Celso Luiz Prudente & Rogério de Almeida
(Orgs.)
Cinema Negro
D’África à Diáspora:
o pensamento antirracista de Kabengele Munanga
GALATEA
cinema negro
D’África à Diáspora:
o pensamento antirracista de Kabengele Munanga
Realização:
Apoio:
Conselho Editorial:
Alberto Filipe Araújo, Universidade do Minho, Portugal
Alessandra Carbonero Lima, USP, Brasil
Ana Guedes Ferreira, Universidade do Porto, Portugal
Ana Mae Barbosa, USP, Brasil
Anderson Zalewski Vargas, UFRGS, Brasil
Antonio Joaquim Severino, USP, Brasil
Aquiles Yañez, Universidad del Maule, Chile
Belmiro Pereira, Universidade do Porto, Portugal
Breno Battistin Sebastiani, USP, Brasil
Carlos Bernardo Skliar, FLASCO Buenos Aires, Argentina
Cláudia Sperb, Atelier Caminho das Serpentes, Morro Reuter/RS, Brasil
Cristiane Negreiros Abbud Ayoub, UFABC, Brasil
Daniele Loro, Università degli Studi di Verona, Itália
Elaine Sartorelli, USP, Brasil
Danielle Perin Rocha Pitta, Associação Ylê Seti do Imaginário, Brasil
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Gerardo Ramírez Vidal, Universidad Nacional Autónoma de México
Jorge Larossa Bondía, Universidade de Barcelona, Espanha
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Jean-Jacques Wunnenberger, Université Jean Moulin de Lyon 3, França
João de Jesus Paes Loureiro, UFPA, Belém, Brasil
João Franscisco Duarte Junior, UNICAMP, Campinas/SP, Brasil
Linda Napolitano, Università degli Studi di Verona, Itália
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Mario Miranda, USP, Brasil
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Pilar Peres Camarero, Universidad Autónoma de Madrid, España
Rainer Guggenberger, UFRJ, Brasil
Regina Machado, USP, Brasil
Roberto Bolzani Júnior, USP, Brasil
Rogério de Almeida, USP, Brasil
Soraia Chung Saura, USP, Brasil
Walter Kohan, UERJ, Brasil
C EL S O L UIZ PRUDEN T E & ROGÉR IO DE A L MEIDA (ORG S .)
cinema negro
D’África à Diáspora:
o pensamento antirracista de Kabengele Munanga
DOI: 10.11606/9786587047560
SÃO PAULO, SP
2023
© 2023 by Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Distribuição gratuita.
Coordenação editorial: Rogério de Almeida e Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio
Projeto Gráfico e Editoração: Marcos Beccari e Rogério de Almeida
Capa: Marcos Beccari
Revisão dos autores
Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que
citada a fonte e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada.
Catalogação na Publicação
Biblioteca Celso de Rui Beisiegel
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
C574
Cinema negro: D’África à diáspora – o pensamento antirracista de
Kabengele Munanga / Organizado por Celso Luiz Prudente,
Rogério de Almeida. -- São Paulo: FEUSP, 2023.
491 p.
ISBN 978-65-87047-56-0 (E-book)
DOI: 10.11606/9786587047560
1. Cinema 2. Educação 3. Cinema negro 4. Cultura Afro-brasileira
5. História Afro-brasileira 6. Antirracismo I. Prudente, Celso Luiz II.
Almeida, Rogério de III. Título
CDD 22. ed. 37.045
Ficha elaborada por: Nicolly Leite – CRB-8/8204
Universidade de São Paulo
Reitor: Prof. Dr. Carlos Gilberto Carlotti Junior
Vice-Reitora: Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda
Faculdade de Educação
Diretora: Profa. Dra. Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto
Vice-Diretor: Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto
Avenida da Universidade, 308 - Cidade Universitária - 05508-040 – São Paulo – Brasil
E-mail: spdfe@usp.br / http://www4.fe.usp.br/
FEUSP
SUMÁRIO
Em maio
Oswaldo de Camargo
10
Apresentação
12
A conscientização na luta antirracista
14
Filmes da 19ª Mostra Internacional do Cinema Negro
15
Músicas
25
Bola de Nieve, expressão cultural de um Caribe sem fronteiras: pianista,
cantor, chansonnier, compositor y otras cositas más - uma pesquisa se
fazendo
Afrânio Mendes Catani
33
“Quando tá seco logo umedeço, eu não obedeço porque sou molhada”:
Semiótica interligando histórias de mulheres, de negritudes e do mundo
LGBTQUIA+
Ailton Dias de Melo; Alessandro Garcia Paulino; Cláudia Maria Ribeiro
67
Empoderamento e representatividade na animação Zarafa: a importância
de narrativas diversificadas para crianças negras
Ana Clara Franco Nunes; Ester Eva Pereira; Leonardo Ribeiro Batista;
Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos
89
Sustentabilidade racial e educação antirracista: um ensaio sobre atitudes
decoloniais
Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos
97
Representações socioculturais da Afro-América: a terceira raiz na
perspectiva do documentário etnográfico
Humberto Thomé Ortiz; Roberlaine Ribeiro Jorge
111
Negrum3 - Por uma Pretagogia de saberes em corpos negros LGBTQIA
Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita; Edileuza Penha de Souza
139
Carolina Maria de Jesus: educação para a resistência
Michelle Júlia de Sousa; Hugo Cesar Bueno Nunes; Douglas Manoel
Antonio de Abreu Pestana dos Santos
159
Nosso olhar vem de longe: a estética existencial no filme Chikwembo
(moçambique)
Júlio César Boaro; Rogério de Almeida
174
A importância da trilha sonora de Barravento na sensibilização da
educação musical
Alexandre Siles Vargas; Celso Luiz Prudente
192
A literatura infantil nos anos inicias na construção da identidade negra:
A representatividade positiva dos aspectos étnicos e culturais da
população negra como empoderamento identitário
Alexsandra Bruna de Assis Campos; Rubia Helena
Naspolini Coelho Yatsugafu
214
As lutas de imagens das minorias versus a política da educação
monocultural: as relações étnico-raciais postas em questão
Celso Luiz Prudente
238
Educação para o direito e o cinema negro
Douglas Martins de Souza; Michel Leite Viana; Luiz Sales do Nascimento
258
Batucada de Nego Véio: memórias do samba e masculinidades na zona
leste de São Paulo
Fernando de Paula Manelichi; Elizabete Franco Cruz
282
O Conceito de Verdade entre os Gregos Antigos: Mito e História na
Representação do Negro no Cinema
Flávio Ribeiro de Oliveira
313
Cinema na Educação Infantil: a construção da cultura a partir da 329
representatividade do personagem Kiriku
Karla Isabel de Souza; Rogério Garcia Fernandez
O Povo negro sob a ótica de intelectuais brasileiros – O reconhecimento 347
da (des)armonia
Laudicéia Fagundes Teixeira; Fábio Santos de Andrade; Reginaldo
Santos Pereira
Um olhar para a negritude: o caminhar de um homem em defesa da 365
equidade racial
Maria Francisca Morais de Lima; Luiz Carlos Ferreira
Notas sobre o pós-abolição no cinema a partir do filme “O fio da memória” 374
(1991), de Eduardo Coutinho
Robson Pereira da Silva; Grace Campos Costa; Lays da Cruz Capelozi
Luiz Gama: o contributo civilizatório da negritude como 406
uma contra-perspectiva da missão civilizadora ocidental
Ana Vitória Luiz e Silva Prudente; Alexandre Filordi de Carvalho
O cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas que 430
reverberam silenciados e revelam invisibilidades
Antonio Luiz do Nascimento
Sonhar nas Sombras, Alcançar o Estrelato. O Cinema na Vida 446
de Milton Gonçalves
Elaine Pereira Rocha
A Presença Negra na Amazônia: história, lutas e resistência 473
Maria Aparecida Costa Oliveira, Gisely Storch do Nascimento,
Fábio Santos de Andrade e Celso Luiz Prudente
Educação e cidadania: sobre acolhimento e respeito em ações afirmativas 484
João Carlos Salles
O ensino da cultura popular para a superação do racismo estrutural
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
496
Racismo e antirracismo no cinema à luz de Kabengele Munanga
Ana Claudia da Cruz Melo, Carmen Lucia Souza da Silva
e Ádria Sofia Dias Lage
510
Ficha Técnica
528
Comissão Científica Mostra Internacional
do Cinema Negro – MICINE
529
Ficha Técnica SESI
532
Em Maio
Oswaldo de Camargo1
Já não há mais razão para chamar as lembranças
e mostrá-las ao povo
em maio.
Em maio sopram ventos desatados
por mãos de mando, turvam o sentido
do que sonhamos
Em maio uma tal senhora Liberdade se alvoroça
E desce às praças das bocas entreabertas
e começa:
“Outrora, nas senzalas os senhores...”
Mas a Liberdade que desce às praças
nos meados de maio,
pedindo rumores,
é uma senhora esquálida, seca, desvalida
e nada sabe de nossa vida.
1 O mais antigo literato negro vivo. O poema intitulado “Em maio” foi publicado originalmente no livro:
CAMARGO, Oswaldo de. 30 poemas de um negro brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022,
p.111/112.
10
em maio
Oswaldo de Camargo
A Liberdade que sei é uma menina sem jeito,
vem montada no ombro dos moleques
ou se esconde
no peito em fogo dos que jamais irão
à praça.
Na praça a Esperança se encolhe
ante o grito “Ó bendita Liberdade!”
E esta sorri e se orgulha, de verdade,
do ‘muito’ que tem feito...
11
Apresentação
Este livro surge em concomitância à 19ª edição da Mostra Internacional do
Cinema Negro (MICINE) e tem a sua significação em um processo dialógico com os
impactos dos 20 anos da lei 10.639/2003, que dispõe sobre a obrigatoriedade em todo
território nacional brasileiro do ensino da história da África e da cultura afro-brasileira.
A possibilidade de atender essa necessidade implicou na compreensão da
capacidade pedagógica dos movimentos sociais, que é a principal fonte dialética do
processo democrático, com um ensinamento civilizatório que aponta o caminho
da contemporaneidade inclusiva, contribuindo para a superação do anacronismo
excludente, herdeiro de um processo patogênico favorável a uma entropia no tecido
institucional por insuficiência de oxigenação nas veias da democracia, o que favoreceu
a negação das relações polissêmicas próprias da identidade fraterna, de tal sorte
que, assim, os elementos da violência da dominação se sobrepuseram às substâncias
identitárias da solidariedade.
Esse fenômeno, que se evidencia em preconceitos, notadamente o racismo, é
inegavelmente um fator prejudicial para a compreensão do sentido pátrio do respeito
ao outro necessário para a coesão na dinâmica fraterna, solidária e fundamental no
projeto de nação, que no caso específico do Brasil, um país multirracial, implica na
consciência de respeito à diversidade e no convívio transigente com a multiplicidade
específica de nossa nacionalidade.
Essa situação é percebida na escolaridade monocultural, cuja contradição é
resultado da história única que vem sendo impactada pela força disruptiva dos esforços
de amplitude holística da construção da imagem do outro a partir do seu contributo de
sujeito, que encontrou sentido legal na lei 10.639/03, alterada pela lei 11.645/08.
12
apresentação
19a Mostra Internacional do Cinema Negro
O quadro patológico que caracteriza as relações sociais da atualidade tensiona
os esforços para aprofundar as relações humanas, contradição que ainda é percebida
no modo ambíguo como o racismo se manifesta em nossa sociedade. Como lembra
Kabengele Munanga, embora o brasileiro não se reconheça racista, age com certa
naturalidade diante de processos e ações francamente racistas.
É por isso que a educação se torna o principal campo de combate dos preconceitos,
principalmente os raciais. É nessa linha de compreensão que se evidencia as duas décadas
da lei 10.639/03 e os 19 anos de Mostra Internacional do Cinema Negro, ações que se
entrelaçam na busca de ações afirmativas para a questão étnico-racial.
Nesse contexto, este livro, inspirado na MICINE, homenageia o professor
Kabengele Munanga, pela imensurável contribuição de seu legado, que se evidencia
na criação de uma pedagogia antirracista, importante forma de luta que emana de sua
trajetória como professor de Antropologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.
Os organizadores
13
A conscientização na luta antirracista
Com a criação e curadoria do Prof. Celso Luiz Prudente, a Mostra Internacional
do Cinema Negro – MICINE chega à sua 19ª edição em 2023, dando continuidade
ao trabalho cultural e acadêmico realizado ao longo dos anos. O projeto, que visa
principalmente o cinema negro, abrange exibições de filmes, mesas de debates, palestras
e a produção de um livro sobre a temática.
O tema de 2023 é “D’África à diáspora: o pensamento antirracista de Kabengele
Munanga”. O propósito é observar a dinâmica das relações étnico-cinematográficas da
africanidade. Kabengele Munanga é professor e antropólogo que trouxe para o Brasil
o estudo do racismo na Universidade de São Paulo – USP, com o intuito de contribuir
para a superação da desigualdade social, promovendo o respeito à diversidade em um
país multirracial como o Brasil.
A proposta também é dialogar sobre os impactos dos 20 anos da Lei 10.639/2003,
que trata da obrigatoriedade do ensino no Brasil da história da África e da cultura afrobrasileira.
O SESI-SP é uma instituição que trabalha pela educação de forma ampla, e onde
a cultura é parte importante desse processo. Desta forma, a parceria com a Mostra
Internacional do Cinema Negro - MICINE e todos os projetos desenvolvidos pela
instituição visam à formação de novos públicos em artes, democratizar e ampliar o
acesso à cultura, além de incentivar a produção e a difusão de obras das mais variadas
vertentes artísticas.
SESI-SP
14
Filmes da 19a Mostra Internacional do Cinema Negro
Longa-metragem
Andança os encontros e as memórias de Beth Carvalho
Brasil, 2023, 115min. Documentário
Direção: Pedro Bronz
Sinopse: Beth Carvalho, a “Madrinha do Samba”, foi uma das maiores sambistas do
Brasil, ajudou a revelar grandes nomes e a revitalizar o gênero musical. Sua sensível
capacidade de percepção da realidade fez com que ela própria documentasse os ilustres
encontros ao longo dos seus 53 anos de palcos e pagode. As imagens do documentário
são parte desse vasto acervo pessoal nas mais diferentes mídias: super-8, vh-s, minidv, k7 e fotos. O filme se debruça sobre esse material de Beth Carvalho para traçar um
recorte único, íntimo da carreira e da vida dessa singular figura da cultura nacional.
Classificação indicativa: 12 anos
Awurê na Bahia
Brasil, 2021, 138 min., documentário
Direção: David Obadia
Sinopse: Nossa viagem pela Rota do Samba de Roda nos presenteou com incríveis
encontros, profundos saberes e inesquecíveis histórias, mas sobre tudo nos nutriu de
aprendizados que levaremos por toda vida.
Classificação indicativa: livre
15
filmes
19a Mostra Internacional de Cinema Negro
Cidade Correria
Brasil, 2020, 83 min., ficção
Diretora: Juliana Vicente
Elenco: Daniela Joyce. Hugo Bernardo, Igor da Silva, Jardila Baptista, Karla Suarez,
Livia Laso, Marcelo Magano, Patrick Sonata, Thiago Rosa, Vanessa Rocha, Adriana
Schneider, Lucas Oradovchi.
Sinopse: Cidade Correria é Brasil pulsante e radicalmente coletivo. Por dentro do
processo do espetáculo, o encontro do transbordamento das urgências cotidianas,
contradições, alegrias, delírios, feridas e potências através da voz e nascimento do
Coletivo Bonobando, grupo inspirador que se expande do palco para o mar, do mar
para a cidade, da cidade para a tela.
Classificação indicativa: livre
“Os Filhos de João” - O admirável mundo novo baiano
Brasil, 2009, 75 min., documentário
Direção: Henrique Dantas
Sinopse: A trajetória dos Novos Baianos, grupo encabeçado por Pepeu Gomes, Baby
do Brasil, Moraes Moreira, Luiz Galvão e Paulinho Boca de Cantor. Nos anos 1970, a
banda ganhou um padrinho famoso e influente: João Gilberto.
Classificação indicativa: 14 anos
A Mãe de todas as lutas
Brasil, 2020, 84 min., documentário
Direção: Susanna Lira
Sinopse: Uma narrativa que recorre à memória para vislumbrar um futuro de mudanças
sob a ótica feminina. O filme acompanha a trajetória de Shirley Krenak e Maria Zelzuita,
mulheres que estão na frente da luta pela terra no Brasil. Shirley trazem a missão de
honrar as mulheres e a sabedoria das Guerreiras Krenak, da região de Minas Gerais.
Maria Zelzuita é uma das sobreviventes do Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará,
e suas trajetórias nos ligam ao conceito da violência e apropriação do corpo feminino.
Classificação indicativa: 14 anos
16
filmes
19a Mostra Internacional de Cinema Negro
Memórias Afro-Atlânticas
Brasil, 2019, 76 min., documentário
Direção: Gabriela Barreto
Elenco: Babá Nino de Oxumarê, Ialorixá Gbala-mi, Luiz Pepeu, Mãe Carmen Oliveira
da Silva, Makota Mama, Mameto Kamurici, Gabi Guedes, Monica Millet, Nancy de
Souza e Silva (D. Cici), Taata Zinge, Takuyra Costa, Tamoacy Costa, Tanael Costa,
Valmir Pereira dos Santos, Xavier Vatin, Yeda Pessoa de Castro.
Sinopse: “Memórias Afro-Atlânticas” segue os passos da pesquisa conduzida na Bahia
no início da década de 1940, pelo linguista afro- americano Lorenzo Turner (18901972). Ao longo de meses de trabalho, Turner acumula preciosos registros em áudio e
fotografia, retratando a experiência linguística e musical de personalidades como Mãe
Menininha do Gantois, Joãozinho da Goméia e Manoel Falefá. Através de imagens e
sons raros, o documentário revisita terreiros de candomblé registrados por Turner e
reencontrarem a nascentes e memórias vivas quase 80 anos depois.
Classificação indicativa: livre
Mimbó
Brasil, 2022, 53 min., documentário
Direção: Chico Rasta
Sinopse: Após fugirem de fazendas em Pernambuco, três pessoas escravizadas andaram
680 quilômetros até chegarem ao Piauí. Durante 30 anos eles viveram escondidos numa
caverna e fundaram a comunidade do Mimbó. Hoje seus descendentes lutam por seus
direitos
Classificação indicativa: livre
Vivendo no limite
Cuba, 88min. Documentário
Direção Belkis Vega
Tradução: Kelvin dos Santos Valentim, Kathy Yvonne Meza Trafian Santos
Tradução e Edição: Karla Isabel de Souza
Sinopse: O conflito entre a vida e a morte é um grande conflito da existência humana
Classificação indicativa: 12 anos
17
filmes
19a Mostra Internacional de Cinema Negro
MÉDIA-METRAGEM
KABENGELE o griô antirracista
Brasil, 2023, 27m24s, documentário
Direção: Celso Luiz Prudente
Sinopse: Uma observação crítica e reflexive da trajetória de um antropólogo, Kabengele
Munanga, que vem do Congo, em razão de uma perseguição implacável da ditadura
local. Mas se torna uma referência acadêmica na USP, na luta antirracista junto com o
movimento negro brasileiro.
Classificação indicativa: livre
Caminhos Afrodiaspóricos pelo Recôncavo da Guanabara
Brasil, 2022, 20 min., documentário
Direção: Wagner Novais
Elenco: Sophia Martins, Renan Dionata, Mãe Celina de Xangô, Renato Noguera, Helena
Theodoro, Dandara Suburbana e Monica Lima.
Sinopse: Carmem, uma viajante do tempo, reúne dados para a criação de uma
mitologia afrodiaspórica no território da Pequena África. Em suas andanças, reúne um
legado ancestral, descobre que o tempo é cíclico e que todos podem contribuir para um
future melhor.
Classificação indicativa: livre
ẸnitíLànà - aquele que abre o caminho
Brasil, 2022 39m42s, documentário
Direção: Filipe Brito
SINOPSE A Web série resgata memória e resistência da luta antirracista no Brasil por
meio da figura de Rafael Pinto. A produção, dividida em 4 capítulos, apresenta a trajetória de uma das lideranças mais importantes do movimento negro brasileiro e conta com
depoimentos de Sueli Carneiro, Milton Barbosa, Edna Roland, entre outros.
Classificação indicativa: Livre
18
filmes
19a Mostra Internacional de Cinema Negro
Ewé de òsányin: o segredo das folhas
Brasil, 2021, 22 min., Aventura/animação
Direção: Pâmela Peregrino
Elenco: Òsányìn: MAROON, Esù: Yuri Kevin, Caipora: Janaina Truká-Tupan, Véia:
Alzení Tomáz, Criança das Folhas: Natalia Fróes, Cientista: Sílvia Janayna Ilébomim,
Som de crianças: Arthur Felipe Melo da Silva, Marcos Paulo Souza Siqueira, Caiê Lima
Souza, Samuel Jonatas Santos da Silva.
Sinopse: Uma criança nasce com folhas em seu corpo e sua mãe busca a cura. Na
escola, porém, as outras crianças a discriminam e ela foge para mata! Na Caatinga,
encontra seres encantados de tradições indígenas e negras e caminha numa aventura
de autoconhecimento. Sua busca a leva até Òsányìn, o Orisà das folhas, que apresenta o
poder das plantas e a importância da preservação ambiental.
Classificação indicativa: livre
#ForaCargill
Brasil, 2022, 35min. Documentário
Direção: Francisco Weyl
Sinopse: #FORACARGILL tem como cenário as ilhas do município de Abaetetuba
afetadas pela construção do Terminal de Uso Privado da empresa Norte americana
em território do Programa de Assentamento Agro-Extrativista Santo Afonso, na Ilha
do Xingu, Município de Abaetetuba, onde vivem e trabalham cerca de 200 famílias,
numa área de 2.705,6259 hectares. O DOC contrapõe o projeto privatista a um mundo
coletivo, ancestral, de conhecimentos e saberes próprios, ameaçado de desaparecer,
bem como essas comunidades tradicionais se organizam e como lutam para conquistar
acesso e permanência à terra, os impactos ambientais e sociais causados pela construção
do porto, portanto, é através das falas das lideranças e das pessoas da comunidade,
inclusive as ameaçadas, que o narrar os conflitos e perigos aos quais estão submetidas as
comunidades locais na Amazônia Paraense.
Classificação indicativa: 12 anos
19
filmes
19a Mostra Internacional de Cinema Negro
Tributo a Januário Garcia
Brasil, 1969, 34 min., documentário
Direção: Dom Filó
Elenco: Januário Garcia.
Sinopse: Uma homenagem a Januário Garcia, Fotógrafo brasileiro com extensor
trabalho nas áreas de publicidade, música e documentação de afrodescendente sem
âmbitos social, político, cultural e econômico. Ele participava de importantes espaços
de memória, arte e cultura do povo negro além do âmbito profissional. “Na minha
geração ninguém vai poder falar que o negro não tem memória, porque vai ter. Eu vou
fazer essa memória” Januário Garcia.
Classificação indicativa: 14anos
Nhinguitimo (O Vento Sul)
Moçambique, 2021, 23 min., ficção
Direção: Licinio Azevedo
Elenco: Antonio Sitoi, Jorge Vaz, Ivan Barrama, Antonio Cabrita, Luis Sarmento,
Silvana Pompal, Nurodine Daude, Joana Manhiça, Vitor Tomás.
Sinopse: Moçambique, 1960. Nas noites quentes, na pequena vila no fértil vale do rio
Incomati, os homens reúnem-se na cantina do Rodrigues, dividida em duas partes.
Uma das partes, com balcão frigorífico, o único da vila, com boas mesas e cadeiras
confortáveis, é apenas para os brancos, os chefes da administração colonial. A outra
parte, sem nenhum conforto, é para trabalhadores agrícolas e jovens moçambicanos
da vila, frequentada também por prostitutas. Num e noutro lado, as conversas incidem
sobre a colheita do milho que se aproxima. Vírgula Oito, trabalhador da machamba do
Rodrigues, mas que tem a sua própria machamba na “Reserva Indígena”, vangloria-se
da fertilidade da sua terra, irrigada pelas águas do rio, revela planos sobre o que fará
com o dinheiro da venda do milho, que inclui casar-se com a sua apaixonada. Os seus
planos não se realizam, pois o próspero cantineiro convence o administrador da vila a
passar para os colonos as terras da reserva. Vírgula Oito enlouquece, tomado por uma
fúria assassina.
Classificação indicativa: livre
20
filmes
19a Mostra Internacional de Cinema Negro
Se essa rua fosse minha
Brasil, 2022, 39 min., documentário
Direção: Julia Lea de Toledo
Elenco: Romeu de Medeiros, Cristina Costa, Custódio Cândido e Márcio Careca.
Sinopse: No centro do Rio de Janeiro, longe dos típicos cartões postais da “Cidade
Maravilhosa”, uma pequena rua revela uma cidade diferente. Nela, Romeu, fluent
em inglês, vive a condição de morador de rua; Cristina, companheira em todos os
momentos, denuncia a miséria que os cerca. Careca manobra os carros dos pacientes
de uma clínica médica enquanto pede proteção às suas entidades religiosas. Custódio,
ou Botafogo para os íntimos, passa seus dias preocupados com a possibilidade de uma
ação de despejo enquanto deposita sua fé nas apostas do jogo do bicho. Essas quarto
figures convivem numa movimentada rua de um bairro em acelerada deterioração, e
seus dramas pessoais, diariamente, se cruzam.
Classificação indicativa: 10 anos
CURTA-METRAGEM
A Arte Alimenta a Vida
Brasil, 2022, 12 min., documentário
Direção: Éder Santos e Dones Santos
Sinopse: A formação política exige tempo e dedicação. Em tempos de desmontes dos
direitos conquistados, a resistência dos povos indígenas é exemplo de enfrentamento.
O que está em jogo é mais que a democracia: é nossa sobrevivência. O filme traz o
pensamento e a obra do artista Dones, indígena arte-educador que traduz sua tradição
ancestral contribuindo para a afirmação da imagem positiva da luta dos povos originários
do Brasil.
Classificação indicativa: Livre
Bigorrilho
Brasil, 2023, 7m53s, documentário
Direção: Leonne Gabriel e Guarani Ribas Prado
Sinopse: Na rotina do taxistaTangerina o tempo deixa de ser absoluto e passa a ser
relativo. A percepção da velocidade das horas oscila ao longo do dia no ponto de taxi em
21
filmes
19a Mostra Internacional de Cinema Negro
Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro (Brasil). O novo e o velho, o passado e o future
estão sobrepostos e não passam de uma mera ilusão da percepção do tempo.
Classificação indicativa: livre
Como desaparecer completamente
Brasil, 2022, 18 min., ficção
Direção: Kalel Pessôa
Elenco: Beatriz Negrão, Maiteh Gil e Natalia Souza.
Sinopse: é uma releitura surreal e metafórica do romance de ficção Brilho Eterno de
uma Mente Sem Lembranças. O filme conta a história de Helena, uma jovem que,
tomada pelo fantasma da culpa, decide se submeter a um procedimento que apagará
as lembranças que ela tem de sua ex-namorada Celeste. A partir daí, o filme começa a
recontar partes da trajetória e das memórias do casal, da memória mais recente até a
memória mais antiga. E quanto mais o procedimento continua, mais as memórias ficam
deterioradas, como uma película de filme que se desgasta com o tempo.
Classificação indicativa: 16 anos
Flores para minha mãe
Macau/China, 2021, 12m23s, documentário
Direção: Vitória Santos
Sinopse: Trata-se de um documentário que aborda a questão do trabalho doméstico
em Macau, apresentando um curto percurso de vida de três trabalhadoras domésticas,
que partilham as suas experiências, anseios e esperanças. O trabalho doméstico é
comumente mal remunerado e sem garantias trabalhistas, apesar de ser essencial à
economia local. As três trabalhadoras domésticas entrevistadas interpelam-nos pelo
exemplo de abnegação e entrega às famílias que amparam com o seu trabalho enquanto
prestam total dedicação e sustento às suas próprias famílias, presentes ou distantes. Estas
trabalhadoras representam flores que florescem em meio da adversidade sendo, portanto, as
mais raras e bonitas.
Classificação indicativa: 12 anos
22
filmes
19a Mostra Internacional de Cinema Negro
Ladrão
Brasil, 2022, 19m38s, Ficção
Direção: Felipe Cordeiro
Sinopse: As angústias e dilemas de um trabalhador de aplicativo do ramo de entrega de
refeições, que tem sua moto roubada durante uma das entregas.
Classificação indicativa: 12 anos
Lua
Brasil, 2017, 6m14s, documentário
Direção: Rosa Miranda
Elenco: Lua Guerreiro.
Sinopse: Documentário onírico sobre as vivências de infância e o momento de sua
transição de gênero de Lua Guerreiro, trans, não binária que se expressa pelo que é
considerado feminino.
Classificação indicativa: livre
Marielle presente – eu sou porque nós somos
Brasil, 2019, 8 min., documentário
Direção: Dom Filó e Pedro Oliveira
Sinopse: Muitas Marielles nasceram após a sua morte, transformando em realidade o
respeito aos direitos humanos e abrindo novos caminhos para o combate as desigualdades
em nosso país.
Classificação indicativa: 10 anos
Nome Sujo
Brasil, 2022, 14 min., ficção
Direção: Artur Roraimana
Sinopse: Lucas é um jovem adulto que precisa lidar com a responsabilidade de
trabalhar para se sustentar. Quando uma câmera que ele queria muito comprar entra
em promoção, o jovem inicia uma busca por meios de realizar seu desejo.
Classificação indicativa: 16 anos
23
filmes
19a Mostra Internacional de Cinema Negro
A Obra
Portugal, 2022, 13m43s, documentário
Direção: Carolina Rosendo
Sinopse: O que de si trazemos homens que constroem as casas de Lisboa.
Classificação indicativa: Livre
Romão
Brasil, 2022, 10min., documentário
Direção: Clementino Júnior
Elenco Marços Romão
Sinopse: Marcos Romão, personagem importante da militância negra no Brasil e que
atuou em outros países, faz uma breve reflexão sobre as diferenças do combate ao
racismo ao longo de 4 décadas de abertura política.
Classificação indicativa: livre
24
Músicas da Mostra
Músicas tema da 19ª Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE
MAR DO RECÔNCAVO
Música: Anderson Brasil / Celso Luiz Prudente
Interprete: Vanessa Moreno, Josiara, Anderson Brasil
A ema gemeu no tronco do jurema, a ema gemeu no tronco do jurema (2x).
Foi na beira do Rio que a menina cresceu, tomou banho de Lua e um beijo ela me deu.
Foi quebrando essa coco que a menina aprendeu a sambar, pisando no barro ancestral
como vovó ensinou.
Pedindo a benção ao mais velho, dançando com pescador, catando a concha bonita,
sorrindo para o mar.
É vida que dinheiro não paga, é tempo que Kitembo que conta, é sonho não quero
acordar. Menina...não pise na direita, deixa o teu passo na esquerda pra gente ser feliz
Menina...não pise na direita, deixa o teu passo na esquerda pra vida melhorar
25
músicas
19a Mostra
Ilha do amor
Música: Rogério Almeida/Anderson Brasil/Lula Barbosa/Celso Luiz Prudente
Interprete: Fabiana Cozza acompanhada pelo instrumentista clássico Fi Maróstica
Seja mais bacana,
Tenha aroma de cana
A fé coletiva no amor,
Ilha doce livre Havana,
No mar do sonho há amor,
Tenho uma semente de fé cuba no meu coração
Sonhamos em lá bodeguita...
Hálito de mojito do mar
Cantando tocando na tez cor de canela
Da ilha a mais aberta janela Todos os corações batem pra ela
No sonho que é fiel sonhamos com todas as corres
Fidelidade as flores
Coração comandante da paz
Que na ilha se faz a mais profunda lição de amor
A fé coletiva do amor ilha doce livre Havana,
Ilha doce livre Havana.
26
músicas
19a Mostra
O Barqueiro Negro
Música: Anderson Brasil/Celso Luiz Prudente
Interprete: Paulo Ronqui e Grupo Metallumfonia da UNICAMP
A todos os barcos que estão além-mar
Escrevo uma carta, um conto de amor
Sobre um pescador, que sorri pros anzóis
Esquece a razão, se rende a maré
O barqueiro negro oculta segredos sobre uma presença
Que está nas águas, tem canto sereno, acalma as ondas
Mas o mar é a gota de luz
Do sorriso da Lua
Que no sonho de amor brinca nua
Na praia do pescador há fé, há paixão, há amor.
Os faróis têm verdade, nos levam pra casa...
Sussurro do mar.
27
músicas
19a Mostra
Lua negra
Música: Rosa Marya Colin /Anderson Brasil /Celso Luiz Prudente
Interprete: Paulo Ronqui e Grupo Metallumfonia da UNICAMP
Você nem notou, nem sequer ouviu, o que te falei do nosso jardim, do aroma do Éden,
não lembrou do dia em que eu conheci você Adão.
Eu sou uma lua no céu da sua boca, onde o clarão da noite guarda o mistério do dia.
Eu sou a pérola negra que você furtou, do lindo vaso banto.
Depois fez de mim escreva com egoísmo de quem não conhece o amor.
Negou o que sou... Eu sou a Lua Negra, irreverente de amor, livre na felicidade.
Eu tenho meu jeito, o meu jeito livre de ser mulher oh Adão, eu tenho meu jeito,
o meu jeito livre de ser mulher oh Adão.
Mas hoje sei o amor é sagrado, e há sempre tempo para o meu coração oh Adão.
Oh! Adão oh! Adão
28
músicas
19a Mostra
O magrelo (Músicas da 18ª Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE)
Música: Anderson Brasil /Celso Luiz Prudente
Interprete: Anderson Brasil
Participação Especial: Ivan Sacerdote
Arranjo: Anderson Brasil
Menino magrelo aparece à costela, a fome não conseguiu lhe vencer
Andava descalço na beira da estrada, sonhava um dia ser jogador
Amava a vida, o menino amava a vida
Amava a vida, sonhava ser jogador...
Brincava feliz numa poça de lama, ele encantava animais
Dinheiro não tinha, mas ele era rico, pois, ele tinha os avós
Amava a vida, sonhava ser jogador....
Um dia cruzou com fuzil, mas a bala não tinha um dono
Morreu mais um Francisco, um filho do Brasil
Morreu, mas uma criança numa favela do meu Brasil
Morre Chico, more João, morre um pouco do meu coração
Morrem Marias no alemão, morre o preto, morre o pobre
Morre o sonho de nação
Sua pipa voa, na imitação, pássaro Sansa Kromá, que protege o coração
No canto do Banto, o mais onírico, livre e lúdico, do magro negro erê.
O mais onírico livre e lúdico, do magro negro erê
29
músicas
19a Mostra
Ibeji
Música: Anderson Brasil /Celso Luiz PrudenteI
nterprete: Tiganá Santana
Percussão: Emanuel Magno Stanchi
Violino: Mário Soares
Piano: Edson Filho
Violão: Anderson Brasil
Arranjo: Anderson Brasil
Mixagem: Fábio Gonçalves
Aqui é um menino preto sozinho
Na dor da orfandade eu plantei uma semente do bem
No jardim do meu coração
Deus fez brotar no menino
O cachimbo do sábio ancião
O ensino da magia ancestral
Faz dele o mestre sala que vem
Com a elegância gentil de uma porta bandeira que dança no carnaval
Eu não sou saci pererê,
Sou erê, Ibeji,
Quero brincar com você,
O pretinho sabia que na praça,
Na escola, na feira, na igreja e na galeria
A indiferença é a feição desta branca burguesia
Como é triste a branca solidão
Rica e fria Margarida que brota como bem de quem tem a raiz da mais-valia
A perna que falta é o carinho
Sociedade é madrasta do pretinho
Flor da meritocracia cheira mal
No rico vaso dourado da desigualdade racial
Eu não sou saci pererê
A avó Nanã contou pé pé pé pé pé pé pelezinho,
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músicas
19a Mostra
Duas pernas geniais do Pelé,
Minha avó Nanã contou pé pé pé pé pé pé pelezinho
Duas pernas geniais do Pelé,
Pelezinho, pelezinho, pelezinho, pelezinho, pelezinho, pé, pé.
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músicas
19a Mostra
Fina Beleza (Músicas da 17ª Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE)
Anderson Brasil e Celso Luiz Prudente
Interprete: Fabiana Cozza
Músico: Fi Maróstica
O Griô cantou, sua boca banto escreveu
Cantou lá na senzala onde o samba nasceu
O banto canto doce da liberdade
Com luta consciência plantou
Quando a mão do negro colheu Palmares
Onde brancos pobres e negros com indígenas cantaram,
Pedagogia comunal da afro solidariedade
O samba é alma do Brasil, viu?
O jeito da gente é assim
Mesmo o corpo negro sendo negado aqui
O meu samba acorda até robô, em marte a NASA utilizou, a coisinha do pai.
Beth, o Almir, Luis e Aragão, dom interplanetário da fé da afro perfeição.
Primeiro saber egípcio banto, arte paciente de Deus, sua fina beleza.
O samba é egípcio banto,
Deus conta as suas belezas...
Eu sou o samba, Zé Keti que me disse
Mesmo com o corpo negro negado aqui
Eu sou o samba. Griô Zé Keti resiste
O poeta não muda de opinião
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Bola de Nieve, expressão cultural de um
Caribe sem fronteiras: pianista, cantor,
chansonnier, compositor y otras cositas
más – uma pesquisa se fazendo
Afrânio Mendes Catani
(USP/UERJ/ PQ-CNPQ)1
O objeto central da pesquisa é examinar a trajetória artística de Ignacio Jacinto
Villa y Fernández (11.09.1911 - 02.10.1971), conhecido mundialmente como Bola
de Nieve. Nascido em Asunción de Guanabacoa, município de Cuba pertencente à
província da Cidade de Havana, é o último dos 6 filhos de Domingo, cozinheiro, e
Inés Fernández, que sobreviveu (o casal teve 13 filhos, mas «vingaram» Juliana, Berta,
Domingo, Orlando, Raquel e Ignacio). Raúl Martínez (1986, p. 7) escreveu que Inés era
“...negra, cuentera, organizadora de fiestas y capaz de bailar la mejor
rumba de cajón o el toque de yemanjá, durante sus labores caseros si le
podía oír una romanza de zarzuela, sentada a su máquina de coser o frente
a la batea de ropa; asimismo alimentaba amorosamente a sus seis hijos
sobrevivientes...”.
1 Professor titular aposentado e sênior na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE
- USP), Programa de Pós - Graduação em Educação (PPGE - FE )- USP; Programa de Pós-Graduação
em Integração da América Latina (PROLAM) - USP; Professor titular visitante (2021-2023) junto ao
Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC)
da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ),
campus de Duque de Caxias; Pesquisador PQ do CNPq. E-mail: amcatani@usp.br.
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bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
Bola foi uma das mais ricas expressões musicais caribenhas, apresentando-se
em dezenas de países e gravando quase uma dúzia de discos de “larga duración” (LPs).
Formado em conservatório, desde pequeno deslizou suas delicadas mãos pelas teclas
pretas e brancas de pianos em cinemas, cabarés, teatros, hotéis, filmes, em carreira
solo ou acompanhado por orquestras, privilegiando em especial as vertentes musicais
que desenvolveu: o folclore afro-cubano, boleros e canções de sua autoria e de outros
compositores, versões e interpretações de sucessos internacionais, além da adaptação
musical de poemas de autores conhecidos. Um ataque cardíaco o matou no México,
pouco mais de vinte dias após completar 60 anos.
Pesquiso a respeito de Bola de Nieve há mais de três décadas, desde que fui à Cuba
pela primeira vez, em 1989, em viagem de trabalho na área cinematográfica, participar
de seminário no âmbito do Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano,
Nesses 35 anos transcorridos desde então, voltei algumas vezes ao país, amealhando
muito material acerca da carreira do artista, a saber: livros, artigos de jornais e de revistas,
CDs, anotações, conversas com músicos e estudiosos, diários de viagem, transcrições de
letras de suas canções, além de assistir a filmes, documentários e telejornais em que ele
participou. Materiais complementares foram coletados em outros países - Argentina,
Chile, Espanha, México, Uruguai, Venezuela e Reino Unido -, em distintas ocasiões,
intercaladas com outras pesquisas e atividades (cursos, congressos, conferências, mesasredondas, estágios de pós-doutorado). O exame sintético desse vasto conjunto de fontes
encontra-se em análise no presente momento.
A intenção era realizar, ao longo dos anos 2020 e 2021, viagem de trabalho
à Ilha, com a finalidade de coletar materiais adicionais, checar informações, procurar
documentos, conversar com especialistas etc. Entretanto, a pandemia por Covid-19
impediu a saída do país. Nesse sentido, antes de estabelecer um texto com maior
amplitude analítica, optei por apresentar, nas linhas seguintes, os contornos gerais da
investigação, bem como uma parte significativa das fontes de pesquisa - referências
bibliográficas, filmes em que Bola de Nieve participou de forma direta ou indireta,
documentários sobre ele, além de detalhar sua discografia, listando o conjunto das
canções gravadas por Bola que consegui localizar e mapear até agora. Entendo que
ainda é possível amealhar mais material a respeito do artista de Guanabacoa, razão pela
qual ainda não redigi o texto final.
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bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
A partir de meu longo envolvimento com o objeto desta pesquisa, posso afirmar
com convicção que para se compreender de forma plena o conjunto da produção musical
de Bola de Nieve, assim como sua trajetória profissional no campo cultural cubano nas
décadas de 1930 a 1960, é preciso realizar, igualmente, o estudo da sociedade cubana no
período que antecede à Revolução de 1959, pesquisar alguns dos principais artistas que
deixaram o país em razão da nova ordem social e econômica, além dos gêneros musicais
predominantes, exigindo uma forma de análise em que as fronteiras entre vários
campos do conhecimento - sociologia, história, economia, música, literatura, cinema adquirem grande dose de porosidade. No que se refere à literatura, por exemplo, penso
ser indispensável estudar autores como Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), José
Lezama Lima (1910-1976), Severo Sarduy (1937-1993), Reinaldo Arenas (1943-1990),
dentre outros, além de, quanto aos gêneros musicais, não se olvidar da salsa, do mambo,
do chá-chá-chá, do próprio “latin jazz” que, aqui e ali, dialogam constantemente com
Bola. Também as grandes orquestras, os arranjadores e os programas de rádio são
relevantes nesse sentido, em razão das andanças do músico por distintos ambientes
habaneros e por outros sítios nacionais e internacionais.
No livro Cuatro músicos de una villa, Leonardo Depreste (1990) fala na
apresentação que Guanabacoa, que se situa do outro lado da Baía de La Habana, “es
una tierra de santería”, uma cidade de fortes raízes artísticas, e desde os anos de 1920,
aproximadamente, vem sendo um laboratório musical. Além de Ernesto Lecuona (18951963), “el maestro”, Rita Montaner (1900-1958), “la única”, Bola de Nieve (1911-1971),
“con su sonrisa y su canción” e de Juan Arrondo (1914-1979), “el enamorado del amor”,
revelou uma grande quantidade de figuras de prestígio e de renome internacional nos
domínios da música: José Mateu, fundador de um conservatório e professor no mesmo
local; José Alemán, contrabaixista; José Echániz, pianista; Gerardo Guanche, maestro e
diretor; Juan de Diós Alfonso, clarinetista e diretor de orquestra.
Bola de Nieve trabalhou ininterruptamente por mais de 45 anos, desde
o início de suas atividades profissionais, fazendo de tudo nos palcos e nos estúdios.
Aos 12 anos iniciou seus estudos de solfejo e teoria musical com o maestro Gerardo
Guanche e, pouco depois, começou a aprendizagem de piano no Conservatório de
José Mateu, situado na rua Adolfo del Castillo, entre Bertematti e Jesús Nazareno, em
Guanabacoa (Martínez Rodríguez, 1998, p. 6). A família mudava-se com frequência
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bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
de residência, pois enfrentavam grandes dificuldades para pagar o aluguel. Em 1927,
Ignacio matriculou-se na Escola Normal para Professores. “Segundo o escritor Miguel
Barnet, os estudos de Bola de Nieve neste centro docente lhe serviram para dotá-lo de
uma cultura integral e de uma visão de mundo muito pessoal (...) Não pode iniciar então
os estudos de Pedagogia na Universidade de Havana em razão dos distúrbios estudantis
e da crise econõmica ocorrida durante a ditadura de Machado e, como jovem pobre e
negro, teve que ganhar o sustento e, também, ajudar economicamente a sua família
trabalhando como pianista no Cine Carral, de sua cidade natal, acompanhando películas
mudas e, mais tarde, como integrante da orquestra de Gilberto Valdés no cabaré La
Verbena, na Avenida 41, em Marianao” (Martínez Rodríguez, 1998, p. 6).
Alguns anos depois, está tocando como pianista de Rita Montaner, que o
convidou para acompanhá-la, com contrato de exclusividade. Em 1933 realizou sua
primeira viagem internacional, ao México, atuando com Montaner no Teatro Politeama.
“E por seu talento e simpatia pessoal obteve a admiração e a amizade de prestigiada(o)s
compositora(e)s, como María Grever, Agustín Lara e Guty de Cárdenas, entre outra(o)
s” (idem, p. 7).
Segundo suas próprias palavras, tinha “voz de manguero”, mas atingia a
excelência no que se refere à interpretação em canções como “Si me pudieras querer”,
“Se equivocó la paloma”, “No puedo ser feliz”, “Mesié Julián”, “Drume, negrita”, “Vete de
mí”, “Mamá Perfecta”, “Epabilate”, “El botellero”, “La vie en rose”, “La flor de la canela”,
“Chivo que rompe tambó”, “Babalú”, “Ay Mamá Inés”, apenas para destacar aquelas que
eram mais solicitadas em suas apresentações.
“El susurro, el grido, el llanto, la alegría, la sonrisa, la risa, la tristeza, el
amor, la jocosidad, lo dramático, lo lírico, se daban las manos en las
interpretaciones singulares de este cubano que ‘salía al escenario dispuesto
a morir’’’ (Ojeda, 1998, p. 86).
Sem ser um cantor no sentido tradicional da palavra, ele alcançava como
intérprete enorme eficácia, aliando técnica, conhecimento musical e excelência
enquanto pianista - dimensão essa que muitas vezes acabou sendo subestimada. Em
suma, “voz y piano se integraban como un todo único, compacto, en sus actuaciones”
(Ojeda, 2018, p.86).
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bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
Ojeda (1998, p. 86-87) lembra, ainda, como já se enunciou em linhas anteriores,
que houve um grupo de compositora(e)s que sempre estiveram presentes no repertório
de Bola, como María Grever, Emilio y Eliseo Grenet, Ernesto Lecuona, Eduardo Sánchez
de Fuentes, Gonzalo Roig, Vicente Garrido, Margarita Lecuona, Moisés Simons, Marta
Valdés, Chabuca Granda, Ary Barroso, Armando Oréfiche, Adolfo Guzmán.
Bola chegou a ser chamado de o Bobby Short da Cuba pré-revolucionária, em uma
Havana em que a vida noturna era dinâmica e milhares de dólares irrigavam as boates
e os night clubs diariamente. O artista, em várias ocasiões, explicitou sua autocrítica,
por vezes dura, que praticava, além de fornecer algumas indicações sobre a escolha de
seu repertório. Procurarei explorar a possibilidade não desprezível, destacada por mais
de um comentarista do conjunto de seu trabalho: sua dimensão de arranjador junto às
principais orquestras cubanas.
No que se refere à sua voz, ao rigor quanto ao repertório e ao modo de executar
as canções, pode-se ler em suas declarações no encarte que acompanha o CD Bola de
Nieve con suspiro (Montilla, 1991), o seguinte: “Não sou exatamente um cantor, senão
alguém que fala as canções, que lhes outorga um sentido especial, uma significação
própria, utilizando a música para realçar a interpretação. Gostaria de ter sido cantor
de ópera, mas tenho voz de camelô, tenho voz de vendedor de pêssegos, de ameixas,
então me resignei a vender ameixas no palco, sentado ao piano (...) Quando a canção
que eu canto com esta voz de camelô fica, a meu juízo, melhor na voz de outro cantor,
eu a saco do meu repertório. Sempre digo que eu não canto, mas que expresso o que as
canções ou pregões ou poemas musicalizados têm em seu interior. Cultivo a expressão
mais que a impressão. Não me interessa impressionar, mas sim tocar a sensibilidade de
quem escuta”.
Uma das observações mais cruéis sobre Bola de Nieve é realizada por Eduardo
Galeano (2007, p. 183-184) que, estando em Havana, foi convidado para a casa do artista,
que lhe fez uma série de perguntas sobre Montevidéu e Buenos Aires. “Queria saber que
era da vida de pessoas e lugares que ele havia conhecido e querido há trinta ou quarenta
anos”. Logo, conta o escritor uruguaio, não tinha mais sentido dizer a Bola “já não existe”
ou “foi esquecido”. Bola também compreendeu, Galeano acredita, porque ele começou a
falar de Cuba, disso que ele chamava de yorubá-marxismo-leninismo, “síntese invencível
da magia africana com a ciência dos brancos”. Contou fofocas e histórias de pessoas
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bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
da alta sociedade que antes lhe pagavam para cantar. Posteriormente, “sentou-se ao
piano. Cantou Drume Negrita, depois cantou Ay, mama Inês e o pregão do vendedor de
amendoins. Tinha a voz muito gasta, mas o piano o ajudava a levantá-la cada vez que
ela caía. Em dado momento interrompeu a canção e ficou com as mãos no ar. Voltouse para mim e com estupor afirmou: ‘O piano acredita em mim. Acredita em tudo,
tudinho’”.
Para a presente pesquisa, em termos indicativos, talvez seja possível classificar
o repertório de Bola de Nieve, a partir do exame do conjunto de suas gravações e
apresentações em shows, em Cuba e no exterior, em quatro grandes vertentes musicais:
1) folclore afro - cubano - são excelentes exemplos, dentre outras, “El
manisero”, “Babalú”, “Drume, negrita”, “Chivo que rompe tambó”, “Ay Mamá Inés”;
2) boleros alheios e de sua autoria - destaques: “No puedo ser feliz”, “Ay,
amor”, “Si me pudieras querer”, “No dejes que te olvide”, “Vete de mí”, “Tú no sospechas”,
“No niegues que me quisiste”; “Aquellos ojos verdes”; “En nosotros”;
3) versões com interpretações pessoais de sucessos originários de vários
países - Itália: “Arrivederci Roma”; “Monasterio Santa Chiara”; Catalunha: “Le
decembre congelat”; Estados Unidos: Be careful, it’s my heart”; “Tenderly” Peru: “La
flor de la canela”; França: “La vie en rose”; Brasil; “Os quindins de yayá”:
4) adaptação musical de poemas de autoria de Nicolás Guillén, Federico
García Lorca, L. A. de la Cruz Muñoz, Rafael Alberti.
No Brasil, Caetano Veloso e Nana Caymmi cantaram e gravaram parte do
repertório do músico cubano (“Ay, amor”, “Drume, negrita”, “Vete de mí”, “La flor
de la canela”) e Nana Caymmi (“No puedo ser feliz”). Na Espanha, o cineasta Pedro
Almodóvar o incluiu como banda sonora nas películas “La ley del deseo” (1987) e “La
flor de mi secreto” (1995).
Além disso, foi montado um show de Fabiana Cozza em 2017, depois ampliado
para algumas outras casas de espetáculos, sobre Bola de Nieve, além dela gravar o CD
“Ay amor!”, com repertório do músico cubano. Em sua primeira montagem foi dirigida
por Elias Andreato e acompanhada pelo pianista Pepe Cisneros, cubano naturalizado
brasileiro.
Em suma, acho que Bola de Nieve, o cantor cubano pouco conhecido por aqui,
ainda vai dar muito o que falar: negro, santero, homossexual, pró-revolucionário, se
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bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
autodefinia “marxista-yorubá-fidelista”. No filme Bola de Nieve (2003), de José SánchezMontes, de onde essa informação foi retirada, um dos depoentes afirma o que Bola era:
“Un ser atormentado que repetía: ‘You soy un hombre triste que canta alegre’”.
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Filme
Bola de Nieve (2003) - Direção: José Sánchez - Montes) - Produção: Cuba/Espanha/
México, 73 minutos.
”Cubano, negro, santero, homosexual, pro-revolucionario y, sobre todo músico”. Esse
é o início da sinopse do documentário, em cujo cartaz pode-se ler quase, como um
subtítulo, o seguinte: “El hombre triste que cantava alegre”.
Programa Radiofônico
“Satélite” - Rádio Cultura FM (103,3 MHz) - Emissão de 04 de Abril de 1992, dedicada
a Bola de Nieve.
Filmografia
A respeito do presente item optei pela transcrição das breves considerações realizadas
por Miguelito Ojeda (1998) a respeito, uma vez que explica de maneira sintética a
participação geral de Bola de Nieve em uma série de produções cinematográficas.
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Afrânio Mendes Catani
Para Ojeda (1998) “ante todo, hay una verdadera escassez de videos, noticieros y otros
materiales sobre el gran artista; esta realidad convierte a los pocos metros de películas
que hemos localizado en documentos históricos” (p. 102).
Segundo o organizador dessa antologia analítica e documental acerca do músico cubano,
“al considerar la aparición de Bola en filmes extranjeros, debemos tener en cuenta que
fueron cintas de un fácil comercialismo y escasos valores artísticos, en las que Bola
de Nieve hacia intervenciones musicales sobre las bases de su repertorio habitual.
Particular importancia tienen, pues, los noticieros señalados, la película Nosotros, la
música, y el dibujo animado Viva papi a la hora de salvar la imagen de Bola de Nieve. Tal
vez, de todos estos materiales, sea Yo soy la canción que canto la más artística y orgánica
presencia del Bola en el cine cubano. (Ojeda, 1998, p. 102-103).
Materiais Fílmicos Breves
1. Bola de Nieve (18 minutos e meio de duração, 200 metros) - Arquivo dos Estúdios
de Animação do Instituto Cubano de Radio y Televisiòn (ICRT). Nesse filme Bola de
Nieve canta “Ay, Mamá Inés”. Canta e dança “El mambo”, em francês. Há cenas de uma
reunião com amigos em sua casa. Ele conta como Rita Montaner lhe colocou o apelido
de Bola de Nieve. Canta outra vez “Ay, Mamá Inés”, agora em sua casa, além de “El
Manisero”. Aparecem várias tomadas sem áudio em que ele atua, fotos junto a Fidel,
com familiares, com Lecuona, em gestos característicos, além de parte de sua atuação na
China. Canta “Mesié Julián” em um estúdio de televisão. “Esta lata termina con escenas
de la llegada del cadáver al aeropuerto, el traslado del ataúd, vistas de las coronas que
le enviaron Fidel Castro y Osvaldo Dorticós y escenas de Guillén mientras despedía el
duelo” (Miguelito Ojeda, 1998, p. 100).
2. Trova Antigua (vários) - Sem data. Existe na Filmoteca del Noticiero Nacional de
Televisión. “En unos 4 pies de película se ve a Bola rodeado de público mientras Nicolás
Guillén hace uso de la palabra en un acto cultural” (Ojeda, 1998, p. 100).
3. Noticiero ICAIC Latinoamericano. Edição # 360, 15 de maio de 1967. Nesse
número do Noticiário do Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficas
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Afrânio Mendes Catani
(ICAIC) Bola de Nieve canta vários números de seu repertório (Ojeda, 1998, p. 100).
4. Noticiero ICAIC Latinoamericano. Edição # 531, 21 de outubro de 1971.
Homenagem póstuma a Bola de Nieve, com cenas do estúdio da Radio Habana Cuba,
onde o artista fez sua última gravação, ao piano. Chegada do féretro no aeroporto; Bola
cantando “La flor de Canela”, “No puedo ser feliz”, “Drume Negrita”. O poeta Nicolás
Guillén “despide el duelo en el cementerio de Guanabacoa donde fue sepultado el artista.
Cenas de Bola em frente a sua casa natal em Guanabacoa e distintos planos do enterro”
(Ojeda, 1998, p. 101) .
B . Filmes em que Bola de Nieve aparece como intérprete de suas músicas ou
em que ocorrem a utilização de suas canções nas bandas sonoras das películas
(como intérprete ou não)
1. Madre Querida (1935) - Dirección: Juan Orol - México, 76 minutos. Productora:
Aspa Films. “Es un clásico en el subgénero de ‘películas de madres’, tan característico de
la producción mexicana, cuyo ‘Himno a la madre’, coreado por los niños de un orfanato
hacía, al parecer, correr ríos de lágrimas” (Kriger; Portela, 1997, p. 404). Intérpretes:
Luisa María Morales, Alberto Marti, Carlos Dominguez, Antonio Licega, Mercedes
Moreno.
2. Adiós Buenos Aires (1938) - Dirección: Leopoldo Torres Ríos - Argentina, 85
minutos. Producción: Cinematográfica Terra. É um musical em que o tango dá o tom.
“Una chica, su novio y un amigo toman una canción desechada y la convierten en
éxito” (Manrupe; Portela, 2001, p. 6). Intérpretes: Tito Lusiardo, Amelia Bence, Floren
Delbene, Esther Borja, Bola de Nieve, Esteban Serrador, Vicente Forastieri, María
Goicochea, Ernesto Villegas, Blanca Mora.
3. Sucedió en La Habana (1938) - Dirección: Ramón Peón - Cuba/México.
Combinação de música, romance e comédia em uma visita guiada aos locais noturnos
mais badalados de Havana. No elenco se destaca a presença de Rita Montaner. Música
de Ernesto Lecuona e Miguelito Valdés, com a inserção de canções de Bola de Nieve.
4. El Romance del Palmar (1938) - Dirección: Ramón Peón - Cuba/México, 90
minutos. Producción: Películas Cubanas S. A. (Pecusa). Filme que segue a tradição
teatral cubana, com intérpretes populares, destacando-se Rita Montaner. Realizado
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Afrânio Mendes Catani
a partir do êxito de Sucedió en La Habana (1938). Dirección musical: Gonzalo Roig,
com canções de Ernesto Lecuona, Gilberto Valdés, Félix B. Caignet, Bola de Nieve,
Antonio Fernández, Alberto Villalón. Intérpretes: Carlos Orellana, Rita Montaner,
Luana Alcañiz, Juan Torena, Aline Rico, Ramón Pérez Díaz, José María Linares-Rivas,
Federico Piñero, Enriqueta Sierra, María de los Ángeles Santana, Arnaldo Sevilla, Lolita
Berrio, Alberto Garrido.
5. Melodías de América (1941) - Dirección: Eduardo Morera - Argentina, 94 minutos.
Producción: Estudios San Miguel. Pretende ser uma resposta argentina aos filmes
temáticos latino-americanos produzidos por Hollywood como parte da política da
“Boa Vizinhança”. “Un cantor mexicano se enamora en Río de Janeiro de una chica
porteña”. (Manrupe; Portela, 2001, p. 366). Intérpretes: Silvana Roth, José Mojica,
Pedrito Guatucci, María Santos, Bola de Nieve, Armando Bó, Carmen Brown, Ana
María González, Lenny Omar.
6. Embrujo (1941) - Dirección: Enrique Telémaco Susini - Argentina, 100 minutos.
Producción: Lumiton. Fala do romance de Pedro I, do Brasil, após a independência do
país, com Domitila de Castro, a Marquesa de Santos. Intérpretes: Jorge Rigaud, Pepita
Serrador, Alicia Barrié, Ernesto Vilches, Santiago Gómez Cou, Carlos Tajes, Amery
Darbón, Francisco Pablo Donadío, Lalo Bouhier, Pablo Lagarde, María Ruanova, Bola
de Nieve.
“Los familiares de Bola nos hablaron con particular simpatía del filme argentino Embrujo;
en él, Villa hizo un papel melodramático de un hombre de vida y acciones violentas. La
ficha mínima de la película es la siguiente:
Realizador y guionista: Enrique Susini. Coguionista: Pedro Miguel Obligado.
Producción: Enrique T. Susini y Cesar José Guerrico. Fotografía: José María Beltrán.
Cámara: Pedro Marzialetti. Música: George Andreani. Duración: 100 minutos. Fecha:
1941. Intérpretes: George Rigaud, Alicia Barrié, Pepita Serrador, Ernesto Vilches,
Santiago Gómez, Bola de Nieve y otros. El argumento se basa en la novela de Paulo
Setúbal La marquesa de Santos. Se estrenó el 18 de junio de 1941 en la sala Monumental”
(Ojeda, 1998, p. 103).
7. Una Mujer en la Calle (1955) - Dirección: Alfredo B. Crevenna - México, 90
minutos. Producción: Cinematográfica Latina. A prostituta Lucero, escapando da
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Afrânio Mendes Catani
polícia, se refugia na casa da anciã Nena e de sua irmã Isabel, ambas solteironas. Em
sua casa Lucero encontrará a paz e o amor que sempre sonhou, decidindo abandonar o
homem que sempre a explorou. Intérpretes: Marga López, Prudencia Grifell, Ernesto
Alonso, José María Linares.
8. Kid Tabaco (1955) - Dirección: Zacarías Gómez Urquiza - México, 101 minutos.
Producción: Cinematográfica Coloso y Produtora Cinematográfica. O lutador mexicano
Kid Tabaco necessita participar no maior número possível de combates para conseguir
o dinheiro necessário para se casar com Diana. Intérpretes: Armando Silvestre, Lilia del
Valle, Ana Bertha Lepe, Júlio Taboada, Carlos Múzquiz.
9. Nosotros, la Música (1964) - Dirección: Rogelio París - Cuba, 80 minutos. “Asesor
musical: Odilo Urfé. Productor: Humberto Hernández. Intérpretes: Bola de Nieve,
Celeste Mendoza, Ana Gloria, Elena Burque, Charanga a la francesa, Septeto Nacional,
Silvio y Ada, Quinteto instrumental de Música Moderna, Orquesta de Chapottín,
Comparsas del Cocuyé y del Orilé”(Ojeda, 1998, p. 102). Oscilando entre a produção
musical e o documentário etnográfico, o filme discorre acerca dos prazeres sociais da
música cubana para músicos, figuras públicas e o “comum dos mortais” de Cuba.
10. Viva papi (1982) - Dirección: Juan Padrón - Cuba, 5 minutos. Productor: Paco
Prats. “Animación: Mario García Montes. Dirección musical: Manuel Duchesne Cuzán.
Música: Lucas de la Guardia. Caricaturas de Bola de Nieve: Juan David. Voz e piano:
Bola de Nieve. Argumento: Harry Reade” (Ojeda, 1998, p. 102).
“En este dibujo animado se establece un diálogo entre la voz de Bola de Nieve y las
imágenes de un niño que está triste porque su papá trabaja haciendo tuercas. El niño
quisiera que su padre guiará una locomotora o volará un avión o fuera un caballero
con armadura. La voz de Bola de Nieve le sugiere que piense en lo que pasaría si en el
mundo no hubiera tuercas… la locomotora, el avión y la armadura se desarmarían. El
niño se da cuenta de la utilidad del trabajo y admira mucho más a su padre. Se utiliza
una grabación inédita de Bola de Nieve realizada en el año 1963” (OJEDA, 1998, p. 102).
11. Yo soy la canción que canto (1985) - Dirección: Mayra Vilasís - Cuba, 27 minutos.
Este filme es “un documental en homenaje al Bola con guión y dirección de Mayra
Vilasís, voz de Nicolás Guillén y la participación de la soprano Alina Sánchez y el pianista
Guillermo Tuzzio. Ofrece imágenes de archivo, fotos, instantes de la última entrevista
realizada al Bola, testimonios de amigos y familiares para proponer un acercamiento
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Afrânio Mendes Catani
a la vida y obra artística del inmenso Ignacio Villa. Fue realizado en colores y dura
27 minutos. En espera de otros merecidos homenajes, este de Mayra Vilasís es, en los
momentos de realizar esta investigación, la más interesante visión del Bola en nuestro
cine” (Ojeda, 1998, p. 103).
12. Vete de mí (una de pasiones) (1996) - Dirección: Alberto Ponce - Cuba/
Argentina, 19 minutos. O cineasta Ponce, oriundo da Escuela Internacional de Cine y
Televisión (EICT), de San Antonio de los Baños, “realizó el docu-ficción Vete de mí (una
de pasiones) (...) Ofrece un interesante documental en el que entrevistas, filmaciones en
Cuba, materiales de Archivo, imágenes oníricas y otros recursos conforman un cuadro
artístico sobre la famosa canción de los Hermanos Expósito y la fabulosa versión de Bola
de Nieve, con producción de Vania Cosin, fotografía y cámara de Patricio Riquelme,
sonido directo de Roberto Rodríguez, producción en Cuba de Yamila Suárez y Mónica
Cifuentes, y dirección de arte de Juan Manuel Eujenian y Cristian Perenyi” (Ojeda,
1998, p. 103).
C - Relação de Recitais
Mais uma vez irei me valer da obra organizada por Miguelito Ojeda (1998), que procura
estabelecer a relação, embora bastante lacunar, como ele próprio esclarece, dos recitais
realizados por Bola de Nieve em Cuba e no exterior.
O organizador escreve, com propriedade, que “cuando inicié la localización de los
programas de teatro que se editaron para los recitales de Bola, me di cuenta de que, en
su gran mayoría, los recitales anteriores al triunfo de la Revolución no aparecían en los
archivos de las instituciones culturales consultadas, lo que impide conocer con detalles
cuántos y cómo fueron estructurados. Aunque con la fundación del Archivo General
del Consejo Nacional de Cultura se organizó nuestra memoria cultural, no aparecen
registrados en él todos los recitales que ofreció Bola a partir de la organización de dicho
Archivo, pues algunos se realizaron sin programas, otros emplearon un programa
itinerante que no indicaba ni día ni lugar, y además, Bola convertía en recitales algunas
de sus presentaciones en público, a petición de sus admiradores. No obstante las
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Afrânio Mendes Catani
limitaciones señaladas, esta relación mínima de recitales de Bola refleja su vital actividad
artística hasta los últimos meses de su vida” (Ojeda, 1998, p. 85).
Para o estudioso da obra do músico cubano os recitais de Bola de Nieve geralmente
eram estruturados em duas partes. “Bola solía abrirlos con una primera sección dedicada
a géneros como el bolero, la canción, musicalizaciones de textos de poetas, baladas,
sambas, berceuses, elegías, couplets y canciones anónimas. En ocasiones, presentaba
pequeños bloques con obras de algún compositor y también incluía interpretaciones
en idiomas diferentes, Particular importancia tenían sus versiones sobre clásicos de
cancioneros como el mexicano, el francés, el norteamericano y el italiano. cada una
de estas partes o secciones de sus recitales avanzaba hacia un clímax musical, estético,
interpretativo y artístico, porque él iba manejando con gran inteligencia la popularidad
de las obras, la naturaleza de la interpretación, y los factores emotivos propiciados por
su actuación” (Ojeda, 1998, p. 85).
“La segunda parte de sus recitales giraba alrededor del mundo más cercano a la música
folklórico-popular. Aparecían interpretaciones antológicas en su voz, anónimos del
siglo XIX, versos de Guillén musicalizados, pregones, guaguancós, tangos-congos,
mayombes y sketches negros. El público acostumbraba a exigirle, en cada parte de las
presentaciones, sus piezas más famosas si no estaban incluidas en el programa” (Ojeda,
1998, p. 86).
Os elementos cênicos dos quais Bola se valia na apresentação de seus recitais eram os
mais simples e despojados possíveis: “el piano, el micrófono a la altura de su garganta,
una cortina de fondo y luces generales en el escenario” (Ojeda, 1998, p. 86).
A seguir, uma lista, reconhecidamente bastante incompleta, dos recitais de Bola de
Nieve, conforme Ojeda (1998, p. 87- 90):
1936
2 de junho: Liceo Artístico y Literario de Matanzas
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1942 - 1949
21 de maio de 1942: Cafetería Odeón Bar, Buenos Aires
21 de novembro de 1948: Carnegie Hall, Nova Iorque
1948 : Debuta em Madrid, acompanhado por Concha Piquer
1953 - 1959
1953: Recitais no Teatro Lara, Madrid
1955-1956: Trabalha no night club Montmartre
1956 : Salón de las Américas, Unión Panamericana
06 de abril de 1959: Teatro de la Música, Praga
Dezembro de 1959: Teatro Camilo Henriquez, Santiago do Chile
1960
14 de agosto: Palacio de Bellas Artes
1962
27 de fevereiro: Club de Juventud de los Amigos de Cuba en Gottwaldov
30 de junho: Teatro Amadeo Roldán
Julho: Oriente (não se especificam nem dia nem lugar)
25 de agosto: Círculo Cultural Cárdenas
26 de agosto: Teatro Sauto, Matanzas
Agosto: Atuação especial no Primer Festival de Música Popular Cubana
Outubro: Pinar del Río (não se especificam nem dia nem lugar)
22 de dezembro: Teatro Amadeo Roldán
1963
24 de março: Palacio de Bellas Artes (pelo 50o. aniversário del Museo Nacional)
Abril: Centro de Cultura, Holguín (não se especifica o dia)
Maio: Pinar del Río (não se especificam nem dia nem lugar)
Maio: Matanzas (não se especificam nem dia nem lugar)
Junho: Camagüey (não se especificam nem dia nem lugar)
Junho: Escuela Nacional de Arte (não se especificam nem dia nem lugar)
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Afrânio Mendes Catani
14 de julho: Teatro Amadeo Roldán
Julho: Cada de Cultura de cienfuegos (não se especifica o dia)
12 de agosto: Matanzas (não se especifica o lugar)
19 de agosto palacio de Bellas Artes
Agosto: Teatro Amadeo Roldán (Segundo Festival de Música Popular Cubana)
1964
26 de fevereiro: Pinar del Río (não se especificam nem dia nem lugar)
27 de fevereiro: Palacio de Bellas Artes (junto com Zenaida Manfugás)
30 de março: Casa de Cultura de Santa Clara
26 e 28 de março: Tournée por oriente (não se especificam lugares)
16 de julho: Teatro Estrada, Bayamo, Oriente
25 de julho: Teatro Amadeo Roldán
11 e 12 outubro: Las Villas (como homenagem ao Cuarto Aniversario de las Juventudes
Comunistas; não se especifica lugar)
18 de novembro: Palacio de bellas Artes, México
30 de novembro: Auditorio A, Centro Cultural Zacatenco, México
1965
31 de maio: Palacio de Bellas Artes (junto com María Cervantes)
23 de junho: Las Villas (não se especifica lugar)
23 de julho: Biblioteca Nacional José Martí
1o. e 2 de agosto: (não se especificam lugares)
22 e 23 de setembro: Camagüey (não se especificam lugares)
1966
24 de janeiro: Palacio de Bellas Artes
17 de fevereiro : Palacio de Bellas Artes (em homenagem ao 53o. aniversário da
Fundación del Museo Nacional)
30 e 31 de maio: Pinar del Río (não se especificam lugares)
9 de junho: Teatro Amadeo Roldán (recital de canções mexicanas pelo terceiro
aniversário da fundação da Sociedad Cubano-Mexicana de Relaciones Culturales)
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6 de setembro: Teatro de los Compositores, México
8 de setembro: Auditorio A, Centro Cultural Zacatenco, México
18 de setembro: Instituto Cubano-Mexicano de Intercambio Cultural
19 de setembro: Centro Cultural Coyoacán, México
16 de dezembro: Biblioteca Nacional José Martí
26 de dezembro: Palacio de Bellas Artes
1967
16 de janeiro: Encuentro Rubén Darío (Varadero)
16 de fevereiro: Museo Napoleónico
7 de abril: Aula Magna de la Universidad de La Habana
18 de julho: Teatro Coyoacán, México
29 de julho: Festival Mundial de Espetáculos, Canadá
11 de agosto: Gran Logia de Cuba
30 de setembro: Teatro Amadeo Roldán (orquestra dirigida por Enrique Jorrín)
Novembro: Recital para os latinoamericanos residentes em Cuba (não se especificam
nem dia nem lugar)
1968
23 de janeiro: Liceo Artístico y Literario de Guanabacoa
19 e 20 de fevereiro: Las Villas (não se especificam lugares)
26 de fevereiro: Palacio de Bellas Artes
28 de março: Museo Napoleónico
10 e 11 de março: Teatro Amadeo Roldán
19 de maio: Pinar del Río (não se especifica lugar)
18 de julho: Biblioteca de Santa Clara
22 de setembro: Acto Especial na Alameda Central del Distrito Federal, México
8 de outubro: Teatro Degollado, México
15 de novembro: Universidad Autónoma de hidalgo, México
1969
10 e 23 de fevereiro: Teatro Lara, España
10 de maio: Teatro Amadeo Roldán
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Afrânio Mendes Catani
8 de junho: Palacio de Bellas Artes
9 de junho: Palacio de Bellas Artes (Sociedad Cubano-Mexicana de Relaciones
Culturales)
12 e 15 de agosto: Teatro Sauto, Matanzas
Novembro: Recitais em Holguín, Bayamo e Santiago de Cuba (programa único que não
especifica nem dias nem lugares)
28 de dezembro: Teatro García Lorca
1970
5 de janeiro: Palacio de Bellas Artes
25 de julho: Teatro Amadeo Roldán
22 e 23 de agosto: Teatro Sauto, Matanzas
24 de setembro: Sala Talia, ciudad de La Habana
1971
Julho: Amadeo Roldán (não se especifica o dia)
D - Discografia
O pesquisador cubano Miguelito Ojeda, ao organizar o catálogo básico de gravações
musicais de Bola de Nieve, destacou que lhe chamou a atenção a pouca quantidade de
discos encontrados, relativamente. Não é supérfluo recordar que Ignacio Villa faleceu
em 1971, ou seja, até aquela época existiam apenas vinis e fitas cassete. Ele acrescenta
ainda duas considerações relevantes: a seleção musical que aparece em cada um destes
discos é bastante similar, levantando a hipótese segundo a qual isso se deve ao fato
de o músico nascido em Guanabacoa “era muito exigente para incorporar obras a seu
repertório” (Ojeda, 1998, p. 91).
Sua primeira obra registrada no Centro Nacional de Direitos do Autor, segundo o
estudioso, ocorreu em 4 de março de 1932. Trata-se da berceuse Drumi, mobila. Demorou
mais sete anos (15 de julho de 1939) para que fosse realizado o registro da canción Si
me pudieras querer, talvez sua música mais popular. Vinte e sete anos mais tarde (11 de
maio de 1966) decidiu registrar, exatas, uma dezena de obras de sua produção musical,
embora não tenha formalizado, até a sua morte, outras doze. Para Ojeda (1998, p. 91),
54
bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
uma possível explicação para tal procedimento é que Bola “não se considerava um
grande compositor musical; declarou isso em várias ocasiões e se mostrou conservador
na hora de registrar suas criações”.
A relação de suas obras registradas aparece à página 99 do texto de Ojeda (1998), a saber:
Obra
Drumi, mobila
Si me pudieras querer
No dejes que te olvide
Ay, venga, paloma, venga
Manda conmigo papé
No siento
No quiero que me odies
Carlota ta morí
Por qué me la dejaste
Gênero
Berceuse
Canción
Canción
Balada
Sketch negro
Bolero (letra de outro autor)
Bolero
Elegia
Couplet
querer?
Canción
Pobrecitos mis recuerdos
Canción
Canción de la barca
Pero tú nunca comprenderás Canción
Fecha de Registro
4 - 3 - 1932
15 - 7 - 1939
11 - 5 - 1966
11 - 5 - 1966
11 - 5 - 1966
11 - 5 - 1966
11 – 5 - 1966
11 – 5 - 1966
11 – 5 - 1966
11 – 5 - 1966
11 – 5 - 1966
11 – 5 - 1966
Bola de Nieve deixou de efetuar o devido registro das seguintes composições:
1 - El reumático o Negro reumático
2 - Tú me has de querer
3 - Es tan difícil (Villa - Sabre Marroquín)
4 - Ay, amor
5 - Becqueriana (L. A. de la Cruz - Villa)
6 - Arroyito de mi casa
7 - Me dices loco
8 - Cuando te encuentre (sobre el poema de L. A. de la Cruz Muñoz)
55
bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
9 - Si no tengo a quién querer
10 - Todo en mi vida ha sido decepción
11 - Niña de la enagua blanca (Gutiérrez Nájera - Villa)
12 - Cuando ya se va la Bana
Acrescenta o investigador que “las dos últimas obras musicales aquí relacionadas las
canto en el teatro Amadeo Roldán el 22 de diciembre del año 1962. Las partes de piano
de sus composiciones musicales se conservan en el Archivo Nacional” (Ojeda, 1998, p.
99).
Ojeda localizou dez (10) discos em vinil de “larga duración”, isto é, Long Plays(LPs),
gravados por Bola de Nieve ao longo de sua carreira. Praticamente tudo que ele gravou
acabou sendo reproduzido sob a forma de Compact Discs (CDs) a partir do momento
em que esse suporte se generalizou e as novas gerações “redescobriram” o artista cubano.
Os discos de “larga duración”, são os seguintes:
1. MKL 3049, RCA Victor Mexicana. Bola de Nieve.
2. F8-op-8491-1a, Montilla (grabado en España). Bola de Nieve (Snow Ball).
3. S. L. P 800, Sonotone. Éste sí es Bola.
4. CAM 200, RCA Victor Mexicana. Los éxitos de Bola de Nieve.
5. IPF 031, Foton, México (estéreo).
6. S.M.L.D.- M1, Sierra Maestra (Consejo Nacional de Cultura). Recital de Bola de Nieve.
7. LP - 1008, Palma. Otra vez Bola.
8. LPA 1046, Areito. Bola canta Bola.
9. LD 3977, Areito (estéreo). Bola de Nieve in memoriam (I).
10. LD 3978, Areito (estéreo). Bola de Nieve in memoriam (II).
Esse conjunto de vinis demandou longo esforço para a sua localização por parte de
Miguelito Ojeda, que os encontrou em distintos sítios da capital cubana, quais sejam:
Departamento de Música de la Biblioteca Nacional José Martí, Fonoteca de la Radio
Metropolitana, Museo Nacional de la Música, Fonoteca del Centro de Investigación y
Desarrollo de la Música Cubana (CIDMUC), Discoteca Central del Instituto Cubano de
Radio y Televisión (ICRT), além das coleções pessoais de Raquel Villa e Iris Burguet.
56
bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
Foram localizadas, também, 7 (sete) Matrizes da Empresa de Ediciones y Grabaciones
Musicales (EGREM), contendo quase todas as gravações realizadas por Bola. E foi
justamente a EGREM a responsável pelo lançamento de alguns CDs, copiados a partir
dessas matrizes, como pode ser observado na relação apresentada a seguir.
E - CDs (Selecionados)
Tais CDs, cuja breve relação aparece a seguir, foram selecionados a partir de minha
coleção pessoal. Acabaram sendo adquiridos ao longo dos anos, sempre que se descobria
um lançamento no mercado, não importando se os mesmos continham repertório do
autor em grande parte idêntico ao produto anterior. Isso porque, apesar de serem as
mesmas músicas, os fonogramas são distintos.
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
Bola de Nieve - R B Music, s.d.
Bola de Nieve - Kubaney Records, s.d.
Bola de Nieve con su piano - Montilla, 1991 [1957]
Bola de Nieve - Ay mama Inés - Orféon, s. d.
Bola de nieve - Sus grandes éxitos - Mediterráneo, 1991.
El inigualable Bola de Nieve - EGREM, 1992.
Bola de Nieve - Las grandes canciones del genial artista cubano - Nuevos Medios,
1992.
Bola de Nieve interpreta a Ignacio Villa - EGREM/Velas, 1996.
Bola de Nieve - Yo soy la canción misma - EGREM, 1996.
Bola de Nieve in memoriam (1) - EGREM, s.d.
Bola de Nieve in memoriam (2) - EGREM, s.d.
No livro organizado por Ojeda (1998, p, 97-98), há a relação de 3 (três) CDs de Bola de
Nieve, lançados pela EGREM, que abarcam quase todas as suas canções, com exceção
das seguintes:
1. ”Ya no me quieres” - Ignacio Villa (?)
2. “Se equivocó la paloma” - Rafael Alberti/Gustavino
(Larga Duración MKL 3049, RCA Victor Mexicana. Bola de Nieve)
57
bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
3. “Ogguere” - Gilberto Valdés (habanera)
4. “Corazón” - Eduardo Sánchez de Fuentes
5. “Ecó” - Gilberto Valdés
6. “Baró” - Gilberto Valdés
7. “No te importe saber” - René Touzet
(Larga Duración F 8-op-8491 -1a, Montilla (grabado en España). Bola de Nieve (Snow
Ball)
8. “Lacho” - Facundo Rivera
9. “En cest´t an la” (?) - Charles Trenet
10. “Tata Cuñengue” - Eliseo Grenet
(Larga Duración S. L. P 800, Sonotone. Éste sí es Bola)
11. “Tú” - María Greever
12. “Una semana sin ti” - Vicente Garrido
(Larga Duración CAM 200, RCA Victor Mexicana. Los éxitos de Bola de Nieve)
13. “Me dices loco” - Ignacio Villa
14. “Lo siento” - Ignacio Villa
(LPA 1046, Areito. Bola canta Bola)
15. “Bacqueriana” - L. A. de la Cruz/Ignacio Villa
(Larga Duración IPF 031, Foton, México (estéreo)
16.”Mi mejor verdad” - (?)
17.”Tú” - María Grever (?)
18.”La Condesa” - (?)
19. “Estás conmigo” - (?)
20. “Oye, corazón” - (?)
Apresento, agora, a relação de canções de Bola de Nieve contidas em três CDs lançados
pela EGREM, com as costumeiras redundâncias em seu repertório. São eles:
CD 040, ARTEX (Licencia EGREM). Para siempre: Bola de Nieve
1.
“Mésié Julián” - Armando Oréfiche
2.
“Vete de mi” - Hermanos Expósito
3.
“Ausencia” - María Grever
58
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4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
“Tú no sospechas” - María Valdés
“La flor de la canela” - Chabuca Granda
“Alma mía” - María Grever
“No niegues que me quisiste” - Jorge del Moral
”No dejes que te olvide” - Ignacio Villa
“Por qué me la dejaste querer?” - Ignacio Villa
“No quiero que me odies” - Ignacio Vila
“Si me pudieras querer” - Ignacio Villa
“Drume, mobila” - Ignacio Villa
“Manda conmigo papé” - Ignacio Villa
“No puedo ser feliz” - Adolfo Guzmán
“Ay, amor” - Ignacio Villa
“Babalú” - Margarita Lecuona
“Drume, negrita” - Eliseo Grenet
“Ay, Mama Inés” - Eliseo Grenet
“Chivo que rompe tambó” - Moisés Simons
“El manisero” - Moisés Simons
CD 0011, EGREM, El inigualable Bola de Nieve
Saludo
1.”Caballero de olmedo” - Lope de Vega/Solano
2.”Be Careful, It’s My Heart” - Irving Berlin
3.”La vie en rose” - Edith Piaf
4.”Monasterio Santa Clara” - Barbieri
5.”No puedo ser feliz” - Adolfo Guzmán
6.”Ay, amor” - Ignacio Villa
7.”Vete de mi” - Hermanos Expósito
8.”La flor de la canela” - Chabuca Granda
9.”No dejes que te olvide” - Ignacio Villa
10.”Tú me has de querer” - Ignacio Villa
11.”Por que me la dejaste querer ?” - Ignacio Villa
12.”No quiero que me odies” - Ignacio Villa
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Afrânio Mendes Catani
bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
13.”Si me pudieras querer” - Ignacio Villa
14.”Alma mía” - María Grever
15.”No niegues que me quisiste” - Jorge del Moral
16.”Ausencia” - María Grever
17.”Tu no sospechas” - Marta Valdés
18.”Te olvidaré” - Manuel Merodio
19.”Babalú” - Margarita Lecuona
20.”Drume, negrita” - Eliseo Grenet
21.”Ay, Mama Inés” - Eliseo Grenet
22.”Vito Manué, tú no sabe inglé” - Nicolás Guillén/Emilio Grenet
23.”Epabilate” - Eliseo Grenet
24.”Chivo que rompe tambó” - Moisés Simons
25.”El manisero” - Moisés Simons
26.”Mesié Julián” - Armando Oréfiche
Despedida
CD 0193, EGREM. Yo soy la canción misma: Bola de Nieve
1.”Ya no me quieres” - María Grever
2.”Aunque llegue a odiarme” - DR (?)
3. “Déjame recordar” - José Sabre Marroquín
4. “Qué dirías de mí?” - María Grever
5. “Por qué si estás en mí, no estás conmigo?” Jorge del Moral
6. “Felicidad” - DR
7. “Lo decembre congelat” - Anónimo catalán
8. “Becqueriana” - Ignacio Villa
9. “No siento” - Ignacio Villa
10.”Pero tú nunca comprenderás” - Ignacio Villa
11.”Canción de la barca” - Ignacio Villa
12.”Pobrecitos mis recuerdos” - Ignacio Villa
13.”Arroyito de mi casa” - Ignacio Villa
14.”Me contaron de tí” - René Touzet
15.”Adiós felicidad” - Ela O’ Farril
16.”Ay, venga, paloma, venga” - Ignacio Villa/Nicolás Guillén
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bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Afrânio Mendes Catani
17.”Os quindins de Yaya” - Ary Barroso
18.”Mercé” - Eliseo Grenet
19.”Yambanbó” - Nicolás Guillén/Emilio Grenet
20.”El botellero” - Gilberto Valdés
21.”Carlota ta morí” - Ignacio Villa
22.”Drumi, mobila” - Ignacio Villa
23.”Manda conmigo papé” - Ignacio Villa
24.”Mamá Perfecta” - Anónimo
F - Letras de algumas das principais canções de Bola de Nieve
1 - Si me pudiera querer (Ignacio Villa)
Despertaste nueva vida en mí
para ser faro de mi querer
y hoy me tienes medio loco
porque ya siquiera un poco
has de alumbrar mi ilusión.
Hoy la vida me ha de sonreír,
tengo ya deseos de sentir
los besitos de tu boca,
que mejor me hacen vivir.
Si me pudieras querer
como te estoy queriendo yo,
si no me fuera traidora
la luz de tu amor,
yo no sé si existiera por ti solo mi querer,
yo no sé qué será la vida sin ti.
Pero no quiero pensar que nunca me podrás amar
porque la vida no quiere y nada más;
deja que Dios o que el destino quieran
y entonces la vida también lo querrá.
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bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
2- Ay, Amor (Ignacio Villa)
Amor, yo sé que me quieres llevarte mi ilusión:
amor, yo sé que puedes también llevarte mi alma.
Pero, ay, amor, si te llevas mi alma,
llévate de mí también el dolor;
lleva en ti todo mi desconsuelo
y también mi canción de sufrir.
Ay, amor, si me dejas la vida,
déjame también el alma a sentir;
si sólo queda en mí dolor y vida.
ay, amor, no me dejes vivir.
3- Tú no sospechas (Marta Valdés)
Tú no sospechas cuando me estás mirando
las emociones que se van desatando;
te juro que a veces me asusto de ver
que te has ido adueñando de mí
y que ya no puedo frenar
el deseo de estar junto a ti.
Tú no sospechas estas furias inmensas
que me dominan cada vez que te acercas,
y aunque no ha habido intención en ti
de provocar lo que siento,
te vas a enterar de una vez
de que te quiero.
62
Afrânio Mendes Catani
bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
4- Vete de mí (Hermanos Expósito)
Tu que llenas todo de alegría y juventud
y ves fantasmas en la noche de trasluz
y oyes el canto perfumado del azul: vete de mí.
No te detengas a mirar
las ramas muertas del rosal
que se marchitan sin dar flor,
mira el paisaje del amor,
que es la razón para soñar y amar.
Yo, que ya he luchado contra toda la maldad,
tengo las manos tan desechas de apretar,
que ni te puedo sujetar: vete de mí.
Seré en tú vida lo mejor
de la neblina del ayer
cuando me llegues a olvidar
cómo es mejor el verso aquel
que no podemos recordar.
5- No puedo ser feliz (Adolfo Guzmán)
No puedo ser feliz,
no te puedo olvidar;
siento que te perdí
y eso me hace pensar.
He renunciado a ti,
ardiente de pasión;
no se puede tener
consciencia y corazón.
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Afrânio Mendes Catani
bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Hoy que ya nos separan
la ley y la razón,
si las almas hablaran,
en su conversación
las nuestras se dirían
cosas de enamorados.
No puedo ser feliz,
no te puedo olvidar.
6- Se equivocó la paloma (Alberti - Guastavino)
Se equivocó la paloma.
Se equivocaba.
Por ir al Norte, fue al Sur.
Creyó que el trigo era agua.
Se equivocaba.
Creyó que el mar era el cielo;
que la noche, la mañana.
Se equivocaba, se equivocaba.
Que las estrellas, rocío;
que la calor, la nevada.
Se equivocaba, se equivocaba.
Que tu falda era tu blusa;
que tu corazón, su casa.
Se equivocaba, se equivocaba.
(Ella se durmió en la orilla.
Tú, en la cumbre de una rama.)
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Afrânio Mendes Catani
bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
7- Drume Negrita (Eliseo Grenet)
Mamá, a la negrita
se le sale lo pie de la cunita
y la negra Mercé
ya no sabe qué hacé.
Tú drume, negrita,
que yo te va a comprá nueva cunita,
que va tené capité,
que va tené cacabé.
Si tú drume yo te traigo un mamey muy colorao,
y si no drume yo te traigo un babalao
que da pau pau.
Tú drume, negrita,
que yo te va a comprá nueva cunita
que va tené capité,
que va tené cacabé.
8- El Manisero (Moisés Simons)
Maní...maní...maní...
Que si te quieres por el pico divertir,
cómprame un cucuruchito de maní.
Maní...maní...maní...
Caserita, no te acuerdas a dormir
sin comer un cucurucho de maní.
Ay, que calientito y rico está,
ya no se puede pedir más...
Ay, caserita, no me dejes ir
porque después te vas a arrepentir
y va a ser muy tarde ya.
65
Afrânio Mendes Catani
bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras
Manisero se va...
Caserita, no te acuestes a dormir
sin comer un cucurucho de maní.
Cuando la calle sola está,
casera de mi corazón,
el manisero entona su pregón
y si la niña escucha mi cantar
llama desde su balcón:
- Dame de tu maní,
que esta noche no voy a poder dormir
sin comer un cucurucho de maní.
Maní...me voy...
Maní...maní...maní...
66
Afrânio Mendes Catani
“Quando tá seco logo umedeço, eu não
obedeço porque sou molhada”: semióticas
interligando histórias de mulheres, de
negritudes e do mundo lgbtquia+
1
Ailton Dias de Melo2
Alessandro Garcia Paulino3
Cláudia Maria Ribeiro4
Rizomaticamente emaranhados nos fios que problematizam a dimensão
pedagógica do cinema negro
Iniciamos este artigo, na secura de nossa vontade de saber, com uma pergunta
que explode em nós: o que concorre para a produção das subjetividades? Encontramos
fios para puxar em Félix Guattari (1992, p. 11). O primeiro: “componentes semiológicos
significantes que se manifestam através da família, da educação, do meio ambiente,
da religião, da arte, do esporte; o segundo: “elementos fabricados pela indústria das
1 LGBTQIA+ - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queer, Intersexuais, Assexual e outras minorias de gênero e sexuais, como pansexuais, não binárias, etc.
2 Doutor em Educação e Ciências (FURG), Professor do Centro Universitário de Lavras - Unilavras e
membro dos Grupos de Pesquisa Fesex – Relação entre filosofia e educação para a sexualidade na contemporaneidade: a problemática da formação docente - UFLAe Gese – Grupo de pesquisa Sexualidade e
Escola – Universidade Federal do Rio Grande – RS.
3 Doutor em Educação (UFSCAR). Membro do Grupo de Pesquisa Fesex.
4 Professora Titular aposentada do Departamento de Educação da Universidade Federal de Lavras –
MG. Membro do Fesex.
67
quando tá seco logo umedeço
Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro
mídias, do cinema etc.”. Por enquanto, emaranhamo-nos nestes fios que anunciam
nossa secura, pois o seco é “símbolo de esterilidade” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
1998, p. 808). Mas também de possibilidades de mergulhar no imaginário das águas e
pensar com Foucault que,
Na linguagem ocidental, a razão pertenceu por muito tempo à terra firme.
Ilha ou continente, ela repele a água com uma obstinação maciça: ela só lhe
concede sua areia. A desrazão, ela, foi aquática, desde o fundo dos tempos
e até uma data bastante próxima. E, mais precisamente, oceânica: espaço
infinito, incerto; figuras moventes, logo apagadas, não deixam atrás delas
senão uma esteira delgada e uma espuma; tempestades ou tempo monótono;
estradas sem caminho” (FOUCAULT, 2002, p. 205).
