não envolvessem relações com os espíritos ou qualquer tipo de compromisso moral. Essa proposta atendia diretamente a uma camada privilegiada da sociedade que pretendia viver mais e melhor, mas sem ter que se preocupar com deveres e ofícios religiosos mais austeros. Os Fangshi ainda elevaram ao máximo o expoente do curandeirismo, afirmando que seria possível obter alguma forma de imortalidade física [Xian 仙] pelos métodos por eles defendidos; e isso, nem mesmo os feiticeiros ou os médicos foram capazes de propor em qualquer momento. Qinshi Huangdi permitiu que alguns Fangshi frequentassem sua intimidade, e experimentou algumas de suas fórmulas. Depois dele, o mundo chinês entrou na dinastia Han mais aberto e tolerante, mas não menos desejoso de soluções miraculosas. O imperador Wudi, de quem já falamos antes, foi também um vívido interessado nos métodos Fangshi, e recebeu a visita de um mestre famoso, Li Shaojun 李少君, que teria explicado a ele alguns dos segredos da longevidade, conforme nos conta Sima Qian 司⾺遷 (145-86 AEC) no capítulo 28 do Shiji 史記; contudo, a morte de Li alguns anos depois deixou no ar a impressão de que os Fangshi poderiam ser charlatões. Parece improvável para nós, hoje, que alguém realmente acreditasse ser possível tornar-se imortal; mas naquela época a ciência ainda engatinhava, e os relatos folclóricos de pessoas que haviam conseguido obter esse privilégio abundavam na literatura. Por exemplo, o livro Biografias dos imortais (Liexian Zhuan 列仙傳), de 111 André da Silva Bueno Liu Xiang 劉向 (77-6 AEC) trazia uma série de relatos e personagens históricos que teriam conseguido alcançar a longevidade ou a imortalidade através de métodos secretos. Os Fangshi formavam uma espécie de rede iniciática que compartilhava seus conhecimentos com discípulos seletos e vendia suas artes a quem pudesse pagar bem; apesar disso, temos algumas evidências de como funcionavam suas ideias centrais, expressas no primeiro manual de alquimia chinesa, o Cantongqi 參同契 (também chamado de Zhouyi Cantongqi 周易參同 契), de Wei Boyang 魏伯陽 (séc. 3 EC). A diferença marcante entre a feitiçaria Wu e essa mesma alquimia era o ponto de partida teleológico. Como vimos, a feitiçaria entendia uma série de eventos físicos [como as doenças e as dificuldades da vida] atrelados à influência dos espíritos, e somente mediados pela intervenção dos xamãs/bruxas. Os Fangshi agiam de forma diferente; para eles, a maior parte desses problemas poderia ser resolvida pelo uso de técnicas que podiam ser compartilhadas com pessoas sem qualquer habilidade mágica especial, e que se atinham essencialmente à existência material. A busca pela imortalidade era um processo físico, que pretendia reproduzir condições análogas a da natureza. Isso ficava evidente pelo objetivo central dos sistemas Fangshi, a criação de um ‘elixir de ouro’ [Jindan ⾦丹]. Assim como o ouro tinha qualidades especiais, como pureza e durabilidade, pretendia-se 112 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga uma transmutação do corpo físico em uma condição análoga a do metal precioso. Isso podia ser feito de forma literal, com a ingestão de pó de ouro; mas essa era apenas uma entre centenas de opções que esses especialistas desenvolveram. Para uma descrição mais ampla dos métodos alquímicos, veja meu texto (BUENO, 2022), sobre os quais faremos um breve resumo a seguir. Uma das formas mais comuns de produzir o elixir era a cozedura de elementos herbais e minerais para a produção de pílulas ou poções que conseguissem produzir o efeito de transformação do corpo físico. Ouro, prata, cinábrio e jade eram apenas algumas das muitas substâncias empregadas, além da vasta farmacopeia importada dos xamãs e dos médicos. Uma teoria central no processo de cozimento era tentar produzir um elemento novo que congregasse todos os cinco estados da matéria – água, fogo, metal, madeira e terra – e sua aparência deveria ser, ao final, similar ao dourado. Outra proposta defendida pelos Fangshi era de que a harmonia corporal poderia ser atingida pela combinação equilibrada das essências yin 陰 e yang 陽 através de uma série de exercícios físicos especiais, como as respirações Qigong 氣功, ou pela alquimia sexual, que consistia em uma espécie de cópula técnica entre parceiros com o fim de permutar energias. Uma notável literatura sobre essas técnicas foi encontrada nas tumbas Han de Mawangdui ⾺王堆, e tem sido continuamente estudada pelos seus aspectos inovadores no campo da educação física, das artes marciais e da sexualidade. 113 André da Silva Bueno Como podemos notar, os métodos alquímicos chineses iam bastante além dos seus congêneres posteriores da Europa medieval, e estiveram na raiz de várias formas e modalidades de conhecimento nas ciências chinesas tradicionais. Um amplo diálogo com áreas como a medicina e a química permitiram que algumas experiências alquímicas fossem incorporadas aos saberes comuns, transformando-se numa importante herança imaterial. Desdobramentos históricos E o que aconteceu com esses Fangshi? Apesar de inúmeros ensaios e tentativas malsucedidas, os alquimistas chineses conseguiam emprestar uma aura de credibilidade a suas ideias, oferecendo-as como uma espécie de ‘magia racional’ ou ‘medicina sutil’, sem exigir contrapartidas morais. É notável pensar que, apesar do seu desejo em afastar-se dos feiticeiros, a alquimia acabou sendo gradualmente absorvida pela religião daoísta, profundamente interessada nos métodos de equilíbrio natural do corpo. Assim, quando Zhang Daoling 张道陵 [34?-156? EC] fundou o primeiro movimento religioso do Daoísmo, o Caminho dos Mestres Celestias [Tianshidao 天師道], a alquimia era já um elemento presente no corpo dos conhecimentos religiosos, junto a uma série de práticas – como exorcismos – emprestados diretamente da feitiçaria (BUENO, 2021, p. 30-33). As crises no século 3 EC que envolveram a dinastia Han não diminuíram 114 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga o interesse pelas experiências alquímicas, ao contrário: elas se tornaram um assunto profundamente estudado pelos intelectuais das dinastias posteriores, se tornando um importante ramo do conhecimento sagrado da civilização chinesa. Quanto à feitiçaria, apesar de ter cedido muito de seus conhecimentos para a construção de todas essas vertentes religiosas, continuou a sofrer com um esvaziamento sistemático de seu poder por parte das camadas privilegiadas da população. Para muitas pessoas, era profundamente incômoda a sensação de depender de um especialista ‘escolhido pelas divindades’ para resolver problemas que pareciam não ter fundamento na esfera humana. Nas áreas rurais, porém, onde o acesso à escola era reduzido, os xamãs continuaram a desfrutar de certo prestígio, mas sem um papel de liderança como o vivenciado do neolítico até o período Shang. Esses feiticeiros angariaram para si uma função/imagem muito parecida com o que conhecemos aqui no Brasil como o dos curandeiros e benzedeiras, herdando e preservando tradições antigas e conhecimentos da natureza que não foram filtrados pela cultura urbanizada e pela religiosidade institucional. Por outro lado, os estudos de Zhao Xiaohuan 赵晓欢 [2016] e Yang Qianqian 杨千千 (2018) mostram um endurecimento das leis, ao longo da história, contra a bruxaria, colocando-a em um entrelugar problemático de marginalização e ao mesmo tempo, de poder oculto e latente. Foi no período Han, por fim, que se delineariam esses espaços de bruxos, alquimistas e das doutrinas 115 André da Silva Bueno religiosas no imaginário chinês, fomentando uma estrutura relacional que atravessaria os séculos e teria profundas implicações nas leis e na sociedade. Referências Documentação2 Guoyu 國語. Disponível em: https://ctext.org/guo-yu. Acesso em: 21 jul. 2022. Shiji 史記. Disponível em: https://ctext.org/shiji. Acesso em: 21 jul. 2022. Lunheng 論衡. Disponível em: https://ctext.org/lunheng. Acesso em: 21 jul. 2022. Liexian Zhuan 列仙傳. Disponível em: https://ctext.org/lie-xianzhuan. Acesso em: 21 jul. 2022. Cantongqi 參同契. Disponível em: https://www.goldenelixir.com/ jindan/ctq_index.html. Acesso em: 21 jul. 2022. 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Acesso em: 17 jul. 2022. 118 Escravidão e adivinhação no Império Romano: uma aproximação a partir das Sortes Astrampsychi Filipe Noé da Silva1 Introdução De acordo com os Atos dos Apóstolos (16:16), Paulo e Silas, em suas missões na cidade de Filipos, teriam encontrado uma jovem mulher em condição servil que, possuída por um espírito pitônico2 (πνεῦµα Πύθωνα), realizava adivinhações (µαντευοµένη) e assim gerava lucros para seus proprietários. Após bradar por vários dias que os apóstolos estariam a serviço da divindade judaico-cristã, a serva, então, teria sido libertada (por Paulo) do espírito que a possuía. Incomodados por já não mais poderem lucrar com os ‘serviços oraculares’ da mulher escravizada, seus senhores voltaram-se, então, contra os pregadores cristãos e, com o apoio da multidão e dos estrategos locais, os submeteram à violência e ao cárcere. Doutor em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Em sua tese de doutorado investigou as práticas de munificência cívica (evergetismo) fomentadas por libertas e libertos nas cidades romanas da Baetica. Durante o doutorado, foi pesquisador visitante no CEIPAC (Universitat de Barcelona). Possui mestrado em História Cultural, também pela UNICAMP, com estudos sobre sexualidade no Império Romano e teorias de gênero aplicadas à Antiguidade Clássica. É professor universitário, atuante nas Faculdades Integradas Maria Imaculada. 2 Sobre a suposta origem da serpente Píton, a subsequente vitória de Apolo, o deus arcitenens, e a instituição de jogos sagrados em sua homenagem veja-se: Ovídio, Met. I. 431-447. 1 119 Filipe Noé da Silva Apesar de seu teor proselitista e teológico (NOGUEIRA, 2020, p. 53), a narrativa dos Atos dos Apóstolos, repleta de elementos da historiografia e da novela gregas, se ancorava (WICKHAM, 2019, p. 52) em experiências reconhecíveis, características de sua própria época3 e repletas de “(...) informações que demonstram conhecimento de primeira mão e antigo” (FUNARI; VASCONCELLOS, 2013, p. 20). Sua menção à prática da adivinhação oracular, bem como sua referência à conhecida (COBB, 2019, p. 180) Pítia de Delfos, não é fortuita e tampouco ocasional. Como demonstrado por Jean-Pierre Vernant (1991, p. 304), as práticas divinatórias estavam atreladas à religiosidade, à medicina, à lei e à política quotidianas, impactando de maneira significativa sobre a vida coletiva nas cidades do Mediterrâneo Antigo e em sua produção cultural. Em decorrência de sua ubiquidade, as práticas de adivinhação oracular constituíam uma manifestação da religiosidade popular (JENNINGS, 2017, p. 193) que estava ao alcance dos mais distintos grupos sociais (VERNANT, 1991, p. 311): inclusive das pessoas escravizadas (EIDINOW, 2011). Além do já mencionado episódio narrado pelo Atos dos Apóstolos (16:16), a proximidade entre oráculos e escravizados também foi tema da Vida ou Romance de Esopo (G. 89-91 passim): a pedido da assembleia de Samos, Esopo (a Embora narre as experiências das comunidades cristãs da década de 60 da Era Comum, não há consenso quanto à datação da obra Atos dos Apóstolos. Entre os estudiosos brasileiros, admite-se que a narrativa tenha sido produzida entre os anos de 80 (FUNARI; VASCONCELLOS, 2013, p. 20) e 120 (NOGUEIRA, 2020) da Era Comum. 3 120 Escravidão e adivinhação no Império Romano contragosto de seu mestre, o filósofo Xanto, que foi obrigado a conceder-lhe a liberdade nesta ocasião) teria interpretado um presságio que anunciava guerra, derrota e escravização para a população desta cidade. Assumindo, portanto, o pressuposto de que as adivinhações oraculares também eram manipuladas por pessoas em situação servil, o presente capítulo examina as Sortes de Astrampsico com o intuito de compreender os interesses associados à consulta oracular realizada por pessoas escravizadas. Por meio desta empreitada, espera-se conhecer, ainda que de maneira preambular, algumas das expectativas dessas pessoas em relação à escravidão praticada no Império Romano. As Sortes Astrampsychi e a escravidão romana Composto por 91 perguntas (elencadas entre os números 12 e 103) e 103 dezenas de respostas, o livro das Sortes de Astrampsico é um texto oracular, pseudoepigráfico, redigido em língua grega sobre um papiro (EIDINOW, 2011) e que reivindica sua autoria para um mago chamado Astrampsico4. Endereçado ao rei Ptolomeu, o tomo em questão salienta que as previsões ali contidas teriam sido propostas pelo filósofo Pitágoras e beneficiaram até mesmo Alexandre o Grande em muitas de suas conquistas militares. Apesar da alegação favorável Ao mencionar os chamados “filósofos bárbaros”, Diógenes Laércio (Prólogo I, II) inclui Astrampsico em uma lista de magos e sábios persas: além de Zoroastro, são apresentados pensadores que teriam vivido até o período anterior à conquista de Alexandre, o Grande. 4 121 Filipe Noé da Silva a uma datação mais longínqua, a crítica contemporânea tem reconhecido que as Sortes Astrampsychi teriam sido compostas em um período posterior, de modo que sua datação foi atribuída ao século II da Era Comum (STEWART, 1995, STEWART; MORRELL, 1998; EIDINOW, 2011; VLASSOPOULOS, 2021). O oráculo de Astrampsico é apresentado como um sistema de prognósticos a partir dos números e sua utilização, conforme as instruções descritas no seu prólogo, ocorreria da seguinte forma: o/a consultante deveria selecionar uma dentre as 91 questões (numeradas de maneira crescente de 12 a 103) oferecidas de antemão pelo livro oracular. Esta pessoa também deveria indicar (inspirada por uma divindade!) um número de 1 a 10. O valor numérico da questão escolhida seria, então, somado à quantia indicada pelo/a consultante, e o resultado dessa soma deveria ser conferido em uma tabela numérica do oráculo: esta última indicaria em qual dezena se encontrava a resposta à adivinhação pretendida. Na dezena, a resposta do oráculo seria aquela correspondente ao número “inspirado”, indicado pela pessoa interessada na adivinhação. Em geral, o funcionamento das Sortes de Astrampsico se assemelha ao de outros oráculos antigos de base numérica, nos quais as respostas já estavam fixadas de maneira prévia. Seu acesso aos prognósticos, no entanto, prescindia da utilização dos dados (ἀστράγαλος, ou alea, em latim): objetos confeccionados com ossos, madeira, conchas, metal ou marfim, e que eram utilizados em consultas oraculares com o intuito de assegurar randomização e 122 Escravidão e adivinhação no Império Romano imparcialidade (PURCELL,1995) à mensagem transmitida pela divindade (GRAF, 2005). Sua utilização requeria, ao que tudo indica, a intermediação de um sacerdote, mago ou adivinho responsável por operacionalizar, diante da pessoa consultante, a complexa e misteriosa combinação numérica deste oráculo (BROWNE, 1970). Como observado por Stewart e Morrell (1998), as questões disponibilizadas pelo oráculo incluíam temas diversos, tais como: busca por riqueza, amores, saúde, trabalho. As perguntas também se mostram compatíveis com os interesses de indivíduos pertencentes a distintos grupos sociais: homens e mulheres, livres e escravizados, ricos e pobres. Em estudo recente, Kostas Vlassopoulos (2021, p. 154-155) identificou três adivinhações a serem utilizadas por pessoas que se encontravam em servidão. A primeira delas, a questão 46 das Sortes Astrampyschi, indaga sobre uma possível reconciliação entre a pessoa escravizada e seus proprietários: εἰ καταλλάσσοµαι τοῖς κυρίοις ; Irei me reconciliar com os donos? (Sortes Astrampsychi, 46. Tradução nossa). O oráculo oferecia uma dezena de respostas a esta indagação. O/A consultante, neste caso, saberia que sua proposta oscilava entre a reconciliação imediata (ou posterior) com seus superiores, ou até mesmo sua negativa (VLASSOPOULOS, 2021, p. 155). Diante dessa indagação, é interessante questionar: por qual(is) motivo(s) uma pessoa escravizada estaria interessada em reaver o convívio harmonioso com seu proprietário? 123 Filipe Noé da Silva Ainda que caracterizada por episódios de violência resultantes de um poder exercido de maneira unilateral (PATTERSON, 1982), a relação entre escravizados e proprietários se caracterizava por negociações, imposições e resistências, sempre de acordo com os interesses dos indivíduos envolvidos. Para além do uso indiscriminado da força, a manutenção da escravidão também era realizada por meio da concessão de benefícios, imediatos ou iminentes, às mulheres e aos homens escravizados. A curto prazo, um proprietário poderia permitir o arranjo de casamentos extraoficiais (contubernia) àquelas e àqueles que, segundo seu juízo, se mantivessem produtivos e fiéis ao trabalho e à disciplina da escravidão. Do mesmo modo, as alforrias eram oferecidas aos indivíduos escravizados como forma de recompensar (HOPKINS, 1978) sua suposta fidelidade e comprometimento. Alguns exemplos preservados pela documentação epigráfica latina, composta por inscrições transmitidas de maneira direta da Antiguidade, tornam patente a complexidade subjacente ao convívio entre proprietários e escravizados. A seguir, a título de exemplo, apresentamos uma inscrição referente à união conjugal entre um homem livre e uma mulher alforriada: D(is) M(anibus) / C(aio) Prastinae Nereo / coniugi et patrono / optimo fecit / Prastinia Quinta / cum quo vixit / annis XVIII (CIL 14, 01506). Local: Ostia. Aos deuses manes. A Caio Prastina Nereu, o melhor cônjuge e patrono. Prastinia Quinta, com quem viveu por dezoito anos, fez [este sepulcro]. (Tradução nossa). A inscrição funerária de Caio Prastina Nereu apresenta o caso de um proprietário escravista que alforriou uma mulher e a ela se 124 Escravidão e adivinhação no Império Romano juntou em uma união conjugal que perdurou por dezoito anos. Conforme indicado pelo registro funerário, o indivíduo homenageado nesta lápide, a um só tempo, ocupava a posição de patrono e cônjuge. Embora utilize uma fórmula epigráfica recorrente, é interessante notar a presença do adjetivo optimo (neste caso, significando para o melhor), demonstrando sua reverência e sentimento à memória do antigo companheiro. A harmonia pretendida pelo registro epigráfico, contudo, negligencia a permanência de relações desiguais e paternalistas (GENOVESE, 1974) entre os personagens envolvidos: não sabemos por quanto tempo Prastinia Quinta esteve em situação de submissão e dependência em relação ao seu proprietário, e tampouco de que forma essa dominação era exercida. Ademais, não se pode perder de vista que escravizados e libertos também poderiam se indispor aos arranjos propostos por patronos. De acordo com Tácito (Ann. 13.27), o Senado, à época de Nero, discutiu a possibilidade de reescravizar os chamados libertos ingratos (liberti ingrati), indivíduos egressos da servidão que resistiam ao cumprimento das tarefas impostas por seus respectivos patronos. Além das práticas de resistência, a eventual ascensão social e econômica por meio do trabalho (FUNARI; SILVA, 2021), do comércio (REMESAL, 2004) e das benfeitorias cívicas (SILVA, 2021), revela situações de protagonismo mesmo diante da exploração e dominação a que estavam submetidos. Considerados propriedade de outrem, os escravizados viviam sob a iminente possibilidade de serem vendidos. Essa condição, como 125 Filipe Noé da Silva destacou Vlassopoulos (2021, p. 156), poderia suscitar sentimentos diversos (de medo ou esperança) entre os escravos que, em última instância, viviam diante de um amplo repertório de incertezas e desconhecimentos sobre seu próprio futuro. As Sortes de Astrampsico apresentam uma questão sobre este tema aos consultantes desejosos de uma resposta oracular: εἰ πωλοῦµαι; Serei vendido? (Sortes Astrampsychi,74. Tradução nossa). Além das já conhecidas respostas sobre a realização (ou não) imediata ou posterior da previsão, o oráculo também predizia que o indivíduo negociado poderia se deparar com prejuízos, arrependimentos (VLASSOPOULOS, 2021, p.156), mas também ser vendido e até libertado após sua venda (πωλῇ καὶ ἐλευθεροῦσαι. Sortes Astrampsychi, 85.09). O tema da liberdade, aliás, ocupa papel de destaque dentre as questões apresentadas pelas Sortes de Astrampsico: ao dirigir esta pergunta ao oráculo, o consultante esperava por uma uma predição positiva ou negativa sobre sua eventual manumissão: εἰ ελευθεροῦµαι τῆς δουλείας; Serei libertado da servidão? (Sortes Astrampsychi, 32. Tradução nossa). Dentre as respostas relacionadas a essa pergunta, figuram, como em outras predições oferecidas pelo oráculo, opções positivas (em que a libertação ocorreria de maneira imediata ou no futuro) e presságios negativos, sugerindo que o consultante não alcançaria sua 126 Escravidão e adivinhação no Império Romano liberdade (VLASSOPOULOS, 2021, p.161). Em uma de suas réplicas (Sortes Astrampsychi, 53.05), o oráculo prevê a alforria do indivíduo mediante apelo e posterior realização de um pagamento em dinheiro: fazendo referência explícita, portanto, à possibilidade de um escravizado acumular peculium durante sua permanência sob o jugo da servidão. A presença desta questão em um documento oracular é reveladora quanto às expectativas e esperanças de liberdade (VLASSOPOULOS, 2021, p. 159) dos escravizados. Ainda que a escravidão praticada no Império Romano seja reconhecida pela alta incidência de manumissões, quando comparada a outros contextos históricos escravistas (HOPKINS, 1978, p. 115; MOURITSEN, 2011, p. 8), não se pode presumir que a efetivação da alforria estivesse ao alcance de todo e qualquer indivíduo reduzido à condição servil, como se a escravização constituísse um prejuízo temporário a ser superado por uma manumissão iminente e inevitável. As prerrogativas associadas à libertação de escravos tampouco foram imutáveis entre os romanos: na época de Augusto, por exemplo, foram promulgadas leis que diminuíram a quantidade de alforrias a serem concedidas dentro de uma mesma casa (lex Fufia Canina), e que restringiam a eventual transmissão da cidadania (lex Aelia Sentia) às pessoas egressas da escravidão (BUCKLAND, 1908, p. 547; Joly, 2010, p. 70; MOURITSEN, 2011, p. 84). 127 Filipe Noé da Silva Submetidos à robustez da instituição escravista e à arbitrariedade dos interesses e arranjos oferecidos por seus proprietários, os escravizados romanos, contudo, nunca deixaram de buscar alternativas que os permitissem superar as máculas (MOURITSEN, 2011) advindas da servidão. O recurso ao oráculo, à prática popular de adivinhação (JENNINGS, 2011), constitui uma tentativa de se apoderar, tornar-se consciente, ainda que de maneira parcial, de um destino marcado pelas múltiplas incertezas instauradas pela escravização. Considerações finais No século XIX, sob o influxo do pensamento antropológico evolucionista de James Frazer (1854-1941) e de tantos outros, as práticas mágicas (e mesmo as religiosidades) foram colocadas em um patamar intelectual inferior ao conhecimento advindo das ciências (Gosden, 2020). A diferenciação entre religião, magia e ciência, como demonstrado por Fritz Graf (1997) e Semíramis Corsi Silva (2014), tiveram grande influência sobre os estudos que se dedicaram à compreensão das múltiplas manifestações de práticas mágicas na Antiguidade. A Antropologia desenvolvida na segunda metade do século XX, por sua vez, produziu os subsídios que permitiram à História da Antiguidade e às demais Ciências Humanas uma compreensão sobre 128 Escravidão e adivinhação no Império Romano as práticas mágicas antigas sem depender do crivo hierárquico de outrora. Claude Lévi-Strauss (1962 [1989]) considerava que o pensamento mágico e ciência ficavam lado a lado no que concerne às operações mentais e à racionalidade: O pensamento mágico não é uma estreia, um começo, um esboço, a parte de um todo realizado; ele forma um sistema bem articulado; independente, nesse ponto, desse outro sistema que constitui a ciência (...) (LÉVI-STRAUSS, 1962 [1989], p. 28). Admitida como uma tentativa de humanização do universo a magia, a tentativa de alinhar os desejos humanos com as forças visíveis e invisíveis do universo, tem acompanhado a humanidade desde o seu passado mais longínquo (GOSDEN, 2020): a Cultura Material, objeto de estudo da Arqueologia, torna patente essa consideração e oferece inúmeros exemplos. Gregos e romanos acreditavam na eficácia de suas práticas mágicas: seus amuletos, objetos apotropaicos e defixiones atestam seu apego e também seu temor em relação à eficácia das forças espirituais: daí a recorrente proibição de certas práticas mágicas sob força de lei. Por fim, pode-se constatar que tampouco o futuro lhes parecia inacessível sem o auxílio da magia, do recurso ao sobrenatural: a leitura correta dos agouros, a ornitomancia, a oniromancia e os oráculos mereceram a atenção de filósofos, sábios, médicos e gente de toda a sorte. Inclusive dos escravizados: pessoas que facultavam ao futuro a esperança de uma vida melhor e em liberdade. 129 Filipe Noé da Silva Agradecimentos Agradeço o apoio de Jessica Regina Brustolim, Claudio Umpierre Carlan, Pedro Paulo Abreu Funari, Flávia Marquetti e Semíramis Corsi Silva. Menciono também o apoio institucional do IFCH/Unicamp e do CEIPAC (Universitat de Barcelona). A responsabilidade pelas ideias restringe-se ao autor. 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XIII) Aline Dias da Silveira1 “Dizemos e mostramos sobre as obras que fazem os espíritos de Mercúrio por força de palavras e de orações. E agora queremos aqui mostrar outra obra de Mercúrio, que se faz com anéis e chamam anel de Mercúrio”2 (Alfonso X, Astromagia, p. 286). Introdução “Observa quando o Sol estiver em Leão e Mercúrio em Virgem, e que não esteja em combustão3”.4 Este é o momento exato e auspicioso para a preparação da pedra para o anel mágico de Mercúrio. Sobre a gema deve ser desenhado um belo jovem com chapéu, sentado em uma cadeira, e na mão direita uma pena para escrever e na esquerda uma carta, o redor da figura deve-se escrever estas letras: Fez graduação e o mestrado em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGs) e doutorado e pós-doutorado na Universidade Humboldt de Berlim/ Alemanha. Atualmente, é professora do departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), responsável pela área de História Medieval, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais – Meridianum. 2 Tradução da autora do trecho: “Dicho e mostrado avemos de las obras que fazen los espíritos de Mercurio por fuerça de las palabras e de oraciones. E agora queremos aquí mostrar de otra obra de Mercurio, que se faze com anillos, e dízenle anil[l]o de Mercurio” (Alfonso X, Astromagia, p. 286). 3 Combusto ou em combustão, na astrologia, refere-se ao estado de fraqueza das características de um planeta por sua proximidade excessiva ao Sol (de 0° a 17°, dependendo do planeta). Segundo esse pensamento, o Sol queimaria as características positivas ou virtudes daquele planeta. 4 Tradução livre da autora do trecho: “Para mientres quando el Sol fuere em León e Mercurio en Virgo, que non sea combusto” (Alfonso X, Astromagia, p. 286). 1 133 Aline Dias da Silveira Figura 1: Letras do Anel de Mercúrio Fonte: Alfonso X, Astromagia, p. 286. Assim, inicia o Libro de Mercurio em seu capítulo 3, os “Anéis de Mercúrio”, que compõe o manuscrito Reg. lat. 1283, fólios 1-36, encontrado por Aby Warburg em 1911 na Biblioteca Apostólica Vaticana. Warburg pretendia editar o trabalho em colaboração com seu amigo Franz Boll, o filólogo e historiador da astrologia, mas o projeto nunca foi concluído. Anos depois, o manuscrito foi também encontrado por Alfonso Garcia Solalinde.5 Na sequência, um de seus orientandos de doutorado em Harvard, George Darby, escreveu uma tese sobre esse texto (GARCÍA AVILÉS, 1996, p. 15). O manuscrito pertence à fase final de atividade do scriptorium6 régio de Afonso X, entre 1276 e 1284. Este foi, aliás, o período em que o rei castelhano focou mais intensamente sua atenção nos assuntos que muito lhe interessavam, resultando na produção de três coleções enciclopédicas de obras sobre astrologia e magia astral. O primeiro, geralmente García Solalinde escreveu o seguinte artigo sobre o manuscrito: Garcia Solalinde, Alfonso. Alfonso X, astrólogo. Noticia del manuscrito vaticano, Reg. lat. núm. 1283. Revista de filologia española, xiii, p. 350-356, 1926. 6 Scriptorium é termo utilizado no medievo e depois adotado por medievalistas para se referirem tanto ao espaço, onde um conjunto de obras manuscritas eram produzidas, como às próprias obras e às equipes que as produziam. O scriptorium afonsino engloba, assim, todas as obras manuscritas produzidas em sua corte. 5 134 Magia como Fenômeno transcultural conhecido como Libros del saber de Astrologia, compreende quinze tratados sobre a construção e uso de instrumentos astronômicos e sobre as estrelas. As outras duas compilações são o Libro de las formas et de las ymagenes e o compêndio de magia astral encontrado por Warburg e Garcia Solalinde. No entanto, ao longo de sua vida, Afonso X patrocinou a tradução e a organização de muitas outras obras de astrologia e magia.7 O manuscrito Reg. lat. 1283, fólios 1-36, do qual analisaremos um trecho a seguir, ficou conhecido com o nome de Libro de Astromagia, por abarcar compilações de obras sobre essa temática produzidas anteriormente na corte afonsina8. Alfonso d’Agostino editou e publicou o manuscrito em 1992, transcrevendo-o e traduzindo-o para o italiano, será essa a edição que usaremos aqui. A obra, como um todo, possui seis partes, cada uma chamada de Libro, assim temos: I. Libro de los paranatellontas; II. Libro de los decanos; III. Libro de la Luna; IV. Libro de las imágenes de los doce signos; V. Libro de Marte; VI. Libro de Mercurio. Todos estes constituem o Libro de Astromagia. A especificidade deste manuscrito em relação aos de outras obras é que este apresenta a prática da magia com pouca explicação Como as Tablas Alfonsíes, o Picatrix, o Lapidario, o Libro de las Cruzes, Los Canones de al-Battani, Quatripartitum, De judiciis astrologie, El libro del quadrante sennero e Liber Razielis. 8 Uma das obras compiladas neste livro foi o Picatrix, outra obra de astromagia que foi traduzida na corte de Afonso X no início de seu reinado. No prólogo da tradução latina do Picatrix, é indicado o ano de 1256 para o término do texto. 7 135 Aline Dias da Silveira filosófica e astrológica, diferenciando-se das outras obras dessa matéria produzidas no scriptorium afonsino. O Libro de Astromagia parece uma súmula prática e muito bem ilustrada do fazer mágico. Apresenta uma narrativa direta, diferente do diálogo filosófico entre mestre e discípulo presente nos quatro livros do Picatrix9, por exemplo. Por isso, parte-se da hipótese de que o Libro de Astromagia não foi elaborado para explicar e estudar a prática mágica, mas para resumi-la, com foco nos aspectos que mais importavam para o rei. Afonso X, de Castela e Leão, ficou conhecido como o rei sábio, governou a maior parte do território ibérico entre 1252 e 1284, ano de sua morte. As referências e trabalhos que mais encontramos sobre ele, além de suas muitas biografias,10 tratam de suas obras legislativas como o Fuero Real, o Especulo e as Siete Partidas, que contribuíram para o entendimento da lei na Península Ibérica e na América Espanhola (SILVA, 2013, p. 37) séculos depois de sua morte. Também encontramos trabalhos sobre as obras historiográficas de seu scriptorium, a General Estoria e a Estoria de España, bem como sobre a grande obra poética de seu tempo, as mais de 400 Cantigas de Picatrix é o nome latino da tradução do manuscrito árabe de astromagia Gāyat alhakīm, traduzido na corte de Afonso X no início de seu reinado. 10 Algumas dessas biografias são: Salvador Martinez, H. Alfonso X, el Sabio, una biografía. Madrid: Ediciones Polifemo, 2003; Perez Algar, F. Alfonso X, El Sabio, Biografía, Madrid: Studium Generalis, 1994; González Jiménez, M. Alfonso X, El Sábio: 1252-1284, Palência: Disputación Provincial, La Olmeda, 1993; O ´Callaghan, J. F. The Learned King, The Reign of Alfonso X of Castile, Philadelphia: University of Pennsylvania,1993; Ballesteros Beretta, A. Alfonso X, El Sabio, 2ª ed., Barcelona: El Albir, 1984. 9 136 Magia como Fenômeno transcultural Santa Maria.11 No entanto, pouco se fala do rei Afonso, o estrellero, ou seja, o astrólogo, como seus adversários eclesiásticos e nobres o chamavam (SÁNCHEZ GONZÁLVEZ, 2011, p. 231) A produção do scriptorium afonsino é vasta e não se propõe neste ensaio falar sobre cada uma delas, mas entende-se que não é possível analisar uma destas obras sem considerar as outras, pois é compreendido que as obras elaboradas e traduzidas na corte de Afonso X compõem um único projeto de saber. Existiria um conceito cultural afonsino, como diria Francisco Márquez Villanueva (Márques Villanueva, 1995), mesmo que a interpretação desse autor siga em outra direção que a desenvolvida neste ensaio.12 A considerar este projeto ou conceito afonsino de saber, propõe-se como metodologia a hermenêutica imaginativa apresentada e desenvolvida por Márcia Sá Cavalcante Schuback na sua obra Para ler os Medievais (2000), fundamentada na fenomenologia, que busca compreender a experiência de tempo que constituiu a visão ou percepção de mundo expressa na fonte. Compreende-se que essa cosmo compreensão, como chamaremos aqui a racionalidade mágica manifesta no Libro de Astromagia, perpassa todo o scriptorium afonsino, pois fundamenta-se na relação micro-macrocósmica de simpatia, harmonia, emanação, potência e movimento. Para saber mais sobre as obras do scriptorium afonsino recomendo a obra de Evelyn S. Procter: Alfonso X de Castilla, Patrono de las letras y del saber. Trad. Manuel Gonzáles Jimenez. Murcia: 2002. (Biblioteca de Estudios Regionales, Bd. 38); e as já citadas biografia de Afonso X. 12 Francisco Márquez Villanueva centra seu conceito na pessoa de Afonso X de uma forma laudatória e pouco crítica. 11 137 Aline Dias da Silveira Toda religião é imbuída do fazer mágico, seja nas reuniões que reatualizam as narrativas religiosas, seja nas comemorações, símbolos, livros e utensílios sagrados ou nos ritos iniciáticos. Aqui e ali está a concepção de emanação do sagrado, do redirecionamento da vontade divina, através da prece e do moldar da realidade como essa se apresenta. No Libro de Astromagia, essa indistinção entre a prática mágica e a religiosa é evidente em diversas passagens, por exemplo, quando o Libro de Mercúrio inicia com a “oração”: “Em nome de Deus, oh tu, planeta verdadeiro e razoável, tu és notário do Sol” (AFONSO X, Astromagia, p. 270).13 Por essa perspectiva, os estudos sobre magia estão na encruzilhada de caminhos que podem nos conduzir à compreensão mais ampla da experiência humana de tempo, de sua historicidade, e das diferentes temporalidades da prática mágica e da agência humana diante do inefável. Este fenômeno transcende fronteiras regionais, linguísticas e religiosas, entrelaçando culturas e tradições em novas reelaborações. A considerar esse movimento de cruzamentos e fusões, será empregada uma interpretação heurística, a partir dos conceitos de entrelaçamentos transculturais, vórtice histórico e da perspectiva da história conectada (SILVEIRA, 2019, p. 620-622). Dessa forma, busca-se perceber como aspectos locais, como as ressignificações e propósitos, inserem-se em aspectos globais, no movimento dos saberes pelos continentes asiático, africano e europeu. Tradução livre da autora a partir do trecho: “Em nombre de Dios, o tú, planeta verdadeiro e razonable, tú eres notário del Sol”. 13 138 Magia como Fenômeno transcultural Magia como fenômeno transcultural Afonso pode ter sido chamado de rei estrellero por seus adversários, mas não há dúvida que foi um rei cristão. Cristão, astrólogo e mago-filósofo (GONZÁLVEZ SÁNCHEZ, 2015, p. 231). O primeiro livro traduzido na corte afonsina foi o Picatrix14, por isso, considera-se aqui, que essa obra é o ponto de partida para entendermos as outras obras astromágicas do scripotrium afonsino. O governo de Afonso começa em 1252 e a tradução do Gāyat al-hakīm, nome árabe dessa obra, para o castelhano e o latim, é terminada em 1256. No prólogo da versão latina, Afonso15 explica o motivo desta tradução: Pelo louvor e pela glória do altíssimo e todo-poderoso Deus, o qual revela aos seus predestinados a ciência secreta, e esclarece aos doutores latinos que desconheciam esse livro, que os antigos filósofos editaram, Alfonso, pela graça de Deus ilustríssimo rei da Espanha e de toda Andaluzia, ordenou a tradução deste livro com grande estudo e máximo cuidado do árabe ao espanhol, cujo nome é Picatrix (Picatrix, 1986, prólogo, p. 1).16 Desse trecho do prólogo da versão latina do Picatrix, podemos entender que Afonso atribuía ao deus cristão a revelação da ciência O Lapidario, obra sobre a qual também trataremos aqui, foi traduzida quando Afonso era infante. 15 Afonso dizia escrever o prólogo das obras de seu scriptorium e revisar se estava escrita no castelhano correto, ver: Afonso X, General Estoria, Primeira Parte, ed. Solalinde, 1930, 477b. 16 Tradução da autora a partir do trecho: “Ad laudem et gloriam altissimi et omnipotentis Dei cuius est revelare suis predestinatis secreta scienciarum, et ad illustracionem eciam doctorum Latinorum qui bus est inopia librorum ab antiquis philosophis editorum, Alfonsus, Dei gracia illustrissimus rex Hispanie tociusque Andalucie, precepit hunc librum summo studio summaque diligencia de Arabico in Hispanicum transferri cuius nomen est Picatrix.”. 14 139 Aline Dias da Silveira secreta (secreta scienciarum), aos seus predestinados, ou seja, os filósofos antigos. Os doutores latinos desconheciam o livro, mas Afonso, colocando-se como um desses escolhidos (SILVEIRA; ANDRADE, 2018, p. 284-289), manda traduzir o texto, revelando a verdadeira fé como ele expressa no Setenario: E não tão somente pela lei velha, nem pelos ditos dos sábios e dos profetas, mas também segundo natureza dos céus e das outras coisas espirituais, queremos provar que a nossa fé é lei direita e crença verdadeira e não outra que não o fosse assim desde o começo do mundo, nem será outra até que haja o fim (ALFONSO X, Setenario, Ley XXXIV, p. 65).17 São os filósofos antigos que revelam os saberes mágicos do Picatrix à humanidade. Pode-se perceber, nesse trecho acima, um indício interessante de como a magia e seu estudioso-praticante estavam inseridos no entendimento do que seria a filosofia. O Picatrix é uma obra composta de 4 livros, sendo que os dois primeiros são explicações filosóficas e astrológicas de como funciona o cosmos, inclusive explicando o que seria a magia, chamada de a quinta essência da filosofia. É importante salientar que o fundamento filosófico dessa e de outras obras dessa matéria no scriptorium afonsino é principalmente neoplatônico, baseado na emanação dos corpos celestes sobre os corpos terrestres. Tradução livre da autora a partir do trecho: “Et non tan ssolamientre por la ley vieia nin por los dichos de los ssabios e de las prophetas, mas aun ssegunt natura de los çielos e de las otras cosas spirituales, queremos prouar que la nuestra ssanta Ffe es ley derecha e crençia verdadera, e non otra ninguna que ffuesse desde el comienço del mundo nin sserá ffecha ffasta la ffin”. 17 140 Magia como Fenômeno transcultural Saiba: A arte que será explicada não serviria de nada se não fosse entendida a filosofia. E, por isso, essa arte foi chamada de conclusio, pois é a conclusão da lógica de outras obras, ou seja, a quintessência. (Picatrix, 1962, Tratado I, cap. II, p. 6, § l e §6-10.).18 (...) Saiba: essa conclusio ou síntese é definida como magia, que significa todas as palavras e práticas que a mente encanta e conduz a alma no sentido que ela se admira daquilo que lhe é mostrado, achando belo. (...) Isso acontece porque ela é uma força divina, difícil de entender, porque se precisa entender, anteriormente, as causas atuantes e as condições para sua constituição. Existe, no entanto, uma prática mágica que seu objeto é de espírito para espírito. Na arte do talismã, a magia atua do espírito sobre o corpo (talismã), e na alquimia é de corpo sobre corpo (Picatrix, Tratado I, cap. II, p. 7, § 6-27).19 Como podemos entender no trecho acima, a magia é a conclusão da filosofia, sua prática, conduzindo a alma. Existiriam, de acordo com o Picatrix, três tipos de prática: a do espírito para o espírito, a do espírito para o corpo (no sentido de objeto, ou seja, a arte dos talismãs) e do corpo para o corpo, que seria a alquimia. O Picatrix trata principalmente da arte dos talismãs ou das imagens como dito nas obras astromágicas da corte afonsina. Tradução livre da autora a partir do trecho da tradução alemã: “Wisse: Die Kunst (natīğa) nun, die wir hier auseinandersetzen wollen, wäre nicht, wenn die Philosophie nicht wäre. Mit Recht haben sie daher die Philosophen conclusio (natīğa) genannt; denn die conclusio ist bei den Logikem das Ergebnis eines Schlußverfahrens, und das ist die Quintessenz des in den Pramissen Enthaltenen.” 19 Tradução livre da autora a partir do trecho da tradução alemã: “Es kommt namlich daher, daß er eine gotthche Kraft ist, wirkend aus vorausgehenden Ursachen, die die Voraussetzung für sein Begreifen bilden. Er ist eine schwer zu verstehende Wissenschaft. Es gibt aber auch einen praktischen Zauber; denn sein Gegenstand ist die Wirkung von Geist auf Geist. (…), wahrend der Gegenstand der Talismankunst die Wirkung von Geist auf Korper, und der der Alchemic die von Korper auf Korper ist”. 18 141 Aline Dias da Silveira O Libro de Astromagia também é um livro de imagens, entendidas como talismãs, e esta é a função do anel de Mercúrio. A imagem, enquanto talismã, não é uma ilustração ou uma representação do poder. Uma imago é a manifestação e presença do poder. A imagem deve ser construída em condições específicas, de correspondência e harmonia com os espíritos que habitam a esfera celeste de cada planeta para se tornar uma imago desses espíritos. Como explica o título do capítulo 6, do livro II, do Picatrix: Sobre as virtudes das imagens, e de que maneira elas podem ser possuídas, e como as imagens podem receber a força dos planetas, e como as obras são realizadas pelas imagens; e esta é a raiz das ciências da necromancia20 e das imagens” (Picatrix, L. II, cap. VI, p. 51). 21 Nas obras astromágicas afonsinas, fica evidente a distinção entre figura e imagem. Figura é, geralmente, uma referência ao desenho como no caso da figura feita na gema para o anel de Mercúrio, enquanto imagem é o termo usado para o talismã em si, como um todo completo, bem como as imagens celeste, as constelações. Essa relação simpática entre a imagem construída e as imagens das efemérides astronômicas nos remete a uma temporalidade anterior ao neoplatonismo manifesto nas fontes, à temporalidade dos Necromancia é entendida nos textos como a magia por invocação de espíritos. Tradução livre da autora a partir do trecho: De virtutibus ymaginum, et cuius maneriei possunt haberi, et quomodo ymagines possunt recipere vim planetarum, et quomodo opera fiunt per ymagines; et hec est radix scienciarum nigromancie et ymaginum.” 20 21 142 Magia como Fenômeno transcultural textos ominosos mesopotâmicos, há 5000 anos no passado22 (SETERS, 2008, p. 94-96; SILVEIRA, 2019b, p. 186-187). Por isso, seria um grande erro de interpretação, se entendêssemos esses conceitos e cosmoconcepções como algo particular do rei astrólogo e seu scriptorium. As obras astromágicas afonsinas são traduções ou compilações de obras árabes e judaicas, como o Libro Razielis, que, por sua vez, fazem referências a obras mais antigas, egípcias, babilônicas, persas e indianas. David Pingree, no artigo intitulado Some of the Sources of the Ghāyat al-hakīm (1980), propõe apresentar as fontes do Ghāyat alhakīm (Picatrix) para além das greco-romanas do neoplatonismo clássico. Ele encontra referências ou elementos dos Papiros Gregos de Magia (PGM); do Kitāb al-talāsim al akbar (Livro da Sabedoria), que consiste em um livro de magia talismânica atribuído a um pseudoApolônio de Tyana; do livro sânscrito Yavanajātaka, sobre correspondências planetárias; entre mais outras dezenas de referências. Se todos os lugares de produção dessas obras fossem colocados em um mapa, mostrariam uma rede de rotas do movimento do saber tardoantigo e medieval, evidenciando muito mais continuidades, adaptações e atualizações que rupturas. O fenômeno histórico da prática mágica é transcultural (SILVEIRA, 2019, p. 607-608) e, dentro desta transculturalidade, Textos ominosos são escritos elaborados na Mesopotâmia, 20 séculos antes da Era Comum, que estabeleciam a relação do movimento das estrelas com acontecimentos terrenos, desde a melhor época para o plantio até a melhor conjunção planetária para invadir uma cidade (SETERS, 2008, p. 94-96; SILVEIRA, 2019b, p. 186-187). 22 143 Aline Dias da Silveira também há transtemporalidade e transespacialidade. O prefixo “trans” nesses conceitos traz a ideia de movimento cultural e simultaneidade manifesta na fonte. Se observarmos e seguirmos os elementos e referências ali expressos, perceberemos a formação de uma rede de conexões espaço-temporais reatualizadas e até mesmo transfiguradas, mas que ainda revelam o entrelaçamento transcultural (BORGOTE; TISCHLER, 2012) do tecido histórico. Por isso, chamo a fonte de vórtice histórico, pois é o local onde esses fios entrelaçados tomam forma e sentido ao olhar da historiadora (SILVEIRA, 2019, p. 610). Sobre os anéis de Mercúrio Hariadne da Penha Soares (2017), em seu artigo A atuação dos magos e adivinhos como theioi andres no Egito tardo-antigo: práticas e rituais de adivinhação nos Papiros Mágicos Gregos (séc. III e IV), caracteriza os livros de magia da antiguidade greco-romana, principalmente no início da era cristã, com muitos elementos que poderíamos também caracterizar as obras medievais Picatrix e o Libro de Astromagia do século XIII. A autora explica que, quando os sacerdotes perdem seu espaço de poder nos templos egípcios, muitos passam a oferecer serviços religiosos e mágicos de vaticínio e cura de forma privada. Com o passar do tempo, esses exercícios de práticas mágicas passam a ser escritos em forma de manuais de magia. Nessas obras, pode-se encontrar receitas, fórmulas e instruções para a 144 Magia como Fenômeno transcultural realização de rituais. Os magos-sacerdotes conheciam tanto hinos sagrados como palavras secretas mágicas, diferentes tipos de plantas, pedras e práticas medicinais (GARCÍA MOLINOS, 2015, p. 32, apud SOARES, 2017, p. 150). Todas essas matérias encontramos nos livros de astromagia afonsinos, o que os coloca, no mínimo, como obras dos desdobramentos e reatualizações desses saberes que passaram ao mundo romano, judeu, muçulmano e, por último, como enfatiza Afonso X, aos cristãos latinos. No mesmo artigo, Soares faz referência à confecção de um anel de Hermes, descrita nos Papiros Gregos de Magia23 (que serão referidos também com a abreviação PGM), provavelmente, dos primeiros séculos da era cristã. Podemos encontrar alguns elementos que aproximam o anel de Hermes egípcio do anel de Mercúrio (o nome latino de Hermes) do Libro Astromagia: Numa valiosa esmeralda está gravado um escaravelho; perfure-o e passe um fio de ouro pelo orifício; na parte inferior do escaravelho, grave uma Ísis sagrada e, depois de consagrá-la, como prescrito acima, use-a (PGM, V, 239-243, p. 193).24 Os Papiros Gregos de Magia (PGM) são uma coleção de textos gravados em papiros, mas também em conchas e tábuas que descrevem rituais, preces, simpatias e encantamentos do século I ao século IV da Era Comum. A maioria é escrita em grego, mas há também em copta e demótico (escrita egípcia mais simples e recente). No início do século XIX, ricos colecionadores europeus, como Giovanni Anastasi, consul da Suécia no Egito, o francês Mumaut e o inglês Salt, encontraram os PGM na região de Tebas e El Fayum. 24 Tradução livre da autora a partir do trecho: “En una esmeralda valiosa graba un escarabajo; perfórala y pasa un hilo de oro por el 240 agujero; en el envés del escarabajo, graba una sagrada Isis y, después de consagrarla, como arriba está prescrito” (PGM, V, 239-243, p. 193). 23 145 Aline Dias da Silveira Aqui encontramos o elemento da gema mágica ou consagrada a um deus. A mesma esmeralda valiosa prescrita no Libro de Astromagia para a confecção do talismã. A tradição da gema mágica, que pode atrair e até mesmo conter espíritos ou demons, para o propósito do mago foi atestada no estudo de Hariadne Soares (2020) em outro artigo, As Propriedades Apotropaicas das Gemas Mágicas no Egito Tardio, segundo os “Papiros Gregos Mágicos”, onde ela compara as pedras referidas nos PGM com os talismãs em pedra e em outros materiais daquele período, encontrados hoje em museus. Não é por acaso que Afonso cultivou o interesse por pedras e suas relações astrológicas, mandando traduzir uma obra árabe, que tratava sobre essa matéria, quando ainda era infante, o Lapidario (1250), e organizar uma súmula desse conhecimento na fase final de seu reinado, o Libro de las formas e imágenes que son en los cielos (1277). Um fato que chama a atenção, por indicar o entrelaçamento transcultural no momento da tradução dos livros, é que no prólogo do Lapidario está escrito que o texto árabe foi traduzido para o castelhano pelo judeu Hyuda Fy de Mosse al-Cohen Mosca. Aqui, a longa e a curta duração também se entrelaçam, tecendo o tecido histórico transtemporal e relevando a convivência entre judeus, cristãos e muçulmanos na corte afonsina. Carlinda Mattos (2008), em sua tese A Classificação dos seres no Lapidário de Alfonso X, o sábio, descreve que a obra possui a indicação de 360 pedras, que correspondem aos 360 graus do Zodíaco. As pedras são associadas também a plantas e a animais e são indicadas no emprego de variados objetivos curativos, na proteção contra os 146 Magia como Fenômeno transcultural feitiços e na pigmentação do cabelo (MATTOS, 2008, p. 8). No Lapidario, encontramos as imagens celestes construídas pelas constelações e a correspondência destas com as pedras, bem como a especificação do lugar onde as pedras podem ser encontradas – informações que expandem o espaço da fonte, tanto pelo mundo dos três continentes conhecidos pelos autores e tradutores na época, como também expande a abrangência da relação da prática mágica ao cosmos. O Lapidario e o Libro de las formas e imágenes que son en los cielos, bem como a esmeralda do anel de Mercúrio, no Libro de Astromagia, podem ser considerados como resultados dos entrelaçamentos transculturais que possibilitaram a constituição de elementos reatualizados. Seguindo a leitura do mesmo encantamento do anel de Hermes, aparece uma prece que deveria ser dita em direção ao sol, sendo que aquele que entoa o encantamento assume a persona da deidade Hermes-Thot, conhecida nos textos herméticos25: Eu sou Thot, descobridor e criador de bálsamos e da escrita; venha a mim você, o subterrâneo. Acorde para mim você, o grande demon, o Fnun, o ctônico. (...) Eu sou Héron, o famoso, o ovo de íbis, o ovo do falcão, o ovo da fênix que vem e vai pelo ar (PGM, V, 248-253, p. 194).26 O Corpus Hermeticum (150-300 E.C.) são textos também encontrados originalmente no norte do Egito, que podem ser definido como partes de um tratado filófico e mágico neuplatônico na voz de Hermes Trimegisto (três vezes mestre). Hermes Trimesgisto passou a ser representado como o pai da alquimia nos tratados alquímicos renascentistas. 26 Tradução da autora a partir do trecho: “Yo soy Toit, descubridor y creador de los fármacos y de la escritura; ven a mí tú, el subterráneo, despierta para mí tú, el gran demon, el Fnun, el ctónico (...). Yo soy Herón, el famoso, el huevo de ibis, el huevo del halcón, el huevo del fénix que va y viene por el aire”. 25 147 Aline Dias da Silveira Nos cultos greco-egípcios, o deus escriba, Thot, e o deus mensageiro, Hermes, acabam se fundindo numa deidade do conhecimento, da ciência revelada, o guia das almas, o mediador entre os mundos, o praticante de magia entre os deuses. O seu poderoso anel de esmeralda27 proporciona todo o conhecimento da verdade no passado, presente e futuro: Não permita que nenhum deus ou deusa preveja, até que eu, fulano de tal, saiba o que há nas almas de todos os homens, egípcios, sírios, helenos, etíopes, de todas as linhagens e raças, daqueles que me perguntam e venha à minha presença e dos que falam e dos que se calam, para que eu lhes revele o passado, o presente e seu futuro, e conheça suas artes, suas vidas, seus costumes, seus ofícios e seus nomes, e os de seus mortos e todos, e pode ler uma carta selada e que lhes revele todas as coisas da verdade (PGM, V, 287-301, p. 195). 28 Na oração a seguir, encontramos mais elementos confluentes entre o anel de Hermes egípcio e o anel de Mercúrio castelhano, do Libro de Astromagia: Oh Yaminel, oh Rafael, oh Laçoç, com juro-vos pela primeira causa e pelo começo simples unir-se ou misturar-se com outra coisa, que não é visto, nem se esconde; e conjuro-vos por Tamasah, Çalehtamsah, Mahrahasmah, Acdaheyxemah, Anor, Haxmaos, Hacmaleh, Dadaros, Lafalyeh, Camalos, Daod, Talvez, se possa estabelecer relação com a pedra de esmeralda dos tratados renascentistas de alquimia. 28 Tradução da autora a partir do trecho: “No permitiré que ningún dios ni ninguna diosa vaticine, hasta que yo, fulano, conozca lo que hay en las almas de todos los hombres, egipcios, sirios, helenos, etíopes, de todo linaje y raza, de los que me preguntan y vienen a mi presencia y de los que hablan y de los que guardan silencio, para que les revele el pasado y el presente y su futuro, y conozca sus artes, sus vidas, sus costumbres sus trabajos y sus nombres, y los de sus muertos y los de todos, y pueda leer una carta sellada y les revele todas las cosas desde la verdade” (PGM, V 287-301, p. 195). 27 148 Magia como Fenômeno transcultural Daadaob, aquele que tem os governos do céu e da terra; Oh Yemynel, oh Rafael, apareça com teu belo rosto e mostra-me a tua bela forma e pousa em mim e mostra-te a mim, venha até a mim teu espírito e que me guie nas coisas obscuras. Conjuro-te com Artamiz e por aquele o fez, por Mercúrio e a sutileza, aquele que é pai de toda ciência, dirás esta oração (...) (ALFONSO X, Astromagia, p. 290).29 A expressão “pousa em mim” faz referência a uma forma alada, que de acordo com a iluminuras da fonte tem a aparência de um anjo e não de uma ave, como está referido na oração nos PGM a Hermes-Thot. Por outro lado, temos as características de “guia nas coisas obscuras”, a “sutileza” e “pai da ciência” características atribuídas ao Hermes-Thot dos PGM. Outro indício de uma reatualização das práticas mágicas greco-romano-egípcias pode ser encontrado na ideia de “primeira causa” e “começo simples” do hermetismo neoplatônico dos primeiros séculos da Era Comum, características essas associadas ao deus do monoteísmo judaico, cristão e dos muçulmanos em suas correntes místicas, influenciadas pelo neoplatonismo medieval. A invocação do Arcanjo Rafael aproxima ainda mais essa oração da mitologia judaico-cristãmuçulmana e do contexto ibérico medieval, da convivência das três culturas religiosas monoteístas. A oração acima evidencia, assim, a presença da magia, que Alejandro Garcia Avilés (1999) chama de Tradução livre da autora a partir do trecho: “o Yemynel, o Rafael, parezca la tu cara fermosa e amuéstrame la tu forma bela e posa en mí e demuéstrateme, e venga en mí espírito de ti que. m guíe en las cosas escuras. Conjúrote por Artamiz e por el que. l fizo, e por Mercurio e la sotilleza, aquel que es padre de toda scientia. Dirás esta oratión (...)” (ALFONSO X, Astromagia, p. 290). 29 149 Aline Dias da Silveira salomônica. Isso também evidencia o que outros autores, como o próprio editor da fonte Alfonso d’Agostino (Afonso X, Astromagia, Introduzione, p. 24-45) e García Avilés (1997, 1999; 2010), afirmam quando dizem que o Libro de Astromagia é uma compilação bem organizada e prática de partes das traduções de obras astromágicas feitas na corte afonsina, principalmente, do Picatrix e do Libro Razielis30. Ambos são produções das tradições orientais e grecoromanas amalgamadas na cultura árabe e judaica através da expansão islâmica no medievo. O hermetismo estudado na corte de Afonso X provinha principalmente da interpretação árabe dessas tradições que reunia também elementos do culto aos astros mesopotâmico, evidente nas várias referências aos caldeus. As temporalidades da magia Parte-se do entendimento que a magia, como um fenômeno histórico em si, converge diversos aspectos socioculturais e que, consequentemente, não pode ser explicada ou pensada historicamente apenas como um artifício político ou um adendo cultural (SILVEIRA, 2019b, p. 176-177). A magia, enquanto fenômeno histórico, merece protagonismo, pois evidencia cosmoconcepções complexas em seu O libro Razielis, ou o livro do Arcanjo Rafael, é um tratado de cabala prática ou magia salomônica, traduzido na corte de Afonso X, de Castela. Segundo a tradição, o Arcanjo Rafael teria ditado o livro para Salmão. Ver: GARCÍA AVILÉS, Alejandro. Alfonso X y el Liber Razielis: imágenes de la magia astral judía en el scriptorium alfonsí Alfonso X. Bulletin of Hispanic Studies, v. 74, 1, p. 21-40, 1997. 30 150 Magia como Fenômeno transcultural desdobramento histórico e, em certos aspectos, mais autênticas31 que os cânones discutidos por uma pequena elite sacerdotal e impostas pelas instituições religiosas públicas. A considerar essas premissas, trataremos agora das temporalidades experienciadas na prática mágica descrita na confecção do anel de Mercúrio presente no Libro de Astromagia. No entanto, faz-se necessário definir melhor o que é entendido aqui como temporalidade. Quando Heidegger escreve sua obra mais conhecida, Ser e Tempo, em 1927, busca entender e definir o que é o Ser, começando pelo Ser humano. Ele, como um filósofo da escola fenomenológica, não está em busca da definição do ser biológico, mas do Ser que desperta quando toma consciência si no mundo. Essa consciência de si se dá a partir da consciência de sua existência limitada pela morte. Por isso, a consciência de Ser não pode ocorrer fora da experiência temporal que evidencia os limites. Essa experiência temporal, que não pode ser medida com o tempo físico cronológico, é chamada de temporalidade e é inerente ao processo de despertar da consciência do Ser. Assim, quando pensamos e analisamos a experiência proposta e descrita na prática mágica, podemos evidenciar, por uma perspectiva fenomenológica, múltiplas temporalidades, como a temporalidade do contexto histórico da fonte, a das referências temporais e espaciais passadas expressas na obra, a temporalidade cósmica dos astros e a temporalidade cotidiana da realização das práticas. A expressão “mais autênticas” refere-se, aqui, ao fato de que essas cosmovisões fundamentavam a forma como as pessoas experimentavam o mundo ao seu redor. 31 151 Aline Dias da Silveira Consequentemente, a fonte entendida como histórica deixa revelar sua transtemporalidade. Temporalidade cósmica Mesmo que o título Libro de Astromagia seja uma nominação tardia ao manuscrito Reg. lat. 1283, fólios 1-36, astromagia define bem a prática descrita no texto, já que é toda dependente do movimento nas esferas celestes, ou planetárias, como foi demonstrado acima. A prática astromágica exige o conhecimento das formas de medição do movimento dos astros, ou seja, da astronomia. Talvez, por isso, Afonso manda traduzir, também do idioma árabe, o Libro del Saber de Astronomía e manda elaborar a compilação e correção de antigos tratados no Libro de las Tablas Alfonsíes. No entanto, não apenas o conhecimento da posição e dos movimentos dos astros são necessários para a prática mágica, pois também são exigidos o conhecimento de como os astros interferem na esfera terrestre e as correspondências entre os corpos sublunares (terrenos) e supralunares (celestes). Dessa forma, Afonso manda traduzir o Picatrix e o Lapidario. No Libro de Astromagia podemos encontrar o “conclusio” ou a “quinta essência”, como a prática mágica é definida no Picatrix. Em outras palavras, a prática mágica teria como objetivo final a agência humana sobre uma realidade regida pelos astros. Aliás, a obra 152 Magia como Fenômeno transcultural árabe, cujo Picatrix é a tradução, tem o nome de Gāyat al-hakīm, que quer dizer o objetivo do sábio. O tempo cósmico é apenas uma denominação para múltiplos ciclos em ritmos ainda mais diversos. Cada efeméride propícia para uma prática mágica específica precisa ter conjugado esses diversos ciclos e ritmos, que é um espaço de tempo único, uma temporalidade prenha de sentidos, significados e expectativas. Vejamos o tempo cósmico para a confecção do anel de Mercúrio: Observa quando o Sol estiver em Leão e Mercúrio em Virgem e que não seja combusto. (...) Se puderes terminá-lo durante a hora de Virgem, está bem, mas, se não, o faça quando durar Virgem no ascendente e Mercúrio nele. Quando passar Virgem deixa para fazê-lo no outro dia, na hora de Virgem, e trabalha até terminálo (ALFONSO X, Astromagia, p. 286).32 Nesse trecho, encontramos conjugados dois astros considerados fastos (benéficos) pela tradição mágica, principalmente mediterrânica: Sol e Mercúrio. Ambos estão associados, de certa forma, à virtude do conhecimento, mas enquanto Mercúrio é o “pai de todas as ciências”, como lembra a oração, e o guardião dos segredos não revelados, o Sol, por sua vez, releva tudo, é o senhor da verdade revelada por excelência. Nas orações gerais do Libro de Mercúrio, no Libro de Astromagia, temos evidenciada a relação de Mercúrio com o Tradução livre da autora a partir do trecho: “Para mientes quando el Sol fuere en León e Mercurio en Virgo, que non sea conbusto. (...) Si lo pudieres conplir en una hora, bien; si non, fazlo quanto durare Virgo en el ascendent e Mercurio en él. Quando passare Virgo, déxalo tro a otro día a tal hora e labra fata que lo cumplas” (Alfonso X, Astromagia, p. 286). 32 153 Aline Dias da Silveira Sol: “Em nome de Deus, oh tu, planeta verdadeiro e razoável, tu eres notário do Sol, tu eres fortuna com as fortunas (...)”33 (ALFONSO X, Astromagia, p. 270). O Sol é regente do signo de Leão, e Mercúrio é regente do signo de Virgem, assim ambos estão em exaltação, quando posicionados nessas constelações zodiacais. A hora de Virgem, ou quando Virgem estiver no ascendente, seria o momento em que o Sol, no seu movimento diário, passa pelo signo de Virgem, o que pode durar aproximadamente duas horas do tempo físico cronológico. Na “hora de Virgem”, a emanação do poder de Mercúrio é potencializada e canalizada com o ritual através das orações e das figuras desenhadas. O Talismã ou imagem, como o chama Afonso, incorpora, prende e retém esse poder que é direcionado para um objetivo. Assim, temos no anel mágico a conversão do tempo cósmico nas efemérides dos ciclos astrais e o tempo cotidiano do direcionamento do poder cósmico para um objetivo mundano. Temporalidade cotidiana Na confecção do anel, depois de se fazer a oração de Mercúrio e repeti-la por 46 vezes, o texto diz que se deveria ir dormir para se ter a visão do que se quisesse saber. Porém, caso não ocorresse o esperado, se deveria jejuar por sete dias e fazer a mesma oração a cada Tradução da autora do trecho: “En nombre de Dios. O tú, planeta verdadero e razoable, tú eres notario del Sol, tú eres fortuna con las fortunas” (ALFONSO X, Astromagia, p. 270). 33 154 Magia como Fenômeno transcultural dia. No sétimo dia, melhor que fosse no dia de Mercúrio (quarta-feira), se deveria, mais uma vez, usar os defumadores e rezar. Então, apareceria um espírito que encheria o recinto de luz e perfume. Este espírito perguntaria: “qual é o teu pedido?” e o mago-filósofo deveria responder: “o meu pedido é que me dês o espírito de todos os espíritos, que me guie em toda obscuridade e que eu possa saber tudo que quiser”34 (Alfonso X, Astromagia, p. 290). O espírito, então, colocaria sua mão sobre o peito do demandante e, desse momento em diante ele saberia todas as ciências e saberes que nunca soube antes. O pedido revela o objetivo pragmático da prática mágica: conhecimento e informação, assim como no anel de Hermes, nos PGM e no Picatrix. O contexto, no entanto, marca a diferença na intenção. Enquanto nos PGM e no Picatrix é explicitado a vontade do mago profissional que quer impressionar o governante e alcançar uma boa posição por seus serviços de informações vaticinadas, no Libro de Astromagia, é o próprio rei sábio (astrólogo) o interessado no poder do anel precioso. As orações e talismãs dos livros astromágicos do scriptorium afonsino servem aos interesses de aplicações cotidianas. Quanto à Mercúrio, encontramos pedidos, principalmente, relacionado aos conhecer, ver ou revelar informações, esconder coisas ou esconder-se, Tradução da autora do trecho: “La mi petición es que me des spírito de los tus espíritos, que me guíe en todas las escuridades, y con que pueda saber todo lo que quisiere” (ALFONSO X, Astromagia, p. 290). 34 155 Aline Dias da Silveira bem como ter poder sobre plantas e pedras de Mercúrio (ALFONSO X, Astromagia, p. 270-299). No Picatrix, encontramos no capítulo V, do primeiro livro, por exemplo, as instruções para a confecção de talismãs para unir amantes e para que a intimidade dure; para retirar o inimigo de algum lugar; para a ruína de uma cidade; para favorecer uma cidade ou um lugar; para que aumente a fortuna e o comércio; para conseguir altos cargos; para dispor um soberano à vontade de alguém; para quem quer se casar e lhe é impossível; para impedir a um homem que peça uma mulher em matrimônio; para libertar um peso (PICATRIX, 1986, Livro I, cap. V, p. 15-25). Bem, mesmo que essas instruções para a elaboração dos talismãs tenham sido traduzidas, copiadas, compiladas, atualizadas e passadas ao longo de séculos, pode-se pensar nas circunstâncias possíveis que criaram as demandas para tais práticas mágicas e o interesse permanente em seus resultados. Nessa cosmopercepção, a experiência humana cotidiana não está à deriva ou ao acaso. Mesmo que não se pudesse compreender o plano divino ou o emaranhado de conexões chamado de destino ou fortuna, ele estava lá e determinaria uma existência de imprevistos, com limitações desconhecidas. No entanto, por meio do conhecimento do movimento dos astros e suas atuações no plano terrestre, das emanações das virtudes celestes e da sua canalização nos talismãs, seria possível conhecer as regras do jogo cósmico, prever e evitar tragédias ou, até mesmo, alterar resultados. A 156 Magia como Fenômeno transcultural prática mágica possibilitaria a agência humana numa temporalidade cotidiana e determina, mas não imutável. Conexões espaço-temporais no material ritualístico No início da explicação sobre a confecção do anel de Mercúrio há a especificação: “Toma gema de esmeralda prasme, sendo ascendente em Virgem e na hora de Mercúrio”35 (ALFONSO X, Astromagia, p. 286.). Porém, o que seria e onde poderia ser encontrada a “esmeralda prasme”? Antes mesmo de assumir a coroa de Castela e Leão, o Infante Afonso já havia solicitado os serviços da equipe de tradutores do judeu Hyada Fy Mosse al-Cohen Mosca para a tradução do árabe para o latim do Lapidario de Abolays, como nos conta o prólogo da obra. Como explicado anteriormente, neste lapidário, além da descrição e classificação de pedras de acordo com a influência que sofreriam dos astros, é identificada a relação daquelas com algumas constelações, ou imagens celestes, suas virtudes (propriedades mágicas para o uso) e onde elas seriam encontradas. Sobre a esmeralda prasme, conhecida em árabe por “zavarget”, como explica o Lapidario, podemos ler, entre outras informações: “assemelha-se em cor com a esmeralda e é encontrada naquelas mesmas minas de ouro em que as outras são encontradas. (...) sua cor verde e seu esplendor é Tradução da autora do trecho “Toma yema de esmeralda prasme, seyendo el ascendente Virgo e la hora de Mercúrio”. 35 157 Aline Dias da Silveira muito maior que o da outra esmeralda” (ALFONSO X, Lapidario, 47, p. 50).36 No trecho anterior a esse, que trata da esmeralda simples, é especificado que essas minas de ouro são encontradas mais no Ocidente que em outros lugares. Porém, de que Ocidente estamos falando? Não é possível definir, exatamente, qual seria o lugar de referência de quem escreveu o texto, no entanto, podemos construir alguma hipótese a partir do prólogo do Lapidario. Os tradutores e organizadores da obra contam que o “sábio Abolays”, que amava os gentis, pediu para um amigo buscar da terra de seus avós caldeus o livro do lapidário que falava de 360 pedras, segundo os graus dos signos que estão na oitava esfera. Abolays teria traduzido do caldeu para árabe (ALFONSO, Lapidario, p. 9-11). Se considerarmos que Abolays e os tradutores afonsinos foram honestos em seus escritos e que as traduções se mantiveram fiéis aos referenciais geográficos do texto caldeu, supostamente original, seria possível dizer que as minas do Ocidente referidas no texto se localizariam no noroeste da África, mais especificamente Egito e Abissínia, pois são as minas de ouro ocidentais mais próximas da Caldeia, região ao sul da Mesopotâmia. No entanto, essa é apenas uma hipótese, a partir de indícios do texto, Tradução da autora a partir do trecho: “Del decimoséptimo grado del signo de Touro es la piedra a que dicen zavarget en arábigo, y en latín prasme. Semeja en color a la esmeralda y es hallada en aquellas minas mismas del oro que las otras de hallan (...) Y su verdura y su resplandor es mucho mejor que el de la outra esmeralda” 36 158 Magia como Fenômeno transcultural que nos serve como exercício para pensarmos as conexões espaciais e temporais presentes na fonte. Em relação ao sacrifício ritualístico, o Libro de Astromagia diz que se deve degolar uma ave que em árabe se chama “orsem” e explica que o “translador” identifica esse pássaro como uma calandre. Calandre ou Calhandra em português é um pássaro que vive principalmente no norte da África e na África tropical e que sazonalmente voa para o sul da Europa, inclusive, o sul da Península Ibérica. Se o mago, artesão do anel de Mercúrio, vivesse na região mediterrânica, ele teria relativa facilidade em contar com esse elemento sacrificial para a transformação do anel em um talismã. No entanto, podemos perceber que a obtenção do principal material do anel, a esmeralda prasme, não seria tão fácil, a pedra precisaria ser minerada, comercializada e lapidada, empreendimentos esses que só poderiam ser pagos por quem tivesse poder político e/ou econômico. A prática do conhecimento mágico, como expressa no Libro de Astromagia, no Picatrix e no Lapidário, seria muito cara e restrita a um pequeno grupo dentro de um grupo ainda menor de uma elite política, econômica e intelectual. Em outras palavras, o praticante de astromagia precisaria estar associado à alta nobreza ou ser um membro dela. 159 Aline Dias da Silveira Conclusão A ideia de conexões e redes definem bem o movimento na história humana, as experiências coletivas humanas que ocorrem a partir de conexões espaço-temporais. Vários elementos culturais e matérias presentes no anel mágico de Mercúrio podem revelar essas conexões. A própria matéria astromágica, fundamentada na cosmoconcepção da influência dos corpos celeste sobre os corpos terrestres, que nos remete ao culto aos astros na antiguidade mesopotâmica, foi reatualizada diversas vezes ao longo de milênios, movimentando-se pelos três continentes, até compor a matéria dos livros astromágicos no scriptorium afonsino. Nessas conexões espaçotemporais, temos as diversas tradições linguísticas, religiosas, filosóficas e mágicas que confluem na fonte, seguindo um movimento do saber e da cultura ao longo de rotas comerciais, por vezes, concentrando-se em centros convergentes desse fluxo, como escolas de tradução, cortes e bibliotecas. Esses centros medievais convergentes do fluxo do movimento de um saber textual foram também espaços de compartilhamento e articulação de pessoas que buscavam o conhecimento secreto da natureza e do divino, como seria o caso dos colaboradores do scriptorium afonsino. Nesse scriptorium, podemos definir uma cronologia progressiva dos estudos astromágicos afonsinos. O Lapidario (1250) que informa onde encontrar o material para canalizar as virtudes das 160 Magia como Fenômeno transcultural esferas celestes; O Picatrix (1256) que oferece o fundamento filosófico e prático da magia astral, reunindo fontes de diferentes culturas orientais; o Libro Razielis (1259) que oferece uma transposição da magia astral para a leitura da tradição mística judaica e, finalmente, o Astromagia (entre 1276-1284), que reúne todos esses saberes de forma objetiva e harmônica, focado em aspectos que poderiam interessar diretamente um rei em meio a revoltas da alta nobreza, como Afonso X na final de seu reinado e vida. Pois, em um contexto como esse, a magia aplicada ao conhecimento de todos os segredos, como no Libro de Mercúrio, viria ao encontro de suas necessidades. Ana González Sánchez (2011, p. 231), em sua tese de doutorado, coloca que a preocupação científica, juntamente com a ideia de basear a ação política no conhecimento apurado, não teria sido alheia aos empreendimentos astronômicos afonsinos, mas haveria outras motivações, como o pragmatismo de guiar as ações do rei pelas estrelas. No entanto, os estudos astromágicos afonsinos indicam o interesse de ir além do deixar-se guiar pelos astros, pois evidenciam a vontade de manipular e ter agências sobre uma realidade em potencial. A busca pela agência humana e manipulação das leis cósmicas/ naturais é o impulsionador da história da magia. Por isso, ela está na área de encruzilhada ou de intersecção com a religião, a ciência e a política ou simplesmente com o viver cotidiano e a resistência aos caprichos mutáveis da fortuna ou da vontade (igualmente caprichosa) 161 Aline Dias da Silveira do Inefável. Assim, cada fonte analisada aqui é um vórtice histórico que manifesta ou revela uma concentração de áreas de intersecções, ao mesmo tempo que nos conduz, como o fio de Ariadne, na trama da História. Referências Documentação AFONSO X. General Estoria. Primera Parte. Edição de Antonio Garcia Solalinde. Madrid: Junta para ampliación de estudios e investigaciones científicas - Centro de estudios históricos, 1930. ALFONSO X. Setenario. Edição de Kenneth H. Vanderford. Buenos Aires: Instituto de Filosofia, 1945. ALFONSO X. Astromagia (Ms.Reg.lat.1283ª). Edição, tradução e comentário de Alfonso d’Agostino. Napoli: Liguori Ed., 1992. ALFONSO X. Lapidário. Texto íntegro en versión de María Brey Mariño. 2ª ed. Madrid: Editorial Castalia, 1997 (Odres Nuevos). HERMETICA. The Greek Corpus Hermeticum and the Latin Asclepius in a new English translation with notes and introduction. Edição de Brian P. Copenhaver. Cambridge: Cambridge Unversity Press, 1992. PICATRIX. 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Ele fez como eles, e pedindo o sal várias vezes, do que os demônios têm horror, no final trouxeram-lhe, então ele disse em italiano: ‘Louvado seja Deus que o sal chegou’. Assim que o nome de Deus foi pronunciado, toda a companhia de demônios e bruxos, e todas as carnes, desapareceram repentinamente, e o pobre homem foi deixado nu e voltou para sua região a cem léguas de distância, mendigando seu próprio pão (BODIN, 1580). Esse relato, a respeito da mulher indo participar do que seria um sabá, contido no Tractatus de hereticis et sortilegiis (1536) escrito pelo juiz eclesiástico Paolo Grillando, é apenas mais uma dentre as inúmeras narrativas sobre indivíduos sendo transportados pelos ares, com a ajuda de pomadas e unguentos. Em outro relato, o juiz narra sobre um homem que tinha uma esposa acusada de ser bruxa; como o marido não tinha certeza do fato, decidiu observá-la de perto, o que fez durante doze noites. Quando mais tarde ela foi presa, acabou Doutora em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (2015-2021), mestrado em Estudos Literários pela Université Paris Ouest Nanterre La Défense (2012), é graduada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (2009). É integrante do Modernitas – Núcleo de Estudos em História Moderna vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP. 1 165 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos confessando ter ido ao sabá em um determinado dia e horário. Seu marido querendo salvá-la jurou solenemente que ela estava ao lado dele na cama. O que se concluiu é que ela estava participando do sabá em espírito (GRILLANDUS, 1547). Grillando teve grande notoriedade porque testemunhou muitas confissões de bruxaria sem que o uso da tortura fosse empregado (TREVOR-ROPER, 2001) e seu texto, se tornou uma obra de referência, sendo citado constantemente por teólogos e por juristas importantes. Grillando reuniu em sua obra diversos julgamentos cheios de outros elementos correlatos ao sabá, como as metamorfoses em animais, as fórmulas mágicas para voar e o unguentum paganus – unguento pagão. A frequência com que esses elementos aparecem na documentação é considerável, tanto nos processos que lidavam com o crime de bruxaria quanto nos tratados demonológicos dos séculos XVI e XVII. Jean Bodin em seu tratado De la démonomanie des sorciers (1580), por sua vez, elencou vários desses relatos e, assim como ele, outros juristas da primeira modernidade – como Nicholas Rémy, Henry Boguet e Pierre de Lancre, também referenciaram esses eventos como forma de comprovar a bruxaria em solo francês. Essas narrativas estruturaram um debate mais amplo, no qual se questionava se a participação no sabá, e seu deslocamento até ele, se dava “em espírito” ou se os participantes compareciam corporalmente. Nesses textos, geralmente os unguentos eram fornecidos pelo diabo aos participantes do sabá, para que pudessem voar longas distâncias até essas reuniões diabólicas. Deve-se observar que essa discussão não era apenas sobre o unguento em si, como vimos nos relatos acima; ela revela para os historiadores, diversas nuances de crença de um debate maior, em que 166 Pomadas, poções e unguentos se discutia a possibilidade física ou não do voo, ou seja, sobre o deslocamento de corpos via êxtase ou sonho. Esse deslocamento aéreo tinha como referência o episódio bíblico em que Jesus foi levado ao deserto2 e, restava a esses homens, compreender os artifícios de que o diabo se utilizava para fazê-lo – as pomadas e unguentos – e, se era ilusão ou se ele ocorria de forma concreta. Esse tema tem raízes muito anteriores relativas às perseguições às diversas correntes heréticas dos séculos XI e XII, que foram acusadas das práticas mais terríveis, como canibalismo e infanticídio e, por isso, estavam sempre reunidas na clandestinidade. A ordem dos valdenses ou os “pobres de Lyon”, por exemplo, era acusada de todas essas práticas; condenados à clandestinidade, seguiam o modo de vida apostólica, itinerante e mendicante, executando pequenos trabalhos por onde passavam. Ocupando regiões do sul da França, norte da Itália e algumas partes da Bohemia Germânica, se instalaram também na região dos Alpes Suíços, região que nesse período, vivenciou diversas perseguições contra a “sinagoga Valdense”. Sendo também chamada de seita imaginária de bruxos e bruxas, acabou por receber um importante legado das seitas heréticas do final da Idade Média, seja em termos de terminologia ou de práticas (OSTORERO, 2011). Seus Mateus 4:1 ao 6. “Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Por quarenta dias e quarenta noites esteve jejuando. Depois teve fome. Então, aproximando-se tentador, disse-lhe: ‘Se és Filho de Deus, manda estas pedras se transformarem em pães.’ Mas Jesus respondeu: ‘Está escrito: Não só de pão vive o home, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.’ Então o diabo o levou à Cidade Santa e o colocou sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: ‘Se és Filho de Deus, atira-te para baixo (...).” Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002, p. 1708. 2 167 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos ritos de iniciação e seus comportamentos religiosos distintos da ortodoxia, geraram ações inquisitoriais nos vilarejos e condenações à fogueira. Esses julgamentos de bruxaria na região dos Alpes ocidentais, conduzidos pelas inquisições itinerantes do final do século XIV e início do XV, estavam relacionados a essas histórias de voos noturnos, mas sobretudo à perseguição desses grupos. A eles eram atribuídas práticas de adoração do diabo ou reuniões de orgias sexuais. Antes da década de 1430, esses tribunais geralmente mantiveram uma distinção entre acusações de heresia e magia, mas essa distinção foi gradualmente corroída quando foi surgindo aos poucos a ideia de um culto às bruxas (BAILEY, 2013). O que se tinha nesse momento era uma preocupação com seitas heréticas, o conceito de sabá, sendo assim gestado a partir de bases intelectuais que teorizavam sobre essas mesmas seitas, que eram acusadas de se reunir com motivos de idolatria e práticas mágicas. Com isso se quer dizer que o sabá das bruxas deve ser entendido como um construto resultante do olhar erudito a partir de vários substratos culturais, tendo a sua gênese estruturante em relatos anteriores à primeira modernidade. Os juristas e teólogos dos séculos XVI e XVII se concentraram bastante na teorização do que viria a ser conhecido como essa mítica reunião noturna de adoradores do diabo e quatro manuscritos medievais, de importância variada, foram fontes fundamentais para essa elaboração: os relatórios dos julgamentos de Valais (1428), na Suíça, de Hans Fründ; o Formicarius (1436-1438), de Johannes Nider; o Errores gazariorum (1435-1438), de autoria anônima; e o Ut 168 Pomadas, poções e unguentos magorum et maleficiorum errores (1436), de Claude Tholosan. Essas obras poderiam ser inseridas em um recorte temporal de crise da Igreja e fim do papado de Avignon, até o fim da Idade Média; nesse espaço de tempo de pouco mais de cem anos, foi possível constatar uma transformação considerável no que era teorizado como bruxaria: temas antes considerados como heresia dos demonólatras na tradição inquisitorial (PARAVY et al., 1999) passaram a ser incluídos na discussão da bruxaria como tema principal dessa tratadística. Novamente, o mapeamento desses textos nos permite observar o imaginário do sabá sendo germinado a partir de substratos da bruxaria popular, magia erudita e heresias, sendo amalgamadas ao longo do processo histórico. O relatório de Hans Fründ Hans Fründ foi um cronista de Lucerne, na região do Valais, na atual Suíça e autor de um relatório a respeito dos julgamentos de bruxaria nessa região, ocorridos entre os anos de 1428 e 1436. O documento, datado de 1431 está repleto de elementos muito comuns na literatura demonológica, tais como a adoração ao diabo, o assassinato, a heresia e a reunião em lugares secretos. A ideia de sabá – agregação de indivíduos com o propósito de subverter a Igreja e a ordem social –, entretanto, não estava ainda formalmente completa, pois nesse momento seus elementos constitutivos ainda estavam atrelados sobretudo à ideia do maleficium e às heresias. 