Reportamo-nos às desrazões e ao terceiro item do que concorre para a produção
das subjetividades, segundo Guattari (1992, p. 11) “dimensões semiológicas significantes
colocando em jogo máquinas informacionais de signos, funcionando paralelamente ou
independentemente, pelo fato de produzirem e veicularem significações e denotações
que escapam então às axiomáticas propriamente linguísticas”.
Produzir e veicular significações faz borbulhar a letra da música Banho, de
Tulipa Ruiz, quando descobre suas ligações com Oxum e Iemanjá. Foi composta para
o álbum cantado por Elza Soares “Deus é mulher”5, com a participação do bloco afro
formado somente por mulheres da cidade de São Paulo: Ilú Obá de Min. Fundado em
2004, tendo como madrinha a cantora Leci Brandão. Criado pelas percussionistas Beth
Beli, Girlei Luiza Miranda e Adriana Aragão. Elas procuravam uma forma de aumentar
a participação feminina no toque do tambor – mãos femininas que tocam o tambor para
Xangô. Tambores que clamam pela justiça. Em 2016 o bloco fez uma homenagem à Elza
Soares – a Pérola Negra.
Tudo interligado: as mulheres, a negritude, o mundo LGBTQIA+, na
conexão com Elza Soares encharcando-nos com o desejo de saber. Algumas formas
de conhecer desafiam-nos a pensar os processos de subjetivação: “potências de pensar
filosoficamente, de conhecer cientificamente, de agir politicamente” (GUATTARI,
1992, p. 130). Conhecimento como um devir que se deixa inundar pelo imaginário das
5 Deus é mulher é o 33°álbum de estúdio da cantora e compositora Elza Soares, lançado em 2018.
68
quando tá seco logo umedeço
Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro
águas subsidiado nas desrazões de Foucault (2002) e no referencial teórico de Deleuze
e Guattari sob a lógica da complexidade enunciando o conceito de rizoma referindose a um sistema de conexões sem início nem fim engalfinhando linhas, estratos,
intensidades e segmentaridades (DELEUZE; GUATTARI, 2011). Autores mergulham
em concepções de documentários para apresentar o documentarista como quem
cria, recria ou ressignifica realidades (FRÓIS, 2007). Mascarello (2006), na obra que
organiza sobre a História do Cinema traz um capítulo sobre o documentário de autoria
de Francisco Elinaldo Teixeira que diz ser o documentário:
uma forte conotação representacional, ou seja, o sentido de um documento
histórico que se quer veraz, comprobatório daquilo que “de fato” ocorreu
num tempo e espaço dados. Aplicada ao cinema por razões pragmáticas
de mobilização de verbas, ela desde então disputou com a palavra ficção
essa prerrogativa de representação da realidade e, consequentemente, de
revelação da verdade (TEIXEIRA, 2006, p. 253).
Propomo-nos, portanto, a entrar nas águas do banho cantado por Elza Soares,
em suas marés, cachoeiras, limpeza debaixo da água, sólidos e líquidos, pranto, seco e
molhado, resistências: não obedeço porque sou molhada, enxáguo a nascente, maresia,
rio, lagoa dando um viva para o múltiplo, tentando nos umedecer no imaginário das
águas (BACHELARD, 1998). Em banhos que, rizomaticamente, não cessariam de
“conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes,
às ciências, às lutas sociais” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 23). Mergulhemos no
labirinto-rede de Umberto Eco (1985) fazendo borbulhar o filme Rainha de Katwe.
Xeque Mate: a rainha de Katwe
Neste labirinto-rede que nos propusemos mergulhar, assumimos com Umberto
Eco (1985, p. 46-47) que “cada caminho pode se ligar com qualquer outro, de maneira que
o labirinto já não possui centro e periferia, tampouco saída, porque ele é potencialmente
infinito”.
Nas possibilidades desses caminhos infindáveis, não podemos deixar de
mencionar os vários mergulhos possíveis quando pensamos nas histórias das mulheres
69
quando tá seco logo umedeço
Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro
negras frente ao cinema. Perpassamos idealizações por várias películas como: “Preciosa”
(2009), “Histórias Cruzadas” (2011), “A cor púrpura” (1985), “Estrelas além do tempo”
(2016), fazendo minar uma série de discussões e problematizações sobre os mais variados
recortes, a saber: violência contra as mulheres, superação, mulheres na pesquisa,
violência sexual, dentre outros temas tão palpáveis e necessários em nossa sociedade.
Para encharcar esse momento, nos propusemos a reprofundar e tibungar nas
subjetividades das imagens produzidas pelo filme “A rainha de Katwe” (2016), filme
que conta a história de uma criança Ugandense chamada PhionaMutesi e sua busca
incessante para tornar-se uma das maiores jogadoras de xadrez do mundo. A trama
perpassa aspectos de pobreza, de superação por meio da educação e da busca para a
transformação do cenário de vida vivenciado pela família.
Queremos ressaltar que o filme é uma produção dos Estúdios Disney, no qual tem
ampla bilheteria em suas películas e chega ao alcance de milhares de sujeitos ao redor
do mundo.Neste sentido, seus endereçamentos subjetivam os/as telespectadores/as das
mais variadas formas, carregando consigo, uma história de ausências. “Os/as personagens
da Disney têm nos ensinado a valorizar e desvalorizar corpos, comportamentos,
profissões e belezas específicas” (BALISCEI; CALSA; STEIN, p. 142, 2017).
Quando nos aprofundamos nas teorizações sobre uma pedagogia do cinema,
os estudos culturais e principalmente sobre as temáticas de gênero e sexualidade,
entramos em conflito com algumas de suas produções no que tange a padronização de
estereótipos de feminilidade e na ausência de discussões mais amplas sobre a questão
racial (BALISCEI; CALSA; STEIN, 2017).
Essa justificativa se faz necessária neste texto, pois escolhemos operar com um
filme dos estúdios Disney e no que isso pode acarretar frente a uma dívida cultural para
as mulheres e meninas negras. Nota-se que a primeira princesa negra é representada
por Tiana, no filme “A princesa e o sapo” (2009). E que na contramão de significações
tomamos como uma possibilidade de reconfiguração a personagem Phiona, que
reconstrói por intermédio da educação novas possibilidades de se pensar aspectos
ligados a regionalidade, a questão racial e a educação/esporte como transformadoras
de realidades.
Phiona ancorada em sua curiosidade e na metáfora de que o pequeno pode virar
grande, devido a uma jogada do xadrez (quando se leva o peão até o outro lado do
tabuleiro) vislumbra anseios e desejos em relação ao seu futuro, mesmo em meio a
tantas incertezas advindas da realidade existencial na maior favela de Uganda - Katwe.
70
quando tá seco logo umedeço
Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro
Acessamos Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 966) para elucidarmos algumas
perspectivas presentes na relação entre o xadrez frente aos caminhos percorridos por
Phiona. Para os autores,“o simbolismo desse jogo, originário da Índia, liga-se claramente
ao da estratégia guerreira [...] O desenrolar do jogo é um combate entre peças negras e
peças brancas, entre a sombra e a luz, entre os Titãs (asura) e os Deuses (deva)”. Estratégia
guerreira é ponto ápice tanto do jogo quanto da visualização de uma menina que procura
se superar e tecer novas possibilidades para uma vida tão precária. O combate entre as
peças brancas e pretas, os antagonismos entre sombra e luz são parte do processo de
construção de uma identidade por parte de Phiona, que vive outros paradoxos em meio
a ausência do pai e os infortúnios da pobreza e a justificativa de um deus que não olha
pelas pessoas.
Ainda para os autores “o tabuleiro é uma representação do mundo manifestado
[...], simboliza a tomada de controle, não só sobre adversários e sobre um território,
mas também sobre si mesmo, sobre o próprio eu” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
1998, p. 966-967). A concretização dessas simbologias se faz expressa no momento em
que Phiona consegue estabelecer que a partir do esporte e de sua trajetória de batalhas
e guerras entre tantos cenários de alternância, se materializa nas potencialidades da
tomada de controle e também de si mesma. Tornar-se uma das maiores jogadoras de
xadrez do mundo, a rainha de Katwe.
Sobre esse contexto de alternância Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 967), ainda
nos elucidam:
O tabuleiro de xadrez simboliza também a aceitação e o domínio da
alternância, como observa Roger Caillois: alternância das casas brancas
e negras, tal como dos dias e das noites, alternância de entusiasmos e de
controles, de exaltação e de contenção de desejos, principalmente porque,
numa extensão como essa, absolutamente coerente, não há peça alguma que
não tenha repercussão sobre as demais.
Este artigo assume também essa alternância ao iniciar a problematização de
outro filme: Lionheart. Outra história de mulher negra. Outro fio a ser puxado nos
processos de subjetivação.
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Não se curve: o filme Lionheart
“Não se curve”. Essa exortação, curta e simbólica, aparece no centro da trama
no filme “Lionheart”. Adeze Obiagu vivida pela atriz e diretora nigeriana Genevieve
Nnaji, assume os negócios da família, a Lionheart Transport, depois do adoecimento de
seu pai, o grande patriarca e provedor. No entanto, Adeze, que se preparou por anos
para assumir como presidente da empresa, assume o comando com a mediação de um
tio. Ao se afastar do comando da empresa para se recuperar, o pai de Adeze escolhe um
irmão, que embora o tenha ajudado no início da empresa é inexperiente para negócios.
Se comparado a Adeze, o Chief Ernest Obiagu, personifica o grande herói. É admirado
pelos funcionários e toda família. Julga que Adeze, embora preparada, ainda precisa
aprender que nem tudo acontece como se planeja e por isso traz o irmão para fazer a
mediação da atuação da filha.
Além de lidar com o cotidiano da empresa como diretora de logística e operações,
com a ausência do pai, Adeze se descobre, em uma auditoria externa, uma enorme
dívida contraída pelo seu pai através de financiamentos. Adeze Obiagu é uma mulher
de negócios, inteligente, formada nos EUA, que acorda ainda na madrugada para fazer
corrida todos os dias, altiva e sempre muito elegante, chega cedo ao escritório, chefia
uma grande equipe, tem uma agenda repleta de atividades e carrega sobre os ombros
todas as expectativas do pai. Ela é o legado do pai, em detrimento do irmão, músico
desacreditado por quase todos, que passa a vida em um estúdio sem emplacar nenhum
sucesso. Parece sempre protegido pela mãe, que em vários momentos do filme o defende
e é a única que aparece em seu estúdio em uma cena, demonstrando gostar do que ouve.
Depois de descobrir a dívida, Adeze Obiagu corre não só de madrugada. Passa
a ter uma outra corrida durante todos os seus dias e noites, contra os prazos dos bancos
credores. Na empreitada de tentar renegociar prazos e emplacar um plano capaz de
livrar a empresa da falência e consequentemente da venda a um grande concorrente, no
ápice do filme, Adeze está exausta. Fisicamente abatida, sem forças para se levantar, ela
procura o pai. No entanto, é interceptada pela mãe no caminho. Sua mãe personifica
a grande matriarca que cuida do lar e de todos. Sempre preocupada com o descanso e
alimentação dos entes e uma grande conselheira. Depois do desabafo de Adeze, sua mãe
AbiailObiagu a exorta com firmeza: Não se curve! Relembra a grande saga do patriarca,
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Ernest Obiagu, na conquista de todos os bens que possuem, e o quanto todos confiam,
acreditam e esperam de Adeze. Ela não pode falhar, deve manter o foco e acreditar que
vai conseguir. Adeze Obiagu recupera o vigor que a conduzirá ao desfecho de sucesso,
não só resolvendo o problema econômico da empresa como assumindo a presidência
depois da renúncia do pai.
A trama de Lionheart tem uma inversão da clássica relação edipiana de
identificação e desejo. A menina Adeze admira o pai, mas não o “deseja”, ela assume seu
lugar se identificando com suas atribuições de gestor e líder. É como ele. Já o irmão, que
em certo momento diz se parecer com o pai apenas por causa da barba, em nenhuma
cena é visto na empresa da família, não cogita ou deseja o lugar do pai. Pelo contrário,
anuncia o conforto da distância, deixando bem marcado a não identificação e a busca de
proteção da mãe. Embora tenhamos aqui uma potente linha de problematização, vamos
puxar uma outra ponta, também potente, com a qual queremos tecer um pouco mais.
Não se curve, diante dos problemas e dificuldades, reverbera um: Não desista!
Você não pode desanimar! Você não pode desapontar a todos! Essas e outras afirmações
explícitas ou não na trama são presentes na história das mulheres que de alguma forma
ousam subverter a ordem social, histórica e cultural estabelecidas pelo patriarcado.
Ser guerreira, de fibra, de aço, incansável, persistente, empoderada está associada
a ser uma mulher que vence em detrimento de quê? O grande modelo, a inspiração,
a referência de Adeze Obiagu, é ou deve ser seu pai, um homem, e todo seu esforço
é para ocupar um lugar que não é dela historicamente. A que custo? O do desgaste
inesgotável de si mesma se fazendo exceção à regra? Ou temos uma outra versão da
mulher, que mesmo não mãe, transfere seu objeto de dedicação, como ser capaz de
doação total, de entrega sem reservas, de um amor inesgotável para além de si mesma.
Nossa extenuante admiração por uma mulher negra que rompe com o ciclo naturalizado
de lugar, atribuição e capacidade feminina assumindo o lugar de um grande homem,
catalisa nossa perspectiva sexista e racista? Não falhar, não errar, não se cansar é uma
prova de resistência? De qual acusação as mulheres precisam se defender com provas?
São perguntas retóricas, nós sabemos as respostas e precisamos problematizá-las. Adeze
Obiagu não é apenas uma protagonista de um filme, ela é o centro da empresa Coração
de Leão, em torno da qual gira toda a trama. Ela personifica a Lionheart Transport e luta
bravamente, não só pela sua sobrevivência para garantir o sustento de sua família, mas
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também das famílias de dezenas de funcionários e sobretudo, como repete várias vezes,
pelos valores da empresa que presta um serviço de conduzir pessoas a seus destinos. Não
pode se curvar, diante de tanta responsabilidade. Luta com coração de leão? “Poderoso,
soberano, símbolo solar e luminoso ao extremo, o leão, é a própria encarnação do
Poder, da Sabedoria e Justiça” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2019, p. 538). É um
fardo bastante pesado, que dificulta o não sucumbir, o não baixar os ombros, o não se
curvar. Se manter ereta, de pé, esguia é um exercício a ser lembrado a uma mulher, por
se tratar de um grande esforço a quem tem “natureza curvada”? A ironia da pergunta
é para puxar uma outra ponta da linha para nossa problemática tecitura. Os autores
do Malleus Maleficarum,6 O martelo das Feiticeiras, manual criado para a caça às bruxas
durante a inquisição católica, afirmam que,
a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia pelas muitas
abominações carnais. E convém observar que houve uma falha na formação
da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva,
ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é por assim dizer, contrária
a retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal
imperfeito, sempre decepciona e mente (...) portanto, a mulher perversa
é, por natureza, mais propensa a hesitar na fé, e consequentemente,
mais propensa a abjurá-la – fenômeno que conforma a raiz da bruxaria
(KRAEMER; SPRENGER, 2017, p. 94-95).
No cerne da discussão citada acima, está a natureza da mulher. Como houve
uma falha na formação da primeira mulher, esta ficou marcada pela curvatura, contrária
à retidão. Imperfeita deve se esforçar mais? Se quiser manter a reta deve lutar com
bravura, provar que é possível suplantar sua natureza decaída? Provar o contrário do
estabelecido pela criação, que missão árdua, difícil e cruel? Até quando?
Joice Berth, arquiteta e urbanista, no livro Empoderamento (2019), da Coleção
Feminismos Plurais, chama a nossa atenção para o quanto é preciso cuidar dos
conceitos, enquanto sentido e luta, em uma perspectiva histórica, sobretudo no campo
do feminismo.
6 Malleus Maleficarum Maleficat & earumhaeresim, ut frameapotenissimaconterens foi publicado, em
1486-1487pelos dominicanos Heinrich Kraemer e James Sprenger, na Alemanha, em cumprimento à
bula papal Summis Desiderantis Affectibus de Inocêncio VIII, que os autorizava criar um manual de combate à feitiçaria.
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A intelectual e feminista negra Lélia Gonzales afirmava que, como mulheres
negras não compartilhamos somente história de opressão; é preciso
conhecer as trilhas dos caminhos de luta percorridos nessas opressões.
Em outras palavras, não perder a perspectiva histórica de resistência e
possibilidade de resistir a partir da autodefinição (BERTH, 2019, p. 92).
Ao retomar e ziguezaguear histórica e socialmente por conceitos como poder
e empoderamento, Joice Berth (2019) aponta para a importância da aliança entre
conscientização crítica e transformação das práticas, na busca de processos contestadores
e revolucionários, individuais e coletivos. Isto para que os discursos, os conceitos, as
pautas e lutas não sejam apropriados indevidamente por quem, na tentativa de manter
o estado atual das coisas, trabalha e tem êxito na pasteurização das reivindicações,
na produção de fachadas e no fortalecimento do paternalismo patriarcal que insiste
em exigir obediência. Outra história de resistências borbulhou no documentário
problematizado a seguir.
Resistências: não obedeço porque sou molhada – Elza & Mané – amor em linhas
tortas7
A Diretora do documentário Caroline Zilberman diz que o trabalho de pesquisa
no acervo da TV Globo foi intenso, depois das leituras biográficas. Foram dois meses
para assistir e separar as imagens, antes de partir para pesquisas em jornais — uma
parte particularmente difícil, uma vez que Elza e Garrincha ocupavam das páginas
esportivas, seções de música e colunas sociais às manchetes policiais nos últimos anos
do relacionamento. Eles se conheceram em 1962, quando o jogador ainda era casado, e
a união durou de 1966 a 1982.
Em cenas iniciais do documentário Garrincha está em Pau Grande – RJ em
frente as águas que podem anunciar inúmeras transformações. Águas que constataremos
foram turbulentas. “A navegação entrega o homem (e acrescentamos, as mulheres)
à incerteza da sorte” (FOUCAULT, 1972, p. 12). Nesse movimento já anunciado da
7 Documentário que traz a criação e direção de Caroline Zilberman e navega pelo relacionamento entre
Elza Soares e Garrincha. Uma relação que combateu preconceitos e foi marcada pelo amor, pelo alcoolismo e pela violência.
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escrita rizomática que “deve ser produzida, construída, sempre desmontável, conectável,
reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga”
(DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 43) perguntamos: quais são as recusas, os medos, as
ansiedades, os desafios, as ousadias, quando navegamos por processos de subjetivação?
O que é preciso e o que não é preciso? Fernando Pessoa pede para si o espírito desta
frase, considerando que: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”.
Caetano Veloso compõe “Os argonautas” para falar de navegadores ousados. De
um coração que não aguenta tanta tormenta! E traz a imagem do barco para afirmar que
“navegar é preciso; viver não é preciso”! Mas... é preciso!?... Com todas as entonações
possíveis. Quanta contradição, paradoxo, enigma ao navegar por entre o preciso e o
impreciso, por entre produções intelectuais que possam criar problematizações. O
documentário em tela é potente para tal.
Mergulhemos, mais uma vez, nas histórias. Garrincha começou o contato com
o álcool praticamente ao nascer, quando sua família o alimentava com uma mamadeira
contendo cachaça, mel e canela em pau - o popular “cachimbo” dos indígenas
nordestinos. Ou seja, foi estimulado desde cedo a beber. E, no decorrer de sua vida, o
álcool fez muito estrago. Cenas marcantes do documentário “Elza & Mané: amor em
linhas tortas”navegam pelo copo de bebida e nos instigam novamente, a mergulhar no
imaginário das águas8 encharcando-nos com a simbologia da fermentação acionando
a língua dos bambaras: “a palavra Kumu – fermentar – designa todo processo através
do qual uma substância, ou até mesmo um objeto, é posto em estado de acidificação e
de efervescência, capaz de conferir-lhe maior influência sobre os seres que sofrem sua
ação” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 422). A fermentação da água ardente
influenciou sobremaneira a vida de Mané Garrincha e, no documentário, esteticamente,
o copo com bebida e gelo dizem mais do que mil palavras.
Um fio será puxado para problematizar o saber, poder, verdade. Por que? Porque
Garrincha compunha um tecido social em que as relações de poder eram exercidas
sobre ele. Os amigos diziam que Garrincha era um puro, de futebol demoníaco, mas
com alma de anjo. Ele não tinha sequer consciência do próprio gênio. Ou seja, tinha o
seu talento, mas sofria efeitos devastadores assujeitando-se:
8 O imaginário das águas possibilita agitar a racionalidade, navegando pela imaginação e fantasia (ANDRADE, 2001; RIBEIRO, 2008, 2009; FOUCAULT, 2002).
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Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se
encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos
que irão adquirir ou não um status científico; (...) um saber é, também, o
espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que
se ocupa em seu discurso; (...) um saber é também o campo de coordenação
e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se
definem, se aplicam e se transformam; (...) finalmente, um saber se define
por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso
(FOUCAULT, 2013, p. 220).
Navegando pelas relações de poder plurais e relacionais – práticas heterogêneas
e sujeitas a transformações: famílias, contratos, mídia, opiniões alheias, dentre outras,
e, a bebida encharcando a vida. E toda essa história entrelaçou-se com a de Elza: “preta,
pobre, favelada” – suas próprias palavras na entrevista para Bial9. No texto escrito
por Celso Prudente e Eunice Aparecida de Jesus Prudente (2022) o autor e a autora
consideram:
que seu canto é expressão do corpo na mesma medida em que corpo
é manifestação do seu canto. Essa diva negra canta com a alma, fazendo
um vocal gutural, na garganta que é componente físico, em que distorce
a voz, tornando-a multifacetada, como provável instrumento da dinâmica
do corpo, e com uma possível ternura da alma, intensificando assim a
polissemia existencial da multiplicidade negra (s/p.).
Vida polissêmica negada pelo patriarcado eurocêntrico que tenta reduzi-la.
“Polissemia humana dos seus diferentes, quais sejam, no caso específico do Brasil, o
negro, a mulher, as (os) lgbts, o deficiente, minorias étnicas e religiosas, e outras que
reclamam da heteronormatividade” (PRUDENTE; OLIVEIRA, 2019, p. 161). Ainda
menina caminhava com a lata d’água na cabeça, distorcendo sua voz, encantada com o
louva-a-deus e seus sons. O significado do bichinho nos remete à capacidade de luta, à
entrega ao fluxo da vida seguindo seus movimentos. As habilidades de lidar e enfrentar
as dificuldades e os desafios que encontra pela frente (AUR, 2017). Pai operário, mãe
lavadeira. Em um dos momentos que observava um louva-a-deus foi violentada por
9 Conversa com Bial – Programa levado ao ar em 06/06/2017.
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Lourdes Antonio Soares e, com apenas 12 anos, engravidou. O pai obrigou-a a casar
e, segundo o jornalista e biógrafo de Elza, Zeca Camargo, ele dizia: “a honra da sua
filha estaria limpa com o casamento”. Teve 8 filhas e ficou viúva aos 21 anos. Os
significados do louva-a-deus acompanharam a cantora por toda a sua vida: lutadora,
persistente, guerreira, seguindo os fluxos das simbologias dos banhos: nascentes que se
transformaram em cachoeiras, em rios, em lagoas.
Uma das nascentes foi no programa de calouros de Ary Barroso na Rádio Tupi
em 1953. Vestida com a saia e a blusa da mãe, toda fechada com alfinetes, pois a roupa
era para o dobro de seu peso, foi perguntada pelo apresentador de que planeta tinha
vindo e ela respondeu: do “Planeta Fome”. Elza Soares foi a esse programa para ganhar
dinheiro para comprar comida e remédio para o seu filho. Inaugurou ali sua carreira e
Ary Barroso disse, depois de ouvi-la cantar, que acabava de nascer uma estrela. Com
parte do prêmio pegou um táxi para voltar para casa. Nunca havia andado em um.
A história de Elza Soares está encharcada pelas águas dos rios e, a música
de autoria de Antonio Candeia Filho e cantada por Liniker10 intitulada Preciso me
encontrar representa a intensidade desta mulher: “Deixe-me ir, preciso andar. Vou por
aí, a procurar. Rir pra não chorar. Quero assistir ao sol nascer, ver as águas dos rios
correr. Ouvir os pássaros cantar. Eu quero nascer, quero viver”. A letra desta música se
entretece com a mulher apaixonada pela vida e que superou imensas violências: fome,
pobreza, violência física tanto do primeiro marido quanto de Garrincha que a agrediu
fisicamente, além de agredi-la com a dependência do álcool. Violência do exílio e das
inúmeras críticas à mulher que se tornou amante de Garrincha que fê-lo deixar a mulher
e 7 filhas e que foi culpada por ele deixar de ser o campeão do mundo. Conquistou o
título em 1958, na Suécia e em 1962, no Chile.
Uma mulher culpada por um homem perder um campeonato. Foi ela! A
subjetivação das mulheres a partir do apontamento, da responsabilização pelo caos, da
culpabilização remonta um dos mitos mais influentes do ocidente. E desde então se
repete com frequência. Isso porque a culpa da mulher está no gênesis da humanidade. Eva
foi culpada por Adão desobedecer. O primeiro homem desapontou seu criador e pecou,
permitindo que a morte entrasse no mundo. Nas primeiras narrativas sobre as origens
10 Liniker - cantora, compositora, atriz e artista visual brasileira. Integrou a banda Liniker e os Caramelows. Em 2020 a banda se separa e em 2021 Liniker lança seu primeiro álbum solo Indigo Borboleta Anil.
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temos um discurso que se pauta em uma sentença: Foi ela! Partindo do pressuposto de que
discursos produzem verdades sobre os sujeitos, como apregoa a teorização foucaultiana,
olhando aqui de modo especial para a história de e das mulheres, podemos afirmar que
discursos produzem verdades sobre seus corpos, comportamentos, formas de ser e estar
no mundo. Diante disso, a questão é: podemos afirmar que os discursos, que segundo
Foucault em sua odisseia pela História da Sexualidade e no seu exercício na elaboração de
uma Hermenêutica do Sujeito, tem função formadora de subjetividade, ligando o sujeito
à verdade, construíram uma história de mulheres culpadas? Não buscamos respostas
fáceis, lineares, pontuais e restritas à afirmação ou negação. Buscamos problematizar,
e com isso queremos dizer estranhar a relação mulher-culpa, na vida de tantas Elzas,
degeneradas filhas de Eva, condenadas a parecerem fora do paraíso por terem maculado
a origem da humanidade com sua desobediência, por em seus primeiros atos como
viventes “terem feito algo errado”. Um dos textos mais reproduzidos e disseminados na
civilização ocidental, que abre a coleção dos livros bíblicos, destaca a primeira mulher
como a responsável pelo destino cruel da humanidade: a morte como consequência do
pecado. Segundo o livro do Gênesis, foi depois da desobediência da mulher que o mal
entrou no mundo. A companheira, tirada da costela de Adão, e comeu do fruto proibido
e, não satisfeita induziu seu companheiro fazendo com ele também experimente
a desobediência. A única coisa que lhe havia sido impedida era o fruto da árvore do
centro do jardim. Depois de consumada a desobediência o criador falou diretamente
com as criaturas, questionou o que havia acontecido. Adão se justificou confirmando
a desobediência que ele cometeu por influência de Eva. “A mulher que me deste como
companheira me ofereceu o fruto e eu comi” (BÍBLIA, 2002, p. 21). Foi ela. A culpa foi
dela. A mulher recebeu então o castigo de sofrer durante a gravidez; o parto passou a ser
acompanhado de dor e o desejo que a fez pecar passou a impelir ao seu marido, sendo a
ele submissa. Dor e submissão por ter feito o homem perder o direito da vida eterna. Ela
é a culpada pela finitude. Se torna prisioneira de sua culpa. Sendo Eva a primeira, sendo
ela a culpada, as mulheres “devem pagar por sua falta num silêncio eterno” (PERROT,
2007, p. 17). Condenadas e expulsas do Éden perdem o direito de andar pelo jardim,
de procurar, de rir, de assistir ao sol nascer, de ver as águas dos rios correr, ouvir os
pássaros a cantar. Como (re)nascer? Como (re)viver? Para resistir é preciso reinventar
a desobediência.
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Preciso me encontrar, na voz de Liniker, potencializa significados e nos instiga,
novamente, a entrelaçar os temas da dimensão pedagógica do cinema negro e nós
ampliamos para os temas dos documentários. Retornemos então à cantora Liniker –
“sou negro, pobre e gay e tenho potência também” em entrevista para El País. Investe
numa imagem andrógina diz o Globo G1 em 2015 e mistura turbante, saia, batom e
bigode em suas performances musicais. Não se define nem como homem e nem como
mulher; prefere o pronome feminino diz na Revista Rolling Stone Brasil, em 2015.
Declarou ser uma mulher trans para a Revista Glamour em 2021. A força da música
cantada por Liniker, com os tambores do grupo Ilu Obá de Min anunciam, neste artigo,
a dimensão política das músicas de Elza Soares.
Este anúncio é feito com a simbologia dos tambores que nos toca profundamente.
Chevalier e Gheerbrant(1998, p. 861) dizem que o “ruído do tambor é associado à
emissão do som primordial, origem da manifestação e, mais geralmente, ao ritmo do
universo” (...) “Na África, o tambor está estreitamente ligado a todos os acontecimentos
da vida humana. É o eco sonoro da existência” (Idem, 1998, p. 862). Anunciamos,
portanto, com os tambores, a cantora Elza Soares que, segundo Bial, em seu programa
Conversa com Bial (06/06/2017) que ela é uma fênix, que está sempre renascendo.
Desde a pobreza em que nasceu, a fome que experimentou, a participação no programa
de calouros de Ary Barroso com o objetivo de ganhar dinheiro para comprar comida
e remédio para o filho, até refugiar-se na Itália, fugindo da perseguição no Brasil por
participar de um comício de João Goulart, de comício na Central do Brasil em 13 de
março de 64. Cantava sem saber do AI-5 e suas consequências. Na Itália substituiu Ella
Fritzgerald que teve que se ausentar para uma operação de cataratas. Recebeu o título de
cantora do milênio da BBC de Londres. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul
atribuiu-lhe o título de Doutora Honoris Causa. No carnaval de 2020 foi tema da Escola
de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel (RJ): Elza Deusa Soares. Sandra de
Sá foi autora do samba enredo.
As músicas de Elza Soares fazem pulsar os preconceitos que viveu desde a
infância e diz de seu processo de subjetivação: A carne11; “mil nações moldaram minha
cara; minha voz uso pra dizer o que se cala; o meu país é meu lugar de fala”12. Djamila
11 A carne. Autores Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Capellette. Álbum do Cóccix até o Pescoço, 2002.
12 Elza Soares - o que se cala. Álbum Deus é mulher. 2018.
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Ribeiro (2017) em seu livro O que é lugar de fala? Feminismos plurais nos subsidia para
problematizar a história de resistência da cantora. Os poderes e controles pelos quais
navegou. Os discursos que exerceram poder sobre ela e os discursos que produziu:
é preciso esclarecer que quando utilizarmos a palavra discurso no decorrer
do livro e a importância de se interromper com o regime de autorização
discursiva, estamos nos referindo à noção foucaultiana de discurso. Ou seja,
de não pensar discurso como um amontoado de palavras ou concatenação
de frases que pretendem um significado em si, mas como um sistema que
estrutura determinado imaginário social pois estaremos falando de poder e
controle (RIBEIRO, 2017, p. 22).
Na voz da cantora tantas músicas denunciaram o direito “à existência digna,
à voz, estamos falando de locus social” (...) “Absolutamente não tem a ver com uma
visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo”
(RIBEIRO, 2017, p. 27). Nem somente os/as intelectuais. A contribuição de Foucault
(1979) potencializa nossas reflexões:
os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam
deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente muito melhor do
que eles; elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que
barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra
somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito
profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os
próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a ideia de que eles
são agentes da “consciência” e do discurso também faz parte do sistema. O
papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um
pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra
as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o
instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso
(FOUCAULT, 1979, p. 71).
Mediante esta citação poderíamos entrelaçar saberes de Prudente (2019), de
Ribeiro (2017) e de Foucault (1979) e afirmar que os conceitos que se entretecem e
potencializam o que se denomina Cinema Negro “constitui-se hoje como a arte dos
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banidos, não só e apenas do negro brasileiro, mas de todos os escorraçados de um
desenvolvimento econômico e social” (MARCOS, 2019, p. 11). As letras das músicas
de Elza Soares instigam a pensar: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”; “a
mulher do fim do mundo é uma que não tem medo de enfrentar a vida”; exu nas escolas:
“é tomar de volta a alcunha roubada de um deus iorubano”; Planeta Fome: “libertação eu não vou sucumbir”;
Sua voz lutou contra o racismo, em prol da independência feminina, instigando
a assumir o lugar de fala de quem teve, como ela, de enfrentar o machismo e o racismo
“Ouço sempre que sou resistente e concordo plenamente. Faço questão de ser ativista.
Eu brigo, grito, vou à luta. Pelos gays, pelos negros, pela juventude, pelas mulheres,
por quem não é ouvido” (Bárbara Lopes, Agência O Globo). A música Banho, que
já nos referimos anteriormente tem a montagem de uma boca que reflete bem a
intencionalidade da cantora. Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 133) dizem que a “boca é
o símbolo da força criadora”.
Conforme já afirmamos, o Cinema Negro e também os documentários veiculam
“o negro brasileiro, e por extensão todos os grupos de excluídos, com os traços da sua
cultura, e a necessidade premente de sua afirmação existencial” (MARCOS, 2019, p. 11).
Mergulhemos, portanto, no documentário “Do ódio ao amor” (2020)13.
Tibungar em outras diferenças
Inundados pelas possibilidades imagéticas, ousamos navegar por águas
turbulentas e caóticas entrelaçando a biografia do ativista Peter Tatchell e as histórias
de resistências e transgressões envolvendo temas como religiosidade e os movimentos
de libertação LGBTQIA+.
Do ódio ao amor se torna um documentário para balançar todas as estruturas
normativas de modo a relatar a figura de um homem que vem colocando à prova todo
um sistema heteronormativo na busca de alavancar os direitos das “minorias” sexuais e
de gênero, intervindo nos mais variados cenários institucionais.
A história de Tatchell inicia a partir da afinidade com o movimento negro
devido à morte de 4 mulheres negras na guerra do Vietnã, que tem seu início ainda
13 Direção: Cristopher amos; Título Original: Hating Peter Tatchell (2020); Gênero:Documentário
Duração:1h31min; País: Austrália.
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na Austrália a ter conhecimento sobre as reivindicações e os processos de resistência
ocasionados pelas movimentações sociais, pelos protestos e por entender a necessidade
da representatividade das ditas “minorias” nos mais diversos contextos.
Mediante aos acontecimentos em sua vida, Peter se muda para o Reino Unido
onde busca por meio das frentes de libertação gay e em sua representatividade legislativa
o engajamento em causas sociais ligadas ao movimento LGBTQIA+, questões étnicas,
ao HIV e tensões ligadas às guerras.
Há no decorrer de sua historiografia grandes conflitos com a primeiraministra do Reino Unido, Margaret Tatcher, devido ao seu extremo conservadorismo,
principalmente no impedimento de que pautas ligadas a uma educação para as
sexualidades fossem veiculadas nas escolas (Cláusula 28 ou Seção 28). Fato bem similar
aos acontecimentos presentes na história brasileira na gestão de 2016 a 2022, onde
órgãos como SECADI14 foram extintos das pautas sócio-culturais-educativas.
Seguindo a cronologia dos acontecimentos adentramos pós-cenário da década
de 70, na necessidade de uma movimentação frente às adversidades ocasionadas pelo
vírus do HIV e suas decorrências frente a ligação errônea e equivocada à população
LGBTQIA+, principalmente no que concerne aos ataques políticos e religiosos.
Segundo Peter Tatchell essa foi uma das piores épocas para uma vivência queer.
Tatchell tem severos confrontos com a igreja e com a polícia frente suas
transgressões e resistências. Peter se junta ao Outrange!15 Procurando ampliar
as potências de suas reivindicações e revoluções. Tatchell sempre avançou pelas
possibilidades de resistência que navegam pelo próprio poder. Vislumbrar os possíveis
caminhos da quebra dos paradigmas, dos padrões e das normas pelo viés da pluralidade.
A militância estratégica e bem orquestrada de Tatchell nos aponta para a desobediência
como uma forma de lidar com o poder entendido como uma tensão que se estabelece
entre as partes, numa relação de confronto, num jogo que envolve a resistência, pois,
14 SECADI – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – MEC.
15 OutRage! was formed in May 1990 at a meeting at the then London Lesbian and Gay Centre in
Farringdon, attended by 35 LGBT activists – the joint co-founders. Its formation was prompted by two
things. First, escalating queer-bashing violence, including a wave of homophobic murders – in particular, the kicking to death of Michael Boothe in West London. Second, the huge rise in the number of gay
and bisexual men arrested and convicted for consenting, victimless behavior. Informação literal retirada
do site http://outrage.org.uk/
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não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem
inversão eventual; toda relação de poder implica, então pelo menos de
modo virtual, uma estratégia de luta, sem que para tanto venham a se
sobrepor, a perder sua especificidade e finalmente a se confundir. Elas
constituem reciprocamente uma espécie de limite permanente, de ponto
de inversão possível. Uma relação de confronto encontra seu termo, seu
momento final (e a vitória de um dos dois adversários) quando o jogo
das reações antagônicas é substituído por mecanismos estáveis [...]
(FOUCAULT, 1995, p. 248).
As movimentações, resistências e pontos de embate continuam a pulsar pelo
documentário finalizando em pautas importantes e necessárias, como protestos contra
as ações do ex-presidente do Zimbábue - Robert Mugabe, bem como intervenções
mais recentes na Copa do Mundo sediada na Rússia (2018), em que Tatchell desafia as
políticas instauradas por Vladimir Putin. Por fim, observamos ao final da película nossas
possibilidades de ações frente a Copa do Mundo (2022) que será sediada no Catar. O
que podemos esperar nesse movimento borbulhante e desafiador de Peter Tatchell?
De securas aos umedecimentos: dimensões pedagógicas do cinema negro em
suas considerações finais
Nossas problematizações mergulharam nos filmes “A rainha de Katwe” (2016),
“Lionheart” (2018); nos documentários “Elza & Mané - amor em linhas tortas” (2022)
e “Do amor ao Ódio” (2020) entrelaçando os temas da violência contra as mulheres
e a população LGBTQIA+, superação, violência sexual, pobreza, fome, processos
educativos formais e não formais, famílias, resistências, dentre tantos outros. Mergulhos
no imaginário do seco ao umedecido pelas águas das possibilidades. Derramar,
transbordar, inundar, gotejar…Gaston Bachelard (1998, p. 10) afirma que “uma gota
de água poderosa basta para criar um mundo e dissolver a noite. Para sonhar o poder,
necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade. A água assim dinamizada
é um embrião; dá à vida o impulso inesgotável”. Esse impulso à vida é um impulso
à pesquisa, uma pesquisa encharcada de imaginário. Evocamos múltiplas imagens,
múltiplos signos e símbolos que perpassam nosso imaginário individual e coletivo. Dizer
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do imaginário não significa alienação e/ou fuga da realidade. O imaginário não só faz
parte da realidade como a constrói. Ao trazer isso para o texto, buscamos problematizar
a realidade na tentativa de acessar “aspectos mais profundos dessa realidade, disfarçados
pela roupagem colorida do fantástico” (AUGRAS, 2009, p. 10), da arte cinematográfica.
Objetivamos, neste artigo, puxar rizomaticamente múltiplos fios para
impulsionar conexões, para realizar percursos, inspirada e inspirados primeiramente
na letra da música cantada por Elza Soares – Banho16, que diz sobre securas,
mas imediatamente, de umedecimentos, de possibilidades de se molhar. Quanto
aprendizado ao navegar também por documentários que nos possibilitaram afirmar
que não só o cinema é veículo de comunicação, arte e entretenimento, mas como forma
de conhecimento (PRUDENTE; OLIVEIRA, 2019). Acrescentamos, como forma de
luta política. “Movimento estético, necessariamente de intervenção político-social,
assumindo a denúncia da continuada exclusão do negro brasileiro dos centros de poder”
(MARCOS, 2019, citado por PRUDENTE; SILVA, 2019, p. 11). O autor refere-se
ao Cinema Negro e nós acrescentamos o documentário que pode também instigar a
problematizar os “escorraçados de um desenvolvimento econômico e social”(MARCOS,
2019, p. 11).
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Campinas: UNICAMP. Tese de Doutorado. 2001.
16 De autoria de Tulipa Ruiz. Acordo maré, durmo cachoeira. Embaixo sou doce, em cima salgada. Meu
músculo no musgo me enche de areia. E fico limpeza debaixo da água. Misturo sólidos com meus líquidos. Dissolvo o pranto com a minha baba. Quando tá seco logo umedeço. Eu não obedeço porque sou
molhada.Enxáguo a nascente e lavo a porra toda. Pra maresia combinar com o meu rio viu? Minha lagoa
engolindo a sua boa. Eu vou pingar em quem até já me cuspiu.
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Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro
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Empoderamento e representatividade na
animação Zarafa: a importância de narrativas
diversificadas para crianças negras
Ana Clara Franco Nunes
Faculdade Sesi de Educação
Ester Eva Pereira
Faculdade Sesi de Educação
Leonardo Ribeiro Batista
Faculdade Sesi de Educação
Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos
Universidade de São Paulo
Primeiras considerações
Colocamos em perspectiva de análise a importância da dimensão pedagógica do
cinema negro como um veículo para combater a marginalização histórica dos negros
como minoria. Nos dias atuais, o ativismo racial, as questões socioeconômicas e as lutas
culturais têm se manifestado não apenas através de textos escritos, mas também através
de meios audiovisuais desempenhando um papel vital nesse processo de mudança.
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empoderamento
Ana Nunes, Ester Pereira, Leonardo Batista, Douglas Santos
Especificamente, o cinema negro, ao contar histórias que refletem as experiências,
culturas e lutas das pessoas negras, está contribuindo para a superação das barreiras
impostas por séculos de opressão.
Um aspecto central dessa dinâmica é o impacto nas crianças. Na sociedade
contemporânea, em que as crianças estão imersas na tecnologia desde sua tenra
idade, o audiovisual exerce uma influência significativa em seu desenvolvimento. As
produções audiovisuais não só entretêm, mas também moldam as percepções, atitudes
e valores das crianças. Nesse contexto, a presença de narrativas diversas, inclusivas e
representativas é sobretudo crucial para permitir que as crianças negras se vejam e se
identifiquem positivamente a partir das significações que amídia lhes concede enquanto
se constituem.
O cinema negro tem atuado como um veículo de empoderamento e inspiração
para as crianças negras. Ao assistir a personagens que se assemelham a eles enfrentando
desafios, superando obstáculos e alcançando sucesso, as crianças recebem mensagens
de que suas próprias histórias e experiências são válidas e importantes. Isso ajuda a
construir autoestima, autoconfiança e uma visão mais positiva do seu lugar na sociedade.
Além disso, as produções audiovisuais também podem educar as crianças sobre
a história, cultura e realidade das pessoas negras. Ao mostrar as lutas históricas, as
conquistas e as contribuições significativas das comunidades negras, o cinema negro
oferece uma visão mais completa e precisa da diversidade da experiência humana. Isso
não apenas desafia estereótipos prejudiciais, mas também cultiva uma compreensão
mais profunda da humanidade e da justiça social.
Acreditamos que, o poder do cinema negro na infância não deve ser subestimado.
Ao dar voz às histórias e às vidas das pessoas negras, essa forma de expressão cultural
está contribuindo para a superação de desafios enraizados em séculos de marginalização.
Através de imagens, o cinema negro está ajudando a criar uma geração de crianças
empoderadas, conscientes e capazes de enfrentar um mundo diversificado com empatia e
compreensão.
Jogamos luz a um tema crucial: a representação e a identidade da infância negra no
contexto da cultura popular e da mídia. Ao explorar características rígidas como padrão
de beleza, sucesso, bravura e força, essas qualidades são frequentemente associadas a
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empoderamento
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um fenótipo mais próximo ao eurocolonizador1. Essa tendência pode ser observada
nas figuras de príncipes, princesas, heróis e heroínas presentes em contos de fadas da
Disney, bem como nas produções da Marvel, salvo pouquíssimas exceções.
No entanto, essa representação é problemática, uma vez que cria um padrão
inatingível para muitas crianças negras Brasileiras. Ao negligenciar o fenótipo, as
características e as histórias que se alinham às experiências de pessoas de ascendência
africana, essas narrativas podem contribuir para a percepção de que a beleza, o
sucesso e outras qualidades positivas pertencem exclusivamente a pessoas com traços
eurocêntricos. Isso tem implicações profundas para a autoestima e a construção da
identidade das nossas crianças negras.
No contexto brasileiro, essa falta de representação positiva é particularmente
evidente. Poucos personagens negros e ameríndios são retratados em produções
voltadas para o público infantil, o que deixa as crianças negras com poucas referências
que reflitam sua própria herança cultural e étnica. Esse vazio de representação
frequentemente leva à internalização de estereótipos raciais prejudiciais, associando
características fenotípicas à cor da pele, textura capilar, cultura e religião desses grupos
étnicos.
A ausência de representações positivas pode levar as crianças negras a rejeitarem
suas próprias identidades culturais e raciais. Esse processo de negação pode afetar
a autoestima, a confiança e a conexão com suas raízes. Além disso, essa carência de
1“Eurocolonizador” refere-se à influência e à herança dos colonizadores europeus em diversas partes do
mundo durante o período de colonização. O termo abrange a ideia de que os colonizadores europeus,
principalmente de nações como Portugal, Espanha, França, Reino Unido, entre outros, exerceram uma
dominância cultural, política e econômica sobre as regiões que colonizaram. O conceito de “eurocolonizador” incorpora a ideia de que os valores, normas, línguas, religiões e sistemas de governo trazidos
pelos colonizadores europeus tiveram um impacto profundo nas culturas e nas sociedades das regiões
colonizadas. Isso muitas vezes resultou em um processo de assimilação forçada das culturas locais às influências europeias. Na discussão contemporânea sobre o “eurocolonizador”, frequentemente se explora
como as características e os padrões associados à cultura europeia foram estabelecidos como normativos,
muitas vezes em detrimento das culturas locais e indígenas. Essa dinâmica pode ser vista em várias áreas, incluindo representações estéticas, padrões de beleza, poder político e econômico, e até mesmo nas
produções culturais, como filmes e literatura, que muitas vezes favorecem os elementos eurocêntricos
em detrimento de outras perspectivas. O termo também reflete a influência contínua desses processos
coloniais no mundo moderno, manifestando-se em várias formas de desigualdade e injustiça social. Portanto, a referência ao “eurocolonizador” destaca a natureza complexa e de longo prazo do impacto da
colonização europeia em todo o globo.
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empoderamento
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referências pode influenciar negativamente o processo de escolarização, uma vez que
a autoimagem e a autoconfiança desempenham um papel importante no desempenho
acadêmico.
Para combater esses problemas, é fundamental que as mídias e as produções
voltadas para crianças diversifiquem suas representações. Criar personagens e histórias
que reflitam a variedade de experiências e identidades étnicas é um passo essencial para
empoderar a infância negra. Ao oferecer modelos a serem seguidos que se alinham às
suas próprias experiências, as crianças negras podem desenvolver uma autoimagem
positiva e uma conexão mais profunda com suas origens, promovendo assim a aceitação,
a autoestima e o sucesso acadêmico.
“Zarafa” e seus ensinamentos
“Zarafa” é um filme de animação franco-belga lançado em 2012 mas que ressoa
na atualidade, dirigido por Rémi Bezançon e Jean-Christophe Lie. O filme é uma
aventura cativante que combina história e fantasia, contando a jornada épica de uma
jovem girafa chamada Zarafa.
A história começa na África, onde Maki, um menino sudanês, resgata Zarafa,
uma girafa órfã, de caçadores de animais selvagens. A partir daí, os dois desenvolvem
um vínculo especial. No entanto, Maki é capturado por mercadores de escravos, e
Zarafa é presenteada ao rei da França, Charles X, como um presente exótico.
O filme segue a jornada de Maki enquanto ele foge dos mercadores de escravos
e embarca em uma jornada emocionante para resgatar Zarafa. Ele encontra ajuda ao
longo do caminho, incluindo um beduíno chamado Hassan e um aeronauta chamado
Malaterre. Juntos, eles enfrentam diversos desafios e perigos, enquanto viajam por
paisagens magníficas e encontram personagens intrigantes.
A principal ideia do filme “Zarafa” para as crianças negras é explorar temas de
amizade, coragem e determinação em face das adversidades. Além disso, o filme também
aborda questões como a abolição da escravidão e a exploração colonial, ao retratar as
diferentes perspectivas dos personagens em relação à girafa, símbolo da África que
desperta curiosidade e respeito na Europa do século XIX.
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Fonte: https://assets.almanaquesos.com/w 1
“Zarafa” oferece uma combinação de elementos de aventura, história e fantasia,
com belos cenários e personagens envolventes, enquanto aborda questões sociais
importantes de forma acessível para o público negro infantil. O filme mostra relevância
para crianças de diversas origens, e não apenas crianças negras, por várias razões:
1. Representatividade: O filme apresenta um protagonista sudanês, Maki, que é
uma criança negra. Ver um personagem principal que se assemelha a eles pode
ajudar as crianças negras a se sentirem representadas e valorizadas na narrativa
cinematográfica.
2. Empoderamento: Ao ver um personagem negro como herói da história, as
crianças negras podem se sentir inspiradas e empoderadas. Isso ajuda a construir
uma autoimagem positiva e autoconfiança, mostrando que também podem ser
protagonistas de histórias emocionantes e importantes.
3. Conexão Cultural: O filme explora a cultura africana e suas paisagens,
proporcionando uma oportunidade para as crianças negras se conectarem com
aspectos da sua herança cultural. Isso pode ser especialmente relevante para
aquelas que estão crescendo em ambientes onde a representação cultural é
limitada.
Neste diapasão, consideramos os ensinamentos de Oliveira e Prudente (2017, p. 113)
quando afirmam:
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É sensato supor que na era da revolução tecnológica a dimensão
social do indivíduo está na representação, e a pessoa é de uma
significação específica que não encontra lugar nas redes, sendo uma
possível pessoalidade sem exterioridade gregária, pois esta demanda
se estabelece em uma relação de rede onde as expressões decorrem
da forma, distanciando-se das possibilidades de conteúdo, fenômeno
coadunável com a homogeneização da pós-modernidade que
pasteuriza as relações, fragmentando os valores da individualidade
4. Diversidade de Histórias: “Zarafa” oferece uma narrativa que não se limita
a estereótipos ou papéis secundários para personagens negros. Isso ajuda a
quebrar as barreiras de representação e mostra que as histórias protagonizadas
por personagens negros podem abordar uma variedade de temas e gêneros.
5. Abordagem de Questões Sociais: O filme também toca em questões históricas,
como a abolição da escravidão e a exploração colonial. Isso pode ser uma maneira
de introduzir discussões importantes sobre a história e a experiência das pessoas
negras, permitindo que as crianças comecem a refletir sobre essas questões de
maneira acessível.
Com isso, “Zarafa” é importante para as crianças negras porque oferece
representatividade positiva, empoderamento e a oportunidade de se conectar com
a cultura e a história africana. Além disso, contribui para diversificar as narrativas
cinematográficas e proporciona uma perspectiva mais ampla sobre o potencial das
histórias protagonizadas por personagens negros.
Breves considerações
É justo ressaltar que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresenta
competências socioemocionais em todas as dez competências gerais para a educação
básica e dedica a competência oito para tratar de questões relacionadas ao autocuidado
e autoconhecimento (BRASIL, 2017). No contexto da educação infantil, o papel dos
professores nessa discussão é fundamental para construir com nossas crianças, valores
que possam transformar nosso mundo em um lugar mais justo e inclusivo.
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Ana Nunes, Ester Pereira, Leonardo Batista, Douglas Santos
Apontamos para a importância de os educadores assumirem um papel ativo na
mediação de temas sensíveis, como a raça e o racismo, desde cedo. Ao abordar questões
de diversidade e identidade, os professores têm a oportunidade de não apenas construir
conhecimento, mas também cultivar empatia, compreensão e respeito mútuo.
O cinema negro a partir do filme “Zarafa” emergiu como uma ferramenta
poderosa nesse processo. Como expressão artística, o cinema tem o poder de evocar
emoções e conectar as pessoas a experiências e histórias que talvez não tenham vivido
pessoalmente. A dimensão pedagógica do cinema negro, quando integrada à educação
infantil, pode abrir portas para diálogos significativos sobre racismo, preconceito
e estereótipos, permitindo que as crianças compreendam as realidades e os desafios
enfrentados por diferentes grupos étnicos.
Ao apresentar personagens e narrativas que refletem a experiência negra de
maneira autêntica, o cinema negro desafia os estereótipos arraigados que a sociedade
muitas vezes perpetua. Ao fazê-lo, ele proporciona um espaço para crianças negras se
verem em posições de protagonismo e empoderamento, construindo uma base sólida
para a autoestima e autoconfiança. Mas o cinema negro não é apenas para crianças negras;
ele também educa crianças de todas as origens, promovendo empatia e a compreensão
de que, apesar das diferenças, somos todos seres humanos compartilhando uma jornada
conjunta neste mundo.
Como educadores, ao abraçar o cinema negro, os professores podem ajudar a
criar um futuro em que o racismo seja finalmente superado. Ao capacitar as gerações
mais jovens com conhecimento e sensibilidade, eles estão lançando as bases para uma
sociedade mais justa e igualitária. Através dessa abordagem, as crianças aprendem desde
cedo a valorizar a diversidade, a respeitar a dignidade de todas as pessoas e a desafiar as
estruturas discriminatórias.
Em última análise, desejamos que a dimensão pedagógica do cinema negro
continue sendo um catalisador para uma mudança de paradigma. Ela desafia as
percepções ultrapassadas, educa corações e mentes e constrói um futuro em que
a discriminação racial seja um capítulo fechado da história. Cada professor tem a
oportunidade de desempenhar um papel nessa transformação, contribuindo para um
mundo mais equitativo, inclusivo e harmonioso.
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empoderamento
Ana Nunes, Ester Pereira, Leonardo Batista, Douglas Santos
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Sustentabilidade racial e educação
antirracista: um ensaio sobre
atitudes decoloniais
Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos
USP Universidade de São Paulo dpestana@usp.br
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua
origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam
aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.”
Nelson Mandela
Livro “Long Walk toFreedom”, 1995
Diversas formas de discriminação, preconceitos, desigualdades e exclusões se
fazem de modo significativo na sociedade em torno da questão racial, embora persista
ainda, a ideia da “democracia racial”, neste país plural, chamado Brasil.
Nesse sentido, essa discussão objetiva discorrer sobre a necessidade de uma
Educação Antirracista, a qual é garantida por uma sociedade onde a sustentabilidade
racial aconteça de maneira recorrente nas práticas comprometidas com uma sociedade
democrática, de experiências exitosas e respeitosas não apenas com o ensino, mas a
partir do esperançar de uma real mudança nos Direitos Humanos dos estudantes e de
toda sua comunidade, através de uma “Educação Libertadora” em que se exige o compromisso com as classes minoritárias em direitos.
Entende-se por “Educação Libertadora”, um trabalho pedagógico que propõe a
educação como um ato libertador (crítico, dialógico, amoroso, emancipatório), por ser
97
sustentabilidade racial
Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos
também um ato político, onde seus envolvidos compreendem a lógica daquilo que os
subalternizam e trabalham a favor da transformação do mundo (FREIRE, 1986), corroborando para garantir uma sociedade que seja sustentável racialmente, sendo favorável
a prática de uma educação antirracista.
Por conseguinte, o presente estudo foi motivado pelos processos de lutas em
movimentos sociais antirracistas e educacionais, oriundos da prática educativa com estudantes do ensino fundamental na rede municipal de ensino em Caruaru-PE1, de onde
se inicia o desejo e o comprometimento com uma prática docente que seja meio de
ressignificar histórias.
Num primeiro momento, vale compreender a proposta do que está exposto
no título deste estudo, ao se referir a Sustentabilidade Racial, a qual é ainda um termo
pouco utilizado e por este motivo não conterá um grande arcabouço teórico. A ideia
central é refletir o que é essa sustentabilidade (e para isto utiliza-se conceitos base),
interligando pensamentos sociais e raciais que apontem para atitudes fora da lógica colonial (decolonial) que afetem gerações futuras a (re)pensar, (re)criar e praticar relações
sustentáveis, que dinamize lógicas antirracistas.
É neste bojo que o presente estudo se encontra dividido em três partes. Inicialmente, apresenta a compreensão epistemológica dos conceitos de Sustentabilidade
Racial como parte imprescindível para a efetivação de uma Educação Antirracista, conectando as Epistemologias Decoloniais Latino-Americanos, as quais, analisam criticamente as histórias e lógicas apresentadas pela colonialidade eurocêntrica, em seguida,
dialoga com autores acerca da aplicabilidade da Lei 10.639/2003 e socializa indícios de
práticas educacionais antirracistas, por fim, procede as análises a partir dos indícios
encontrados acerca da abordagem temática sobre Sustentabilidade Racial e Educação
Antirracista.
O itinerário metodológico se deu a partir da Análise de Conteúdo em pesquisas qualitativas, por acreditar conforme Pádua (2002) que tendo como referência Bardin, descreve que tal análise torna “na maioria dos textos analisados, toma a linguagem
como transparente, em correspondência imediata com o real, como instrumento de
comunicação (suporte de pensamento)” (p.29).
1Este estudo foi apresentado na 4ª Semana de Educação Portuguesa em Lisboa.
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É destacada a contextualização do estudo, e as particularidades de cada fase,
essenciais para validação e aplicação da análise de conteúdo na pesquisa. A abordagem
qualitativa tomou como referência a análise de conteúdo temática, a qual segundo
Minayo (2004) trata das particularidades e especificidades de um nível de realidade que
não se quantifica. Foram feitas observações in locus de práticas pedagógicas de professoras do contexto urbano e rural, com o objetivo de confrontar a realidade do que se pensa
ser ideal. O estudo, ainda, buscou se fundamentar, mesmo que inicialmente, no aporte
teórico decolonial, nos princípios dos direitos humanos, com o estabelecimento de foco
nas relações étnico-raciais, em defesa de uma educação antirracista.
Sustentabilidade Racial e Educação Antirracista em Ensaios Decoloniais
A sustentabilidade como um processo educativo é recorrente nas pautas sobre
a educação brasileira, a partir do pacto global, assinado pela ONU em 2015, a chamada
“Agenda 2030”, onde Cento e noventa e três Estados-membros compõem a Agenda
2030, os quais, definiram 17 objetivos e 169 metas a nível mundial com o intuito de
que ‘ninguém no mundo fosse deixado para trás’, considerando as dimensões social,
ambiental, econômica e institucional, a fim de criar transformações sociais e atitudes e
pensamentos sustentáveis que devem ser realizadas até 2030.
A sustentabilidade social, em termos mais simples, diz respeito aos nossos filhos
e netos, ao mundo que deixaremos para eles e tem como principal objetivo, o fortalecimento de uma sociedade estável aos grupos sociais específicos (TRISTÃO, 2008). É
importante salientar que um dos critérios para a sustentabilidade ser socialmente desenvolvida é a igualdade no acesso aos recursos e serviços sociais (SACHS, 2008).
Num primeiro momento, acredita-se ser óbvio que por questões sociais, culturais e econômicas não existe “igual acesso aos recursos, nem aos serviços sociais”, ainda
que sejam essenciais para a população.
Para Guedes (2012), é possível compreendermos essa desigualdade quando
se observa que a distribuição das moradias em uma cidade é desigual. As
piores áreas, aquelas que mais sofrem com enchentes, deslizamentos de terra e falta de serviços públicos, como água tratada e rede de esgoto, são ocupadas pelas pessoas mais pobres e de grupos discriminados, por exemplo,
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os negros. (...) a ocupação das encostas por favelas é um grande risco para a
vida das pessoas pela possibilidade de deslizamentos (p.227).
É nessa direção, que se faz perceber a lógica da sustentabilidade racial, ou melhor, da falta da sustentabilidade racial, alimentada pelo racismo.
Para mudar este quadro de desigualdades é necessário pensar o mundo e a sociedade, dentro de outra perspectiva, de outra lógica de sustentabilidade, de igualdade
étnico-racial e de educação. Acredita-se, neste sentido que a ideia de epistemologias
do sul2 (BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS), de teorias decoloniais (MIGNOLO,
GROSFOGUEL, QUIJANO, WALSH, SILVA E FERREIRA), podem sinalizar indícios
deste outro modo de vida, dentro de uma perspectiva anticolonial.
Nesta compreensão, a sustentabilidade possui uma relação indissociável com a
questão racial, por serem ambas construídas com base na solidariedade, ética, respeito, democracia e outras propostas que fujam dessa lógica avassaladora da colonialidade
(QUIJANO, 2007).
É nesse contexto que se faz necessária uma educação antirracista que reconstrua
as posturas que, dentro da escola, invisibilizou histórias e saberes (a exemplo dos povos
africanos) não apresentadas pela colonialidade do saber (QUIJANO), e nesse contexto,
Nascimento (2020), consegue fortalecer a relevância da temática da Sustentabilidade
Racial “legitimando” o espaço de uma Educação Antirracista ao afirmar que
É na tentativa de colaborar com um modelo educativo que legitime a sustentabilidade pautada pela dignidade da existência humana, que aqui enfocarei um dos pontos do conceito necessário de ser aprofundado para o
triunfo da cidadania, já que, isoladamente, abarca uma série de demandas
influenciadoras das adversidades estabelecidas nas ordens política, social
e econômica. Isso posto, cabe destaque ao objetivo número 10 – Redução
das Desigualdades do documento “Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável”, a partir do qual pretendo acentuar uma propositura educativa
compatível com o combate às desigualdades sociais no Brasil, partindo do
entendimento que este é um imbróglio decorrente, sobretudo, da desvalorização das diversidades que configuram o país. (p.3).
2 Entende-se por Epistemologias do Sul, teorias e lógicas outras às teorias eurocêntricas.
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Acredita-se ser um dos maiores propósitos da prática educativa a transformação da sociedade, combatendo a desigualdade social, nisto, corrobora Freire (2003) ao
enfatizar que “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo
sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela
tampouco a sociedade muda (p.31).
Práticas educativas sustentáveis, inclusive racialmente, visibilizam historicamente a construção das culturas dos protagonistas negros da cidade e do campo, que
sofreram processo de silenciamento em que “impuseram-lhe formas subalternas de existência, mediante revisão do conceito de socialização” (DIAS, 2016).
Com a alteração da LDB pelas leis afirmativas, negros e indígenas, em espaços
escolares, tem maior possibilidade de romper os paradigmas coloniais e eurocêntricos
que os inviabilizaram e silenciaram durante muitos anos.
Ao valorizar a cultura e a história afro-brasileira e dos africanos, estamos colaborando para ruptura do modelo educacional colonial eurocêntrico e ressignificando
a história do negro no Brasil, desmistificando o etnocentrismo arraigado no currículo
escolar brasileiro (SILVA, et al, 2013).
Lei 10.639/2003 e Práticas Pedagógicas Antirracistas
A Educação é um dos Direitos Humanos garantidos constitucionalmente e está
embasada pela Lei 9.394/1996, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. É importante ressaltar que para o estabelecimento de uma educação antirracista,
a Lei de Diretrizes e Bases(LDB_Lei 9.394/1996), foi alterada pela Lei 10.639/2003 e
ampliada pela Lei 11.645/2008 que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”.
Para Ferreira e Silva (2013) que dissertam a partir de uma lógica decolonial
A promulgação da Lei nº 10.639/03 é resultado advindo de dois séculos de
lutas protagonizadas pelos sujeitos que resistiram à colonização e continuam lutando pela decolonialidade, o que nos permite afirmar que o ritmo
de promoção de equidade neste campo ainda está lento (p.12).
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Nessa direção, é observável que a lei 10.639/2003 e consequentemente a lei
11.645/2008, não é uma reparação da branquitude para a comunidade negra e sim,
um fruto das muitas lutas e embates para o enfrentamento a uma educação colonial e
propõe alguns desafios ao conjunto dos educadores e dos profissionais da educação que
estão à frente da gestão, entre eles: o repensar da escola a partir dos grupos que ocupam
seus bancos escolares, revisitando os conteúdos acerca da história e da cultura.
É nesse aspecto, que Cunha Júnior (2006) corrobora ao afirmar que o sistema
educacional se recusa a admitir que exista racismo brasileiro, fortalecendo assim, um
sistema que dá continuidade a omissão da importância da história e cultura da África
nos currículos escolares do ensino no Brasil. E em tempos de conservadorismo, o
posicionamento da inexistência do racismo, cresce assustadoramente, o que exige cada
vez mais, o embate entre a população negra, representada pelos seus movimentos, que
exige seu lugar de fala, de produção do conhecimento e as forças conservadoras, instaladas social e politicamente em nossos territórios.
Esse reconhecimento nos remete a necessidade de investimentos contínuos em
pesquisas que ofereçam suporte a práticas educacionais que privilegiem o diálogo entre
as múltiplas identidades e valores, que compõem a teia social brasileira.
O “silenciamento” e as posturas de negação da escola sobre as questões da negritude e de atitudes antirracistas favorecem as situações que oprime e exclui pessoas por
causa de sua cor, de sua etnia, das raízes culturais, das questões de identidade afrodescendentes (SANTOS, 2011).
É nesse contexto do “silenciamento” das culturas “outras”, onde as “culturas
predominantes” eram ditadas pelo modelo colonial eurocêntrico que percebe-se a relevância
do paradigma decolonial, que Oliveira e Candau (2010), inspiradas em Walsh (Pedagogia
Decolonial), consideram que “no campo educacional essa perspectiva não se restringe (...)
a mera inclusão de novos temas nos currículos ou nas metodologias-pedagógicas, mas
se situa na perspectiva da transformação estrutural e sócio-histórica”(p.27). Não bastam
ser incluídas no currículo sem questionar as “bases ideológicas do Estado-nação”, “sob o
pretexto de incorporar representações e culturas marginalizadas, apenas reforçam os estereótipos e os processos coloniais de racialização.” (Ibid.).
A mobilização para construção deste ensaio consubstanciado pela defesa do
direito à vida, ao respeito e a dignidade humana para todas as pessoas que leva a mili102
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tância no campo dos Direitos Humanos e da pessoa negra que necessita resistir em meio
a uma sociedade racista, sexista, classista, sociedade que exclui e mata negros, mulheres,
pobres, e outros grupos que ao longo do tempo, também foram subalternizados pela
proposta do viés colonial.
Cabe aqui sublinhar que, enquanto educadoras compreende-se que os processos
de aprendizagem se dão para além do ensino formal na sala de aula, nas comunidades,
no “terreiro” da escola, no “terraço” do vizinho que conta histórias. Estes são espaços
que constituem aprendizagens, na maioria das vezes, não são considerados pelo ensino
formal, no entanto, pelo respeito aos saberes dos educandos (FREIRE, 1996) são espaços de aprendizado, ressignificação e transformação social que, por uma questão ética,
includente e de respeito à dignidade humana, assumimos que o território ocupado pela
comunidade escolar, precisa se expressar pela via do currículo, anunciando os saberes
que nele é produzido e expressa a história, a memória, a cultura dentre outros elementos pertinentes.
Em diálogo com Freire (2000, p. 27), assume-se que “O futuro não nos faz. Nós
é que nos refazemos na luta para fazê-lo”. E esse é o grande desafio atual de educadores
no Brasil e no mundo, romper com números que nos oprimem, que mostram nossa pobreza, nosso analfabetismo, nossa morte coletiva. Romper com paradigmas que negam
a população a ter direitos não iguais, mas equitativamente, que ajude a compreender
a importância de ser mais um a garantir o lugar de fala e espaços de empoderamento
(RIBEIRO, 2019).
Indícios de Sustentabilidade Racial e Educação Antirracista
Diante do exposto, concebemos que, após análises de dados referentes à pesquisa, após o confronto de teorias e experiências percebidas e relatadas no estudo que antecede este ensaio, é possível sinalizar com esperança, a existência de algumas práticas
sustentáveis racialmente.
Silva e Franco (2021), em ensaio realizado também sobre indícios de práticas
pedagógicas antirracistas, relatam quem “seja do território camponês ou urbano, as experiências das professoras se fundamentam numa prática docente libertadora e antirracista que é indubitavelmente transformadora” (p.3).
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É neste bojo que se insere o papel da formação enquanto mulheres, educadoras
negras e em defesa de pessoas negras, em contextos escolares, no processo de
descolonizar histórias, saberes e espaços, constituindo ações educativas e antirracistas
que ressignifique o lugar no mundo das crianças negras, que têm o direito de viver
dignamente.
É relevante pontuar que mesmo após 20 anos de sanção, muito ainda se tem a
fazer para a aplicabilidade da Lei. 10.639/2003, pois nas escolas continua-se a trabalhar
de modo que o currículo seja único de uma cultura centralizada numa visão europeia,
numa perspectiva colonial. Sobre isto, retoma-se a ideia de Freire em Pedagogia do
Oprimido, de que em muitas situações, o oprimido se torna «hospedeiro do opressor”.
A escola, muitas vezes “hospeda” esta reprodução colonial e opressora e por isso não
consegue, sozinha, reestruturar-se de modo decolonial.
Desse modo, a Lei 10.639/2003 sem amparo das conexões complexas que acontecem na escola, não é suficiente para a garantia de uma educação pautada nos valores
antirracistas e numa perspectiva da pós-decolonialidade.
Segue Freire (1987) dizendo que
Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto
vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com opressor,
é impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido que não pode ser elaborada
pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a
dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como
manifestação da desumanização. (p. 32).
Um dos objetivos da escola, deveria ser o despertar para a criticidade e através
dos conhecimentos propostos pelo currículo, o despertar das consciências. Nesse sentido, compreende-se a impossibilidade de uma Educação para as Relações Étnico-Raciais
numa lógica decolonial, visto que a escola, pensa e se move nessa engrenagem colonial
de poder, de ser e de fazer. Ainda em Freire, a partir da prática pedagógica, o professor
pode propor essa busca de se reconectar aos saberes outros numa inquietude que “na
invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens
fazem no mundo, com o mundo e com os outros. [...].” (Ibid, p. 58).
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Retornando à lente teórica de Nascimento (2020), “é inegável a responsabilidade da escola quanto ao trato pedagógico da heterogeneidade que constitui os indivíduos
e se abriga em seu anterior”(p.7). Para isto, se almejarmos uma afirmação cidadã sustentável racialmente é necessário fazer com que a escola rompa com as estruturas de poder
que ela mesma representa.
“Investir em um trabalho educativo de reconstrução do imaginário social hoje,
edificado diante do modelo de consciência favorável ao cenário verdadeiramente sustentável no futuro, perpassa pela condução de reflexos sobre as relações étnico-raciais
como pauta fixa nos currículos escolares, instigando práticas pedagógicas oportunas a
superação de hierarquias étnicas e culturais.”(Ibid, p.8).
Assim, segue reflexões que se permite as seguintes interrogações: qual a eficiência da Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura
Afrobrasileira e Africana nas escolas públicas e privadas brasileiras no combate a todo e
qualquer tipo de discriminação, racismo e preconceito no ambiente escolar? E, quais as
causas identificadas pelos/as professores/as como sendo as principais dificuldades para
a implementação da Lei 10.639/2003? Em que de fato a Lei 10.639/2003 corrobora na
construção de uma sociedade pautada nos princípios da sustentabilidade racial?
Nessa direção, o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-brasileiras e Africana (2004) ao reconhecer a conquista da luta do Movimento Negro em nome de relações raciais justas (p.8), reafirma que o documento tem o
propósito de orientar os sistemas de ensino e as instituições que se dedicam à educação,
de modo que incluam nos currículos e nas práticas em sala de aulas cuidadosamente as
proposta da Lei 10.639/03 e a abordagem da diversidade étnico-racial. Nesse contexto,
é possível a construção de uma educação antirracista, a qual estará imbricada a sustentabilidade racial.
Os resultados, apontam ainda, indícios de mudanças na realidade histórica, secular, criando mecanismos de processos de reflexão e mudanças, os quais avançaram
conforme ampliam-se os resultados da pesquisa e introduzem novas reflexões ao debate
temático.
Por ser uma quantidade minoritária de indícios, pautas pontuais, essas práticas sustentáveis racialmente, assim como, práticas pedagógicas antirracistas nas esco105
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las, tendem a não serem vistas, pois são iniciais, não estão estruturadas a uma matriz
educacional de poder. E se estivessem nessa lógica estrutural de poder, seria o caso “do
espelho reverso”, neste caso, apenas estaríamos trocando apenas as lógicas e não tensionando a colonialidade sobre a decolonialidade. Ao valorizar uma cultura em prol de outras, estamos recriando relações de dominação e submissão. Para encontrar a resposta a
essa questão, necessita-se compreender o que é o “posicionamento crítico de fronteira
(WALSH, 2005).
Oliveira e Candau, vão ajudar a compreender a luz de Walsh, o que é pensamento de fronteira que acontece no espaço da
diferença colonial, ou seja, um processo em que o fim não é uma sociedade
ideal como abstrato universal, mas o questionamento e a transformação da
colonialidade do poder, do saber e do ser, sempre tendo consciência de que
estas relações de poder não desaparecem, mas que podem ser reconstruídas
ou transformadas, conformando-se de outra maneira. (...) O pensamento
de fronteira significa tornar visíveis outras lógicas e formas de pensar, diferentes da lógica eurocêntrica dominante.(...) se preocupa com o pensamento dominante, mantendo-o como referência(...) sujeitando-o ao constante
questionamento e introduzindo nele outras histórias e modos de pensar.
(p.25)
Essa diferença colonial permite aos grupos que foram subalternizados, a exemplo das pessoas negras, a construírem estratégias que propõem conhecimentos outros,
outras possibilidades, outros modos de pensar.
Dessa forma, é possível fazer um link com o pensamento de Guedes (2012) que
embasado nas idéias de Sachs, dá ênfase nas várias dimensões da sustentabilidade, relacionando-a a racialidade,
que para alcançarmos temos de valorizar as pessoas, seus costumes e
saberes. Por exemplo, neste processo de valorização, a escola tem um papel
central, porque deve demonstrar uma equiparidade entre as culturas,
sem uma escala de importância durante a abordagem educativa. (p.233).
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Acredita-se que na busca de novas formas da coexistência cidadã em seu potencial político libertador, a pessoa negra seja integrado nesse processo de sustentabilidade
racial, os quais, apontou os resultados para o desenvolvimento de ações que indiciam
práticas antirracistas, constituídas a partir da mobilização das professoras, pautadas em
suas convicções e apoiada por profissionais, comprometidas com a comunidade,constituindo parceria com proposições inventivas das professoras o que pode viabilizar, a
partir de processos formativos a superação da subalternização em que foram postas as
nossas crianças historicamente, com vistas a educação emancipatória. O estudo conclui
ressignificando olhares que antes buscava o que faltava para uma sustentabilidade racial
que corrobora com uma prática antirracista, mas por falar numa perspectiva pós-decolonial, fala-se também sobre o esperançar que nos faz olhar para caminhos que se iniciam em “pequenos” espaços, “pequenas” escolas, “pequenas” práticas que já corroboram
numa futura ruptura gigantesca da subalternização de povos e culturas.
É preciso olhar para o que nos causa esperança!A sustentabilidade racial e a
educação antirracista têm se tornado temas fundamentais na busca por uma sociedade
mais justa e equitativa. A sustentabilidade racial refere-se à necessidade de se garantir a
preservação e promoção da diversidade étnico-racial, bem como a igualdade de oportunidades para todas as pessoas, independentemente de sua origem étnica. Nesse sentido,
a educação antirracista desempenha um papel fundamental ao promover atitudes decoloniais, isto é, a desconstrução de ideias e práticas que perpetuam o racismo estrutural.
Essas atitudes decoloniais incluem o reconhecimento e a valorização das contribuições
das culturas e saberes afro-brasileiros, a inclusão de perspectivas não-hegemônicas nos
currículos escolares e a promoção do respeito à diversidade racial no ambiente educacional.
A implementação da sustentabilidade racial e da educação antirracista requer
a adoção de políticas e práticas inclusivas e transformadoras. É necessário superar os
obstáculos históricos e estruturais que têm marginalizado e excluído grupos étnicoraciais, promovendo uma educação que seja verdadeiramente emancipadora e
igualitária. Para isso, é essencial que sejam estabelecidos espaços de diálogo e reflexão
sobre o racismo, nos quais os estudantes e educadores possam debater e desconstruir
concepções preconceituosas, fortalecendo assim o respeito à diversidade racial. Além
disso, é fundamental que as políticas públicas e as instituições de ensino promovam
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a formação de professores capacitados para trabalhar com a educação antirracista,
proporcionando-lhes os recursos e o apoio necessários para a implementação de práticas
pedagógicas que valorizem a diversidade étnico-racial e contribuam para a construção
de uma sociedade mais justa e igualitária.
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perspectiva do documentário etnográfico
Humberto Thomé-Ortiz1
Universidad Autónoma del Estado de México, Toluca, Estado de México, México
Roberlaine Ribeiro Jorge2
Universidade Federal do Pampa, Bagé, RS, Brasil
Introdução
As relações entre África e América Latina têm uma longa trajetória cultural que afunda suas raízes na história, sendo um elemento constitutivo do passado,
presente e futuro do continente americano. Essa relação tem se desenvolvido em sua
evolução histórica, na conformação de suas estruturas econômicas, sua configuração
política e desenvolvimento cultural, desempenhando um papel muito importante na
construção das identidades nacionais de diversos territórios. De particular importância
1 Humberto Thomé-Ortiz, Universidad Autónoma del Estado de México, Doutor em Ciências Agrárias pela Universidade Autônoma de Chapingo. Diretor do Instituto de Ciências Agrárias e Rurais
da Universidade Autônoma do Estado do México. Escreveu mais de 200 produtos acadêmicos sobre
pesquisas realizadas em diferentes países da América Latina. E-mail: hthomeo@uaemex.mx
2 Roberlaine Riebeiro Jorge, Reitor da Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA.
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Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge
são as contribuições artísticas e a configuração de ideologias contraculturais para as
quais os afrodescendentes contribuíram em diferentes épocas e em diferentes latitudes
latino-americanas.
Apesar da importância das populações afrodescendentes na construção de
muitas nações latino-americanas, sua presença foi praticamente eliminada da produção
cultural contemporânea, não gerando um justo reconhecimento das grandes contribuições que deram para o fortalecimento da América Latina. Isso influencia a persistência
da marginalização, da violência racial e da discriminação a que esses grupos sociais têm
sido submetidos (GOLDBERG, 1993).
Alguns gêneros cinematográficos, como o documentário, têm privilegiado a
visibilidade de sociedades marginalizadas, tornando-se intermediários culturais entre
valores periféricos e aqueles que representam ideologias dominantes. O espírito artístico da expressão cinematográfica permite a utilização de estratégias estéticas, narrativas
e éticas muito diversas que buscam influenciar a sociedade de forma mais efetiva do que
outros gêneros comunicativos. Nesse sentido, é possível esperar impactos profundos na
transformação dos imaginários sociais, mudanças que implicam em contratos afetivos,
vinculados a um lirismo cinematográfico que, por vezes, atinge um status poético.
De acordo com o paradigma antirracista (ético e estético) de MUNANGA
(2009), desenvolvido a partir do questionamento antropológico do racismo na sociedade brasileira, há vários elementos a serem considerados na diáspora africana que podem
ser extrapolados para as diversas expressões das diferentes culturas afro-americanas que
se estendem por toda a América Latina.
A africanidade latino-americana pode ser entendida como corporalidade, ou
seja, traduz-se em um rosto cultural feito corpo, que reflete uma identidade específica
dentro de um mundo heterogêneo. Essa identidade desenvolve um sentimento de pertencimento ligado à história, aos atos emancipatórios e à memória coletiva. Memória
fortemente ligada a aspectos negativos como o sistema escravista e o tráfico de pessoas.
Certamente, no contexto dos efeitos negativos dessas mobilidades humanas,
houve também processos interculturais e de hibridização que resultaram em contribuições dos povos africanos, como a música, a gastronomia, o sincretismo religioso, a
língua e exemplos muito diversos de cultura material.
Poderíamos conter a experiência temporal da diáspora africana no que HARTOG (2007) denomina regime de historicidade, que funde patrimônio, memória e
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comemoração. No entanto, ao longo das Américas, as experiências de negritude são
múltiplas, diversas e heterogêneas, aspecto que justifica a necessidade de desenvolver
todo tipo de análise comparativa entre as diferentes identidades dos afrodescendentes
latino-americanos e suas expressões (CORREA, 2008).
O pensamento de Munanga é fortemente alimentado por imagens antropológicas dos modos de vida das comunidades negras, bem como pela análise de como as
relações raciais são construídas. Desde seu primeiro trabalho, interligou os conceitos
de raça, etnia e miscigenação, contribuindo para uma visão positiva da sociedade onde
a diversidade é uma forma de riqueza para a humanidade (MUNANGA, 2015). Certamente, as coordenadas das sociedades racializadas também são reconhecidas a partir
de sua dimensão política, por meio da formação de relações assimétricas de poder ou,
quando apropriado, da própria consciência racial. Exemplo disso é a nova onda de escritores afro-brasileiros como Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório e Geovani Martins
que estão fazendo um impacto literário de alcance global, através de retratos contemporâneos vívidos do racismo, da marginalidade e da identidade afro-brasileira.
Para Munanga (JAIME e LIMA, 2013) na definição racial há um processo
atravessado pela consciência como um processo contínuo que se adapta às mutações dos
sistemas de dominação. No caso da diáspora africana é possível inferir que há muitas
Áfricas espalhadas pelo mundo, expressando diferentes trajetórias históricas, construções culturais, condições materiais de existência e identidades.
O cinema, particularmente o documentário etnográfico, pode representar
uma oportunidade para ampliar a compreensão da negritude, como movimento social,
intelectual e como construção identitária, cujas características devem ser analisadas à
luz de suas trajetórias históricas nas quais o racismo estrutural persistiu. As particularidades dos afrodescendentes, sublinhadas no pensamento antirracista, são erguidas
para combater o mito da democracia racial, que ofusca as reivindicações levantadas pela
consciência negra, reduzindo-as à desigualdade socioeconômica.
No caso específico da América Latina, fez-se um pedido de desculpas pela
miscigenação como elemento constitutivo das nações, ignorando a importância da diversidade de raças e suas particularidades. Isso opta por uma abordagem de “unidade
nacional” que se constrói evitando o debate sobre diversidade. Para Munanga (JAIME
e LIMA, 2013), a miscigenação é uma realidade fundante da genética dos brasileiros,
que presumimos poder ser perfeitamente estendida a outros países, como o México.
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Esse conceito baseia-se na negação fenotípica dos diversos grupos sociais, aspecto com
o qual se posterga a construção de nações plurais e multiculturais, eliminando a riqueza
que esse fato contém sob o preceito da “unidade”.
Não se trata apenas de reconhecimento racial, mas de uma verdadeira luta
contra a discriminação, face à qual os produtos audiovisuais podem tornar-se importantes intermediários culturais. A construção de países com democracia racial não se
opõe à luta aberta contra o racismo e à exclusão de grupos específicos, como os afrodescendentes. Tentar encaixotar os latino-americanos no qualificativo mestiço vai contra
as identidades, contra as histórias pessoais e coletivas em que se traça a configuração
das nações.
O resgate e a reflexão sistêmica em torno desses temas (aspecto que as representações cinematográficas podem promover), serve para romper com as narrativas
negativas e vitimistas do negro, para abrir lugares que representem de forma digna os
povos afro-americanos (SILVA e MARÇAL, 2012).
Metodologia
Foram selecionados dois documentários etnográficos, baseados em dois critérios básicos: i) que fossem documentários vinculados a grupos de afrodescendentes que
lhes permitissem ser autorreferenciais e ii) produtos televisivos de amplo espectro que
se referissem a um alto impacto social e educacional. Os documentários foram “Quilombos do século XXI” (Rádio e TV Justiça, 2019) e “Afroméxico, la africanidad de la
Costa Chica” (Canal Once, 2020).
Recuperou-se o modelo de análise cinematográfica de ZAVALA (2010), a partir do qual se sistematizou a perspectiva do espectador implícita nos materiais analisados, questionando as dimensões éticas, estéticas e intelectuais que fundamentam as
diversas interpretações identificadas. Esse modelo foi complementado pela caracterização dos estilos e conteúdos dos documentários etnográficos que circulam nos meios
televisivos, desenvolvida por VANNINI (2014).
O modelo foi interpretado a partir do paradigma ético e estético do pensamento antirracista de MUNANGA (2009), que buscou entender o cinema como ferramenta
para unir as lutas sociais sem renunciar às especificidades de cada etnia. Realizou-se
uma análise discursiva do documentário etnográfico, vinculada a uma perspectiva po114
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lítica contra o racismo, cujo objetivo não era dar origem a um viés ideológico, mas a
uma abordagem complementar entre pesquisa social e ação transformadora. Ou seja, o
sujeito que analisa adota uma posição política clara em sua perspectiva sobre o objeto estudado. Uma posição que rompe os limites do ideológico, distanciando-nos de qualquer
possibilidade de alienação colonial.
A análise foi de natureza instrumental e ideológica, baseada nos cinco elementos estruturais da linguagem cinematográfica (Imagem, Som, Montagem, Encenação e
Narração). De acordo com o exposto, é possível localizar a análise dos documentários
selecionados no campo das ciências sociais, que buscou avaliar esses conteúdos como
ferramentas comunicativas que têm a capacidade de influenciar a transformação social
(ZAVALA, 2010). Especificamente, no papel que o cinema documental pode ter como
ferramenta pedagógica e ética para a construção de uma cultura de paz, que derrote o
racismo.
Os componentes considerados para o desenvolvimento da análise foram: i) introdução do produto audiovisual; (ii) imagens no quadro do ponto de vista técnico; iii)
elementos sonoros; (iv) relação sequencial entre imagens; v) imagens no quadro a partir
da perspectiva dramática; (vi) elementos estruturais da história; (vii) convenções narrativas e formais; (viii) relações com outras manifestações culturais; (ix) perspectiva da
história; e (x) síntese.
Resultados e Discussão
O documentário “Quilombos do século XXI” (Rádio e TV Justiça, 2019), narra
o reconhecimento dos territórios afrodescendentes a partir da voz das lideranças do
movimento negro e historiadores afro-brasileiros, que abordam a questão do racismo
estrutural que é uma realidade generalizada, desde a abolição da escravatura no final do
século XIX. Nessa produção, retoma-se a dimensão histórica das identidades, a partir
da história do Quilombo dos Palmares, sendo esses espaços cenários de negociação e
organização social. Um dos aspectos essenciais abordados pelo documentário são os preconceitos de racismo e discriminação, que continuam vigentes no século XXI, aspecto
que pode ser verificado com evidências da negação da posse da terra às sociedades afrodescendentes (apenas 6,7% das terras quilombolas têm títulos de propriedade).
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No documentário “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once,
2020), os próprios protagonistas relatam a conformação social das terras afrodescendentes da Costa Chica, no México, território compreendido pelas áreas costeiras dos
estados de Guerrero e Oaxaca, que têm sido dois cenários historicamente representativos da migração africana para o México. Os três eixos sobre os quais o documentário
se estrutura são: i) a história da terceira raiz no México, ii) o papel da cultura africana
na configuração da cultura mexicana e iii) a situação atual dos grupos sociais afrodescendentes.
O objetivo de ambos os documentários é a descrição de uma ampla gama de
fenômenos socioculturais em torno da diáspora africana em direção a dois territórios
latino-americanos. Para a consecução desse objetivo, o caráter interpretativo, a tematização, a base empírica e a abordagem crítica dada a esses audiovisuais desempenham
um papel crucial.
Condições de leitura
Sendo documentários etnográficos que são transmitidos em larga escala (televisão aberta) é possível inferir que as condições a partir das quais o produto audiovisual
pode ser lido são muitas e variadas. No entanto, é importante notar que ambos os documentários questionam aspectos como a objetividade e o realismo audiovisual, o que
pode levar a leituras parciais, metropolitanas e/ou reducionistas da diversidade racial
latino-americana.
Esses documentários não se destinam exclusivamente às comunidades negras,
pelo contrário, depreendemos que se destinam a um público aderente a visões urbanas
e cosmopolitas, que busca reduzir as distâncias, físicas e simbólicas, entre grupos raciais
que se disfarçaram através do mito da democracia racial.
O problema dos grandes públicos para os quais esses produtos são direcionados, faz com que seja necessário refletir sobre seus públicos-alvo. A estrutura naturalista e cotidiana de ambos os documentários, por meio dos quais descrevem aspectos
como família, amor, memória e exílio, evidenciam que esses conteúdos são atrativos
para si e para os outros. Ao tentar responder à pergunta Para quem esses documentários
foram feitos?, fica claro que há diferentes espectadores, afrodescendentes e não afrodes116
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cendentes, que lerão o audiovisual de forma diferente, dependendo de seus horizontes
interpretativos e contratos simbólicos de leitura.
Para o caso específico do público afrodescendente, fica claro que é o que nas
palavras de Godard é “um cinema feito para a memória”, enquanto para os não afrodescendentes é um cinema para a interculturalidade e contra o racismo.
O enquadramento dos dois produtos estudados, dentro do gênero documentário etnográfico, confere-lhes uma ação educativa ou, pelo menos, formativa sobre as
culturas afrodescendentes e seu papel na formação das sociedades latino-americanas. É
importante ressaltar que ambas as produções ocorreram no âmbito da televisão estatal,
de modo que pode-se inferir que entre suas finalidades está a dinamização de políticas
públicas de fortalecimento dos Estados multiétnicos.
Quanto à arquitetura do título, no caso de “Quilombos do século XXI”, a reivindicação das comunidades afrodescendentes pode ser apreciada no contexto de sua
evolução histórica contemporânea, enquanto em “Afroméxico, a africanidade da Costa
Chica”, as reivindicações são enquadradas na dimensão territorial, abrindo caminho
para reconhecer diferenças regionais nas diversas experiências da diáspora africana no
México.
Início
O documentário “Quilombos do século XXI” busca construir o arquétipo de
um herói nacional de libertação e antirracismo: Zumbi dos Palmares. No caso do documentário “Afroméxico”, através de uma colagem de imagens são resgatados os valores
da diversidade e da coletividade, o que mostra uma mensagem de coesão e orgulho
sobre a comunidade afrodescendente.
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Imagem 1. Início do documentário
Fonte: “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019)
Imagem
Dada a natureza diaspórica dos afrodescendentes latino-americanos, deve-se
considerar que esses grupos têm enfrentado historicamente condições de desterritorialização e reterritorialização (BHABHA, 1994), que a criação cinematográfica pode
representar a partir da imagem-movimento, passando pela consciência e espacialidade,
nas quais se estabelece a dialética entre sujeito e objeto (DELEUZE, 1984). Estar representado de forma justa no imaginário coletivo abre as portas para repensar os níveis de
integração e mobilidade social.
No caso de “Quilombos do século XXI”, as imagens recriam um realismo com
efeito dramático, a partir do uso contrastante de registros cromáticos e da riqueza morfológica dos objetos visuais apresentados. A perspectiva da câmera permite recriar ambientes íntimos, mas sempre a partir de uma perspectiva externa que se propõe a gerar
sentidos de objetividade e verossimilhança. Close-ups com efeito bokeh, fotos panorâmicas, panning sobre a paisagem, fotos estáticas em objetos e fotos aéreas de drones são
privilegiados).
O documentário “Afroméxico” recorre ainda ao uso de uma ampla paleta cromática e de uma grande complexidade de formas, através da qual constrói um efeito
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poético, onde a perspetiva da câmara permite desenvolver um lirismo narrativo em
que privilegiam close-ups, panoramas, garimpos sobre objetos materiais e composições
clássicas simétricas.
Imagem 2. Composição das imagens
Fonte: “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020)
Som
Em ambos os documentários, a música étnica (em suas variantes regionais) e
os instrumentos de percussão são utilizados como clichês da identidade acústica afrodescendente, aspectos que se combinam com a riqueza da paisagem sonora como elemento constitutivo da estética cotidiana e da complexidade do material audiovisual. Por
outro lado, a oralidade captada nos depoimentos dos entrevistados, permite recuperar
a dimensão subjetiva das experiências, bem como suas formas culturais regionalizadas.
Em “Quilombos do século XXI” o som desempenha um papel fundamental na força
narrativa e na contextualização da história, enquanto em “Afroméxico” tem uma carga
decididamente estética e poética.
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Imagem 3. Paisagem sonora no documentário
Fonte: “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019)
Edição
No documentário “Afroméxico” a edição responde a uma organização temática sequencial, que permite delinear uma ordem lógica e cronológica através de uma
estrutura rigidamente organizada. No caso de “Quilombos do século XXI”, há também
uma disposição estruturada que recorre a intercalar com sucesso diferentes momentos
dos depoimentos recuperados para construir um discurso polifônico e unitário. Em
ambos os casos, a cena responde aos imperativos de gerar um produto educacional, que
proporcione uma sensação de confiança e verossimilhança, considerando que as licenças criativas são realmente escassas.
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Imagem 4. Fragmento de entrevista
Fonte: “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019)
Cena
Em ambos os documentários há uma performance da mise-en-scène, onde a
ruralidade, o espaço aberto e os lugares públicos marginalizados constituem as coordenadas espaciais que permitem o desenvolvimento da ancoragem territorial (linguística
e cultural). Esses cenários abertos se entrelaçam com espaços íntimos, a partir de um
princípio contemplativo, permitindo um fluxo constante entre a experiência individual
e coletiva, dando origem à configuração de um espaço liminar entre identidades afro e
latino-americanas, mas não raro caindo nos clichês dos cenários precários da negritude.
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Imagem 5. Ruralidade litorânea
Fonte: “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020)
Personagens
A cultura material é uma forma de caracterizar os atores sociais representados
em ambos os documentários. Formas indiretas de representação dos personagens são
apreciadas, através de objetos materiais como suas roupas típicas, acessórios, ferramentas tradicionais, artesanato e ofícios. Com vários desses recursos, é possível construir
pontos focais e uma perspectiva estética que opta por uma espécie de realismo poético.
Uma questão muito interessante é que a dimensão estética nesses produtos
costuma ser alimentada por detalhes etnográficos profundamente atrativos na construção do discurso audiovisual, que ajudam a gerar perspectivas de alteridade, numa
possibilidade de mobilização no tempo e no espaço. Esse tipo de audiovisual tem sido
considerado como antecedente para diversas formas de reinterpretação do tempo livre, como o turismo virtual, especialmente interessante após a pandemia da COVID-19
(JUNYU, et al., 2022).
No caso de “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020),
os personagens são representados por meio de figuras arquetípicas que buscam ser representativas do patrimônio cultural, material e imaterial do povo afro-mexicano, além
de vozes autoritárias que reconstroem a memória histórica da diáspora. Entre os arquétipos patrimoniais encontramos dois artistas plásticos, dois cozinheiros tradicionais,
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dois pecuaristas, dois grupos de dança, um pescador e um camponês, que fingem ser a
voz do povo negro do México. Por sua vez, vozes autoritárias são reconstruídas a partir
de uma cantora reconhecida nacionalmente, uma antropóloga, uma historiadora e um
ativista. Em todos os casos, os depoimentos são recuperados a partir da entrevista estruturada, que é intercalada com a encenação.
Por outro lado, em “Quilombos do século XXI” os personagens são representados por figuras de autoridade (moral, acadêmica e política) através da multiperspectiva, construída a partir da perspectiva de diversos ofícios, profissões e/ou trajetórias
pessoais. As vozes que encarnam são as de dois ativistas, um sociólogo, um professor
de história, um líder comunitário, um antropólogo, um funcionário público, um artista
visual e um estudioso das línguas e cosmogonias africanas. Nesse caso, recupera-se também a estrutura clássica da entrevista com abordagem antropológica.
É evidente que ambos os produtos são documentários convencionais onde
outras formas de personificação de atores sociais poderiam ser experimentadas. Por
exemplo, a partir de «metacomentários» combinados com autorrepresentações
(Nichols, 1991) como forma de romper com a ilusão de realidade dos discursos colonizadores, abrindo a possibilidade de que as histórias se contem, ou seja, como forma de
gerar equilíbrio entre visões internas e externas sobre grupos afrodescendentes.
Imagem 6. O artista plástico
Fonte: “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020)
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Narração
A narração em ambos os documentários focaliza sua natureza psicológica, mobilizando emoções, sentimentos e valores. Esta é construída de forma fragmentada, a
partir do resgate de múltiplas perspectivas, com uma lógica polifônica que recupera
riqueza e heterogeneidade a partir de uma história decididamente elíptica. É possível
identificar aparentes contradições, que subjazem ao enfrentamento de uma sociedade
hiperconectada, multirracial e multicultural, onde as diferenças se borram, no contexto
de projetos culturais homogeneizadores.
As histórias de vida e depoimentos retratados apresentam caminhos sinuosos e trajetórias não lineares que, não necessariamente, podem ser captadas através de
uma imagem clara da realidade. A possibilidade de contar a verdade sobre a diáspora
africana na América Latina tem a ver com a possibilidade de que seus próprios atores
sociais estejam envolvidos na forma como são representados, por exemplo, através das
narrativas que desejam implantar, através do documentário.
Nesse sentido, os produtos audiovisuais analisados aproximam-se mais do documentário reflexivo, ou seja, seu potencial comunicativo, crítico, social e antirracista
tem mais a ver com a finalidade da estrutura narrativa do que com uma representação
“objetiva” e “autêntica” da realidade (RUBY, 1988).
No entanto, percebe-se também que ambos os documentários são construídos
a partir da visão externa e distante (sempre contada a partir de posições de autoridade
política, moral e/ou intelectual) que busca criar um argumento didático. A narrativa
estruturada terá um papel importante na lógica interna do discurso, que visa alcançar a
“objetividade” e construir uma perspectiva coerente.
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Imagem 7. O território través do discurso cinematográfico
Fonte: “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019)
Gênero e estilo
Sendo os documentários parte fundamental da cultura contemporânea, os documentários podem ser entendidos como produtos complexos, cujo caráter testemunhal pode cumprir funções importantes em termos de geração de conhecimento empírico (HINDMARSH &TUTT, 2012). A popularidade desse tipo de conteúdo tem a ver
com a forma como eles são distribuídos massivamente, bem como com sua capacidade
de representar a realidade a partir de perspectivas originais.
Como mencionado acima, ambos os materiais estão situados dentro do gênero
documentário etnográfico. Mais especificamente, poderiam ser classificados dentro do
subgênero do ensaio audiovisual, que se situa entre a realidade e a ficção, entre a narrativa e a não narrativa, entre o visual e o não visual (Corrigan, 2011). A perspectiva
do documentário etnográfico sobre as sociedades afrodescendentes latino-americanas
tem natureza polissêmica, poliédrica e complexa. Isso implica o desafio de representar
as sociedades negras a partir de sua interseccionalidade geracional, de gênero, racial e
de classe (ARENAS, 2012).
O documentário com perspectiva etnográfica serve de reservatório para as representações simbólicas e reivindicações políticas (NICHOLS, 1991) das comunidades
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afrodescendentes. Sendo, ao mesmo tempo, um cenário apropriado para transcender
estereótipos raciais, construídos a partir de categorias binárias, como preto e branco,
eles e nós, alteridade e normatividade. Isso contribui para erradicar atos e propensões
racistas, arraigados na cultura dominante.
Os documentários etnográficos têm ganhado espaço dentro da mídia televisiva,
aspecto que lhes permite acessar públicos maiores e ter plataformas de distribuição mais
amplas (VANINI, 2014). O documentário etnográfico televisivo é um subgênero híbrido que pode conter vários elementos etnológicos, mas simultaneamente se alimenta do
imaginário social. Convencionalmente, esses tipos de produtos tendem a se adaptar aos
gêneros e formatos da televisão educativa, bem como às diversas plataformas híbridas
de televisão, constituindo assim a possibilidade de gerar inovações tecnológicas para os
próprios meios de comunicação. Em muitos casos, são produtos que fornecem meios
para a educação formal em combinação com fins de entretenimento.
A hibridização de estilos é uma característica dos produtos audiovisuais do século XXI que, através de uma grande diversidade de recursos, pretendem criar estímulos mais fortes do que aqueles que vêm da “realidade”. Isso significa que a convergência
de aspectos racionais e emocionais nos permite reconstruir não apenas uma representação da diáspora africana, mas também uma ação comunicativa militante em torno dela.
Essa hibridação entre o audiovisual etnográfico e a etnoficção (ROUCH,
2003), será uma estratégia eficiente para a articulação de discursos audiovisuais antirracistas, uma vez que a variegação entre subgêneros da ficção documental e cinematográfica, permitirá o desenvolvimento de perspectivas mais complexas do que as de uma
“objetividade” colonialista, associada ao documentário etnográfico em sentido estrito.
Ambos os documentários se distanciam das produções etnográficas colonialistas, que
por meio de uma suposta representação objetiva da realidade, muitas vezes reproduzem estereótipos racistas. Esse tipo de realismo documental focaliza paisagens, recursos
bioculturais, vestimentas típicas e muitos outros objetos, que anulam a voz do sujeito,
gerando um efeito de descoberta, identificação ou apropriação, (PIAULT, 2000), das
culturas afrodescendentes, mas deixando seus atores sociais sem voz. É uma espécie de
cópia dos estereótipos de observação de campo das tradições antropológicas do início
do século XX.
A fusão entre documentário etnográfico e ficção permite representar culturas afrodescendentes, através de perspectivas históricas e posições políticas. Isso difere
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das perspectivas autoetnográficas, abrindo caminho para materiais experimentais, mais
bem aceitos pelo público televisivo, onde predominam estratégias narrativas em primeira pessoa.
A classificação desse tipo de documentário está se tornando cada vez mais
complexa, no entanto, é possível apontar para uma tendência a uma abordagem participativa (NICHOLS, 2010). Ao mesmo tempo, é possível identificar cinco estilos: poético, expositivo, performativo e observacional. Nos dois documentários analisados é
possível identificar o uso desses estilos como recursos comunicativos.
O estilo poético, em ambos os documentários, privilegia a forma e considerações estéticas, aspecto que pode ser visto em momentos em que o discurso se estrutura a
partir de vários elementos lúdicos, desordenados, fragmentados e ambíguos. A história
contada é composta por fragmentos do cotidiano, com forte charme visual. Podemos
observar uma edição descontínua em que, por vezes, o caráter dos protagonistas e as
coordenadas de tempo e espaço aparecem borrados. Os dois documentários dão um
peso considerável à carga artística, o que fica evidente pela força da trilha sonora e pela
estetização visual do cotidiano (LIPOVETSKY E SERROY, 2015).
Em ambos os casos, o estilo expositivo desempenha um papel importante na adaptação de ambos os produtos aos gêneros e formatos da televisão educativa
(CRAWFORD E TURTON, 1992). Podemos ver isso nos momentos em que o peso
artístico perde força e seu lugar é ocupado por uma narrativa autoritária (dados históricos, estatísticos e informações culturais validadas).
Por outro lado, também é possível identificar um estilo performático em ambas as produções. Em vários momentos fica evidente a encenação de aspectos etnológicos que buscam representar realidades específicas, por meio de ferramentas retóricas.
A tênue linha entre realidade e ficção serve para problematizar uma narrativa concreta,
para enfatizar aspectos específicos, retomando elementos da ficção, que se combinam
com recursos clássicos do documentário etnográfico, tais como: interpretação, contextualização social, entrevista, descrição densa e observação.
Por fim, há traços do estilo observacional, próximos às práticas da antropologia clássica e etnográfica (GRIMSHAW, 2011). No entanto, hoje, existem múltiplas
maneiras de desenvolver uma perspectiva, portanto, de um ângulo estruturalista, o observacional, é sempre uma aspiração pretensiosa (GRIMSHAW E RAVETZ, 2009),
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além de não ser um estilo popular dentro das tendências atuais da produção audiovisual.
Ambos os documentários fazem uso desse recurso, gerando visões estereotipadas de
afro-mexicano e afro-brasileiro, respectivamente.
De forma independente, devemos abordar o caráter participativo de ambas
as produções, aspecto especialmente valioso por sua potencial contribuição decolonial
(CALDERÓN e SÁNCHEZ, 2021) para o desenvolvimento de posições críticas da sociedade, como a necessidade de lutar contra o racismo. Nesse tipo de documentário, seus
protagonistas estão envolvidos na concepção, produção e edição de materiais audiovisuais (ÖZERDEM E BOWD, 2013). O documentário participativo é intrinsecamente
um produto etnográfico, que implica lógicas colaborativas e cujo cerne é a entrevista
em profundidade (NICHOLS, 2010), uma vez que fornece significado sociocultural,
mas, paradoxalmente, pode alterar comportamentos cotidianos devido à presença da
câmera e de pessoas fora do grupo social de referência. Deve-se levar em consideração
que as articulações sociais às quais o documentário participativo pode dar origem são
atravessadas por relações assimétricas de poder, sensibilidades, classe social, gênero,
etnia e muitas outras variáveis.
Observa-se que ambos os audiovisuais correspondem a uma variante denominada documentário reflexivo, por meio da qual é viável abordar histórias pessoais e
coletivas (GABARA, 2019), bem como dar uma perspectiva política à diáspora africana
nos dois países latino-americanos. No entanto, no caso do “Afroméxico” há vieses culturalistas que podem diluir as reivindicações sociopolíticas das comunidades afrodescendentes.
O estilo reflexivo inclui uma presença explícita da pessoa que filma o vídeo,
com a qual o ato de gravar adquire um caráter militante e político em torno do assunto
abordado. Neste caso, ela se faz presente através da presença implícita e permanente
de um entrevistador. A reflexividade pode ter como objetivo escrutinar expectativas
sobre o próprio documentário ou sobre o mundo político no qual ele está circunscrito
(NICHOLS, 2010).
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Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge
Imagem 8. Realidade e ficção em uma cena intimista de estilo performativo
Fonnte: “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020)
Intertextualidade
Somente no caso de “Quilombos do Século XXI” são apresentados elementos de
intertextualidade, aspecto muito relevante para a construção de perspectivas complexas
dentro da estrutura do documentário etnográfico. O documentário brasileiro faz alusão
às obras «Foundations of cultural Studies” (Hall, 2019) e “Quilombos. geografia africana,
cartografia étnica e territórios tradicionais” (Sanzio, 2009). Da mesma forma, são apresentados documentos oficiais de reconhecimento de terras, arquivos em vídeo de atos
legislativos em favor dos afrodescendentes, arquivos históricos referentes à exclusão e
o marco legal composto pela Convenção 169, Constituição de 1988 e Lei 10.639. Todos esses documentos fornecem verossimilhança à história, mas, acima de tudo, são
testemunhas relevantes para fazer uma crítica ao racismo estrutural e para a memória
histórica.
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representações socioculturais da afro-américa
Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge
Imagem 9. Intertextualidade.
Fonte: “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019)
Paradigma antirracista (dimensões ética e estética)
Em “Quilombos do século XXI” observam-se as relações raciais à luz da identidade afro-brasileira e da preservação da cultura, onde se destacam a exaltação dos
valores afro-brasileiros e a negritude. Há uma consciência espacial da diáspora africana
onde se distingue o conceito de “Quilombo” como espaço histórico de resistência e resiliência em busca de liberdade e “Comunidades Quilombolas” como espaço histórico de
resistência cultural.
As relações raciais expressas no documentário se baseiam nas formas de conexão entre as comunidades afrodescendentes e o Estado brasileiro, onde o reconhecimento dos territórios e a posse da terra são a base fundamental das reivindicações
negras, atravessadas pela educação intercultural, pelo respeito à história, à cultura e à
religião. Faz-se uma crítica à noção de miscigenação no Brasil, tendo clareza sobre seu
papel na dissolução das diferenças e nas demandas das comunidades afrodescendentes.
A perspectiva histórica do paradigma antirracista do documentário está fortemente ancorada nos territórios e atravessa a experiência individual e coletiva. A origem escrava da diáspora africana no Brasil permite compreender a exclusão como um
elemento estrutural que tem fortes implicações nas sociedades negras contemporâneas.
130
representações socioculturais da afro-américa
Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge
Na mesma linha, discute-se o problema do racismo estrutural, ligado à falta de reconhecimento da propriedade da terra e à luta por um Brasil igualitário.
No caso de “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020)
é importante mencionar que sua perspectiva antirracista é muito mais frouxa, já que
o documentário opta por uma visão patrimonialista. A consciência racial está intimamente associada ao orgulho étnico, ao re-reconhecimento das raízes e da identidade
cultural.
As cenas repletas de detalhes sobre a cultura material, por meio de máscaras,
instrumentos musicais e pintura. Aspectos que são complementados por expressões
culturais como dança, música, gastronomia e artes plásticas. Esses aspectos são marcadores importantes de ser afrodescendente no México, uma vez que este se reduz à cor
da pele, como aponta Edgardo Miguel Paz em fragmento de entrevista: “... sem pele
escura, mas com sangue negro...”
Imagem 10. Entrevista com Egardo Miguel Paz.
Fonte: “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020)
As relações raciais são construídas a partir de uma interculturalidade dinâmica que ignora os problemas estruturais do racismo no México, no entanto, enfatiza as
especialidades produtivas dos grupos afrodescendentes que têm a ver com os processos
131
representações socioculturais da afro-américa
Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge
de adaptação biocultural aos territórios onde os diferentes fluxos migratórios se estabeleceram.
Com menos contundência do que no documentário brasileiro, a pegada histórica da escravidão é reconhecida, mas não há elementos pedagógicos ou críticas antirracistas.
Foram detectadas tomadas extremas, médias, longas e extremamente longas,
ângulos diferentes (múltiplas perspectivas) e jogos de luz que, em cada caso, permitem
reconstruir alguns aspectos derivados dessa relação colaborativa. Em ambas as produções, a edição é totalmente orientada para exaltar a narrativa e levar à resolução final da
história (BERNARD, 2010).
Síntese
Em “Quilombos do século XXI”, o discurso audiovisual é um elemento constitutivo para desenvolver uma ação educativa e uma militância dinâmica em torno das
pautas antirracistas e de reconhecimento das comunidades afrodescendentes brasileiras. Através da figura do Quilombo se expressa a resistência a busca da liberdade como
valor superior.
Embora “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020),
transmita alguns elementos históricos para contextualizar a diáspora africana no México e sublinhe sua importância na configuração da cultura nacional, sob uma apologia
patrimonialista (de unidade nacional e miscigenação) ignora a necessidade de criticar o
racismo e apontar a dívida histórica e a marginalidade vivida pelos povos afrodescendentes neste país.
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representações socioculturais da afro-américa
Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge
Tabela 1. Síntese da Análise Instrumental
Análisis Instrumental
Variável
“Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019)
“Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020)
Condições de Leitura
Título: Educação intercultural e reivindicações raciais na dimensão temporal.
Enquadramento genérico: conteúdo educativo a partir do documentário gerado sob os auspícios da administração pública.
Direção: Billa Franzoni (Experiência em documentário e trajetória
na televisão cultural). Thiago Oliveira (ator, cineasta e produtor).
Título: Educação intercultural e reivindicações raciais na dimensão espacial.
Enquadramento genérico: Conteúdo educativo do documentário no âmbito da
televisão educativa.
Direção: Ana Cruz Navarro (experiência em séries documentais, televisão cultural e educativa). Susana Harp (cantora e promotora da riqueza da miscigenação
racial no México).
Inicio
Arquétipo do herói nacional antirracista
Diversidade e coletividade
Imagem
Imagens realistas com amplos registros cromáticos, riqueza de
formas. Perspectiva orientada para a objetividade
Imagens poéticas, com uma ampla paleta de cores e complexidade de formas.
Perspectiva orientada para um lirismo narrativo.
Som
Riqueza narrativa e contextualização através do som: instrumentos
de percussão, paisagens sonoras e a voz de atores sociais.
Contextualização e função estética através de peças musicais, instrumentos de
percussão e paisagens sonoras.
Edição
Contextualização e função estética através de peças musicais,
instrumentos de percussão e paisagens sonoras.
Organização temática sequencial, através de uma estrutura organizada
Cena
A cena é recriada no espaço aberto, no meio rural, no público e
no marginal, entrelaçada com a intimidade da esfera íntima com
produção mínima.
Os personagens são sustentados em sua voz de autoridade (moral,
acadêmica, política) e a partir da multiperspectiva.
A cena destaca a paisagem tropical, o espaço rural, a pequena comunidade e o
cotidiano marginalizado.
Os personagens são recriados através de tipologias do cotidiano que se
intercalam com a voz experiente.
Narração
Ordem lógica e cronológica linear, através da integração de
fragmentos unidos tematicamente. Estrutura narrativa em
quatro partes (identidade, reivindicações, transformações sociais,
vida contemporânea).
Efeito crítico e emocional da estrutura narrativa.
Ordem lógica e cronológica, linear através de marcadores com fluxo sequencial. Estrutura narrativa em três partes (história, contribuição cultural, vida
contemporânea).
Efeito patrimonialista da estrutura narrativa, carente de uma dimensão crítica.
Gênero e estilo
Documentário etnográfico itimista e detalhista. A partir do
espaço privado, da cultura material e da entrevista em profundidade, recuperam-se as principais demandas políticas.
Documentário etnográfico expositivo e observacional. A base da estrutura é
baseada em fragmentos de entrevistas, mas a partir de uma visão externa, associada à antropologia audiovisual.
Intertextualidade
2 Trabalhos acadêmicos
5 Documentos oficiais
1 Arquivo de vídeo
1 Arquivo Histórico
3 documentos legais
Não se apresenta
Paradigma antirracista
MK
(Dimensões ética
e estética)
Consciência racial através da identidade, cultura, luta social,
valores afro-brasileiros.
Relações raciais da consciência crítica ao conceito de miscigenação e unidade nacional Reconhecimento histórico da exclusão
estrutural Reconhecimento do racismo estrutural
Consciência racial através do orgulho, raízes e identidade cultural
Relações raciais baseadas em uma interculturalidade dinâmica
Memória histórica de escalvitud
Não são apresentados elementos pedagógicos ou críticas antirracistas
Síntese
Documentário político com forte intenção pedagógica antirracista
e que coloca em pauta demandas afro-brasileiras
Documentário culturalista com forte ênfase poética que ignora a questão do
racismo e da não-violência
Fonte: Elaboração própria
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representações socioculturais da afro-américa
Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge
Considerações finais
Nos dois casos estudados, o documentário etnográfico é plenamente enriquecido por ser capaz de atingir públicos mais amplos, como o oferecido pela mídia aberta
de televisão. Nessa perspectiva, os gêneros documentais podem ser, simultaneamente,
uma ferramenta de pesquisa como meio de acesso universal ao conhecimento, por meio
da divulgação e difusão de conhecimentos com relevância social.
A grande diversidade de estilos, formas e propósitos que o documentário etnográfico adquire revela seu grande potencial para experimentar novas formas de criar
e recriar novos conhecimentos. Esse enorme potencial criativo não é peneirado apenas pela racionalidade acadêmica, mas pelas diferentes sensibilidades envolvidas em seu
processo criativo, razão pela qual é possível conceber o documentário como produto
do sentimento, numa dimensão humana para gerar novos conhecimentos e novas sensibilidades.
É possível perceber, nesse gênero, a possibilidade de gerar novas pedagogias
eficientes para disseminar o pensamento antirracista, o valor da diversidade e as demandas estabelecidas pelos grupos afrodescendentes na América Latina.
Os documentários, por suas limitações de recursos, tempo e formatos, sempre
proporcionarão visões parciais dos problemas sociais, aspecto para o qual quanto maior
for a produção existente, que proporcione mais ângulos e perspectivas, melhores serão
as condições para que o cinema seja uma ferramenta de educação intercultural e de
combate ao racismo.
O documentário etnográfico, então, torna-se um documento social que atesta
os efeitos produzidos por um racismo estrutural institucionalizado, diante do qual mudanças profundas devem ser consideradas. Com isso, busca reconhecer as contribuições
das sociedades negras para a riqueza do nosso continente mas, ao mesmo tempo, destacar as desigualdades e exclusões que esses grupos vivenciam.
Da mesma forma, essas produções podem ser caracterizadas como documentários participativos com fortes componentes de reflexividade, que embora não sejam
evidentes no produto audiovisual, é evidente que emergem de uma constante negociação entre o produtor que representa a cinematografia e a comunidade que está representada. Nesses casos, a interpretação é relativamente aberta às habilidades de leitura
do público.
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representações socioculturais da afro-américa
Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge
Nos dois exemplos abordados, percebem-se duas perspectivas: uma antirracista e outra patrimonialista, que apesar de sua relevância temática ainda se orientam pelas
convenções tradicionais da linguagem audiovisual antropológica, deixando de fora as
enormes possibilidades de inovação e experimentação a que os gêneros híbridos do
século XXI podem dar origem, que possuem infinitas possibilidades de reprodução e
distribuição, através da democratização tecnológica. Prova disso é a disponibilização
dos materiais estudados no YouTube.
Pesquisas futuras devem abordar o potencial de novos produtos experimentais
e gêneros híbridos como ferramentas eficazes para dispersar valores antirracistas e de
diversidade, que serão diretrizes fundamentais para a melhoria da qualidade de vida na
sociedade contemporânea.
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Filmografía
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138
Negrum3 - Por uma Pretagogia de saberes
em corpos negros LGBTQIA+
Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita1
Edileuza Penha de Souza2
O Cinema negro ousa dizer o que se cala
Mil nações
Moldaram minha cara
Minha voz
Uso pra dizer o que se cala
O meu país
É meu lugar de fala
Mil nações
Moldaram minha cara
Minha voz
Uso pra dizer o que se cala
Ser feliz no vão, no triz, é força que me embala
O meu país
É meu lugar de fala
O que se cala
1 Mestre em Artes Visuais pela Universidade de Brasília e professor na Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF).
2 Doutora em Educação e comunicação pela Universidade de Brasília (UnB).
139
negrum3
Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
No Brasil desde a chegada dos primeiros(as) trabalhadores(as) escravizados(as)
foi implantado o movimento de luta e resistência, o que possibilitou a construção de
novos valores para manutenção e continuidade da vida. A crença nos Òrìṣàs, Inquices,
Santos, Voduns, Egunguns e outras divindades espirituais assegurou a institucionalidade
de um continuum civilizatório recriando e legitimando a herança africana, “influenciando
a vida cotidiana, dando sentido à vida em comunidade e fortalecendo os pilares da
cultura” (LUZ, 2000, p. 97).
Nosso entendimento é que o Cinema Negro, e como diz a música “o que se
cala”, imortalizada na voz de Elza Soares3 - por conta do nosso lugar de fala, o Cinema
Negro Brasileiro (CNB), tem origem ancestral, o que significa ir além da produção de
luzes e movimentos, de narrativas e estéticas. A ancestralidade âncora na existência, no
tempo, no pensamento, na memória e na transmissão de conhecimentos. Assumimos
na Pretagogia (Petit, 2015), uma forma de compreender que a narrativa desenvolvida no
filme traz no corpo e na fala das personagens saberes construídos na luta por emancipação
(GOMES, 2017). Essa perspectiva ancestral confronta o projeto genocida fundado na
colonização mercantil4. Ou seja, pessoas negras, recriam na diáspora um outro modo de
vida, o que possibilita a garantia da existência e da continuidade enquanto povo.
Desde sua tese de doutoramento, a pesquisadora Edileuza Penha de Souza
(2013) vem afirmando que o conceito de CNB, é uma, das muitas, ações do Movimento
Negro Organizado (MNO), ou seja, foram nas organizações de resistência ao sistema
escravocrata, antes e após a assinatura da Lei Áurea5(13 de maio de 1888), que nossos
3 Cantora e compositora, emprestou sua voz a vários gêneros musicais. Ao longo de pouco mais de
60 anos de carreira, eleita pela Rádio BBC de Londres como a cantora brasileira do milênio. Nasceu e
faleceu no Rio de Janeiro, 23 de junho de 1930 – 20 de janeiro de 2022.
4 “o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão europeia foi também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos. Mas o epistemicídio
foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar,
marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista ou, durante boa parte do nosso século, a expansão comunista (neste domínio tão moderno quanto a capitalista); e
também porque ocorreu tanto no espaço periférico, extra-europeu eextra-norte-americano do sistema
mundial, como no espaço central europeu e norte-americano, contra os trabalhadores, os índios, os negros, as mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas, sexuais).” (SANTOS, 1995, p. 328).
5 Assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888. A lei decretava “a liberdade total” aos/às trabalhadores(as) escravizados(as) no Brasil. No entanto, sem nenhuma política pública de reparação, a chamada abolição da escravatura despejou nas ruas famílias negras, que até os dias de hoje lutam por justiça
e reparação.
140
negrum3
Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
ancestrais ergueram nossos destinos. Este artigo demarca as ações do MNO como
princípio fundador do Cinema Negro Brasileiro.
Acredito que é nas primeiras palavras escritas por homens e mulheres
negras no Brasil, grafadas em panfletos, periódicos, cadernos, jornais e
tantos outros instrumentos de letramento que se encontram os primórdios
para elaboração do conceito daquilo que hoje se denomina Cinema Negro
(SOUZA, 2013, p.69).
Após a falsa abolição, movimentos como a Frente Negra Brasileira, o Teatro
Experimental do Negro (TEN), e a carta escrita pelo ator Grande Otelo, em 1953, atualmente reivindicada por grupos de cineastas e atores(atrizes) negros(as) como o
Primeiro Manifesto da Imprensa Negra no Brasil - são alguns marcos do MSN que
constituem o CNB na contemporaneidade, como instrumento de denúncia da ausência
de pessoas negras no audiovisual e expressa a necessidade da visibilidade negra como
elemento de diversidade.
Compreender o Movimento Social Negro, como marco do CNB, passa
por entender o patrimônio histórico e cultural do Brasil como herança dos saberes
produzidos e sistematizados pela população negra. Neste sentido, vale lembrar que
muito da produção de filmes realizados por cineastas negros(as) somente tem sido
possível graças à colaboração do MSN, de sindicatos e organizações civis, possibilitando
um crescimento contínuo da representação negra no audiovisual.
Nosso entendimento é que o CNB subverte o que historicamente foi chamado
de Cinema Brasileiro ou Cinema Nacional, criando um cinema de emergências. Um
cinema que descoloniza corpos e mentes dando visibilidade à existência negra. E nessa
perspectiva, buscamos analisar o curta-metragem NEGRUM3 (2018), do roteirista
e diretor Diego Paulino6. Consideramos a ancestralidade como um conceito-chave
6 Além do curta-metragem NEGRUM3, Diego Paulino roteirizou e dirigiu o piloto de série “Paleta de
Cores” (2016) contemplado pelo Prêmio Antonieta de Barros para Jovens Comunicadores Negros. Foi
membro do comitê de seleção de Edital de Produção de Curtas na SPcine 2021 e do júri no Festival Fade
to Black. Ministrou aula de roteiro no Núcleo Baiano de Animação em Stop Motion (NUBAS Escola) e
aula de “Criação de narrativas especulativas” na Fundação Getúlio Vargas. Desenvolveu série de constructed reality na Endemol Shine Brasil para AmazonStudios Br. Atualmente, desenvolve seu primeiro
longa de ficção, “Experiências Incômodas em Dias Nublados’’ em coprodução com a Vitrine Filmes e
VOLTA Filmes.
141
negrum3
Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
para compreender o discurso de liberdade e existência, presentes na narrativa fílmica.
Buscamos no Afrofuturismo perquirir o caráter pedagógico do curta, para demonstrar
como um filme pode realizar mudanças e reconstituir histórias da população negra.
Recorremos à filosofia freiriana como uma das bases de análise do filme, sobretudo por
entender que trata-se de um filme libertador, que nos ensina a aprender que a qualquer
tempo, é preciso ter esperança.
De Zózimo Bulbul ao Manifesto das Bixas Pretas
Ator e diretor Zózimo Bulbul7 foi pioneiro na luta pela representação
da cultura negra na televisão e no cinema. Toda sua vida e carreira foi pautada na
militância de edificar um Cinema Negro Brasileiro, consolidando esse feito em 2007
quando criou o Centro Afro Carioca de Cinema, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro.
Nesse mesmo ano organiza o “I Encontro de Cinema Brasil África”8 com objetivo de
recuperar a memória da presença do negro e suas temáticas no cinema negro nacional
e internacional(MENDONÇA e SOUZA, 2020).
Pai do cinema negro brasileiro, Zózimo Bulbul (21 de setembro de 1937 —
24 de janeiro de 2013) foi pioneiro ao cunhar a necessidade de se construir
um cinema negro brasileiro, um cinema produzido e protagonizado por
negros. Em seu primeiro filme como diretor, “Alma no Olho” (Brasil, 1974),
se vale dos resto dos negativos da película ‘Compasso de Espera’ (1969) de
Antunes Filho, e cria uma obra de arte que viria a se tornar o primeiro
clássico do cinema negro brasileiro.(MENDONÇA e SOUZA, 2020, p.575)
Zózimo conviveu com artistas que participaram do TEN e colaborou diretamente
com os Movimentos Dogma Feijoada (2000) e o Manifesto do Recife (2001). Esses dois
Movimentos se destacam pelas especificidades na luta pela representação midiática de
pessoas negras e na denúncia das desigualdades raciais no setor do audiovisual no Brasil.
7 Sobre o assunto, ver: CARVALHO, CARVALHO, Noel dos Santos. Cinema e representação racial:
o cinema negro de Zózimo Bulbul. São Paulo, tese de doutorado em sociologia, FFLCH-USP, 2006.
8 Atualmente o evento é cunhado por: “Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul - Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas”, em homenagem ao seu criador.
142
negrum3
Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
Em 1999 produtores, documentaristas e curtametragistas negros de São Paulo
se unem e organizam o I Encontro de Realizadores e Técnicos Negros, o encontro
ocorreu no Museu da Imagem e do Som (MIS) e teve uma abrangência nacional, com a
participação de cineastas negros estreantes e consagrados. No ano seguinte é realizado
também em São Paulo o 11º Festival Internacional de Curtas Metragens e na
programação a Mostra da Diversidade Negra. No final da Mostra o cineasta Jeferson De
torna público o Manifesto Dogma Feijoada – Gênese do Cinema Negro Brasileiro,
conhecido como Cinema Feijoada, a declaração estabelece sete fundamentos para a
realização de um cinema negro (CARVALHO e DOMINGUES, 2015).
(1) o filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro; (2) o
protagonista deve ser negro; (3) a temática do filme tem de estar relacionada
com a cultura negra brasileira; (4) o filme tem de ter um cronograma
exequível. Filmes-urgentes; (5) personagens estereotipados negros (ou não)
estão proibidos; (6) o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro;
(7) super-heróis ou bandidos deverão ser evitados. (DE e CARVALHO,
2005, p. 96)
Em 2001, na 5ª edição do Festival de Cinema do Recife, Joel Zito Araújo
lança o documentário: “A negação do Brasil” (2000), fruto de sua tese de doutorado9.
O filme projeta suas lembranças entrecruzadas a depoimentos de atrizes e atores
negros, rememorando seus processos de pertencimento e identidade negra. No festival
artistas negros brasileiros apresentam um outro manifesto exigindo mudanças nas
representações das imagens dos/as negros/as no audiovisual, e conclamam:
1) O fim da segregação a que são submetidos os atores, atrizes,
apresentadores e jornalistas negros nas produtoras, agências de publicidade
e emissoras de televisão; 2) A criação de um fundo para o incentivo de uma
produção audiovisual multirracial no Brasil; 3) A ampliação do mercado de
trabalho para atrizes, atores, técnicos, produtores, diretores e roteiristas
afrodescendentes; 4) A criação de uma nova estética para o Brasil que
valorize a diversidade e a pluralidade étnica, regional e religiosa da população
brasileira (DE e CARVALHO, 2005, p. 98-99).
9 ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: identidade racial e estereótipos sobre o negro na história da telenovela brasileira. Universidade de São Paulo: USP, 1999.
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Esses dois manifestos pautaram a emergência de um cinema de combate às
estereotipias. Possibilitou a criação de narrativas que reescreve a história, bem como
demarca o pioneirismo de cineastas negros e negras na luta por uma sociedade mais
justa e fraterna. Em outras palavras esses manifestos se configuram como alguns dos
marcos do MSN que edificam o Cinema Negro Brasileiro, orientando assim perspectivas
de uma sociedade, e consequentemente de uma escola antirracista. Entendemos assim,
que o CNB também se constitui como uma iniciativa pioneira e exitosa que se apoia na
Pedagogia da Esperança10 para edificar e difundir uma educação que promova a equidade
de gênero e raça, tanto quanto o desenvolvimento e preservação da vida humana.
Partindo desses dois movimentos, o professor Lecco França (2020) denomina o
filme Negrum3 como, “uma espécie de manifesto estético e político da “bixa preta”. No
documentário performático, com o rosto pintado de preto, o ator Félix Pimenta, nos
convida a conhecer o “Manifesto Pelo Espaço Preto”. As ideias contidas no manifesto,
nos permite estabelecer que o CNB tem uma perspectiva pedagógica, uma vez que
demonstra uma articulação coletiva em busca da construção de uma outra sociedade
para sujeitos negros, que reestabelece laços com a ancestralidade de matriz africana e
vislumbra um futuro negro que celebra a pluralidade da negritude.
Firmar o Manifesto da Bixa Preta, não significa criar um outro termo que
universalize toda a experiência LGBTQIA+ negra. No entanto, consideramos relevante
explicar o porquê do emprego do termo “bixa”. Na verdade, compreendemos que esse
vocábulo, empregado historicamente como forma de ofensa, foi ressignificado para
edificar um imaginário acerca das múltiplas sexualidades, que em algum momento se
viram física ou verbalmente oprimidas. Além de ser algo importante para a narrativa
fílmica, que abarca múltiplas identidades de gênero e sexualidades. O termo “bixa”
consegue abarcar expressões de sexualidades, tais como a de indivíduos racializados.
Neste sentido, evocamos autores como Vidarte (2019) e Silva (2020), para os quais o
termo “bixa” apresenta múltiplas possibilidades, a exemplo do coletivo Afrobixas11.
Silva (2020) explicita que o coletivo optou pelo termo “bixa”, por entender que a
10 Livro escrito por Paulo Freire, traz uma reflexão sobre o clássico: “Pedagogia do oprimido” (1968).
Em “Pedagogia da Esperança”, o autor analisa suas experiências pedagógicas em quase três décadas em
diferentes países.
11 O coletivo Afrobixas, é um coletivo de jovens negros que propõe debates acerca de raça, gênero e
sexualidades no Distrito Federal.
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Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
terminologia abarca outras expressões de sexualidade e de identidade de gênero presentes
nas pessoas que compõem o grupo. Por sua vez, Vidarte (2019) nos ajuda a compreender
essa circunstância, ao propor uma ética bixa, uma ética não universalizante, mas, que:
deveria recuperar a solidariedade entre os oprimidos, discriminados e
perseguidos, evitando estar a serviço das éticas neoliberais criptorreligiosas
herdadas em que fomos criados e nas quais se forjaram nossos interesses
de classe, e recuperar a solidariedade com os outros que foram e são
igualmente oprimidos, discriminados e perseguidos por razões diferentes
de sua orientação sexual (VIDARTE, 2019, p. 22).
O conceito da ética bixa trazido por Vidarte (2019) contempla grupos e coletivos
sociais que vivenciam múltiplas opressões: raciais, sociais, territoriais ou religiosas.
O emprego do termo ao tratar o filme como um manifesto possibilita abarcar as
sexualidades negras e evidenciar a interseccionalidade dos sistemas de opressão, contra
os quais vislumbramos no CNB um mecanismo de resistência.
As similaridades das ideias contidas nos debates sobre CNB, se fazem presente
no Manifesto pelo Espaço Preto. Em ambos, temos um religar-se com o passado, a
valorização da negritude e a construção de novas perspectivas de futuro. Neste sentido,
corroboramos com a proposta de França (2020) ao dizer que NEGRUM3, é um
manifesto da bixa preta. São “bixas” todas as pessoas que coletivizam experiências de
autocuidado, de identidades e de ancestralidade.
Manifesto pelo Espaço Preto
Na minha pele preta
Tão escura quanto a noite
Carrego a história de gerações
Da minha e das passadas
Carrego as vozes daqueles que vieram antes de mim
E resisto hoje em nome daqueles que virão depois
Se a minha pele preta é meu manto de coragem
Uso de sua proteção para avançar e perdurar no cotidiano
Contrariando estatística, desviando de projéteis de chumbo
Que miram na luz do sol ou ao brilho da lua
Não importa o tecido ou acessório que me cubra
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negrum3
Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
A minha pele preta, escura e sombria
Reluz como as estrelas do firmamento a cada dia vivido
Das histórias de luta que carrego em minhas veias, cabelo, boca e nariz.
Busco forças para reinventar um futuro onde a existência minha e de meus
irmãos
Seja a própria ideia fundamental de ser humano
Aspiramos aos cosmos pela simples possibilidade de sonhar
Aspiramos ao espaço sideral para além do etéreo e longínquo
Mas também, ao espaço em sua forma mais literal, espaço.
Lutamos pela individualidade de nossos corpos e a pluralidade da nossa
negritude
Ao exercer as nossas múltiplas formas de ser
Não introjete em nossas veias suas ideias pálidas e esquálidas
Ou suas máximas retrógradas que delimitam a sexualidade e o gênero
Nossos corpos negros e celestes são maiores do que isso
Juntos escurecemos o céu desbotado que nos cobre, em busca de recriar
nosso presente
Reconhecemos a força daqueles que vieram antes de nós
E, concebemos o futuro àqueles que estão por vir (Paulino, 2018).
Ser uma Bixa Preta implica em assumir a construção de novos valores. E, neste
sentido, compreendemos o Manifesto das Bixas Pretas como mais um elemento de
expressão do Movimento Social Negro. O Manifesto agrega o respeito e a valorização
da diversidade afetiva e sexual e consolida a ancestralidade de matriz africana como um
processo educativo que se manifesta na intimidade e nos corações. É nessa perspectiva
ancestral e transcendente que o filme NEGRUM3 nos convida a realizar um casamento
entre a sociedade e a intimidade, nos desafia a ser fiel aos nossos corpos e sonhos. O
filme nos oferece a esperança de restaurar o sagrado existente em cada ser humano. Se
volta à transmissão do conhecimento, da manutenção da saúde, do autocuidado e do
bem-estar de cada pessoa preta.
Negrum3 na escola - Por uma Pretagogia da Esperança
O curta-metragem “Negrum3” apresenta-se como um filme‐ensaio sobre
negritude, viadagem e aspirações espaciais dos filhos da diáspora. Trata-se, portanto,
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Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
de um documentário performático que se divide em três partes, nas quais se propõe um
mergulho na caminhada de jovens negros da cidade de São Paulo e a quebra de padrões
estéticos e de saberes, ao deslocar a fala para personagens negras, cujas experiências
rompem com os padrões de raça, de gênero e de sexualidade impostos pela sociedade
heterocisnormativa.
Nos apropriamos do conceito de Pretagogia desenvolvido pela professora Sandra
Petit (2015), como categoria de análise fílmica. A Pretagogia está ligada diretamente aos
valores da cosmovisão africana, assim como NEGRUM3 nos oferece elementos divinos
como representação simbólica da identidade negra. “Ela produz respostas especialmente
densas perante a vitalidade. Resguarda o espírito do herói e da heroína em plena jornada
de superar obstáculos. A partida, a iniciação e o retorno cíclico refaz o movimento
negro” (LIMA, 2015, p.19).
O filme defende a arte e o direito de ser “Bixa Preta”, orgulhosamente clama
por respeito e pelo direito de existir. Por sua vez, “a Pretagogia se alimenta dos saberes,
conceitos e conhecimentos, de matriz africana, o que significa dizer que se ampara em
um modo particular de ser e de estar no mundo. Esse modo de ser é também um modo
de conceber o cosmos, ou seja, uma cosmovisão africana” (PETIT, 2015, p. 120).
É na luta de combate ao racismo e a todo tipo de preconceitos e discriminação
que se edifica uma educação libertadora e se conecta com os saberes ancestrais, expressos
no corpo e na oralidade do povo negro. Assentada nos valores das tradições de matriz
africana, o respeito aos sagrados, o culto ao corpo, o desejo e o espírito se conectam
diretamente com a ideia de cuidado e autocuidado. Assim como o filme Negrum3 a
pretagogia dialoga com narrativas de empoderamento, protagoniza a ancestralidade e
o corpo negro enquanto fonte espiritual e clama pela urgência desses elementos nos
espaços educativos.
Almeida (2017) afirma que a relação entre cinema e educação pode ser observada
segundo diferentes possibilidades, dependendo de como se concebe a própria educação:
seja no sentido estrito do aprendizado de conteúdos curriculares, seja no sentido de
ampliação das referências culturais da pessoa. O autor observa que, no contexto escolar,
o cinema pode ser empregado como um mediador entre os(as) estudantes e determinado
conteúdo, como uma forma de despertar o interesse pelo conhecimento ou, ainda, como
um instrumento para desenvolver a criticidade do(a) discente.
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Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
Defendemos a concepção de que o cinema educa, não porque está associado
a algum conteúdo, mas porque permite ao universo educacional atuar nas formas de
pensamento, no imaginário, uma vez que tensiona as relações estabelecidas na sociedade
(ALMEIDA, 2017).
No governo da presidenta Dilma Rousseff12 foi sancionada a Lei 13.006/2014, que
determina a exibição de duas horas mensais de cinema nacional em todas as escolas
do Brasil. Essa lei tornou o cinema um componente complementar ao currículo, que
deve ser incorporado à proposta pedagógica da escola. No entanto, um dos muitos
desafios que essa nova lei apresenta diz respeito à seleção dos filmes que chegarão
às escolas: como garantir que a multiplicidade de temas, realizadores e realizadoras,
propostas estéticas e discursivas, que atualmente fazem o cinema brasileiro ser destaque
em festivais no mundo inteiro, seja também objeto de apreciação de toda comunidade
escolar brasileira? (FRESQUET e MIGLIORIN, 2015).
Uma das qualidades da lei é transformar a escola em um local de encontro entre
o cinema e o público, que em diversos momentos não tem acesso às salas comerciais de
exibição: “mais do que isso, a possibilidade de acesso a sistemas de expressão e signos,
blocos de ideias e estéticas marginalizadas pelo mercado e pelo sistema oligopolista de
exibição” (FRESQUET e MIGLIORIN, 2015, p. 8).
Nesse sentido, a proposta existente na lei 13.006/2014 permite aproximar as
produções do CNB ao espaço escolar e, assim contribuir para a realização de debates
acerca de temas urgentes na sociedade. Visto que essas produções têm desenvolvido
experimentações estéticas e trazido para o centro de suas narrativas personagens,
até então, marginalizados pelo cinema hegemônico. Outra lei federal que expressa o
caráter pedagógico do cinema negro é a Lei 10.639/200313. Criada com o propósito
de ressignificar a cosmovisão africana, essa lei propõe uma prática pedagógica afrobrasileira que possibilita a reconstituição da história da população negra.
Acreditamos, portanto, que as leis 10.639/2003 e a 13.006/2014 se fortalecem
com as produções do CNB, ambos desempenham um papel de importância pedagógica
12 A lei 13.006/2014 acrescenta § 8º ao art. 26 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de
diretrizes e bases da educação nacional), e passa obrigar a exibição de filmes de produção nacional, por
no mínimo duas horas mensais nas escolas de educação básica.http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2011-2014/2014/Lei/L13006.htm
13 A Lei 10639/2003, assinada em 2003 torna obrigatório o ensino de cultura e história afro-brasileira
no ensino básico do Brasil. Consultar:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm
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Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
ao possibilitar debates e ações ligadas à população negra no Brasil como a religiosidade,
e a circularidade. Estes instrumentos promovem o contato entre a escola e as múltiplas
vivências da população negra no Brasil — como as de negros/as LGBTQIA+ — que,
muitas vezes, são excluídas desses espaços, contribuindo para alcançar o objetivo de uma
escola que respeite as diferenças e se volta para instituir uma pedagogia da esperança.
Afrofuturismos - o futuro negro de NEGRUM3
Esteticamente, NEGRUM3 inspira-se no afrofuturismo, movimento estético,
social e cultural, que une elementos da ficção especulativa a história das culturas
africanas. O afrofuturismo é um movimento político, social e estético. Muitas vezes
compreendido também como subgênero da ficção científica. Os holofotes da tecnologia,
permite que esse movimento torne o sonho e a fantasia em realidade. O que parece ser
utopia (o desejo de ser fada e princesa no início do filme) se transforma em realidade
quando ao final se descortina toda a ancestralidade negra africana. “(...) em um aspecto
amplo o afrofuturismo pode ser pensado pela junção da experiência negra e narrativas
de ficção especulativa” (FREITAS e SOUZA, 2018, p. 496).
Os filmes inspirados pela estética afrofuturista reelaboram o passado, com o
intuito de especular um futuro negro que rompa com a hostilidade do presente. Há
neles um infringir os limites de tempo e de espaço, para criar formas de se enxergar no
mundo enquanto sujeito negro (FREITAS e SOUZA, 2018).
Negrum3 é um filme com estética afrofuturista composto de três atos. Em suas
performances questiona as vivências de ser e do ser negro nos espaços urbanos. As
narrativas desenvolvidas perpassam por experiências corporais e estéticas que acessam
referências africanas e afrodiaspóricas na busca de especular novas possibilidades de
vida para o corpo negro. O curta-metragem é protagonizado por Eric Oliveira, Félix
Pimenta, Aretha Sadick14 e outros artistas da cidade de São Paulo.
O filme inicia-se com uma performance que destaca o corpo de Eric: um corpo
negro, seminu, sozinho em um fundo preto. Corta para um espelho partido, o encontro
da personagem com o espelho causa estranhamento, ao não se perceber na imagem
refletida (Figura 1).
14 Eric Oliveira - DJ, modelo e performer. Félix Pimenta - dançarino performer, pesquisador, professor
e coreógrafo de danças urbanas. Aretha Sadick - multiartista trans, performer, atriz.
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Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
Figura 1: Erick se olha no espelho - Fonte: Frame do filme Negrum3.
Ele continua despido, como uma figura sem identidade, até que num novo corte,
aparecem várias roupas no cenário. Erick ainda em um processo de se reconhecer,
começa a utilizar esses diferentes acessórios e roupas que aparecem em cena (figura 2).
Figura 2: Erick se olha no espelho com as roupas penduradas no palco - Fonte: Frame do filme
Negrum3.
Cortado somente por uma batida, essa cena é composta por um quase silêncio.
O som da cena ecoa como se fossem batidas do coração, surgem ruídos produzidos pelos
movimentos da personagem. Eric parece brincar com as suas múltiplas imagens, que
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Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
se apresentam nos diversos pedaços do espelho quebrado e nas roupas que mudam a
todo instante por meio de uma montagem que, a cada corte, apresenta a personagem de
maneira diferente. Tudo se mistura nesse processo de autorreconhecimento, a liberdade
do corpo é o ponto principal do início da cena, um corpo que brinca, um corpo livre,
que tem uma identidade fluida.
As mudanças de roupa também alteram a postura da personagem, de um ar de
medo, passa a ter altivez, ao usar essas roupas e acessórios. Ela passeia olhando para
cada vestimenta, tudo é uma grande experimentação das possibilidades ali presentes. A
personagem parece não ter mais medo do que vê no espelho.
Em Negrum3, o espelho é também uma metáfora e, ao mesmo tempo que
quebrado, se constitui como disputa em torno da representação do corpo negro. Inteiro
recupera a identidade, as origens ancestrais e as tradições de poder. O diretor, não se
furta das referências simbólicas. O espelho, não é apenas um objeto político, educacional
e espiritual, ele representa a transformação e a consciência. Sua superfície reflete os
múltiplos processos de construção de memória do estar no mundo e ser uma Bixa-preta
(DA-RIN, 2004; SODRÉ, 2009).
O silêncio da sequência inicial do filme é quebrado pela fala da própria
personagem, que discorre sobre a não aceitação da sociedade, sobre ser um corpo e
uma estética proibidos. Sua fala se mistura a outras em off, que dão continuidade a esses
questionamentos. Nelas, percebem-se as inúmeras violências vivenciadas por corpos
negros dissidentes, ficam expressos o racismo, a LGBTfobia, a gordofobia, a misoginia,
que constituem violências físicas e psicológicas (MESQUITA, 2021).
A resistência a esse processo violento em que vivem corpos negros, aparece
no filme a partir da afirmação da negritude. Isso permite a compreensão de que há
diferentes vivência negras e possibilita romper com os estereótipos associados ao corpo
negro. A maneira como esse processo se realiza fica evidente na sequência, em que
Erick demonstra que sua identidade negra é fator de fortalecimento.
A banda sonora se modifica para tambores e as tomadas se tornam mais longas,
a personagem se observa no espelho mais atentamente e parece não rejeitar a imagem
que vê. O poema “Me Gritaron Negra” da poeta peruana Victoria Santa Cruz, o qual se
tornou uma bandeira contra o racismo, começa a ser declamado por uma voz em off.
No poema, percebe-se a mudança na maneira como a interlocutora entende a palavra
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negrum3
Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
negra, que deixa de ser um insulto, para tornar-se afirmação destemida da identidade e
da humanidade negras.
A afirmação da identidade negra faz com que Eric se fortaleça e enfrente a cidade
se expressando livremente pelas ruas. Seu corpo revela esse novo momento, caminha
altivo e encontra outros corpos negros, e juntos festejam o encontro com sorrisos
e danças. Ao som da batida do funk os corpos dançam e celebram suas existências e
pertencimentos. Ultimando a primeira parte do filme a ancestralidade é celebrada com
alegria, pois o existir é também símbolo “de sobrevivência, resistência e expansão da
cultura negra no mundo” (PETIT, 2015,p. 26).
O segundo ato de Negrum3, se inicia por meio de um close no rosto de Félix
Pimenta, cujos cabelos são ajeitados para que ele possa entrar em cena (Figura 3). Essa
imagem denota que o empoderamento e a aceitação envolvem também uma experiência
estética-corporal. Destaco a personagem que arruma Félix: seu figurino remete à
orixá Iansã, que representa para o candomblé, religião de matriz africana, a força da
natureza e a força feminina. O filme, nesse momento, faz referência à força ancestral
que possibilita a Félix entrar em cena.
Figura 3: Os cabelos de Félix são arrumados - Fonte: frame do filme Negrum3.
Após um zoom out, é possível observar todo o ambiente em que a cena se
desenvolve. A personagem, então, interpreta o Manifesto pelo Espaço Preto, em um
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cenário repleto de obras com corpos ensanguentados, que tanto remetem à luta pela
sobrevivência do povo negro, quanto ao genocídio perpetrado contra negros e negras
desde a diáspora forçada do continente africano (NASCIMENTO, 2016).
Enquanto o manifesto é lido, a montagem traz imagens que remetem a ideia de
um futuro em que negros e negras possam expressar-se. Com uma dinâmica rápida, a
leitura do manifesto é acompanhada por cenas de uma performance de dança, que se
misturam a imagens de um centro urbano com prédios altos e luzes neon. No topo desses
prédios, veem-se corpos negros que representam a multiplicidade do ser negro(a): tons
de pele, texturas de cabelo, formas corporais. A música eletrônica dá o tom da dança e
da montagem. Esse conjunto de fatores sintetizam as referências temporais desse ato do
filme, em que a ancestralidade prepara Félix para a leitura do manifesto no qual se clama
por um futuro diferente para a população negra.
Finalmente, na terceira parte, em um cenário quase carnavalesco afrofuturista,
com muito brilho e luz, Aretha Sadick e Erick descem uma enorme escada e se encontram
para uma nova performance. Ela chega em uma nave espacial, com ornamentos
que remetem ao Egito antigo e aos impérios de reis e de rainhas africanas, como ela
mesma afirma em sua fala. Em uma celebração musical, as batidas eletrônicas do funk
combinam-se às imagens na criação de uma utopia afrofuturista.
Em seu canto de celebração do futuro, Aretha novamente lembra o processo
de diáspora forçada pelo qual passou o povo negro e adverte-lhe que chegou a hora de
tomar posse do que é seu. Projeta-se o futuro, em constante diálogo com o passado, por
meio da valorização dos que possibilitaram a chegada desse momento, dos que lutaram
e morreram pela independência do corpo negro, que mais uma vez dança e celebra.
Imediatamente após o trecho “Hoje vamos olhar para o futuro de onde tudo começou!”,
há um corte rápido — em sincronia com a batida eletrônica do funk —, e aparece Erick
(protagonista do primeiro ato do filme), que se junta à performance de Aretha. Há um
visível contraste entre a caracterização das duas personagens: enquanto o figurino e os
adereços de Aretha remetem ao passado africano, as formas geométricas do figurino
de Erick aludem ao futuro negro. Materializa-se, por meio das imagens (figura 3), a
confluência temporal anteriormente sugerida na fala de Aretha: passado e futuro se
encontram na construção do presente.
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Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza
Figura 4: Erick e Aretha: futuro e passado - Fonte: Frame do filme Negrum3.
As sequências que compõem essa parte do filme podem ser associadas a concepção
filosófica ubuntu, segundo a qual toda a realidade está integrada. Portanto, a existência
do indivíduo só tem sentido quando ele se insere em uma comunidade, trabalhando em
conjunto com seus pares. Para Nogueira (2012), o sentido da palavra “ubuntu” alude
àquilo que “é comum a todas as pessoas” A ética ubuntu é encontrada em inúmeras
comunidades bontúfonas, o que permite concluir que o filme busca reconectar-se com
o passado africano (2012, p. 148).
Destacamos a referência a uma constituição social que remete às sociedades
do continente africano, não como mera volta ao passado, mas como um processo
de construção identitária importante no presente, para que se possa vislumbrar a
perspectiva de um futuro melhor para os descendentes da população negra.
Por meio da recuperação de conceitos e valores presentes na ancestralidade
negra, propõe-se a possibilidade de reformulação do presente e do futuro. Nesse sentido,
corrobora-se a ideia de que o cinema constitui uma prática epistemológica, que pode
converter-se em “instrumento de superação do eurocentrismo, para além da tentativa
de coisificação, imposta pela euroheteronormatividade” (PRUDENTE e PÉRIGO, 2020
p. 428).
Ao tratar da epistemologia, Oliveira (2018) afirma que, como forma de produção
de significado, ela é peça-chave na afirmação ou na negação de determinada cultura.
Entendemos, pois, que reconhecer o CNB como produção epistêmica pressupõe
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considerá-lo como relevante mecanismo de produção de signos acerca das negritudes
no Brasil, por meio dos quais se propõe a afirmação da cultura de matriz africana
ressignificada na diáspora, em um reencontro ancestral, que permite conjecturar novos
processos de formação identitária e reconstrução de sociedade.
O cinema que constrói mil nações
O processo dialógico que ocorre em produções como NEGRUM3 constitui
dimensões pedagógicas da pretagogia. Observamos que o Cinema Negro Brasileiro é
uma arte que, por um lado, afirma a presença e a cultura negra e, por outro, questiona
a estrutura de produção cultural e do saber. O filme, portanto, traz a compreensão
de que as múltiplas expressões da sexualidade negra sempre existiram, o que permite
vislumbrar um futuro no qual se rompe com os binarismos impostos pela colonialidade.
Corrobora-se a ideia de uma ancestralidade negra travesti, em consonância com o
pensamento de Oliveira (2020).
Com base nessas considerações, reafirmamos que NEGRUM3 possibilita
reformular a história negra e inserir a experiência de sexualidades dissidentes na
construção de sua cultura. A ancestralidade torna compreensíveis as múltiplas
experiências da população negra, no continente africano e toda a diáspora, permitem a
reconfiguração do real, para conceber um mundo onde raça, gênero e sexualidade não
se convertam em fatores de exclusão.
Assim, trazer a imagens de pessoas LGBTQIA+ como pertencentes a uma
ancestralidade negra permite, pois, o deslocamento do olhar, bem como a construção
de nova lógica de compreensão das estruturas sociais, realçando o sentido pedagógico
do Cinema Negro Brasileiro.
Em Negrum3, Diego Paulino apresenta pensamentos e metodologias do Cinema
Negro Brasileiro, trabalha em seus filmes narrativas ligadas à negritude e compõe
uma experiência racial perpassada por uma sexualidade dissidente.Corpos que fogem
à heteronormatividade predominante na sociedade e na produção cinematográfica
brasileira, tomam o protagonismo da história do filme e reformulam a maneira
como se apresentam ao público. Trazem à tona novas formas de viver e performar
socialmente. São narrativas construídas a partir de novos referenciais, as quais ressaltam
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como a negritude e a sexualidade interagem na construção da identidade e, embora
retratem opressões, enaltecem subjetividades e corporeidades que fogem à norma
social(MESQUITA, 2021).
O cinema tem o potencial de produzir sentido, sua imagem em movimento
pode realizar mudanças paradigmáticas, pela forma como se retratam determinados
temas, possibilita inclusive novas relações temporais. Essa dimensão epistemológica do
cinema é o que permite a reflexão do papel do CNB “enquanto agente de interação
entre as representações reais e imaginárias” (PRUDENTE e PÉRIGO, 2020, p. 423) da
população negra, instaurando sua dimensão pedagógica, no sentido de que ele tem a
capacidade de construir novos conhecimentos.
A dimensão pedagógica do CNB dota o espaço escolar de novos mecanismos
de discussão das relações étnico-raciais. Esta vertente do cinema coloca o negro em
destaque e questiona o lugar ocupado por ele na sociedade. Edifica uma filmografia que
humaniza a população negra. “Esta relação étnico-cinematográfica da africanidade traz
o negro em primeiro plano, desarticulando o processo eurocêntrico de massificação,
descolonizando hábitos e conceitos” (PRUDENTE e PÉRIGO, 2020, p.427).
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DA-RIN, Silvio. Espelho Partido – tradição e transformação do documentário.
Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004.
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negrum3
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Carolina Maria de Jesus: educação
para a resistência
Michelle Júlia de Sousa1
Hugo Cesar Bueno Nunes2
Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos3
1 Michelle Júlia de Sousa, ORCID: https://orcid.org./0000-0002-5787-3174
Universidade de São Paulo/Faculdade de Educação - FEUSP
Doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo na área de Educação e Ciências Sociais:
Desigualdades e Diferenças. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Lavras. Graduada em
Ciências Biológicas - Tem desenvolvido trabalhos na linha de Formação de Professores, Ensino de
Ciências, Educação Ambiental e Sociologia da Infância. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4084673047601549
E-mail: michelle_sousa@usp.br
2 Hugo Cesar Bueno Nunes, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5143-6339
Faculdade SESI de Educação (FASESP)
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo - USP. Coordenador de Graduação - Licenciaturas
- Faculdade SESI de Educação/FASESP. Coordenador do Grupo de Estudos da Diferença na Educação GEDE/FASESP. Lattes: Lattes: http://lattes.cnpq.br/0982033663220541.
E-mail: hnunes@faculdadesesi.edu.br
3 Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos, ORCID: https://orcid.org/0000-00021861-0902 Universidade de São Paulo/Instituto de Estudos Avançados
Pedagogo e Psicanalista. Sócio(a) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Membro da Rede
Nacional da Ciência para a Educação. Tem experiência na área de Educação, na intersecção entre Psicanálise e Educação. Atualmente é Editor da Revista Impressa Análises de discurso. Docente da Faculdade
SESI de Educação. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3941575427040698. E-mail: dpestana@usp.br
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Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
Introdução
“... não tenho força física, mas minhas palavras ferem...”
Maria Carolina de Jesus
Não obstante as mais diferentes problematizações passíveis de serem criadas,
nos indagamos: como trazer à baila a condição do negro e sua história, sua cultura para
o campo da educação formal? O quanto obras como a de Carolina nos propiciam retirar
o véu que acoberta as mazelas que acometem muitos dos nossos estudantes por este
Brasil a fora? Sabemos que apesar de fundamental, a Lei 10.639 que inclui o ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira na educação básica, infelizmente, em muitas escolas
passa ao largo, e são tratadas como perfumaria, principalmente no mês de novembro
quando se comemora o dia da consciência negra.
Neste diapasão, propomos intentarmos no campo da educação algumas nuances
que nos atravessam neste tempo-espaço e que nos mantem imersos e vívidos nesta
ambiência que compõe nossa vida-escola-educação.
Destarte, quando colocamos uma lupa no campo de formação de professores
e professoras, percebemos que embora a comunidade negra brasileira totalize mais
de cinquenta e seis por cento da população, tal representatividade, principalmente
da mulher e negra, não está presente nos referenciais de formação para docentes da
Educação Básica, como afirma Santos (2009) não é possível existir qualquer espécie de
conhecimento sem que haja e se valorize seus representantes e suas práticas sociais, pois
é por esse caminho que o conhecimento ou a experiência de determinado grupo será
reconhecido e/ou validado.
Para Santos (2009), a colonização tenta transformar diferenças em desigualdades
sociais, e o que encontramos hoje nos movimentos de luta da sociedade, são diferentes
tipos de resistências, pluralidade social e cultural, o que certamente nos obriga a análises
e avaliações mais complexas das diferentes interpretações e intervenções no mundo
produzidas pelos diferentes tipos de conhecimentos.
Assim, é a dominação epistemológica colonial que traduz relações
profundamente desiguais do ser, saber, e poder, suprimindo historicamente saberes
outros dos povos e/ou nações que foram colonizados, explorados e que tiveram suas
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Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
identidades ofuscadas, ou mesmo, degeneradas. Com a falta de referencial africano e
afro-brasileiro no currículo dos cursos de formação docente, há uma perpetuação de
um referencial predominantemente eurocentrado, o qual produz práticas pedagógicas
na educação básica que em grande parte ignora e perpetua o apagamento de nossas
raízes.
Em contraponto a este paradigma que permeiam nossas escolas, concordamos
com hooks (2020) quando defende uma educação que inclua autores e autoras negras,
principalmente mulheres, visto que a educação como prática de liberdade só será possível
quando os/as docentes incorporarem em suas práticas a possibilidade de formar seus/
suas estudantes valorizando o multiculturalismo, sendo assim, corroborarmos com a
autora quando afirma que “é preciso instituir locais de formação onde os professores
tenham a oportunidade de expressar seus temores e ao mesmo tempo aprender a criar
estratégias para abordar a sala de aula e o currículo multicultural” ( p.52).
Para Moreira e Candau (2008) quando defendemos o multiculturalismo em
educação, estamos a nos posicionar de forma incisiva a favor da luta contra a opressão
e a discriminação que certos grupos minoritários têm sido submetidos ao longo do
tempo por grupos mais poderosos e privilegiados, além do envolvimento em ações
politicamente comprometidas.
Outra perspectiva que nos saltam aos olhos, como bem descreveu Silva (2010)
é referente a discriminação racial presente nos livros didáticos na educação básica
brasileira. É nítido como os currículos e não obstante as práticas pedagógicas, são
marcados por valores colonizadores que ignoram, ocultam, excluem e degeneram
toda perspectiva das diferenças, tendo na relação do binarismo cartesiano da ciência
moderna seu principal ponto de apego, e assim, valorizando apenas o homem, branco,
cristão, cis hétero, como sendo a norma e o modelo de humanidade a ser seguido. Essa
lógica é reproduzida também em relação ao gênero, visto que os autores dos livros
didáticos também em sua maioria são homens. Assim, retomando hooks (2020) não
podemos perder de vista que raça, gênero e classe são categorias interseccionais, temas
que atravessam e são atravessados pelo sexismo colonial.
Para Silva (2010), a falta de representatividade de negras e negros nos livros
didáticos produz um sentimento de rejeição inconsciente, um tipo de saber que humilha,
levando os/as sujeitos envolvidos a se apegar a estereótipos padronizados.
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Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
O livro didático ao veicular estereótipos que expandem uma representação
negativa do negro e uma representação positiva do branco, está expandindo
a ideologia do branqueamento, que se alimenta das ideologias, das teorias
e estereótipos de inferioridade/superioridade raciais, que se conjugam
com a não legitimação pelo Estado, dos processos civilizatórios indígena
e africano, entre outros, constituintes da identidade cultural da nação
(SILVA, 2010, p. 17 apud SILVA, 1989, p. 57).
Ao privar os grupos minoritários de conhecer, entender e refletir sobre sua
história, seu povo, suas raízes, a escola introjeta a ideia de que só existe um tipo de
cultura, de religião, de povo ou mesmo de realidade. Quando usamos a expressão “grupos
minoritários” nos lembramos de um trecho da música do rapper Baco Exu do Blues4 que
problematiza essa questão da seguinte maneira “[...] O Brasil tem uma população de
negros maior que a de brancos, temos menos valor por ser maioria? A ironia da maioria
virar minoria” (BACO EXU DO BLUES, 2018). Nesse sentido, a falta de autoras negras
nos livros utilizados nas escolas faz parte de uma conjuntura do racismo estrutural que
embrenha a sociedade, que invisibiliza uma população que é maioria, convertendo-a
em minoria.
Fanon (1952) na obra “Pele Negra, Máscaras Brancas” descreve que a primeira
forma do colonizador devastar uma cultura é privando um povo de sua linguagem, pois
ao perder sua referência de comunicação, sua história, as pessoas negras se convencem
de que aquela outra língua, aquele outro costume é melhor, e mesmo a cor de sua pele
não está à altura de viver em uma sociedade cujos valores são europeus. Portanto,
expressão é pertença. Nessa direção Maria Carolina de Jesus denuncia as iniquidades
sociais e o total desamparo de um Estado negligente traçando uma analogia de cor com
a fome:
Eu sou negra e a fome é amarela e dói muito [...] A tontura da fome é pior
do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome
nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago. [...]
Resolvi tomar uma média e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz
a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores,
4 Baco Exu do Blues. Bluesman. Bluesman. São Paulo, Selo EAEO Records, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-xFz8zZo-Dw&ab_channel=999. Acesso em: 26/02/2023
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Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos
(JESUS, 2014 p. 44).
Ao se deslocar de sua cultura para se inserir na cultura europeia o/a negro/a não
se vê acolhido pelos/as brancos/as e ao retornar para sua comunidade também não é
acolhido pelos seus pares, pois já perdera a identidade de sua origem e não se encaixa na
nova realidade, vivendo um processo de solidão (FANON, 1952).
Entretanto, no Brasil, há resistência (re-existência) na poesia expressa em
música, na literatura, no audiovisual, como visto nas artes de Baco, Carolina e Jeferson
De, os quais produziram em diferentes linguagens, um fluxo de possível para que
possamos nunca mais esquecermos de onde viemos e principalmente, não matarmos em
nossos estudantes suas mais difusas identidades. Muitas das nossas produções e artistas
reconhecidos internacionalmente, nascem dentro da cultura negra, como exemplos
temos o samba, o rap, o funk, o slam etc., nos provando diariamente a qualidade de tais
produções. Mas ainda assim, nos questionamos: qual o espaço que as mulheres negras
têm nestes campos? Como as mulheres negras têm se expressado e sido valorizadas pela
sua arte historicamente?
Entendemos que por meio da cultura de branqueamento as crianças negras
introjetam desde muito pequenas que sua cor, seu cabelo é feio, sujo e que querem ter
traços brancos para se identificarem com o que lhes é apresentado como bom, certo,
limpo pela sociedade. É apresentado às crianças negras uma estética branca, privando-as
de se desenvolverem a acessarem aspectos e características artísticas, lúdicas e culturais
que valorizem suas histórias, suas realidades e/ou mesmo suas ancestralidades.
Para Oliveira (2004), as crianças negras são maltratadas desde a creche, e assim,
tem dificuldades para construir uma autoimagem positiva, enfrentando comportamentos
racistas com os adultos desde o início de sua socialização, aspecto que só reforça o
apagamento de certas identidades que não se afinam com o paradigma que orienta nossa
sociedade e muitas das instituições de ensino.
A educação no Brasil é um campo de disputa de narrativas para valores éticos,
políticos e estéticos constante, assim, a luta permanente caracteriza a construção efetiva
de uma educação que seja de fato justa, equânime e igualitária para todos e todas.
Para Silva (2010) o fato de as instituições escolares oferecerem ou não
oportunidades de acesso e permanência de maneira diferenciada contribui para maior
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Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
evasão da população negra, aumentando o abismo social existente historicamente. O
mapa da desigualdade de 2020, realizado pela Rede Nossa São Paulo e pelo Programa
Cidades Sustentáveis exprime as desigualdades escancaradas nos distritos e capital
paulista, o documento apresenta diversos indicadores que analisa dados de 2012 a 2019,
entre eles direitos humanos, meio ambiente, população, educação, saúde, cultura, renda,
acesso a transporte, entre outros5.
O processo de socialização e silenciamento das crianças negras encontra eco na
atuação de muitos e muitas docentes na educação básica. Assim, é urgente tratarmos
destas questões nos mais diferentes espaços de formação de professores/as e, para isso,
lançarmos mão de obras literárias, audiovisuais que denunciem as mazelas do povo
pobre e negro deste país, faz-se imprescindível pela sua capacidade de sensibilização e
descrição da realidade como ela é.
Porém, este movimento não é fácil e muito menos simples, como reafirmam
Abramowics; Rodrigues; Cruz (2011) quando buscamos mudar as relações dentro da
escola no que concerne a valorização da cultura negra, precisamos mudar todo o caráter
desta iniciação e fazermos mudanças em nós mesmos. O Racismo, o preconceito, toda
uma micropolítica fascista que exclui a diferença, colocando-a no lugar do desvio, do
negativo, dá certo, pois cada um de nós trabalha ativamente em favor desta lógica.
Carolina Maria de Jesus: ética, estética, política de uma resistência
“…O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é
professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças”
Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus nasceu no sudeste de Minas Gerais, na cidade de
Sacramento, no dia 14 de março de 1914. Era neta de escravizado e filha de uma
lavadeira, teve sete irmãos. Já na infância trabalhava para contribuir com a renda
familiar. Na formação escolar estudou até o segundo ano primário no colégio Alan
5 Entre a multiplicidade de dados apresentados, é importante destacarmos alguns: na cidade de São Paulo
em média 2 pessoas para cada dez mil habitantes sofreram violência de racismo e injúria racial, um aumento de 35%, a violência contra as mulheres aumentou 64%, número que salta de 50.566 para 83.001, os
casos de feminicídio aumentaram 72% na mesma época. No que diz respeito à renda, a média das famílias
ricas é 3,6 vezes maior do que a média das famílias mais pobres, sendo um valor de R$ 9.591,93, para o
distrito de Alto de Pinheiros e R$ 2.628,63, para Lajeado.
164
Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
Kardec, sua passagem rápida pela escola se deu por incentivo de uma das clientes de
sua mãe e foi interrompida devido às necessidades de sua família, que precisou mudar
diversas vezes, sua história é atravessada pela fome. “É um dia simpático para mim. É
o dia da abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. [...] E assim no dia
13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual - a fome!” (JESUS, 2014. p. 32).
Mudou-se para Franca-SP com sua família em 1930, e em 1948 foi morar na
favela do Canindé na capital paulista. Ganhava seu sustento e de seus três filhos catando
papel. “Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha. Parece
que vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato felicidade.” (JESUS, 2014. p. 81).
Carolina usava os cadernos que encontrava no lixo para escrever sobre seu
cotidiano e pensamentos6. Dessa forma, a obra “Quarto de despejo” surge como uma
análise da desigualdade social que estabelece a posição da autora na obra como, mulher,
negra, pobre, periférica e de baixa escolaridade e denuncia, enquanto o centro da cidade
é a sala de visitas, a favela é o quarto onde se joga o indesejável, o entulho, tudo aquilo
que se quer esconder. Sua escrita, no entanto, é sua forma de se recusar a ser “despejo”,
a ser “resto”. “...O senhor Dario ficou horrorizado com a primitividade em que eu vivo.
Ele olhava tudo com assombro. Mas ele deve aprender que a favela é o quarto de despejo
de São Paulo. E que eu sou uma despejada” (JESUS, 2014. p. 147).
Carolina ao longo de sua obra traz reflexões sobre o lugar da mulher negra na
sociedade, e de como ela tem consciência de que a solidão traz alguma proteção frente
a violência de ser solo, criando e educando seus três filhos sozinha, sem um marido
ou homem que a violenta e lhe faça mal, compara sua vida com a de mulheres que são
casadas e violentadas ao longo de todo o livro.
[...] Elas aludem que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas.
Elas têm marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. [...] Os meus filhos
não são sustentados com pão da igreja. Eu enfrento qualquer espécie de
trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece
tambor. A noite enquanto elas pedem socorro eu tranquilamente no meu
6 Em 1958 o jornalista Audálio Dantas, repórter da Folha da Noite, foi até a favela do Canindé para fazer
uma reportagem e encontrou Carolina, que lhe apresentou suas anotações, que se tornaram um livro.
Em 1960 Quarto de despejo foi lançado e vendeu mais de cem mil exemplares, foi um grande sucesso e
marca da literatura no Brasil, Carolina Maria de Jesus foi uma das escritoras brasileiras mais expressivas,
seu livro foi traduzido para mais de dez idiomas (DANTAS, 1993).
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Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
barracão ouço valsas vienenses. [..] Não invejo as mulheres casadas da
favela que levam vida de escravas indianas (JESUS, 2014. p. 16).
Interessante observar que a esquizofrenia das relações de gênero é bem descrita
em o quarto de despejo conforme acima referenciado, para além da confusão capitalística
em associar o amor feminino ao trabalho não remunerado, há uma responsabilização
da mulher para todas as áreas da vida masculina, a mulher passa a ser a “provedora” da
existência do homem.
De qualquer modo, é sempre a mulher que sofre mais com o caráter esquizofrênico
das relações sexuais, não apenas porque chegam ao final do dia com mais trabalho e
mais preocupação nas costas, mas também porque recai sobre elas a responsabilidade de
fazer a experiência sexual prazerosa para o homem. Esse é o motivo pelo qual mulheres
costumam ser menos sexualmente responsivas que homens. O sexo é trabalho para elas,
é um dever. O dever de agradar é tão construído em sua sexualidade que aprendem a ter
prazer em dar prazer, em provocar os homens e excitá-los.
Pelo fato de se esperar que proporcionem uma libertação, inevitavelmente se
tornam o objeto sobre o qual os homens descarregam sua violência reprimida. São
estupradas, tanto na própria cama quanto na rua, precisamente porque são configuradas
para serem provedoras da satisfação sexual, as válvulas de escape para tudo o que dá
errado na vida dos homens, e os homens têm sido autorizados a voltar seu ódio contra
elas se não estiverem à altura do papel, particularmente quando se recusam a executá-lo
(FEDERICI, 2019, p.56/57)
A autora também denuncia o descompromisso com a paternidade que ela
vivencia com o progenitor de sua filha mais nova, pai de Vera:
Fui na tesouraria para receber o dinheiro. Quando chegou a minha vez não
encontrei o dinheiro. A Vera queria comprar um vestido. Eu disse-lhe que
o seu pai não havia levado o dinheiro. Ela ficou triste e disse: - Mamãe, o
meu pai não presta! (JESUS, 2014. p. 166)
A postura dos homens relatada pela autora revela a condição de violência
vivenciada pelas mulheres no Brasil, e escancara a falta de intervenção do Estado com
a criação de políticas públicas para oferecer suporte e acolhimento para as mães solo
166
Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
deste País. As situações narradas por Carolina nos levam a refletir e discutir o contexto
da mulher, mãe solo, negra em uma sociedade patriarcal, sexista, cujos valores estão
alicerçados na inferiorização e abandono da mulher negra.
No Brasil, de acordo com os dados levantados pelo IBGE em 2018, o número de
mães chefes de família era de 11 milhões, sendo a maioria negras, 61%. De acordo com
a Síntese dos indicadores Sociais do IBGE, 63% dessas famílias estão abaixo da linha da
pobreza com cada componente vivendo com aproximadamente R$ 145,00 por mês.
Esses dados revelam a atualidade da obra de Carolina, escrita entre os anos de 1950 e
1960 e mostra a realidade perversa que o/a pobre, negro/a, periférico/a enfrenta nesse
País historicamente desigual.
A solidão e o preconceito que Carolina e todas as mulheres que como ela
sustentaram e sustentam seus lares, que experienciam a ausência e/ou abandono de seus
companheiros desde muito novas é apontada por Fanon (1952) que discute o desejo
pelo branqueamento que negros e negras têm ao buscarem se envolver com brancos/as,
trata do sentimento de inferioridade em relação aos brancos/as e como isso é sintoma
histórico, “Embranquecer a raça, salvar a raça, mas não no sentido que poderíamos
supor: não para preservar “a originalidade da porção do mundo onde elas cresceram”,
mas para assegurar sua brancura” (FANON, 1952, p.57), que mesmo quando a mulher
negra se envolve com o homem branco, não se casa com ele, é com a mulher branca que
o branco vai se casar.
Todas essas mulheres de cor, desgrenhadas, à caça do branco, esperam.
E certamente um dia desses se surpreenderão não querendo mais se
atormentar, mas pensarão “em uma noite maravilhosa, um amante
maravilhoso, um branco”. Porém também elas talvez compreendam um
dia “que os brancos não se casam com uma mulher negra.” Mas aceitam
correr o risco, porque precisam da brancura a qualquer preço (FANON,
1952, p.59).
hooks (2000) em sua forte e arrebatadora obra “Vivendo de amor” escreve como
a escravização do povo negro criou barreiras para o desenvolvimento da afetividade
e de como isso é fortemente marcado nas mulheres negras, que vivem uma solidão
constante desde a infância e quando adultas reproduzem a postura que foram ensinadas,
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Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
a autora discorre como a falta de afeto para as mulheres as impedem de conhecer e
viver o amor, aponta caminhos para o autoconhecimento e o desenvolvimento do amor
interior.
É necessário discutir também os papéis de gênero presentes na sociedade e de
como o racismo está intimamente ligado ao machismo, hooks (2019) aborda que o
machismo molda e determina diferentes relações de poder e que o sexismo presente
na sociedade “[...] criam barreiras nocivas entre as mulheres”, alimentando um sistema
patriarcal que domina e oprime as mulheres negras, que dificulta a luta por alcance de
direitos que possibilitam a construção de uma vida digna, onde a supremacia branca
define as relações e interações entre os diferentes grupos. Davis (2016) discute como
a escravização dos corpos negros definiram a maneira pela qual a mulher negra foi
desumanizada, e de como o racismo atravessa as relações na sociedade.
hooks (2019) ao tratar da importância de uma educação libertadora demonstra
preocupação para a formação de professores/as negros/as comprometidos com a
construção de uma educação crítica, pois, ela compreende que os estabelecimentos de
ensino superiores oferecem uma formação que fortalece a manutenção da dominação
branca.
Nessa mesma direção, Gomes (2009) reflete que esse cenário no Brasil, muda
com a inserção de intelectuais negros/as nas Universidades, possibilitando maior
espaço para o debate e, consequentemente, colaborando para uma outra formação de
professoras e demais profissionais demandando pesquisas que revelam compromisso
social e acadêmico com os movimentos sociais.
Carolina foi e continua sendo uma autora muito fecunda para além do Quarto
de Despejo, sua produção conta com romances, contos, poemas, e, além daqueles
que foram publicados, inclusive depois de sua morte, como Diário de Bitita, ainda há
milhares de páginas de material inédito de Carolina a serem dissecados, entre eles,
romances, poemas e crônicas
Em todo esse trabalho, a escritora deixou marcada uma visão particularmente
Caroliniana do mundo e de uma sociedade desigual, que pode ter se transformado de
sua época para cá, mas que persiste discriminando, isolando e assassinando a população
negra e periférica. O mapa da desigualdade no Brasil de 2020 apresenta um aumento de
67% no número de pessoas vítimas de violência racial, segundo o Fórum Brasileiro de
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Carolina Maria de Jesus
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Segurança Pública em parceria com a Unicef, em 2019 quase 5 mil crianças e adolescentes
foram mortas de forma violenta no País, esses dados são referentes a 21 estados.
Na escrita, Carolina pôde expressar a voz que era negada a quem vivesse em suas
condições. Uma voz que, apesar de todas as dificuldades, preconceito e do insistente
esquecimento que se estende até os dias de hoje, persiste como a base de uma obra
autêntica e importante, mas, sobretudo, humana e legítima.
Considerações finais
A obra literária, Quarto de despejo, tanto quanto o documentário, Carolina,
traz por meio de relatos e algumas cenas uma visão singular da potência que foi
Maria Carolina de Jesus frente aos desafios impostos pela sua condição de vida, como
acenamos no início deste texto, Maria Carolina de Jesus tinha uma fome existencial
intensa, inconformada pela condição social que lhe vestia, porém, limitada muitas vezes
em suas ações devido a sua condição de moradora de uma favela.
Mas como bem demonstra o documentário de Jeferson De, sobre a vida e obra
de Maria Carolina, viver em condições precárias não foi limitador para que ela pudesse
se destacar como uma escritora preta e reconhecida internacionalmente.
Quando cotejamos seus escritos com o campo da educação, vemos uma
preocupação inerente por parte da autora, com a educação de seus filhos. No diário,
Carolina demonstrava uma preocupação constante com a educação das crianças, mesmo
não considerando sua condição de vida digna, se mostrava preocupada em fornecer e
apoiar com frequência a vida escolar de seus três filhos. “O José Carlos não quer ir à
escola porque está fazendo frio e ele não tem sapato. Mas hoje é dia de exame, ele foi.
Eu fiquei com medo, porque o frio está congelando. Mas o que hei de fazer?” (JESUS,
2014 p. 66)
Em muitas passagens ela chamava atenção para a leitura, domínio das contas
e mesmo quando estavam doentes, não deixava que faltassem em dia de testes, “...Eu
estou contente com os meus filhos alfabetizados. Compreendem tudo. O José Carlos
disse-me que vai ser um homem distinto e que eu vou tratá-lo de Seu José. Já tem
pretensões: quer residir em alvenaria” (JESUS, 2014 p. 140).
A obra “Quarto de despejo”, em seu caráter pedagógico revela como a autora
chama atenção acerca da educação, escreve com uma consciência que revela a indignação
169
Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
com a falta de assistência dos adultos em expô-la a situações constrangedoras, ou
mesmo quando são agredidas física e verbalmente pelos/as adultos/as em situações que
ela considera desnecessária. “A Silvia e o esposo já iniciaram o espetáculo ao ar livre.
Ele está lhe espancando. E eu estou revoltada com o que as crianças presenciam, ouvem
palavras de baixo calão, Oh! se eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais decente”
(JESUS, 2014. p. 94).
A autora, ao longo de sua obra desperta a reflexão para uma formação crítica,
cidadã das crianças, em qualquer que seja a prática pedagógica se apoiando em seus
escritos, os princípios da autora produzirão uma educação justa, equânime e igualitária
pois colaboram para uma reflexão importante da organização da sociedade em seus
mais variados aspectos.
Diante disso, compreendemos que trabalhar com a literatura de Carolina na
Educação Básica por meio das mais diversas estratégias é uma condição privilegiada para
produzir pensamentos mais afeitos às diferenças e de antemão, valorizar as diferentes
culturas que compõe nossa sociedade.
Portanto, faz-se urgente oportunizar espaço e tempo para debates relevantes
em torno da presença da mulher negra, periférica e escritora, para que os estudantes
aumentem a capacidade de expressão e percepção do mundo, através da sensibilidade,
dando ênfase ao respeito e empatia, a fim de combater o racismo.
Nesse sentido, na tentativa de suprir essas lacunas na formação docente, foi
sancionada a Lei 10.639/2003 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e
instituiu a presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” nas
instituições de ensino, uma lei que representa a luta e a vitória do movimento negro para
ter sua história lida e reconhecida pela sociedade brasileira. A Lei é reforçada no texto
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, 2004. Esses documentos
possibilitam que este conteúdo seja trabalhado nas instituições de ensino e oferecem
bases para que trabalhadores da educação possam se orientar para desenvolver suas
aulas e atividades de ensino.
Nessa perspectiva, consideramos que a obra de Carolina e o documentário
de mesmo nome, contribui para o engajamento de uma educação igualitária,
proporcionando caminhos para o alcance de uma educação como prática de liberdade
(hooks, 2020) e ao propor que sua obra seja adotada na educação básica, nos baseamos
170
Carolina Maria de Jesus
Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos
na necessidade de haver mais obras voltadas para construção da identidade negra e
feminina no repertório escolar do País. E ainda, flertamos com a proposta de Souza
(2016) que ao desenvolver sua tese propõe uma metodologia de ensino baseada na lógica
exúlica7, a qual busca trazer os diálogos da margem para o centro do debate como um
aspecto fundamental, o qual poderá contribuir com justiça cognitiva para uma educação
que se pretenda efetivamente igualitária.
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cnecp_003.pdf>. Acesso em: 25/03/2023.
7A lógica exúlica está ligada a cosmologia africana, a qual não separa o sagrado do cotidiano, à medida
em que se mantém vivos e mortos unidos na comunidade. Esta lógica não permite o pensamento binário,
pois se estrutura nas singularidades e peculiaridades próprias da ancestralidade inerente a cada pessoa,
sendo a ancestralidade quem faz o ser humano ser uno e múltiplo na lógica exúlica (SOUZA, 2016).
171
Carolina Maria de Jesus
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173
Nosso olhar vem de longe: a estética
existencial no filme Chikwembo (Moçambique)
Júlio César Boaro1
Rogério de Almeida2
Nervosamente, eu sento-me à mesa e escrevo
dentro de mim, Deixa passar o meu povo, “oh let my people go...”
E já não sou mais que instrumento!
(Noêmia de Sousa)
“Só se pode subverter o real, no cinema ou alhures, se se aceita, antes, todo
o existente, pelo simples fato de existir.”
(Eduardo Coutinho)
Introdução ou ligando o cinematógrafo
Ao pensarmos em cinema africano, podemos incorrer num erro, o de generalizar
um imenso continente com um único tipo de produção fílmica; o mais correto seria
nos referirmos a cinemas africanos, dada a multiplicidade e complexidade de cada
sociedade ou país. No mundo contemporâneo, devido à influência de três grandes áreas
do conhecimento – antropologia, etnologia e linguística –, procurou-se uma abertura
1 Especialização em Arte e Educação Arizona State University - (ASU). Mestre em Educação (USP).
Doutorando em Educação (USP). Bolsista CNPq.
2 Prof. Titular da FEUSP, coord. do Lab_Arte e bolsista produtividade CNPq.
174
nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
maior para a compreensão dos outros povos não euro-norte-americanos e, referindose ao continente africano, tal “abertura para o outro” deveu-se principalmente a Marcel
Griaule, e seus estudos sobre o povo Dogon (do Mali), na década de 1930.
Mas a abertura para a compreensão do outro não significa apenas uma tolerância
no sentido de uma obrigatoriedade da aceitação por questões iluministas, e sim uma
compreensão de que, no fundo, há algo muito semelhante entre eles e nós, não no
sentido de uma descendência étnica comum, mas no sentido de que, independente do
tempo histórico e da localização geográfica, há algo de humano que compartilhamos
mesmo sem o saber: o conceito de liberdade, a ideia de deus, a relação entre homem e
natureza, o significado de uma obra artística, o amor entre pais e filhos, entre tantas
outras características em comum.
Quando falamos de arte, adentramos um dos campos mais complexos e difíceis
de definir. Este conceito carrega consigo toda uma carga de história cultural, normas
e formas (inclusive formas de olhar), que faz com que haja discordâncias perenes, que
podem avizinhar-se, caso cuidados não sejam tomados e não sejam afastados preconceitos
a respeito do modo de ser e estar de outros indivíduos, e quando se trata de produção
artística de outras sociedades, muitas vezes distantes no tempo e espaço, tais conceitos
antecipados de compreensão correm o risco de desembocar em rios caudalosos de
rejeição e hierarquização de valores.
Imaginemos nossa educação estética como um barco. Este barco foi fabricado por
normas e ideias bem definidos, como as normas europeias de arte. Nele carregamos
nossa forma de ver o mundo artístico navegando por rios ou mares que nos mostram
paisagens que acostumamos a chamar de belas, porque assim nos foi ensinado e passamos
a gostar delas. Muito distante está um farol que nos guiará nas noites em que a razão
perde momentaneamente seu rumo e faz com que o barco (nossa sensibilidade estética)
corra o risco de abalroarmos pedras ou bancos de areia que não estavam em nosso
mapa, então nos desviamos dizendo “isto é belo” ou “isto não é bonito, não é arte”. As
medidas nas quais o barco foi planejado e construído habilmente foi-nos passada pelos
cânones de arte e instituições sociais (entre elas, a escola). Mas e se num determinado
momento desta viagem (poderíamos fazer uma alusão à vida?) nosso barco desvia-se do rumo,
por vontade dos ventos (forças da natureza), ou por volição de seu comandante (nós
mesmos), e adentramos por “mares nunca dantes navegados” (como diria Camões)
175
nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
e começamos a ver paisagens diferentes das que nos acostumamos a observar, e se,
ao invés de usarmos a fácil dicotomia do belo/feio, simplesmente suspendêssemos
nossas noções de navegação estética (desligássemos os aparelhos de posicionamento),
diminuíssemos a velocidade da navegação e permitíssemos olhar o que a nova paisagem
nos mostra? “Se te fores à Ítaca, procura demorar-te ao máximo” diria Kavafis em seu
poema3. O demorar traz consigo a capacidade de uma maior observação, mas há algo
mais que o vagar também nos sugere: a apreciação. Permitir que os sentidos tomem os
rumos do caminho, que os detalhes nos penetrem pela afetividade pode proporcionar
uma mudança de norte, talvez até então não pensada. Mas este maravilhamento não é
fácil: se estamos acostumados a achar belo a estética, a forma e os efeitos dos cinemas
europeu, norte-americano ou asiático, como poderíamos usar o mesmo conceito para
compreender a cinematografia africana?