169 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos Eles também confessaram como o espírito maligno carregava-os à noite de uma montanha para outra, como ele ensinava-os a fazer pomadas que eles colocavam em cadeiras e, então, com isso, cavalgavam de uma vila para outra, de um castelo para outro, e depois para as adegas daqueles que tinham o melhor vinho; lá, eles se divertiam e depois iam para onde queriam (CHÈNE et al., 1999). Com efeito, a ideia do transporte pelo ar facilitado pelo diabo era tema central no debate medieval e viria a ser também no debate moderno, pois remetia ao movimento de cavalgar, fazendo eco à tradição do canon Episcopi, documento que caracterizou como superstição e ilusória a ideia do voo noturno (PARAVY et al., 1999). Além disso, o voo diabólico era entendido como uma versão paródica de Jesus: o diabo na impossibilidade de fazer como Deus, conseguia, a partir da manipulação de unguentos e poções transportar os indivíduos. No caso acima, o transporte se deu por meio de uma cadeira – em alguns casos também em banco – o que era uma particularidade da região de Valais (CHÈNE et al., 1999). A discussão sobre o deslocamento não era tanto sobre o voo ser falso ou verdadeiro, mas sobre a possibilidade de o indivíduo participar desses eventos em espírito. Esse tema parece também se relacionar com alguma frequência à discussão sobre a metamorfose, afinal, se está pensando nas condições materiais concretas desses fenômenos. Fründ relata o caso de pessoas que aprendiam a se transformar em lobo, corriam atrás de ovelhas e cabras e as comiam crus. Segundo ele, através de várias ervas, o espírito maligno também os ensinou a se tornarem invisíveis, de tal maneira que ninguém poderia mais vê-los 170 Pomadas, poções e unguentos (CHÈNE et al., 1999). Mas a confecção dessas substâncias, como confessou uma bruxa a esse relator, dependia do infanticídio e também de canibalismo: “havia entre eles quem matasse seus próprios filhos, assava, comia, cozinhava, levava-os para a sociedade e lá também os comiam” (CHÈNE et al., 1999). Essa menção às ervas e unguentos é importante porque representou uma mudança, na medida em que a cavalgada mítica com Diana descrita no canon Episcopi não se fazia mediante uso de unguento; agora, o diabo fornecia ao final dos rituais, aos participantes, instrumentos para o seu comparecimento nas próximas assembleias: unguentos (ou pós) e objetos para o deslocamento pelos ares. Formicarius (1436-1438) Um texto muito influente na demonologia medieval por ter começado a sistematizar os elementos fundantes do imaginário do sabá é o Formicarius – “O Formigueiro” –, do teólogo dominicano Johannes Nider. O texto tem caráter didático, em forma de diálogo entre dois personagens, o Teólogo e o Preguiçoso, e a proposta do autor era apresentar os milagres e maravilhas que se produziam à sua época. Escrito entre os anos de 1436 e 1438, o texto é composto de cinco livros que abordam os atos excepcionais dos homens de bem, passando pelas boas revelações, visões falsas ou ilusórias e tocando na questão dos bruxos e seus erros. Após uma reflexão teórica dos temas baseada nas escrituras e em autores da Antiguidade, o autor ilustra as 171 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos situações com exemplos de julgamentos contemporâneos à sua escrita. Como Nider afirma na introdução, ele apresenta exempla e ensinamentos que ele aprendeu com os doutores da sua faculdade em Viena; com a experiência de um juiz laico, homem honesto e digno de fé que, através de questões e confissões e de experiências privadas e públicas, aprendeu sobre muitas coisas (CHÈNE et al., 1999). Para alguns especialistas, o Formicarius se constitui mais como um catálogo de exempla e não um tratado demonológico nem uma obra de atestação da realidade da bruxaria. Dessa forma, seria dizer que na brevidade de suas narrativas existe um modelo de moralidade, de comportamento. Os capítulos do Formicarius são introduzidos por uma análise comparativa das características das formigas às características humanas. Para elucidar, tomamos como exemplo o Livro V, precisamente o capítulo III, intitulado “Aos bruxos e seus erros”. No referido texto, Nider abordou a temática do canibalismo praticado pelos bruxos que comiam seus filhos nas assembleias. O autor iniciou sua argumentação explicando como o frio impedia que os ovos das formigas fossem formados e exemplificando como a neve impedia a geração da vida. Por analogia, associou o frio aos bruxos, que afastados do calor e claridade do sol, praticavam canibalismo interrompendo a vida das crianças: “o frio que é nocivo à proliferação das formigas nos parece sinalizar para a figura dos bruxos, entendidos como aqueles que causam mal aos outros através de obras supersticiosas” (CHÈNE et al., 1999). Nesse mesmo capítulo, Nider narra outro relato sobre canibalismo: 172 Pomadas, poções e unguentos Em seguida, [eu] soube pelo inquisidor, que me contou esse ano, que no ducado de Lausanne, alguns bruxos tinham cozinhado seus próprios filhos recém-nascidos e os tinham comido. Agora, a maneira de aprender uma arte assim, de acordo com o que ele disse, era a seguinte: os bruxos tinham ido a uma determinada assembleia e, graças ao seu trabalho, eles viram, de maneira visível, o demônio que assumiu a aparência de um homem. O discípulo devia obrigatoriamente dar sua palavra de negar o cristianismo, de nunca adorar a eucaristia e, algo que deveria fazer secretamente, pisar no crucifixo (CHÈNE et al., 1999). Esse relato entrelaça o tópico comum do canibalismo e a ideia das assembleias/seitas com a negação da fé. A suspeita das atividades da seita e suas práticas horríveis aparecem em variadas situações narradas por ele e um forte acento sempre recai sobre movimentos de renegar os ritos comuns da ortodoxia. Enquanto nos relatos anteriores de Fründ, a utilização da gordura de crianças não era tão clara e a descrição permanecia só no ato canibal, encontramos em Nider essa confirmação pela confissão de uma bruxa: Em seguida, os cozinhamos em um caldeirão até que os ossos se soltem, toda a carne se torne comestível ou bebível. Da parte mais sólida deste material, fazemos uma pomada que seja conveniente às nossas vontades, nossas artes e nossas metamorfoses. Com a matéria líquida ou humor, enchemos uma garrafa ou uma outra coisa; aquele que a beber, após a realização de algumas cerimônias, torna-se imediatamente mestre e cúmplice de nossa seita (CHÈNE et al., 1999). Por essa descrição, na perspectiva da totalidade dos crimes, o infanticídio era o meio pelo qual se tornava então possível a execução de malefícios e de magia, o que fez do canibalismo não mais necessariamente um fim em si mesmo. Os unguentos além de selar a 173 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos adesão dos indivíduos, propiciavam o voo, e como veremos mais a frente, implicavam também na realização das metamorfoses. No livro II, o Teólogo expõe para o Preguiçoso as diferentes categorias de sonhos e suas causas. Ele se baseia na explicação tomística, segundo a qual, os sonhos poderiam ter causas internas e externas (AGOSTINHO, A Cidade de Deus, I, 95). Essa discussão é importante, pois nela o Teólogo explica para o Preguiçoso quem deveria se ocupar da interpretação de cada um desses tipos de sonho. A causa interna seria dupla: por um lado, corporal, em que o sonho seria aquilo que se pensou e desejou em estado de vigília; por outro, imaginária e afetada pelos humores, de tal maneira que caberia aos médicos interpretarem esse tipo de sonho. Do mesmo modo, a causa externa também era dupla: corporal e espiritual. A primeira se daria pela influência dos elementos naturais e dos astros e, por isso, caberia ao filósofo natural o seu exame. Quanto à causa espiritual que poderia ser tanto divina quanto diabólica, a explicação é que “Deus produz o sonho na imaginação e na mente dos homens graças aos ministérios dos bons anjos; quando diabólica, o diabo mobilizaria a imaginação para criar no pensamento o conhecimento de algo oculto ou futuro” (CHÈNE et al., 1999). Após essa explicação, Nider relata o exemplum que ouviu de seu preceptor a fim de ilustrar os perigos que os sonhos diabolicamente inspirados representavam para os cristãos. O autor conta que ao passar por uma aldeia, um dominicano descobriu que 174 Pomadas, poções e unguentos uma senhora acreditava que durante a noite era transportada aos ares com a deusa Diana e outras mulheres: Quando o padre decidiu expulsar a perfídia com palavras salutares, essa mulher teimosa disse que acreditava mais em sua própria experiência. O padre disse-lhe: “Então, deixe-me estar presente quando tu fores partir da próxima vez.” Ela respondeu: “Me agrada a ideia e se quiseres, tu me verás partir na presença de testemunhas idôneas.” Assim, para que o defensor das almas conseguisse convencer a delirante mulher, no dia da partida previamente fixado pela velha, o padre estava presente acompanhado por homens de confiança. A mulher então sentou-se num recipiente, esses usados normalmente para fazer pão, que estava em uma banqueta. E depois de aplicar unguento e proferir palavras maléficas, adormeceu com a cabeça inclinada para trás. E imediatamente, pela obra do demônio, ela sonhou intensamente com Vênus e outras coisas supersticiosas. Sua alegria era tão intensa que ela gritava em voz grave, batia palmas e os movimentos que fazia, sacudiam tanto o recipiente em que estava sentada que, de repente, tombou da banqueta e o recipiente caiu pesadamente em sua cabeça. E então o padre questionou a mulher, que agora estava acordada e deitada imóvel no chão: “Com licença, onde tu estás? Por acaso, estiveste com Diane, tu que nunca saíste da gamela, segundo o depoimento dessas pessoas aqui presentes?” Assim, por meio desse processo e dessas palavras salutares, ele a levou a reconhecer seu erro (CHÈNE et al., 1999). Este exemplum ilustra o argumento de que o voo noturno teria caráter ilusório, conforme o ensino do cânone Episcopi; no entanto, assim como no relato das reuniões em adegas narrado por Fründ, vemos aqui a mudança na percepção da crença. Antes de “decolar”, ou seja, antes de adormecer, a mulher revestiu o corpo com um unguento e a partir desse feito passou a experimentar as fantasias diabólicas. Nesse relato, mais importante ainda é o testemunho do padre que, mediante autorização da mulher e juntamente com outros 175 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos observadores, presenciou o evento. Esse ponto é fundamental, pois expressa que esse religioso foi testemunha ocular da ação diabólica, contexto em que o diabo havia produzido imagens de “Vênus e outras coisas supersticiosas”. Além disso, nesse relato temos a presença de um homem revestido de autoridade religiosa que atesta o caráter ilusório do voo; ele confirma como o diabo é capaz de sugestionar aquilo que não é, assim como confirma o não-deslocamento corporal da mulher. No plano moral, o evento fez a mulher reconhecer seu erro o que, em termos narrativos, corresponde ao objetivo dessa obra de esclarecer e convencer. Dois outros relatos muito semelhantes a esse figuram em textos posteriores de Nider. O primeiro deles se encontra no tratado Praeceptorium divine legis e narra a ocasião em que um pregador tenta convencer, sem sucesso, uma senhora de que o voo era ilusão. Ele foi à casa dela, conforme combinado, quando ela lhe disse que seria transportada em um recipiente, em direção a Herodíade e Vênus. E naquele momento, sem que houvesse qualquer movimento, a velha [prendeu os próprios cabelos] e, então sonhava que se dirigia para Herodíade. Alegremente, ela estendia as mãos para a frente e o recipiente, por causa do movimento, caiu e jogou-a no chão cheia de vergonha (CHÈNE et al., 1999). A outra versão faz parte de um sermão integrante de textos organizados em torno do decálogo. Nessa versão, uma senhora também aparece sentada em um recipiente em cima da mesa, por meio do qual ela queria se deslocar até Heuberg. 176 Pomadas, poções e unguentos E então ela se sacudiu com força no recipiente e caiu, em nome do diabo, debaixo da mesa e o recipiente caiu sobre ela. Ela certamente não caiu em nome de Deus! Quem não riria dessa gente, que portanto, está em erro. Essas são as bruxas (CHÈNE et al., 1999). A referida versão reforça ainda mais o caráter instrutivo do relato, pois ridiculariza aqueles que se prestavam à experimentar o voo, nomeando-os como bruxas. O fato de a senhora cair no chão cheia de vergonha ou reconhecendo seu erro, tal como na primeira versão tem caráter de conversão, de arrependimento. A partir desses relatos de Nider, vemos que o testemunho ocular do observador é sempre o último recurso que, por sua vez, é decorrente do insucesso do convecimento por meio da palavra. Logo, é quase como uma espécie de dever, isto é, uma obrigação do pregador, testemunhar o fato diabólico para provar seu caráter ilusório. Ao pedir autorização para presenciar o voo, ele não se compromete com o fenômeno e conclui sua tarefa de doutrinação. Aos poucos o substrato cultural de rituais de canibalismo, de infanticídio, de homenagem e adoração ao diabo, além da metamorfose animal, todos aspectos atribuídos aos heréticos foram sendo assimilados pela demonologia medieval no exercício de teorização da bruxaria. Os relatos a partir das confissões nos processos, demonstram que os fundamentos sabáticos estavam ali presentes embora ainda em fase gestacional. O caráter fragmentário desses trechos e o entendimento de que o imaginário do sabá estava 177 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos em plena elaboração, nos permitem perceber a operação de todos esses elementos constitutivos. De um lado, os malefícios tradicionais de uma bruxaria atrelada à vida cotidiana, nos quais são incrustados elementos emprestados dos rituais de magia e que ressaltam a relação do bruxo com os demônios. De outro lado, elementos que foram apropriados do debate sobre heresia, seitas, canibalismo e apostasia. Por fim, como vimos, há também elementos de outras crenças, a exemplo do voo noturno (CHÈNE et al., 1999). Ainda que dispersos e não totalmente sintetizados nesse imaginário, estavam assentadas aqui as bases intelectuais para a elaboração concreta do sabá nos séculos seguintes. Errores Gazariorum seu illorum qui scobam seu baculum equitare probantur (1435-1438) Outro texto que exemplifica a assimilação medieval de elementos estruturantes nesse imaginário é o tratado Errores Gazariorum seu illorum qui scobam seu baculum equitare probantur – “Os erros dos heréticos, ou seja, daqueles que são tentados a cavalgar vassoura ou bastão”. Ainda que o subtítulo pareça bastante limitante e sublinhe o voo na vassoura, esse texto abrange muitos outros temas ligados às heresias. Pouco é sabido sobre esse tratado, que é de autoria anônima. Dele existem apenas dois manuscritos, um (manuscrito B) localizado na Biblioteca da Universidade da Basiléia, na Suíça, e outro 178 Pomadas, poções e unguentos (manuscrito V) (OSTORERO et al., 1999) descoberto na década de 1970, na Biblioteca Apostólica Vaticana. Na introdução do tratado, existe um aspecto significativo e que merece ser destacado, pois ilustra como as características atribuídas à bruxaria foram sendo construídas e elaboradas ao longo do tempo, de modo que não eram determinantes. É possível notar que o autor aborda os participantes das assembleias noturnas mediante ausência da feminização do crime de bruxaria e isso é sugestivo, pois nesses textos anteriores ao Malleus maleficarum, esse crime ainda não estava atrelado às mulheres somente. Como pontua o autor, “quando uma pessoa de um sexo ou de outro é corrompida por alguém” (OSTORERO et al., 1999), é levada a cometer os malefícios. Dessa forma, ainda que esses crimes fossem comumente associados aos bruxos e bruxas, a palavra no latim maleficus – sorcier na tradução aqui utilizada – não aparece no tratado, mas, ao contrário, aparecem “corrompidos” e “pessoas corrompidas”. No tocante aos crimes, seriam mormente aqueles concernentes à existência cotidiana das pessoas e reportavam ao ato de fazer chover e/ou destruir as plantações. A partir dessa noção de maleficium, o autor elaborou outras categorias criminais em que os indícios comuns de heresia – canibalismo e infanticídio – aos poucos foram sendo incorporados aos relatos. Esses, por sua vez, culminaram em uma descrição muito próxima do sabá conforme ele fora concebido pelos eruditos modernos: 179 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos Esse inimigo aparece às vezes na forma de um gato preto, às vezes na forma humana, embora imperfeita, ou com características de outro animal, mas na maioria das vezes na de um gato preto. O indivíduo corrompido, depois que o diabo perguntou se ele queria permanecer na sociedade e servir a quem desviou-o, diz que sim. Após o que o diabo exige dele um juramento de fidelidade do seguinte modo: primeiro, ele jura que será fiel ao mestre da assembleia e a toda a sociedade; [...] que até sua morte ele não revelará os segredos da seita; [...] que ele matará e trará para a sinagoga todas as crianças que ele puder estrangular e matar [...] Depois de fazer esses juramentos e promessas, o infeliz que foi corrompido adora o chefe prestando-lhe homenagem; e como sinal de homenagem, ele beija o diabo, que se mostra em forma humana ou não, na parte posterior ou no ânus; [...] Da mesma forma, assim como aquele que foi corrompido e homenageou o diabo, este último, que preside a assembleia, dá-lhe uma caixa cheia de unguento, um graveto e tudo o que ele precisa para ir à sinagoga, e ele ensina-o como ungir o graveto. Esta pomada é feita através de malignidade diabólica, a partir de gordura de crianças assadas e fervidas e com outros ingredientes (OSTORERO et al., 1999). Novamente a designação dos criminosos pode ser entendida como um indício dessa aproximação entre o crime de heresia e a bruxaria. Como é possível perceber no trecho acima, a designação mais comum é “corrompido” – seductus – ou “o novo herético” – novus hereticus. Esses adeptos se reuniam nas sinagogas onde aconteciam suas assembleias. É preciso realçar que no século XV, o termo sabbat ainda não tinha o significado que viria a adquirir somente em época posterior. Além disso, o emprego do termo “sinagoga” evidencia de maneira acentuada um anti-judaismo, visto que os judeus eram vítimas recorrentes de perseguições e de grandes massacres. Exemplo disso é a Grande Peste de 1348 (OSTORERO et 180 Pomadas, poções e unguentos al., 1999), em que os judeus foram acusados de serem os responsáveis por espalhar a peste através da feitura de venenos. Associado a isso, o infanticídio era então uma clara (e terrível) inversão das coisas: arrebatada pelo diabo, a inocência ou pureza da criança era transformada em uma substância formidável, capaz de causar a morte (OSTORERO et al., 1999). Aqui é necessário salientar que, anteriormente, a acusação de infanticídio era largamente empregada pelos romanos contra os cristãos; essa é uma tópica longeva e que, portanto, fora reapropriada pela própria tradição cristã e aplicada, periodicamente, a judeus e hereges. Talvez o que seja inovador nessa obra é a precisão dos detalhes e o fato de a codificação dos elementos ter sido feita com muito rigor. Tudo gira em torno da “sinagoga”, que ocupa um lugar de primeira ordem e que pretende dar à organização uma existência bastante concreta (OSTORERO et al., 1999). A noção do juramento tem uma dimensão de segredo e esse aspecto é muito relevante para a análise de narrativas sobre o sabá. Além da fidelidade ao diabo ser sinal de apostasia, em razão de ele impedir que se falasse sobre a assembleia, a importância das confissões foi reforçada, pois eram a única forma de as autoridades saberem o que acontecia nessas reuniões. A comprovação do crime para a investigação inquisitorial viria pelos testemunhos oculares ou pelas confissões. O maleficium era um crime que só se testemunhava pelas suas consequências: péssimas colheitas, doenças, abortos espontâneos tanto nas mulheres quanto nos rebanhos, etc. A bruxaria 181 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos era um crime sem testemunhos, sendo assim, o peso sobre a confissão era muito grande e, nesse contexto, o recurso à tortura era plenamente aceitável, afinal, se o diabo impedia o acusado de falar, a tortura seria capaz de proporcionar a sua fala. Confessar o crime não significava apenas afirmar a ação maléfica, mas, sobretudo – e talvez o mais importante nesse contexto – conseguir a remissão para si próprio, era a tentativa de salvar a alma antes da morte pelo fogo. O Errores é o texto que ampliou bastante a inversão dos ritos cristãos. A sucessão de etapas para a realização dos rituais, assim como suas práticas – fidelidade, vingança, malefícios, luxúria, infanticídio, etc. – se opõem aos mandamentos divinos – fidelidade a Deus, amor ao próximo, caridade, castidade, etc. A seita concretiza o contrário dos dogmas cristãos. E nesse esquema invertido, o diabo do Errores não é mais um instrumento de Deus, como no texto de Nider3; aqui ele é a autoridade, tem poder e discurso próprio, por vezes chamado de mestre ou chefe, está no ápice de uma relação de submissão e, por isso é o inverso de Deus. Enquanto nos textos precedentes, o diabo fornecia os unguentos ou ensinava fazê-los, no Errores, o diabo dá uma caixa de unguento para o adepto da seita, e “À pergunta do juiz: 'Como você causa chuvas e tempestades de granizo?’ o acusado respondeu: 'Em primeiro lugar, invocamos com algumas palavras, em um campo, o príncipe de todos os demônios, para que ele envie um dos seus para atacar a pessoa a quem designamos. Então, quando um demônio chega, sacrificamos uma galinha negra em uma encruzilhada, jogando-a no ar. Uma vez que o demônio a agarra, ele obedece e imediatamente causa uma tempestade, nem sempre nos lugares que designamos, mas de acordo com a permissão do Deus vivo, enviando tempestades de granizo e relâmpagos” (OSTORERO et al., 1999, p. 181). 3 182 Pomadas, poções e unguentos nesse texto a riqueza de detalhes sobre os ingredientes vai além da composição de cadáveres. Seria uma mistura de gordura infantil com animais venenosos – serpentes, sapos, lagartixas, aranhas – todos misturados com a ajuda do diabo (OSTORERO et al., 1999). Ainda, um outro tipo de unguento podia ser feito a partir da gordura de cadáveres mortos pela forca. Por trás dessa diversidade toda de ingredientes e, por mais estranhas que possam parecer essas descrições, existia uma intencionalidade de provocar o horror através desses relatos, sobretudo porque eles fizeram eco a outros julgamentos, como foi o caso das acusações de envenenamentos dos poços, feitas contra os leprosos (GINZBURG, 2012). De toda forma, existe nesses textos um estreito atrelamento entre a utilização da gordura das crianças mortas e cozidas – infanticídio – com o voo e a execução de malefícios. Uma dinâmica circular começou a se fechar nesse imaginário: para se chegar até a assembleia, era preciso um meio de transporte, esse, por sua vez, só era possível através da obtenção do unguento, o qual era adquirido através do assassinato de crianças, ou antes ou durante as reuniões, para as quais era preciso um meio de transporte. Essas assembleias medievais diabólicas não tinham ainda o contorno político que vieram a adquirir posteriormente, de seita rebelde contra a ordem estabelecida, configurando uma inversão do mundo normal; nessa circularidade, elas tinham finalidade em si mesmas e, como um 183 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos incipiente construto intelectual, foi enriquecido por diversos tipos de autores, tanto teólogos, como vimos os autores dominicanos acima, mas também por juízes seculares. Ut magorum et maleficiorum errores manifesti ignorantibus fiant (1436) Por vezes, o afastamento no tempo dificulta ao historiador entender como o crime de bruxaria pôde inquietar de forma tão ostensiva tanto as autoridades políticas e religiosas quanto os estratos sociais mais baixos. O maleficium era um crime que só se detectava pelas suas manifestações “concretas”: o leite que talhava, uma vaca estéril, um instrumento agrícola quebrado, uma doença repentina associada ao mau-olhado e uma série de outros infortúnios relacionados aos meios de sobrevivência. Dessa forma, antes de se chegar a um julgamento existiam muitas tensões prévias nos vilarejos em que, geralmente, os acusados e as acusadas já tinham reputação de bruxaria dentro de suas comunidades. Para serem acusados de bruxaria, por vezes, apenas um rumor bastava. Nesse contexto, o papel das autoridades era investigar a ocorrência do crime em busca de sua comprovação. A tortura era o meio frequentemente utilizado e dependendo das jurisdições, além das inquisições itinerantes, os juízes seculares também tinham a oportunidade de julgar esse tipo de crime. 184 Pomadas, poções e unguentos Como veremos na sequência, o próximo texto é testemunho dessa situação. Claude Tholosan foi um juiz que atuou na região de Briançon, no Dauphiné – França – entre os anos de 1426 e 1449; em meados de 1436, ele finalizou seu Ut magorum et maleficiorum errores manifesti ignorantibus fiant ou “Para que os erros dos magos e bruxos se tornem óbvios para os ignorantes”. Desse texto restou apenas o quinto livro – Quintus liber fachureriurum –, pois os quatro anteriores desapareceram. Através dessa obra, que se inicia com uma lista de bens confiscados e sentenças do ano anterior, é possível vislumbrar o conteúdo dos livros que haviam desaparecido: nomes de 126 culpados, suas paróquias de origem, datas dos processos, as condenações anunciadas e o valor da venda dos bens (PARAVY, 1993). O “Quinto livro de bruxaria” (PARAVY, 1993) é uma compilação de casos julgados por Tholosan mais as discussões sobre as jurisdições dos crimes, elementos esses com um forte apelo doutrinário. A moralidade relacionada aos malefícios é bastante evidenciada quando o autor discute a natureza desses crimes e suas punições. No terceiro capítulo, Tholosan aborda o ponto de vista dos juristas discutindo a jurisdição do crime e qual tribunal deveria ser responsável pelas condenações, ou seja, o tribunal eclesiástico ou o secular. Um primeiro ponto que nos parece importante, mas que não apareceu tanto nos textos precedentes, é a distinção entre heréticos e 185 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos idólatras. Tholosan reconhecia que os procedimentos descritos eram aplicados aos hereges e que os acusados de quem ele falava naquele momento não eram somente hereges, mas verdadeiros idólatras que abandonaram a fé. A tênue assimilação entre heresia e bruxaria da qual falamos, aparece aqui como uma extrapolação da categoria de herético, pois, para esse juiz, existia uma distinção bem nítida entre o que seria a simples utilização dos poderes do diabo e a sua adoração. Essa última era considerada muito mais terrível, uma vez que denotava o mau exercício da fé. Assim sendo, enquanto para o herege havia a possibilidade do arrependimento, para os participantes dessas assembleias não podia haver perdão. Para Tholosan, a intencionalidade era importante e a impossibilidade do perdão advinha justamente dessa voluntariedade do participante. É interessante notar que contrariamente a essa distinção entre o perfil herético e o do bruxo, as categorias dos acusados parecem coincidir no que concerne às punições, sobretudo, no tipo de punição admitida por cada jurisdição. O tribunal eclesiástico puniria o bruxo de acordo com o poder do bispo local; o tribunal inquisitorial aplicaria as penas tal como são prescritas para os casos de heresias; e, em última análise, o tribunal secular seria responsável pelas penas corporais e pelo confisco de bens. Para Tholosan, não era questão de punir três vezes o mesmo crime, mas seria dizer, em termos práticos, que um tribunal terminaria o que o outro começou. Assim como o Errores, que se 186 Pomadas, poções e unguentos centrou em questões relativas ao maleficium, aqui a participação do diabo era primordial nas seitas: para [fazer] um testemunho universal e convincente, apoiado por muitos argumentos e concebido com o propósito de extirpar esse erro execrável e essa seita de bruxos, decidi e tentei apresentá-los em uma exposição geral. [...] Em primeiro lugar, os bruxos, chamados assim por causa da extensão de seus crimes, como evidenciado pelas duas instâncias do direito, devem, de acordo com o juramento que fizeram nas mãos do diabo, converter à seita os inocentes que eles sabem ser completamente inclinados, para a revelação do diabo [...] eles lhe dão seu corpo e sua alma, bem como um de seus filhos, geralmente o primogênito, a quem eles imolam e oferecem a ele em sacrifício de joelhos [...] descobri que os autores desses crimes vinham da Lombardia, sob o disfarce de médicos, de Lyon como proxenetas e casamenteiros, do Champsaur, como mendigos e adivinhos, todos participantes e seguidores da seita execrável em questão (PARAVY, 1993). A ideia da existência de uma seita à parte é discutida ao longo dos vários relatos, reforçando então a atribuição do caráter herético aos crimes de bruxaria. A região da Lombardia e a cidade Lyon não foram indicações aleatórias nesse trecho, pois naquele momento eram locais tidos como heréticos e licenciosos. Os itinerantes que passavam por Briançon vinham principalmente dessas duas regiões, com ênfase, em particular, para a Lombardia que era uma terra considerada herética no século XIII (PARAVY, 1993). O tom de suspeita é explícito quando se afirma que os acusados se disfarçavam de ruffian – proxeneta – ou de casamenteiros, mendigos e adivinhos. Em analogia com os valdenses, esta seita herética também teria seus missionários, disfarçados, vindo de outros locais. Uma ideia clara de 187 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos conspiração parecia pairar nos seus comentários, mas ela não havia adquirido ainda maiores contornos políticos. Tholosan também se ocupou dos unguentos, suas funções e seus ingredientes como, por exemplo, citando a urina do diabo, ovos e também sangue menstrual. Entretanto, diferentemente daqueles que lhe sucederiam, Tholosan não subscreveu a ideia do voo como realidade; para o referido autor, o voo em bastões untados de gordura de criança seria ilusão ou se daria pelo sonho, o qual em virtude de sua semelhança com o real fazia com que essas pessoas acreditassem que, de fato, estariam se deslocando fisicamente durante a noite (OSTORERO, 1999). Tholosan, de modo muito similar aos autores dos textos que lhe antecederam, afirmava que dentro dessas sinagogas os adeptos participavam de orgias. Havia também o juramento de fidelidade que era seguido pelos banquetes proporcionados pelo diabo quando esse abria as casas de outras pessoas, conforme foi mostrado nos relatos de Fründ. O sabá como um construto diabólico O conceito de “bruxaria conspiratória” (KIECKHEFER, 1989) só apareceu de fato quando os temas do pacto e do sabá foram adquirindo contornos distintos da noção medieval de bruxaria. Nos parece notória que a primazia do diabo e das forças do mal se tornaram fundamentais, assim como a associação de ambos com aqueles 188 Pomadas, poções e unguentos acusados de praticar magia. Não se trata, em absoluto, de explanar que o sabá, enquanto tal, teve suas raízes nos Alpes ocidentais; a importância desses textos alpinos está atrelada à propagação do que veio a ser um novo conceito de heresia atrelado à bruxaria. A título de exemplo, relatos semelhantes sobre metamorfoses, unguentos e voos noturnos circulavam em outras regiões da Itália e Espanha. Em 1427, na Piazza del Campo de Siena na Itália, em seu sermão o orador franciscano Bernardino de Siena relatou a ocasião em que esteve em Roma e ordenou a prisão de uma bruxa que tinha confessado ter matado e comido seu próprio filho depois de ter reduzido seu corpo a pó. A bruxa também confessou ter matado outras trinta crianças sugando-lhes o sangue, ao qual ela adicionava algumas ervas e, posteriormente, usava como unguento. Segundo a bruxa, esse processo lhe dava a impressão de se transformar em uma gata. O sermão proferido por Bernardino de Siena e que visava a heresia dos valdenses da região do Piemonte (OSTORERO, 1999), teve ecos no julgamento de Matteuccia di Francesco di Ripabianca, ocorrido em 1428, no vilarejo de Todi. A mulher foi acusada de usar gordura de abutre, sangue de coruja e sangue de recém-nascido para produzir um unguento que a levaria até a reunião das bruxas no Benevento. Após a invocação de um demônio, a mulher teria se metamorfoseado em mosca e nas costas do demônio que se apresentava na forma de bode, ela foi a esse encontro. O sermão e o julgamento são 189 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos cronologicamente anteriores a toda a literatura alpina que foi discutida, mas o ponto que consideramos interessante perceber é justamente as variantes regionais tanto no uso de ingredientes – sangue de abutre e coruja – quanto no tipo de metamorfose – em gato e em mosca –, além da própria utilização do unguento, mais vinculado à metamorfose do que necessariamente ao voo. No caso específico de Mateuccia, talvez isso tenha acontecido porque ela era conhecida por ser manipuladora de ervas e remédios, o que explica a variação da função dos unguentos. Quatro anos antes desse evento, na região da Catalunha, na Espanha, autoridades locais foram convocadas ao vale de Aneu para agir contra habitantes que acompanhavam bruxas à noite para homenagear o diabo. Tais habitantes eram acusados de roubar crianças de suas casas, matá-las e também de usar substâncias tóxicas para prejudicar outras pessoas. Alguns desses habitantes já haviam sido detidos e confessado esses crimes, de tal maneira que a condenação tinha sido a morte pela fogueira (HUTTON, 2017). Com pequenas variações, todos esses eventos aglutinam elementos muito semelhantes que apareceram nas acusações de heresias e magia, assim como na conclusão de que os condenados estavam praticando atos contra as populações locais e contra a ortodoxia. Para além das questões de crença muito restritas a cada localidade, o vínculo entre esses aspectos todos era muito concreto. Além disso, devemos pensar na circulação 190 Pomadas, poções e unguentos de informações pela rede de pregação dos eclesiásticos e na figura dos frades: Bernardino cita um frade franciscano que lhe falara de um grupo de hereges assassinos de crianças em Piemonte, no noroeste da Itália, que usava os corpos para uma poção que conferia invisibilidade (HUTTON, 2017). Encontramos o mesmo em Nider, que também era dominicano e apoiou seu relato em duas fontes, a saber, o exnecromante que virou beneditino e o inquisidor de Autun. Esses textos e os julgamentos, tiveram uma relação interdependente na elaboração de um quadro em que essas narrativas se entrelaçaram no que era o imaginário incipiente do sabá. Discorrer sobre a circulação de ideias nessas regiões não significa excluir outros lugares que experimentavam o mesmo fenômeno; além disso, se referir ao mesmo fenômeno não implica reportar às mesmas crenças. Como vimos, no século XV, a bruxaria não era um construto intelectual unificado, dessa maneira, as variações regionais funcionaram e influenciaram de forma diferente. Nossa chave interpretativa entende que essas narrativas moldavam as realidades e essas realidades específicas conformavam as narrativas. A ação das ordens monásticas pregadoras foi fundamental nessa dinâmica. As ordens dos Dominicanos e Franciscanos, em suas funções itinerantes de inquisidores e pregadores, eram grandes propagadores dessas narrativas. Ainda no que tange à reflexão sobre a circulação dessas ideias, os concílios também representaram ocasiões nas quais essas 191 Lívia Guimarães Torquetti dos Santos narrativas eram elaboradas. Para além da região dos Alpes, outros também escreveram trabalhos propagando a crença na nova conspiração diabólica das bruxas, a qual constituiu parte de um extenso corpo de publicações de autores franceses, italianos, espanhóis e alemães que debateram a realidade da conspiração e, cada vez mais, apoiaram essa ideia (HUTTON, 2017). Assim, como observamos, um imaginário de assembleias secretas de adoração ao diabo foi sendo construído e difundido tanto por meio da elaboração desses textos quanto pela difusão dos julgamentos que se intensificaram nos séculos seguintes. Essas variações regionais acabaram por ser aglutinadas e reelaboradas, culminado nesse construto que veio a ser o sabá, a reunião mítica de adoradores do diabo. Referências Documentação AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Petrópolis: Editora Vozes, 2012. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. I, parte I, questão 95, 6. 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. BODIN, Jean. De la demonomanie des sorciers. Anvers: chez Arnould Coninx, 1580. GRILLANDUS, Paulus. Tractatus de hereticis et sortilegijs omnifariam coitu eorumque penis. Item de Questionibus et tortura ac de relaxatione carceratorum. Giunti: Lugduni, 1547. Bibliografia BAILEY, Michael. The Medieval Concept of the Witches' Sabbath. Exemplaria, New York, vol. 8, p. 419-39, 2013. 192 Pomadas, poções e unguentos CHÈNE, Catherine. Jean Nider. In: OSTORERO, Martine; BAGLIANI, Agostino; TREMP, Kathrin; CHÈNE, Catherine (Colab.) L’imaginaire du sabbat. Édition critique des textes plus anciens (1430c. – 1440c.). Lausanne: Cahiers Lausannois d’Histoire Médiévale, 26, 1999. GINZBURG, Carlo. História Noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. HUTTON, Ronald. The Witch. A History of Fear, from Ancient Times to the Present. New Haven/ Londres: Yale University Press, 2017. KIECKHEFER, Richard. Magic in the Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. OSTORERO, Martine; BAGLIANI, Agostino; TREMP, Kathrin; CHÈNE, Catherine (Colab.) L’imaginaire du sabbat. Édition critique des textes plus anciens (1430c. – 1440c.). Lausanne: Cahiers Lausannois d’Histoire Médiévale, 26, 1999. OSTORERO, Martine. La répression de la sorcellerie aux marges du royaume de France à la fin du Moyen Âge. Cahiers de recherches médiévales et humanistes, Lausanne, vol. 22, 2011. Disponível em: http://journals.openedition.org/crm/12541. Acesso em: 19 abr. 2019. PARAVY, Pierrette. De la chrétienté romaine à la Réforme en Dauphiné. Évêques, fidèles et déviants (vers 1340-vers 1350). Rome: Publications de l'École Française de Rome, 1993. PARAVY, Pierrette. Le traité de Claude Tholosan, juge dauphinois (vers 1436). In: OSTORERO, Martine; BAGLIANI, Agostino; TREMP, Kathrin; CHÈNE, Catherine (Colab.). L’imaginaire du sabbat. Édition critique des textes plus anciens (1430c. – 1440c.). Lausanne: Cahiers Lausannois d’Histoire Médiévale, 26, 1999. TREVOR-ROPER, Hugh. The Crisis of the Seventeenth Century: Religion, the Reformation and Social Change. Indianapolis: Liberty Fund, 2001. 193 Magia, truque e feitiço: as muitas faces do encantamento na literatura oral de Ifá Rogério Athayde1 Dizem os mais velhos, sem a redundância dos tolos, que para todo início é preciso haver começo. Então, para este texto despretensioso, que deseja somente falar uma coisa ou outra sobre a literatura oral de Ifá e a magia que pode conter, quem sabe de seus limites e virtudes, é necessário dar um passo de cada vez. Que me perdoe o leitor, mas quero começar contando uma história. Uma que fala sobre andar, ou andança e andadura. É apenas uma das inumeráveis histórias que compõem o extenso repertório da tradição oral de Ifá. Ela pode ser encontrada no Livro de Ogbe Yono, também conhecido como Ogbe Ogunda. E é mais ou menos assim: Há muito tempo atrás, havia um homem raivoso, que desejava vingança. Não sabemos qual o motivo de sua zanga, ou mesmo se tinha razão em trazer consigo o coração pesado. Sabemos que para realizar seu desejo era preciso fazer uma longa jornada e encontrar seu oponente. Esse homem, certo de sua vontade, procurou Orunmilá, a divindade da inteligência, do conhecimento e da sabedoria, para que Formado em História pela UFRJ em 1994. Foi professor de Teoria, Metodologia e Epistemologia da História na UFRJ em 1994. Durante muitos anos foi Professor Titular de Antropologia em universidades particulares. Foi professor de pósgraduação do curso “África e Brasil: laços e diferenças”, com o curso “Mito e mitologia yorubá”. Vem se dedicando aos estudos de religião yorubá nos últimos quinze anos. Possui Pós-Graduação em Pedagogia e Mestrado em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela UFRJ. 1 194 Magia, truque e feitiço consultasse o oráculo de Ifá e garantisse o sucesso de sua desforra. Mas Orunmilá, antes mesmo de encontrar seus instrumentos divinatórios, disse ao homem que não deveria fazer a viagem. Eu vou!, respondeu o ofendido com tensão na voz. Entendendo que não haveria modo de demovê-lo, Orunmilá disse: Então ouça meu conselho: se encontrar um buraco no caminho, não passe por ele, não o contorne, não o atravesse; se encontrar uma árvore no caminho, não passe por ela, não a contorne, não a atravesse; se encontrar um rio no caminho, não passe por ele, não o contorne, não o atravesse. Agradecido, ele foi buscar compensação de seu ultraje. O homem partiu no dia seguinte bem cedo. Andou muitos dias até encontrar um buraco no caminho. Lembrando a recomendação de Orunmilá, ele parou. Parou e esperou. Esperou muito, até que o buraco inteiro se cobrisse de folhas. Só assim se permitiu seguir. O homem, cego pelo desejo de vingança, continuou andando muito. Tanto andou até que se viu detido por uma árvore tombada no caminho. Lembrando o que havia dito Orunmilá, ele sentou e esperou. Esperou muito, até que a árvore inteira se consumisse em pó. Só assim ele foi adiante. O homem, andador de seu caminho, continuava seu andamento. Andou até que seus pés encontraram a umidade de um rio que atravessava o caminho. Lembrando o que havia aconselhado Orunmilá, ele sentou e esperou. Esperou muito, até que o rio estivesse seco por completo. Só assim seguiu em frente. 195 Rogério Athayde Mas quando, finalmente, chegou do outro lado, na margem antiga do curso d’água, o homem deteve o passo e pensou: O que é mesmo que vim fazer? E então ele voltou para casa. Assim acaba a história desse personagem sem nome, que a rigor, poderia ser qualquer um de nós. Ouvi esta fábula ser contada pela primeira vez há quase vinte anos, por um antigo sacerdote de Ifá, um babalawo, durante uma cerimônia de iniciação. Ouvi encantado pela beleza de sua contação e também pela capacidade plástica de vê-la a serviço de uma consulta oracular. Lembro que ela coube como um aviso sobre ter paciência e não desistir de seus propósitos. Mas preciso confessar que me incomodou esta leitura. O homem que desejava vingança nunca me pareceu paciente ou obstinado, mas obsessivo e atormentado por sua vontade. Antes, porém, de seguir adiante, e como faz o personagem desta narrativa do Livro de Ogbe Yono diante dos obstáculos que vai encontrando pelo caminho, preciso fazer uma pausa para depois voltar. O repertório das histórias de Ifá é praticamente inesgotável. Há alguns anos atrás, antes que o mundo inteiro parasse assombrado com o curso da doença e da morte, entrevistei um sacerdote da Santeria afro cubana, a quem chamamos Obá Oriatê. Seu nome era Ivan Candido Martinez Quintana. Falamos sobre muitos assuntos pertinentes às religiões de matrizes africanas, em Cuba e no Brasil, e, no final de nossa conversa, perguntei como definiria Ifá. Sua resposta 196 Magia, truque e feitiço continua em meus ouvidos até agora. Ele disse: “Ifá é como um deserto...” e parou um tempo sem tempo, como se brincasse com minha ansiedade. Depois sorriu e terminou a frase: “... nós nunca saberemos quantos grãos de areia ele tem”. Confesso que não esperava aquela conclusão. As metáforas do deserto sempre me sugeriram outras ideias, como aridez, infertilidade, solidão e perda. Mas Ivan Candido Martinez Quintana me falou de diversidade, multiplicidade e infinitude. É claro, ele tinha razão. São muitas as coisas que encontramos em Ifá. De fato. O filósofo e babalawo nigeriano Kola Abimbola aponta pelo menos seis usos da palavra. Segundo ele, (i) Ifá é outro nome de Orunmilá, a divindade iorubana da inteligência, do conhecimento e da sabedoria; (ii) Ifá é igualmente o sistema de divinação, organizado a partir de 256 Odu, ou “livros volumosos” (AYOH’OMIDIRE, 2005); (iii) Ifá é o corpo literário, onde podem ser encontradas as histórias e o conhecimento ancestral dos iorubás; (iv) Ifá é a medicina tradicional, o conhecimento do herbário iorubano; (v) Ifá são os poemas, os esé Ifá, que os sacerdotes da religião são treinados a recitar longamente; (vi) Ifá, por fim, é também a capacidade de proferir “palavras de poder”, os ofó, encantamentos que asseguram a efetiva realização dos rituais sagrados (ABIMBOLA, 2005). Estive com Kola algumas vezes nestes últimos anos. Em uma dessas ocasiões falávamos sobre esta variedade de usos da 197 Rogério Athayde compreensão de Ifá e me atrevi a acrescentar mais uma em nossa conversa. Sugeri que Ifá também é um modo de pensamento. Não uma filosofia, porque não desejo cair no equívoco que Paulin Houtondji denunciou daqueles que confundem filosofia e cultura (HOUTONDJI, 1977). Mas um certo modo de orientar o pensamento, acostumado a gerar interpretações sucessivas, relações inesperadas, como em um jogo em que brincam a hermenêutica e a gnosiologia. Kola concordou comigo. Então, são muitas as coisas que Ifá pode ser. E certamente uma delas é conhecimento; ou, melhor dizendo, um repositório de conhecimentos. Entenda, quando mencionamos a palavra conhecimento talvez cheguem com ela algumas imagens quase banais de bibliotecas, laboratórios, quadros de escola com fórmulas incompreensíveis de matemática ou física, gente apertada em roupas com talhe formal, ou outras representações assim aparentadas. Se o leitor pensou desta maneira é porque, e provavelmente sem o saber, associou a palavra conhecimento àquilo que os gregos de antanho chamavam de logos. Então, vejamos. É comum traduzir logos como ciência. Assim obtemos biologia, como ciência da vida, arqueologia, como ciência do que é antigo, antropologia, como ciência do homem, sociologia, como ciência da sociedade, e assim por diante. A melhor maneira, porém, de usar o logos é como discurso, e, ainda melhor, discurso racional 198 Magia, truque e feitiço acerca de alguma coisa. Perceba que se traduzimos desta forma o logos grego, abrimos espaço para outras formas de conhecimento. Sim, porque como discurso, e ainda melhor, como discurso racional acerca de alguma coisa, poderemos pensar em outras formas discursivas que não tenham na razão o seu principal substrato, e então já não seria suficiente usar o logos para esses casos. É neste sentido que os gregos – novamente eles – usam a palavra gnose. Esta expressão é traduzida como conhecimento, de maneira ampla, agregadora e generosa, a ponto de nela poderem ser incluídas as tradições orais, os mitos e as fábulas. O pensador camaronês Valentin Yves Mudimbe, em seu livro A invenção de África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento, estabelece a diferença fundamental entre episteme e gnose (MUDIMBE, 2013). Segundo o autor, episteme é conhecimento assumidamente racionalista, com diversas instâncias de controle institucionais – em particular através de meios científicos e acadêmicos – que definem o que é aceito como válido ou não. Portanto, a epistemologia, como área do conhecimento, dá conta das imagens de bibliotecas, laboratórios, fórmulas de matemática e física e gente apertada em paletó, gravata, colete e tailleur. Já sobre gnose, Mudimbe esclarece que a palavra dá conta de conhecimentos, racionalistas ou não, podendo ser aí incluídos também os conhecimentos consuetudinários e mágicos, capazes de ações dinâmicas e não controladas por instâncias institucionais. Ainda para 199 Rogério Athayde Mudimbe, a gnose africana teria dois problemas graves a serem enfrentados, ou seja, conhecimento racionalista através da antropologia e o conhecimento racionalista através da história (MUDIMBE, 2013, p. 231-236). Mas isso já seria assunto para outra oportunidade. Para o uso que pretendo fazer aqui, Ifá tanto pode ser um conhecimento mediado, ou acessado, pela episteme – na medida em que se transforma em matéria de desenvolvimento acadêmico, obedecendo a todo o lastro de exigências de seu meio – quanto pela gnose – se tomarmos o conhecimento de Ifá como algo que não se quer explicar, e muito menos ainda entender, com os recursos racionalistas, que as tradições europeias nos disciplinaram a crer nos últimos dois mil e quinhentos anos. Se entendermos gnose como todo o conhecimento, racional ou não, que aceita em seu seio o consuetudinário e o mágico, então precisamos estabelecer corretamente do que estamos falando aqui. As histórias que compõem o extenso repertório da literatura oral de Ifá (GOODY, 2012) são mitos e fábulas, cujos personagens ou são humanos ou assumem uma condição humana, ou seja, são antropomorfizados. Estou me referindo a histórias de gente comum, pobres ou ricos, jovens ou velhos, homens, mulheres e crianças, felizes ou desvalidos, que vivem os dramas cotidianos que qualquer um de nós viveria. Mas além destes, existem os deuses, que aqui são 200 Magia, truque e feitiço chamados de orixás. Eles são os filhos de Olodumare, divindade maior da criação do universo, responsáveis pela gestão do mundo e todas as coisas que ele contém. Estas divindades possuem o duplo caráter anímico e antropomórfico, são associadas a algum aspecto da natureza, como também possuem traços que os deixam aparentados com os humanos. Para seguir o raciocínio com o recurso dos exemplos – mesmo que aqui sejam apenas simplificações – posso dizer que Ogum é a divindade do ferro, e também é o ferreiro, o guerreiro e o executor; Xangô é identificado ao trovão, e também é o rei mais bonito, o homem irresistível e o martelo da justiça; Oxum é a deusa das águas doces e a dona dos metais preciosos, e também é a mulher sedutora, a guerreira furiosa, a velha e a nova, a esposa, a mãe e a filha. E assim se multiplicam estas divindades e suas muitas facetas. Mas além dos deuses, as histórias de Ifá contam as fábulas de objetos, plantas, árvores, animais, partes do corpo e conceitos. Então podemos encontrar narrativas de amigos, como Hoje e Amanhã (no Livro de Ogbe Iwori Ifá), ou de inimigos, como a Verdade e a Mentira (no Livro de Otura Meji Ifá); histórias da sabedoria do Macaco (no Livro de Obara Ejiogbe Ifá), da ambição do Chacal (no Livro de Odi Oyekun Ifá), e da inteligência da Abelha (no Livro de Okana Oshe Ifá); ou do Pelo e da Pele, que se separaram depois de um longo casamento e voltaram a se casar novamente (no Livro de Iwori Iroso Ifá), ou da Panela de Ferro e da Panela de Barro, que eram amigas, 201 Rogério Athayde que saíram para passear e a história terminou mal (no Livro de Oshe Okana Ifá), ou da Palmeira orgulhosa, que se achava bonita demais e acabou sendo cortada para servir aos humanos (no Livro de Iroso Oshe Ifá). Acho que o leitor paciente já entendeu o argumento. Estas são histórias exemplares, na maior parte das vezes muito bonitas e emocionantes. Elas bem podem ser percebidas como alegorias estéticas, na medida em que se prestam ao prazer da boa contação, capazes de nos transportar momentaneamente para o país encantado da ficção e da fantasia. Mas, acima de tudo, estas histórias devem ser compreendidas como alegorias existenciais, porque de uma forma misteriosa, revelam nossas próprias histórias no momento de uma consulta oracular a Ifá (ATHAYDE, 2022). Sim, porque a matéria de que é composta a divinação em Ifá é basicamente esta: suas histórias, seus mitos e fábulas, e a interpretação que delas se depreende. É provável que o leitor a esta altura já tenha entendido pelo menos um ponto que desejo tratar aqui. Afinal, pode parecer desnecessário explicar onde reside a magia em um conhecimento ou prática oracular. Ora, diriam os apressados, a revelação, ela mesma, é mágica. E isso é verdadeiro. A extraordinária capacidade de desvelamento que se atribui aos oráculos já bastaria para classificá-los entre as experiências que somente o pensamento mágico poderia supor. Mas, lamento dizer, as coisas são um pouco mais complicadas. 202 Magia, truque e feitiço A primeira e talvez decepcionante observação que se poderá fazer acerca dos oráculos é dizer que sua principal tarefa não é a adivinhação. Veja, a palavra oráculo traduz tanto o local em que se realiza uma profecia quanto o objeto profético, que pode ser uma pessoa ou os instrumentos da consulta. Importa saber que esta profecia deve nos chegar como uma fala divina, um diálogo com os deuses. Como explica o filósofo italiano Giorgio Colli, o oráculo se revela através de uma revelação mistérica, uma sentença que nunca é evidente, porque “os deuses amam o enigma” (COLLI, 2019, p. 35). De tal maneira que, mesmo tendo a vocação de adivinhar, coisa que sempre poderá ocorrer em uma consulta aos oráculos, sua definição é a de um diálogo com os deuses. Por isso caberá melhor nesses casos o termo divinação. A adivinhação oracular pode ser interessante como demonstração de que algo extraordinário está ocorrendo. Não resta dúvida. Mas, entenda, se este fosse o maior interesse dos oráculos então todos os sacerdotes e “olhadores”, os mais respeitáveis, sábios e criteriosos, poderiam se apresentar em teatros, circos e festas de aniversários. E, claro, não se trata disso. A consulta oracular, portanto, não deve satisfazer o interesse pitoresco de encontrar a magia no mundo – mesmo que a magia se encontre lá; deve fundamentalmente servir como um instrumento de ajuda, uma ferramenta para pensar melhor sobre as decisões mais importantes que devemos tomar em 203 Rogério Athayde nossas vidas. E se é verdade que são os deuses que falam conosco através dos oráculos, se confirmamos que se trata de divinação, não deveríamos mesmo esperar que sua fala fosse desperdiçada com jogos de divertimento. Bem, se concordamos que a consulta oracular é uma divinação, uma fala dos deuses, que pretendem nos fazer pensar em quais seriam os melhores caminhos a seguir, então já teríamos o material suficiente para admitir a prática da consulta oracular como algo que se encontra na esfera da magia. Isto serviria, salvo engano, para a maioria, se não para todos os casos. Em Ifá, porém, devemos acrescentar outros elementos que expressam os aspectos mágicos que queremos apontar aqui. A segunda observação a ser feita sobre os oráculos em geral, e o de Ifá em particular, é sobre a previsão do futuro. Perdoe-me o leitor por fazer mais uma citação, mas é irresistível. Sobre os tempos que contém o tempo muito já se escreveu. Há mais de um milênio, porém, um filósofo que veio a se tornar santo da igreja cristã, escrevia sobre o tema dizendo que existe apenas o tempo presente. Que do passado temos a lembrança presente do que se foi; do presente, temos a visão presente do que é; e do futuro temos a “esperança presente das coisas futuras” (AGOSTINHO, Confissões, XI). Santo Agostinho falava assim no Livro XI de suas Confissões: “a esperança presente das coisas futuras”. Repeti, sei bem. E o fiz porque esta ideia me parece 204 Magia, truque e feitiço poderosa. O futuro, para Agostinho, não era um tempo para onde seguimos – esta, aliás, é uma percepção sobre o tempo desenvolvida a partir da modernidade, com o advento do iluminismo e da revolução industrial; tempo como progresso e percepção progressiva. Não: Agostinho pensava em um tempo que nos chega, portanto, um tempo que ainda não existe. E, de fato, podemos admitir que do passado conhecemos os vestígios; que do presente temos o convívio fugidio de sua constante passagem; mas do futuro. Não temos nenhuma certeza de sua existência. Com algum exagero podemos inclusive dizer que o futuro não existe. Então do futuro podemos pensar o mesmo que Agostinho, que é a “esperança presente das coisas futuras”, ou ajustar a sentença, afirmando que temos dele um “conjunto de futuros possíveis”. O oráculo, então, não determina, ou desvela, ou revela o futuro – no sentido de algo que está em algum lugar, escondido, e então se mostra. Não poderia se tratar disso, com o risco de considerarmos a prática oracular atividade redundante. O oráculo deve apontar futuros possíveis e promover ajustamentos para viver o melhor dos futuros possíveis. Logo, a magia não está em adivinhar o futuro, mas em criar as condições para que o melhor dos futuros possíveis seja vivenciado por cada um daqueles que procura o apoio da consulta oracular. Mas como isso ocorre? Como o oráculo de Ifá cria essas condições favoráveis? Aqui chegamos onde deveríamos ter chegado. 205 Rogério Athayde É comum encontrar entre os mais importantes autores que se dedicaram ao estudo do oráculo de Ifá, e a religião que dele se depreende, a afirmação de sua base mágica (BASCOM, 1969; LUCAS, 2001; DEWUYI, 2018; ABIMBOLA, 1997; AWOLALU, 2001). E não somente porque se trata de divinação e da suposta percepção de futuros possíveis; mas acima de tudo, da capacidade de ajustamento, de correção, de aprimoramento desses futuros possíveis. Para isso, a tradição de Ifá admite o princípio fundamental de ìrúbó, a prática do sacrifício. O professor norte-americano Maulana Karenga nos ensina que a compreensão de ìrúbó deve ser dividida em duas direções, ou seja, o da performance ritual e o da prática moral. Para melhor expor seu argumento, ele nos informa que a performance ritual – èbó – representa o sacrifício material, e a prática moral – íló – significa o sacrifício de si mesmo (KARENGA, 1999, p. v-viii). Èbó é palavra bem conhecida entre nós, americanos da diáspora. Por èbó se sabe, tanto no Brasil como em Cuba, México, Colômbia, Venezuela, República Dominicana, EUA e mais outros tantos países deste continente, que se trata de oferenda, ou sacrifício, para divindades ligadas às tradições iorubanas, os orixás. Como já nos ensinava Marcel Mauss, quando escrevia sobre o sacrifício entre os hebreus e os hindus, que esta prática sagrada – ou mágica, se o leitor preferir – é realizada para propiciar algo, corrigir ou impedir algo e agradecer por algo (MAUSS, 2005). Não é diferente no caso do èbó 206 Magia, truque e feitiço que conhecemos, onde a oferenda, ou sacrifício, pode ser feita com objetivos semelhantes. Tendo isto em mente podemos admitir com facilidade o aspecto mágico do èbó, particularmente quando relacionamos sua realização à conquista do objetivo desejado. Então a magia estaria aí, na relação talvez apofênica entre uma ação e seu efeito. Mas sobre isto é preciso dizer algo grave: se toda a vontade pudesse ser satisfeita com recursos desta natureza, então não haveria necessidade de boa conduta. E nada pode ser mais estranho ao pensamento iorubano que isto. O conceito de ìwàpèlè – o bom caráter, ou caráter brando – nos ensina que não podemos viver uma boa vida sem que saibamos reconhecer nossos limites, bem como nossas potências (ABIMBOLA, 1975). Então a magia do èbó não pode nos servir para a validação de nossos desejos. Ainda sobre isso, é preciso dizer que não importa a motivação do èbó, ou tampouco o volume e a grandeza dos materiais oferecidos nele se não houver uma correção de conduta, que só é possível com o íló, o sacrifício de si mesmo. Íló pode ser traduzido literalmente como costume, uso ou hábito. Mas para o entendimento que fazemos de seu significado análogo, devemos admitir a ideia de ouvir o conselho, para que o costume, uso ou hábito, seja ajustado, alterado ou corrigido. Com isso estamos habilitados a presumir que uma boa conduta dispensaria a necessidade do sacrifício. Mas èbó e íló são duas noções complementares, não havendo razão para dispensar uma em favor da 207 Rogério Athayde outra. Com èbó podemos restituir o equilíbrio necessário para que íló se cumpra; ou, com èbó propiciamos as condições requeridas para que íló possa se apresentar; ou ainda, com èbó corrigimos o que era preciso para que possamos fazer uso de íló. Então a magia está neste procedimento dialógico, modificando a realidade com recursos extraordinários que ela parece supor e, de modo equivalente, promovendo os efeitos demasiadamente humanos que a ética indica. Antes de seguir em frente, quero que o leitor observe aqui a existência na tradição de Ifá de uma significativa diferença entre magia e feitiço. Por magia e feitiço podemos entender, ainda que de maneira precária, a transformação extraordinária de alguma coisa, uma desobediência, suspensão ou quebra, digamos assim, das leis naturais. Dessa forma, a noção de èbó caberia como magia, e igualmente como feitiço. Mas a noção de íló já não teria a mesma desinência, porque ela obriga a uma mudança de comportamento, a um ajuste ético. Então, por magia, também devemos incluir a mudança de uma má conduta, ou de uma conduta inadequada, visando o aprimoramento pessoal. O mesmo não se aplica ao feitiço, que produziria o efeito mágico para a simples satisfação do desejo, não havendo qualquer limite para a realização da vontade individual. Acredito que o leitor entenda que existam inúmeros exemplos passíveis de serem oferecidos neste sentido. Não pretendo fazer isso, sequer com o interesse de tornar claro o argumento. Afinal, o que a tradição de Ifá requer, e 208 Magia, truque e feitiço todos os seus sacerdotes devem estar comprometidos, é com o princípio ético que deve desassociar a magia do feitiço. O que temos até aqui? Argumentei que Ifá é muitas coisas e que dentre tantas a que me interessaria neste pequeno texto é sua expressão como um repositório de conhecimentos. Tentei explicar a diferença que deve ser notada entre episteme e gnose, com o objetivo de reivindicar gnose para a compreensão da tradição oral de Ifá, na medida em que admite uma ampla gama de saberes, para além daqueles apontados como racionais. Pretendi deixar bem claro que em Ifá o conhecimento é acessível através de suas inumeráveis histórias, seus mitos e fábulas; que a consulta oracular de Ifá, e a interpretação que se faz com ela, é operada a partir destas histórias. Disse também que o oráculo de Ifá realiza divinação, como um diálogo com os deuses, e não prevê o porvir, mas projeta futuros possíveis, como forma de gerar estratégias inteligentes para nossas tomadas de decisão. Enfim, sugeri que, para além de inúmeras possibilidades, a magia em Ifá pode ser encontrada através das transformações que èbó e íló promovem. Acredito que temos agora o necessário para voltar à história do Livro de Ogbe Yono, que tomo aqui como bom exemplo para a argumentação em torno dos temas da magia e da ética na tradição de Ifá. Contamos a história de um homem que desejava consultar o oráculo de Ifá para executar seu desejo de vingança. Ele procurou 209 Rogério Athayde Orunmilá, a divindade da inteligência, do conhecimento e da sabedoria. Orunmilá sempre é apresentado na literatura oral de Ifá como um babalawo, um sacerdote de Ifá, que consulta o oráculo e dá bons conselhos, íló, a quem quer que procure sua ajuda. Orunmilá também indica receitas mágicas, os èbós, para que os consulentes resolvam os problemas que têm e encontrem a felicidade. O leitor atento deve se lembrar que na história que contamos, Orunmilá não chegou a consultar o oráculo, do qual é o patrono habilidoso. Atitude aparentemente estranha para esta divindade, sempre disposta a ajudar na solução dos problemas humanos. O que podemos depreender deste ponto da narrativa é que Orunmilá aconselhou o homem a não fazer a viagem. E isto não nos deve causar espanto, visto que buscar vingança não parece ser boa conduta, em qualquer situação. E oferecendo este conselho, Orunmilá sutilmente respondeu à demanda do homem que bateu em sua porta, dizendo que sua motivação não era correta. O que Orunmilá não fez – devemos pensar assim – foi ceder à vontade daquele que desejava realizar algo aparentemente errado. Orunmilá é sacerdote de Ifá; não é feiticeiro. Com a insistência do homem que desejava sua revanche, Orunmilá ofereceu o conselho na forma de um enigma, uma revelação mistérica. Falou sobre três obstáculos, um buraco, uma árvore e um rio, que atravessariam seu caminho sem que ele pudesse passar por eles ou contorná-los. Entenda, com este tipo de adversidades, o que 210 Magia, truque e feitiço faria alguém razoável, alguém que não estivesse perturbado pelo sentimento de vingança, senão desistir da viagem e voltar para casa? A intenção de Orunmilá era fazê-lo perceber que seu projeto era de todo insensato. Mas não foi esse o entendimento que teve. O homem seguiu sua sanha e decidiu enfrentar o buraco, a árvore e o rio com a obstinação dos fortes, ou com a tolice dos mentecaptos. Perceba leitor, que para um buraco sozinho se encher de folhas muitas estações teriam que passar. E que, da mesma maneira, para que uma árvore virasse pó e um rio secasse, muitos anos deveriam correr. Note então que esta história fala de um arco de tempo extenso, que poderia durar toda uma existência. O homem, portanto, envelheceu, obcecado por seu desejo de vingança, a ponto de não se lembrar das razões pelas quais sua existência foi empenhada. Ou desperdiçada. É uma história triste. E bonita também. Ela nos ensina algumas coisas sobre a diferença entre obstinação e propósito. E, se assim nos for permitido pensar, sobre a diferença ética entre magia e feitiço. Espero que os aspectos mágicos da consulta oracular de Ifá tenham ficado claros. Pelo menos um ou outro deles. Como uma história, feito esta que recontei aqui, é capaz de se revelar uma história nossa, orientando-nos e nos fazendo tomar decisões acertadas sobre nosso destino, isso jamais saberemos. E talvez esteja aí o sentido muito elementar do que se pretende e se reconhece como mágico. Mas 211 Rogério Athayde existem outras perspectivas que tentei deixar esboçadas, com as ideias de èbó e, principalmente, íló. Se o èbó, como sacrifício material, encanta quando o efeito pretendido por ele é alcançado, com o íló a mudança talvez seja ainda mais interessante, porque é capaz de interferir na produção de futuros possíveis através da conduta acertada e, em última instância, promover condições para a felicidade. A correção ética, que muitas vezes obriga a um ajustamento do que pensamos, fazemos ou até mesmo sentimos, permite entender que a magia em Ifá não se dobra à vontade individual, se mostrando bem diferente daquilo que entendemos como feitiço. Referências Documentais AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Editora Abril, 1987. Bibliográficas ABIMBOLA, Wande. “Ìwàpèlè: The concept of good character in Ifá's literary body”. In: Yorùbá Oral Tradicion. Ile Ife: Department of African Languages and Literatures/ University of Ife, 1975. ABIMBOLA, Wande. Ifá: an exposition of Ifá literary corpus. New York: Athelia Herietta Press, (1969)1997. ABIMBOLA, Kola. Yoruba culture: a philosopical account. Birmingham: Ìrókó Academic Publishers, 2005. ADEWUYI, Olayinka. Babatunde Ogunshina. Ifá. The book of Wisdom. 2018. ATHAYDE, Rogério. Orunmilá. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2022. AWOLALU, J. Omosade. Yoruba beliefs e sacrificial rites. New York: Athelia Herietta Press, 2001. 212 Magia, truque e feitiço AYOH’OMIDIRE, Félix. Yorubanidade mundializada: o reinado da o r a l i t u r a e m t e x t o s y o r u b á - n i g e r i a n o s e a f ro - b a i a n o s contemporâneos. Tese de Doutorado em Letras defendida na Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2005. BASCOM, William. Ifa divination: communication between Gods and Men in West Africa. Bloomington-US: Indiana University Press, 1969. COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Lisboa: Edições 70, (1975) 2019. GOODY, Jack. O mito, o rito e o oral. Petrópolis: Vozes, 2012. HOUNTOUNDJI, Paulin. Sur la “philosophie africaine”. Paris: François Maspero, 1977. IDOWU, E. Bolaji. Olódùmaré. God in yorubá belief. Lagos: Longman Nigeria Plc, (1962) 1996. KARENGA, Maulana. Odù Ifá: the ethical teachings. Los Angeles: University of Sankore Press, 1999. LUCAS, Olumide. The religion of the Yorubas. New York: Athelia Herietta Press, (1948) 2001. MAUSS, Marcel; Hubert, Henri. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005. MUDIMBE, V. Y. A invenção da África. Lisboa: Edições Pedago/ Luanda: Edições Mulemba, 2013. 213 Raios e ventos: narrativas mágicas sobre Santa Bárbara e Iansã Debora Simões de Souza1 Os estudos sobre a magia, ocupam um lugar central no que configura o campo de saber antropológico, assim, como outros temas clássicos: teoria do parentesco e organização das diferentes sociedades. Autores centrais na antropologia como Durkheim, Malinowski, Evans-Pritchard, James Frazer, Marcel Mauss, entre outros, se concentraram na magia por meio de diferentes abordagens, linhas conceituais e até escolas antropológicas. James Frazer no livro O Ramo de Ouro, publicado originalmente em inglês em 1890, foi o primeiro antropólogo que sistematizou e problematizou a relação entre magia e religião. Seguindo a perspectiva em voga na época, o autor elencou a razão como principal maneira de compreensão dos sujeitos sobre suas realidades. Frazer construiu uma hierarquização entre ciência, religião e magia e, nessa ordem, a primeira seria uma forma mais evoluída de entender e explicar a realidade humana e a última uma forma arcaica. Reforçando assim, a primazia da ciência (FRAZER, 1996). Doutora (2020) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro pertencente ao Museu Nacional (PPGAS/ UFRJ/MN), bolsista do CNPq. Professora Efetiva de História do IF Baiano. Mestre (2014) em História Social, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/ FFP), bolsista Capes. Possui pós-graduação lato sensu em Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira, pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Licenciou-se em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Faculdade de Formação de Professores (UERJ/FFP, 2011). 1 214 Raios e ventos Após cinquenta anos dos escritos de James Frazer, ocorreu uma inovação nos estudos sobre a magia na antropologia, com a presença do trabalho etnográfico de Malinowski compilado no livro Coral Gardens, publicado em dois volumes. Nesta obra, Malinowski concentrou-se na relação entre a magia e as práticas da agricultura desenvolvida pelos moradores das Ilhas Trobriand, arquipélago localizado na costa oriental da Nova Guiné. Há muitos outros aspectos que poderiam ser mencionados acerca da importância das teorias sobre magia na antropologia. Seria possível que este texto fosse um exercício de revisitar os autores e estudos clássicos com ênfase na magia. Porém, este capítulo, em diálogo com os demais da coletânea, será estruturado a partir de um trabalho etnográfico para chegarmos no conceito, a magia. Utilizamos aqui a metodologia da observação participante. O criador desse método foi Malinowski ao aprender a língua, conviver intensamente com os povos estudados e abordar a totalidade de aspectos da vida social na qual tinha interesse. Ouvindo, vendo e conversando, o antropólogo tenta compreender as características explícitas e implícitas presentes no contexto em foco. Além das longas conversas, podem ser realizadas entrevistas com indivíduos previamente escolhidos, aqueles que são guardiões dos conhecimentos, autoridades em relação a temas pertinentes à situação estudada. 215 Debora Simões de Souza O contexto etnográfico delimitado é o conjunto de narrativas que contêm possíveis acontecimentos da vida de Santa Bárbara e Iansã. Essas narrativas foram feitas por devotas, moradoras de Salvador, na Bahia. Chegamos a este recorte a partir de uma pesquisa mais longa realizada sobre as comemorações em torno de Santa Bárbara e Iansã na capital baiana, tema do meu doutoramento. A grande festa de rua acontece dia 4 de dezembro, no Pelourinho e na Baixa dos Sapateiros, momento no qual a cidade veste-se de vermelho e branco para homenageá-las. Este evento festivo tem forte presença de frequentadores, adeptos e líderes das religiões de matrizes afrobrasileiras na festa. Indivíduos ligados (em diferentes níveis) principalmente ao universo do candomblé e também à umbanda produzem no contexto festivo formas específicas de ocupação do espaço público, numa dinâmica religiosa complexa que congrega homenagens à santa e à orixá. A incorporação de entidades na Festa de Santa Bárbara pode ser concebida como um traço dessa dinâmica religiosa. A festa estrutura-se a partir de uma missa e procissão. Em 2008 a festa de Santa Bárbara foi registrada como patrimônio imaterial do Estado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), inscrita no livro das celebrações, marcando o reconhecimento e a importância dessa prática para os baianos e sinalizando a importância do festejo para a população. Parte significativa do festejo é organizado pelo grupo de devoção à Santa Bárbara pertencente à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos situada no Pelourinho. 216 Raios e ventos Nossas análises aqui estão centradas nos textos (nem sempre escritos) que contam as histórias de Santa Bárbara e de Iansã. Isto é, trabalharemos com a hagiografia da santa e o conjunto de mitos sobre Iansã como sendo narrativas mágicas, que são acionadas pelas devotas e pelos líderes religiosos em diferentes contextos e por eles são atualizadas. Essas narrativas mágicas são fundamentais no processo devocional. Vemos claramente como a utilização das narrativas estabelece e restabelece laços entre a santa e a devota. Ao insistir no feminino devota e não devoto, estamos considerando que a maioria significativa de pessoas que têm relações com Santa Bárbara são mulheres. O grupo é composto, principalmente, por mulheres negras, que estão tanto no universo religioso do catolicismo como do candomblé, possuem dupla pertença. Dois importantes alertas devem ser feitos. Primeiro, a magia aqui não é categoria nativa e sim categoria analítica. Ou seja, magia é um conceito antropológico, aplicado aqui como tal e não como categoria êmica (própria dos sujeitos da pesquisa, que emerge do grupo social). Segundo, nos distanciamos veemente de qualquer noção que trata magia como sinônimo de religião. Voltaremos a esse aspecto mais adiante. A magia de Marcell Mauss A teoria da magia construída por Marcel Mauss (2003) nos ajuda como uma espécie de guia geral. O antropólogo francês indica que a magia e a religião pertencem ao campo sagrado. Na citação a 217 Debora Simões de Souza seguir é possível distinguir e definir os agentes da magia e os atos mágicos. A magia compreende agentes, atos e representações: chamamos mágico correspondem aos atos mágicos; quanto aos atos, em relação aos quais definimos os elementos da magia, chamamo-los ritos mágicos [...] Os atos mágicos, e a magia como um todo são, em primeiro lugar, fatos de tradição. Atos que não o indivíduo que efetua atos mágicos, mesmo quando não é um profissional; chamamos representações mágicas as ideias e as crenças que se repetem não são mágicos (MAUSS, 2003, p. 55). Sobre a complexa potencialidade mágica, Mauss (2003, p. 141) explica: É a ideia de uma força da qual a força do mágico, a força do rito, a força do espírito são somente as diferentes expressões, conforme os elementos da magia. Pois nenhum desses elementos age enquanto tal, mas precisamente enquanto é dotado, seja por convenção, seja por ritos especiais, desse caráter mesmo de ser uma força, e uma força não mecânica, mas mágica. Desse ponto de vista, aliás, a noção de força mágica é inteiramente comparável à nossa noção de força mecânica. Assim como chamamos a força a causa dos movimentos aparentes, também a força mágica é propriamente a causa dos efeitos mágicos: doença e morte, felicidade e saúde etc. As narrativas sobre a vida de Santa Bárbara e de Iansã são forças, ou seja, são expressões que se configuram como elementos da magia. E ainda seguindo a teoria de Mauss, essas narrativas não têm ação em si mesmas, elas são investidas, pelas devotas, de uma força mágica que causa, como resultado primeiro, efeito mágico. 218 Raios e ventos Santa Bárbara Segundo um conjunto de textos hagiográficos e sermões, Bárbara viveu2 na Ásia Menor, na cidade de Nicomédia, no século III (talvez entre os anos 236 e 260). Seu pai, Dióscoro, um homem rico e influente, mantinha-a presa em uma torre. Porém, certo dia, ele permitiu que a filha saísse.3 Na ocasião, ela conheceu pessoas que a apresentaram ao cristianismo e sua conversão foi quase que imediata. Bárbara contrariava a sua própria família e a sociedade, pois, na época, a religião cristã era perseguida politicamente. Determinado dia, seu pai anunciou que inúmeros príncipes pretendiam casar-se com ela. Muito irada com o anúncio do pai, recusou-se. Pois seu maior desejo era entregar-se por completo, corpo e alma, à religião. Após o anúncio do possível casamento, Dióscoro viajou. Aproveitando essa oportunidade, a jovem foi olhar a construção de Na compilação da vida dos santos, publicada originalmente no final do século XIX, Alban Butler ([1883] 1999, p. 173) exibe as contradições e informações falsas presentes na biografia de Bárbara. “Barónio prefere as actas que nos dizem que ela foi aluna de Orígenes e que sofreu o martírio em Nicomédia, no reinado de Maximio I, o qual foi o autor da sexta perseguição geral, em 235. Mas José Assemani mostra que as actas que nos deixaram Matrafaste e Mombrício são mais exatas e fidedignas. Estas actas informam-nos de que Santa Bárbara sofreu o martírio, no Egipto, cerca de ano 306. Este relato conforma-se com a Menologia do Imperador Basílio e com o Sinaxário Grego”. Vagner Santos (2019), em artigo recente, sistematiza diferentes versões dos possíveis acontecimentos da vida de Bárbara. Em uma espécie de cartilha voltada para devotos e sacerdotes, a teóloga Tarcila Tommasi (2014) narra episódios da vida de Bárbara relacionando-os constantemente a sua conversão e martírio. 3 Há referências de que ela havia escapado. 2 219 Debora Simões de Souza uma nova sala de banho em sua torre, e, notando que só havia duas janelas, imediatamente pediu que abrissem mais uma. Assim que o seu pai voltou, desejou saber o motivo disso e ela explicou o que representavam: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Para muitos, desse episódio em diante teve início o martírio de Bárbara. Ela foi denunciada ao imperador pelo próprio pai. Foi presa e torturada a fim de que negasse a fé cristã, o que não sucedeu. Em consequência, ela foi condenada à morte em praça pública. Com uma espada, seu próprio pai arrancou seus seios e, em seguida, degolou-a. Neste instante, um raio fulminante atingiu-o. E, em função disso, ocorre a associação da santa com os raios. Os parágrafos anteriores, os quais apresentaram episódios da vida de Bárbara, não são importantes por sua veracidade ou não, mas sim pelas interpretações que as devotas constroem a partir dessas informações. Em outras palavras, estamos interessados na força mágica que elas colocam nesses episódios extraordinários. A excepcionalidade dos episódios da vida da figura sagrada desdobra-se, para cada devota, num conjunto de possibilidades de interpretação e de criação de novos sentidos. A hagiografia é um gênero literário que, de forma geral, promove o culto aos santos ao contar sua vida. São documentos escritos que apontam para a exemplaridade da figura religiosa. Já a biografia dos santos (canonizados ou não) é a ligação das ações, dos 220 Raios e ventos locais e dos assuntos. Esse tipo de biografia tem uma estrutura específica, a qual se relaciona, não particularmente com aquilo que de fato aconteceu, mas com aquilo que é exemplar. Nessa espécie de escrito, a veracidade dos ocorridos não é comprovada e, em certo sentido, a verificação não cabe. A vida do santo precisa ser antes “considerada como um sistema que organiza uma manifestação graças à combinação topológica de ‘virtudes’ e de ‘milagres”’ (CERTEAU, 2007, p. 266). Questões sobre o ordinário e o extraordinário na vida dos santos possuem um léxico próprio dentro da hagiografia (CERTEAU, 2007, p. 266), um universo que oscila entre as virtudes, os milagres e o martírio que marcam a vida e a morte dos sujeitos canonizados. Michel de Certeau (2007) trata das múltiplas formas de apropriação das hagiografias pelos religiosos, diferentes das dos “livros canônicos” que, segundo o autor, encontravam-se ligados à norma pedagógica do dogma, “a vida dos santos traz à comunidade um elemento festivo. Ela se situa do lado do descanso e do lazer. Corresponde a um ‘tempo livre’, lugar posto à parte, abertura ‘espiritual’ e contemplativa. [...] Ela ‘diverte’” (CERTEAU, 2007, p. 270). Para o autor, a combinação do extraordinário com o possível dentro da hagiografia forma uma “poética do sentido”, narrativas do “tempo livre”, histórias que preenchiam os tempos de “vacância” dos religiosos. Esse “tempo alegre” assume as feições de “uma exceção e de um desvio (pela metáfora de um caso particular), o discurso cria uma liberdade com 221 Debora Simões de Souza relação ao tempo cotidiano, coletivo ou individual, mas constitui um não lugar” (CERTEAU, 2007, p. 269-270). O extraordinário e o possível se relacionam para alicerçar uma narrativa que sempre nos direciona para a questão da exemplaridade. As narrativas sobre a vida da santa ganham múltiplas possibilidades de sentido e as lacunas na biografia viabilizam seu preenchimento pelos devotos, segundo nos informa Clerc-Renaud (2014; 2016). A autora, em diálogo com o texto de Certeau citado anteriormente, afirma que [...] a descrição das representações locais de santidade mostra que a prática narrativa da vida do santo [...] é indissociável das imagens, lugares, temporalidades extraordinárias, necessárias à compreensão dessas figuras, construídas sobretudo como princípios de agenciamento a serviço da ação da história (CLERCRENAUD, 2016, p. 42, tradução nossa). Podemos ver essa lógica em operação, por exemplo, a respeito da guerra que Santa Bárbara travou. Consonantes diversas narrativas, ora foi contra o pai, ora contra a sociedade. Ou seja, ela é guerreira porque enfrentou a força masculina, personificada na figura do pai, em nome do seu desejo de seguir o cristianismo. Para muitas devotas, a espada tanto pode ser a arma que o pai da santa usou para executá-la como símbolo da luta espiritual que ela travou. Esse objeto é ao mesmo tempo símbolo da tortura sofrida pela santa e da sua força. Em determinado momento durante as entrevistas realizadas no trabalho de campo, as devotas começam a citar, em ordem, possíveis aspectos atribuídos à vida de Bárbara. Nos intervalos, em que citam pontos altos, como o início do processo do martírio, ou até mesmo o 222 Raios e ventos final, elas percebem um vento mais intenso (força da natureza atribuída a ela). Em geral, após o ocorrido, elas complementam: “é porque estamos falando dela”, ou colocações semelhantes. As narrativas mágicas não só têm força em si, mas são também forças motoras, elas movimentam. Iansã “Iansã” em iorubá significa mãe de nove filhos. Foi esposa de Xangô (rei de Oió) e de Ogum (guerreiro e que tem o domínio da metalurgia) e mãe dos Ibejis. Senhora dos raios, ventos e tempestades. O fogo é um elemento ligado à ela. Conhecida por sua força e destreza. No conjunto iconográfico, a divindade, em geral, é representada como uma mulher negra formosa com curvas acentuadas, com vestes vermelhas, numa mão sua espada (alfanje) e na outra seu eruexim (semelhante a um espanador, confeccionado com cabo de madeira, detalhes em búzios e crina de cavalo) que são suas principais ferramentas. Adora acarajé e nas grandes festas dos templos de candomblé os distribui. Também conhecida como Oiá, ela é denominada de Matamba ou Bamburucema pelos adeptos de candomblé das nações angola e congo. Esta síntese foi elaborada a partir de palavras-chave retiradas do meu caderno de campo, que eu registrava logo após uma conversa ou entrevista e destacava. Por isso, são ao mesmo tempo 223 Debora Simões de Souza características gerais e restritas sobre as divindades, uma vez que foram organizadas a partir das construções discursivas dos interlocutores desta pesquisa. “Iansã tem uma energia diferente, é mais agitada, já chega mostrando para o que veio” e “as filhas de Iansã são mulheres fortes” – são frases que sintetizam características atribuídas à orixá (também conhecida como Oiá) e suas filhas. Não pretendemos realizar uma análise de Iansã e suas variações no complexo universo das religiões de matrizes afro-brasileiras, mas sim abordá-la a partir das falas das interlocutoras. Iansã controla e tem o domínio do vento, da tempestade, do trovão, do relâmpago, do raio e do fogo. Em Salvador, seu dia é a quarta-feira e suas cores são o branco e o vermelho. Dizem que ela possui uma personalidade autoritária e combativa. Xangô foi seu grande amor, a quem está associada, mas antes dele teve outros amores. Na Bahia, falaram-me inúmeras vezes que “onde está Iansã também está Xangô”, e complementaram essa ideia, “não se pode fazer nada para Iansã que não se faça para Xangô”. Adiante, voltarei a mencionar a relação entre eles. Seu caráter guerreiro e seu envolvimento com certos elementos da natureza estão presentes na compilação de seus mitos (PRANDI, 2001). Podemos denominá-la de Iansã, Oiá ou Matamba (no candomblé angola). O primeiro nome é de origem iorubá e significa “senhora dos nove, porque ela tem nove filhos e ela é senhora dos 224 Raios e ventos nove mundos”, como me explicou o professor Ordep Serra, durante a nossa primeira conversa. Do conjunto mitológico que envolve Iansã e seus amores, selecionamos um mito no qual ela pega os atributos deles. Com Ogum, Iansã adquiriu o direito de usar a espada; com Oxaguiã, obteve a posse do escudo; com Exu, conseguiu o direito de usar o poder do fogo e da magia; com Oxóssi, conquistou o conhecimento da caça. Em dado momento, aperfeiçoou-se nos ensinamentos sobre magia para transformar-se em búfalo. Com Logum Edé, conseguiu o direito de pescar. Depois da conquista e do desenvolvimento dos atributos, Iansã foi para o reino de Xangô, alcançou o poder de encantamento e o domínio dos raios (PRANDI, 2001, p. 296-297). Acredito que esta compilação reflete um tipo feminino acionado pela maioria das interlocutoras da pesquisa, as quais são filhas de Iansã, isto é, são mulheres independentes, articuladoras, criativas, batalhadoras, etc. Na sequência mostraremos dois mitos nos quais ela transformou-se, no primeiro no rio Níger: Oiá foi aconselhada a prosseguir sua jornada ao lado do seu marido Xangô. Enquanto amasse esse homem, não deveria retornar a Irá, sua terra natal, onde vivia com a família. Dividida sentimentalmente, Oiá não seguiu as recomendações e voltou a Irá. Um dia recebeu a notícia da morte de Xangô. Sentindo grande tristeza pelo ocorrido, usou seus poderes sobrenaturais e transformou-se em um rio, Odô Oiá, o rio Níger (PRANDI, 2001, p. 302). No segundo, uma outra transformação, dessa vez num elefante: 225 Debora Simões de Souza Ao dar à luz Oiá, sua mãe morreu e a menina foi criada por Odulecê, não se sabendo ao certo se este era seu pai biológico ou adotivo. Aos doze anos, Oiá já era uma mulher linda e inteligente, que encantava todos os homens. Nem mesmo seu pai conseguiu sublimar sua atração por ela. Numa noite, Odulecê quis possuí-la e ela, desesperada, fugiu de casa. Quanto mais corria, mais obstáculos lhe surgiam. Oiá não conseguia escapar de seu pai. No seu desespero, seus poderes sobrenaturais afloraram e ela transformou-se em pedra, em madeira e em cacho de dendê. Mas seu pai continuava a perseguição. Desesperada, Oiá transforma-se num grande elefante branco, que atacou Odulecê. Odulecê fugiu em disparada, desistindo de agarrar Oiá (PRANDI, 2001, p. 302-303). No candomblé, é possível afirmar que sua “cosmologia se desdobra em uma mitologia” (GOLDMAN, 2005, p. 109) e em um conjunto de entrelaçados sistemas de classificação que, de forma geral, relacionam natureza e sociedade numa filosofia complexa própria dessa religião e de sua concepção do ser. Sobre as mitologias e as especificidades dos orixás: Os mitos apresentam, sobretudo, o caráter polívoco das divindades: simultaneamente essências imóveis, forças da natureza (raios, trovões, rios etc.), instituições culturais (guerra, justiça...), indivíduos que viveram no passado (reis, rainhas, guerreiros...). E não se trata aqui apenas – talvez seja preciso advertir – de representações (o raio representando a orixá Iansã), relações de propriedade (o mar pertencendo à orixá Iemanjá) ou controle (a doença sendo provocada e controlada por Omolu), mas de uma forma muito complexa de agenciamento. Em certo sentido, o mar é Iemanjá, o raio e o vento são Iansã, e a doença é Omolu. Natureza, cultura, seres humanos, o cosmos, tudo parece articulado nesse sistema. Os componentes desses diferentes planos podem, assim, ser agrupados em classes de acordo com o orixá ao qual pertencem, ou seja, de acordo com a modulação de axé que os constitui (GOLDMAN, 2005, p. 109). 