Achar belo ou não, não se trata de uma obrigação, a arte não pode ser imposta
como uma norma ou lei que precisa ser cumprida, mas é o espírito e a razão sensível
que nos permitirá uma compreensão da arte como expressão de um artista ou de uma
sociedade. Ao ancorarmos nosso barco de referenciais euro- ocidentais, podemos descer,
sentir a leveza que a água do mar nos proporciona, e adentrarmos a paisagem estranha
a nós e, para isto, podemos ter como norte alguns caminhos. De maneira mais objetiva,
para penetrarmos nos domínios da produção artística africana, primeiro deveremos
entender por que o que se produziu e se produz na África pode ser considerado arte
e, principalmente, porque os filmes africanos estão dentro desta categoria. Esta arte a
qual faremos referência não se trata da arte moderna ou contemporânea da pintura ou
escultura, mas sim a uma produção ligada à cultura e à história dos filmes de Moçambique
que não se fixa somente em sua experiência de resistência à opressão colonial, mas
também baseada em valores como o mito, a cosmogonia, a espiritualidade, as diferenças
sociais, a questão da sustentabilidade e de relacionamentos familiares.
Desde que o homem europeu adentrou a África Austral, onde se situa nosso
objeto de estudo, o olhar para com os africanos desta região era de superioridade. Esta
região era tida como a terra dos idólatras, e que deveria ser convertida à religião cristã.
Religiosidade e ideologia andam lado a lado, e em alguns momentos, confundem-se, e
ambas podem servir como instrumentos de dominação e controle. Arqueologicamente,
3 Konstantínos Kaváfis, poeta grego, (1863-1933), trecho do poema, “Se te fores à Ítaca”.
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nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
os primeiros objetos encontrados na África subsaariana foram considerados como
“ídolos”, cuja utilidade, segundo o pensamento cristão, era servir para práticas maléficas.
Até hoje, parte das obras que se produz na África, quando foge a determinados cânones
artísticos ocidentais, é considerada com função exclusivamente de adoração espiritual.
Em cinco séculos de contato dos europeus com os subsaarianos, a arte
africana passou por várias etapas de desprezo e inferiorização. Para o pensamento
eurocêntrico, a inferioridade de uma sociedade implica, necessariamente, a inferioridade
de toda a sua produção artística, científica, filosófica e espiritual; naturalmente, o que se
produzia no território negro não escapava a estes critérios.
A arte africana ancestral e o cinema africano
A avaliação dos cinemas africanos passou por diversas etapas, desde ser
considerado como um produto de afirmação do colonizador, cinema de formas
limitadas, alvo de sátiras, mostrando os africanos como exóticos e inumanos, até um
cinema que merece integrar os grandes festivais mundiais.
A maior parte da produção cinematográfica do continente africano carece de
recursos financeiros, a exceção de África do Sul e Nigéria (no subsaariano), e de alguns
países do norte e oeste da África de influência idiomática francesa, como o Mali e o
Senegal. No caso de Burkina Faso, há uma idiossincrasia, pois este país pretendeu
ser um dos polos desta arte no continente, e direcionava para isso recursos vultosos
dentro de sua capacidade. Indo para a África Austral, no caso de Moçambique, os
parcos recursos financeiros vêm desde governos das províncias, bem como financiados
por institutos europeus, como Goethe Institut, ou de grupos cristãos (porém, estes
financiam produções de costumes, como cuidados na prevenção de doenças e consumo
de drogas), como produções independentes do cinema contemporâneo cujos recursos
são dos próprios cineastas. Um exemplo é o grupo Afrocinemakers4. Em uma live e em
vídeos de entrevistas com os cineastas, é mostrada que há, para os mais de vinte e dois
jovens cineastas e a equipe de produção, apenas uma máquina fotográfica que é usada
no modo gravação, um computador de mesa para a produção, e grande quantidade
de improviso, como armas feitas de papelão, e microfones ambiente sustentados por
4 https://www.youtube.com/watch?v=6X0PD_A0GGI&t=73s&ab_channel=AFROCINEMAKERS
177
nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
cabos de vassoura5, como está no vídeo de JJ Nota, um dos cineastas do grupo, intitulado
“Como fazer um filme sem dinheiro”.
Apesar destas dificuldades monetárias, este grupo produz uma grande quantidade
de curta e média metragens. Da mesma maneira que a arte escultórica africana era acusada
de ser inferior devido às técnicas utilizadas não serem iguais às europeias, o cinema de
Moçambique também sofre esta crítica indigesta, porém, com um olhar mais apurado
e despido de preconceitos, as técnicas cinematográficas dos cinemas europeus e norteamericano estão presentes nos filmes, mas isto não é o essencial, não se assiste a um
filme de Moçambique, do Benim, de Angola ou de Gana com esta régua de medição, é
preciso despir-se das roupagens tecnográficas e produzir uma desconstrução estética em
seu ser para adentrar esta seara; consideremos três passos: desconstrução, desencanto e
reconstrução.
A desconstrução é saber que os filmes africanos do subsaara, em sua maioria,
tratarão de questões relacionadas à cultura destes países, o que torna o espectador um
viajante (por isso, a mitohermêneutica se faz presente). Ainda que seja possível fazer uma
leitura cinematográfica com os conceitos conhecidos do cinema mundial (as técnicas
e especialmente os cinco Cs6 da cinematografia), prender-se a fórmulas engajadas só
nos fará perder parte, se não o todo do que será visto, por isso, o segundo passo é tão
importante quanto este.
Desencantar-se é retirar o encanto da estética, ou seja, descriar, fazer a mente e
a compreensão criarem uma nova forma de ver a realidade a partir do ponto de vista
daquelas pessoas (o ponto de vista do cineasta também traz consigo a forma de ver o
mundo de sua população, à exceção daqueles que são formados em escolas europeias e
tentam, a todo custo, produzir filmes com as fórmulas desta grande escola de cinema).
Peguemos, por exemplo, o curta metragem Tlhuka (de Gil de Oliveira), também do
grupo Afrocinemakers. Sem adentrar com profundidade na análise deste curta, que
merece um artigo dedicado somente a ele, o que vemos.
Um filme em preto e branco, duas mulheres como personagens principais (a
mãe, cujo nome é Nothisso, e sua filha adolescente). O tom do preto e branco é mais
escuro que o normal, e o filme é conto e poesia negro moçambicano em movimento,
5 https://www.youtube.com/watch?v=-Bd0O4bNGr0&ab_channel=AFROCINEMAKERS
6 Os cinco Cs da cinematografia são: corte, composição, close-ups, continuidade/câmera e ângulo.
178
nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
com trilha sonora que lembra os antigos rituais ronga, idioma falado no filme, que é
um dos quarenta e três idiomas de Moçambique. Não se encontra ali nenhum efeito
especial, embora se utilize o recurso de vários ângulos (vertical, horizontal, inclinado,
transversal e à distância). Penetrar nos costumes desta etnia nos levará a uma outra
compreensão da arte do cinema, do diálogo entre as várias artes (poesia, artes visuais,
arte sonora, literatura). Daí poderá vir o encanto, outra maneira de ler o visível e o que
não se vê. Deste movimento, inicia-se o terceiro. A reconstrução do olhar estético para
com o cinema austral africano nos remete a um conjunto de centenas de etnias, cujos
filmes não são em grande parte falados na língua oficial, e que, portanto, a questão do
retorno financeiro não é o principal objetivo. O que temos é um olhar voltado para
a cultura, a manutenção e transmissão dos costumes, sendo o cinema um veículo de
perpetuação e resistência à cultura imposta pelo colonizador, portanto cumprindo uma
função educativa. Logo, um cinema de resistência não precisa ser necessariamente o
que produz filmes sobre as guerras de independência e as guerrilhas, mas formas sutis
de rechaçar a opressão cultural.
Tal qual a arte escultórica, que precisou ultrapassar os conceitos de arte saindo
do campo do exotismo para uma arte original, o cinema africano também precisou se
deslocar de um cinema de paisagens e animais para um cinema de reflexão e imposição
da palavra. Para que pudesse ser considerada arte, foi necessário, no campo dos
estudos, que esta produção passasse pelas noções necessárias a todas as obras. Como há
um subjetivismo tenso e permanente ao considerar tal ou qual produção como arte,
fiquemos, a princípio, com a definição de cinema preconizada por Canudo:
o cinema se soma às artes tradicionais: arquitetura, música, pintura,
escultura, poesia e dança. Ele é, ao mesmo tempo, a fusão das artes plásticas
e das artes rítimas, da Ciência e da Arte...ele deve desenvolver esta faculdade
extraordinária e pungente de representar o imaterial. (apud Agel, 1957,
p.10)
Ao formular essa definição, Ricciotto Canudo, o primeiro a definir o cinema
como a sétima arte, pensou dar um norte a todas as formas de produção cinematográfica,
embora tenha visto apenas o cinema nascente, em fins do século XIX e início do século
XX.
179
nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
Gombrich nos diz que a forma de pensar do primitivo está mais próxima do
início do surgimento da humanidade; assim, nas sociedades ditas primitivas, não há
algo que possa ser chamado de arte, já que toda a produção como “pinturas e esculturas
são usadas para realizar trabalhos de magia”; continua ele dizendo que
para compreendermos esta produção é impossível entendermos esses
estranhos começos se não procurarmos penetrar na mente dos povos
primitivos e descobrir qual é o gênero de experiência que os faz pensar em
imagens como algo poderoso para ser usado e não como algo bonito para
contemplar. (Gombrich, 1999, p. 20).
A interpretação da arte africana foi fortemente influenciada por Gombrich. Ele
nos diz que, para compreendermos a arte dos nativos, é necessário nos imaginarmos
nos primórdios da humanidade. Daí, já vemos que há uma classificação sobre a arte, da
arte primitiva (portanto, de povos atrasados) para a arte desenvolvida, a greco-romana.
Esta é, sem dúvida, uma leitura positivista e que influenciou a maneira como o mundo
ocidental também compreendeu o cinema subsaariano.
A África, sob o ponto de vista acima, hegeliano e positivista, bem como tudo o
que se produziu lá como extensão de sua cultura, estaria então um tanto quanto “atrasada”
com relação à sociedade do Velho Continente; destarte, ela estaria num estágio infantil,
muito longe da arte adulta. Mas não apenas ela, as artes de outros povos colonizados
também estariam neste mesmo estágio subalterno.
Neste exercício de olhar a arte de povos tão antigos cujas sociedades apresentavam
traços complexos de alta organização social, se faz necessário definir alguns caminhos e, para
isso, elegemos duas vias possíveis que nos ajudarão a refletir sobre a produção fílmica
africana, e especialmente do cinema moçambicano.
Linhas teóricas para a compreensão do cinema moçambicano
Para adentrarmos a complexidade do cinema de Moçambique, escolhemos duas
linhas teóricas que nos ajudarão a penetrar neste universo múltiplo. A teoria estética e
a mitohermenêutica.
180
nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
A teoria estética diz respeito à nossa sensibilidade, ou seja, como a obra afeta
os sentidos do observador, “a significação de uma obra não é importante para sua
apreciação, a única coisa que conta é a forma como ela nos afeta.” (Einstein, Carl apud
Munanga 2004, p. 35). Esta teoria procura fugir da necessidade de uma interpretação
etnológica, abrindo espaço para uma capacidade mais democrática de leitura artística,
pela qual qualquer pessoa, independente de seu nível cultural ou da diferença cultural
em relação a outras culturas, pode ter um prazer estético, se assim a obra proporcionar
ao observador. Crê que a obra, por si só, pode produzir prazer.
Esta teoria leva-nos a outra reflexão, que é a existência de conceitos artísticos
entre os africanos, ou seja, a arte pela arte. Rompe-se, desta forma, interpretações que
prendem a arte negro-africana a uma estrutura dupla de religiosidade e representação,
negando um funcionalismo para a mesma. Como toda teoria, chama-nos para uma
outra reflexão. Se os povos africanos produzem arte pela arte, como saber qual é ou
quais são os conceitos estéticos de belo e feio entre estes povos, sem penetrar na cultura
deles? Há, portanto, um impasse: se por um lado, tenta-se retirar a analise etnológica
ou antropológica do campo da ciência, fazendo com que a interpretação artística esteja
livre do cientificismo, por outro, ao atribuir a existência de conceitos estéticos entre as
etnias africanas, dificulta nossa entrada nesta complexidade sem o auxílio das ciências
citadas. A tentativa para a superação deste dilema deu-se com outra ciência, a linguística.
Na linguística buscou-se a existência de palavras como belo, feio, maravilhoso, ruim,
entre outros adjetivos que pudessem classificar uma arte, porém, quanto mais se tenta
evitar o fechamento de uma interpretação, mais complexa se torna, pois, mesmo
sabendo ou concluindo a existência de adjetivos voltados para as obras, nada garante
que o que significa belo para a sociedade ocidental é o mesmo conceito de belo entre
as etnias de Moçambique. Nesse embate entre interpretação e conhecimento, a teoria
estética nos auxiliará (e não é pouco) para utilizarmos nossa noção de beleza sensível,
ao depararmos com produções artísticas de outros povos. Será necessário, mais uma
vez, suspender nossa noção estética (não abandoná-la, pois é parte de nosso ser neste
mundo) e dar espaço para outras noções diferentes, somando-se a que temos. Isto é
uma reeducação artística. A forma é o que importa nesta teoria, como afirma Munanga
(2004, p. 36), “pouco importa que o objeto fosse feito para um determinado culto. Para
a teoria estética, o objeto deve ser olhado por si mesmo, sendo o essencial apenas o
aperfeiçoamento de sua forma.” Chamamos esse pensamento de formalismo.
181
nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
Para alcançar os objetivos a que esta pesquisa se propõe, que é o conhecimento,
discussão e pesquisa da produção cinematográfica africana e sua relação com o conceito
de estética, mitologia, arte e cultura destes povos, como uma maneira de educação não
formal, adotaremos as seguintes linhas de pesquisa definindo como objetivos gerais:
Compreender mitohermeneuticamente (Ferreira-Santos, 2008) as origens do
cinema africano dos países citados, sua relação com as etnias e seus mitos e cosmogonia
de origem expressos nos filmes confrontando a noção de uma África sem história
(Hegel) e sem arte (Gombrich), com a consideração de uma tradição milenar complexa
de arte, cultura e ancestralidade, como formadora do ethos africano; esta abordagem é
compreendida como
hermenêutica simbólica de cunho antropológico que se apresenta tanto
como estilo filosófico – no sentido de manter uma atitude de inquietação e
questionamento; como método de investigação – no sentido de estabelecer
procedimentos sistemáticos de pesquisa acadêmica. Esta mitohermenêutica,
na reflexão sobre a educação, se debruça sobre a interpretação das obras
da arte e das culturas, mas, principalmente, situa a compreensão de si
mesmo como ponto de partida, meio e fim de toda jornada interpretativa.
Portanto, não se trata de uma simples técnica de interpretação, mas uma
jornada interpretativa em que o hermeneuta se instala na paisagem cultural
das obras com que trabalha, viaja ao seu interior e reconstrói os sentidos de
tal imersão. (Ferreira-Santos, 2008, p. 4).
Compreender um filme é compreender-se a si mesmo. Isso significa que a
participação do hermeneuta é fundamental para o exercício interpretativo, uma vez que
é ele, em diálogo com as obras estudadas, que poderá sondar os sentidos possíveis e sua
rede de relações. No caso, é a recorrência simbólica presente nas obras estudadas que
possibilitará a interpretação, ou seja, permitirá que se compreenda o sentido dessas obras.
O símbolo, nessa acepção, é compreendido como
signo que remete a um indizível e invisível significado, sendo assim
obrigado a encarnar concretamente essa adequação que lhe escapa, pelo jogo
das redundâncias míticas, rituais, iconográficas que corrigem e completam
inesgotavelmente a inadequação (Durand, 1988, p. 19).
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nosso olhar vem de longe
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Portanto, o símbolo possibilita o sentido por meio da recorrência, por aquilo
que repete. “Não que um único símbolo não seja tão significativo como todos os outros,
mas o conjunto de todos os símbolos sobre um tema esclarece os símbolos, uns através
de outros, acrescenta-lhes um ‘poder’ simbólico suplementar” (idem p. 17).
São essas recorrências que buscaremos na obra selecionada para estudo, a fim de
compreender melhor a cultura moçambicana pelo viés da etnia onde se realizou o filme.
Chikwembo – o filme
Chikwembo é um filme produzido em 2009 pelo cineasta Júlio Silva, o idioma
do filme é o changane, com legendas em português. Chikwembo é traduzido como
feitiço. A obra é divida em duas partes: a primeira chama-se Chikwembo e a segunda,
O Regresso do Espírito. A primeira parte do filme inicia-se com imagens da Reserva do
Banhine, que é descrito geograficamente para que o espectador possa saber onde ele fica
dentro do mapa de Moçambique.
Após imagens de uma região ainda habitada por animais selvagens, há um corte
para uma jovem que está peneirando farinha, seu celular toca e começa um diálogo, é
seu noivo que, sem motivo aparente, comunica que a está deixando. Ela, Catarina, sem
entender o que está acontecendo, disse, entre outras coisas, que ele, de nome Langa, foi
enfeitiçado por uma “rapariga” da cidade. Embora uma das características do cinema
africano seja a dicotomia entre cidade e interior rural, ainda é cedo para chegarmos a
esta conclusão, pode ser que tal antagonismo seja simbólico.
O filme é realizado com atores amadores e moradores da região (em sua
maioria), por isso, ao assistirmos Chikwembo, faz-se necessário nos despirmos das
análises clássicas de filme de ator, ou seja, aquela crítica que projeta sobre as atuações
o peso de toda a obra, daí já vemos que o cinema de Moçambique escapa e sugere que
o acompanhemos por um viés inteiramente outro, onde os cânones ocidentais não
alcançam. Esta parte inicial, do rompimento da relação, termina com a cena em que
Catarina, após uma crise de choro, caminha com um galão de água sobre a cabeça, numa
estrada de terra em meio a um matagal.
Na sequência, Langa desembarca da carroceria de uma caminhonete que servia
como meio de transporte para várias pessoas, e é imediatamente reconhecido pela
própria Catarina e por uma amiga sua. Langa agora está com uma outra mulher. Ele
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nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
é indiferente às lagrimas de Catarina. O diretor usa o enquadramento fechado nesta
cena, para permitir que o espectador observe, em detalhe, a expressão do rosto das
personagens. A cena parte do enquadramento aberto para o fechado, denotando um
momento de tensão. Langa apresenta Rosa, sua nova namorada, para a família; seu
irmão o afasta da comemoração, o chama para um canto e o alerta para o perigo da
volta da tristeza que ele causou a Catarina, ele ignora o perigo. Qual perigo? O perigo
da vingança por feitiço/
Catarina volta para casa chorando, se põe aos pés de sua mãe que toma suas dores
e promete vingança: vai atrás de uma amiga que lhe apresenta um feiticeiro. Inicia-se a
segunda parte da história ainda dentro do primeiro filme.
Este ponto de tensão é importante porque uma das justificativas da colonização
era impor o cristianismo a todos os povos africanos dominados, uma vez que precisavam
ser salvos das práticas maléficas. Cristianismo histórico e positivismo dialogam no
sentido de acreditarem num estágio evolutivo da humanidade. Os africanos, durante
muito tempo, foram tratados como crianças que precisavam de um pai a guiá-los.
Também se faz importante narrar este acontecimento que produz um corte na história,
direcionando-a para outro rumo, porque demonstra que as prática ancestrais dos povos
africanos, a que muitos chamam de bruxaria ou animismo, continuaram a ser praticadas
e continuam apesar de mais de cinco séculos de opressão católica (no caso das colônias
portuguesas). Lembrando Nietsche que diz que onde houver repressão dos sentidos,
surge a resistência, a opressão da religião do colonizador não foi tão eficaz a ponto
de anular e extinguir por completo as manifestações espirituais da África Austral e,
neste caso, de Moçambique. Chikwembo se opõe ao conceito de magia em Durkhein,
pois para este “embora as práticas mágicas sejam suficientemente difundidas no seio
de um grupo social, elas diferem substancialmente da religião, pelo fato de não terem
a função de promover a unidade e a identidade entre os membros de um grupo.”
(Durkhein apud Weiss, p. 11, 2012). Neste caso, como as práticas espirituais são uma
característica daquele grupo, elas promovem a identificação entre seus membros, já
que, culturalmente, eles a reconhecem como parte de sua vida.
No decorrer do filme, o irmão de Langa ao ouvir o som dos cantos e tambores,
comemora, pois diz que as mães curandeiras estão felizes, e esta é a tradição: o canto, a
dança e os instrumentos, esta tradição, continua ele, toca fundo o coração e faz com que
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nosso olhar vem de longe
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se reconheçam. Segue-se aí uma longa sequência de canto e dança tradicional da região
de Gaza.
Rosa, ao ir tomar banho, é picada por uma cobra e desaparece, no que os
habitantes dizem que este acontecimento é fruto de magia; a família de Langa, em
desespero, procura uma sacerdotisa para esclarecer a dúvida e responder se Rosa está
viva.
No decorrer desta primeira parte do filme, Rosa é localizada num esconderijo
de um feiticeiro, Langa e seu irmão a localizam, a resgatam e a trazem para casa, mas
o conflito ainda continua. O diretor faz a opção por colocar pequenos obstáculos no
caminho da volta, que dificultam ainda mais o caminho, Langa não crê que tudo isso é
fruto de magia. Lembrando a estrutura do mito, em que o herói aceita o desafio e retorna
com o objetivo concretizado (o resgate de uma pessoa, a localização da pedra filosofal,
a vitória sobre inimigos reais ou imaginários), Langa passa pelo vale dos leões e dos
elefantes em direção à aldeia, enquanto o diretor faz uso de uma música instrumental de
mistério, que dá abertura para um canto gutural tribal, em língua changane. A primeira
parte termina desta forma, com Langa retornando a Maputo com Rosa, abandonando
de vez Catarina.
O diretor opta por começar a segunda parte com o mesmo canto identitário que
finalizou o primeiro, agora com o irmão de Langa (de nome Mavanga), falando que
se casou com Catarina, atitude esta que é reprovada pela sua mãe, que acusa Langa de
ingratidão. A oposição campo-cidade aqui é mais evidente, uma vez que este diálogo
ocorre enquanto mãe e filho capinam a terra. A mãe de Langa fica doente, adoece e
momentaneamente se torna incapaz para o trabalho, Langa retorna de Maputo e a
trilha sonora nos prepara para um novo conflito, agora de ordem familiar: Langa contra
seu irmão que desposou Catarina.
Há dois momentos seguintes do filme que merecem atenção: a opção do diretor
de fotografia pelos planos abertos e fechados. Langa, quando vai embora da casa de seu
irmão após a discussão, é filmado num plano aberto, com ele em uma grande floresta.
Esta opção de plano nos permite ver o homem menor se comparado à grandeza da
natureza, depois o plano vai se fechando na medida em que o personagem adentra
a floresta, fecha-se tanto que o faz entrar em contato com um sacerdote da magia,
conhecido por sua aparência rude e por ter roupas em cores escuras. A dicotomia das
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Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
cores nos remonta ao claro e ao escuro, algo um tanto indefinido e irreal, inumano
portanto. Langa entra em discussão com este homem que promete vingança. O plano
de abre e há um corte para a cena seguinte. Uma anciã, cujo rosto está novamente
em plano fechado, ensina aos jovens (homens e mulheres) como se prepara a bebida
de canhô. Em detalhes, o sumo de canhô é descrito, preparado e apreciado por todos,
inclusive por Langa que, bebendo, revela ter entrado em contato com este homem
na floresta, logo em seguida passa mal e é levado a uma casa onde uma anciã poderá
resolver a questão. A música ao fundo novamente nos coloca num ponto de tensão a
ser solucionado.
Julio Silva, o cineasta, ao dirigir atores amadores e moradores locais, nos remonta
aos primórdios do cinema, na sua estreita ligação com o teatro. Agel (1957) nos diz que
“o cinema designa o aspecto poético das coisas e dos seres, suscetível de ser revelado
pelo novo meio de expressão.” (p.11). E continua ele: “os elementos fundamentais dessa
escritura (o cinema arte poética) são quatro: a cenografia, a luz, a cadência (isto é, o
ritmo da história) e a máscara (o ator e os intérpretes) destes elementos, o último é que
merece destaque.”. Neste caso, a opção por filmar com moradores locais, com gestos
teatralizados (no caso, o ser indefinido da floresta ou feiticeiro), até com gestos naturais
(a maioria age como se não estivesse sendo filmados, principalmente as mulheres no
filme que são mais naturais nos gestos, nas indignações e nas sensações), Silva rompe
com um cânone do cinema propagado por Dulac que diz que a produção fílmica só se faz
com atores profissionais, caso contrário, não é cinema. (in Agel, 1957, p. 12). O cinema
e a música em conjunto, por si, podem provocar o drama, o movimento também aqui
se faz e ele é elemento fundamental em Chikwembo. Não há fixadez, há idas e vindas na
busca de soluções, o que gera conflito, movimento, tensão e faz desenrolar a história.
Longe da cidade grande e desenvolvida, (Maputo), esta aldeia de Gaza foge de regras
racionais e segue as suas próprias tradições.
A ida de Langa para Maputo fez com que ele se sentisse “moderno”, desacreditando
das tradições; ao ter problemas, muitos dos quais gerados por ele, retorna à aldeia em
Gaza onde é obrigado a se moldar ou remoldar-se às tradições, sentindo-se menor
diante de tudo, por isso o plano sequência aberto e depois fechado quando há o conflito,
e mais fechado ainda (em close up) nas falas dos personagens, pois é nos olhos que vemos
o caminho a ser percorrido. O crítico israelense cristão René Schwob afirma que “é
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Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
nas raízes do ser, no ponto de tangência de nosso ser mais secreto, mais ignorado de
nós mesmos e aquele que mais nos deleita, que o cinema nos faz enfim, descer... à mais
prodigiosa sondagem no turvo infinito que trazemos em nós.” (apud Agel, 1957, p. 16).
Gaza, a região onde se passa a história, tem uma ocupação muito antiga com
registros históricos que comprovam que lá já havia reinos e sociedades estruturadas
antes da chegada dos portugueses:
Muito antes de aí haver quaisquer sul-africanos brancos, os bantos tinham
na realidade ocupado as únicas partes do subcontinente com um clima e
pluviosidade adequados à agricultura intensiva. Haviam deixado o alto e
seco Karoo do planalto central. (Oliver e Fage apud Santos, 2007, p. 30).
Historicamente, o Império de Gaza era fortemente estruturado e preparado
para o combate, com um preparo militar relatado por viajantes. Em sua pesquisa de
doutorado, Santana nos diz que
A força militar desse império era formada por uma pluralidade de
regimentos, os quais eram constantemente renovados e treinados para a
realização de razias nas povoações que ainda não se encontravam sob o
domínio Nguni ou para guerras de proporções maiores, como foi a de 18951897 contra os portugueses. Cada regimento se destacava por suas formas
de vestir, suas danças e cantos guerreiros, que eram utilizados como parte
das cerimônias destinadas à preparação moral e religiosa dos soldados, de
modo a instigar-lhes autoconfiança em sua capacidade guerreira e a certeza
da vitória. (Santana, 2016, p. 5)
Numa sequência de um novo romance de Langa, agora com uma moça
chamada Carolina, ele vai até a casa onde reside esta moça e a procura (onde ele a
havia acompanhado no dia anterior), no que é atendido de forma bastante rude pela
mãe da moça que lhe diz que Carolina já morrera há muito tempo. Embora não seja o
objetivo deste estudo analisar a utilização das cores no filme, mesmo sabendo que ela é
um importantíssimo elemento da mise-en-scène, ou seja, tudo o que compõe a cena, a cor
branca da roupa de Carolina merece destaque.
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nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
Entre a maioria dos povos africanos subsaarianos (entre os bantos e o tronco
linguístico congo-níger, o que inclui os yoruba), a cor branca é associada com o mundo
não material. Muitos chamam de mundo dos mortos, porém, esta nomenclatura não
tem correspondência na maioria das culturas africanas, uma vez que há diversos tipos
de morte, e não somente a morte física como para os ocidentais.
A cor branca está ligada ao estado não físico da morte, à entrada no mundo dos
mortos, uma vez que ela é ausência das cores, conforme diálogo no filme sul-africano
Incheba7, onde um ancião explica aos jovens iniciados porque eles são pintados de
branco.
Esta perda de noção e de consciência que confunde Langa nos leva também a
uma perda de entendimento do que pode ocorrer, por isso a teoria estética nos permite
a compreensão de outra cultura pelo seu próprio viés. Então temos aí vários microconflitos que Langa enfrenta no percurso de sua existência, tanto entre as existências
visíveis como as invisíveis, obrigando-o a retornar, em seu ser, à sua cultura que deixara
de lado sob a alegação de uma suposta maturidade dada pela convivência na grande
cidade. Por baixo e por dentro da existência de Langa, os conflitos fazem com aquilo que
Heidegger chama de “volta para casa” para habitar poeticamente as coisas, significa estar
na presença dos deuses e ser tocado pela proximidade essencial das coisas.
À guisa de conclusão, ou desligando o cinematógrafo
Ao optar por colocar vários elementos estilísticos ao filme, o diretor Julio
Silva se contrapõe aos ditames do que conhecemos como cinema do ocidente, ou
seja, ele opta por colocar moradores locais como atores, busca a essência das tradições
espirituais, faz valorizar a música, a dança e os frutos do lugar, valoriza a oralidade,
traço marcante das culturas africanas e, principalmente, exclui a língua portuguesa (a
língua do colonizador), como elemento fundamental da obra.
Colocando o africano na tela, na frente das câmeras e atrás dela, com sua reduzida
equipe de produção, o diretor faz não somente uma afirmação estilística, mas acima de
7 Filme sul-africano de 2007, dirigido por Jhon Trengove. No Brasil, saiu com o título de Os Iniciados.
O filme retrata a iniciação de jovens masculinos na vida adulta, porém, um deles é homossexual e rejeita
as tradições de sua etnia. Inxeba em xhosa significa cicatriz. A obra concorreu ao Oscar de melhor filme
estrangeiro no ano seguinte.
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nosso olhar vem de longe
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tudo, uma afirmação política, a saber: que é a busca de descolonização da mente:
o ato da produção, a disponibilidade, a quantidade, a essência do cinema
africano, por assim dizer, é, sem dúvida, o pré-requisito mais óbvio. É
necessário que existam filmes feitos por africanos sob a condição africana,
antes que se possa falar sobre o cinema africano. Os recursos para a
produção de filmes, sua distribuição e acessibilidade ao público africano
são fatores indispensáveis para a existência de uma cinematografia. (Wa
Thiongo’, 2007, p. 27).
Ao nos dispormos a assistir um filme africano, especialmente de países cujos
financiamentos são rarefeitos (Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Gabão, Benin,
República Centro Africana, Zâmbia, Burundi, Etiópia entre outros), precisamos preparar
nosso espírito para adentrarmos um universo cuja produção fílmica nos remete, muitas
vezes, aos primórdios do cinema, sem grandes efeitos especiais ou locações riquíssimas,
ou carros de alto custo ou figurinos que poderiam estar nas passarelas europeias. O
cinema africano, especialmente feito por africanos e para o público africano tem um
posicionamento de valorizar sua cultura, suas tradições e enfrentar os dilemas do
cinema, formando suas próprias regras, tentando a todo momento fugir da interpretação
limitada e triádica de conflito entre tradição e modernidade, animais selvagens e magia.
Ainda que estes elementos estejam presentes em boa parte das produções, as leituras
sobre eles e seus significados é que precisam mudar. Estes são elementos fundantes dos
costumes, como o diálogo entre homem e natureza, natureza e cultura, produção de
bens de consumo e sustentabilidade, dinheiro e sacralização entre tantos outros temas.
Nesse sentido, identificamos uma dimensão educativa no cinema africano, a qual
está associada aos fundamentos educativos do cinema (Almeida, 2017), principalmente
no que diz respeito aos fundamentos antropológico e mítico, pelos quais se observa
o papel do cinema na ampliação do conhecimento sobre outras culturas, inclusive as
mais descentradas, possibilitando também a valorização de grupos minoritários, no
modo como vivenciam suas contradições. No caso do cinema africano, o fundamento
mítico se mostra presente não apenas na menção direta aos mitos, mas sobretudo
por cumprir a função de reconciliar nossa consciência com o mistério do universo,
oferecer uma imagem interpretativa desse mistério, além de impor uma ordem moral
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nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
e auxiliar o indivíduo na busca de uma congruência com a cultura de seu povo e sua
existência particular. Há, portanto, o que Celso Luiz Prudente (2021) observa como
uma dimensão pedagógica do cinema negro, pela qual a imagem do negro, seja africano
ou afrodescendente, é afirmada, pois “ensina à sociedade a maneira como ela deve ser
tratada, ajudando na superação do seu anacronismo excludente” (p. 15).
Ainda que Chikwembo contenha esses elementos, ele nos convida para um olhar
mais aprofundado não somente sobre o que estamos vendo, mas principalmente,
sobre o que não está explicito na tela como elemento principal, mas sim, espalhado
umbilicalmente entre os povos africanos, qual seja: a resistência em manter-se vivo
culturalmente, mesmo que para isso tenha que pagar um preço que é de percorrer
caminhos já imaginados pela indústria cinematográfica. Manter viva a sua cultura,
oralidade e espiritualidade é uma continuação das diversas guerras de independências
e guerras de guerrilhas a que muitos destes países passaram, e, por extensão, manter-se
vivos cultural e espiritualmente como seus diversos descendentes o fazem espalhados
pelos diversos lugares do mundo pós-diáspora negra.
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nosso olhar vem de longe
Júlio César Boaro, Rogério de Almeida
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191
A importância da trilha sonora de Barravento
na sensibilização da educação musical
Alexandre Siles Vargas
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Celso Luiz Prudente
Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT
O propósito do nosso artigo é levantar uma discussão que demonstra a
possibilidade de uma relação interseccional de linguagens estruturantes no cinema
negro. Apontaremos aspectos fundamentais do surgimento dessa tendência das relações
étnico-cinematográfica afrodiaspórica, observando-a no âmbito do seu surgimento
ou no processamento das desigualdades sociorracias, que se apresenta em uma
possibilidade de coralidade étnico-racial, considerando que na sociedade brasileira raça
e cor se confundem (Ianni, 1982). Esse fenômeno da coralidade sociorracial se expressa
em um conflito, caracterizado na luta de uma multiculturalidade miscigênica contra o
autoritarismo de uma monoculturalidade, vista na hegemonia do ideal branco-europeu,
que impregnou as relações de escolaridade. De tal sorte que as culturas decorrentes do
universo eurocaucasiano são promovidas pelas relações institucionais em detrimento
das culturas dos povos descendentes dos diversos, que demonstram inquestionável
estranheza em relação aos nomos, do branco eurocidental. Os diversos configuram as
culturas que se formaram na dinâmica da ibericidade, da asiaticidade, da africanidade e
da amerindidade, vitimadas pela eurocolonização (Prudente; Silva, 2019).
192
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
É de suma importância para a nossa reflexão crítica a compreensão de alguns
pontos identitários, que configuram os diversos, tornando-se essenciais na linha de
descendência. Razão pela qual, observamos uma identidade lusofônica, observada na
relação comum dos grupos raciais que se constituíram como objetos da colonização
europeia. Incluindo também os ibéricos, que foram concomitantemente protagonistas
coloniais, mas essa posição não lhes furtou a triste condição de objeto colonial (Prudente;
Silva, 2019).
Para nossa preocupação cumpre observar no universo europeu uma política de
representação que tenta colocar as outras formas de existência, que são constituintes
do diverso em um simbolismo estereotipado, negando-lhes os traços epistêmicos
para justificar a nefasta violência da eurocolonização. Essa negação dos traços
cognitivos dos povos das culturalidades do diverso é feita por um reducionismo da
euroheteronormatividade, que significa, para nossa reflexão crítica, o sentido, a razão e a
norma da supremacia branca europeia, (Prudente; Silva, 2019), estabelecida por um mero
sentido de brancura, que foi objeto na crítica reflexiva sartriana (SARTE, 1960, p. 105):
O homem branco, branco porque era homem, branco como o dia, branco
como a verdade, branco como a virtude, iluminava a criação qual uma
tocha, desvelava a essência secreta e branca dos seres. O que esperáveis que
acontecesse quanto tirastes a mordaça que tapava estas bocas negras?
É provável que essa tentativa reducionista eurocaucasiana deu origem a uma luta
de horizontalidade ontológica dos povos do diverso que se fez contra a verticalidade
autoritária do universalismo europeu. Fenômeno que concorreu para o surgimento de
um conflito caracterizado no multiculturalismo, dado pelo branco ibérico (português
e espanhol), o amarelo asiático, o preto africano e o vermelho ameríndio, contra
o monoculturalismo de tentativa reducionista do branco europeu. Com o fluxo
migratório do processo colonial, essa contradição conflituosa ganha intensidade no
processamento das descendências dos diversos mundos raciais, que são estranhos
aos nomos eurocaucasiano e suas descendências, protegidas, desse modo, pela forte
institucionalidade do ideal branco europeu, que se faz em detrimento da diversidade
racial nas sociedades multirraciais, com economia dependente, como é o caso específico
do Brasil (Prudente, 2021).
193
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
Observamos que a política getulista, influenciada pelo positivismo europeu,
tentou construir uma mitologia de um país branco urbano industrial, prescindindo da
real ruralidade miscigênica. Com esse propósito, o governo getulista concorreu por
uma comunicação racista, onde o branco europeu simbolizava a harmonia e a perfeição,
em detrimento das outras raças, formadoras da sociedade brasileira, que formavam
uma amálgama cultural miscigênica, posta como imperfeita e atrasada. É nesse período
getulista que o governo desenvolveu uma política artística de contenção ideológica,
formando os cursos musicais de massa orfeônico em que se estudava a música europeia,
negando a musicalidade da amalgama cultural ibero-ásio-afro-ameríndio. Esse mesmo
fenômeno se deu também no incremento para a formação ao trabalho, na perspectiva
da subordinação no processo da relação de capital e trabalho.
O filme Barravento de Glauber Rocha expõe o diverso negro, em uma filmagem
realizada na praia do Buraquinho que é próximo da cidade de Salvador, na Bahia. Nesta
obra, a africanidade musical é associada a momentos lúdicos, gregários e conflitantes
que provocam a reflexão/ação na comunidade da vila de pescadores como na práxis da
Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (2005). A africanidade no cinema de Glauber
denuncia a verticalidade da relação de forças em que o poder hegemônico domina o
principal instrumento de trabalho dos pescadores - a rede de pesca. Glauber traz luz
à riqueza da musicalidade do diverso negro, proporcionando a experiência com a
sonoridade dos instrumentos musicais, do canto e a imagem dos corpos negros, que por
muito tempo foram negados no cinema, pela concepção racista do poder hegemônico
eurocaucasiano. Ao expor o negro em sua luta e musicalidade, Glauber estimula a
sensibilização para a cultura e história africana e afro-brasileira.
Com base na reflexão crítica das cenas do filme Barravento levantaremos
a questão: como a musicalidade do cinema negro pode ser um elemento favorável
para a educação das relações étnico-raciais, na educação musical? Acreditamos que a
importância desse artigo está no esforço de apontar uma relação entre a musicalidade
africana e o cinema negro, observando como poderá auxiliar na sensibilização dos
estudantes em relação às qualidades estéticas da africanidade musical. Assim, esse
estudo se justifica pela utilização dessa musicalidade cinematográfica afrodiaspórica no
processo de educação musical como um caminho proativo para a educação das relações
étnico-raciais, chamando atenção para que os educadores percebam e trabalhem a
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a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
musicalidade da trilha sonora na sala de aula, com a finalidade da sensibilização dos
educandos às qualidades estéticas presentes na trilha sonora do cinema negro.
O cinema negro se estabelece como uma tendência artística no plano da educação
das relações étnico-raciais. Razão pela qual se torna um elemento fundamental no
processo da discussão pedagógica da emergência da africanidade, frente ao problema da
escolaridade monocultural, que buscou por princípio a concorrência da institucionalização
do ensinamento das artes exclusivamente pela visão eurocidental. A musicalidade nessa
tendência artística da educação das relações étnico-cinematográfica, com a amplitude
holística que é própria do sentido civilizatório da recuperação da imagem do diferente,
na perspectiva da cultura de paz implicada no respeito à diversidade, é provavelmente um
contributo cultural, que chama atenção para a convivência na perspectiva da alteridade.
Tendo em vista que as relações de humanidade na dinâmica racial têm a sua polissemia,
que é coadunável com a complementariedade merleau-pontyana, (Prudente, 2014), esse
fenômeno sugere uma riqueza cultural que será importante como um fator estimulante
à sensibilização das pessoas. Nesse contexto, observamos que a trilha sonora do filme
Barravento traz os elementos musicais de origem negra importantes para a educação
das relações étnico-raciais.
Um dos caminhos possíveis para a educação das relações étnico-raciais seria
a aula de música com apreciação do filme Barravento. Isto porque a experiência da
apreciação estimula a sensibilização à vibração sonora e à imagem, ligadas ao sentido
da percepção sonora e visual que ocorre à distância. A experiência com as qualidades
estéticas da musicalidade da trilha sonora do filme Barravento concorreria para o
estímulo das percepções e provocando insights nos sentimentos humanos. Como é
percebido na filosofia da educação musical estética de Reimer (1970) para o autor, as
qualidades estéticaspodem ser percebidas no ritmo, melodia, harmonia, forma musical,
timbre, colorido, textura, intensidade, altura que são componentes de uma música.
Portanto, a experiência da apreciação sonora e visual com as qualidades estéticas da
sonoridade, instrumentalidade e corporeidade negra presente em Barravento favorecerá
a educaçãodas relações étnico-raciais, que, nas palavras da pesquisadora Nilma Gomes,
“deve ser uma educação para a criticidade, mudanças de postura, reconhecimento da
beleza e da riqueza das diferenças”. (GOMES, 2013, p. 83).
195
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
É provável que a tamboralidade negra de Barravento possa promover, por meio
da música, uma identidade cultural entre jovens e adultos miscigênicos, tornandose fundamental para o processo educacional que tenta trazer luz à cultura e história
africana e afro-brasileira. Sendo uma ação pedagógica favorável para o cumprimento da
Lei 10.639/03 e, posteriormente a Lei nº 11.645/08, que alterou o Artigo 26-A da Lei
9.394 - Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (BRASIL, 1996), que dispõe:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afrobrasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil,
a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (Redação dada pela
Lei nº 11.645, de 2008).
§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
A filmografia do cinema negro retrata a história e cultura afro-brasileira, sendo
viável a sua presença no currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística
como conteúdo para as aulas de música na educação de jovens e adultos.A relevância
dessa nossa preocupação fica ainda mais cristalina, quando se observa espaços legais que
são possíveis acomodar a emergência do ensino do cinema negro e a sua intersecção
de linguagem, sobretudo na dinâmica musical do filme Barravento. Ainda que a
legislação possível tenha uma compreensão conservadora ou letárgica em relação ao
dimensionamento do cinema como produção de sentido, como sugerem Rosália
Duarte (2009), Adriana Fresquet (2013), Rogério Almeida (2017), nessa mesma linha
de discernimento, é relevante que o cinema como forma epistêmica conforme Celso
Prudente (2021) venha integrar o currículo escolar. Pensamos que ainda assim com essas
196
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
dificuldades de compreensão temática específica da filmografia não caberia qualquer
justificativa para a falta do ensinamento dessa filmografia étnica em favor das minorias,
pois a sua obrigatoriedade encontra lugar nos dispositivos legais.
Observamos, com efeito, a Lei 13.006/14 que acrescenta o § 8º ao Art. 26 da
Lei nº 9.394 (BRASIL, 1996): “a exibição de filmes de produção nacional constituirá
componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola,
sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, 2 (duas) horas mensais”. A experiência
vivenciada na exibição fílmica é passível de aproveitamento no ensino de música1 , nas
atividades de composição, apreciação, performance, estudos literários e aquisição de
habilidades técnicas musicais (SWANWICK, 1991). Com destaque para a atividade de
apreciação musical direcionada à percepção das qualidades estéticas da musicalidade,
como se vê na trilha sonora do cinema negro, que subsidiará às atividades de composição
e estudos sobre a história e cultura africana e afro-brasileira, com aquisição de técnicas
instrumentais e vocais, que são voltadas para a performance do repertório de origem
negra.
O filme Barravento, em razão da sua importância histórica, foi o primeiro longametragem de Glauber Rocha, o mais eminente ideólogo do cinema novo, com mérito
de ter sido também a principal referência cinematográfica, com o filme Leão de Sete
Cabeças (1971), para o surgimento da emergência do cinema negro brasileiro (Prudente
e Oliveira, 2017). Considerando que o cinema novo e a bossa nova são movimentos
culturais que se entrelaçam no eixo da compreensão da dinâmica miscigênica,
caracterizada na amálgama do ibero-ásio-afro-ameríndio, que significava a polissemia
proletária em um processo de horizontalidade ontológica de luta contra a verticalização
da persistente eurocolonização, simbolizada no burguês, como o euro-hetero-machoautoritário (Prudente; Silva, 2019).
A luta de classe se estabelece como uma espécie de abstração na tessitura da
bossa nova e é estruturante na forma de sintaxe do cinema novo, (Prudente, 1995),
(Gerber, 1997) (Siles Vargas; Nogueira de Souza; Prudente, 2023). Observamos ainda
que a abstração das lutas de classes, nesses dois movimentos artísticos de influência
1 O ensino de música tem apoio no Artigo 26 da Lei 9394/96, que no “§ 2º O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica.
(Redação dada pela Lei nº 13.415, de 2017)” (BRASIL, 1996); sendo que no “§ 6º As artes visuais, a
dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o §
2º deste artigo. (Redação dada pela Lei nº 13.278, de 2016)” (BRASIL, 1996).
197
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
marxista, é percebida como signos de polaridade, observado no negro como expressão
proletária e o desdobramento de pobreza e o branco como configuração burguesa e o
dimensionamento de dominação.
Para essa observação urge a necessidade da elucidação, no qual esse discernimento
conceitual foi uma demanda substancial da insurgência estética do glauberianismo, que
emprestou a dinâmica da culturalidade miscigênica brasileira para uma hermenêutica
marxista de teluricidade específica, que tem, ‘ao nosso quase cego ver’, uma relação
dialógica com a escola de Frankfurt. É, contudo, sugestivo apontar que o Barravento
ainda não foi estudado na perspectiva da aula de música como pretendemos fazer,
dialogando com a educação musical estética e a educação das relações étnico-raciais.
Compreendemos, com essa preocupação, que a junção da filmografia étnicocinematográfica em questão e o ensino de música concorrem para fortalecer a educação
das relações étnico-raciais. Isso poderá viabilizar, com efeito, a sensibilização das
pessoas, implicando também na inclusão da diversidade cultural, representada na
africanidade, que é marginalizada pelo comportamento da escolaridade monocultural,
onde se localiza também o ensino musical.
A apreciação da obra cinematográfica é essencialmente uma atividade musical,
em razão da forte presença da trilha sonora no filme, apresentando-se como um
caminho pedagógico para a sensibilização, tendo, como ponto de partida, o contato
com a axiologia africana que será vista no tratamento estético da musicalidade negra. O
contato em voga será ampliado, com a literatura da negritude, instrumentos musicais,
danças, lutas, teatro (Prudente, 2011), performance na roda de samba, de capoeira
e criação musical a partir da africanidade. Neste sentido, a realização de Barravento
trouxe uma intersecção de linguagem, em razão de uma intelectualidade multimídia que
Glauber já expressava na época, isso contribuiu para uma análise das suas qualidades
estéticas musicais (Reimer, 1970), sendo um caminho para o desenvolvimento da
sensibilização à cultura negra, contribuindo para aplicabilidade da legislação brasileira.
Isso foi feito com a conquista educativa do movimento negro para a disciplina da
educação das relações étnico-raciais, que se constituiu em uma fragmentação da escola
monocultural, abrindo espaço para o multiculturalismo com a natureza musical, que
se vê na dinâmica do dia-a-dia baiano, observado no onirismo utópico do cinema
glauberiano, (Prudente, 2011).
198
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
A filosofia da educação musical estética de Reimer (1970) aponta que a dimensão
qualitativa das estéticas é resultante da sonoridade dos elementos musicais, como
o ritmo, melodia, harmonia, forma musical, timbre, colorido, textura, intensidade e
altura, considerando que esses elementos têm o poder de aguçar as percepções acerca
dos sentimentos. Segundo Reimer (1970, p. 39) “a educação musical é uma educação dos
sentimentos humanos, alcançada por via do desenvolvimento da capacidade de resposta
às qualidades estéticas do som, que são expressas por meio da sonoridade resultante da
combinação dos elementos musicais”. Segue o autor: (1970, p. 40), “a música é essencial
para a progressiva sensibilização em relação aos elementos musicais”, pois contém as
condições para a percepção que é essencial aos sentimentos humanos.
Observamos a preocupação desse autor, quando ele sugere que os professores de
música têm o poder de enriquecer a qualidade de vida das pessoas, aguçando as percepções
das dimensões sentimentais, a partir do repertório musical. Para isso, Reimer (1970)
indica a escolha de músicas que sejam passíveis de compreensão, para que facilitem
o acesso às suas qualidades estéticas, de modo “que abranjam o entendimento das
possibilidades de respostas humanas” (p. 40). O autor também sinaliza que o repertório
seja ampliado com “músicas étnicas e de grupos culturais do jazz, pop, folk” (Reimer,
1970, p. 40). Com essa afirmação, Reimer (1970) aponta para a importância da escolha
do repertório musical diversificado para que os estudantes tenham uma experiência
enriquecedora, com mais possibilidades de percepção sobre os sentimentos humanos e,
consequentemente, maior enriquecimento da qualidade de vida.
Percebemos também a preocupação de Reimer (1970) em esclarecer que
as qualidades estéticas não são algo místico ou de difícil acesso. Ao contrário, são
“identificáveis, nomeáveis, capazes de serem manipuladas, criadas, discutidas, isoladas,
reinseridas no contexto” (Reimer, 1970, p. 40). Todavia, os professores de música
precisam mostrar essas qualidades aos estudantes, tornando-as perceptíveis na escuta da
melodia, harmonia, ritmo, colorido, textura e forma musical. Neste sentido, a atividade
de apreciação musical é relevante para que os estudantes consigam perceber essas
dimensões qualitativas, tendo por isso oportunidade de sentirem o poder expressivo
da música.
A importância de uma reflexão sobre a educação musical estética se estabelece
na conjugação do significado da experiência, diante de uma adjetivação da estética, que
199
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
observamos na consideração de Reimer, com a relação da música à experiência de vida.
Em suas palavras, “as qualidades estéticas podem ser experienciadas na percepção do
significado da experiência, resultante da relação entre qualidade estética e qualidade de
vida. As qualidades das experiências estéticas influenciam no sentido do significado”
(REIMER, 1970, p. 25). O autor complementa que “a experiência artística provoca insights
da realidade subjetiva; esta experiência significa o auto entendimento, um caminho em
que o senso humano da natureza da arte pode ser explorado e alcançado” (REIMER,
1970, p. 25). Compreendemos que a percepção das qualidades estéticas da música tem
reflexo no autoconhecimento, na medida em que provoca insights, que expressam a
realidade subjetiva. Quanto mais a pessoa tiver contato com uma determinada cultura
musical, mais experiências poderão ter para ressignificar diferentes formas criativas.
Percebemos, contudo, que a apreciação da musicalidade negra se estabelece como
um programa ou conteúdo para o ensino da educação das relações étnico-raciais, que
tem a necessidade de mais campanhas institucionais em proveito da aplicabilidade
da legislação vigente. Promovendo, dessa maneira, experiência com as qualidades
estéticas da africanidade, conjugada com a demanda estética cujo dimensionamento das
corporalidades e circularidades dos saberes sagrados da cosmovisão africana passa por
um processo de existencialidade lúdica (Prudente; Silva, 2019).
A ludicidade presente nas atividades de apreciação é coadunável com as atividades
próprias do fazer musical e da composição, promovendo notáveis experiências, que
influenciam na interpretação dos significados. Entendemos, portanto, que a educação
musical estética é um importante contributo para o entendimento da sensibilização a
partir da percepção das qualidades estéticas, que se tem na trilha sonora. Essa forma de
compreensão é, com efeito, um elemento contributivo para tornar o estudante mais
aberto ao conhecimento sobre a história africana e a cultura afro-brasileira, como se
vê em Barravento, que traz o enredo da luta de pescadores tradicionais, adeptos da
cultura dos orixás, marcada pela tamboralidade dos cantos dos rituais da orixalidade,
(Siles Vargas; Nogueira de Souza; Prudente, 2023).
Na educação musical com base na educação das relações étnico-raciais, nos
países multirraciais, como é o caso específico do Brasil, faz-se necessária a consideração
do processo psicopedagógico para buscar relações de equidade, entre as experiências
teóricas e práticas, essa acuidade deve ser a concorrência para garantir as experiências
200
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
que promovam a sensibilidade dos estudantes, em relação à diversidade cultural. Essa
linha de preocupação é coadunável com a pesquisadora Alicia Loureiro (2012), quando
ela chama atenção para que se considere o processo de educação musical, no intuito
de buscar o equilíbrio entre o vetor didático e a vetorização artística. A autora aponta
essa necessidade com o propósito de fomentar a valorização, tanto da razão quanto
dasensibilidade, na demanda educativa da questão musical. Essa autora ainda aponta
que os estudantes precisam ter a oportunidade de acessar o “conhecimento musical
organizado e sistematizado” ao mesmo tempo em que experimentam o desenvolvimento
da “criatividade, imaginação e da sensibilidade” (Loureiro, 2012, p. 128).
Esse fenômeno trará mais possibilidades de compreensão no cinema, pela sua
condição de única mídia transformadora que permite ao espectador uma ação ativa
na qual ele interfere, indo no impossível e no possível, como aponta Agamben (2014).
Essa relação ativa de participação na obra cinematográfica, que no caso específico do
cinema negro demonstra intersecção de linguagem, permite, no ensino da música, a
realização de atividades de composição, performance, estudos literários, aquisição de
habilidades técnicas, e, principalmente, a sensibilização na apreciação musical. Isto em
razão da sensibilização diante de um processo midiático mais amplo, que por conta
disso, comporta ainda mais as questões e os problemas da diversidade. A sensibilização
por meio da atividade de apreciação é um elemento fundante da educação musical
estética, sendo por isso um elemento que cumprirá a função de base para a educação das
relações étnico-raciais, a partir do cinema negro.
Na perspectiva da sensibilização para a musicalidade negra, a atividade de
apreciação musical é a que mais se encaixa com a experiência de assistir uma obra fílmica.
Isto ocorre porque está diretamente relacionada à sensibilidade para a vibração sonora e,
também, à imagem, que estão interligadas ao sentido da percepção sonora e visual, que
ocorre à distância. Essa percepção está relacionada para a forma pela qual o ser humano
visualiza o mundo e o explica a si mesmo, denominado como representação icônica por
Bruner (1969). O autor acredita que esta representação se baseia “na organização visual
(ou em qualquer outro sentido) e no uso de imagens sinópticas” (VARGAS, 2017, p.
3). A apreciação musical tem o poder da sensibilização à distância por via da fruição da
musicalidade negra da trilha sonora, sendo que os materiais são as qualidades estéticas
percebida na sonoridade do ritmo, melodia, harmonia, forma musical timbre, colorido,
textura, intensidade, altura, dentre outros elementos musicais.
201
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
A realização da atividade de apreciação não depende de as pessoas terem
habilidade de cantar ou tocar um instrumento. Desta forma, uma maior quantidade
de pessoas poderá desenvolver a sensibilização para as qualidades estéticas musicais
da africanidade, buscando o respeito à diversidade que é a principal lacuna da escola
monocultural, sendo também a razão excludente da escolaridade estranha a dinâmica
multicultural, Prudente (2019). Observamos nessa relação dialógica com Alícia
Loureiro, que a sensibilização musical decorrente do processo dinâmico da educação
musical. Sendo um caminho pertinente para a urgente necessidade da educação das
relações étnico-raciais. Nesse contexto, a partir da apreciação das qualidades estéticas da
trilha musical do filme Barravento poderá haver desdobramentos músicos-pedagógicos
relacionados a aspectos da história africana no âmbito do processo dinâmico da cultura
afro-brasileira, como subsídio à reflexão crítica e ação transformadora na perspectiva
civilizatória do respeito ao diferente e na busca holística da complementariedade
humana, mostrando-se essencial para a sensibilização musical. As atividades de
apreciação musical e a reflexão crítica transformadora não carecem de habilidades
musicais para serem realizadas, mas fortalecem o cinema negro como um instrumento
pedagógico democrático a favor da educação das relações étnico-raciais.
A qualidade da arte de causa das artes negras, como foi percebida pelo jurista
Dalmo Dalari (2002) parece sugerir a compreensão da interseccionalidade das
linguagens, considerando a amplitude relacional delas em proveito de um esforço de
união civilizatória em proveito da liberdade, que se estabelece como condição essencial
na existência da manifestação artística de africanidade e das minorias, implicada no
espaço escolar na verticalidade monocultural. Esse elemento de união em processo
interseccional de linguagem, na possível condição de causa da arte negra encontrará na
ritualidade religiosa o seu lócus. De tal sorte que, a música e o cinema negro brasileiro
têm inequívoca relação estreita, tendo em vista que o cinema negro nasceu na tendência
cinematográfica cinemanovista, que por sua vez tem entrelaçamento transversal com
a bossa nova, em que se coloca nos dois vetores: música e cinema, a questão racial
do negro, como protagonista. Esse fenômeno se torna mais cristalino na demanda da
orixalidade presente tanto entre os bossanovista quanto nos meios do cinemanovismo,
caracterizando a sinergia da ritualidade da musicalidade e do cinema negro, como
possíveis conhecimentos essenciais, do negro, Prudente (2011), que caracteriza a sua
ontologia presente na filmografia glauberiana de Barravento, como observa os autores:
202
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
A presença da instrumentalidade musical nesse título do cinema novo
aparece como uma dimensão da orixalidade. Considerando que a
ritualidade afrodiasporica se dá num processo da corporalidade negra em
que a música e a dança se estabelecem como uma solução indissolúvel
nas culturas bantu, sendo aqui um traço da herança da africanidade.
Em Barravento (1962), confirmamos a tese de Prudente, que o negro é
referencial estético do cinema novo de Glauber Rocha e levantamos em
que medida essa musicalidade é essencial na ontologia do afrodescendente.
Para nossa percepção a tamboralidade negra traduz os valores fundamentais
da africanidade que estão presentes nos folguedos carnavalescos que tem
origem no ticumbi bantu. (SILES VARGAS; NOGUEIRA DE SOUZA;
PRUDENTE. 2023, p. 114).
Chamaremos atenção para a instrumentalidade do arco musical do berimbau na
capoeira, um instrumento cujo formato tem a estrutura de um arco de caça de origem
africana milenar. Para o etnomusicólogo Kay Shafer, “a invenção do arco de caça, pensase ter acontecido no norte da África cerca de 30.000 e 15.000 anos atrás.” (Shafer, 1977,
p. 1). Cabe observar que, devido à sua origem milenar, “muitas formas de arco musical
podem ser encontradas”no continente africano, em especial na África do Sul e África
Central (Shafer, 1977, p.2). Assim, Shafer (1977)sinaliza a existência de diferentes
formatos desse instrumento musical africano conhecido entre nós por berimbau. “No
Brasil, têm sido encontrados quatro tipos de berimbau: o birimbao ou berimbau de
metal, o berimbau-de-boca, o berimbau-de-bacia e o berimbau-de-barriga” (SHAFER,
1977, p.12). Abordaremos, o berimbau de barriga que é o tradicional da capoeira de
Salvador exibido em Barravento.
O berimbau de barriga ou apenas berimbau é um instrumento que tem um
arame esticado em uma madeira (biriba), cuja percussão com uma vareta produz
uma sonoridade que ressoa na cabaça (a caixa acústica) de onde é projetado o som. O
movimento de encostar a pedra no arame produz uma diferença de altura (entre som
grave e agudo) e o de aproximar e distanciar a cabaça da barriga (corpo) do músico
modifica a sonoridade como se fosse um efeito sonoro conhecido como wha-wha.
O berimbaué tocado com uma vara pequena segurada pela mesma mão que segura o
chocalho, ao percutir a corda com a vareta o músico produz duas sonoridades, uma
da corda e outra do som estridente do caxixi. Os etnomusicólogos Prudente e Gilioli
(2013) apontam que:
203
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
O berimbau, instrumento musical originário da região onde se localiza
atualmente Angola (lá chamado de ‘mbulumbumda e com vários modelos
diferentes), era utilizado, até o século XIX, no comércio urbano [do
Brasil]por comerciantes, vendedores, feirantes e até mesmo de mendigos
como chamariz para seus clientes só depois esse instrumento veio a ser
incorporado pela capoeira, que antes apenas utilizava tambores. (p. 76-77)
O berimbau foi incorporado à capoeira; tornou-seum dos principais
instrumentos musicais da baianidade nagô presente na africanidade do filme Barravento
de Glauber Rocha. A sonoridade resultante de materiais comoarame, pedra, vareta,
caxixi e cabaça apresenta um espectro de frequências, intensidade, altura, timbre,
ritmo, melodia, harmonia, textura, colorido e forma musical, que sãopercebidas como
qualidade estética. Essa sonoridade tocada ciclicamente promove a sensação musical
rítmico-melódico, em que a repetição consciente dá vida ao toque. Cada toque tem
um ritmo melódico característico constituído na combinação das diferenças entre as
frequências, grave e aguda, produzidas com o encostar da pedra e com o afastamento e
aproximação do corpo do músico. Razão pela qual o berimbau e a capoeira na sua relação
com o caráter da circularidade e corporalidade negra se faz presente também de forma
transversal no filme Barravento por combinar com os diferentes níveis de expressões
musicais e corporais da baianidade, que a realização de Glauber Rocha desenvolve na
existencialidade lúdica gregária do culto dos orixás. Nessa linha de compreensão, a
qualidade estética da trilha sonora representada na sonoridade do berimbau reforça
ainda mais a relevância da musicalidade africana na educação das relações étnicoraciais, dada pela interseccionalidade de linguagem do cinema negro, que dimensiona a
sensibilização fundamental para no ensino da música.
No Barravento, a circularidade e corporalidade da música e dança e o seu
dimensionamento de resistência envolve um fazer musical, na cena em que os moradores
da comunidade se utilizam da percussão corporal ao baterpalmas, tocar pandeiro e
percutir numa caixa pequena com as mãos (Figura 1). A cena progride agregando mais
pessoas à roda de samba, reforçando, o aspecto lúdico e do processo gregário da música,
que se apresenta organizada de forma circular (Figura 2).
204
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
Figura 1 – Percussão corporal. Fonte: Barravento (1962)
Figura 2 – Roda de samba. Fonte: Barravento (1962)
Observamos que a genialidade glauberiana construiu uma sugestão de
pluridimensionalidade para o berimbau colocando-o na cena da circularidade lúdica
gregária do processo existencial da dança e música da roda de samba. Fazendo o mesmo
também no processamento do sentido da resistência com uma técnica crescente da cena
que se desdobra numa luta entre as personagens Firmino e Aruã (Figura 3), na qual
o berimbau é o elo da relação e o protagonista instrumental dessa relação comunal,
de demandas lúdicas e gregárias. A sonoridade do toque de berimbau nesta cena tem
semelhança como o que Shaffer (1977) registrou como toque de Angola, executado por
mestre Canjiquinha como apresentaremos a seguir (Figura 4):
205
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
Figura 3 - Berimbau na cena da luta. Fonte: Barravento (1962)
Figura 4 - Toque de Angola por mestre Canjiquinha. Fonte: Shaffer (1977)
Fonte: Shaffer (1977)
206
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
Durante a cena o berimbau é acompanhado por um canto responsorial, que
repete de forma cíclica o seguinte texto:
Adão, Adão!
Oi cadê Salomé, Adão
Oi cadê Salomé, Adão, mas Salomé foi passear.
Adão, Adão!
Oi cadê Salomé, Adão
Oi cadê Salomé, Adão, Mas foi pra Ilha de Maré
(Mestre Jogo de Dentro)
Transversalmente, Glauber aborda a questão de gênero presente no pensamento
euro-hetero-macho-autoritário (Prudente; Silva, 2019), quando escolhe uma música
que marca a presença da mulher nomeada como Salomé. Este canto rememora a
importância da mulher na cosmovisão da africanidade, se referindo à sua participação
na roda de capoeira como ato de valentia. Vale ressaltar, a importância de mulheres
como Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Filipa na luta da Independência da Bahia.
É provável que essa criatividade cênica tenha como subjacência na memoralidade
de um contributo militar com essência da corporalidade africana, que norteou as
experiências campais da guerra do Paraguai. Esse fenômeno ‘ao nosso quase cego ver’
persiste na cultura afrobrasileira na dinâmica musical que traça a relação geográfica
do Brasil e do Paraguai pelo dimensionamento das águas, onde a orixalidade nutria
de força querigmática os africanos. Assim, a partir do filme Barravento, a trilha
sonora nos remete ao toque do berimbau, reforçado com um cântico cujo refrão é
«Paranauê, paranauê paraná» (Mestre Genaro e Paranaê, 2009). Esses africanos foram
compulsoriamente envolvidos na guerra do Paraguai, em razão de uma dificuldade
física e fragilidade emocional, que implicava coragem na linha de oficialidade militar
daquela época. Constatamos essa reflexão crítica, em Prudente e Gilioli:
Os velhos guerreiros africanos da região bantu usam de emboscadas e
táticas de surpreender o adversário. Trouxeram essa tradição para as lutas
das senzalas e também a levaram para a guerra da Tríplice Aliança, como
foi conhecida a Guerra do Paraguai. Afora as táticas de guerra, como a
capoeira foi decisiva para o êxito nas batalhas quando essas ocorriam em
campo aberto. (2013, p.77)
207
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
Por outro lado, para além da luta física, no filme Barravento temos o berimbau
usado como traço de resistência na corporalidade negra na luta de classe. Neste
sentido, o marxismo cinemanovista do diretor indicou para uma criatividade original e
profundamente crítica e reflexiva, considerando que Glauber Rocha usou a musicalidade
do berimbau na trilha sonora para construir uma abstração das lutas de classes. A cena
que observamos é caracterizada pela presença da carroça que é meio de produção, do
carroceiro que é força produtiva alienada em proveito do capital e do policial como uma
espécie de jaguncismo de defesa patrimonial do capital, fugindo da impessoalidade do
servidor público, protegendo a rede de pesca de um detentor desse meio de produção
estranho a comunidade, que vive com dificuldade de alimentação e depende da pesca
para a sobrevivência. Percebemos dessa maneira que, as imagens da carroça, carroceiro,
policial e rede significam a exploração capitalista da classe dominante, caracterizada
como uma ordem burguesa e a sonoridade do berimbau se impõem como uma
resistência axiológica da africanidade, entrelaçada como uma insurgência contra a
exploração econômica, que tem configuração racial. Nesse processo dinâmico Glauber
estabelece a luta de classe essencial à sintaxe do cinema novo com um tratamento de
coralidade sociorracial. O preto simbolizando o proletariado versus a dominação branca
representando a burguesia, Gerber (1997), Prudente (1995).
Considerando esse contributo autoral de Glauber Rocha fica ainda mais
cristalino a amplitude que a trilha sonora do cinema negro pode atribuir como
significação na dinâmica da educação das relações étnico-raciais no processo disciplinar
da sensibilização, no âmbito da educação musical, que ganha com isso o valor agregado
do respeito à diversidade um elemento fundante no multiculturalismo musical. Desta
forma, as qualidades estéticas da trilha sonora do filme Barravento poderão ser objeto
da sensibilização do ser humano para a musicalidade negra por meio da apreciação
musical com destaque ao berimbau.
A partir desse contato com a trilha de Barravento, o professor de música pode
ampliar o repertório musical dos estudantes com obras que destacam o berimbau
como a obra instrumental intitulada de “Saudades”, que foi gravada pelo músico Naná
Vasconcelos pela EMC Records no ano de 1979 na Alemanha. Esse álbum é constituído
de músicas compostas por Naná Vasconcelos como, por exemplo: O Berimbau, Vozes,
Ondas e Dado; e por Egberto Gismonti com a música Cego Aderaldo. Além do berimbau,
os arranjos trazem diferentes ritmos, melodias, harmonias, formas musicais, timbres,
208
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
coloridos, texturas, intensidades, alturas e efeitos que podem ser escutados e percebidos
na sonoridade de diferentes instrumentos como percussão, cordas friccionadas, cordas
dedilhadas, sopro, além de vozes. Com essa obra, o professor poderá conduzir os
estudantes à percepção das qualidades estéticas, enriquecendo a qualidade de suas vidas
e sensibilizando-os para a diversidade.
O artigo nos leva a concluir que a musicalidade do cinema negro pode ser um
elemento favorável para a educação das relações étnico-raciais na educação musical, no
sentido do desenvolvimento integral do estudante, realizado mediante processo musico
pedagógico com a musicalidade negra, que inevitavelmente tem reflexo na concepção de
corporalidade, circularidade e religiosidade do dinamismo comunal lúdico e gregário da
africanidade. Neste processo, ganha destaque a sensibilização à música, instrumentos,
cantos, danças e lutas forjadas na oralidade da comunidade negra, como apresentadas
em Barravento. De tal forma que a conjugação educação musical e cinema negro será
favorável à educação das relações étnico-raciais como subsídio à experiência musical
que se faz na ludicidade e no sentido coletivo percebido na capoeira, (Prudente; Silva
2019).
Neste contexto, o ensinamento do cinema negro dimensionado pela trilha sonora
musical apresenta a sonoridade de elementos musicais, os quais, na visão de Reimer
(1970), são formas objetivas de despertar a resposta às qualidades estéticas musicais,
provocando insights acerca da subjetividade dos sentimentos humanos. É pertinente
a conclusão de que a musicalidade da trilha sonora na relação étnico-cinematográfico
de Barravento pode viabilizar o acesso à subjetividade dos sentimentos do povo negro,
contribuindo na luta contra o racismo.
A resposta a essas qualidades estéticas da musicalidade africana dessa tendência
étnico-cinematográfica é conjugada com o conhecimento da religiosidade expressa na
orixalidade, em momentos em que instrumentos musicais são utilizados como forma
de comunicação com as entidades religiosas. Conjugada com o senso de coletividade
expressa em práticas musicais gregárias comunais, (Prudente; Silva 2019), em um
processo qualitativo e educacional como ocorre em Barravento. Conjugada com a
percepção do negro como minorias, e como sujeito de sua libertação. Neste sentido,
além da sensibilização com as qualidades estéticas musicais, ocinema negro favorece o
desenvolvimento da reflexão crítica e ação como na práxis libertadora, Freire (2005).
209
a importância da trilha sonora de barravento
Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente
É nessa linha de compreensão que percebemos a pertinência da apreciação musical
da trilha sonora do cinema negro no ensinamento tanto de aspectos da subjetividade
da criatividade, imaginação e sensibilidade negra, quanto do fazer musical e reflexão
crítica. Portanto, em nossa perspectiva, a conjugação da educação musical com o cinema
negro favorece a educação das relações étnico-raciais, por meio da sensibilização à
musicalidade e aos valores civilizatórios da cosmovisão africana primogênita.
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213
A literatura infantil nos anos inicias na
construção da identidade negra:
A representatividade positiva dos aspectos
étnicos e culturais da população negra como
empoderamento identitário
Alexsandra Bruna de Assis Campos
Rubia Helena Naspolini Coelho Yatsugafu
Introdução
O presente artigo resulta de um trabalho de conclusão de curso, intitulado
como Dossiê II, que foi realizado no ano de 2022, durante o Curso de Pedagogia da
Universidade Federal de Mato Grosso. A primeira autora do presente trabalho, sob
orientação da segunda autora, tratou da questão do racismo. A temática foi escolhida,
tanto em função dos principais aspectos de sua vida pessoal durante a trajetória escolar,
assim como de sua trajetória formativa, tendo em vista as experiências com as questões
das relações étnico-raciais. Além disso, durante a graduação a autora pôde vivenciar,
durante o estágio obrigatório e o não-obrigatório, situações que contribuíram com a
pesquisa realizada. Dentre algumas dessas vivências do estágio, a autora revisita uma
das atividades de observação em que percebeu a dificuldade de algumas crianças negras
em identificarem a cor da sua pele, durante as atividades de autorretrato.
Ainda que seja importante e necessário falar sobre o racismo, há muitos
momentos difíceis, especialmente para quem se vê diante da situação. As vivências
214
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
em que se percebeu o racismo no cotidiano escolar, como o silenciamento por parte
da equipe pedagógica, atitude que fortalece ainda mais o racismo, despertaram o
desejo de discutir sobre o racismo através de um olhar pedagógico – um olhar pudesse
apresentar elementos que contribuíssem com uma construção identitária da população
negra de forma positiva. Nesse sentido, além de se contextualizar historicamente a
representatividade da população negra em nossa sociedade, também foram abordados
livros da literatura infantil que apresentam aspectos históricos, culturais e étnico-raciais
que pudessem contribuir ricamente para a construção da identidade negra de forma
positiva durante os anos iniciais, com o objetivo de colaborar com a autoestima e o
empoderamento de crianças negras.
A literatura infantil na construção da identidade negra enquanto potência
nos anos iniciais
A questão racial é um tema que exige do(a) professor(a) sensibilidade para
discussão. Em 2023 é inaceitável que um(a) professor(a) realize suas aulas negando a
existência do racismo.
Após 20 anos da Lei 10.369/03, ainda é possível perceber que muitos professores
têm dificuldade em falar sobre a questão racial na sala de aula com os alunos. Então o que
precisa ser feito é encontrar meios que potencializem e possam transformar a percepção
de crianças negras e brancas com relação à negritude. Como destaca Munanga,
alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles
introjetados, não sabem lançar mão das situações flagrantes de
discriminação no espaço escolar e na sala como momento pedagógico
privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre
a importância e a riqueza que ela traz à nossa cultura e à nossa identidade
nacional. Na maioria dos casos, praticam a política de avestruz ou
sentem pena dos “coitadinhos”, em vez de uma atitude responsável que
consistiria, por um lado, em mostrar que a diversidade não constitui um
fator de superioridade e inferioridade entre os grupos humanos, mas sim,
ao contrário, um fator de complementaridade e de enriquecimento da
humanidade em geral; e por outro lado, em ajudar o aluno discriminado
215
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
para que ele possa assumir com orgulho e dignidade os atributos de sua
diferença, sobretudo quando esta foi negativamente introjetada em
detrimento de sua própria natureza humana. (BRASIL, 2005,p. 15)
Dito isso, o trabalho docente exige do(a) professor(a) habilidades que
transcendem os conteúdos pedagógicos, tal como competências que ajudem a lidar com
situações adversas em sala de aula, como as relações sociais, mantendo uma postura
ética, política e estética entre os alunos. Uma vez que a escola é um ambiente em que
todos os sujeitos devem se sentir valorizados, é preciso repensar o currículo escolar e
a formação do(a) professor(a), com base na Lei 10.369/03. Além disso, não há como
negar que a discriminação racial vivida pelas crianças afeta diretamente a construção da
sua identidade.
Para que o sujeito consiga criar uma imagem positiva sobre a sua identidade ou
sua cor, é preciso que o seu próprio corpo seja uma fonte de harmonia e prazer. Caso o
corpo seja fonte de dor, o sujeito passa a rejeitar ou até mesmo “esquecer” o que causa
o sofrimento (SOUZA, 1983). Em consequência dessas situações, a criança negra passa
a construir a imagem de si mesma de forma pejorativa como relacionada ao feio e sujo,
enxergando no branco qualidades que deseja para si, como sendo o belo.
O rapper e autor Emicida, criador do livro Amoras, diz em uma entrevista
em seu canal do Youtube, chamado também Emicida, ao responderà pergunta sobre
o motivo que o levou a criar um livro infantil, que, enquanto um homem negro,
já passou por várias situações de racismo, especialmente na escola, e quando essas
situações aconteciam, o autor relata que não sabia como se defender, que passou a
achar que o problema era ele. Nesse sentido, o autor diz que a negritude enquanto
uma potência positiva precisa chegar até as crianças, antes dos traumas vivenciados
pelo racismo.
Desse modo, a literatura, como uma ferramenta de leitura com poder de
desenvolvimento cognitivo, emocional e social, é um meio de formação de indivíduos
mais críticos, sensíveis e conscientes. Sendo assim, uma das formas de trabalhar as
questões étnico-raciais como uma representatividade positiva é utilizando a literatura
afro-centrada, em consonância com a Lei 10.369/03, na construção de práticas
pedagógicas antirracistas.
216
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
Elementos importantes no trabalho da literatura infantil a partir da representatividade negra
A população negra, historicamente, sempre foi um grupo que sofreu tentativas
de opressão, silenciamento e exclusão, e seus aspectos culturais, históricos, e até mesmo
físicos, passaram por um processode extermínio que feriram e ferem a população negra
até os dias de hoje. Ainda que a Lei 10.369/03 tenha atendido algumas demandas da luta
do movimento negro em busca da valorização da cultura afro nos currículos escolares,
é importante ressaltar que ainda há uma deficiência enorme com relação à forma com
que é trabalhado o assunto nas escolas, especialmente nos livros didáticos e em alguns
livros de literatura infantil que tentam se adequar às questões de representatividade e
que, em muitas vezes, acabam tornando a representatividade estereotipada.
Na pesquisa de Eliane Cavalleiro (2010) na educação infantil foi possível
perceber que as crianças, desde muito cedo, constroem sua identidade influenciadas
por meios externos, sejam eles positivos ou negativos. Em vista disso, levando em
consideração todo o processo histórico ao qual o negro foi submetido e representado, é
primordial que, ao trabalhar assuntos relacionados a África ou ao negro, seja rompidaa
visão depreciativa, equivocada e silenciadora de vozes.
Um dos aspectos mais importantes para a construção positiva da identidade do
indivíduo negro, é o contato com livros onde existem personagens que representem
suas características de forma positiva, com intuito de promover o empoderamento, a
autoestima, a valorização do seu cabelo, da cor de sua pele, da sua história etc.
Ao mencionarmos aspectos da história da população negra, é primordial que
falemos sobretudo das mulheres negras, pois ahistória da mulher negra em relação ao
racismo e ao machismo é marcada por uma trajetória de muita luta. Desde a período
da escravidão, a mulher negra era vista e tratada como objeto e com isso sofreu várias
formas de violência, tendo sua integridade violada. Como ressalta Lelia Gonzales (2020),
(...) discriminação de sexo e raça faz das mulheres negras o segmento mais
explorado e oprimido da sociedade brasileira, limitando suas possibilidades
de ascensão. Em termos de educação, por exemplo, é importante enfatizar
que uma visão depreciativa dos negros é transmitida nos textos escolares e
perpetuada em uma estética racista constantemente transmitida pela mídia
217
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
de massa. Se adicionarmos o sexismo e a valorização dos privilégios de classe,
o quadro fica então completo. Começando por essas articulações ideológicas
adotadas pelas escolas, nossas crianças são induzidas a acreditar que ser um
homem branco e burguês constitui o grande ideal a ser conquistado. Em
contraste, elas são também induzidas a considerar que ser uma mulher
negra e pobre é um dos piores males. Devem-se levar em conta os efeitos da
rejeição, da vergonha e da perda de identidade às quais nossas crianças são
submetidas, especialmente as meninas negras. (GONZALES, 2020. p. 145)
A autora também destaca a importância das mulheres negras na construção
da sociedade, afirmando que “[a] mulher negra é responsável pela formação de um
inconsciente cultural negro brasileiro. Ela passou os valores culturais negros; a
cultura brasileira é eminentemente negra, esse foi seu principal papel desde o início.”
(GONZALEZ, 2020. p. 285).
Nesse sentido, é primordial a potencialidadede trabalhar, no cotidiano das
crianças, a representatividade dessas mulheres e a importância que elas tiveram e têm
em nossa sociedade. É importante que crianças negras passem a enxergar em seus
semelhantes a possibilidade de alcançar seus sonhos e objetivos de modo que isso
fortaleça também outros(as) meninos(a) negros(as), ainda que vivam em uma sociedade
estruturalmente racista.
Com relação aos homens, precisamos trabalhar com o objetivo de acabar com
o estereótipo construído em nossa sociedade sobre o homem negro. O estereótipo
de malandro associado à negritude é uma construção social com raízes históricas no
Brasil. Os negros foram e são vistos como desonestos e predispostos a cometer crimes
e isso acontece desde os tempos da escravidão. Com a abolição da escravatura, essa
visão negativa dos negros continuou enraizada e contribuiu decisivamente para que
negros fosseme ainda sejamexcluídos dos processos econômicos e sociais do país: “nessa
construção ideológica negro representou uma figura indolente que o fez malandro,
com proposito de legitimar com isto a condição de lumpen proletariado, que ainda é
caracterizado como feição da malandragem urbana” (OLIVEIRA; PRUDENTE, 2016,
p. 289).
Infelizmente esse estereótipo tem servido como uma maneira para justificar a
discriminação. Podemos analisar dados estatísticos sobre evasão escolar, percebendo
218
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
as relações destes com a porcentagem carcerária do Brasil, que é composta
majoritariamente por homens negros e casos de violência policial e racismo, como o
de Georgy Floyde, que são bastantes comuns no Brasil, e que hoje tem mais visibilidade
como uso das redes sociais. Como salienta Fanon
Nas profundezas do inconsciente europeu elaborou-se um emblema
excessivamente negro, onde estão adormecidas as pulsões mais imorais, os
desejos menos confessáveis. E como todo homem se eleva em direção à
brancura e à luz, o europeu quis rejeitar este não-civilizado que tentava se
defender. Quando a civilização europeia entrou em contacto com o mundo
negro, com esses povos selvagens, todo o mundo concordou: esses pretos
eram o princípio do mal. (2008 p. 160)
Dentro das escolas, é muito comum situações em que haja o estereótipo do
menino negro, como bagunceiro, mal educado, agressivo, etc. Essas situações presentes
em nosso cotidiano, causam no menino negro danos gravíssimos com relação à sua
autoestima e autoimagem. Como afirma Santos: “A violência racista subtrai do sujeito
a possibilidade de explorar e extrair do pensamento todo o infinito potencial de
criatividade, beleza e prazer que ele é capaz de produzir” (1983 p.10). Sendo assim,uma
das maneiras de colaborar parao aluno sentir orgulho de si e das características que o
constituem é apresentar a ele um acervo de literatura infantil que possibilite a construção
de uma identidade étnico-racial positiva. Com relação aos meninos é importante que
eles possam se sentir representados, desde aspetos éticos e estéticos, para que, de fato,
realizem uma construção em que se sintam valorizados. Além disso, a literatura é um
instrumento que pode contribuir também para a desconstrução de estigmas, estereótipos
e preconceitos ainda enraizados nos espaços escolares.
Outro tema a ser abordado com crianças é o cabelo afro. Lidar com a temática
é um assunto que exige muito cuidado e atenção por parte dos professores. Nilma
Gomes em uma pesquisa por quatro salões étnicos na região de Belo Horizonte, com 17
mulheres negras e 11 homens negros, recolheu depoimentos sobre a trajetória dessas
pessoas, com relação ao corpo como identidade. Um dos aspectos mais comuns nos
depoimentos está relacionado à trajetória escolar:
219
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
(...) experiência com o corpo negro e o cabelo crespo não se reduz ao
espaço da família, das amizades, da militância ou dos relacionamentos
afetivos. A trajetória escolar aparece em todos os depoimentos como um
importante momento no processo de construção da identidade negra e,
lamentavelmente, reforçando estereótipos e representações negativas sobre
esse segmento étnico / racial e o seu padrão estético. (GOMES, 2002, p.41)
Na adolescência esse processo se torna um pouco mais difícil, pois é o momento
em que meninas e meninos negros passam a lidar com novos sentimentos, como a
vaidade e a autoestima, e muitas vezes precisam lidar com a rejeição. E nesse momento
é de extrema importância que já tenham construído uma base forte com relação às suas
características físicas, de maneira positiva:
A rejeição do cabelo pode levar a uma sensação de inferioridade e de
baixa autoestima contra a qual faz-se necessária a construção de outras
estratégias, diferentes daquelas usadas durante a infância e aprendidas em
família. Muitas vezes, essas experiências acontecem ao longo da trajetória
escolar. A escola pode atuar tanto na reprodução de estereótipos sobre o
negro, o corpo e o cabelo, quanto na superação dos mesmos. (GOMES,
2002, p. 47)
Portanto, a literatura infantil se apresenta como uma das ferramentas quando
precisamos discutir o tema cabelo afro, com as crianças. É necessário que essa discussão
seja realizada de forma leve e empática, para que possam realmente compreender e
relacioná-la com a realidade.
Um outro aspecto relevante para o fortalecimento deidentidade é a
possibilidade de as crianças conhecerem a história de seus antepassados, como, por
exemplo,aprendendo sobre a história da África e a história do negro no Brasil, de modo
que se apresente um novo paradigma que rompa com a visão depreciativa do negro,
como também se proporcione compreensões sobre as contribuições culturaisnegras
apresentadas positivamente, como gestos, língua, comportamentos etc.
Portanto, os aspectos a serem considerados no trabalho da literatura infantil
afro-centrada, na perspectiva da representatividade enquanto potência, é a valorização
da identidade negra, a desconstrução dos estereótipos, o empoderamento feminino,
220
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
o enaltecimento da beleza da pessoa negra (como o cabelo crespo) eo combate à
intolerância religiosa, mediante a apresentação positiva dos orixás que fazem parte da
cultura africana.
Propostas de livros de literatura infantil que podem contribuir para práticas
educativas antirracistas
Diante dos aspectos mencionados anteriormente, foi selecionado um pequeno
acervo da literatura infantil afro-centrada, cujas obras estão disponíveis em meios
digitais e/ou impressos e que podem auxiliar professores em suas práticas pedagógicas
antirracistas, tendo em vista o negro como protagonista e a valorização da cultura afro.
O primeiro deles, Pequenas Grandes Lideres, apresenta a história de algumas
mulheres negras líderes que abriram caminhos para que outras mulheres negras
pudessem seguir. Entre elas há cientistas, políticas, doutoras, pintoras, escultoras,
dançarinas, etc., todas negras. A autora do livro conta que escreveu o livro como uma
homenagem ao mês das mulherese as escolhidas por ela foram todas negras. A autora
relata que durante a pesquisa sobre as histórias dessas mulheres se emocionou bastante,
pois relembrava quando era mais nova e pensava nos tipos de sonhos que poderia ter
tido se tivesse ouvido falar dessas mulheres enquanto crescia, se soubesse que tantas
pessoas que se pareciam com ela tinham feito coisas incríveis (HARRISON, 2022).Na
capa do livro (Figura 1) vê-se algumas mulheres importantes da história:
Figura1- Capa do livro Pequenas Grandes Líderes. Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022.
221
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
A autora também escreveu o livro Little Leaders Expecptional Men in Black
History (2019), que, atualmente, está disponível apenas na versão em inglês.
O Pequeno Príncipe Preto, por sua vez, é uma adaptação de uma peça teatral de
Rodrigo França, escrita como uma releitura de O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupery
(1900-1944). Além de apresentar um menino negro como protagonista, a história
mostra vários aspectos da cultura Africana, como, por exemplo, a árvore Baobá, que
é originária do continente africano e é considerada uma árvore sagrada que simboliza
uma conexão entre a vida e a morte. Apresenta também a filosofia africana Ubuntu,que
significa “Eu sou porque nós somos”, e simboliza o conceito de humanidade, empatia,
compaixão, humildade etc. Essa obra aborda de forma leve o conceito de ancestralidade
evaloriza as características físicas do menino, como a cor da pele, o tamanho da boca, do
nariz, o cabelo etc. O autor relata que o livro possui ingredientes da sua família, como a
avó que ensinou a ele sobre ancestralidade, os pais que ensinaram a valorizar a cultura
negra e o irmão que é apaixonado pela filosofia Iorubá. A mensagem que o autor quer
transmitir em seu livro é que devemos nos amar como realmente somos e que devemos
semear o amor entre nós (FRANÇA, 2020).
Figura 2 - Capa do livro O Pequeno Príncipe Preto. Fonte: acervo pessoal das autoras, 2022.
222
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
Amoras, do Rapper Emicida, é um livro é muito interessante, pelo fato de trazer
vários elementos que tornam possível realizar a leitura com diferentes perspectivas.
Nele, o autor aborda representatividade afro, com Zumbi dos Palmares, Martin Luther
King e o lutador Muhammad Ali. O livro também traz elementos como o cabelo afro
“cabelo de nuvens”, a cor da pele “pretinha como uma amora”, referências religiosas
como os orixás. Além disso, o autor também mostrauma boa relação afetiva entre um
pai que uma filha que estão passeando em um pomar (EMICIDA, 2018).
Figura 3 - Capa do livro Amoras. Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022.
Todos os livros aqui apresentados têm como personagem principal uma
criança negra. Nesse sentido, ainda que indiretamente, todos dialogam sobre aspectos
relacionados à criança negra, como o cabelo crespo, a cor da pele e antepassados, por
exemplo. Mas em alguns momentos se faz necessário uma atenção maior quando o
assunto é relacionado ao cabelo, visto que a experiência da criança com o cabelo crespo
começa muitas vezes muito cedo e muitas vezes de forma negativa, tornando uma
experiência delicada a ser discutida e que merece cuidado. Ainda que a manipulação do
cabelo esteja presente em diversas culturas, para o negro esse processo é carregado de
muitos conflitos (GOMES, 2002). Para trazer a importância e a visibilidade do cabelo
crespo, apresentam-se alguns livros que trazemo cabelo crespo de forma positiva, mas
demandam o diálogo durante as leituras para a quebra de estereótipos. Seguem abaixo
alguns dos livros que abordam a temática:
223
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
Meu crespo é de rainha é uma obra escrita por Bell Hooks e aborda a importância
do cabelo crespo. No livro a autora apresenta, utilizando um poema ilustrado, as
várias formas de penteados e cortes que podem ser feitos, o que é muito importante
para trabalhar representatividade e autoestima de crianças negras, com o objetivode
reverter a situação de invisibilidade.
Figura 4 - Capa do livro meu crespo é de rainha. Fonte: https://pin.it/3EUTG3q, 2022.
Em O cabelo de Lelê, de Valéria Belém, o mesmo tema é abordado em um poema
ilustrado. A história apresenta a valorização dos traços da cultura negra, como pode ser
visto em um trecho que diz “depois do atlântico, a África chama e conta uma trama de
sonhos e medos, de guerras e vidas e mortes no enredo, também de amor no enrolado
cabelo” (BELÉM, 2007).
Figura 5 - Capa do livro O cabelo de Lelê. Fonte:https://pin.it/yu5a6ND, 2022.
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a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
Amor de cabelo, de Matthew Cherry, apresenta a história de Zuri, uma menina
com cabelo crespo. A mãe de Zuri não está em casa, pois estava se tratando de um
problema de saúde, e quando chega o dia da mamãe voltar para casa, Zuri quer fazer um
penteado diferente. O pai da menina tenta alguns penteados, mas eles não funcionam,
então Zuri assiste a um vídeo em que sua própria mãe ensina a fazer um moicano
afro. Todos os elementos da história são muito interessantes, como, por exemplo, a
história de superação da mãe de Zuri e o fato de construir a imagem de um pai que é
presente, além de trazer elementos muito atuais, como o uso da internet para conhecer
e se conectar com pessoas que possuem as mesmas características físicas e que podem
ajudar a cuidar e amar o cabelo afro. A história também está no formato deum CurtaMetragem de animação, que foi vencedor do Oscar em sua categoria.
Figura 6 - Capa do livro Amor de Cabelo. Fonte: acervo pessoal das autoras, 2022.
As tranças de Bintou, de Sylviane Diouf, apresenta a história de uma menina que
não estava satisfeita com o fato de não poder colocar tranças em seu cabelo como as
mulheres mais velhas de sua comunidade. O livro nos mostra que em algumas culturas
as tranças podem fazer parte de um ritual que marca um novo ciclo de vida. Além disso,
a história aborda a importância do respeito aos mais velhos e também dialoga sobre
paciência.