226 Raios e ventos Um orixá, de forma geral, possui diversas variações. Iansã, por exemplo, pode ser Iansã Balé4, é a divindade que comanda os Eguns (espíritos ancestrais) e, por isso, está ligada ao controle do mundo dos mortos. Para além das diversas qualidades de um orixá, há também a relação e constituição das pessoas (tanto indivíduo quanto orixá). Estas construções estão intimamente ligadas às personalidades e ajustam-se e reajustam-se no decorrer de uma relação que se espera ser para a vida toda. Esse ajuste foi descrito por uma ialorixá em um dos nossos muitos encontros. Na casa de axé, sentada no sofá, ela falou da ligação com seu orixá, destacando que “a minha Iansã é assim, calma; e eu sou assim, calma, por causa dela”. Essa característica da divindade influencia na personalidade da líder religiosa, que complementa ao dizer que nem sempre ela foi tranquila, contudo Iansã foi o motivo dessa mudança. Mais uma vez, vemos um movimento de ajuste entre o orixá e seu filho. Ao longo da vida, o adepto vai se moldando, se construindo enquanto filho de seu orixá. A ialorixá está aprendendo a cada dia a ser de Iansã, entretanto não é qualquer Iansã, é especificamente a dela. Icú Oyá traz a morte, Oyá Onirá está relacionada com Oxum, Oyá Jegbê é a mais velha, Oyá Padá gera os Eguns, Oyá Jimudá é associada a Oxalá e Oyá Cará é o fogo (COSSARD, 2008). Bastide (1971, p. 200) apresenta que “cada orixá é múltiplo: há, por exemplo, doze Xangôs, dezesseis Oxun, dezessete Yansan, vinte e um Exú”, são alguns exemplos. O autor estabelece um paralelo entre os números dos orixás com as nações que vieram para o Brasil, na época do tráfico transatlântico de escravizados. Todavia, a teoria dos algarismos não dá conta de explicar a complexidade das divindades e também não é o cerne da interpretação do autor, que está mais interessado nas relações do que nas classificações. 4 227 Debora Simões de Souza A relação entre Iansã e seu esposo, Xangô, apareceu em inúmeras narrativas. Um babalorixá, por exemplo, falou da relação entre essas divindades: Iansã é mulher de Xangô, é a esposa mais interessante do rei de Oió. Teve uma mudança aqui no Brasil da visão sobre Iansã. Essa visão é absolutamente estranha, ou melhor, diferente do que se pensa de Iansã na África. Primeiro, porque ela é um orixá das águas, isso não veio muito para cá. O nome de Iansã é exatamente uma menção, é uma referência às nove desembocaduras do Rio Níger, que é um dos rios mais importantes da região da Nigéria, e a história dela começa exatamente nessa travessia, quando ela se apaixona por Xangô. Na verdade, antes, teve uma briga. Ela era esposa de Ogum, que vivia nas terras de Xangô. E Xangô, ao passar por Ogum, viu aquela mulher bonita do diabo e disse assim: ‘é ela, não fica para Ogum não. Ogum é um ferreiro e eu sou rei’. Então, eles brigaram, eles lutaram na verdade. Em certo momento, Ogum disse: ‘nós somos irmãos, vamos deixar para lá, você leva essa mulher, você merece’. Inclusive na festa de Iansã, com Xangô, há um ritual de uma dança, é uma coreografia que está bem no contexto mítico e litúrgico mesmo. Eles dançam insinuando uma briga e depois se abraçam. De forma geral, as devotas destacam o casamento entre Iansã e Xangô, rainha e rei de Oyó, mãe e pai dos Ibejis. Muitas dessas narrativas mágicas são apresentadas em momentos rituais ou nos preparatórios rituais. Falar de Iansã, dos orixás de maneira geral, é chamar o sagrado para perto, é agir com as palavras, é um ato mágico. De fato, o seguidor do candomblé pode simplesmente tomar os atributos do seu orixá como se fossem os seus próprios e tentar se parecer com ele, ou reconhecer através dos atributos da divindade bases que justificam sua conduta. Os padrões apresentados pelos mitos dos orixás podem assim ser usados como modelo a ser seguido, ou como validação social para um modo de conduta já presente. Um iniciado pode, ao familiarizar- 228 Raios e ventos se com seus estereótipos míticos, identificar-se com eles e reforçar certos comportamentos, ou simplesmente chamar a atenção dos demais para este ou aquele traço que sela sua identidade mítica. Mudar ou não o comportamento não é importante; o que conta é sentir-se próximo do modelo divino (PRANDI, 1995, p. 16). As narrativas mágicas mobilizam seres, coisas, fenômenos da natureza, etc. A organização de acontecimentos que, possivelmente, ocorreram na vida de Bárbara e Iansã forma uma linguagem compartilhada entre fiéis e líderes religiosos e por eles também legitimados. Podemos concluir que, ao falar da santa e da orixá, as devotas manipulam forças importantes no processo devocional. Falar também é fazer. Referências BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil (2 vols.). São Paulo: Pioneira. 1971. BUTLER, Alban. Vida dos Santos. Lisboa: Dinalivro, 1999. Certeau, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. CLERC-RENAUD, Agnès. De minces biographies. Circulation et créolisation d’histoires de saints. Brésil (Nordeste). In: Cahiers de littérature orale [En ligne], v. 80, p. 21-51, 2016. CLERC-RENAUD, Agnès, À l’épreuve des certitudes: récits d’une sanctification locale (Ceará, Brésil). In: Social Compass, v. 4, n. 61, p. 524-536, dez. 2014. COSSARD, Gisèle Omindarewá. Awó: o mistério dos orixás. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2008. FRAZER, James George. La rama dorada. Magia y religión. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1996. 229 Debora Simões de Souza GOLDMAN, Marcio. “Formas do saber e modos do ser: observações sobre multiplicidade e ontologia no candomblé”. In: Religião e sociedade, v. 25, n. 2, p. 102-120, 2005. MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003. PRANDI, Reginaldo. Deuses africanos no Brasil contemporâneo: introdução sociológica ao candomblé de hoje. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, n.3, p. 10-30, 1995. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. MALINOWSKI, Bronislaw, Coral gardens and their magic. A study of the methods of tilling the soil and of agricultural rites in the Trobriand Islands, London, George Allen & Unwin Ltd., 1966. 230 Mulheres encantadas e os lagos mágicos: as estatuetas femininas das estearias do Maranhão Alexandre Guida Navarro1 Os que devem comparecer ao festim reúnem-se todos no dia designado. Já na véspera, à noite, começam a preparar-se, vestindo seus mais belos adornos de penas de variegadas côres e dançando em tôrno de suas casas, com seus maracás nas mãos, cantando e pulando sem cessar (D’ABBEVILLE, 2008 [1614], p. 238). Introdução O tema das estatuetas na Arqueologia é fascinante. Por definição, uma estatueta é uma escultura de pequenas dimensões confeccionada em cerâmica, osso, marfim ou em lítico, sendo um artefato mobiliário, ou seja, que pode ser transportado (EMBER et al., 2004). Geralmente, as estatuetas são femininas e por isso apresentam um amplo significado semântico que está associado desde as correntes teóricas mais conservadoras, como a associação com o erotismo ou fecundidade, até posicionamentos feministas que as colocam como Professor Associado III do Departamento de História (DEHIS) do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Sociocultural (PPGDS) do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG), líder do Grupo de Pesquisa Religião, História e Cultura Material (REHCULT) e bolsista de produtividade do CNPq nível 2 (processo 303620/2021-8). Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP), doutor em Antropologia pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e possui dois pósdoutoramentos: um pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 2008 e outro na University of Illinois at Chicago em 2017, onde foi, também, Professor Visitante com bolsa da Fulbright Institution (modalidade Visiting Professor Award). 1 231 Alexandre Guida Navarro representações de chefes políticas. Deste modo, o estudo das estatuetas é uma agenda atual, sobretudo pelo teor político que carrega consigo, evidenciando o papel do gênero na formação política contemporânea mundial. Este texto nasce de uma reflexão após seis trabalhos de campo nas estearias maranhenses de onde foram coletados 74 exemplares de estatuetas inteiras e fragmentadas. As estearias são sítios arqueológicos formados por palafitas erguidas dentro de rios e lagos e que serviam de sustentação para os pilares ou esteios de madeira das aldeias indígenas, um tipo peculiar de ocupação pré-colonial na região conhecida como Baixada Maranhense, a aproximadamente 200 km da capital do estado, São Luís (NAVARRO, 2017a, 2017b, 2018a, 2018b, 2020) (Figuras 1 e 2). Construídas desde o início da era cristã até o século XIII, estes sítios arqueológicos vêm ganhando repercussão na arqueologia brasileira por causa da boa preservação do material que se encontra em meio à turfa do leito aquático onde foram descartados (NAVARRO, 2018b). Estudos arqueológicos realizados por Navarro desde 2014 demonstram que estes assentamentos não são simples acampamentos como até então se pensava. A grande quantidade de artefatos com marcas de fuligem e cocção evidenciam uma ocupação de longa duração (NAVARRO, 2018a). A existência de muiraquitãs nesses sítios, como o exemplar coletado por Navarro (2017a) no sítio Boca do Rio em 2014 e aqueles coletados por Raimundo Lopes (1924) e 232 Mulheres encantadas e os lagos mágicos estudados por Navarro e Prous (2020) no Museu Nacional antes do incêndio que o consumiu, corroboram para a vida sedentária destes grupos, uma vez que indicam o comércio de longa distância entre viajantes do Baixo Amazonas e, possivelmente, das Antilhas e Caribe. Figura 1: Mapa com a localização das estearias do rio Turiaçu. Acervo LARQ-UFMA. Figura 2: Estearia do Cabeludo na época da seca, ainda com lâmina de água. Fotografia Acervo LARQ-UFMA. 233 Alexandre Guida Navarro Práticas universais da representação de estatuetas As estatuetas vêm sendo estudadas com recorrência, haja vista o recente manual The Oxford Handbook of Prehistoric Figurines, organizado por Timothy Insoll (2017). Talvez as mais famosas estatuetas sejam as “estatuetas de Vênus” do Paleolítico Superior europeu, ca. 30.000 anos atrás. Geralmente foram confeccionadas de rocha calcária sendo a de Wilendorf, atualmente depositada no Museu de História Natural de Viena, Áustria, a sua maior expressão. Outras foram feitas de osso e marfim, refletindo uma arte relacionada com os caçadores glaciares (MARINGER, 1989). Esses artefatos suscitam ainda calorosas discussões e são uma evidência de como os usos do passado vão se delineando ao longo do tempo. A associação com a sexualidade é uma vertente mais tradicional nos estudos e vem sendo criticada por seu discurso acrítico, sendo que a própria designação vênus tem uma conotação erótica (MARINGER, 1989). Nelson (2001), só para citar um caso, sugere que as estatuetas foram elaboradas para fins de prazer masculino, um “pin-up” feminino associado ao erotismo. Nesse sentido, as estatuetas seriam como vasilhames com a função de abrigar o esperma masculino com o objetivo de prover novos seres humanos. No entanto, segundo Nakamura e Meskell (2019), os estudos focados nas estatuetas do Neolítico da Europa em sua maioria são visões ocidentalizadas da mulher enquanto metáfora de sexualidade e fertilidade. Dentre essas acepções estão a evocação de “deusa mãe”, 234 Mulheres encantadas e os lagos mágicos em que esses artefatos são vistos como evidência de veneração divina utilizados em rituais ou cultos levados a cabo por essas sociedades neolíticas. Uma vez que a mulher é a progenitora, dentro do contexto tradicional, as estatuetas poderiam representar, portanto, a materialização da reprodução feminina e, por extensão, do lar. Para as autoras em questão, as estatuetas de Çatalhöyük não foram encontradas majoritariamente em habitações domésticas e sim em templos, e representariam não corpos individuais de mulheres, mas sim “body kind”, ou seja, puderam ser utilizadas como instrumentos de narrativas coletivas, de jogos ou ainda como instruções. Portanto, as estatuetas não seriam manifestações da fertilidade feminina. Elas contariam, portanto, a história daquele grupo e legitimavam, desse modo, as experiências sociais e memória identitárias vivenciadas pelos moradores da cidade ao longo do tempo. Na Mesoamérica as estatuetas existem em praticamente todos os sítios arqueológicos. O repertório é muito grande, mas, em geral, esses artefatos revelam seres em movimento representando musicistas, guerreiros, elite com rica indumentária acrobatas, xamãs com máscaras rituais ou com o par enamorado, cenas de amamentação e crianças brincando com animais de estimação (LESURE, 1999; JOYCE, 2005). Ou seja, representam seres individuais, “retratos únicos” de múltiplas identidades do modo de figurar o corpo (JOYCE, 2005). Nesse sentido, o corpo é a forma mais visual de se construir a identidade, assim, ornamentos, postura, modificação corporal representam a habilidade de vestir uma “pele social”, construindo uma 235 Alexandre Guida Navarro autoidentificação da sociedade que se define pelos diferentes grupos sociais aos quais os diferentes indivíduos negociam suas identidades (FISHER; LOREN, 2003). Já no Caribe um dos mais importantes estudos sobre as estatuetas é o dos arqueólogos María Magdalena Antczak e Andrzej Antczak (2006), que produziram um volumoso livro sobre esses artefatos. Seus trabalhos de campo no arquipélago de Los Roque, no Caribe venezuelano, proporcionaram a descoberta de uma grande quantidade de estatuetas-chocalho ou ocarinas datadas entre os séculos IX e X EC A forma de figurar o corpo nesses artefatos parece evidenciar a importância do gênero que está bem marcado nos corpos produzidos. A obra de Arroyo et al. (1999) também mostra as estatuetas como uma rede de relações sociopolíticas e econômicas, traços esses observados nas culturas do istmo panamenho e nas amazônicas. Na América do Sul, tanto nas terras altas como nas baixas, o repertório de produção de estatuetas cerâmicas também é extenso. As mais antigas estatuetas pertencem à cultura Valdívia (3500 a 1500 a.C.). Foram confeccionadas tanto em pedra quanto em cerâmica. A maioria das ocorrências é do sexo feminino com genitália e seixo à mostra e se destaca a frequente quebra intencional dos artefatos, indicando, segundo Blower (2001), seu uso em rituais domésticos. Já as estatuetas La Tolita, na costa equatoriana e colombiana, estão associadas a cultos em que são representados personagens de 236 Mulheres encantadas e os lagos mágicos prestígio e seres mitológicos. Algumas são antropozoomorfas, possuem o corpo humano em que se destaca um rico peitoral com adornos e com a cabeça de felino, sendo esse animal a metáfora de poder, um atributo bastante conhecido na América pré-colombiana em geral. As estatuetas de Jama-Coaque, no Equador, por sua vez, ostentam pessoas de algum rango que portam uma elaborada indumentária formada por tocados decorados com pássaros e gêneros alimentícios, especialmente as leguminosas, máscaras faciais, peitorais, brincos e adornos para o nariz. A posição sentada em bancos cerimoniais atesta a cena de poder em que os indivíduos são imbuídos. Vale aqui citar um exemplo de figurar o corpo em práticas mortuárias de crenças na vida após a morte. Chamam à atenção as estatuetas de cerâmica femininas e masculinas associadas às cenas de veneração dos ancestrais que predominam entre os Chimus (1000 a 1450 EC) (LAU, 2008). Geralmente os indivíduos representados estão em procissão em direção a uma múmia apresentando-lhe um prisioneiro de guerra que será sacrificado. Tanto na costa como nos Andes setentrionais, centrais e meridionais (i.e Moche; Gallinazco; Nazca) as estatuetas de cerâmica, muitas delas fabricadas em larga escala através de moldes, se apresentam dentro de práticas rituais que legitimam o status quo do poder estatal e definem, também, as identidades que agenciam os mortos esse complexo cultural (BOURGET, 2001; Donnan, 2004). 237 Alexandre Guida Navarro Indo para a costa atlântica, é necessário deter-se nas estatuetas das terras baixas da Venezuela, Suriname e Guianas. Na região do Orinoco, Venezuela, as estatuetas estão presentes nas três fases que definem a sequência cronológica dessa área: Saladoide, Barrancoide e Arauquinoide (CRUXENT; ROUSE, 1982). Grande parte desses artefatos aparece na fase Comoruco (800-1000) e foram estudados por Roosevelt (1980, 1997) na região de Parmana e Corozal. Geralmente esses artefatos são marcados pelo gênero sendo, em sua maioria, femininas com os olhos, narizes e bocas formadas por uma incisão, às vezes há a presenças dos olhos em forma de grãos de café. Nas Guianas a cultura arauquinoide Hertenrits (700 EC) caracterizou-se pela construção de mounds, campos cultivados, comércio de longa distância, cerâmica de tradição Inciso-Ponteada e atividade ritual em que se destacam as estatuetas. Elas são parecidas com as da Venezuela: são mulheres, com o braço fletido na região do abdômen sem o vão entre os braços e o corpo, têm seios, vulva, umbigo, algumas parecem estar grávidas e outras parecem que sofreram decapitação ritual (ROSTAIN, 2008). No Suriname, a maioria das estatuetas é feminina e também pertence à cultura Hertenrits, que, segundo Versteeg (2008) são chocalhos usados em cerimônias religiosas. Percebe-se, portanto, nessa breve incursão que as narrativas construídas sobre as estatuetas são realizadas sobre as ontologias do corpo, sendo que a agenda mais importante nos estudos 238 Mulheres encantadas e os lagos mágicos contemporâneos é a fabricação dos corpos e as identidades sociais por eles produzidas. Aterrissando na Amazônia brasileira Na Amazônia brasileira, quase todos os estudos sobre estatuetas foram feitos exclusivamente por mulheres, indicando uma importante agenda política: Helen C. Palmatary (1950, 1960), Conceição G. Correia (1965), Anna C. Roosevelt (1988, 1991), Denise Schaan (2001a, 2001b, 2009), Denise Gomes (2001, 2019) e Cristiana Barreto (2009, 2014, 2017), centrando-se nas duas sociedades précoloniais com maior destaque: Santarém e Marajó. Segundo Palmatary (1950, 1960), as estatuetas santarenas se diferenciam das marajoaras pelo fato de as primeiras serem mais variadas, representando tanto o sexo masculino quanto o feminino, que as femininas não possuem pés sugerindo que estão sentadas e que, quando colocadas de cabeça para baixo, formam uma base em forma de meia lua crescente a extremidade da base pontiaguda. Nas de Marajó, as estatuetas femininas estão agachadas sendo que os joelhos são mais proeminentes e, embora as bases também formem uma meia lua crescente quando colocadas de cabeças para baixo, diferentemente das santarenas, as marajoaras as têm mais arredondadas. No catálogo de estatuetas confeccionado por Conceição Correa (1965), a autora analisa a morfologia e o aspecto decorativos de 119 239 Alexandre Guida Navarro das estatuetas. Destaca que à diferença das peças marajoaras, as estatuetas de Santarém são caracterizadas pelo “realismo da modelagem manifestado na reprodução de posturas e gesto dos personagens que tentavam retratar” (CORREA, 1965, p. 7). Os estudos de Anna C. Roosevelt (1988, 1991) foram inovadores no sentido de que introduzem o conceito de complexidade social às sociedades amazônicas, uma vez que até então essa complexidade era atribuída ao difusionismo andino na região (MEGGERS, 1957). Para essa autora, as estatuetas podem revelar aspectos importantes da organização social e da ideologia das sociedades pretéritas. Destaca-se que a maioria são mulheres ornamentadas e grávidas, com a genitália e seios à mostra, algumas são “eróticas”, possuem forma fálica e a maioria provém de contexto doméstico, refugo ou enterramento. Segundo a autora, esses aspectos exaltam as qualidades de fertilidade e maternidade em sociedades de tipo cacicado ou estados incipientes. Para Schaan (2001) os estudos sobre as estatuetas da Amazônia acompanham a discussão mundial sobre seu ressignificado. Ou seja, esses artefatos não seriam somente exemplos de fertilidade e matriarcado, mas proporcionam uma agência de representação de individualidades dentro de um contexto de desigualdade social. Assim, essa autora propõe que as estatuetas marajoaras “devem ser entendidas como objetos simbólicos relacionados a discursos contextuais sobre 240 Mulheres encantadas e os lagos mágicos identidade social e gênero” (SCHAAN, 2001a, p. 3) ligadas a rituais funerários. Essa posição social de destaque da mulher também foi postulada por Gomes (2001). Baseando-se em registros etnohistóricos, como na obra de Betendorff, essa autora destaca o papel feminino proeminente na sociedade tapajônica, que pôde ter tido uma organização matrilinear. A autora discorre sobre os ornamentos dessas estatuetas, indicando a existência de masculinas também. Assim como Schaan (2001), Gomes pensa que esses artefatos representam indivíduos em sua posição social que são indicados pelo tipo de adereços que usam, assim como os cocares Bororo como distinção de status social. Nesse sentido, a pintura preta aplicada ao corpo, os brincos e adornos capilares formados por pedras verdes de tipo muiraquitã, típicas das sociedades da Tradição Inciso-Ponteada, poderiam indicar “an adolescent female whose eleganted, enlongated, pierced ear lobes perhaps inidicate her status in the community as a member of a prestigiuos lineage” (GOMES, 2001, p. 140). Em recente trabalho, Barreto (2014) analisou 86 estatuetas marajoaras e santarenas procedentes de várias coleções definindo como principal atributo a corporeidade representada nos artefatos. A discussão sobre gênero também é realizada por Barreto que ratifica o estudo anterior de Schaan de que as estatuetas são fálicas com a diferença de que para ela uma estatueta é “um falo humanizado, e não um corpo em forma de falo” (BARRETO, 2014, p. 51) porque uma das primeiras concepções da cadeia operatória é o próprio falo. A 241 Alexandre Guida Navarro autora realizou até mesmo Raio X das peças que evidenciou uma surpresa forma de falo do preenchimento interno de uma estatueta. Cabe ressaltar, por último, as etnografias da produção de estatuetas nas terras baixas da América do Sul (STAHL, 1986) e, sobretudo, ao que diz respeito às bonecas Karajá como referência de transmissão de saberes e não somente brinquedos (CAMPOS, 2002), que, mesmo não estando na Amazônia, contribuem para o amplo significado que esses artefatos tiveram. A fabricação dos corpos na Amazônia: metodologia de estudo Como metodologia de estudo, o enfoque se dá através do conceito etnológico das terras baixas da América do Sul, focado na fabricação dos corpos ou da “social skin” definida por Turner (1980). As artes visuais, nesse sentido, são uma maneira de ordenação das práticas rituais (LAGROU, 2007). Arqueólogos cada vez mais utilizam as teorias antropológicas e a etnografia para ratificarem seus argumentos. Embora aplicar essas teorias etnológicas ao registro arqueológico possa ser interpretado com anacronismo, a agência destes artefatos também pôde desempenhar funções semelhantes no passado, como salientou Barreto (2017). Desse modo, Seeger et al. (1979, p. 2) consideram a corporalidade uma linguagem simbólica em que “a noção de pessoa e uma consideração do lugar do corpo humano na visão que as 242 Mulheres encantadas e os lagos mágicos sociedades indígenas fazem de si mesmas são caminhos básicos para uma compreensão adequada da organização social e cosmologias dessas sociedades”. Nesse sentido, as identidades sociais, assim como as diversas manifestações culturais das sociedades indígenas, como os mitos, cerimônias, ancestralidade, são construídas sobre os seus corpos. Os corpos são instáveis, transformacionais, agenciados, por isso são fabricados. O corpo nesse contexto é constituído como uma diversidade tangível da vida material e imaterial em que o corpo físico “não é a totalidade de corpo; nem o corpo a totalidade da pessoa” (SEEGER et al. 1979, p. 11). O corpo é, portanto, o local da vivência social. Neste sentido, o corpo adquire diversos significados semânticos caracterizados por uma ontologia chamada de multinaturalismo ou perspectivismo por Viveiros de Castro, em que “o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não humanas que o apreendem segundo pontos de vista distintos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Assim, a corporalidade implica na fluidez cosmológica dos seres dependendo da agência a que estão submetidos, sendo eles pessoas, animais, seres sobrenaturais ou coisas. No que tange à aplicação das teorias etnológicas à Arqueologia, os materiais arqueológicos, como os vasilhames e as próprias estatuetas cerâmicas podem ser interpretados como corpos humanos ou de animais, uma vez que muitos deles possuem traços da corporalidade física desses seres, como os olhos e boca, sendo alguns, 243 Alexandre Guida Navarro inclusive, dotados de alma e consciência podendo ser agenciados como pessoas (SANTOS GRANERO, 2012; BARRETO, 2014). Nesse sentido, o corpo é o lugar da experiência vivida, que é compartilhada pelo grupo, gerando identidades sociais, pois “Today, the body as a site of lived experience, a social body, and site of embodied agency, is replacing prior static conceptions of an archaeology of the body as a public, legible surfasse” (JOYCE, 2005, p. 139). Resultados e discussão Os sítios pesquisados que sofreram intervenção a partir de coleta de superfície foram Armíndio (ARM), Boca do Rio (BR), Caboclo (CAB), Lago do Sousa (SOU), Cabeludo (CBL) e Formoso (FOR), localizados na bacia hidrográfica do rio Turiaçu e o último foi encontrado na bacia do Mearim-Pindaré. Todos estes sítios estão datados entre 800 e 1000 AD, sendo o Lago do Souza uma exceção, datado do início da era cristã. Ao todo, portanto, o corpus de estatuetas apresentadas neste artigo corresponde a 74 exemplares, sendo 62 antropomorfos, quatro antropozoomorfos e oito zoomorfos. Com relação à metodologia de coleta de superfície, à medida em que os esteios eram mapeados e georreferenciados, os objetos ao redor dos esteios eram também coletados, para que se formasse uma coleção arqueológica. Desse modo, se poderia estudar a variabilidade artefatual desses 244 Mulheres encantadas e os lagos mágicos assentamentos, buscando criar quadros hipotéticos de ocupação do território, de inserção na paisagem e das formas dos vasilhames cerâmicos, com o intuito de inferir os usos sociais (NAVARRO, 2017, 2018a, 2018b; NAVARRO; SILVA JÚNIOR, 2019) (Figura 3). Figura 3: Coleção de estatuetas do LARQ-UFMA. Acervo LARQ-UFMA. Embora esses artefatos não tenham sido obtidos a partir de escavações estratigráficas, há o controle da procedência e do local exato do registro da planta do sítio, o que pode oferecer subsídios de 245 Alexandre Guida Navarro análise comparativa entre os sítios arqueológicos, por meio das diferenças e das semelhanças da variabilidade desse tipo de artefato. Isso também ocorre na maioria dos casos das coleções de estatuetas estudadas pelos diversos pesquisadores apresentados neste texto, o que, portanto, não impossibilita as análises. Ressalta-se, pelos motivos já descritos, a inviabilidade da descrição de todos os atributos da variabilidade artefatual. Somente aqueles elementos diagnósticos de maior destaque tiveram ênfase neste trabalho. A partir da discussão sobre a arqueologia do corpo, a descrição contemplou: 1) a variabilidade artefatual tecno-estilística de cada conjunto identificável pelo; 2) tipo de manufatura, com alusão ao tipo de queima, se acordelado, alisado, moldado ou modelado, se oco ou compacto; 3) características técnico-tipológicas, como os tipos de antiplásticos, se há presença de incisão e excisão, de pintura e demais elementos constitutivos da peça. A revisão da literatura acerca das estatuetas amazônicas e a análise tecno-tipológica e tecno-estilística das estatuetas das estearias revelam que o corpo parece ter sido um lugar de experimentação social (JOYCE, 2005). A maioria das estatuetas figura o sexo feminino e possui características peculiares no que tange aos aspectos tecno-tipológicos, como os olhos aplicados em forma de botão, a recorrência do rosto zoomorfo de coruja e as panturrilhas deformadas pelo uso de adornos 246 Mulheres encantadas e os lagos mágicos corporais. Chama a atenção a variabilidade desses diferentes modos de fabricação corporal, que podem ser deformados, metamorfizados, escarificados ou, ainda, pintados. Sendo assim, essas características fazem das estatuetas das estearias uma forma inédita de figurar o corpo na porção oriental da Amazônia. Os elementos de figuração corporal que se assemelham aos povos da fase Marajoara parecem pertencer a um conjunto de práticas de sociabilidade compartilhada. Conforme ressaltou Barreto (2014), fluxos estilísticos são decorrentes dessas redes de esferas de interação social. Provavelmente, tanto os povos da fase Marajoara como os das estearias estavam inseridos em redes de sociabilidade comuns, uma vez que também compartilharam objetos de pedras verdes, como os muiraquitãs. Um exemplo deste fluxo estilístico poderia ser o modelado em forma de T, que aparece na região da sobrancelha e do nariz das figurações humanas, recorrente nas estatuetas de urnas funerárias Marajoaras e em alguns exemplares das estearias. Segundo Mikkola (2020), o T seria o disco facial da espécie Pulsatrix perspicillata, ou murucututu, uma das maiores aves de rapina da Amazônia. A sua principal característica corporal em comparação às demais espécies de corujas é a ausência de grandes orelhas. Trata-se de uma coruja de grande porte, predadora de hábitos noturnos, segundo este pesquisador. Observa-se que, neste tipo de estatueta, a figuração das orelhas também está ausente (Navarro, 2020). Assim, 247 Alexandre Guida Navarro essa semelhança entre a cultura material de ambas as regiões se refere às interações sociais existentes entre estes dois povos ameríndios. Além disso, alguns exemplares, como os evidenciados nas estatuetas CBL 104 e ARM1 407 possuem um coque atrás da cabeça que é parecido com aquele usado pelos indivíduos figurados em urnas funerárias Maracá (MEGGERS; EVANS, 1957). Embora mais tardias, a figuração das urnas Maracá pode indicar que os povos das estearias participaram de fluxos estilísticos mais amplos no baixo Amazonas. A análise formal possibilitou fazer as seguintes comparações: as estatuetas antropomorfas representam 83,7% da coleção, geralmente, apresentando mulheres com a figuração do sexo, sendo alguns desses objetos chocalhos. As estatuetas antropozoomorfas correspondem a 5,4% dos exemplares e evidenciam, em geral, o ser humano com cabeça de coruja; e também são chocalhos e nem sempre trazem a representação do sexo. Já os exemplares zoomorfos correspondem a 10,8% da coleção e destacam-se pelas figurações de coruja e macaco. Esta análise propiciou vislumbrar quatro tipos de fabricação do corpo: 1) figuração humana individualizada; 2) figuração humana com pintura corporal, escarificações ou tatuagens e deformações corporais nas pernas pelo uso de adornos do tipo jarreteira; 3) figuração transmutacional do corpo, evidenciada pelo hibridismo corporal entre 248 Mulheres encantadas e os lagos mágicos seres humanos e animais, e capacidade agentiva das estatuetaschocalho; e 4) figurações zoomorfas. Com relação ao primeiro tipo, as estatuetas com figuração humana que não remetem a características metamorfóricas e agentivas parecem figurar seres individualizados na sociedade palafítica, assim como também constatou Barreto (2014) e Schaan (2001a), com base nas estatuetas marajoaras. Por outro lado, o exemplar FOR (0601) apresenta pintura corporal abstrata em cor preta, que pode se referir a status sociais, como o pertencimento a determinados clãs, aos tipos de rituais ou, ainda, ao pertencimento a grupos sociais específicos (SCHANN, 2001a; MÜLLER, 2000) (Figura 4). Essa forma de figurar o corpo refere-se também a um sistema de comunicação visual que evidencia a socialização dele em práticas culturais de uma determinada coletividade (VIDAL, 2000b). Já em relação ao segundo grupo, chamam a atenção alguns exemplares com uma deformação intencional nas pernas, possivelmente pelo uso de jarreteiras (Figura 5). A partir da comparação etnográfica, durante os rituais da menarca entre os Kalapalo, um grupo Karib, as meninas têm os tendões abaixo do joelho amarrados, provocando o aumento de volume da perna. Formam-se, então, bulbos em suas panturrilhas na fase da puberdade, provocando uma estética agradável para esse grupo indígena (LIMA, 2011). 249 Alexandre Guida Navarro Figuras 4 e 5: Reprodução da pintura corporal do fragmento FOR (061) e jarreteiras presentes nas pernas das estatuetas. Fonte: acervo do LARQUFMA. Este modo de figurar o corpo nas sociedades amazônicas é construtivista, como bem lembrou Santos-Granero (2012). Nesse sentido, possivelmente, o significado do conjunto destas estatuetas é o xamânico, assim como pontuaram Roosevelt (1988), Gomes (2001), Schaan (2001a, 2001b) e Barreto (2014, 2017) para as estatuetas amazônicas em geral. Logo, o xamanismo é um “... sistema coherente de creencias y prácticas religiosas, que trata de organizar y explicar las inter-relaciones entre el cosmos, la naturaliza y el hombre” (REICHEL-DOLMATOFF, 1988, p. 23). O xamã, nesse contexto, é quem tem um conhecimento sensível das ações humanas sobre a natureza, como os curandeiros e rezadeiros que, a partir das tradições 250 Mulheres encantadas e os lagos mágicos mitológicas, atuam sobre os cosmos através de danças, cantos e reuniões coletivas, momentos em que essa narrativa se consagra e se perpetua na memória social do grupo. Práticas xamanísticas com estatuetas foram registradas por Basso (1973), entre os grupos Karib e Arawak; para os mesmos grupos, Carneiro (1982) e Gregor (1977) etnografaram o uso de estatuetas para o reestabelecimento da saúde do enfermo. Stahl (1986) atribui a hibridez de seres humanos e animais das estatuetas xamânicas aos rituais com uso de substâncias alucinógenas que presenciou na América do Sul, uma vez que “... the figurines may hav served as mundane abodes for summoned spitits within the contexto of an analogous prehistoric religion” (STAHL, 1986, p. 146). As estatuetas-chocalho, por sua vez, possuem bolotas de argila em seu interior, sugerindo o uso como maracás. Zerries (1981, p. 11) assinala que o maracá sempre foi o instrumento xamânico mais importante nas culturas das terras baixas da América do Sul não andinas, uma vez que “... el ruido de las piedritas o semillas en su interior es interpretado como la voz de los espíritus y las piedras e sí como su manifestación”. O maracá, portanto, faz parte da parafernália xamânica porque é capaz de emitir som, forma de comunicação presente entre os diferentes mundos onde o xamã atua. Esses instrumentos sonoros estão presentes em grande parte dos registros etno-históricos do período colonial na região do Maranhão, a exemplo das obras de Daniel (2004), D’Abbeville (2008 [1614]) e D’Évreux 251 Alexandre Guida Navarro (2007 [1864]), e também foram etnografados por antropólogos do início do século XX (NIMUENDAJÚ, 1941), como observam alguns relatos, por exemplo o que segue, neste caso, entre os Tupi do Maranhão: Para dançar usam apenas a cantoria. Para observar a cadência e marcar o compasso, usam um instrumento ou chocalho chamado maracá; é feito de um fruto pequeno, alongado e semelhante a um melão de tamanho médio, mas inteiramente liso; esse fruto cresce na região, e dentro dele colocam os índios inúmeros grãozinhos pretos e muito duros (D’ABBEVILLE, 2008 [1614], p. 237). Em uma análise feita por meio de microscópio de varredura RAMAN, pôde-se perceber que, dentro da estatueta-coruja correspondente ao exemplar ARM1 454 foram colocadas sete pequenas bolotas de argila dentro de sua cabeça (Figura 6). Chama a atenção a forma de confecção do artefato. Obedecendo à tecnologia de modelado empregada, a colocação das bolotas de argila na cabeça do exemplar deveria ter ocorrido através da base da cabeça, que depois seria fechada. Mas a microscopia de varredura RAMAN mostrou que as bolotas foram introduzidas pela boca, após a base da cabeça ter sido selada. Por que a boca? Entende-se que esse processo não obedeceu à tecnologia esperada, e sim ao cognitivo, cuja boca é uma das expressões do poder xamânico, um tubo sinestésico por onde a energia viaja. Desse modo, o poder de cura se dá também pela fala do xamã. Nesse sentido, sobre os pajés no Maranhão colonial, D’Évreux (2007 [1864], p. 237) relatou que “. . . seu instrumento é somente a voz, tão estranha aos que não estão acostumados”. 252 Mulheres encantadas e os lagos mágicos Figura 6: Análise com RAMAN em estatueta evidenciando bolotas de argila em seu interior, colocadas pela boca. Acervo LARQ-UFMA. Conclusão Este texto apresentou uma análise das estatuetas das estearias maranhenses. A análise tecno-tipológica e os modos de fabricar o corpo das estatuetas dos povos das estearias revelaram uma história de longa duração, que começa no início da era cristã e se estende até o ano 1000. A partir de uma perspectiva arqueológica regional, apesar da semelhança com o modo de figurar estatuetas com os povos da fase Marajoara, aquelas das palafitas parecem constituir um estilo mais local e próprio. Nesse sentido, alguns traços compartilhados, como o modelado em forma de T na fronte de alguns exemplares, revelam 253 Alexandre Guida Navarro movimentos de fluxos estilísticos que estavam operando entre esses grupos. Tais traços possivelmente não se restringiram à ilha de Marajó e parecem estar presentes também em uma esfera de interação social entre diversos povos indígenas que ocuparam o baixo Amazonas. Os sítios de estearias parecem compreender uma sociedade homogênea do ponto de vista cultural e com identidade bem definida. Os elementos tecno-tipológicos e estilísticos apresentados, como a presença do antiplástico de caco moído em todos os exemplares estudados, ratificam essa unidade cultural, como vem afirmando Navarro (2018a, 2018b). Assim, o modo de fabricar o corpo entre os povos das estearias está em consonância com a ontologia cosmológica amazônica, que recai sobre o perspectivismo ameríndio e o animismo. A maioria das estatuetas pertence ao sexo feminino. Seus corpos podem ser pintados, intencionalmente deformados ou, ainda, metamorfizados. Nesse sentido, são fabricados de acordo com a agência da pluralidade de seres que atuam no cosmos, sendo eles humanos, não humano, híbridos e, ao que parece, também sobrenaturais, revelando a importância do xamanismo. Outrossim, a maioria das estatuetas da coleção do LARQUFMA é antropomorfa. Esses exemplares figuram seres individualizados, como as mulheres que possivelmente utilizaram adornos do tipo jarreteiras para deformar as panturrilhas. Assim como foi descrito pela comparação etnográfica, as mulheres Karib praticavam essa deformação corporal em rituais de puberdade. As 254 Mulheres encantadas e os lagos mágicos estatuetas antropozoomorfas parecem evidenciar processos de metamorfose corporal. As estatuetas-chocalho podem ter sido utilizadas em rituais xamânicos de cura, assim como também revelou a analogia etnográfica. O som parece ter tido um poder agentivo importante. Já as estatuetas híbridas, com traços humanos e não humanos, também podem evidenciar os modos transmutacionais de figurar o corpo de diferentes seres que povoaram distintos mundos, as quais podem aludir à própria transformação corporal do xamã para alcançar essas esferas a partir do uso de alucinógenos. Finalmente, a variabilidade artefatual composta pelas estatuetas dos povos das estearias parece figurar os traços identitários que foram fabricados no corpo, local da vivência social. Nesse sentido, as estatuetas femininas legitimam a história das memórias coletivas dos lagos mágicos e encantados do Maranhão. Agradecimentos Gostaria de agradecer à minha maior incentivadora para escrever este artigo, a Profa. Dra. Anna C. Roosevelt, da University of Illinois at Chicago. À Dra. Flávia Marquetti pelo convite para participar da obra. Agradeço ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), pela autorização e pelas renovações da coleta arqueológica, através do processo 01494.000442/2013-37. A Fullbright Commission, pela bolsa concedida na modalidade Visiting 255 Alexandre Guida Navarro Professor Award, na University of Illinois at Chicago. Às instituições onde pesquisei: Smithsonian Institution (Washington), Penn Museum (Filadélfia) e American Museum of Natural History (Nova York), onde pude consultar as estatuetas marajoaras e santarenas. À Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Maranhão (FAPEMA), pela concessão de diversos editais que fomentaram as pesquisas das estearias. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de produtividade (processo 303620/2021-8). Ao Prof. Dr. Heimo Mikolla, zoólogo da University of Eastern Finland, quem me ajudou na identificação da espécie Pulsatrix perspicillata, que figura várias estatuetas zoomorfas e antropomorfas. Aos Profs. Drs. Taran Grant e Miguel Trefault, zoólogos da Universidade de São Paulo (USP), pela análise de varredura em microscopia RAMAN. Ao museólogo Helder Bello de Mello (LARQ-UFMA), pelo zeloso trabalho de catalogação das peças. À Mayara Dias, colaboradora do LARQ-UFMA, pelo esmero no trabalho de diagramação das estatuetas. Referências ANTCZAK, M. M.; Antczak, A. Los ídolos de las islas prometidas. Caracas: Universidad Simón Bolívar/Editorial Equinoccio, 2006. BARRETO, C. Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga. Tese de Doutorado em Arqueologia defendida na Universidade de São Paulo (USP), 2009. BARRETO, C. Corpo e identidade na Amazônia antiga: um estudo comparativo de estatuetas cerâmicas. 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Neste capítulo, discuto o uso de amuletos egípcios antigos para o ensino fundamental e médio e para o público em geral. Começo por inserir a magia no contexto da religiosidade, para chegar aos amuletos. Em seguida, discuto como os amuletos em acervos podem estar a serviço da educação e do convívio, a partir da Arqueologia Pública e da Educação Pública. A partir do acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), apresento quatro amuletos por sua relevância e ubiquidade: ankh (vida), djed (coluna vertebral da vida), escaravelho e olho de Hórus. Apresento as particularidades criativas desses amuletos e mostro como podem ser usados no ensino formal e informal, por meio de atividades lúdicas, para propor o convívio, frente à destruição. Concluo por tornarmos os amuletos vivos para a cooperação e o convívio frutífero. Licenciada em História pela Faculdade de Filosofia de Belo Horizonte (1986), mestre (2004) e doutora (2008) em História também pela Unicamp, em curso de excelência. Atualmente é líder do Grupo de Pesquisa do CNPq, cadastrado na Unicamp, sobre Ensino de História, pós-doutora também no Departamento de História da UFPR (2017/19), sob supervisão da Profa. Dra. Renata Senna Garraffoni. Pós-doutorado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), desde 10/03/2021, sob supervisão de Vagner Carvalheiro Porto. 1 263 Raquel dos Santos Funari Religiosidade, magia, amuletos Como tratar da magia na sala de aula? As crianças sempre estão ávidas pelo tema, a família nem sempre: sem família e comunidade o ensino encontra obstáculos às vezes intransponíveis. Isso é tanto mais válido, quanto a magia, no senso comum, pode vir carregada de preconceitos, confundida com a magia negra: Prática na qual se invoca a intervenção dos espíritos maus, principalmente do demônio, para causar o mal a outrem (Dicionário Michaelis, 2022). Ou feitiço, de acordo com o Houaiss (2001): Utilização de hipotéticas forças mágicas, com finalidades divinatória e intenções malfazejas. Nessas definições, aparecem conceitos como espíritos maus e demônio, que podem ser relacionados a passagens bíblicas como esta: E desceu a Cafarnaum, cidade da Galiléia, e os ensinava aos sábados. E admiravam a sua doutrina porque a sua palavra era com autoridade. E estava na sinagoga um homem que tinha o espírito de um demônio imundo, e exclamou em alta voz, Dizendo: Ah! que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste a destruir-nos? Bem sei quem és: O Santo de Deus. E Jesus o repreendeu, dizendo: Cala-te, e sai dele. E o demônio, lançando-o por terra no meio do povo, saiu dele sem lhe fazer mal. E veio espanto sobre todos, e falavam uns com os outros, dizendo: Que palavra é esta, que até aos espíritos imundos manda com autoridade e poder, e eles saem? E a sua fama divulgava-se por todos os lugares, em redor daquela comarca (Lucas 4:31-37, Tradução Almeida, 2009, corrigida). A associação com o Egito Antigo também está explicitada no Êxodo: 264 O uso da magia egípcia no ensino Então Moisés e Arão foram a Faraó, e fizeram assim como o Senhor ordenara; e lançou Arão a sua vara diante de Faraó, e diante dos seus servos, e tornou-se em serpente. E Faraó também chamou os sábios e encantadores; e os magos do Egito fizeram também o mesmo com os seus encantamentos. Porque cada um lançou sua vara, e tornaram-se em serpentes; mas a vara de Arão tragou as varas deles (Êxodo 7:10-12, Tradução Almeida, 2009, corrigida). Neste contexto, antes de chegar a como tratar dos amuletos mágicos egípcios antigos, é necessário introduzir estudantes e familiares ao tema. Sem isso, corre-se o risco de rejeição ou mesmo hostilidade, não só contraproducente, como mesmo deletéria, ao reforçar preconceitos ou estereótipos e ao dificultar o convívio social da diversidade de ideias e comportamentos. Convém começar com os termos mais difundidos: fé e crença, de onde fiéis e crentes, as palavras mais usadas pelas pessoas. Ambas se ligam à confiança, fé (fides, em latim, fidelidade), fiel (confiante), crença (credo, em latim, dou o coração, confio, creio), crente (o confiante). Esses conceitos referem-se, na origem e no dia-a-dia, à relação entre seres humanos, a sentimentos necessários para que as pessoas possam conviver. A confiança na palavra dada, no comportamento prometido, no respeito contratado está na base da vida humana em sociedade. Como já propunha Aristóteles (Política, 1, 1253, 9-10), o ser humano é um animal político, que vive na cidade (pólis), convive, o que depende, de forma direta, da confiança. Destes sentidos humanos, resultantes dos laços sociais, a confiança pode ser transposta a divindades, espíritos, 265 Raquel dos Santos Funari forças. Neste aspecto, pode dizer-se que a fé ou crença em relações extra-humanas está em direta correspondência com a confiança social. Esta observação inicial é importante, para mostrar que todos somos fiéis e crentes, que esses são sentimentos humanos universais. A esses conceitos básicos e de uso cotidiano, fé e crença, outros são também bem conhecidos e usados, mas de sentidos mais ambíguos: religião, denominações religiosas ou mesmo igreja. Religião é o mais amplo e vago, do mais específico (ordem religiosa beneditina) ao mais genérico (a democracia é sua religião). Denominação religiosa é um termo meio técnico: luterano, anglicano, católico romano. Igreja é tão vago quanto preciso: minha igreja é tal (El shaddai) ou qual (Universal do Reino de Deus), mas também bem genérico (não faço parte de nenhuma igreja). Essas são as palavras usadas, no dia-a-dia, por estudantes e famílias, são esses os conceitos com os quais estudantes e professores devem interagir. Frente a essa variedade de termos e definições, em potencial conflitivas, religiosidade pode induzir à convivência. O conflito pode advir da contraposição entre religiões (cristãos, judeus, muçulmanos), entre denominações (católicos e luteranos) e igrejas (trotskistas e anarquistas). Aí pode entrar um conceito desestabilizador: religiosidade. Religiosidade é um conceito distante do uso quotidiano, é um neologismo, como se dizia, um termo inventado e de não tão grande difusão. Hoje, religiosidade tem sido utilizada em campos tão variados 266 O uso da magia egípcia no ensino como a Psicologia, a Filosofia, a História ou a Arqueologia e a Educação, como uma maneira de ser tanto individual, como não institucional. Individual, na medida em que num mundo de indivíduos, como o nosso, a espiritualidade e as crenças podem expressar-se fora de contextos institucionais, de igrejas, partidos ou outras associações de compartilhamento de ideias e rituais. Há certa concorrência ou sobreposição dos conceitos próximos: religiosidade e espiritualidade. Ambas compartilham os atrativos de certa falta de precisão: são sentimentos subjetivos (PELLINI; ZARAKIN; SALERNO, 2015) em relação a como o mundo e as pessoas interagem. Em certo sentido, então, tanto faz religiosidade ou espiritualidade. Se diferença se quiser fazer, espiritualidade pode ser relacionado ao espírito (sopro, a respiração dos animais vivos), enquanto religiosidade pode ser posto em relação com o conceito ainda mais genérico de “preocupar-se (lego) de forma reiterada (re)”. Se assim for, religiosidade pode ser um conceito útil, para tratar de tudo que preocupa, que leva a ações e pensamentos reiterados, a rituais. George Simmel (MOTAK, 2012) foi inovador, no final do século XIX, ao usar o termo religiosidade para tratar de sentimentos e ações reiteradas, muito além de denominações religiosas, dogmas ou afiliações: Religion does not create religiosity but religiosity creates religion (SIMMEL, 1898, p. 150), “a religião não cria a religiosidade, mas a religiosidade cria a religião”. 267 Raquel dos Santos Funari O termo religiosidade tem sido usado por estudiosos em diversas disciplinas, com definições variadas e mesmo contraditórias entre si, às vezes mais restrita a crenças em forças sobrenaturais, mas também para se referir a crenças de qualquer tipo, como são as convicções políticas. Esse amplo espectro de sentidos permite compreender melhor crenças, em geral, e aquelas de uma sociedade antiga como a egípcia. Tanto pode dar conta da diferença entre egípcios antigos e pessoas, hoje, como estabelece bases para a necessária empatia. Os egípcios eram diferentes, mas, hoje, somos também mais diferentes uns dos outros do que se costuma dar conta, algo de particular relevância para tratar com estudantes e familiares. Religiosidade pode ser útil para facilitar a compreensão de que a crença é algo humano e, portanto, universal, mas sempre de maneira específica, cultural e contextual. Em grupos humanos agnósticos ou ateus, a crença continua presente na forma de crença na humanidade, na natureza, na amizade, no progresso, no comunismo ou no que quer que seja. Neste sentido, aqueles que constatam a morte de Deus não deixam de crer (HANEGRAAF, 2003). No contexto da religiosidade, pode tratar-se da magia, tema precoce na Antropologia com os estudos e Hubert e Mauss (2005, or. 1902) e de Malinowski (2014, or.1925), sempre estudado (MIRECKI; MEYER 2002; MIRECKI, 2015), mais atual do que nunca (DAVIES, 2012; GOSDEN, 2012; 2020). A magia é um termo indo-europeu cuja 268 O uso da magia egípcia no ensino raiz indica “ser capaz”, “poder”, “ajudar”. Os egípcios antigos (BAKOS, 2018; GRALHA, 2009) partiam de outra percepção: heka (BRITANNICA, 2018). Aí, dois aspectos devem ser ressaltados: a presença de Ka (a força da vida) e o poder da palavra falada (RIBEIRO, 2018). Daí que seja uma força cósmica (FUNARI, 2011), na própria origem de tudo que foi criado pela sua nomeação, à semelhança do que está no livro do Gênesis: criar é falar com a força da vida. Assim, heka pode ser entendida como algo inteligível, análogo ao hebraico bíblico, mas diferente e único. A interpretação de heka como magia por hebreus e gregos indica aspectos comuns, mas também diferentes e nem sempre bem entendidos por outros povos e culturas (DAVID, 2002). Há uma diferença importante: heka é uma força criativa e protetiva da ordem cósmica, magia podia ser considerada, ao contrário, força com potencial destrutivo (RIGGS, 2021). Heka estava presente em rituais, unia pensamento, ação, imagem e poder. Esse conceito é necessário para que se possa entender os amuletos egípcios e o poder da palavra, implícito na expressão oral do que está representado no amuleto (LECOUTEAUX, 2014). O termo amuleto é de origem incerta, mas não parece estar relacionado ao termo egípcio antigo sa (ANDREW, 1994), grafado com um hieróglifo que parece ter origem em uma cabana (HERRMAN; KEEL; STAUBLI; 2010), um abrigo ou, então, como uma corda atada. O conceito já está em relação com proteção 269 Raquel dos Santos Funari (CLAZILLI, 2012) e talvez possa ser relacionado ao hebraico hasa (correr para proteger-se, daí ter esperança ou confiar; GERMOND, 2005). Ambos os idiomas, egípcio antigo e hebraico, fazem parte de um mesmo grupo linguístico, das línguas afro-asiáticas ou hamitosemíticas (SHAW, 2000). Sal (ZUCCONI, 2007; TEETER, 2011) é aquele que lida com a proteção, daí a tradução como mago, feiticeiro, bruxo, mas também médico mágico (ARAB, 2004; ROCCATI, 2017). Esses aspectos protetivos devem ser bem esclarecidos, para que se possa entender os sentimentos envolvidos em amuletos (KOLTA; SCHWARZMANN-SCHAUFHAUSER, 2000). Os amuletos egípcios uniam símbolos, como hieróglifos (sa) e imagens (ROCCATI, 2017), como o escaravelho. As mensagens escritas, ao serem lidas em voz alta, intensificavam o efeito mágico. Embora poucos fossem capazes de ler, quando da confecção do amuleto o texto mágico devia ser decorado e repetido em voz alta, de modo que era, assim, de conhecimento geral. Esse é outro aspecto a ser ressaltado, pois, às vezes, se associa a magia a algo secreto, o que não era o caso, aqui. Os amuletos (RAVEN, 1991) podiam vir com textos ou apenas com símbolos, com múltiplas referências a divindades e a diversos atributos e valores. Os mais recorrentes referem-se à vida e seus aspectos, como o renascimento recorrente, a cada dia (dia e noite), a cada semana (ciclos da lua), a cada estação do ano, a cada ano. Vida e 270 O uso da magia egípcia no ensino morte, esta como parte do ciclo da vida, esse o princípio mais recorrente e que podem ser dos mais férteis para interagir com estudantes, familiares e com todas as pessoas. Amuletos em acervo, a serviço da educação para o convívio Armazena-se uma infinidade de artefatos arqueológicos, dentre os quais amuletos (BOSCHUNG; BREMMERM, 2015), a imensa maioria em depósitos, não em exposição. Há recomendação por parte tantos dos órgãos patrimoniais, como educacionais, no mundo e no Brasil, no sentido de tornar público o material arqueológico conservado em museus e outras instituições de guarda. Isso se explica pela crescente tomada de consciência da importância de divulgar, ou ainda mais, permitir a interação da ciência com as pessoas em geral. Desde o final do século XX, surgem disciplinas voltadas para isso, como no caso da Arqueologia Pública. Antes, já existiam Arqueologia e educação, atividades práticas para o público (hands-on activities) que acabou por juntar-se a outras diversas abordagens no que viria a ser chamado de Arqueologia Pública. Do lado da Educação, a abertura para a Arqueologia é antiga, em particular em atividades extra-classe, como nas visitas a sítios arqueológicos. Quem não se lembra de uma saída para conhecer um sítio ou museu? Nem todos os museus são arqueológicos, mas poucos deixam de ter a cultura material como 271 Raquel dos Santos Funari parte da sua atração e, neste sentido, incluem a Arqueologia, como museus de arte, mas mesmo de ciências, medicina ou biologia, que incluem artefatos antigos, arqueológicos. Essas tendências acentuaram-se, também, desde as últimas décadas. Mencione-se, ainda, a Educação Pública, entendida como Educação formal e informal, de modo a atingir a crianças e a adultos, na escola ou fora dela. A Arqueologia, o mundo concreto e material, é imbatível como instrumento didático, na sala de aula ou fora dela. O Egito Antigo é, mais ainda, atrativo e os seus amuletos (BUDGE, 1930), como veremos a seguir, nem se fale. O acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo custodia um acervo de amuletos egípcios (DIELEMAN, 2015) e, neste capítulo, apresentarei apenas quatro dos temas presentes e que têm não só potencial, mas já produzem resultados criativos com crianças e público em geral: ankh (vida), djed (coluna vertebral da vida; FILLER, 2007), escaravelho (DEVANCHELLE, 2003) e olho de Hórus, estes dois últimos associados à vida, via renascimento, como veremos. Antes de tratarmos de cada um desses quatro símbolos, mencionemos, de forma breve, os métodos, de como levar as pessoas, as crianças em primeiro lugar, a refletir e agir. Método significa “caminho por meio do qual” se pode chegar a algum lugar. Neste caso, para mostrar o imenso potencial educativo dos amuletos egípcios antigos para a convivência. 272 O uso da magia egípcia no ensino Esses caminhos passam pelo jogo, pela brincadeira. Hoje, com a imensa importância dos jogos virtuais, fica evidente o papel do lúdico, que pode ser usado tanto para instruir, como para destruir. Não importa, ou melhor, o que importa é constar a importância da brincadeira e do lúdico para o engajamento de crianças e adultos. O lúdico, a brincadeira, liga-se, em termos biológicos, ao aprendizado: serve para aprender a como enfrentar os desafios do mundo e, ao mesmo tempo, isso só pode acontecer se houver uma certa recompensa, um prazer. Brincar é aprender, como diz Tânia Ramos Fortuna (2018). Há, entre as atividades lúdicas, as bem conhecidas, como caça-palavras, palavras-cruzadas, jogo de questões, entre outros, associados, agora, a atividades e práticas digitais ou virtuais. Cada vez mais importante, atividades lúdicas virtuais difundem-se, no mundo e no Brasil. O Laboratório de Arqueologia Romana Provincial da Universidade de São Paulo, LARP-USP, no qual atuo, hoje, em 2022, destaca-se nisso também. O tema foi por mim tratado em diversos artigos, capítulos e livros, aqui cabe apenas lembrar que cada brincadeira pode servir para educar. O sinal e o conceito de ankh, a vida, é antigo e persistente. Já presente desde a Primeira Dinastia, no quarto milênio a.C., usa-se o sinal de um nó com laço, à semelhança de algo usado para fixar as sandálias no pé; outra hipótese seria associar à imagem de uma vértebra torácica de um bovídeo. Como todos os conceitos abstratos 273 Raquel dos Santos Funari ou genéricos, objetos concretos serviam para uma abstração como a vida. A persistência pode ser relacionada à cruz ansata dos cristãos coptas egípcios. A raiz tri-consonantal a-n-h (ankh) significava vida, estabilidade, prosperidade, como substantivo, e, como verbo, viver, em provável ligação com a respiração, o sopro (BUDGE, 1920, p. 124). O termo era usado em inúmeras expressões quotidianas, do tipo “esteja bem” e estava presente em nomes próprios, como Tutancamon (imagem viva de Amon). A vida, para além de um sopro, era considerada uma força primordial, como manifestação em tudo que vive. Na tumba, o morto podia esperar o sopro de vida de ankh, na forma de amuletos. Djed, o segundo conceito tratado aqui, é mais concreto na origem, significa coluna ou pilar, ao representar a estabilidade, o que permite a segurança. Num lugar sem árvores, como às margens do Nilo, um tronco, com o tempo, foi, também, associado à coluna arquitetônica. O sentido de sustentar (GARDINER R 11), apoiar é fundamental, daí a ressurreição (FILLER, 2007). Djed dá continuidade ao sentido de ankh como vértebra toráxica, ao poder significar o osso grande e triangular localizado na base da coluna vertebral, símbolo também associado ao osso sacro de Osíris (BUDGE, 1920, p. cxxiii). O mito de Osíris, já presente em ankh (vértebra) é reapresentado aqui. Osíris é um mito da ressurreição ou renascimento por excelência e de ressonância universal, em partição nas religiões abraâmicas 274 O uso da magia egípcia no ensino (Judaísmo, Cristianismo, Islam). Há muitas versões e detalhes, mas convém reter apenas os dados mais gerais: Osíris é morto, de forma injusta, mas ressuscita, ao vencer a morte e a injustiça. Os detalhes são muitos, divergentes, mutantes, no tempo, mas esse é o esquema básico, que remonta, como em outras crenças, ao ciclo da agricultura (MORENZ, 2013). A cada ano, sucedem-se as estações, entre semeadura (vida) e colheita (morte), que se sucedem, como pais e filhos, e tudo o mais. Antes mesmo da agricultura, nos milhões de anos de caçadores e coletores, sem o ciclo anual das plantas domesticadas, havia a passagem da morte à vida, da vida à morte: de geração a geração, mas também de animal morto e comido, a animal vivo (PÉREZ, 2018). Isso pode ser observado em tribos atuais nas quais se comem os pais de diversos animais e adotam-se os filhotes como membros da família, como mostra Gustavo Politis (1995). O escaravelho, hepper, deriva da raiz hpr, criar (BUDGE, 1920, p. 542), talvez relacionado à raiz semítica para cavar. O escaravelho, kheper, como verbo significa ser, estar, existir, surgir, acontecer, formar, criar, moldar-se. Vir a existir é uma tradução corrente, a mostrar a imensa potência do besouro. Havia, pois, uma associação entre o bicho escaravelho e a formação da vida, o renascimento. Com o tempo, associou-se ao sol nascente, entre outras, mas o princípio básico era sua força desproporcional a seu tamanho, a brevidade da sua vida individual, mas sua continuidade como espécie. 275 Raquel dos Santos Funari O besouro era a forma mais usada em amuletos egípcios, no correr dos milênios. Por isso mesmo, predominam nos acervos mundo afora. Por meio do comércio, já na antiguidade, escaravelhos egípcios eram utilizados da Mesopotâmia ao Mediterrâneo Oriental e mesmo Ocidental, como a Península Ibérica (MARTÍN RUIZ, 2017), com imitações gregas e etruscas. Era comum a presença de asas de pássaro junto ao besouro, articuladas ao escaravelho, de modo a incrementar o sentido de ressurreição (BUDGE, 1920, p. cxvii; 275). Os egípcios associavam a ação de fazer rolar bolas de esterco pelos besouros ao movimento do sol (deus Rá), que seria empurrado pelo escaravelho. Impressionante o êxito desse símbolo de algo tão humilde e corriqueiro, não só no Egito, mas muito além. O olho de Hórus (utchait) (BUDGE, 1920, p. cvi; 194), também olho de Rá, amuleto que fortalece é outro muito frequente e retomado, hoje, pela facilidade de compreensão, ao representar um olho, direito (sol, força, daí proteção) ou esquerdo (lua, cuidado, daí também proteção). A forma apresenta ainda uma silhueta que lembra o falcão, associado ao deus Hórus. Heru é o nome do falcão (BUDGE, 1920, p. cxiv), daí do deus Hórus, Falcão. Na mitologia egípcia, aparece como aquilo que está no céu, sol e lua, dia e noite, o lugar da vida, frente ao deserto (deus Set) (BUDGE, 1920, p. civ; cxi), personificação de tudo de ruim, ainda que não só isso e de forma ambígua, sendo Set também a vida em meio ao deserto. No mito, 276 O uso da magia egípcia no ensino Hórus perdeu seu olho esquerdo em uma luta com Set, para tê-lo restaurado, de forma mágica, pela deusa Hátor, a simbolizar, assim, a restauração e a cura. Hátor, apresentada como uma vaca, mas cujo nome, Hether (BUDGE, 1920, p. 455), significa “casa de Hórus (ou do Falcão)” apresenta diversos aspectos, em particular em torno da fertilidade ou maternidade e do amor. A popularidade desse símbolo também se deve à facilidade de sua compreensão, o olho, e de suas muitas conotações, que vão da vigilância à atenção e ao cuidado. Os amuletos egípcios com esses quatro símbolos mágicos fornecem oportunidades para tratar, no ensino formal e informal, de temas perenes, nem sempre associados à magia: vida, renascimento, cuidado e proteção. A componente curricular História, neste aspecto, fornece possibilidades várias, para atividades lúdico educativas. Pode discutir-se, primeiro, como a magia pode servir à vida, em contraste com a reiterada noção do senso comum que a identifica apenas com maldições. Reserva-se toda a conotação positiva da mágica em grande parte ao seu lado fraco e metafórico, como em “a mágica de um parque de diversões”. Em segundo lugar, os amuletos egípcios permitem tratar da relação entre a materialidade e a espiritualidade ou subjetividade, se preferirmos outro termo. A Arqueologia adquire, aqui, a sua relevância para a educação lúdica. Os amuletos egípcios antigos servem para o jogo comparado com outros objetos símiles em outras épocas e culturas, a começar do presente conhecido pelos 277 Raquel dos Santos Funari estudantes, como são as simpatias de conhecimento e uso geral. Em seguida, há que usar outros momentos históricos nos quais a magia está presente, com destaque, no estudo histórico escolar, como na Inquisição ou na caça às bruxas, nos séculos passados ou mesmo ainda hoje. Por fim e para além da História, pode colocar-se em interação com outras disciplinas, com destaque para a literatura e as artes, nas quais a magia está sempre presente. O mesmo pode ser dito da Filosofia, Matemática e o estudo das religiosidades, como atestam Pitágoras, a astrologia ou a cabala, entre outras. Esses amuletos podem inserir-se bem em atividades e dinâmicas interdisciplinares, multidisciplinares mesmo, sem esquecer, claro, os idiomas, pois há muito em inglês e espanhol, as línguas mais estudadas no ensino fundamental e médio. Os amuletos egípcios podem servir para o desenvolvimento do aprendizado sócio emocional, como parte integral da educação para o desenvolvimento humano. Este é um processo pelo qual jovens e adultos adquirem e aplicam o conhecimento, habilidades e atitudes para levar a cabo cosmovisões e comportamentos cooperativos, para controlar as emoções e atingir uma harmônica integração de objetivos individuais e coletivos, com empatia, ao manter e apoiar relações de apoio mútuo, ao adotar decisões responsáveis e cooperativas (JAGERS; RIVAS-DRAKE; BOROWSKI, 2018). Para isso, é importante envolver, na comparação entre os amuletos egípcios e os comportamentos, hoje, no Brasil, as práticas majoritárias, como as 278 O uso da magia egípcia no ensino católicas e evangélicas, mas também afro-descendentes, espíritas e, claro, também as ateias ou agnósticas. Para isso, mencionem-se os exvotos católicos, a glossolalia (falar em línguas angélicas) evangélicas, os búzios afro, as mesas brancas espíritas, o culto ateu coreano do Norte ao fundador da dinastia, que nunca sequer morreu! Neste caso, num país tão crente como o Brasil, melhor não citar um exemplo nacional. De todo modo, os amuletos egípcios servem para mostrar como o presente pode aprender muito com o passado egípcio, em particular no seu aspecto prospectivo. E isso pode ser feito de maneira tanto lúdica, quanto crítica. Lúdica, pois são atividades que estimulam o jogo, a brincadeira, a cooperação e a competição. Convém esclarecer que competir é uma atividade lúdica e construtiva, não sendo entendida como a competição destrutiva tão difundida nos dias de hoje pelos apologistas do capitalismo ou neoliberalismo, como se preferir designar. Conclusão: amuletos vivos O antropólogo indiano Arjun Appadurai contribuiu para difundir o conceito de “vida social das coisas” (APPADURAI, 1986). Tanto educadores como arqueólogos utilizam-se de conceitos semelhantes, para além do mundo das mercadorias analisado pelo estudioso asiático. Uma atividade didática como a construção de um jogo de percurso, por parte dos próprios estudantes, em grupos, mostra como papel, canetas e ideias podem transformar-se em um novo 279 Raquel dos Santos Funari artefato, o jogo, indutor de ação, a brincadeira, e de reflexão, já que para construí-lo e jogá-lo é necessário estudo de um tema. Também na Arqueologia passa-se do antes inexistente para algo vivo, no sentido de indutor de ações e reflexões, hoje. Antes de uma escavação, coisas estão inertes enterradas ou afundadas, se for na água. Quando trazidas à luz pela investigação arqueológica, passam a produzir efeitos no mundo atual. Como já mencionado, a grande maioria desse material arqueológico volta à inércia, quando armazenado em reservas técnicas ou depósitos, tendo o potencial de voltar à vida social numa exposição ou, como propusemos aqui, em atividades educativas. Os amuletos egípcios custodiados em instituições brasileiras voltam à vida social de maneira relevante, ao permitir o combate ao preconceito e ao ódio e ao favorecer a historicização de usos e costumes (GREENWOOD, 2020). São objetos de imediato entendimento (HOFFMAN, 2015), como o besouro ou os olhos, ou outros menos óbvios, mas nem por isso menos atrativos, como o ankh, sinal da vida, e o djed, a sustentação ou o apoio (JÖRDENS; HARRASSOWITZ, 2015). Vida, cuidado, apoio são valores importantes para a convivência e nem sempre associados à magia. As crianças constituem os futuros cidadãos e podem mudar o mundo nessa direção. Se os amuletos egípcios puderem contribuir para isso, terão mais uma vez se mostrado vivos e mágicos: frente à destruição a mágica do convívio! 280 O uso da magia egípcia no ensino Agradecimentos Agradeço ao Vagner Carvalheiro Porto, supervisor do PósDoutoramento na Universidade de São Paulo e menciono o apoio institucional do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). Agradecimento especial ao Pedro Paulo A. Funari e, também, às organizadoras Semíramis Corsi Silva e Flávia Regina Marquetti e, ainda, a Margaret Bakos, Júlio César Gralha, José Roberto Pellini e Andrés Zarankin. A responsabilidade pelas ideias restringe-se à autora. Referências Documentais ARISTÓTELES. Política. Tradução, introdução e notas de Maria Aparecida de Oliveira Silva. Apêndice com a tradução de Plutarco. Da monarquia, democracia e oligarquia. São Paulo: Edipro, 2018. ALMEIDA, J. F. 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Os personagens metamorfoseados nos mitos, ou encantados nos contos, geralmente são os que romperam ou transgrediram as normas de seus grupos sociais. Os mitos e os contos possuem um eixo comum, sendo o mito a base ancestral dos contos. Pode-se definir mito enquanto uma narrativa de significação simbólica, ou semi simbólica, na qual as partes constitutivas só possuem um verdadeiro sentido a partir de um processo de relação mútua. Entre as inúmeras definições dadas por Formada em Letras, Grego/Alemão pela FCLAr/UNESP, com Doutorado e Mestrado em Letras, Estudos Literários, pela FCLAr/UNESP, bolsista CAPES e FAPESP; Pós-Doutorado na área de Literatura e Teoria Literária pela UNESP/ FCLAR, bolsista FAPESP; Pós-Doutorado realizado junto ao NEE (Núcleo de Estudos Estratégicos) UNICAMP. Atualmente desenvolve pesquisa junto ao Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica – UNICAMP, e junto ao Grupo LINCEU, Visões da Antiguidade Clássica, da UNESP – FCLAr. 1 287 Flávia Regina Marquetti estudiosos ao conjunto de mitos de uma sociedade, a de Marcel Detienne em A escrita de Orfeu (1991, p. 113) é exemplar: “É no rumor, e somente nele, que se aloja o segredo da unanimidade profunda, das crenças mudas partilhadas em comum, da adesão inteira de uma cidade a princípios, as narrações fundadoras, a isso denominamos mitologia” Os contos maravilhosos ou folclóricos têm sua origem na tradição oral, muito anterior à sua transformação literária com Perrault. Tanto nos contos de Charles Perrault, quanto nos contos compilados pelos irmãos Grimm, há um traço de continuidade de velhas narrativas, que remontam aos mitos e às obras literárias da antiguidade clássica. Assim sendo, esses contos não eram voltados, especificamente, para as crianças, pois a denominação “contos de fadas” ou “contos infantis” é resultado de uma transformação ideológica ocorrida no final do século XVII, quando já se definiam as características sociais que levariam à Revolução Industrial. Oriunda da necessidade de perpetuar a ideologia dominante através da educação dos filhos, a burguesia viu na literatura infantil elaborada por Perrault a melhor forma de realizar o intento de conjugar os valores burgueses às raízes rurais. Tanto Perrault quanto os irmãos Grimm recorrem a fontes populares para comporem seus contos, Perrault, sob a máscara de Mamãe Gansa, reelabora as narrativas orais, muitas vezes deixando apenas um leve traço do relato original, adaptando-as aos interesses e valores da época. Já os irmãos Grimm vão buscar nas velhas senhoras, contadoras de histórias da 288 O Corpo encantado Alemanha, a fonte para suas publicações. A influência do Romantismo é sentida nos contos, pois muitos têm os seus finais alterados para finais felizes, ou têm cenas abrandadas, diminuindo a violência contida nos mitos/relatos originais. Alguns aspectos são bastante significativos, tanto nos mitos quanto nos contos, como os deslocamentos espaciais, marcando uma oposição entre o civilizado/cultural/cidade e o selvagem/natural/ campo; ou detalhes ligados à alimentação: fome/fartura, corpos deformados/corpos belos – indicando que o corpo, a partir da condição social: trabalhador/aristocrata2, leva a um julgamento de valor moral e a uma noção de perigo contida nesses corpos deformados antes ausente nas metamorfoses e/ou encantamentos da Antiguidade Clássica. Após o paganismo e o início da era cristã encontramos uma ambiguidade no discurso sobre o corpo, como apontam autores como Jacques Gélis (2010, p. 19-130) e Nicole Pellegrin (2010, p. 131-216). Nesta nova noção o corpo pobre, magro, sujo, deformado pelo trabalho braçal3 e, geralmente, habitando o interior das florestas é Embora os contos sejam escritos no século XVIII, estes mantêm enquanto valor a ser alcançado os princípios aristocráticos, que eram os almejados pela nova classe emergente e abastada, que possuía bens, mas não títulos de nobreza. Nos mitos, apenas a elite e os deuses são personagens, o silenciamento sobre a população pobre, escravos, trabalhadores diz muito sobre a ideologia do período Clássico. Portanto, não vemos corpos feios e sujos, salvo exceções, quando são heróis ou deuses disfarçados. 3 O trabalho foi desprezado pelos cristãos por ser consequência do pecado original, torna-se valor da sociedade com o crescimento econômico das cidades no período burguês, mesmo assim, os trabalhos braçais, mais desgastantes, eram tidos como ignóbeis (LE GOFF, 2002, p. 160). 2 289 Flávia Regina Marquetti visto como mau e perigoso, opondo-se ao corpo belo, delicado, limpo, bem torneado, de pele clara e que habita a cidade - bom e virtuoso. O espaço da transgressão e o espaço da ordem Nos mitos e narrativas clássicas, como a Odisseia, de Homero, o espaço das florestas, dos campos incultos e selvagens são sempre o espaço das metamorfoses ou encantamentos. Isso se dá por serem eles o que Paolo Scarpi (1982, p. 213-225) denomina como o espaço da transgressão – marcado pela violência sexual e pelo derramamento de sangue, ou ainda pelas uniões exogâmicas, que levam à perda da identidade cívica, a dissolução do grupo e, consequentemente à metamorfose em animais, ou elementos da natureza, indicando o fim da identidade humana. O espaço da ordem, em oposição, é o da cidade, ou agrupamento sócio-político ligado à uma religião comum – o grupamento é mantido e ampliado por meio da cultura, que se opõe à bestialidade. A natureza é vista, enquanto selvagem, fechada ao homem, infestada de feras e não organizada, ao passo que a natureza purificada e dedicada à agricultura é tida como aberta ao homem, estruturada socialmente. Os heróis civilizadores, como Héracles, são geralmente os que enfrentando as feras, purificam a natureza e transformam-na em espaço da ordem, civilizado. Os deuses, sob sua feição terrível, e/ou as bruxas habitam invariavelmente os espaços selvagens ou de transgressão. Os deuses 290 O Corpo encantado cultuados na cidade ao contrário, de feição compassiva, são benéficos ao grupo, estabelecendo uma relação de troca essencial para a manutenção do conjunto social. Dentre os mitos gregos que abordam a metamorfose de um ser humano em animal ou em algo associado à natureza há inúmeros relacionados às plantas míticas, como Narciso, Jacinto, Mirra, Adônis entre outros. Personagens que por ira de um deus/deusa ou por desrespeitarem as regras do grupo, são transformados em plantas propiciadoras do grupo. Em vários casos, como no de Narciso, a planta que resulta de sua metamorfose é utilizada em diversos cultos iniciáticos, como os de Dioniso, Deméter, Perséfone, Hécate, Ártemis e Afrodite. O deslocamento empreendido por Narciso mostra seu distanciamento do grupo, dos espaços habitados e culturais para o ermo, a floresta, aprofundando-se na selvageria até chegar à fonte onde se cumpre os desígnios dos deuses4. No mito de Atalanta, a metamorfose é em animal, no caso, a jovem e seu esposo são transformados em leões por Zeus por terem cometido o sacrilégio de se unirem sexualmente em um templo de O mito de Narciso é paradigmático por estar ligado à recusa do jovem Narciso em estabelecer a troca sexual com o outro, o que inviabiliza a manutenção do grupo. No mito, Narciso rejeita a todos os seus pretendentes, sejam humanos ou deuses, até ser punido pela divindade, Eros, deus do amor, na versão de Conon, ou Nêmesis, deusa ligada aos excessos, à hybris, na versão de Ovídio. Narciso é punido apaixonando-se por sua imagem em um lago perdido no interior da floresta em que caçava. Incapaz de afastar-se do reflexo suicida-se, na versão de Conon, ou definha junto à margem, na versão de Ovídio; sendo metamorfoseado na flor narciso pela divindade. Para análise completa do mito de Narciso ver Marquetti, F. R. Perseguindo Narciso. Um estudo da protofiguratividade no mito de Narciso. Saarbrücken: NEA - Novas Edições Acadêmicas, 2016. 4 291 Flávia Regina Marquetti Cibele5, ou de Zeus, enquanto o casal caçava nas florestas (GRIMAL, 2000, p. 51). Novamente há o afastamento do grupo e das regras civilizatórias, a interiorização na floresta, área selvagem, e a metamorfose em animais em decorrência da quebra de um contrato sócio religioso. Neste mito, a punição serve de alerta aos que ousam não respeitar aos deuses e seus espaços sagrados. Tanto em Narciso como no mito de Atalanta os corpos são transmutados em elementos da natureza selvagem como forma de regrar o grupamento social, não há, como veremos nos contos, uma depreciação dos corpos com o fito de indicar a índole dos personagens, tanto Atalanta, quanto Narciso e os demais personagens míticos, são de extrema beleza e pertencentes à classe dominante e/ou semidivinos, descendentes dos deuses. A punição/metamorfose ocorre em função não de um caráter ruim, mas pela ação desmedida (hybris) dos personagens junto à sua sociedade, não sendo eles julgados a partir de sua aparência ou condição social. A primeira maga - Circe Na Odisseia, surge pela primeira vez a figura da maga que usa de poções e varinha mágica para encantar os corpos, nos mitos os deuses ou deusas intervêm, metamorfoseando os mortais, mas sem uso Os leões são animais ligados à Cibele, aparecem na iconografia ladeando a deusa frígia ou puxando seu carro. Os templos de Cibele eram geralmente erigidos no meio de florestas. 5 292 O Corpo encantado de qualquer instrumento ou poção, apenas pela sua vontade6. Pode-se dizer que Circe é a precursora das bruxas dos contos maravilhosos, exceto pelo fato de ser uma deusa e de extrema beleza. Circe habita em um vale, no meio da floresta e é cercada por animais selvagens: Num vale foram achar a morada de Circe, construída toda com pedras polidas, num sítio ao redor abrigado. Por perto viam-se lobos monteses e leões imponentes (HOMERO, Odisseia, X, 210-213). Nos versos adiante, Euríloco, ao falar com Odisseu, informa que o palácio de Circe fica na floresta: Como ordenastes, ó glorioso Odisseu, fomos pela floresta, onde num vale encontramos um belo palácio, construído todo com pedras polidas, num sítio ao redor abrigado (HOMERO, Odisseia, X, 251-253). O espaço em que Odisseu e seus companheiros se encontram é uma ilha longe da civilização, nem Oriente nem Ocidente, mas encontra-se no limite do mundo, é o último posto antes do ingresso no reino do deus Hades, senhor dos mortos. Espaço selvagem, sem terras cultivadas ou com grupos sociais que possuem uma cultura e religião. O palácio de Circe é localizado espacialmente no centro de três eixos de selvageria: a ilha perdida e desconhecida; o centro da floresta, cercada por leões e lobos; e sem respeito às regras de hospitalidade, Exceção, Palas Atena usa também da varinha mágica para transformar Odisseu em velho (Homero, XIII, 129-138) e converter-lhe novamente jovem (HOMERO, XVI, 172-176). Mas é apenas nestas duas passagens da Odisséia que isso ocorre, no geral, Atena não precisa de nenhum instrumento para as metamorfoses. 6 293 Flávia Regina Marquetti que marcam, para os gregos, um indicativo de civilidade, uma vez que Circe os ilude e os transforma em animais. Circe ao receber os companheiros de Odisseu, embora sirvalhes bebidas e alimentos, o faz com artimanhas, transformando-os em porcos: Sem se fazer esperar, veio Circe e o portão lhes franqueia, belo e brilhante; os estultos, então para dentro a seguiram, com exceção só de Euríloco, por suspeitar de algum dolo. Ela os levou para dentro e ofereceu-lhes cadeiras e tronos, e misturou-lhes, depois, louro mel, queijo e branca farinha em vinho Pirâmnio; à bebida, assim feita, em seguida mistura droga funesta, que logo da pátria os fizesse esquecidos. Tendo-lhes dado a mistura, e depois que eles todos beberam, com uma vara os tocou e, sem mais, os meteu na pocilga. Tinham de porcos, realmente, a cabeça, o grunhido, a figura e as cerdas grossas; mas ainda, a consciência anterior conservavam. Dessa maneira os prendeu, apesar dos lamentos, lançando-lhes Circe bolotas, azinhas e frutos que dá o pilriteiro, para comerem, quais porcos que soem no chão rebocarse (HOMERO, Odisseia, X, 231-243). A transformação dos companheiros de Odisseu em porcos chama a atenção primeiro pelo uso das drogas e da varinha, Circe é uma maga, conhecedora de todas as plantas, como nos informa Odisseu: “Mas, quando estava no vale sagrado e do grande palácio/ me aproximava, de Circe que todas as plantas conhece,/ Hermes me 294 O Corpo encantado veio encontrar....” (HOMERO, Odisseia, X, 275-277). Ao contrário dos demais deuses que metamorfoseiam os personagens míticos sem o uso de elementos externos, Circe precisa da poção mágica e da varinha para encantar os corpos, é apenas após os homens consumirem a beberagem dada por Circe e ela tocá-los com a varinha, que eles se transformam em animais. Quando Circe tenta encantar Odisseu, ela o faz usando os mesmos expedientes, mas é acrescida uma frase: “Para o chiqueiro, vai logo deitar-te com teus companheiros” (HOMERO, Odisseia, X, 320). Dessa forma, completa-se a tríade do encantamento que será visto nas bruxas: poção (comida e/ou bebida), varinha e fórmula mágica. Outro ponto relevante é o animal no qual os homens se transformam, porcos. Embora a epopeia não explicite, fica subentendido que Circe transforma os que ali chegam de acordo com sua índole, uma vez que alguns foram transformados em lobos, outros em leões e todos os companheiros de Odisseu em porcos, tidos como animais ignorantes, movidos pela luxúria, gula e egoísmo7, antecipando um motivo que será bastante explorado nos contos maravilhosos, no qual o personagem encantado assume formas animalescas ou bestiais revelando seu verdadeiro caráter. Segundo Touchefeu-Meynier (1961, p. 264-270), há outra versão sobre o encantamento dos companheiros de Odisseu, retratado na iconografia do século V AEC, na qual os homens de Odisseu foram transformados em vários animais, não respeitando a versão mais antiga da epopeia. 7 295 Flávia Regina Marquetti Os companheiros de Odisseu escapam da forma animal, graças a Hermes que orienta Odisseu a como proceder com Circe e fazê-la desencantar seus homens, mas estes infringindo novamente as recomendações divinas e o juramento feito a Odisseu, matam e comem as vacas do deus Hélios na ilha Trinácria, morrendo todos afogados no mar (HOMERO, Odisseia, XII, 320-419). O desrespeito às regras divinas, à civilidade, leva os homens à bestialidade e à morte. Hermes é outro deus que antecede aos bruxos, tal qual Circe, ele conhece todas as ervas, no canto X da Odisseia, é ele quem auxilia Odisseu revelando-lhe os artifícios de Circe e fornecendo ao herói a planta que o impedirá de ser enfeitiçado, a Móli: Tendo isso dito, arrancou o correio de lúcido aspecto da terra a planta e ma deu, explicando-me suas virtudes. Tinha a raiz de cor negra, mas branca era a flor, como leite. Móli chamavam-lhe os deuses; difícil aos homens seria, de vida curta, arrancá-la; mas tudo os eternos conseguem (HOMERO, Odisseia, X, 302-306). Além do oferecimento da planta, Hermes instrui Odisseu para que não perca a virilidade ao deitar-se com Circe. A sexualidade livre de uma mulher é um perigo ao homem, assim como Circe. Ou as mulheres consideradas bruxas na Idade Média, jovens ou velhas, eram vistas como muito lascivas e deveriam ser temidas pela sua capacidade de emascular os amantes. 296 O Corpo encantado O tema da Potnia Theron ou Senhora dos Animais, bela, cercada de animais e de grande poder de sedução é recorrente na Antiguidade Clássica. Afrodite é outra deusa cujos traços são comuns à Senhora dos Animais. Com o passar dos séculos, o que era um temor/veneração, mas ainda positivo, pois associado à capacidade das deusas de promover a fecundidade e fertilidade dos grupos sociais e dos campos, passa a ser um mau associado ao demônio, sem qualquer benefício ao grupo. Recorrente também é a ligação do deus/mago/bruxa com os caminhos ermos, com as encruzilhadas, com as sombras, com o reino dos mortos, com a adivinhação e sua ligação, tal qual Circe, com animais selvagens ou peçonhentos, no caso de Hermes as serpentes, presentes em seu caduceu. Outro elemento constante nos mitos é a capacidade do deus/deusa em deslocar-se através dos ares, percorrer longas distâncias em segundos ou se materializar nos locais. Hermes, enquanto mensageiro dos deuses, possui asas, ora representadas em seu elmo, ora em suas sandálias. Essa capacidade de deslocamento pelos ares surgirá nos contos como uma prática dos bruxos e bruxas, eventualmente, auxiliados por vassouras encantadas. Não sem razão, Circe, Hermes e Hécate, outra deusa ligada à magia e às encruzilhadas, são deuses “menores”, que não possuem o mesmo status dos demais, geralmente realizando serviços para os outros deuses, como é o caso de Hermes. Ou são deuses primitivos ligados às forças da natureza e “incivilizados” que serão substituídos 297 Flávia Regina Marquetti pelos Olímpicos, caso de Hécate, da geração dos Titãs. Em algumas versões mais tardias, Circe é dada como filha de Hécate (GRIMAL, 2000, p. 92-93). Portanto, os deuses gregos ligados à magia habitam as florestas ou estão ligados aos caminhos, às encruzilhadas, ao vaguear, associados a animais selvagens ou peçonhentos, ao uso de poções, de ervas e drogas. Apuleio e as bruxas romanas No romance de Apuleio8, O Asno de Ouro, escrito no período romano, século II EC, observa-se que a exceção vista na figura de Circe torna-se regra, nele vemos surgir várias bruxas, que possuem alguns traços em comum com Circe, como a lubricidade, o uso de unguentos, de palavras mágicas para metamorfosear desafetos, amantes infiéis ou mesmo toda uma cidade. Acrescido a isso, nota-se uma forte ligação das bruxas aos cemitérios, aos mortos e, aparentemente, elas tornam-se citadinas, não mais habitam as florestas, porém ocupam espaços fora do âmbito social, oculto aos olhares, como terraços e cemitérios, localizados nos limites das cidades. Lúcio Apuleio foi escritor e filósofo do período romano. Nascido em família abastada e influente, teve uma educação esmerada e interessava-se pelos ritos esotéricos, pelos mistérios de Esculápio, deus da medicina, e pelos mistérios Eleusinos, da deusa Deméter. Sua obra mais importante é Metamorfoses ou o Asno de Ouro, na qual o personagem Lúcio vive aventuras fantásticas e/ou burlescas metamorfoseado em asno. Em sua jornada para retornar à forma humana, iniciada na Tessália, intercalam-se diversas narrativas, até Lúcio chegar à região de Corinto, onde em uma festa dedicada à deusa mãe, descrita no texto sob vários nomes, mas se auto proclamando como Ísis, finalmente retorna à forma humana e torna-se um iniciado nos mistérios da deusa. 8 298 O Corpo encantado Durante sua viagem, o personagem Lúcio apresenta diversas narrativas envolvendo bruxas. No Livro I o personagem Sócrates, após ser roubado, abriga-se na casa de uma velha9 estalajadeira, Méroe, feiticeira temida e lasciva, com amantes não só na Tessália, mas também na Etiópia e Índia10 (APULEIO, L I, VII). Mesmo descrita como velha, ela prende Sócrates pelo sexo e o reduz a mendigo. Ao narrar suas desventuras ao amigo Aristômenes, diz ser Méroe uma maga e advinha, capaz de descobrir qualquer trama contra ela, o que se comprovou na sequência, quando ela e Pância, sua irmã, irrompem no quarto de ambos com o uso de artifícios mágicos, transformam Aristômenes em tartaruga e Méroe degola Sócrates, retirando-lhe o coração. Na sequência, Pância tampa o corte com uma esponja dizendo: “Esponja, tu que nasceste no mar, guarda-te de atravessar um rio” (APULEIO, L I, XII). Na saída, as duas feiticeiras urinam sobre Aristômenes devolvendo-lhe a forma humana. Assustado, Aristômenes tenta fugir, mas ao amanhecer, Sócrates está vivo, sem a marca da degola no pescoço. Ambos saem da estalagem e ao pararem para comer, Sócrates ao beber água de uma fonte cai morto, pois a esponja absorve a água e salta fora do pescoço (APULEIO, L I, VII – XX). As transformações que Méroe impõe aos seus desafetos, sejam Aristômenes em tartaruga; o ex-amante em castor, animal que se A média de idade para as mulheres pobres na Antiguidade e no medievo era entre 35 a 40 anos em função da vida bastante difícil, da má alimentação, dos problemas decorrentes do parto. Muitas morriam muito jovens. 10 Em O Asno de Ouro, a Tessália, cidade de Méroe, é tida como terra de feiticeiras, igualmente a Etiópia e a Índia, todas associadas ao requinte e aos prazeres sexuais. 9 299 Flávia Regina Marquetti castra para fugir aos caçadores; ou ainda ao dono do prostíbulo concorrente em rã, e o advogado em carneiro (APULEIO, L I, IX) – não são marcadas propriamente pelo caráter dos personagens, mas sim por uma certa malícia e sarcasmo da feiticeira que, ardilosamente, se vinga e evita ser punida pelo grupo. A punição imposta aos desafetos implica no conhecimento prévio do que os amedronta ou de traços de personalidade, mas não há julgamento moral. Tanto no relato de Aristômenes, quanto no de Telifrão, de como ele ficou sem as orelhas e nariz após guardar um defunto e ser enganado pelas feiticeiras (APULEIO, L II, XXI- XXX); ou ainda na metamorfose de Lúcio em burro (III, XVI- XXV) por engano de Fótis11, observa-se o uso e o conhecimento de unguentos, de palavras mágicas e encantamentos para a transformação em animais, além do uso de entranhas, água da fonte, leite de vaca, mel das montanhas, broto de aneto, louro, rosas – substâncias vindas da natureza e de uma natureza mais selvagem, ou no limite entre esta e a natureza cultivada. Os animais nos quais elas se transformam também estão associados ao inferativo, o mundo subterrâneo e dos mortos: como a doninha, do relato de Telifrão, que vive em tocas no chão ou em troncos de árvores (II, XXV), ou em mocho – ave dos cemitérios, ligada ao mau agouro, no qual se metamorfoseia Panfília (III, XXI). Fótis é a jovem serva de seu hospedeiro avarento, Milão, casado com Panfília, descrita como uma bruxa velha e lasciva e com grandes poderes (L, III, XVIII), a quem Lúcio é orientado a evitar se deitar, quer por respeito ao hospedeiro, quer pelos perigos que correrá ao fazer isso. 11 300 O Corpo encantado Lúcio é transformado em burro, aparentemente, por engano de Fótis12, com quem mantém um relacionamento sexual. Fótis o enreda sexualmente em várias passagens, mas é na cozinha, enquanto Fótis mexe um caldeirão que se inicia a sedução de Lúcio: “com que lindo movimento do traseiro, e com que graça, adorável Fótis, tu mexes essa caçarola!” (APULEIO, L II, VII). Descrita como bela, Fótis é uma serva, faz trabalhos pesados, não condiz com a figura da velha desgrenhada e rabugenta dos contos, Lúcio a descreve: “É uma moça bonita, gosta de rir e é viva” (APULEIO, L II, VI); mas não possui a beleza delicada e aristocrática das fadas ou das deusas. O local de esconderijo/metamorfose de Panfília é o terraço, um local acima da habitação comum, e no meio da noite. A escolha do terraço, sótão, ou telhado, embora ocupe uma posição superativa, é um símile do porão, ctônico e inferativo. Ambos os ambientes são marcados pelo isolamento, acima ou abaixo da área comum das casas – compondo um espaço limítrofe entre o mundo social e civilizado, da convivência do grupo, e o fora do alcance, ligado à natureza – seja o espaço aéreo, terraço, ou ctônico, porão. Portanto, embora habitem na cidade, o espaço da magia é, simbolicamente, fora dos limites sociais. É o espaço cosmogônico, onde se efetua a ruptura e a fusão dos níveis cósmicos: o alto, a terra e o ctônico. Espaço de conjunção de extremos, no qual se estrutura um cosmos saído do caos primitivo e no Aparentemente porque ao que tudo indica, Fótis não quer que Lúcio, ao se transformar em pássaro, voe para longe dela (APULEIO, L, III, XXII-XXIII), indicando a malícia de Fótis, presente nas demais feiticeiras também. 12 301 Flávia Regina Marquetti qual se conjugam os três grandes medos do homem: a vida, a noite e a morte. Todas as metamorfoses ou aparições em O Asno de Ouro ocorrem à noite, mais exatamente no meio dela; apenas quando é uma deusa, Cibele ou Ísis, responsável por devolver a forma humana a Lúcio, que a ação ocorre durante o dia claro (APULEIO, L, XI, VII – XIII). O retorno de Lúcio à forma humana marca também seu posterior ingresso, como iniciado, no culto da deusa, ele não mais busca a magia e os feitiços marginais, das bruxas, mas se insere em um conjunto socialmente organizado e regrado, dentro do espaço civilizado da cidade e da ordem. O percurso do ser humano é o horizontal, essencialmente social, prático e comunicativo; o espaço vertical, divino, une o mundo celeste e o subterrâneo. Ao fundir os dois espaços, as bruxas inscrevem o homem no cosmo original, em um mundo mal conhecido e de suas agonias, do qual não possuem o controle. É perceptível nos relatos de Apuleio algumas das características que se tornarão motivos recorrentes nos contos maravilhosos e de suas bruxas: elas são peritas na arte da adivinhação; usam de palavras mágicas para promover os encantamentos; são geralmente velhas e lascivas; usam de elementos escatológicos, da natureza e/ou ligados aos mortos; metamorfoseiam-se em animais; e, sobretudo, são de classe social baixa e movimentam-se em espaços fora do convívio social. 302 O Corpo encantado A bruxa nos contos maravilhosos A bruxa, geralmente, possui a aparência de uma mulher pobre, trabalhadora braçal, portanto, “suja”, de vestes puídas, cabelos desgrenhados, com corpo não delicado, habituado ao trabalho bruto na terra ou na cozinha, pele queimada pelo calor do sol ou do fogo, e com mãos grosseiras, opondo-se à imagem de Circe, deusa bela, ocupada apenas em fiar e cercada de servas. Há nessa transformação da imagem da maga/feiticeira um duplo repúdio, que se acentuará ainda mais na óptica cristã e burguesa: a da “velha” pobre, que insiste em manter-se sexualmente ativa, apesar de não mais poder procriar. Vista como pervertida e transgressora, ela é um mal que deve ser banido do social, deve ser temida. Marina Warner (1999) apresenta, em sua obra, todo um estudo sobre essa figura transgressora da velha: o tipo de mulher que ameaçava a sociedade por ser sozinha e dependente nem sempre era o das mães apegadas aos filhos ou das viúvas desesperadas e cruéis. Podia se tratar de uma solteirona, uma mãe solteira, uma velha ama ou criada da família – qualquer mulher que envelhecesse desacompanhada era vulnerável [...]. Pois não havia, num sentido radical, nenhum lugar para a solidão feminina no arcabouço conceptual da época [...]. As velhas solteironas ou viúvas, aparecem como uma velha anômala, uma mulher sem marido, desligada das amarras do porto patriarcal (WARNER, 1999, p. 262-263). Essas mulheres, sem aporte masculino, eram obrigadas a afastarem-se das cidades, passavam a habitar os limites destas e/ou as florestas em cabanas abandonadas, ou ainda em cavernas, sujas, desgrenhadas e com vestes rasgadas, famintas e desfiguradas; sem ter 303 Flávia Regina Marquetti de onde retirar o sustento eram obrigadas a viver de raízes e urzes, com as quais faziam sopas em caldeirões sustentados por tripés sobre fogueiras. Nicole Pellegrin (2008), ao comentar a questão dos jejuns e da alimentação na Idade Média, informa que as raízes e urzes eram alimentos opostos aos cereais e à charcutaria, consumidos pelas pessoas abastadas. Os pobres e mendigos eram obrigados a recorrer às plantas “ignóbeis”, não cultivadas, e de baixo valor alimentar, o que tornava sua aparência doentia e esquálida. Por serem tubérculos e herbáceas, uma forma de consumi-los era cozê-los juntos, fazendo uma sopa. A importância dessa variabilidade alimentar (quantitativa e qualitativa) é dupla para corpos constantemente famintos: de um lado, existem alimentos de substituição, certamente, por serem próprios à estação, podem atenuar a raridade de grãos; de ouro lado, a busca e a preparação desses alimentos aumentam o esforço físico e multiplicam as tarefas das pessoas encarregadas, isto é, as mulheres e as crianças da casa, dedicadas à colheita e à recuperação dos alimentos “ignóbeis”, porque não cultivados. Esses alimentos “selvagens” são essenciais, mas sempre invisíveis nas descrições dos recursos locais: as “raízes” arrancadas com muito esforço por “alguns animais selvagens” de face humana, descritos por La Bruyère, só serão mencionadas nas descrições horrendas dos tempos de calamidades públicas, quando essas plantas funcionavam como complementos regulares do cardápio habitual (PELLEGRIN, 2008, p. 152). A comparação dos pobres a “animais selvagens de face humana”, alimentando-se de plantas selvagens, não cultivadas, expõe a situação miserável e fora do social dessas pessoas, a necessidade de coletar lenha nos bosques, a falta de casas, o uso de vestes andrajosas, 304 O Corpo encantado junta-se ao aspecto sujo e deformado do corpo, submetido a um trabalho penoso, e desfigurado pelas doenças e fome. Outro elemento que segrega privilegiados de pobres, mulheres e homens, cidade de campo, são os sapatos. Segundo Pellegrin, enquanto os ricos andam o mínimo possível e seus sapatos de tecido ou couro fino só permitem movimentos contados, pouco numerosos e criadores de movimentos e elasticidade calculada [...]. Os pobres andam descalços ou em tamancos grosseiros, guarnecidos de embocadura de um círculo de ferro e embaixo de duas placas do mesmo metal fixas com pregos cuja cabeça podia ter até meia-polegada de diâmetro (PELLEGRIN, 2008, p. 164-165). O esforço pelas longas caminhadas, os pés machucados e grossos, ou com calçados toscos semelhantes a “ferraduras”, conferem aos mais pobres um aspecto animalesco, completamente diverso dos abastados, de peles limpas, claras, devido à pouca exposição ao sol, de braços e pernas delicados (não musculosos como os dos pobres), belos cabelos penteados e adornados, vestes limpas – não sem motivo, as boas e belas fadas dos contos surgem em suas carruagens douradas e assemelham-se à classe dominante. No conto d’A gata Borralheira (PERRAUT, 1941, p. 75-83) os sapatos de cristal, oferecidos pela fada madrinha à jovem, são um dos melhores exemplos de um calçado inviável para caminhadas. Além de todo simbolismo sexual presente nele13, ressalta o status nobre da personagem, o cristal impossibilita a movimentação; o tamanho do pé, muito pequeno, é outro dado relevante: o sapato, experimentado em 13 Ver Marquetti (2013, p. 309-366). 305 Flávia Regina Marquetti todas as jovens presentes no baile, grupo seleto de princesas convidadas, não serve em nenhuma, após isso, o príncipe passa a experimentá-lo nas outras jovens da corte, “...começando pelas princesas, passando para as duquesas e marquesas e baronesas. Como não servisse no pé de nenhuma, começou a experimentá-lo no pé de moças comuns” (PERRAULT, 1941, p. 81). Até chegar à mais humilde, Gata Borralheira, suja e vestida com andrajos, mas na qual o sapatinho serve. A excelência de Gata Borralheira é marcada pelo seu diminuto pé, que mesmo as mais nobres não possuíam. No conto Branca de Neve (GRIMM, 1994), a madrasta é punida ao entrar no salão de baile de casamento de Branca com o príncipe. Ali aguarda-a um par de sapatos de ferro, quentes em brasa, que ela é obrigada a calçar para dançar14 com todos os homens da festa até cair morta. A dança, assim como os sapatos, meias, têm uma conotação sexual. Obrigar a Rainha/madrasta a dançar com sapatos de ferro quentes até cair morta, conota um estupro coletivo, uma punição à mulher/bruxa por querer manter uma sexualidade ativa após a “velhice”. A mulher saída do período fértil, ou que não pode conceber, Segundo Pellegrin, citando J-P. Desaive, “a dança é a única linguagem do corpo que permite à mulher exprimir-se de modo igual ao homem e em perfeita complementaridade com ele”. O jogo de sedução e mesmo camuflagem dos atos sexuais em textos de inúmeras culturas é substituído pela dança. Além do fator histórico dos bailes, enquanto atividade recreativa que abrange desde o topo à base da sociedade, a dança permite a aproximação dos corpos, o contato mais íntimo e em diversas comunidades compõem parte dos rituais de escolha de parceiro para o casamento. Não é sem razão que as jovens heroínas sempre dançam com seus consortes. Tanto para católicos como para protestantes, a dança é uma invenção própria de Satã, pois incita à volúpia (DANEAU, 1579, p. 33). 14 306 O Corpo encantado é obrigada a ceder seu lugar à mais jovem, que pode gerar filhos ao homem. Tanto em A Gata Borralheira como em Branca de Neve, a figura da bruxa e da fada estão intimamente imbricadas. Na primeira, a Fada Madrinha transforma elementos da natureza, abóboras, ratos, lagartos, em bens dignos da sociedade, da ordem do cultural. Embora esteja sob o cariz de boa, a fada madrinha é uma velha, mora na floresta ou fora do núcleo social e manipula elementos selvagens, da ordem do natural, com sua varinha. O fato de ela ser a madrinha da jovem, papel que lhe outorga o lugar da mãe, na ausência desta, é relevante, indicando ser Gata Borralheira uma sua igual, partilhando de seus conhecimentos e costumes, pois cabe às mães a instrução dos filhos. Excluída do social/civilizado, Gata Borralheira vive na cozinha, junto ao fogão, nas cinzas, portanto, suja. Seu quarto é um canto do sótão e ela dorme sobre um monte de palha, enquanto suas irmãs têm belos quartos atapetados, camas e guarda-roupas com espelhos nos quais podem se mirar. O espelho é um símbolo da sociedade, um paralelo do olhar do outro sobre nós mesmos. O espaço ocupado por Gata Borralheira é um símile da floresta selvagem, mesmo porque ela não possui um nome, uma desinência social que a identifique junto ao grupo, seu nome, ou mais precisamente sua alcunha, gata, remete a um animal entre o doméstico e o selvagem, diferente do cão, considerado fiel e completamente domesticado, os gatos transitam entre o espaço da casa e o da natureza, são caçadores, associados às bruxas, e animais psicopompos, condutores dos mortos, 307 Flávia Regina Marquetti em inúmeras culturas. Embora boa, Gata Borralheira guarda, como todo feminino, a possibilidade de ser uma bruxa, mesmo sem o saber. Em Branca de Neve a ligação da Rainha com a bruxa da floresta é mais explícita do que a da Fada Madrinha, ela transita entre o mundo civilizado, do castelo, do uso do espelho, para o selvagem, onde realiza seus encantamentos, descritos como fora dos olhares, ora em espaços ctônicos, porões, ora em cabanas na floresta, dependendo das versões. Sob as vestes de rainha, ela é uma mulher bela e poderosa que teme perder seu lugar de primazia junto ao grupo para a mais jovem, sob o aspecto de bruxa, feia e desgrenhada, ela trama os malefícios para matar a jovem concorrente. Após mandar assassiná-la e pedir seu coração, a Madrasta, frustrada pela desobediência do guarda florestal, envenena com poções mágicas dois objetos da ordem do cultural: um cinto e um pente, elementos que visam conter a aparência selvagem, não elegante, de Branca. Mas Branca é salva pelos anões, que a livram desses adornos, fazendo-a retornar ao aspecto/estatuto selvagem. Como último recurso, a bruxa utiliza um elemento da natureza, a maçã, fruta associada ao sexo tanto entre os pagãos como entre os cristãos, conseguindo seu intento. É na floresta, junto dos anões e com o auxílio da Madrasta/mãe/bruxa, que Branca de Neve completa a iniciação feminina. A morte ritual e a exposição no caixão de vidro, completa a passagem da jovem Branca selvagem para a domesticada, apta a assumir seu lugar na sociedade junto do príncipe, por meio do casamento regulado pelo social. Como as demais bruxas e fadas, Branca de Neve vagueia pela floresta, por espaços limítrofes do social. Une-se a consortes animalescos, os anões, com uma sexualidade livre e selvagem, mas 308 O Corpo encantado assim como outras heroínas são auxiliadas a passarem do espaço transgressor para o espaço da ordem pelas fadas madrinhas, a Bruxa auxilia Branca em sua transição. O medo do feminino, associado ao Diabo, aos marginais e aos espaços de exclusão é uma constante no medievo e períodos posteriores, como aponta Jacques Le Goff (2020, p. 158-160). A floresta, local de refúgio dos indigentes, assume uma conotação perigosa em função do medo de assaltos e das doenças, como a lepra, já que os doentes eram banidos para longe das cidades, obrigados a seguirem errantes, sem poderem se abrigar nos povoados. Segundo Le Goff (2020, p. 160), para os cristãos do medievo o corpo é o lugar de encarnação do pecado; transformando, automaticamente, os enfermos e os doentes em pobres, fazendo dos leprosos imagens vivas do pecado, assim como as prostitutas. Em um movimento de báscula, o pobre passa a encarnar os pecados, sendo temido física e espiritualmente. Por isso as jovens heroínas pobres são igualmente perigosas, quer pela beleza que desvirtua o homem, quer por sua sexualidade livre, assemelhando-se às bruxas Paulatinamente, a pobreza transforma-se em um mal, no qual a aparência conota um caráter ruim, dando lugar no imaginário medieval à bruxa, mulher velha, ou desmazelada, pobre que habita os limites da cidade ou interior das florestas, pronta a encantar os corpos dos incautos. Opondo-se às fadas, retratadas à maneira da elite, em suas carruagens douradas puxadas por cavalos brancos, ou mesmo dragões, 309 Flávia Regina Marquetti a bruxa tem como transporte uma velha vassoura, objeto ligado ao trabalho humilde, de limpeza, vinculado ao vulgacho. No manual inquisitorial Malleus Maleficarum (2004), publicado pelos religiosos dominicanos Heinrich Kraemer e James Spreenger em 1486 ou 1487, encontra-se na primeira parte um rol de ações ligadas às bruxas, principalmente em como lançar bruxaria sobre os atos sexuais e a gestação: Existem, conforme se lê na Bula Papal, sete métodos pelos quais elas contaminam, através da bruxaria, o ato venéreo e a concepção; primeiro: fomentando no pensamento dos homens a paixão desregrada; segundo: obstruindo a sua força geradora; terceiro, removendolhes o membro que serve ao ato; quarto, transmutandoos em bestas pela sua magia; quinto, destruindo a força geradora das mulheres; sexto, provocando o aborto; sétimo, oferecendo, em sacrifício, crianças aos demônios, além de outros animais e frutas da terra, com o que causam enormes males. Cada um desses métodos será considerado ulteriormente; concentremo-nos por ora nos males causados aos homens. (L1, q.5) [...] Mas é por bruxaria que [os demônios] realizam tais obras quando para tal se utilizam de bruxas, por virtude do pacto com elas firmado. [...] Quantos adúlteros já não repeliram a mais linda das esposas para se entregarem lascivamente à mais perversa das mulheres! Sabemos do caso de uma velha mulher que, segundo o relato dos irmãos de um certo mosteiro, dessa forma não só enfeitiçou sucessivamente três abades como os matou e, da mesma maneira, fez enlouquecer a um quarto. Pois confessou ela publicamente e sem medo: “Assim fiz e assim faço, e não me podem resistir pelo muito que comeram do meu estrume”, disse ela, pondo à mostra uma parte de seu braço. Devo admitir que, como não dispúnhamos de argumentos evidentes para processá-la ou para trazê-la a julgamento, ainda está viva até hoje (L1, q.6). 310 O Corpo encantado Embora o Malleus Maleficarum diga abordar os feiticeiros de ambos os sexos, o foco está no feminino e como apontado nos grifos acima, as bruxas seduzem os homens, mesmo sendo velhas, levandoos a perderem-se tanto física quanto espiritualmente, possuem capacidade de torná-los estéreis, emasculá-los ou transformá-los em animais. Sistematizando um perfil desenhado desde a Antiguidade, sobretudo no período romano, e ratificando a exclusão das mulheres, principalmente as pobres e, em especial, das velhas e fora do jugo masculino. Nas narrativas há uma desigualdade no tratamento dado pelas bruxas aos personagens femininos e masculinos. Nos contos em que a personagem principal é uma jovem mulher, as bruxas são geralmente madrastas, substituem as mães, e são personagens ativos por todo o conto, elas tramam a morte das rivais/heroínas jovens, mas não as metamorfoseiam em animais, como nos dois contos citados anteriormente. Há nesse conjunto de contos um embate entre iguais, um jogo complementar que remete aos antigos rituais de iniciação das jovens em sociedades arcaicas. Neste duplo: heroína/bruxa, as jovens são apresentadas como obedientes e belas, de peles alvas e macias, cabelos sedosos e muito mais belas, em sua simplicidade, destituída de joias e adornos, que suas irmãs ou madrastas, repletas de rendas e adornos; ao passo que a madrasta e a bruxa escondem seu verdadeiro aspecto, de velha 311 Flávia Regina Marquetti desgrenhada e suja, sob a face de uma mulher madura, mas bela e sedutora15, capaz de atrair o desejo do pai da jovem ou do rei, subjugando-o com seus poderes mágicos, que, em última instância, revelam-se como expedientes da sedução, da luxúria selvagem e natural. Essas Senhoras perigosas e sedutoras são ávidas de poder e não se submetem ao jugo masculino ou social, à margem da sociedade, pois não respeitam suas regras e códigos morais, elas são mostradas como demônios disfarçados. Mas nem a madrasta é tão má assim, nem a jovem heroína é tão dócil e tola. Sob a máscara romântica e cristã ainda é possível divisar a união de mãe e filha e de como a “velha” auxilia a jovem a passar de virgem a mulher. E como não poderia deixar de ser, essa passagem transgressora e feminina se dá fora dos limites sociais/patriarcais, na floresta. Quando o personagem principal dos contos é masculino, o príncipe, geralmente as bruxas são apenas nomeadas ao final, elas surgem como a justificativa para a forma animalesca do príncipe. Formam com a jovem heroína, que o salva de sua face animal, novamente um duplo. É pelas mãos do feminino que o grupo é regrado, a bruxa pune o jovem de seu mau caráter metamorfoseando-o em animal, enquanto a jovem, abnegada e bondosa, o desencanta. Vale observar que a jovem, muitas vezes tida como pobre ou humilde, traz Há um conflito na descrição da madrasta e da bruxa, não se pode definir exatamente se ela é bela e se disfarça de velha, ou o contrário. De qualquer forma, as duas faces, a da beleza e a da velha bruxa, compõem a identidade perigosa da madrasta. 15 312 O Corpo encantado todos os traços da elite, compactua com os códigos morais e religiosos de seu grupo, por isso sempre vem como bondoso, obediente e temente a Deus nesses contos. Dentre os inúmeros contos, um dos mais conhecidos é A Bela e a Fera, que na sua versão mais antiga recebia o nome de O Monstro Peludo, edição alemã de Von K. O Beetz (1939, p.132-158)16. Diferentemente das versões atuais, sobretudo dos desenhos da Disney, na qual o monstro não inspira repulsa, na versão original ele é bastante repugnante17: [...] um corpo desengonçado e coberto de espessa camada de pelos, terminando por uma cauda enorme e cabeluda. As quatro patas davam ideia de um lagarto gigantesco de garras poderosas. O pescoço coberto de escamas terminava numa cabeça alongada e as queixadas enormes apresentavam uns dentes aguçados através dos quais escorria uma baba pegajosa (BEETZ, 1939, p. 136). Neste conto, como em outros, o Monstro vive em um castelo, porém este se localiza no interior de uma floresta cercada de espinhos e muito distante das cidades. A bruxa o transformou em um ser horripilante, assim como metamorfoseou todos seus familiares e habitantes do reino em animais e/ou plantas. O motivo do Utilizaremos as versões mais antigas dos contos em função de serem elas mais próximas dos mitos e narrativas orais, menos abrandadas e atenuadas no que concerne à indicação de possíveis ritos iniciáticos arcaicos. Sobre este tema, conferir: Marquetti (2013, p. 309-366). 17 Ver a correlação da descrição do monstro com os semas sexuais masculinos em Marquetti (2013, p. 309-366). 16 313 Flávia Regina Marquetti encantamento é revelado no final do conto, após o jovem príncipe retornar à forma humana e bela: […] Queres saber porque caiu sobre nós a terrível maldição? [diz o príncipe a Augusta] Meus pais eram fracos com seus filhos e jamais corrigiram nossos defeitos. Tornamo-nos orgulhosos e maus e o pior de todos fui eu, sofrendo, por este motivo, o castigo mais rigoroso. Fui transformado num monstro peludo devendo velas pelos meus, tornados em flores silvestres (BEETZ, 1939, p. 152). Surge assim nos contos, a punição em decorrência da conduta moral dos personagens, sobretudo daqueles da classe dominante, os príncipes e reis. Mas de forma mais ampla, dita uma norma de conduta moral para toda a sociedade. Um dos poucos contos no qual a bruxa é substituída pela própria mãe dos personagens é Os sete corvos, também apresentado por Beetz. No conto, os sete irmãos de uma família muito pobre são descritos como vadios e maus, em oposição à única filha, Hilda, boa e obediente, e por desejo da mãe são metamorfoseados em corvos. O texto nos informa que eles moram na floresta, em uma choupana, paupérrimos, os pais labutam arduamente para alimentar e vestir os filhos. É durante um inverno rigoroso, enquanto a mãe prepara uns pães e os filhos a atormentam em algazarra, impedindo-a de trabalhar, que ela os encanta sem querer: - Oxalá vos transformásseis em corvos e voásseis para longe daqui a fim de que eu tenha sossego! [...] Apenas ela acabara de falar, os rapazes começaram a encolher. Suas roupas viraram penas negras, os braços tomaram a forma de asas e rrr rrr bateram o ar, grasnando; sete corvos saíram voando pela porta afora. 314 O Corpo encantado A infeliz mãe ficou paralisada de terror... A pobre mãe arrancava os cabelos de desespero e clamava, sem cessar: - Meus filhos, meus queridos filhinhos! Voltai! Não foi por mal! Vinde que eu cozerei um pãozinho para cada um de vós (BEETZ, 1939, p. 96-97). Embora o narrador isente de culpa a mãe, parecendo fazer o encantamento algo acidental com o seu desespero, observa-se na camada mais profunda do discurso a relação da mulher pobre, moradora da floresta e habituada ao trabalho pesado, com a da bruxa. Paira uma dúvida no texto: se ela ignora ser capaz de transformar os filhos, portanto, ela é uma bruxa e não o sabe; ou se ela é uma bruxa e sabe disso, mas inadvertidamente, em um momento de fúria encanta seus próprios filhos. Há aí um triplo julgamento, o dos rapazes, o da mãe e o de Hilda, a única filha, a caçula, a quem caberá empreender uma dura jornada até o fim do mundo e desencantar os irmãos. Estes, após voarem para fora de casa, passam a habitar uma cabana, só com janelas, sobre a única árvore de uma montanha inexpugnável nos confins do mundo. Hilda para os desencantar, além de mutilar as mãos, arrancando com os próprios dentes quatro dedos para compor a escadinha que tece para alcançar o cume da montanha; faz, após se reencontrar com os irmãos, um voto de silêncio de sete anos, enquanto tece sete camisas para jogar sobre eles e desfazer o encantamento da mãe. É parte da crença popular ocidental que a filha nascida após sete filhos homens seguidos será uma bruxa. 315 Flávia Regina Marquetti O percurso realizado por Hilda pressupõe um ritual iniciático, de aprendizagem com seres divinos, da natureza e fora do rol humano comum, comprovando o caráter mágico da jovem. Segundo Chevalier e Gheerbrant (1989, p. 826-831), o sete é um número místico e está associado em quase todas as culturas a uma renovação positiva, um ciclo concluído, assim como uma totalidade em movimento, implicando os sete estados da matéria, os sete graus da consciência e as sete etapas da evolução. Hilda, enquanto maga/feiticeira, passa pela iniciação até tornar-se detentora de todo saber. Como no caso de Augusta, do conto O Monstro Peludo, é a boa índole de Hilda, o coração bom e obediente, além de sua ação abnegada e carinhosa que restitui a forma humana aos encantados. Em O Monstro Peludo são as lágrimas de Augusta que transformam o monstro em humano, não sem antes a jovem percorrer toda a floresta a pé, lacerando o corpo nos espinhos; em Os sete corvos o desencanto dos jovens ocorre também com o sacrifício físico da jovem acrescido do tecer, tema recorrente nos contos e mitos da Antiguidade, associados ao feminino e à função de gerar. Se o encantamento ocorre geralmente no meio da noite, a reversão deste se dá no final da tarde, no crepúsculo, como em O Monstro Peludo; ou com os primeiros raios de sol, em Os sete corvos. As jovens heroínas, opondo-se à figura da bruxa má, desencantam os corpos na fronteira entre o dia e a noite, aurora e crepúsculo. Marcadas 316 O Corpo encantado pelo mesmo sema das bruxas, a capacidade de encantar/desencantar, mas no extremo oposto, elas não trabalham na escuridão, mas sim no limite entre a luz e a escuridão, o que revela poderem transitar entre estes dois polos. A imagem das jovens é também ambígua, como a de algumas bruxas, embora trabalhem dia e noite fiando, escalem montanhas, percorram grandes trajetos a pé, são descritas como belas, delicadas, de peles claras, cabelos loiros, muito mais próximas das classes abastadas e das fadas. Não é fortuito que essas belas e abnegadas jovens se tornarão rainhas ao final dos contos. Há, portanto, um duplo limite no qual as bruxas, fadas e magas transitam: entre o mundo civilizado, das cidades, e o selvagem, geralmente ligado às florestas; o outro é o crepúsculo, quando sombra e luz se fundem. Da mesma forma, no nível profundo da narrativa há um outro ponto de convergência no qual as personagens femininas se encontram: o limiar entre a castidade e a sexualidade. Como em um pântano, elas transitam entre a terra firme da castidade imposta pelo social e o fluido, manante da sexualidade livre e temida pelo grupo social, sobretudo dentro das religiões cristãs e sociedades patriarcais. Augusta, Hilda, Branca de Neve, entre muitas outras, coabitam com seus consortes monstruosos por um ano ou mais em casas na floresta, realizando os serviços domésticos, zelam pela ordem da casa, cuidam do fogo e fiam. Propp (1997, p. 125-68) vê nos contos uma reprodução do espaço e dos ritos iniciáticos para jovens. Segundo o 317 Flávia Regina Marquetti autor, isso indicaria um casamento grupal, que deve sua origem à prática da poliandria e tende a terminar em casamento a dois: “ela escolhe um companheiro ou amante, do qual é nominalmente senhora; este é responsável por seu pagamento ou recompensa” (PROPP, 1997, p. 141). As jovens presentes na casa dos homens eram chamadas de irmãs, os homens (irmãos) as tratam bem e não forçam seus favores, geralmente, presenteiam-nas com flechas e arcos para os parentes, fumo, colares etc. As mulheres ficam apenas temporariamente nas casas, em seguida elas se casam. A coletividade masculina da casa dos homens vive exclusivamente da caça, pois os produtos agrícolas lhe são proibidos, como os animais selvagens, eles caçam juntos e realizam tudo em comum. A aparência de animais, assumida pelos irmãos, decorre, segundo Propp, do fato de eles serem iniciados e, para o grupo, os que viviam nas casas masculinas ou casas da floresta eram imaginados como animais e mascaravam-se como tais (PROPP, 1997, p. 148). Observa-se nesses ritos iniciáticos traços comuns com os mitos e contos. No espaço selvagem, fora do civilizado, das regras da cidade, há a possibilidade de sexo livre, enquanto nos ritos iniciáticos aludidos por Propp isso não desabona as jovens; já nos contos, ao ser velada a defloração da jovem, observa-se a depreciação do sexo livre. Ela 318 O Corpo encantado figura nos contos camuflada de violência, pelo ferir-se das próprias jovens, como o arrancar dos dedos das mãos com os dentes (Hilda), o lacerar-se na corrida pela floresta (Bela), apontando para práticas muito antigas às quais os contos aludiam em sua origem oral. O aspecto erótico no episódio de Circe e Odisseu, ou os presentes nas narrativas de Apuleio, são exemplos claros do temor que a sexualidade feminina livre inspirava na Antiguidade Clássica e continuou a inspirar. Segundo Chiara Pilo (2014, p. 213), na iconografia mais antiga, Circe é representada nua no embate com Odisseu, encarando-o enquanto ele se prepara para desembainhar sua espada, a presença de flores de lótus na cena confirma o simbolismo sexual. O poder sedutor de Circe e outras magas funciona como um feitiço afrodisíaco e constitui uma fonte de perigo porque perturba as relações habituais homem/mulher, dominador/dominado, invertendo-a. Segundo Pilo (2014, p. 220), [...] para enfrentar os perigos que estão por trás do charme sedutor da deusa [como também das bruxas], o herói deve usar ferramentas e expedientes de tempos em tempos adaptados às armas que a feiticeira mítica usa: a erva moly contra a pharmaka lygra, a espada contra a varinha, as palavras sagradas e obrigatórias do juramento contra o encantamento erótico. O aspecto que mais nos interessa é claramente a justaposição da espada à varinha, o que se confirma a nível iconográfico no lekythos do Pintor Nikon onde a varinha de Circe corresponde numa construção simétrica da imagem à arma de Ulisses. A espada, que com uma alusão não muito velada a feiticeira convida a colocar na bainha, funciona como símbolo fálico. A varinha, que constitui sua contraparte, não pode deixar de pertencer ao mesmo sistema de referências simbólicas. 319 Flávia Regina Marquetti A mulher sexualmente livre, detentora de um conhecimento que ultrapassa o regulado pela sociedade, equivale a um oponente masculino, a varinha da bruxa, símile da espada e também do falo, é conotada como poder e perigo para o grupo estruturado sob o poder masculino. As jovens heroínas dos contos, ao vagarem pelos campos selvagens, incivilizados, são potencialmente perigosas, pois sob a face da boa filha, obediente e abnegada, pode-se esconder uma bruxa, como de fato se esconde. Elas enfeitiçam eroticamente os homens, torna-nos submissos a elas; capazes de os desencantar da forma animal, conhecem, portanto, os segredos dos encantamentos, não sendo totalmente confiáveis. É por isso que, apesar de todo o controle ao qual os contos foram submetidos, a bruxa surge como personagem explícito na narrativa quando o foco é a jovem heroína e não o príncipe. Ao colocá-las em pólos opostos, as narrativas fazem-nas se encontrarem no outro extremo do círculo. A floresta, a invisibilidade e a sexualidade Notadamente a floresta é o espaço da bestialidade, das relações livres entre os pares, da transgressão. Semelhante ao deserto do Antigo Testamento, a floresta não é um lugar de solidão, mas de provas, de um vagar sem se fixar (LE GOFF, 2020, p. 36; 105-106). O jovem príncipe encantado pela bruxa, animaliza-se, troca as armas de cavaleiro pelas do caçador/predador, despoja-se dos hábitos 320 O Corpo encantado civilizados, da roupa, da memória, da própria forma humana, não mais alimenta-se de pão, mas de caça. A metamorfose corporal à qual a bruxa o submete explicita a desordem, o aviltamento, o não controlar das paixões, é o corpo de um pecador, opondo-se ao corpo harmonioso ao qual retornará após purgar seus pecados. O príncipe desencantado é o do jovem temente a Deus, sem paixões nem pulsões, mas que aceita as coerções sociais, da mesma forma que a jovem heroína é salva de sua índole perigosa de jovem bruxa, pelo casamento com o príncipe. Ao serem apresentados como animais, ou sujos, os personagens banidos para fora da esfera do social, apresentam tanto um estágio de invisibilidade, pois aquele que se cobre de poeira, cinza, fuligem ou barro oculta-se sob uma camada de terra, tal qual os mortos e as sementes, tornando-se invisíveis aos vivos; quanto uma forma de disfarce, estabelecendo uma relação entre o que é encoberto pela sujeira e a representação do aspecto animal, espécie de máscara, do mundo selvagem, não civilizado. A mudança de aspecto associa-se à estada no outro mundo, o personagem retorna ao convívio social após uma longa peregrinação, ao fazê-lo, vem sob o aspecto de morto, sujo e decomposto, ou como natural, selvagem, ligado aos animais, porém, quando reassume o seu lugar na sociedade, livra-se dos andrajos e ressurge belo e íntegro. Esse outro mundo, ctônico e selvagem, entre os gregos, está associado ao reino dos mortos18, e tem um desdobramento interessante 18 Cf. retorno de Odisseu a Ítaca após sua viagem ao Hades (HOMERO, Odisseia). 321 Flávia Regina Marquetti após o cristianismo, a natureza associada ao ctônico, reino das deusas, passa a ser reduto do demônio. Vê-se a floresta/bosque como área de atuação do mal, uma extensão do inferno na terra. Dessa forma, o outro mundo dos contos não é mais o reino dos mortos, a terra fecunda do mito, mas o inferno cristão, com todos os seus pecados, principalmente, a luxúria, que se associa à prática sexual livre e, portanto, à fertilidade e a fecundidade tão presentes nos mitos das grandes deusas. É por isso que a oposição /alto/ x /baixo/ ⬄ /brilho/ x /sujeira/, tão bem apontada por Courtés (1986, p. 116-121, p. 201-204), mostra a bruxa ligada ao /baixo/ e ao /sujo/, ou seja, ao mundo ctônico, da pobreza, enquanto as fadas, ao /alto/ e ao /brilho/, que por sua vez associam-se ao mundo civilizado, da aristocracia e cristão. A sujeira assume, portanto, uma conotação moral, de pecado latente, igual àqueles que não foram salvos pelos sacramentos do batismo ao nascer. Esses, embora inocentes, estão fora do mundo cristão, ordenado por Deus e pela Igreja, portanto, no outro mundo, ctônico e demoníaco, que se opõe ao celeste. Visão idêntica é dada às relações amorosas não sancionadas pelos ritos do casamento, os amantes vivem em pecado, estão “sujos” perante Deus, são movidos pela luxúria e pelo demônio. Os ritos do batismo e do casamento, no cristianismo, apontam claramente para a necessidade de purificar e trazer para junto do social a criança e os nubentes, pois se não passarem pelos ritos, serão como 322 O Corpo encantado animais, bestas selvagens, impuras e que põem em risco a sociedade. É por isso que o recém-nascido deve ser banhado na pia batismal, limpo de sua “sujeira” selvagem e natural, ligada ao demônio. Se a união da jovem e seu consorte era norteada pelo exalçar sexual, a união mediada pela sociedade é purificada desse excesso natural, ela é moderada e se inscreve no âmbito das relações socioeconômicas. O casamento deixa, portanto, de ser o encontro de dois amantes e passa a figurar o contrato entre dois clãs ou famílias. A sexualidade assume, dessa forma, um papel negativo e transgressor à vista da sociedade. A transformação do animal em príncipe, ou da jovem em princesa encerra ainda uma mudança de código, de status social. Ao deixarem para trás a pele animal ou os andrajos e surgirem em belos trajes, os personagens são retirados do status da pobreza, relacionada à vilania, e alçados à elite dominante, portanto, à dignidade. Vindas da natureza e semelhantes a ela, as mulheres, embora ocupem um lugar no universo patriarcal da sociedade, não pertencem a ele. Perigosas e transgressoras, elas devem ser confinadas e vigiadas por seus pais, tutores ou maridos. Anjos que salvam e que perdem o homem, delas vem toda a vida e todo o mal. O verdadeiro corpo encantado dos contos é o corpo dos pobres, dos excluídos. O medo da sublevação daqueles que foram deixados à margem do social, que vivem animalizados, da caça e da coleta de urzes e raízes, que conhecem as ervas e as usam como remédio, das 323 Flávia Regina Marquetti relações sem a coerção religiosa ou moral dos dominantes, fez surgir a figura da feiticeira e do mago, temidos pelo seu conhecimento dos astros, das plantas, dos ciclos da natureza, mas que, ao fim e ao cabo, são os que sustentam a elite, labutam para alimentá-la, limpar seus castelos, casas, roupas. O medo do encantamento é o medo da pobreza, ser encantado, transformar-se em animal é tornar-se pobre, excluído da sociedade e de seus meios de produção de riqueza. As práticas mágicas, tão temidas pela elite dominante, visam, na verdade, modificar a ordem estabelecida das coisas, subverter o destino dos pobres. Referências Documentação APULEIO. O Asno de Ouro. Tradução de Ruth Guimarães. São Paulo: Cultrix, 1963. BEETZ, Von K. O. O Monstro Peludo. In: BEETZ, Von K. 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A literatura greco-romana traz variados termos para se referir às práticas que podemos englobar sob a rubrica magia, tais como: φαρµακεία, γοητεία, veneficium, maleficium, carmen e excantare. Da mesma forma, além do termo µάγος, em grego, e magus, em latim, temos nomes diferentes para identificar os praticantes da magia, tais Professora Adjunta do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui Doutorado (2014), Mestrado (2006) e Graduação (2003) em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Franca. Foi bolsista CAPES durante o mestrado e o doutorado. Realizou estágio de doutorado na Universidad de Salamanca, Espanha (com bolsa do Programa de doutorado sanduíche no exterior PDSE, CAPES). Também realizou estágio de pesquisa na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris - EHESS - Centre ANHIMA. 1 327 Semíramis Corsi Silva como as palavras gregas ἐπῳδός, γόης e φᾰρµᾰκεύς e as latinas vates, mathematicus, maleficus, hariolous, philosophus, mantis, veneficus, entre outras. Em relação às mulheres praticantes de magia, temos termos como: φαρµακίς, em grego, e venefica, anus, striga, saga, entre outros, em latim. Na literatura greco-romana, os termos dependiam da situação na qual as feiticeiras eram representadas2. Nos estudos modernos, a palavra magia tem sido usada como uma categoria heurística (RIVES, 2003). Ou seja, como um amplo conceito definidor de práticas imorais e inaceitáveis ou, em uma definição que achamos bastante pertinente, de uma série de procedimentos que têm em comum a utilização de uma técnica correta (ars, em latim, τέχνη, em grego) a fim de agir sobre a ordem do universo.3 Técnica essa que, ao mesmo tempo em que destaca a agência humana na busca de domínio da natureza, envolve crenças, esconjuros e também orações, súplicas, piedade, etc. Dessa forma, apenas colocar as práticas mágicas como uma tentativa de controle do universo e superação do mundo material não responde totalmente à complexidade do fenômeno. Sobre esse assunto, ver Spaeth (2014, p. 41-42). Destaca-se o importante papel do antropólogo James Frazer em O ramo de ouro que, ao teorizar sobre as leis que regiam o pensamento mágico, frisou que magia era uma espécie de “falsa ciência”, uma prática destinada a produzir efeitos especiais pela aplicação das duas leis da chamada simpatia universal: a lei de similaridade/ magia imitativa (semelhante atrai semelhante e produz seus efeitos práticos) e a e lei de contiguidade/magia contagiosa (identificação da parte com o todo). No entanto, a perspectiva evolucionista de Frazer o fazia perceber a existência de diferenças entre o pensamento mágico, o religioso e o científico, separando esses domínios, o que tem sido bastante questionado. 2 3 328 Gênero e Magia em Roma Em linhas gerais, as práticas classificadas como mágicas não se desenvolvem sem a religiosidade, mas uma diferença fundamental que os estudiosos do tema costumam aceitar é que, por um lado o homem religioso oferece sua admiração com humildade e submissão à uma divindade e, por outro lado, o mago busca forçar os poderes sobrenaturais para conseguir o que deseja através das técnicas adequadas, o que, no entanto, é algo bastante complexo, pois em um rito considerado mágico é possível perceber, muitas vezes, oração (tom de súplica) e esconjuro (tom imperativo em relação aos seres evocados) juntos.4 A pesquisadora Anne-Marie Tupet (1976, p. VIII) acrescenta: a religião implora ao deus sua ajuda, a magia obriga, mas quando o fiel pratica o culto aos mortos, por exemplo, ele aplica os mesmos ritos do mago. Assim, é importante admitirmos a existência de um campo de ação comum, um conjunto de rituais e liturgias que se interferem no que diz respeito ao que podemos considerar de forma generalizante pela categoria magia e pela ideia do que seria religião. A partir disso, é possível perceber que a principal diferença entre magia e religião não está nas práticas em si, mas na forma como determinadas sociedades conceberam os ritos, como no caso da romana, por exemplo, em que se concebeu a existência de rituais e crenças ilícitas e supersticiosas (superstitio) e devoção e piedade aos deuses aceitas (religio). Assim sendo, podemos considerar que muitos textos advindos das sociedades mediterrânicas irão conceber a magia Como, por exemplo, nos rituais das defixiones 6, 19, 20, 23 e 30 do Catálogo de defixiones laciais elaborado por Carlos Eduardo da Costa Campos (2021). 4 329 Semíramis Corsi Silva enquanto alteridade (CAMPOS, 2021, p. 22, 26), apresentando a mesma como uma série de procedimentos técnicos para fins cotidianos que podiam estar presentes mesmo na religiosidade oficial, mas que se configuraram como uma alteridade Os escritores romanos de diversos gêneros escreveram sobre as práticas consideradas aqui sob a rubrica de magia. Em relação à literatura, os escritores do contexto romano criaram personagens, descreveram rituais em seus pormenores, a partir de seu olhar, biografaram e recriaram personagens envolvidos em magia e se mostraram muito originais. Podemos citar vários autores e suas obras, entre ele: Virgílio (em Eneida, IV, 450-705 e na Écloga 8), Ovídio (em Os fastos, Remédios para o amor, A arte de amar e nas Elegias), Horácio (nos Epodos e nas Sátiras), Propércio (nas Elegias), Petrônio (no Satyricon), Lucano (em Farsália), Sêneca (na tragédia Medeia), Apuleio (nas obras Apologia e O asno de ouro), Pseudo-Quintiliano (nas Declamações Maiores 14 e 15), Luciano (em Alexandre ou o falso profeta e Diálogo das cortesãs) e Filóstrato (em Vida de Apolônio de Tiana), por exemplo. Neste texto nos concentraremos em Horácio (Quintus Horatius Flaccus), escritor romano que viveu entre 65 e 8 AEC, considerado o poeta romano que mais escreveu sobre a temática da magia. Buscaremos analisar elementos da importante criação literária de Canídia e Ságana, consideradas as primeiras feiticeiras literárias de Roma e, consequentemente, personagens de grande valor para nossa percepção de elementos de gênero na criação do estereótipo da mulher 330 Gênero e Magia em Roma praticante de magia. Além disso, tais personagens são importantes também para o desenvolvimento de um imaginário sobre a magia, mais especificamente sobre a mulher feiticeira, que acabou ultrapassando as fronteiras do antigo Império Romano, constituindo-se como um protótipo da bruxa velha e sábia, encontrado futuramente em diversas representações artísticas de outros contextos históricos como, por exemplo, em algumas pinturas do artista espanhol Francisco de Goya (1746-1828), tais como: Vuelo de brujas (1798), El aquelarre (1798), El conjuro (1798), La cocina de las brujas (1798), Linda maestra (1799), Mucho hay que chupar (1799), El aquelarre ou El Gran Cabrón (1819-1823), Sueño de hechicera (1819-1823) e Mala mujer (1819-1823). Em relação aos poemas de Horácio, as personagens de Canídia e Ságana aparecem juntas na Sátira I, 8 e no Epodo 5. Canídia ainda aparece sozinha no Epodo 3, quando ela é referida como uma mulher pérfida que produz venenos/magias (venena); na Sátiras II, 1, na Sátira II, 8 e no Epodo 17, sendo esse último um poema dedicado somente a ela, quando o poeta se redime perante a feiticeira (verso 1 ao 52) e lhe deixa falar (verso 53 ao 81). Cumpre ressaltar que os dois livros das Sátiras de Horácio foram publicados entre 35 e 30 AEC e os Epodos foram publicados em 30. O Livro I das Sátiras foi o primeiro publicado por Horácio, embora seja possível que alguns Epodos tenham sido escritos antes de algumas Sátiras. Não podemos precisar, portanto, a ordem exata de aparição 331 Semíramis Corsi Silva das personagens de Canídia e Ságana na poesia horaciana, havendo pesquisadores que apontam o Epodo 5 como tendo sido escrito antes da Sátira I, 8, os dois principais poemas em que elas são protagonistas (TUPET, 1975, p. 318; PAULE, 2017, p. 44). Segundo Maxwell Teitel Paule (2017, p. 44), seguindo os autores que defendem que a escrita do Epodo 5 foi anterior à escrita da Sátira I, 8: “a menção de um cemitério no Esquilino no Epodo 5 sugere que o poema foi escrito (ou talvez simplesmente definido) antes das renovações de Mecenas que aparecem na Sátira 1.8”. Tais renovações transformam o cemitério em um jardim, como mostra a Sátira em questão. Neste texto, nos centraremos na Sátira I, 8, a fim de analisar melhor os elementos e o estilo do poema. A representação de Canídia e Ságana na Sátira I, 8 de Horácio A Sátira I, 8 tem como cenário o antigo cemitério de plebeus e escravos nas Esquílias, local em que Mecenas, o futuro patrono das artes do imperador Augusto (27 AEC - 14 EC) e amigo pessoal de Horácio, transformou em um jardim, como comentado acima. O narrador, um ponto importante do tom satírico do poema, é o deus itifálico Priapo, colocado ali como uma espécie de espantalho que, além de trazer proteção divina para o jardim, ainda serve para de fato espantar passarinhos e ladrões. Priapo nos conta que: 332 Gênero e Magia em Roma Olim truncus eram ficulnus, inutile lignum, cum faber, incertus scamnum faceretne Priapum, maluit esse Deum. Deus inde ego, furum aviumque maxima formido; nam fures dextra coercet obscaenoque ruber porrectus ab inguine palus, ast inportunas volucres in vertice harundo terret fixa vetatque novis considere in hortis. huc prius angustis eiecta cadavera cellis conservus vili portanda locabat in arca; hoc miserae plebi stabat commune sepulcrum; Pantolabo scurrae Nomentanoque nepoti mille pedes in fronte, trecentos cippus in agrum hic dabat, heredes monumentum ne sequeretur. nunc licet Esquiliis habitare salubribus atque aggere in aprico spatiari, quo modo tristes albis informem spectabant ossibus agrum. Uma vez eu fui um tronco de figueira, uma madeira sem valor. Na ocasião, o carpinteiro esteve em dúvida se fazia um banquinho ou um Priapo, escolheu que eu seria um deus. Um deus, então, eu me tornei, de ladrões e passarinhos, o terror; com uma estaca vermelha, obscenamente projetada da virilha, com a mão direita, atemorizo os ladrões. Uma cana pendurada na minha coroa, assusta os pássaros travessos e os impede de pousar novamente no jardim. Neste lugar, outrora, o escravo colocava os cadáveres rejeitados de seus companheiros, que tinham que ser carregados em pobres esquifes. Era um sepulcro comum da plebe miserável, para o parasita Pantolabo e para o esbanjador Nomentano. O pilar marcava no campo, à mil pés na frente e trezentos ao fundo, o monumento não podia ser herdado. Agora é bom morar nas Esquílias e se aglomerar em passeios ao sol, onde, outrora, os tristes somente viam um campo deformado de ossos brancos (HORÁCIO, Sátira I, 8). 5 Na passagem acima, pela figura de Priapo, já temos um importante elemento da sátira. Como vemos, Priapo ameaça ladrões, como as feiticeiras que vão ao cemitério buscar ervas e ossos, com seu A tradução do latim para o português da Sátira I, 8 é de Semíramis Corsi Silva e Gabriel Freitas Reis. Trouxemos toda tradução do poema para este texto, apresentando-a na sequência do poema. 5 333 Semíramis Corsi Silva enorme pênis, sugerindo a penetração (stuprum). A partir de passagens como essa da poesia latina, a historiadora Amy Richlin (1992) desenvolveu o chamado Priapic Model, analisando Priapo como uma figura central de todo humor sexual romano encontrado na literatura e uma metáfora para o papel do próprio poeta satírico. O narrador dos poemas sexuais de humor, assim, aparece sendo Priapo, que na posição de um homem ameaçador, narra sobre suas vítimas de forma ativa, às vezes ameaçando-as de exposição ou penetração, seja vaginal, anal ou oral, liberando, com isso, os sentimentos hostis do poeta em relação às personagens em cena. O falo, nesse sentido, é a arma do narrador e o tom poético da narrativa faz com que as invectivas obscenas de Priapo se tornem aceitáveis. Ainda que pese tal percepção sobre a presença e o sentido do deus Priapo nestes poemas satíricos enquanto metáfora do próprio poeta e de suas denúncias, perspectivas como a de Richlin (1992) endossaram uma visão da importância do papel penetrativo para a masculinidade hegemônica romana, pensando as práticas sexuais dos romanos guiadas pela ideia de que ser penetrado era algo humilhante, especialmente ao cidadão. A partir desse modelo, Priapo seria o reflexo do ideal de masculinidade romana agressiva e penetradora. O modelo penetrativo de análise da sexualidade romana tem sido bastante questionado diante das outras masculinidades possíveis (WILLIAMS, 2010; GODOY, 2015), bem como da análise das diferentes potências do deus Priapo (COZER, 2018). Embora não caiba nesta apresentação entrar neste debate, cumpre destacar que 334 Gênero e Magia em Roma penso Priapo na Sátira I, 8 como parte do elemento satírico do poema. Se Priapo também faz rir, sua masculinidade também é criticada, ele é parte do descontrole. Paradoxalmente, ele é uma ameaça masculina, mas uma ameaça engraçada na Sátira. No antigo cemitério onde hoje nosso Priapo se encontra, as feiticeiras Canídia e Ságana vão em busca de ossos e ervas para seus encantos, dando a oportunidade ao poeta para, por meio do deus-falo, descrever sua visão sobre o aspecto dessas mulheres: cum mihi non tantum furesque feraeque suetae hunc vexare locum curae sunt atque labori quantum carminibus quae versant atque venenis humanos animos: has nullo perdere possum nec prohibere modo, simul ac vaga luna decorum protulit os, quin ossa legant herbasque nocentis. vidi egomet nigra succinctam vadere palla Canidiam pedibus nudis passoque capillo, cum Sagana maiore ululantem: pallor utrasque fecerat horrendas adspectu. scalpere terram unguibus et pullam divellere mordicus agnam coeperunt; cruor in fossam confusus, ut inde manis elicerent animas responsa daturas. Neste momento, para mim, os ladrões e as feras acostumadas a perturbar o lugar, não me causam tanto trabalho e problema quanto aquelas que com seus encantamentos e venenos transformam as almas humanas. De modo algum, eu posso impedir ou proibir que elas venham aqui buscar mirrados ossos e ervas nocivas, assim que a vaga lua traz à luz sua bela face. Eu mesmo vi Canídia caminhando com uma longa toga negra, de pés descalços e com o cabelo desgrenhado, uivando com Ságana, a mais velha. A palidez lhes dava um aspecto horrendo. Elas começaram a escavar a terra com as unhas e a rasgar violentamente uma cordeira negra com os dentes. O sangue foi derramado na cova para atrair os Manes, as almas que trarão as respostas (HORÁCIO, Sátira I, 8). 335 Semíramis Corsi Silva O cenário, portanto, é noturno, pelo próprio caráter ilícito da prática. Horácio sublinha a palidez das feiticeiras e o uivo que elas emitem, o que poderia demonstrar uma identificação com os cães de Hécate. O estado das feiticeiras é animalesco. Canídia e Ságana uivam (ululantem), escavam a terra com as unhas e rasgam a cordeira com os dentes. No Epodo 5, Horácio compara Ságana a um javali (aper) em fuga, enquanto Canídia traz serpentes em seus cabelos e Ságana tem seus cabelos eriçados como um ouriço-do-mar ou uma jibóia. Também como no Epodo 5, o poeta coloca Canídia com os cabelos em desordem na Sátira I, 8, o que talvez fosse uma forma usada pelo poeta para lhe conferir um aspecto horrendo, mas, da mesma maneira, engraçado, lembrando que se trata de uma sátira. Canídia usa uma longa toga preta e tem os pés descalços. Assim, já em Horácio notamos um estereótipo comum de feiticeiras que dura até os dias atuais em certas representações. E, neste momento, Horácio se refere à verdadeira intenção do ritual: interrogar a alma dos mortos (manis/ animas/umbrae) em um rito de necromancia. Mas, mais do que apenas interrogar os mortos, elas querem seu auxílio em um ritual. O cordeiro sacrificado poderia ser uma forma de atrair os mortos ou de agradecêlos pela ajuda. Em seguida, vemos Horácio descrever um rito consagrado na magia de todos os tempos que é o uso de figuras com a finalidade de representar o que se quer atingir. 336 Gênero e Magia em Roma lanea et effigies erat altera cerea: maior lanea, quae poenis conpesceret inferiorem; cerea suppliciter stabat, servilibus ut quae iam peritura modis. Hecaten vocat altera, saevam altera Tisiphonen: serpentes atque videres infernas errare canes lunamque rubentem, ne foret his testis, post magna latere sepulcra. mentior at siquid, merdis caput inquiner albis corvorum atque in me veniat mictum atque cacatum Iulius, et fragilis Pediatia, furque Voranus. Havia duas bonecas, uma de cera e outra de lã, a maior, que aplicava castigos à menor. A de cera estava parada em posição suplicante, como escravos prestes a morrer. Uma chama Hécate, a outra invoca a selvagem Tisífone. Era possível ver serpentes e cadelas errarem sob a lua avermelhada que, para não testemunhar o acontecido, se escondia atrás de uma grande sepultura. Se eu estiver mentindo, que minha cabeça seja suja pela merda dos corvos brancos e venham mijar e cagar em mim Júlio, o frágil Pediacia e o ladrão Vorano (HORÁCIO, Sátira I, 8). Portanto, as feiticeiras trazem duas estátuas, uma de cera e outra de lã, objetos que nos remetem à Lei da Similaridade de James Frazer – imagem e objeto semelhante que serve para sua representação. A arqueologia tem encontrado muitas bonecas de magia em contextos de práticas em todo o entorno do Mediterrâneo antigo. Tais bonecas foram produzidas em um arco cronológico longo, desde os períodos mais recuados, como o etrusco, até a Antiguidade Tardia. Outro material que nos traz o uso dessas bonecas é o Papiro IV da coleção de Papiros Mágicos gregos, onde é ensinado como confeccionar essas figuras de cera ou argila para a prática amorosa (PGM IV. 296-334). 337 Semíramis Corsi Silva A cera tem uma maior recorrência neste tipo de boneca mágica, vemos mais referências a este material nas descrições mágicas em diversas obras. No Idílio II de Teócrito, a jovem feiticeira Simaeta faz um filtro amoroso acompanhado de uma figura de cera que representa o seu amado Delfos. Também no Epodo 17, dedicado às súplicas do poeta à Canídia e à resposta da feiticeira, Horácio cita o uso de bonecas de cera em rituais mágicos. Já a lã é um elemento novo, pouco conhecido. De acordo com J. Pley (1911, apud TUPET, 1976, p. 303), a lã seria usada em práticas mágicas com valores medicinais, religiosos e mágicos por fornecer o material para as bandagens empregadas em curativos, estando associada com o desatar de magias. Essa colocação de Horácio nos faz supor que o rito descrito na Sátira I, 8 seria um ritual que busca desfazer uma magia. Horácio não descreve, como faz no Epodo 5, a vítima da magia, nos permitindo levantar várias suposições, podendo o rito ser de magia amorosa ou vingativa. O que é fato é que a figura de lã se mostra superior, podendo representar Canídia ou a pessoa que quer desatar uma magia, e a de cera, amedrontada, sendo a pessoa que se quer atingir, o feitor do outro ritual. Mas a feitiçaria também poderia ser para Ságana ou para alguém que contratou o serviço das feiticeiras. Ao evocar a fúria Tisífone, a magia pode demonstrar ter um valor de vingança, assim o boneco de cera representa o suplicante temeroso, vítima da feiticeira representada no boneco de lã. Mas pode ser que a boneca de cera 338 Gênero e Magia em Roma representasse a vítima da amarração amorosa e a de lã a feiticeira na visão de Horácio. Tanto a magia vingativa quanto a amorosa foram comuns em Roma, como demostram as defixiones. Canídia chama por Hécate, Ságana invoca Tisífone. O nome de Tisífone, de criação alexandrina, estaria relacionado a um “castigo mortífero”. As feiticeiras soltam um grito e se preparam para enterrar a barba de um lobo e os dentes de uma víbora, este rito parece neutralizar os efeitos dos encantamentos adversos preparados por feiticeiras mais poderosas contra possíveis ataques dos mortos. singula quid memorem, quo pacto alterna loquentes umbrae cum Sagana resonarint triste et acutum utque lupi barbam variae cum dente colubrae abdiderint furtim terris et imagine cerea largior arserit ignis et ut non testis inultus horruerim voces Furiarum et facta duarum? Por que eu deveria lembrar cada detalhe? De que maneira, falando de forma alternada com Ságana, os fantasmas proferiam gritos lúgubres e penetrantes? Como, por furto, elas colocavam na terra a barba do lobo e o dente de uma cobra malhada? Como um grande clarão surgiu na imagem de cera? Fiquei chocado com as vozes e ações dessas duas Fúrias, mas de forma alguma fui incapaz de realizar uma vingança (HORÁCIO, Sátira I, 8). É muito possível que os praticantes de magia da Antiguidade conhecessem as propriedades de substâncias tóxicas de origem vegetal. O uso destas substâncias poderia ser a causa dos estados de transe e movimentação rápida durante os rituais mostrados em representações literárias (TUPET, 1976, p. 291-292), como no poema de Horácio. Tal representação, mais do que uma fantasia do poeta, 339 Semíramis Corsi Silva portanto, poderia reproduzir certos elementos das práticas mágicoreligiosas antigas. Tupet (1976, p. 301) percebe que este era um gesto ritual comum, praticado pelas bacantes que usavam vinho para entrar em êxtase. O estudo desses ritos extáticos, experimentados no âmbito religioso e que podem ser classificados como estados alterados de consciência, é algo que os pesquisadores têm dado pouca atenção em detrimento do estudo dos aspectos externos do rito (sociais, políticos, literários e teológicos) (USTINOVA, 2009, p. 14). Tal frenesi religioso é, então, usado de forma bem negativa como um elemento de alteração dos padrões físicos e psíquicos pela retórica dos escritores, ainda que os valores quanto à compreensão desses fenômenos pudessem ser muito diferentes dos contemporâneos. Vendo a cena, Priapo, então, prepara a vingança. No final da Sátira I, 8, o espantalho do deus emite sonidos engraçados para causar o aspecto cômico, parecidos com um flato. Com esse som, Priapo coloca em fuga as duas feiticeiras. Como nas famosas simbologias apotropaicas dos falos romanos, aqui o deus-falo coloca as feiticeiras para correr, metaforizando, em nossa leitura, o espantar de maus agouros.6 Aqui Horácio expõe as feiticeiras ao ridículo. Canídia perde os dentes e Ságana, de cabelos arrepiados, deixa o material que elas recolheram cair de seus braços. Sobre os sentidos apotropaicos dos falos em Roma, ver Funari; Marquetti (2011) e Garraffoni (2017). 6 340 Gênero e Magia em Roma nam, displosa sonat quantum vesica, pepedi diffissa nate ficus; at illae currere in urbem. canidiae dentis, altum Saganae caliendrum excidere atque herbas atque incantata lacertis vincula cum magno risuque iocoque videres. Pois, como a bexiga cheia faz barulho, abri as nádegas do meu corpo de figueira fendido e emiti um alto roído. Mas, elas correram para a cidade. E com grande riso, verías cair os dentes de Canídia, a eriçada peruca de Ságana, as ervas e os nós encantados dos braços (HORÁCIO, Sátira I, 8). O fato de os dentes de Canídia caírem no final do poema pode nos indicar o uso de uma dentadura, o que poderia se referir à personagem como uma mulher velha (TUPET, 1976, p. 290). Portanto, as feiticeiras de Horácio são mulheres idosas, um modelo que será comum em outras representações de feiticeiras da literatura latina, como a Proselenos de Petrônio (Satyricon), a Erictho de Lucano (Farsália) e Méroe e Pância de Apuleio (O asno de ouro). Os próprios nomes das feiticeiras horacianas podem nos demonstrar algo nesse sentido. De acordo com estudos filológicos, o nome de Canídia poderia vir de canis (cão, cadela). Ou, talvez, do termo canus, branco, acrescentado ao sufixo idius/idia, dando a ideia de ser uma mulher de cabelos brancos, já envelhecida, no sentido figurado (TUPET, 1976, p. 296). A identidade da possível Canídia que teria inspirado Horácio suscitou diversas hipóteses. Uma delas seria que Canídia era Cecília de Como, que aparece em poemas de Catulo sob o pseudônimo Mecília (HERRMANN, 1958). Em outra interpretação, também de 341 Semíramis Corsi Silva Leon Herrmann, Canídia poderia ser a irmã de Canídio Craso, um político romano da gens Canídia que se tornou cônsul em 40 AEC (TUPET, 1976, p. 294). Ou ainda, ela poderia ser Cecília, filha de Clódia Metelli (PAULE, 2017, p. 5). Conforme outra hipótese bastante popular e advinda de informações de Pompônio Porfírio, um escritor do século II EC que comenta as obras Horácio, Canídia seria uma fabricante de unguentos napolitana chamada Gratídia, talvez uma examante que o poeta tinha raiva. Assim, os unguentos de Gratídia seriam identificados com poções mágicas pelo poeta. Horácio não a atacaria diretamente porque isso poderia lhe trazer problemas legais. Sendo possível, por isso, que Horácio tenha empregado uma prática usada pelos poetas elegíacos romanos de dar às mulheres sobre as quais escreviam um pseudônimo de mesmo padrão métrico do nome real. Maxwell Paule (2017, p. 3), no entanto, acredita que essa informação de Porfírio pode ter confundido os estudiosos, não havendo nenhuma Gratídia por trás da Canídia literária. Para esse pesquisador, é mais interessante abordar Canídia como uma personagem puramente ficcional, cujos detalhes foram moldados de forma consciente pelo poeta. Ságana, por sua vez, poderia ter seu nome vindo do vocábulo saga/ae, que significa feiticeira em latim, dessa maneira, ela seria a feiticeira por excelência. Segundo Cícero (De Divinatione, I, 30), sagire significava ter uma percepção profunda e, por isso, mulheres 342 Gênero e Magia em Roma idosas eram chamadas de sagae anus, aquelas que conheciam muitas coisas, também os cachorros (canes) podiam ser chamados de sagaces. Ságana é referida na Sátira I, 8 como Sagana maiore, o que poderia dar-nos a entender que ela era uma mulher velha ou que haveria duas feiticeiras com esse mesmo nome, uma mais jovem e a mais velha que acompanha Canídia na Sátira I, 8. Sobre Ságana, Pompônio Porfírio diz que ela teria sido uma liberta de um senador chamado Pompônio (TUPET, 1976, p. 297). O termo latino saga era um dos termos usados para denominar a praticante de magia, como lemos em uma inscrição encontrada no Esquilino em Roma, no túmulo de Iucundus, uma criança de quatro anos, escravo de uma mulher chamada Lívia. Tal inscrição nos remete à crença em assassinatos de crianças realizados por feiticeiras, as sagae.7 Na inscrição temos a seguinte mensagem: Iucundo, o escravo de Lívia, a esposa de Draco César, filho de Gryphus e Vitalis. À medida que cresci para o meu quarto ano, fui preso e morto, quando tive potencial para ser doce para minha mãe e pai. Eu fui arrebatado pela mão de uma feiticeira [saga manus], sempre cruel desde que permaneça na terra e prejudique sua arte. Pais, protejam bem seus filhos para que a tristeza desta magnitude não se implemente em seu peito” (CIL, VI, 19747, Roma, dat. 1 a 50 EC). Tibulo (Elegias, 1, 5) e Apuleio (O asno de ouro, 1, 8) também chamam as feiticeiras de sagae. Vemos, assim, como Horácio, ao Lembremos que a morte de uma criança é assassinato forçosamente premeditado, recaindo sobre a Lex Cornelia de sicariis et veneficis, que vigorava na época de escrita dos poemas e que pautou o crime contra praticantes de magia (veneficus/ venefica). 7 343 Semíramis Corsi Silva nomear Ságana dessa forma, caracteriza suas feiticeiras como modelo da mulher praticante de magia em sua ótica, corroborando uma tradição anterior que coloca a mulher como agente mágico por excelência, ainda que forneça uma grande contribuição nova para a caracterização desse modelo de personagem, como mostrarei. Porém, antes de entrar nesse tema, é importante trazermos um pouco do debate em relação à questão de gênero e as práticas mágicas, para depois voltarmos ao poema de Horácio em análise aqui. Algumas considerações sobre gênero e magia na Antiguidade greco-romana Como na poesia horaciana analisada, de maneira geral, a mulher será a personagem da magia nos textos da literatura antiga, ainda que tenhamos algumas narrativas como as histórias em torno de Apolônio de Tiana e as representações de Alexandre de Abonoteico, feita por Luciano (Alexandre ou o falso profeta), por exemplo. No entanto, tais personagens não são literários, mas sujeitos da vida real. Assim como tais personagens da vida real são em geral homens, a historiografia, com base em análises de material arqueológico, tem nos trazido um contraponto à representação literária majoritária de mulheres como feiticeiras. Os grandes praticantes de magia dos papiros mágicos gregos são homens, especialmente da magia erótica, onde é comum termos a agência masculina sobre uma vítima feminina (WINKLER, 1991, p. 215, GRAF, 1994, p. 211). Também em relação 344 Gênero e Magia em Roma às imprecações mágicas (defixiones), é comum termos homens praticando ritos que envolviam disputas (jurídicas, comerciais, esportivas) e práticas de magia erótica (GRAF, 1994, p. 211-212). Os achados arqueológicos apontam que aproximadamente um quarto das tabuinhas de magia existentes diz respeito à magia erótica (GAGER, 1992, p. 78, apud STRATTON, 2014, p. 165). E, nessas práticas de magia erótica, os homens constituem a esmagadora maioria dos peticionários, sendo que 86% das tabuinhas gregas estudadas pelo pesquisador Christopher Faraone são de homens buscando conquistar uma mulher (FARAONE, 1991, p. 8, apud STRATTON, 2014, p. 168). Não há como sabermos exatamente qual a intenção da magia da Sátira I, 8, mas é possível que fosse uma magia com finalidades amorosas, uma vez que os nós encantados que caem dos braços das feiticeiras, ao final do poema, podem aludir a práticas de magia erótica (OGDEN, 2009, p. 116). No Epodo 5, temos claramente a intenção do ritual das feiticeiras, fazer um filtro amoroso (amoris poculum) com os órgãos de um menino sequestrado por elas, a fim de conquistar Varro, o amado de Canídia. Embora as feiticeiras da literatura latina tivessem diversas habilidades, a magia amorosa foi a principal prática que elas foram representadas realizando.8 No entanto, a arqueologia nos mostra o contrário, como vimos. Então, se a cultura material atesta a presença superior de homens Como o caso da feiticeira da Écloga 8, de Virgílio, ou de Dido, a rainha de Cartago, que busca destruir seu amado Enéias após ter sido abandonada por ele nas descrições desse mesmo poeta na Eneida, IV, 507-521. 8 345 Semíramis Corsi Silva praticantes de magia, qual a razão de as mulheres serem as personagens proeminentes da literatura romana? O primeiro pesquisador a apresentar uma tese sobre a preponderância de homens praticantes de magia e a discrepância da literatura no contexto da Antiguidade Clássica, especificamente nos casos de magia erótica (ἀγωγαί), foi John Winkler (1991), o que ele faz através da percepção psicanalítica da projeção. De forma resumida, esse pesquisador pontua que os homens lançavam feitiços sexuais sobre as mulheres por conta de sua avidez sexual, buscando o que Winkler chama de cura para Eros, pensando Eros agindo sobre o corpo com efeitos doentios. As mulheres, para o pesquisador, também podiam cair nos mesmos problemas de Eros, porém, suas práticas eram sempre muito mais vigiadas do que as dos homens, o que nos leva a ter menos exemplos de magia erótica realizada por e para mulheres. Além disso, nessas práticas mágicas, é possível ver homens buscando uma espécie de sofrimento para suas amadas.9 Winkler interpreta isso como uma busca de controle do desejo sexual feminino pelo masculino através de uma projeção de seu próprio sofrimento. Um exemplo interessante dessa busca de sofrimento da amada por meio da magia erótica é a famosa Boneca do Louvre (Inventário E27145b), uma estátua de amarração de cerca de 9 cm., produzida de barro não assado e datada do contexto do século III ou IV EC, encontrada em Antinópolis, no Egito. A boneca representa a figura feminina de Ptoleme, a vítima da amarração, e a prática é realizada por um homem chamado Sarapamon. A boneca é violentamente perpassada por 13 pregos (cabeça, olhos, boca, peito, mãos, vagina, ânus e pés). Essa boneca foi encontrada em um vaso de cerâmica contendo junto uma placa de chumbo. Na magia em questão, o espírito de Antínoo é evocado. Pelo local em que esta amarração foi encontrada, Antinópolis, acreditamos que se trata do jovem Antínoo, o amado do imperador Adriano, morto prematuramente no rio Nilo. 9 346 Gênero e Magia em Roma Já em relação à literatura, segundo Winkler (1991) também seguindo a teoria da projeção, temos os escritores oprimidos pelo desejo sexual por mulheres inalcançáveis e, por meio de um processo de negação, transferindo esse sentimento para as mulheres, constroem as personagens feiticeiras. Portanto, tais criações literárias são projeções do próprio comportamento dos homens nessa leitura. No entanto, como vemos, o foco de Winkler é nas magias eróticas e não na preponderância de homens em práticas mágicas de forma geral e seu contraponto literário. Depois de Winkler temos os estudos de Fritz Graf (1994), que observa a problemática da preponderância masculina nas antigas práticas de magia como um todo a partir de uma perspectiva das relações de gênero e as competições e disputas por poder nas sociedades greco-romanas antigas. Para Graf (1994, p. 212), no caso das magias por questões jurídicas, esportivas e comerciais, fica visível que tais disputas eram realmente mais comuns aos homens, pois eram eles que, principalmente, tramitavam no âmbito jurídico, comercial e esportivo da sociedade romana, ainda que as mulheres se fizessem presentes nestes espaços, porém de maneira menor e mais subalternizada. No segundo tipo de prática, a magia amorosa, a mais frequente no contexto greco-romano, o caso mais comum é de homens que ensaiam para possuir um casamento com uma mulher. Nesse caso, Graf (1994, p. 212) também sugere que analisemos a superioridade 347 Semíramis Corsi Silva masculina no âmbito das relações de poder, já que os casamentos eram uma forma do homem adquirir bens e status social. No entanto, Graf (1994, p. 214-215) também percebe que esse modelo de transferência dos bens via mulher não resolveria toda problemática, uma vez que tal transferência não se fazia nunca pela vontade das mulheres, mas de seu pai. Observando que os papiros e defixiones mostram a busca por um amor louco e descontrolado, o autor acredita, então, que as práticas de magia erótica serviam às paixões mais íntimas e àquelas não aceitas socialmente, o que, no entanto, não responderia ao problema de termos mais homens praticando magia na cultura material que chegou para nós. Sobre as razões de as mulheres serem as feiticeiras por excelência da literatura greco-romana, Graf (1994, p. 215-216) aponta que os discursos queriam mostrar o perigo que o amor de uma mulher poderia oferecer à autonomia dos homens. Além disso, tais narrativas literárias de magia erótica praticadas por mulheres poderiam fornecer uma explicação sobre o amor desenfreado de um homem por uma mulher e perda de controle. Em um estudo mais recente, voltando às teorias psicanalíticas das quais, de certa forma, Winkler também buscou subsídios para sua análise, Kimberly Stratton (2014) visa responder a questão sobre a preponderância feminina nas representações literárias de feiticeiras antigas por meio da teoria da abjeção de Julia Kristeva. Tal proposta 348 Gênero e Magia em Roma sugere que as mulheres são frequentemente associadas à abjeção através da ideia de um abjeto primordial, que seria à recusa ao corpo da mãe e sua rejeição por parte do ego do indivíduo em seus primeiros anos. Isso acontece a fim de que a pessoa se desenvolva e para que a identidade individual possa surgir. Assim, Stratton defende que as bruxas da literatura latina seriam colocadas sempre como mulheres, uma vez que representações exageradas e hiperbólicas de mulheres praticando magia sugerem que esses retratos de gênero comunicavam a qualidade abjeta da magia. A alteridade feminina concretizou, assim, a alteridade da magia e vice-versa, segundo Stratton. Não acreditamos que as propostas de viés psicanalítico de Winkler e Stratton estejam erradas na tentativa de analisar as razões de as personagens mulheres serem regra nos textos da literatura grecoromana. Mas, como historiadores, talvez não seja necessário ir tão longe apoiando-se na Psicanálise para dar respostas à questão sugerida. Por ser considerada uma prática negativa e proibida – lembrando que com a primeira lei romana escrita, a Lei das doze Tábuas já temos a criminalização da magia10 – é comum que essa prática seja vista como algo do universo feminino por poetas homens em meio a uma sociedade misógina. Não se admitia, assim, ser o homem antigo, guerreiro e conquistador, um praticante da nefasta arte da magia. Se a magia era algo fora da normalidade e da ética, ela só Sobre as leis romanas e o crime de praticante de magia, nas diferentes terminologias que aparecerão nas leis, ver Silva (2019). 10 349 Semíramis Corsi Silva podia ser prática de mulheres. Além do mais, pela dimensão de poder que o ritual oferecia ao praticante, a capacidade de mudar o curso dos eventos, ele era ainda mais terrível quando ligado ao universo feminino. Também é preciso considerar que as feiticeiras romanas literárias são muito mais negativas e horrendas do que as gregas, essas descritas como jovens e bonitas. E, neste sentido, Horácio, com suas feiticeiras Canídia e Ságana, pode ser considerado precursor na criação de um novo modelo de mulher feiticeira que será, a partir de então, comum em Roma, o da feiticeira feia, velha e muito mais abjeta. Em relação à mudança de perfil da feiticeira literária das gregas para as romanas, corroboro com Barbette Stanley Spaeth (2014) que, ao buscar perceber as razões pelas quais as feiticeiras romanas literárias são muito mais negativas e horrendas do que as gregas, acredita que na sociedade romana, a partir da República Tardia, as mulheres tiveram consideráveis papéis em aspectos econômicos e nos trâmites do poder político, embora esse poder fosse não oficial e altamente contestado, enquanto seu papel na religião do Estado era altamente restrito. Assim, para a historiadora citada, a ideia de que as mulheres romanas pudessem exercer um poder religioso ilegítimo seria algo altamente ameaçador ao controle masculino da sociedade. Esse medo, portanto, levou aos retratos altamente negativos de mulheres praticantes de magia nos textos latinos, produzindo a 350 Gênero e Magia em Roma imagem da feiticeira cujo poder podia destruir a “lei natural” (SPAETH, 2014, p. 53-54). Spaeth (2014, p. 54) também considera o contexto que a imagem desses praticantes de magia emerge, um momento em que houve certo declínio nos padrões sócio-morais, afetando os papéis tradicionais de gênero que poderão ser vistos nas leis de Augusto em relação ao casamento, por exemplo.11 Sua conclusão é que as feiticeiras literárias representam um modelo altamente negativo para o comportamento feminino e, assim, ajudam a reafirmar os papéis femininos tradicionais da sociedade, o que concordamos. Lembremos também que pouco antes da escrita dos poemas de Horácio sobre as feiticeiras, em 81 AEC, foi instituída pelo cônsul Lúcio Cornélio Sula a Lex Cornelia de sicariis et veneficis, que daí em diante passou a pontuar as ações legais contra a magia ao incluir na lei a punição contra o uso de substâncias com o poder de afetar outrem negativamente (venena mala), provocando a morte, emparelhando a magia ao envenenamento e agravando o crime dos praticantes.12 Na análise específica das feiticeiras criadas por Horácio devemos considerar outros elementos do contexto de produção, por volta de 40 e 30 AEC. Sabemos que em 33 AEC, Agripa, então edil, proíbe a permanência de astrólogos e magos em Roma (Dião Cássio, História Romana, 49, 43). Pouco tempo depois, a ascensão de Otávio Sobre tais leis, ver Azevedo (2017). James Rives (2003, p. 318), no entanto, acredita que esta lei não foi uma criação de Sula propriamente, mas uma reorganização simplificada de leis já existentes sobre questões de assassinatos. 