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a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
Figura 7 - Capa do livro As tranças de Bintou. Fonte: https://pin.it/68JNRoA, 2022.
Em Os mil cabelos de Ritinha, Paloma Monteiro apresenta, em forma de poema,
uma menina com cabelo crespo que é muito feliz porque tem várias pessoas do seu
convívio que fazem penteados em seu cabelo. A mamãe faz trança, a Tia Ana traz uma
fita, a dona Graça faz um Black Power, a vovó faz um coque abacaxi e o avô faz a trança
nagô. A história aborda elementos importantes para a criança de cabelo crespo e traz a
história de forma muito positiva.
Figura 8 - Capa do livro Os mil cabelos de Ritinha. Fonte: https://pin.it/9D8Z1zV, 2022.
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a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
Em Sulwe, Lupira Nyong’o conta a história de uma menina que tinha muita
insegurança por conta da cor da sua pele e rezava todos os dias para ter a cor da pele
mais clara. Um dia, Sulwe decidiu se abrir para a sua mãe, que, com muito carinho e
afeto, explicou para a menina que o brilho estava nela própria, já que o seu nome significa
estrela. Em uma noite, Sulwe então aprendeu com a estrelas sobre como as pessoas
associavam a noitea coisas ruins, como coisas assustadoras. Então, a noite se irritou e
abandonou a Terra, fazendo com que as pessoas reconhecessem sua importância, assim
como a luminosidade. A pequena garota entendeu que a noite é tão importante quanto
o dia e que quando ela precisasse de algo que fizesse-a lembrar do seu brilho, bastava
olhar para o céu no momento mais escuro da noite que ela se lembraria do quanto é
importante e bela. Com isso Sulwe passou a se sentir linda por dentro e por fora. A
autora contaque a história de Sulwe é muito parecida com a dela, pois sofria muito
racismo por ter a pele escura como a cor da noite. A autora relata que seus sentimentos
só mudaram quando passou a ter contato com mulheres negras quer eram reconhecidas
também por sua beleza. A autora também ressalta que a beleza a que ela se refere
é a manifestação interna de gentileza conosco e com os outros. Pode ser um livro
comque muitas crianças se identifiquem, portanto muito necessário em sala de aula
para dialogar com as crianças.
Figura 9 - Capa do Livro Sulwe. Fonte: acervo das autoras, 2022.
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a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
Chapeuzinho vermelho e o boto-cor-de-rosa é uma obra de adaptação de Cristina
Agostinho e Ronaldo, da obra originalmente francesa intitulada Chapeuzinho Vermelho. Na versão brasileira a Chapeuzinho Vermelho mora nas margens do Rio Negro,
no estado da Amazônia. Quando a garota vai levar algumas frutas típicas como tacamã, abiu e camu-camupara a sua avó, encontra um boto-cor-de-rosa no caminho. No
decorrer da história são apresentados vários elementos da cultura brasileira, especificamente da região do Amazonas. A obra desperta o enorme desejo de recontar outras
obras clássicas, na perspectiva de valorizar elementos que fazem parte do cotidiano das
crianças brasileiras, assim como outros livros da coleção de adaptação, como Cinderela
e Chico Rei e Joãozinho e Maria.
Figura 10 - Capa do Livro Chapeuzinho vermelho e o boto cor de rosa. Fonte: https://revistacanjere.
com.br/literatura-infantil%EF%BB%BF/, 2022.
Portanto, é possível perceber que há inúmeros livros que abordam os aspectos
mencionados anteriormente. Tendo em vista aexperiência da autora principal deste
artigo como estagiária do curso de Pedagogia, percebe-se queo que impossibilita ou
dificulta o trabalho do(a) professor(a) utilizando esses livros como referências é o fato de
não priorizarem a temática no momento da escolha ou compra dos materiais. Os livros
aqui apresentados foram escolhidos utilizando como parâmetro os aspectos étnicos e
estéticos com relação à história contada e a representação das ilustrações, tendo em vista
228
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
que esses aspectos devem ser observados para que de fato seja realizada uma construção
positiva utilizando os livros de literatura infantil. Além disso, é primordial que se faça
o bom uso do livro literário para que as crianças possam compreender o contexto da
história e relacioná-las com a realidade.
Práticas pedagógicas que possibilitam um trabalho com a Literatura Infantil que potencialize a identidade negra nos anos iniciais
Diante dos livros literários apresentados, é possível perceber que a literatura
infantil se apresenta como uma possibilidade para a abordagem de uma educação
antirracista e da construção de uma representatividade positiva da identidade negra
no cotidiano escolar. Contudo, é necessário refletir sobre as práticas pedagógicas no
momento de trabalhar os livroscom as crianças. Como afirma o autor Cosson (2009)
em Letramento literário: teoria e prática:
A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar
o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma
experiência ser real realizada. É mais do que um conhecimento a ser
reelaborado, ela é incorporação do outro em mim sem renúncia da
minha própria identidade. No exercício da literatura podemos ser outros,
podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo
e do espaço da nossa experiência e ainda assim, sermos nós mesmos. É
por isso que interiorizamos com mais intensidade as verdades dadas pela
poesia pela ficção. (COSSON, 2009, p. 17)
E é por essas e outras características que o autor nos diz que a literatura deve
ocupar um lugar especial na escola e na vida dessas crianças. Entretanto, apenas ler
para as crianças o acervo literário aqui proposto, cujas temáticas estão relacionadas à
negritude, não é suficiente para que a finalidade a ser atingida através da leitura seja
alcançada, pois, como diz o autor recém citado, ler implica troca de sentidos não só
entre o escritor e o leitor, mas também com a sociedade onde ambos estão localizados,
pois os sentidos são resultado de compartilhamento de pessoas do mundo entre os
homens no tempo e no espaço” (COSSON, 2009).
229
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
Para que o sentido das leituras seja alcançado, o autor propõe uma sistematização
do processo literário. A primeira parte do processo está relacionada com a escolha dos
livros:
Aceitar a existência do cânone como herança cultural que precisa ser
trabalhada não implica prender-se ao passado em uma atitude sacralizadora
das obras literárias. Assim como a adoção de obras contemporâneas não
pode levar à perda da historicidade da língua e da cultura. É por isso que
o lado do princípio positivo da atualidade das obras é preciso entender
a literatura para além de um conjunto de obras valorizadas como capital
cultural de um país. (COSSON, 2009, p. 34)
Como afirma o autor, é importante valorizar os clássicos literários, mas também
se faz necessáriaa adoção de obras contemporâneas que atendam às demandas da
atualidade. Com relação à temática abordada nesse trabalho, podemos propor como
atividade para os alunos o reconto de obras clássicas, em uma perspectiva de valorização
da cultura local e também a quebra de “padrão”, como, por exemplo, a de princesas e
príncipes loiros, brancos, entre outros.
Com relação às obras escolhidas e apresentadas nesse trabalho, é evidente que
a grande maioria das relacionadas ao tema proposto são obras atuais, contemporâneas,
visto que a temática passa a ganhar maior visibilidade a partir dos anos 2000, com a
Lei 10.369/03. Ainda que haja um bom acervo, no qual existem os elementos citados
anteriormente, é importante se atentar para a forma como o livro é apresentado em sua
totalidade, para que de fato tenha significados positivos ao aluno.
O autor ressalta que a prática da leitura deve ocorrer de forma linear. O primeiro
passo é a antecipação, que é o momento no qual o leitor tem suas aproximações iniciais
com a obra, antes de entrar no texto propriamente dito. Esse é o momento no qual
o aluno pode se sentir instigado a realizar a leitura. O autor cita, por exemplo, os
elementos que compõem o texto, como a capa, número de páginas e o título (COSSON,
2009, p.40).
A antecipação é muito importante e deve ser valorizada. É nesse instante que
a criança tem contato com a capa do livro e com os personagens, podendo ser esse o
momento em que a criança negra (que é a principal referência desse trabalho) possa se
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a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
sentir representada e com desejo de realizar a leitura. Outro fator importante sobre a
antecipação é o momento de apresentar o autor da obra. Embora tenhamos vários autores
que não são negros, que têm consciência sobre a importância da representatividade, boa
parte dos livros aqui apresentados foram escritos por mulheres e homens negros, como
Emicida, Lázaro Ramos, Lupita Nyong, Vashith Harrison, Rodrigo França, Matthew
Cherry, Bell Hooks, entre outros. Autores(as) negros(as) também são referências de
personalidades para essas crianças se inspirarem.
O segundo momento citato pelo autor é a “decifração”. Ele corresponde à leitura
por meio de letras e palavras. O autor cita a dificuldade que alguns alunos podem
apresentar nesse momento, pelo fato de não terem familiaridade com as palavras
contidas no texto (COSSON, 2009, p. 42).
O(a) professor(a), como mediador(a), precisa conhecer bem a obra que será
apresentada e realizar uma breve antecipação de situações que podem ocorrer durante
a leitura da mesma, como a existência de palavras desconhecidas pelos alunos ou até
mesmo pelos próprios professores. Podemos usar, como um exemplo, o livro Amoras
de Emicida, no qual o autor disponibiliza um glossário no final da obra, que serve como
auxilio para que a leitura do texto possa alcançar seus significados. Segue a imagem:
Figura 11 - Glossário do livro Amoras. Fonte: Acervo pessoal da autora, 2022.
O ato de apresentar aos alunos palavras que não fazem parte do cotidiano é uma
prática que enriquece o repertório linguístico e também ajuda-os a não perderem o
interesse pela leitura(COSSON, 2009).
231
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
A última etapa do processo inicial de leitura é, finalmente, o momento da
interpretação. O autor ressalta que é muito comum que se confunda a decifração com a
interpretação, mas, com relação à interpretação, “o centro desse processamento são as
inferências que levam o leitor a entretecer as palavras com os conhecimentos que tem
do mundo” (COSSON, 2009, p.42).
Cosson também ressalta que a leitura pode ser considerada como um ato
solitário, mas a interpretação do texto nunca deixa de ser solidária: “A razão disso é que,
por meio do compartilhamento de suas interpretações, os leitores ganham consciência
de que são membros de uma coletividade e de que essa coletividade fortalece e amplia
seus horizontes de leitura” (COSSON, 2009, p. 68).
Visto que o trabalho proposto tem finalidade pedagógica, ou seja, dialogar
com as crianças a respeito da diversidade étnico-racial ou contribuir para que os(as)
educadores(as) o façam, faz-se necessária uma atenção maior adeterminados momentos
dos textos.
O Pequeno Príncipe Preto é um livro muito rico de informações, reflexões e
diálogos, mas aqui são selecionadas duas páginas que se considera essenciais para um
momento de maior reflexão. Seguem as imagens:
Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022.
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a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
É muito comum presenciar cenas em que crianças negras apresentam dificuldade
em se identificarem com a sua cor de pele. Nessas páginas do livro é possível enxergar
a possibilidade de diálogo com as crianças realizando algumas perguntas, como: “Vocês
concordam com o Pequeno Príncipe Pretoquando ele fala sobre o ‘lápis cor dele’?”;
“Quando você faz o seu autorretrato, qual lápis você usa para pintar a sua cor de pele?”;
“A cor do lápis que você usa é parecida com a cor da sua pele?”; entre outras questões
que podem surgir durante a interpretação do texto.
Figura 13 -Página do livro O pequeno príncipe que fala sobre ancestralidade. Fonte: Acervo pessoal das
autoras, 2022.
Nesta página o autor fala sobre ancestralidade. No próprio texto ele traz algumas
reflexões sobre conhecer o passado. Também é possível dialogar sobre a cor da pele,
pois o autor apresenta imagens de alguns homens negros que são os seus antepassados.
Pode-seperguntar às crianças: “Por que vocês acham que as pessoas têm cores de peles
diferentes?, Vocês se acham parecidos com algum familiar, como os avós?”; entre outras.
Em Pequenas Grandes Líderes, por sua vez,há a possibilidadede várias formas de
trabalho com as crianças, de acordo com o ano da turma, por ser um livro com muitas
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a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
páginas. Como a autora do livro o escreveu como homenagem ao mês das mulheres,
pode-se utilizá-lo com a mesma finalidade. É muito comum que durante o mês das
mulheres as escolas adotem em seu planejamento atividades em que as crianças
pesquisem sobre mulheres. Como o livro Pequenas Grandes Líderes não apresenta
mulheres brasileiras, pode-se propor que as crianças apresentem mulheres negras
brasileiras que foram e são importantes para o país. Existe também a possibilidade de
realizar um estudo sobre os Reinos Africanos antes ou após a leitura, no qual pode
ser proposto às crianças a realização de uma pesquisa sobre mulheres importantes
desses reinos. Caso as crianças tenham dificuldades quanto à pesquisa, por questões
socioeconômicas, podemos apresentar,utilizando folha impressa, um breve resumo
sobre algumas mulheres, como Dandara, Lelia Gonzales, Carolina Maria de Jesus,
Ruth Souza, as Amazonas de Daomé, entre outras muitíssimas mulheres,que não
caberiamneste pequeno artigo.
Além de um trabalho que deve ser pensado de maneira organizada, uma
abordagem que potencialize a arte precisa considerar a leitura poética e estética do texto
literário, como uma forma de expressão artística, que requer um espaço de imaginação,
experimentação e criação, como afirma Ostetto:
Arte, na educação, não se resume a momentos e atividades isolados. E, se
estamos pretendendo a educação do “ser poético”, implicado na totalidade
do olhar, da escuta, do movimento, que se expressa mobilizando todos os
sentidos, será importante vermos tais ações como educação estética (mais
do que o ensino de arte) que se realiza no dia a dia. Afirmamos, dessa
maneira, um princípio que deve atravessar todo o cotidiano, pois tem a ver
com atitude (...) (OSTETTO, 2011, p. 5)
Dessa forma, o(a) professor(a), como mediador(a), deve proporcionar
experiências nas quais seja possível relacionar a leitura poética literária com o cotidiano
dos alunos, contribuindo para a construção de um olhar mais amplo das crianças sobre
o mundo, a natureza, a cultura, como forma de melhorar suas experiências estéticas
para que possam ganhar novos significados (OSTETTO, 2011).
A literatura abre portas para inúmeras possibilidades para alcançar o objetivo
da atividade literária. Para tanto, é necessário que o(a) professor(a), em sala de aula,
234
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
reconheça o contexto no qual as crianças estão inseridas e sua idade, ano escolar, nível
de alfabetização etc., para que, dessa forma, possa propor atividades de registros das
interpretações. Como Ostetto (2011) e Cosson (2009) afirmam, o trabalho estético
sobre a arte deve respeitar e ampliar o repertório de registro das atividades. O(a)
professor(a) precisa possibilitar, por exemplo, que os alunos tenham contato com
diferentes tipos de materiais para que possam criar intimidade com diversos tipos
de instrumentos, com o propósitode desenvolver outras formas de linguagem e
habilidades, sejam por meio de desenhos, colagens, encenação de peças inspiradas
na obra, produção de cartaz ou varal, apresentação de música com relação ao tema
proposto, entre outras possibilidades que podem partir das ideias das próprias crianças
de acordo com seus gostos e imaginação.
No trabalho com a literatura infantil que tem como finalidade o trabalho de
valorização dos aspectos relacionados à criança negra, portanto, é essencial que a
apresentação da arte expressa nos livros dialogue com uma perspectiva ética, estética e
poética, com o objetivo de valorizar os aspectos mencionados.
Considerações finais
A construção identitária da população negra sofre, desde o período colonial,
tentativas de opressão que afetam diretamente a construção da sua identidade como um
povo. Com objetivo de desconstrução da visão eurocêntrica sobre o que é considerado
belo e ideal, foram apresentados neste artigo alguns elementos que devem ser
considerados importantes a serem abordados durante a ação pedagógica que trabalha
em prol da luta antirracista e em conformidade com a Lei 10.369/03.
Para que o objetivo seja atingido, é preciso ampliar a discussão com relação ao
racismo estrutural e recreativo, muito presentes dentro das escolas. E, nesse sentido,
a literatura infantil se apresenta como um importante meio para a construção de
identidade negra de forma positiva e, mesmo, como uma oportunidade de vivência de
práticas educacionais antirracistas.
235
a literatura infantil nos anos iniciais
Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
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Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu
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237
As lutas de imagens das minorias versus
a política da educação monocultural: as
relações étnico-raciais postas em questão
Celso Luiz Prudente1
Observei na política da educação a questão da imagem nas relações étnico-raciais do negro. Pude observar isso na emergência das políticas públicas, que foram resultados das lutas das minorias vulneráveis. Constatei na escolaridade monocultural,
uma política eurocêntrica.
Pareceu-me oportuno refletir alguns aspectos da política educacional, que se
deram no âmbito da questão da imagem. Essa reflexão observou a possibilidade de vícios do período colonial, que concorreram para formação da educação monocultural, e
como ela buscou a desarticulação das culturas, que lhes são estranhas. Questionei e em
que medida o intento de desarticulação persistiu nas relações étnico-racial do afrodescendente e dos não brancos, razão pela qual foram considerados nesse artigo os pontos
políticos que colocaram a persistência na pauta dessa discussão.
Coube-me a percepção, com efeito, na dinâmica da estrutura das relações nas
instituições políticas possíveis elementos reformistas, de contra transformação, que
1 Celso Luiz Prudente – Livre-Docente e Doutor pela FE/USP. Pós-Doutor pelo IEL/UNICAMP. Professor Associado da Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT. Antropólogo, Cineasta. Curador da
Mostra Internacional do Cinema Negro. Apresentador e Diretor do Programa Radiofônico: QUILOMBO ACADEMIA, da Rádio USP, FM 93,7 de São Paulo. Artigo originalmente publicado: PRUDENTE,
Celso Luiz. POLÍTICAS E GESTÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR. In: Gionara Tauchen E Alfredo
Gabriel Buza. (Org.). As lutas de imagens das minorias versus a política da educação monocultural: as
relações étnico-raciais postas em questão.. 1 ªed. Curitiba: CRV, 2019, v. 1.
238
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
constituíram indicativos de nuances de hibridismo, que concorreram para formar uma
percepção da persistência de baldas estruturantes. Estes comportamentos persistentes
impactaram também a demanda educacional, considerando-a aí como reflexo das relações de poder. Chamo atenção para o provável tentame reformista, que foi a contra
transformação, sendo um entrave às relações de exaustão, que se deram nas fricções, da
demanda de polaridades de interesses conflitantes, que tem possível dinâmica binária.
Para essa abordagem, quando uma instituição política experimentava, por razão de um componente estruturante, uma crise exaustiva ao invés de se desenvolver a
observância dela em favor do surgimento de outra instituição. Tratavam-na de outra
forma, substituindo o componente patológico. Constatando, de tal sorte, que a nova
instituição emergencial mostrava na sua origem nódulo da estrutura anterior, impregnando-se aí do valor estruturante da outra, tornando-a híbrida. Esse hibridismo pareceu concorrer à persistência axiológica na política institucional emergente. Nessa linha
de abordagem, constatei, por exemplo, que elementos estruturais do Período Colonial
persistiram na era do Império. Persistência que se reiterou ainda na República, persistindo nesse curso até os dias de hoje. Notei a persistência em voga nas ações políticas,
em diferentes sistemas econômicos, transformando-os, ‘ao meu quase cego ver’, em
prováveis instituições híbridas.
Para minha percepção, foi necessária a compreensão do processo histórico, que
se convencionou chamar de Período Colonial. Considerei aqui alguns pontos, sobretudo no âmbito da: formação do Estado; destino na origem das políticas públicas, e; a difícil relação entre trabalho e consumo; considerando, nessa linha de abordagem, que esses
pontos foram essenciais no escravismo, que foi base no Brasil Colonial, impregnando
outras instituições políticas, apontando-as para uma considerável insensibilidade com
a força de trabalho. Na reflexão em voga, esses pontos concorreram para a constituição
dos fatores, que se tornaram elementos estruturantes nas relações políticas, uma vez
que eles impactaram no âmbito político, refletindo, dessa maneira, nas complexas relações educacionais. Como foi observado nessa comunicação, conforme seguem:
a) Formação do Estado;
b) Destino na origem das políticas públicas, e;
c) Difícil relação entre trabalho e consumo.
239
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
a) Formação do Estado
Para a circunspecção com o Período Colonial, como processo histórico, foi sugestivo considerar a questão do Estado, como fator fundamental e impactante nas diferentes relações políticas, que implicaram as instituições brasileiras. Constatei uma
inversão histórica, cujo Estado nasceu antes que Nação. Foi sensato supor que em decorrência disso a estrutura estatal se mostrou diferente dos sentimentos próprios da
natureza de nação.
Os grupos privilegiados pela coroa portuguesa, já chegaram à condição de expressão do estado antes que se formasse a nação, na formação da ocidentalidade brasileira. Com a empresa do “descobrimento” os portugueses promoviam a colonização em
um processo na qual a ibericidade foi também objeto da hegemônica colonização europeia. Revelando, nesse contexto, um Estado de estrutura eurocidental, que antecipou a
formação de uma Nação, que se formava inequivocamente no processo de negação da
axiologia ibero-ásio-afro-ameríndia. Foi percebida nessa reflexão uma ação política,
que já demonstrava uma espécie de comportamento sugestivo daquilo que foi chamado
posteriormente de darwinismo social. Comportamento que se mostrou aí como princípio estruturante na formação do Estado, que se revelou definitivamente contrário
e estranho à Nação, que se formava na perspectiva da égide de violência absoluta em
proveito do interesse externo, que foi um componente essencial ao Estado, na medida
em que foi também elemento fundante da educação monocultural eurocêntrica.
b) Destino na origem das políticas públicas
As políticas públicas se constituíram em elemento substancial na origem ocidental do Brasil. Ao contrário da serôdia como foi dito as políticas públicas, que foram
apelidadas de cotas têm a mesma idade da ocidentalidade brasileira. Em outras palavras
se tornou cabível dizer com conforto, que o Brasil nasceu sob os auspícios das cotas, ou
seja, das políticas públicas. Reiterou-se aqui demasiadamente a provável dissimulação
das cotas em razão das mesmas se constituírem como lógica estrutural na formação do
Estado. Esta linha de abordagem revelou a natureza classista do estado cuja ação políti240
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
ca, que lhe foi essencialmente peculiar. Isto foi feito em detrimento dos grupos étnicos,
ameríndios, africanos e ibéricos, que formaram de forma atípica a Nação, na medida
em que a formação foi posterior ao surgimento do Estado em questão. Este se formou
estruturalmente em vantagem dos grupos dominantes, que expressavam ou estavam
mais próximos de sua essência eurocidental.
Foi pertinente a suposição de que todas as ações da política estatal foram feitas em benefício dos segmentos, que nessa localidade, foram estabelecidos pela coroa
portuguesa, no atendimento da colonização europeia, que o vitimou também em longo prazo. Aqui se considerou também o português como vítima da colonização eurocidental, que tentava, como em outros processos coloniais, fragmentar seus traços
epistemológicos. Com efeito, compreendi no resultado da violenta máquina colonial,
que os verdadeiros beneficiários da colonização foram os ingleses, que fizeram disso o
acúmulo fundamental para a formação da Revolução Industrial. Para tanto se buscou
na essência das relações estatais um favorecimento da possível axiologia europeia, em
detrimentos dos valores que lhe fossem estranhos. As dinâmicas das culturas de origem
não europeia, tais como: a amerindidade, a africanidade, a ibericidade e asiaticidade,
demonstraram assim a mais inequívoca negação epistêmica por parte da ação política
decorrente da estrutura estatizante. Isto concorreu para um comportamento esquizofrênico do povo brasileiro, que passou talvez negar por isto sua origem ibérica, asiática,
africana e ameríndia.
As observações reflexivas postas em voga concorreram à demonstração dos fins
étnico-classistas das políticas públicas, que já estavam na origem do Brasil, antes mesmo da formação do fundante componente nacional. Como se constatou nas capitanias hereditárias com as sesmarias, que impactaram todas as relações de propriedade
brasileira, configuradas na política étnico-racial de dominação eurocidental caucasiana,
configurada no proprietário em detrimento dos seus diferentes, caracterizados nos despossuídos. Essa lógica eurocêntrica serviu de base para a escolaridade monocultural,
na medida em que se desconsideravam as outras culturas diferentes das eurocidentais,
formadoras da nacionalidade brasileira.
241
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
c) Difícil relação entre trabalho e consumo
Nesse contexto, fiz a opção pela observância das relações de consumo e de trabalho, que se estabeleceram no inexorável processo assimétrico essencial à ação política
decorrente desse estado étnicoclassita eurocaucasiano1. Percebi aqui a teleologia da lógica dessa ação política estatal, cujo princípio se constituiu na concorrência do acúmulo
ao interesse externo de ordenação lusitana de fim eurocidental, que se mostrou como
elemento estruturante do estado.
Por outro lado, tive o discernimento que, as relações de consumo se constituíram
em componente substancialmente contrário as forças de trabalho. De tal sorte compreendi que, à força de produção não cabia o sentido de consumo dos bens resultantes
do trabalho, considerando que este estava voltado ao atendimento da ordem estatal,
cujos fins foram os interesses externos da colonização eurocidental, que foi instrumentalizada pela coroa portuguesa. Este fenômeno só foi possível em razão do imaginário
negativo que os europeus desenvolveram em relação às águas tanto marítimas quanto
fluvial, em razão da nau dos loucos, pois os insanos mentais eram colocados em barcos e
postos mar adentram conforme se observa em estudos artísticos do renascentismo, que
se viu em Foucault:
(...) É a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos
rios da Renânia e dos canais flamengos.
A Narrenschift é, evidentemente, uma composição literária, emprestada
sem dúvida do velho ciclo dos argonautas, recentemente ressuscitado entre
os grandes temas míticos e ao lado de Blauwe Schute de Jacob Van Oestvoren em 1413, de Borgonha. A moda é a composição dessas Naus cuja equipagem e heróis imaginários, modelos éticos ou tipos sociais, embarcam para
uma grande viagem simbólica que lhes traz, senão a fortuna, pelo menos a
figura de seus destinos ou suas verdades. É assim que Symphorien Champier
compõe sucessivamente uma Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza
em 1502, depois uma Nau das Damas Virtuosas em 1503. Existe também
uma Nau da Saúde, ao lado de Blauwe Schute de Jacob van Oestvoren em
1413, da Narrenschiff de Brant (1497) e da obra de Josse Bade: Stultiferae
erae naviculae scaphae fatuarummulierum (1498). O quadro de Bosch, evidentemente, pertence aessa onda onírica.
242
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam
sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma
existência facilmente errante. “As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram
confiados a grupos demercadores e peregrinos.” (FOUCAULT, 2005, p.9).
Nesse contexto, consideraram-na, como uma espécie de constituição de um lugar próprio do “castigo divino”, que se mostrou reservado aos insanos mentais. Esse
imaginário europeu concorreu para uma recusa, que foi dada mediante qualquer possibilidade de incursão ao mar. Esse costume foi constatado como quimérico e estava
na contramão do projeto colonial cristão da Igreja situação que emulou para estratégia
acumulativa papal uma vez que encontrou nos ibéricos a alternativa às explorações da
África e das Índias, que se fizeram nos empreendimentos essencialmente marítimos.
A Igreja teve um respeito colonial com os costumes eurocidentais em detrimento aos nomos diferentes da axiologia europeia. Restava nesse processo o trabalho compulsório aos povos de cultura, africana, asiática, ameríndia e ibérica. Por outro lado,
tornou-se o consumo derivado do trabalho restrito aos interesses externos da colonialidade europeia. Aos grupos de imagem ibero-ásio-afro-ameríndio estava reservado o
destino de desprovidos dos bens de seus próprios trabalhos. Fez-se aí uma lógica nefasta, na qual quem edificava não tinha moradia, bem como quem plantava não tinha
alimentação.
As ações políticas de estado foram discernidas como o atendimento estrutural
em favor da dominação eurocolonial. Isso foi feito para garantir o produto dessa colonização como fator de consumo exclusivo do interesse da hegemonia europeia. Ficava
compreendido assim o trabalho como algo circunscrito a demanda compulsória, que se
tentou impor aos atores das culturas estranhas aos nomos da hegemonia de eurocidentalidade.
Nesse contexto, foi notada a tentativa de reservar às relações desprivilegiadas
de trabalho as culturas da: ibericidade, asiaticidade, africanidade e amerindidade. Percebida na lógica de seleção étnico-racial estruturante do estado, que se traduzia na concorrência do privilégio ao segmento que mostrava mais proximidade com o fenótipo
colonial, que foi neste caso específico impreterivelmente anglo-saxônico, articulado na
243
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
instrumentalização luso-ibérica vista aqui como vítima mais privilegiada, na medida
em que fez o papel de operador nesse jogo colonial europeu. A lógica que foi percebida
nessa linha de discernimento se expressou substancialmente nas relações de estado brasileiro, e que já estavam também na origem estatal.
Nesta linha de observação, conclui que esses três pontos postos acima constituíram uma lógica impregnada na estrutura do estado. Essa impregnação estrutural
persistiu nas relações políticas das diferentes instituições estatais, demonstrada aqui na
demanda educacional, sobretudo no processamento das políticas públicas de relações
étnico-raciais do afrodescendente, amerindiodescendente e do iberodescendente, que
se originaram nas lutas de imagem das minorias vulneráveis, que foram beneficiadas infamemente por cotas, em relação ao eurodescendente, que foi o verdadeiro beneficiário
das cotas. A ação política de estado em favor de suposta imagem de superioridade inata
dos segmentos dominantes, que são mais próximos das semelhanças dos fenótipos da
referência colonizadora eurocidental. Esse foi um discernimento que teve como intento
essencial a imposição da lógica da superioridade racial dos europeus, que se fazia em
detrimento das expressões culturais diferentes aos nomos europeus próprios da ocidentalidade, que se mostrou o elemento mais caro da escolaridade monocultural.
O mais nefasto balbucio contra as representações epistêmicas das culturalidades: ibérica, asiática, africana e ameríndia, teve articulação com objetivo de impor nelas
a marca da inferioridade, fragmentando-as nos traços epistêmicos. Isso se fez com o
propósito de justificar o episódio da colonização, no qual o comportamento estatal se
tornou um nódulo euro-étnico-classista estrutural, impregnando todas as instituições,
sobretudo a políticas públicas da educação, constituindo-se em objeto do artigo, em
curso. Considerando que raça e classe se confundem no Brasil, em que a pirâmide social
parece formula química; sendo escura embaixo e na medida em que sobe vai clareando.
Segundo Prudente:
(...) a pirâmide social brasileira parece uma fórmula química. É assim escura embaixo na medida em que sobe vai clareando, isto confirma o que se
observou nesta abordagem que por questão historicamente determinada a
classe expressa raça no mesmo processo construtivo no qual a raça indica
classe.
244
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
(PRUDENTE. 2018. p. 91)
É de bom alvitre considerar alguns pontos que contribuíram, ‘ao meu quase cego
ver’, para traçar a trajetória das políticas públicas. Isso com o intuito de contribuir para
urgente necessidade de levantar alguns pontos para possível construção de uma pequena historiografia das cotas, que revelou que as políticas públicas no Brasil foram
beneplácito quase que exclusivamente dos eurodescendentes. Trataram-nas, por esta
razão, com zeloso silêncio e dissimulação. Buscando nesse comportamento a concorrência pelo mito da superioridade racial do branco. Esses pontos foram elencados assim:
1) Capitanias hereditárias2:
Em conformidade com o Tratado de Tordesilhas, a coroa portuguesa delimitou o Brasil ocidental em generosas faixas quemmoranspraias3. Com o propósito do
atendimento da baixa nobreza portuguesa, que se encontrava no inequívoco distúrbio
socioeconômico, constado na relação constitucional entre o rei e o donatário em dois
documentos, que se traduziram em cartas de doação e foral.
Respectivamente a primeira designava a questão da posse, já a segunda determinava os deveres que implicavam o donatário. Cumpri lembrar que as capitanias eram
transmitidas de pai aos filhos, mostrando, contudo que se obstava a venda. Os donatários receberam uma sesmaria de dez léguas de costa, cabendo-lhes por compromisso:
a fundação de vilas, distribuição de terra aos que desejavam cultivá-las, e a construção
de engenhos. Dessa maneira foi demonstrado que os donatários foram detentores do
245
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
exercício de plena autoridade no âmbito judicial e na demanda administrativa, exercitaram-na respectivamente, aplicando justiça e nomeando funcionários. O poder do
donatário, representante da hegemonia colonial europeia, permitiu que decretasse a
pena de morte para o africano escravizado, o ameríndio subjugado pela máquina da
evangelização e ibérico empobrecido livre. Nessa linha de abordagem, compreendeu-se
que as vítimas da pena de morte formaram uma espécie de taxionomia hierárquica por
distância da semelhança com o fenótipo da eurocolonização. Usando a lógica na qual
tanto mais distante dessa referência europeia quanto mais próximo estava da imposição
da pena máxima. Cada donatário recebeu uma sesmaria que se constituiu em dez léguas
de costa.
2) Sesmarias:
O Príncipe Regente D. João IV, cujo nome completo, foi João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís Antonio Domingos Rafael de Bragança nasceu em 13 de
Maio de 1767. Isto chamou atenção para o dia 13/05/1888, como data da Abolição, que
tem sido por sinal objeto de controversa, apontada pela crítica reflexiva da militância
como Abolição inacabada. Este príncipe regente no pleno uso de suas atribuições determinou por decreto, que privilegiava os estrangeiros radicados no Brasil. Privilégio
no qual os beneficiários receberam por sesmarias datas de chão. Segue a observância do
Decreto:
Sendo conveniente ao Meu Real Serviço, e ao Bem público aumentar a
lavoira, e a População, que se acha muito diminuta neste Estado; e por outros motivos, que Me forão presentes: Hei por bem, que aos Estrangeiro
residente no Brasil, se possão conceder Datas de terras por Sesmarias pela
mesma fórma, com que segundo as Minhas Reaes Ordens se concedem aos
Meus Vassallos, sem embargo de qualquer Leis, ou Disposiçõens em contrário. A meza do Desembargo do Paço o tenha assim entendido, e a foça
executar. Palácio do Rio de Janeiro em vinte e cinco de Novembro de mil
oitocentos e oito.
Com a rubrica DO PRÍNCIPE REGENTE N.S.
Regist.
Na impressão Regia. (DECRETO s/nº de 25 de novembro de 1808. Sesmaria).
246
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
Nessa análise reflexiva observei que as sesmarias foi um benefício que se deu na
origem do estado exclusivamente em vantagem do eurocaucasiano.
3) Concessão de terras e outros benefícios aos imigrantes alemães no século XIX:
O mandatário brasileiro mostrava inegável convicção em relação aos benefícios
que no seu entender seriam dados pela imigração, razão pela qual promoveu a ida à
Europa do major Georg Anton von Schäffer, com o propósito de trazer interessados
ao Brasil. Para o cumprimento desta missão este oficial militar embarcou de início para
Hamburgo, onde concorreu ao estabelecimento de acordo contratual em proveito da
vinda de imigrantes para lida na teluricidade brasileira. Esta ação governamental o indicou como primeiro passo o contato com o Grão Ducado de Mecklemburgo-Schwerin,
e contatando-se posteriormente Birkenfeld, que pertencia ao Ducado de Oldenburgo.
No afã de persuadir os Alemães para esta imigração o mando em voga lhe sugeriu um elenco de vantagens, que se iniciavam no custeio da passagem pelo governo
e seguiu subsequentemente à concessão de lote de chão com setenta e oito hectares
notadamente na região sul do Brasil. Estes benefícios contavam ainda com pagamentos
de diárias, que foram caracterizados em centos sessenta réis dados respectivamente no
ano inicial e metade na segunda anuidade. Notei que foi somado também nesse quadro
de vantagens um número de animais, que se classificaram em bois, vacas, cavalos, porcos e galinhas. Estes benefícios corresponderam ao número de pessoas de cada grupo
familiar.
4) Lei do Boi – cotas para filhos de fazendeiros nas Universidade Federais
No período do autoritarismo militar, o segundo presidente, desse processo histórico, o Marechal Artur da Costa e Silva promoveu a mais evidente ação de política
educacional, que se fazia em interesse da persistência do nódulo eurocolonial nas relações estatais, que as impregnou privilegiando dessa maneira a hegemonia imagética do
euro-hétero-macho-autoritário.
Isto se tratava da Lei nº 5.465, de 03/07/1968 conhecida como Lei do Boi, e
também chamada de lei do boi gordo, que foi editada no mesmo ano do AI – 5. Obser247
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
vei que esse assunto passou de forma silenciosa e dissimulada tanto nos discursos mais
aguerridos da esquerda quanto nas posturas conservadoras mais arraigadas da direita,
prejudicando por sua vez a necessidade da construção de uma pequena historiografia
das costas, como elemento fundamental para o discernimento das políticas públicas
na educação, demonstrando que os eurodescendentes sempre foram absolutamente os
primeiros e os verdadeiros beneficiários das políticas públicas, com apelido de cotas.
Esta lei dispunha das garantias de cinquenta por cento de vagas para agricultores e filhos de agricultores, para o meu discernimento se entendendo por agricultor o
fazendeiro, em escolas agrícolas e veterinárias e cursos superiores, da União. Os processos de divulgação e seleção, desses benefícios estavam restritos ao âmbito desse estrato
social, aconteciam, por isso, nas suas organizações classistas e organizações de financiamentos de créditos atinentes.
Estas políticas públicas do estado euroclassita brasileiro sempre foram posta e
desenvolvidas de forma silenciosa e dissimulada, buscando-se com isto incrementar o
mito da superioridade racial caucasiana. Esse comportamento, reitera privilegiando-se
dessa maneira os traços raciais mais próximos da semelhança do fenótipo da eurocolonização branca, que se configurou na hegemonia imagética do euro-hétero-macho-autoritário. Segundo o Decreto nº 63.788, de 12/12/1968 que regulamentou a lei em
voga:
O Presidente da República, usando das atribuições que lhe confere o artigo
83, item II, da Constituição, e tendo em vista o que dispõe a Lei nº 5.465, de
3 de julho de 1968, Decreta:
Art. 1º Os estabelecimentos de ensino médio e as escolas superiores de
Agricultura e Veterinária mantidos pela União, reservarão preferencialmente, cada ano, para matricula na primeira série 50% (cinquenta por cento) de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou
não de terras, que residam com suas famílias na zona rural; nos estabelecimentos de ensino médios mantidos pela União, 30% (trinta por cento) das
vagas restantes serão reservadas, preferencialmente, para os agricultores
ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residiam em cidades ou
vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio.
§ 1º As reservas mencionadas nestes neste artigo serão feitas sem prejuízos
dos alunos repetentes que venham a renovar sua matrícula, incluindose nesse direito os que pretendam transferência de um para outro
248
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
estabelecimento, obedecido sempre o que sobre transferência dispuser o
respectivo Regimento.
§ 2º Para matrícula nas escolas superiores de Agricultura e Veterinária
mantidas pela União, a preferência de que trata este artigo se estenderá aos
candidatos portadores de certificados de conclusão de 2º ciclo expedidos
por estabelecimentos de ensino agrícola.
§ 3º Em qualquer caso, os candidatos atenderão as exigências da legislação
vigente, inclusive as relativas aos exames de admissão ou de habilitação.
(...) Parágrafo único. As provas de vinculação mencionadas neste artigo
serão fornecidas pela Confederação Nacional de Agricultura, através das
Associações Rurais, ou pelo instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário ou ainda por entidades filiadas ao sistema da Associação Brasileira de
Credito e Assistência Rural.
Art. 5º Para a aplicação deste decreto os Diretores dos estabelecimentos
aqui mencionados receberão orientação e assistência da Coordenação Regional do Ministério da Educação e Cultura. (DECRETO nº 63.788, de
12/12/1968).
O quadro acima mostrou inequívoca ação política educacional do estado
étnicoclassita eurocolonial em favor do eurodescendente.
5) Verba a fundo perdido para salvar os bancos
Em 04/12/1995, o presidente da república subscreveu o conjunto composto pela
Medida Provisória nº 1.179 e a Resolução nº 2.208, ambas de 3/11/95, que originou o
Programa de Estimulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro
Nacional - PROER. Este conjunto de Medida Provisória e Resolução criaram um generoso programa de financiamento favorável aos juros e aos prazos de pagamento, cujo
propósito foi salvar os bancos ou estimular fusões de instituições financeiras.
Para minha percepção ficou cristalino que esse benefício aos financistas aí,
posteriormente, diante do barulho próprio da temática sugeriu que um universitário
afrodescendente cotista se tornaria passível do complexo de inferioridade. Chamo atenção, que ninguém ouviu, por outro lado dizer que um banqueiro eurodescendente se
sentiria sequer constrangido ou com complexo de inferioridade por receber bilhões em
249
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
vantagem com pagamento a custo zero ao indisponível Tesouro Nacional, em uma ação
cotista cercada de silêncio e dissimulação em favor eurodescendente.
6) Perdão das dívidas dos ruralistas
Em cumprimento ao fim da lógica do estado étnicoclassita eurocolonial, que
foi feito uma ação política para beneficiar o fazendeiro eurodescendente. Fazendo por
meio da medida provisória, a MP nº 793/2017, que lhe abolia do peso de suas dívidas
públicas. Instituindo-se, com efeito, pelo instrumento jurídico em questão o Programa
de Regularização Tributaria Rural - PRP, feito na Secretaria da Receita Federal e na MP
da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional - PGFN.
O Programa de Regularização Tributaria Rural - PRP ficou conhecido como
Refiz Rural, que teve como objetivo facilitar o pagamento das dívidas dos produtores rurais com a Previdência. Comentava-se que esta renúncia fiscal começou em uma
previsão de R$ 6.0 bilhões e chegaria a três anos em torno de R$ 18 bilhões. Percebi,
nessa reflexão, que esses benefícios eram resultados de políticas públicas silenciosas e
dissimuladas para favorecer o mito da superioridade racial do branco.
7) O papel do estado étnico-racial do branco
Esses pontos elencados acima indicaram para uma pista que mostrou o papel
do estado euro-étnico-racial classista, que se revelou estruturalmente como provedor
e dissimulador das políticas públicas dos grupos privilegiados, que mostravam mais semelhança fenotípica com a imagem do euro-hétero-macho-autoritário4 segundo Prudente e Oliveira:
De tal sorte que os grupos mais próximos da semelhança com o fenótipo da
força colonial de hegemonia imagética caracterizada no euro-hétero-macho-autoritário e o desdobramento da heteronormatividade serão, desta
forma, mais privilegiados em detrimento dos outros seguimentos também
miscigênicos, não brancos e mais passíveis de aproximação com a feição
configurada na imagem do ibero-ásio-afro-ameríndio. (PRUDENTE; OLIVEIRA, 2018, p. 179-196)
250
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
Na perspectiva do tentame de imposição da hegemonia imagética eurocidental,
que se deu aqui esta persistência caucasiana para a construção e a manutenção do poder
branco-europeu colonial, que se tornou estrutura do estado brasileiro. Cuja origem foi
reiterada, nesse artigo, como anterior as demandas de nacionalidade. Essa anástrofe política concorreu para a formação de um Estado estranho às demandas da Nação. Construíram-no, nessa linha de abordagem, substancialmente na relação étnico-racial do
branco como privilégio da persistência colonial, em detrimento das culturas diferentes
das axiologias eurocidentais.
Pude notar dessa maneira nas relações derivadas da lógica estatal que se constituíram em ações políticas, configuradas em cotas de relações étnico-racial do branco.
Essas cotas foram construídas em um quadro de solércia favorável à dissimulação imagética do caráter classista da relação étnico-racial do eurodescendente, considerando
que raça e classe se confundem no Brasil.
Esse fenômeno se revelou como uma derivação estatal estruturante persistente favorável à dominação da colonialidade eurocidental, que se fez provavelmente por
meio de políticas públicas resultantes da injunção imagética da verticalidade do euro-hétero-macho-autoritário. Isso se desenvolveu essencialmente com o ensaio da fragmentação epistêmica da imagem de horizontalidade do ibero-ásio-afro-ameríndio5
A política da escolaridade monocultural se configurou em um processo de diferentes de cores, que contrariava o respeito à diversidade. Fenômeno que se estabeleceu
no tentame da fragmentação do traço epistemológico dos nomos estranhos à axiologia
eurocolonial, caracterizada na cor branca. Na minha percepção foi construído, de tal
sorte, estereótipos com esta finalidade de desarticular os diferentes dos nomos eurocidentais, classificando-os assim, o africano como preto que servia só para o serviço
braçal alienado, o ameríndio como vermelho inculto e avesso ao progresso, o asiático
pequeno e estéril, o lusitano “suposto” branco como burro empobrecido que ficou no
imaginário como burro sem rabo6. Reservou-se, contudo para o branco europeu a condição de referência paradigmática, por ser branco e meramente branco:
Pois o branco desfrutou durante três mil anos o privilégio de ver sem que
o vissem; era puro olhar, a luz de seus olhos subtraía tôdas às coisas da
sombra natal, a brancura de sua pele também era um olhar, de luz conden251
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
sada. O homem branco, branco porque era homem, branco como o dia,
branco como a verdade, branco como a virtude, iluminava a criação qual
uma tocha, desvelava a essência secreta e branca dos seres. O que esperáveis
que acontecesse quanto tirastes a mordaça que tapava estas bocas negras?
(SARTRE. 1960, p. 105).
Foi usado para manutenção do mito da brancura uma espécie folcloridade racial7
estereotipada de caráter multicor, sobretudo desprovida da consciência do respeito à
diversidade. Para justificar a superioridade racial do branco, como razão inquestionável
da política monocultural excludente, favorecendo a manutenção da lógica estrutural de
persistência étnicoclassita eurocolonial, do estado brasileiro.
8) Revolução Tecnológica
Presumi nessa reflexão que prescindir da história das cotas no Brasil foi uma
tentativa de esconder das amplas massas, formadas pelos grupos de imagens ibero-ásio-afro-ameríndio, que os segmentos dominantes de representação imagética do euro-hétero-macho-autoritário são superiores e signos do desenvolvimento. Foi necessário,
para tal, o uso da solércia para impor o tentame de mostrar que as benesses dadas pela
política de estado brasileiro foram resultantes inatas da eurocolonização, que foi representado pela verticalidade do homem branco detentor de mais analogia com a feição do
eurocolonizador, mostrado aqui como anglo-saxônico.
Entendi nesse quadro que foi articulado um processo de negação dos traços
epistêmicos das expressões humanas estranhas à axiologia europeia. Diante do poder
simbólico e material da masculinidade do homem caucasiano europeu, quaisquer manifestações de humanidade, que lhes são diferenciais se tornam vítimas da tentativa
de coisificação, condicionando-as para a mera sobrevivência, como coisa, um apêndice
em proveito da existência do euro-hétero-macho-autoritário colocado na condição de
minoria.
O artigo aponta que as manifestações dos nomos, da ibericidade, da asiaticidade,
da africanidade e da amerindidade foram vitimadas pela eurocolonização. Assim como
os grupos que se expressaram estranhos ao dimensionamento da verticalidade do machismo branco europeu, tais como: as mulheres, os homossexuais, os deficientes, os
252
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
ameríndios, os africanos, os asiáticos, os ibéricos e outros são minorias na medida em
que não combinavam com a euroheteronormatividade8.
Para essa linha de abordagem, na Revolução Tecnológica as relações abstratas
da representação se tornaram mais significativas, que as relações concretas da realidade
factual. Sendo sensato supor que a representação se demonstrou mais importante que o
real. Nessa era tecnológica a informação se fez substancial tal como a máquina se mostrou essencial na era industrial.
Percebi nesse contexto que as lutas de classes ganharam o ápice histórico - cientifico na sociedade industrial se traduziram em lutas das minorias, que foram vulnerabilizadas pela tentativa de coisificação própria da euroheteronormatividade. Pareceu-me ainda que essas lutas de minorias vulneráveis se projetassem em lutas de imagens.
Como se observou em Prudente e Oliveira:
De tal sorte que os grupos mais próximos da semelhança com o fenótipo da
força colonial de hegemonia imagética caracterizada no euro-hétero-macho-autoritário e o desdobramento da heteronormatividade serão, desta
forma, mais privilegiados em detrimento dos outros seguimentos também
miscigênicos, não brancos e mais passíveis de aproximação com a feição
configurada na imagem do ibero-ásio-afro-ameríndio. Fenômeno que chama atenção para um emergente conflito de natureza iconográfica, que tem
sido uma espécie de motor da história, no curso da Revolução Tecnológica,
que tem na informação a sua essência, razão pela qual possivelmente as
lutas de classes se projetam em lutas de imagens. PRUDENTE, OLIVEIRA.
2018. pág. 179-196.
Para essa reflexão foi considerado também que essas minorias caracterizadas
na horizontalidade democráticas da imagem do ibero-ásio-afro-ameríndio desenvolveram uma luta ontológica, contra verticalidade da hegemonia imagética do euro-hétero-macho-autoritário. Luta ontológica em proveito da imagem de afirmação positiva
das minorias vulneráveis. Essas lutas se deram no combate da negação de ícone epistêmico, que lhes tentaram impor para sustentação do mito da superioridade eurocolonial
branco. A ontologia dessas lutas foi demonstrada na dinâmica de contemporaneidade
inclusiva, que lhes foi própria, contrariando o anacronismo excludente da dominação
253
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
imagética do euro-hétero-macho-autoritário, que foi compreendida aqui como essência eurocêntrica da escolaridade monocultural.
Fenômeno que se constitui em nódulo estrutural do estado brasileiro, que persistiu tornando as instituições políticas hibrida que tem o estruturante vício da relação
étnico-clássico eurocolonial, mostrando persistência do Brasil Colonial à República, da
atualidade. Ação política que se fez beneficiando os grupos supostamente brancos, que
mostraram mais traços análogos aos fenótipos da eurocolonização em um processo silencioso e dissimulado.
Fiz aqui um gráfico sobre as participações étnico-raciais nas políticas públicas
do estado brasileiro. Ficou constado, dessa maneira, que as cotas étnico-raciais, em proveito do afrodescendente e do amerindiodescendente se deram de forma diminuta. Isso
se deu diante da vantajosa presença do eurodescendente na política pública do estado
étnicoclassita eurocidental, por exemplo: sesmarias 64%, alemães 26%, boi gordo 4%,
PROERD 5%, afrodescendentes 1%, que foi ilustrado como segue:
Gráfico elaborado pelo autor que compõe o acervo do selo Coleção Celso Prudente Africanidade.
Esse fenômeno de muito barulho concomitante a ausência de espaço com visibilidade à discussão em favor da historicidade das cotas, evitando tal discussão para não
se mostrar os eurodescendentes como os verdadeiros beneficiários das cotas, no estado
brasileiro étnico-clássico eurocolonial.
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as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
Conclui, contudo que no âmbito das cotas os afrodescendentes tomaram o apertado vagão do último trem das políticas públicas, mas pagando o elevado preço de toda
sorte da solércia na qual os beneficiários das cotas raciais são inferiores e escorias dependentes do estado. Concluindo, com efeito, que a política de escolaridade monocultural
se mostrou impregnada pelo nódulo estruturante do estado étnico-clássita eurocolonial, demonstrando com isto contrário ao sentimento de horizontalidade democrática
da imagem do ibero-ásio-afro-ameríndio e todas as minorias vulneráveis.
Referências
AVELAR, Juarez. 50 contos que a vida em contou – Livro de memórias. São Paulo.
Life editora. 2018. p. 63 e 65.
BRASIL. Decreto nº 63.788, de 12 de dezembro de 1968. Regulamenta a Lei nº 5.465,
de 3 de julho de 1968, que dispõe sobre o preenchimento de vagas nos estabelecimentos de ensino agrícola. Senado Federal. Disponível em: <http://legis.senado.
gov.br/legislacao/ListaTextoSigen.action?norma=486420&id=14312992&idBinario=15804837&mime=application/rtf> acesso em 29 mar 2019.
BRASIL. Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968. Dispõe sobre o preenchimento de vagas nos estabelecimentos de ensino agrícola. Planalto. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5465impressao.htm acesso em 29 de mar
2019.
FOUCAULT, Michel . História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2005. 8ª Ed.
PORTUGAL. Decreto s/nº de 25 de novembro de 1808. Biblioteca digital Luso-Brasileira. Decreto das Sesmarias. Disponível em: <http://bdlb.bn.br/acervo/handle/123456789/2> acesso em 12 mar 2018.
PRUDENTE, Celso Luiz. A dimensão pedagógica do cinema negro: uma arte ontológica de afirmação positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio origem do cinema
negro e a sua dimensão pedagógica. In: Celso Luiz Prudente; Dacirlene Célia silva.
(Org.). A dimensão pedagógica do cinema negro aspectos de uma arte para a afirma255
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
ção ontológica do negro brasileiro: O olhar de Celso Prudente. 1ªed.Curitiba: Prisma,
2018, v., p. 67-90.
PRUDENTE, Celso Luiz; OLIVEIRA, F. R. A luta ontológica de afirmação da
imagem positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio como elemento democrático da
lusofonia: Pontos reflexivos para um diálogo da dimensão pedagógica do cinema negro e a Revolução dos Cravos. In: Celso Luiz Prudente; Dacirlene Célia Silva. (Org.).
A dimensão pedagógica do cinema negro aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: O olhar de Celso Prudente. 1ªed.Curitiba: Prisma, 2018, v.,
p. 179-196.
PRUDENTE, Celso Luiz; SILVA, D. C. A dimensão pedagógica do cinema negro
aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: O olhar
de Celso Prudente. 1ª. ed. Curitiba: Prisma, 2018. 239p
______. Étnico Léxico: para compreensão da Prudentalidade. In: A dimensão pedagógica do cinema negro aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro
brasileiro: O olhar de Celso Prudente. 1ª. ed. Curitiba: Prisma, 2018.p. 214-224.
SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o racismo. Tradutor J. Guinsburg. 2. ed. São
Paulo: Ed. Difusão. Europeia do Livro, 1960. p. 105.
256
as lutas de imagens das minorias
Celso Luiz Prudente
Notas
1 Eurocaucasiano – Usou-se para definir o branco essencialmente caucasiano que aqui foi um táxon
específico para definir o branco europeu. Pareceu-se, por outro lado, que as relações de consumo se constituíram em componente substancialmente contrário as forças de trabalho. Discerniu-se, de tal sorte que
à força de produção não cabia o sentido de consumo dos bens resultantes do trabalho, considerando que
este estava voltado ao atendimento da ordem estatal, cujos fins foram
2 Capitanias Hereditárias - Nos idos de 1536 o rei de Portugal, Dom João III instituiu na ocidentalidade das terras brasileiras as Capitanias hereditárias, instituindo-as no litoral em quatorze distritos. Os
mesmos foram divididos subsequentemente em quinze lotes, sendo estes objetos de partilhas em favor
de doze donatários. Concluiu-se que os donatários foram beneficiários de doação de terras do poder real
lusitano. Por outro lado se tornaram depositários da confiança da realeza portuguesa.
3 Quemmoranspraias - É um termo que se usou para tratar as relações que derivam dos sentidos de
praianos
4 Euro-hétero-macho-autoritário - Silogismo deste autor, e tem como objetivo demonstrar verticalidade nefasta peculiar do poder, que de expressão europeia, branco ocidental, exerce sobre as minorias.
Tornando-as ainda caracterizadas na condição subalterna, diante do mito da superioridade racial do homem (hétero/macho) caucasiano. Sentido europeu do poder masculino, macho que se estabelece como
uma força impositiva para manifestações que lhes são diferentes (o negro, o homossexual, a mulher...)
5 Ibero-ásio-afro-ameríndio - Trata-se de uma categoria autoral que compreende a unidade de todos
os povos de culturas ibéricas, asiáticas, africanas e ameríndias, na medida em que o ponto identitário é
a língua portuguesa que se faz na condição de povos que foram vítimas da colonização euro ocidental
6 Burro sem rabo – O lusitano está infelizmente no imaginário brasileiro como burro em razão da falta
de consciência identitária do ibero-afro-ásio-ameríndio. Constatou-se em um livro de contos autobiográficos de um estudante de medicina da Universidade do Brasil no Rio de Janeiro que se formava e precisou fazer o transporte de uma cadeira para fotografia de formatura. Na condição de estudante geralmente
sem dinheiro a contratação do meio de transporte mais barato que foi o burro sem rabo. Uma carroça
com tração humana que geralmente era puxado por portugueses empobrecidos, como segue: “Depois de
vencer mais um obstáculo, ao conseguir a cadeira, surgiu outro: como transportá-lo? Pensei logo em um
burro-sem-rabo que daria conta de carregá-lo e seria mais barato que um caminhão de carga. Assim o
meio de transporte que contratei muito comum no Rio de Janeiro daquela época que fazia grandes mudanças de residências. (...) o transportador, de estatura mediana, transpirava por todos os poros, e, com
seu legítimo sotaque lusitano, reclamou pela primeira vez (...) (AVELAR. 2018. p. 63 e 65)
7 Folcloridade racial – Processo pelo qual se desrespeita uma raça desconsiderando a sua cultura como
tem sido feito em relação a produção cultural do afrodescendente e do amerindiodescendente, para concorrer em favor do mito da superioridade da cultura do eurodescendente
8 Euroheteronormatividade – Sentido de euroheteronormatividade vai estabelecer as normas que
pautam as relações de existência tendo como referência o paradigma europeu. (PRUDENTE e SILVA.
2018. p. 219).
257
Educação para o direito e o cinema negro
Douglas Martins de Souza1
Michel Leite Viana2
Luiz Sales do Nascimento3
1. Dogma e antirracismo
No ano 2000 surgiu no audiovisual brasileiro o Manifesto Dogma Feijoada,
parodia do manifesto Dogma 951 do cinema dinamarquês. O Dogma brasileiro
denunciava o racismo presente em todo o processo de produção cinematográfica
nacional. O Manifesto apresentava sete pontos de orientação para a produção de
filmes sobre negros: (1) o filme tem que ser dirigido por realizador negro brasileiro;
(2) o protagonista deve ser negro; (3) A temática do filme tem que estar relacionada
com a cultura negra brasileira; (4) O filme tem que ter um cronograma exequível. (5)
Personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos; (6) O roteiro deverá
privilegiar o negro comum brasileiro; (7) Super-heróis ou bandidos deverão ser
evitados.
O manifesto problematizava a sub-representação racial na produção audiovisual
e denunciava os estereótipos como elementos de construção do racismo estético
1 Advogado, mestre em Direito e Doutor em Filosofia pela PUC- SP.
2 Professor das redes públicas municipais de São Vicente e Santos, Bacharel licenciado em Educação
Física.
3 Procurador de Justiça – MP-SP, mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP, e professor da graduação e
do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Santos.
258
educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
antinegro proibindo-os (dogma nº 6). Também exigia que se assegurasse a presença
negra na realização (dogma nº 1) como pressuposto da dignidade do sujeito discriminado,
traduzindo para o cinema a consigna antirracista “nada de nós sem nós”.
O que impedia o negro de dirigir, protagonizar, tematizar sua cultura com um
cronograma exequível? O que impedia filmar sem estereótipos privilegiando o negro
comum? O que impedia filmar abstendo-se de super-heróis e bandidos? O que, afinal,
impedia o Cinema Negro de existir? É comum dizermos de nós mesmos que vivemos
numa sociedade racista sem que ninguém se considere racista. O que está por trás desse
enigma? O que faz com que haja racismo em todo lugar sem que haja racista em lugar
nenhum?2
1.1 Dimensões do racismo
Considerado o pressuposto da impropriedade do termo raça para distinguir seres
humanos, podemos nos ocupar das definições dos correlatos preconceitos, racismo e
discriminação. Racismo e discriminação estão definidos na Convenção Interamericana
contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (referida
neste artigo como “Convenção”), recém-aprovada no Brasil.3
De acordo com a Convenção, entende-se por racismo “qualquer teoria, doutrina,
ideologia ou conjunto de ideais que enunciam um vínculo causal entre características
fenotípicas ou genotípicas de indivíduos e seus traço intelectuais, culturais e de
personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial” (Art. 1º, nº 4).
Discriminação racial é a “distinção, exclusão, restrição ou preferência em
qualquer área da vida pública ou privada cujo propósito ou efeito seja anular ou
restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou
mais direitos humanos e liberdades fundamentais” (Artigo 1º, nº 1).
Silvio Almeida, por sua vez, define preconceito como “juízo baseado em
estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado,
e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias” (ALMEIDA, 2019, p.
25). Relaciona preconceito, racismo e discriminação às concepções individualista,
institucional e estrutural. A concepção individualista trata racismo como patologia,
reduzindo-o ao plano individual na forma de discriminação direta. 4
259
educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
Logo se percebe sua limitação de manter o racismo no plano individual. O
racismo também está na dimensão plurissubjetiva. Nas relações intersubjetivas,
considera-se que as instituições são modos de orientação, rotinização e coordenação de
comportamentos aptos a estabilizar os sistemas sociais. A instituição pode naturalizar
o predomínio de um grupo racial. Portanto, o racismo como fenômeno transindividual
pauta a questão do legado discriminatório e sua resiliência. Podemos questionar se as
instituições estabilizam a hegemonia de grupos raciais. Ao fazê-lo, geram o racismo
institucional.
Nota relevante na categoria de racismo institucional é relação de poder de
um grupo étnico-racial a despeito dessa condição estar ou não escrita. O poder está
implícito. Portanto, é uma relação de dominação, sendo necessário investigar como o
racismo sobrevive no ordenamento jurídico que o refuta. Podemos afirmar que, para o
racismo individual, nosso ordenamento é antirracista e para o racismo transindividual
nosso ordenamento jurídico é apenas não-racista.
A diferença entre “não-racismo” e “antirracismo” é a mesma da abstenção e da
ação. O não-racista se abstém diante da discriminação de grupo por considerar o racismo
uma patologia e recusar suas dimensões sociais. O antirracista age, reparando os efeitos
por meio de ações afirmativas contrapondo-se ativamente ao racismo. A primeira
atitude admite a falsa neutralidade da meritocracia. A segunda refuta. É próprioda
perspectiva antirracista denunciar a meritocracia como expediente de perpetuação de
privilégios de grupo.
1.2 Racismo estrutural e forma social racista
No campo do racismo transindividual, Silvio Almeida descreve ainda a concepção
estrutural.5 O filósofo identifica o racismo como componente orgânico da estrutura
social. Nesses termos, o racismo “de algum modo” também se apresenta como parte da
estrutura. Diz o filósofo: As instituições são apenas a materialização de uma estrutura
social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes
orgânicos. (2018, p. 36).
A partir daí conclui-se que as instituições são racistas porque a sociedade é
racista. As instituições reproduzem o racismo da estrutura social marcada por conflitos.
260
educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
Por inércia, o racismo presente na vida cotidiana se reproduz nas instituições. Almeida
ressalta a presença do racismo na vida cotidiana sublinhando a necessidade de agir
contra sua força inercial. Portanto, há necessidade de mecanismos institucionais de
enfrentamento.
Muniz Sodré faz objeção à concepção estrutural desenvolvida por Silvio Almeida.
Destaca que a normalidade do racismo não decorre propriamente de qualquer estrutura,
ainda que seja útil a expressão “racismo estrutural” por seu forte apelo político no
ativismo afro. Houve uma estrutura racista antes da abolição e o racismo pós-abolição
sobreviveu a ela. Podemos cogitar de um racismo sem estrutura, se compreendido o
termo como algo externo à conduta.
O racismo cotidiano ou normalidade racista (racismo resiliente), convive com o
ordenamento jurídico dissimulando-se sem se estruturar por ser insuscetível de receber
qualquer amparo. Uma totalidade estruturada racista não comportaria dissimulação.
Sua formalização estaria, ato contínuo, cancelada. É uma questão a ser resolvida na
caracterização do racismo resiliente. A longa trajetória da mobilização racista pósabolição não se estrutura por ter sido exatamente a extinção da estrutura racista o
preâmbulo do regime republicano cujo princípio é a igualdade perante a lei.
No caso da discriminação racial de grupo, a estrutura não se evidencia.
Diferentemente, a forma social racistade que nos fala Moniz Sodré, funciona sem uma
estrutura jurídico-política, sendo esta a principal dificuldade para enfrentá-la. Demanda
consenso para reconhecê-la e pactuação para removê-la, vez que segue paralelamente
preservando e atualizando afetos preexistentes originados na segregação.
Há uma cultura furtiva cuja dinâmica se desenvolve dissimuladamente por
caminhos indiretos. A ideia de um racismo resiliente disseminado em nossa formação
social sugere que seja multiforme, em processo de permanente mutação. A cultura racista
sendo dinâmica, subsiste furtivamente no plano dos afetos, percorrendo aestrutura
social, metamorfoseando-se.
1.3 O dogma contra o enigma
Retomemos Dogma Feijoada para examiná-lo nessas referências. O programa do
manifesto reagia à discriminação indireta. Buscava reparar a discriminação assegurando
261
educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
a presença negra. O antirracismo na dimensão transindividual acontece através de
política pública. Se chamados a demonstrar a assimetria e a justiça de seu programa para
superação do eurocentrismo e seus efeitos, cineastas negros necessitariam pôr a questão
em números, de modo a quantificar a disparidade entre grupos raciais na indústria do
audiovisual. A atualidade de Dogma Feijoada para a diversidade étnico-racial no cinema
permanece. A dificuldade para tratar do tema em nosso direito também.
Por analogia, podemos avaliar a dificuldade examinado o resultado da principal
iniciativa levada a juízo para tratar do mesmo assunto. Em 2005 o Ministério Público do
Trabalho – MPT, criou o Programa de Promoção da Igualdade de Oportunidades para
Todos – PPIOT. Iniciou por Brasília, no mercado de trabalho bancário, valendo-se de
levantamento estatístico onde a sub-representação dos negros era evidente.
O cotejo demostrou diferença entre 19 e 34 pontos percentuais em desfavor
dos negros ao comparar a composição étnico-racial do quadro de empregados do
setor e a composição étnico-racial da População Economicamente Ativa – PEA, do
Distrito Federal. O MPT entendeu que caberia aos empregadores reverter o quadro.
Foi à Justiça.6 Mesmo com a prova estatística da sub-representação o Judiciário não
reconheceu discriminação indireta, indeferindo todas ações em primeira instância.
O MPT recorreu. O Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região – TRT/10,
desqualificou estatística como prova, indo ao socorro das empresas que não podiam,
em sua opinião, ser responsabilizadas por discriminação quando “se sabe que [o
Estado] falha violentamente no respeito aos direitos e garantias fundamentais e, mais
especificamente no tocante à formação educacional, negando semelhantes oportunidades
de desenvolvimento aos cidadãos”.7
O MPT foi ao Tribunal Superior do Trabalho. Além de recusar a prova
estatística, o TST entrou no mérito da questão afirmando ser impossível ao Judiciário
atuar como legislador positivo “implementando ‘cotas’ ou metas para correção das
alegadas disparidades estatísticas encontradas nos quadros de empregados do Banco
em cotejo com a população economicamente ativa do Distrito Federal”8. O conceito
de discriminação indireta foi rejeitado com a desqualificação do meio de prova apto a
demonstrá-la.
O paralelo entre os programas de Dogma Feijoada e Promoção da Igualdade
de Oportunidade para Todos do MPT, como dito, está no objeto. Dogma propôs aos
262
educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
produtores fazerem Cinema Negro contra a exclusão, assegurando a presença negra
no audiovisual brasileiro. O MPT buscou o mesmo objetivo no mercado de trabalho
bancário. Ao recusar a prova estatística, o Judiciário limitou a reparação por racismo à
hipótese da concepção individualista.
O Judiciário Trabalhista não reconhece racismo intersubjetivo para efeitos de
proteção na discriminação de grupo. Há um enigma a desafiar o Dogma. A concepção
individualista de racismo é o enigma que protege a discriminação racial coletiva
em qualquer lugar, do banco ao cinema. Esse enigma tem a forma da ignorância
epistemológica jurídica. Como enfrentar em juízo a discriminação indireta contra
grupos historicamente prejudicados?
Estamos diante de inequívoca epistemologia racista, não sendo admissível que
nosso Direito rejeite a categoria de discriminação indireta, e desqualifique a prova
estatística aplicando expedientes próprios da discriminação direta individualista nos
casos de discriminação racial de grupo. Reforça, em âmbito judicial, a ideologia da
meritocracia e seu instrumento operativo: a falsa neutralidade ou neutralidade aparente.
A limitação do direito antidiscriminatório à divisa individualista, antes injusta,
agora também é ilegal. Desde janeiro de 2022, a Convenção Interamericana Contra
o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, emendou
nossa Constituição Federal, nela introduzindo um sistema antidiscriminatório dotado
de instrumentos apropriados e específicos para reverter a discriminação indireta,
ampliando, inclusive, seu escopo de proteção para além da discriminação racial9 .
A Convenção impede a aplicação da neutralidade aparente onde a igualdade
formal impactar desfavoravelmente grupos vulnerabilizados. AConvenção também
adota o princípio do não-retrocesso, impedindo que haja reversão, limitação ou
restrição no direito e garantiasantidiscriminatórios (Artigo 16, nº 1) desautorizando
eventual interpretação restritiva desses direitos. A luta de cineastas contra o racismo
ganha um importante reforço com a atualização normativa.
A Convenção constitucionaliza a epistemologia da equidade entre nós. De acordo
com nossa Constituição, tratados e convenções sobre direitos humanos devem seguir
o rito das emendas constitucionais para validação em nosso Direito. É o caso. Há vinte
anos, ao ousar exigir a presença negra em nosso cinema, Dogma Feijoada se deparou
com o tema da sub-representação no setor e propôs superá-lo. O MPT expôs o enigma
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educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
da epistemologia jurídica inadequada. Com a aprovação da Convenção Interamericana
antirracista, a epistemologia jurídica do racismo individualista que já era anacrônica,
passou a inconstitucional. Pode-se dizer do Cinema Negro antirracista que ele agora
tem lugar em nossa Constituição.
2. Desnaturalização do cinema não negro e sua pedagogia
Não nos enganemos, não há coincidência nas mortes de Miguel, Marielle,
João Pedro, George Floyd e tantos outros.Não são casos isolados.Eles foram mortos
peloracismo, e existe um projeto claro da burguesia de extermínio do povo negro.
É criada pelo capitalismo, sistema que dá sustentação ao racismo, uma cultura
permanente de ódio e desprezo ao povo negro que para muitas pessoas, por diversasvezes
passa despercebido.
Convido-o a assistir alguns desses programas policialescos vespertinos que
sãotransmitidos pelas redes de televisão aberta diariamente, neles se pode perceber
quequando o possível crime for cometido pelo homem negro, a polícia é super
agressiva e o apresentador em tom elevado de voz e gestos espalhafatosos atribui ao
mesmo as alcunhas de bandido, periculoso, mau elemento, entre outros adjetivos nada
nobres, emesmo sem a certeza dos fatos apurados o apresentador em entonação de voz
indignadabate o martelo imaginário como se fosse um juiz e imputa a esse homem
expostoviolentamente em rede nacional o veredito da culpa.
Repare, porém, que se o possível criminoso em questão for um homem
branco erico, a polícia, mesmo com um mandado de prisão em mãos tratará o mesmo
comeducação e humanidade, o apresentador do programa vai se dirigir ao suspeito
em tomde voz ameno e com gestos contidos e dará a esse homem senão a certeza da
absolvição,ou pelo menos o benefício da dúvida.
Perceba que na maioria das vezes se retrata o povo negro em novelas, séries ouem
filmes como: promíscuo, bandido, prisioneiro, trabalhador subalterno,escravizado,
louco, caricato ou morador de rua. Pessoas sem nome, sem família,sem passado,
sem história, e geralmente a mulher que entra em cena calada, com umuniforme de
empregada doméstica e uma bandeja em mãos, serve a refeição a umatípica família
branca da aristocracia e sai de cena como entrou, em silêncio. O porteirosem nome que
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educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
apenas acena e dá bom dia para algum morador do edifício, o moço dobalcão, o tio da
faxina, o rapaz ou a moça que fazem isso ou aquilo, mas que nunca sãochamados pelos
nomes, como se fossem coisas, não pessoas.
Observe que quando recebemos por meio do WhatsApp, ou outro
aplicativoqualquer de trocas de mensagens, piadas, memes em formato de textos,
fotos e/ouvídeos com pessoas bêbadas, banguelas, analfabetas, pessoas em situações
vexatórias oupassando qualquer tipo de vergonha, repare bem se na grande maioria das
vezes estaspessoas objetificadas para causarem gargalhadas, constrangimentos, ódio ou
desprezo,que serão compartilhadas nos grupos de futebol e boteco, reflita a partir de
agora, e veráque na imensa maioria das vezes essas pessoas são negras.
Visto que somos tomados por uma avalanche midiática negativa todos os dias,que
nos faz acreditar que o povo negro é feio, bandido, analfabeto entre outrosadjetivos
pejorativos, e não é por acaso ou coincidência do destino, mas algocoordenado para ser
introjetado em nosso imaginário, o quanto o povo negro édesprezível.
Repare que nos compadecemos com ataques terroristas em países
estrangeiros,principalmente se estes países forem os Estados Unidos ou algum país
da Europa e issonão é errado, afinal todo ser humano merece ser respeitado, porém
pouco ligamos parachacinas nas periferias brasileiras, que pintam o chão de vermelho
com sangue decorpos jovens crivados de bala que na sua maioria são corpos pretos,
colocamos filtrosna nossa foto de perfil da rede social, em solidariedade a atentados
em países europeus,porém todos os anos acontecem chacinas nas periferias, morros e
favelas brasileiras enão se vê um só filtro nas redes sociais em apoio ao ocorrido, não
que filtros nas redessociais alterem a realidade de um povo, o que quero dizer é que no
geral as pessoasnão se comovem com jovens pretos e pretas assassinados num bailão de
comunidadecomo ocorreu por exemplo no morro do Alemão, no Rio de Janeiro, ou o
caso dos novede Paraisópolis, na periferia de São Paulo, ou a mais recente chacina que
ocorreu naoperação escudo no Guarujá, litoral de São Paulo.
E por que isso não comove a maioria das pessoas? Talvez porque acabamos
nosacostumando a ver o povo negro sendo retratado dessa maneira, a tragédia do
povonegro é vista como lugar comum. Achamos que o povo negro, o povo que vive
nasperiferias, merece mesmo isso, normalizamos a tragédia, acreditamos que seja
algonatural, quando os corpos crivados de balas estirados no chão são de pessoas negras,
periféricas.
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educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
A classe dominante no Brasil, vem desde a colonização do país impondo aos
povos não brancos o seu modo de viver, atuando muitas vezes de maneira violenta,
mas também de forma ideológica, reforçando a ideia de povos atrasados, sem cultura,
semalma e naturalmente sem Deus (leia-se o Deus do homem branco) o que justificava
todotipo de barbárie contra os povos originários, tudo em nome de civilizar esses
povossupostamente atrasados sem alma e sem religião.
O mesmo aconteceu com o povo raptado do continente africano, o sequestro
nãoera apenas dos seus corpos, não lhe tiravam apenas a liberdade, mas a sua maneira
de enxergar a vida, a sua religião, sua dança, sua música, culinária. Tiravam dessa
gente oque há de mais caro para um povo, a sua cultura, que segundo o psiquiatra e
revolucionário martinicano Frantz Fanon “é o conjunto dos comportamentos mentais
e motores oriundos do encontro do homem com a natureza ecom o seu semelhante”
(2021, p.8).
Vejam só, que a tragédia dos europeus comove mais as pessoas do que a tragédiado
povo negro.Se você fizer uma rápida pesquisa vai ver que o número de mortes dopovo
negro e indígena na colonização das Américas é imensamente superior ao demortes
no holocausto, porém esse fato repudiável da nossa história não parece noscomover
tanto quanto o holocausto dos judeus. E nem parece gerar interesse naindústria
cinematográfica.Veja, em países como o Congo, por exemplo, houve umholocausto
muito mais sangrento do que o holocausto judeu, pois pesquisas remontam maisde dez
milhões de Congoleses mortos pelo colonialismo Belga, e seu chefe máximo, osanguinário
rei Leopoldo II, não aparece nas listas dos piores seres humanos que jáhabitaram a terra,
assim como aparecem Hitler, Mussolini, Franco e Salazar. Talvezesses anteriormente
citados tenham entrado para história como seres humanosextremamente cruéis pelo
fato de terem perseguido, torturado e matado pessoasbrancas. Já Leopoldo II, ditador
Belga, muito mais cruel do que seus colegas europeus,que promoveu um dos piores
massacres da nossa história, passa despercebido pelosprodutores da sétima arte, não se
acha nas plataformas de streams, em salas de cinemasconvencionais ou cine arte, novelas
ou séries sobre a terrível história do colonialismobelga, em terras congolesas, muito
provavelmente por ter cometido seus crimes noCongo, terra de gente preta, gente essa
que é desumanizada nas telonas e na vida real.
Aliás, não achamos muita coisa também na sétima arte sobre as
revoluçõesanticoloniais africanas, suas lutas por independência, dificilmente
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educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
assistiremos nastelonas as histórias de Amílcar Cabral e a luta pela independência
da Guiné Bissau,Frantz Fanon e a revolução Argelina ou a revolução socialista da
Burkina Faso e seulíder máximo Thomas Sankara, Samora Machel em Moçambique ou
Agostinho Netoem Angola.
No entanto, sobre a África e o povo negro, num geral, achamos
abundantementenas telas hollywoodianas, histórias sobre escravidão, morte e
miséria. Enquanto aburguesia for dona dos meios de comunicação de massa, entre eles
o cinema, continuaráproduzindo e distribuindo seus conteúdos midiáticos de maneira
a convencer apopulação a achar normal vermos moradores de rua negros,algemados,
morando em periferia, ou ocupando postos de trabalhos consideradossubalternos, e
seguiremos a ver nas telonas, apenas conteúdo do interesse da classedominante. Eles
contarão ao povo quem são os heróis e heroínas, os papéis de destaquee protagonismo,
que continuarão sendo interpretados por pessoas de pele branca.
A classe dominante, branca, acredita não ser racializada, na sua percepção,
osoutros povos é que tem raça, entendem-se como aquilo que é natural, divino, se
julgamum povo universal e quem foge ao padrão da branquitude é anormal, exótico,
inferior, eesse entendimento distorcido da realidade faz com que essa classe dominante
branca seache no direito de subjugar e objetificar outros povos, povos não brancos,
logicamente,e é claro que essa visão de mundo vai parar nas telas de cinema mostrando
ao mundo oquanto são belos e morais os valores da branquitude, o quanto a sua cultura
é superior àde outros povos e como tudo que não vem do branco é errado e então
precisa serconsertado.
Por isso é urgente a democratização das mídias, enquanto isso não ocorre o
povonão branco continuará a sofrer essa invasão cultural, fazendo assim com que o
povonegro acredite que cultuar a religião dos seus antepassados é pecado, que sua
maneirade dançar é promiscua, seu corpo está fora do padrão, seu jeito de viver a vida
é feio esem valor e pior que precise se adequar aos modos de viver da branquitude para
que possa ser aceito em sociedade.
Enquanto as mídias não forem democratizadas dependeremos do esforçohercúleo,
coragem e grandeza de cineastas como o veterano Joel Zito e outros da novageração,
como Sophia Fidalgo, Viviane Ferreira e Jeferson De, sem esquecer do pioneiroZózimo
Bulbul (em memória) que sem o mesmo financiamento que as grandes produtoras
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educação para o direito
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recebem, fizeram e fazem das tripas, coração para que possamos conhecerum pouco
das histórias do povo negro, para que o povo negro consiga se reconhecer nastelas de
cinema.
E é só com os meios de produção de cinema sob controle da classe trabalhadora,sob
controle dos trabalhadores de cinema, é que a sétima arte produzirá conteúdo dointeresse
da classe trabalhadora. Só assim o nosso povo poderá conhecer através docinema as
histórias dos seus ancestrais, as nossas e dos nossos verdadeiros heróis, que lutaram
para fazer avançar os nossos direitos e pela nossa liberdade, como: Aquatune, Maria
Mahim, Laudelina de Campos Melo, Dandara e Zumbi dos Palmares, Luiz Gama, André
e Antônio Rebouças, Dragão do Mar, João Cândido, Oswaldão, Marighela, Minervino
de Oliveira, Manuel Balaio e tantos outros.
Só então serão massificadas no seio do povo as histórias de luta por libertaçãodo
povo negro, nosso jovens poderão conhecer além do Superman e outros heróis daMarvel,
também Manuel Balaio e a Balaiada, a Revolta dos Malês entre outras históriasde luta,
além da Liga da Justiça, conhecerão também a República Palmarina, o quilombo mais
famoso, longevo e resistente (durou por volta de cem anos) da nossahistória, a população
com olhos vidrados na telona saberá quem foram seus verdadeirosheróis e heroínas e
que maioria de seus ancestrais já havia se libertado com seuspróprios meios e que o 13
de maio, dia da Lei Aurea, na verdade foi o dia da falsa abolição, saberão aquilo que hoje
só acadêmicos e uma pequena parcela da sociedadeque tem acesso à leitura e ao ensino
de qualidade conseguem saber.
Ainda sobre democratização das mídias, sim, é preciso cada vez mais contar as
histórias do passado e do presente do povo negro, porém sem cair na falácia neoliberalde
que representatividade é tudo, claro que ela é importante, é muito bom para a autoestima
de um jovem negro poder assistir um filme com Lázaro Ramos ou ChristianMalheiros,
ou uma mulher negra assistir Zezé Mota ou Taís Araújo, porémrepresentatividade tem
seus limites, ela por si só não vai acabar com o racismo, como aideologia neoliberal
quer nos fazer acreditar através dos seus meios de comunicação,entre eles o cinema,
diversos filmes apontam que para que o negro consiga o seu lugarao sol, basta que ele
se esforce bastante, trabalhe até mais tarde, acorde mais cedo, nãotire férias, ou seja,
faça sacrifícios desse tipo, abdique de seus momentos de descanso elazer, filmes como:
A Procura da Felicidade, protagonizado pelo ator Will Smith,mostram bem a forte
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educação para o direito
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ideologia neoliberal, um homem negro com um filho aindapequeno que é abandonado
pela esposa, passa por todo tipo de agruras, porém no finaldo filme, consegue vencer, se
tornar uma pessoa de sucesso, no entanto a sociedade estátão embebecida pela ideia de
meritocracia que não consegue perceber a contradição aprópria ideia de meritocracia
no filme, a mesma passa impune a maioria do público, aofinal do filme, depois da
personagem desprender todo seu esforço para vencer na vida,Chris Gardner (Will
Smith) senta-se numa luxuosa mesa de reunião de negócios comoutros vencedores, que
não por acaso são todos brancos, ou seja, quem assisti ao filmenão sabe quanto esforço
aqueles homens brancos fizeram para estar ali, passando a ideiade que aquele lugar de
poder é naturalmente do homem branco enquanto Chris Gardner,homem negro, tem
que fazer por merecer aquele trabalho privilegiado, consegue seulugar de destaque
através de muito esforço, ou seja, venceu por seus méritos, mesmonum filme que quer
vender a ideia de meritocracia o homem negro no poder ainda éuma exceção, visto que,
entre esses homens poderosos do mundo dos negócios, ele era oúnico negro, em outros
termos, disfarçadamente o filme nos diz que a maioria do povonegro não vence na vida
por que é preguiçoso por natureza.
Por isso para que não caiamos na falácia da meritocracia ou darepresentatividade
vazia, com um fim nela mesma, sem levar em conta questõeshistóricas e/ou de classe,
precisamos desenvolver a consciência de que é necessáriotransformar a nossa sociedade
que hoje é pautada pelo lucro, numa sociedade quecoloque o ser humano no centro de
suas ações ou correremos o risco de esquecer que osgrandes empresários donos das
grandes produtoras de cinema são os mega capitalistasde hoje que herdaram sua riqueza
dos seus antepassados escravocratas de ontem queficaram ricos através do sangue e suor
do povo negro escravizado e hoje detém os meiosde produção, entres eles as produções
cinematográficas que é um dos meios por ondeestes convencem os povos oprimidos
do mundo todo que são eles (homens brancos) osbastiões da moral e bons costumes da
humanidade.
Existe uma parte do movimento negro que acredita que é preciso que a
mulhernegra e o homem negro ocupem lugares destacados na sociedade para que a
vida dopovo negro melhore, porém, veja que essa é apenas uma saída individual, e uma
visãoum pouco limitada. Se o sistema capitalista não for derrubado, isso não acontecerá.
Veja este exemplo: Obama, um homem negro na presidência dos EUA, o país mais
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educação para o direito
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poderoso domundo, não conseguiu acabar com o racismo no mundo e nem mesmo em
seu país, vocêque leu até aqui pode estar pensando, será mesmo, duvido? Para você que
não acredita,faça uma rápida pesquisa e vai ver que na época em que Obama, governava
o país apopulação carcerária era a maior do mundo e continua sendo até hoje a maior,
nogoverno Obama, eram 2,2 milhões de presos, sendo que 60% dessa população
carcerariaera de negros e hispânicos, Obama, passou os seus dois mandatos presidenciais
comtropas do exército Norte-americano, invadindo países pobres do terceiro mundo, e
porque ele fez isso? Porque ele, assim como seus antecessores brancos, governou o país
aserviço do capitalismo e não a serviço do povo.
Com isso eu não quero dizer que mulheres e homens negros não devam
procurarum lugar de destaque no mercado de trabalho, não é isso que estou dizendo,
todos nósdevemos lutar por condições melhores de vida, o que quero dizer é que isso por
si sónão acaba com o racismo, pois o racismo é fundamental ao capitalismo brasileiro
e sem a consciência de que o capitalismo brasileiro, depende do racismo para impor a
misériaa nosso povo, não conseguiremos mudar a situação do povo negro, que sofre
com oracismo do dia a dia.
A saída para a emancipação do povo negro, do povo pobre deste país é
coletiva,não basta ocupar os lugares privilegiados que hoje são ocupados por homens
brancos,mas transformar radicalmente o sistema de opressão.
Temos que combater o racismo para ontem e também precisamos derrubar
ocapitalismo brasileiro, claro que o racismo não acabará automaticamente como
numpasse de mágica através de uma transição para uma sociedade socialista, porém será
umgrande passo em direção a esse sonho de viver numa sociedade livre do racismo, já
queno socialismo os meios de produção são coletivos e a economia é pensada não para
olucro, mas para proporcionar ao povo as condições materiais e culturais de existência:
emprego, segurança, habitação, educação e saúde, condições essas que hoje são negadasa
grande parte da população e sobretudo para a população negra.
3. Educação para o direito e o cinema negro
Se a saída para a emancipação do povo negro é coletiva, como acima referido,
impondo-se a transformação radical do sistema de opressão, além da militância política,
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educação para o direito
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que pode abicar em uma efetiva ruptura institucional inaugural de um novo sistema
produtivo, imprescindível se faz o manejo do ordenamento jurídico, ainda que nos
quadrantes da ordem vigente, pois que além dos efeitos concretos das normas legisladas,
das políticas públicas elaboradas e executadas, e das decisões judiciais prolatadas,
os produtos dessas atividades, quais sejam a legislativa, a executiva, e a judicante,
têm consequências pedagógicas importantes na transformação e/ou formação das
subjetividades.
E as atividades legislativa, administrativa e judicante, são permeadas pelo Direito.
Com efeito, os operadores jurídicos, seja com suas atividades ancilares, como
assessores jurídicos parlamentares no processo de criação da lei, de advogados públicos
assessorando os Chefes de Executivo na elaboração e execução de políticas públicas, seja
atuando de forma protagonista, como juízes, promotores e advogados, construindo a
chamada distribuição de justiça por meio das decisões judiciais, devem, para o desiderato
de emancipação do povo negro, do povo pobre, pensar como um negro (Moreira, 2019).
Este pensar como um negro depende da Educação para o Direito, que se realiza
nos cursos de graduação, de especialização, mestrado ou doutorado.
Imprescindível, pois, o estudo da filosofia jurídica,10 que leve à compreensão
científica e crítica dos sistemas normativos.
Os cursos de Direito e afins, em todos os níveis (graduação e pós-graduação),
devem oferecer Filosofia do Direito como matéria obrigatória, a fim de justificar
princípios gerais, axiomas e supostos da Ciência do Direito 11.
A Filosofia do Direito reparte-se, como é sabido, para fins pedagógicos, em
ontologia jurídica,12 epistemologia jurídica,13 e a axiologia14.
Já a Ciência do Direito a ser ministrada nas universidades, em todos os graus,
decorrente da visão filosófica adotada, sob esse viés do pensamento negro,15 que podemos
entender como uma visão própria do Direito crítico, pois fornece o instrumental
necessário à transformação/aperfeiçoamento das subjetividades, refletir-se-á na
formação dos futuros profissionais nas atividades legislativa, executiva e judicante.
A Ciência Jurídica ocupa-se do Direito, tal qual hoje o entendemos, como
fruto das necessidades do então novel sistema econômico capitalista, nascido na Idade
Moderna,16 e forjado na Idade Contemporânea17 por meio de revoluções, guerras civis e
guerras entre Estados, além de ideologias, como a do colonialismo e do neocolonialismo.
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educação para o direito
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Neste processo, a técnica juridicizou a propriedade privada, o contrato e a
autonomia da vontade, configurou o sujeito de direitos, e deu nova roupagem às
ideias de república e democracia, elaborando a ideia de Estado de Direito, depois de
Estado Social e outros institutos e instituições jurídicas, sendo responsável também por
revestir juridicamente o escravagismo, o despotismo, o patriarcalismo, a xenofobia, e o
sistemático desrespeito pelos Direitos Humanos.
Todos esses temas devem ser objeto de reflexão acadêmica, primeiro no campo
da filosofia jurídica, depois da ciência do direito como teoria geral, e finalmente em
cada ramo do direito a ser estudado, como aqui proposto, por uma visão crítica, mais
especificamente, a partir do pensar como um negro.
Pensar o Direito como um negro não significa que, necessariamente, o professor
e o aprendiz devam ser negros. É preciso compreender o que vem a ser o lugar de fala18.
Não é possível deixar de tratar de tema tão caro à cidadania e ao Direito quanto o
antirracismo, por ser o professor pessoa branca, ocupando um lugar de sujeito universal,
e sem se sentir racializado. É preciso que fale de sua percepção, e n’um movimento
dialético, também aprenda com outros professores e alunos negros (Pinheiro, 2012).
Aliás, esse aprendizado pode ser também do próprio aluno negro, pois muitos
internalizam e reproduzem o racismo contra eles mesmos, (Pinheiro 2012), conforme
já demonstrou um clássico do antirracismo. (Fanon, 2008)
E o cinema negro pode contribuir decisivamente para auxiliar a educação para o
direito de forma crítica, pois que a sétima arte assim se qualifica não apenas em razão do
protagonismo de negras e negros como diretores, atores e atrizes, mas também porque
o negro se consubstancia como um sujeito histórico 19.
Assim, uma boa introdução sobre o tema em aula de Filosofia Jurídica, base para
a compreensão crítica do estudo científico de todos os ramos do Direito, abordando o
racismo e o antirracismo, assim como a internalização e reprodução do primeiro por
pessoas negras, em prejuízo da própria cidadania (direito a ter direitos), é a veiculação
do filme Cores e Botas20 para ulterior discussão e reflexão com a classe.
Outras películas terão importância para o desbravamento posterior, por
exemplo, do Direito Constitucional e Direitos Humanos das minorias, como O dia de
Jerusa, porquanto é possível refletir sobre a discriminação múltipla em nossa sociedade,
em prejuízo do princípio constitucional da igualdade, uma vez que é abordada, não
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apenas a discriminação em razão da raça, mas também de gênero, vale dizer da mulher
negra, e ainda do etarismo21. A filosofia do direito, ministrada com o instrumental de
veiculação do cinema negro, pode dar a direção, também, ao estudo do direito processual
penal, com a exibição do filme Preto no Branco, objetivando discutir como o garantismo,
na prática, nem sempre alcança as pessoas negras22.
Dado o limitado espaço próprio de um artigo científico, é de se sugerir,
perfunctoriamente, apenas mais alguns filmes do cinema negro objetivando a educação
jurídica crítica e antirracista.
O primeiro, para discussão sobre o trinômio democracia-autoritarismo-racismo,
e de como esses conceitos traduzem situações limites que influenciam ou determinam a
vida das pessoas, é imprescindível que o professor discuta e reflita com seus alunos com
base no documentário Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil 23.
O segundo é M8 – Quando a morte socorre a vida, propício à discussão das ações
afirmativas, especialmente o sistema de cotas para ingresso em nossas universidades e
instituições, e é serviente também, à percepção do desprezo social pelos corpos negros,
e pelas religiões de matriz africana, 24.
Por fim, o documentário Abolição 25 serve ao questionamento da interpretação
que se tem conferido aos princípios da legalidade e da igualdade quando se trata de suas
incidências em casos jurídicos envolvendo racismo e ações afirmativas.
Em verdade, a sociedade liberal de livres e iguais decorre do sistema capitalista,
que necessita de mão de obra livre para vender a força de trabalho em suposto estado
de igualdade com o capitalista que o contrata, bem como permitir que as mercadorias
sejam trocadas em larga escala no mercado26.
A sociedade de livres e iguais depende da legalidade como instrumento técnico
para funcionar,27, mas no Brasil, como nos demais países de capitalismo periférico
dependente, a legalidade não funciona apenas como neutralização da desigualdade por
meio da estabilização jurídica da propriedade privada ou do contrato, mas serve como
instrumento jurídico de favorecimentos e privilégios,28 como o dos brancos.
Por isso, em acréscimo à compreensão hermenêutica de quem pensa como um
negro, para quem não basta apenas interpretar o princípio da igualdade como sendo
substancial (ou material), mas também como igualdade relacional,29 parece importante
a ideia de neutralidade aparente.
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educação para o direito
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A expressão não decorre da Convenção Internacional sobre a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação Racial, que tem status de norma supralegal, pois que
ingressou em nosso ordenamento jurídico ainda sob a égide da Constituição pretérita.
Alvissareira, no entanto, é a inserção, em nossa ordem jurídica, por meio do
Decreto n.º 10.932, de 10 de janeiro de 2022, da Convenção Interamericana contra o
Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
Primeiro, porquanto, por força do § 3º, do artigo 5º, da Constituição Federal,
insere-se no ordenamento jurídico brasileiro equiparando-se às emendas constitucionais.
Assim, é possível servir como paradigma para controle de convencionalidade.
Por fim, o documento normativo traz os conceitos de discriminação indireta,30
discriminação múltipla ou agravada,31 e prevê as ações afirmativas32 (agora com o status
de norma constitucional, condicionando materialmente as demais espécies normativas)
como uma obrigação dos Estados-Partes (artigo 5).
É no seu artigo 1.2 que surge a ideia de neutralidade aparente, como sendo
dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro, que acaba por acarretar uma
desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas
razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem. É ela que caracteriza
a discriminação racial indireta, e que, ao lado da igualdade relacional, pode servir aos
processos estruturais33 que objetivem a obrigação de elaboração e execução de ações
afirmativas.
Assim, a educação para o direito, ainda que nos quadrantes da ordem vigente,
com base no cinema negro, poderá ser um importante instrumento de consequências
pedagógicas na transformação e/ou formação das subjetividades antirracistas.
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Notas
1 O Dogma 95 recebe esse nome por ter sido redigido em 1995. Suas regras “dogmáticas” estão articuladas
em dez pontos: 1. As filmagens devem ser feitas no local. Não podem ser usados acessórios ou cenografia
(se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre).
2. O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá
ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena). 3. A câmera deve ser usada na mão. São
consentidos todos os movimentos - ou a imobilidade - devidos aos movimentos do corpo. (O filme não
deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem
lugar). 4. O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial. (Se há pouca luz, a cena
deve ser cortada, ou então, pode-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera). 5. São proibidos os
truques fotográficos e filtros. 6. O filme não deve conter ação “superficial”. (Homicídios, Armas etc. não
podem ocorrer). 7. São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (O filme ocorre na época
atual). 8. São inaceitáveis os filmes de gênero. 9. O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm,
padrão, com formato de tela 4:3. (A regra foi abrandada para permitir a realização de produções de baixo
orçamento). 10. O nome do diretor não deve figurar nos créditos. Os dogmas ficaram conhecidos como
“voto de castidade”.
2 “Seja como for, o manifesto lançado em 2000 ensejou uma surpreendente discussão sobre a possibilidadede um cinema brasileiro feito por negros, sem incorrer nos discursos – panfletários e/ou de vitimização – típicos dos movimentos antirracistas. De forma pragmática, cavou uma agenda mínima para
se pensar um cinema negro nacional. Nos anos seguintes, Jeferson De e os realizadores afro-brasileiros
que se aglutinavam em torno do movimento passaram a se encontrar frequentemente. Criaram, então,
um nome para o grupo, Cinema Feijoada, e mantiveram um site na internet até 2004 (com a biografia,
a filmografia, fotos de cena, making off e informações sobre os novos projetos dos integrantes do grupo). Também promoveram mostras e debates sobre as imagens e representações do negro no cinema”.
CARVALHO, Noel dos Santos &DOMINGUES, Petrônio. Dogma feijoada – a invenção do cinema negro
brasileiro. In Revista Brasileira de Ciências Sociais, Volume 33, número 96/2018, p.6).
3 Promulgada no Brasil pelo Decreto 10.932 de 10 de janeiro de 2022.
4 As formas de discriminar podem ser direta e indireta. No primeiro caso, identifica-se o ato discriminatório e a pessoa do discriminador. O proprietário pode impedir o acesso de negros ao restaurante recusando-se a servi-los. É uma discriminação direta. Tanto ato quanto o agente são identificáveis. Por essa
razão vincula-se à concepção individual. Discriminação indireta prescinde tanto do ato quanto da pessoa
do discriminador. A forma indireta está na complexidade da relação social historicamente construída
desde os tempos da segregação racista mantida por resiliência na cultura após a extinção das normas de
origem. Na discriminação indireta o agente discriminador é difuso; verificável pelo resultado social da
exclusão injustificável mantida por gerações. No Brasil, discriminação direta é crime. Contudo, o racismo
que realmente dirige espaços de poder em nossa sociedade vincula-se à dimensão transindividual sob a
forma de discriminação indireta, demandando mecanismos próprios de enfrentamento.
5 Concordamos com Muniz Sodré quanto à vacuidade da expressão quando estamos diante do desafio de
elaborar estratégias de enfrentamento da forma furtiva como o racismo se apresenta em nossa formação
social. SODRÉ, Moniz. O Fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional. Petrópolis: Vozes, 2023.
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6 Cinco Ações Civis Públicas distribuídas respectivamente nas 12ª, 13ª, 14ª, 15ª e 16ª Varas do Trabalho
do Distrito Federal. Segue, respectivamente, o nº dos processos 00936-2005-012-10-00-9; 00952-2005
013-10-00-8, 00928-2005-014-10-00-5, 00943-2005-015-10-00-0, 00930-2005-016-10-00-7. Todas indeferidas em primeiro com indeferimento mantido em segundo grau de jurisdição. Segue os números das
ações na primeira instância trabalhista.
7 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. Recurso Ordinário n. 00963-2005-012-1000-9. Relator para o acórdão Juiz Revisor Oswaldo Florentino Neme Junior; Órgão Julgador: Primeira
Turma; Recorrente: Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Brasília; Recorridos: HSBC Bank Brasil S. A. – Banco Múltiplo e Ministério Público do Trabalho. Data de julgamento:
21.032007; Data de publicação: 30.03.207.
8 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de Instrumento no Recurso de Revista n. 009524003.2005.5.10.0013. Relator Ministro Walmir de Oliveira da Costa; Agravante: Ministério Público do Trabalho; Agravados: Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Brasília e Itaú Unibanco
S/A; Órgão julgador: Primeira Turma; Data de julgamento: 08.04.2015.
9 Nos termos da Convenção, considera-se intolerância, “o ato ou conjunto de atos ou manifestações que
denotam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas
por serem diferentes ou contrárias. Pode manifestar-se como marginalização e a exclusão de grupos em
condições de vulnerabilidade da participação em qualquer esfera da vida pública ou privada como violência contra esses grupos” (Artigo 1, nº 6).
10 Todas as ciências estão em estreito contato com a filosofia, uma vez que possuem princípios gerais,
axiomas e supostos que não entram dentro do objeto que investigam, daí a necessidade de uma consideração filosófica que permita justificá-los (nota de rodapé 31 maria helena diniz – p.12.
11 Há quem entenda não existir uma Ciência Jurídica, mas simples técnica jurídica.
Autorizada doutrina explica essa compreensão: “Para uns a Ciência do Direito não é, na realidade, uma
ciência, porque o seu objeto (o Direito) modifica-se no tempo e no espaço e essa mutabilidade impede ao
jurista a exatidão na construção científica, ao passo que o naturalista tem diante de si um objeto permanente ou invariável, que lhe permite fazer verificações, experiências e corrigir os erros que, porventura,
tiver cometido, Para outros, que constituem a maioria, é a Jurisprudência uma ciência.” DINIZ, Maria
Helena. A Ciência Jurídica. São Paulo. Editora Resenha Universitária. 1982, p.10
12 A ontologia objetiva capturar a essência do Direito, investigando o que é o Direito para defini-lo. Ibid,
p. 11, nota de rodapé– nota 30
13 A epistemologia, ou gnoseologia, estuda o problema do conhecimento do Direito, isto é, tem a incumbência de estudar os pressupostos, os caracteres do objeto, o método do saber científico e de verificar
suas relações e princípios, sendo, a epistemologia, nesse sentido, a Teoria da Ciência Jurídica, tendo por
objetivo o estudo dos problemas do objeto e método da Jurisprudência, sua posição no quadro das ciências e suas relações com ciências afins.Ibid, p.11 Nota de rodapé,– nota 30.
14 A axiologia Jurídica se ocupa dos valores do Direito, indicando suas finalidades, cuidando do problema
da justiça e demais valores que o ordenamento jurídico deve perseguir.Ibid, nota de rodapé p. 12 – nota 31.
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15 Pensar como um negro significa reconhecer as relações entre o privilégio branco e a opressão negra.
Um jurista que pensa como um negro precisa interpretar a igualdade tendo em vista as relações de poder
que estruturam os lugares sociais dos diferentes grupos raciais. Isso significa que ele deverá rejeitar a
afirmação de que a raça não possui relevância nos processos de estratificação. Argumentos dessa natureza
encobrem o fato de que a raça designa uma relação de poder e estabelece o lugar que negros e brancos
ocupam dentro da sociedade. É por meio dela que os lugares sociais são prescritos, é por meio dela que os
sujeitos sociais são construídos. Infelizmente, esse processo permanece encoberto por uma epistemologia
da ignorância, elemento central da ideologia racial brasileira. MOREIRA, Op. Cit, p.287.
16 A trajetória da filosofia do direito moderno é a saída do direito como instância política, da vontade,
do arbítrio, para a instância da técnica, da estabilidade, onde a legalidade se assenta em si mesma, e não
mais na sua criação e manutenção constante por parte da política (...) A modernidade eleva a legalidade à
expressão de uma racionalidade universal. MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito
Brasileiro – 3ª edição -São Paulo: Quartier Latin. 2019, p. 50.
17 A partir da plenitude da lógica capitalista, e a partir do momento em que a produção coordena a
circulação mercantil, o Estado perde seu caráter ambíguo de resquício de antigos privilégios, O direito,
na passagem da modernidade para a contemporaneidade, deixa de ser o princípio filosófico ou demanda
econômica para tornar-se o direito burguês, tendo em vista que os Estados, com as revoluções liberais,
são a partir de então Estados burgueses. A igualdade e a liberdade de negócio até então privilégio e concessão, passam a se encontrar na estabilidade da forma da lei. Abre-se o mundo do positivismo jurídico. Já
não mais é necessário afirmar um mundo burguês numa pretensão de jusnaturalismo. O Estado burguês
dá o seu próprio direito positivo burguês .Ibid, p. 33.
18 É interessante a alegoria para fazer compreender o que vem a ser o lugar de fala, explicada em livro
sobre antirracismo na educação, que aqui sintetizamos da seguinte forma:podemos imaginar um ônibus
onde uma pessoa é assaltada, e a seguir uma emissora de televisão faz reportagem entrevistando a vítima,
o assaltante, e as testemunhas presenciais. Cada um falará sobre o que viu, ouviu e sentiu. E nenhuma
dessas pessoas conseguirá falar pela outra, pois ninguém conseguirá sentir o que a vítima sentiu no momento do ato ilícito, assim como ela não conseguirá se colocar no lugar do assaltante, que pode até ter
tido motivos moral e/ou juridicamente apreciáveis, e nem esses dois protagonistas conseguirão enxergar
como as testemunhas que presenciaram o assalto. Cada um poderá falar sobre o mesmo fato ou fenômeno, conforme sua posição. PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Como ser um educador antirracista. São
Paulo: Planeta do Brasil, 2023, p. 62.
19 Vê -se aí de forma cristalina e inequívoca a dimensão pedagógica do cinema negro. No projeto cinematográfico que o negro vai para além da posição de protagonista, sendo sujeito histórico, na medida em
que reescreve com objetiva a sua própria representação, inspirando assim as minorias como um todo na
luta contra a euroheteronormatividade que foi dada pela imagética de dominação do euro-hétero-macho-autoritário. PRUDENTE, Celso Luiz & SILVA, Dacirlene Célia (org.) A dimensão pedagógica do
cinema negro: uma arte ontológica de afirmação positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio, in A dimensão
pedagógica do cinema negro – aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: o
olhar de Celso Prudente, pp. 59/76.
20 Os autores deste artigo assistiram juntos ao filme, para debates e reflexões, no dia 6/07/2023, , no link
https://www.youtub.com/watch?v=L18EYEygU0o. Dir: Juliana Vicente. Ano: 2010. Duração: 15’50”.
279
educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
Formato: 35mm. País: Brasil. Idioma: Português. Com: JhenyferLauren, Luciano Quirino, Dani Ornellas, Bruno Lourenço.SINOPSE - Joana tem um sonho comum a muitas meninas dos anos 80: ser
Paquita. Sua família é bem-sucedida e a apoia em seu sonho. Porém, Joana é negra, e nunca se viu uma
paquita negra no programa da Xuxa.
21 Os autores deste artigo assistiram em conjunto ao filme, para debates e reflexões, no dia 6/07/2023,
no link https://youtube.com/results?search_query=o+dia+de+jerusaDiretora: Viviane Ferreira . Ano
2014. Duração: 20 min. País: Brasil. Idioma: Português. Com: Léa Garcia, Débora Maçal, Adriana Paixão, Dirce Thomaz, Flavia Rosa, Edson Montenegro. SINOPSE - O filme conta o encontro da sensitiva
Silvia, uma jovem pesquisadora de mercado que enfrenta as agruras do subemprego enquanto aguarda o
resultado de um concurso público, e da graciosa Jerusa, uma senhora de 77 anos, testemunha ocular do
cotidiano vivido no bairro do Bixiga, recheado de memórias ancestrais. No dia do aniversário de Jerusa,
enquanto espera sua família para comemorar, o encontro entre suas memórias e a mediunidade de Silvia
lhes proporciona transitar por tempos e realidades comuns às suas ancestralidades.
22 Os autores deste artigo assistiram em conjunto ao filme, para debates e reflexões, no dia 6/07/2023,
no link htpps://www.youtube.com/watch?v=rW5DwuRQVuY .Diretor: Valter Rege. Ano 2017. Duração: 15 minutos. País: Brasil. Idioma: Português. Com Maria Bopp, Marcos Oliveira, Guilherme
Lopes, Taiguara Nazareth, Carolina Holanda.SINOPSE - Roberto Carlos é um jovem negro de 20 anos
que está correndo para pegar o ônibus quando é abordado por policiais e levado para delegacia. Uma
moça o acusa de roubar sua bolsa, mas ele jura inocência.
23 Os autores deste artigo assistiram em conjunto ao filme, para debates e reflexões, no dia 6/07/2023,
no link https://www.youtube.com.watch?v=7wHNxOohoPA Diretor: Belisário Franca. Ano 2016. Duração: 1h 20 m. País: Brasil. Idioma: Português. Com Sidney Aguiar Filho, Aloísio da Silva, Argemiro
Santos, Maria da Glória, Cirece Bittencourt, Reginaldo Alves Almeida. SINOPSE - A partir da descoberta
de tijolos marcados com suásticas nazistas em uma fazenda no interior de São Paulo, o filme acompanha
a investigação do historiador Sidney Aguilar e a descoberta de um fato assustador: durante os anos 1930,
50 meninos negros e mulatos foram levados de um orfanato no Rio de Janeiro para a fazenda onde os
tijolos foram encontrados.
24 Os autores deste artigo assistiram em conjunto ao filme, para debates e reflexões, no dia 6/07/2023, no
linkhttps://www.youtube.com/watch?v=v=uk_rvigyFiQ&t=2s . Diretor: Jeferson De. Ano: 2019. Duração: 1h 24m. País: Brasil. Idioma: Português. Com Juan Paiva Maurício, Raphael Logam, Giulia Gaioso
Suzana, Mariana Nunes, Bruno Peixoto Domingos, Lázaro Ramos, e Zezé Mota. SINOPSE - Maurício
começa a estudar na renomada Universidade Federal de Medicina em razão de aprovação pelo sistema
de cotas. Em sua primeira aula de anatomia, ele conhece M8, o cadáver que servirá de estudo para ele e
os amigos. Durante o semestre, o mistério da identidade do corpo só pode ser desvendado depois que ele
enfrentar suas próprias angústias.
25 Os autores deste artigo assistiram em conjunto ao filme, para debates e reflexões, no dia 23/08/2023,
no link https://www.facebook.com/watch/?v=755110381347975, Diretor: Zózimo Bulbul. Ano: 1988.
Documentário. Duração: 150 min.. País: Brasil. Idioma: português. SINOPSE - Cem anos após a assinatura da Lei Áurea, que aboliu (pelo menos em lei), o regime da escravatura no Brasil, pairam no ar inúmeras
interrogações sobre o que foi feito do negro durante esse tempo em que pouco ou nada se falou desse
280
educação para o direito
Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento
tema. E quando se falou, foi menos para resolver, que para apaziguar contradições antagônicas acumuladas durante anos. (ALSN/DFB-LM, citado no site da Cinemateca Brasileira).
26 Tal qual um grande mercado, no qual todos são compradores e vendedores e não pessoas com uma
história e uma condição, ou com necessidades, um mercado no qual importa mais a mercadoria que as
pessoas que lá se encontram, o direito também iguala, na universalidade da técnica legislativa, as classes
sociais, as diferenças sociais e individuais, as expectativas e necessidades diversas. O direito acaba, de
certo modo, por fazer com que a técnica universal seja a técnica do contrato capitalista. MASCARO,
Op.cit., p. 54.
27 O capitalismo, assim, é o modo econômico que fará da igualdade e da liberdade sustentos da circulação
econômica livre entre iguais, a partir daí instaurando-se a legalidade como mediação que estabelece esta
igualdade formal. Ibid, p. 73.
28 A legalidade, como instância técnica favorável a uma burguesia nacional nas suas relações produtivas
e mercantis, no caso brasileiro encontra não apenas a estabilização jurídica da propriedade privada ou do
contrato, mas, para além disso, encontra a instrumentalização dos mios jurídicos como forma de favorecimento de relações de fomento e privilégio, resultantes desta interdependência do Estado para com o
capital interno e externo. Ibid, p. 96.
29 Mais do que a criação de critérios distributivos justos, a igualdade no mundo atual deve estar preocupada com relações sociais igualitárias. O conceito de igualdade social ou relacional está baseado na ideia
de que uma cultura democrática precisa eliminar relações hierárquicas responsáveis pela marginalização
de grupos sociais. Essas relações são estabelecidas a partir das disparidades de status cultural entre os diversos grupos sociais, sendo que elas podem ser vistas como exemplos paradigmáticos tendo em vista a
relevância social da raça nas democracias liberais. MOREIRA, Op. Cit., p. 249.
30 Cf.artigo 1.2 da Convenção Interamericana de contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas
Correlatas de Intolerância.
31 Cf. artigo 1.3.da Convenção Interamericana de contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas
Correlatas de Intolerância.
32 Cf. artigo 1.5. da Convenção Interamericana de contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas
Correlatas de Intolerância.
33 O C. Supremo Tribunal Federal já trata de processos estruturais, fixando o Tema698. Pesquisa
em . https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur484369/false, no dia 28/08/23, às 22:07.
281
Batucada de Nego Véio: memórias do samba
e masculinidades na zona leste de São Paulo
Fernando de Paula Manelichi1
Elizabete Franco Cruz2
Introdução
Este artigo se origina da dissertação Batucada de Nego Véio: memórias do samba e
masculinidades na zona leste de São Paulo, desenvolvida pelo primeiro autor no Programa
de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes Ciências
e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação de Elizabete
Franco Cruz segunda autora neste artigo. Apesar de ser um trabalho acadêmico,
este texto é mais do que isso, é fruto de sua vivência como homem negro periférico
envolvido visceralmente com a cultura do samba na Zona Leste de São Paulo, que se
propôs a estudar e pensar a experiência de um grupo de homens negros que participam
da Velha Guarda de Bambas, Batucada de Nego Véio nosubúrbio de São Paulo.
O coletivo é formado em sua maioria por homens, baluartes do samba de
São Paulo, que tiveram participação na escola de samba Nenê de Vila Matilde e, com
mudanças no carnaval paulistano, não encontraram mais seu espaço de pertencimento
1 Batuqueiro, bacharel em obstetrícia, mestre em ciências pelo PROMUSPP/EACH/USP - Programa de
Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes Ciências e Humanidades
da Universidade de São Paulo
2 Psicóloga, mestre em psicologia social e doutora em educação, professora do curso de obstetrícia e do
PROMUSPP/EACH/USP Programa de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política da
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.
282
batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
junto à escola. Em 2018, formaram um grupo à beira de um campo de futebol da várzea
e, a partir dali, preservam e transmitem a cultura do samba paulistano na periferia da
cidade.
Com o objetivo de registrar as memórias do grupo e compreender os sentidos
das masculinidades construídas neste cenário, realizamos uma pesquisa qualitativa,
entrevistando nove homens negros com faixa etária entre 55 a 77 anos. As entrevistas
foram transcritas e analisadas com inspiração nos procedimentos descritos por Spink
et al. (2010), sendo que vários eixos temáticos emergiram nos diálogos estabelecidos
com os participantes, tais como a relação com o samba, a escola, a família, a violência e a
masculinidade. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética da Escola de Artes, Ciências
e Humanidades (EACH) da USP.
O objetivo deste artigo é apresentar alguns elementos da pesquisa – especialmente
o registro da memória do grupo, que é importante como herança cultural do povo e
mais especificamente do homem negro em São Paulo – e uma reflexão sobre resistências
produzidas neste contexto.
A figura do nego véio, que através da oralidade conta suas memórias de
construção de uma identidade de negritude brasileira, é o ponto central desse estudo.
Nessa construção, o contato com a terra, ritmos, cantos, danças, culinária e território
configuram valores e sentidos construídos pelo negro em sua diáspora, a fim de se
encontrar enquanto sujeito.
Nesta linha de raciocínio, afirma Ribeiro (1995, p. 114):
Os negros do Brasil, trazidos principalmente da costa ocidental da África,
foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais que falavam
dialetos e línguas não inteligíveis uns aos outros. A África era, então, como
ainda hoje o é, em larga medida, uma imensa Babel de línguas. Embora
mais homogêneos no plano da cultura, os africanos variavam também,
largamente essa esfera. Tudo isso fazia com que a uniformidade racial não
correspondesse a uma unidade linguística e cultural.
De acordo com Mbembe (2013), em uma diáspora forçada pelo escravismo, o
indivíduo trazido de África para o Brasil vê seus signos, valores e identidades sofrerem
inúmeras tentativas de apagamento nesse percurso. Em um novo mundo, em um novo
283
batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
contexto, a necessidade de reinvenção de seu status e dos seus signos tem dificuldade
para ser, uma vez que sua memória também foi abalada por esse processo, que tem a
palavra como força criadora de sua significação:
Ainda de acordo com Achile Mbembé (2013), um caminho de afirmação social e
cultural, para o corpo negro, é a reunião de indivíduos em corpos coletivos, buscando a
formação de comunidades identitárias capazes de ressignificar suas histórias, memórias
e projetar novos caminhos e subjetividades, coletivas e individuais, baseados em suas
tradições. Segundo o autor:
A defesa da humanidade do negro está quase sempre ligada à reivindicação
do caráter específico da raça e das suas tradições; dos seus costumes e da
sua história. Toda a linguagem se desenvolve ao longo deste limite, do qual
decorrem todas as representações do que é negro. Mbembé (2013, p. 159):
Uma vez que o registro étnico historiográfico do indivíduo escravizado é de
posse de quem o escraviza, a manutenção da memória e da oralidade se transforma
em formas de resistências ao se reinventar e sobreviver no novo mundo. A criação de
uma comunidade identitária com quem sofre essas degradações lado a lado é a maneira
espontânea de se manter uma condição também de futuro.
Ribeiro (1995) diz que a assimilação da língua do opressor possibilita a criação de
uma identidade cultural, uma vez que elementos mantidos nas memórias do escravizado
contribuem para a criação de uma cultura que resume a vida na colônia como nem
européia, nem africana, mas brasileira. Nesse amalgamento linguístico, as expressões
que servem como ensejos de liberdade para esses povos se manifestam em formas de
ritos, movimentos corporais, gostos e sentimentos que remetem à liberdade. Sobre a
memória, Ribeiro (1995, p. 116) afirma:
Concentrando-se em grandes massas nas áreas de atividade mercantil
mais intensa, onde o índio escasseava cada vez mais, o negro exercia
um papel decisivo na formação da sociedade local. Seria, por excelência,
o agente de europeização que difundiria a língua do colonizador e que
ensinaria aos escravos recém chegados as técnicas de trabalho, as normas e
valores próprios da subcultura a que se via incorporado. Consegue, ainda
assim, exercer influência, seja emprestando dengues ao falar lusitano, seja
284
batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
impregnando todo o seu contexto com o pouco que pôde preservar da
herança cultural africana. Como esta não podia expressar-se nas formas
de adaptação – por diferir, consideravelmente, no plano ecológico e
tecnológico, dos modos de prover a substância na África -, nem tampouco
nos modos de associação – por estarem rigidamente prescritos pela
estrutura da colônia como sociedade estratificada, a que se incorporava na
condição de escravo -, sobreviveria principalmente no plano ideológico,
porque ele era mais recôndito e próprio. Quer dizer, nas crenças religiosas
e nas práticas mágicas, a que o negro se apegava no esforço ingente por
consolar-se do seu destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso
em que submergia. Junto com esses valores espirituais, os negros retêm,
no mais recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e musicais, como
saberes e gostos culinários.
Retomando a visão de Mbembe (2013), a experiência da memória negra
diaspórica não pode ser vista como única e linear, pois ela se molda de acordo com
o tempo, com o espaço e com as condições gerais que as fazem se construir. Nesse
contexto, comunidades identitárias distintas produzem sentidos distintos para suas
experiências de vida, pois:
[…] decerto são complexas as distâncias, mas também os parentescos
entre a memória enquanto fenômeno sociocultural e a história enquanto
epistemologia. Manifestam-se interferências entre o discurso histórico e
o discurso da memória. […] Esta maneira de definir o sujeito apresenta
dificuldades evidentes. As formas negras de mobilização da memória da
colônia variam segundo as épocas, aquilo que está em jogo e as situações.
Quanto aos modos de representação da experiência colonial propriamente
dita, vão desde a comemoração ativa ao esquecimento, passando pela
nostalgia, pela ficção, pelo recalcamento, pela amnésia e pela reapropriação,
até diversas formas de instrumentalização do passado nas lutas sociais em
curso. Mbembe (2013, p. 179)
Trazendo esse contexto histórico da relação do negro com a memória e com a
oralidade, tradicionalmente, a cultura sambística do homem negro da Zona Leste de São
285
batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
Paulo se mantém viva na transmissão da memória e dos costumes característicos de seus
remanescentes mais antigos, que passam suas questões socioculturais para as gerações mais
novas de forma oral e artística. A partir desse contato, através de símbolos, a comunidade
formada pela interação dessas gerações cria os valores do presente e do futuro:
Contrariamente às leituras que instrumentalizam o passado, defendo que a
memória, tal como a recordação, a nostalgia ou o esquecimento, se constrói
antes de tudo por imagens psíquicas entrelaçadas. É sob essa forma que ela
surge no campo simbólico, e até político, ou ainda no campo da representação.
O seu conteúdo são imagens de experiências primordiais e originárias que
ocorreram no passado, e das quais não fomos necessariamente testemunhas.
O importante na memória, na recordação ou no esquecimento, não é tanto
a verdade como jogo de símbolos e a sua circulação, os desvios, as mentiras,
as dificuldades de articulação, os pequenos atos falhados e os lapsos, em
suma, a resistência ao reconhecimento. Enquanto forças complexas de
representação, a memória, a lembrança e o esquecimento são, por outras
palavras, atos sintomáticos. Estes atos, só tem sentido em relação a um
segredo que não o é verdadeiramente, mas que, no entanto, nos recusamos
a confessar. É nisto que eles provêm de uma operação física e de uma crítica
do tempo. (MBEMBÉ; 2013, p. 180)
Sendo a oralidade o vetor da transmissão de valores do passado que ressignificam
o futuro, os conhecimentos transgeracionais do signo negro criado em solo brasileiro
se traduzem muitas vezes em forma de arte, que, além de ensinar, trazem orgulho e
dignidade de ser. Trazemos para reflexão um samba composto por Aldir Blanc, Luiz
Carlos da Vila e Moacyr Luz (2003), intitulado “Cabô meu pai”:
O pai me disse que a tradição é lanterna/Vem do ancestral e é moderna/
Bem mais que o modernoso/E aí é o meu coração que governa/Na treva
é a luz mais eterna/O todo mais poderoso/Também me disse com aquele
jeito orgulhoso/Que o samba é mais que formoso/Que ninguém lhe passa a
perna/É à marola que vira o mar furioso/Netuno misterioso o tesouro das
cavernas/A jura é pra quem rezar/A reza é pra quem jurar/A alma é pra
sempre do criador/Maré muda com o luar/Futuro é pra quem lembrar/Se é
isso que o pai ensinou cabo/Cabô, meu pai, cabô.
286
batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
Na canção, através do contato entre gerações, o pai passa para o filho o sentido
expresso na tradição como uma luz que tem a capacidade de guiar, de conduzir. Essa
luz vem do ancestral, e não deixa de ser moderna, em uma sugestão de que seja mais
moderna do que a própria criação da modernidade, trançada por valores capitalistas e
globalizados, provenientes de culturas marcadas pela força da branquitude.
Pensar a respeito desse recorte do homem marcado pela transmissão dos
valores e saberes através de memória e da oralidade é pensar também os seus espaços de
socializações, onde o encontro possa resultar nessa continuidade de identidade. Frank
Ribart (2002, p. 3) escreveu sobre este tema:
[…] o carnaval enquanto contexto de interação generalizada da sociedade
(mesmo se esta dimensão sofre variações segundo as temporalidades)
induz significados e implicações particulares para os sujeitos sociais que
participam das manifestações culturais negras, em relação, por exemplo, a
outros contextos: bairro, comunidade.
Segundo Rodrigues (2010, p. 12), “[…] uma sociedade ligada à oralidade, valoriza
a vivência coletiva […]” e é esse o ambiente característico dos encontros e reuniões do
grupo Batucada de Nego Véio, o espaço de encontro, o lugar de criação coletiva, da
interação que torna legítima uma expressão, que cria um signo identitário capaz de
reunir diversidades em uma mesma unidade.
A Batucada de Nego Véio
Depois que o visual virou quesito/Na concepção desses sambeiros/O
samba perdeu a sua pujança/Ao curvar-se à circunstância/Imposta pelo
dinheiro/E o samba que nasceu menino pobre/Agora se veste de nobre/No
desfile principal/Onde o mercenarismo impõe a sua gana/E o sambista que
não tem grana/Não brinca mais o carnaval/Ai que saudade que eu tenho/
Das fantasias de cetim/O samba hoje é luxo importado/Organdi, alta
costura/Com luxuosos bordados/E o sambista que mal ganha pra viver/
Até mesmo o desfile/Lhe tiraram o prazer de ver. (Samba dos compositores
Neném e Pintado, apresentado no disco “Pé no chão” de 1978 da cantora
Beth Carvalho)
287
batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
Em um universo social no qual quase tudo que lhe identifica lhe foi tomado,
pouco a pouco o homem negro, motivado principalmente por suas expressões religiosas,
artísticas e culturais passa a se reencontrar em comunidades identitárias que exercem
papel fundamental em seu auto reconhecimento enquanto sujeito. Em uma abordagem
histórica, Frank Ribart (2002, p. 3), afirma que:
A possibilidade de grupos de negros, mais ou menos importantes e
organizados, desfilar e ocupar a rua, fora do contexto de manifestações
ligadas ao calendário católico (Bonfim, ranchos, reisados), surge, é claro,
pelo investimento e pela conquista dos espaços por parte da festa negra que
teve a capacidade de impor, de uma certa maneira, a sua própria definição da
natureza e do estatuto ligado ao que representa tal momento de celebração
coletiva.
Trazendo essa definição e abordagem para o século XX, de acordo com relatos
de antigos participantes da Escola de Samba Nenê de Vila Matilde e de Seu Nenê, um
samba que nos tempos que a escola iniciava sua organização, ainda no Largo do Peixe,
empolgava os ânimos da comunidade, era um samba de Assis Valente e Ataulfo Alves
(1942) que narrava o sentimento de pertencimento cultural relacionado ao samba
(Silva, 2000):
Oi, batuca no chão sem pena/Batuca no chão sem dó/Batuca no chão,
morena/Que o chão é o povo que vira pó/Aí, morena, o chão é o povo que
vira pó/Podem me deixar sem luz, mas sem samba, não senhor/É o samba
que traduz, meu prazer e minha dor/Mesmo assim você condena/Minha
raça bronzeada, todo o mal da cor, ó morena, é gostar da batucada.
Um processo permanente, que vem alimentando o extermínio do povo negro
de forma complexa e estrutural, é observado historicamente através da apropriação
cultural. De acordo com Rodney Willian (2009), não conseguimos conceitualizar esse
termo se não buscarmos entender a diversidade entre as distintas culturas materiais e
imateriais. Segundo o autor, uma série de características particulares às comunidades
identitárias, que se baseiam em culturas imateriais é observada no uso de símbolos,
expressões, condutas e saberes incompreensíveis para indivíduos provenientes das
288
batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
culturas que se baseiam em características materiais. Desse modo, o conflito surge do
uso de elementos culturais originários de uma cultura por indivíduos provenientes de
outro processo de construção biopsicossocial.
Nesse cenário conflituoso, o homem negro é historicamente destituído dos
lugares e posições a ele atribuídos culturalmente, processo que ocorre em razão de
indivíduos que se apropriam de suas manifestações, enraizados pelas características dos
interesses materiais intrínsecos às suasconstruções pessoais e coletivas. Um samba em
forma de crônica composto por Nei Lopes e Renato Barbosa Silva, gravado por João
Nogueira no álbum Espelho de 1977, já relatava os mandos e desmandos da apropriação
cultural dentro das escolas de samba:
[...] Mas eu de sambista/Tive que ser jornalista/Pra me valorizar (Passei
no tal vestibular)/E agora veja só você: Trabalho no Caderno B/Critico
samba popular (Seu Tinhorão vem devagar)/Um dia então fui chamado/
Convidado pra jurado/De julgar samba-enredo (Confesso até que tive
medo)/No meio da quadra/Apareceu um camarada/Com jeitão de Ipanema
(Era um artista de cinema)/Virou-se pra mim/Foi dizendo logo assim:/”Sou
diretor de carnaval” (Até aí nada de mal…)/Esse é o samba dos cartolas/Vai
dar grana pra escola/De direito autoral (Toca na Rádio Mundial)/Se é coisa
que eu não adoto/É nego cabalando voto/Na maior cara de pau/E o samba
de sobra/Era um tremendo boi com abóbora/Rimava açúcar com sal/Antes
de eu virar a mesa/Pra acabar com a safadeza/Foi armada um trelelê (Era
judô e karatê)/E o tal do branco cabeludo/Me deu tanto do cascudo/Que
eu nem sei mais escrever (Tá pensando que eu sou telha?)/Dona Condessa
aborrecida/Me expulsou do JB (Veja você…).
Usando a cultura sambística como exemplo desse fenômeno, nota-se em
toda história de construção de uma cultura popular nacional, o uso comercial dessa
manifestação em prol de interesses capitalistas, sistema no qual os menos favorecidos
são sempre os seus criadores e cultivadores. O comércio dos direitos autorais, o comércio
de fantasias, a manipulação midiática sobre o espetáculo carnavalesco, o apelo turístico
e o acesso às fontes de trabalho e emprego geradas pelo carnaval, todos são elementos
de cancelamento do povo negro em sua própria manifestação. Geraldo Filme (1980) foi
feliz ao retratar o processo brasileiro de apropriação cultural em Vá cuidar de sua vida:
289
batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
Vai cuidar de sua vida, diz o dito popular/Quem cuida da vida alheia da
sua não pode cuidar/Crioulo cantando samba era coisa feia/Esse negro
é vagabundo, joga ele na cadeia/Hoje o branco está no samba, quero ver
como é que fica/Todo mundo bate palmas quando ele toca a cuíca/Vai
cuidar de sua vida, diz o dito popular/Quem cuida da vida alheia da sua
não pode cuidar/Negro jogando pernada, mesmo jogando rasteira/Todo
mundo condenava uma simples brincadeira/E o negro deixou de tudo,
acreditou na besteira/Hoje só tem gente branca na escola de capoeira/Vai
cuidar de sua vida, diz o dito popular/Quem cuida da vida alheia da sua não
pode cuidar/Negro falava de umbanda, branco ficava cabreiro/Fica longe
desse nego, esse nego é feiticeiro/Hoje negro vai à missa e chega sempre
primeiro/O branco vai pra macumba e já é babá de terreiro.
Na canção, o compositor retrata o cenário da cultura imaterial negra paulistana,
que pouco a pouco é apropriada pelo branco, que não necessariamente compreende
suas nuances mais subjetivas nesse processo. Esse cenário é detalhadamente descrito
no filme documentário Lavapés, Ancestralidade e Permanência (2017). Nele, é retratada a
história de construção de uma das escolas de samba pioneiras do carnaval de São Paulo,
junto com a ancestralidade e a permanência de uma comunidade negra histórica da
periferia do centro da cidade, em uma dinâmica de crescimento urbano segregadora,
higienista e, na maioria das vezes, racista. Aos 37’58’’ do filme, Rosemeire Marcondes,
neta da fundadora e matriarca da escola, Madrinha Eunice, diz:
Minha avó sempre dizia: depois que o visual virou quesito; acabou, é uma
indústria né? Você não tem o carnaval mais, você tem um evento, muito
grande, onde se ganha muito dinheiro. Você não desfila, você marcha;
porque quando você percebe, acabou o desfile, quando você pensa que está
indo pro samba, mano, acabou, entra pro ônibus e vamos embora.
Você não pode brincar o carnaval à vontade, você é obrigado a seguir o
padrão que eu passo pra vocês poderem desfilar, você não curte o carnaval,
né? Nós estamos em uma disputa e eu preciso que vocês cantem senão eu
perco o carnaval, então isso virou uma disputa; que é tão pouco tempo, que
você paga uma fortuna pra desfilar no grupo especial, nas grandes escolas e
você desfila 20 minutos, porque você passa em uma hora e dez, quatro mil,
cinco mil componentes; você tem que correr.
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
Minha avó dizia para todos nós, cuidado, os brancos vão tomar conta de
tudo isso e nós vamos ficar sem nada […].
Um dos grandes baluartes do carnaval de São Paulo, Mestre Carlão do Peruche,
fundador de uma das escolas de samba mais antigas ainda vivas da cidade, o Unidos do
Peruche, em depoimento para o documentário Samba à Paulista – fragmentos de uma
história esquecida – parte 2, aos 21’58’’, relata que:
O carnaval já não existe mais. Se você falar que existe desfile das escolas
de samba, eu aceito, desfile, mas carnaval não. Pegam nóis aqui na quadra
com a escola, levam pra concentração no Anhembi, acabou de desfilar, os
65 minutos, voltamos pra quadra. Olha, nós estamos no sambódromo,
estamos confinados, pra não falar presos, dá um pulo na Ipiranga com a
São João, hoje é sábado de carnaval, vai lá, não tem nada, antigamente eu
participava, nóis participava, agora é diferente, ainda se fosse pra melhor…,
né?
Neste contexto, de apropriação cultural dos espaços das escolas de samba,
a Batucada de Nego Véio se coloca como um potencial para a memória do homem
negro em convivência comunitária, de valorização do sambista, além de representar a
resistência cultural sendo um corpo coletivo vivo dentro da dinâmica social da cidade de
São Paulo, dando cenário ideal para se pensar as construções não só das masculinidades
negras, mas também suas intersecções com outros marcadores sociais.
Entre 2015 e 2016, a pesquisa iniciou com uma longa busca atrás de antigos
mestres, indivíduos ainda vivos que de várias formas construíram uma linda história de
glórias e que, com o passar do tempo, foram totalmente desvalorizados e mantidos sem
reconhecimento pelos atuais componentes da agremiação que construíram. O intuito
principal dessa busca era o de documentar fatos e memórias em um filme de longa
metragem a fim de registrar e mostrar nossa história para as novas gerações, atualmente
distantes dessa herança cultural.3
3 O filme ainda é um projeto a ser desenvolvido e possuiu algumas gravações. Neste meio tempo a Batucada de Nego Véio se fortaleceu e o primeiro autor deste texto fez a dissertação de mestrado, registrando
a história do grupo e memórias de parte de seus membros.
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
Memoráveis reencontros foram vivenciados nesse processo. Amigos de longa
data, construtores de belas páginas da história da comunidade, os quais, em alguns casos,
não se viam há mais de dez anos, animados pela euforia proporcionada com a memória
coletiva, espontaneamente passaram a se agrupar em jogos e festivais de futebol de
várzea de diversos campos da zona leste.
Concomitantemente, outros grupos de antigos batuqueiros da Vila Matilde
espontaneamente começam a se organizar para rodas de sambas antigos em campos de
futebol de várzea como o Colorado do Morro do Jardim São Nicolau e o Artur Alvim, na
Cidade A.E. Carvalho. Não demorou muito tempo até que essas iniciativas se fundissem
em um único movimento. Com a frequência espontânea dos encontros, cria-se entre
esses indivíduos, em 2018, a demanda da fundação de um grupo organizado com o
objetivo principal do encontro e da manutenção das raízes culturais abandonadas pela
escola de samba. No dia 7 de setembro de 2018 é fundada, à beira do campo de futebol
do Artur Alvim, a Velha Guarda de Bamba, Batucada de Nego Véio.
Vale ressaltar que a relação da cultura do samba e batucada com os campos
de futebol de várzea é crucial para a reflexão a respeito da construção dos saberes e
costumes dos homens que as perpassam. Em uma sociedade desigual, mantida através da
opressão e da repressão, principalmente policial; historicamente, indivíduos e culturas
marginalizadas usam espaços, como campos, morros e favelas, para expressar suas vidas
com maior liberdade.
A fundação da Batucada de Nego Véio teve iníciosem grandes pretensões,
porém, em pouco tempo, após poucas reuniões e apresentações, todas em festivais de
diferentes times e campos de futebol de várzea, a notícia de sua existência se espalhou
com rapidez e, contando com o suporte da criação de um grupo em rede social, de
onde surgiu também o nome do grupo, que em menos de um ano de existência já era
composto por mais de cem integrantes ativos.
Mensalmente são organizados encontros durante os quais são compartilhados
saberes, culinárias, memórias e sambas. Grande parte dos encontros inicia com uma
reunião na qual são discutidas as questões relativas às atuações e questões administrativas
do grupo.
Durante a pandemia ocasionada pela Covid-19, cessaram os encontros oficiais
do grupo, sendo organizadas atividades articuladas remotamente por intermédio da
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
rede social. A principal dessas atividades foi a arrecadação e doação de alimentos e
outros utensílios para integrantes e famílias próximas dos participantes do grupo que
enfrentaram muitas dificuldades impostas pela situação pandêmica.
Em 2021, com o retorno de grande parte das atividades cotidianas, o grupo voltou
a se encontrar, criando uma rotina de ensaios e confraternizações. Simultaneamente,
a Liga das Escolas de Samba do Carnaval de São Paulo, visando o resgate de valores
apagados do carnaval, cria um departamento intitulado Comissão das Velhas Guardas.
O departamento logo começa um trabalho de incentivo a visibilidade das Velhas
Guardas das Escolas de Samba e propõe um desfile de abertura do carnaval do grupo
especial no qual a Batucada de Nego Véio foi convidada para participar, sendo ela a base
do cortejo com as Velhas Guardas do samba paulistano.
A faixa etária média dos integrantes do grupo vai dos 45 aos 70 anos de idade,
tendo também participantes mais novos, como é o caso do primeiro autor deste texto; e
participantes mais velhos, como é o caso do Betão, Clovis Messias, Landão e até mesmo,
o Olegário com 91 anos e que indiretamente participa do grupo.
A formação dessa comunidade significa muito para esses indivíduos. Encontram
nessa produção coletiva respostas e soluções para problemas históricos que afetam sua
interação pessoal e social no mundo. Segundo Plínio Marcos (1974): “Um povo que
não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas, jamais será um povo
livre”. É o que observamos em algumas das memórias dos seus integrantes.
Memórias do Samba
O samba é o ponto em comum que reúne todos os participantes em uma mesma
comunidade identitária. Pensaremos a partir daqui alguns elementos que significam
essa cultura a partir das vivências individuais, resultando em uma performance coletiva.
Para isso, pensaremos a produção cultural, o território e a história que resulta no
contexto atual da Batucada de Nego Véio.
De acordo com a perspectiva sambística abordada por todos os entrevistados, é
unânime a importância de Alberto Alves da Silva, o Seu Nenê, para a construção dessa
comunidade. O “Cacique”, como ficou conhecido pelos integrantes da escola de samba,
foi o principal mestre e incentivador de todos os elementos necessários para se construir
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
uma agremiação carnavalesca. Em seus ensinamentos, agregou valores históricos e
tradições ancestrais, os unindo em torno das famosas batucadas da Vila Matilde. Nesse
processo, uniu pessoas de diversos bairros, principalmente da Zona Leste, em forma de
uma comunidade identitária.
Betão, por ser sobrinho do Seu Nenê, membro da família Alves, a qual é muito
importante para a cultura negra paulistana, teve contato eminente com a escola de
samba de diversas formas. De acordo com seu depoimento, percorreu grande parte dos
cargos essenciais dentro de uma agremiação. Entre outras funções, foi passista, mestre
sala, diretor de harmonia, diretor de ala e batuqueiro.
Ao falar a respeito de Nenê de Vila Matilde, ressalta tudo o que aprendeu na
escola e todas as características positivas relativas à contribuição cultural que a escola
produziu. Comunidade boa de samba no pé, boa em composição e boa em batucada,
porém, em muitos carnavais, deixou a desejar no quesito de recursos e administração.
Segundo ele:
O Nicolau queria que a escola de samba viesse naquela cadência, aí nós nos
encontramos com o Peruche, e o Peruche quando viu a Nenê, eles aceleraram
o ritmo, o Nicolau não deixou os cara acelerar, viemos na cadência, sabe o
quê que aconteceu? Os caras pararam e foram pra ver a Nenê tocar, risos, o
nosso ritmo esculachava os caras, tanto é que é o seguinte, todas as escolas
de Samba imitavam a Nenê aqui em São Paulo […] O problema da Escola
era sempre todo o problema de alegoria e de fantasia, porque os caras não,
não… A gente achava que o seguinte, que a escola de samba tinha que fazer
samba, fazer um bom samba, uma boa bateria e os caras dançando, cantando
e sambando, essa era a nossa meta, entendeu? Fantasia e alegoria não eram
o forte daquela escola de samba, tanto é que quando fazia um pouco, ela
chegava na cabeça, entendeu?
Betão exerceu influência nas manifestações culturais paulistanas ao buscar
frequente contato com o samba carioca. Em sua entrevista, relata algumas passagens
nesse intercâmbio. Com seu conhecimento, foi fundamental na orientação a outras
comunidades sambísticas da cidade de São Paulo. Em anos em que não participou da
construção do carnaval da Nenê de Vila Matilde, foi influente em outras agremiações,
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Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
sendo ele um dos responsáveis por auxiliar a comunidade do Vai-Vai na passagem de
cordão para escola de samba em 1974.
Segundo o entrevistado Landão, o samba foi a principal atividade que pôde
realizar em toda sua vida. Essa expressão lhe proporcionou boas convivências, lhe
deu responsabilidade e foi o principal aspecto na sua construção de vida. Dentro da
escola de samba, também tem uma longa caminhada, passando por diversos cargos na
organização carnavalesca. Foi folião de ala, foi batuqueiro, foi mestre sala, rei momo e
entre outras atribuições foi um dos mais consagrados mestres de harmonia da cidade de
São Paulo. Tem o título de Embaixador do Samba e Cidadão Samba, além de hoje fazer
parte da Comissão das Velhas Guardas da Liga das Escolas de Samba. Em seu relato, em
seu primeiro contato com Seu Nenê:
[…] eu via o Seu Nenê, ia levar lá os instrumentos pra consertar, pra soldar,
levava os agogôs, os varão de surdo pra soldar, então soldava assim com
metal, aquela solda de metal, então eu soldava os surdos, os agogôs, enfim,
a minha vida dentro do samba não é de agora, não é de hoje […].
Ele nos conta que, após perder o pai, em um dos momentos mais difíceis da sua
vida, foi Seu Nenê quem o acolheu. Vale ressaltar que da escola de samba, por diversas
vezes componentes da escola foram “resgatados” pelo Cacique. Segundo Landão:
[…] fui mandado embora, fui morar na rua. A gente vai se desgastando, a
vida muda, você não tem mais a sua cama pra você dormir, você não tem
mais sua mesa pra comer, aí vim morar na Praça da Sé. Quando eu estava
quase assim pra desviar o pensamento, […], teve um dia que o Seu Nenê
passou e me viu na Praça da Sé, ele voltou e perguntou o que eu estava
fazendo ali, eu tentei me esconder dele, ele me levou pra casa, me levou pra
casa dele, morei lá uns tempos, nesse período aí que eu comecei a encostar
mais no Seu Nenê e comecei a enxergar mais como era o samba.
Mais tarde, com maior influência dentro da escola de samba, Landão relata ter
tido um contato muito maior com Seu Nenê. Foi a partir desse ponto que passou a
compreender a grandeza do mestre e consequentemente os fundamentos do samba:
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
[…] o Seu Nenê também era um cara muito inteligente, que tinha um
ouvido assim bem... Errar todo mundo erra, mas acho que ele mais acertou
do que errou. Esse também foi um baluarte de primeira estância, de primeira
qualidade, hoje, o samba de São Paulo deve muito ao senhor Alberto Alves
da Silva, pela sua astucia, pela sua coragem, pela sua dedicação, pelo seu
conhecimento. Ele ia até o Rio de Janeiro, ele era fã do Paulo da Portela e
ele trouxe muita coisa pra São Paulo e com ele muita gente aprendeu muito,
porque ele trouxe muita coisa para as escolas de samba, que hoje em dia as
pessoas não gostam nem de falar. Ele passou muitas coisas pra escola de
samba, ele foi o primeiro presidente, pelo menos que eu vi, de escola de
samba, eu não sei, nunca vi, que recebeu uma comenda de um presidente
da república. O presidente da república na época, que fez essa comenda ao
senhor Alberto Alves da Silva, foi o Dr. Fernando Henrique Cardoso, foi
recebida em Brasília.
Sérgião figura como um dos mais conhecidos batuqueiros da Zona Leste.
Iniciado na escola de samba como pandeirista malabarista, ao passar para o ritmo, se
consagrou na bateria como um dos principais tocadores de surdo de terceira da história.
De acordo com seu relato, construiu no samba suas principais relações de vida. Para o
entrevistado: “[…] ser sambista pra mim é isso, é ter o samba no coração, é ter o samba
no coração. É respeitar os componentes, independente da ideologia deles de ser […]”.
Outro fator interessante é sua filiação a um carioca, assim como Betão, que era
neto de carioca. O diálogo rítmico e cultural da Nenê de Vila Matilde é famoso por
ter trazido para São Paulo elementos do samba carioca, diferentemente dos grupos do
centro que traziam elementos do samba de bumbo caipira e do “tambu”, o que pode
começar a se explicar por esses detalhes. Ao refletir sobre os valores da Batucada de Nego
Véio, ele diz: “Devido, digamos, a uma direção errada, deu no que deu, e graças a Deus
que nós montemos a Batucada de Nego Véio, a realidade é uma só. Quem representa o
samba do Seu Nenê, do samba da Vila, é a Batucada de Nego Véio”.
Canhoto inicia sua entrevista dizendo que, primeiramente, o ponto fundamental
de sua vida é gostar do samba, fala também sobre a característica de formação de
contingente humano e dos recursos da bateria da escola de samba na época, que era
formada por uma imensa maioria de homens negros e por instrumentos ainda primitivos
se comparados com os de hoje em dia, levando em consideração o peso e o seu tipo de
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Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
construção. Em sua observação, é evidenciado também que a mudança da infraestrutura
dentro das baterias de escolas de samba trouxe alterações rítmicas para essa expressão
no decorrer dos tempos. Segundo ele:
[…] os negrão, quando pegava, tocava, hein? Tocava, os cara tocava, tinham
um ouvido, uma marcação fora de série, era uma batida fora de série, a
tradição do Seu Nenê, isso no ano de 1968, 1969, 1970, 1971, 1972, nossa,
nóis tinha uma batucada.
Um dos poucos integrantes da Batucada de Nego Véio que não é batuqueiro,
Nato, narra em seu discurso toda sua caminhada nos bastidores do carnaval e na
montagem de importantes alas e que o samba foi o cenário para grande parte de suas
vivências. Ao ser indagado sobre a importância do samba para sua construção, ele
responde: “Ser sambista pra mim é tudo, né? […] é uma escola que você aprende, até
educação ali você aprende, aprende a ser gente, depende muito do lugar, mas se for uma
família mesmo, ali você aprende uma pá de fita meu.” Como o próprio entrevistado
discorre, foi no samba que aprendeu e assimilou a maior parte dos valores que dão
sentido à sua vida.
Nato também relata ter tido bastante proximidade com Seu Nenê. Como todos
os outros entrevistados, foi o Cacique quem aprovou sua entrada na escola de samba:
“[…] quando foi em 1972, aí os caras encarnaram na minha porque eu tinha muita
amizade com o Cacique, né? Com o Seu Nenê”. Ao narrar sobre 1985, quando a Nenê
de Vila Matilde se sagrou a única escola de São Paulo a desfilar na Marquês de Sapucaí,
no Rio de Janeiro, coloca o nome do Seu Nenê ao lado de grandes artistas e baluartes
do samba brasileiro: “[…] a única Escola de São Paulo a desfilar no Rio, foi nóis, ao
lado de Alcione, Dona Ivone Lara, Seu Nenê, todos baluartes do Rio, ali da Portela, do
Salgueiro, de várias escolas… E ali também foi onde nós aprendemos muito”.
Torrado, desde seus primeiros momentos de vida a serem narrados, abordou
o samba como diretriz que o conduziu nos melhores e nos piores momentos. Criado
em internato, cultivou o amor pelo samba sem de fato ter o apoio familiar comum
aos outros entrevistados. Entretanto ao conhecer sua mãe, aos 18 anos, descobriu que
mesmo aprendendo sua cultura de forma espontânea, sua família era frequentadora
da escola de samba, e nela trilhou seu caminho. Segundo ele: “Eu esperava o Seu Nenê
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Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
sair pra porta, ficava aqueles dois PM lá, certo? O Seu Nenê saía e eu metia o peito,
entrava com tudo, quando o Seu Nenê via nóis lá dentro. Ele falava: “Tô com vontade
de sambar”.
Reconhecido pela arte do malabarismo com pandeiro, criou uma das mais
conhecidas alas de pandeiristas da história do carnaval, pôde levar seu dom para o
mundo e pra outras cidades e estados do país. Quando indagado a falar sobre o samba,
respondeu:
[…] se não fosse o mundo do samba, a minha primeira casa que eu ia morar,
ela caiu hoje, hoje é parque, a segunda está em pé, quando eu conheci o
mundo do samba, eu parei com tudo, certo, é por isso que sou essa pessoa e
esse personagem que eu sou hoje, certo?
De acordo com o entrevistado, foi a cultura sambística quem deu melhores
acessos e possibilidades de vida, discorreu categoricamente que, se não fosse o samba
em sua vida, teria passado boa parte da vida em encarceramento. Ainda menciona que
o tempo de convivência no samba traz maturidade e conhecimento.
Esses aspectos de autoconhecimento ajudaram Torrado a oferecer acesso à
cultura aos que não tinham. Após observar a vulnerabilidade das crianças moradoras
de seu bairro, começou a introduzi-las no samba; com o aumento da procura por parte
desses jovens, criou um projeto intitulado “ala do pandeiro de ouro”, que teve como
principal objetivo utilizar a cultura do samba como contribuição para resgatar da
ociosidade crianças moradoras de áreas de risco. Em pouco tempo, montou uma ala
inspiradora, chegando a iniciar no samba mais de trinta crianças.
Pascoal relata toda sua caminhada no samba como parte fundamental de sua
vida. Mestre de bateria consagrado relembra suas relações interpessoais na sua trajetória
de batuqueiro. Ingressou na escola de samba ainda adolescente, foi ritmista por poucos
anos, pois logo no começo de sua caminhada passou a integrar a direção de bateria. Foi
diretor por 14 anos, até que se tornou mestre no lugar de seu irmão. Sobre seu contato
com Seu Nenê, ele relata: “O Seu Nenê, eu aprendi, meu mestre quando eu cheguei foi o
Divino, mas eu fiquei pouco com o Divino, né? Fiquei com o Divino de 1978 até 1982,
né? Mas o Seu Nenê foi o meu professor”.
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
Sobre o jeito com que Seu Nenê se relacionava com os diretores de bateria,
Pascoal relatou que:
O Seu Nenê, ele nunca falava que a batucada tava boa, ele chegava com a
quadra lotada, né? Lotada, lotada, parava na porta com a mão no bolso, aí,
uma vez, uma vez só, acho que foi no último carnaval antes dele ser finado
que ele disse que a batucada tava boa. Aí ele falava assim, que não podia
falar que a batucada tava boa, às vezes tava boa, mas ele não falava que tava
boa, por quê? Pra não relaxar, esse aí era o macete, né?
Claudemir, mestre da bateria da escola Nenê de Vila Matilde no decorrer de 15
anos, traz em sua narrativa muito valor agregado ao samba. Criado dentro dessa cultura
relata sua passagem pela escola de samba como mestre e também como passista. Embora
tenha ganhado concurso na escola para mestre sala, foi direcionado pelo Seu Nenê para
a direção de bateria. Para Claudemir, o Cacique também figurou em sua história como
um grande mestre, lhe ensinando os fundamentos do samba.
A valorização dos elementos tradicionais do samba também faz parte de suas
crenças primordiais. Dentro da comunidade identitária, construiu sua família e tem
no samba a principal ocupação de sua vida. Atualmente, como mestre de bateria da
Batucada de Nego Véio, ao lado de seu irmão, se mantém ativo na resistência dessa
cultura.
Na entrevista de Carga, podemos ressaltar que todas as suas experiências de
vida narradas estão diretamente envolvidas com o samba, seja no âmbito cultural, seja
no âmbito relacional, seja no âmbito profissional. O samba constrói sua experiência de
vida ao passo que sua experiência também constrói o samba. Batuqueiro, profissional
na manutenção de instrumentos de baterias de escolas de samba, jurado do quesito
bateria pela União das Escolas de Samba de São Paulo (UESP) e professor de ritmo, vive
o samba com intensidade desde sua primeira infância. Sobre a essência do batuqueiro
da Vila Matilde:
[…] nós somos diferenciados, certo? Nós tivemos esse dom, certo mano?
De ter um patriarca aí, o Seu Nenê de Vila Matilde que ensinou as coisas
pra nós, ensinou nós a gostar do bagulho, e mano, tudo o que a gente
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Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
aprendeu, somos todos oriundos dele cara, nós somos oriundos da Nenê
de Vila Matilde, não da Nenê de Vila Matilde, e sim do Seu Nenê, você
entendeu? Daí depois sim, dos coadjuvantes que se tornam a Nenê de Vila
Matilde, né mano? Entendeu?
Ainda sobre a essência dessa cultura, fala sobre o falecido Betinho, filho de Seu
Nenê e ex-presidente da escola de samba:
Você queria um presidente de escola de samba mais malandro, mais
sambista e que entendia de samba mais do que o Betinho? Se perdeu nos
outros pontos? Beleza, mas no ponto escola de samba ele era diferenciado,
entendeu mano? Sempre foi, tinha conhecimento, a malandragem do
samba, entendeu mano? Um samba no pé diferenciado, então, quer dizer
mano, a Batucada de Nego Véio é pra mim hoje tudo isso daí cara, a gente
aprendeu lá atrás e hoje a gente pode colocar sem preocupação de, puta
mano, será que vai dar certo?
Seu Nenê e sua família tiveram muita importância na história da comunidade
do samba da Zona Leste, porém, como ele mesmo ensinava, uma escola de samba é
construída pela reunião de muitas pessoas, e ninguém faz nada sozinho. Da fundação
até os tempos mais recentes, muitos foram os baluartes que ajudaram a escrever essa
caminhada.
Considerando todo o valor que o samba traz para suas vidas e performances
como cidadãos, um fator que afeta a todos os participantes de forma negativa, é a
modernização e a apropriação cultural do samba e do carnaval por grupos e populações
estrangeiras a este costume. Uma vez que essa expressão dá sentido para suas existências,
as suas respectivas desapropriações desse movimento acarretam consequências em
suas experiências de vida, podendo ser prejudiciais para suas comunidades e para seus
corpos. Ao ser indagado sobre a evolução do samba no decorrer do tempo, de forma
espontânea respondeu o Betão:
Pra mim está uma porcaria, principalmente o de São Paulo, os caras
desfilando parecem soldadinho de chumbo, não tem mais dança, não
tem mais passista, acabaram com os passistas, antigamente não, era todo
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Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
mundo cantando e dançando. […] as escolas de samba que vieram, os caras
se organizaram, tem as torcidas, os caras tem dinheiro, tem patrocínio, já
as outras não […]
O entrevistado, com objetividade mostra falta de identificação ao movimento
carnavalesco atual e relata as padronizações que a apropriação cultural do samba trouxe
como consequência. Aborda também a invasão do movimento por indivíduos que não
necessariamente respeitam os fundamentos dessa cultura. Landão, além de concordar
com o sentido expresso na fala de Betão, traz ainda o fator financeiro que distancia o
samba da população que o inventou, fator fundamental para a mudança e modernização
das expressões que cada vez mais afastam o povo pobre e o povo negro do carnaval.
Ao ser questionado sobre as mudanças corriqueiras ao carnaval no decorrer
do tempo, Landão, contrariado, relata sobre o samba ter mudado muito, porém para
pior. Na perspectiva do entrevistado, o samba se curvou para as padronizações que o
capitalismo exerce sobre essa expressão popular, as comunidades pouco a pouco foram
perdendo suas identidades e minando as diversidades artísticas dessa expressão popular.
Segundo Landão, atualmente o sambista verdadeiro não tem mais espaço dentro da
manifestação que criou:
[…] a conversa que tem no meio dos sambistas de verdade, é soldadinho de
chumbo, cadê o sambista? Não tá nem na arquibancada, talvez na televisão
assistindo, porque o espaço dele acabou, ele vai ,de vez em quando, na
arquibancada do ensaio técnico.
Canhoto, tocador de surdo de primeira, em meio ao seu discurso, sem que fosse
questionado, trouxe bastante preocupação com as mudanças impostas ao carnaval, as
quais fazem com que as tradições do samba se percam. Segundo ele: “[…] eu fico muito
preocupado se um dia o samba morrer, viu mano? Se um dia o samba morrer, acaba a
comunidade e a gente é preocupado com isso aí, tem que manter as escolas de samba, eu
fui da época das escolas de samba, que é o seguinte, né?”.
O entrevistado relata sua experiência individual como exemplo das consequências
reais que a apropriação cultural traz para a escola. Após ter sido consagrado como um
dos pilares do carnaval de São Paulo, respeitado batuqueiro e consagrado por mestres
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
de outras comunidades e agremiações, foi impedido de entrar na escola de samba que
ajudou a construir por integrantes atuais que mal conhecem a história da comunidade
onde trabalham. Sobre o significado da Batucada de Nego Véio, ele diz:
[…] então, significa que quando você ficar véio, você honrar o que você
fez né? E o que significa a Batucada de Nego Véio, é isso daí, tem gente,
senhores e senhoras tudo com a gente, se divertindo, tocando, mostrando
a sua alegria, mostrando sucesso, né? Que chegou até certo tempo, né? E a
Batucada de Nego Véio, ela tá superando, levantando algumas coisas antigas,
algumas histórias que não podem ser terminadas, tem que ser contadas […]
então a “Batucada de Nego Véio”, ela tá transformando algumas pessoas,
sabe? Levantando a sua moral em um modo de dizer, levantando seu ego,
tirando tristeza de muita gente, coisa de sambista, né? Aquele dia foi legal
pra caramba. O cara quando vai sendo deixado pra trás, é fogo, porque
você sabe, né? O que dá sobrevida pro cara é a alegria, né? Você não vê
idoso triste vivo, na “Batucada de Nego Véio”, você vê que tem outras
agremiações também querendo acompanhar, isso é muito bom […]
A respeito das mudanças impostas ao carnaval e à comunidade do samba, Torrado
relata que com o término do projeto “Pandeiros de Ouro”, a imensa maioria dessas
crianças abandonaram as expressões artísticas e culturais, o único desses participantes
ativo no samba, está passando por um novo resgate pelo Torrado, que há pouco tempo
o encontrou em situação de vulnerabilidade e o resgatou novamente, dessa vez para a
Batucada de Nego Véio.
Sambista adepto das expressões tradicionais, Pascoal mostra-se insatisfeito
com as mudanças que a modernização do carnaval exerce nas escolas de samba,
principalmente nas baterias. Segundo ele:
[…] o carnaval mudou e infelizmente só mudou pra pior, antigamente você
saia na escola de samba, sua fantasia era humilde, você tirava maior onda,
hoje em dia não, se você não fizer um desfile luxuoso, pra rico ver, não é
desfile… Principalmente os ritmos, as batucadas, nossa senhora, batucada…
o quê que fizeram com as baterias de São Paulo? Não é só São Paulo não…
as do Rio também […] a gente fica muito triste de ver o andar do carnaval,
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
da batucada, principalmente a batucada porque nós somos ritmistas, o foco
que criou, né meu? Pra mim, perdeu todo o brilho das baterias, infelizmente.
[…]
De acordo com seu relato, as apropriações culturais que afetam de forma
intensiva o carnaval atual, atingem diretamente as identidades das comunidades do
samba, nesse processo, o fazer coletivo vai gradativamente se esvaziando de sentidos.
Segundo ele:
Eu acho isso daí uma besteira, uma besteira, sem condições… Como pode
chegar uma pessoa de fora e falar? Quer dizer, eles não estão pensando em
um carnaval para o povo, eles estão pensando em um carnaval pra eles, pra
vender, pra vender DVD, vender vídeo, isso daí não existe… acabaram com
o carnaval, acabaram, acabaram mesmo. Como pode querer padronizar
todas as batucadas? […] não pode deixar morrer essa tradição não e ela está
praticamente extinta já. Tá agonizando, né? Agonizando pedindo socorro.
Pensem nisso, voltem o que eram as baterias antes e vai ficar bem melhor
[…] a Batucada de Nego Véio, foi fundada também com esse intuito de
manter a tradição matildense, da Vila Matilde, né? Quinem, agora surgiu
também a batucada do Camisa Verde, né? Por mim, eu gostaria que todas as
escolas, todas as escolas, principalmente as antigas, montassem a sua bateria
da velha guarda, com seu ritmo tradicional, sua afinação e seu andamento
que é pra eles verem o que é uma batucada e não ser essas batucadas, bateria
de cartilha, isso daí é pra playboy ver, pra branco ver, pra jurado ver, meu.
Risos.
Claudemir reflete as mudanças do carnaval dos tempos dos desfiles de rua,
gratuitos para a população em comparação com os desfiles dentro do polo cultural do
Anhembi. Sobre esse aspecto da modernização do carnaval ele relata:
[…] Ah, na Tiradentes, você é louco, era mais, era animado, era o povão,
o povão ainda participava, né? Porque acabava a arquibancada, tinha uma
grande parte ainda ali nas cordas, né? Ficava ali a torcida das escolas e tal, se
é louco, era de graça, Tiradentes era de graça, tirava nos postos o ingresso,
né? Lá o povão participava, no Anhembi não, desfilou, já era, vai embora
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
[…] se você não comprou o seu ingresso, tem que ir embora, risos, o povo
mesmo hoje em dia só vai ao ensaio técnico, até no Rio de Janeiro, pega
fogo no ensaio técnico.
O entrevistado conclui que antes da inauguração do Anhembi, nos antigos
carnavais realizados na Avenida Tiradentes, as entradas para os desfiles das escolas de
samba eram gratuitas, o que permitia que a grande massa popular, amante de samba, que
acompanhava durante todo o ano a construção do carnaval, tivesse acesso ao principal
evento dessa expressão.
Esse contexto motivava o folião e o sambista, pois havia mais empolgação, mais
alegria, mais espontaneidade. Com a apropriação e capitalização do carnaval, grandes
empresas passaram a lucrar muito com o evento, enquanto o sambista que realmente
faz a festa acontecer, precisa pagar para participar, o que foi afastando e minando a
cultura carnavalesca das camadas mais populares que realmente faziam o movimento
acontecer.
De acordo com a entrevista de Carga, as padronizações que descaracterizam
as identidades das comunidades carnavalescas partem de uma série de fatores que
atualmente estão expressos no regulamento julgador do carnaval. Para ele: “- Muitas
coisas que estão fazendo na bateria, tão estragando o batuque cara, batuque é batuque,
a função de uma bateria dentro de uma escola de samba é manter o canto e a dança da
escola, ponto.”
Sobre as tentativas de desapropriações do samba e da comunidade, o homem
negro sempre resistiu. Relatando passagens que evidenciam esse potencial, encontramos
nos relatos de Sérgião e Betão, elementos interessantes. Sobre uma tentativa da
prefeitura de demolição da quadra da escola de samba, relatou Sérgião:
[…] eu só vi o Negute dando uma paulada no cara do trator: “Você vai
derrubar? Seu filho da puta?”. E pá, pá, mas sentamos o pau, e os caras do
caminhão, eram dois ou três caminhão, subiu ali, não tem o Bar do Berró
ali? “Subiram”, risos, ficaram lá na Amador, aí chamaram a Rota. Aí os caras
falaram: “- sai daí porque a Rota vai pegar vocês dois, é flagrante”, e nóis:
“- É flagrante? É flagrante o caramba!” Descemos pro Seu Nenê e fiquemo
lá escondido, com o pandeiro na mão, porque ele quis carregar o pandeiro,
com o pandeiro na mão e lá […].
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
Vale ressaltar desse ocorrido, a passagem em que ficaram escondidos com
o pandeiro na mão. O pandeiro faz parte do símbolo da escola, pois foi o primeiro
instrumento do Seu Nenê. A águia do pavilhão da agremiação carrega um pandeiro
em suas asas. Há cinco anos, foi feito um concurso para a escolha do logotipo que
identificaria a Batucada de Nego Véio. Todo integrante pôde concorrer, porém, havia
alguns pré-requisitos. Um deles era a obrigatoriedade da presença de um pandeiro na
arte.
Uma das passagens mais antigas referentes ao uso da violência na construção do
carnaval e da resistência da escola foi narrada no depoimento de Betão:
[…] nós estávamos na rua, foi assim, coisa de fim de ano, tava na rua lá
fazendo um samba e tal, bem no bar ali da Dona… que era do Ismael…
ali onde é o Berró ali, então… nóis tava fazendo um samba lá, daí os caras
passaram e quase atropelando, xingaram nóis, daí, foi os caras vieram de
faca e tal, foi aquele pau no meio da rua, então pensamos, pra evitar isso
daí, é melhor a gente ter um local, daí começamos a batalhar pra gente
fazer mesmo uma quadra, aí foi que nós inauguramos lá, capinamos todo o
terreno, deixamos o terreno plano e o caramba, daí construímos a quadra,
dai de domingo a gente ia lá, tinha que carregar tijolo e tal.
Sobre a mesma passagem, conta Seu Nenê em depoimento em Silva (2000, p. 81):
[…] nessa época, nós estávamos mal, o Moraes Sarmento não tinha
aparecido ainda, era a época em que estávamos começando a nos organizar.
Estávamos naquela brincadeira, no dia de Natal, aquela animação, e passou
o bucheiro, eram mais ou menos umas quatro horas da tarde, acho que ele
estava cheio de vinho e passou com a perua verde no meio da batucada.
A turma xingou, ele deu a volta no quarteirão e passou pela segunda vez.
Aí começamos a xingar a mãe dele de tudo quanto foi nome, porque a
rapaziada também, não era mole, ele voltou e passou de novo, até que o
pessoal meteu o chocalho na boca do bucheiro, pra quê?! O covarde foi
lá embaixo e, depois de uma meia hora, subiu com dez caras dentro da
perua, todos com revólver e facão. Eles batiam com o facão e, quando o
pessoal queria avançar, eles apontavam o revólver, senão, davam tiro pra
cima. O pessoal ficou com medo, teve neguinho que pulou até muro. Quem
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
apanhou mais foi o Paulistinha, o Paulistinha veio apanhando até o alto da
rua, até que uma mulher deixou ele entrar no quintal dela. Chutaram os
instrumentos para o meio do mato… quando a confusão aconteceu, eram
umas quatro horas da tarde; as sete, aqueles que apanharam foram buscar
reforços, vieram uns cento e cinquenta homens mais ou menos, acho que
a escola inteira e mais o pessoal do futebol, pois éramos todos amigos. Foi
um fuzuê, queriam colocar fogo na casa do bucheiro, mas aí teve alguns que
usaram a cabeça… no outro dia, fomos eu e o bucheiro para a delegacia, o
delegado fez ele pagar as coisas que tinha destruído, ele puxou umas notas…
fez de estrago… e nós pegamos.
Sobre a importância da Batucada de Nego Véio, Carga relata que tem sido um
dos pontos mais importantes de nossa cultura na atualidade:
[…] a Batucada de Nego Véio é isso cara, nóis não quer agradar a ninguém
e nem precisa, nóis só quer fazer o nosso batuque do nosso jeito mano,
entendeu? Sai diferenciado? Sai porque nós somos diferenciados, certo?
Nós tivemos esse dom, certo mano? De ter um patriarca aí, o Seu Nenê de
Vila Matilde que ensinou as coisas pra nós, ensinou nós a gostar do bagulho
e mano, tudo o que a gente aprendeu, somos todos oriundos dele.
A Batucada de Nego Véio, nas narrativas dos entrevistados, aparece como
um ponto de acolhimento do sambista mais velho, e também como uma esperança de
resposta a essas mudanças impostas pelas apropriações culturais. Para o Landão:
Agora nós estamos na Batucada de Nego Véio, onde a gente está assim
tentando fazer o melhor, né? Uma doação das pessoas aí que estão se
doando, você é uma delas, né? E todos eles lá, eu só tenho que agradecer
pela Batucada de Nego Véio existir. Aquela essência ela não morreu, nós
estamos revivendo ela, né?
Segundo o entrevistado Sérgião:
Enquanto a gente viver, a gente vai tocar o samba, temos a Batucada de Nego
Véio que se tornou um, um exemplo bom, é resistência. Hoje nós temos o
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Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
pé no chão, hoje eu tenho o pé no chão, eu sei o que eu tenho que fazer, eu
sei como é que eu tenho que chegar e como tocar. Eu agradeço muito ao
Landão, meu primo Landão que está sempre me orientando e a gente vai
continuar, não vamos parar não meu amigo.
Quando questionado sobre a Batucada de Nego Véio, Canhoto concluiu que:
- Olha, a Batucada de Nego Véio, significa muita coisa, viu? Muita cosia, ela
significa o presente, o passado, ela significa pra mim muita coisa, como
se diz? A comunidade, o samba, a cultura, que tem que ser levada, né? A
Batucada de Nego Véio vem de uma tradição que tem muito componente
que veio da escola de samba, né? Surgiu a Batucada de Nego Véio, mas ela
surgiu para os nego véio não ficar pra trás, entendeu? Porque os nego véio
tava pra trás…, tava pra trás.
Segundo o entrevistado Nato:
- Pô, é o meu mundo, isso daí é o que faz eu ver a cara da geração antiga,
porque nóis não tinha mais opção, né? Não tinha mais pra onde correr,
devido aos acontecimentos que houve na Vila, as mudanças de diretoria,
mudanças de estrutura, esse pessoal não acompanhou a mesma essência
do Cacique e dos caras dos “nego véio”, entendeu? Porque se eles
acompanhassem, eu acredito que a escola estaria até melhor hoje em dia,
porque se nós aprendemos com os mais velhos, de repente você vai chutar
a bunda dos caras, pros caras saírem fora, mas e daí? Vão aprender com os
mais novos? Os mais novos ainda estão começando a aprender.
Quando indagado sobre a importância da Batucada, Torrado diz:
[…] parabéns pra toda família Batucada de Nego Véio, porque só tem como
falar bem, só tem como falar bem, não tem como falar mal, até o Landão
tá virando intérprete agora, entendeu? Eu peço pra todo mundo chegar
com nóis, chega com nóis, certo? Respeitando os mais velhos, porque nós
respeitamos vocês, é só isso que eu tenho pra falar sobre a Batucada de
Nego Véio, a melhor batucada de escola de samba do estado de São Paulo,
não desrespeitando as outras, mas nós somos do primeiro de janeiro, né?
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Batucada de Nego Véio é a do primeiro de janeiro, e também de oitenta e
cinco, quando o cacique rodou a baiana, Juruna vestiu camisa, gravata e
paletó, lá no Rio de Janeiro, é esse pessoal da Batucada de Nego Véio que
estava lá, representando o estado de São Paulo no Rio de Janeiro, era tudo
jovem, isso foi em mil novecentos e oitenta e cinco, certo? É o que eu tenho
que falar, tem que ter uma história, o estado de São Paulo, qual foi a outra
escola de samba do estado de São Paulo que pisou na Marquês de Sapucaí?
Nenê de Vila Matilde, por isso que nóis tem história, Batucada de Nego
Véio tem história, respeitando à todas as outras batucadas que vem aí […]
Segundo Pascoal: “Pra mim tá sendo muito importante porque é uma história
nova, né meu? É uma história nova pra nóis, não só eu, nóis… fundamos e estamos
construindo, né? É muito importante, com certeza!”.
Para o entrevistado Claudemir:
Batucada de Nego Véio, pra mim foi o máximo, você reunir os antigão, né?
Tava tudo afastado do samba e hoje em dia tem nosso lugar, até eu mesmo,
não tenho mais valor pra essa molecada, convite pra estar na batucada deles
a gente nem tem mais, então, reunir essa rapaziada, fazer com que eles se
sintam bem, né? Falar, pô, eu sou importante ainda no mundo do samba,
não é verdade? Pô, Canhoto cara, você é louco, Sérgião, você é doido cara,
os pioneiros aí da Batucada, quando eu cheguei no samba eles já estavam há
muito tempo, né? Então, resgatar esse povo é muito gratificante, entendeu?
Para o Carga:
A Batucada de Nego Véio tá significando muito pra minha vida mano,
porque eu achei que ia parar com essas paiaçadas, risos, e agora não dá não
mano, agora é “Batucada de Nego Véio”, sabe por quê cara? Porque é muito
melhor, é… é como…deixa eu fazer uma comparação legal… é como você
trabalhar, tá ligado? E se aposentar com duzentos por cento, ao invés de
você se aposentar com cem por cento.
Não podemos deixar de refletir sobre como o conjunto de valores referentes
às memórias dos entrevistados produzem um sentido comum sobre as construções
de suas masculinidades, as quais são atravessadas pela cultura periférica. Ao analisar
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Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
as entrevistas, podemos notar nas narrativas dos participantes, valores baseados no
respeito, na raça, na honra, no lazer, na arte, na família e na valorização do saber
ancestral, porém, além de todos os sentidos positivos dessas construções, impossível
deixarem de mencionar aspectos mais tóxicos dessas masculinidades, que acabam
resultando em diversas formas de violências.
Nesse universo que envolve o território periférico, mais especificamente a
Zona Leste da cidade de São Paulo, os espaços de lazer são organicamente afetados
pelas mazelas de um sistema desigual, que são as diversas formas de violências às quais a
população periférica se vê exposta desde os tempos mais antigos até o contemporâneo.
Para os participantes, esse fator não está ligado diretamente ao samba, mas às condições
sociais que caracterizam as relações da população paulistana.
Considerações finais
A valorização das memórias e da oralidade resultou no melhor caminho
possível para o encaminhamento da pesquisa. Sentimos em cada entrevistado certa
necessidade de falar, todos agradeceram a participação em um tom de alívio, às vezes
até de desabafo. Através da oralidade eles aprenderam com os homens que vieram antes
deles e transmitiram para outros jovens da comunidade elementos que, para além desta
documentação escrita, levarão esses sentidos produzidos, de forma oral, para onde
forem e principalmente para as próximas gerações.
A territorialidade presente nos costumes dos homens entrevistados e na história
dessa comunidade, dialoga diretamente com as narrativas encontradas nas entrevistas,
em que momentos, fatos e personagens apresentados pela fundamentação teórica são
representados pelos discursos presentes no estudo. Da mesma forma, a desapropriação
da comunidade sambística da Zona Leste se apresenta como um aspecto comum ao
afeto de todos os participantes.
As questões relativas às construções das masculinidades, embora complexas,
também se fazem entendíveis quando levadas em consideração a trajetória histórica e
social do homem negro até os dias atuais. Dos tempos de cativeiro às periferias e favelas,
uma série de tentativas de encobrimentos socioculturais tenta sufocá-lo e mantê-lo em
um não lugar na sociedade, na família e no mercado de trabalho. A objetificação desse
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corpo se instaura, sendo ele aceitável socialmente de forma seletiva como artista ou
atleta em alusão a uma performance esperada para esse indivíduo fora do campo da
intelectualidade.
Apesar disso, homem negro com a força de sua cultura tem muito mais a oferecer
e ensinar. Dentro dos sentidos observados pela pesquisa encontramos a valorização
da família como um dos principais aspectos de suas vivências, junto a esse sentido
podemos observar a paternidade, contrariando os massivos enunciados publicados
sobre a ausência paterna do homem negro. A ascensão do grupo Batucada de Nego
Véio revela que existem outros modelos de sociedade que podemos almejar, sociedade
essa que pode estar fundamentada no amor, na cooperação e na valorização do resgate
das tradições culturais, espirituais e políticas.
Os sentidos narrados por estes homens são produzidos através de uma experiência
de masculinidade atravessada pelos fatores raça e classe. Nesse enlace percebemos com
nitidez o porquê futebol e samba são elementos que permeiam com importância o
homem da comunidade. Um contexto gerado pela exclusão social que cria dignificações
de existências coletivas, que empoderam, trazem alegria, convivências e acima de tudo
sobrevivência. Como um dos entrevistados relata, “não existe nego véio triste vivo”.
Podemos destacar também a importância da experiência e do conhecimento de
vida dos homens mais velhos na manutenção de uma comunidade. Nesse contexto,
surgem importantes personagens da história, os “griôs”, como foi o Seu Nenê. Um
homem que dedicou sua existência à resistência cultural, agregou integrantes de toda
uma região da cidade em torno de uma comunidade identitária e deu significado a uma
população que a necropolítica abandonou.
A convivência interpessoal nas atividades da Batucada de Nego Véio promove
um ambiente de interação que reaproxima e cria novos laços, comprovando na prática
toda a importância da coletividade do povo negro, colocando em xeque a prepotência
de uma intelectualidade que há séculos não responde aos problemas estruturais da
sociedade. A Batucada de Nego Véio aparece para fixar valores ancestrais, ressignificar
e descobrir tudo aquilo que o embranquecimento não apaga.
Todos esses aspectos de convivências, expressões culturais e resistências
negras surgem como respostas às demandas impostas pela força do capitalismo e pelas
opressões oferecidas pela branquitude, que não buscam entender ou respeitar valores
ancestrais que são transmitidos de gerações a gerações através de costumes e oralidades.
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batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
Esses valores estrangeiros ao do samba pouco a pouco se apropriam dessa cultura, tendo
como intuito principal a produção de capital e consequentemente de poder, e é nesse
contexto que a Batucada de Nego Véio surge como um oásis para o indivíduo negro,
periférico em um religar às suas matrizes existenciais.
Referências
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311
batucada de nego véio
Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz
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por João Nogueira, 1977.
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LAVAPÉS, Ancestralidade e Permanência. Fapesp, Unesp, Coletivo Mapa Xilográfico,
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SAMBA À PAULISTA. Fragmentos de uma história esquecida. Direção de Eduardo
Mello, Produção de Yara Camargo e Leandro Freire. Financiamento: Pró Reitoria de
Cultura e Extensão da USP, Co-produção: TV Cultura, 2007.
SEU NENÊ DA VILA MATILDE. Direção de Carlos Cortez. Produção de CPC – Umes,
Birô de Criação e GULLANE Filmes, 2000.
WILSON DAS NEVES. Puxando Conversa. Direção de Valter Filé. Apoio da Casa
de Ciência da UFRJ, Cecip – Centro de Criação de Imagem Popular. Produção:
imagemnaação – Núcleo de desenvolvimento de comunicação e cidadania, 2004.
312
O Conceito de Verdade entre os Gregos
Antigos: Mito e História na Representação do
Negro no Cinema
Flávio Ribeiro de Oliveira
Instituto de Estudos da Linguagem – Unicamp
Em homenagem ao professor Celso Luiz Prudente,
por sua luta pelo Cinema Negro
1. Mito e verdade
Em nossa cultura, o homem comum costuma associar a ideia de “mito” àquelas
de “mentira”, de “falsidade”, de “engano”. Na pergunta “isso é mito ou realidade?”–
pergunta que tantas vezes ouvimos nos dias de hoje – o termo “mito” equivale a
“mentira”, “falsidade”.
Para os antigos gregos, contudo, a ideia de mito tinha um outro valor. Nosso
termo “mito” vem do grego antigo. Em grego, mûthos significa simplesmente “palavra”,
“relato”, “narrativa”: o mûthos é uma sequência de palavras que têm um sentido1. Pode
ter o mesmo valor que tem, para nós, a palavra “história” na expressão “vou te contar
uma história”. Essa “história” pode ser verdadeira. Portanto, entre os gregos, o mito
poderia ser uma forma de dizer a verdade.
O conteúdo dos cantos do poeta era mito: aquilo que Homero e Hesíodo
cantavam era mito. No período arcaico da história grega, normalmente o homem
1 Cf. Chantraine (1990), pág. 718.
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o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
comum tomava como verdadeiros e fidedignos os relatos feitos pelos poetas2. E as
Musas eram a garantia da verdade desses relatos. “Musa”, para um grego antigo, tinha
valor bem diferente daquele que hoje o termo tem normalmente entre nós: para nós,
“Musa” é uma bela mulher que inspira o poeta. Para os gregos, as Musas eram deusas –
elas eram as deusas que transmitiam o canto aos poetas. Aquilo que os poetas cantavam
era verdadeiro porque provinha diretamente das Musas: as Musas eram fonte do canto
do poeta e, portanto, garantia de sua verdade. Os gregos arcaicos não tinham o mesmo
conceito de “autoria” que temos hoje: por exemplo, para nós Dante Alighieri é o autor
da Divina Comédia. Isso é incontestável: o poema é dele; ele o concebeu e o criou; ele o
realizou. Para um grego antigo, contudo, o autor de um poema, em última instância,
era a Musa: as palavras do poema fluíam da Musa para o poeta; a Musa cantava através
da boca do poeta. Não é por acaso que os grandes poemas de Homero e de Hesíodo
começam com uma evocação a essa deusa: “canta, deusa, a ira de Aquiles, filho de
Peleu...” (Homero, Ilíada, I, 1: mênin áeide, theá, Peleiádeo Akhiléos...); “canta para mim,
Musa, o homem muito astucioso...” (Homero, Odisseia, I, 1: ándra moi énnepe Moûsa,
polútropon...); “comecemos cantando as Musas Helicônides...” (Hesíodo, Teogonia, I, 1:
Musáon Helikoniádon arkhómeth’ aeídein...); “Musas da Piéria,[...] cantai Zeus” (Hesíodo,
Os Trabalhos e os Dias, I, 1-2: Moûsai Pieríethen, [...] Dí’ ennépete...). Tais evocações da
Musa, da deusa, não são meros ornamentos retóricos: elas têm uma função essencial
no estabelecimento do estatuto epistemológico do poema, pois são a garantia do valor
de verdade da palavra cantada. Nesse sentido, o termo mûthos – o conteúdo da palavra
cantada pelo poeta – se aproxima do nosso conceito de História: é uma narrativa
verdadeira sobre o nosso passado, sobre os nossos antepassados, sobre as nossas origens.
2. Verdade e evidência
Portanto, na Grécia Arcaica, o mito narrado pelo poeta dizia a verdade. Mas
essa verdade não era definida – como o é entre nós – pela conformidade a determinados
princípios lógicos, por um lado, e pela conformidade empírica com a realidade
2 Cf. Pratt (1993), pág. 2: “archaic culture, according to the prevailing view, regarded the poet as a
speaker of truth”.
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o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
observada3: a palavra do poeta era verdadeira em si, por sua própria natureza sagrada:
ela não carecia de comprovação empírica.
Contudo, antes de prosseguirmos essa análise, convém esclarecer o sentido que
tinha, para os antigos gregos, o conceito de verdade. Como se concebia a verdade na
Grécia arcaica?
O termo que normalmente se usa em grego antigo para designar a verdade é
alétheia. Trata-se de um substantivo composto, formado de um prefixo (a-) e de um
radical (leth-)4.
Em grego, o prefixo a- tem o mesmo valor que tem, em português, o prefixo ade algumas palavras de origem grega (por exemplo, “apolítico”): seu valor é restritivo;
ele nega aquilo que o radical seguinte afirma (no exemplo dado, “apolítico” significa
“não-político”: o indivíduo apolítico é aquele que não se ocupa de política, que não faz
política, que nega a política).
O radical leth- é de origem indo-europeia: essa mesma raiz aparece em latim,
no verbo lateo (“estar escondido”, “passar despercebido”)5. O particípio presente latino
(latens) perdura no português, no adjetivo “latente” (“latente” é aquilo que está oculto,
que ainda não se manifestou, que ainda não apareceu). O verbo latino lateo corresponde
ao verbo grego lantháno (cujo infinitivo aoristo é latheîn), que também significa “estar
oculto”, “passar despercebido”.
Portanto, esse radical se associa basicamente à ideia de “ocultamento”. O termo
alétheia – com o prefixo negativo a – significa primitivamente “aquilo que não se oculta”,
“aquilo que não se esconde”. A verdade, na concepção grega arcaica, é aquilo que não
se oculta: a verdade é evidente; ela aparece inevitavelmente; ela não se esconde e não
pode ser escondida. Diríamos, hoje, em linguagem coloquial, que, para aqueles gregos
antigos, a verdade “está na cara”: é evidência imediata, inegável, insofismável. Imediata,
pois o acesso a ela é direto e não se requer nenhuma operação abstrusa do intelecto
para contemplar o verdadeiro; inegável, pois não se pode negar aquilo que aparece
diante de nossos olhos; insofismável, pois nenhuma cavilação sofisticada pode ocultá-la
ou mitigar sua força. A verdade é evidência plena: nenhuma retórica (hoje diríamos:
nenhuma “narrativa”) pode ocultá-la ou suprimi-la.
3 Cf. Detienne (2006), pág. 51.
4 Para uma análise da etimologia do radical leth- e de seus derivados, cf. Chantraine (1984), págs. 618619.
5 Cf. Ernout & Meillet (1951), pág. 610.
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Flávio Ribeiro de Oliveira
3. Verdade e esquecimento
O radical grego leth-, contudo, desenvolveu um valor secundário, dependente
daquele valor básico de “ocultamento”: ele também se associa à ideia de “esquecimento”.
A proximidade nas noções de “ocultamento” e de “esquecimento” é evidente, mesmo
entre nós: hoje, quando alguém se esquece de algo – do nome de alguém, por exemplo –
pode dizer: “me fugiu”. Aquilo que esquecemos foge de nós, se esconde de nós, se oculta
à nossa consciência.
Esse valor de esquecimento que o radical leth- pode assumir aparece, por
exemplo, no substantivo léthe (“esquecimento”). Como nome próprio, Léthe designa
um dos rios que circundavam o Hades, o Inferno dos antigos gregos. O Léthe era o rio do
esquecimento: as almas dos mortos, ao atravessarem o Léthe em sua jornada para o Hades,
se esqueciam de tudo o que viveram aqui, no mundo dos vivos. Esse mesmo valor de
“esquecimento” também aparece no substantivo lethargía (que corresponde a “letargia”
em português): o termo é composto do radical leth- (com valor de “esquecimento”) e
do tema do adjetivo argós (“inativo”), adjetivo composto, por sua vez, de um prefixo
a- privativo e da raiz de érgon (“trabalho”, “atividade”, “ação”): o estado de letargia é um
estado de esquecimento e de inatividade.