11 12 351 Semíramis Corsi Silva como Augusto e Príncipe inaugura um novo ciclo, em que o governante se vê como único intérprete dos deuses (Grimal, 1992, p. 37) e passa a promover uma série de pautas morais. Além disso, Augusto “em seu processo de apoderamento político sobre os quattuor amplissima collegia sacerdotum Romanorum13 (29 AEC – 14 EC), buscou controlar as práticas de adivinhação em Roma, visando tirar de circulação aquelas que não estivessem sob seu poder” (Campos, 2021, p. 35). Era um período de transformações políticas intensas, no qual era preciso controlar os romanos, seus atos e as grandezas do Império conquistado. Assim, a magia estaria como a cobiça, a avareza, o adultério, também criticados por Horácio em sua obra, colocando em risco o patrimônio ético sobre o qual se estrutura a sociedade romana. Lembremos ainda que Horácio será um poeta da corte de Augusto, um divulgador de seus feitos e de suas perspectivas. No período de escrita das Sátiras, Horácio já era próximo de Mecenas e de Otávio (o futuro Augusto). Horácio é apresentado a Mecenas pelos amigos, e também poetas, Virgílio e Vário, no ano de 39 AEC. Na Sátira I, 6, Horácio descreve o primeiro contato com o amigo Mecenas e diz que, nove meses depois do primeiro encontro, ele foi convidado para fazer parte do círculo de poetas que louvariam os feitos de Otávio, o entorno de 13 Colégios sacerdotais de Roma. 352 Gênero e Magia em Roma Mecenas. Nesse momento, Otávio ainda não havia se tornado Augusto, era a época do Segundo Triunvirato (43-33 AEC). Voltando ao poema em análise, a própria ambientação da cena das práticas mágicas de Canídia e Ságana na Sátira I, 8, o antigo cemitério no Esquilino que Mecenas transformou em um jardim, pode nos dizer algo sobre o contexto e a mensagem que Horácio quis passar. Dessa maneira, seguindo a interessante análise de Arlete José Mota (2010), podemos pensar que: Na sátira, Horácio opõe o passado ao presente, informando para que servia o local, antes cemitério e, no tempo da narrativa, jardim. As feiticeiras para lá se dirigem, resgatando a utilização do lugar no passado, com intentos maléficos, e são afugentadas por um medroso Priapo, que consegue tal façanha de forma inesperada. Metaforicamente, podemos relacionar a alusão à transformação do lugar a renovações provocadas pelos novos ideais da época de Augusto. Nesse caso, entendemos ainda mais o distanciamento: a própria figura do deus é enfraquecida em sua atribuição original e, defendendo o jardim de forma inesperada, representa uma mudança. [...] O passado é representado pela utilização do local como cemitério e o presente se caracteriza pela construção dos novos jardins – quando há uma alusão aos ideais de Augusto (MOTA, 2010, p. 115-117). Assim sendo, concordamos com Carlos Eduardo da Costa Campos (2021, p. 38) ao propor que pensemos os textos literários latinos do período augustano, no que tange às representações de mulheres feiticeiras, como exemplum de padrões de comportamento aos cidadãos romanos, visando “encorajar o jovem romano, bemnascido, a se conformar aos padrões positivos incorporados pelos seus 353 Semíramis Corsi Silva ancestrais” e, em nossa leitura, os desencorajando a seguirem comportamentos execráveis, como as práticas de magia. Portanto, ao escrever seus poemas sobre as feiticeiras, Horácio estabelece um diálogo com a camada social que faz parte e mostra que não admite ser a magia algo masculino, isso contraria o ideal guerreiro romano, indo em oposição à construção do austero, resistente e verdadeiro cidadão de Roma. Da mesma forma, o poeta corrobora as pautas morais que em breve seriam colocadas em cena pelo imperador. As ímpias práticas de magia se opunham aos costumes ancestrais (mores maiorum), só podendo ser uma prática de mulheres, consideradas desmedidas, especialmente no que diz respeito à libido e ao amor. Porém, mesmo sendo considerada uma prática feminina, a magia de Canídia e Ságana era cruel e digna de maldição, como mostram as palavras do menino morto no Epodo 5, mas também era ridícula, desprezível e motivo de risada, como vemos na Sátira I, 8. Considerações finais Para encerrar este texto, é importante perceber que a Sátira I, 8 é considerada por alguns críticos da obra de Horácio como a sátira de caráter mais agressivo escrita pelo poeta, o que demonstra o quão terriveis eram as práticas mágicas na visão do poeta, ao mesmo tempo que também é considerada uma das mais divertidas do corpus (MOTA, 2010, p. 107). Pelo seu caráter satírico, esse poema, 354 Gênero e Magia em Roma especificamente, visou expor questões comportamentais, podendo, com isso, servir como veículo dos ideais político-sociais da época, contrapondo atitudes inaceitáveis aos padrões considerados aceitáveis (MOTA, 2013). É neste sentido que, seguindo o Priapic Model de Richlin (1992), vemos justamente a figura de Priapo como componente importante do poema, pois, como um deus itífálico, ele torna a narrativa engraçada, mas ao mesmo tempo metaforiza a dominação masculina e fálica sobre as feiticeiras, velhas criminosas que subvertem papéis de gênero, em especial pelo seu desejo amoroso desenfreado. Por fim, como bem observou Stratton (2014, p. 152) em relação à feiticeira Erictho da Farsália de Lucano, podemos também perceber que as feiticeiras de Horácio transgridem princípios básicos e até mesmo assentados em valores universais da civilidade ao desrespeitarem os mortos que elas incomodam em seus rituais necromânticos e ao recolher seus ossos no Esquilino. O cemitério, ou um antigo cemitério como no caso da Sátira I, 8, era o local dos antepassados, as sepulturas pertenciam aos mortos e por isso eram consideradas também sagradas (res religiosae). Ao violar esse espaço, as feiticeiras também estariam de alguma forma infringindo os costumes ancestrais, o que resultou em leis de Augusto contemplando a violação de sepulturas como crime. 355 Semíramis Corsi Silva Além disso, as feiticeiras literárias de Horácio transgridem os limites entre humano e divino ao visarem mudar a ordem das coisas com suas próprias mãos por meio da magia. Dessa forma, Canídia e Ságana invertem a própria ordem da natureza, transgredindo o limite da piedade e da devoção aos deuses e, diante disso, lhes cabe a representação como bestas em estado animalesco. Referências Documentação APULEIO. O asno de ouro. Tradução de Ruth Guimarães. São Paulo: Editora 34, 2019. APULEIUS OF MADAUROS. Pro se de Magia (Apologia). Edited with a commentary by Vincent Hunink. Amsterdam: J.C. Gieben Publisher, 1997. CASSIUS DIO. Dio’s Roman History. Vol. IX. Traduzido por Earnest Cary. London/Harvard: William Heinemann/Harvard University Press, 1955. CATULO. O Livro de Catulo. 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Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013), mestrado em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016) e doutorado em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2021). Atualmente é pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente realiza o estágio pós-doutoral no Museu Nacional sob supervisão do professor Dr. André Leonardo Chevitarese. É coordenadora do curso de Ciências das Religiões no UNISIGNORELLI. 2 Ainda assim, chama atenção as pouquíssimas menções a Maria em Marcos, sendo nomeada apenas uma única vez (ver Quadro 1). 1 361 Juliana Batista Cavalcanti Isso significa dizer que até a década de 50, do século I EC, cristãos não estavam interessados em trazer dados sobre a família de Jesus. A única menção feita por Paulo, em Gl 4:4, deixa isso evidente e sua lembrança está diretamente ligada ao interesse de Paulo de evidenciar que Jesus era judeu!3 Olhando atentamente as citações listadas no Quadro 1 percebemos que o desinteresse pela personagem se perpetuou ao longo de todo o primeiro século, estando seu nome associado a reforçar as origens tanto históricas e principalmente teológicas de Jesus. É no segundo campo que, a partir do século II EC, observamos um alargamento de informações sobre Maria, especialmente com o Proto-Evangelho de Tiago4. Assim sendo, se, de um lado, temos uma impossibilidade para os estudos históricos sobre Maria, a mãe de Jesus, por outro, temos um campo fértil para o estudo sobre as recepções dessa personagem, como uma forma, inclusive, de se compreender vozes e agências femininas entre os primeiros séculos de cristianismo. Isso fica ainda mais claro quando nos voltamos para os séculos III e IV EC e rastreamos ao menos três retratos de Maria: (a) O binômio Eva-Maria: trabalhados por autores da patrística, como Tertuliano, Justino e Irineu. Essa categoria funcionava como As duas lembranças feitas por Paulo na Carta aos Romanos (1:3; 9:5) sobre as origens judaicas de Jesus reforçam ainda mais a nossa tese. 4 Dos capítulos do 1 ao 10 vemos uma grande explanação sobre as origens de Maria. O texto apresenta os pais de Maria e possui um profundo diálogo com a Septuaginta. Esses elementos deixam claro os interesses do autor em apresentar uma Maria que atenda as intenções teológicas que virão a seguir: quem era Jesus. 3 362 Maria, a mãe de Jesus, como uma maga forma de reforçar como as mulheres eram compreendidas e qual deveria ser o seu papel nesses cristianismos; (b) A virgindade perpétua de Maria: percepção presente tanto no Proto-Evangelho de Tiago como autores da patrística. Esse retrato visava garantir o status divino de Jesus e simultaneamente eliminar o debate sobre os irmãos de Jesus; (c) Maria como uma maga: há uma extensa documentação, literária e cultura material, que aponta Maria como detentora de conhecimentos mágicos e sua proteção é invocada. Além de ser utilizada como argumento de poder e autoridade para lideranças femininas. Nesse sentido, é sob o viés da recepção que trabalharemos o presente capítulo, dando especial atenção à Maria maga, por entender que ela é o caminho para se pensar vozes e papéis femininos nas primeiras comunidades cristãs. Para tal empreitada teremos sempre em mente o método indiciário proposto pelo historiador italiano Carlos Ginzburg. Maria, a mãe de Jesus, na literatura extracanônica e na cultura material Em 1945 foi descoberto, no Alto Egito, a chamada Biblioteca de Nag Hammadi. Uma coleção de treze códices contendo cinquenta e dois textos diferentes, todos escritos em copta e muitos deles até então desconhecidos. Dentre os diferentes gêneros literários presentes (como cartas, evangelhos e apocalipses), esses materiais contribuíram para 363 Juliana Batista Cavalcanti uma melhor compreensão dos gnosticismos. Além disso, esses textos trazem uma enorme referência a mulheres e a figuras femininas, o que gerou uma empolgação inicial aos pesquisadores pela possibilidade de se ilustrar um outro retrato do papel das mulheres entre as primeiras comunidades cristãs. Porém, essa percepção foi paulatinamente percebendo5 que, apesar dos importantes papéis atribuídos às mulheres e outros seres femininos nesses textos, muitos dos pressupostos patriarcais do antigo mundo mediterrâneo permaneceram operantes nas comunidades cristãs que produziram essa literatura. Dentre as mulheres frequentemente citadas, uma é Maria, a mãe de Jesus. Maria é comumente descrita com outras Marias nessa literatura, assumindo tributos similares aos de outras Marias,6 tal como é relatado no Evangelho de Filipe 28: “Três mulheres costumavam andar sempre com o senhor – Maria, sua mãe, sua irmã, e a Madalena, que é chamada sua companheira. Pois “Maria” é o nome de sua irmã e de sua mãe, e é o nome de sua parceira.” Segundo Hans-Josef Klauck (2007, p. 159), a ênfase do autor do Evangelho de Filipe de afirmar que todas tinham o mesmo nome seria o meio encontrado para apontá-las como as três manifestações da Especialmente a partir de trabalhos como de Mary D’Angelo (1999). François Bovon recorda que no transcurso do tempo diferentes personagens femininas na literatura cristã se viram com tributos, feitos e semelhantes, criando um horizonte literário comparativo. Porém, esses paralelos não implicam em afirmar, por exemplo, que Mariamne, Maria Madalena e Maria, mãe de Jesus, fossem a mesma pessoa. 5 6 364 Maria, a mãe de Jesus, como uma maga verdadeira consorte do Jesus Cristo, Redentor ou Salvador (como Jesus é constantemente denominado na literatura gnóstica): a Sofia! Sofia é a divindade responsável por trazer a instabilidade ao Pleroma, o que resultou na criação, e sem ela o Salvador não estaria completo. Segundo Einar Thomassen (1989, p. 226-227), a Exposição Valentiniana 39 é outro texto que corrobora para a compreensão de que a metade perfeita de Sofia foi separada e tornou-se seu filho Cristo: Quando Sofia, então, recebe o seu parceiro, e Jesus recebe Cristo, e as sementes são unidas entre os anjos, então a perfeição recebe Sofia em alegria, e tudo é reunido e reintegrado. Pois então os reinos eternos receberam a sua abundância, pois eles compreenderam que, mesmo que mudem, permanecem imutáveis. Assim sendo, Maria, a mãe de Jesus, personifica um dos três pares místicos (szígias) presentes na gnose valentiniana7, carregando consigo mistérios ou conhecimentos que estão disponíveis apenas aos iniciados por meio de rituais como o batismo, a ceia, a câmara nupcial e a unção, quando estes ficam preenchidos pela palavra ou o logos de Sofia (MEYER, 2007, p. 124, 194). Esse conhecimento era transmitido também pelo processo de repetição de palavras que remetiam à ideia de um retorno e encontro entre o Salvador e a Sofia em diferentes estágios da vida do Jesus terreno, como se lê (Exposição Valentiniana 42): “[Do] mundo ao Seguimos a leitura de autores como Klauck (2002) e Layton (2002) que inserem o Evangelho de Filipe no corpus valentiniano, devido ao elevado número de menções feitas a esse material por autores vinculados a esse tipo de cristianismo. 7 365 Juliana Batista Cavalcanti [Jordão], das [coisas] do mundo para [a visão] de deus, do [carnal] ao espiritual, do físico ao angelical, da [criação] à perfeição, do mundo ao reino eterno.” O fragmento acima oferece um relato sobre a origem do universo e como o equilíbrio do universo está diretamente associado ao retorno de Sofia para o reequilíbrio do Pleroma, por meio do seu reencontro com o Salvador. A mãe de Jesus também é retratada como uma das representações de Sofia em Pitis Sofia e Diálogos do Salvador. Diferentemente dos textos anteriores, nem sempre fica evidente a qual das Marias o documento se refere. Esse amálgama parece ser fruto também do fato de elas compartilharem os tributos que as identificam como Sofia, assim sendo, o leitor/ouvinte desses textos poderia interpretar a Maria tanto como a Madalena ou a mãe de Jesus, por exemplo8. Em todo caso, podemos afirmar que Maria, mãe de Jesus, é apontada como aquela que compreendeu e era uma profunda conhecedora dos mistérios, a tal ponto de o próprio Salvador lhe dizer, após esta explicar o significado do canto de Sofia: “Bem dito, Maria! Tu és abençoada” (Pitis Sofia 34). Esse retrato parece ter impactado uma comunidade cristã na Arábia Saudita em que mulheres justificavam a sua liderança a partir Alguns autores como Antti Marjanen (1996, p. 63-64) tentaram por meio da forma de escrita diferenciar as Marias. Porém, essa hipótese rapidamente se revelou facilmente refutável por ausência de referências internas e de a mesma grafia se apresentada em outros casos para ambas as Marias, a Madalena e a mãe de Jesus. 8 366 Maria, a mãe de Jesus, como uma maga da figura de Maria, segundo o relato de Epifânio de Salamina (PANARION, 59.1-7): Outra seita veio a público depois disso, e já mencionei algumas coisas sobre ela na carta sobre Maria que escrevi à Arábia (...) Pois como, há muito tempo, aqueles que, por uma atitude insolente em relação a Maria, acharam por bem suspeitar dessas coisas estavam semeando suspeitas prejudiciais nas mentes das pessoas, também essas pessoas que se inclinam na outra direção são culpadas de fazer o pior tipo de dano (...) Pois o mal causado por ambas as seitas é igual, pois uma menospreza a Santa Virgem enquanto a outra, por sua vez, a glorifica em excesso. E quem, senão as mulheres, são as professoras disso? As mulheres são instáveis, propensas ao erro e mesquinhas (...). Pois certas mulheres decoram uma cadeira de barbeiro ou um assento quadrado, estendem um pano sobre ele, colocam o pão e o oferecem em nome de Maria em um determinado dia do ano, e todos partilham do pão (...) É interessante observar que Epifânio deixou escapar que não era a primeira vez que ele escrevia contra esse grupo de mulheres, além do tom da carta ser de bastante irritação. Esses elementos se revelam como verdadeiros indícios de um poderoso culto feminino centrado na figura de Maria, sendo ela invocada para a realização do ritual da ceia. Esse é um dado fantástico, pois quando nos voltamos para os chamados amuletos mágicos cristãos, identificamos ainda mais a notoriedade da mãe de Jesus no cotidiano dos primeiros cristãos. No Egito foram encontradas mais de 400 referências a ela com o objetivo de se obter curas, proteção contra o mau olhado, ajuda no parto e combater maldições. Segundo Theodore de Bruyn (2017, p. 109), essas referências à Maria revelam as origens das primeiras práticas de ver Maria como 367 Juliana Batista Cavalcanti uma intercessora, como se percebe na leitura do encantamento produzido por um monge ou clérigo cristão (ACM 13): (...) e que curou novamente, que ressuscitou Lázaro dos mortos ainda no quarto dia, que tem curou a sogra de Pedro, que também realizou muitas curas não mencionadas além das relatadas nos evangelhos sagrados: cure aquela que usa este amuleto divino da doença que a aflige, por meio das orações e intercessão da sempre mãe virgem, Theotokos e tudo (...) Essa visão de Maria como intercessora é contemporânea ao culto aos santos para obtenção de curas. Em Oxirrinco, diferentes igrejas estavam sendo dedicadas a figuras como João Batista, Justo, Sereno, Filoxeno e à própria Maria, revelando a força que o culto aos santos se estabeleceu entre os séculos V-VI EC. Isso também ajuda a explicar amuletos em que Maria aparece junto com o mártir Jorge. Contudo, a imagem de Maria como uma maga parece ter sido poderosa o suficiente para a produção de amuletos em que apenas o seu nome é mencionado, como o caso desse (ACM 13): Todas as coisas estejam sujeitas a mim [isto é, Maria], aquelas do céu e aquelas da terra, e aquelas que estão abaixo da terra. Eu sou Maria, eu sou Miriam, eu sou a mãe da vida de todo o mundo, eu sou Maria. Deixe a pedra [quebrar], deixe a escuridão se dissipar diante de mim. [Deixe] a terra rachar. Deixe o ferro se dissolver. Deixe os demônios recuarem diante de mim. Deixe o [...] aparecer para mim. Deixe os arcanjos e anjos virem e falarem comigo até que o Espírito Santo limpe o meu caminho. Segundo Theodore de Bruyn (2017, p. 217-18), o encantamento acima, escrito em copta, é uma tradução do grego. Isso significa dizer que ele já estava anteriormente em circulação. Além 368 Maria, a mãe de Jesus, como uma maga disso, o texto incorpora elementos judaicos, gnósticos, canônicos e litúrgicos, onde Maria é vista como uma poderosa maga capaz de proteger o portador do amuleto. Outro bom exemplo de que Maria detinha tais conhecimentos pode ser encontrado no Evangelho de Bartolomeu, que tem seus estratos mais antigos contemporâneos ao EvFl. Nesse Evangelho, Maria, apesar de não ser apresentada como Sofia, é descrita como uma visionária poderosa, tendo tido a oportunidade de vivenciar os mistérios do ritual da ceia com um anjo descrito como o pai de Jesus (EVBART 2:15-21): Quando eu vivia no templo de deus e recebia meu alimento de um anjo, um dia apareceu-me alguém na forma de um anjo, embora seu rosto fosse indescritível, não trazendo em sua mão nem pão nem cálice, o que o diferenciava do outro anjo que até então se aproximava de mim. Imediatamente o véu do templo se rompeu e a terra tremeu intensamente. Eu caí com o rosto por terra, pois não podia suportar a visão de sua face. Ele, no entanto, estendeu-me sua mão, erguendo-me. Elevei meus olhos para o céu. Uma nuvem de neblina caiu sobre mim, umedecendo-me, umedecendo-me da cabeça aos pés. Ele enxugou-me com sua túnica e disse-me: “Salve, cheia de graça, ó vaso escolhido! Bateu então sobre o lado direito de sua túnica e surgiu um pão extremamente grande, que ele depositou sobre o altar do templo. Primeiramente ele próprio comeu, oferecendo depois também a mim. Bateu mais uma vez, desta vez sobre o lado esquerdo da túnica, surgindo um cálice extremamente enorme, cheio de vinho. Ele o colocou sobre o altar do templo, bebeu dele e depois ofereceu a mim. Eu olhei e vi que do pão nada faltava e que o cálice continuava cheio como antes. Ele disse-me então: “Dentro de três anos enviarei minha palavra a ti e tu conceberás meu filho. Por meio dele toda criação será salva, e tu trarás a salvação para o mundo. A paz esteja contigo, amada, minha paz sempre estará contigo”. Com essas palavras ele desapareceu de meus olhos e o templo voltou a ser como era antes. 369 Juliana Batista Cavalcanti Hans-Josef Klauck (2007, p. 127) destacou que, segundo o relato, Maria é a primeira a conhecer os mistérios que mais tarde seriam reproduzidos por Jesus a seus discípulos, sendo que ela foi iniciada por um anjo, o que a colocava num grau acima dos demais e tão poderosa quanto o seu próprio filho. Outro ponto interessante é que a explanação é precedida de falas em hebraico, o que remete ao ambiente da magia, haja vista há outros exemplos na literatura cristã: (a) A cura da filha de Jairo feita por Jesus em Mc 5:41; (b) O relato da ressurreição de Dorcas por Pedro em At 9:26-42; (c) Mariamne, a irmã de Filipe, quando é descrita como uma oradora carismática capaz de realizar curas (AF 9:115). Além disso, a revelação ou os ensinamentos de Maria sempre são feitos em contexto de disputa entre Pedro, Maria Madalena e Bartolomeu para ver qual deles conseguiria falar com a mãe de Jesus. Como os episódios se dão após a morte de Jesus, podemos então aferir que, para as comunidades que leram/ouviram esse texto, a mãe de Jesus é apontada como a continuadora do movimento. Um retrato interessante que reúne misticismo e poder atribuídos a uma mulher e que também se faz presente na cultura material, tal como se verifica no afresco e no marfim apresentados abaixo: 370 Maria, a mãe de Jesus, como uma maga Figura 1: Afresco, abside de Maria, Capela 17 do Mosteiro Bawit, Egito, entre os séculos V e VII EC. Figura 1A: detalhe do afresco. Maria com os dois braços levantados, o pano pendurado em um cinto em sua cintura. 371 Juliana Batista Cavalcanti Figura 2: Maria, a mãe de Jesus, com indumentária de bispa, 720-970 EC, Palestina ou Egito. Segundo Ally Kateusz (2019, p. 91), o afresco de Maria encontrado na Capela 17 do Mosteiro Bawit provavelmente é a mais antiga arte sobrevivente retratando Maria com os dois braços levantados e tendo um pano pendurado em um cinto na cintura. A relevância da imagem se dá pela forma como Maria foi representada. Ela está no meio de treze homens e, como sempre, de pé diretamente abaixo de um jovem Jesus imberbe entronado. Nesta cena dos Seis Livros na abside oriental, o simbolismo da liderança associado ao pano pendurado no cinto de Maria evoca sua autoridade litúrgica. O marfim (Figura 2), datado entre os anos de 720 e 970 EC, amplia ainda mais a concepção de como cristãos viram Maria como uma liderança estando abaixo apenas de seu filho. Isso fica evidente por meio de sua indumentária própria de bispos. A possibilidade de esse marfim ser proveniente do Egito o torna ainda mais fantástico, 372 Maria, a mãe de Jesus, como uma maga pois revela como os cristianismos egípcios não tiveram problema algum em dar e reconhecer autoridade a Maria, tanto “eclesiástica” como mágica. Segundo Richard Maguire (2012, p. 56), um mosaico (atualmente bastante danificado) de abside de altar, do século VI EC, em uma igreja dedicada à Maria em Livadia, Chipre, retrataria Maria de igual forma que os exemplos anteriores: Maria de pé em uma plataforma baixa contra um fundo de tesselas de ouro abaulado apenas por dois anjos, seus braços levantados e duas tiras brancas de pano pendurado, sendo nesse sentido similar ao mosaico presente na Catedral de Cefalù, Sicília e datado do século XIII (Figura 3 e 3a). Nesse caso, teríamos uma longevidade de um retrato de Maria, mas com o apagamento do sentido dado nos casos anteriores. Figura 3 e 3a: Mosaico, Catedral de Cefalù, Sicília, 1240. Detalhe para Maria. 373 Juliana Batista Cavalcanti Entre a Maria maga e a virgem do silêncio: retratos conflitantes da mãe de Jesus No transcurso da leitura do texto de Epifânio de Salamina fica evidente o seu profundo descontentamento com o culto estabelecido na Arábia. Simultaneamente, o autor também explicita por quais razões ele não consegue admitir a ideia de Maria como sacerdotisa: Mas também passarei ao Novo Testamento. Se isso fosse ordenada por Deus que as mulheres deveriam oferecer sacrifício ou ter qualquer função canônica na igreja, a própria Maria, se alguém, deveria ter funcionado como sacerdote no Novo Testamento. Ela foi considerada digna de carregar o rei de todos em seu próprio ventre, o Deus celestial, o Filho de Deus (PANARION 59.3.1). Para Epifânio, o papel das mulheres na história do cristianismo estava limitado aos mesmos papéis sociais patriarcais presentes na antiga bacia mediterrânica. Todo e qualquer movimento que tivesse como protagonista uma mulher que ensinasse, falasse ou fosse “uma transgressora” deveria ser combatido.9 Nesse sentido, os estudos centrados na perspectiva de uma Maria como uma maga podem ser um excelente oportunidade para os historiadores dos Cristianismos antigos para revisitar o papel das mulheres nessas no interior dessas comunidades e simultaneamente para se repensar os caminhos e estratégias de silenciamento de um retrato da mãe de Jesus amplamente disseminado, mas que paulatinamente se tornou uma Uma conclusão similar que cheguei ao confrontar a cultura material com a documentação literária sobre Tecla. Ver: Cavalcanti (2021, p. 71-92). 9 374 Maria, a mãe de Jesus, como uma maga memória subterrânea em detrimento da memória oficial apresentada pela patrística: a Maria como a virgem do silêncio. Referências BRUYANT, T. Making Amulets Christian: Artefacts, Scribes, and Contexts. Oxford: Oxford University Press, 2017. CAVALCANTI, J. Mulheres nos cristianismos paulinos. Rio de Janeiro: Kliné, 2021. DANGELO, M. (Re)Presentations of women in the Gospel of Matthew Luke-Acts. In: KRAMMER, R.; DANGELO, M. (Orgs.). Women & Christian Origins. New York: Oxford University Press, 1999. BOVON, F. Mary Magdalene in the Acts of Philip. In: JONES, F. Which Mary? The Marys of Early Christian Tradition. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2002. BOVON, F. The Tomb of Jesus. SBL Forum, n.p. [cited March 2007]. Disponível em: http://sbl-site.org/Article.aspx?ArticleID=656. Acesso em: 05 dez. 2021. KATEUSZ, A. Mary and Early Christian women. London: Palgrave Macmillan, 2019. KLAUCK, H. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Edições Loyola, 2007. MAGUIRE, R. A Fertile Crescent? Some Sources for the Orant Virgin in Livadia in Cyprus. Pages 434–53 in PoCa (Postgraduate Cypriot Archaeology), 2012. MARJANEN, A. The woman Jesus loved. New York: Brill, 1996. MEYER, M. Mistérios gnósticos: as novas perspectivas. São Paulo: Pensamento, 2007. THOMASSEN, E. The valentinianism of the Valentinian Exposition (NHC XI,2). Le Muséon, 102, p. 225-236, 1989. 375 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (I AEC – I EC): um estudo de caso sobre as inscrições e os lugares de depósito Carlos Eduardo da Costa Campos1 Introdução Os estudos sobre as práticas da magia se tornaram, no século XX e XXI, um tema recorrente nas pesquisas da Antropologia e essa área impactou as produções no campo dos Estudos da Antiguidade. Na Antiguidade, é perceptível que o sagrado regia diversas esferas da vida dos cidadãos de Roma. Logo, verificamos que os romanos, entre outros povos do Mediterrâneo, recorriam às práticas mágicas para solucionar os problemas do cotidiano. Segundo George Luck (1995, p. 11), a magia está situada num espaço ambíguo. Ela faz uso de elementos da esfera religiosa oficial de uma sociedade, porém apregoa resultados mais eficazes para o individual. É interessante refletir que nem os sacerdotes, nem os filósofos conseguiram estabelecer, precisamente, quais eram as práticas religiosas que deveriam ser consideradas proibidas. Sendo assim, os limites entre a religião e a magia tornam-se nebulosos pelas Professor Adjunto de Pré-História, História Antiga e Arqueologia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS); coordenador do grupo de pesquisa, no CNPQ, ATRIVM / UFMS e membro do conselho de pesquisa do Museu de Arqueologia da UFMS. É graduado, mestre e doutor em História pelo PPGH/UERJ e doutor em Letras Clássicas, com ênfase em Epigrafia Latina pelo PPGLC/UFRJ. Campos possui estágios de pesquisa no ANHIMA, na Universidade Paris I, Sorbonne; na École Française D’Athenes; na Universidade de Coimbra. 1 376 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC) ambiguidades e diversos usos inerentes a essas práticas em várias regiões do Mediterrâneo Antigo. A documentação para o tema não se limita ao campo literário. Assim, encontramos informações preciosas que residem na cultura material para a construção das pesquisas históricas. Isso pode ser corroborado a partir dos papiros mágicos encontrados em vários pontos do Mediterrâneo. Entretanto, nos inquieta para análise neste texto as defixiones, que podem ser pensadas como superstitio, ou seja, como uma prática não aceita pelo mos maiorum; portanto, essa magia não passava pelo controle religioso dos colégios sacerdotais romanos. Vale destacar que o seu ritual era composto pela oralidade e a prática material, pois se valia da inscrição e desenhos em suportes materiais (chumbo, cobre, liga de metais etc.), bem como se realizava performances orais, em alguns casos podendo haver sacrifícios de animais. Logo, objetivamos analisar as defixiones laciais de Nomento, entre os séculos I AEC- I EC, assim refletindo sobre a importância dos lugares de depósito dessas placas de maldição. As defixiones laciais Os estudos das defixiones possuem uma trajetória que remonta ao século XVIII com Nicolo Ignarra, em Nápoles, depois ganhando maior fôlego com Richard Wünsch, em finais do séc. XIX e se consolidando no começo do séc. XX com Auguste Audollent. É importante salientar que, na década de 1980, houve um aumento das 377 Carlos Eduardo da Costa Campos descobertas arqueológicas de tabletes de imprecação e orações jurídicas, como no caso da Inglaterra, nos templos de Bath. Barry Cunliff, entre 1979-1980, listou cerca de cento e trinta tabletes, muitos deles fragmentários, e alguns aparentemente sem inscrição. A disseminação de detectores de metais entre arqueólogos amadores e caçadores de tesouros forneceu um incentivo para essas pesquisas, assim como um alerta às autoridades locais e científicas para o perigo dos roubos de peças arqueológicas. Devido ao aumento dos relatórios e publicações sobre o tema, os quais se encontravam, porém, de forma dispersa e em vários tipos de produções (livros, revistas, monografias), impôs-se a necessidade de uma sistematização e registro das defixiones latinas, sob a forma de um banco de dados, para facilitar o acesso à informação. Essa questão foi resolvida por meio do empenho de Amina Kropp (2008), pois seu árduo trabalho possibilitou compreendermos as características das defixiones, bem como acessar os dados sobre esses objetos, além de formar parte de nosso corpus documental. No campo dos Estudos da Antiguidade, é um consenso que as defixiones integram uma tipologia documental de matriz epigráfica (KROPP, 2008). Para John Bodel (2001, p. 5), aquele que se dedica ao campo epigráfico deve alargar as suas perspectivas sobre a área, pois há uma variedade de suportes materiais para o desenvolvimento de pesquisas, entre os quais temos as defixiones. Logo, partilhamos das premissas de R. Tomlin (2010, p. 270), que há uma abundância dessas 378 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC) inscrições mágicas pelo Mediterrâneo Antigo e que necessitam ser problematizadas nos estudos epigráficos, para além dos tradicionais olhares sobre as inscrições honoríficas e fúnebres. Daniel Ogden (1999, p. 4) evidencia que as primeiras placas de maldição, no modelo que estamos analisando, eram gregas. Destarte, notamos a presença desta prática mágica a partir de finais do século VI AEC (vinte e duas placas), bem como o seu incremento a partir de V AEC, na colônia grega de Selino, na Sicília (OGDEN, 1999, p. 4). Ogden (1999, p. 5) explica que não havia, na Antiguidade, um termo unificado para se referir a essas inscrições mágicas. Em sua perspectiva, o vocábulo mais aproximado seria o grego katadesmos (pl. katadesmoi) – pois a palavra expressa a ideia de amarração2. A palavra derivaria do verbo katadein que significa prender ou amarrar. Daniel Ogden (1999, p. 4-5) acrescenta que na cultura latina o termo mais apropriado seria defixio, plural defixiones. Defixio deriva do verbo latino defigere fixar ou pregar. O verbo composto pela preposição de, cujo sentido geral é distância a partir de, é o radical do verbo figo (figo, is, fixi, fictum, figere), ou seja, fincar, atar e/ou prender. Para Ogden (1999, p. 4-5), também há termos que poderiam ser utilizados como: execratio (maldição); devotio (dedicação, maldição ou encantamento); commonitorium (memorando); petitio Neste texto compreendemos o termo amarração com o sentido de prender ou limitar algo ou alguém no ato mágico. Afinal, consideramos que esse vocábulo é mais amplo, assim como de uso corrente entre os especialistas de História da Magia. 2 379 Carlos Eduardo da Costa Campos (petição); donatio (doação/dedicação)3. Quanto à historiografia moderna de origem anglo-saxã, há preferência para o uso do termo inglês curse tablets, o que causaria alguns problemas, pois nem todas as placas encontradas no local são de maldição (Beard; North; Price, 2002, p. 210-212). Observa-se uma distinção etimológica no grego e latim em Ogden (1999, p. 4-5), da qual partilhamos, pois, as palavras possuem sentidos que são peculiares em cada sociedade. Destacamos que a palavra defixio (pl. defixiones) é utilizada nas expressões defixionum tabellae, defixionis tabellae ou tabellae defixionum, geralmente, por epigrafistas e historiadores. Vale mencionar que tabellae é nominativo plural feminino de primeira declinação e defixionum genitivo plural feminino de terceira declinação. É tradução vernacular usarmos tablete, tábuas, placas ou lâmina para esse objeto. Ao trabalharmos com as defixiones, estamos atentos ao fato de que esses tabletes são oriundos da esfera da cultura material. Vale ressaltar que o conceito de cultura material, apesar de toda a sua aplicabilidade, é polissêmico pelo próprio uso da conceituação de cultura ou de categorização em elementos materiais e imateriais, como ressaltou o historiador Marcelo Rede (1996, p. 273). O referido historiador também argumenta que devemos estar atentos para a constituição da sociedade na qual o nosso objeto de análise encontrava-se inserido. Em virtude disso, verificamos que as análises Vale destacar que esse termo seria mais apropriado ao contexto britânico das orações para justiça (OGDEN, 1999, p. 5-6). 3 380 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC) variam de acordo com cada contexto temporal e espacial que problematizamos nas pesquisas. No que tange ao corpus documental e o seu tratamento metodológico, contamos com um total de cinquenta e duas inscrições latinas que foram produzidas na região do Lácio, entre os finais do século I AEC – V EC. Destacamos que este material foi traduzido,4 revisado5 e catalogado, assim estando disponível para acesso no Catálogo das Defixiones Laciais (CDL) I AEC – V EC, o qual se encontra no apêndice da tese As tabellae defixionum da região do Lácio (I AEC – II EC): tradução e análise textual de Carlos Eduardo da Costa Campos (2021, p. 143-210). Numericamente, temos uma defixio de Minturno (Minturnae)6; três inscrições de Nomento (Nomentum)7; duas defixiones de Óstia (Ostia)8. A maior parte das inscrições são oriundas de Roma com um total de quarenta e seis defixiones9. Essas inscrições mágicas podem ser observadas com textos em latim, bem como híbridas, assim contendo o grego e o latim. Há placas que consideramos imprecisas linguisticamente pelo seu desgaste material. Foram traduzidas somente quarenta e seis lâminas, pois seis placas estão impossibilitadas de compreensão do texto pelo desgaste do material, apenas havendo a catalogação destas inscrições. 5 O processo de tradução e revisão foi o resultado de debates estabelecidos pelo Prof. Dr. Anderson de Araujo Martins Esteves – UFRJ e o Prof. Dr. Arthur Rodrigues – ATRIVM / UFRJ. 6 CDL, dfx: 01. 7 CDL, dfx: 02 a 04. 8 CDL. dfx: 05 a 06. 9 CDL dfx: 07 a 52. 4 381 Carlos Eduardo da Costa Campos É importante destacar que em nossa pesquisa foi elaborado um conjunto de quatro mapas que possibilitam compreender a geoespacialização das defixiones no Mediterrâneo Antigo, na antiga Itália e no Lácio. As coordenadas necessárias para a geoespacialização do objeto de pesquisa foram obtidas através do Sistema de Referências Geocêntrico para as Américas (SIRGAS - 2000), tendo como fonte de dados a Eurostat (O Gabinete de Estatísticas da União Europeia). A elaboração foi realizada em parceria com a cartógrafa Juliana Souza, da empresa Geo & Cia, em Goiás, Brasil. Ressaltamos que as cores utilizadas nos mapas apenas tratam de elementos para distinção regional. A geoespacialização dessas defixiones podem ser verificadas através da imagem 1, no Mapa da Distribuição pelo Lácio das Defixiones com Textos em Latim (2021, p. 83). Figura 1: Mapa da distribuição pelo Lácio das defixiones latinas Fonte: Campos, 2021, p. 83. 382 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC) Retomando o mapa da imagem 1, ele fornece questões importantes sobre a circularidade das inscrições pelo Lácio. Nele é possível observar que os caminhos percorridos pelas inscrições passam tanto pelas áreas portuárias de Óstia e Minturno, assim como pelas Vias Ostiense, Ápia e Nomentana. Essa circularidade mágicoreligiosa é oriunda da extensa mobilidade no mundo antigo, em nível individual ou coletivo (ISAYEV, 2017, p. 16). O Lácio ocupou um importante papel, devido à cidade de Roma, na expansão territorial, política e econômica da antiga Itália. Logo, as redes de conexão foram se acentuando desde o século III AEC e se intensificaram internamente e no contexto mediterrânico, no período do Principado. Norberto Guarinello (2014, p. 208) elucida que as comunidades do Mediterrâneo viviam numa ampla rede de conexões, assim elas não estavam isoladas em cada região, pois faziam parte de uma teia de relações. Nesse sentido, os portos e estradas por onde circulavam azeite, vinho, lã, grãos e cerâmica, também estabeleciam trocas culturais religiosas e mágicas, como as defixiones. As defixiones de Nomento e os lugares de depósito Nessa parte nos deteremos ao quantitativo de três inscrições, devido ao recorte temporal e regional para este texto, ou seja, a cidade de Nomento, no Lácio, entre os séculos I AEC e I EC. Nomento (Nomentum) ficava no Lácio, em uma região localizada na fronteira 383 Carlos Eduardo da Costa Campos com os sabinos. A cidade se situa a 6,4 km do rio Tibre e aproximadamente 22 km de Roma10. Os textos clássicos narram que Nomento integrava o território dos sabinos e foi considerada como uma cidade sabina, apesar de sua matriz ser latina. Virgílio e Dionísio de Halicarnasso apontam que essa cidade estava próxima colônia de Alba (Aen. 6. 773; Ant. Rom. 2.53). Nomento também é listada como uma das trinta cidades que integram a Liga Latina contra Roma em 493 AEC (Liv. Hist. Rom. 1.38; Dion. Hal. Ant. Rom. 3.50, 5.61). Nomento se juntou às outras cidades do Lácio na Guerra Latina de 338 AEC e pelos tratados de paz conseguiu obter a cidadania romana (Liv. Hist. Rom. 8.14.). Seu território era fértil e produzia excelentes vinhos (Plin. H. N. 14.4; Marc. Epig. 10.48). Fragmentos arquitetônicos e outros vestígios existentes provam a prosperidade contínua de Nomento sob o Império Romano. O local é agora ocupado por uma aldeia que leva o nome de Mentana. A estrada que vai de Roma a Nomento era conhecida na Antiguidade como Via Nomentana. Ela saía da Porta Colina, onde se separava da Via Salária, cruzava o rio Anio por uma ponte e dali seguia quase em linha direta a Nomento (Liv. Hist. Rom. 3, 52.). Os dados podem ser confrontados através dos escritos de William Smith, no Dictionary of Greek and Roman Geography (1854). Disponível em: h t t p : / / w w w. p e r s e u s . t u f t s . e d u / h o p p e r / t e x t ? doc=Perseus:text:1999.04.0064:entry=nomentum-geo. Acesso em: 28 jun. 2021. 10 384 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC) Nesse contexto de conectividade entre Nomento e as regiões do Lácio, verificamos três defixiones que analisaremos a seguir. Esse breve panorama nos auxilia para a compreensão das defixiones 2, 3 e 4 de Nomento, disponível no CDL. A dfx 2 foi encontrada numa sepultura em Urnes e pode ser datada como do século I AEC. Não há como categorizarmos essa defixio a partir do seu texto. Quanto à composição, o material é o chumbo e não há descrições sobre sua forma (CDL, 2021, p. 147-148; EDH: HD032769; KROPP, 2008, dfx. 1.4.2/2) Texto estabelecido: Titus Octavius sermone, Marcus Fidustius [---] mutus sermone, Fidustius mutus, Irena Plautiae defigere: extam, umeros, nisum, quaestum, caput, oculos describo cilos [---] membra omnia: latus, lingua, flatus, coria, talus, extase, ungues, viscera ex hoc [---] Ma. Trebonius. Quaestum, vestigia, flatus, faciam, latus, bona ira [---] Tradução: Que Tito Otávio perca a fala, que Marco Fidústio [---] fique mudo, Fidústio mudo, Irene de Pláucia, que você seja fixada: entranhas, ombros, esforço, rendimento, cabeça, olhos, descrevo cilos [---] todos os membros: o flanco, a língua, a respiração, a pele, o tornozelo, as entranhas, as unhas, os órgãos deste [---] Marco (?) Trebônio. O rendimento, as pegadas, a respiração, que eu faça, o flanco, a boa ira [---] A motivação e o nome do emissor são indetectáveis. O enunciado da inscrição permite-nos inferir que os receptores são: Tito Otávio, Marco Fidústio, Irene de Pláucia, Marco (?) Trebônio. O tom discursivo desse ato de fala é imperativo como vemos no excerto: Titus Octavius sermone, Marcus Fidustius [---] mutus sermone, 385 Carlos Eduardo da Costa Campos Fidustius mutus, Irena Plautiae defigere / “Que Tito Otávio perca a fala, que Marco Fidústio [---] fique mudo, Fidústio mudo, Irene de Pláucia, que você seja fixada”. Há uma lista de partes do corpo a serem atingidos nessa magia: (...) extam, umeros, nisum, quaestum, caput, oculos describo cilos [---] membra omnia: latus, lingua, flatus, coria, talus, êxtase, ungues, viscera ex hoc [---] Ma. Trebonius / “entranhas, ombros, esforço, rendimento, cabeça, olhos, descrevo cilos [---] todos os membros: o flanco, a língua, a respiração, a pele, o tornozelo, as entranhas, as unhas, os órgãos deste [---] Marco (?) Trebônio”. Em outro trecho a lista continua mencionando o flatus / respiração e o latus /flanco. Demarcamos que não encontramos uma tradução para a palavra cilo que se contextualize com a inscrição, assim mantemos o termo no original. A dfx 3 também foi encontrada numa sepultura em Urnes e da mesma forma pode ser datada como do século I AEC. Não há dados para categorizarmos essa defixio a partir da inscrição. A composição do material é o chumbo e não há descrições sobre sua forma (CDL, 2021, p. 149-150; EDH: HD032766; KROPP, 2008, dfx. 1.4.2/3). Texto estabelecido: Malchio Niconis: oculos, manus, digitos, bracchia, ungues, capillum, caput, pedes, femur, ventrem, nates, umbilicum, pectus, mamillas, collum, os, buccas, dentes, labia, mentum, oculos, frontem, supercilia, scapulas, umerum, nervos, os, merilas, ventrem, mentulam, crus, quaestum, lucrum, valetudines defigo in his tabellis. Rufa publica: manus, dentes, oculos, bracchia, ventrem, mamillas, pectus, os, merilas, ventrem, [---], crus, os, pedes, frontes, ungues, digitos, ventrem, umbilicum, cunnum, quaestum Rufae publicae defigo in his tabellis. 386 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC) Tradução: Malquião, filho de Nico, eu fixo nestas tábuas: seus olhos, mãos, dedos, braços, unhas, cabelo, cabeça, pés, coxa, estômago, nádegas, umbigo, peito, mamilos, pescoço, boca, bochechas, dentes, lábios, queixo, olhos, testa, sobrancelhas, espáduas, ombro, nervos, boca, medula (?), barriga, pênis, perna, rendimentos, lucro, saúde. Rufa ordinária (?), eu fixo nestas tábuas: suas mãos, dentes, olhos, braços, estômago, seio, mamilos, boca, medula (?), estômago, [---], perna, boca, pés, testa, unhas, dedos, estômago, umbigo, vagina, os rendimentos de Rufa ordinária (?) A motivação para realização dessa imprecação e o nome do emissor do discurso não são apresentados pelo texto. Os receptores da magia são Malquião e Rufa “ordinária” (?). O tom discursivo desse ato de fala é imperativo, pois o redator impõe aos deuses que: defigo in his tabellis / “eu fixo nestas tábuas”. O verbo defigo aparece duas vezes nessa inscrição. Uma lista de partes do corpo são citadas como relativas às partes de Malquião a serem atingidas: oculos, manus, digitos, bracchia, ungues, capillum, caput, pedes, femur, ventrem, nates, umbilicum, pectus, mamillas, collum, os, buccas, dentes, labia, mentum, oculos, frontem, supercilia, scapulas, umerum, nervos, os, merilas, ventrem, mentulam, crus / “seus olhos, mãos, dedos, braços, unhas, cabelo, cabeça, pés, coxa, estômago, nádegas, umbigo, peito, mamilos, pescoço, boca, bochechas, dentes, lábios, queixo, olhos, testa, sobrancelhas, espáduas, ombro, nervos, boca, medula (?), barriga, pênis, perna”. A valetudines / “saúde” também é mencionada como alvo dessa magia. O redator, ao inscrever as partes do corpo de 387 Carlos Eduardo da Costa Campos Rufa, não apresenta os itens de forma igual, assim invertendo algumas partes como os olhos e dedos na estrutura frasal: Rufa publica: manus, dentes, oculos, bracchia, ventrem, mamillas, pectus, os, merilas, ventrem, [---], crus, os, pedes, frontes, ungues, digitos, ventrem, umbilicum, cunnu / “Rufa ordinária (?), eu fixo nestas tábuas: suas mãos, dentes, olhos, braços, estômago, seio, mamilos, boca, medula (?), estômago, [---], perna, boca, pés, testa, unhas, dedos, estômago, umbigo, vagina”. Tanto para Malquião e Rufa os rendimentos /quaestum são alvos de ataques. Entretanto, apenas os lucros / lucrum de Malquião aparecem no texto sendo atacados. Os nomes de ambas as vítimas, mencionados no início da maldição como Malquião e Rufa, estão no nominativo. Ademais, as partes do corpo amaldiçoadas dependem sintaticamente do verbo defigo mencionado no final do texto e estão listados em formas acusativas. Embora muitas dessas placas contenham traços do latim vulgar, é claro que o autor usou uma construção do latim clássico como o acusativo ao nomear as partes do corpo. Contudo, a parte mais importante da maldição, ou seja, o nome das vítimas, ficou no nominativo (Luciani; Urbanová, 2019, p. 421-442). A dfx. 4 foi encontrada em uma sepultura, porém não temos informações sobre a localização e sua datação seria do século I EC. Não há dados para categorizarmos essa defixio a partir da inscrição. A composição do material é o chumbo e na sua forma vemos a presença 388 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC) de um furo (CDL, 2021. p. 151; EDH: HD032769; KROPP, 2008, dfx. 1.4.2/1). Texto estabelecido: Titus Octavius Titi libertus, Publius Fidustius, Postumius, Gavia, si quis adversarius aut adversaria. Tradução: Tito Otávio, liberto de Tito, Públio Fidústio [?], Postúmio, Gávia, se algum deles for um adversário ou adversária. A motivação para realização dessa imprecação e o nome do emissor do discurso não são apresentados pelo texto. Os receptores da magia são Tito Otávio, Públio Fidústio [?], Postúmio e Gávia. O tom discursivo, as divindades evocadas e as partes do corpo não são detectáveis pelo enunciado da inscrição. Como se trata de uma série de nomes, si quis apresenta um sentido próximo a “se algum deles”. O verbo “ser”, no caso, está subentendido pelo que notamos na frase. Há falta de análise historiográfica sobre essa inscrição. Evidenciamos que as três defixiones foram encontradas em sepulturas, duas em Urnes e uma com a localização não especificada. Dessa forma, vemos a sepultura como um dos locais importantes para o ritual mágico, pois nele se conectava o mundo dos vivos e dos mortos. Entretanto, o depósito das defixiones vai muito além desse debate, afinal o ato final de elaboração de uma defixio é o depósito dela em local adequado. Consonantes com Zeny Rosendahl, apontamos que 389 Carlos Eduardo da Costa Campos O espaço sagrado possui uma relação íntima com o grupo religioso que o frequentou. As imagens espaciais desempenham um papel importante na memória coletiva, porque cada aspecto, cada detalhe desse lugar possui um sentido que só é inteligível para os membros do grupo (ROSENDHAL, 2002, p. 34). A partir das concepções teóricas de Rosendahl (2002, p. 30), sobre o espaço sagrado, percebemos os locais de depósitos das defixiones como áreas de vinculação de forças energéticas que eram consideradas como capazes de transportar a solicitação materializada na placa de maldição aos deuses ou espíritos, de modo a conectar os agentes da magia. A performance ritual de depositar as defixiones teria uma conotação de colocar o amaldiçoado à frente da divindade a quem foi enviado, de modo que a ação gravada seria reafirmada com os atos de fala e as oferendas. Ademais, a prática de esconder a defixio também ajudaria a evitar que a maldição viesse a perder a sua eficácia, bem como proteger a identidade daqueles que realizaram essa ação mágica. Dessa forma, uma vez que o tablete foi inscrito, ele deveria ser inserido em lugares considerados sagrados ou próximos da vítima, os quais eram escolhidos de propósito. Devemos ter em mente que o ato de enterrar ou submergir significa esconder, em primeira escala. Assim, a ação de depósito das placas mágicas corresponde a essa necessidade de sigilo e proteção. Afinal, essa ação mágica era percebida como negativa socialmente, assim precisava ser ocultada. Ademais, o texto não poderia cair nas mãos dos adversários do 390 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC) solicitante da magia, ou alguém que poderia neutralizar esse ritual mágico. Os Papiros Mágicos Gregos (7, 451-52), fornecem uma lista típica de tais lugares: “(...) ter [a placa] enterrada ou [colocada em] um rio ou terra ou mar ou riacho ou caixão ou em um poço”. Outros lugares incluíam, para feitiços de amor, a casa do alvo desejado; para corridas, o piso do anfiteatro; os santuários associados a divindades ctônicas. Muitos túmulos parecem ter sido o lugar mais comum de depósito. Locais de sepultamento daqueles que morreram jovens ou por meios violentos foram as escolhas preferidas. Três eram os lugares para a inserção desse material, que são mais usuais: 1) Próximo de templos, santuários e recintos sagrados; 2) Cemitérios; riachos, fontes, nascentes, poços, aquedutos, banhos públicos; 3) Lugares próximos da vítima da magia: casa, locais de trabalho, áreas de atletismo e comércio. Daniel Ogden (1999, p. 15-22) menciona que as sepulturas e os lugares dos mortos foram os primeiros espaços a serem utilizados nessa modalidade de magia. Logo, se nota o uso dos santuários e templos para o depósito das defixiones, assim prosseguindo para os demais espaços. A mudança de lugares de depósito pode estar relacionada com o grau de risco que mago e solicitante detinham para 391 Carlos Eduardo da Costa Campos a sua ação mágica. Na Antiguidade, o vilipêndio e manipulação de cadáveres é algo reprovado socialmente, incorrendo seu perpetrador em crime de impiedade na sociedade romana (BERNARD, 1991, p. 364-369; Ogden, 1999, p. 15-22). Raol Elia (2014, p. 55) argumenta que na cultura romana as sepulturas pertencem aos deuses Mani e por isso elas são consideradas juridicamente res religiosae. Dessa maneira, a violação de sepulturas era vista como um delito. Esse crime foi contemplado pela Lex Iulia, no Principado de Augusto. Portanto, a inserção das defixiones em lugares de enterramento era uma ação execrável do ponto de vista religioso, assim como um crime social. Ogden (1999, p. 15-22) menciona que, no período romano de governo sobre o Mediterrâneo, os percursos subterrâneos de água se tornaram espaço de larga utilização para as defixiones. Um dos motivos apontados para essa predileção era pela água ser fria, assim relacionando-a com os mortos. No caso do enterramento próximo da vítima, em seu trabalho, casa ou local de atividades a intenção se dava pela proximidade, ou seja, maior capacidade de contágio da vítima. Quanto mais próxima da pessoa, mais eficácia essa magia teria (OGDEN, 1999, p. 15-22). Na perspectiva de Gager (1992, p. 21), infelizmente, há poucas evidências sobre quem realizaria o ato de depósito: o mago ou o solicitante da magia. Em alguns casos, o depósito certamente não exigia nenhuma habilidade especial – como colocar o tablete em um poço ou fonte – assim, se pode imaginar que o solicitante poderia 392 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC) realizar essa tarefa sozinho. Entretanto, em outros casos, envolvendo defixiones colocadas em túmulos, na porta de pistas de corrida, a probabilidade é muito maior que os feiticeiros ou seus assistentes realizassem esta tarefa como parte de seu serviço para o cliente. É improvável que um cidadão entrasse nas áreas cemiteriais à noite, desenterrasse as sepulturas e colocasse o tablete na mão do cadáver com tanta facilidade, como no caso dos lugares de depósito de Nomento. Considerações finais No cenário acadêmico internacional, ainda se nota uma negligência sistêmica sobre o estudo das defixiones. Em muitos casos, ele é relegado ao campo do curioso ou do exótico, havendo poucas teses e análises sobre o tema. Essa marginalização científica ocorre devido à visão etnocêntrica que temos da Grécia e de Roma, que nos direcionam para assuntos que reproduzam o esplendor e poder dessas sociedades. Dessa maneira, com a mudança dos paradigmas no campo dos Estudos da Antiguidade, buscamos romper com essa agenda conservadora que não abarca as práticas culturais populares. Logo, procuramos em nosso estudo ir além das análises resumidas sobre a religião oficial romana e contemplar ações e interações culturais através do campo da História da Magia e da cultura material. Há diversas possibilidades a serem exploradas sobre o tema das defixiones, como localizações, questões linguísticas e de materiais, 393 Carlos Eduardo da Costa Campos além de formas de interpretação para essas inscrições epigráficas itálicas e de outras regiões do Mediterrâneo Antigo. Ressaltamos, por exemplo, que nem sempre é possível compararmos inscrições de uma mesma cidade, devido à falta de dados ou ao desgaste do material, o que inviabiliza uma comparação e perspectiva de análise sobre o hábito epigráfico. Entretanto, também a partir da leitura em contraponto das inscrições, foi possível observarmos padrões de locais para a deposição das placas em Nomento. Ou seja, cada área epigráfica apresenta uma especificidade que deve ser levada em conta. Na primeira metade do século XX, a prática de depósito das defixiones foi correlacionada com o sepultamento, como vimos em Nomento. Entretanto, esse não seria o único caminho e método de realização dessa magia, como vemos em Amina Kropp (2008) e D. Urbanová (2017). Como se pode inferir, a prática de depósito das defixiones é heterogênea, no que tange à topografia das áreas utilizadas para magia. Em virtude dessa variabilidade, nota-se diversas interpretações quanto aos lugares de depósito das placas mágicas. Ressaltamos que os locais sagrados de depósito das defixiones e de proximidade com as vítimas são construções sociais, pelas quais os grupos humanos conferem poder sobre-humano para esse ritual mágico. Há muitas dúvidas sobre o que deu origem a função de depósito das defixiones, porém não há nada de conclusivo (ELIA, 2014, p. 65). Nesse sentido, apresentamos nossas interpretações, pois diversos são os lugares, ocasiões, motivações e atores que 394 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC) caracterizam a ação de depósito e não é nosso objetivo delimitar uma única forma. O único fato concreto que temos é que uma placa ao ser inscrita e ritualisticamente ofertada ao sagrado acabava sendo depositada em algum lugar. Referências Documentação DIONISIO DE HALICARNASSO. Roman Antiquities. Trad.: Earniest Cary. Vol. I (L. I-II). Cambridge: Harvard University Press; London: William Heinemann Ltd., 1937. DIONISIO DE HALICARNASSO. Roman Antiquities. Trad.: Earniest Cary. Vol. II (L. III-IV). Cambridge: Harvard University Press; London: William Heinemann Ltd., 1939. EPIGRAPHIC DATABASE HEIDELBERG. Disponível em: http:// edh-www.adw.uni-heidelberg.de/projekt/konzept. Acesso em: 10 abr. 2022. KROPP, A. Magische Sprachverwendung in vulgärlateinischen Fluchtafeln (defixiones). ScriptOralia; 135. Tübingen: Gunter Narr Verlag, 2008. LIVY. History of Rome. Books I - II with An English Translation. Cambridge. Cambridge, Mass, Harvard University Press; London, William Heinemann, Ltd. 1919. LIVY. History of Rome, Volume IV: Books 8-10. Translated by B. O. Foster. Loeb Classical Library 191. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1926. MARTIAL. Epigrams. Volume II: Books 6-10. Edited and translated by D. R. Shackleton Bailey. Loeb Classical Library 95. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1993. PLINY. Natural History, Volume IV: Books 12-16. Translated by H. Rackham. Loeb Classical Library 370. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1945. 395 Carlos Eduardo da Costa Campos VIRGIL. Eclogues. Georgics. Aeneid: Books 1-6. Translated by H. Rushton Fairclough. Revised by G. P. Goold. Loeb Classical Library 63. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1916. Bibliografia BEARD, M.; NORTH, J. PRICE, Simon. Religions of Rome. V. 1 e 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. BERNARD, A. Sociers grecs. Paris: Fayard, 1991. BODEL, J. P. Epigraphic evidence: ancient history from inscriptions. Approaching the ancient world. London: Routledge, 2001. CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. As tabellae defixionum da região do Lácio (I AEC – II EC): tradução e análise textual. Tese de Doutorado em Letras Clássicas defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2021. ELIA, R. Defixiones. Odisseo - il viaggio, la ricerca. Supplemento a La Ciminiera Anno XVIII, N. 1, 2014, p. 15-81. GAGER, J. G. (Ed.) Curse Tablets: Binding Spells from the Ancient World. New York; Oxford: Oxford University Press, 1992. ISAYEV, E. Migration, Mobility and Place in Ancient Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. LUCK, G. Arcana Mundi - Magia y Ciências Ocultas en el Mundo Griego y Romano. 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Cursing not Just the Body. Some Remarks on a defixio from Nomentum in the Light of the Role of Female Public Slaves in the Roman World. Epigraphica, LXXXI, 1-2, p. 421-442, 2019. 397 Sem perdão: em busca de justiça (ou vingança?) usando defixiones na antiga Mogontiacum (Mainz) Renata Cazarini de Freitas1 Vingança e justiça não são a mesma coisa. Revidar uma ação percebida como um malfeito não é o mesmo que demandar reparação pelas vias legais. Também justiça e justiçamento diferem, já que este consiste na busca de compensação fora do sistema judicial, configurando uma iniciativa individual ou coletiva à margem do Estado. Já vingança e justiçamento parecem se confundir desde os tempos mais remotos. Introdução Na Antiguidade, uma notória forma de justiçamento foi o uso disseminado de pequenas lâminas de chumbo inscritas como execração contra alguém cuja atitude havia sido considerada deletéria. As inscrições eram endereçadas, na forma de rogos, a divindades executoras das penas. Tratava-se de impor a vontade de um sobre o outro – note-se bem – à distância, sem intervenção direta, mesmo Professora de língua e literatura latina na Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora (2019) e mestre (2015) em Letras Clássicas pela USP. Graduada em Latim (2012) pela USP e em Jornalismo (1990) pela Faculdade Casper Líbero. É orientadora nos campos dos Estudos Críticos de Recepção dos Clássicos e Estudos de Tradução. É membro eleito do Conselho Consultivo e Deliberativo da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC). 1 398 Sem perdão quando era conhecida a identidade do alvo. Não apenas o rogante funcionava como agente, mas também o rogado, a divindade, singular ou plural, chamada a intervir para executar a punição pré-determinada, que a ela cabia apenas referendar. O recurso às chamadas tabellae defixionum, em latim, ou katádesmoi, em grego, têm sido interpretados como uma prática de magia – associado ao fantasioso, pode-se pensar – e não como uma atitude religiosa, ou seja, é percebido, em geral, como um desvio da norma social. Richard Gordon (2015, p. 134) desacredita da possibilidade de distinguir conceitualmente magia e religião, ao passo que admite a viabilidade da discussão de práticas mágicas específicas em contextos culturais restritos. Considerando-se as 1.700 placas já resgatadas,2 a maioria inscrita em grego, mais de 500 em latim, cobrindo o extenso período do fim do século VI AEC até o V EC, esse parece ter sido um hábito O mais completo banco de dados é o TheDefix (Thesaurum Defixionum), que pode s e r a c e s s a d o e m h t t p s : / / h e u r i s t . f d m . u n i - h a m b u rg . d e / h t m l / h e u r i s t / ? db=The_dema&website&id=41774. Deve-se registrar a ocorrência rara de defixiones em mármore (Mérida, Espanha) ou em lâminas de uma liga metálica contendo estanho (Bath, Inglaterra). A maioria das placas dos períodos clássico e helenístico continha apenas os nomes dos alvos, textos são mais comuns posteriormente. Também animais de competição eram amaldiçoados. As primeiras coletâneas foram publicadas por Richard Wünsch em 1897 como Defixionum Tabellae Atticae (DTA) e por Auguste Audollent em 1904 como Defixionum Tabellae (DT). Após décadas de desinteresse por esses artefatos, a publicação de “A survey of Greek defixiones not included in the special corpora” em 1985, por David R. Jordan, motivou outros pesquisadores e epigrafistas. Um breve histórico da pesquisa nessa área pode ser lido em Faraone; Tovar 2022. 2 399 Renata Cazarini de Freitas social3 em todo o Mediterrâneo antigo, ainda que os objetivos pudessem variar. Por exemplo, exercendo função profilática ou apotropaica, muitas inscrições pleiteavam aos deuses a derrota de adversários tanto em disputas esportivas (defixiones agonisticae) quanto judiciais (defixiones iudiciariae) ou mesmo amorosas (defixiones amatoriae). A categoria que interessa particularmente a este capítulo carrega certa polêmica, pois tanto pode ser encarada como hostil a malfeitores (defixiones criminales) quanto pode ser classificada, por exercer função reparadora, como uma prece por justiça (judicial prayer), conforme o conceito de Henk Versnel (1991; 2010). Gordon julga irrealista a tentativa de aplicar rótulos sem analisar o contexto existencial do rogante e sua estratégia de gestão de riscos, para a qual, certamente, contava com a intervenção divina como garantidora da justiça no mundo. Para ele, as defixiones eram “uma forma meio institucionalizada de induzir os deuses a intervirem quando se foi injustiçado” (GORDON, 2014, p. 784). O modo de expressão podia, então, combinar uma fórmula de prece com idiomatismos execratórios – todos os dispositivos retóricos A locução em português ecoa o conceito de Pierre Bourdieu, na leitura atualizada de Setton (2002, p. 63): “Habitus é então concebido como um sistema de esquemas individuais, socialmente constituído de disposições estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em condições sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações do agir cotidiano”. E ainda (Setton, 2002 p. 64): “Habitus é um instrumento conceptual que auxilia a apreender uma certa homogeneidade nas disposições, nos gostos e preferências de grupos e/ou indivíduos produtos de uma mesma trajetória social”. Cf. Gordon, 2015, p. 137-8. 3 400 Sem perdão eram válidos para incrementar o poder de convencimento da mensagem – e as inscrições ganhavam autoridade quando depositadas nos santuários das divindades locais invocadas. Soa paradoxal, como bem argumenta Gordon (2014), que as defixiones das outras categorias, imbuídas da aura da magia, demandassem, muitas vezes, apenas o fracasso do oponente, enquanto as preces por justiça, aparentemente mais próximas à religião, propusessem sofrimentos terríveis e até mesmo a morte em público, expondo o lado mais pernicioso do rogante. Gordon sintetiza sua interpretação: Se quisermos, podemos considerar a adoção de estratégias “religiosas” (‘prayerful’) como uma maneira de proteção pessoal contra o discurso institucionalizado sobre a magia e a feitiçaria, mas sou extremamente cético quanto à ideia de que os autores das defixiones se enxergassem praticando magia: a convicção de que tinham sido injustiçados legitimava a escolha da execração como ferramenta (GORDON, 2014, p. 784).4 Em 1996, num artigo para a Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, baseado em seminário de 1992, Maria Luiza Corassin registra a renovação do interesse pelo material epigráfico das defixiones, mas ainda não se fala ali das preces por justiça, embora a nomenclatura já circulasse no meio acadêmico de língua inglesa: em 1988, haviam sido publicadas as placas de execração de Aquae Sulis, na província romana da Britannia, hoje a cidade de Bath, no sudoeste As traduções de citações em inglês e dos textos execratórios, diretamente do latim, são todas minhas. 4 401 Renata Cazarini de Freitas da Inglaterra, assim classificadas pelo epigrafista Roger Tomlin com base em Versnel. O que ainda estava por vir eram mais defixiones do período imperial romano, encontradas na Alemanha. Mainz Um santuário murado da segunda metade do século I EC, englobando dois pequenos templos justapostos de mesmas dimensões, foi parcialmente escavado entre os anos de 1999 e 2000 no que havia sido um assentamento civil conhecido como Mogontiacum, capital da antiga província romana da Germania Superior, hoje a cidade de Mainz, centro-oeste da Alemanha. As construções eram dedicadas às deusas frígia Cibele, identificada como Mater Magna, e egípcia Isis Panthea, veneradas em outros pontos do império romano, o que permite falar em “cultos diaspóricos” (ANDO, 2008, p. 102), pois transitavam pelas rotas marítimas, instalando-se nas cidades com os fiéis. Os documentos epigráficos dessa escavação somam nove inscrições latinas em pedra e 34 placas em chumbo (tabellae defixionum), com datação entre 70 e 130 EC. Uma parte expressiva das placas legíveis (71%) foi escavada atrás da cella dedicada a Mater Magna, de 2 m², num recipiente feito de pedra (favissa), de 1 m², com muitas camadas de cinzas e resíduos de vegetais e animais ofertados ao fogo, bem como lamparinas a óleo (lucernae) e incensários 402 Sem perdão (turibula). Em toda a área, estratigraficamente escavada, com cerca de 1.000 m², mapeou-se mais de 100 covas para queima de oferendas e 15 áreas circulares em pedra com a mesma finalidade. As fogueiras sacrificiais parecem ter sido tão importantes que dois blocos de calcário no formato tabulae ansatae, com dedicatórias gêmeas dos templos gêmeos, foram reutilizados na estrutura em pedra de uma lareira. Como o sítio arqueológico se encontrava no espaço de duas quadras de lojas no centro da cidade, onde seria erguido um shopping center, as escavações, que alcançaram 5 metros de profundidade, não se expandiram até a área residencial de Mainz, provável localização do templo principal do período romano. Na Idade do Ferro, o local havia sido ocupado por um cemitério, já sendo considerado, portanto, espaço sagrado à época da construção dos templos, no início da dinastia flaviana. É justamente nessa época, num Mediterrâneo integrado por rotas de comércio e comunicação, que se espraiam os cultos diaspóricos, com o assentimento do imperador Vespasiano (Titus Flauius Vespasianus), que esteve à frente do Império Romano por dez anos a partir de 69 EC, sucedido pelos filhos Tito e Domiciano, ocupando o poder, respectivamente, até 96 EC. Segundo Clifford Ando (2008, p. 102), “a estabilidade política e a ordem social que favoreceram o ápice da migração e do comércio também possibilitaram a expansão dos cultos, destacadamente os de origem oriental: Cibele, Ísis, Atargatis, Mitras, Júpiter Doliqueno e 403 Renata Cazarini de Freitas Cristo”. Mas muito antes os romanos tinham desenvolvido mecanismos sofisticados de importação e naturalização de cultos estrangeiros, bem como de controle da vida religiosa dos povos subjugados (ANDO, 2003, p. 325). A relação de Roma com o culto de Mater Magna remonta ao ano 204 AEC, quando adentra a cidade o meteorito que representaria a deusa frígia Cibele, trazido de Pessino, na Anatólia, hoje Turquia, cumprindo um oráculo sibilino relacionado à ansiada vitória sobre os cartagineses nas guerras púnicas. Em homenagem à deusa ocorriam os ludi megalenses ou megalesia entre 4 e 10 de abril.5 A data de início das festividades, incluindo competições, encenações teatrais e banquetes, celebrava o aniversário da recepção temporária da “deusa” no santuário da Vitória, no monte Palatino, ainda em 204 AEC, e a data de encerramento dos jogos comemorava a dedicação do santuário próprio, também no Palatino, treze anos depois, em 191 AEC. O meteorito, que se concebia ser a deusa mesma, teria sido incrustrado numa imagem de culto (BORGEAUD, 2004, p. 60). Pressuposto para a dispersão do culto é o princípio da imanência, isto é, que a divindade não participa exclusivamente de um elemento material, no caso, o meteorito levado a Roma, mas está em todos os objetos sagrados, possibilitando a liturgia em diferentes localidades: “adoradores de Cibele em Pessino e em Roma provavelmente entendiam que a deusa estava e não estava em coexistência com aquela rocha preta, portanto, reconheciam que, de 5 O amplo relato poético de Ovídio nos Fastos (IV, 179-372) merece a leitura. 404 Sem perdão alguma forma, ela podia ser ou não idêntica a outras rochas pretas” (ANDO, 2008, p. 103). A arqueóloga que chefiou as escavações em Mainz, Marion Witteyer, trata os documentos materiais inventariados como indícios de que havia prática de magia para além do culto tradicional, salientando os “depósitos de placas de chumbo”, muitas delas incineradas nos locais de oferenda (WITTEYER, 2005, p. 105). O epigrafista Jürgen Blänsdorf, encarregado das transcrições das placas de execração, computou doze invocações a Mater Magna e quatro ao seu consorte, Átis, formuladas como “analogias mágicas” (BLÄNSDORF, 2005a, p. 11). Num balanço da sua pesquisa, Blänsdorf descarta a atuação de profissionais, isto é, sacerdotes e escribas, na concepção e inscrição da grande maioria dos textos (BLÄNSDORF, 2005a, p. 12), apesar da concentração de documentos num espaço religioso coletivo. Talvez o mais instigante seja o que não foi encontrado ali: “Em Mainz, até agora, não há caso evidente de uma invocação a Ísis, embora se esperasse encontrar alguma no santuário compartilhado” (BLÄNSDORF, 2005a, p. 17). As placas de chumbo de Mainz estão especialmente conectadas ao santuário, tal como acontece em Bath, na Inglaterra, antiga Aquae Sulis. Essa vinculação, atestada tanto pelos vocativos às respectivas divindades locais quanto pela concentração espacial dos achados, é forte indício de uma prática ritualística aceita na comunidade 405 Renata Cazarini de Freitas específica: performance social não marginal, talvez até mesmo normativa, conforme a pesquisadora Sarah Veale (2017, p. 279). As execrações revelam um ritual do tipo similia similibus, como argumentado em pesquisas recentes (VEALE, 2017, FRANEK; URBANOVÁ 2019): a placa de chumbo ofertada deve derreter e, similarmente, deve se desfazer o alvo da execração, ao qual são vetados os meios de se redimir do malfeito, por vezes, um roubo ou uma fraude. “A execração se efetiva quando a placa de chumbo é lançada na fogueira do sacrifício. Que ela não tenha se derretido devese, provavelmente, ao fato de ter caído entre as cinzas já frias, embaixo do fogo”, especula Blänsdorf (2005a, p. 15). As placas de execração que puderam ser resgatadas sem grandes danos causados pelo fogo revelam terem sido enroladas ou dobradas, uma delas até perfurada com prego, outra envolvendo um osso de pássaro, certamente uma oferenda, mas sem qualquer texto inscrito. Como observa Veale (2017, p. 280), talvez se possa considerar essa prática ritualística em Mainz não necessariamente como desviante da normatividade religiosa, mas assimilada no espaço do santuário, não apenas pela concentração das placas junto a vestígios de oferendas de animais e vegetais, mas também pelo teor das execrações, que, em termos gerais, buscam a reparação de algum mal sofrido. Ela defende que é preciso abandonar o antagonismo “religioso” e “não-religioso”, porque os costumes locais devem ter estabelecido os parâmetros do que era aceitável no santuário: “o ambiente jurídico pode ter, 406 Sem perdão paradoxalmente, favorecido o recurso às imprecações por parte de quem não tinha acesso formal à Justiça” (VEALE, 2017, p. 280). Dentre as seis inscrições de Mainz que vêm traduzidas em português neste capítulo, cinco usam o verbo latino “rogo”, assim, o “defigens”, pressuposto autor de uma “defixio”, é também um “rogans” – pode-se falar em “suplicante” na esfera religiosa e um “pleiteante” no âmbito judicial – que dirige à divindade uma rogativa, um pedido caracterizado pela veemência, segundo o dicionário Houaiss, o que se pode constatar facilmente do material. A sigla adotada para a identificação das “rogativas” de Mainz é DTM (Defixionum Tabellae Moguntiacenses) mais o número atribuído na editio princeps,6 além do registro do inventário da escavação arqueológica. Nessa pequena amostra, constituída das DTMs numeradas de 1 a 6, verifica-se em alguns exemplares a prática da escrita opistográfica, isto é, a utilização de ambos os lados da placa de chumbo. As inscrições nos lados externo e interno, se enrolada ou dobrada, ou frente e verso, caso não, constam de uma mesma tabela, com as linhas numeradas ao longo da tradução. O sinais adotados são: [ ] letras ilegíveis, ( ) letras faltantes, < > letras a serem excluídas, A publicação alemã de 2012, reunindo todas as placas editadas por Jürgen Blänsdorf, inclusive um DVD com imagens, está esgotada e não consta de acervos bibliográficos no Brasil. Para esta pesquisa, as transcrições latinas das placas de Mainz são tomadas de artigos em três revistas acadêmicas (BLÄNSDORF, 2005; 2005a; Veale 2017) e de um capítulo de livro (BLÄNSDORF, 2010), inseridos nas Referências Bibliográficas. Além dessa leitura comparativa entre as quatro publicações, fez-se a confrontação das transcrições com as imagens digitais disponíveis de desenhos de cinco das seis placas. 6 407 Renata Cazarini de Freitas além de sequências de letras sem sentido, que vêm em maiúsculas, mas que não se caracterizam como uoces magicae. O texto em português procura preservar a estrutura sintática latina e as repetições características das fórmulas de execração, embora não tente mimetizar ortograficamente a elocução do latim mais popular. Seguem-se comentários linguísticos e estilísticos sobre cada placa. Figuras 1 e 2: Reprodução desenho inv. 72,3. Fonte: Blänsdorf, 2005, p. 677. DTM 1 inv. 72, 3 408 Sem perdão [face interna] Mater Magna, te rogo, p(e)r (t)ua sacra et numen tuum, Gemella fib(u)las meas qualis sustulit, sic et illam REQVIs [rogo?] adsecet ut nusquam sana si(t). Quomodo Galli se secarunt, sic e[t ? uelis nec?] se secet sic, uti planctum ha[be]at. Quomodo et sacrorum deposierunt in sancto, sic et tuam uitam ualetudinem, Gemella. 01. Grande Mãe, rogo-te, 02. pelo que te é sagrado e numinoso, 03. que a Gemela que meus broches 04. roubou, assim também ela... 05. separe pra não ter parte saudável. 06. Tal como os galli se mutilaram, 07. assim também ...ela se mutile pra 08. que tenha seu lamento. Tal como 09. eles entregaram suas oferendas 10. no templo, assim também tua vida, 11. tua saúde, Gemela, [entregues]. Neque hostiis neque au(- 12. Nem com sacrifícios, nem com ouro, ro neque argento redi(- 13. nem com prata, possas <i>mere possis a matre 14. te redimires junto à mãe deum, nisi ut exitum 15. dos deuses a não ser que tuum populus spectet. 16. o povo veja a tua morte. Verecundam et Pater(- 17. Verecunda e Paterna, nam, sic illam tibi com(- 18. a ti a[s] confio, mendo, Mater deum 19. Grande Mãe dos deuses, Magna, rem illorum 20. a situação delas... in AECRVMO DEO VIS qua(- 21. ... le rogo co(n)summent(u)r 22. ...rogo que sejam destruídas quomodo et res meas uire(- 23. como também as minhas coisas sque fraudarunt, nec se 24. e recursos expropriaram, e que não possint redimere 25. possam se redimir nec hosteis lanatis 26. nem com oferendas de ovelhas, 409 Renata Cazarini de Freitas [face externa] nec plum<i>bis nec auro nec ar(gento redimere a numine tuo, nisi ut illas uorent canes, uermes adque alia portenta, exitum quarum populus spectet. Tamquam quae <C> FORRO (MO L?) auderes comme[ndo] duas TAMAQVANIVCAVERSSO scriptis istas AE RISS . ADRICIS . S . LON a . illas, si illas cistas caecas, aureas, FECRA E[..] I [.]LO[..]AS OV[.]EIS . mancas A 27. nem com placas de chumbo, 28. nem com ouro, nem com 29. prata redimir-se 30. junto a teu nume, 31. a não ser que as devorem 32. os cães, 33. vermes e 34. outros flagelos, 35. [a não ser] que sua morte 36. o povo veja. 37. Como... 38. ...confio 39. duas 40. ... 41. com escritos essas 42. ... 43. ...aquelas, se aqueles cestos 44. secretos, dourados... 45. ... 46. ... Comentário: A placa, com inscrição de grandes dimensões, enrolada, traz 26 linhas na face interna e 20 na face externa. Blänsdorf assevera que se trata de mãos diferentes em cada lado, mas a mensagem é continuada. Na face interna, são cursivas maiúsculas de 5 mm de altura; na face externa, letras de até 10 mm. O que se pode dizer, a partir do desenho publicado, é que há uma melhor distribuição e regularidade da escrita no início da inscrição, onde ocorre a invocação a Mater Magna, em seguida, a expansão gradual das letras com traços menos precisos e incisivos dificulta a leitura. 410 Sem perdão Assim, embora seja possível confrontar e confirmar, a partir do desenho publicado, a transcrição quase integral, um número de palavras é de difícil identificação a olho nu na tela do computador e, por isso, a tradução teve de confiar nos documentos publicados (BLÄNSDORF, 2005; 2005a; 2010, VEALE, 2017). Mesmo Blänsdorf, o epigrafista da editio princeps, publica transcrições distintas de algumas passagens. Adota-se, neste capítulo, a transcrição de Blänsdorf publicada em artigo de Sarah Veale, que reproduz a editio princeps Die defixionum tabellae des Mainzer Isis- und Mater Magna-Heiligtums: defixionum tabellae Mogontiacenses (DTM). Esta placa, classificada pelo renomado pesquisador Richard Gordon com um dos “textos competentes” entre as DTMs (Gordon, 2014, p. 779), breve seleção que inclui as demais traduções deste capítulo, evoca do imaginário coletivo da Roma antiga a figura dos sacerdotes de Cibele (Mater Magna) conhecidos como galli, que se castravam em rituais delirantes. Outros elementos compositivos do repertório das defixiones de Mainz são atestados já neste primeiro exemplar: a punição com morte em espaço público e a impossibilidade de redimir-se pelo crime cometido. A mesma placa toma como alvo três mulheres acusadas de furto, numa partição dupla da execração: primeiro contra Gemela, até a linha 16, em seguida, contra Verecunda e Paterna, supostamente até o final do texto, que se torna indecifrável. Nos dois recortes, as estruturas se assemelham: há invocações a Mater Magna e rogativas baseadas na analogia persuasiva entre crime e punição com uso da fórmula “quomodo... sic et...”, além das praticamente invariáveis 411 Renata Cazarini de Freitas construções “nec redimere posse” e “nisi ut exitum tuum populus spectet”. Um ponto alto da inscrição é a variação da apóstrofe: no início, à deusa (l. 1), depois, ao primeiro alvo da execração, Gemela (l. 11), então, de volta a Mater Magna (l. 19). Este documento epigráfico preenche os requisitos compositivos de uma defixio, identificando a divindade rogada, o(s) alvo(s) da rogativa, o(s) motivo(s) da execração, a oferenda como retribuição, sendo esta, muitas vezes, a morte mesma do execrado. Mas nem todas as placas apresentam esses quatro elementos. Não é inverossímil considerar que a autoria intelectual desta placa seja de uma mulher, mas não há como confirmar. Por outro lado, a DTM3, certamente, tem como rogante uma mulher não nomeada, esposa ou viúva de um Floro, como se verá adiante. Figura 3: Reprodução desenho inv. 182,18. Fonte: Blänsdorf, 2005, p. 675. 412 Sem perdão DTM 2 inv. 182,18 [face única] 01. quisquis dolum malum adm(isit de) hac pecun(i)a [---nec] 02. ille melior et nos det(eri)ores sumus (---------------) 03. Mater deum, tu persequeris per terras, per (maria, per locos) 04. ar(i)dos et umidos, per benedictum tuum et o(mnes ---. Qui de hac) 05. pecunia dolum malum adhibet ut tu perse(quaris---. Quomodo) 06. galli se secant et praecidunt uirilia sua, sic il(le--) R S Q 07. intercidat MELORE pec(tus?...)BISIDIS (ne)que se admisisse nec(...) 08. hostiis si(n)atis nequis t(...) neque SUT[ . ]TIS neque auro neque 09. argento neque ille solui (re)fici redimi possit. Quomodo galli, 10. bellonari, magali sibi sanguinem (fe)ruentem fundunt, frigid(us) 11. ad terram uenit, sic et (...) copia, cogitatum, mentem. (Quem-) 12. admodum de eis gallo(r)u(m, ma)galorum, bellon(ariorum sanguinem?) 13. spectat, qui de ea pecunia dolum malum (admisit, sic illius) 14. exitum spectent, et a(d qu)em modum sal in (aqua liques-) 15. cet, sic et illi menbra m(ed)ullae extabescant. Cr(a)s (ueniat) 16. et dicat se admisisse ne(fa)s. D(e)mando tibi rel(igione) 17. ut me uotis condamnes et ut laetus libens ea tibi referam, 18. si de eo exitum malum feceris. 01. Quem admitiu a malversação deste dinheiro... 02. ele está melhor e nós estamos piores... 03. Mãe dos deuses, tu persegues através de terras, (mares, lugares) 04. áridos e úmidos, pelo teu abençoado [Átis] e t(odos)... (Quem deste) 05. dinheiro acolhe a malversação que tu o persigas... (Tal como) 06. os galli se mutilam e amputam seus testículos, assim ele... 07. rasgue... o peito (?) e não o perdoais por ter admitido, nem 08. com oferendas para que ninguém... nem... nem com ouro nem 09. com prata nem que ele possa livrar-se, refazer-se, redimir-se. Tal como os galli, 10. bellonari, magali vertem seu sangue fervendo e frio 11. chega ao chão, assim também... eloquência, pensamento, mente. (Do mesmo) 12. modo que desses galli, magali, bellonari o sangue (?) 13. ele vê, quem admitiu a malversação desse dinheiro, assim também 14. vejam a morte dele, e do mesmo modo que o sal na (água dissol-) 15. ve, assim também definhem seus membros e suas forças. Que venha o dia 16. em que ele diga ter admitido o sacrilégio. Pelo que é sagrado, em ti confio 17. que me atendas os votos e que eu te retribua satisfeito e disposto, 18. se deres a ele uma morte ruim. 413 Renata Cazarini de Freitas Comentário: A placa, na qual consta o maior texto entre as DTMs, inscrito apenas em uma face, foi enrolada, depois dobrada e bastante danificada pelo fogo, apresentando sinais de derretimento na parte inferior. Cerca de um-terço das cinco primeiras linhas e da sequência de 12 a 16 dessa escrita elegante em maiúscula cursiva é irrecuperável. A dimensão dos danos torna parte da conjectura, exibida entre parênteses, muito especulativa, como admite o epigrafista (BLÄNSDORF, 2005a, p. 21). A expressão latina “dolus malus de pecunia” (no acusativo: dolum malum) ocorre três vezes (l. 1, 5 e 13) na inscrição de apenas 18 linhas e configura o malfeito denunciado na placa de execração. O responsável pelo crime nefasto (l. 16: nefas) não é nomeado. A punição é delineada em analogias persuasivas (quomodo / quemadmodum... sic et...) e uma vez mais é evocada a imagem dos galli, mas também de outras duas categorias de sacerdotes, os da deusa romana da guerra Belona e, supostamente, uma versão localizada em Mainz de discípulos de Magna Mater, os magali. A ubiquidade da deusa (l. 3-4) é valorizada como eficaz para impor a punição e a ela é associado Átis, segundo a leitura da expressão latina “benedictus tuus” (l. 4, no acusativo) como epíteto de uma pessoa falecida estimada (BLÄNSDORF, 2010, p. 182). A metáfora da morte como paralisia dos atributos intelectuais (l. 11) é construída a partir da fortíssima imagem do sangue derramado pelos sacerdotes ao se castrarem, que chega frio ao chão (l. 10-11). 414 Sem perdão Três motivos que se repetem em algumas DTMs ocorrem aqui: a impossibilidade de redenção, a morte ruim à vista de todos e a dissolução física como o sal na água. DTM 3 inv. 1, 29 [frente] Rogo te, domina Mater Magna, ut tu me uindices de bonis Flori coniugis mei. Qui me fraudauit Ulattius Seuerus, quemadmod(um) hoc ego averse scribo, sic illi [verso] omnia, quidquid agit, quidquid aginat, omnia illi auersa fiant, ut sal et aqua illi eueniat. Quidquid mi(hi) abstulit de bonis Flori coniugis mei, rogo te, domina Mater Ma(g)na, ut tu de eo me uindices. 01. Rogo-te, senhora, Grande 02. Mãe, que me compenses 03. pelos bens do meu marido, Floro. 04. Quem me expropriou, Ulácio 05. Severo, do mesmo modo que 06. eu escrevo isto às avessas, assim, 07. tudo pra ele, faça o que fizer, 08. tudo aconteça às avessas pra ele, 09. que seja pra ele como o sal na água. 10. O que ele me roubou dos bens 11. do Floro, meu marido, rogo-te, 12. senhora, Grande Mãe, que tu 13. me compenses por isso. Comentário: Dentre as placas selecionadas, desta única não foi possível obter um desenho para contrastar com a transcrição em latim, mas as quatro publicações consultadas são convergentes quanto ao texto. Por outro lado, seria de se esperar que pelo menos alguma parte da execração refletisse a informação de que a escrita foi feita ao revés, como sugerido na linha 6, configurando analogia persuasiva numa correlação com a linha 8, no entanto, isso não se confirma (FARAONE; KROPP, 2010, p. 390), ou seja, a escrita é regular, da esquerda para a direita. Daí que a analogia não se realiza. 415 Renata Cazarini de Freitas A autoria intelectual pode ser claramente atribuída a uma mulher, a esposa ou viúva de um tal Floro, que foi espoliada por um homem conhecido e nomeado como alvo da execração. Ocorrem duas locuções idiomáticas nesta breve inscrição que se repetirão na DTM 4: “agit, aginat” e “ut sal et aqua”. A primeira, registrada no Satíricon 61.9, de Petrônio, obra paradigmática para os estudos do latim popular na Antiguidade, significa fazer algo a qualquer custo.7 A segunda, como esclarece Gordon (2014, p. 781), é uma metáfora do esperado fracasso dos planos do alvo da execração, que eles se desfaçam como o sal na água. Sobressai-se nesta rogativa a dupla ocorrência de “me uindices” (l. 2 e 13), acarretando certa ambiguidade, pois tanto pode levar a uma tradução banal como “me vingues” quanto a “intercedas por mim”, numa leitura especializada do jargão jurídico de uma reclamação em juízo para retomada da posse de bens. Ambas as acepções são possíveis e qualquer opção é ideológica, seja no sentido de implicar que prevalece na rogante o desejo de vingança, seja priorizando o legalismo, pouco condizente com o teor do pedido funesto (l. 4 a 9), que vem entremeado na dupla invocação à deusa. A mensagem subliminar é que a pleiteante busca justiça fora dos tribunais, o que seria mais apropriadamente tratado como justiçamento do que como pura vingança, daí a preferência pela expressão “me compenses”. Blänsdorf (2005a, p. 21) comenta que “as O latim “egi, aginaui” (Sat. 61.9), na tradução de Sandra Bianchet (Petrônio, 2004, p. 103): “eu fiz o possível e o impossível”. 7 416 Sem perdão mulheres tinham especialmente razão em buscar compensação fora dos tribunais, onde nem deviam aparecer, recorrendo aos deuses”. Figura 4: Reprodução desenho inv. 11,53. Fonte: Blänsdorf, 2005, p. 685. DTM 4 inv. 111, 53 [face interna] Tiberius Claudius Adiutor. In megaro eum rogo te, M[a](t[e]r Magna, megaro tuo re(cipias, et Attis, domine, te precor ut hu(n)c (h)ostiam accep(tum (h)abiatis et quit aget agi(nat, sal et aqua illi fiat. Ita tu facias, dom(i)na, it quid cor [eoconora c(a?)edat [face externa] deuotum defictum illum menbra, medullas, aa (?) nullum aliud sit, attis, mater magna. 01. Tibério Cláudio Adjutor. 02. No templo, rogo-te, Grande 03. Mãe, no teu templo o 04. recebas, e Átis, senhor, te 05. peço que como oferenda o 06. tenhais em conta, e faça ele o que 07. fizer seja pra ele como sal na água. 08. Que assim faças, senhora, ...coração, [fígado... 09. corte(?) 10. ofertado, execrado 11. ele, membros, 12. forças... 13. Que não haja nada mais, 14. Átis, Grande Mãe. Comentário: 417 Renata Cazarini de Freitas Na face interna, a escrita é em maiúsculas romanas, com traços e linhas irregulares, porém, na externa, a letra é cursiva, de uma mão treinada, revelando dois participantes do mesmo ritual, já que a mensagem é continuada. Em ambas as faces, contudo, há evidências do latim popular, como a ausência do “h” inicial em “ostiam” (linha 5) e “abiatis” (l. 6), que seria “habeatis”, ainda assim, uma mudança abrupta da 2ª pessoa do singular para a do plural. Também a ocorrência de “eoconora” (l. 8) como variação ortográfica de “iecinora” (iecur, iecinoris n.) indica o uso do latim popular (BLÄNSDORF, 2010, p. 175). As grafias de “domna” (l. 8: domina), “defictum” (l. 10: defixum) e “menbra” (l. 11: membra) são marcadores adicionais. O alvo da rogativa é identificado na primeira linha, no caso nominativo, como um título. A punição é definida pelo próprio rogante: a morte como vítima sacrificial, que, pelos indícios do texto, envolveria a mutilação de membros. Não é fornecida uma razão para tamanha execração. A associação de Átis com o termo “megaron”, palavra grega para templo ou mesmo local de sacrifício aos deuses ctônicos (BLÄNSDORF, 2005a, p. 18), não é isolada e pode ser confirmada pela placa de chumbo de Salacia Vrbs Imperatoria (hoje, Alcácer do Sal, em Portugal), encontrada em 1995 e datada do século II EC, na qual “Mégaro” é identificado pelo rogante como uma divindade que recebeu o corpo de Átis e, da mesma maneira, deve receber o do ladrão, ofertado em troca da recuperação dos bens. Ao mesmo tempo, 418 Sem perdão é ofertada a Átis uma vítima de quatro patas para que o ladrão seja localizado (FREITAS, 2015, p. 79, GORDON, 2012, p. 5). Na placa de Mainz, a rogativa é dirigida a Átis e a Mater Magna. Figuras 5 e 6: Reprodução desenho inv. 201 B 36. Fonte: Blänsdorf, 2005, p. 681. DTM 5 inv. 201 B 36 [face interna] Bone sancte Att<h>is tyran(ne, adsi(s), aduenias Libera(li iratus per omnia te rogo, domine, per tuum Castorem, Pollucem, per cistas penetra(les, des ei malam mentem, malum exitum quandius uita uixerit ut <et> omni cor(pore uideat se emori prae(ter oculos. [face externa] Neque se possit redimere nulla pe<r>cunia nullaque re neq(ue) abs te neque ab ullo deo nisi ut exitum malum. Hoc praesta rogo te per ma(iestatem tuam 01. Bondoso, santo Átis tirano, 02. que te apresentes e achegues 03. irado ao Liberalis, rogo-te por tudo, 04. senhor, pelo teu Cástor e 05. Pólux, pelos cestos sagrados, 06. que a ele concedas mente enferma 07. e uma morte ruim ao fim da 08. vida de forma que se veja 09. definhar de corpo inteiro, 10. exceto os olhos. 11. E que ele não possa se redimir 12. com dinheiro algum e coisa alguma, 13. nem junto a ti nem a outro deus, 14. senão com uma morte ruim. 15. Atenda a isto, rogo-te, pela tua 16. majestade. 419 Renata Cazarini de Freitas Comentário: A dimensão desta placa é 10 x 11,5 cm, com margem de 1,2 cm de cada lado, inscrita em letras de 0,6 cm na escrita cursiva romana antiga, muito legíveis. Foi elaborada num latim de fácil compreensão, com sintaxe convencional. O motivo da rogativa a Átis não é informado, mas a punição é determinada pelo rogante à divindade, tratada prestigiosamente com quatro epítetos no caso vocativo: bone, sancte, tyranne, domine. Além disso, é invocado a comprovar sua majestade, como ocorre também na única defixio latina dirigida a Ísis, que será apresentada mais adiante. Para Blänsdorf (2005a, p. 16), o texto tem “a forma de uma prece solene a Átis”, nome peculiarmente grafado com “h” medial (Atthis), o que é atestado numa outra placa, localizada em GrossGerau, próxima a Mainz, numa caligrafia semelhante. Mais ainda, a solenidade dos epítetos na placa de execração de Mainz é corroborada pela referência a Cástor e Pólux nas linhas 4 e 5, “elevando Átis ao nível de Júpiter” (BLÄNSDORF, 2005a, p. 17), imagem reforçada pela invocação a “deus max<s>ime Atthis” em Gross-Gerau. O pesquisador alemão não aborda o henoteísmo, o culto de uma só divindade embora reconhecendo a existência de outras, um meio termo entre o monoteísmo e o politeísmo. H. S. Versnel (1990) afirma que o henoteísmo é um dos mais importantes fenômenos religiosos dos períodos helenístico e imperial. É o que se constata, por exemplo, em relação ao culto de Ísis como é “romanceado” na obra 420 Sem perdão Metamorfoses, de Apuleio, do século II EC, mais conhecida como O asno de ouro. Figura 7: Reprodução desenho inv. 31,2. Fonte: Blänsdorf, 2005, p. 687. DTM 6 inv. 31,2 [face única] 01. Quintum in hac tabula depono auersum 02. se suisque rationibus uitaeque male consum(03. mantem. ita uti galli bellonariue absciderunt concide(04. runtue se, sic illi abscissa sit fides fama facul<i>tas. nec illi 05. in numero hominum sunt, neque ille sit. quomodi et ille 06. mihi fraudem fecit, sic illi, sancta Mater Magna, et [relegisti ?] 07. cuncta. ita uti arbor siccabit se in sancto, sic et illi siccet 08. fama fides fortuna facul<i>tas. tibi commendo, Att<i>hi d(o)mine, 09. ut me uindices ab eo, ut intra annum uertent(em..) exitum 10. illius uilem malum. [lateral] 11. ponit nom(en) huius mari(12. tabus. si agatur ulla 13. res utilis, sic ille nobis 14. utilis sit suo corpore. 15. sacrari horr(e)bis. 421 Renata Cazarini de Freitas [face única] 01. Nesta tábula, entrego o Quinto, avesso 02. a si e às próprias razões, que se vai destruindo em vida. 03. Assim como os galli ou os bellonari se dilaceraram ou se cortaram 04. assim fiquem fé, fama, faculdade mental dele dilaceradas. 05. Nem eles são considerados humanos, nem ele o seja. 06. Tal como ele me expropriou, Grande Mãe sagrada, assim 07. retomes tudo dele. Bem como a árvore secará no templo, assim 08. também sequem fama, fé, fortuna, faculdade mental dele. [Confio a ti, Átis, senhor, 09. que me vingues dele, que dentro de um ano... a morte 10. dele vil e ruim. [lateral] 11. [Alguém] entrega o nome dele para as 12. esposas. Se for de alguma forma 13. útil, assim nos seja 14. útil seu corpo. 15. De seres amaldiçoado, terás horror. Comentário: Trata-se da mais sofisticada inscrição desta seleção, num latim clássico em maiúscula cursiva, com elaboração retórica, contendo os elementos esperados de uma execração, ausente, contudo, o verbo “rogo”: identificação do alvo do pleito (l. 1), causa da execração (l. 6), invocações a divindades (l. 6 e 8), morte ruim como punição (l. 9-10). Ela dista, porém, de outros registros do repertório ao não cobrar a morte em espaço público nem determinar a impossibilidade de redimir-se. As analogias persuasivas retomam, primeiro, a imagem da automutilação dos sacerdotes de Cibele (Mater Magna) e Belona (vide DTM 2), associando-a à perda de atributos muito valorizados na cultura romana antiga como a confiança, o renome, a boa sorte e o talento (l. 4 e 8: tricolon e tetracolon aliterativos), depois, introduzem 422 Sem perdão a imagem do tronco de árvore no ritual a Átis conhecido como “arbor intrat” (l. 7). A fórmula “me uindices” (l. 9) aparece também nesta placa (vide DTM 3). Para Blänsdorf (2010, p. 162), trata-se de um “blending” de mágica e religião. Como o epigrafista constatou, há vestígios na placa de chumbo de duas tentativas de inscrição, a primeira, abandonada após inscritas três palavras, incluindo o nome do alvo da execração.8 O texto que prevaleceu revela conhecimento do léxico judicial, como “tabula” (l. 1), o registro formal de um documento, “fraudem fecit” (l. 6), jargão jurídico para prejuízo causado a outrem, “me uindices” (l. 9), verbo que implica reclamação em juízo para recuperação de bens, consistente com o crime denunciado, bem como o uso do sufixo “-ue”, da linguagem legal (BLÄNSDORF, 2010, p. 187). O trecho complementar, inscrito na lateral, deslocado do texto principal, é de uma segunda mão. Como aponta o epigrafista, é um resumo da execração. Aceitando a proposição de que as “maritabus” sejam as duas deusas do santuário (BLÄNSDORF, 2010, p. 188), haveria, afinal, uma defixio dirigida a Ísis também em Mainz. Baelo Claudia Há um só registro de defixio dirigida à deusa de origem egípcia e ele foi localizado em 1970 num pequeno templo dedicado a Isis Myryonima, a que tem uma miríade de nomes, em Baelo Claudia, Faraone e Kropp (2010, p. 386) fazem leitura parcialmente distinta, seguidos por Gordon (2012, p. 10). 8 423 Renata Cazarini de Freitas cidade da antiga província da Baetica, hoje, Andaluzia, extremo sul da Espanha, chamada Hispania Ulterior no período romano. Ali, longe do fogo, a peça foi encontrada nos degraus de acesso a uma cisterna, provavelmente destinada a rituais. A associação das placas de execração com a água está bem documentada também em Aquae Sulis, onde soldados romanos ergueram no século II EC um templo em torno de uma fonte de água quente, local de culto da deusa autóctone Sulis, interpretada a partir de então como Minerva. Talvez não seja excessivo especular que a aparente ausência das rogativas dirigidas diretamente a Isis Panthea em Mainz seja decorrente da prática local de incinerar as placas de chumbo em franco contraste com a caracterização da deusa como protetora das águas, dos navegantes e do rio Nilo, cultuada com frequência em entrepostos marítimos, como era o caso de Baelo Claudia. Figura 8: Reprodução desenho. Fonte: Ribeiro, 2006, p. 246. 424 Sem perdão Isis muromem tibi conmendo furtu(m) meu(m). Mi(hi) fac tu<t>o numini ma(i)es(tati ex<s>emplaria ut tu evide(s) immedi(o quis fecit, autulit aute(m) res: opertor(i)u(m) albu(m) nou(um), stragulu(m) nou(um), lodices duas de uso. Rogo, domina, per maiestate(m) tua(m) ut (h)oc furtu(m) repri(ndas. 01. Ísis Miriônima, 02. a ti recomendo 03. o furto que sofri. Me dê, 04. da tua majestosa divin05. dade, exemplos, 06. tirando em público a vida 07. de quem fez, melhor, roubou 08. essas coisas: uma coberta 09. branca nova, um tapete 10. novo, dois lençóis 11. usados. Rogo, senhora, 12. pela tua majestade, 13. que este furto repre14. endas. Comentário: A inscrição de 14 linhas expõe o registro em latim popular do pleiteante, com perda sistemática do /m/ final do acusativo singular, o caso lexicogênico do português – vide as linhas 3, 8-10, 12-13. Outras ocorrências de registros alternativos ao latim culto são “mi” pelo dativo “mihi” (l.3), a sonorização do verbo “evito, evitare” em “evide(s)”, presente do subjuntivo (l.6), “autulit” ao invés de “abstulit”, pretérito perfeito do indicativo (l.7), bem como “reprindas” por “repreendas”, presente do subjuntivo (l.13). Ísis é invocada a fazer justiça: o “caso de polícia” é atribuído à divindade, mas a sentença é decidida pelo pleiteante, e é a morte à vista de toda gente (l.6: in medio = immedio). A divindade é instigada a comprovar sua majestade não uma, mas duas vezes (l.4 e l.12). O verbo que encerra a inscrição tem dupla acepção: tanto recuperar o material do furto como condenar o autor do furto. Os quatro objetos 425 Renata Cazarini de Freitas furtados, listados na placa, indicam que devem ter sido levados de um local onde se lavava roupas, como sugere também uma inscrição localizada em Augusta Emerita, antiga capital da Lusitania, que traz uma lista de roupas. Considerações finais Em linha com comentários recentes de pesquisadores renomados (FARAONE; GORDON 2019; FARAONE; TOVAR 2022) e abordagens de pesquisadoras que propõem novas leituras sobre o uso disseminado das tabellae defixionum (VEALE, 2017; URBANOVÁ, 2018; EIDINOW, 2019), é pertinente a aproximação às existências humanas desses agentes, privados de recursos pessoais e sociais diante de situações críticas e que, por isso mesmo, instauram a comunicação com agentes “não imediatamente plausíveis”,9 como as divindades, deles cobrando a intervenção direta na solução dos seus conflitos. Quatro das seis inscrições deste capítulo apelam pelo restabelecimento do equilíbrio de forças, fácil de ser constatado pela formulação convencional “Tal como... assim também...”, identificada nas DTMs 1, 2, 3 e 6. Nessas placas, a gravidade da compensação Veale (2017, p. 295), por exemplo, adota a expressão “non-immediately plausible agents”, que engloba divindades, heróis e ancestrais, mas também animais, lugares e objetos, tal como foi cunhada por Jörg Rüpke (2015, p. 344): “A religião é compreendida como uma estratégia de atribuir agência a agentes que não parecem imediatamente plausíveis”. Entenda-se “plausível” como o que recebe o assentimento de outros (RÜPKE, 2015, p. 5). Rüpke vai mais longe e propõe ver a religião como um fenômeno de comunicação, em que o agente humano conquista ainda mais agência ao atribuir agência a agente implausíveis, tal como as divindades, veja-se o caso dos profetas (RÜPKE, 2015, p. 352). 9 426 Sem perdão demandada é indício da seriedade com que foi percebido o malfeito sofrido pelo rogante. Já as DTMs 4 e 5, ainda que mantenham a forma de uma prece, porém sem expor o motivo da execração, aparentam ser manifestação de extrema rivalidade ou inimizade, daí que não se possa nem falar em vingança. Outro marcador da virulência do rogante é a vinculação pela fórmula “que não possa se redimir”, impossibilitando eventual redenção do alvo, quer dizer, não haverá arrependimento algum, nenhuma compensação financeira, que o libere da execração. Visto que o diminuto corpus selecionado para este capítulo não traz a identificação de nenhum dos rogantes, por outro lado, apresenta os alvos das rogativas e alguns dos malfeitos assim percebidos, há mais subsídios para alinhavar uma ordenação das placas pelo grau de severidade da punição cobrada. Não há como estabelecer critérios unânimes nesse tipo de análise, já que a interpretação decorrerá da impressão que uma imagem mais ou menos vívida possa causar no leitor do século XXI. Parece legítimo considerar a DTM 3 a menos agressiva das seis execrações, levando-se em conta que a esposa ou viúva do tal Floro não demanda expressamente a morte de Ulácio Severo, apenas roga que tudo dê errado na vida desse usurpador de bens. Assim, o tom da inscrição também justifica que a tradução opte pela ideia de compensação ao invés de vingança. Contudo, uma possível ressalva a este julgamento será feita mais adiante. A seguir, vem a DTM 6, que introduz outro homem que também cometeu fraude, um tal Quinto, que é entregue como oferta 427 Renata Cazarini de Freitas votiva ao ter seu nome inscrito na placa. É cobrada das divindades a morte do alvo, mas não chega a haver descrição do aniquilamento físico, apenas moral, dispensando inclusive a fórmula de vinculação. A DTM 4 constitui-se oferta votiva formulada como uma prece, mas, diferente das duas anteriores, não menciona um dolo, daí ficar prejudicada a leitura da execração como apelo à justiça fora das instâncias oficiais. O terceiro nome do alvo, Tibério Cláudio Adjutor, talvez aluda a uma função burocrática de assistente ou se refira a ele como o comparsa em algum malfeito. Para os rogantes, ele estava meticulosamente identificado como uma vítima sacrificial a ser desmembrada, no entanto, não se recorre à fórmula de vinculação. A morte em espaço público, à vista de todos, traz um gravame para o teor da execração, como acontece nas DTMs 2 e 1, que adotam a fórmula vinculante e denunciam os malfeitos sofridos, envolvendo, mais uma vez, patrimônio. Contudo, a DTM 2 não identifica o alvo, por desconhecimento de quem seja o responsável. A fragmentação do texto, consumido parcialmente pelo fogo, não deixa saber se seriam ainda mais cruéis as retaliações. Já a DTM 1, embora nem sempre legível, descreve com muita energia o desejo de ver as vítimas ofertadas, os próprios alvos da execração, devoradas pelos cães ou pelos vermes. Por fim, a DTM 5 aparente ser a de maior impacto, pela formulação perversamente maldosa de desejar a um tal Liberalis, do qual se desconhece o malfeito contra o rogante, que testemunhe o próprio corpo definhar, restando-lhe apenas os olhos para isso. A 428 Sem perdão fórmula que veta a redenção do alvo é ampliada para todos os deuses, além de Átis, o rogado. Conclui-se com bastante segurança que não havia um texto padrão para a execução das placas, mas formulações que frequentavam o imaginário coletivo naquele contexto social específico e das quais os agentes se apropriavam individualmente para obter o justiçamento ou a vingança numa situação em que enxergavam um desequilíbrio de forças que seria sanado só pela agência divina. É interessante observar como as duas placas que pedem a morte dos seus alvos à vista de todos, emulando, possivelmente, a execução pública como função social corretiva, resgatam do imaginário coletivo os sacerdotes de Cibele (Mater Magna), figurantes do cortejo ruidoso anunciando o festival de abril em homenagem à deusa, quando se emasculavam. Um dispositivo retórico de que cada um dos agentes fez uso à sua maneira é o da analogia, com o efeito esperado da ação divina sobre os alvos listados: a mutilação (1, 2, 4 e 6), a devoração (1), o sangramento (2), o definhamento (5 e 6). Menos explícita é a fórmula de dissolução “ut sal et aqua”, que vinha associada às atividades e planos futuros do alvo da execração, portanto, apenas indiretamente ao seu fim (3 e 4), ou simbolizando, sem margem para dúvida, a sua morte (3). Outras placas do acervo de Mainz (10, 11 e 12) trazem a analogia explícita de que o corpo do execrado deve se desfazer como a placa de chumbo se desfaz no fogo. 429 Renata Cazarini de Freitas O debate improfícuo sobre se o uso das defixiones é mágica ou religião perde o protagonismo quando se adota a perspectiva das relações entre os agentes, humanos ou não imediatamente plausíveis, em contextos sociais restritos. Trata-se agora de abordar a complexa dinâmica social entre indivíduos e os recursos a eles disponíveis, dentro e fora do sistema, para administrar riscos, garantir a segurança econômica, física ou emocional, corrigindo um aparente ou real desequilíbrio de forças. Decidir-se pela confecção e inscrição das placas de execração é pôr à parte a inação diante de circunstâncias percebidas como injustas ou desfavoráveis e munir-se de ferramenta de comunicação e instrumento de poder.10 Referências Documentação APULEIO. O asno de ouro. Tradução de Ruth Guimarães. Edição bilíngue. 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A própria palavra “druida” contém em si mesma um elemento relacionado ao divino uma vez que seu significado na língua indoeuropeia seria “carvalho”, uma árvore sagrada para esses povos. Visto que não há fontes textuais escritas pelos próprios celtas, os ritos, cerimônias e festividades presididas pelos druidas são conhecidos principalmente pelo relato de escritores antigos como César (Guerra Gálica), Plínio, o Velho (História Natural), Políbio (Histórias), Diodoro Sículo (Biblioteca Histórica), Estrabão (Geografia) e por textos vernaculares (principalmente da Irlanda e do País de Gales) que Possui bacharelado em História pela PUC de São Paulo e mestrado e doutorado em Arqueologia do Mediterrâneo Antigo pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. É pesquisadora associada do LARP (Laboratório de Arqueologia Romana Provincial/MAE/USP). Realizou escavações arqueológicas em Portugal (2005-2007) no sítio de Tongobriga (numa parceria entre a Brown University e o IGESPAR Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico) e também em Israel (2000) enquanto participante do Projeto Apollonia (TEL AVIV UNIVERSITY/ UFRG/UNICAMP/USP) na localidade de Herzilia. 2 É necessário salientar que os celtas não possuíam uma identidade étnica enquanto grupo único e homogêneo e o mais provável é que vários grupos distintos (principalmente os que habitavam as áreas próximas ao Atlântico) tornaram-se “celtas” ao longo do tempo devido ao contato cultural. Examinaremos neste texto as práticas rituais presentes em grupos comumente associados aos celtas e que povoavam as regiões da Gália, Bretanha e Hibernia. 1 434 Druidismo e Magia apesar de datados como pertencentes ao período medieval são compilações de uma história oral muito anterior como, por exemplo, o Ciclo de Ulster, saga irlandesa na qual um dos personagens principais é o druida Cathbad. A arqueologia, por sua vez, nos proporciona uma série de documentos materiais (cetros, caldeirões, esculturas, estatuetas) que, aliados às fontes textuais, nos permite formular um quadro geral sobre os significados das práticas mágicas entre os celtas. Serão examinados neste texto vários rituais e cerimônias sagradas visando determinar sua intencionalidade e sua importância para a manutenção da ordem social e do bem estar coletivo, atos sacros estes nos quais era fundamental a presença do druida: mediador entre os deuses e os homens e exímio conhecedor das etapas imprescindíveis para a realização dos cultos divinos. Os ritos divinatórios e o dom da profecia e da magia A predição do futuro era uma das funções mais significativas exercida pelos druidas. Ela poderia ser feita através da leitura de vísceras de animais sacrificados, voos de pássaros, utilização de plantas alucinógenas e uso de objetos especificamente confeccionados para tal fim. Analisaremos, a seguir, alguns ritos adivinhatórios. Uma prática bastante interessante diz respeito ao uso de runas para prenunciar o futuro. Elas eram comumente utilizadas entre os povos germânicos e escandinavos, mas haveria entre os celtas tal 435 Silvana Trombetta prática? Com relação aos germânicos, o texto de Tácito nos informa que: Nenhum povo pratica mais diligentemente o augúrio e a adivinhação pela sorte. A predição é simples. Um pequeno ramo de uma árvore frutífera é quebrado e cortado em pedaços. Estes últimos serão diferenciados uns dos outros por marcas incisas e depois serão jogados ao acaso sobre um pano branco. Nas questões públicas, o sacerdote (e nas particulares o chefe da família) invoca os deuses e com os olhos voltados para o céu pega três pedaços do ramo, um de cada vez, e neles encontra um significado de acordo com as marcas previamente incisas. Se forem desfavoráveis, não haverá mais consulta naquele dia sobre o assunto e se forem favoráveis ainda será necessária a confirmação do augúrio (TÁCITO, Germania, 10). Seria possível atestar arqueologicamente na Bretanha, Gália ou Irlanda a presença de algum objeto com marcas similares às existentes nas runas germânicas? Green (2021, p. 115), menciona uma haste em bronze pertencente à coleção romano-bretã do museu de Peterborough. Este objeto foi encontrado no fundo do leito do rio Nene (Inglaterra), perto da ponte de Milton Ferry e tem paralelo com objetos da Bretanha Romana, particularmente com três outros exemplares menores (em ferro) encontrados durante a escavação da rua Moorgate, em Londres. Podemos presumir que tais artefatos eram sistros usados em cerimônias religiosas devido ao fato de que continham estruturas anelares numa das extremidades (possivelmente para a inserção de guizos). A deposição no rio provavelmente foi ritual e o grande interesse na haste justifica-se porque ela contém riscos horizontais e transversais que se agrupam ao longo do eixo vertical: esses caracteres compunham mensagens numa linguagem arcana que 436 Druidismo e Magia somente os sacerdotes poderiam compreender. “Se as marcas presentes no sistrum de Milton Ferry tiverem sido corretamente identificadas, então elas têm uma clara relação com as runas esculpidas nas hastes de madeira usadas pelos sacerdotes germânicos conforme o registro de Tácito” (GREEN, 2021, p. 115). Isto nos leva a supor que runas eram utilizadas na Bretanha com finalidade premonitória e a presença em enterramentos de hastes medicinais juntamente com objetos relacionados a jogos (como veremos a seguir) enfatiza o entrelaçamento entre o vaticínio, a convalescência e a atuação divina. A função divinatória no mundo antigo nem sempre ocorria de forma isolada, mas sim associada às práticas de cura. Green (2021, p. 117), discorre sobre objetos encontrados na tumba de cremação do “Druida de Colchester” (50 EC) em Stainway (perto de Colchester, Inglaterra), cujo defunto pode ter tido uma dupla função social: xamânica e medicinal. Além dos restos de cremação, o mobiliário funerário continha 13 instrumentos cirúrgicos, um tabuleiro de jogo, 26 peças de jogo (13 em vidro azul e 13 em vidro branco), um vasilhame de liga de cobre e 8 hastes de metal (4 em latão e 4 em ferro, duas maiores e duas menores de cada metal). As hastes supostamente tinham fins premonitórios, pois apesar de possuírem uma terminação em espátula (o que estaria em consonância com a função medicinal) encontravam-se espalhadas de modo deliberado sobre um tabuleiro de jogo e não sobre o solo. Além disso, a análise dos restos de pólen presentes no coador do vasilhame identificou a 437 Silvana Trombetta presença da Artemísia (usada tanto com propósitos de cura quanto alucinatórios). O vasilhame pode ter sido utilizado para a infusão de ervas (preparo de bebidas medicinais) e também para a queima de incenso (cuja fumaça teria efeito alucinógeno). É bastante provável, portanto, que o morto fosse ao mesmo tempo médico e sacerdote. Não raro, o mesmo indivíduo exercia essas duas funções no mundo antigo como veremos mais adiante ao examinar os objetos encontrados no santuário de Sulis-Minerva em Bath (Inglaterra). A presença de um tabuleiro de jogo num enterramento não é exclusiva da tumba do “Druida de Colchester”, pois o mesmo tipo de objeto foi identificado noutro sepultamento da localidade de Stanway, denominada de “Sepultura do Guerreiro” (43-46 EC). Entretanto, uma diferença bastante significativa é visível no posicionamento das peças de jogo: na “Sepultura do Guerreiro” as peças estavam agrupadas e colocadas diretamente sobre a terra enquanto que na tumba do “Druida de Colchester” elas estavam alinhadas na borda do tabuleiro, com algumas das peças de cor azul e de cor branca dispostas “casas” à frente, como no início de um jogo. Simbolicamente, isto pode representar algo “em andamento”, talvez o início de uma nova vida no mundo dos mortos. Para Green (2021, p. 117), os dois “jogadores fantasmas” poderiam representar a dupla personalidade do “médico”: como curador e como mensageiro xamânico entre os dois mundos. O fato de uma das peças de cor azul ter sido (quase certamente) deliberadamente virada ao contrário seria mais uma evidência desta dupla função. 438 Druidismo e Magia Como foi dito, incensos eram queimados ou bebidas ingeridas com o propósito de provocar um estado de transe e possibilitar a comunicação com o outro mundo. O uso de plantas alucinógenas é comprovado pela existência de recipientes para queimar incensos (thuribula) encontrados, por exemplo, no santuário galo-romano de Chartres (século II EC), no norte da França. Outro objeto que explicita a junção entre a função sacerdotal e o uso de plantas alucinógenas é o cetro (século III a.C.) encontrado no oppidum de Manching, na Bavária. Ele foi arqueologicamente reconstruído e originalmente consistia num bastão de madeira (em formato de galho de árvore) revestido por lâminas de ouro das quais pendiam folhas feitas em bronze que se assemelhavam à planta Glória-da-manhã (da família Convolvulaceae), cujas sementes possuíam poder alucinógeno. A transcendência proporcionada pelas ervas liberava a entrada no além e a consequente interlocução com os deuses. Era necessário que o sacerdote tivesse completo domínio sobre a utilização das plantas (dosagem, modo de preparo) para que seu uso fosse apropriado e não rompesse o tênue limite entre a vida e a morte. Os druidas eram os emissários dos desígnios das divindades e efetuavam os processos de cura física e espiritual através do encantamento proporcionado pelas ervas. Outro tipo de predição do futuro era feito através das colheres divinatórias. Um par de colheres em bronze (fig. 1), pertencente à Idade do Ferro foi encontrada (por um fazendeiro) em 1829 no assentamento fortificado de Castell Nadolig, (Penbryn, País de Gales). 439 Silvana Trombetta Uma delas possui um furo próximo à borda lateral enquanto que a outra tem uma divisão em quadrantes (que pode ser uma referência aos quatro pontos cardeais). Três dos quadrantes possuem pequenas incrustações circulares ao centro: uma em ouro, outra formada por uma liga de cobre e estanho e a terceira feita com um metal cuja composição não é possível identificar. As incrustações circulares provavelmente existiam em todos os quadrantes e podem ter sido feitas com metais diferentes devido a alguma especificidade deste tipo de predição. A hipótese mais provável é a de que o sacerdote dispunha uma colher abaixo da outra, de modo que o líquido gotejasse através do orifício da colher posicionada acima e caísse sobre a colher que tinha os quadrantes incisos. A predição do futuro possivelmente seria feita de acordo com o significado de cada quadrante atingido pelo gotejamento do líquido (óleo, vinho, sangue?), levando em conta a proximidade ou não da incrustação central e o material usado em sua confecção (a gota que caísse sobre a incrustação em ouro seria um sinal de bom augúrio?). Ambas as colheres são decoradas no cabo com motivos da arte La Tène que se assemelham ao visgo ou broto de lótus, plantas com caráter medicinal e/ou alucinógeno, o que potencializava o caráter divino do objeto e do ato profético, principalmente ao pensarmos que as mãos do sacerdote durante o ato repousavam sobre representações de ervas terapêuticas ou psicotrópicas. 440 Druidismo e Magia Figura 1: Colheres divinatórias encontradas em Penbryn. Datação: Idade do Ferro. Acervo do Museu Ashmolean. Autor: Ethan Doyle White. Fonte: Wikimedia Commons. O druida tinha o papel crucial de conduzir as ações premonitórias de modo a antever as circunstâncias ulteriores. De acordo com Anne Ross: Além da função proeminente como sacerdote, o druida colocava em ação poderes mágicos, o que se verificava por seus encantamentos e sua habilidade de prever o futuro e predizer o resultado dos acontecimentos. Seu conhecimento de astrologia deve ter sido considerável, bem como suas habilidades relacionadas aos cálculos do calendário. Acreditava-se que ele tinha poderes de se transmutar, bem com transmutar outras pessoas, transformando humanos em animais ou pássaros segundo sua vontade. Portanto, ele deve ter sido o mestre da ilusão. Ele também tinha habilidades curativas, com um vasto conhecimento das propriedades terapêuticas das ervas e outras substâncias. E, talvez o mais importante, ele era o professor dos filhos dos nobres, guardião da tradição oral e do conhecimento transmitido de geração em geração (ROSS, 1997, p. 425). Cabe lembrar que além dos druidas (cujo aprendizado durava cerca de vinte anos), outras ordens como a dos vates e bardos 441 Silvana Trombetta possuíam prestígio no mundo celta. Embora não tivessem o mesmo poder do druida para presidir os rituais e o dom de conhecer intimamente os desejos dos deuses, eles também tinham poderes mágicos e proféticos. O aprendizado de um vate durava cerca de doze anos. Eles possuíam o dom da profecia e “eram mestres da poesia e da métrica” (ROSS, 1997, p. 428). No entanto, a ordem mais duradoura historicamente foi a dos bardos. Seu período de treinamento era de sete anos. Uma de suas mais importantes funções era a composição do louvor poético que poderia trazer grandes benefícios aos seus superiores ou ao povo em geral. Eles também possuíam o temido poder da sátira, que poderia causar defeitos físicos, má sorte ou mesmo a morte contra aquele a quem a sátira era cantada (ROSS, 1997, p. 428). Druidas, vates e bardos dividiam (com maior ou menor grau de poder) o dom da predição e da magia embora o druida fosse o detentor das maiores habilidades, regendo rituais temporal e espacialmente determinados que eram essenciais para perpetuar a estabilidade dos grupos aos quais pertenciam. O lugar do sagrado – a deposição votiva e o sacrifício Espaços como lagos, rios, clareiras, fontes, cavernas e grutas eram considerados “soleiras” entre o mundo material e o sobrenatural. As grutas e cavernas, por serem locais escuros por natureza, eram visto como tocados pelo poder divino. O próprio mundo natural era por vezes utilizado para mimetizar grutas. Um exemplo é o da enorme 442 Druidismo e Magia estrutura composta por 200 toras de carvalho (árvore considerada sagrada pelos celtas) em Co.Armagh (Irlanda) que possivelmente lograva imitar uma gruta. Localizada no alto de uma colina dentro do conjunto cerimonial de Navan Fort, esta construção circular (século I a.C.) continha em seu interior blocos de pedra cujas análises arqueológicas revelaram vestígios de combustão. De acordo com Green (2021, p.44), isto pode ser um forte indício de que tal “gruta artificial” foi ritualmente queimada. A finalidade do rito envolvendo o fogo pode ter sido a destruição da construção por um elemento da natureza visando sua consagração aos deuses. Não fortuitamente, próximo a este local, no lago Loughnashade, foi “encontrado um depósito votivo contendo quatro soberbos trompetes de bronze, dos quais somente um sobreviveu, sendo seu bocal decorado com motivos da arte La Tène” (GREEN, 2021, p.44). O caráter “mágico” deste objeto se fazia presente tanto pelo som que emitia quanto por seus motivos decorativos. Figura 2: Trompete de Bronze encontrado em Loughnashade. Datação: século I a.C. Acervo do Museu Nacional da Irlanda. Autor: Sailko. Fonte: Wikimedia Commons. 443 Silvana Trombetta Esse instrumento era utilizado em batalhas sendo representado em dois documentos materiais bastante significativos. O primeiro é a cópia romana em mármore (século III d.C) de uma escultura helenística em bronze (infelizmente, perdida) denominada The Dying Gaul que retrata um gaulês derrotado e praticamente à beira da morte. Na composição imagética o gaulês (ou gálata) aparece ferido e há dois trompetes no nível do chão, um deles perto da perna direita do personagem e outro próximo ao seu pé esquerdo. O segundo documento material é o famoso Caldeirão de Gundestrup (século II - I a.C.) que numa de suas placas retrata guerreiros portando trompetes bélicos. Ao compararmos a imagem do trompete na escultura acima descrita com a figuração existente no Caldeirão de Gundestrup, vemos uma iconografia claramente oposta. Na escultura o que é posto em destaque é o aniquilamento do povo gaulês pelos romanos ao passo que no caldeirão o uso do trompete é feito por combatentes enfileirados e prontos para a batalha. Embora o caldeirão, como corretamente aponta Flemming (2011, p. 107), provavelmente tenha sido produzido por artesãos trácios que possuíam uma tradição altamente desenvolvida em prata, suas imagens “retratam a cultura material celta – trompetes de guerra, escudos retangulares, capacetes com representações de animais” (CUNLIFFE, 2010, p. 45). Afora as controvérsias sobre a origem do caldeirão, suas imagens apresentam divindades e rituais celtas, o que o torna um 444 Druidismo e Magia documento material bastante relevante para a análise da práxis ritualística deste povo. Segundo Hatt (1989, p. 94), a cena do caldeirão na qual aparecem guerreiros com trompetes remete a uma série de preparativos para a guerra, dentre as quais um ato sacrificial. Na imagem da imolação, uma figura de maiores dimensões (provavelmente um druida) segura um indivíduo de ponta cabeça, de modo a direcioná-lo para o interior de um grande recipiente, provavelmente um caldeirão. Tal sacrifício humano teria como finalidade conseguir êxito na batalha e a morte ritual poderia ser tanto por afogamento (na qual o sacrificado era imerso num caldeirão com água) quanto por golpeamento na cabeça (sendo o sangue do indivíduo posteriormente recolhido num objeto sagrado). A cena tomada em conjunto - guerreiros sobre cavalos ou enfileirados (portanto lanças e escudos ou tocando trompetes), representação do sacrificador e do sacrificado - conecta a esfera religiosa à função política e marcial. A descrição de uma ação bélica na qual ocorre o uso do trompete é relatada por Políbio: Os romanos, no entanto, estavam por um lado encorajados por terem capturado o inimigo, encurralado entre seus dois exércitos, mas por outro estavam aterrorizados com a boa ordem do exército celta e o seu terrível barulho, pois havia inúmeros tocadores de chifres e trompetes e, ao mesmo tempo, todo o exército soltava seus gritos de guerra. Havia um som tão retumbante que parecia que não apenas os trompetes e os soldados, mas tudo ao redor tinha uma voz (POLÍBIO, Histórias, II, 29). 445 Silvana Trombetta Além do aspecto sonoro exposto acima, a ornamentação dos trompetes é um importante elemento a ser observado. No trompete encontrado em Loughnashade (fig. 2) vemos que seu bocal é decorado com motivos da arte La Tène que representam brotos de lótus ou visgo, provavelmente o mesmo motivo presente nas colheres divinatórias (fig.1). A decoração dos trompetes no caldeirão de Gundestrup é distinta da ornamentação do trompete de Loughnashade, mas é igualmente repleta de significados simbólicos: no caldeirão de Gundestrup, três guerreiros tocam seus respectivos carnyxes, trompetes de guerra cujo bocal possui formato de cabeça de javali, animal que metaforicamente alude à ferocidade e à força, características apreciadas numa luta contra o inimigo. Quando em uso, seu caráter “mágico” se fazia sentir através da imbricação entre seus elementos visuais e sonoros visto que o carnyx, ao ser tocado, além de compelir as tropas para o embate também tinha o propósito de intimidar o inimigo (como é evidenciado pela descrição de Políbio). O trompete de Loughnashade (fig. 2), como já foi dito, encontrava-se no fundo de um lago e fazia parte de um conjunto de seis trompetes depositados ritualmente. A deposição tinha a intenção de retirar os objetos do mundo real, destinando-os ao mundo divino e a inacessibilidade das profundezas do lago pelos habitantes tornava-o um elemento da natureza propício para a comunicação com o outro mundo. Lagos, fontes e rios eram frequentemente locais onde as águas eram utilizadas para estabelecer uma interlocução com as divindades e 446 Druidismo e Magia o fato de que certos “trechos de rio parecem conter mais artefatos do que outros é um indício de que pode ter havido locais específicos para a deposição ritual” (CUNLIFFE, 2010, p. 33). Este autor menciona a existência de plataformas de pedra (como a do lago de Llyn Cerrig Bach em Anglesey, no País de Gales) e de madeira (no rio Witham, em Fiskerton, na Inglaterra), das quais os objetos votivos eram lançados. Em Llyn Cerrig Bach, além de ossos de animais, foram encontrados 181 artefatos cuja cronologia abrange os séculos II a.C. a I EC e dos quais se destacam: sete espadas, seis pontas de lança, fragmentos de dois caldeirões, parte de um trompete de bronze, parte de uma roda de carro de guerra, arreios de cavalo, uma placa em bronze com formato de crescente lunar, uma corrente para prisioneiros. Em Fiskerton, foram encontrados vários ossos animais e humanos (dentre estes últimos, partes de um crânio), além de joias e de ferramentas e armamentos em ferro e bronze, dos quais se sobressai uma placa decorativa em bronze (século IV a.C.) com motivos da arte La Tène que recobria um escudo de madeira. Havia no local uma intensa e duradoura atividade ritual visto que a análise cronológica dos objetos revela uma deposição contínua tanto na Idade do Ferro quanto no período após a conquista romana. Além disso, o exame da plataforma de madeira de Fiskerton por meio da dendrocronologia revelou “que ela foi reparada a cada 16 ou 18 anos, o que sugere um intervalo de renovação regular, que talvez possa estar relacionado com um ciclo 447 Silvana Trombetta lunar de 19 anos” (CUNLIFFE, 2010, p. 34). O calendário lunar era fundamental para os ritos celtas e sua importância será detalhada posteriormente. Um lago em particular é sumamente importante, principalmente por ter revelado um grande conjunto de objetos cujos traços estilísticos em comum viriam a caracterizar a denominada Cultura La Tène, que é frequentemente associada aos celtas. Trata-se do lago Nêuchatel (Suiça), próximo à localidade de La Tène. Durante as consecutivas escavações arqueológicas que ocorreram no século XIX, foram descobertos no local cerca de 3.000 objetos (cuja datação abrange os séculos III - I a.C.) como espadas de ferro, pontas de lança, fíbulas, caldeirões de bronze. O conjunto perfaz nitidamente uma série de depósitos votivos que foram lançados nas águas do lago a partir de uma plataforma de madeira. Porém, a existência de objetos como correntes para aprisionar indivíduos e de ossos animais e humanos, “dentre os quais os de mais de cem pessoas, algumas decapitadas” (GREEN, 2021, p. 47), faz com seja possível aventar a hipótese de que além de abarcar objetos ofertados em tempos de paz, o lugar também seria destinado a conter troféus de guerra. É possível conjecturar, portanto, que o mesmo tipo de deposição ligado ao caráter militar também ocorreu no já citado lago de Llyn Cerrig Bach e no rio Witham, que além de artefatos continham ossos humanos e de animais. Diante do exposto acima, vemos que os atos rituais realizados nos lagos e rios podiam ter mais de um propósito no mundo celta e a 448 Druidismo e Magia deposição dos objetos juntamente com o sacrifício animal e humano compunham um ato cerimonial que requeria a presença do druida, responsável, dentre outras coisas, por ser capaz de transmutar a energia negativa do prisioneiro de guerra em energia positiva e benfazeja para a comunidade. Além dos lagos e rios é necessário destacar a importância das fontes, principalmente das que possuíam propriedades curativas e eram consideradas sobrenaturais. Embora seja difícil encontrar vestígios arqueológicos em fontes no período anterior à presença romana, a construção do santuário de Aquae Sulis (em 60 EC) revela dados bastante significativos. A atividade pré-existente no local foi provavelmente o fator determinante para erigir o santuário visto que o poder de suas águas termais (principalmente para casos de gota e artrite) era amplamente conhecido antes da conquista da Bretanha pelos romanos. Isto é comprovado pelo achado arqueológico de 18 moedas pré-romanas que durante a Idade do Ferro foram ofertadas à deusa Sulis (que após a conquista romana foi associada à deusa Minerva) por habitantes “que visitaram as fontes e construíram uma passarela ao longo de seu terreno pantanoso” (GREEN, 1997, p. 112). Cabe lembrar que pântanos também eram considerados lugares que propiciavam a comunicação com o divino uma vez que possuíam uma composição mista de terra e água (não fortuitamente, vários corpos humanos encontrados em pântanos, como o do famoso Homem de Lindow, possuem marcas sacrificiais). A presença da fonte e do 449 Silvana Trombetta pântano, portanto, afirmava duplamente o caráter divino da localidade onde futuramente seria erguido o santuário. Dentre os objetos votivos achados no complexo termal dedicado a Sulis-Minerva (na atual cidade de Bath, na Inglaterra) foi descoberta uma placa com a imagem de um olho e o nome de Titus Janianus, provavelmente um médico ou sacerdote que atendia os peregrinos. Outras placas foram encontradas em Bath e embora algumas também contivessem imagens de olhos sua função não era a de identificar o curador, mas de atuar como um ex-voto, pois os que ali se dirigiam ofereciam tais placas ou imagens representando órgãos humanos (olhos, braços, pernas, genitais masculinos e femininos) à deusa no afã de conseguir a cura divina. O princípio desta ação era o da reciprocidade: os devotos dedicavam à divindade réplicas de seus órgãos humanos com funcionamento anômalo para que em troca obtivessem a graça da regeneração. No reservatório da fonte principal foram encontradas moedas (cerca de doze mil) e joias lançadas às águas pelos peregrinos, mas a maior peculiaridade do santuário de Bath reside no fato de terem sido encontrados no local cerca de 130 tabletes de maldição. “Eles eram pequenos pedaços de chumbo ou estanho cujas mensagens invocavam a vingança da divindade por causa de injustiças cometidas contra seus dedicantes” (GREEN, 1997, p. 114). A escrita da maldição deveria ser feita corretamente para que fosse atendida, pois “visto que ela envolvia a magia, a invocação tinha que ser absolutamente exata” (GREEN, 1997, p. 114). Isto pressupõe a existência de escribas ou 450 Druidismo e Magia sacerdotes em Bath, conhecedores da “fórmula” exata para que a maldição tivesse o efeito desejado. No templo junto ao complexo termal, foi encontrada uma cabeça em bronze da deusa Sulis Minerva e num dos escoadouros dos banhos uma máscara de cobre que pode representar um deus ou sacerdote. Além disso, foram encontrados na fonte sagrada um pendente em forma de Lua (provavelmente a extremidade de um cetro sacerdotal), parte de um diadema em bronze e vasilhames de cobre com nítidos sinais de desgaste que devem ter sido “usados por oficiais religiosos por algum tempo antes de serem jogados na água enquanto oferendas à deusa” (GREEN, 1997, p. 114). Tendo em mente que o local era um importante centro religioso (com a presença de um templo acoplado ao complexo termal) era imprescindível a presença do sacerdote, uma vez que a cura envolvia tanto a dimensão humana quanto a divina. Outro santuário bastante conhecido era o de Sequana, a deusa gaulesa do rio Sena e das águas. Seu santuário (construído no final do século I EC perto de Dijon, na França) era próximo à fonte do Sena e escavações na área “revelaram uma coleção extraordinária de ex-votos de madeira” (CUNLIFFE, 2010, p. 40). Os ex-votos (grande parte pertencente aos séculos I a.C. - I EC) representavam figuras humanas inteiras (algumas com vestimentas longas e capuzes), braços, pernas, seios, olhos, cabeças. “Os modelos em madeira do santuário de Sequana falam tão eloquentemente sobre as múltiplas doenças sofridas pelos peregrinos que não seria surpresa encontrar ali ajuda médica e 451 Silvana Trombetta espiritual” (GREEN, 1997, p. 116). Tal qual em Bath, muito provavelmente havia no santuário de Sequana sacerdotes que proporcionavam a melhora física através do sobrenatural. Tomados em conjunto, os documentos materiais encontrados nas fontes indicam fortemente a presença e a importância da atuação de oficiais religiosos nestes locais sagrados para intermediar a conexão com o divino e possibilitar que o indivíduo recuperasse sua saúde. Não somente pelas águas adentrava-se o outro mundo: o elo com o divino também podia ser determinado pelas profundezas da terra. Um exemplo são os objetos de bronze, electro, prata e ouro encontrados na localidade de Snettisham em Norfolk (Inglaterra). Produzidos durante a Idade do Ferro e enterrados por volta de 100 a.C, vários deles possuem marcas de quebra ritual, fator determinante para que sejam associados principalmente a oferendas destinadas aos deuses e não a entesouramentos que visavam ser resgatados posteriormente. Dentre os achados arqueológicos (braceletes, moedas), destacam-se torques ricamente trabalhados em ouro. “Foram encontrados no local 75 torques completos bem como fragmentos de outros 100 torques” (GREEN, 1997, p. 65). Este objeto ornamentava o pescoço de guerreiros celtas e também é visto em figurações de divindades: no caldeirão de Gundestrup, uma das placas representa um deus com galhada (provavelmente Cernunos), segurando um torque em sua mão direita e usando outro em seu pescoço. No santuário celta de Entremont (século IV – III a.C.), na França, uma escultura de pedra 452 Druidismo e Magia representa um deus ou guerreiro sentado com as pernas recolhidas (postura semelhante à de Cernunos no caldeirão de Gundestrup). Ele usa um torque em seu pescoço e segura uma cabeça em sua mão esquerda (uma referência ao aprisionamento de inimigos). O torque era, portanto, um símbolo de prestígio e de poder, o que o tornava um objeto excepcional para ser destinado aos deuses. Outros locais no solo destinados a fazer a conexão entre o mundo dos vivos e o mundo sagrado eram poços que originalmente tinham o propósito de armazenar grãos e sementes. Após o fim de sua vida útil, os poços “eram abandonados e, em muitos casos, tinham um uso secundário enquanto repositório para depósitos votivos que compreendiam grupo de artefatos, pedaços de carne, carcaça de animais e restos humanos” (CUNLIFFE, 2010, p. 34). A agricultura era uma atividade essencial à vida das comunidades e as oferendas às divindades tinham o intuito de propiciar uma boa colheita e perpetuar o ciclo da natureza. No assentamento fortificado da Idade do Ferro em Danebury (Hampshire, Inglaterra) temos um exemplo “bem documentado da reutilização dos poços para armazenar grãos como repositórios para corpos humanos e animais” (GREEN, 2021, p. 52). Os esqueletos humanos (na maior parte, jovens do sexo masculino) apresentam-se completos ou contendo somente parte dos ossos do corpo, principalmente do crânio. A presença em maior número desta parte do esqueleto é significativa quando verificamos que num dos pilares do santuário de Entremont (que será analisado no decorrer do texto) há imagens de cabeças humanas e de espigas de trigo, de modo 453 Silvana Trombetta a correlacionar a oferenda da cabeça ao ciclo da vida. Existe, portanto, uma clara relação entre “o uso original dos poços enquanto silos e seu posterior uso como sepulturas” (GREEN, 2021, p. 52). Por fim, os locais nitidamente consagrados às divindades eram os santuários. Nos santuários de Sulis-Minerva e de Sequana a presença de sacerdotes, que por vezes cumpriam igualmente as funções médicas, era fundamental e interligava o plano terreno e o espiritual para que os devotos recuperassem a higidez física. Em outros santuários como os de Gournay-sur-Aronde (Oise, França), Ribemont-sur-Ancre (Somme, França), Hayling Island (Hampshire, Inglaterra), Entremont (Aix-en-Provence, França) e Roquepertuse (Velaux, França) a presença do druida era igualmente necessária tendo em vista os tipos de oferendas e sacrifícios ali encontrados. Em Gournay-sur-Aronde (século IV-I a.C.), foram achadas “mais de 2.000 armas ritualmente quebradas e evidências de um comportamento complexo associado ao sacrifício de animais e, possivelmente, também de humanos” (GREEN, 1997, p. 120). A análise dos ossos da cabeça dos bois sacrificados neste santuário (que foram depositados num poço de formato oval) demonstra que eles foram golpeados de modo semelhante ao serem mortos e que, portanto, os passos ritualísticos eram seguidos de modo minucioso e previamente estabelecidos. Uma paliçada retangular de madeira delimitava o santuário e um dado importante é a existência de um 454 Druidismo e Magia riacho nos arredores conectando, assim, a força de um elemento natural com o local construído para o culto. Tal qual em Gournay-sur-Aronde, havia nos santuários de Ribemont-sur-Ancre, Hayling Island, Entremont e Roquepertuse visíveis sinais de ritos ligados à ação marcial. No santuário de Ribemont-sur-Ancre (situado a cerca de 50 quilômetros de Gournay e construído na Idade do Ferro) foram descobertos armas e ossos humanos. O elemento “mais significativo deste sítio era a presença de quatro grandes “ossuários”: estruturas retangulares similares a altares compostas por grandes ossos de cavalo e de humanos” (GREEN, 2021, p. 51). Outro ponto intrigante neste local diz respeito à ausência de crânios. Green (2021, p. 155), supõe que os corpos decapitados tiveram seus braços e pernas desmembrados do resto do corpo tendo em vista seu uso para a construção dos ossuários. O objetivo do degolamento poderia ser a subjugação do inimigo e o ato era provavelmente a consequência de “algum tipo de rito funerário no qual os ossos dos mortos em batalha eram coletados enquanto oferendas para o culto” (GREEN, 1997, p. 111). O santuário de Hayling Island, na Inglaterra, começou a ser construído em madeira durante o século I a.C. e após a conquista romana adquiriu um aspecto monumental com o uso de materiais não perecíveis (telhas, mosaicos) em sua estrutura. Os vestígios de atividade ritual na construção original foram encontrados, em sua maior parte, fora do santuário circular, mas dentro dos limites da área sacra (demarcada por uma estrutura quadrangular que englobava o 455 Silvana Trombetta santuário) e consistiam em “moedas, uma grande quantidade de equipamento militar enterrada em poços e abundantes ossos animais, a maioria de ovelhas, cabras e porcos, presumivelmente restos de sacrifício e banquetes rituais” (GREEN, 2021, p. 49). Os santuários de Entremont (século IV-III a.C.) e de Roquepertuse (século V-III a.C.), também eram locais onde o caráter bélico e o caráter divino claramente imbricavam-se. A existência de portais de pedra com crânios humanos incrustados em nichos (Roquepertuse) ou com representações em relevo de crânios (Entremont) bem como as esculturas de guerreiros, deuses ou heróis segurando cabeças em ambos os santuários eram uma referência à sujeição do inimigo não somente em seu aspecto físico (decapitação) como também no aspecto espiritual, de modo a aprisionar sua força e sua alma uma vez que para os celtas a cabeça era o lugar do conhecimento. Os fossos e poços dos santuários acima descritos contendo ossos animais e humanos assim como as armas usadas na guerra referem-se a dois tipos de rituais intimamente concatenados: a vitória na batalha e a perpetuação e coesão da comunidade. A presença nos locais de crânios humanos separados do restante do corpo caracteriza um sacrifício no qual a energia do cativo era convertida (tornando-se positiva e favorável ao vencedor) e a existência nos santuários de ossos de animais, principalmente de bichos domésticos como cabras, ovelhas, porcos e bois pode indicar tanto uma imolação oferecida às divindades quanto a existência de banquetes nos quais a comunidade 456 Druidismo e Magia era convidada a participar. Não seria possível executar tais rituais sem a presença do druida, sabedores das etapas que deveriam ser rigorosamente efetuadas para asseverar a integralidade do ato sagrado. A Ordem Cósmica – as cerimônias, os ritos e a perpetuação do ciclo da vida Os rituais e a ordem cósmica estavam estreitamente interligados. Um exemplo são as celebrações sazonais cuja intenção era a de oportunizar uma próspera colheita agrícola. Os quatro festivais mais conhecidos (citados na literatura vernacular irlandesa) relacionavam-se às estações do ano: Imbolc (primavera), Beltane (verão), Lughnasadh (outono) e Samain (inverno). O festival de Imbolc ocorria “no dia primeiro de fevereiro e celebrava o parto das ovelhas e a lactação de suas crias” (GREEN, 1997, p. 35). Ele era provavelmente um festival de “purificação, feito talvez para evitar qualquer mal que uma ovelha prenha, seus cordeiros e seu leite viessem a sofrer” (GREEN, 1997, p. 35). Esta festa marcava o fim do período invernal e o “início da renovação da vegetação e da vida com o nascimento dos cordeiros e o leite das ovelhas” (KRUTA, 2000, p. 617). Beltane, cujo nome provavelmente derivava de “bil” (sorte) ou “bel” (luz), era comemorado no dia primeiro de maio e marcava o início do verão. Neste festival, o gado era conduzido entre duas 457 Silvana Trombetta grandes fogueiras, de modo a obter uma proteção mágica contra as doenças. De acordo com Grenn (1997, p. 35), o Livro das Invasões (coleção de poemas e prosas sobre a história da Irlanda compiladas por um autor anônimo no século XI ou XII EC) contém uma história sobre o druida Mide, fundador do condado de Meath na Irlanda, que foi o primeiro druida a acender o fogo de Beltane. Segundo o texto irlandês conhecido como Dinnschenchas, o fogo espalhou-se por toda a Irlanda, fato que fez com que Mide ganhasse a inimizade dos druidas das outras regiões tendo, então, que cortar e queimar as línguas de seus opositores para vencê-los. Este ato possui uma grande simbologia relacionada à vitória, pois um druida despossuído do dom da palavra não poderia executar os rituais visto que era pela fala que as profecias, as maldições e os encantamentos eram proferidos. Lughnasadh (cujo nome remete a Lug: deus da guerra, da luz e das habilidades manuais) acontecia no dia primeiro de agosto, abrangendo também a quinzena anterior e a seguinte. Ele era um festival ligado à colheita e marcava o início do outono. O Dinnchenchas descreve-o como uma cerimônia na qual a assembleia se reunia não só para resolver questões legais e políticas, mas também para outras atividades pã tribais como jogos e festas. Durante o Império Romano, “ela tornou-se a festa de Augusto e a data marcava a reunião do conselho dos gauleses em Lião” (KRUTA, 200, p. 617). Durante a cerimônia, havia rituais executados pelos druidas com o intuito de promover a abundância da safra agrícola. 458 Druidismo e Magia O festival de Samain era celebrado entre 31 de outubro e primeiro de novembro e marcava o início do inverno. Uma grande assembleia em Tara (Irlanda) ocorria nesta época e a origem do festival pode estar relacionada com a seleção dos animais domésticos para o abate de inverno, fornecimento de alimentos ou reprodução. Samain era um período perigoso, no qual “as fronteiras do tempo e do espaço eram temporariamente suspensas e os espíritos do Outro Mundo se imiscuíam no mundo dos vivos” (GREEN, 1997, p. 36). Neste sentido, a presença do sacerdote era fundamental para controlar a energia que provinha do além num momento em que os limites entre os dois mundos eram suprimidos. Samain era o único festival explicitamente mencionado no famoso Calendário de Coligny (século I – II EC). Nele, o nome Samonios aparece como o primeiro mês do ano celta e a festa das três noites de Samain (trinox samoni) marca uma celebração que tinha lugar no “segundo dia da segunda quinzena do mês de Samonios” (KRUTA, 2000, p. 806). Este documento material é “a nossa maior evidência para supor que os festivais irlandeses de Imbolc, Beltane, Lughnasadh e Samain foram celebrados em todo o mundo celta” (GREEN, 1997, p 37). Podemos dizer que tal inferência é possível uma vez que Samain é mencionado nas fontes literárias irlandesas e o nome Samonios aparece inscrito no calendário gaulês, ou seja, em regiões e épocas bastante distantes no tempo e no espaço. 459 Silvana Trombetta Figura 3: Fragmento do Calendário de Coligny. Ao alto é possível ver a referência a Samonios (SAM) e abaixo a palavra ATENOVX (que marcava o fim da primeira quinzena do mês). Datação: século I – II EC. Acervo do Museu Galo-Romano de Lião. Fonte: Wikimedia Commons. O calendário de Coligny foi feito em bronze e sofreu uma quebra ritual antes de ser enterrado (provavelmente num templo) ao norte da região de Coligny (França). Sua inscrição “era em idioma gaulês e compunha um calendário de cinco anos divididos em meses, quinzenas e dias, cada mês precedido pela abreviação MAT ou (AN(Mat)) significando bom/completo ou mau/incompleto para atividades rituais como os procedimentos sacrificiais” (GREEN, 2021, p. 125). Cada mês era dividido “a partir do décimo quinto dia pela palavra ATENOUX, que significava o fim do período luminoso e o início do período escuro” (CUNLIFFE, 2010, p. 47). Assim, o tempo mais favorável para os ritos sagrados era a primeira quinzena do mês, que coincidia com a fase da lua crescente. 460 Druidismo e Magia O princípio da fase lunar exposto acima aparece na fonte textual de Plínio, o Velho, que descreve um rito destinado a curar a infertilidade: Nesta ocasião, não devemos deixar de mencionar a admiração que é prodigalizada a esta planta pelos gauleses. Os druidas - pois esse é o nome que eles dão aos seus magos - não consideravam nada mais sagrado do que o visgo e a árvore que o carrega, supondo sempre que essa árvore seja o carvalho. O carvalho é selecionado por eles para formar bosques inteiros, e eles não realizam nenhum de seus ritos religiosos sem empregar seus ramos; tanto que é muito provável que os próprios sacerdotes tenham recebido seu nome do nome grego para aquela árvore. De fato, é consenso entre eles que tudo o que cresce nela foi enviado imediatamente do céu, e que o visgo sobre ela é uma prova de que a árvore foi selecionada pelo próprio deus como objeto de seu favor especial. O visgo, no entanto, raramente é encontrado no carvalho; e quando encontrado, é colhido com ritos repletos de reverência religiosa. Isso é feito mais particularmente no quinto dia da lua, o dia que é o início de seus meses e ano [...] Este dia eles escolhem porque a lua, embora ainda não esteja no meio de seu curso, já tem poder e influência consideráveis; e eles a chamam por um nome que significa, em sua língua, a cura total. Tendo feito todos os devidos preparativos para o sacrifício e para um banquete sob as árvores, eles trazem para lá dois touros brancos, cujos chifres são amarrados pela primeira vez. Vestido com uma túnica branca, o sacerdote sobe na árvore e, com uma foice de ouro, corta o visgo que cai sobre um manto branco. Eles então imolam as vítimas, clamando a deus para que ele conceda sua graça. Eles acreditam que o visgo, colocado na bebida, dará fecundidade a todos os animais estéreis, e que é um antídoto para todos os venenos (PLÍNIO, História Natural, XVI, 95). Quando nos reportamos à documentação material, vemos que as representações do visgo aparecem constantemente na arte La Tène (como nas colheres divinatórias e no trompete de guerra) e que a 461 Silvana Trombetta importância da lua é enfatizada pela existência de objetos como o crescente lunar encontrado em Bath (certamente parte de um cetro ou algum outro instrumento ritual usado pelo sacerdote). A coleta do visgo pelo druida na lua crescente unia, portanto, dois elementos naturais de grande magia, fortalecendo o encantamento rogado. Coligny era um calendário lunar e a passagem do tempo entre os celtas era calculada mais pelas noites do que pelos dias. De acordo com o relato de César. Todos os gauleses dizem que descendem de Dis Pater e dizem que essa tradição foi transmitida pelos druidas. Por esta razão eles computam as divisões de cada estação não pelo número de dias, mas de noites; eles celebram os nascimentos e inícios de meses e anos de modo que o dia siga a noite (CÉSAR, Guerra Gálica, VI, 18). Seguramente os druidas foram os responsáveis pela elaboração do calendário de Coligny, um objeto que marcava as ocasiões auspiciosas ou não auspiciosas para as festividades e cultos religiosos. Mesmo em regiões distantes da influência romana, nas quais não há objetos materiais que comprovem como era feita a contagem do tempo, os sacerdotes eram os responsáveis pela organização dos cultos de acordo com os ciclos anuais. Neste ponto, cabe lembrar que a razão pela qual a escrita muitas vezes não era utilizada pelos druidas tinha como propósito manter seu conhecimento oculto dos demais indivíduos. De acordo com César: Eles parecem ter adotado essa prática por duas razões: porque não desejam que suas doutrinas sejam divulgadas entre a população e nem que aqueles que aprendem se dediquem menos aos esforços da memória (CÉSAR, Guerra Gálica, VI, 14). 462 Druidismo e Magia A manutenção da tradição oral era, portanto, uma forma de preservar o caráter secreto dos ensinamentos druídicos que eram passados aos futuros sacerdotes. Esse aprendizado e erudição podem ser vistos na própria confecção do calendário de Coligny, que embora tenha sido produzido num período em que o poder dos druidas era cerceado pelos romanos resultava de “longos séculos de observação astronômica, de medidas e de cômputos de certa complexidade. Nestas condições, somente os druidas possuíam os conhecimentos necessários para assegurar os cálculos exigidos para seu funcionamento” (KRUTA, 2000, p. 510). Conclusão Os druidas eram essenciais para a manutenção do tecido social. As festividades, as cerimônias e os ritos regidos por eles realizavam-se em locais e tempos pré-determinados, marcados pela interlocução com o divino. Em lugares de deposição cultual como rios, lagos, pântanos, grutas, poços e santuários, os objetos ou sacrifícios (animais ou humanos) eram destinados às divindades e, consequentemente, deviam passar por etapas ritualísticas nas quais o sentido que possuíam no mundo dos vivos transformava-se ao penetrarem o além. Certos rituais eram feitos em períodos específicos, de acordo com um ciclo que seguia o próprio ritmo da natureza, sendo pautados por calendários calcados em observações astronômicas. Para tanto, era essencial a 463 Silvana Trombetta presença do sacerdote, cujo saber transmitido de geração em geração garantia a eficácia dos ritos e dos encantamentos a eles associados, assegurando o bem estar coletivo. Referências Documentais CESAR. Caesar’s Gallic War. Tradução de William Alexander McDevitte e W.S. Bohn. Nova Iorque: Harper & Brothers, 1869. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text? doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0001%3Abook%3D6%3Achapter %3D14. Acesso em: 04/06/2022. POLÍBIO. Histories. Tradução de Evelyn S. Shuckburgh. Londres/ Nova Iorque: Macmillan, 1889. Disponível em: http:// www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:abo:tlg,0543,001:2. Acesso em: 19/05/2022. PLÍNIO, o velho. The Natural History. Tradução de John Bostock. Londres: Taylor and Francis/Red Lion Courtey, 1855. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text? doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0137%3Abook%3D16%3Achapter %3D95. Acesso em: 06/06/2022. TÁCITO. Germany and its tribes. Tradução de Alfred John Church e William Jackson Brodribb. New York: Random House, 1942. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text? doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0083%3Achapter%3D10. Acesso em: 02 jun. 2022. Bibliográficas CUNLIFFE, Barry. Druids: a very short introduction. 1ª. Ed. New York: Oxford University Press, 2010. FLEMMING, Kaul. The Gundestrup Cauldron: Thracian Art, Celtic Motifs. Etudes Celtiques, Lyon, vol. 37, p. 81-110, 2011. GREEN, Miranda. Rethinking the Ancient Duids: an archaeological perspective. 1ª. Ed. Cardiff: University of Wales Press, 2021. 464 Druidismo e Magia GREEN, Miranda. The World of the Druids. 1ª. Ed. Londres: Thames and Hudson, 1997. HATT, Jean Jacques. Mythes et Dieux de la Gaule: les grandes divinités masculines. 1ª. Ed. Paris: Picard, 1989. KRUTA, Venceslas. Les Celtes: histoire et dictionnaire. 1ª. Ed. Paris: Robert Laffont. 2000. ROSS, Anne. Ritual and the druids. In: GREEN, Miranda. The Celtic World. 2ª. Ed. London/New York: Routledge, 1997, p. 423-444. 465 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas Carlos Roberto Figueiredo Nogueira1 O sabbat é a festa do Mal. Festa da transgressão, da inversão absoluta. Cerimonial da Traição, foi lentamente elaborado e o seu ritual minuciosamente preenchido desde inícios do século XV até chegar à toda pompa de um mundo às avessas, da sordidez e da malignidade dos traidores de Cristo, na descrição de Pierre de Lancre. Trata-se efetivamente de uma construção, da elaboração de uma fantástica conspiração contra o gênero humano, repleta de imprecisões e indecisões com respeito à sua denominação, conteúdo e participantes do século XV ao XVI que contaminou quase toda Europa. Contudo, ao nos referirmos a esta realidade fortemente impressa no imaginário da Cristandade além-Pirineus, não a podemos encontrar a não ser esparsa e fragmentada para a Península Ibérica, como demonstram os inúmeros estudos sobre o universo mágico no contexto mental do mundo ibérico. Trata-se de um espaço cultural singular que atua como filtro de crenças e representações mentais extraordinariamente uniformes na maioria das regiões que compõem a parte ocidental do Velho Mundo. Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1971) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1981). Atualmente é professor titular da Universidade de São Paulo e Decano do Departamento de História. 1 466 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas Navarra, século XVI. O licenciado Lombera, um dos encarregados no caso dos bruxos do vale navarro de Arraiz, informa, em 1527, que “nos negócios de bruxos e bruxas, houve alguma dilação ... E nos pareceu que não deve ser tratado por hora pelo Santo Ofício” (IDOATE, 1973, p. 66-67). Estranha opinião em um momento que tribunais religiosos e laicos esquadrinham as comunidades, à caça dos mais temíveis inimigos do rebanho cristão: os seguidores do Demônio. Renegados da verdadeira fé, que se reuniam no culto do sabbat, para entregarem-se e renovar a sua fidelidade ao mestre demoníaco. O sabbat das bruxas neste contexto aponta muito mais para uma importação de um estereótipo modelado pela atuação de juízes franceses em regiões fronteiriças, o qual, se alguma penetração teve no universo mental ibérico, foi a influenciar juízes bascos, navarros e aragoneses pela sua situação especial de regiões limítrofes com a França que provocava o transbordamento da “praga” para as coletividades espanholas. Nas palavras de um crédulo sacerdote vasco da “Muy Noble e Muy Leal” província de Guipúzcoa, que clamava em 1618, ao Santo Ofício que castigasse os apóstatas “e se limpasse aquela terra, que a suspeita era dos estrangeiros franceses” (ISASTI, 1850, p. 145). Fenômeno, aliás que “La Suprema” o Conselho da Inquisição tinha plena consciência, como o demonstra o pedido feito em 1611 pelo Inquisidor Geral ao Bispo de Pamplona que fizesse uma visita a Logroño para averiguar notícias de uma epidemia de bruxaria 467 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira nesta região navarra. A resposta deste, após a visita, é esclarecedora, pois: “havia chegado à conclusão de que a maior parte do mal era advindo do desassossego que havia produzido na França, um juiz “atropelado” (sic) ao qual se impediu de ir adiante, mas antes já havia feito morrer a muitos” (AHN, legajo 1679, n. 26, fol. 2v). E reitera o bispo ao final da carta: ... realmente Senhor Ilmo. tenho para mim por certo com todas as demais razões que existem e foram verificadas, que neste negócio não há tanto mal verdadeiro como se encarece [...] ainda que exista algo é ficção e ilusão [...] de gente ignorante que falaram destas matérias, e aprendido os termos delas pelo que ouviram e da comunicação que tiveram do que como disse, aconteceu em França (AHN, legajo 1679, exp. 2.10, n. 31, fl. 1r). Em território espanhol, acusados de bruxaria são frequentemente julgados pelo Tribunal da Inquisição como inocentes, objetos das calúnias e do rancor popular. Acusações tão misteriosas e fragmentadas, que comparadas àquelas existentes nos abundantes processos do resto da Europa – tão semelhantes entre si – pensaríamos estar, no mundo ibérico, em presença de uma outra personagem, vaga e indistinta do mundo da superstição. Aqui não encontramos o sabbat e o seu ritual específico: a inversão do ritual católico, o renegar a Deus e à Virgem Maria, as danças e o festim noturno e nem mesmo a maior das obscenidades – o “beijo infame” ofertado ao traseiro do Diabo. Não podemos negar que, posteriormente, estas crenças passem a fazer parte desse mesmo imaginário, em particular de um imaginário 468 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas popular, em um momento – extremamente singular – em que a cultura das classes dirigentes relega a crença na demonomania para o terreno da superstição. Mas trata-se de um momento posterior, marcado pela notável circulação de informações e ideias e por uma certa homogeneização da assim chamada cristandade ocidental, motivada talvez por uma “catequização” da Cristandade pós-tridentina. O que nos interessa neste momento é por que ao final da Idade Média e no início dos tempos modernos todas as crenças que dão vida e solidez à existência da bruxaria europeia, inexistem ou estão deformadas a tal ponto que resulta muito difícil, no começo da Modernidade, falar-se em bruxaria na Espanha2. Seria talvez mais exato levantar a hipótese de uma migração, de um aportamento ao imaginário ibérico de crenças estrangeiras que recebem tratamento e leitura específicos, cuja variação regional pode ser explicada pela existência ou não de crenças tradicionais passíveis de serem combinadas com as novas, ou da maior ou menor possibilidade de serem influenciadas pelos acontecimentos ocorridos em terras francesas. Contudo, o rastreamento da totalidade deste processo, implicaria em uma investigação exaustiva e aprofundada que não está em nossos horizontes, devido a enormidade do trabalho Em trabalho anterior, tivemos a oportunidade de examinar a questão no tocante à antiga região de Castela, a Nova. Agora, através de documentação coletada mais recentemente, e da contribuição de outros pesquisadores, procuramos expandir nossas interpretações para todo o conjunto do mundo hispânico (NOGUEIRA, 1989). 2 469 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira exigido e que não poderia estar limitado a um único pesquisador. Nesta perspectiva, nosso objetivo é fornecer elementos para uma reflexão, através de um mapeamento das crenças nas distintas regiões ibéricas. A zona pirenaica Tendo como horizonte a hipótese de uma migração a partir da influência francesa, começaremos a examinar as crenças naquelas regiões onde se tem notícias de perseguições às seitas de bruxas, nos séculos XV e XVI. Regiões territorialmente limítrofes ou que, como Navarra, estiveram por longo tempo sob o domínio da França. A localização das “pragas de bruxas”, limitava-se a estas características regiões: Navarra, a região vascônica e alguns pontos dos Pirineus Catalões, conforme o testemunho de um teólogo de Pamplona, “fray” Martin de Arles que em seu Tractatus de superstitionibus se referia à ilusão da bruxaria como “um mal próprio da região vascônica ao norte dos Pirineus” (ARLES Y ANDOSILLA, 1510, f. IIIv e IIIIr). Da mesma região vasca acrescentem-se uma renomada tradição de paganismo, sendo os vascos considerados gentiles pelos teólogos ainda em pleno século XV (CHABÁS, 1902, p. 5)! José Berruezo, em um estudo sobre a Bruxaria vasca, nos informa que, na província de Guipúzcoa nas Ordenanzas de 1375 e de 470 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas 1453, que constituem na verdade em um código penal destinado a acabar com as desordens e a anarquia das lutas feudais, não se faz a mínima alusão aos delitos de bruxaria ou à demonolatria: o sabbat propriamente dito (BERRUEZO, 1973, p. 161). Estranha ausência em uma região que forneceu à língua castelhana a palavra “aquelarre” – o prado do bode – para designar o conciliábulo das bruxas. Contudo, o diabo no País Vasco adotou outros avatares antes de assumir a encarnação caprina, comum ao restante da Europa. Em um dos mais antigos “aquellarres” registrados, o de Peña de Amboto em 1500, o “Cabróo”, aparecia sob a pele de um asno, só assumindo a figura estereotipada no século XVII (BERRUEZO, 1973, p. 167-168). Do mesmo modo, o termo “sorguiña” ou “xorguina” utilizado pelos juízes na região para designar as bruxas, só aparece ao final do século XV, ao mesmo tempo que o neologismo “bruja” designando, contudo, uma atividade mágica bem distinta, com o envolvimento de seres lendários – as “lâmias”, práticas de adivinhação e a utilização de procedimentos mágicos adquiridos pelo trato com estes seres sobrenaturais (BARANDIARAN, 1973, p. 31-36). Estas regiões do norte da Espanha eram vistas por muitos teólogos espanhóis com as mesmas suspeitas que despertavam a presença muçulmana nas regiões de Valência e Granada. Clérigos e posteriormente os inquisidores tinham consciência de uma falta de evangelização adequada, e que a única maneira de lutar contra a 471 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira superstição era buscar uma autêntica conversão cristã. O universo mental dos eclesiásticos, longe de procurar modelar sobre estas populações o paradigmático ritual demoníaco, buscou inicialmente reprimir as influências provocadas pelas perseguições europeias. E por isto, em 1550, o inquisidor Sarmiento de Barcelona, foi destituído por relaxar a seis pessoas como bruxas, sem verificar as provas (KAMEN, 1984, p. 233). As montanhas e regiões isoladas eram o local favorito do demônio, para o teólogo Alfonso de Castro que escreve em 1541: Há uns dez anos na região da Cantábria agora chamada de Navarra, e em Vizcaya, descobriram-se entre a gente das montanhas muitas superstições e idolatrias [...] O mesmo, mas não com tanta intensidade, foi descoberto em outras montanhas de Espanha, em Astúrias e Galícia e outras, onde a palavra de Deus raramente havia sido pregada. Entre eles existem muitas superstições e ritos pagãos, pela única razão da falta de pregadores (Adversus haereses, KAMEN, 1984, p. 234. Grifo nosso). Para inquisidores e doutores da fé, esta era a verdadeira ação do demônio nas montanhas ibéricas: manter as comunidades em uma situação de “gentios”, vivendo rituais tradicionais e muito pouco ortodoxos. Rituais que no delírio demonológico de um juiz ou num aprendizado de “ouvir dizer”, das confissões modelares produzidas pelas perseguições francesas, prontamente seriam convertidos em rituais de submissão e adoração ao demônio: os sabbats. Contudo, 472 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas faltara perseguição e doutrinação sistemática que convertesse aquele fundo cultural tradicional em uma “bruxomania” organizada. Não obstante, as regiões pirenaicas forneciam um admirável repertório de costumes tradicionais passíveis de serem revestidos à luz de uma interpretação demonológica, com a marca do ritual satânico. Em particular as danças, objetos de uma extrema suspeita dos eclesiásticos, estigmatizadas pelo Decreto de Reforma do Concílio de Trento e proibidas pelas leis de Navarra que vedavam a realização de danças em que participassem “homens e mulheres com jograis, gaitas e guitarras depois de haver anoitecido” (Ley IX, Libro V, Título X. BERRUEZO, 1973, p.173). Proibição que se estendeu no País Vasco até o século XVIII, dando origem a intermináveis polêmicas sobre o caráter moral dos bailes. Estamos, pois, frente a um universo mental extremamente adequado para a irrupção de “pragas de bruxaria”. No entanto, em que pese a existência de alguns processos na região, sente-se uma inconsistência teórica, quando não um extremo ceticismo por parte de doutores da Igreja e inquisidores, muito antes da legendária atuação do Inquisidor Salazar y Frias no processo de Logroño. Por exemplo, a junta de Granada, convocada em 1526 para discutir um surto de bruxaria descoberto em Navarra, colocou a culpa destes surtos na ignorância da população, como demonstra a resolução apresentada por “fray” Antonio de Guevara: “Que se devem fazer os seguintes 473 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira remédios: primeiro, que se ponham pregadores por aquelas partes. O segundo, que os inquisidores e os juízes seculares procedam com muita diligência” (KAMEN, 1984, p. 233). Por outro lado, os estudos de Caro Baroja nos demonstraram que a maior densidade de bruxos e bruxas no País Vasco estava vinculada aos graves problemas políticos de fronteira e nacionalidade naquela região. No século XVI, com a consolidação das antigas monarquias feudais em Estados centralizados, as lutas civis e os interesses locais ganham novas cores. As vilas passam a enfrentar as prerrogativas dos senhores locais, sendo a acusação de bruxaria uma excelente forma de ofensiva, manejada ao sabor das velhas questões e interesses. Por outro lado, tem que se levar em conta que o país vasconavarro não era uma terra que pudesse ser considerada um bastião de fidelidade à coroa castelhana. Ora, as incursões por este território em busca de bruxas possibilitavam à administração central assentar e consolidar seu poder, intimidando com seu aparato repressivo a inimigos políticos e silenciando possíveis querelantes. Do mesmo modo, a atuação francesa além dos Pirineus e o seu decorrente transbordamento para o reino espanhol pode ser vista dentro da mesma perspectiva. Para o restante da região lindante com a França, a situação é a mesma: excetuando-se alguns casos exemplares, onde um estudo biográfico dos juízes talvez pudesse esclarecer as origens da sua 474 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas “ortodoxa” e milimetricamente acurada construção, ou seja, é na personalidade destes que deve ser rastreada maior ou menor conformidade com o modelo “clássico” da bruxaria. As investigações de José Cabezudo nos antigos Archivos Secretos da Inquisición de Zaragoza nos mostram dois processos da primeira metade do século XVI, o primeiro de 1511 e o outro de 1534. A acusação em ambos os casos é a mesma: bruxaria. No entanto, o segundo processo instaurado contra uma velha coxa traz a marca demonolátrica: voos noturnos, juramento de vassalidade ao diabo, relações sexuais com o diabo e até um ilustrativo interrogatório sobre a natureza do membro diabólico – que era de ferro (sic!) – e de suas dimensões, as quais, talvez para desgosto dos interrogadores, não eram tão descomunais, como conviria ao Príncipe da Luxúria (CABEZUDO ASTRAIN, 1973. p. 241-244). O primeiro, da mourisca Catalina Aznar, apesar da acusação, vai tratar apenas de conjuros amatórios e sortilégios, e foi condenada a jejuar sete sábados e a visitar a Virgen del Pilar (CABEZUDO ASTRAIN, 1973. p. 244-245). Em outras palavras, temos em primeiro lugar, um processo de bruxaria onde o “aquellarre” simplesmente não existe, e um segundo mais de trinta anos depois que concorda com as descrições dos tratados de maneira exemplar. Insólita situação, se nos reportarmos à primeira metade da centúria seguinte, quando caçadores profissionais de bruxas, atrevemse a discordar de todas as autoridades sobre o tema ao denunciar 64 475 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira suspeitos. Esquecendo a doutrinária propensão feminina ao comércio diabólico em virtude de sua natural malignidade, do total dos suspeitos, 42 são homens(!), e se nos restringirmos apenas aos denunciados provenientes do Alto Aragón, a proporção ainda é mais espantosa, nos 16 relacionados, apenas 3 são mulheres(!) (GARI LACRUZ, 1973, p. 41-43). Como em Navarra e Rioja – terras clássicas de bruxas e de permanente intromissão francesa – a Inquisição, procede com cautela e uma boa dose de ceticismo, e se usa de mão forte, será para castigar os delatores de bruxos e bruxas. A proximidade com a França é determinante. Angél Gari, ao estudar estes processos aragoneses, nos mostra que uma parte significativa dos acusados são estrangeiros, viveram fora de Espanha algum tempo, ou tinham amizade ou relações com estrangeiros, fundamentalmente com franceses. Os livros apreendidos, em especial “O Livro de São Cipriano” ou a Clavicula Salomonis, procedem em sua maioria da França, editados em espanhol ou francês (GARI LACRUZ, 1973, p. 45). Singularidade que além de corroborar nossa hipótese de contágio e migração, talvez possa explicar essa inusitada situação de uma inegável predominância masculina. Influência externa que data de um remoto passado, como nos relata o primeiro documento escrito sobre o assunto – uma carta do bispo Oliba a Sancho o Maior em 1023: “Mas agora ante vossos olhos, 476 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas os estrangeiros devoram vossa região que é assolada de péssimas maldades, a saber: matrimônios incestuosos, embriaguez e augúrios” (Cartulario de San Juan de la Peña, p. 141-142, GARI LACRUZ, 1973, p. 39-40). Invasão de crenças estrangeiras que parece ser compreendida (ou intuída) pela mentalidade popular. Em 1611, após a decisiva atuação de Salazar y Frias junto à Inquisição de Logroño, ocorre o último processo por bruxaria do país vasco, que termina pela absolvição de todos os acusados: o processo de Fuenterrabía, na fronteira com a França. Ali, a população descontente com a plena absolvição dos delatados, resolve, após obter uma permissão real, devolver os seus males à sua verdadeira origem: as bruxas foram embarcadas em uma lancha e lançadas ao mar, em direção da França(!) (BERRUEZO, 1973, p. 174). No imaginário desta comunidade, as bruxas de fato existem, mas como um corpo estranho, uma presença alienígena, que uma vez removida ao seu verdadeiro lugar eliminava os males produzidos na comunidade. Astúrias e Galícia Em Astúrias, o seu isolamento e a situação geográfica excêntrica, leva os pesquisadores a definir um universo mágico de caráter episódico e individualizado, onde campeiam os sortilégios e o curandeirismo. Ali, o que se poderia chamar de bruxaria, remete a um 477 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira fundo folclórico tradicional, como já o advertia com grande agudeza Alfonso de Castro, o teólogo acima mencionado. As primeiras notícias remontam aos começos do século XIII, quando uma peregrina endemoniada chamada Oria, que havia sido batizada pelo bispo Gonzalo de Oviedo, confessou que possuía um véu mágico que a fazia invisível e a permitia voar, o que era confirmado por vários testemunhos. Contudo, perdeu sua condição de “striga”, quando arrependida, confessou os seus pecados e se submeteu ao batismo. Do mesmo modo, em 1342, o arcebispo de Silves ao escrever seu Speculum Regnum, insinuava veladamente à Alfonso XI, que era necessário e muito urgente, proibir toda uma série de práticas mágicas – sortilégios, malefícios, encantamentos, augúrios, necromancia e outros magos... – notadamente em Astúrias e Andalucía (RICO-AVELLO, 1973, p. 124-126). As referências são bastante claras: trata-se de práticas que, no mínimo, remontam aos godos e à preservação de um substrato cultural romano onde pontificam os “arúspices” e as “strigae”. A estas representações produzidas por uma cultura dominante acrescente-se uma enorme quantidade de seres sobrenaturais, anões vingativos ou pacíficos como os “nuberos” e “ventolines”, velhas desatinadas como as “lavanderas” e ninfas de extraordinária beleza como as “xanas”. Universo mental prenhe de sobrevivências, testemunhado pela singularidade do processo datado de 1460, contra Teresa Prieto. 