Com relação à alétheia, se emprestarmos à raiz o seu sentido derivado, o termo
assume uma nuance de significado importante: o verdadeiro é, sim, aquilo que não se
oculta (e que não pode ser ocultado), mas é também aquilo que não se esquece (e que
não pode ser esquecido)6.
4. Mito e falsidade
Para o público arcaico que ouvia os poemas de Homero, de Hesíodo e dos outros
poetas, os mûthoi que eles cantavam eram, em si mesmos, verdadeiros: sua fonte divina
– a Musa – garantia essa verdade. Contudo, no século IV a.C.,a respeito dos mûthoi
cantados pelos poetas, Platão (República, 377d) fez a seguinte afirmação: “de fato, eles
[Homero, Hesíodo e os outros poetas], compondo para os homens mitos falsos, os
narravam e os narram” (hoûtoi gár pou múthois toîs anthrópois pseudeîs suntithéntes, élegon
6 Para uma discussão sobre os dois valores de alétheia, cf. Pratt (1993), págs. 17-22.
316
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
te kaì légousin). Para Platão, os mitos compostos e cantados pelos poetas eram falsos,
mentirosos (pseudeîs).
Entre a concepção arcaica (aquela que via no mito dos poetas uma verdade
intrínseca) e a platônica (que considerava falsos os mitos), o que ocorreu? Por que a
palavra cantada do poeta deixa de ser considerada reveladora da alétheia, da verdadeevidência?
De fato, uma mudança radical ocorre no modo como se concebia a alétheia. A
partir do século V a.C., surge na Grécia uma forma de pensamento que altera aquela
concepção arcaica de verdade e modifica os modos de acesso a ela: surgem e se difundem
na Grécia a Filosofia e a História – disciplinas que propõem novos meios de se obter
a verdade, em substituição ao acesso direto a uma verdade-evidência transmitida pelo
canto sagrado do poeta. Para o filósofo, a verdade deve se conformar às exigências da
razão: está submetida a princípios lógicos verificáveis racionalmente. Para o historiador,
a verdade deve se conformar a princípios empíricos: é verdadeiro aquilo que eu observo
com meus próprios olhos, ou aquilo que testemunhas observaram com seus próprios
olhos; o verdadeiro deve se conformar ao mundo observado. Passa a haver critérios
formais internos para o estabelecimento da verdade – seu estabelecimento deixa de
depender de um caráter intrínseco de sacralidade garantido pela Musa. Nesse novo
universo intelectual, o conceito de verdade é problematizado.
A mudança que mais nos interessa, aqui, é aquela operada pelo pensamento
filosófico. Para o filósofo, a verdade deixa de ser evidente: como ela já não se revela
imediatamente aos homens por meio do canto sagrado do poeta, será preciso buscá-la
por meio do exercício metódico da razão, que revelará uma verdade que se ocultava. A
verdade deixa de ser o não-oculto, o imediatamente evidente, para se tornar aquilo que
está oculto, mas que se deve desocultar: desse momento em diante, há que se desentocar
a verdade.
Tomemos como exemplo o pensamento de Parmênides de Eleia: para esse
filósofo, o mundo aparente, aquilo que se mostra imediatamente aos nossos sentidos,
não revela a verdade. O mundo que aparece a nossos sentidos nos revela movimento:
aparentemente, tudo se move. Contudo, segundo Parmênides, a razão nos mostra que
o movimento não existe: é uma ilusão; o mundo real – o Ser – é perpétuo repouso. A
verdade do mundo deve ser buscada para além da aparência, para além da evidência,
para além daquilo que se revela imediatamente.
317
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
O pensamento de Heráclito de Éfeso aponta num sentido oposto ao de
Parmênides, mas conserva aquele mesmo princípio epistemológico (a verdade deve
ser buscada pela investigação racional, para além do que imediatamente se apresenta
aos nossos sentidos): para Heráclito, nossa percepção ordinária do mundo nos mostra
muitas coisas em repouso. Contudo, essa percepção é falsa: na verdade, mesmo aquilo
que aparentemente está em repouso está sempre a se mover, de modo imperceptível.
No universo, todas as coisas estão sempre em movimento: ainda que não o possamos
perceber pelos sentidos como uma verdade imediata e evidente, a razão nos mostra que
tudo flui e que o repouso não existe.
O surgimento e estabelecimento da Filosofia na Grécia antiga altera a concepção
arcaica de verdade: a verdade, que antes era uma evidência transmitida pela palavra
sagrada do poeta, insuflada pela Musa, passa a ser concebida como algo que está oculto,
para além da evidência imediata, e que deve ser buscado laboriosamente por meio
da atividade da razão. A verdade se problematiza: já não a recebemos mais pronta e
perfeita da boca do poeta; oculta, ela precisa ser buscada com método, com paciência e
com ciência.
Nesse quadro, o que acontece com o mûthos cantado pelo poeta?
A partir do advento da Filosofia e da História como disciplinas centrais na
cultura grega, o mito começa a perder seu estatuto de portador de uma verdadeevidência intrínseca7: gradativamente, passa a ser associado com as ideias de fantasia,
de fábula, de falsidade, de mentira. O mito é desalojado de sua posição epistemológica
de discurso verdadeiro e passa a equivaler a discurso fantasioso, fabuloso, mentiroso.
O homem cultivado não mais busca a verdade no mito cantado pelo poeta, mas no
discurso racional concebido pelo filósofo e pelo historiador. Com o tempo, as narrativas
míticas passam a ser vistas como mero entretenimento, desprovido de um valor de
verdade essencial. Configura-se a ideia do mito como falsidade, como mentira (ideia que
se vê, por exemplo, no valor que adquire o elemento de composição mito- em termos
técnicos da psiquiatria como “mitômano”, “mitomania” e derivados, que, em português,
começam a ser usados a partir do século XX: o mitômano é aquele que tem o hábito
doentio de mentir e de fantasiar).
7 Cf. Bremmer (1988), pág. 5: “The traditional mythoi now came under attack from philosophers and
historians”.
318
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
O mito, desde a Grécia do período clássico, ficará marcado por essa dialética entre
o verdadeiro e o falso: por um lado, é portador de uma verdade sagrada; por outro, é
veículo de falsidades, de fábulas fantasiosas. Não surpreende que um dos políticos mais
abjetos e asquerosos da história do Brasil seja chamado de “mito” por seus apoiadores –
que pensam, decerto, naquele valor antigo que tinha o mito: o veículo de uma verdade
sagrada. Contudo, a verdade histórica vê nessa personagem repugnante o outro valor
de mito: ele é uma farsa, uma falsidade, um reles mentiroso.
O mito como mentira: The Birth of a Nation, de D. W. Griffith
No quadro teórico dos conceitos gregos de verdade (a alétheia, que era, em
princípio, evidência sagrada e, mais tarde, se problematiza e passa a ser vista como
verdade oculta que deve ser desentocada) e de mito (o mûthos, que era, na época arcaica,
discurso verdadeiro e sagrado e que passa a ser, depois do surgimento da Filosofia e da
História, narrativa fabulosa, mentirosa) e considerando a tensão dialética entre seus
significados, pretendo discorrer brevemente sobre um filme historicamente mentiroso
– The Birth of a Nation, filme racista concebido e realizado por homens brancos – e
sobre a necessidade da reação histórica – e reação afirmativa da verdade histórica –
promovida pelo Cinema Negro.
Lançado em 1915, The Birth of a Nation havia sido rodado em nove semanas,
entre julho e outubro de 1914. O filme, dirigido por D. W. Griffith, baseava-se em
um roteiro de Thomas Dixon Jr. que, por sua vez, era a adaptação de um romance do
próprio Dixon intitulado The clansman: a historical romance of the Ku Klux Klan. Dixon,
nascido na Carolina do Norte em 1864, era um suprematista branco fanático que
costumava denunciar os males da miscigenação racial e apontar a imperiosa necessidade
de se reprimir, segregar e até mesmo expulsar os negros da América8. Seu roteiro – e o
filme dirigido por Griffith – tinha a pretensão de apresentar um relato verdadeiro9 dos
8 Cf. Pitcher (1999), pág. 51.
9 Franklin (1979, pág. 426) afirma que Dixon estava tão confiante na exatidão histórica do roteiro do
filme, que oferecera um prêmio de mil dólares para qualquer um que fosse capaz de apontar alguma imprecisão histórica emseu relato. Ainda segundo Franklin (1979, pág. 425), Dixon afirmara que o filme
“was the true story of Reconstruction and of the redemption of the South by the Ku Klux Klan” (grifo
meu). Cf. também Briley (2008), pág. 455: “Griffith asserted that he was simply presenting the historical
truth” (grifo meu).
319
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
acontecimentos em um período delicado da História do Sul dos Estados Unidos – aquele
período chamado de “Era da Reconstrução”, após a derrota dos confederados sulistas na
Guerra Civil, que terminara em 1865 com a derrota do Sul e com o consequente fim da
escravidão, imposto ao Sul pelos vencedores unionistas.
Os autores do filme – o roteirista Dixon e o diretor Griffith – tinham a pretensão de
apresentar um relato fidedigno de determinado período da História norte-americana. E
muitos dos que assistiram ao filme em seu lançamento e nos anos subsequentes também
consideravam historicamente verdadeiro aquilo que o filme relatava. E menciono, aqui,
apenas um exemplo: em 18 de fevereiro de 1915, Woodrow Wilson, presidente dos
Estado Unidos, assistiu ao filme, junto com Dixon, em uma sessão privada na Casa
Branca. Ao final da projeção, teria dito a Dixon: “it is like writing history with lightning.
And my only regretis that it is all so terribly true”10. O próprio presidente dos Estados
Unidos, portanto, considerava que aquele relato cinematográfico apologético da Ku
Klux Klan era História escrita com relâmpagos – e que aquela história era verdadeira.
E não se engane o leitor: a lástima (“regret”) de Woodrow Wilson é pelo sofrimento
dos brancos retratado no filme: ele lastima que esse sofrimento seja terrivelmente
verdadeiro...
Contudo, antes de avançarmos, convém apresentar aqui um rápido resumo do
nauseabundo enredo de The Birth of a Nation.
O filme nos mostra o destino de duas famílias norte-americanas de elite no
período da Guerra Civil e da Reconstrução – famílias amigas que a guerra separa: os
Cameron são do Sul dos Estados Unidos; são retratados de forma idealizada e encarnam
os ideais e valores do Sul. Os Stoneman são do Norte. Phil, Tod e Elsie Stoneman são
filhos de Austin Stoneman, um Republicano radical que era membro do Congresso
dos Estados Unidos. Phil e Tod são colegas de escola de Ben e Wade Cameron:
convidados pelos amigos, passam uma temporada de visita na casa da família Cameron
em Piedmont, na Carolina do Sul. Durante essa temporada, Phil Stoneman apaixona-se
por Margaret Cameron, irmã de seus colegas Ben e Wade; Ben Cameron, por sua vez,
ao ver uma fotografia de Elsie Stoneman, irmã de Phil e Tod, também se apaixona por
ela. Os romances entre esses dois casais orientarão a parte sentimental do filme.
Quando irrompe a guerra, os rapazes Stoneman retornam ao Norte para
ingressar no exército da União; os rapazes da família Cameron, por sua vez, alistam10 Franklin (1979), pág. 425.
320
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
se no exército confederado, do Sul rebelde. Ben Cameron é ferido em batalha e feito
prisioneiro; é levado para um hospital em Washington, onde Elsie Stoneman trabalha
como enfermeira: finalmente conhece pessoalmente a irmã de seu amigo, por quem
tinha um amor platônico.
Por outro lado, no plano político, Austin Stoneman – pai de Elsie, de Tod e
de Phil – busca, por meio de astúcia, sublevar os negros do Sul contra seus senhores
brancos. Tod Stoneman morre na guerra, assim como Wade e Duke Cameron (outro
dos irmãos Cameron).
A guerra enfim termina, com a derrota do Sul – eo fim da luta e da carnificina
parece trazer esperança para essas duas famílias e para a nação: o país, agora, é guiado
com juízo e sensatez por Abraham Lincoln – na visão delirante de Dixon, Lincoln era
um verdadeiro amigo do Sul11. Contudo, Lincoln é assassinado, e Austin Stoneman
passa a usar seu poder político para estabelecer um governo negro nos estados sulistas
derrotados que antes formavam a Confederação.
A partir daí,Austin Stoneman e outros republicanos radicais do Congresso
impõem sua lei ao Sul derrotado, que passa a ser dirigido por oportunistas do Norte, com
a ajuda dos antigos escravos – que são retratados como gente sem educação e facilmente
controlável pelos espertalhões do Norte. Legisladores negros são retratados de forma
caricata,embriagando-se, tirando os sapatos e jogando cartas durante uma sessão da
assembleia... Os negros submetem seus antigos senhores a sucessivas humilhações e
violências. Para proteger as famílias brancas acuadas e vilipendiadas, Ben Cameron
idealiza e organiza a Ku Klux Klan.
Austin Stoneman, para controlar melhor a situação, mudara-se para Piedmont,
na Carolina do Sul, onde passou a patrocinar a carreira política de um mestiço chamado
Silas Lynch, que termina por se tornar vice-governador do estado.
No plano afetivo, o término da guerra traz o reatamento dos romances entre os
rapazes e moças das duas famílias: Ben e Elsie, Phil e Margaret.
Mas as desgraças se sucedem: Gus, um soldado negro da União, ataca sexualmente
a jovem Flora Cameron (irmã mais nova de Ben Cameron); a moça, para evitar o
estupro, atira-se de um penhasco e morre. Ben, para vingar a irmã, convoca a Ku Klux
Klan: Gus é capturado, julgado e executado pela Klan.
11 Cf. Pitcher (1999), pág. 51.
321
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
Em seguida, Phil Stoneman e o a família Cameron (com exceção de Ben) são
perseguidos por tropas de negros, que buscam prender todos aqueles que podem estar
associados à Ku Klux Klan. Junto com dois veteranos do exército da União e com a filha
pequena de um deles, Phil e os Cameron se refugiam em uma pequena cabana afastada.
A cabana é cercada pelos negros.
Enquanto isso, na cidade, o vice-governador Lynch (que é mestiço) faz avanços
sexuais para Elsie Stoneman e a pede em casamento. Ela resiste, mas é, então, presa
e amordaçada por ele. Lynch diz a Austin Stoneman que pretende se casar com uma
mulher branca; este não se opõe, mas, quando fica sabendo que aquela mulher branca é a
sua própria filha, fica arrasado – contudo, nada pode fazer: Lynch tornara-se poderosos
demais.
Neste momento do filme, Ben e os cavaleiros da Ku Klux Klan entram na
cidade: eles são mostrados como heróis que gloriosamente chegam em tempo de salvar
os brancos inocentesque estavam sendo oprimidos e ameaçados pelos negros – e,
principalmente, para salvar a jovem Elsie, sequestrada pelo lascivo e brutal Lynch. Ao
perceber a chegada da Klan, Lynch, muito assustado, tenta fugir, levando Elsie consigo,
mas os homens da Klan o detêm.
Simultaneamente, Phil Stoneman e os Cameron permanecem sitiados pelos
soldados negros na cabana afastada (do ponto de vista técnico, Griffith faz aqui um
admirável trabalho de montagem, lançando as bases do que viria a ser a linguagem
moderna do cinema).
Os cavaleiros da Klan, cavalgando heroicamente para salvar as vítimas dos negros,
são assimilados de forma romântica a lendários cavaleiros medievais, empenhados em
proteger os justos e inocentes12. Quando finalmente Elsie é salva das garras do malvado
Lynch, o filme nos mostra os cavaleiros da Klan como heróis que resgatam a virgem
ameaçada. Elsie, libertada de seu raptor, atira-se enfim aos braços de seu amado, Ben.
Lynch, o raptor, é capturado pela Klan. O filme não o mostra, mas o próprio nome de
Lynch sugere um incentivo ao linchamento como forma de punição por sua soberba e
por sua violência: Griffith e Dixon parecem sugerir que o linchamento seria um meio
legítimo de controle social sobre afro-americanos que se recusassem a ficar no lugar que
lhes é próprio13.
12 Cf. Briley (2008), pág. 457.
13 Cf. Briley (2008), págs. 457-458.
322
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
Executado com sucesso o resgate de Elsie, os cavaleiros da Klan partem para
salvar os brancos sitiados na pequena cabana. Neste momento, os soldados negros estão
tentando invadir a cabana; na tentativa, eles rasgam as roupas de Margaret Cameron
(irmã de Ben e namorada de Phil): aqui também – como no caso de Elsie, assediada
antes por Lynch – há enorme tensão sexual: nesse filme, a sexualidade do negro é
constantemente retratada como uma ameaça aos brancos14.
Na cabana sitiada, os homens brancos se preparam para matar as suas próprias
filhas: a morte seria menos terrível do que o estupro a que inevitavelmente os negros as
submeteriam. Contudo, mais uma vez os heróis da Klan chegam em tempo, salvam os
justos e inocentes das garras dos negros arruaceiros e preservam a honra das mulheres
brancas do Sul – preservam, enfim, a própria civilização branca do Sul. Elsie e Margaret
retornam para casa sãs e salvas, imaculadas, em um cortejo triunfante, cercadas pelos
cavaleiros da Ku Klux Klan, seus protetores e guardiães da civilização branca contra as
ameaças dos negros violentos e insubordinados. Nas ruas, o povo – o povo branco, bem
entendido – saúda os heróis da Klan; os negros se encolhem e se esgueiram, derrotados
e medrosos.
Depois de salvar a pureza das mulheres brancas, os membros da Klan forçam
os negros a entregar as suas armas. No plano seguinte, o filme mostra alguns negros
tentando votar nas eleições legislativas – mas os valentes membros da Ku Klux Klan,
armados, os expulsam: Como nota Briley, “black sexuality and political power are
contained”15.
A história se conclui com um duplo casamento (Phil Stoneman casa-se com
Margaret Cameron; Ben Cameron, com Elsie Stoneman), unindo as famílias Cameron
e Stoneman e simbolizando a unificação do Norte e do Sul brancos.
O filme racista de Dixon e de Griffith é isto: uma descarada apologia da Ku
Klux Klan, uma explícita defesa do suprematismo branco.A má-fé aleivosa dos autores,
em seu trabalho de falsificação histórica, retrata os negros como homens libidinosos,
arrogantes, bêbados, violentos, grosseiros, cruéis, a exercer sua petulância e sua lascívia
contra brancos nobres, pacíficos, generosos e bem-educados. Mc Ewan qualifica The
Birth of a Nation como “extreme filmic exemple of racial misrepresentation”16. Simmons
14 Cf. Briley (2008), págs. 457-458.
15 2008, pág. 458.
16McEwan (2007), pág. 98.
323
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
chama-o de “one of the ugliest artifacts of American popular art”17. Briley se refere ao
filme como “racista epic”18. Pitcher afirma que “far from capturing the ‘truth’ of the
Civil War and Reconstruction, [...] Birth presentes a skewed version of this period that
relies on racist themes”19. Para Stokes, “the racism of this film was not episodic and
intermitent. It was built into its very structure and narrative”20.
Na concepção e na montagem do filme, Griffith conscientemente enfatiza a
ideia de que afro-americanos não eram e nunca poderiam ser iguais aos brancos na
sociedade norte-americana: navisão do diretor, os negros são naturalmente inferiores
aos brancos e revelam-se incompetentes sempre que buscam assumir as funções que
antes eram exercidas pelos brancos21.
O filme de Dixon e Griffith é uma clamorosa e ultrajante farsa. Ele apresenta
mentiras torpes como se fossem verdades históricas. É cheio de distorções, meiasverdades e falsificações históricas manifestas, descaradas22. Está visceralmente
impregnado do mais abjeto racismo, que orienta seu projeto de uma sociedade branca
ideal nos Estados Unidos.
Não é necessário perder muito tempo para refutar, do ponto de vista histórico,
as falsificações operadas por Dixon e Griffith. Baste a afirmação de Franklin, que resume
bem a questão: “there is not a shred of evidence to support the film’s depiction of blacks
as impudent, vengeful, or malicious in their conduct toward the whites”23. Por outro
lado, filme não faz nenhuma menção aos horrores praticados pelos brancos contra
os afro-americanos durante toda a história dos Estados Unidos24: nenhuma menção
ao genocídio de um povo, às atrocidades da escravidão, à imposição de uma miséria
material atroz, à segregação, aos linchamentos...
Contudo, embora nenhum historiador sério dê valor às patacoadas de Dixon
e Griffith, a fantasiosae abominável versão que esses autores apresentaram sobre o
17 Simmons (1993), pág. 105.
18 Briley (2008), pág. 454.
19 Pitcher (1999), págs. 50-51.
20 Stokes (2015), pág. 607.
21 Cf. Stokes(2015), págs. 605-606.
22 Cf. Franklin (1979), págs. 426-427.
23 Franklin (1979), pág. 427.
24 Cf. Franklin (1979), pág. 432: não se encontra no filme “anything about the oppression of freedmen
by Southern whites, the reign of Southern white terror that followed the close of the Civil War, the
persistence of white majority rule even during Radical Reconstruction”.
324
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
período da Reconstrução teve consequências nefastas: contribuiu para o renascimento
e fortalecimento da Ku Klux Klan nos Estados Unidos nas primeiras décadas do século
XX25. O projeto político que o filme propõe é o de uma nação na qual os negros estejam
excluídos de qualquer protagonismo social ou político: a nova nação que nasce em The
Birth of a Nation é uma nação branca, com a população negra desarmada, submissa aos
brancos, proibida de votar e afastada das ruas26. Como notou Stokes, trata-se do projeto
de uma “dominant white society from which African Americans had been excluded”27.
O cinema que mente
Retornemos àquele conceito grego de verdade – a alétheia, a verdade que não
se esconde, a verdade que não se esquece. O cinema de Griffith mente porque, ao
contrário do que se faz quando se busca a alétheia – o desvelamento de uma verdade
oculta – Griffith, ao invés de revelar,mantém oculto. Seu cinema é um cinema de
ocultamento. Em seu cinema estão ocultos o trabalho massacrante dos negros, a miséria
material forçada, a insalubridade, a exclusão de toda e qualquer participação política,
os castigos físicos, a opressão sofrida cotidianamente, os linchamentos. Seu cinema
oculta a humanidade do homem negro e da mulher negra. O que seu cinema revela
não é a alétheia, não é verdade-evidência: são falsificações. Ao criar suas falsificações
históricas, Griffith perpetra vilezas morais nauseantes, se pensarmos na realidade
brutal da condição dos negros americanos no século XIX: na falsificação griffithiana da
História, são os negros que oprimem os brancos inocentes! Griffith oculta a verdade e
tira da cartola falsidades sórdidas, que expõe e tenta vender como se fossem verdades:
seu cinema é um cinema falsário.
Portanto, quando Griffith estabelece o mito da fundação da nova nação
americana, esse mito é mito no segundo sentido da palavra: é um relato falso, é uma
fábula mentirosa. Não aquele mito arcaico, que trazia a verdade imediata e sagrada,
25 Cf. Pitcher (1999), pág. 51; “not surprisingly, the resurgence of the Ku Klux Klan during the late
1910s and 1920s was greatly facilitated by the popularity of this epic film”. Cf. também Lennard (2015),
pág. 616: “The Birth of a Nation is often credited with reviving the Ku Klux Klan, or at least reviving
popular interest in the organization”; cf. também Simcovitch (1972), passim.
26 Cf. Stokes (2015), pág. 606.
27 Stokes (2015), pág. 606.
325
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
garantida pela deusa, mas o mito falsificado e falsificador, filho do engano e pai das
fake-news de hoje, patrono de movimentos fascistóides que desprezam a verdade e que
contam com o triunfo da mentira para justificar a opressão que exercem sobre os que
não pertencem a seu grupo, a sua milícia, a sua casta, a sua religião, a sua raça.
7. Verdade e anistia
A nossa palavra “anistia” também é uma palavra de origem grega: vem do grego
amnestía, que significa em primeiro lugar “esquecimento” e, a partir daí, “perdão”,
“anistia”. A palavra grega se compõe de um prefixo a- privativo e de um radical mneque significa “lembrança”, “memória”, “recordação” (o mesmo que aparece em mnéme,
“memória” em grego: daí vem o adjetivo “mnemônico” do português). Anistiar alguém
é deixar de se lembrar de seus crimes.
Se considerarmos os sentidos básicos de alétheia em grego – “o que não se oculta”
e “o que não se esquece” – verificaremos que essa ideia de verdade se opõe à ideia de
anistia: a anistia propõe o esquecimento; a verdade é aquilo que não se pode esquecer.
Não podemos anistiar o racismo, porque não podemos esquecer o racismo – e
esquecer é anistiar. Não podemos esquecer o cinema racista e não podemos esquecer
as ofensas ignóbeis de Griffith – e devemos refutar Griffith: ao mito aleivoso, portador
de falsidade, deve-se responder com o mito autêntico, aquele que funda uma visão de
cultura: o mito que porta em si uma verdade sagrada. Como resposta antropológica ao
cinema falsificador, devemos afirmar um cinema-verdade; como resposta ao cinema que
oculta a verdade, devemos criar um cinema que revele o que se ocultava; em oposição
ao cinema que propõe o esquecimento, devemos nos lembrar sempre – sem anistia.
8. Cinema negro e a verdade histórica sobre os negros da América
Não podemos aceitar que a História dos negros da América continue a ser
contada apenas pelo opressor branco – apenas por aquele que o antropólogo e cineasta
Celso Luiz Prudente classifica como o “euro-hétero-macho-autoritário”28: daí a
28 Sobre esse conceito antropológico, cf., por exemplo, Prudente & Costa Oliveira (2020), pág. 51, pág.
55, etc.; Prudente & Oliveira (2017), pág. 113, etc.
326
o conceito de vertade entre os gregos antigos
Flávio Ribeiro de Oliveira
importância fundamental de resgatar o olhar do negro e a voz do negro, para que ele
conte a sua própria História, para que ele coloque em evidência a alétheia – a verdade
que estava oculta, mas que não se deve mais ocultar, que estava esquecida, mas que não
se deve mais esquecer. Para que, assim, o mûthos mentiroso afirmado por racistas como
Dixon e Griffith desapareça no confronto com a verdade devastadora que não se pode
mais esconder, que não se pode mais esquecer e que não será anistiada – uma verdade
de opressão, de brutalidade, de massacre, de linchamento, de genocídio; uma verdade
que não foi abolida por atos burocráticos de governantes brancos que pretendem ter
suprimido a escravidão: essa verdade continua viva, interpelando-nos nas periferias,
nas favelas, nos subúrbios pobres de toda a América.
O Cinema Negro dá voz aos que foram oprimidos– e que o são ainda hoje – para
que digam a verdade, para que a opressão passada nunca seja esquecida e para que a
opressão presente nunca seja ocultada; ao fazê-lo, o Cinema Negro resgata o mito como
verdade, como fundamento antropológico de uma narrativa verdadeira sobre nossas
origens – narrativa verdadeira e, por isso mesmo, sagrada: nosso mito fundador, que
está na raiz de nossa cultura e que há de gerar uma nação muito diferente daquela que
nasceu com The Birth of a Nation.
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328
Cinema na Educação Infantil: a construção
da cultura a partir da representatividade do
personagem Kiriku
Karla Isabel de Souza1
Rogério Garcia Fernandez2
Contextualização do Personagem
Kiriku é um personagem criado pelo ilustrador francês Michel Ocelot inspirado
em um conto de fadas africano. Com Kiriku o animador francês ficou mundialmente
conhecido e o personagem ganhou uma trilogia3. O primeiro filme da trilogia é “Kiriku e
a Feiticeira” (1998),que foi realizado a partir de uma técnica de papercutting. Papercutting
ou corte de papel,é uma técnica chinesa do século IV dC que evoluiu em todo o mundo
para se adaptar aos diferentes estilos culturais a aos avanços tecnológicos. Nessa técnica
os desenhos são cortados em uma única folha de papel, em oposição a várias folhas
adjacentes, como na colagem.
O longa “Kiriku e a feiticeira”, ganhou, em 1999, um prêmio no Festival de
Animação Annecy e a partir dessa data o personagem ganhou o mundo. Mas afinal,
quem é Kiriku?
1Pedagoga pós doutora em Educação pela Universidad Alcalá Henares – Espanha. Professora da Faculdade Sesi de Educação
2 Sociólogo doutor em comunicação audiovisual e publicidade pela Universidad Complutense de Madrid - Espanha
31998: Kiriku e a Feiticeira (Kirikou et la sorcière), 2005: Kiriku e os animais selvagens (Kirikou et lesbêtessauvages), 2012: Kiriku e homens e mulheres (Kirikou et leshommes et lesfemmes)
329
cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
Kiriku é um menino que morava em uma aldeia indígena, em Senegal, África.
Uma criança muito inteligente, corajosa, dotada de muita esperteza e sabedoria. Com
tantas habilidades Kiriku se torna uma liderança na aldeia já no primeiro filme. No
primeiro longa Kiriku luta contra uma feiticeira do mal. Em suas estratégias não vemos
violência, o pequeno herói se caracteriza por agir usando a sua inteligência.
Já no primeiro filme descobre que a feiticeira tinha um problema e vivia em um
grande sofrimento. Kiriku então, usando estratégias orientadas pelo seu avô, consegue
retirar o feitiço que causava sofrimento na feiticeira. Libertando a feiticeira consegue
também que sua aldeia passe a viver em paz.O segundo filme, “Kiriku e os animais
selvagens”, é uma história que conta algumas ações que omenino Kiriku realizou no
primeiro longa, mas que não apareceram no filme. As histórias são contadas pelo avô
que entende que as ações não devem ser esquecidas.
No terceiro longa metragem, “Kiriku, os homens e as mulheres”, o avô vai até
uma gruta para novas revelações. O avô se recordava de outras situações interessantes
da infância de Kiriku, do tempo em que ele ajudava os homens e mulheres de sua aldeia,
e também de outros lugares. São novas revelações sobre o menino que o longa vem
apresentar com uma narrativa é muito bem construída que envolve o expectador.
Os expectadores em questão são as crianças, que tem em sua história uma trajetória
de muitas conquistas políticas, com grandes reconhecimentos, muitas possibilidades,
mas que exigem atenção da sociedade. Este texto busca, em primeiro lugar, mostrar a
importância de personagens como Kiriku para pautar a representatividade das crianças
na sociedade, bem como pautar temas relevantes relacionados à infância chamando a
atenção da sociedade para temas relevantes à infância.
Assim, este texto tem usa recentes pesquisas na área de infância, que tratam da
cultura da infância. O personagem Kiriku ganha relevância nessa construção porque
apresenta as questões teóricas em forma de narrativa. Nesse contexto é preciso primeiro
apresentar a criança da nossa sociedade, na sequencia dialogar com as características
que compõe a cultura da infância e por fim dialogar com o personagem Kiriku.
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cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
Apresentando as crianças - história
Podemos começar pelo reconhecimento político da criança no Brasil. Na
verdade, o reconhecimento da criança como cidadão é muito recente. No Brasil, foi a
partir da Constituição de 1988 que a criança pequena e a criança bem pequena passam a
ter seus direitos reconhecidos e ganham o direito a educação infantil.
O movimento pelo direito à educação infantil começa nos anos 70 com as
mulheres trabalhadoras (Faria, 2015), que buscam espaço para deixar seus filhos e
filhas seguros quando vão trabalhar. Mas somente depois da Constituição de 1988 são
publicados documentos como o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e
a LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) onde as crianças pequenas e as
crianças bem pequenas passam a ser reconhecidas, ou seja, passam a ser cidadãos de
direito.
Mesmo tendo sido uma luta das mulheres trabalhadoras (Faria, 2015) o direito à
educação infantil é da criança, algo que é bastante relevante quando tratamos de cultura,
pois, sendo direito da criança, a família não tem a decisão final sobre a entrada ou não da
criança na escola. Claro que ainda vivemos um momento de grande crise, pois o direito
das crianças bem pequenas ainda não estão totalmente atendido. Vivemos falta de vagas
em espaços públicos na educação infantil.
Segundo o ECA é dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:
ensino fundamental (6 a 14 anos), obrigatório e gratuito; progressiva extensão da
obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; e atendimento em creche e pré-escola às
crianças de zero a 6 anos de idade, sem deixar claro que esse atendimento será gratuito.
Um segundo ponto que aparece juntamente com a questão dos direitos das
crianças pequenas e bem pequenas é a discussão sobre o conceito de infância. É importante
destacar que a infância é uma fase da vida que possui muitas particularidades, segundo
Kramer (2003), os olhares sobre a infância são construídos social e historicamente. Ou
seja, para além do direito ao acesso e permanência é preciso que outras garantias sejam
asseguradas.
O modo como as crianças são introduzidas na vida social varia de acordo
com a organização de cada sociedade. Historicamente a criança passou por diferentes
contextos até o reconhecimento de seus direitos, como já mencionado, mas esse fato
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cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
se deu porque, a partir de pesquisas na educação infantil se entendeu que a criança
bem pequena aprende e constrói cultura. Além de ser uma construção que aconteceu
recentemente ainda precisa ser entendida e ser aceita pela sociedade.
Philippe Ariès (1978) faz um estudo sobre a infância baseado em imagens,
principalmente pinturas, conseguindo chegar a algumas observações que explicam
alguns entendimentos sociais sobre a criança. Na Idade Média (Ariès, 1978) as famílias
não reconheciam as crianças como pertencentes ao grupo até que se tivesse certeza que
conseguiriam sobreviver. As altas taxas de mortalidade geravam insegurança, assim as
crianças bem pequenas não eram parte constitutiva da família.
Ao atingir uma idade em que estava garantida a sobrevivência, a criança passava
a integrar as famílias. Ariès (1978) analisando as pinturas medievais mostrando, por
exemplo, as vestimentas das crianças, que, ao serem idênticas as dos adultos, mostra
que não existia traços que os distinguisse, a única diferença entre criança e adultos era
apenas o seu tamanho. Ou seja, as crianças passam a integrar as famílias mas são vistas
como adultos em miniatura.
Uma outra curiosidade é a forma como as crianças eram introduzidas à sociedade,
desde que aprendiam a falar, acompanhavam um adulto em sua trajetória diária, e por
imitação aprendiam e eram introduzidas ao grupo, a um oficio, a uma responsabilidade
(Ariès, 1978). Um outro fato interessante, são as brincadeiras, que hoje são entendidas
como meio de aprendizagem das crianças (Kishimoto, 2011), na idade média, foram
observadas porAriès (1978), como uma forma de interação com os adultos.
Os relatos de Ariès (1978) mostram as crianças integradas em fases da vida.
Na primeira, as crianças se relacionavam com os brinquedos, assim o autor denomina
de“Idade dos brinquedos”, onde as crianças brincam com cavalo de pau e bonecas. Já
identificando as atividades a serem desenvolvidas na vida adulta.
O segundo momento é a “Idade da escola”, onde as imagens retratam os meninos
aprendendo a ler e as meninas aprendendo a fiar. Por fim, as imagens então deixam de
retratar as crianças em atividades consideradas preparatórias para a vida adulta e passam
a retratar a efetivamente a vida adulta. As idades da vida da criança não correspondiam
apenas às etapas biológicas, mas sim a funções sociais(Ariès, 1978).
No século XVII acontece uma mudança considerável em respeito ao sentimento
de infância, com o avanço da medicina, a relação deixa de ser indiferente. A criança
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cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
passa a ser reconhecida e começa a ser tratada com carinho e atenção, um sentimento
inteiramente novo e as famíliaspassam a se organizar em torno das crianças(Ariès, 1978).
Surge o sentimento de infância, onde os adultos passam a se divertir com as crianças,no
que Ariès (1978) chama de sentimento de “paparicar”, onde as mulheres passam a ser
incumbidas de cuidar dessas crianças, ou seja, as mães ou as amas (mulheres escravas, ou
empregadas que ficavam encarregadas de cuidar das crianças) passam a dedicar o tempo
diário no cuidado com a criança.
Ainda no século XVII a criança deixou de ser divertida e se tornou educável,
pois a “paparicação” tornou-se um problema, já que as crianças ficavam mimadas e
mal-educadas(Ariès, 1978). Quanto ao conceito da infância, se observa a denominação
de “adultos imperfeitos”. Nesse contexto de dificuldade em entender a infância alguns
estudos culturais passam a ser importantes.
Como um terceiro ponto podemos pensar na perspectiva de introduzir as
crianças ao mundo do conhecimento, ou seja, a entrada da criança na escola. A escola
é um importante meio de introduzir as crianças em outras culturas, à socialização, mas
também cumpre o papel de dar acesso aos conhecimentos. Vale um ponto de observação
para o fato daescola começar atendendo apenas os meninos, as meninas passam a ter
acesso a este espaço apenas a partir do século XVIII. O modelo de escola adotado acaba
também contribuindo na construção de novos significados para a infância.
Apresentando as crianças –as pesquisas na educação infantil
Para além dos estudos pedagógicos sobre educação, contribuições da psicologia,
sociologia, outras áreas ajudaram a chegar nas concepções que temos hoje sobre criança
e infância. Autores como Walter Benjamin (2004; 2013) trazem grandes contribuições,
mostrando muitas vezes a perspectiva e olhar a partir da infância, ou da memória que
temos da nossa infância. No livro “Rua de mão única — Infância berlinense: 1900” onde
Benjamin (2013)traz uma série de fragmentos que narram a experiência de sua infância
serviram e servem para mostrar como a infância era organizada na perspectiva da
criança.
Benjamin (2013) se apresenta como uma criança da burguesia na Berlim do
início do século XX que mantem uma relação com objetos e situações que marcaram
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cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
suas lembranças. Suas descrições tratam de cenas e lugares, outras são relatos de sonhos
e reflexões detalhados de como era sua vida. Relatos, como os de Benjamin (2013),
serviram tambémpara mostrar a importância de objetos e situações na representatividade
e construção da personalidade de uma pessoa.
O que se observa nos relatos de Benjamin (2013),é que não são apenas descrições
ou relatos, são momentos de interação, do que hoje entendemos como construção de
cultura para a criança(Kuhlmann JR, 1998). Há, sem dúvidas, sentimentos envolvidos.
“Do mesmo modo que, a partir da casa que habita e do bairro onde
mora,criamos uma imagem da natureza e da personalidade de alguém,
assimtambém eu fazia em relação aos animais do Jardim Zoológico. Desde
osavestruzes, formando alas sobre um fundo de esfinges e pirâmides,
até o hipopótamo, que ocupava o seu pagode como um mágico prestes a
encarnarno deus demoníaco a quem serve, não havia praticamente animal
cuja habitação eu não adorasse ou tem esse. Mais raros eram aqueles que
tinhamalgo de especial já na localização dos seus abrigos. Eram quase
semprehabitantes da zona periférica do Jardim Zoológico, onde este
confinava comos cafés e o recinto de exposições. De todos os habitantes
dessas zonas, omais especial era sem dúvida a lontra” (Benjamin, 2013, 84).
Considerando os avanços na concepção de infância entendemos que a brincadeira
tem um papel muito importante, pois os teóricos passaram a considerar a atividade de
brincar como algo que tem significação para a construção do entendimento de infância.
“Brincar não é uma dinâmica interna do indivíduo, mas uma atividade dotada de
significação social que, como outras, necessita de aprendizagem” (Brougère, 1995, 20).
A educação infantil passa a trabalhar com o propósito de desmistificar a ideia
de que o brinquedo é próprio da infância e passa a associar a cultura humana em geral.
Vale destacar que a criança pequena é iniciada na brincadeira por pessoas que cuidam
ou estão próximas a ela. Para Brougère (1995) a criança entra progressivamente na
brincadeira do adulto, de quem ela é inicialmente o brinquedo, o espectador ativo e
depois o real parceiro.
“Hoje, a imagem de infância é enriquecida, também, com o auxílio de
concepções psicológicas e pedagógicas, que reconhecem o papel do
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cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
brinquedo, da brincadeira, como fator que contribui para o desenvolvimento
e para a construção do conhecimento infantil” (Kishimoto, 1997, 111).
As pesquisas na educação infantil definem e explicam a diferença de jogo,
brinquedo e brincadeira. Segundo Kishimoto (2011)a definição de jogo não é tarefa
fácil, já que cada pessoa entende do seu jeito, quebra cabeça ou jogos políticos, cada um
entende da sua maneira. O jogo para Kishimoto (2011, 1997) pode ser entendido como:
1. Sistema linguístico dentro de um sistema social;
2. Sistemas de regras;
3. Objeto.
No primeiro caso, o jogo depende de um contexto social e da linguagem,
considerando que o jogo tem valor dentro de um contexto, significa assumir a ideia e
aplicar as experiências que surgem na sociedade, desse modo o jogo tem a função que a
sociedade lhe atribui (Kishimoto,2011).
No segundo caso, o jogo assume uma estrutura sequencial, que expõe sua
modalidade, por exemplo, jogo de dama, que tem regras diferentes do jogo de xadrez,
essas estruturas sequenciais diferenciam o jogo, quando se joga executamos as regras ao
mesmo tempo em que se desenvolve uma atividade lúdica.
Segundo Huizinga (1996), “é no jogo e pelo jogo que uma civilização se
desenvolve”, nessa perspectiva fica entendido que o jogo e a brincadeira estão na essência
do ser humano ajudando em nossa construção, o brincar torna-nos mais humanos na
medida em que nos ajuda a nos relacionar com imprevistos.
Brincadeiras e jogos, são para crianças, mesmo na escola, uma forma de
entender e utilizar regras. Jogos são práticas muito empregadas no processo de ensino
aprendizagem de matemática, por exemplo,onde é possível se apropriarde diferentes
conteúdos, para além dos próprios conceitos matemáticos. Para Kishimoto (1996) é
importante considerar a vivencia da criança para e como o jogo.
“... enquanto fato social, o jogo assume a imagem, o sentido que cada
sociedade lhe atribui. É este o aspecto que nos mostra por que, dependendo
do lugar e da época, os jogos assumem significações distintas.”(Kishimoto,
1996, 14)
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cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
Reconhecer e utilizar as regras são habilidades que precisam ser praticadas pelas
crianças para que possam estar em diferentes grupos considerando as especificidades
políticas e culturais. São, na verdade, um meio de despertar aspectos morais, sociais e
emocionais fundamentais na formação do do conviver humano.
Para além de um jogo, a possibilidade de se relacionar em grupo, permite a
criança ser estimulada para o uso do raciocínio logico, cooperação em equipe, obediência
as regras, senso de responsabilidade, justiça e respeito mútuo, sendo assim, ele irá
aprender a ouvir a opinião do próximo e não terá medo de expor a suas próprias ideias
e concepções.
Brougère (1995) tem a intenção de desmistificar a ideia de que o brinquedo é
próprio da infância e passa a associar a cultura humana em geral, sendo que o “brincar
não é uma dinâmica interna do indivíduo, mas uma atividade dotada de significação
social que, como outras, necessita de aprendizagem” (Brougère, 1995, 20).
O objeto brinquedo acaba ganhando significado conforme a sua utilização. As
crianças costumam, a partir de sua imaginação, usar objetos (como brinquedos), e nessa
ação projetam uma experiencia que sempre é dotada de significado. Um carrinho pode
voar nas mãos de uma criança e esse voar pode levar a outras concepções e ideias.
Uma mesma atividade pode ser jogo ou não, se observarmos que para muitos,
por exemplo, uma criança em aldeia indígena, atirando com arco e flecha, pode estar se
divertindo e brincando, ou seja, é um jogo. Já na perspectiva da comunidade indígena, a
criança está se preparando para caçar animais. Assim, é muito complexo definir o jogo,
pois depende do ponto de vista de quem o observa, uma mesma conduta pode gerar
diferentes formas de interpretação, uma questão cultural.
O jogo, como aquisição de conhecimento, é reconhecido por autores como
Vygotsky e Piaget (Kishimoto, 1997) como algo que o homem, como ser que se constrói
coletivamente na interação com o outro, cujo capacidade de raciocínio, está diretamente
ligado a sonhar, imaginar e jogar. Nesta concepção o jogo é visto, como produtor de
conhecimento.
Segundo Brougére (1995), no jogo lidamos com uma noção aberta, as
características do jogo, afirma atitudes que são próprias das crianças, auxilia nos grupos
sociais, contém tempos e espaços, além de possuir regras, é também uma atividade livre
que proporciona leveza, alegria e entretenimento, porém favorece o desenvolvimento
físico, cognitivo, social e moral.
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cinema na educação infantil
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Para a criança é essencial o ato de brincar, e na escola, teoricamente se torna
uma ferramenta importante, pelo fato da criança estar intimamente interessada nas
brincadeiras, o que contribui para que o aprendizado ocorra já que a criança está
tranquila e feliz para receber novas informações. É na escola que a brincadeira pode vir
a se apresentar de modo diferente, a criança, por exemplo, tem envolvimento diferente
no recreio e nas aulas na educação física.
Geralmente as crianças tendem a brincar de diversas maneiras que vão se
modificando em função da faixa etária e do número de parceiros(Kishimoto,1998),
existem as brincadeiras de faz de conta, por exemplo, que permitem que as crianças
entrem no mundo da imaginação e propicie que as crianças aceitem as perspectivas
do outro representando e criando novas situações, como por exemplo, brincar de
escolinha ou de imitar a mãe, fazendo comidinha. São nestas atividades que ocorrem
as interpretações que a criança faz sobre seu meio social e, efetivamente pode gerar
ampliações com reflexão sobre sua própria realidade.
Para Wallon (1979) a compreensão sobre a cultura infantil é um tipo de simulação
de situações cotidianas que vai do outro a si mesmo, como uma fusão das ideias na qual
explicam algumas oposições, na brincadeira de faz de contas, por exemplo, basta um
pequeno estímulo, que faz com que a criança se transporte para um mundo cheio de
criatividade, expressando o que a criança tem dentro de si.
Para Kishimoto (2010), a opção pelo brincar desde o início da educação infantil,
é o que garante a cidadania da criança, portanto surge a importância de ser incorporado
no aprendizado delas e implica determinar o que se pensa da criança, na infância por
meio de brincadeiras, É através dessa atividade que a criança consegue satisfazer seus
interesses, refletindo assim sua realidade.
“Em um ambiente de bem estar, o relaxamento e a tranquilidade, favorecem
a exploração, levam a criança a observar, os que brincam, escolher o que
quer fazer, ou como quer fazer e com quem brincar, aprende sem medos
sem pressões ou punições, a diferenciar o mundo das pessoas e dos objetos”
(Kishimoto, 2010, p.10).
Muitas das brincadeiras utilizadas pelas crianças são usadas nas culturas
indígenas como preparação para pesca e caça como, arco e flecha, anzol e vara. Enfim,
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cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
cada contexto social constrói a sua própria imagem de jogo conforme seus modos de
vida e seus valores que se expressão por meio da linguagem.
Segundo Kishimoto (2011) existem quatro tipos de jogos e brincadeiras, o
primeiro são os jogos educativos que são materializados nos jogos de tabuleiro que
exige do aluno a compreensão do número e das operações matemáticas e do quebracabeça, que se destina no ensino das formas, esses e muitos outros ajudam no processo
de ensino-aprendizagem da matemática.
O segundo são os jogos tradicionais infantis, que são aqueles considerados como
parte da cultura popular, como por exemplo, pião, amarelinha e entre outros, cujos
criadores são anônimos, mas como foram passados de geração em geração, continuam
na memória infantil.
O terceiro são os jogos de faz-de-conta, sendo estes, simbólicos, quando a
criança participa desse tipo de brincadeira ela estará aprendendo a criar símbolos, por
isso essa situação imaginaria é de grande importância na hora de garantir a racionalidade
do ser humano.
O quarto e último são os jogos de construção, com ele se estimula a imaginação
e o desenvolvimento afetivo e intelectual, além de enriquecer a experiência sensorial,
o estimulo a criatividade e a desenvolver habilidades por meio de construção e
transformação do desmontar.
Dentro da ideia das interações das crianças com jogos, brinquedos e brincadeiras,
precisamos definir o brinquedo. De acordo com a autora Kishimoto (1996) o brinquedo
é representado como um “objeto suporte da brincadeira”, ou seja, com um único
brinquedo a criança pode criar várias brincadeiras, além disso, o brinquedo tem uma
relação intima com a criança e não possui regras quanto ao seu uso, representando
certas realidades, colocado a criança na presença de reproduções de tudo que acontece
no cotidiano, na natureza e nas construções humanas.
Assim, Kishimoto ressalta:
“O brinquedo estimula a representação, a expressão de imagens que
evocam aspectos da realidade. Ao contrário, jogos, como xadrez e jogos
de construção, exigem, de modo explícito ou implícito, o desempenho de
certas habilidades definidas por uma estrutura preexistente no próprio
objeto e suas regras.” (Kishimoto, 1996, 15).
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cinema na educação infantil
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A BNCC (2017) também fala de experimentações, ou seja, da criança ter a
possibilidade de experimentar novas sensações, descobertas e aprende a partir de medos
e ansiedades. Destaca que o trabalho pedagógico na educação infantil está concentrado
no brincar e que é o professor que vai atuar articulando conhecimentos.
O momento de brincar é também uma forma de linguagem. O papel do
adulto de conduz a brincadeira, no caso da escola de educação infantil, o professor ou
professora é o de oferecer espaços específicos e recursos próprios para a promoção
desse desenvolvimento individual e coletivo.
“Brincar cotidianamente de diversas formas” em diferentes espaços e tempos
com diferentes parceiros, crianças adultos, ampliam do e diversificando
seu acesso a produções culturais, seus conhecimentos, sua imaginação,
suas criatividades, suas experiências emocionais, corporais, sensoriais,
expressivas, cognitivas, sócias e relacionais. (BNCC, 2017, p. 36)
A representatividade de Kiriku
Temos uma representatividade do personagem Kiriku na questão racial sem
dúvida nenhuma, mas este não é o tema central da discussão desse texto. Aqui queremos
pensar para além da potencialidade racial que o menino representa, a ideia é expor as
possibilidades que personagens, como Kiriku têm, na construção da cultura da infância.
E, em especial Kiriku, apresenta uma gama de relações políticas e culturais que são
importantes na infância de todas as crianças.
Entendemos cultura aqui,considerando os filmes em que Kiriku é personagem,
seguindo um conceito semiótico de cultura, entendida como um sistema de interação
de signos interpretáveis (Geertz, 2003). A cultura não é algo que se atribui de maneira
casual, como acontecimentos sociais, modos de conduta, instituições ou processos
sociais, segundo Geertz (2003) a cultura é um contexto dentro do qual se pode descrever
todos esses fenômenos de maneira inteligível.
Nos filmes protagonizados pelo Kiriku temos uma criança que exerce
protagonismo, expressa desejos, dialoga com adultos, com outras crianças e até com
animais. Isso significa que Kiriku tem a ideia do diálogo, contudo imbuída de uma
concepção cultural que considera toda a sua comunidade. Não é um signo interpretável
(Geertz, 1989) é uma prática que está incorporada no dia a dia da criança.
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cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
Considerando a prática etnográfica de Geertz (1989) para reconhecer e ter
acesso ao mundo conceitual que vivemos.Quando se fala em cultura, não se pode fazer
uma série de observações e incluir dentro de um único domínio, uma ideia, ou uma lei.
Quando se pensa em estudar cultura os atos simbólicos representam o discurso social.
No caso do menino Kiriku, principalmente nos dois últimos filmes, temos os relatos do
avô, que mostra toda a dinâmica de interações sociais que o menino realiza.
Assim, segundo Geertz (1989) não se pode fazer generalizações sobre o
homem como homem, mas entender os homens como capazes de chegar a ser e o que
realmente chegam a ser um por um. Ao observar Kiriku, temos indivíduos guiados por
esquemas culturais, por sistemas de significaçõeshistoricamente criados em virtude dos
quaisformam formamos, ordenamos, sustentamos e, que com estes dirigem a vida na
aldeia.
Os filmes trazem uma organização social que, neste caso, coloca o menino como
um agente, que baseada na sua cultura, organiza ações e representa a possibilidade
de reordenar a cultura. Mesmo que em muitos momentos a ideia da brincadeira está
presente nas ações do menino Kiriku, suas ações têm reflexo e estão organizadas nos
interesses da aldeia.
“Um dos modos maisúteis- mas desde logo não o único de distinguir entre
cultura e sistema social, é considerar a primeira como um sistema ordenado
de significados e de símbolos em termos cujo lugar é a integração social, e
considerar o sistema social como o meio de estruturar a interação social
por ela mesma (…). Cultura é o padrão de significados atendendo a todos
os seres humanos, interpretando suaexperiência e orientando suaação; a
estrutura social é a forma que toma essaação, a rede existente de relações
humanas” (Geertz, 1989, 133).
A questão do brincar no filme Kiriku é algo extremamente relevante.
Considerando que é um exercício humano, a criança que brinca interpreta suas próprias
imaginações, imitações e memórias (Vygotsky, 2007; Benjamin, 2004). No filme,
algumas ações que se parecem com brincadeiras, poisas mesmas contêm o controle da
linguagem simbólica, representam a cultura ao qual o menino faz parte.
No Brasil a questão do brincar é tema dos documentos do MEC – Ministério da
Educação (Brasil, 2007), principalmente quando trata do ensino fundamental de nove
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cinema na educação infantil
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anos. Houve um movimento de entendimento sobre a infância por conta da inclusão da
criança de seis anos de idade como obrigatório no ensino fundamental I.
Considerando as pesquisas sobre infância no Brasil (Kramer, 2003), onde
observamos o reconhecimento que da criança como produtora de cultura,houve uma
evoluçãocom relação ao entendimento da importância das brincadeiras, como uma
atividade própria da criança, cheia de sentido para ela, através da qual ela consegue
desenvolver suas capacidades de adaptação e da interação, conquistando assim sua
liberdade.
O que se comunica com o brincar é complexo, retrata um discurso organizado
com lógica e características próprias, o qual permite que as crianças transponham
espaços e tempos e transitem entre os planos da imaginação e da fantasia explorando suas
contradições e possibilidades (Brasil, 2007). Esse exercício acontece a todo momento no
filme Kiriku, principalmente quando ele interage com animais ou encontra soluções
não esperadas pelos adultos.
O brincar é entendido como umaimportante ação para o processo para a criança
produzir novos valores, e também incluivárias experiências, a memória e a imaginação,
entre a realidade e a fantasia (Brasil, 2007). Quando uma criança brinca de cuidar de
uma boneca, por exemplo, está ao mesmo tempo se preparando para cuidar do outro,
por isso a brincadeira não se restringe a um gênero.
No filme, Kiriku não se distancia de ninguém, sabe a importância do cuidado,
e tem na experiencia, principalmente com sua mãe, que é a responsável por contar a
Kirikou, logo após sua chegada ao mundo, o que havia acontecido com os homens da
aldeia e a feiticeira. Podemos considerar, que nessa situação, existiu um processo de
transmissão da cultura pela oralidade, um exemplo, entendemos a presença da prática
de jogo simbólico (Geertz, 1989).
Kiriku é conduzido a refazer seus próprios personagens, ou seja, aprender certas
coisas através do distanciamento que toma em certas situações, e posicionamentos que
assume mediante decisões que tem que tomar. É quando Kirikuaprende sobre o mundo,
no brincar a criança retrata aquilo que quer entender e conhecer (Brasil, 2007).
Considerando que é na infância que o ser humano está se constituindo
culturalmente, a brincadeira assume importância fundamental como forma de
participação social e como atividade que possibilita a apropriação, a ressignificação
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cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
e a reelaboração da cultura pelas crianças (Brasil, 2007). No filme Kiriku podemos
observar diferentes momentos onde o menino usa de estratégias da infância para
resolver problemas na aldeia. São estratégias específicas que podemos considerar como
atividades lúdicas relacionadas a jogos.
Por exemplo, na cena em que Kiriku descobre o que causa falta de água na
aldeia, temos o uso de estratégias de jogo (Kishimoto, 1997). É como se Kiriku, desde
que entendeu a forma de pensar da feiticeira Karabá, passasse a resolver as situações
problemas baseado em contexto.
Uma outra situação que serve como exemplo para mostrar que Kiriku está
envolto no universo da brincadeira, é quando a feiticeira monta uma armadilha para as
crianças, que estão brincando no rio, quando um barco falso se aproxima e sabiamente
Kiriku percebe a armadilha e salvas todas as crianças da aldeia. As duas ações podem ser
interpretadas como ações relacionadas a jogos, ações muito importantes relacionadas a
infância e a construção da cultura.
Percebe se que Kiriku vive e realiza as ações descritas como se estivesse
brincando, podemos identificar essa ação porque durante as ações ele tem o poder de
tomar decisões, expressar sentimentos e valores conhecendo a si mesmo e os outros. São
atitudes de crianças quando estão imersas em jogos, com brinquedos e em brincadeiras.
Kiriku, nos filmes, tem a oportunidade de descobrir o mundo, além de praticar
o que lhe dá prazer, expressando e partilhando sua individualidade, e se formando como
pessoa de identidade própria, por meio de diferentes modos de agir. O lúdico pode
ser observado em vários momentos do filme porque Kiriku realiza as atividades se
divertindo. Sempre quando termina uma ação o menino age com naturalidade.
O elemento lúdico, que compõe os jogos, brinquedos e brincadeirasé um potente
recurso na educação. O filme mostra um menino imerso em suas atividades e ações que
se relacionam com as grandes atividades humanas. Nesse momento observamos que
Kiriku, assim como acontece com as crianças, passam a se enxergar como um ser social.
Isso é observado quando ele procura seu avô e entende questões que corresponde a
necessidades especificas do mundo dos adultos.
Outra situação interessante que remete às brincadeiras é o fato da feiticeira ter,
como servos, um grupo que pode ser descrito como robôs. Nesse caso os robôs fazem
parte do imaginário de algumas culturas, ou seja, tem uma forte relação com identidades
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cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
culturais e grupos sociais específicos, essa ação no filme remete a brinquedos e suas
funções específicas. O significado do “robô” passa a ser conhecido em outras culturas.
Sem característicasculturais universais, mas que ao se apresentar, permitem que outras
culturas conheçam a perspectiva.
Situações como a do robô no filme, no universo infantil, servem para que elas
conheçam outras situações e concepções em um universo diferente das situações e
concepções presentes na sua cultura (Benjamin, 2004, Brougère, 1995). Essas relações
também são importantes para a construção da moralidade da criança.
A conversa de Kiriku com o sábio avô demonstra a importância de se buscar
o conhecimento por meio do questionamento e do diálogo. Ao final da conversa o
pequeno menino reuniu elementos suficientes para saber que a força de pessoas como
a malvada feiticeira está exatamente no desconhecimento das outras, no comodismo e
na desunião.
Conclusões sobre a representatividade de Kiriku
Kiriku representa as crianças de forma multicultural, principalmente quando
pensamos na criança do mundo, a criança representada e defendida pela UNESCO
(Organização das Nações Unidas, 1989).
Kiriku é também um menino muito brasileiro, foi usado nessa reflexão porque
esteve muito presente nas escolas, muitas vezes, nas discussões sobre racismo, no
entanto tem a potencialidade de mostrar o protagonismo que as crianças pequenas
e bem pequenas têm na formação e consolidação da sua cultura considerando temas
diversificados.
Considerando as questões brasileiras, Florestan (1979) analisa o processo
de formação da cultura infantil a partir da forma de organização das crianças, em
momentosde brincadeiras. Florestan (1979)estudou as crianças de um bairro específico
da cidade de São Paulo. E descreveu especificidades dogrupo compostos por meninos
ou meninas, com especificações culturais.
Florestan (1979) observou que a formação destes grupos se dão a partir do desejo
de brincar das crianças, tendo como ponto inicial de formação a vizinhança, onde não
há uma divisão de gênero nos grupos de crianças pequenas, por exemplo.
343
cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
“até o fim da primeira infância e às vezes também durante parte da segunda
infância, não se verificam círculos fechados entre as crianças do grupo
infantil, participando dos folguedos tanto os meninos como as meninas”
(Florestan, 1979, p. 237).
A questão do brincar está entendida em Kiriku que experimenta diferentes
estratégias para resolução de problemas, como se estivesse brincando. No filme, como
protagonista, reproduz as manifestações e representações do mundo dos adultos, e
consegue elaborar e produzir culturas a partir dessas relações.
Considerando especificações brasileiras podemos citar outro personagem de
filme. O menino protagonista do longa “O menino e o mundo” (2014) – que vamos
chamar aqui de Menino, pois no longa os personagens ocupam lugares (pai, mãe,
menino, pássaro, etc) e não tem nomes. Este texto poderia ter sido produzido baseado
na analise do filme, no entanto, decidimos pelo longa Kiriku por ter tido apelo mundial.
No entanto, tanto Kiriku quando o Menino, mostram a importância do brincar
na construção da cultura infantil. O poder da socialização de atividades realizadas com
iguais, em uma oportunidade de organizar e criar um regulamento interno. Os dois
meninos mostram que se aprende e se ensina na solidariedade, respeito às regras,
àhierarquia e àinteração com os demais (Fernandez, 1979).
Por fim, ressaltamos que existe uma cultura infantil caracterizada por sua
natureza e interface lúdica. Ainda cabe destacar que as produções, manifestações e
regras criadas nos grupos de crianças pequenas e bem pequenas são cultura infantil e
que devem ter seu espaço de produção garantido na escola. Recomendamos fortemente
que filmes com Kiriku e o Menino e mundo sejam visto por adultos e que estes passem
a olhar as crianças bem pequenas e pequenas como cidadãos de direitos.
344
cinema na educação infantil
Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez
Videografia
Kirikou et la sorcière. Animação Direção: Michel Ocelot, Roteiro Michel Ocelot (1h
10min), 1999.
Kirikou et lesbêtessauvages. Animação Direção: Michel Ocelot, Roteiro Michel Ocelot
(1h 10min), 2005.
Kirikou et leshommes et lesfemmes. Animação Direção: Michel Ocelot, Roteiro Michel
Ocelot (1h 10min), 2012.
O Menino e o mundo. Animação. Direção: Alê Abreu. Roteiro Alê Abreu (1h 25min),
2014.
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346
O Povo negro sob a ótica de intelectuais
brasileiros – O reconhecimento
da (des)armonia
Laudicéia Fagundes Teixeira1
Fábio Santos de Andrade2
Reginaldo Santos Pereira3
No cenário histórico brasileiro o racismo vincula-se, principalmente, ao fim
do período de escravização dos africanos e afrobrasileiros, estruturando-se no século
XX com fundamentos nas teses de inferioridade dos negros em relação aos brancos e
necessidade de branqueamento populacional.
Buscando respaldo no darwinismo social ou teorias das raças, o racismo científico
foi concebido como doutrina universal e racional, e afirmação que biologicamente
1 Mestra em Educação pela Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT). Professora no curso
de Bacharelado em Direito da Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), campus de Pontes e
Lacerda - MT.
2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Pós-doutor em Educação
pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Professor Associado da Universidade Federal
de Rondônia (UNIR), atuando no Departamento Acadêmico de Ciências da Educação (DACED/
Vilhena) e no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Mestrado e Doutorado Profissional
(PPGEEProf).
3 Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Professor Adjunto da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), atuando no Departamento de Ciências Humanas,
Educação e Linguagem (DCHEL) e no Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Educação (PPGED)
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista - BA.
347
o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
havia hierarquias entre as raças humanas. Nesse sentido, promovia uma “raça” como
desenvolvida e com aptidão para governar as demais. Tais linhas viam a miscigenação
como algo negativo, pois era impossível que os caracteres fossem transmitidos de
maneira satisfatória. Sendo assim, a mestiçagem além de ser tratada como um erro era
uma forma de degeneração. Já a tese de branqueamento, que vigorou até a década de
1930, possuía maior adesão à mestiçagem, uma vez que seus seguidores acreditavam que
naturalmente a mistura racial levaria à eliminação de caracteres das raças “inferiores”,
(Barbosa, 2016, p. 264).
Nesse contexto, a miscigenação começa a ganhar espaço positivo no cenário
brasileiro. Tal fato consolidou o racismo no ideário de civilização por meio da
mestiçagem que se tornou um projeto político e social para o reconhecimento do Brasil
como Estado Nação. Para Vieira (2016, p. 68),
A miscigenação é o resultado do violento intercurso sexual entre
colonizadores e as populações autóctones e africanas para cá trazidas, ambas
sob o jugo da escravização. Esta dimensão jamais pode ser confundida com
a mestiçagem responsável pela hierárquica construção de valores nacionais,
que supostamente equiparava contribuições de imigrantes europeus, etnias
africanas e indígenas. Fazer com que ambos os conceitos se interpretassem
foi a estratégia utilizada para a consecução de uma suposta democracia
batizada de racial, no interior da qual estariam estabelecidos padrões
supostamente horizontais de reconhecimento, prestígio e igualdade entre
imigrantes, africanos e indígenas.
Nesse sentido, Ribeiro (1995) ao descrever os brasilíndios ou mamelucos
paulistas que possuíam pais brancos, de maioria lusitanos, com mães indígenas, foram
vítimas de duas rejeições: a primeira pelos pais, que não os reconheciam como filhos,
pois se tratavam de impuros filhos da terra; e a segunda se dava pelo gentio materno, em que
os indígenas entendiam que a mulher era uma espécie de saco depositário de sementes
e, portanto, os filhos pertenceriam ao homem. Nesse sentido, cria-se a concepção de
ninguendade, que significa filhos de ninguém. O autor entende a miscigenação como
algo aceitável, uma vez que não havia proibição legal ou religiosa.
348
o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
Nós, brasileiros, somos um povo em ser impedido de sê-lo. Um povo
mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime
ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa
de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si,
afundada na ninguendade. (Ribeiro, 1995, p.446).
Entre o final do século XIX e início do XX o eixo de debate nacional se constituiu
na pluralidade racial oriunda do processo de colonização do Brasil. Tal situação seria
para a elite à época um entrave para a construção de uma nação que coubesse nos
moldes europeus, ou seja, branca. Nesse sentido, as diferenças de pensamentos entre os
intelectuais à época foram deixadas de lado em busca da criação de uma identidade étnica
para o País. A questão fundante da união era saber como transformar a pluralidade de
raças e mesclas, existentes entre culturas e valores tão distintos em uma coletividade,
uma nação e um só povo (Munanga, 2019, p. 50-51). Nessa trilha reflexiva destacaram
intelectuais como Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre,
Alberto Torres, Manuel Bonfim, João Batista Lacerda, Edgar Roquete Pinto e Oliveira
Vianna.
A principal questão de Silvio Romero (2001) era saber se a população brasileira,
considerando negros, brancos e indígenas, seria capaz de fornecer uma feição própria, e
que nesse processo nasceria um povo tipicamente brasileiro, resultado da mestiçagem
com processo de uma formação ainda em curso. No entanto, o processo resultaria na
dissolução da diversidade racial e cultural, consequentemente teríamos uma sociedade
brasileira homogênea. Além de que, no processo de mestiçagem, a dissolução dos
caracteres não brancos culminaria no seu desaparecimento e a predominância biológica
e cultural da raça branca.
Nina Rodrigues (1957), por sua vez, discorda da tese lançada por Romero e
defende que os produtos da mestiçagem das raças são degradados. O intelectual cita como
causas de degradação das raças quatro fatores: a) defeitos dos colonizadores portugueses,
que considerou como povo atrasado e arredio da civilização; b) insucesso na catequização;
c) clima, e; d) riqueza do solo. Nina entendia que a responsabilidade moral e penal deveria
ser aplicada de forma diferenciada a depender da raça, chegando a propor a criação
de dois códigos penais. O pensamento de Rodrigues, hoje considerado racista, deve
ser entendido em seu tempo e espaço histórico. Dessa forma, a contribuição de Nina
349
o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
Rodrigues para o projeto de identidade nacional foi no campo da institucionalização e
a legislação da diferença.
Podemos dizer que Euclides da Cunha (1902) acreditava na existência de
vários tipos étnicos em consequência da heterogeneidade racial, dos cruzamentos, do
território e situações históricas. Euclides da Cunha compreende o mestiço como (quase)
sempre desequilibrado, decaído, um produto desprovido das características “boas” das
raças cruzadas, sendo a energia física dos selvagens e a atitude intelectual dos superiores.
Como seguia a tese de que a seleção natural conservaria os mais aptos hereditariamente,
o mestiço se construiria como um intruso. Para ele, o Brasil não poderia ser considerado
como um povo ou nação, descrevendo a miscigenação como um desequilíbrio e,
portanto, o maior problema enfrentado pelo país.
Entre os anos 1870 a 1930 para os intelectuais à época, o país não tinha jeito de
ser civilizado dentro do padrão europeu, os autores Nina Rodrigues, Manoel Bonfim
e Silvio Romero contribuíram para o desenvolvimento da ideia de sub-raça mestiça
brasileira. A predominância de negros, indígenas e mestiços na população brasileira era
responsável pela condição de subdesenvolvimento econômico, então foram pensadas
várias políticas racialistas para o alcance da nação como civilizada.
Conhecida como a geração de 1930, os intelectuais Sérgio Buarque de Holanda,
Caio Prado Junior e Gilberto Freyre, percorreram o caminho de compreender a
formação da sociedade brasileira, iniciando as pesquisas pelas transformações sociais
causadas pela compreensão da influência da escravidão e o advento da abolição, os
indígenas e negros na civilização e colonização do Brasil. Esse momento também pode
ser descrito como o primeiro momento da sociologia no território brasileiro como
atividade autônoma.
Sergio Buarque de Holanda escreveu Raízes do Brasil em 1936, nessa obra o
autor se concentra entre o choque da tradição e modernidade na sociedade brasileira, e
consequentemente analisa as origens sociais para explicar o atraso existente no Brasil. A
grande defesa do autor é de que o brasileiro é cordial, estando atrelado a isso a dificuldade
de se desvincular dos laços familiares, portanto é um homem cordial, generoso e devido
a sua intimidade com ou outros, que apesar de confiar apenas após conhecer, utiliza-se
do sufixo “inho” para uma infinidade de situações. A grande tese do autor para que o
Brasil fosse reconhecido como civilização é por conta da cordialidade brasileira.
350
o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por
estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do
caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a
influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio
rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar
“boas maneiras”, civilidade. São antes expressões de um fundo emotivo
extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de
coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças. (Holanda,
1995, p. 146-147).
No ano de 1942, Caio Prado Junior, publicou o livro Formação do Brasil
Contemporâneo, no capítulo nomeado Raças, (Prado Jr, 2001, p. 98) entende que para o
indígena a mestiçagem constituiu o traço característico mais profundo e notável como
a solução encontrada pelos colonizadores portugueses para o que chamou de problema
indígena.
O intelectual entende que a contribuição da população negra é mais significativa
do que a indígena. No entanto, apesar do grande número de negros introduzidos no
território nacional, o número de mulheres trazidas era pequeno e os homens eram
vistos como úteis para o trabalho o que contava como desfavorável para a contribuição
da população negra na mestiçagem. (Prado Jr, 2001, p. 106). Ainda, segundo o autor, a
imposição da escravidão aos negros nunca foi por eles contestada.
Gilberto Freyre pode ser considerado como o intelectual que teve mais êxito
em sua tese. Ao retomar a temática racial considerada como parte fundamental para a
compreensão do Brasil e a construção da identidade nacional, Freyre (2003) desloca o
conceito de raça para o de cultura. Desse modo, houve a possibilidade de distanciamento
de raça enquanto fator biológico para o cultural. O doutorado de Freyre foi nos Estados
Unidos da América, numa época em que crescia uma abordagem em contraponto à
antropologia física - a antropologia cultural. A antropologia cultural está baseada numa
perspectiva de não colocar uma cultura em posição superior a outra, o relativismo
cultural que parte de uma perspectiva antropológica da existência de diferentes culturas
livres de etnocentrismo, ou seja, conhece-se os elementos das outras culturas e não os
classifica conforme sua visão e experiência.
Freyre (2003) retorna ao Brasil e tem uma “solução” para o problema da construção
da identidade nacional. Ele defende a tese de que a contribuição para a civilização do país
351
o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
é exatamente este Brasil cadinho, que significa um recipiente de porcelana utilizado
para fundir substâncias, nesse caso, seria a fusão das características mais importantes
das três raças, portanto, a mestiçagem seja no campo biológico ou cultural constitui
para o Brasil uma identidade brasileira.
A tese lançada por Freyre (2003) posteriormente se transformou em uma
política e o Brasil passou a ser reconhecido, em âmbito nacional e internacional, como
um país isento de racismo e convivência harmônica entre os indivíduos de todas as
camadas sociais e grupos étnicos.
A mestiçagem, como articulada no pensamento brasileiro entre o
fim do século XIX e meados do século XX, seja na sua forma biológica
(miscigenação), seja na forma cultural (sincretismo cultural), desembocaria
numa sociedade uniracial e unicultural. Uma tal sociedade seria construída
segundo o modelo hegemônico racial e cultural branco ao qual deveriam
ser assimiladas todas as outras raças e suas respectivas produções culturais.
O que subentende o genocídio e o etnocídio de todas as diferenças para
criar uma nova raça e uma nova civilização, ou melhor, uma verdadeira
raça e uma verdadeira civilização brasileiras. (Munanga, 2019, p. 85).
Em mesmo sentido, podemos citar como exemplo o sincretismo religioso, que
se manifesta como se todas as culturas por meio da mestiçagem fossem adaptadas de
cada grupo étnico-racial, integrando umas às outras.
Segundo as imagens que o mito pretende transmitir, as religiões africanas,
ao se encontrarem no Brasil com a religião católica, ter-se-iam amalgamado
ou se fundido naturalmente, intercambiando influências de igual para igual,
num clima de fraterna compreensão recíproca. [...] o sincretismo católicoafricano decorre da necessidade que o africano e seu descendente tiveram
de proteger suas crenças religiosas contra as investidas destruidoras da
sociedade dominante. (Nascimento, 2016, p. 133).
O que se pode perceber é que o racismo e a centralização do poder ou
dominância de uma cultura – a europeia – permanecem, só que com roupagens
diferentes. Dissemina-se a ideia de que os negros e os indígenas tiveram suas culturas
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o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
incorporadas e ao mesmo tempo incorporaram a cultura do branco, contudo, no trecho
em que fala que a mulher indígena recém-batizada, carrega a ideia de superioridade da
religião católica desvalorizando a crença da indígena em outras religiões ou até mesmo
a não crença, e por fim, esposa e mãe de família, passa pelo processo do patriarcado,
enquanto seus conhecimentos indígenas apenas são utilizados para a servidão, seja da
economia ou da vida doméstica.
A ideia apresentada refere-se à herança de Portugal – a estrutura patriarcal
familiar, no entanto, o que se escapa às linhas do autor é o reflexo do legado pago pelas
mulheres negras e indígenas. Conforme escrito por Caio Prado Jr. (2000), uma das
desvantagens na contribuição da população negra para o Brasil foi o número pequeno de
mulheres trazidas para o território, o que demonstra por si só o desequilíbrio demográfico
entre os sexos durante o período da escravidão, o que chegava a proporção de uma
mulher para cinco homens, sendo que os senhores de escravos possuíam monopólio
sexual das poucas mulheres existentes, assim, as escravas negras seriam vítimas fáceis,
vulneráveis a qualquer agressão sexual do senhor branco, sendo transformadas em
prostitutas como meio de sobrevivência e impedidas de possuir qualquer estrutura
familiar. (Nascimento, 2016, p. 73; Munanga, 2019, p.86).
Se comparado ao trecho de Ribeiro (1995), ilumina a ideia de ninguendade em
que a mulher indígena é tratada como um elemento transformado em saco depositário
das sementes dos homens e que portanto, seu papel social e no processo de miscigenação
se dá pela procriação desses filhos que a rejeita e são rejeitados e utilizados como mão-deobra pelos pais, trazendo para a teoria formulada por Freyre (2003), podemos perceber
que o discurso em torno dessa mulher permanece com as mesmas formas: depósitos de
sementes, agora batizada, que passa a gerar filhos - não mais rejeitados, mas produtos
de transformação social – e que ela (mulher indígena) serve para a sociedade no campo
econômico e vida doméstica com seus utensílios e experiencias de indígenas.
Nesse contexto, Freyre (2003) entende a raça, como expressão da cultura do
país, que foi formada pela união das três raças. A “genialidade” do autor está exatamente
na retirada do conceito de raça do campo biológico e o situado no campo da cultura.
Tal movimento propiciou a construção da tese, permitindo por exemplo que fosse
amplamente divulgado que o país se constituiu como modelo de democracia racial,
sendo o que melhor lidava com a integração de todas as raças e sendo elas contempladas
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o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
pelo campo social e jurídico de igual modo, pois supostamente, todas as três raças faziam
parte da fusão cultural que havia se transformado na identidade brasileira.
O mito das três raças, ao se difundir na sociedade, permite aos indivíduos,
das diferentes classes sociais e dos diversos grupos de cor, interpretar, dentro
do padrão proposto, as relações raciais que eles próprios vivenciam. Isto
coloca um problema interessante para os movimentos negros. Na medida
em que a sociedade se apropria das manifestações de cor e as integra no
discurso unívoco do nacional, tem-se que elas perdem sua especificidade.
Tem-se insistido muito sobre a dificuldade de se definir o que é o negro no
Brasil. (Ortiz, 1985 p. 43).
A mestiçagem, para Freyre (2003), produziu pessoas como nós, criando uma
cultura mista, plural, própria e nova para o país. E, portanto, essa seria a extraordinária
contribuição à civilização humana dada pelo Brasil. A figura cultural da mestiçagem
teria equacionado qualquer problema racial nesse país, o que derivou na construção da
tese da democracia racial. A narrativa é homogeneizadora, ou seja, não há diferença em
termos raciais e todo agente que mobiliza um argumento racial é tido como racista.
A reflexão em torno do ideal de homogeneidade permite observar que havia
um acordo tácito entre nossos intelectuais, políticos e elite econômica, tanto
em relação à inadequação do povo para a formação da nação, devido ao
seu caráter heterogêneo, quanto à forma que a nação era imaginada como
sinônimo de homogeneidade racial e de harmonia política ou, melhor
dizendo, de branquitude e civilização. A mudança nesta perspectiva, com a
“aceitação” da diversidade e pluralidade da população existente no país, tem
origem na ideia de que algo de novo estava em desenvolvimento no novo
mundo. (Silvério; Trinidad, 2012, p. 900).
Ribeiro (1995) ao relatar que o produto do cruzamento entre mulheres negras ou
indígenas com o homem brancos desejava a identificação com o pai/branco/português,
sem êxito, e de igual monta também não podia se identificar com a mãe devido à
“cultura indígena” (ou por carregar as características das raças tidas como inferiores),
gerava ao produto dupla rejeição identitária. Freyre (2003) ao disseminar em seu livro a
teoria das três raças, compreende tal movimento, como uma busca por uma identidade
354
o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
própria, única, nova, ou seja, a identidade de brasileiro. Ainda que com abordagens
diferentes, ambos trabalham a mestiçagem como uma busca pela identidade. Assim,
Ribeiro (2995) elucida a dupla rejeição identitária do mestiço, enquanto Freyre (2003)
entende a necessidade do mestiço de buscar uma identidade própria. Ao relacionarmos
os pensamentos trazidos pelos autores é possível perceber uma espécie de costura entre
os autores em torno do conceito de identidade. A busca pela identidade nacional referiase à necessidade de construção do Brasil como nação civilizada, seja na identidade de
autodefinição ou atribuída. As contribuições de Munanga em torno do conceito de
identidade e sua função vão ao encontro do que entendemos como a pretensão da elite
intelectual à época.
A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades
humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico
sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para
definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição)
e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas:
a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos
externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos,
psicológicos, etc. (Munanga, 1994, p. 177-178).
Considerando que as nações são constituídas de diversas culturas e apenas se
unificam pelo processo violento de conquista e posterior eliminação da cultura diferente,
ao se criar uma identidade nacional os intelectuais à época não conseguiram escapar da
construção da identidade associada a estrutura de poder. Nesse sentido, Gomes (2005,
p.41) entende que:
A identidade não é algo inato. Ela se refere a um modo de ser no mundo
e com os outros. É um fator importante na criação das redes de relações e
de referências culturais dos grupos sociais. Indica traços culturais que se
expressam através de práticas linguísticas, festivas, rituais, comportamentos
alimentares e tradições populares, referências civilizatórias que marcam a
condição humana.
Hall (2000, p.103) contribui para o conceito de identidade ao entendê-la como
uma construção das organizações políticas que precisam implantar certas ideias ao
355
o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
povo. Elas funcionam por meio da exclusão, sendo uma construção discursiva de um
exterior constitutivo e da produção de sujeitos marginalizados, que é construído fora do
campo natural ou mesmo do representável.
Assim, quando Freyre (2003) introduz a ideia de identidade brasileira, dentro
do conceito de identidade e toda a estrutura da sociedade brasileira à época, tornase explícito que ao contrário do que querem fazer crer, a necessidade de criar uma
identidade única, parte da classe dominante daquele período para que o Brasil fosse
reconhecido como uma nação civilizada e que portanto, não há relação com a falta de
identificação dos sujeitos, mas sim de uma necessidade das elites política e intelectual.
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do
discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso,
elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e
são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que
o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída. (Hall, 2000,
p.109).
Para Munanga (2019, p. 102), os negros, mestiços e pardos aspiram à brancura
para uma possível fuga das barreiras impostas à raça que consequentemente impedem
a ascensão socioeconômica e política desses grupos. Assim questiona como se pode
entender a criação dessa construção identitária mestiça uma vez que é necessário seguir
um padrão imposto – a branquitude – e excluir as demais? Uma possível resposta para
tal questionamento está no fragmento abaixo:
As identidades podem funcionar, ao longo de toda a sua história, como
pontos de identificação e apego apenas por causa de sua capacidade para
excluir, para deixar de fora, para transformar o diferente em “exterior”,
em abjeto. Toda identidade tem, à sua “margem”, um excesso, algo a mais.
A unidade, a homogeneidade interna, que o termo “identidade” assume
como fundacional não é uma forma natural, mas uma forma construída
de fechamento: toda identidade tem necessidade daquilo que lhe “falta” –
mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado e inarticulado.
(Hall, 2000, p. 110).
356
o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
O mito da democracia racial associada ao racismo por vezes velado e encoberto,
torna distante o indivíduo da compreensão real da história, criando uma ideia
equivocada de convivência harmônica entre as raças. O que ocorre em verdade é que
ideologicamente houve as marcações dos papéis e lugares na sociedade. E quando esses
espaços (quase) impenetráveis pela população negra são questionados, se invoca a
desigualdade social como substituto da racial, a mestiçagem, a aparência, e por vezes
culpabiliza os negros pelo próprio sistema que foram submetidos.
Assim, os estereótipos podem ser considerados como instrumentos morais e
ideológicos com impacto direto na reprodução da relação de poder que legitimam os
papeis e posições de acordo com a ordem social (Biroli, 2011). Engendrados na identidade
negra os estereótipos se ressignificam de acordo com o tempo, a política e a situação
econômica. A essencialidade da identidade permanece nas estruturas da sociedade
desde a sua gênese, mantendo os privilégios da população branca, sempre, portanto, o
estereótipo positivo e inquestionável, o que faz com que as mudanças, quando ocorrem,
sejam lentas e pequenas devido à ausência de interesse da classe dominante na mudança
das posições.
A construção da nação brasileira está estruturada - dentre outras coisas
- a partir do mito da democracia racial. Uma parcela expressiva da
sociedade brasileira compartilha a crença de ter construído uma nação diferentemente dos Estados Unidos e da África do Sul, por exemplo - não
caracterizada por conflitos raciais abertos. Além disso, imagina-se que
em nosso país as ascensões sociais do negro e do mulato nunca estiveram
bloqueadas por princípios legais tais como os conhecidos Jim Crow e
o Apartheid dos referidos países. Para os que imaginam e advogam a
singularidade paradisíaca brasileira, isto significa dizer que o critério racial
jamais foi relevante para definir as chances de qualquer pessoa no Brasil.
(Bernardino, 2002, s/p)
Apesar da política de branqueamento não ter sido exitosa como pretendido,
o ideal permanece “inconscientemente” no processo de construção da identidade da
pessoa negra, sendo incorporado pela população e se apresenta como desvalorização da
estética negra, supervalorizando, de outro lado, a estética branca.
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o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
A supervalorização do branco em contrapartida à desvalorização do negro, faz
com que as pessoas queiram de certa forma rejeitar a identidade negra e passar por
um interminável processo de embranquecer, esse processo por vezes é marcado por
contradições e opressões externas, mas principalmente internas, que acaba por impor a
negação de si próprio e suas características fenotípicas.
[...] a branquitude faz da brancura uma imagem fetiche. O ciclo de violência
se realiza com a introjeção desse ideal, que leva o sujeito negro a desejar um
futuro identificatório antagônico em relação à realidade de seu corpo! Sendo
o Eu antes de tudo uma representação corporal, como se constitui o projeto
pessoal, o vir-a-ser de um sujeito que tem na realidade e na aparência do
corpo os traços que visa apagar? [...] Diante do ideal branco, o corpo negro
pode ser vivido como uma ferida aberta ou um objeto perseguidor. O crime
perfeito se consuma justamente quando o negro busca se branquear, o que,
no limite, é a negação de si mesmo. Um desejo que deságua no desejo da
própria extinção. (Vannuchi, 2019, p. 67).
Ainda assim, recai um olhar sobre o negro que constantemente o lembra da sua
não brancura, e o fato de ser negro nunca é esquecido, sendo a primeira a ser lembrada
antes de quaisquer características. Antes de tudo ele será negro, permanecendo em
eterna vigilância por ser negro. Fanon no livro Pele negra, máscaras brancas, (2008, p. 2634), entende tal situação com o conceito da zona do não-ser, sendo uma região estéril e
árida habitada apenas pelo negro, que foi lançado nesse espaço devido ao olhar imperial
do branco. O negro não é um homem, já que não comporta as características do homem
branco, tido como universal, aquele que jamais necessita anunciar sua condição racial,
por ser o normal.
Que quer o homem? Que quer o homem negro? Mesmo expondo-me ao
ressentimento de meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem.
Há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida,
uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento
pode acontecer. A maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar
esta descida aos verdadeiros Infernos. [...] O problema é muito importante.
Pretendemos, nada mais nada menos, liberar o homem de cor de si próprio.
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o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
Avançaremos lentamente, pois existem dois campos: o branco e o negro.
[...] O negro quer ser branco. O branco está fechado na sua brancura. O
negro na sua negrura. (Fanon, 2008, p. 26-27).
O colonizado, por vezes, quer a estampa, o status do colonizador. Há uma espécie
de subjetividade do colonizado e o ideário do colonizador. Fanon pode ser entendido em
sua fala como o ato do negro de reivindicar para si a identidade de outrem – do branco,
não há melhor instrumento de dominação do que o ato de transformar a narrativa do
colonizador no querer do colonizado. E, portanto, para ascender à condição de ser, o
sujeito da zona do não-ser buscará embranquecer, não necessariamente a epiderme,
mas com máscaras brancas, seja na fala, na cultura etc.
Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um
complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade
cultural – toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto
é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar os valores culturais
da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele
rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. [...] De um dia para o
outro, os pretos tiveram de se situar diante de dois sistemas de referência.
Sua metafísica ou, menos pretensiosamente, seus costumes e instâncias
de referência foram abolidos porque estavam em contradição com uma
civilização que não conheciam e que lhes foi imposta. (Fanon, 2008, pp.
34 - 104).
Tal fenômeno é marcado pela ocidentalização, em que pessoas de determinado
grupo foram construídas no signo de negros, para tanto, essa construção impôs limites,
marcas e o tratou como inferior, rejeitando toda e qualquer característica portada
por esse grupo, tornando assim, a construção fora dos padrões esperados para uma
civilização ou grupo civilizado. Mais adiante, com o advento da modernidade construiu
sua aproximação não com o entorno, mas com a ancestralidade que foi remetida para
a invisibilidade. Mas ao mesmo tempo, são homens e mulheres livres e estão marcados
pela ocidentalização, este grupo está sendo marcado por estar em um lugar em que
supostamente ele é, mas a construção da sua humanidade não é, então ele é sem ser, ele
está fora e não dentro da sociedade. (Mbembe, 2014).
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o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
Neste contexto, os processos de racialização têm como objetivo marcar
estes grupos de populações, fixar o mais possível os limites nos quais podem
circular, determinar exactamente os espaços que podem ocupar, em suma,
conduzir a circulação num sentido que afaste quaisquer ameaças e garanta
a segurança geral. Trata-se de fazer a triagem destes grupos de populações,
marcá-los individualmente como <<espécies>>, <<séries>> e <<tipos>>,
dentro de um cálculo geral do risco, do acaso e das probabilidades, de
maneira a poder prevenir perigos inerentes à sua circulação e, se possível,
a neutralizá-los antecipadamente, muitas vezes por paralização, prisão ou
deportação. A raça, deste ponto de vista funciona como um dispositivo
de segurança fundado naquilo que poderíamos chamar o princípio
do enraizamento biológico pela espécie. A raça é simultaneamente,
ideologia e tecnologia do governo. [...] Permanecerá inacabada a crítica da
modernidade, enquanto não compreendermos que o seu advento coincide
com o surgir do princípio de raça e com a lenta transformação deste
princípio em paradigma principal, ontem como hoje, para as técnicas de
dominação. (Mbembe, 2014, p. 71-102).
No caso do Brasil, ao supor uma identidade brasileira, para inscrever os negros
e indígenas a estratégia utilizada foi para além da invisibilidade da ancestralidade,
ordenando a afirmação de supostas características dessas populações concebidas em
tempos que remontam a escravidão e que se conectam ao conceito de raça em sentido
biológico, associando aspectos morais e intelectuais ao fenótipo das pessoas, além de
atribuir aos negros e indígenas a responsabilidade pelas mazelas sociais seja no campo
político e econômico.
Mbembe (2014, p.102) ao falar que o mundo continuará sendo, ainda que
não queira admiti-lo, um mundo de raças e que o significante racial permanece sendo
uma linguagem nas relações com o outro, com a memória e o poder. Constitui-se nas
estruturas de poder por meio da racialização de grupos, ontem e hoje, questões que vem
sendo tratadas nesta pesquisa permanecem atuais, como podemos ver no trecho abaixo
que se refere à fala do atual vice-presidente da República Brasileira Hamilton Mourão,
à época em um momento de campanha eleitoral.
Ao utilizar tal referência, precisa-se de cautela, considerando o local de fala
alegado por Mourão, que ainda que o pertencimento étnico de indígena necessite de
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o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
reconhecimento por uma coletividade, conforme a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribunais, ainda assim, há que
se entender qual a ideia central da fala. Obviamente não será objetivo do trabalho
identificar ou não Mourão como indígena, mas analisar a construção da teoria das três
raças sobre a perspectiva dessa fala.
A primeira questão se funda no fato de localizar seu ponto de fala enquanto
indígena, se houve no Brasil uma junção das três raças, teoricamente todo cidadão
nascido em território brasileiro seria identificado como branco, negro e indígena, não
havendo a necessidade de se identificar enquanto um ou outro. Pois seria redundante,
bastando a identidade brasileira. Ressalto que o argumento foi movido apenas como
provocação da análise, ainda que haja forte pressão para a validação do pensamento,
inclusive largamente utilizado por contrários às cotas étnico-raciais, às desigualdades
e marcas do racismo permanecem nas bases da estrutura social. O que se infere é que
o Brasil não vive a tão falada democracia racial, e para caber na nacionalidade foi e
continua sendo necessário lançar mão e negar a si mesmo.
A segunda questão está na responsabilização de negros e indígenas pelas
mazelas sociais. Relacionando a fala de Mourão e a difusão do conceito de raça em
sentido biológico, vemos que as bases permanecem conservadas. Ao indígena foi
atribuída a indolência que por uma rápida busca no dicionário significa condição da
pessoa sem ânimo nem força física; preguiça, morosidade; insensibilidade; incapacidade
para sentir dor. Já ao negro foi atribuída a malandragem que segundo o dicionário
significa comportamento próprio do malandro; pessoa que gosta da vida boêmia, sem
trabalhar; ausência de atividade, falta de trabalho; vadiagem; modo de vida que opta por
agir irresponsavelmente, dentre outras. Ressalta-se que a vadiagem é tipificada como
contravenção penal.
Situado no meio do caminho entre a casa grande e a senzala, o mulato
prestou serviços importantes à classe dominante. Durante a escravidão,
ele foi capitão-de-mato, feitor e usado noutras tarefas de confiança dos
senhores, e, mais recentemente, o erigiram como símbolo da nossa
“democracia racial”. Nele se concentram as esperanças de conjurar a
“ameaça racial” representada pelos africanos. E estabelecendo o tipo mulato
como primeiro degrau na escada da branquificação sistemática do povo
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o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
brasileiro, ele é o marco que assinala o início da liquidação da raça negra no
Brasil. (Nascimento, 2016, p. 83).