478 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas Processo levado a cabo na Justiça Real, usualmente muito menos cautelosa em matéria de bruxaria e mais “rigorosa” na punição da mesma (RICO-AVELLO, 1973, p. 126-127). Acusada pelo ofício de bruxa ou “estría” (por andar de noite nas casas alheias, chupando o sangue dos fiéis cristãos) e condenada à morte escapou do cárcere e compareceu vinte anos depois, para refutar a sentença sendo anulada a sentença e a ré absolvida. Ainda mais significativo, é que inexistem referências a sabbats em Astúrias e suas vizinhanças. Apenas no século XIX, de modo significativo, aparecem referências de que as bruxas asturianas acompanhadas das “meigas” galegas, ao Arenal de Sevilha: Aun en las noches de lo sábados las brujas de esta comarca en el infernal aquelarre hacia Sevilla se marcham... (RICO-AVELLO, 1973, p. 129). Estamos frente a uma bruxaria sui-generis: bruxas de Astúrias e Galícia, que vão a Sevilha – onde de resto, também, não existe o Sabbat – pela “falta” de opções locais para realizar o ritual satânico. Para as montanhas da Galícia, a situação se repete. Os inquisidores tinham a convicção na ignorância da população, que explicava a atitude suave em relação a “estes reinos onde há muita falta de doutrina especialmente entre lavradores e rústicos que dizem à tonta e sem saber o que dizem e por ignorância e não com ânimo de hereticar” (CONTRERAS, l982, p. 629). Região onde se processam e 479 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira condenam menos bruxas que em outras regiões peninsulares (ALONSO DEL REAL, 1973, p. 21), apesar do que foi decantado por uma literatura romântica, como podemos perceber pelo trabalho de Lisón-Tolosana (l983). Dos oito processados, cujas acusações tivemos acesso, encontramos invocação do demônio, curandeirismo, feitiços amatórios e uma infeliz portuguesa que, presa pela justiça real, foi levada à fogueira após confessar sob tormentos haver tido comércio carnal com o diabo (1579), mas em nenhum momento existe qualquer menção ao sabbat (VARELA, 1973, p. 73-95). Trata-se de uma “bruxaria” de cunho medicinal, associada a alguns animais, como gatos e aranhas. As bruxas são as “sábias”, ou “lumias” (lâmias?) ou mais frequentemente “meigas” – um possível cruzamento etimológico entre mágica e medicina (ALONSO DEL REAL, 1973, p. 20-28). Há que se levar em conta também uma extraordinária diferença existente na Galícia entre o litoral e o interior, onde predominavam (e predominam) superstições muito mais antigas frente a uma racionalização de crenças no litoral permanentemente em contato com o exterior (em particular com a França). Dentro do país galego encontram-se, até os nossos dias, figuras que nos remetem a Ovídio e a Apuleyo: as já mencionadas “sábias”, que podem aparecer como “menciñeiras” – a sua designação enquanto curandeira – ou “vedoira”, cujo nome traz implícito a capacidade de visualizar o 480 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas futuro; ou então em seu caráter mais maligno, as “xuxonas” uma chupadora de sangue, ou das vísceras de uma pessoa (ALONSO DEL REAL, 1973, p. 20-28). “Estría” asturiana ou “lúmia” galega, a primeira menção de que temos notícia desta atividade na Galícia, é um processo datado de 1602, onde Constanza do Pazo foi denunciada por três mulheres que diziam que era “bruja”, “hechicera”, e que “chupaba los niños” (VARELA, 1973, p. 97-98). Neste último caso nos encontramos em presença de “lâmias”, ou seja, os demônios femininos da mitologia greco-romana, que sedentas de sangue, atacavam os seres humanos, em especial as crianças, e às quais eram atribuídos todos os males sucedidos às mesmas. Personagem sobrevivente de crenças mais remotas e adaptado às cores locais – as “lumias”. As “bruxas” castelhanas Após nossa peregrinação pelas montanhas “pagãs”, direcionemos nossa atenção na região mais central da Península, onde se concentram os órgãos de poder que tentam – nem sempre com eficácia – controlar toda a Espanha. Nesta região que tivemos oportunidade de estudar demoradamente a documentação, passaremos a examinar a especificidade do universo mágico de uma região que não conheceu a bruxaria, pelos menos enquanto demonolatria – a antiga Castela, a Nova. 481 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira No século XVI, no Tribunal do Santo Ofício de Toledo, encontramos escassas denúncias por bruxaria: dos 45 processos sob a rubrica Feitiçaria existem 6 processos envolvendo a 8 mulheres, dos quais nenhum traz a referência ao “aquelarre” (AHN, legajo 82, n. 7 e 24; 86, n 73-74; 88, n. 128(13); 91, n. 1; 96, n. 1). Olalla Sobrina, viúva de El Casar, que pedia esmolas às mulheres recém paridas confessou sob tormento “que as bruxas juntavam-se mas não iam ao sabbat (AHN, legajo 96, n. 1, f. 5-5r. Grifo nosso). Juana “La Izquierda”, também de El Casar nos apresenta uma versão um tanto imoral, mas nada demonolátrica da reunião de bruxas, embriagando-se à noite nas bodegas em companhia de homens e fazendo muito barulho (AHN, legajo 88, n. 128(13), f. 16-17). No século seguinte, outras três confessam o mesmo “ritual satânico”, andando à noite, bailando e embriagando-se na companhia de homens, sendo acusadas de bruxas, porque “llebaban pandero y latinetas haciendo mucho ruido y algaçara” (AHN, legajo 87, n. 106(13), f. 10-11). Em Cuenca, seu número é bem maior, para o mesmo período: 25 documentos, apesar de boa parte (13 destes) ser constituída apenas por informes, causas suspensas, ou o que é bastante significativo, terminam com a absolvição dos acusados. As bruxas castelhanas são em sua imensa maioria mulheres velhas, como diz uma jovem criada em 1530 em sua defesa, apelando ao bom sentido e à filosofia das gentes que “ser bruja era cosa de 482 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas viejas no de mozas de poca edad” (ADC, legajo 109, n. 1536, f. 21r). Mulheres que, avançadas em idade, eram objeto de suspeita da população e se aproveitavam da “fama pública” como um meio de subsistência. Catalina Mateo dizia que “la mayor parte la tienen por bruja y se murmura entre ellos de suerte que quando llega a pedir alguna cosa de pan, dineros e otras cosas a las casas desta villa, la persona a quien lo pide se lo da teniendo por cierto, que si no diese le mataría sus hijos” (AHN, legajo 91, n. 1, f. 5). E, a já referida Olalla Sobrina mulher de mais de 60 anos aproveitava-se do medo que despertava na coletividade “pedindo esmolas às mulheres recentemente paridas” (AHN, legajo 96, n. 1, f. 5-5r). Este é o universo da bruxaria castelhana em toda a sua singularidade. Além da reduzida quantidade de processos, as bruxas são tratadas muitas vezes como inocentes, objetos de calúnias e rancores populares, ao passo que suas companheiras de práticas mágicas, as feiticeiras, são tratadas como delinquentes. Contra elas se fazem acusações díspares, desconexas e tão misteriosas e fragmentadas que parecem tratar de outros atores do mundo da participação mágica se comparadas às existentes no resto da Europa, oriundas de arquétipos populares e modeladas pela cultura dirigente – que justificam, nomeiam e culpabilizam as bruxas. Tentemos, através da fala dos acusados, entender a nossa personagem: a mesma Catalina que esmolava junto às parturientes, dizia ao Tribunal: “que quiseram ensinar-lhe o ofício de bruja, 483 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira prometendo-lhe saias, camisas e ducados; de vestir, de comer e beber todos os dias de sua vida, mas ela não queria aprender. ‘Habras de serlo aunque no quieras!’, replicou-lhe a Olalla e a untou com um certo unguento do qual bastava molhar um cabelo para ser bruxa(!)” (AHN, legajo 96, n. 11, f. 4r. Grifo nosso). Bruxaria involuntária é também o que ocorreu a Agueda Garcia anciã de quase 70 anos, que confessava ser bruxa porque “o havia herdado de sua mãe, e não pecou a Deus, pois vinha de linhagem de bruxas que não podiam fazer outra coisa” (AHN, legajo 87, n. 13, f. 10-11. Grifo nosso). Estranhas crenças. Se nos reportarmos aos tratados e compilações sobre a bruxaria fica patente a ideia de uma vontade, um desejo de entrega da bruxa para o Diabo, e o consequente e consciente ato de abjuração e apostasia. Ora, dos relatos acima, encontramos uma bruxaria sem ritual e imposta, sem haver vontade expressa da iniciada, o que desrespeita a crença formulada e estabelecida da existência de bruxas. Onde estão os sabbats, as reuniões onde se confirmava a apostasia, as cerimônias de inversão do ritual católico, renegando e blasfemando a Deus e à Virgem Maria, as danças e o festim noturno, o “beijo infame” prestado ao Diabo? Todas estas crenças que dão vida e solidez à existência de toda a bruxaria europeia inexistem nas denúncias e no decorrer dos processos inquisitoriais, exceção feita quiçá a um tour de force de 484 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas algum juiz ou qualificador, impregnado por ideias francesas. Exceção representada por um único processo instaurado em Cuenca em 1519, que parece tão somente motivada pelo imaginário do inquisidor, onde Ilana de Peñalver foi interrogada com a utilização de tormentos “como costumavam ser os de bruxas” e perguntada sobre as coisas que a “fama pública” e os “libros norteños”, (em especial o Malleus Maleficarum) atribuíam às bruxas – prevalecendo ao final, o “bomsenso” que a condenou à abjuração de vehementi pela prática de feitiços e sortilégios (ADC, legajo 75, n. 1095, f. 35-36). Singularmente as únicas referências ao “aquelarre”, o nome vasco para designar o sabbat das bruxas, encontram-se em Cuenca em três processos, dois que se referem ao legendário Campo de Barahona (ADC, legajos 96, n. 1425; 99, n. 1441) e outro na laguna de Gallo Canta (ADC, legajos 109, n. 1536). Neste último caso, Águeda de Luna declarava que havia sido iniciada por sua bisavó, que era uma experta em confeccionar unguentos e que lhe ensinou a transformar-se em um gato. Porém, e mais singular, é que ao ser chamada perante o Tribunal, declara que tudo é certo e que ela era uma autêntica bruxa! Nestes processos, o “aquelarre” encontra-se claramente delineado e definido como uma reunião de bruxas em um local determinado, faltando, contudo, certas características fundamentais dos rituais praticados no restante da Europa. A própria palavra “aquelarre”, como vimos, não é de origem castelhana, sendo 485 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira incorporada à língua após o século XVII, em virtude de sua citação no processo de Logroño em 1610. Acreditamos que é razoável supor que a utilização de uma palavra importada junto a um universo mental de uma coletividade distinta implica na inexistência de um significante próprio no contexto referido onde se insere tal significação. Ou melhor, a importação de um vocábulo sugere a importação e a imposição de uma ideia estrangeira. E como complemento, poderíamos acrescentar que na Espanha, os “aquelarres” são tradicionalmente conhecidos como uma característica do País Vasco e das regiões limítrofes com as terras francesas. Por outro lado, tendo-se em conta o imaginário comum à Europa cristã, que batizou de sinagoga àquele ritual demonolátrico, equiparando-o à conhecida e odiada assembleia dos Judeus (Entre outros, RÉMY, 1930, p. 47-56) e associando assim, por transposição, a imagem do sabbat a este “culto perverso”; poderíamos perguntar porque na Espanha, onde os judeus tiveram grande influência e participação e onde um esquema religioso-político-repressivo foi criado para extirpar a sua presença e influência da sociedade e mentalidade espanholas, inexistem quaisquer referências a estas denominações? As bruxas castelhanas são mais “xorguinas” (outro vocábulo vasco!) que bruxas, consideradas como responsáveis por voos noturnos e, como em Galícia e Astúrias, pela morte de crianças. Em 486 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas uma época de alta taxa de mortalidade infantil, especialmente de recém-nascidos e da persistência da prática do infanticídio, estas mulheres aparecem como excelentes “bodes expiatórios” para o fato, implicando em que ao acontecerem as tragédias, as calamidades, o medo e as apreensões, levava a coletividade a buscar uma culpa imediata, materializada e tipificada, e, portanto, passível de ser compreendido pela mente humana. Situação admiravelmente compreendida por La Lorenza em seus 70 anos: “Acostámonos borrachas, e matamos nuestros hijos e dezimos que nos los matam bruxas” (ADC, legajo 76, n. 1108, f. 26. Grifo nosso). A própria evolução dos processos o demonstra. Em 21 de novembro de 1519, os inquisidores do Tribunal de Cuenca mandaram que se fizesse informação de ofício sobre os feitos atribuídos às bruxas na diocese: “porque veio ao seu conhecimento que nesta dita cidade, e em outros lugares de seu bispado, foram encontradas algumas crianças mortas e marcadas de golpes, de onde se tem a suspeita, terem sido mortas e feridas de xorguinos y xorguinas” (ADC, legajo 230, n. 2902). As providências foram tomadas e resultaram em denúncias contra mais de 30 mulheres, sendo instruídos processos em apenas 4 casos, um deles suspenso por falta de provas. As declarações destes processos são contraditórias e ambíguas, evidenciando a pouca solidez das crenças que apresentam seja para os juízes como para denunciantes e acusados. Denúncias vagas, pouco 487 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira articuladas, recobrem as “bruxas castelhanas”, personagens estranhos e singulares, marginalizados no universo mágico, cuja primazia é ostentada por uma personagem forte e bem tipificada na mentalidade espanhola: a feiticeira. Situação que pode ser constatada nos processos: iniciando por denúncias de bruxarias, e de crimes horrendos contra o rebanho cristão que terminam – quando se encontra alguma culpa – em sentenças por superstição e feitiçaria. O objetivo da acusação é deslocado e mesmo atenuado, considerando-se o contexto ortodoxo e a natureza gravíssima do delito imputado, que envolve a traição à Cristandade e a participação explícita do Demônio. De 1570 a 1600 foram feitas outras acusações contra bruxas (xorguinas?) de várias localidades da província, mas o Tribunal de Cuenca já não fazia caso de tais denúncias e todos os processos, menos um – pois não se tratava apenas de uma bruxa imaginária, mas de uma feiticeira e conjuradora real – foram suspensos. No Tribunal de Toledo, as causas são mais raras e tardias, mas sem assistência ao sabbat, pois se trata de acusações de bruxaria e de prática de feitiçaria, o que vai justificar, em princípio, o prosseguimento dos processos e a punição da transgressão. É na província de Cuenca, portanto, onde encontramos uma maior densidade de processos de bruxaria em Castela, a Nova. A explicação parece residir em uma migração de crenças. Migração que pode ser explicada por um lado pela sua localização geográfica mais a 488 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas Leste, e, mais próxima das regiões ibéricas contaminadas pela “caça às bruxas” de além-Pirineus, a partir do século XV. Situação que o tardio e o pouco significativo aparecimento de denúncias de processados, junto ao Tribunal de Toledo no século XVI, parece ratificar, demonstrando que uma posição geográfica mais isolada poderia servir de filtro à penetração de crenças. Por outro lado, em Cuenca, existe uma imigração de vascos a partir do século XV, que se mais bem estudada poderia demonstrar inequivocamente esta importação de ideias francesas e a presença de vocábulos da região para designar atividades mágicas em terras castelhanas. Em Castela, as bruxas são “xorguinas”, o termo vasco que foi entendido por magistrados do País Vasco como o equivalente regional à “maléfica” dos tratados demonológicos. No entanto, a “xorguina” ou “sorgina”, encontra-se associada a um imaginário mais tradicional, que remonta às crenças pagãs, significando as pessoas que praticavam a adivinhação e, mais especificamente, encarnavam seres elementais, “númenes” das cavernas e as sempre presentes nas tradições espanholas, as “lâmias”. Do mesmo modo que a palavra “aquelarre”, trata-se de uma outra importação para a língua (e para o universo mental castelhano). Importação que está relacionada, como foi visto em Galícia e Astúrias, com a sobrevivência de mitos greco-romanos, talvez mesclados no folclore espanhol a lendas orientais, incorporados pelos mouriscos e 489 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira judeus – compare-se a atividade das “xorguinas” com uma das atribuições da Lilith talmúdica, a quem os rabinos apresentavam como causadora de malefícios aos recém-nascidos. É neste processo de sedimentação e cristalização de distintas influências culturais, junto ao imaginário castelhano – talvez espanhol – que parece residir o incipiente fenômeno da “bruxaria castelhana”. Tomando-se as palavras como representação do existente, a existência de bruxas, bem como a sua reunião em sabbats, que é uma crença bastante generalizada e igual em si mesma em quase toda a Europa, aqui encontra-se diluída e modificada, quando não inexistente. É extremamente significativo que, ao abandonarmos o âmbito da Inquisição, e nos reportamos ao âmbito das dioceses castelhanas, cujos tribunais sabidamente atuam com mais rigor nestas matérias, esta realidade é ainda mais patente. As Constituciones Synodales, determinações impostas às dioceses e que expressam, fixam e determinam os objetivos e procedimentos a serem aplicados às paróquias para assegurar a vigência e a manutenção da ortodoxia católica, não trazem nenhuma menção à bruxaria ou a práticas similares nos séculos XVI ou XVII. Para o século XVI, nas três editadas pelo Arcebispado de Toledo (1536, 1566, 1583) apenas a de 1566, traz sob o título De Sortilegiis, alguma menção a sortilégios e augúrios, misturados a recomendações contra falsos beatos e peregrinos “que debaixo de bom hábito e prodígios fingidos, fazem 490 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas muitas fraudes e astúcias” (Constituciones Synodales, 1566, l. 5, f. 73r). Mesmo para a diocese de Cuenca, onde o número de acusados de bruxaria é muito mais significativo, não existe qualquer menção a “aquelarres”, “bruxas” ou “xorguinas”. Por outro lado, a única Constitución do século XVI, a de 1571, apesar de mais preocupada com os “ensalmadores” e os adivinhos, menciona explicitamente a feitiçaria como um delito que preocupa o Bispado no mesmo item De Sortilegiis dispunha-se sobre a pena de los que usan hechicerias y consultó alos adeuinos: [...] são excomungados todos os feiticeiros, agoreros, ou adivinhos, e os que vão consultá-los. [...] e ademais das outras estatuídas em direito, qualquer um que constar haver cometido alguns dos ditos delitos será castigado rigorosamente” (Constituciones Synodales, 1571, t. 7, f. 75r-76). Aqui, não existem “xorguinas” ou “aquelarres”, apresentando singulares lacunas que vem corroborar nossa hipótese de que a crença em bruxas é uma preocupação ausente do imaginário castelhano. Ausência, implícita e marcada pela dureza da realidade que aparece no lamento de uma acusada a uma das mulheres que lhe dava esmola por temer pela vida de seu filho: “Estáis vos espantadas de bruxas; las mugeres de bien no temen bruxas ni bruxos, porque no hay bruxas ni bruxos [...] se oviérades de tener cuidado de buscar un pan, no dixérades que hay bruxas” (ADC, legajo 293, n. 4157, f. 5). Já sublinhamos o papel que as rivalidades fronteiriças ocupam na determinação e repressão das “epidemias de bruxas”, enquanto em 491 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira outras regiões, destituídas de problemas sociais e políticos gerados pelos conflitos de interesses e poderes, inexistem as denúncias de bruxedos, até que o contágio mental se estabeleça através do aprendizado pragmático e imitativo das crenças de regiões vizinhas. Assim, ao nosso ver, a crença em bruxas, em Castela, representa a resultante de uma migração mal assimilada, passada pelo crivo das tradições presentes nas regiões pirenaicas e acrescida das representações tradicionais da coletividade, confundidas e unificadas através de uma instituição supranacional e universalizante: a Igreja. Enquanto imperava nas cidades e aldeias, a “hechicera”, a bruxa vai retornando à sua primitiva obscuridade em terras castelhanas, enquanto na Europa a sua caça ferve e se assanha. A coletividade as desconhece e impinge, por vezes, esta caracterização a pessoas com quem, de algum modo, estão ressentidas. Retirando suas acusações de um “ouvir dizer” aprendido, mas na caracterização dos atos demonolátricos vão buscar em um imaginário tradicional os referenciais para a explicitação de suas crenças e temores. A bruxaria inexiste em Castela, a Nova, como um produto de uma elaboração mental da coletividade, constituindo um misto de contatos externos e a utilização de palavras que, em realidade, demonstram-se inadequados, quando não muitas vezes deslocados para designar os fenômenos e a presença da bruxaria. 492 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas Em “tierra de morros” e além-fronteiras Para o restante da Península a situação, conforme nos afastamos da fronteira francesa, é de total inexistência de bruxas, e, portanto, do sabbat. Para Granada, “tierra de morros”, os trabalhos de Fernández García (1989) e García Fuentes (1981) nos demonstram claramente esta ausência, mesmo nos casos em que o réu confessa abertamente ter “pacto implícito com o demônio” (GARCÍA, 1989, p. 197). Estamos conscientes de que a documentação inquisitorial não reflete toda a dimensão do fenômeno da bruxaria, pois esta constituía a princípio um delito mixti fori, submetido tanto ao tribunal secular quanto ao eclesiástico. Contudo, o argumento legal de que havendo “pacto tácito como o demônio”, a instância de julgamento do delito era o Tribunal do Santo Ofício, acaba por produzir a exclusividade inquisitorial no julgamento das práticas mágicas. Assim é que, em não havendo nenhum caso de bruxaria no Tribunal de Granada, em dois séculos, podemos afirmar com toda a segurança a ausência da crença em bruxas. Aqui campeia o Islã, mas um Islã contaminado por práticas supersticiosas e feitiços. Opinião generalizada era que “echar suertes” eram “criancices”, que não era pecado nem alguém devia ser denunciado por isto. E era prática generalizada, como diz Margarita de Nápoles “que isto não era pecado, que todas as mulheres o faziam” (GARCÍA, 1989, p. 199). Aqui predomina, a magia e a sexualidade que, se revolta contra a monogamia e a necessidade do casamento para 493 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira a satisfação dos apetites carnais, oriunda de um universo mental ainda dominantemente muçulmano, o que possivelmente explica um grande número de mulheres jovens envolvidas nos processos de feitiçaria. Para Córdoba, a situação se repete. O catálogo de Gracia Boix (1983), não registra nenhuma denúncia por bruxaria, mas sim, a mesma feitiçaria erótica, e na maioria dos casos, sem qualquer intervenção dos demônios. Seria extremamente oportuno rastrear este movimento migratório de crenças e sua tipologia em solo português, completando o périplo peninsular, mas não é nosso objetivo estudar a situação no reino lusitano. Não queremos igualmente sugerir que ali tenha ocorrido o mesmo processo que rastreamos em terras espanholas, mas acreditamos ser possível que Portugal esteja inserido em um diferente contexto, uma vez que se tem notícia que na própria capital do reino foram queimadas 5 bruxas em 1559, o que jamais ocorreu em terras espanholas. Entretanto, embora literalmente transbordando os limites deste artigo, nos permitimos citar o testemunho de uma daquelas supliciadas, constante em documento publicado por Yvonne da Cunha Rego, o qual é extremamente precioso para corroborar a especificidade do imaginário espanhol no tocante à configuração da bruxaria. Resultado de uma devassa do Juízo Secular, onde foram acusadas 27 mulheres e 1 homem provenientes da vila de Aveiro, uma 494 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas das confissões está marcada por nítida orientação demonolátrica, desde a entrega ao Diabo até uma luxuriosa descrição da orgia do sabbat. Parece haver uma descrição similar para as outras, uma vez que o próprio escrivão delata a existência de um modelo demonológico impresso no universo mental dos juízes ao dizer: “não o trato dos testemunhos das mais Bruxas acima, porque todas elas vão por este teor: que nisto se parecem com os Judeus, de todo simbolizarem nos ditos com outro de ordinário” (REGO, 1981, p. 21. Grifo nosso). É sob esta perspectiva, que podemos entender o caráter paradigmático do que a bruxa relata: que nos seus ajuntamentos os demônios, em pouco espaço de tempo, dormiam com elas muitas vezes carnalmente, quantas vezes elas queriam e pelo lugar que elas queriam ou traseira ou pela dianteira, e por sua confiança diz que o gosto que eles dão e causam às mulheres é mui grande, sem comparação com os homens (REGO, 1981, p. 16). Contudo, o que é muito mais significativo nesta confissão é que compareciam ao festim diabólico, além de alguns muito fidalgos com algumas filhas moças e formosas, “outra muita gente de muitas partes; a saber: Portugueses, de todo este Reino, Mouros, Judeus, Franceses e de outras muitas nações” (REGO, 1981, p. 16. Grifo nosso). Uma vez que Mouros e Judeus, pertencem às “raças do Diabo”, sua presença está plenamente justificada, mas – e essa é uma questão que nos parece fundamental para a nossa hipótese – por que os Franceses são explicitamente mencionados? Não seria mais justificada a menção das gentes espanholas, dada a sua convivência 495 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira peninsular e proximidade física e até cultural? Estaria ausente do imaginário português a ideia da Espanha como terra de bruxas? As respostas a estas perguntas demandam um estudo aprofundado, que poderia aclarar a especificidade do universo mental lusitano e talvez mostrar uma outra via migratória, não passando pelo território espanhol, mas bebida diretamente de um imaginário extrapeninsular. Assim, o sabbat é um estranho no imaginário espanhol. Bruxas e sabbats encontram-se ausentes e as tradições resgatadas pelos estudos históricos e folclóricos o confirmam plenamente. O que sobressai deste imaginário tradicional é o caráter “estrangeiro” das crenças que, no limite, referendam a ideia de que existe uma migração de crenças para a Península Ibérica. Na Espanha não haverá um espaço no universo mental da coletividade para a construção e afirmação de um discurso demonológico, permanecendo os “colaboradores de Satã” com o estigma da alteridade, da sua feição estranha, porquanto estrangeira. Em suma, em terras espanholas, o demônio – ao menos o Diabo teológico – não consegue estabelecer o seu absoluto domínio sobre os homens. Veja-se o curioso relato apresentado em sua Historia de la Muy Noble y Muy Leal Provincia de Guipúzcoa pelo doutor Martínez de Isasti: em Rentería, na província de Guipúzcoa, uma “doncella vieja” (sic), e muito perseguida pelo Inimigo, que na figura 496 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas de um coelho subia em sua cama lhe tirava a fala e a atormentava. Em seu auxílio, acudiram dois valentes marinheiros, que se deitando com seus vestidos na cama junto com a donzela, lograram espantar o demônio. Entretanto, deixando de perseguir a donzela, o demônio passou a perseguir um dos marinheiros e o fatigou por várias noites, até que por puro aborrecimento partiu dali para as Índias e se soube que o diabo nunca mais o importunou(!) (ISASTI, 1850, p. 141-42). Mesmo um sacerdote como o doutor Martínez de Isasti, embriagado pelas leituras do Malleus, Martín del Rio, e outros tantos “dignos de inteira credibilidade” e que, portanto, tinha uma fé absoluta no imenso poder do demônio, não acreditava que o Diabo estendesse a sua influência até as Índias. Como se, autenticando a condição estrangeira das crenças demonológicas, enxergasse desde sua cidade fronteiriça, a difícil penetração das ideias francesas em terras espanholas e a consequente barreira intransponível representada pelo oceano. Dificuldade na Metrópole, impossibilidade na Colônia. O isolamento da Península do restante do continente, se não impossibilitou, ao menos filtrou a penetração maciça de crenças, criando espaços culturais singulares, amálgama de influências grecoromanas, elementos semíticos e conteúdos anímicos primitivos. Aqui as crenças se misturam, se interpenetram, formando uma argamassa cultural, onde já não se reconhecem mais as origens das personagens pelo nome que lhes é emprestado. 497 Carlos Roberto Figueiredo Nogueira A maior ou menor proximidade das terras francesas é decisiva, justificando a progressiva diluição das crenças ao caminharmos em direção contrária aos Pirineus. “Tierra de hechiceras”, a Espanha apresenta um testemunho esclarecedor de um universo mental específico que faz os homens dizerem: “Acreditamos nas bruxas (e como não acreditar, já que a Igreja nunca negou a sua existência?), mas elas vêm de fora”. Enfim, a bruxaria no mundo hispânico é uma crença conjuntural, resultado de um imaginário mágico-religioso singular, engendrado talvez em uma semiconsciência, talvez no limiar da consciência, que o suprassumo da maldade e da perversão – o ritual demoníaco – era uma cerimônia europeia, e acima de tudo, um terror advindo da publicidade e da tirania, secular ou eclesiástica, imposta de além-Pirineus. Referências Documentação ARCHIVO DIOCESANO DE CUENCA (ADC). Inquisición. Legajo 75, 76, 96, 99, 109 ARCHIVO HISTORICO NACIONAL (AHN). Madrid. Inquisición. Legajo 82, 86, 88, 91, 96, 1679. ARLES Y ANDOSILLA, Martín de. Tractatus de superstitionibus. Lyon: [s.n.], 1510. CONSTITUCIONES SYNODALES DEL ARÇOBISPADO DE TOLEDO: hechas por los prelados passados. Y ahora nueuamente copiladas, y añadidas, por el illustre señor Don Gomez Tello Girón. Toledo, 1566. 498 Barrados no baile. 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Madrid: Akal, 1973. 500 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia”: reflexões sobre as relações entre magia e scientia nos renascimentos dos séculos XV-XVI Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior1 Um dos temas mais clássicos das ciências humanas versa sobre a definição das fronteiras entre religião, magia e ciência. Essa temática esteve na aurora das ciências sociais e serviu a objetivos distintos. Na passagem do século XIX para o XX tal discussão atendeu a um esforço de justificar um discurso civilizador e evolucionista, conforme o qual o estágio inicial da evolução humana coincidiria com a predominância da religião e seu ápice viria com a ascensão da ciência, sendo a magia um tipo de ponto médio. Na antropologia temos vários exemplos dessa percepção, como a obra de James Frazer ou a do sociólogo Émile Durkheim. Em História podemos citar, pelo menos, duas obras muito importantes: A History of Magic and Experimental Science (1923) de Lynn Thorndike e Giordano Bruno e a Tradição Hermética (1964) de Frances Amelia Yates. São dois trabalhos paradigmáticos: o primeiro é uma obra de muito fôlego com vários volumes que buscam fazer uma É graduado em História pela UFMG, com mestrado e doutorado em História e Culturas Políticas pela mesma instituição, tendo realizado estágio sanduíche na Université Paris-Est Créteil. É professor adjunto na UFSM, onde também atua no PPGH e no ProfHistória. É codiretor do Centro de Estudios sobre el Esoterismo Occidental de la UNASUR, membro da Rede Brasileira de Estudos em História Moderna e criador e coordenador do Virtù - Grupo de História Medieval e Renascentista. 1 501 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior compilação de tudo que foi produzido desde a Antiguidade, ao menos no Ocidente, em termos de magia e ciência; a segunda, um dos primeiros trabalhos a considerar o impacto do pensamento mágico, principalmente o hermetismo, nos Renascimentos dos séculos XV e XVI. Apesar da grande contribuição de ambos os trabalhos, contudo, eles apresentam um mesmo olhar: a percepção de que a magia antecede imediatamente o surgimento da chamada ciência moderna. A questão é que essa relação entre magia e ciência não é linear como se colocou nessas análises. A tese de Thorndike é frágil, pois ela parte de premissas mais ideologizadas do que fruto da reflexão a partir dos documentos. A ideia de evolução como sucessão de etapas não é verificável e muito menos se percebe na documentação que o surgimento do que chamamos de ciência se deu pelo desaparecimento da magia. Por outro lado, ainda que o hermetismo tenha contribuído para uma percepção renovada da natureza, como as afirmações heliocentristas de Giordano Bruno, ele não foi a única influência e nem a mais importante. Essa ideia de que houve nos Renascimentos dos séculos XV e XVI um abandono de toda superstição em prol de um pensamento estritamente científico não se restringiu a essa historiografia do início do século passado. Um exemplo é a famosa obra de Keith Thomas intitulada Religião e o Declínio da Magia (1971). A tese defendida nessa obra é de que a Inglaterra teria conhecido um desencantamento do mundo fruto de uma racionalização consequente da vitória do ethos protestante, leitura profundamente weberiana. Há também uma 502 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” afirmação de que as pessoas recorriam à magia muito em função da ausência do acesso a soluções médicas formais e que, na medida em que essas foram se disseminando na sociedade inglesa, a magia foi perdendo espaço e credibilidade. Contudo, tais hipóteses têm bases deveras frágeis. Como apontam Hildred Geertz e E. P. Thompson (TAMBIAH, 1990, p. 23), Thomas construiu uma generalização a partir de um recorte documental muito específico e enviesado. Tal corpus documental, altamente elitista, carece de vestígios capazes de apresentar a dimensão simbólica da magia, central ao pensamento mágico. Estão ausentes, por exemplo, romances, ensaios e afins, enfim, documentos nos quais a dimensão simbólica da magia se faz bem perceptível. Outro problema do trabalho de Keith Thomas reside na forma em que se apoia nas teorias weberianas. O antropólogo Stanley Jeyaraja Tambiah, em sua obra Magic, science and religion in Western thought: anthropology's intelectual legacy, faz uma profunda crítica a como as ciências humanas lidaram com tais tópicos. Seu ponto de partida é a influência da obra de Max Weber A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905). A grande crítica de Tambiah é que a hipótese central weberiana de que o sucesso do capitalismo só foi possível em função da consolidação da ética do protestantismo, e o consequente desencantamento da experiência cotidiana, foi desvirtuada ao ser generalizada. A contribuição weberiana estava preocupada em dar conta de um fenômeno social específico, e perdeu 503 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior força ao ser esgarçada para servir de base a toda reflexão acerca das relações entre religião, magia e ciência. Um exemplo desse mau uso está na obra de Keith Thomas que justifica um desencantamento do mundo a partir de um recorte documental muito enviesado e de uma base teórica weberiana que não se aplicaria ao recorte temporal por ele estudado. Assim, seguimos a proposta de Tambiah de que a hipótese weberiana não é universal, bem como de que as relações entre magia, religião e ciência devem ser compreendidas a partir de cada contexto sócio-histórico específico. Somente assim, fugiremos do teleologismo que marca grande parte dos estudos sobre esses temas. Seguindo a sugestão de Jaume Aurell (2016), tratemos o passado como um continente distante, portanto, o mesmo somente se torna acessível pelos vestígios que nos legou. Destarte, é hora de apresentar os principais documentos que guiarão a presente reflexão. O nosso recorte documental é composto pelas obras de Giambattista dela Porta, Giordano Bruno, Isabella Cortese e Heinrich Cornelius Agrippa von Netteshein, respectivamente Magia Naturalis (1558), De Magia (1590-1591), I secreti de la Signora Isabella Cortese (1561) e De Occulta Philosophia Libri Tres (1533). A partir de tais documentos, construiremos uma reflexão sobre as relações entre magia e ciência no Rinascimento, buscando contribuir para esse debate. O primeiro ponto de reflexão é justamente o que podemos chamar de ciência durante os Renascimentos dos séculos XV e XVI. Uma parte significante da historiografia, como o já citado Keith 504 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” Thomas, por exemplo, consideram que o Renascimento foi o momento no qual houve uma virada definitiva em função do nascimento da ciência moderna. Já autores como Lynn Thorndike viram uma incompatibilidade natural entre o humanismo e a ciência, dado que os humanistas teriam mais interesse no estilo do que em ciência. Isso porque, em um momento de grande valoração do passado, haveria pouco espaço para as inovações. Contudo, a historiografia mais recente tem mostrado que essa relação possui muito mais tons de cinza do que de preto e de branco. A primeira questão a ser apontada é que os humanistas não buscaram reviver a Antiguidade como ela foi, mas, revestir seus próprios discursos e visões de mundo com a autoridade dos textos antigos, como a historiografia já provou fartamente (SKINNER, 1996; WEISS, 2006). Outro elemento é que a crítica textual que marcou tão profundamente a ação intelectual desses indivíduos não se resumiu apenas aos textos literários. Para além da conhecida crítica de Lorenzo Valla à Doação de Constantino, vários humanistas se dedicaram aos textos de outras naturezas, como os científicos da Antiguidade, tal qual Poggio Bracciolini, que trouxe de Constantinopla uma cópia do De rerum naturae de Lucrécio. Tais posturas são consequência direta de um dos motes principais desses indivíduos, a busca pela vita activa. Em oposição à vida contemplativa proposta pela escolástica, os humanistas defendiam que o conhecimento sem aplicação prática para a transformação da vida não teria sentido. Vários desses sujeitos se 505 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior dedicaram a produzir e publicar textos que discutiram temas indo da metalurgia à destilação, além de editar textos antigos voltados a necessidades modernas. Tal esforço construiu uma relação renovada entre a filosofia e as artes mecânicas, buscando claramente reabilitar a última. Isso se daria dando uma dimensão filosófica à ação prática (EAMON, 2007, p. 404). Lembremos que a partir do século XVI são redescobertos pela Europa um grande número de textos da Antiguidade tratando de matemática, astronomia, medicina e história natural. Esse movimento foi profundamente impactado pela disseminação do aprendizado do grego pela Europa, permitindo não apenas a leitura como também a tradução dos textos da Grécia Clássica, como o Almagesto de Ptolomeu, que versava sobre matemática e astronomia. William Eamon (2007, p. 405) insistiu que quase todos os astrônomos renascentistas tiveram tal obra como base de seus trabalhos, incluindo Copérnico. Associado a isso, ainda tem a relação dos humanistas com a nascente imprensa. Rapidamente, estes sujeitos perceberam a potencialidade do texto impresso e das relações que se estabeleciam a partir dela. Logo, se associaram com editores e tradutores, pois viram que a impressão possibilitava uma divulgação dos textos científicos até então impossível. Com isso, conseguiam fazer tais textos circular não apenas entre os seus pares, mas também para indivíduos que formavam um público distinto do convencional. E, mais do que isso, a impressão destes textos tornava a sua recuperação permanente, 506 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” solidificando uma base a partir da qual os filósofos naturais poderiam, inclusive, questionar a autoridade antiga (EAMON, 2007, p. 405). A percepção de mundo que embalava esse pensamento científico tinha como influências centrais a filosofia natural de Aristóteles e a astronomia matemática de Ptolomeu. Isso implicava na compreensão de que o universo seria uma grande esfera em cujo centro estaria imóvel a Terra, em torno da qual os demais corpos celestes circulavam em uma órbita uniforme. Assim, seria possível prever o movimento destes corpos e suas consequências, justificando a centralidade da astrologia e da astronomia. Essa mesma organização cósmica também gerava uma hierarquia dos elementos: terra, ar, fogo e água, sendo estes os elementos que formava todas as coisas e lhes dava propriedades físicas. Em verdade, todos os seres e coisas do mundo criado seriam uma mistura destes elementos, o que faria o movimento cósmico ser profundamente devedor das relações de simpatia e antipatia das qualidades dos elementos do mundo (EAMON, 2007, p. 406). A base aristotélica dessa ciência é abalada pelo reavivamento neoplatônico que tem no hermetismo um dos seus grandes motores. A tradução de Marsilio Ficino, feita por encomenda de Cosimo de Médicis, do Corpus Hermeticum reabilitou a Hermetica no pensamento europeu dos séculos XV e XVI e impactou profundamente a compreensão do mundo e do papel do ser humano no cosmos (EAMON, 2007, p. 407). Frances Yates foi a primeira 507 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior historiadora a perceber esse impacto, apesar de ter superlativizado a importância do hermetismo para a formação da ciência moderna2. A mensagem hermética3 recolocava o ser humano no centro da criação do cosmos, isso porque ele passava a ser visto como um possível operador das qualidades ocultas presentes em toda a natureza. Assim, a ideia de que tudo possuiria virtudes secretas regidas por relações de simpatia e antipatia, fruto das influências dos astros sobre o mundo sublunar, não apenas poria o cosmos em movimento como também tornaria o ser humano um deus em potencial, capaz de realizar prodígios. Falando em prodígios, o Renascimento também foi movido pela curiosidade. Sublinhemos que nos referimos ao período das navegações, tendo a chegada de Colombo nas Índias Ocidentais, em 1492, sido um ponto de inflexão na busca pelo novo. As viagens trouxeram uma torrente de novos espécimes animais e vegetais, bem como proporcionou o contato com novos povos e culturas, o que implicou em uma mudança na forma como o mundo deveria ser experimentado e explorado. Além disso, os textos clássicos foram postos na berlinda: as novidades que se tornavam conhecidas então estavam deles ausentes porque eles não tinham todas as respostas ou porque os humanistas viviam uma era ímpar? Uma crítica clássica a tese de Frances Yates pode ser vista em: Hanegraaff, Wouter J. Beyond the Yates Paradigm: the Study of Western Esotericism Between Counterculture and New Complexity. Aries, 2001, p. 5-37. 3 Uma síntese da mesma pode ser encontrada em Yates, Frances. Giordano Bruno e a tradição Hermética. Ver capítulo II. 2 508 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” Os Gabinetes de Curiosidades foram um exemplo dessa mudança de comportamento em relação à natureza. De forma geral, se tratava de uma justaposição de naturalia e artificialia, pretensamente reunidos por meio de viagens por todo mundo conhecido, um conceito em pleno alargamento. Ali havia espécimes animais e vegetais, artefatos tidos como raros e exóticos, como gemas esculpidas. Borrando os limites entre arte e natureza, o objetivo de tais coleções eram demonstrar que havia muito a ser descoberto ainda no mundo, implicando uma maior devoção à busca pelo novo (EAMON, 2007, p. 417). Fruto da mesma ânsia foram os livros de segredo, como o popular Secrets (1555), atribuído a Alessio Piemontese. Os textos de Isabela Cortese e Giambattista della Porta mencionados anteriormente podem ser classificados nessa categoria literária. Esses livros eram organizados como coletâneas de segredos, sendo estes receitas de tipos variados: remédios famosos, fabricação de perfumes e óleos, técnicas de tingimento, metalurgia e também alquimia, entre outras coisas. Havia todo um “mercado consumidor” de tais textos, fomentando o surgimento de um circuito produtor e disseminador dessas obras. Assim, tais livros eram encomendados a autores profissionais e produzidos em certa quantidade, inclusive reformatando a mesma base de informações veiculadas (RAY, 2015, p. 46-49). Sublinhe-se que o plágio não é um conceito aplicado a esse momento da História (BORCHARDT, 1986). Eles são demonstrativos de que o pensamento 509 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior científico de então compreendia que a natureza funcionava por meio de um grande leque de mecânicas secretas, sendo a grande meta não apenas compreender a natureza, mas desvelar tais mecanismos ocultos e instrumentalizá-los. Pensando que a natureza possuía uma dimensão secreta, e profundamente relevante para compreendê-la e agir sobre ela, havia igualmente o entendimento de que o mundo natural seria metafórico e simbólico. Os naturalistas renascentistas acreditavam que para compreender o mundo seria preciso acessar toda essa dimensão simbólica. Não bastava apenas conhecer um pavão, como aponta Eamon (2007, p. 418), mas saber o significado de seu nome, suas associações proverbiais, suas simbolizações históricas e mitológicas, bem como as relações de simpatia e antipatia a que se ligava. Tal visão emblemática do mundo somente cairia em desuso com a filosofia baconiana e a ampliação do mundo conhecido. Ainda havia a crença nas assinaturas conforme a qual as qualidades ocultas de uma coisa são explícitas em sua aparência de alguma forma. Essa seria a estratégia do Criador para que o ser humano fosse capaz de descobrir as qualidades ocultas das coisas, conforme Sua vontade. Essa correlação seria resultado da ação do influxus celestial sobre o mundo sublunar, assim, a natureza se entrelaçava ainda mais com o plano dos astros. Dessa forma, a doutrina das assinaturas defendia a crença em poderes ocultos por natureza, mas que também seriam manifestos por meio de sua aparência (DAWES, 2013, p. 43-44) 510 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” O pensamento científico renascentista buscou por uma compreensão ativa do mundo, ou seja, por maneiras de não apenas entender a natureza, mas, principalmente de atuar sobre ela. Devemos pensá-la em uma chave operativa, não contemplativa, bem distinta da alternativa escolástica. Discutamos agora as relações entre o pensamento científico e o pensamento mágico nos Renascimentos dos séculos XV e XVI. Comecemos compreendendo o que era a filosofia natural e qual seu papel nessa relação empírica com o mundo natural. De forma objetiva, podemos entender a filosofia natural como um esforço de compreender a natureza através de observação e empirismo. Tal ramo filosófico não foi uma invenção dos humanistas, sendo mais um dos elementos da Antiguidade recuperado e reapropriado por eles. Os gregos antigos praticavam esse tipo de filosofia, sendo um bom exemplo a obra platônica, conforme a qual o cosmos era um organismo vivo, portador de uma alma que animaria todo o universo. A filosofia natural praticada pelos humanistas pode ser classificada como neoplatonista, pois perseguiria, principalmente, essa força vital que daria movimento ao mundo natural. Os humanistas, defensores de uma vida ativa, como dito anteriormente, rejeitaram uma filosofia pautada pela busca do “mundo das essências”. Para eles, o mundo deveria ser compreendido por meio da observação e da experiência diretas, ou seja, o empirismo deveria ser a ferramenta central dessa vida ativa. As repercussões dessa postura foram bem amplas, atingindo vários campos do conhecimento. 511 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior Rejeitando a ideia da finitude cósmica, Giordano Bruno afirmou que o universo era infinito, com vários mundos como o nosso e que a Terra não seria o centro do universo. Essa afirmação foi influenciada pelo trabalho de Nicolau Copérnico, que defendeu o heliocentrismo e a inifinitude do universo. Tal concepção seria melhor burilada por Johannes Kepler que, influenciado também por Tycho Braher, proporia na obra A Harmonia dos Mundos, um modelo astronômico pautado pela ideia de música das esferas pitagóricas (DAMIÃO, 2018, p. 37-38). Consideremos que estas alterações na percepção do cosmos tiveram repercussões não apenas na astronomia, mas igualmente na astrologia. Era habitual que consultas astrológicas fossem base para decisões importantes e procuradas por mercadores, humanistas, príncipes e mesmo papas. Johannes Kepler praticou astrologia na corte do imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Rudolf II, e fez horóscopos para o conde Albrecht von Wallenstein. A rainha Elizabeth I apenas escolheu o dia da sua coroação após John Dee apontar qual seria o dia mais propício para tal ato (EAMON, 2007, p. 409). Popular nas cortes, a astrologia igualmente era importante para o restante da população, impulsionando a publicação de prognósticos em almanaques baratos. Um dos temas mais recorrentes era o do novo dilúvio, previsto por inúmeros astrólogos para ocorrer entre o fim do século XV e o começo do século XVI. Para esse esforço de compreensão da natureza, velhas ferramentas foram reabilitadas. Uma matemática mais realista, não 512 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” mais apenas hipotética e abstrata, permitia tornar o universo mensurável, portanto, controlado. Através dos cálculos matemáticos, o cosmo seria demonstrado tal como ele seria, não como se especularia que fosse. Ela permitia universalidade e previsibilidade (Damião, 2018, p. 38). Nesse mesmo sentido, surgiram várias obras de anatomia, fisiologia e botânica, pois elas permitiram a compreensão da realidade natural. Mais do que isso, elas seriam basilares para duas práticas fundamentais para a filosofia natural renascentista: a descrição dos fatos e dos movimentos naturais e a prescrição dos mesmos, ou seja, a capacidade de apresentar soluções aos problemas. Uma obra significativa dessa postura foi a do italiano André Vesálio, Humani Corpus Fabrica (1543), que tratava do funcionamento fisiológico do corpo humano. Mas, era preciso ir um pouco mais além (DAMIÃO, 2018, p. 41). Liderando a fundação de uma nova filosofia natural, Bernardino Telesio (1509-1580) defendeu que a observação da natureza, sem a intervenção da razão ou da autoridade, produziria o verdadeiro conhecimento. Assim, seria possível perceber que a natureza era um ente vivo e senciente. Portanto, o desafio dos naturalistas seria compreender os ritmos e movimentos de um cosmos vivo, bem como as forças que o animavam. Girolamo Cardano se lançou no desafio de catalogar todas essas forças e correlações, marcadamente em seus De subtilitate (1550) e De rerum varietate (1557), esforços enciclopédicos sobre filosofia natural. Cardano 513 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior acreditava estar vivendo em uma época de maravilhas, o que seria visto nas grandes obras naturais como também nos menores detalhes da natureza (EAMON, 2007, p. 420). Havia alguns humanistas mais radicais, que consideravam que isso ainda seria pouco. Posturas como a acima descrita ainda não seria o suficiente para abandonar o mundo das essências. Esse esforço seria por demais livresco, demasiado teórico. Era preciso ler o livro da natureza de forma direta, ao invés de livros velhos com novos olhares. Um dos grandes nomes dessa postura mais radical foi o suíço Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493-1541). Esse médico, físico, químico, alquimista e astrólogo, ficou conhecido como Paracelso, nome que já é em si muito significativo, pois significa “Além de Celso”, sendo este um famoso médico romano. Paracelso afirmava que os remédios oriundos do saber puramente livresco seriam mais danosos do que sanativos, pois não partiam do mais essencial, ou seja, do corpo como ente vivo. Assim, a única anatomia útil seria a anatomia viva, ou seja, aquela que teria como fonte de análise e reflexão o corpo vivo, em pleno funcionamento. Além disso, ele também considerava que as doenças eram situações espirituais com repercussões físicas, logo, sua cura somente seria possível ao tratar-se a causa espiritual para sanar o efeito físico. Contudo, essas posturas eram calcadas nos textos clássicos, ou seja, se mantinha o padrão humanista de cobrir da autoridade antiga um discurso moderno (EAMON, 2007, p. 413-414). 514 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” A defesa paracelsiana de um conhecimento construído a partir e em função de uma natureza viva, reflete com clareza relação entre a filosofia natural e a magia natural. Enquanto a filosofia natural se dedicava a compreender, mensurar e explicar uma natureza viva e em movimento, vários indivíduos consideraram que ela era incapaz de intervir na natureza. Para isso, era preciso ir além, buscar uma ferramenta adequada a tal ato. Esse papel estaria reservado para a magia, especificamente a de tipo natural. Quentin Skinner (1996, p. 119) aponta que o magus era o sujeito capaz de transformar o mundo físico. E, o faria ao conciliar o conhecimento (filosofia natural) e prática (magia natural) capazes de domar a Fortuna. Não é possível avançar nessa reflexão sem inquirir como os documentos que elencamos como fontes principais definiam tanto o magus quanto a magia. Agrippa terminou sua obra entre 1509 e 1510, ainda que a primeira versão impressa date de 1530. Em seu De Occulta Philosophia, ele pretendeu apresentar todos os meandros da magia, qual sua natureza e quem estaria apto a performá-la. Agrippa, ao descrever o magus, o insere naquilo que Daniel P. Walker (2000, p. 23) descreveu como prisca teologia, ou seja, o discurso de que a revelação de uma verdade universal fora feita desde o princípio dos tempos, sendo absorvida de forma incompleta, contudo vital para sua manifestação completa: a mensagem do Cristo. Agrippa (1550, p. 4) enumerou como nomes dessa linhagem de sábios Zalmoxis, Zoroastro, Eudóxio, Mercúrio Trismegistos, Porfírio, Jâmblico, Plotino, Proclo, 515 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior Dardano, Orfeu, Apolônio de Tiana, Demócrito, Pitágoras, Platão, entre outros. Podemos ver listas semelhantes no Magia Naturalis de Giambattista della Porta, publicado em 1558, e no De Magia ditada por Bruno a seu discípulo Jerônimo Besler entre 1590 e 1591. Bruno assim se pronunciou sobre a questão: Antes de se tratar da Magia, como de qualquer outro assunto, deve-se da palavra subdividir os seus sentidos: pois existem tantos sentidos da palavra magia quanto tipos de magos. Mago significou, inicialmente, sábio: tais eram os trimegistos entre os egípcios, os druidas na Gália, os gimnosofistas na Índia, os cabalistas entre os hebreus, os magos entre os persas (depois de Zoroastro), os sofistas entre os gregos, os sábios entre os romanos (GIORDANO BRUNO, 1590-1591 (2008), p. 29). Essa imagem do magus como um sábio é uma representação constante nos discursos renascentistas a respeito do tema. Outra questão que não conheceu grande variação é a presença de Zoroastro, Platão e Hermes ou Mercúrio Trismegistos nessa lista dos primevos teólogos. Isso tornava o magus um sábio tributário da dualidade zoroastrista (e oriental), bem como da “cadeia de ouro” platônica e da relação intrínseca entre os mundos supralunares e sublunares da cosmogonia hermética. Cornelius Agrippa (1550, p. 1) descreveu o magus como alguém capaz de compreender as três dimensões que compõem o mundo: elementar, celestial e intelectual, bem como as relações entre tais níveis. Além disso, o verdadeiro sábio que é o magus tem compreensão de que seria possível se alcançar o Criador ou Causa Primeira ao navegar por meio dos diversos níveis da Natureza. Para tanto, o magus deveria estar pronto para lidar com todos os recursos 516 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” disponíveis, tais como plantas, pedras, metais, animais, estrelas e mesmo anjos. A grande ferramenta para realizar essa proeza seria a Filosofia Natural: Assim, quem desejar se primar nessa faculdade, se não for versado em Filosofia natural4, pela qual se descobre a qualidade das coisas e na qual se encontram as propriedades ocultas de todo ser, e se não for versado em Matemática e nos aspectos e cifras das estrelas, sobre as quais depende a sublime virtude e a propriedade de tudo; e se não for versado em Teologia, na qual se manifestam as substâncias imateriais que dispensam e ministram todas as coisas, não será capaz de entender a racionalidade da Magia. Pois nenhuma obra é feita por mera magia, tampouco é meramente mágica, sem abranger essas faculdades (Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim, 1550, p. 5).5 Ora, para Agrippa, então, o magus é um sujeito capaz de conjugar o conhecimento da lógica que move a Natureza – a Filosofia Natural –, a astrologia, a matemática e a teologia. Este autor colocou como fundamental para a atuação mágica o conhecimento do Deus verdadeiro, sendo este o cristão, pois Ele seria a Causa Primeira, motor de todos os movimentos de simpatia e antipatia que dariam dinâmica ao mundo natural, porque Ele é o Criador de tudo, e tudo Nele está contido. As Causas Segundas não teriam potência natural – Optou-se por essa tradução, pois Physica se refere nesse caso à filosofia natural e uma tradução literal poderia induzir a interpretações anacrônicas. 5 Quicunq; igitur nuc in hac facultate studere affectat, si nõ fuerit eruditus in Physica, in qua declarantur qualitates rerum, & in qua reperiuntur proprietates occultae cuiuslibet entis, & si non fuerit opifex mathematicae, & in aspectibus, & figuris stelarum, ex quibus cuiuslibet rei sublimis virtus & proprietas dependet: & si non fuerit doctus in teologia, ubi manifestatur substantiae immateriales, quae dispensant & administrant omnia, nõ poterit intelligere Magiae rationabilitatem: nullum enim opus ab ipsa Magia perfectum extat, nec est aliquod opus vere magicum, quod has tres facultates non complectatur. 4 517 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior ou seja, os planetas e seus anjos ou demônios planetários –, elas nada mais seriam do que retransmissoras refratárias da potência primeira (HEINRICH CORNELIUS AGRIPPA VON NETTESHEIM, 1550, p. 360). Agrippa insiste que para praticar a boa magia, o sujeito deve estar livre das afeições carnais, das paixões materiais. Também é necessário que se mantenha puro, seja por inflexão astrológica natural ou pelo cuidado de não entrar em contato com agentes poluentes, como a mulher viúva ou menstruada, a lepra ou a carcaça morta (HEINRICH CORNELIUS AGRIPPA VON NETTESHEIM, 1550, p. 352). O magus, conforme Agrippa, é esse sujeito capaz de conjugar saberes diversos, tudo arbitrado pela concepção de que o ato mágico só é possível pela mediação de Deus. Giambattista della Porta apresentou uma imagem semelhante, contudo, mais conectada aos prodígios divinos por meios da ação na Natureza do que por meio da ação direta da divindade. Della Porta definiu o magus da seguinte forma. Uma tal personagem que pesquisa as causas dos começos e os primeiros elementos das coisas, e expõem aos olhos de todo as riquezas maravilhosas daí decorrentes; ele indica a ligação reciproca e a conjunção dos elementos, donde provem a fonte das causas e donde deriva seu fim ou sua morte (GIAMBATTISTA DELLA PORTA, 1562, p. 2).6 Iure quidem primùm qui tanta debet maiestate pollere, exactum, et consummatum in Philosophia, rerumq´naturae disetissimum optarem, causas enim principia, et rerum elementa rimatur, mirificas earum dotes depromit, mutuum elementorum nexum, combinationem, unde mixtorum scaturigo et interitus. 6 518 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” Ao definir os interesses do magus, Della Porta (1562, p. 2) afirmou que este teria como objeto de estudo as marés do mar irritado, os cegos movimentos que agridem a terra, bem como o motor da ação dos animais do ar e da terra. Seria igualmente de seu interesse a natureza dos metais, bem como a composição de misturas benéficas ao ser humano, levando-o a ser um estudioso das plantas locais ou estrangeiras. Assim como Agrippa, della Porta insistiu na ideia de que o magus deveria ser sabedor de matemática e de astrologia, as ferramentas para conhecer os movimentos dos céus e a influência das estrelas, bem como sua influência no plano sublunar. Concluindo, Della Porta (1562, p. 2) apontou que não haveria nada mais problemático que se ignorar a ferramentas por meio da quais se opera. Della Porta (1562, p. 2) via o magus como um artesão da Natureza (Sit Magus naturae dono artifex), não como seu mestre. Assim, ele seria um operário, um trabalhador manual por natureza, e ao mesmo tempo um sábio, pois se ele fosse um sábio sem artifício ou um artesão ignorante, jamais atingiria o objetivo da magia natural, uma vez que esta disciplina exigiria a habilidade do artesão e a ciência do sábio. Tanto o homem de fé de Agrippa e Bruno, como o “artesão da Natureza” de della Porta têm em comum a ideia de que o magus é capaz de realizar prodígios não por um poder próprio, mas pela capacidade de colocar os movimentos compelidos pela Causa Primeira nas relações de simpatia que moveriam mundo natural a favor de sua 519 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior agenda secreta. Dito isso, para completar nosso panorama, não basta definir o magus, é central conceituar igualmente a magia. Giambattista della Porta (1562, p. 1) definiu a magia de forma breve, ao afirmar que essa magia, dotada de uma considerável potência, abunda em mistérios ocultos, e faz conhecer as coisas que repousam no seio da natureza, com suas qualidades e suas propriedades: é o ápice de toda a filosofia. Inclusive, na opinião dele, a magia é escrava da Natureza, tal qual o magus é seu servo. Giordano Bruno e Cornelius Agrippa são mais detalhistas ao definir a magia. Na verdade, ambos construíram verdadeiras “taxonomias” mágicas. Comecemos por Giordano Bruno. A primeira categoria foi a magia dos prestígios, cujas ações pareceriam obras de uma inteligência superior, causadora de admiração em quem a presenciasse. A magia natural veio na sequência, ou seja, a arte por meio da qual se agiriam as antipatias e simpatias presentes em toda a Criação – ou o espírito das coisas, em termos brunianos – para se atuar. A magia descrita por della Porta seria um misto do primeiro tipo com esse último. A filosofia oculta ou magia matemática se valeria de palavras, cantos, números, imagens, selos, caracteres ou letras para atuar. Ela estaria, conforme Bruno, em um estágio intermediário entre a magia natural e a teúrgica, sendo muito tributária da cabala. Avançando nessa direção, a próxima categoria mágica apresentada foi a própria teurgia. Ela utilizaria fumigações, preces, consagrações, cerimônias, sacrifícios e ritos a fim 520 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” de atrair espíritos e potências superiores ou exteriores ao magus. Nesse ponto, Bruno fala de um tipo de operação mágica que teria como intuito permitir ao operador se tornar “vaso desse espírito” ou mesmo comandar os demônios inferiores através dos demônios superiores. Tal ação seria feita por meio da sedução e da lisonja, como também ao tornar tal entidade vassala do magus por meio de conjurações ou adjurações. Depois da teurgia, Bruno descreveu a necromancia como a comunicação não apenas com os mortos, mas com demônios e heróis do passado, por meio de adjurações e invocações, para destes receber oráculos das coisas ausentes e das coisas futuras. A próxima categoria mágica comunga da clássica ideia de “magia por contágio”, apresentada por Frazer e refinada por Mauss. Bruno descreveu um tipo de ato mágico que usa qualquer elemento que tenha mantido contato com o objeto da ação mágica (vestuário, objetos, excrementos, secreções) para reproduzir no paciente da cerimônia aquilo que o agente efetua em tal elemento. Curiosamente, Bruno repetiu a concepção de della Porta de que a magia e a medicina atuam da mesma maneira, ou seja, a cura mágica e a médica se dão pela ação de semelhante sobre semelhante, onde se busca gerar efeito pela apresentação de seu oposto. Aqui, Bruno falou claramente da potencialidade maléfica da magia, dado que a mesma ação que pode curar pode matar. As técnicas de adivinhação foram o próximo tópico abordado. Bruno as ligou aos quatro elementos naturais, tratando então da piromancia, hidromancia, geomancia e aeromancia. Assim, os 521 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior fenômenos físicos ou os elementos naturais se tornavam os instrumentos da divinação. O último tipo mágico seria o daqueles que realizariam predições por meio dos nomes divinos, cálculos e análise de conjunções (GIORDANO BRUNO, 1590-1591 (2008), p. 29-33). Contudo, essa extensa taxonomia dos atos mágicos não foi exclusividade da obra bruniana. Podemos considerar que Bruno se inspirou em Agrippa ao realizar sua classificação das categorias mágicas, pois tal se encontra também distribuída pelos três livros do De Occulta Philosophia, escrita aproximadamente oitenta anos antes. Agrippa (HEINRICH CORNELIUS AGRIPPA VON NETTESHEIM, 1550, p. 80), também apresentou uma definição acerca da magia: A Magia é uma faculdade de maravilhosa virtude, cheia dos mais nobres mistérios, contendo a mais profunda contemplação das coisas mais secretas junto à natureza, ao poder, à qualidade, à substância e às virtudes delas, bem como o conhecimento de toda a natureza, e elas nos instrui acerca da diferença e da concordância das coisas entre si, produzindo assim maravilhosos efeitos, unindo as virtudes das coisas pela da aplicação delas em uma em relação a outra, unindo-as e tecendo-as bem próximas por meio dos poderes e da virtudes dos corpos superiores. Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia e, por fim, a mais absoluta perfeição de toda a excelentíssima filosofia.7 7Magica facultas potestatis plurimae composita, altissimis plena mysteriis, profundissimam rerum secretissimarum contemplationem, naturam, potentiam, qualitatem, substantiam et uirtutem totiusque; naturae cognitionem complectitur et quomodo res inter se differunt et quomodo conueniunt nos instruit, hinc mirabiles effectus suos producens, uniendo uirtutes rerum per applicationem earum ad inuicem et ad sua passa congruentia inferiora, superiorum dotibus ac uirtutibus passim copulans atque maritans. Haec prestantissima summaque scientia, haec altior sanctiorque philosophia haec denique totius nobilissimae filosofia consummatio. 522 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” O princípio mais amplo que alicerça as concepções de magia apresentadas por Bruno, dela Porta e Agrippa foi o das qualidades naturais do cosmos. Essa é uma ideia oriunda concepção cosmogônica hermetista, conforme a qual o Criador ou Causa Primeira seria a força motriz da criação, as Causas Segundas – planetas e seus anjos ou demônios planetários – criariam por refração da potência original, fazendo com que suas criações possuíssem dois graus de afinidade: de atração à causa primeira e a causa segunda que lhe originou e de repulsa às demais causas segundas. É a isso que della Porta se referia quando falou da “cadeia de ouro” de Platão. Eis a ideia de “universo vivo” à qual Antoine Faivre (1994, p. 12-14) afirma como um dos elementos centrais do esoterismo renascentista. Agrippa classificou tais virtudes naturais em elementares, tais como o amadurecer, o queimar, o evaporar e o digerir (HEINRICH CORNELIUS AGRIPPA VON NETTESHEIM, 1550, p. 22) e ocultas, pois estas não seriam perceptíveis de forma direta, mas apenas pelos efeitos causados, como os vapores nocivos dos minerais, a atração dos metais, a resistência das salamandras ao fogo e a ressurreição da fênix. Della Porta tratou das qualidades manifestas e das ocultas da substância natural, estas compreendidas da mesma maneira por Agrippa. Contudo, della Porta (1562, p. 9) tem uma concepção mais "materialista" do que seria a substância, como podemos ver a seguir. 523 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior chamo substância natural (pois chamo de substancia, aquilo que é compacto de ambos), isso que tem ligação de uma e de outra: a matéria e a forma, como princípios e começo de todo, e não rejeitemos as propriedades das qualidades que, desde a origem, estavam ocultas nos elementos.8 Mas, essa percepção da constituição da substância que forma o mundo criado não exclui a ideia de Deus como Causa Primeira. Nas palavras de Della Porta (1562, p. 4-5): Daqui que essa virtude que é chamada propriedade da coisa, não vem do temperamento, mas da forma, como a mais excelente de todas, depois do movimento supremo, e depois da inteligência, e finalmente do próprio Deus, de sorte que o mesmo nascimento que está na forma, aparece nas propriedades.9 Isso implica na aceitação, por parte de della Porta (1562, p. 5), do esquema já descrito acima, da criação do mundo pela ação da Causa Primeira, intermediada pelas Causas Segundas, tornando todo o universo interconectado, o que justificaria a influência dos astros na vida humana. Ideia com a qual estão de acordo tanto Agrippa quanto Bruno. Portanto, sejam mais ou menos materialistas, as concepções de magia de todas essas personagens concordam que a influência divina – a Causa Primeira – é primeiro intermediada pelas Causas Segundas, fazendo com que ela sofra uma difração, resultando que cada elemento absorva tal força de forma distinta, gerando as relações de simpática Cuiscunque naturalis substantie (nam substantiam voco id, quod est ex utraque compactum) compositioni matéria, formaque uti principia eueniunt: nec qualitatum functiones eiicimus, qua ex primordiis in elementis latitabant. 9 Unde vis ea, quae rei dicitur proprietas, non à temperamento, seda b ipsa euenit loco: à suprema igitur vertigine, proximè, huic ab intelligentis illis, denique ab ipso Deo, sic quae formae eadem est, & proprietarum origo. 8 524 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” que moveriam o universo. Em última instância, o magus seria o atento artesão capaz de redirecionar causas naturais ao manipular as relações entre as qualidades – ocultas ou não – que as originam. Sobre essa conjunção de sábio e artesão, nenhuma disciplina representaria isso melhor que a alquimia. A arte da transmutação buscava uma transformação espiritual, com reflexos físicos, possivelmente por isso teve tamanho impacto em figuras como Paracelso. A busca pelo Elixir da vida eterna ou mesmo da Pedra Filosofal seriam alegorias do que realmente era o objetivo: a purificação espiritual do alquimista. A alquimia comungava da mesma concepção de que o universo é um jogo de espelhos, onde cada parte reflete o todo, cuja força motriz estaria pautada pelas relações simpáticas entre as qualidades ocultas da matéria. A aceitação da alquimia foi muito variada. O abade alemão Johannes Trithemius (1518, p. 499), notoriamente envolvido com magia, chamava a alquimia de casta meretriz, pois ela prometia tudo aos seus amantes, não entregando nada e levando-os à ruína. Paracelso não aceitava que houvesse eficácia em medicamentos produzidos por vias outras que não as alquímicas. O rei Felipe II montou em El Escorial um grande laboratório alquímico, bem como uma reconhecida biblioteca de mesmo tema, onde patrocinava alquimistas a fim de abastecer sua corte dos produtos dessa arte (BUBELLO, 2010). Os alquimistas foram várias vezes protegidos pelas coroas 525 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior europeias, seja pelo interesse nos elixires alquímicos ou pela promessa de enriquecimento rápido pela transmutação de metais. O fato é, conforme Eamon (2009, p. 408-409), que o laboratório alquímico se tornou um símbolo do experimentalismo da filosofia natural. Ainda que a obra de della Porta tenha se debruçado sobre processos alquímicos, ela não era primordialmente dedicada a essa arte. Caso contrário vê-se na obra atribuída a Isabella Cortese. Personagem polêmica, sobre a qual não há consenso se existiu realmente ou foi apenas uma persona literária, a obra de Cortese, cujo nome é um possível anagrama de Secreto (RAY, 2015, p. 55), é composta por quatro livros. No primeiro estão compiladas várias receitas médicas, incluindo tratamento para praga, antídotos para venenos e vários remédios contra a sífilis. No segundo, estão presentes temas centrais da alquimia, como a produção de ouro, elixires e da pedra filosofal. Contudo, ao contrário da enigmática alquimia de matiz medieval, a alquimia proposta por Cortese era altamente pragmática e apresentada de maneira acessível (ISABELA CORTESE, 1565, p. 19). Ainda que não tenha se centrado em práticas alquímicas, o terceiro livro apresentava os chamados “segredos maravilhosos” muito populares à época, como a fabricação de espelhos, tingir couro e removedores de manchas. Por fim, o quarto livro dedicou-se a cosmética. 526 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” Exemplar muito representativo de dois tipos de livro de segredos, os de natureza alquímica e os que versavam sobre o feminino, I secreti de la Signora Isabella Cortese... nos permite afirmar que os segredos dos livros de segredo eram um tipo de saber até bem conhecido naquele período, representativo de um esforço de ampliação da disseminação de tais conhecimentos. Lembremos que estes livros representavam um importante e lucrativo nicho das incipientes redes livreiras (RAY, 2015, p. 47). Na última etapa de nosso esforço, discutiremos os mecanismos da racionalidade da magia renascentista, menos com a intenção de mostrar que tais práticas seriam racionais e mais com o intuito de demonstrar que seriam demonstrativos de estruturas de racionalidades inerentes àquela sociedade. Para Gregory Dawes (2013, p. 33), uma crença pode ser considerada racional se ela pode ser racionalmente explicada a partir de um dado conjunto de crenças; formada por meios confiáveis e resultado de processos coletivamente racionais. Dawes (2013, p. 38-39) aponta que a racionalidade está no ato de formar ou manter uma crença, não em seu conteúdo. Logo, a racionalidade é uma característica de pessoas – ou instituições em alguns casos – mas não das proposições em si. Ao invés de falar em crença racional, o mais adequado seria discutir atos racionais de crença. Assim, uma crença racionalmente defensável seria aquela que se dá em um cenário de existência de recursos intelectuais em uma 527 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior cultura que a sustente. No caso da magia, a única coisa necessária é um ambiente que permita a construção de um argumento que defenda sua validez. Isso independendo do mesmo ser mobilizado para a defesa da eficácia mágica. A existência disso dá credibilidade às experiências em primeira mão da magia, bem como aos relatos de operações mágicas. Explicaria ainda a sobrevivência da crença na magia mesmo quando esta falha, independentemente da existência de ceticismo em relação à magia, como havia no movimento renascentista (DAWES, 2013, p. 40). A crença renascentista na magia estava ancorada na ideia de mecanismos nos quais se apoiava a confiança na sua eficácia, sendo eles em número de cinco: influência celestial no mundo sublunar por meio de seu influxus ou influentia; a ideia de que palavras e rituais, se executados de forma adequada pelos indivíduos habilitados, tem a capacidade de gerar efeito tangível, a vis imaginativa; a doutrina das assinaturas; a ideia de que o corpo humano refletiria microscopicamente as relações macroscópicas do universo; por fim, a crença na eficácia da ação dos daemones ou demônios (DAWES, 2013, p. 40-46). Para Dawes (2013, p. 49-50), a crença renascentista na magia seria de tipo não-inferencial. Seriam, portanto, resultado de uma percepção sensorial esse indivíduo, ou seja, esse testemunhou fenômenos que foram compreendidos como resultado de operações 528 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” mágicas, ainda que o autor defenda que as crenças mágicas renascentistas seriam fruto de cognição inconsciente, como aquelas que nascem da memória. Não cabe avaliar se tais crenças são formadas racionalmente, pois por serem instantâneas não abririam margem para racionalização. Já manter a crença nas mesmas, abre a possibilidade de se questionar se tal atitude é racional. O autor aponta que sim, pois acreditamos em nossos sentidos até que haja um motivo, racional, para pô-los em dúvida. Haveria duas razões para pôr uma “crença básica” na magia em dúvida: uma a posteriori, derivando do entendimento de que os atos mágicos repetidamente falham em obter sucesso, logo, não estaria observando um fato magico, mas algum tipo de ilusão; outro a priori, um ato mágico bem sucedido é tão improvável que, certamente, foi presenciado um fenômeno não mágico. Dawes aponta que o problema dessa dúvida a posteriori é que a magia funcionava, em alguns casos. As pessoas morriam, se curavam ou se apaixonavam após a realização do ato mágico. Como não havia preocupação – ao menos generalizada – em separar o ato ritual mágico dos seus acompanhamentos (remédios tradicionais, causas naturais ou dietas), o resultado final era a associação do ato mágico com algum nível de eficácia. Sobre a dúvida a priori, ela era uma possibilidade complicada no Renascimento, pois havia um bem disseminado conjunto de “crenças de fundo” que as tornava perceptíveis como eficazes. Como havia 529 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior ambas as possibilidades, crença e ceticismo, não se pode dizer qual das duas soluções seria a mais racional (DAWES, 2013, p. 50-51) Junto da crença por inferência e da crença por experiência, ainda haveria a categoria da crença por testemunho. Um exemplo é a crença em predicados científicos. A maior parte das pessoas acredita na ciência não por ser particularmente capaz de reproduzir os raciocínios por detrás de um dado predicado científico, mas por acreditar no testemunho de sujeitos tidos como habilitados para julgar a sua credibilidade (autoridades). Tal crença não é irracional. De acordo com Dawes, a crença por testemunho parece ter pautado a confiança renascentista na magia. Isso porque havia um amplo conjunto de documentos que forneciam tal alicerce de crença. Obras como o Corpus Hermeticum, atribuídas a aurora dos tempos, estavam inseridas em uma linhagem de autoridade que as cobria de credibilidade. Vários magi renascentistas, como Agrippa, se valeram desse expediente para obter validação (DAWES, 2013, p. 51-52) Feitas essas considerações, retornamos a nossa questão principal, discutir as relações entre magia e ciência no Rinascimento. Um dos primeiros elementos a ser ponderado é como tais sujeitos que discutimos viam essa relação. Os engenheiros se viam como semelhantes aos magi, capazes de alterar e direcionar a natureza para servir aos interesses humanos. Assim, a habilidade técnica (ingegno) era semelhante à potência mágica no esforço de criação de maravilhas. 530 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” Ambas tinham como objetivo compreender e direcionar as relações simpáticas que moviam o mundo, a fim de energizar seus próprios projetos (DAWES, 2013, p. 35). Por outro lado, vimos que com frequência, as definições renascentistas evocam-na como uma scientia. Pico dela Mirandola definiu a magia como a parte prática da ciência natural e Giambattista dela Porta definiu magia a partir de uma complexa mistura de poderes ocultos e produção de híbridos botânicos e animais. E lembremos que a crença na magia era um recurso racional por parte dos indivíduos envolvidos com ela. Uma das provas da racionalidade da magia renascentista é ela ter sido alvo de crença e ceticismo, ambas pautadas por processos de racionalização semelhantes, porém com objetivos distintos. Não bastava negar ou defender a eficácia do ato mágico por si, era preciso apontar as bases de seu sucesso ou fracasso. De acordo com o Dicionário Gaffiot, Scientia é um conhecimento. E é esse o ponto importante. O que importava para os humanistas, no geral, era a capacidade das ferramentas de perceber, interpretar e domar o mundo natural do que a natureza delas. Não é por acaso que vimos que várias personagens transitaram por diversas áreas do saber daquela época. Mineralogia, física, matemática, astronomia, astrologia, medicina, alquimia, música e outras são os instrumentos por meios dos quais estes indivíduos buscam atingir dois 531 Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior ideais entrelaçados: viver uma vida ativa e construir uma Virtù capaz de domar a Fortuna. Na busca por esse esforço duplo, muitos deles viram a magia como a scientia que une todas as scientiae, ou seja, a ferramenta perfeita para tornar a filosofia natural um instrumento para a aventura suprema de desbravar e atuar empiricamente em um mundo repleto de maravilhas. Referências Documentação GIAMBATTISTA DELLA PORTA. Magiae naturalis, sive de miraculis rerum naturalium libri IIII. Antuerpiae: In aedibus Ioannis Steelsii, 1562. GIORDANO BRUNO. Tratado da magia. São Paulo: Martins Fontes: 2008. HEINRICH CORNELIUS AGRIPPA VON NETTESHEIM. De occulta philosphia, Libri III. Lugduni: apud Godefridum & Marcellu, fratres, 1550. ISABELLA CORTESE. I secreti de Isabella Cortese ne'quali si contengono cose minerali, medicinali, arteficiose, & alchimiche, & molte de l'arte profumatoria, appartenenti a ogni gran Signora. Con altri bellissimi Secreti aggiunti. Venetia: Apresso Giovanni Bariletto, 1565. JOHANNES TRITHEMIUS. Polygraphiae libri sex, Ioannis Trithemii Abbatis Peapolitani, quondam Spanheimensis, ad Maximilianum Caesarem. Oppenheim: Haselberg, 1518. Bibliografia AURELL, Jaume. La historiografia medieval: entre la historia y la literatura. Valencia: Publicacions de la Universitat de València, 2016. BORCHARDT, Frank L. Forgery, false atributtion, and fiction: early modern german history and literature. Res Publica Litterarum, IX, p. 27-35, 1986. 532 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia” BUBELLO, Juan Pablo. Esoterismo y política de Felipe II en la España del Siglo de Oro. -Reinterpretando al círculo esotérico filipino en El Escorial: Juan de Herrera, Giovanni Vicenzo Forte, Diego de Santiago, Richard Stanihurst. Veredas da História, III, 2, 2010. DAMIÃO, Abraão Pustrelo. O Renascimento e as origens da ciência moderna: Interfaces históricas e epistemológicas. História da ciência e ensino: contrariando interfaces. Vol. 17, 2018, p. 22-49. DAWES, Gregory W. The Rationality of Renaissance Magic. Parergon, v. 30, n. 2, p. 33-58, 2013. DICIONÁRIO GAFFIOT. Disponível em: https://gaffiot.org. Acesso em: 22 ago. 2022. EAMON, William. The scientific renaissance. In: RUGGIERO, Guido (Ed.). A companion to the worlds of Renaissance. Oxford: Blackwell Publishing, 2002, p. 401-424. FAIVRE, Antoine. O Esoterismo. Campinas: Papirus, 1994. RAY, Meredith K. Daughters of alchemy: Women and Scientific Culture in Early Modern Italy. Cambridge/London: Harvard University Press, 2015. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Magic, Science, religion, and the scope of racionality. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. WALKER, Daniel. Spiritual and demonic Magic: from Ficino to Campanella. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2000. WEISS, Roberto. The dawn of humanism in Italy. In: Black, Robert (Org.). The renaissance: critical concepts in historical studies. Londres: Routledge, 2006. YATES, Frances Amelia. Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: Cultrix, 1995. 533 O Catimbó Nordestino Sandro Guimarães de Salles1 Introdução Durante o século XVIII, surgem as primeiras referências a uma bebida consumida por indígenas no Nordeste, em contextos religiosos, denominada de jurema. Dois séculos depois, Rodrigues de Carvalho (1928), em seu Cancioneiro do Norte, publicado pela primeira vez em 1903, referindo-se às manifestações populares da Paraíba, faz um dos primeiros registros, ainda que breve, sobre a prática da jurema em contextos não indígenas. Nas décadas de 1930 e 1940, diversos estudos realizados sobre a religiosidade popular na Paraíba (ANDRADE 1983; FERNADES, 1938; BASTIDE, 1945) e no Rio Grande do Norte (CASCUDO, 1978) descrevem a bebida no contexto do chamado Catimbó, fenômeno religioso que consistia basicamente em sessões de mesa/consulta, mantendo, além da jurema (bebida), diversos elementos dos rituais indígenas. A maior parte das referências ao Catimbó, bem como à prática da Jurema, até meado da década de 1970, refere-se ao Litoral Sul da Paraíba, mais precisamente ao município de Alhandra. Ainda hoje, a presença da Jurema nos terreiros Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE/CAA). Pós-Doutorado (PNPD) na área de Antropologia da Religião (CAPES/UFPE). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea - UFPE/CAA e do Programa de Pós-Graduação em Música (Música e Sociedade) - UFPE/CAC. Coordenador do Laboratório de Antropologia, Arqueologia e Bem Viver (UFPE/ NCV). Coordena atualmente a Licenciatura Intercultural Indígena (UFPE). 1 534 O Catimbó Nordestino afro-brasileiro do Recife, passando pela Mata Norte de Pernambuco, até o Rio Grande do Norte (ASSUNÇÃO, 1999), apesar das reinterpretações observadas em sua prática, é marcada por uma memória mítica e ritual do Catimbó praticado em Alhandra (SALLES, 2010). O presente texto é resultado de uma etnografia realizada entre 2000 e 2010, que teve como campo empírico diversos terreiros e casas de Jurema, localizados no município de Alhandra e na Mata Norte de Pernambuco. Nosso objetivo é discutir o Catimbó, uma das primeiras manifestações da prática da Jurema em contextos não indígenas, e que ainda se mantem como uma das principais referências no cenário das religiões populares nordestina. As referências à jurema em contextos indígenas, registradas em dezenas de documentos no século XVIII, tornam-se exíguas a partir do século XIX, acompanhando a invisibilização das comunidades indígenas no Nordeste, com a política de integração e assimilação desses povos. Nesse cenário, em áreas onde a assimilação foi exitosa, como a Mata Norte de Pernambuco e o Litoral Sul da Paraíba, a identidade indígena praticamente desaparece, como resultado da extinção dos aldeamentos e de políticas como a Lei de Terras de 1850. No entanto, a prática da Jurema se mantém, a partir de um conjunto de crenças e rituais indígenas, sobretudo com a presença das mesas de Catimbó. 535 Sandro Guimarães de Salles A Jurema, cujo nome deriva de uma planta de igual nome, consiste em um complexo semiótico e religioso, com origem nos povos indígenas no Nordeste, fundamentado no culto a entidades denominadas de mestres, caboclos ou reis. As imagens e os símbolos presentes nesse complexo remetem a um lugar sagrado, descrito pelos juremeiros como “reino encantado”, “encantos”, “cidades da Jurema”, entre outros. A planta de cujas raízes ou cascas se produz a bebida tradicionalmente consumida durante as sessões é o símbolo maior do culto. É ela a “cidade” do mestre, sua “ciência”, simbolizando ao mesmo tempo morte e renascimento. Definindo o Catimbó Inicialmente, gostaríamos de destacar dois dos muitos sentidos que podem adquirir o termo Catimbó, sendo um mais específico e outro mais genérico. O primeiro, largamente empregado na literatura sobre o tema – desde os estudos pioneiros de Andrade (1983) e Fernandes (1938), passando por Cascudo (1978), Bastide (1971), Motta (2005) e Vandezande (1975) –, designa um culto praticado em diversas cidades do Nordeste, tendo sido registrado em Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Suas características seriam, principalmente, o uso do fumo e da Jurema. As sessões ocorriam em uma mesa, onde o mestre atendia seus consulentes. Descrevendo o Catimbó por ele observado na década de 1930, Fernandes escreveu: 536 O Catimbó Nordestino Vendo o Catimbó, de uma maneira geral, o aparato consiste na mesa estreita, forrada ou não, onde se misturam garrafadas de jurema, cachimbos, novelos de linha, agulhas, botões, imagens de santos... A sessão tem início com a abertura da mesa feita em invocações cantadas, as velas acesas. Distribuem entre os presentes a jurema (FERNANDES, 1938, p. 87). Em um sentido genérico, encontrado na linguagem corrente do Nordeste, Catimbó pode significar magia negra, feitiçaria, bem como qualquer forma de manipulação do sobrenatural, com fins “maléficos” ou “diabólicos”, como “coisa-feita”, “mau-olhado”, entre outros. Mesmo nos terreiros e centros contemporâneos que apresentam uma maior influência das antigas mesas de Catimbó, o termo apresenta um sentido bastante genérico, não se referindo, portanto, a uma religião ou uma prática específica. Os juremeiros o empregam, em uma linguagem mais espontânea, tanto para designar o culto por eles praticado quanto para designar o espaço de celebração. Assim, termos como Xangô, Macumba e Catimbó são, em algumas casas, frequentemente empregados como sinônimos. Catimbó também designa trabalhos para a “esquerda” (o que, no contexto da Jurema, seriam “trabalhos” para “fazer o mal”). Vejamos, nesse sentido, o relato de dona Rita, do terreiro Oxossi Pena Branca, de Goiana, Mata Norte de Pernambuco: O catimbó é quando a pessoa faz o catimbó, né? Esse negocio de catimbó é porque a pessoa trabalha e faz aquele catimbó, aí o povo diz: “ah, catimbozeiro, que tá fazendo um catimbó pra fulano de tal, pra sicrano...” Eu? Deus me livre! Eu não gosto de fazer essas coisas, não... Deus que me livre tirar a vida dos outros [...] Trabalho pra direita, eu não trabalho pra catimbó. Deus me livre. Jesus que me abençoe. 537 Sandro Guimarães de Salles No presente trabalho, empregaremos o termo Catimbó no primeiro sentido, ou seja, designando um fenômeno religioso específico, como descrito pelos pesquisadores acima mencionados. Em que pesem o caráter diverso e a ausência de aprendizado sistemático e ostensivo, é possível afirmar que as sessões assim denominadas mantêm um conjunto de elementos comuns, encontrados em uma área relativamente extensa. Com efeito, os registros feitos por Andrade (1983), e Cascudo (1978) sobre o Catimbó no Rio Grande do Norte são bastante próximos daqueles feitos na Paraíba por Fernandes (1938), pela Missão de Pesquisas Folclóricas2 (CARLINI, 1993) e, na década de 1970, por Vandezande (1975). Podemos mencionar, ainda, a existência de um mesmo panteão de mestres, caboclos e reis; um repertório de cânticos (em geral denominados de linhas) de invocação a essas entidades; a presença de objetos litúrgicos característicos; além da referência a um mesmo universo mítico e simbólico, como registrou Luiz Assunção (1999) em sessões de Jurema realizadas nos sertões da Paraíba, do Piauí, Ceará e Pernambuco. Na literatura, desde as referências mais antigas (ANDRADE, 1983; FERNANDES, 1938; CASCUDO, 1978; BASTIDE, 1945), o uso da jurema (bebida) é apresentado como uma das principais características das sessões de Catimbó, o que levou alguns A Missão foi criada por Mário de Andrade, em 1938, no período em que esteve como diretor do Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal de São Paulo. Na Paraíba, que foi o estado mais coberto pela equipe, foram registrados três casos de Catimbó. 2 538 O Catimbó Nordestino pesquisadores a usar o termo como sinônimo de Jurema. Como observou Assunção3, o termo Jurema, referindo-se a uma religiosidade específica, passa a ser utilizado pelos pesquisadores a partir da década de 1970, quando as mesas de Catimbó desaparecem do cenário religioso e a Jurema passa a ser praticada em outros contextos, como o das religiões afro-brasileiras. Quanto à etimologia da palavra Catimbó, não há um consenso. Cacciatore (1977), em seu Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros, o define como sendo de origem tupi, significando planta venenosa: caá, planta; timbó, venenosa. Em seu Grande Dicionário Etimológico, Francisco Bueno, apoiando-se em von Martius, apresenta a expressão tupi catimbao repoty, significando sarro ou cinza do cachimbo. Para esse autor, a analogia do termo com os “negros feiticeiros” estaria ligada ao fato de esses usarem tradicionalmente o cachimbo. Cascudo (1978) e Bastide (1971) apontam a possibilidade da palavra ser uma corruptela de cachimbo. O primeiro investiga as possíveis relações na origem do vocábulo com os termos Catimbau – que aparece em alguns dicionários significando prática de feitiçaria e, em outros, homem ridículo ou cachimbo pequeno – e Catimbao – de origem tupi, podendo estar relacionado a fumo, ou significando cachimbo de tubo comprido. Por fim, o termo Catimbau, designando feitiçaria, assim como catimbauseiros, referindo-se aos seus praticantes, era usado no Recife, tanto quanto o termo Catimbó, no início do século XX, como 3 Ver prefácio do autor em Salles (2010). 539 Sandro Guimarães de Salles sugere uma matéria publicada no “Jornal do Recife”, em fevereiro de 1918. Influência da magia europeia Outro aspecto que merece ser analisado é a presença de elementos advindos da tradição mágico-religiosa europeia no Catimbó. Câmara Cascudo foi o primeiro a chamar atenção para este fenômeno, que é o leitmotiv do seu clássico Meleagro. Cascudo procura mostrar que muito do que se pensava ser de origem africana nas práticas mágico-religiosas do Brasil tem, na verdade, origem na magia greco-romana: “os processos de feitiçaria, catimbó, bruxaria, no Brasil, são mais de oitenta por cento de origem europeia” (CASCUDO, 1978, p. 174). No referido livro, descrevendo inicialmente o Catimbó, afirma: “[...] é uma soma de influências e convergências, como todos os cultos. A feição mais decisiva é da feitiçaria europeia” (CASCUDO, 1978, p. 19). Já nas conclusões, ao referir-se à “ciência catimbozeira” de um mestre de Serraria, que empregava o Sino Salamão e outros elementos da “feitiçaria branca”, o autor escreveu: “Felinto Saldanha, o catimbozeiro de Serraria, só empregou magia branca e europeia, fácil e sabida. Nem uma reminiscência da África negra ou da América indígena” (CASCUDO, 1978, p. 207). Cascudo fundamenta seus argumentos tanto na presença de leis “universais” da magia, como as formuladas por James Frazer, por ele 540 O Catimbó Nordestino citado, quanto pela presença de elementos de origem europeia: esconjuros, como o “vai-te pro mar coalhado”, orações, como a da Cabra Preta, e símbolos, como a chave de aço virgem e o Selo de Salomão. Em pesquisas realizadas sobre a prática da Jurema na Mata Norte de Pernambuco e no Litoral Sul da Paraíba, registrei diversos elementos advindos das antigas mesas de Catimbó que remetem à magia europeia. Assim, denominei de “complexo de Salomão” um conjunto de símbolos religiosos, composto pelas referências ao Rei Salomão, ao Rio do Jordão – rio considerado sagrado e milagroso, localizado no centro do Reino de Salomão – e ao Selo de Salomão, que juremeiros e juremeiras chamam de “Sino Salamão”. As referências ao Rio do Jordão aparecem em orações e diversas toadas, como no exemplo seguinte, registrado em uma sessão de mesa branca no Centro Espírita Rei Malunguinho, em Alhandra: O Rio e o Rio E o Rio do Jordão E tão bonito é o Rio E viva o Rei Salomão (Bis) E quem quiser ciência Vá buscar lá no Rio do Jordão Salomão me deu ciência Lá no Rio do Jordão... Câmara Cascudo, em Meleagro, registrou, no contexto dos catimbós do Rio Grande do Norte, uma “oração do Rio do Jordão”, que tinha como finalidade a proteção contra inimigos. Eis a primeira parte: 541 Sandro Guimarães de Salles Estavam no Rio do Jordão ambos os dois. Chegou o Senhor João. Levanta-te, Senhor! Lá vêm os nossos inimigos! Deixa vir, João! Que todos vêm atados de pés e de mãos, almas e corações... (CASCUDO, 1978, p. 152.) No município de Alhandra, Vandezande registrou a seguinte linha de abertura, cujas estrofes terminam sempre com o estribilho “neste mundo e noutro mundo lá no Rio do Jordão”. A junçá pripioca Quando neste mundo andou O padre Santo Antônio Neste mundo e noutro mundo Lá no Rio de Jordão... (VANDEZANDE, 1975, p. 54.) Descrevendo uma sessão de Catimbó por ele observada, Fernandes (1938) registra uma referência ao Rio do Jordão, onde existiria um pé de “angico seco”. No contexto da Jurema de Alhandra, o Angico é descrito como uma das sete cidades que compõem o Reino Sagrado da Jurema (SALLES, 2010). Vejamos a referência de Fernandes: Doutra banda do Rio do Jordão Doutra banda do Rio do Jordão Doutra banda do Rio do Jordão Tem um pé de angico seco! Angico seco será? Angico seco será? Angico seco será! (FERNANDES, 1938, p. 87.) Por fim, em uma toada de abertura de mesa, cantada por dona Joana, juremeira de Bayeux, município da Região Metropolitana de João Pessoa, iniciada na Jurema de Alhandra, a referência ao Rio do Jordão aparece associada ao Selo de Salomão e à “Barquinha de Noé”. 542 O Catimbó Nordestino Abre-te Jurema No Rio do Jordão A Barquinha de Noé Com três Sino Salamão O Selo de Salomão (ou Sino Salamão, como preferem os juremeiros), de uso frequente no Catimbó, é um dos símbolos mais presentes na Jurema de Alhandra, seja nos pontos riscados (influência da Umbanda), seja nas rezas e cânticos de diversos rituais. O Selo é composto por dois triângulos equiláteros entrecruzados, formando uma estrela de seis pontas. Os triângulos podem representar forças opostas, o negativo e o positivo, que se unem para formar um universo equilibrado. “A redução do múltiplo ao uno, do imperfeito ao perfeito, sonho dos sábios e dos filósofos, está expressa no selo de Salomão” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 813). O Selo é o símbolo do judaísmo, tendo sido considerado o Escudo de Davi e utilizado como talismã em batalhas. É, ainda, uma das expressões da pedra filosofal dos alquimistas, aproximando o microcosmo e o macrocosmo. No Brasil, sua inserção nas religiões afro-brasileiras se deu através dos negros maometanos, sobretudo por meio da Cabula4. Muitos dos elementos dessa religião, como a própria utilização do Selo como ponto riscado, foram incorporados pela Umbanda. Contudo, é possível que sua inserção no contexto do Catimbó deva-se à mencionada influência da magia europeia, sobretudo através de livros como o de São Cipriano, do qual 4 Religião que funde elementos de tradição cabinda-angola com tradição malê. 543 Sandro Guimarães de Salles registramos alguns exemplares nos terreiros de Alhandra. Na Idade Média, a tradição esotérica e mágica dos judeus da Palestina, especialmente a Cabala5, foi amplamente difundida em países da Europa, através de livros como o Lemegeton, supostamente escrito por Salomão. Sendo o selo de Salomão um dos mais importantes símbolos do judaísmo, há de se considerar também a presença significativa de cristãos novos no Nordeste, muitos degredados de Portugal, acusados de práticas judaizantes. Essas práticas, aliás, seriam o principal motivo das denuncias na ocasião da primeira visitação do Santo Ofício às capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, de 1593 a 15956. O Brasil, que fora lugar de degredo até meados do século XVII, recebeu não apenas pessoas acusadas de terem cometido crimes ou atos judaizantes, mas também aquelas acusadas de práticas de bruxarias e feitiços, penitenciados pelo Santo Ofício. Quando aos cristãos-novos, estar no Brasil significava fugir às perseguições do mesmo Santo Ofício. Como escrevera Rodolpho Garcia (1984, p. XX), “Na colônia vastíssima, despoliciada dos zeladores do credo oficial, uns e outros, sem o temor da repressão imediata, voltavam natural e instintivamente Cabala é a base do conhecimento esotérico dos rabinos, cuja fundação remonta aos judeus da antiga Palestina e do Egito (CACCIATORE, 1977, p. 71). 6 MENDOÇA, H. F. D., MELLO, J. A. G. D., SILVA, L. D.; MENDOÇA, H. F. D. Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: denunciações e confissões de Pernambuco, 1593 – 1595. Coleção Pernambucana, 2ª fase, vol. XIV. Recife, 1984. 5 544 O Catimbó Nordestino às crenças ancestrais” Nas denúncias e confissões por ocasião da primeira visitação do Santo Ofício, por exemplo, são registradas diversas acusações de bruxaria. Uma delas é a denuncia contra Anna Jacome, considerada feiticeira, que teria “embruxada” uma criança, usando a saliva, causando-lhe a morte. Antes de lançar o feitiço, a própria teria feito a seguinte advertência à mãe da criança: [...] se quereis que não vos venham as bruxas a casa, toma uma mesa e ponha com os pés virados para cima, e uma trempe também virada com os pés para cima, e com uma vassoura em cima tudo detrás da porta, e dessa maneira não vos virão bruxas a casa. (MENDONÇA et al., 1984, p.25) Outra denúncia acusa a “mulata” Brisida Lopez, que teria informado ao denunciante sobre um feitiço à base de água e chumbo, com o qual previa o futuro. Há também uma acusação feita por Magdalena de Calvos contra Lianor Martins, que, como escreveu o notário do Santo Ofício, Manoel Francisco, “veio do Reino degradada segundo ela própria lhe disse por feitiçaria” (MENDONÇA et al., 1984, p.108). Lianor possuía uma “mendracola”, um “buço de lobo”, uma carta de “Santo Arasmo” e uma “semente do feito”, que ela e umas amigas colheram em uma noite de São João. Como se lê nos autos da Inquisição: As quais coisas dizia que trazia para fazer querer bem os homens as mulheres, e as mulheres aos homens que ela quisesse e para os maridos não verem o que suas 545 Sandro Guimarães de Salles mulheres fizessem e para outras coisas semelhantes... [...] a propósito de induzir a ela denunciante que quisesse usar dela nas ditas feitiçarias e cousas para um homem lhe querer bem... (MENDONÇA et al., 1984, p. 108) Essas práticas lançam mão de um vasto repertório de orações, conjuros e ensalmos do mundo Ibérico, marcado pelo dinamismo e variabilidade, que são adaptados e ressignificados em diferentes línguas, culturas e crenças. Esse repertório, desde o início da colonização, se expande pela colônia, chegando às chamadas mesas de Catimbó. O Catimbó como fenômeno mágico-religioso O Catimbó vai, portanto, se configurando como um conjunto de crenças e práticas que subvertem o campo religioso institucionalizado, fazendo uso, inclusive, de elementos desse mesmo campo. Ele pertence aos fenômenos religiosos que se manifestam como um conjunto de crenças e rituais que uma sociedade não pode integrar dentro desse campo religioso institucionalizado. Muitos autores, no entanto, têm procurado mostrar a tênue fronteira existente no binômio, magia e religião. Manoel Pedrosa (2000), por exemplo, nos lembra que tanto os fenômenos “mágicos” quanto os “religiosos” possuem perfis variáveis e específicos dentro de cada tradição cultural, que fixa seus limites e alcances segundo seus próprios critérios. Estes, geralmente, são estabelecidos pelas elites 546 O Catimbó Nordestino dominantes. As práticas normalmente designadas como mágicoreligiosas, como o Catimbó, são classificadas e interpretadas historicamente em um contexto marcado por relações de poder, seguindo os critérios estabelecidos pela religião dominante, a religião do colonizador. Assim, como procurou mostrar Pedrosa, ao distinguir o mágico do religioso, se distinguiria, do mesmo modo, o vergonhoso do não vergonhoso, o heterodoxo do ortodoxo, o marginal do institucional, o legal do ilegal. [...] las definiciones más precisas de la magia y de la religión puede que sean las que ponen énfasis sobre la imprecisión, la variedad y la apertura de significados de ambos conceptos, y, de modo especial, sobre la contigüidad que hay entre ambos (PEDROSA, 2000, p. 13). As definições clássicas, portanto, se chocam frequentemente com a complexidade dos fenômenos religiosos. Como mostrou Bourdieu (2008), para a maioria dos estudiosos a magia visa objetos concretos e específicos, parciais e imediatos, se opondo à religião, cujos objetos seriam mais abstratos, genéricos e distantes. As práticas mágicas, nesses estudos, estariam assentadas na intenção de coerção ou manipulação dos poderes sobrenaturais, se opondo, por exemplo, às disposições propiciatórias e contemplativas da oração. Por fim, elas estariam voltadas para o formalismo e o ritualismo do “toma lá da cá”. Os catimbozeiros, no entanto, também estavam inseridos em um contexto mais abstrato, genérico e distante, que caracterizaria a religião, sobretudo pela presença de elementos complexos, como a 547 Sandro Guimarães de Salles crença em um reino encantado da Jurema. Por outro lado, eles também se diziam católicos. Nesse caso, os elementos cristãos eram subvertidos e reinterpretados, o que aproxima o Catimbó das religiões, práticas e crenças profanadoras, descritas por Bourdieu, seguindo de perto as ideias de Max Weber. A profanação consiste em uma contestação objetiva – embora sem qualquer intenção de profanação – do monopólio da gestão do sagrado e da legitimidade dos detentores desse monopólio. Como mostrou Bourdieu, os chamados feiticeiros [...] levam às últimas conseqüências a lógica da contestação do monopólio quando reforça o sacrilégio provocado pelo relacionamento de um agente profano com um objeto sagrado, invertendo ou caricaturando as delicadas e complexas operações a que devem se entregar os detentores do monopólio da manipulação dos bens religiosos no intuito de legitimar tal relacionamento (BOURDIEU, 2008, p. 45). Essa dupla pertença observada no Catimbó é continuada pelos mestres e mestras da jurema hoje. Vejamos o que diz Dona Maria de Cachimbo, juremeira e mãe de santo do Terreiro de Umbanda São Jorge, de Condado, Mata Norte de Pernambuco: Eu sou católica porque creio em Deus também, né? Aí, sou católica e, mas, assim, vou na igreja quando preciso. [...] bem, sou católica porque eu não posso ser crente. Sou espírita e sou católica. A definição do Catimbó como um culto voltado exclusivamente para as aflições e urgências do cotidiano, como a solução para problemas amorosos, a cura de enfermidades etc., em que pese o fato desse caráter terapêutico ser central no culto, parece contrastar com a complexidade de um universo mítico e simbólico 548 O Catimbó Nordestino nele presente. A referência a um reino encantado (encantos ou cidades da Jurema) expressa uma preocupação com o post mortem. Esse reino, de acordo com os juremeiros de Alhandra, seria composto por sete cidades, sete ciências: Vajucá, Junça, Catucá, Manacá, Angico, Aroeira e Jurema. Andrade foi o primeiro a relatar a existência de uma mitologia no Catimbó, fundamentada no “Reino da Jurema”, que seria “uma das grandes regiões maravilhosas dos ares” (ANDRADE, 1983, p. 30). Esse reino se dividiria em outros onze: Juremal, Vajucá, Ondina, Rio Verde, Fundo do Mar, Cova de Salomão, Cidade Santa, Florestas Virgens, Vento, Sol e Urubá (ANDRADE, 1983). Cascudo, em Meleagro, também menciona a existência de um “mundo dos encantados”, que seria dividido, segundo alguns, em sete: Vajucá, Urubá, Juremal, Josafá, Tigre, Canindé e o Fundo do Mar, e cinco, segundo outros, que seriam os quatro primeiros, mais Tanema, ou o Reino de Iracema. Esse “mundo do além”, segundo ele, seria dividido em Reinados ou Reinos, cuja unidade seria a aldeia. Cada aldeia, por sua vez, teria três mestres. Assim, 12 aldeias formariam um Reino, composto de 36 mestres. Nesse reino, haveria cidades, serras, florestas e rios (CASCUDO, 1978). Bastide, sem informar de onde tirou os dados, transcreve literalmente as cidades mencionadas por Cascudo, assim como a mesma divisão confusa por ele apresentada. Ao tratar esse último aspecto, apenas substitui os termos aldeias por comunidades e mestre 549 Sandro Guimarães de Salles por chefe. Desse modo, escreveu: “Esses reinos por sua vez compreendem um certo número de estados e cada Estado 12 comunidades. Cada comunidade tem três chefes, o que faz com que um Estado tenha um total de 36 chefes” (BASTIDE, 1971, p. 249). Dona Rita, da Mansão de Iemanjá, de Goiana, fala do reino da Jurema como um lugar onde poucos podem ir e para onde vão os juremeiros após a morte. Vejamos o que nos diz a juremeira: É um lugar sagrado, bem bonito que só. A jurema é entrançada uma na outra e embaixo é só forrado com capim-veludo... é um terreno muito grande, muito bonito, e com a jurema ali por cima entrançada que não entra ninguém... nem os passos [pássaros] não passam naquele reino, que chama Reino da Jurema Encantada. Embaixo é capim-veludo e em cima é a Jurema. E os caboclos, só tem aquela porta pros caboclo entrar, reinar dentro, pra dormir, pra viver, pra viver ali em baixo. [...] aí é o reino da Jurema. Reino encantado da Jurema. Aí, nem todo mundo tem o direito de ir lá. Nós vamos lá em sonho, né? Os mestres é quem vai, os caboclo, Tupã, Tupi, aqueles caboclo forte, aí é quem vai e leva a gente em sonho pra gente ver como é o Reino da Jurema... mas quando a gente tá lá em trabalho, porque tem a sessão de mesa, e tem trabalho de chão, aí é que manda aqueles mestres ir no reino da Jurema pra saber aonde é... Ele [um juremeiro após a morte] vai, tem o direito de ir pra lá e de lá Jesus é quem sabe onde bota ele, né? Primeiro tem que ir na Jurema... o espírito, né? Nas toadas cantadas nas antigas mesas de Catimbó de Alhandra, que tive oportunidade de registrar no sítio Acais, os Encantos se faziam presentes através das referências às “sete chaves”, aos “sete portões reais”, que levam às “sete cidades”, às “sete ciências”. Vejamos os seguintes trechos extraídos de três linhas cantadas no sítio Acais, em Alhandra: 550 O Catimbó Nordestino Princesa me dê a chave Que eu quero abrir os sete portões Eu quero ver a ciência do nosso Rei Salomão Quem tem a chavinha do Vajucá Ora me dê para abrir os portões reá [reais] Abre-te porta do Juremá Abre-te com as forças Do Caboclo de Urubá As cidades continuam ocupando um lugar importante para os juremeiros no contexto da Umbanda. Em Goiana, pai Dedo faz constantemente referência a esses lugares sagrados, embora alegue não poder explicar nada sobre o assunto, pois seria um segredo dos iniciados na Jurema. Ele descreve as cidades como sete linhas, sete caminhos, os quais seriam o fundamento do seu trabalho. Das sete, costuma citar cinco, sendo a principal delas a cidade de Heron. Como diz o próprio: “Aqui eu trabalho com Jurema, Junça, Angico, Vajucá e cidade do reis Heron... é uma cidade muito rica, mais rica que a Jurema, analisando isso”. Os relatos sobre o tema feitos por autores como Andrade e Cascudo, entre outros, sempre diferem em número e nos nomes das cidades que compõem o Reino da Jurema. Em todas as referências, no entanto, desde as primeiras, feitas por Andrade, até as registradas na atualidade, no contexto da Umbanda, as cidades da Jurema (ou Juremal) e a cidade do Vajucá são sempre citadas7. Vajucá pode ser uma corruptela de Ajucá, que significa amassar, sovar (TIBIRIÇÁ, 1984). O termo é usado para designar uma festa entre os Pankararu, cujos primeiros registros foram feitos na década de 1930, por Carlos Estevão (1942) e Estevão Pinto (1938). Ambos descrevem o momento do preparo do vinho da jurema, em que a raiz da planta é raspada, depois macerada com uma pedra, até ser obtida a bebida. 7 551 Sandro Guimarães de Salles Catimbó como resistência Finalmente, podemos dizer que o Catimbó e a prática da Jurema entre os povos indígenas (do período colonial à contemporaneidade) expressam uma resistência à colonialidade. São evidências das diferentes formas de resistências e estratégias de negociações acionadas pelos povos indígenas. Estes tenderiam a aceitar as instruções e doutrinas cristãs, sem rejeitá-las diretamente, mas empregando-as seguindo seus próprios interesses, ou seja, com finalidades contrárias àquelas propostas pelos missionários (SALLES, 2021). Essa resistência, em diferentes momentos e de diferentes maneiras, nem sempre foi percebida pelos historiadores e antropólogos. A prática da Jurema, contrariando a historiografia modernista, colonial, mostra que esses povos não são atores secundários. Revela, assim, a força de quem não permitiu ter seus rumos traçados pelos colonizadores. Em pesquisa realizada em antigos jornais do Recife, encontrei diversas matérias, algumas publicadas há mais de um século, que evidenciam tanto as perseguições da polícia aos chamados catimbozeiros quanto o preconceito que havia (como ainda há, em relação às religiões afro-brasileiras e indígenas) entre jornalistas e intelectuais da época. Em geral, os textos procuravam ridicularizar os catimbozeiros, acusando-os de charlatanismo e exploração, alertando a sociedade dos riscos do envolvimento com o Catimbó. Em uma 552 O Catimbó Nordestino matéria no jornal “A Pimenta”, de 1902, encontrei a seguinte matéria, denominada “Feitiçaria”: Na rua do Gerimú, em Afogados, existe uma casa conhecida por Catimbó, onde se pratica toda a sorte de bandalheiras, relativamente a bruxedos, descidas de rei, subidas de príncipes, e caboclos de loandas... O chefe, um tal Paulino, conhecido gury do pateo do Carmo, anuncia que assim arranja-se todos os meios de fazer fortuna, tirar nos bichos, alcançar o que deseja, curar espinhela caída, olhos maus, quebrantos moléstias do mundo, etc. Seria bom que o digno delegado daquele distrito, comparecesse ao Catimbó, para ver se o tal mestre D. Carlos livra toda gentinha do xilindró. Duro com eles, capitão Ponciano, duro com eles...8 Até meados da década de 1970, a perseguição aos catimbozeiros ainda era praticada em todo o Nordeste. Em Alhandra, ouvi do seu Inácio da Popoca que era comum a polícia invadir as casas de Catimbó, obrigando o mestre a levar sua mesa de trabalho na cabeça, pelas ruas da cidade, até a delegacia. Seu Inácio também me contou histórias sobre um delegado de Alhandra que aterrorizava os catimbozeiros. Sua perseguição à mestra Chica Ramalho era conhecida na cidade. Travara uma batalha contra a mestra, ele com seus soldados, suas armas e a patente de delegado, e ela com sua ciência, seus mestres e caboclos. Acometido de uma enfermidade no final da vida, desenganado pelos médicos da capital, o delegado procurou a cura, ironicamente, no Catimbó. Seu Inácio atendeu seu antigo adversário, que agora prometia uma boa recompensa em 8 Jornal “A Pimenta”. Recife, 13 de dezembro de 1902. 553 Sandro Guimarães de Salles dinheiro pela sua cura. O mestre, no entanto, recusou o pagamento, informando-o que para o seu caso não haveria mais jeito. Considerações finais No presente artigo, procurei situar preliminarmente o Catimbó, tendo como referência os dados produzidos durante minhas pesquisas entre os juremeiros da Paraíba e Pernambuco, além da literatura sobre o tema. Procurei mostrar que, embora descrito como um fenômeno religioso assentado no “toma lá da cá”, sem aprendizado sistemático e ostensivo, o Catimbó possui um sistema de crenças complexo, compartilhado por um número significativo de pessoas, em uma área relativamente extensa, que vai do litoral ao sertão. Também tratei da influência de elementos europeus no Catimbó e da sua prática enquanto uma subversão do campo religioso institucionalizado. No último tópico, abordei brevemente o Catimbó enquanto resistência, sobretudo frente ao preconceito religioso. Ainda sobre a questão do preconceito, gostaria de acrescentar a resistência dos próprios pesquisadores em reconhecer a importância do Catimbó e dos demais fenômenos relacionados à prática da jurema. Com efeito, o tema ainda é pouco explorado pela Antropologia no Brasil, o que está relacionado, como procurei mostrar em outra ocasião (SALLES, 2010), ao tardio interesse dos pesquisadores e pesquisadoras das religiões afrobrasileiras pela Jurema. Desde Nina Rodrigues, o interesse pelas 554 O Catimbó Nordestino religiões de tradição jeje-nagô e nagô-queto estaria relacionado ao que Beatriz Góis Dantas (1988) denominou de busca incessante da África no Brasil. Sobre essa ênfase nas religiões consideradas mais “puras”, Roger Bastide, referindo-se aos congressos sobre o negro, realizados em Salvador e Recife, na década de 1930, afirma que o interesse dos pesquisadores no Brasil pelo afro-brasileiro era sempre mais pelo afro que pelo brasileiro. Contudo, o próprio Bastide, quando se refere à presença dos negros no Catimbó da Paraíba, argumenta que, sendo esses de origem Banto, teriam uma mitologia menos “desenvolvida” e mais propensa à magia do que os povos negros da Guiné. O eminente antropólogo francês ainda argumenta que o povo Banto, como não teria ultrapassado o estado de “animismo ou manismo”, não possuindo “uma mitologia tão ricamente organizada como a dos Yorubá, aceitaram com mais facilidade as divindades da nova pátria” (1945, p. 188). Do mesmo modo, o antropólogo René Ribeiro, referindo-se ao cenário religioso do Recife dos anos 1930, escreveu: Inúmeras outras casas, não mais com o caráter de grupos de culto estruturados, com hierarquia de dignitários e fiéis, rituais de iniciação e calendário religioso, porém de afiliação flutuante polarizada apenas em torno da figura de um sacerdote mágico-adivinho, funcionavam nessa época. Eram centros de catimbó, e de caboclos, onde o sincretismo religioso parece ter avançado mais, e em que parecem ter se transformado as antigas “casas de angola” seguindo rumo um tanto diversificado do que no Rio de Janeiro viria resultar na macumba (1978, p. 57). 555 Sandro Guimarães de Salles Finalmente, a antropologia nas últimas décadas tem sido marcada por uma tendência à autorreflexão e desconstrução, pondo em questão a epistemologia modernista, colonial. Nesse contexto, a emergência de novas conceptualizações tem posto em questão conceitos fundantes, como cultura, tradição, comunidade e a própria noção de sociedade (BHABHA, 1998), os quais exigiriam hoje uma ampla discussão sobre seus limites e alcances. Nessa perspectiva, a própria representação etnográfica, como uma prática objetiva e neutra, dá lugar ao debate sobre a imagem essencializada e reificada que criamos e reproduzimos do “Outro” (SAID, 1996). Só a partir desses deslocamentos, fenômenos culturais de grupos silenciados, marcados pelas desigualdades sociais e epistêmicas, como a religiosidade afrobrasileira e indígena, podem ocupar um lugar outro nas pesquisas antropológicas. 556 O Catimbó Nordestino Referências ANDRADE, Mário. Música de Feitiçaria no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1983. ASSUNÇÃO, Luiz C. de. O culto da jurema: anotações para um estudo. Anais da II Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. Recife: UFPE, 1991. ASSUNÇÃO, Luiz C. de. O Reino dos Encantados - Caminhos: Tradição e Religiosidade no Sertão Nordestino. Tese de Doutorado em Ciências Sociais (Antropologia) defendida na à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), 1999. BHABHA, Homi K. O local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1945. BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira Editora, 1971. 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Mas a democracia social, A revolução cultural, A prosperidade no Brasil São impensáveis se a paixão coletiva q o teatro desencadeia Não for libertada Num 2º nascimento como fato coletivo. Artistas e povos Vamos botar pra phoder” (Festival Brazyleyro de Teatro - Bacantes, Teatro Oficina). Em sua obra Modern performance and adaptation of greek tragedy, Helene Foley aponta a existência de uma grande quantidade de encenações de tragédias gregas, fato que demarcou principalmente o teatro mundial dos anos de 1990. A autora reflete sobre a recepção do teatro da antiguidade pelo público contemporâneo, procurando entender essa grande relevância na busca por uma constante revisão ou revivificação da tragédia grega (FOLEY, 1999, p. 2). Tratava-se de uma necessária problematização entre os estudos clássicos, pois envolvia compreender as razões da força que constituía as obras gregas na cena moderna. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), mestrado em História Social pela mesma instituição (PPGHS/UFU) e doutorado em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ). É Professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas (UFMS/CPTL). Líder do Grupo de Pesquisa “Usos e Desusos das Linguagens Artísticas” e Vice-líder do Grupo de Pesquisa “História Antiga e Usos do Passado: novas perspectivas entre o passado e o presente.” Integrante do Grupo “ATRIVM/UFMS - Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade”. 1 559 Dolores Puga Nesse ínterim, alguns poetas são ainda mais lembrados nas montagens. Dentre os tragediógrafos da antiguidade, Eurípides é um dos mais conhecidos nos dias atuais. Suas obras foram as que mais chegaram até nós, demonstrando o impacto que as temáticas de suas peças repercutiram para os sujeitos históricos que o elegeram ao longo do tempo. Na contemporaneidade, Eurípides é um dos poetas mais apresentados para o público, devido especialmente à intensidade de suas personagens. Essas questões refletem diretamente na constante busca pela encenação de suas tragédias, sobretudo no Brasil, como a própria escolha do “Teatro Oficina Uzyna Uzona”, um dos grupos dramáticos brasileiros mais antigos ainda ativos, com reconhecimento internacional. Sobre a presença da mitologia trágica grega no teatro brasileiro dos últimos 30 anos, Carlinda Nuñez afirma que o mito é um privilegiado dispositivo de transferência cultural, um intermédio que permite imbricações culturais ao modo de uma “memória latente” (NUÑEZ, 2015, p. 38). Mas o que a autora chama de memória latente é compreendida dentro do reprocessamento artístico de um tema, no que ela chama de “agon autoral entre o escritor e seus adaptadores [ou recriadores ou ainda tradutores]”, e, nesse sentido, existe sempre uma “contestação ideológica” (NUÑEZ, 2015, p. 39), que marca os sentidos de sua apropriação. Pensando as questões apresentadas por Helene Foley, assim pontua o diretor teatral e filósofo Gilson Motta: 560 “Evoé” A tragédia possibilita a construção de um discurso político estrategicamente não localizado em relação às questões não resolvidas e às situações extremas. Quando encenada num passado imaginário que oferece poucas possibilidades de descrição física, a tragédia estabelece uma dissolução das referências acerca da jurisdição, dos elementos étnicos, raciais e culturais, possibilitando uma resposta política às questões não resolvidas e às situações extremas, sem localizar nitidamente esta resposta (MOTTA, 2006, p. 106). Em outras palavras, pensando o mito trágico como memória latente de um discurso político que parece não ser tão localizado, permite-se envolver questões humanas importantes com um posicionamento questionador, uma contestação ideológica que constrói respostas estratégicas a partir de situações extremas. No caso da obra As Bacantes de Eurípides (Bakxai – 406/5 AEC), se de um lado coroa-se e impõe-se a valorização de encantamentos e rituais estrangeiros e estranhos aos atenienses pela figura de Dioniso, na apropriação do Teatro Oficina, sustenta-se a busca por legitimidade das religiões de matriz africana e dos rituais indígenas, envolvidos em meio ao carnaval, símbolo de uma resistência e liberdade contra perspectivas sociopolíticas conservadoras. Mas, é preciso pontuar por partes. A intensa carga ritualística de Bakxai, As Bacantes de Eurípides A obra Bakxai se caracteriza por um texto dramático questionador. Possui traços da discussão religiosa de Tebas e o império Persa no conflito entre o rei Penteu e Dioniso, focando, sobretudo, nos 561 Dolores Puga rituais estrangeiros e nas atitudes das mulheres em transe. A linguagem se propõe como denúncia. Trabalha o espaço de Atenas de fins do século V AEC a partir da imagem ficcional de Tebas, denunciando a intolerância dessa comunidade para com os rituais e a fé dos estrangeiros sob a figura de Dioniso. Eurípides apresenta a vinda de Dioniso da Ásia Menor – lugar onde triunfou como deus – a Tebas para conseguir reconhecimento dos tebanos, uma vez que era um deus filho de Zeus com Sêmele, princesa da região. Com exceção de Cadmo (o fundador da cidade) e do velho adivinho Tirésias, todo o restante da população de Tebas não reconhece Dioniso como deus, uma vez que não acreditam em sua paternidade, incluindo o rei Penteu. Dioniso, então, hipnotiza todas as mulheres que o rejeitam e as fazem contemplar o coro das bacantes – suas mênades: adoradoras do culto a Dioniso (ou também chamado de Baco) – as quais são vistas como “enlouquecidas” pelo encantamento do deus, que dançam em sua honra na obra de Eurípides. Após a tentativa de prendê-las como também o profeta de Dioniso – que era o próprio deus disfarçado –, Penteu se vê também hipnotizado pela curiosidade de ver os estranhos cultos das bacantes e, por conselho de Dioniso, resolve se travestir de mulher para contemplá-las das montanhas. Então Agave, mãe de Penteu, que, entorpecida pelo deus junto às bacantes, dilacera seu próprio filho, imaginando ser um leão selvagem, e carrega consigo sua cabeça, ostentando sua façanha até a cidade. Cadmo e sua mulher são transformados em “dragões-serpente”, coagidos a lançar chamas 562 “Evoé” contra templos e tumbas gregas, e Agave e suas irmãs são obrigadas a se exilarem de Tebas. Eurípides utiliza uma simbologia diferenciada da figura de Dioniso e de seu culto, em uma concepção mais orgiástica do que o antigo Dioniso de Creta (FOUCART, 1904, p. 20-34), este último, uma perspectiva pela qual a Ática e Atenas tiveram contato. Fundamenta-se como questionamento social e demonstração metafórica das mudanças políticas e culturais ocorridas em Atenas ao longo do século V, quando a cidade-estado estava entre busca de alianças e recrudescimento com lutas por conquista de ideias favoráveis à sua perspectiva de democracia nas demais regiões. Essa diferenciada visão acerca de Dioniso foi um dos elementos introduzidos pelos ritos thiasos na Grécia e em Atenas, e as mudanças ocorridas em seus elementos para a mitologia abordada pelos atenienses foram tentativas de uma “helenização”, bem como a aprovação de práticas dos cultos por parte das famílias mais tradicionais. Para Paul Foucart, quando se trata de elementos thiasos entre os gregos é preciso enxergá-los para além das cores sombrias da perspectiva construída das sociedades de bacanais, influência de etruscos e das campanhas que introduziram raiva, crimes, deboches e uma ferocidade sensual nas cerimônias greco-orientais que não existiam nos primórdios. De acordo com Richard Seaford, aproximadamente no mesmo período de As Bacantes, houve evidência de hostilidade e perseguição ateniense a determinados tipos de cultos de origem estrangeira ou que 563 Dolores Puga assim se pensava os quais possuíam características de iniciação e busca de êxtase. Havia, segundo o autor, objeções morais quanto à perspectiva de embriaguez e o que se imaginava serem licenças sexuais; o mesmo tipo de objeção de Penteu a Dioniso e suas mênades na obra de Eurípides. Para Seaford, a motivação a essa hostilidade se devia a uma busca de controle e um discurso ateniense de “coesão social” (SEAFORD, 2006, p. 35), o que, na realidade, refletiria uma tentativa de domínio dos mais tradicionais líderes da cidade-estado ao suscitarem a busca por autoridade simbólica. Segundo Courtney Friesen: Eurípides também explora a distintiva ambiguidade étnica da identidade de Dioniso. Na mitologia e no ritual, ele é consistentemente representado como bárbaro ou estrangeiro na Grécia. [...] Eurípides emprega essa ambiguidade como um meio de explorar a tensão religiosa dentro da Atenas contemporânea, onde, ele nota, poderia ser processado por impiedade em relação à introdução de deuses novos ou estrangeiros. Existem, no entanto, muitos outros “deuses estrangeiros” que foram introduzidos em Atenas durante o século V, frequentemente associados com rituais de êxtase. [...] a desconexão entre a real prática ateniense da religião dionisíaca e o excesso, violência, e subversão com o qual é retratado na obra As Bacantes é em parte o resultado da projeção de Eurípides do caráter percebido dos recém-chegados cultos estrangeiros (FRIESEN, 2015, p. 55). Embora Courtney Friesen aponte a peça como projeção do que o poeta percebe como sendo a maneira em que a sociedade ateniense tradicional enxerga “recém-chegados cultos estrangeiros”, seria, de fato, uma tradução da obra desse misto de elementos, buscando suscitar, em meio à violência característica exposta, uma determinação e valorização de cultos antigos exteriores à região de Atenas, os quais 564 “Evoé” a cidade-estado e a Ática tiveram contato por meio da reelaboração de outros povos. Segundo Foucart, a origem do mito de Dioniso se dá na Trácia e na Frígia, mas a maior parte das fontes vêm do culto da Trácia. Entre os nativos, Dioniso era chamado de Sabázio, e era considerado o deus da vegetação (em sua origem, vegetação da montanha), das árvores frutíferas e do vinho. A orgia noturna na Trácia era feita em lugares altos, prática essencial de adoração. Quando cedeu lugar aos ritos estabelecidos, eram admitidas cerimônias de preparação e iniciação (FOUCART, 1904, p. 20; 21; 22). Nas festas do século V, especialmente as mulheres se envolviam no culto a Dioniso, substituindo as mênades do mito (as bacantes companheiras do deus lendário). Usavam vestidos longos com coroas de hera, um tirso na mão e na outra uma cobra familiarizada. Passavam a noite na montanha e excluíam o lado profano; tais como orgias e elementos considerados “selvagens” – o culto oriental abarcava a realização de corridas frenéticas, danças desordenadas, sons de pratos, tambores e flautas frígias. Havia também gritos repetidos de “evohe” – chamadas entusiastas ao deus –, movimentos violentos do corpo e especialmente da cabeça. Insensíveis à dor e à fadiga, às vezes se jogavam ao chão, às vezes saltavam. Com apreensões de fúria, pegavam pedaços de animais e comiam a carne sangrenta em delírio de possessão divina (FOUCART, 1904, p. 23-24). Segundo Foucart, As Bacantes de Eurípides possuem a imagem da orgia das mulheres da Trácia. 565 Dolores Puga O mito de Dioniso da Trácia se espalhou pela Macedônia e pelo norte da Grécia, como Delfos e Tebas – dois centros religiosos mais importantes, os quais mantiveram o caráter original do deus, com algumas mudanças: a perspectiva de Dioniso como filho de Zeus com Sêmele teria sido uma transformação trácia da figura dionisíaca em Tebas, embora esta região tenha se imortalizado como local de nascimento do deus no mito. Em Delfos, no período clássico, Dioniso teve um lugar importante ao lado de Apolo (no templo deste deus – Parnassus). Na parte frontal do templo representavam-se mulheres em danças noturnas e o deus Dioniso era o mesmo trácio, com seu cortejo de bacantes (FOUCART, 1904, p. 27; 33). Dioniso trácio era representado como um deus poderoso, impiedoso em sua vingança. Exatamente o oposto da criança indefesa do mito cretense, perspectiva que definiu as lendas em Delfos, em que Dioniso havia sido assassinado pelos Titãs e que Zeus havia ordenado que Apolo em Delfos deveria transportar os restos mutilados do filho para o templo (FOUCART, 1904, p. 29).2 O sacrifício tinha a mesma finalidade que as cerimônias das Antestérias de Atenas,3 com a Sobre a ideia da ordenação de Zeus no mito, Foucart aponta que teria sido desenvolvida na Alexandria (FOUCART, 1904, p. 33). 3 Essa relação de Dioniso com a morte e o renascimento (perspectiva desenvolvida em Creta e Delfos), foi mantida nas cerimônias das Antestérias em Atenas. O culto poliade ligado à Dioniso possuía características comedidas e oficializadas pela cidade-estado – bem divergentes da representação do culto trácio. Nessas cerimônias atenienses, Dioniso já renascido e crescido, está pronto para desposar-se. Nas Antestérias, têm-se o envolvimento de homens, mulheres e crianças; e a encenação do casamento dionisíaco conta com a participação do arconte basileus (CERQUEIRA, 2011, p. 153; 154-155). É digno de nota que o basileus é um cargo religioso importante em Atenas, arconte esse que deveria pertencer à famílias que descendessem de “heróis fundadores”; ou seja, de representantes da tradicional aristocracia ateniense. Fica elucidado o domínio simbólico poliade imposto em detrimento do culto estrangeiro dedicado à figura dionisíaca. 2 566 “Evoé” intervenção e auxílio de Deméter nas tradições de Creta: recompor o corpo do deus para garantir seu renascimento – uma vez que, em Creta, Dioniso era filho de Deméter e não de Sêmele (FOUCART, 1904, p. 33). Para o autor, foi deixado um traço das relações de Delfos e Creta no hino homérico a Apolo (FOUCART, 1904, p. 29). Assim chegamos a dissipar algumas das confusões que deram origem a tendências de unificar os personagens divinos, no longo trabalho de séculos. Houve em Delfos, dois Dionisos separados, e nem um nem o outro é filho de Sêmele. A partir dos pontos mais opostos eles se encontraram aos pés de Parnassus [templo de Apolo em Delfos]. Um deles é o deus trácio no delírio profético, associado com honras a Apolo, ele precedia na posse do oráculo. O outro é o deus morrendo e renascendo, que provisoriamente o chamamos de Dioniso cretense, mas que se reunirá ao culto na Ática [...]. O deus trácio foi descrito como um homem de barba feita; e o filho de Sêmele era adolescente, uma beleza afeminada, cujo longo cabelo flutuava sobre seus ombros. Este tipo jovem encantava os gregos, sempre apaixonados pela beleza física. Poetas e artistas o popularizaram à vontade. Os mitógrafos gregos admitiram três Dionisos, a participação dos dois mais antigos é bastante baixa; para um, a vinicultura; para outro, a agricultura; nada mais. Todo o resto foi o filho de Zeus e Sêmele (FOUCART, 1904, p. 29; 31). Embora o mito de Dioniso em Creta tenha o associado com Deméter, havia sido justamente a imagem cretense criada do deus a referência para a Ática e Atenas, mas agora determinando a filiação de Dioniso à Sêmele – lenda que mais se determinou ao longo do tempo, não apenas por Tebas, mas também em obras tais quais a Teogonia de Hesíodo.4 “[...] Sêmele, filha de Cadmo, se juntou a ele [Zeus] em amor e lhe deu um filho esplêndido, Dionísio jubiloso, uma mulher mortal, um filho imortal. E agora ambos são deuses” (HESÍODO, Theogonia, 940-942). 4 567 Dolores Puga As relações com Creta se realizaram com as invasões gregas na região ainda no período Minóico, mas se determinaram quando os Aqueus, cansados de pagar tributos à talassocracia cretense, instituíram o período micênico com a ocupação definitiva de Creta. De acordo com Pierre Lévêque: “Cerca de 1.400, Gregos vindos do Peloponeso saquearam os palácios [cretenses] e destruíram o poderio minóico. Contrariamente ao que tinham feito os seus antepassados em 1.700, ocuparam o país: Creta perdeu sua independência e estiolou até ao fim do Minóico Recente, por volta de 1.200”. (LÉVÊQUE, 1967, p. 46). Provavelmente, esse domínio teria embebido os gregos e a ática da cultura simbólica na figura dionisíaca de Creta5 – versão já diferenciada dos rituais orgiásticos da Trácia –, em uma concepção posteriormente apropriada para usos atenienses nos oficiais cultos poliades. Apesar da oficialidade desses cultos na Ática, a obra de Eurípides carrega, então, um questionamento avassalador sobre as raízes de crenças cujas características ritualísticas de poder, magia e encantamento denotam a busca pela valorização da existência de povos muito diferentes. Pela força não apenas poética, mas também sociocultural da mensagem, não é difícil, pois, entender as razões dessa representação simbólica reverberar até os nossos dias. Yidy Páez Casadiegos aponta que evidências epigráficas conduziriam a pensar que o contato da Ática com o mito de Dioniso teria sido justamente no século XV a.C., devido às relações com o oriente próximo (CASADIEGOS, 2008, p. 169), assim como Lévêque ao apontar o contato grego com Creta. 5 568 “Evoé” O poder mágico das Bacantes à moda brasileira Sejam os rituais orgiásticos da Trácia, ou a referência cultual das flautas frígias, ou ainda a característica de “selvageria” e liberdade das mulheres encantadas por Dioniso, todos esses elementos foram importantes inspirações para José Celso Martinez Corrêa, em conjunto com Catherine Hirsch, Denise Assunção e Marcelo Drummond na construção de um texto de adaptação e recriação da obra As Bacantes de Eurípides para a realidade brasileira dos anos de 1987.6 O formato escolhido: aquilo que o Grupo Oficina denominou de “tragycomediorgya eletrocandonblaica” – uma maneira de não se sistematizar em nenhum estilo dramático específico, transformando o bacanal dionisíaco em carnaval brasileiro, regado à ideia de um teatro que é, ao mesmo tempo, um “terreiro eletrônico”. Dentro das análises de Peter Burke em sua obra “Hibridismo Cultural” (2003), é possível conceber a ideia do estudo de objetos híbridos, povos híbridos, como também de práticas híbridas, nesse último caso, tais como música, religião, festividades e o teatro. A obra teatral do Grupo Oficina poderia ser considerada como uma prática que contém referências de hibridismo cultural, pois se norteia de uma releitura não apenas das perspectivas teatrais em Eurípides, como também de concepções religiosas e de culto. Partindo das idéias de Burke (2003, p. 56-60), as Bacantes do Oficina pode ser considerada O texto teatral Bacantes do Grupo Oficina teria sido retomado a partir de 1995 e reconstruído para nova encenação em outro momento histórico, em 2011 (em várias cidades do país) e em 2016-17. 6 569 Dolores Puga uma prática de tradução cultural – termo que Burke toma emprestado de um conceito antropológico de Bronislaw Malinowski –, uma vez que a obra lança mão de ideias de uma cultura estrangeira, traduzindoas para o melhor sentido cultural brasileiro. Nesse ínterim, o próprio arcabouço cultural de quem traduz se sobrepõe ao traduzido, de maneira que esse sistema cultural se “acomoda” no olhar do outro. Assim, por exemplo, é possível “traduzir deuses”, construindo perspectivas sincréticas, que fundamentam a construção cultural e ideológica daquele que vê. A tradução cultural, nesse caso, dialogaria com as ideias de apropriação de Roger Chartier, que requer a compreensão das interpretações daquele que traduz uma cultura, interpretações essas “[...] inscritas nas práticas específicas que as produzem” (CHARTIER, 1988, p. 26). Segundo Burke: Para os doadores [culturais, no caso: uma peça trágica da antiguidade grega do século V AEC], uma adaptação ou tradução de sua cultura parece ser um erro, enquanto que os receptores [como o Oficina] podem igualmente perceber seus próprios ajustes como correção dos enganos. Em uma deliciosa e esclarecedora evocação de sua área de trabalho, a antropóloga Laura Bohannan descreveu o que aconteceu quando contou a história de Hamlet para um grupo de africanos ocidentais. Os mais velhos insistiam em corrigir “os enganos” e em explicar a ela o “verdadeiro significado” da história, adaptando-a à sua cultura (BURKE, 2003, p. 60). Sem ter a intenção de “corrigir os enganos” da tragédia euripidiana, mas antes, se atentar aos enganos de uma não valorização cultural diferenciada – como o não reconhecimento de Dioniso no enredo da peça, cujas raízes se fundamentariam de práticas religiosas 570 “Evoé” estrangeiras à Tebas – o Oficina construiu um vínculo de identificação sustentando o viés de práticas culturais julgadas e não reconhecidas na perspectiva cultural brasileira, como as religiosidades africanas e afrobrasileiras, bem como os rituais Tupinambás. Esses seriam os elementos de tradução e imposição de um “verdadeiro significado”, dos sentidos que estabelecem o exercício da apropriação. Sobre o texto teatral do Grupo Oficina em 1987, assim caracteriza o diretor e crítico de teatro Fernando Peixoto: José Celso é mais dionisíaco que Eurípedes [sic]. Seu texto, proposta para um espetáculo, estímulo para a encenação, partitura de palavras em busca de uma partitura musical com estrutura de ópera, avassalador e criativo vômito de frases poéticas que incorporam até mesmo como citação explícita elementos da vida nacional e popular do Brasil de hoje, não é nem uma acadêmica tradução e muito menos uma livre e desenfreada adaptação. As Bacantes que ele elabora como texto ou pré-texto para um projeto de espetáculo capaz de integrar o terreiro de nossas religiões afro com a múltipla presença de aparelhos de vídeo, necessitando música que mescle o atabaque com o sintetizador eletrônico, é fruto de uma insólita e mediúnica parceria: Eurípedes[sic]-José Celso. Direitos autorais a serem divididos 50% para cada um, ainda que historicamente separados por dois mil trezentos e noventa e poucos anos. E ambos devem parte de seus direitos às mais autênticas, espontâneas e transgressoras religiõestradições de seus povos: Eurípedes [sic] seria pobre sem os mitos da religião grega, assim como José Celso seria mais pobre sem os rituais das religiões negras (PEIXOTO, 1987, p. 10). As perspectivas das religiosidades de matriz africana e afrobrasileira são fundamentadas até mesmo no cenário apresentado no texto teatral do Grupo Oficina. A caracterização do “carro naval” que “Dyonyzios” e suas bacantes possuem para chegar à “TebaSP” é um 571 Dolores Puga espetáculo à parte: um navio negreiro, cheio de “Balagandãs”, “Velas Brancas Enroladas D[Sic] Hera Preta” (ASSUNÇÃO; CORRÊA; DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 27). Em um outro momento do texto, a rubrica assim retrata o que ocorre no carro naval: “yemanjás namoram iansãs fudileiros [sic] navais e sereias”, e o coro assim sistematiza palavras de ordem: “phoder e felicidade” (ASSUNÇÃO; CORRÊA; DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 91). O navio negreiro, símbolo da escravidão no Brasil, ilustra logo ao início, e imageticamente, a crítica do Oficina pela maneira sóciohistórica em que o país lidou com a vinda dos povos africanos, com a diáspora negra e sua cultura. Na obra, logo ao chegar em TebaSP e anunciar sua chegada junto às bacantes, Dyonyzios desce ao morro para lá realizar seus ritos – tendo o morro uma das representações basilares da desigualdade étnico-racial e sócio-histórica brasileira. Mesmo assim, o navio negreiro criado na peça detém uma forte concepção de poder na figura da personagem “dyonyzíaca”, na ostentação sexual da “orgya” e na valorização dos orixás nele demonstrados. Nos rituais do morro, é quando o coro “xama para baixar”, momento em que se prepara “tyrsos e coroas para incorporar” (ASSUNÇÃO; CORRÊA; DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 48). Nesses e em outros pontos do texto é possível identificar, assim, questões de negritude e religiosidade afro-brasileira fundamentados em meio a um hibridismo cultural com a antiguidade grega, indicando elementos tais como a hera (usada nos tirsos das mênades dionisíacas) 572 “Evoé” enrolada nas velas brancas. O mesmo ocorre em outras partes da obra, como na representação do “nascimento d [sic] Zeus”,7 quando ocorreu a “invenção do pandeiro, da flauta, da gira, da farra” e quando “sopraram flautas frígias, melodiaram este luxuoso auxílio d pandeiros” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 51). O pandeiro e a gira – esta última, a denominação do encontro espiritual dos orixás na Umbanda – é mesclado ao som das flautas frígias, povos da antiguidade. Semelhante hibridismo cultural é identificado na definição que o adivinho Tirésias faz de Dyonyzios para o rei Penteu: “[...] deus ligado a marte, santo guerreiro” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 65) – em uma alusão à Marte/Ares, deus da guerra, que as religiões afro-brasileiras fundamentaram como Ogum/São Jorge, justamente considerado o santo guerreiro. Também Penteu vai falar sobre o “dragão da barbárie” que “vomitou fogo” (Assunção; Corrêa, Drummond; Hirsch, 1987, p. 65), se referindo provavelmente ao mesmo dragão de São Jorge, visto como elemento simbólico de religiosidades pré-julgadas, carregadas de perspectiva de preconceitos e não aceitas – assim como o rei não aceita Dioniso como deidade grega em Tebas. A valorização dessas religiosidades hostilizadas é ressaltada na obra de Zé Celso e demais autores, da mesma maneira em que é possível continuar a perceber o hibridismo Como é possível perceber, o texto teatral do Grupo Oficina é repleto de “erros” de português propositais. Por isso, as demais citações diretas da obra as quais contenham problemas formais da língua continuarão sendo apresentadas como escritas, sem a indicação de que assim se encontravam em sua originalidade. 7 573 Dolores Puga cultural, como a exemplo da caracterização de Rhea, Semele e as Mênades ou Bacantes, no início da peça teatral: RHEA: NANÃ. MÃE DE SANTO INICIADORA D DYONYZIOS E MÃE D SANGUE D HERA, D ZEUS E D CHRONOS. MENININHA. FEITICEIRA AFRICANA E OU HAVAIANA. BRINCO D OURO. [...]. SEMELE: FILHA DE KADMOS, OVELHA NEGRA. MORENA ESCURA, PRETA. VIVE COM OS COROS N A S Q U E B R A D A S . N Ã O F R E Q U E N TA A SOCIEDADE COMO SUAS 3 IRMÃS [Agave, Hino e Autônoe]; É A QUARTA. SANTA. É A PRÓPRIA TERRA NO Q HÁ DE MAIS TERRA. APAIXONADA E ILUMINADA PELO CÉU. É EDULÉIA DO M I S T É R I O G O Z O Z O D E O S WA L D , SEMELEDULÉIA. É TAMBÉM A CORYPHEA, ARIADNE, EURÍDICE, PERSEPHONA, AFRODITA, MÊNADE LÍDER DO CORO. VINDA DO MAR, DITIRAMBISTA. MORRE FULMINADA MAS FELIZ: “AI, BRÔMIOS... MORRO DE GOZO OU DE DOR...”. VAI PRO INFERNO E DE LÁ VOLTA PRA APARECER COMO UMA N. S. APARECIDA D BACANAL. XIFRE DE POMBA GIRA, CALCINHA PRETA E BOTAS D COBRA OU D RÃ BABADOS E ROSA NO CABELO CHARUTO NA BOCA. AFRODITA: OU DE ROXO E AMARELO PULSEIRA DE PRATA, BRINCO D OURO, ANEL DE BRILHANTE CRINAS E CAUDAS. MANTO DE N. S. APARECIDA TÚNICA AZUL CLARA DE YEMANJÁ ESTRELA NA TESTA E CONCHAS. ROUPAS D CARMEM MIRANDA. [...] As MÊNADES (em grego “mulheres possessas”) e as BACANTES (em grego, pessoas furiosas ou enfurecidas); em brazyleiro: a pomba gira [...] Baixantes Participantes. Representações nas cerâmicas e esculturas antigas descabeladas, fogosas, vestidas com peles d bixos ou vestidos leves e transparentes, plumas, urukum, brilhos, bassas (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 33; 34; 38). Prestigiando o público com uma miscelânea de referências religiosas ou da tradicionalidade poética grega, afro-brasileira e 574 “Evoé” brasileira, o texto Bacantes do Grupo Oficina nos apresenta antecipadamente Dyonyzios como pertencente a uma linhagem de crenças africanas pela representação de Rhea – mãe de seu pai, o deus Zeus – como Nanã e mãe de santo iniciadora. Sugere a concepção de “Semele” (sua mãe) como negra, mistura das principais figuras femininas do panteão grego, tais como Perséfone e sua ida ao hades para, de tempos em tempos retornar, e Afrodite, com sua simbologia do amor – que aqui é representada pela força sexual e como Nossa Senhora do bacanal. Ainda enfatiza que Semele simboliza a líder das Mênades, todas pomba-giras, e por isso é como “Eduléia, do mistério gozozo de Oswald” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 34), uma referência direta à prostituta Eduléia – de Oswald de Andrade, de meados do século XX –, uma obra que retrata a zona de baixo meretrício do Rio de Janeiro, conhecida como Mangue.8 Sem adentrar, por enquanto, nas questões que dizem respeito às referências modernistas de Oswald de Andrade, bem como a presença da cultura indígena em Bacantes – nesse último caso como a caracterização das Mênades pelo uso do urucum – ainda é preciso compreender a força encantatória na figura das pombas-gira, da A peça teatral Santeiro do Mangue, de Oswald de Andrade, fala da “história de amor entre seu Olavo, que vende imagem de santos, e a prostituta Eduléia.” (FERREIRA, 2021, p. 141), e foi publicada em formato de livro apenas na década de 1990. Em 1994, o Teatro Oficina teria feito a primeira montagem da obra, com o título “Mistérios Gozozos” (FERREIRA, 2021, p. 141). 8 575 Dolores Puga Umbanda, como elementos escolhidos para a representação dessas Mênades. Assim descreve Cristiane de Barros: Considerada a mais sedutora, exótica e sensual entidade de todo o panteão umbandista, Pomba-gira desde o princípio foi associada a uma nefasta e inconveniente imagem de sexualidade feminina, exacerbada aos moldes de uma sociedade que ainda preserva forte conteúdo moralista, conservador e machista. Pomba-gira sempre esteve relacionada à marginalidade, feitiçaria e prostituição como relatam as histórias que fundamentam e modelam este seu estereótipo pela literatura religiosa. [...] Seu simbolismo de mulher-Exú, mulher perigosa, mulher das trevas, das ruas, das beiradas, dos limites e das margens representa um lado obscuro e sombrio de ser abordado – a sexualidade feminina (BARROS, 2006, p. 117). É de forma semelhante que encontramos em Eurípides essa retratação de perigo, de sexualidade exacerbada e da marginalização dos ritos das mênades, considerados bárbaros dentro da construção estética da tragédia, uma vez que os tebanos associam essa imagem encantatória obscura com o oposto aos ritos áticos tradicionais. Essa representação sombria do poder da sexualidade feminina é sistematizada na peça teatral do Grupo Oficina como um discurso de resistência, que, em 1987 (seu ano de criação), representa também uma vontade libertária diante do autoritarismo ditatorial. O viés conservador, da censura e do exílio pelo qual passaram os artistas brasileiros durante o regime militar vem a ser demonstrado como a própria concepção do reinado de Penteu em Tebas. O cenário do palácio de Penteu é representado pela ideia de um palco italiano em cima de um tanque de guerra – clara alusão ao controle militar. O palco italiano, símbolo de um teatro tradicional, traz a metáfora de uma arte convencional, aceita pelo seu padrão estético. Como pode ser 576 “Evoé” observado, até mesmo dentro da perspectiva estética a obra Bacantes do Oficina se propõe libertária e não apenas pelo formato do palco. De acordo com Maria Angélica de Sousa: “[...] a arte do grupo rejeita a encenação e o raciocínio lógico-linear característico do pensamento ocidental. Logo, as peças constituem-se mais através da atuação do coro em relação com o público que pela encenação de textos” (SOUSA, 2013, p. 72). Essa é bem a ideia contemporânea dos grupos de teatro, sobretudo o Oficina, que reconstrói o texto teatral para cada encenação e prevê – como parte fundamental de sua característica como grupo teatral – a atuação improvisada do coro no contato direto com o público.9 Mas, adentrando ao conteúdo libertário da peça Bacantes, assim descreve o site do Teatro Oficina: O rito vive a chegada de Dionyzio, filho de Zeus e da mortal Semelle,10 em sua cidade natal, TebaSP, que não o reconhece como Deus. Trava-se o embate entre o mortal Penteu, filho de Agave, que, através de um golpe de estado, tomou o poder do avô, o Governador Kadmos e tenta proibir a realização do Teatro dos Ritos Báquicos oficiados por Dionyzio e o Coro de Bacantes e Sátiros nos morros da cidade. Penteu é a personagem mais contemporânea da peça. Ele incorpora o pensamento dominante, herança do legado racista, patriarcal, escravocrata e sexista, que tem na propriedade privada a legitimação de genocídios [...] (Bacantes, 2020). Penteu é concebido como a representação do golpe civilmilitar. A partir dele se estrutura toda e qualquer vinculação ao Maria Angélica de Sousa afirma que, na estética do Grupo Oficina, há um abandono do texto dramatúrgico em nome do que se experimenta em cena. O coro é o elemento de contato direto com o espectador, e por isso, se recusa à passividade. A performance é vista, assim, como um ritual (SOUSA, 2013, p. 77; 80). 10 Os nomes das personagens no site, escritos de forma diferenciada do texto teatral de 1987, encontram-se já no texto de 2016, quando o Oficina já havia construído modificações estruturais. Para cada momento histórico, o grupo realiza mudanças que se adequam às questões sociopolíticas e culturais do novo período. 9 577 Dolores Puga autoritarismo, ao controle das práticas religiosas, à dizimação dos povos originários11 e, consequentemente, às suas práticas rituais, ao viés ideológico e político pelo qual a obra fundamenta uma análise crítica. Voltando-se à peça teatral: “Dyonyzios – [Eu sou] O que traz a vinha, o vinho, o prazer, o tyato pros mortais. / Penteu – E quem traz esse vinho, esse prazer, esse tyato, eu já censurei. / Dyonyzios – A usura da censura é glória pra Dyonyzios!” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 81). Trata-se da resposta da obra à ditadura militar que até pouco tempo antes assolava o país com a censura aos artistas, uma vez que, seja Dioniso (grego) ou Dyonyzios (brasileiro), estes representam o teatro. Igualmente é possível identificar falas do coro que retratam a opressão pelo viés religioso: “Coro – [...] o castigo do malho do deus [Dyonyzios] / ele castiga o enchristado / o emproado mortal que trabalha pra injustiça / em vez de trabalhar / pra adoração / do coração bacanal” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 90). Mostra a oposição entre a religiosidade da libertação, do prazer e da “orgya” e a religiosidade tradicional, cristã, autoritária, séria e controladora. Também é possível verificar a referência a um Brasil popular que busca liberdade: “[...] na orgya na boca da voz do morro / numa É digno de nota que essa perspectiva da peça teatral foi ressaltada nas encenações mais recentes: uma crítica contundente do Oficina aos movimentos sociais conservadores que sustentaram o golpe de 2016 e balizaram cada vez mais as práticas de genocídio indígena brasileiro, além da ascensão do pensamento fascista e da extrema direita ao poder. 11 578 “Evoé” canção popular” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 90). Na mesma perspectiva, se atentando à uma religiosidade cristã tradicional, Agave afirma – quando volta a si, após cair no encantamento hipnotizante de Dyonyzios: “agora eu compreendi / fui usada por Dyonizios / pra ele acabar com a casa do senhor” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 109). Kadmos é retratato como um político que busca apaziguar as divergências, mas mesmo ele sofre as consequências do não reconhecimento do deus. Assim, Kadmos discursa para “a sociedade civil e militar”: “[...] vou ser exilado no escândalo, na corrupção, na desonra. Eu, Kadmos, o íntegro, o sério, o honesto, o reconciliador, o aliancista” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 110). Ao início da obra (p. 35), Kadmos, em sua caracterização como personagem, é comparado à imagem de Tancredo Neves, governador de Minas Gerais durante o movimento das “Diretas Já” (poucos anos antes da criação do texto teatral) e o presidente eleito com votos indiretos após o regime militar, porém, que nunca teria sido empossado, devido ao seu falecimento. A perspectiva de crítica política do Grupo Oficina, ideia de fundamentação de uma liberdade religiosa e de atuação traduzida pela figura de Dyonyzios e suas bacantes, vem de suas raízes no movimento tropicalista na passagem dos anos de 1960 para 1970. O 579 Dolores Puga Tropicalismo do grupo, encabeçado por Zé Celso, se inspirou sobretudo no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade que por sua vez possui essa ideia estética advinda da “prática de ingestão ritual da carne humana pelos índios tupis – sobretudo os Tupinambás” (SOUSA, 2013, p. 73). No caso do Teatro Oficina, a antropofagia – traduzida ao final da peça com as bacantes dilacerando e devorando a carne de Penteu (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 102-105) – seria o desejo de deixar-se afetar pelo outro em seus corpos, absorvendo-os no corpo (mas essa absorção é transformadora). Para Oswald de Andrade, as artes brasileiras deveriam se deixar afetar pelo outro (pelo europeu) através da identificação com a antropofagia indígena. Dever-se-ia engolir o outro e ressignificá-lo no contexto da cultura nacional, essencialmente tupi e antropofágica (SOUSA, 2013, p. 73). Partindo das análises do antropólogo José Jorge de Carvalho, Maria Angélica de Sousa aponta que é preciso ter cuidado com uma leitura sociologicamente hierarquizante que é possível ter na proposta oswaldiana, de modo que o “outro”, o europeu, é quem controla os meios de difusão do produto cultural resultante de uma suposta síntese estética nacional (SOUSA, 2013, p. 74). Mas a “macumba antropofágica”, proposta estética do Grupo Oficina não traduz um “interesse pelo outro” de forma a hierarquizá-lo como o mais importante. Pelo contrário, ela busca “[...] eclipsar a dicotomia entre a cultura branca (oswaldiana) e a matriz africana expressa nos rituais de 580 “Evoé” macumba.” (SOUSA, 2013, p. 74). O grupo possui forte ligação com o candomblé e o utiliza com frequência no teatro em todos os rituais. Essa característica sincrética de elementos ritualísticos afrobrasileiros e indígenas se adequa ao pensamento antropofágico em que é preciso “deglutir” de todas as referências possíveis para, a partir delas, produzir algo totalmente renovado. A linguagem satírica antropofágica mistura metáforas, metonímias e demais elementos e essa mesma linguagem refletirá personagens polissêmicas, mesclando “seres míticos, históricos, políticos, etc.” (SOUSA, 2013, p. 76). O ritual de devorar Penteu finaliza-se em um banquete em que está presente muita folia: a “folia das vadias” (Assunção; Corrêa, Drummond; Hirsch, 1987, p. 102), uma referência não apenas à liberdade sexual feminina, quanto ao carnaval brasileiro, constituído da perspectiva antropofágica/tropicalista, questões que dialogam com as ideias de Mikhail Bakhtin (2008). A exemplo, é possível apontar a cena em que Agave – responsável por matar e degolar Penteu – traz a cabeça do filho como fera selvagem, ostentando-a no “tyrso”, com muita alegria, como uma “porta-bandeira” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 102; 104) – revelando ainda mais elementos carnavalescos. Segundo Maria Angélica de Sousa (2013, p. 75), a “sátira, o grotesco, a carnavalização” presentes no Grupo Oficina dialogam com 581 Dolores Puga a perspectiva bakhtiniana. Estão igualmente presentes o exagero, a hiperbolização, o ventre, o falo à mostra. O corpo nu, característica do Oficina, seria um ponto estratégico para Zé Celso, que consideraria sermos como gregos e “índios” por adorarmos a nudez – afirmação feita em entrevista concedida a uma jornalista de Campinas e apresentada por Sousa (2013, p. 79). Sobre a festa carnavalesca em Bakhtin e àquela fundamentada na identidade cultural brasileira, assim aponta Dilmar Miranda: A festa carnavalesca é o momento da total inversão do regime dominante: a liberação, ainda que provisória, a abolição das hierarquias, regras e tabus, o congraçamento pagão. [...] Nas festas oficiais, as distinções hierárquicas, com insígnias, títulos, discursos e pompas, marcavam intencionalmente as desigualdades. [...] Com o correr dos séculos, o carnaval consubstanciou uma linguagem e procedimentos próprios, uma percepção peculiar e carnavalizada do mundo por parte do povo. A forma simbólica da linguagem carnavalesca caracteriza-se principalmente pela lógica “ao avesso”. A linguagem do segundo mundo é a paródia da vida ordinária, do “mundo ao revés”. [...] Na festa brasileira, são várias as ocorrências do “mundo ao revés”: troca-se o dia pela noite, a vida do bairro pelo centro da cidade, o território do trabalho e da fadiga dá lugar para o território da dança e do prazer. Trocam-se os papéis sexuais e sociais – homens machistas vestem-se de mulher, adultos usam fraldas e chupetas, cantam “mamãe eu quero mamar”; homens graves fantasiam-se de malandro; negros e brancos fantasiam-se de índios; pobres vestem-se de aristocratas; pessoas da classe média vestem-se de “sujos”; animados foliões cobrem-se com mortalhas (MIRANDA, 1997, p. 129-130; 134). O “mundo às avessas” fundamentaria perfeitamente a composição cênica e temática das Bacantes do Grupo Oficina. 582 “Evoé” Ressalta-se o prazer, a festa, a “orgya”. Até mesmo Penteu, que, curioso, resolve assistir as bacantes, é representado na obra brasileira dentro da perspectiva simbólica da festa carnavalesca ao se travestir de mulher. Os elementos socioculturais, ora rechaçados, agora são exaltados – como a própria representação da macumba ou dos rituais indígenas de antropofagia. E é assim que a peça teatral termina: não apenas com um banquete em meio à grande folia, como, posteriormente, com a glorificação cultural de povos originários brasileiros e suas lendas ao cantarem a canção “Mandu Sarará”, nome adaptado do poema sinfônico “Mandú-Çarará” de Heitor Villa-Lobos.12 Em um catálogo com reunião de obras do musicista, havia uma nota de sua autoria para explicar a personagem principal de seu poema sinfônico: “MandúÇarará: era um jovem índio misterioso, forte, belo e alegre, que dançava por amor. Todos o julgavam a encarnação da magia da dança” (VILLA-LOBOS, 1972, p. 220). De acordo com Nicolás Salaberry: A partir de lendas indígenas recolhidas por João Barbosa Rodrigues [botânico, antropólogo e etnólogo] durante sua expedição científica no Amazonas, Villa-Lobos elaborou um argumento – publicado no catálogo VillaLobos: sua obra (1972) –, que serviu como fonte de inspiração para a realização deste Poema sinfônico. Obra bastante representativa dentro das peças com Um dos expoentes compositores e musicistas brasileiros, Heitor Villa-Lobos é conhecido também pela música modernista brasileira. Inspiração para o movimento tropicalista e para Zé Celso no Teatro Oficina, Villa-Lobos passa então a ser também elemento de apresentação simbólica da peça Bacantes. 12 583 Dolores Puga temática indígena do compositor, é cantada por dois coros – misto e infantil [como na peça do Oficina]– e utiliza somente texto em nheengatu [também como no grupo teatral. Trata-se de uma língua amazônica, originária do século XVIII do desenvolvimento histórico do tupi antigo], encontrados em trechos deste mesmo material recolhido por Rodrigues. [...] O argumento divulgado por Villa-Lobos como inspiração para o Poema sinfônico trata da história de dois irmãos ameríndios – uma linda jovem e um rapaz vivo e arguto – que, por serem muito gulosos e sedentos de amor, são levados pelo pai para o interior da floresta como castigo. Um dos objetivos dele é afastar a sua própria filha do índio misterioso Mandú-Çarará, considerado a encarnação da magia da dança, por quem ela está apaixonada. Perdidos na floresta, os dois irmãos sobem em uma grande árvore, vêem [sic] uma fogueira e encontram-se com o manhoso Curupira. Os irmãos conseguem enganar o Curupira e sua velha mulher que planejavam comê-los; assim, na ausência dele, os dois matam a velha índia, colocando seu corpo dentro da refeição do próprio Curupira. Ao retornar, Curupira come por engano a carne da mulher; em seguida, percebe a desgraça sucedida e, na sua tristeza, invoca todas as almas e gênios da floresta – ligados à força do mal – que, de súbito, vagam sobre a terra. Depois da fuga, os jovens índios se refugiam na casa paterna, onde os aguarda Mandú-Çarará (SALABERRY, 2017, p. 62; 71-72). Como artista do movimento modernista antropofágico, VillaLobos se utiliza de três lendas indígenas diferentes e de regiões brasileiras diversas – tais como Tefé (município do interior do Amazonas), Rio Branco (capital do Acre) e Rio Negro (noroeste amazônico) (SALABERRY, 2017, p. 72) – para agregá-las e criar, a partir delas, algo inovador. A própria história de Mandú-Çarará e de Curupira é repleta de elementos das lendas antropófagas indígenas, 584 “Evoé” como pode ser observado no argumento de Villa-Lobos apresentado por Nicolás Salaberry. Ao lançarem mão desta obra sinfônica cunhada por VillaLobos, o Teatro Oficina coroa o final de sua “tragycomediorgya”. O poder encantatório de Dyonyzios e suas mênades é uma festa de carnaval libertadora, que reúne a força simbólica de religiosidades relegadas, mas que são parte importante da cultura brasileira as quais não corroboram do mesmo viés cristão autoritário, aceito e oficializado – assim como se sustenta como fundamento questionador de uma opressão política. Seja de elementos da feitiçaria negra – dos povos africanos que no país chegaram –, seja da riqueza lendária indígena e sua força representativa de rituais antropofágicos, as Bacantes do Grupo Oficina é um espetáculo que faz jus não apenas a uma apropriação à altura das tragédias de Eurípides, como se tornou uma referência de engajamento contra o regime militar e que continua representando questões de cunho sociocultural e político brasileiros até os dias de hoje. 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Disponível em: https:// commons.wikimedia.org/wiki/File:Pseudo_Bocchi__Witchcraft_Scene_with_Dwarve_-_1954.58.5_-_Yale_University_Art_Gallery.jpg. Acesso em: 27 jul 2023. Formato: 16x23 Número de páginas: 594 A qualidade das imagens reproduz a dos originais fornecidos (N.do E.) @2023 Editora Unesp Praça da Sé, 108 01001-900- São Paulo – SP Tel. (0xx11)3242-7171 Fax. (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br “Evoé” 589