O terceiro ponto a ser levantando é com relação à reprodução do racismo
por uma pessoa que se autodeclara pertencente a um dos grupos racializados, pois
evidenciam quão profundas são as raízes do branqueamento social e reforçam o
estigma imposto a esses grupos – indígenas e negros, a utilização do lugar de fala em
uma sociedade marcada pelo ideal de branqueamento é uma estratégia utilizada para
a institucionalização da identidade nacional. A fala de Mourão possui maior impacto
social do que as inúmeras falas racistas de seu companheiro de presidência.
Problema com que os movimentos negros se deparam é de como retomar as
diversas manifestações culturais de cor, que já vem muitas vezes marcadas
com o signo da brasilidade. Uma vez que os próprios negros também se
definem como brasileiros, tem-se que o processo de ressignificação cultural
fica problemático. O mito das três raças é, neste sentido exemplar, ele
não somente encobre os conflitos raciais como possibilita a todos de se
reconhecerem como nacionais. (Ortiz, 1985, p.44).
Dentro desse viés, podemos entender a fala de Mourão como reforço das
identidades produzidas pelas instituições como mecanismo de inferiorizar determinados
grupos e manter o domínio de outro. Em que a dominação ultrapassa os limites da
miscigenação e transforma o oprimido como “parte” integrante da sociedade dando a
ele o signo de brasileiro. A reivindicação dessa brasilidade entre os cidadãos e sobretudo
pela população negra os tem levado para os presídios e cemitérios.
362
o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
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o povo negro
Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira
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364
Um olhar para a negritude: o caminhar de um
homem em defesa da equidade racial
Maria Francisca Morais de Lima1
Luiz Carlos Ferreira2
“Um girassol chamado Celso Prudente, calor, vitalidade e energia positiva
são características desse grande ser de luz que, com sua
inteligência, sabedoria, respeito e amizade,cativa e atrai todos os que o conhece”
Introdução
O jovem da periferia, uma utopia que se tornou realidade a partir de experiências
memoráveis e significativas que acabaram por levar dois irmãos a grandes descobertas
que tornaram possível a realização de sonhos de outrem uma vez que a questão cultural
ocupou a centralidade de todos os anseios e sonhos de igualdade e equidade social
destes dois jovens, que por sua vez, foi fundamental para a formação humana, integral
e unilateral desse jovem e hoje um intelectual das letras e das questões imagéticas.
1 Doutora em Língua Portuguesa pela PUC-SP. Pró-reitora de Extensão e Cultura do Instituto Federal
de Educação do Amazonas - IFAM.
2 Mestrando em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação - PROFNIT Universidade Estadual do Amazonas e Professor do Instituto Federal de Educação do Amazonas - IFAM
365
um olhar para a negritude
Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira
1. O início de tudo: O Movimento Negro Unificado - MNU
A década de 70, auge da ditadura militar no Brasil, foi marcada pela ascensão
internacional dos movimentos de massa, a descolonização revolucionária em Angola
foi um exemplo e, o Brasil, a despeito de viver o autoritarismo militar, foi o primeiro
país a reconhecer o governo marxista de Agostinho Neto, em Luanda. No Brasil, a
participação de intelectuais negros e daqueles que defendiam a causa foi essencial para
o fortalecimento da produção crítica não só na esfera cinematográfica, teatral e poética
da cultura negra brasileira.
O jovem negro, assim como foi típico da década, buscou romper, principalmente
no campo das ideias literárias romper com toda opressãoque o regime militar trouxe à
sociedade que não comungava com o silenciamento da arte, da cultura e da liberdade
de expressão. Para tanto, houve um movimento que buscava em referências, não só
brasileiras como também de outros países da América latina, bandeiras de luta, entre
eles destacam: a figura icônica de Che Guevara a; Zumbi dos Palmares, entre outros,
o quese mostrou fundamental para o intelectualismo rebelde do jovem negro que se
acomodou na polissemia da ligação do guevarismo ao foquismo (vertente do marxismo)
de origem negra, o que nos permite entender hoje o viés ideológico e a percepção das
produções de Celso Prudente.
Para a produção desse caminhar autobibliográfico de Celso Prudente, encontrei
em seu memorial uma poesia do erudito Osvaldo de Camargo que, segundo o próprio
Celso foi fundamental para essa identificação de que intelectual ele seria e que agora,
tomando como base, o pouco que conheço deste humanista, alvoro- me a interpretar
essa auto identificação.
366
um olhar para a negritude
Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira
Dê-me a mão.
Meu coração pode mover o mundo
com uma pulsação ...
Eu tenho dentro em mim anseio e glória
que roubaram a meus pais.
Meu coração pode mover o mundo,
porque é o mesmo coração dos congos,
bantos e outros desgraçados,
é o mesmo.
É o mesmo coração dos que são cinzas
e dormem debaixo da Capela dos Enforcados ...
é o coração da mucama
e do moleque;
(CAMARGO, 1961. p. 51-52)
A poesia apresenta uma sutileza e polidez na linguagem que sintetiza o discurso
de Celso Prudente que, às vezes, fala mais com o coração do que com as palavras. Seu
sentimento de revolta pela segregação ao menos favorecidos e, ao mesmo tempo, de
orgulho por se sentir e fazer pertencer a uma negritude sem nacionalidade, é sem dúvida
uma característica do seu fazer humanista.
Nesse processo de formação, Celso fala da importância do cinema para a
identidade racial do afrodescendente jovem que se dava por um processo em que o cinema
ocupava centralidade, tornando-se assim um lócus para discussões e questionamentos.
Naquele período houve um processo de desconstrução do “belo”, uma vez que seu
amigo Zózimo Bulbultornava-se símbolo de afirmação e beleza, em uma sociedade
que mostrava o negro como feio, violento, objeto sexual de vício patológico, o que era
muito comum em sociedades em que os brancos detinham o poder econômico, social,
cultural e intelectual.
Celso Prudente, em muitas de suas falas e histórias que nos encantam, retoma
ao filme Terra em transe (1967), considerado como uma espécie de manifesto político
de Glauber Rocha, onde Zózimo Bulbulteve uma atuação transversal, fazendo um
personagem um jornalista cinematográfico, uma vez que, naquele momento em
razão das contestações e das lutas sociais, o jornalismo estava em alta. Celso enfatiza
que a participação do negro como protagonista rompeu a barreira de tentativa da
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um olhar para a negritude
Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira
invisibilidade, inspirando-o assim, como jovem negro, a possibilidade de mais conforto
e fala nas paqueras de jovens intelectualistas, que despontavam para a poesia e o teatro,
pois, continua “ tudo era novidade, eu como todos meus amigos e amigas queríamos
de qualquer forma demonstrar que estávamos em luta e em profundo desacordo com a
sociedade, fosse na roupa, na maneira de sentar e entre outras”.
Por fim, as recorrências culturais da época formaram um ambiente quefoi
fundamental para a formação do histórico Movimento Negro Unificado – MNU,
movimento político contra o racismo, formados por intelectuais ilustres e consagrados
como o teatrólogo Abdias do Nascimento, o sociólogo Clóvis Moura, o poeta Eduardo
de Oliveira, a antropóloga Lélia Gonzales, o poeta Oliveira Silveira, a historiadora
Beatriz do Nascimento, e a socióloga Elisa Larkin Nascimento.
Vale ressaltar que a sua formação foi essencialmente juvenil, tendo como
fundadores - Celso Prudente, Milton Barbosa, Rafael Pinto, Hamilton Cardoso, Neusa
Pereira dos Santos, Lenny Blue de Oliveira, Neninho de Obaluaê e Wilson Prudente.
2. O Cinema negro na perspectiva ontológica de Celso Prudente
O cinema brasileiro,ao longo de décadas, vem tratando o negro quase sempre
de forma estereotipada e restrita a relações de subordinação. Celso Prudente, enquanto
pesquisador apresenta um dado que, às vezes, passa despercebida, que é a pouca
frequência da presença do negro na função de diretor ou personagem de destaque.
Embora o preconceito seja algo muito presente, a cultura cinematográfica
brasileira há temposregistra a história do negro cuja tendência cinematográfica
no âmbito étnico, denominada cinema negro, ganhou visibilidade no 8º Festival
Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, em 1997 e na Mostra Internacional
do Cinema Negro, em 2004.
Celso Prudente enfatiza: no que diz respeito aos elementos cinematográficos
enfatiza: o cinema negro recente ressalta os aspectos socioculturais do negro, a influência
dos cultos afro-brasileiros, em particular a mitologia yorubáque se configura como um
conjunto de crenças que inspirou o candomblé e é baseado na vida em harmonia e
em comunidade. Nessa percepção não há separação entre homens e animais, os quais
passam por um processo de personificação, agindo, pois, como humanos.
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um olhar para a negritude
Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira
A questão mítica voltada para a formação de raça e crença é muito interessante,
nesse contexto, oprofessor Celso Prudente reforça ainda a importância do culto à
ancestralidade, por isso, não só nos textos desse antropólogo e de outros estudiosos,
a continuidade da vida é sempre evidenciada por meio da figura feminina, sua força,
beleza são sempre evidenciadas na literatura e no cinema negro.
Outro ponto destaca o autor, diz respeito à música e aos instrumentos musicais,
os quais caracterizam traços dos conhecimentos essenciais da africanidade.
3. A relação com o IFAM
O entusiasmo do Dr. Celso Luz Prudente, homem negro, defensor das causas
da negritude, dos povos indígenas e dos quilombolas, impulsionou o interesse pelo
Amazonas, sua cultura, sua luta por direitos e diversidade de povos que formaram o
Estado. Esse interesse o levou a querer conhecer, não só o Instituto Federal do Amazonas
– IFAM, como também as instituições de Ensino Superior do Amazonas.
Para um primeiro contato com instituições de ensino superior do Amazonas,
Dr. Celso Luiz Prudente, conversou com um amigo da década de 70, prof. Luiz Carlos
Ferreira, docente do IFAM, amante da causa negra e então Diretor de Extensão e
produção (PROEX), o que contribuiu para intensificara relação com o IFAM, uma vez
que desde 2019, o Dr. Celso Luiz Prudente participa, junto ao Núcleo de Estudos Afro
Brasileiros e Indígenas - NEABI como palestrante em mesas redondas, seminários,
oficinas, entre outras atividades.
Em 2020, teve uma participação significativa no I Encontro de Formação das
Comissões de Hétero Identificação do IFAM, junto com o Prof. Adèrito Fernandes
Marcos, africano de Moçambique e professor da Universidade São José em Macau
China. (http://www2.ifam.edu.br/noticias/i-encontro-de-formacao-das-comissoesde-heteroidentificacao-do-ifam).
Em 2021, no Evento SER NEGRA o Prof. Celso Luiz Prudente participou de
uma palestra: A ontologia da luta de horizontalidade da imagem do ibero-ásio-afroameríndio versus a verticalidade da hegemonia imagética do euro-hétero-machoautoritário: a dimensão pedagógica do cinema negro posta em questão. https://www.
even3.com.br/sernegra2021/
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um olhar para a negritude
Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira
A partir do primeiro contato, em 2019, o prof. Celso Luiz Prudente não tem
medido esforços para projetar o IFAM na área de ensino, pesquisa, extensão e inovação
junto à comunidade Internacional pertencente à lusofonia, com destaque:
1. Indicação do IFAM para filiação junta à AULP, com correspondência ao então
Presidente da AULP Prof. Dr. Orlando da Mata, o que rendeu bons frutos em termos
de parceria;
1.1 - Articulação junto à ARTECH internacional, para que o professor Jaime
Cavalcante Alves, Reitor do IFAM, tivesse assento como conferencista na Conferência
Internacional de 2021. Vale ressaltar que a participação exitosa do IFAM possibilitou
outros contatos com instituições lusófonas;
1.2 – Indicação de 2 professores do IFAM no Comitê Científico da Conferência
Internacional;
1.3 – Articulação para o Acordo de Cooperação Técnica do IFAM com a
Universidade SÃO JOSÉ de MACAU cujo acordo está vigente;
1.4 –Aproximaçãodo IFAM com a Universidade Pedagógica de Maputo, o que
oportunizou a participação do Reitor Prof. Dr. Luís Jorge Manuel António Ferrão, na
Palestra Magna de abertura do evento SER NEGRA;
1.5 Assento, em 2021, do IFAM na 17ª MOSTRA INTERNACIONAL DO
CINEMA NEGRO; Assento em 2022 do IFAM NA 18ª MOSTRA INTERNACIONAL
DO CINEMA NEGRO e assento, em 2023, na 19ª mostra INTERNACIONAL DO
CINEMA NEGRO
Em 2022, participação do IFAM na Mesa Redonda com Reitores: DÉCADA
DOS AFRODESCENDENTES DA ONU e a UNIVERSIDADE
O IFAM –foi representado pela prof. Dra. Maria Francisca Morais de Lima
(reitora substituta do IFAM) que dividiu essa mesa com UNIPAMPA: Prof. Roberlaine
Ribeiro Jorge (Reitor) e Fac. ZUMBI dos Palmares – Prof. José Vicente.
Vale ressaltar que aparticipação de representantes do IFAM nesse evento
foi de suma importância para a projeção da atividade de fechamento da Década do
Afrodescendente (2015-2024) com agenda integrada à ONU em Manaus (AM) mediada
pelo IFAM, Belém (PA) mediada pela UFPA concluindo em São Paulo com mediação da
Curadoria Mostra Internacional do Cinema Negro, FE-USP e FIESP.
370
um olhar para a negritude
Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira
II – Participação da mesa redonda: A Mulher e a Educação das Relações Étnicoraciais – Prof.ª Dra. Maria Francisca Morais de Lima;
III – Participação na mesa redonda: Experiência Civilizatória do Afrodescendente e
o Problema Monocultural na Educação – Prof. Luiz Carlos Ferreira (docente do IFAM).
Vale ressaltar que ainda na 18ª Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE
tivemos a oportunidade, como representantes do IFAM, por meio do Dr. Celso Luiz
Pudente, curador da mostra, de uma aproximação institucional com a UNIPAMPA
e com o prof. Dr. Júlio TaimiraChibemoda Universidade de Moçambique, o que irá
gerar parceiras extremamente exitosas.
4. Honoris Causa: título mais que merecido
Enquanto instituição de ensino voltada para a educação básica, técnica e superior,
o IFAM tem como,entre tantas diretrizes, uma educação de qualidade que prima pela
igualdade e equidade social. Daí a importância do da pesquisa, extensão e inovação para
o alcance desse objetivo.
Ao longo do tempo em que tivemos o privilégio de conhecer as teorias e os
sonhos do Dr. Celso Luiz Prudente, nasceu uma gratidão e uma necessidade de darmos
um pouco do muito que recebemos deste ilustre antropólogo e entusiasta de uma cultura
voltada para a negritude.
Nesse sentido, começamos a perceber que tínhamos um papel muito importante
no processo de um reconhecimento acadêmico, entre tantos os que o prof. Dr. Celso Luiz
Prudente tem, ou seja, o IFAM resolve conceder o título de Dr. Honoris Causa que é uma
honraria a quem se destacou com relevância à temáticas sociais, políticas, acadêmicas,
ente outras.O título de Professor Dr. Honoris Causa é concedido a personalidades que se
destacaram pelo exemplar exercício de atividades acadêmicas ou que, de forma singular,
tenham prestado relevantes serviços à Instituição.
A Pró-reitoria de Extensão do IFAM, ao analisar a trajetória do prof. Dr. Celso
Luiz Prudente como cidadão defensor e militante de causas hetero-étnico-raciais,
professor com reconhecida e exitosa atuação acadêmica e cultural que transcende as
fronteira nacionais com forte atuação nas nações lusófonas, pelas contribuições dadas ao
IFAM por meio de palestras, aulas magnas, apoio e articulação para a internacionalização
371
um olhar para a negritude
Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira
da instituição, não foi difícil mostrar ao Conselho Superior do IFAM o grau de
merecimento deste homem cuja vida vem sendo em pró da igualdade e equidade social.
Assim, em 20 de março de 2023, na 58ª Reunião Ordinária do Conselho
Superior houve a apreciação do Processo 23443.001119/2023-91 queconcedeu o Título
Acadêmico de Professor Dr. Honoris Causa, ao Professor Doutor Livre Docente CELSO
LUIZ PRUDENTE, com fulcro no art. 191, 192 e 195 da Resolução nº 2, CONSUP/
IFAM, de 28/3/2011.
Essa honraria foi concedida pelo IFAM a esse profissional que acumula em
sua escalada: 37 anos de dedicação à docência/atividades científico culturais; 17 livros
publicados/organizados; 34 capítulos de livro publicados; 15 artigos em periódicos; 8
artigos em Anais e Congressos; 7 prêmios/títulos recebidos; 12 projetos de pesquisa;
8 projetos de extensão; 104 textos em jornais/revistas; 47 apresentações de trabalho/
conferência/palestra; 38 trabalhos técnicos (Mostras de Cinema, Seminários, Festivais,
etc...); 139 entrevistas, mesas redondas, programas e comentários na mídia; 8 músicas
(composições); 58 produções Visuais; 91 produções culturais; 9 Orientações de Mestrado
e 1 Orientação de Doutorado.
Conclusão
O texto escrito eterniza a história de pessoas que se destacam e mudam realidades,
ao longo de suas vidas. Enquanto autores cujas linhas retratam um pouco do ser humano
que é o prof. Dr. Celso Luiz Prudente, Sentimo-nos lisonjeados e extremamente felizes,
uma vez que coube a nós a solicitação da honraria e o trilhar desta teia tão instigante que
é a vida deste homem tão humano: que sofre, que se angustia, que se revolta, que chora
e, às vezes não entende por que em pleno 2023, vivência realidades vividas em outras
décadas.
“Os desafios sociais, a conquista de direitos, a empatia e a luta constante pela equidade
social é o que nos move e fortalece” (Os autores).
372
um olhar para a negritude
Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira
Referências
CATANI, Afrânio Mendes. Para furar o desânimo. (In:) PRUDENTE, Celso Luiz;
SILVA, Paulo ViníciusBaptista (Org.). ANAIS da 16ª Mostra Internacional do Cinema
Negro: educação, cultura e semiótica. 1.ed. São Paulo: Jandaíra, 2020. v. 1.
CARVALHOSA, Zita. 8º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo
[catálogo] Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1997, p. 75.
RESOLUÇÃO Nº 2, DE 28 DE MARÇO DE 2011. Concessão de Título Acadêmico de
Professor Honoris Causa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Amazonas – IFAM
PRUDENTE, Celso Luiz. Rádio USP estréia nova programação. 2021. (Programa de
rádio ouTV/Comentário). Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/radio-uspestreia-nova-programacao/Acesso em agosto de 2023.
373
Notas sobre o pós-abolição no cinema a partir
do filme “O fio da memória” (1991),
de Eduardo Coutinho
Robson Pereira da Silva1
Grace Campos Costa2
Lays da Cruz Capelozi3
No ano de 1988, comemorou-se o centenário da abolição da escravatura no
Brasil, ocorrido no dia 13 de maio daquele ano. A partir dessa data, o cineasta Eduardo
Coutinho recebeu um convite para fazer um documentário acerca do tema, sugerido
pela então Secretária da Cultura do Estado do Rio de Janeiro, a socióloga Aspásia
Camargo4, na gestão Moreira Franco (1987-1991). A proposta do filme surge como uma
1 Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Licenciado em História pela Universidade
Federal de Mato Grosso. Pós-doutorado em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Bolsista CNPq.
2Doutora em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHI) do Instituto de
História (INHIS) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Integra o Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC). Membro da Rede Internacional de Pesquisa em História e
Culturas no Mundo Contemporâneo.
3 Doutora em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHI) do Instituto de
História (INHIS) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Integra o Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC). Membro da Rede Internacional de Pesquisa em História e
Culturas no Mundo Contemporâneo.
4 Cf.: (RODRIGUES, 2012).
374
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
produção financiada pela Fundação de Artes do Estado do Rio de Janeiro. Entretanto,
O fio da memória ultrapassou a data prevista para o lançamento, sendo estreado apenas
no ano de 1991. Isso aconteceu devido à complexidade do próprio tema que buscava
visitar cem anos de experiências de uma população historicamente marginalizada. O
respectivo documentário foi pouco visto por espectadores brasileiros, uma vez que foi
vendido para canais estrangeiros, a partir da produção associada a Channel 4, La Sept,
Tropicolor INC., E.C.Filmes, Cinefilmes.
Com carreira extensa na televisão – o cineasta dirigiu alguns episódios
do Globo Repórter, na Rede Globo, na década de 1970 – e, reconhecido no meio
cinematográfico nacional, com destaque dado à obra Cabra marcado para morrer (1984),
Coutinho realizou em O fio da memória uma série de entrevistas com pessoas oriundas
do movimento negro e anônimos, sendo este o seu segundo documentário em longametragem, filmado em 16mm. Segundo o diretor, trata-se de “um filme que sequer
foi ampliado para 35mm, que não existiu, que ninguém viu. No máximo umas 200
pessoas. Foi um impasse do qual eu saí filmando Boca de Lixo, em 1992, sem dinheiro
nenhum, sem cobrança alguma.” (LINS, 2007, p.81). Apesar das adversidades, o filme foi
premiado no XX Festival Cinematográfico Internacional de Montevidéu, na categoria
Melhor Documentário Ibero-Americano, de 1992.
O fio da memória é um documentário que carrega consigo parte da visão da
última geração de escravizados no Brasil, revisitando suas experiências, planos e destinos
após a abolição da instituição escravocrata, suas percepções sobre o acontecimento e
seus respectivos desdobramentos. Plasma no ecrã sujeitos carregados de desejos e atos
de emancipação, mas também marcados pelas evidências da exclusão social e política
definidas em critérios raciais. Ana Maria Rios e Hebe Mattos (2004) afirmam que o
tema do pós-abolição se ocupa de tratar e encarar as visões, expectativas e ações de
sujeitos libertos e seus processos de inserção e lutas em um mundo livre carregado de
desigualdade de acesso à cidadania política “com a presunção de plenos direitos a todos
cidadãos” (RIOS, MATTOS, 2004, p. 173). Nesses termos, o Brasil, no final do século
XIX, optou pelo quadro de “relações pessoais que se faziam definidoras de direitos num
quadro de manutenção de relações hierárquicas e clientelísticas” (RIOS, MATTOS,
2004, p. 173). Ou seja, não se aproveitou o ensejo do acontecimento da abolição para o
efetivo enfrentamento e a produção de uma resposta sistemática ao racismo, como o
primeiro grande feito da emergente República que já se delineava.
375
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
Nestes termos, no documentário de Eduardo Coutinho o que se tem é um
mosaico de histórias sobre parte da população negra brasileira, em dimensões cotidianas,
como suas relações familiares, com as artes, com as religiosidades, nas instituições de
ensino da História, nos reformatórios, e, nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Nas
palavras de Coutinho, “fui filmando sem roteiro algum e acabei pagando um preço.”
(LINS, 2007, p.83), isso se deve por fazer da memória e suas reminiscências condutora
de alcances da história do filme, no qual marcos periodizadores da História fatual do
Brasil não tem mais ou menos importância do que as visões e experiências da população
negra que, muitas vezes, foram obliteradas e secundarizadas do processo histórico.
Segundo Jaime Rodrigues (1999, p. 180), Eduardo Coutinho encontrou, por exemplo,
em Gabriel Joaquim dos Santos um personagem possuidor da condição elementar para a
elaboração de um ensaio documental sobre a condição do negro no Brasil da atualidade
daquele contexto da produção, o centenário da abolição. “O roteiro, mesmo que não
estivesse fechado antes do início da filmagem, sugere uma inspiração nas lembranças do
Sr. Gabriel.” (RODRIGUES, 1999, p. 180). A memória e o testemunho são usados como
método do cinema documental de Coutinho, o que potencializa a gramática do cineasta
da contação de histórias. Isso é indicado por Mariana Tavares que afirma:
Nossa hipótese, que é evidente a cada documentário – desde Cabra marcado
para morrer (1964/1984) até As canções (2011), seu último documentário
– é que o testemunho ocupa um lugar central nas obras de Coutinho,
especialmente em O fio da memória (1991), por basear-se essencialmente
em relatos que têm como fundamento a relação da história com a memória.
Consideramos o testemunho como principal método desenvolvido por
Coutinho não apenas pelos relatos, mas por outras escolhas como a rejeição
da voz over e da ausência de sons como trilha sonora, entre outros recursos
técnicos que dizem respeito à linguagem audiovisual. Ainda que tenha uma
formação como cineasta, a recusa do diretor reduz os documentários a fala
de seus personagens e valorizando suas narrativas em primeiro plano e
colocando-as no centro das obras. Dessa maneira, o testemunho – fruto
das entrevistas – é o que direciona e dá vida a cada documentário, sendo
que sem o mesmo, a obra de Coutinho perderia sua característica principal.
(TAVARES, 2020, s.n)
376
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
Assim, existe um fio de narrativa que costura esses retalhos constituídos por
breves depoimentos, relatos, principalmente, preconizando em O Fio da Memória a
história do filho de ex-escravos, Gabriel Joaquim dos Santos, de 92 anos, que recebe
narração pela voz em off do ator Milton Gonçalves, que o personifica. As imagens
da casa de Gabriel, a Casa da Flor, são mostradas logo no início da película, onde seu
sobrinho, Vilson dos Santos, faz a atuação se passando pelo próprio tio. Posteriormente,
sob uma nova narração, feita em off pelo escritor Ferreira Gullar, o espectador é
informado sobre a biografia de Gabriel. Durante a história do filho de um ex-escravo
com uma mulher indígena, algumas fotos antigas são exibidas. Cabe salientar, que o
angariamento documental do filme de Coutinho começou a ser gestado ainda no final
dos anos de 1970, quando os depoimentos de Gabriel foram registrados num pequeno
gravador. Depois de sua morte, descobriu-se que ele tinha deixado vários cadernos de
assentamento onde estavam anotados, alternadamente, fatos do cotidiano, da história
da região e da história do Brasil.
Figura 1 - 00:05:33
Figura 2 - 00:06:08
A partir das gravações originais, Coutinho coloca rapidamente a voz que
representa Gabriel, oferecendo mais detalhes sobre a sua vida. Imagens de Gabriel
escrevendo em sua casa, em meio a artefatos produzidos por ele, no Distrito de
Vinhateiros, são mostradas em um plano médio a fim de enquadrar o trato do personagem
377
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
com seus próprios objetos e o registro de suas memórias, enquanto o narrador lê trechos
do diário de Gabriel, pelos quais este explica detalhadamente como foi feita a decoração
da sua casa, com pedras e cacos de vidro.
Figura 3: 00:07:23
Há uma amálgama entre os detalhes da decoração da casa e os escritos de
Gabriel, que também relatam notícias econômicas, políticas e sociais do Brasil entre o
final do século XIX e a segunda metade do século XX. Esses fragmentos da vida nacional
são entremeados com informações do cotidiano do personagem, apontando para uma
bricolagem entre a macro e a micro história. Essas visões, plasmadas no documentário,
possuem o encontro entre história e memória que, de certa feita, arquiteta a construção
e desconstrução do fato histórico, especialmente pela apropriação e da propagação da
tensão entre o indivíduo, objeto da história, em uma dialética do aprendiz, narrador e
sujeito, como expõe Jaime Rodrigues (1999, p. 180):
Da chamada “história do Brasil”, o Sr. Gabriel foi ao mesmo tempo aprendiz,
narrador e sujeito. Foi aprendiz quando relatou que aqui havia portugueses
e escravos, que D. Pedro deixou o Brasil para cá e Portugal para lá, que
Washington Luís caiu, que as forças brasileiras foram lutar na 2ª Guerra
Mundial. Foi narrador quando contou em seus registros pessoais a vida
378
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
cotidiana de São Pedro da Aldeia; a mulher matou o marido num baile, o
fulano se amasiou com beltrana... Foi sujeito quando contou sobre a greve
na salina em que trabalhava, em 1946; sobre suas relações com os pais e a
família; sobre seu amigo tornado irmão Guilherme e, acima de tudo, sobre
a maneira como ele concebeu e realizou a Casa da Flor. A forma de expor
suas lembranças sobre os grandes fatos na periodização da história do Brasil
e os mecanismos que ele usou para registrá-las trazem o Sr. Gabriel para
o lado dos homens comuns. Os fatos se situam num plano longínquo, e
com eles mantemos uma relação de conhecimento unilateral, sem interação
possível. O Brasil foi colonizado, os negros foram escravizados, D. Pedro
proclamou a independência e esse passado é imutável enquanto fato.
Mas o conteúdo das reminiscências pessoais do Sr. Gabriel o torna um
homem excepcional. De um lado, ele não estabeleceu nenhuma relação de
hierarquia que torne o grito do Ipiranga mais importante do que a morte do
marido no baile, nem a greve na salina têm menos espaço em seus diários
do que a queda de um presidente – embora essa falta de hierarquia seja
bastante comum em outros depoimentos ou narrativas de história de vida.
A maior excepcionalidade está no suporte que ele inventou para imprimir
suas memórias: para além dos diários anárquicos, a Casa da Flor é uma
autêntica casa da memória, com sua arquitetura encantada e encantadora.
Dessa forma, por meio de reminiscências pessoais, de fatos da história factual
e de situações cotidianas, Gabriel não apenas reproduz a memória histórica das cartilhas
didáticas que ele teve acesso ao ingressar na Igreja Evangélica. Ele se coloca como um
sujeito ativo da sua própria história, registrando em pedras e até mesmo construindo
a sua casa, muito semelhante à construção de um templo.5 Sob esse prisma, Gabriel
reconfigura a história sem o critério da hierarquização. Ao mostrar cartilhas, com
dados da história dos grandes personagens presentes nos livros didáticos tradicionais
de História, ele mantém, através das suas lembranças e da construção da sua casa – com
cacos de vidros, pedras e objetos doados por terceiros –, processos de significação da
sua história.
5 Não por acaso, a casa construída por Gabriel Joaquim dos Santos ao longo de sua vida, foi tombado
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em São Pedro da Aldeia, no Rio
de Janeiro, no ano de 1987. Disponível em: https://www.ipatrimonio.org/sao-pedro-da-aldeia-casa-da-flor/. Acesso em 18 de ago. 2023.
379
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
Em outro momento, Eduardo Coutinho traz para cena um ex-escravizado,
que na ocasião da entrevista filmada tinha aproximadamente 120 anos, o Sr. Manoel
Deodoro Maciel, nascido por volta de 1869, morador do município de São Gonçalo.
Com ele, Coutinho conversa sobre o mundo do trabalho e sobre os acontecimentos
da escravidão à abolição. Seu Manoel fala sobre os atos da Princesa Isabel de maneira
doce e romantizada. O diretor remunera o personagem por seus depoimentos e
disponibilidade em conceder as entrevistas, e fez questão de filmar este ato e a reação
de seu entrevistado, não deixando como bastidor o processo de negociação com um
sujeito de aproximadamente 120 anos, que havia se aposentado apenas seis anos antes
da realização da entrevista, como aponta Yago Paschoa (2019, p. 73):
Em São Gonçalo a equipe de Coutinho chega a Manuel Deodoro Maciel.
Homem de 120 anos e que quatro meses após a gravação do vídeo, morreu.
Foi escravizado em Minas Gerais, vindo ao Rio de Janeiro, deixando
qualquer laço familiar para trás. Passou a residir na casa do seu ex-patrão,
que o aposentou seis anos antes da entrevista, cujas imagens revelam
um homem que mal pode se sustentar de pé, resultado da exploração
que deforma o corpo. Manuel Deodoro trabalhou duro até os seus 114
anos, entre a labuta compulsória e a assalariada. Mas ao ser perguntado
por Coutinho se é melhor do que na época da escravização, ele responde:
“comigo é na nota” (10’:05”), fazendo referência ao preço do seu trabalho.
Assim, a partir da relação entre memória e história, o documentário busca
tratar de maneira poética e didática os fios de parte da experiência da população negra
liberta pós-abolição que alcançam visões sobre esse período da história brasileira que,
no documentário, é vista pela associação de imagens documentais, ficcionais e didáticas,
a partir de personagens, como Gabriel, que, segundo Coutinho (LINS, 2007, p. 77)
faziam do imaginário um eixo de construção de lampejos da História por fragmentos,
que arquitetava uma síntese extraordinária de histórias. A memória se equipara ao fazer
artístico de Gabriel acerca da construção da Casa da Flor, que nas palavras de Coutinho:
“Me pareceu corresponder um pouco à memória do negro, à medida que ela foi destruída pela
escravidão. E ele tinha que recuperar com fragmentos a sua identidade. Era uma pessoa que
juntava os fragmentos, os cacos da sua vida, para construir uma imagem. Por isso o escolhi como
eixo” (LINS, 2007, p. 77).
380
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
O que a África te lembra?
Depois dos relatos iniciais de Gabriel e Manoel, o filme aborda o cotidiano
em uma sala de aula e outros espaços do ambiente escolar, nos quais Coutinho produz
uma série de questões feitas diretamente aos estudantes. Em um dado momento do
filme, especificamente a partir do minuto “13’:45”, uma professora branca mostra um
livro didático com um mapa da África e pergunta aos alunos negros o que o continente
africano os faz lembrar:
Professora: Olha [apontando para o livro] o que te faz lembrar a África?
O que tem de importante a África para você? Para mim a Itália tem muita
importância, porque eu nasci lá.
Aluno: África? Onde moram os negros.
Figura 4 - 00:13:16
Esse procedimento pedagógico de distinção posto na identificação geográfica
marca também a posição distintiva racial de um sujeito pretensamente proveniente de
um processo de imigração subvencionada versus um sujeito descendente de processos de
deslocamentos forçados de cunho escravista. Esse jogo aponta para “encontros que tecem
a educação das relações étnico-raciais no Brasil” (PASCHOA, 2019), no caso da cena do
filme, isso acontece antes daLei n. 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que estabeleceu a
381
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
alteração das diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. No
filme, em 1988, a professora afirma ter nascido na Itália e o estudante negro apresenta um
distanciamento marcado pelo critério racial para dizer o que sabe sobre o continente; a
África é vista apenas como morada dos negros, parte do senso comum sobre o continente.
Kabengele Munanga, em Por que ensinar a História Da África e do Negro no Brasil de
Hoje (2015), aponta para se pensar o continente para além dos lugares cristalizados
dados a partir da experiência escravocrata e reprodutora de essencializações raciais
que reduzem uma História densa, rica e complexa às simplificações que desumanizam
historicamente a população negra. Esse processo de supressão da África, segundo
Munanga, é proveniente de uma esquematização ocidental da História feita a partir de
Hegel, na qual o referido continente não “podia ser objeto de estudos historiográficos e
inventou[se] novas ciências capazes de apreender as sociedades “primitivas” africanas e
não europeias em geral, que ainda viviam entre o reino da fatalidade e não do espírito,
da liberdade e do progresso” (MUNANGA, 2015, p. 27). Para Munanga, parte da
resolução do enfrentamento desta postura epistemológica estaria em, primeiramente:
“Reconhecer que a África tem história é o ponto de partida para discutir a história da
diáspora negra que na historiografia dos países beneficiados pelo tráfico negreiro foi
também ora negada, ora distorcida, ora falsificada” (MUNANGA, 2015, p. 28).
Na passagem “O que te lembra a África?” (13’:37”), do documentário de Coutinho,
nos chama atenção para a percepção construída acerca do negro brasileiro reproduzida
na formação escolar, além da questão da afirmação da ideologia da miscigenação como
um fator dificultador da construção positivada da identidade negra no país, bem como
o desdobramento da evocação cristalizada de uma memória da escravidão no Brasil, a
qual Munanga destaca que:
A memória da escravidão no Brasil é ora esquecida ou negada, ora descrita
negativamente como uma simples mercadoria ou uma força animal de
trabalho sem habilidades cognitivas. A construção da memória da escravidão
começa por justificativas ideológicas. Estas apresentam a escravidão como
um gesto civilizador para integrar o africano na “civilização humana”.
E para justificar essa missão era preciso atribuir ao africano “abstrato” as
qualidades tais como a preguiça, libidinagem, vagabundagem, deslealdade
382
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
etc. que apenas o chicote da escravidão poderia corrigir. Esse retrato
depreciativo forjado contra os escravizados foi por força da pressão
psicológica introjetado pelos sujeitos escravizados que acabaram por aceitálo como que fazendo parte de sua natureza humana negra. No entanto, essa
construção memorial da escravidão teria sido feita positivamente incluindo
numerosos aportes dos escravizados na economia brasileira colonial, no
povoamento do país e nos diferentes domínios da cultura. (MUNANGA,
2015, p. 29).
Sobre o processo de miscigenação, Kabengele Munanga afirma que o
embranquecimento populacional do Brasil possui um caráter eugenista, e que se iniciou
no final do século XIX. Como consequência, a identidade negra fragmentou-se na
questão referente à negritude e, por conseguinte, houve uma separação entre o negro
e o mestiço:
A grande explicação para essa dificuldade que os movimentos negros
encontram e terão de encontrar, talvez por muito tempo, não está
na sua incapacidade de natureza discursiva, organizacional ou outra.
Está, sim, nos fundamentos da ideologia racial elaborada a partir do
fim do século XIX a meados do século XX pela elite brasileira. Essa
ideologia, caracterizada entre outros pelo ideário do branqueamento,
roubou dos movimentos negros o ditado “a união faz a força” ao
dividir negros e mestiços e ao alienar o processo de identidade de
ambos. (MUNANGA, 2019, p. 25-26)
Esse tipo de ideologia é posto no filme a partir da constatação da reprodução
escolar acerca da presença do negro na História do Brasil por meio de critérios da
miscigenação, da positivação distintiva da experiência da imigração eurocentrada
em detrimento da marginalização da população negra, sobretudo devido ao jogo da
desigualdade racial no mundo do trabalho, da passagem do trabalho escravo para a
liberdade marcada pela manutenção da precarização da vida dos agora libertos, posta na
cena em que estão presentes a professora e os estudantes negros. No filme, a questão da
África só endereçada a estudantes negros, interpelados por pessoas brancas. O processo
de identidade negra a que se refere Munanga (2012, p.10), não deve ser visto no
383
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
sentido individual, mas sim no coletivo, que tem se limitado em atos de autoatribuição
ou autodefinição. Portanto, é necessário a construção da identidade coletiva negra,
desconstruindo não só a visão colonial que inferioriza o negro e os coloca à margem
da história, como a superação de um pensamento cristalizado de que o processo de
mestiçagem seja o caminho para o embranquecimento da população como um ideal
a ser perseguido. Nesses termos, é fundamental a presença da escola para fortalecer a
identidade da população negra, uma vez que os livros didáticos e o ensino da história
adotaram, até certo tempo, uma visão eurocentrista do passado, a qual Munanga chama
atenção para a necessidade de novas possibilidades de abordagem:
O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não
interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos
alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao
receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram
suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence
somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura
da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos
étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem,
contribuíram cada um de seu modo na formação da riqueza econômica e
social e da identidade nacional. (MUNANGA, 2005, p. 17)
Nas cenas do documentário, em que nos é mostrado o espaço da sala de
aula, a professora “de origem italiana” nos parece passiva-agressiva ao apresentar o
conhecimento aos educandos, instigando muito mais o conhecimento prévio dos alunos
do que os complexificando e os aprofundando de forma crítica e problematizadora.
Dentro dessas discussões sobre as práticas escolares, Nilma Lino Gomes, nos atenta que
para além da inserção e a evidência dada aos personagens históricos negros, também
seria papel da escola, discutir sobre o racismo historicamente presente em nossa
sociedade, isso porque
Esse é um ponto importante porque rompe com a hipocrisia da nossa
sociedade diante da situação da população negra e mestiça da nossa sociedade
diante da população negra e mestiça desse país e exige posicionamento
dos(as) educadores(as). Essa constatação também contribuiu para o
384
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
desmascarar a ambiguidade do racismo brasileiro que se manifesta através
do histórico movimento de afirmação/negação. No Brasil, o racismo ainda
é insistentemente negado no discurso do brasileiro, mas se mantém nos
sistemas de valores que regem o comportamento da nossa sociedade,
expressando-se através das mais diversas práticas sociais. (GOMES, 2005,
pp.147-148)
Segundo Yago Paschoa (2019, p.74), nessa sequência do filme de Coutinho,
a partir da prática do “corte seco”, busca-se construir um pensamento documental
denotado em cadeia de jogos de interpelação fragmentados no ambiente escolar, dados
em situações de ensino e aprendizagem e nas perguntas do diretor feitas diretamente
aos estudantes. Dessa maneira, o diretor age
[...] imprescindindo, assim, do coletivo; da elaboração que se arranja pela
cooperação mútua dos sujeitos implicados. Bom assinalar que, Coutinho
explora seu dispositivo mais cristalino na edição dessa cena: o corte seco.
Sem isso, o sentido dado a essa passagem não estaria definido. Desde a
professora de origem italiana até a última fala, o vídeo atravessa espaços
diferentes da escola, busca afirmações dadas em momentos distintos. Ou
seja, não foi uma narração cronológica, linear. (PASCHOA, 2019, p.74)
Nos registros feitos no ambiente escolar, no final dos anos de 1980, já existia
a preocupação sobre o papel de Zumbi dos Palmares, Princesa Isabel e Princesa
Anastácia e as suas relações com à escravidão no Brasil e a simbolização de processos
de emancipação, por parte da população negra. Tal preocupação é fruto especialmente
das lutas do Movimento Negro, inclusive participante das reivindicações constituintes
de então. Os movimentos sociais da população negra receberam atenção das lentes do
diretor em outros momentos do filme O Fio da Memória, como as passeatas filmadas e
presentes no documentário. Em uma determinada cena, Eduardo Coutinho entrevista
um grupo de alunos e questiona-os sobre quem foi Zumbi dos Palmares.
Coutinho: Quem foi Zumbi?
Aluno: Zumbi dos Palmares eu não sei quem foi não, mas ele é um grande
guerreiro. É o chefe e lutava.
385
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
Coutinho: Mas ele lutava em que lugar?
Aluno: Nos Palmares.
Coutinho: O que era Palmares?
Aluno: Um lugar em que os negros que conseguissem fugir iam pra lá.
Coutinho: E quando eles iam pra lá...o que faziam?
Aluno: Lutava, matava...e alguns deles morriam também.
Coutinho: E como é que morreu Zumbi?
Aluno: Ele morreu a tiros.
Posteriormente, após passar outros relatos durante o documentário, a cena
na sala de aula é retomada, onde Coutinho também continua interpelando
outros alunos sobre o mesmo assunto:
Coutinho: Me diz uma coisa, como e quando que libertou...que história é
essa?
Aluna: A abolição da escravatura, né? A Lei Áurea, a princesa Isabel assinou
a Lei Áurea.
Aluno: A princesa Isabel podia libertar os escravos porque ela era uma
princesa. Se não fosse uma princesa, não tinha a ver não.
Coutinho: Por que?
Aluno: Porque não tinha força.
Coutinho: Por que ela tinha força?
Aluno: Príncipe e princesa têm força.
Coutinho: Mas os outros não tinham força...os brancos, os negros... não
tinham?
Aluno: Não tinha arma.
Um outro aluno tenta responder à questão desenvolvida por Coutinho
Aluno: Quem fez a abolição? O branco fez a abolição. [Um aluno interrompe
e afirma que foram os pretos e os brancos]. Ah...aquela mulher, como
chama...calma aí. A que libertou os escravos. [Um outro aluno interrompe
e afirma que foi a escrava Anastácia].
Coutinho: Escrava Anastácia? Ela que libertou os escravos?
Segundo aluno: Diz que é...
Primeiro Aluno: Foi a princesa Isabel.
Segundo Aluno: Mas ela só tem uma carta.
Primeiro Aluno: Então, carta para libertar.
Segundo Aluno: Mas quem é que lutava pelos negros era a escrava Anastácia.
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notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
Segundo Paschoa (2019, p. 74), a maneira pela qual Coutinho produz as
interpelações faz com que os estudantes concluíssem, “[...] afinal, que a princesa Isabel
apenas assinou a conquista dos negros e que se tem um nome a ser lembrado, é escrava
Anastácia.” O documentário aponta para a data 13 de maio de 1888, a qual marca a
abolição da escravatura, como uma espécie de espaço de disputa. Sobre isso, Munanga
(2015, pp.28-29) aponta que:
A abolição da escravatura no Brasil em 1888 (quarenta anos depois da
França e 24 anos depois dos Estados Unidos), não foi uma ruptura, pela
sua incapacidade em transformar as profundas desigualdades econômicas
e sociais, pois não se organizou uma resposta ao racismo que se seguiu
para manter o status quo. Nessa manutenção, a relação mestre/escravo se
metamorfoseou na relação branco/negro, ambas hierarquizadas.
A data de 13 de maio é, sem dúvida, uma data histórica importante, pois
milhares de pessoas morreram para conseguir essa abolição jurídica, que
não se concretizou em abolição material, o que faz dela uma data ambígua.
Por isso o Movimento Negro investe hoje na data de 20 de novembro, que
tem a ver com o processo de mudança.
Trata-se de compreender as causas desse silêncio organizado e não ficar
preso à aceitação da “culpabilidade”, conceito de pensamento cristão e
dos tribunais que serve para apaziguar as tensões sem buscar as saídas do
impasse político.
Na versão oficial da abolição, coloca-se o acento sobre o abolicionismo,
mas se apaga ao mesmo tempo o que veio antes e depois. Nesse sentido, a
abolição está inscrita, mas esvaziada de sentido. A Lei Áurea de 13 de maio
de 1888 é apresentada como grandeza da Nação, mas a realidade social dos
negros depois desta lei fica desconhecida.
O discurso abolicionista tem um conteúdo paternalista. Nele, os negros
são considerados como crianças grandes ainda incapazes de discernir seus
direitos e deveres na sociedade livre. A educação fica ainda dominada pelo
eurocentrismo sem questionar o universalismo abstrato nele contido.
A questão do negro tal como colocada hoje se apoia sobre uma constatação:
o tráfico e a escravidão ocupam uma posição marginal na história nacional.
No entanto, a história e a cultura dos escravizados são constitutivas da
história coletiva como o são o tráfico e a escravidão. Ora, a história nacional
não integra ou pouco integra os relatos de sofrimento, de resistência, de
silêncio e de participação.
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notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
A abolição da escravatura é apresentada como um evento do qual a
República pode legitimamente se orgulhar. Mas a celebração da data até hoje
tenta fazer esquecer a longa história do tráfico e da escravidão para insistir
apenas sobre a ação de certos abolicionistas e marginalizar as resistências
dos escravizados. A mim me parece que a celebração acompanha-se de uma
oposição sempre atualizada de duas memórias: a memória da escravidão
negativamente associada aos escravistas e a memória da abolição
positivamente associada à nação brasileira. No entanto, as duas memórias
deveriam dialogar para se projetar no presente e no futuro do negro, ou se
constituindo numa única memória partilhada.
Nessa tensão produzida acerca da memória histórica da abolição no Brasil,
o filme segue ampliando a perspectiva sobre tal acontecimento, para além da versão
oficial, a partir da menção à escrava Anastácia, que aparece primeiramente na fala
dos estudantes e assume o protagonismo negro no processo histórico de luta por
emancipação, antes, durante e pós-abolição. Assim, há um efetivo deslocamento da
figura da Princesa Isabel, uma mulher branca redentora, para a figura mítica e ancestral
de uma mulher negra escravizada, Anastácia.
A posição dada à Anastácia, elencada pelo aluno na sala de aula, como a
verdadeira libertadora dos escravos, também é enviesada por estar carregada de
elementos míticos referentes ao seu status de santa popular cultuada por vários setores da
população, como a quem atribuem muitos milagres, inclusive a libertação dos escravos.
Porém, essa santa popular carrega um valor simbólico inestimável na composição de
parte da construção da identidade do povo negro.
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notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
Figura 5 – “13 de maio de 1988: a princesa esqueceu de renovar nossa carteira de trabalho” Movimento Negro Unificado - Ilê Ayê - Grupo Ginga. Disponível em: https: https://twitter.
com/MundosTrabalho/status/1392815472635256832
Essa disputa fica clara, nas posições do Movimento Negro na ocasião do
centenário, momento da produção do documentário O Fio da Memória. Por exemplo,
em Salvador, o Movimento Negro Unificado, juntamente com a Associação Cultural
Ilê Aiyê, elaborou uma série de outdoors,em que se contestava os termos do fim da
escravidão, a qualidade da abolição e o descaso com o qual homens e mulheres negras
foram tratados e, por conseguinte, alijados de direitos e acesso à dignidade da vida
como libertos, bem como se questionava a benevolência depositada na Princesa Isabel.
Segundo Claudia Regina de Paula (2013, p. 69), a mesma movimentação aconteceu em
11 de maio de 1988, no centro do Rio de Janeiro, quando a polícia militar e o exército
ocuparam a Praça X, na Candelária, no trecho da Avenida Presidente Vargas e a
Central do Brasil, a fim de impedir a realização da “Marcha Negra contra a Farsa da
Abolição”. Para Nilma Gomes, o Movimento Negro Unificado tem um papel crucial nas
articulações acerca das discussões sobre a história e a cultura do negro no Brasil.
Ao ressignificar a raça, esse movimento social indaga a própria história
do Brasil e da população negra em nosso país, constrói novos enunciados
e instrumentos teóricos, ideológicos, políticos e analíticos para explicar
como o racismo brasileiro opera não somente no Estado, mas também na
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notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
vida cotidiana das suas próprias vítimas. Além disso, dá outras visibilidades
à questão étnico racial, interpretando-a como trunfo, e não empecilho para
a construção de uma sociedade mais democrática, onde todos, reconhecidos
na sua diferença, sejam tratados igualmente como sujeitos de direitos.
Ao politizar a raça, o Movimento Negro desvela a sua construção no
contexto das relações de poder, rompendo com visões distorcidas, negativas
e naturalizadas sobre negros, sua história, cultural, prática e conhecimento.
(GOMES. 2017, p. 24)
“A muda Anastácia fala dos horrores gráficos da escravidão”...
O processo de ressignificação do protagonismo acerca do acontecimento
da abolição da escravatura também acontece poeticamente em O Fio da Memória,
quandoa voz em off do segundo narrador, Ferreira Gullar, oferece um tom didático e
informacional ao espectador que observa esfinges, imagens e pinturas sacralizadas de
Anastácia, quando busca-se explicar a existência dela e as interpretações em torno de
sua figura, a qual seria nas palavras do poeta
[...] uma princesa africana trazida para Bahia do século passado. Rebelando-se
contra a dominação de seus senhores, Anastacia teria morrido martirizada.
Sua imagem é de uma mulher negra, de olhos azuis com uma máscara de
Flandres na boca e uma gargantilha no pescoço. Instrumentos de castigo
comuns durante a escravidão.
Figura 5 - 00:19:03
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notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
A figura da escrava Anastácia carrega a força simbólica que foi amplamente
apropriada e associada, segundo Jerome S. Handler e Kelly E. Hayes (2009), a um
conjunto de mitos que passaram a descrever a luta, o sofrimento tido como virtuoso e
a morte dolorosa de uma escrava, que foi tornada símbolo do orgulho negro, com uma
capacidade de circulação massiva, a partir de sua representação presente em terreiros
de Umbanda e Candomblé, bem como em igrejas católicas, como a Igreja do Rosário,
localizada no centro Rio de Janeiro que, em 1968, montou uma exposição de efeméride
aos 80 anos de Abolição da Escravatura, destacando a litografia de Jacques Etienne
Arago - Castigo de Escravos, de 1839, na qual a figura da escrava Anastácia foi retratada.
A escrava Anastácia se tornou uma figura cultuada principalmente entre as
populações negras, sendo vista como uma protetora e intercessora dos mais vulneráveis.
Seu culto se desenvolveu especialmente entre as mulheres negras, que viam nela uma
fonte de força e resistência. Ao longo do tempo, vários aspectos simbólicos foram
atribuídos à Anastácia. Em algumas representações, ela aparece com uma máscara facial,
simbolizando o processo de silenciamento e a invisibilidade socialmente produzida
sobre os escravizados e seus descendentes. Em outras, suas mãos estão amarradas,
simbolizando a violência que ela sofreu e a luta pela liberdade e emancipação de toda
uma população. Assim, por essa figura, podemos observar como as representações
foram sendo moldadas conforme o contexto histórico. Segundo Handler e Hays, a
força simbólica da escrava Anastácia pode ser medida a partir da sua enorme presença
simbólica de forma religiosa e política:
De santuários espalhados pelo Brasil a camisetas, faixas políticas
e salões de beleza, Anastácia olha para o mundo através dos
dentes da máscara de metal que envolve sua boca. Geralmente
de um azul penetrante e sobrenatural, os olhos da escrava
negra parecem comunicar aquilo que seus lábios algemados
não conseguem. Para seus defensores, a muda Anastácia fala
dos horrores gráficos da escravidão: o abuso sexual e o estupro,
os trabalhos forçados e os castigos torturantes sofridos por
gerações de escravos negros. Testemunhando silenciosamente
esse sofrimento, a imagem de Anastácia confronta o espectador
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notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
com uma história cujos detalhes dolorosos vivem na memória
popular, e não nas versões oficiais da história brasileira. Nos
últimos trinta anos, a imagem de Anastácia proliferou em todo
o Brasil, pois se acredita que a escrava mártir que ela representa
tornou-se o foco de movimentos políticos e religiosos.
Para alguns, como os membros do movimento negro ou
movimento da consciência negra, Anastácia é um símbolo do
orgulho negro e da resistência heroica: uma lembrança dos
horrores da escravidão e de seu legado contínuo de racismo.
Para outros. Anastácia é objeto de práticas devocionais
católicas e adquiriu a reputação de ser uma figura poderosa
e santa que possui o poder místico de intervir na vida de
seus devotos. Estátuas da Anastácia mascarada podem ser
encontradas entre outros santos católicos populares em casas
particulares e capelas públicas nas cidades brasileiras. Houve
até mesmo um abaixo-assinado solicitando à Igreja Católica
que a reconhecesse como santa (Teixeira, s.d.: 7-9; Burdick,
1998: 71). Anastácia também atraiu um número considerável
de seguidores entre os praticantes da Umbanda, juntando-se
ao panteão eclético de entidades espirituais cuja ajuda e sucesso
são objeto das atenções rituais dos praticantes. Embora sua
imagem tenha se tornado icônica no Brasil, é duvidoso que
Anastácia, como figura histórica, tenha realmente existido.
(HANDLER; HAYES, 2009, p. 26) [tradução nossa]
Em O Fio da Memória, após Ferreira Gullar narrar as informações sobre a
escrava Anastácia em meio as imagens da mártir, o documentário nos diz que uma
imagem de Anastácia foi exposta no Museu do Negro que, na época, era um anexo a
Igreja do Rosário no centro da cidade do Rio de Janeiro. A imagem passou a receber
visitas que mais pareciam com procissões religiosas, e que as pessoas levavam dinheiro
para colocar na estátua, fotos pessoais, santinhos contendo orações e papéis com
pedido de promessas ou orações particulares. Ainda em 1988, o Museu foi fechado para
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notas sobre o pós-abolição no cinema
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reformas e só foi reaberto no ano posterior e ao voltar ao funcionamento, a imagem de
Anastácia foi retirada por decisão da diocese do Rio de Janeiro, devido à condição de
santa popular e não canonizada pela Igreja.
Tensões sobre o sincretismo…
O ano de 1988, não apenas marcava o centenário da Abolição da Escravidão
no Brasil, mas também a promulgação da Constituição Federal atual. Na carta magna,
todos os homens são iguais e o racismo configura como crime inafiançável6. Tal processo
de obliteração da santa popular, entretanto, pode ser compreendido como uma ação
de “desafricanização”, onde elementos da cultura afro são abafados, quando não são
embranquecidos, mediante padrões europeus já expressamente impostos, como, por
exemplo, a religião e profusão de milagres que justifiquem a canonização, que não
aconteceu no caso de Anastácia. Segundo Munanga:
No nosso entender, o modelo sincrético, não democrático, construído
pela pressão política e psicológica exercida pela elite dirigente, foi
assimilacionista. Ele tentou assimilar as diversas identidades existentes
na identidade nacional em construção, hegemonicamente pensada numa
visão eurocêntrica. Embora houvesse uma resistência cultural tanto dos
povos indígenas como dos alienígenas que aqui vieram ou foram trazidos
pela força, suas identidades foram inibidas de manifestar-se em oposição
à chamada cultura nacional. Esta, inteligentemente, acabou por integrar
as diversas resistências como símbolos da identidade nacional. Por outro
lado, o processo de construção dessa identidade brasileira, na cabeça da
elite pensante e política, deveria obedecer a uma ideologia hegemônica
baseada no ideal do branqueamento. Ideal esse perseguido individualmente
pelos negros e seus descendentes mestiços para escapar aos efeitos da
discriminação racial, o que teve como consequência a falta de unidade, de
solidariedade e de tomada de uma consciência coletiva, enquanto segmentos
6 A lei criminalizando o racismo veio antes da Constituição Federal de 1988, com a promulgação da Lei
1390, de 03 de julho de 1951, intitulada de Lei Afonso Arinos, então deputado federal do Governo de
Getúlio Vargas. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1390.htm. Acesso em 20 de
ago. de 2023.
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notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
politicamente excluídos da participação política e da distribuição equitativa
do produto social. (MUNANGA, 2004, p. 123-124)
O documentário explora imagens sobre o sincretismo religioso em diversos
momentos. Destacamos aqui um caso em especial, quando Coutinho registra a festividade
realizada na Catedral de Caxias, município do Grande Rio, em homenagem à morte
de Zumbi dos Palmares. O evento foi organizado por membros tanto da Teologia da
Libertação quanto pela Pastoral Negra, mesclando elementos de cultos afro-brasileiros
e aos ritos católicos, onde, por exemplo, vemos o uso da pipoca (deburù), elemento
de oferenda pertencente ao ritual da festa do Orixá da Terra, Obaluaiê, responsável
pela nutrição, a doença e a cura, “cultuado especialmente no mês de agosto com uma
das cerimônias mais emblemáticas do Candomblé: o Olubajé, uma festa que só pode
ser realizada com o dinheiro que os devotos pedem nas ruas em troca de um punhado
de pipocas, sua principal oferenda.” (RODINEY, 2020, s.n.). Segundo Fábio Libório
Rocha (2023, p. 23) no terreiro vivido na festa do Olubajé verifica-se um processo de
sociabilidade posto em torno de “uma fartura de comida oferecida gratuitamente a
todos os presentes, subvertendo a noção consumista e utilitarista do capitalismo atual”.
Esse ritual, agora sem o sincretismo, é mostrado no documentário quando
é filmado a festa do Olubajé, registrada em 18 de agosto de 1990, no terreiro de
candomblé da Mãe de santo francesa, Gisèle Omindarewá, em Santa Cruz da Serra, na
baixada fluminense. Essas cenas são mostradas logo após o narrador indicar os dados
acerca do óbito de Gabriel Joaquim do Santos, que morreu no dia 03 de abril de 1985,
enterrado no cemitério de Santa Isabel, em Cabo Frio. As informações sobre o filho de
ex-escravo e artista são dadas com imagens do cemitério vistas a partir de um sobrevoo
registrado pela câmera. O narrador indica que o personagem foi enterrado em uma
urna mortuária, de onde foi tirado três anos depois, jogado em um depósito de restos
mortais com outras pessoas de maneira indiferente. A imagem do depósito lotado de
restos mortais é acompanhada de uma trilha sonora que emula o som de um sopro
carregado de vento com uma coloração quase de tom fúnebre, depois apresenta-se
uma imagem de uma escultura de um de anjo presente jazigos suntuosos e, por fim,
aparece a imagem do Orixá Obaluaiê, orixá também da vida e da morte, responsável
por manipular os elementos da cura e da doença, o rei de todos os espíritos do mundo.
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notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
A partir da sequência de imagens dispostas nesse momento do filme, constrói-se um
vínculo imagético e narrativo entre o personagem falecido; o Orixá, Obaluaiê, que tem
a Calunga (o cemitério) como ponto de força e a festividade carregada de sociabilidade
afro-religiosa do Candomblé, o Olubajé, em que se entoa os toques e pontos em louvor
a Nanã e seu filho Obaluaiê, sendo eles os “nagôs que lidam com a vida e a morte”.
Nesse processo estabelece-se uma quebra com a perspectiva do sincretismo estimulado,
por exemplo, exposto nas imagens registradas anteriormente, em 20 de novembro
de 1988, na Catedral de Caxias, com culto de exaltação a Zumbi, realizado pelo Frade
Franciscano, Frei David Raimundo dos Santos, um dos propositores de uma espécie de
Teologia Negra da Libertação, e os celebrantes pertencentes também aos cultos afrobrasileiros.
Figura 5 e 6 - 01:44:58 e 01:45:18
Para o sociólogo Clóvis Moura, que lançou a obra A sociologia do Negro
Brasileiro, em 1988, no mesmo ano do documentário e do centenário da abolição, o
sincretismo hierarquiza a religião cristã como superior, além de ser uma das principais
características no processo de miscigenação:
Estabelecida uma escala de valores em cima das diferentes religiões em
contato e elegendo-se o catolicismo como religião superior, teremos como
conclusão lógica a necessidade de se fazer com que as religiões chamadas
fetichistas, inferiores, se incorporem, também, aos padrões católicos ou
395
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
cristãos de um modo geral. Esse processo deve se dar da mesma forma
como, nos contatos étnicos, se apregoa um branqueamento progressivo da
nossa população através da miscigenação até chegar-se a um tipo o mais
próximo possível do branco europeu. (MOURA, 2019, p. 65)
Assim, o embranquecimento não ocorreu apenas no sentido biológico, mas
também nas esferas religiosas e culturais, e com a propagação do mito da harmonia
racial brasileira. Retomando a Constituição, a afirmação de que todos são iguais e devem
ser tratados como iguais, minimiza-se, apenas teoricamente, pois existe e permanece
a extrema [in]diferença social existente entre brancos e negros na sociedade, cujo
resultado não se altera na prática, pois o problema do racismo se mantém entre nós,
como herança de um passado escravista. Embora, deve-se destacar as lutas e os avanços
que o povo negro vem historicamente traçando, não podemos nos esquecer das lutas que
o Movimento Negro teve ao longo de várias décadas desde a sua ampliação e unificação
em meados da década de 1970, principalmente ao que se refere ao campo educacional.
O MN foi responsável por diversos ganhos na lei, desde a inclusão de negros na escola
pública, passando pela tramitação da primeira lei (Lei 4.024/61) sobre a inclusão da
discussão de raça nos currículos nacionais de ensino em 1960. Segundo Gomes,
No entanto, apesar de ter feito parte das polêmicas e debates em torno da
aprovação da referida lei, a raça operou mais como um recurso discursivo
na defesa dos ideais universalistas de uma educação para todos vigentes na
época. (GOMES, 2017, p. 13)
Essas discussões sobre raça ficaram congeladas no período militar, pois
os movimentos sociais, ainda que sufocados, contemplavam outras questões mais
abrangentes acerca do enfrentamento à repressão erigida por um Estado de cunho
autoritário. Foi só com a abertura política que o MNU teve um novo respiro e
possibilidade de ampliação de conhecimento e retomada de pautas raciais, tais como
a formação de mais pessoas e com isso a maior circulação de ideias e pesquisas sobre o
tema da identidade negra. Foi também a partir da década de 1980 e 1990 que o MNU
teve um maior acesso às políticas públicas, podendo assim colocar em ações práticas as
experiências feitas nas pesquisas até então. Uma das maiores vitórias para o Movimento
396
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
Negro veio em 2003 com a instauração da lei 10.639/03 que tornava obrigatório o
ensino de História da cultura afro-brasileira e africana nas escolas e no ano seguinte a
criação do Ministério da Educação, a Secretária de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade (SECAD)
o Movimento Negro ressignifica e politiza a raça, compreendendo-a
como construção social. Ele reeduca e emancipa a sociedade, a si próprio
e o Estado, produzindo novos conhecimentos e entendimentos sobre as
relações étnico-raciais e o racismo no Brasil, em conexão com a diáspora
africana. (GOMES, 2017, p. 23)
Articulações entre o racismo e o colorismo
Outras implicações ocorridas pela dinâmica de mestiçagem, segundo
Munanga, é a aceitação do negro como mulato e a divisão daqueles que possuem pele
mais clara em relação às pessoas com pele escura, onde são retratados no documentário.
Sobre a questão referente a crise de autoidentidade, sobretudo ao utilizar outros termos
para não se declarar como negro, temos novamente uma cena ocorrida na sala de aula.
Coutinho entrevista outro grupo de alunos para fazer questões relativas à escravidão.
Coutinho: Os escravos eram o quê? Da onde que vinham?
Aluna: Eles eram exportados, né. Eles vendiam escravos.
Coutinho: E de que lugar eles vinham?
Aluna: Na África, né?
Coutinho: Eram brancos, eram índios, como é que eles eram?
Aluna: Eram mestiços, né?
Coutinho: Porque mestiços?
Aluna: Eram assim [apontando para o próprio cabelo] ...cafuzos, meio
morenos, de cabelo duro.
Coutinho: Você é o quê? Branca, cafuza...o que você é?
Aluna: Acho que eu sou cafuza [com um sorriso envergonhado].
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notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
Figura 7 - 00:13:42
Assim, através do uso “cafuza” (miscigenação entre ameríndios e negros
africanos)para se autodesignar, a jovem faz uma tentativa em se colocar em uma categoria
com mais proximidade do tom de pele clara, em dificuldade de se autorreconhecer no
processo de mestiçagem. De modo geral, segundo Munanga, se colocar no intermédio
entre negro e branco oferece uma possibilidade de ter acesso aos privilégios que o
branco goza socialmente:
A maior parte das populações afro-brasileiras vive hoje nessa zona vaga e
flutuante. O sonho de realizar um dia o “passing” que neles habita enfraquece
o sentimento de solidariedade com os negros indisfarçáveis. Estes, por
sua vez, interiorizaram os preconceitos negativos contra eles forjados
e projetam sua salvação na assimilação dos valores culturais do mundo
branco dominante. Daí a alienação que dificulta a formação do sentimento
de solidariedade necessário em qualquer processo de identificação e de
identidade coletivas. Tanto os mulatos quanto os chamados negros “puros”
caíram na armadilha de um branqueamento ao qual não todos terão acesso,
abrindo mão da formação de sua identidade de “excluídos”. (MUNANGA,
2019, p. 109).
Clóvis Moura se debruçou na questão do colorismo, feita depois do censo de
1980, onde os brasileiros deveriam responder qual a cor de sua pele. Foram identificadas
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notas sobre o pós-abolição no cinema
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136 tonalidades diferentes, onde existe a preocupação em não se considerar propriamente
negro7. O filósofo Frantz Fanon pontuou bem ao exprimir a vontade do negro em se
aproximar da dinâmica da branquitude:
O negro quer ser como o branco. Para o negro, há um só destino. E ele
é branco. Já faz muito tempo que o negro admitiu a inquestionável
superioridade do branco e todos os seus esforços visam conquistar uma
existência branca. (FANON, 2020, p. 169)
O colorismo é uma prática social e ideologia de distinção racial que opera como
uma espécie de tecnologia do racismo que age sobre as pessoas negras e pardas, que no
Brasil se fundamenta a partir de uma inferiorização do negro em relação ao branco, seria
então variações das tensões entre e a inferiorização da negritude e a supervalorização
da branquitude, definindo acessos e restrições a partir de critérios raciais, arquetípicos
e fenotípicos, especialmente àqueles que remetem as marcas da africanidade e o
pertencimento não branco. As dimensões de inferioridade são produções que se referem
aos parâmetros da branquitude. Cabe salientar que o colorismo é constantemente
relacionado com a política do embranquecimento e com os debates sobre “o que é ser
pardo” e “o que é ser negro” no Brasil (RODRIGES, 2023, p. 33).
Segundo Devulsky (2021), nesses termos, a cor da pele é usada como um
indicador hierarquizante de beleza, sucesso e status social, e aqueles que possuem uma
tonalidade de pele mais clara são considerados superiores aos de pele mais escura.
Esse fenômeno pode ser observado tanto nas relações interpessoais quanto nas
representações midiáticas e institucionais. Outro fator que contribui para o colorismo
é o legado do sistema de escravidão, que dividiu os negros em categorias com base
na cor da pele. Os escravistas criaram hierarquias de cor para separar os escravizados,
atribuindo diferentes funções e tratamentos com base na tonalidade da pele. Os negros
de pele clara, muitas vezes, eram colocados em posições de um suposto privilégio,
como os trabalhadores domésticos, enquanto os de pele mais escura eram relegados aos
trabalhos mais pesados nas plantações, embora ambos ainda continuavam a ser escravos.
Essa divisão dentro da comunidade negra resultou em tensões e rivalidades baseadas
na cor da pele, perpetuando assim o colorismo como tecnologia racial. No contexto
7 Cf.: (MUNANGA, 2019).
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brasileiro, o colorismo é também influenciado pela miscigenação racial e cultural que
ocorreu a partir do período colonial. A população brasileira como resultado de uma
mistura complexa de diferentes grupos étnicos, incluindo indígenas, africanos, brancos
e as várias combinações entre eles. Essa diversidade étnica e racial gerou uma ampla
gama de tonalidades de pele na população brasileira. No entanto, mesmo diante dessa
diversidade, a pele clara ainda é considerada como ideal e associada à uma valorização
social da branquitude em detrimento da negritude, pela qual afirma-se um aspecto de
supremacia da brancura da pele e age em caráter discriminatório.
A discriminação em uma sociedade mestiça de maioria negra precisa de
um instrumental ideológico que não permita que dá mestiçagem surja
uma confusão racial entre brancos e negros. O colorismo, assim, facilita o
enquadramento discriminatório necessário para manter as desigualdades
entre os grupos, restringindo o acesso de mestiços à identidade branca
enquanto houver elementos visíveis de negritude. A identidade branca é,
por excelência, restritiva, enquanto a negra é inclusiva, posto que a reserva
de poder no capitalismo precisa, necessariamente, ser salvaguardada de
qualquer tipo de horizontalização. (DEVULSKY, 2021, p. 134)
Entretanto, no escopo mestiço, a tentativa de obter regalias em que o branco
tem mais vantagem em relação ao negro, não se concretizou em boa parte da população
miscigenada do país e só aumentou o fosso da desvalorização e desumanização da
população negra na estrutura racista da sociedade brasileira, criando cisões entre
a população não branca, ou seja, produziram-se hierarquias e segregações entre
a população negra. Não brancos, de pele clara, a de famílias de baixa renda, não são
considerados brancos pelos pertencentes a esse grupo racial e, muitas vezes, não
conseguem romper com a exclusão social e financeira que lhe foram renegadas desde
seus antepassados, inclusive por critérios raciais.
A segunda implicação causada pelo processo de mestiçagem, sobretudo ao que
se refere ao colorismo, é a classificação de quem pode ser considerado preto ou não,
causando o enfraquecimento e a fragmentação do movimento negro no Brasil, pois
dificulta a capacidade de construção de identidades políticas viabilizadoras.
Para exemplificar essa questão no documentário, há a cena referente à
Confraria do Garoto, outra comemoração feita no dia 13 de maio, onde fica explícito a
400
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
materialização do problema aqui mencionado. Liderado por comerciantes, geralmente
brancos da cidade, a escolha da rainha do Centenário da Abolição, Fátima Jú, não agrada
alguns participantes do evento, pois se trata de uma mulher negra da pele não retinta,
que recebeu a faixa de “Miss Pretinha”.A reclamação consistia no fato que a jovem não
era retinta “o suficiente” para representar a rainha do Centenário. Uma senhora, negra
retinta, se revolta com a escolha e discute com um dos dirigentes do evento, um senhor
branco:
Senhora Negra : Tá errado! Isso aí é safadeza. Com tanta preta, menina
bonita, porque que não mostrou. Tá errado! Cem anos da Lei Áurea, cem
anos hoje de maio de 1888. Hoje era para sentar uma preta bem nega ali sem
cabelo. [Entre aplausos e algumas vaias, a senhora continua] estou zangada!
Estou zangada que eu sou negra e eu não tenho nem cabelo. Eu sou negra
mesmo, eu sou raiz, com muita honra.
Dirigente: Posso falar? Te convidei para o evento...
Senhora Negra: E depois que aquilo ali não é mulher, é um homem. Branco
não gosta mesmo de preto e a escravatura nunca acabou no Brasil. O
preconceito nunca vai acabar. Eu provo e reprovo, com toda a confiança de
minha alma, que vocês não gostam mesmo de nós. Com tanta preta bonita
aí, por que você não botou?
Dirigente: Agora você vai me escutar. A partir do momento que 51% dos
brasileiros são pretos...
Senhora Negra: Mulato é mulato, preto é preto. Essa cor aí não é nego,
não. Essa cor que tá aí é parda. Preta sou eu, negra sou eu. [Apontando para
pessoas que estão do seu lado] essa aqui é parda, esse aqui é negro.
Dirigente: 51% da população brasileira é negra.
Senhora Negra: Isso vai ter que acabar. O negro só serve para votar, eu tô
falando é com o repórter e não com o senhor.
: 51% da população brasileira é a raça negra. Quem tem 51% de ações é o
dono da empresa. Qual líder vocês têm? Por que não tomaram o poder?
Vocês têm 51%.
Diante deste diálogo, percebe-se a disputa sobre quais são as características
necessárias para ser considerado negro, afinal de contas, de acordo com a percepção da
mulher que assistia ao desfile, a rainha do centenário é uma mulher “parda”, utilizando401
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
se o cabelo como um marcador racial. Ademais, o debate acalorado mostra a posição
do homem branco acumulador de capital capaz de descaracterizar as experiências de
uma mulher negra, inclusive debochando do problema da representatividade negra na
política, pouco antes da sequência do filme trazer à cena a entrevista com a deputada
federal Benedita da Silva, atuante na Constituinte, como uma espécie de contraponto
ao questionamento feito pelo dirigente do evento da “Miss Pretinha”. Outro aspecto
também não pode ser ignorado. Para além da questão racial, permanece a questão
relativa ao gênero. O espectador é informado que Fátima Jú foi eleita a mulata mais
bonita do Brasil, no Programa do Chacrinha, exibido pela Rede Globo. Dessa forma,
é endossado o estereótipo da mulata sensual, difundida amplamente pela literatura
brasileira e, posteriormente, por outros meios de comunicação.
Portanto, o padrão de beleza e sensualidade feminina entra na hierarquização
racial: quanto mais a mulher se aproximar do padrão de branquitude, ainda que tenha
descendência negra, mais desejada ela se torna. Assim, “no âmbito das classificações
de gênero, ao encarar de maneira tão explícita o desejo do masculino branco, a
mulata também revela rejeição que essa encarnação esconde: à rejeição à negra preta.”
(CORRÊA, 1996, p. 50).
A conclusão é que o colorismo promove a dissolução da consciência coletiva
e a desunião, onde prejudica práticas que deveriam ser utilizadas para o fortalecimento
da negritude no Brasil, sobretudo no campo político.
Portanto, não é apenas na esfera discursiva ou organizacional que dificulta a
coesão do movimento negro no país, mas na teia histórica que se inicia no século XIX
até meados do século XX, pelo embranquecimento populacional defendido pela elite
brasileira. A conclusão de Munanga é que tal ideologia, “caracterizada entre outros pelo
ideário do branqueamento, roubou dos movimentos negros o ditado ‘a união faz a força’
ao dividir negros e mestiços e ao alienar o processo de identidade de ambos” (2019, p. 19).
Considerações sobre o emaranhado de fios
Como já mencionamos anteriormente, o documentário reúne várias parcelas
da sociedade com intuito de refletir sobre o marco de cem anos após a abolição e as
consequências desse processo até então. Portanto, selecionamos determinados trechos
402
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
para evidenciarmos algumas questões ocorridas após 1888, como o mito da democracia
racial, o projeto de miscigenação brasileira e, consequentemente, a hierarquização
da negritude causada pelo colorismo. Assim, a partir do documentário de Eduardo
Coutinho, podemos observar que o diretor coloca em cena os efeitos e debates dos
quais se acerca a questão do contexto da pós-abolição no país. Sobretudo, ao trazermos
determinados temas do “ensaio documental” em diálogo com a produção intelectual de
Kabengele Munanga.
O fio da memória nos provoca a rever percepções clássicas acerca das relações
entre racialização, cidadania, emancipação e o passado escravista que reverbera entre
nós em práticas de racismo. Eduardo Coutinho, 1988, foi perspicaz ao trazer essas
problemáticas também como um problema de educação.
Para além das questões sociológicas, Coutinho dialoga e torna a voz do
personagem Gabriel, como um agente histórico, dotado de memórias pessoais e
coletivas, cujas reminiscências são materializadas na construção da Casa da Flor. “Mas
eu vi e vou contando aos outros como foi”, diz Gabriel, em uma das suas últimas falas
do documentário. Gabriel evidencia as ambiguidades oriundas nas questões raciais do
país, explicitando as dicotomias entre passado/presente.
Essa dimensão dada ao referido personagem conduz o aparecimento dos temas
e a tentativa do diretor em reconstituir parte da memória negra pós-abolição, porém, o
que o filme faz é abrir a memória para um emaranhado de fios pelos quais a população
negra presente no filme apresenta suas percepções sobre o acontecimento que motiva o
documentário, inclusive apresentando óticas diferentes para as experiências marcadas
por questões raciais.
403
notas sobre o pós-abolição no cinema
Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi
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405
Luiz Gama: o contributo civilizatório da
negritude como uma contra-perspectiva da
missão civilizadora ocidental
Ana Vitória Luiz e Silva Prudente1
Alexandre Filordi de Carvalho2
Introdução
“Luiz Gama: o Contributo Civilizatório da Negritude como uma contraperspectiva da Missão Civilizadora Ocidental” elucida o que foi e é a Missão Civilizadora
Ocidental, que existe desde o período colonial e ainda persiste por meio da perversidade
da globalização – que tem como proposta econômica o desamparo, gerador do brutalismo
de Mbembe (2021). Ao longo do texto elucidamos que a Missão Civilizadora resulta na
completa desorientação existencial, pois o Ocidente se desumaniza na medida em que
tenta impor uma geografia carcerária que, segundo Mbembe (2021), propõe a relegação
de pessoas consideradas sem direitos e, portanto, sem dignidade.
1 Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com licenciatura em
Artes Visuais. É Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com orientação do Prof. Dr. Alexandre Filordi de Carvalho, é integrante do grupo de pesquisa GRIITE\CNPq, pesquisadorae produtora da Mostra Internacional de Cinema Negro (MICINE), assistente de produção do
programa radiofônico Quilombo Academia da Rádio USP e analista educacional da Orquestra Sinfônica
do Estado de São Paulo (OSESP).
2 Professor Associado III no Departamento de Educação da Universidade Federal de Lavras (UFLA)
pesquisador permanente do Programa de Pós-graduação da UNIFESP. É pós-doutor em Educação pela
Universidad Complutense de Madrid e pela Uniersidade Estadual de Campinas. Coordenador do GRIITE/CNPq.
406
luiz gama
Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho
Em sequência, na contraposição a Missão Civilizatória que nos endereça a
perversidade, reconhecemos o Contributo Civilizatório da Negritude por meio do perfil
de Luiz Gama, um líder negro com compromisso ético com a cultura de paz. Nessa parte
do artigo, que nomeamos “Contributo Civilizatório da Negritude: um sorriso negro”,
referenciamos o corpo negro como expressão de resistência, transgressão e combate ao
projeto desumanizador das Missões Civilizadoras, contrariamente à ideia de mercadoria
que a colonialidade propôs ao corpo negro e suas produções artísticas, epistemológicas,
cosmogônicas e culturais. Discernimos que o Contributo Civilizatório da Negritude
propõe a libertação e a autonomia daquele que é entendido como “o outro”, livrando-os
os grilhões de uma charlatã imposição de verdade única.
Concluímos, no presente texto, que a Dimensão Pedagógica do Cinema Negro
está para além da linguagem cinematográfica, justamente porque ela se estabelece
como um Contributo Civilizatório da Negritude ao reconhecer o outro como ser
dotado da capacidade de consciência e discernimento e portanto livre para construir
outras possibilidades de relações sociais que proporcionem uma cultura de paz. O que
é elucidado ao focarmos no perfil de Luiz Gama, pois dessa forma reconhecemos a
magnitude da produção artística associada à dimensão de consciência racial, que é
basilar para o agenciamento do Contributo Civilizatório da Negritude.
Missão Civilizadora Ocidental: do Período Colonial à Globalização,
perversidade
A noção de tempo e espaço contraídos se difundiu por meio da ciência e da
tecnologia em um contexto de globalização que tenta impor um discurso único: o culto
ao consumo. Vivemos, portanto, em um Mundo confuso e confusamente percebido,
isso porque a globalização – como elucidou Milton Santos,ao propor uma nova
globalização– tem se imposto como uma “fábrica de perversidades” para a maior parte
da humanidade. Uma vez que nessa globalização a pobreza se alastra como “resultante
de um sistema de ação deliberada” (SANTOS, 2016, p. 72), também recepcionada como
um fenômeno banal, natural e inevitável, quando na verdade é produzida politicamente.
Recentemente, Mbembe (2021) se valeu na noção de brutalismo para
esquadrinhar tal cenário. Sintetiza-o utilizando a descrição de um mundo dominado
pelo pathosda demolição e da produção que, sob uma escala planetária, assola a vida
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luiz gama
Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho
como força geomórfica. A pobreza, por exemplo, seria mero conluio consequente dos
modos pelos quais o brutalismo justifica o “pleno uso da lei com o intuito de multiplicar
os estados de não direito e de desmantelar todas as formas de resistência” (Mbembe,
2021, p. 14).
Na sociedade capitalista,o brutalismo se ancorou ao racismo colonial. Desde
então, há uma contundente tentativa de homogeneização da “geografia carcerária”,
expressão de Mbembe (2021), que, por meio do mercado, por sua vez, a serviço da
hegemonia do poder e do suposto saber eurocêntrico, arquiteta a manutenção do poder
desta geografia carcerária:
são lugares de internamento, espaços de relegação, dispositivos para
colocar de lado pessoas consideradas intrusas, sem titulação e, portanto,
sem direitos e, ao que se acredita, sem dignidade. Fugindo de mundos e
lugares tornados inabitáveis por uma predação dupla, exógena e endógena,
elas entram onde não deveriam, sem terem sido convidadas e sem que
sejam desejadas. Ao agrupá-las e colocá-las de lado, não se trata de resgatálas (Mbembe, 2021, p. 195).
Ocorre que a geografia carcerária também se dissipa em formas subjetivas, isto
é, confiscam e internam riquezas simbólicas, expressivas e multi-perspectivantes com
relação à vida, ao mundo e ao cosmos. O lastro colonial faz dos sujeitos brutalizados
espécies de “outro desprezado”, nos termos de Viveiros de Castro (2015). Nesse
caso, enquanto “uma das manifestações típicas da natureza humana é a negação de
sua própria generalidade” (Viveiros de Castro, 2015, p. 35), justamente porque não
há predicado essencial e unificador para a condição humana, o que o geist colonial
produziu foi justamente a supressão da riqueza e da multiplicidade acerca da “natureza
humana”. O grande justificador da “geografia carcerária” foi a introdução intrusiva do
dualismo pautado por uma concepção mononaturalista, “um apartheid radical entre
seus respectivos habitantes (Viveiros de Castro, 2015, p. 54), quer dizer, entre os
colonizados e os colonizadores.
A derivação não poderia ser outra: nasceu assim a coisa do mundo mais bem
compartilhada, o etnocentrismo, conforme sustenta Viveiro de Castro (2015), logo,
o outro desprezado, justificadamente, passivo de toda geografia carcerária. Delinear
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luiz gama
Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho
tal cenário correspondem ao questionamentode monocultura. Em jogo estão as
cosmopercepções que nos revelam variadas dimensões epistemológicas e possibilidades
de vida. As multiplicidades étnico-raciaisafirmam não um relativismo cultural mas a
singularidade única de toda maneira de se perspectivar as diferenças que somos. No
limite, “se coloca o problema da tradução do perspectivismo nos termos da ontosemiótica da antropologia ocidental” (Viveiro de Castro, 2015, p. 67). E como o próprio
antropólogo explicou, isto é uma questão de etograma, quer dizer, a origem de todo
perspectivismo está no corpo, pois é, em sua singularidade, “feixe de afetos e capacidades,
e que é a origem das perspectivas” (Viveiros de Castro, 2015, p. 66).
Ora, é insofismável encontrarmos nas dimensões expressivas do perspectivismo
condições de resistência não apenas contra o brutalismo vigente, mas igualmente
maneiras produtivas de se fazer circular etogramas para além daqueles circunscritos à
geografia carcerária de sanha colonial. Perante a imposição vertical e disseminada do
que Prudente (2019) denominou de euro-hétero-macho-autoritário, podemos afirmar
que existem múltiplas criações artísticas, científicas, políticas e econômicas geradoras e
afirmadoras de perspectivismos. Aliás, é nessa direção, veremos de modo mais preciso
adiante, que o cinema negro se circunscreve. Com efeito, estaríamos nos movendo em
outra direção: para além da limitada produção simbólica carcerária eurocaucasiana,
com sua onto-semiótica colonial.
A lógica colonial, de axiologia cartesiana, estabelece uma condição de
antagonismo entre os diferentes. Dessa forma específica, comoreferência, o eurohétero-macho-autoritário e seus derivados simbólicos como a única existencialidade
possível. A partir daí, “a humanidade instala-se na monocultura, prepara-se para
produzir civilização em massa, como beterraba. Seu trivial só incluirá esse prato”, diz
nada mais nada menos que Lévi-Strauss (2016, p. 38-39). O “trivial” dessa condição
também condicionou à mesa expressiva a extensão de significados como visão de
mundo (Weltanschauung) reduzida às “especiarias morais”, dizia Lévi-Strauss (2016). O
que se consolidou a chamar Ocidente não passa de uma harmonia impositiva entre o
que deveria prevalecer em todo esse cenário. Por conseguinte, “a ordem e a harmonia
do Ocidente exigem a eliminação de uma massa extraordinária de subprodutos nocivos
que hoje infectam a terra” (Lévi-Strauss, 2016, p. 39).
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Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho
Os termos brutais do antropólogo são partículas aceleradoras nas necessárias
intervenções perspectivantes contra o próprio brutalismo ocidental. A crítica que
Viveiros de Castro (2015, p. 43) profere à dicotomização clássica entre Natureza e
Cultura fornece indícios contra o reducionismo a tudo que se pretende reduzido ao
“universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e instituído,
necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade
e humanidade etc.” Como sabemos, porém, as dimensões ou domínios cosmológicos não
ocidentais não passam por esses esquadrinhamentos. E é o alongamento das estratégias
coloniais, sintetizado hoje pelo “brutalismo”, o cúmplice valorativo do reducionismo das
riquezas e diferenças onto-semióticas.
Por conseguinte, as estratégias que permanecem, infelizmente, são expressasem
polos reducionistas de positividadee negatividade, o que não permite a convivência da
multiplicidade etográfica, pois a colonialidade propõe, em sua essência, a dominação e a
subjugação do “outro”. Sabendo que as navegações que trouxeram os ibéricos e outros
grupos étnicos europeus para o que hoje entendemos como Américas tinham uma
expectativa de expansão territorial, observamos que “as empreitadas coloniais buscaram
propagar um pensamento único”, conforme argumentaPrudente (2023, p. 22).
O brutalismo da geografia carcerária continua, sob a égide da globalização
perversa, ratificando a argamassa ocidentalizante de pensamento único.Esse pensamento
único se relaciona tanto com uma perspectiva de dimensão cristã quanto comuma lógica
acumulativa, expressa ideário econômico de mercantilização da existência.Aliás, Leiris
(2007) em A África fantasma evidencia, com todas as letras, que a violência cristã se
infiltrou nas estratégias coloniais como vontade unificadora de tradução de sentidos e
de valores. Tudo que fosse contrário ao seu diapasão de verdades ortodoxas era passivo
de brutalização. De longe a verdade é que “os regimes ontológicos ameríndios divergem
daqueles mais difundidos no Ocidente precisamente no que concerne às funções
semióticas inversas atribuídas ao corpo e à alma (Viveiros de Castro, 2015, p. 34-35).
Sem sombra de dúvidas, o mesmo vale para os africanizados aportados para as colônias
e lançados à geografia carcerária de seus investimentos expressivos. Seja como for, o
registro é sempre o mesmo, como ensinou Memmi (2007, p. 17, grifos originais):
O privilégio colonial não é unicamente econômico. Quando observamos o
convívio entre o colonizador e o colonizado, logo descobrimos que tanto a
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Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho
humilhação cotidiana do colonizado quanto seu esmagamento objetivo não
são apenas econômicos; o triunfo permanente do colonizador não é apenas
econômico. O pequeno colonizador, o colonizador pobre, também se
considerava, e em um certo sentido realmente o era, superior ao colonizado;
objetivamente, e não apenas em sua imaginação. E isso também fazia parte
do privilégio colonial.
Ora, ainda no contexto colonial, as diferenças observadas pelos ibéricos fizeram
com que aquela multiplicidade de grupos étnico-raciais, encerradas no conceito
de “índios”, fossem consideradas inferiores. Imediatamente a eles se somariam os
africanos escravizados. As características físicas e culturais, dos grupos indígenas foram
observadas,“a feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e
bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir
ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto”
(CAMINHA, 1500)1 e uma vez que não podiam subtraí-las por completo, focaram-se
em “exorcizar” as diferenças cosmogônicaspor meio da conversão.
Em suas cartas quadrimestrais, o Padre José Antônio de Anchieta relatava os
efeitos das doenças trazidas pelos ibéricos,a vasta natureza do Brasil,aponta a cultura
indígena como “mau costume”e discorre sobre a resistência dos indígenas a violenta
alienação que visava a conversão: “os adultos, aos quais o mau costume de sus pais quase
se converteu em natureza, cerram os ouvidos para não ouvir a palavra de salvação e
converter-se ao verdadeiro culto de Deus” (ANCHIETA, 1560, p.57).
A estratégia privilegiada do ocidentalismo colonizador constituiu a Missão
Civilizadora, que, em suma, foi:
A dominação política do outro pela invasão do seu território, a exploração
econômica de suas riquezas naturais e a sujeição cultural que pretendia
substituir as culturas, religião e visão de mundo dos povos indígenas por
outras consideras melhores e superiores. (...) As doenças venéreas, gripes e
outras endemias trazidas pelos europeus contribuíram também para piorar
o quadro demográfico das populações à chegada dos portugueses, no século
XV, contavam-se por milhões e que hoje não chegam aos duzentos mil.
(MUNANGA, GOMES, 2016, p. 15-16).
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Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho
As missões civilizadoras também deixaram marcas profundas nas diferentes
massas continentais, na África, Ásia e Oceania, para além das Américas. Ainda que em
diferentes contextos, repetiu-se a tentativa de “civilizar” os “selvagens” e incorporá-los
forçosamente ao esforço laboral em favor do colonialismo. Seja em suas terras natais ou
por meio do tráfico humano seguido de escravidão, todos os grupos assimilados como
“o outro” sofreu com a tentativa de sua desumanização. A narrativa de uma suposta
superioridade cultural foi usada como retórica para esconder as motivações reais,
a saber, “a dominação política do outro pela invasão do seu território, a exploração
econômica de suas riquezas naturais e a sujeição cultural que pretendia substituir as
culturas, religião e visão de mundo” (MUNANGA, GOMES, 2016, p.15).
Vamos destrinchar um pouco mais a ideia de Missão Civilizadora.Para tanto
é preciso trazer um pouco da contextualização histórica de como o cristianismo se
disseminou por Roma e adotou como propósito o fortalecimento da Igreja por meio da
expansão.A missão, portanto, em um entendimento cristão, é a da salvação por meio
da fé na ideia de um único Deus e a manutenção desse Deus por meio da propagação
da palavra daquele que seria seu filho, em latim, Jesus Cristo. E essa missão é o ato de
enviar ou de ser o enviado no encargo de tornar civil, tornar cortês.Civilização vem
do latim, relativo a cidadão, aquele que vive na cidade, a palavra civilizadora declara o
propósito de tirar o outro da barbárie, da selvageria associada a vida fora dos padrões
cristãos.
A visão unificadora do cristianismo – no pensamento do evangelista
Saulo de Tarso, ou seja, o Apóstolo São Paulo – foi usada na perspectiva
do fortalecimento da Igreja de Constantinopla, que adotou para o seu
propósito de expansão e poder. (...) Para contornar a expressiva presença
do paganismo frente a ainda rarefeita expressão cristã, desenvolveu-se uma
política de dominação da imagem. (PRUDENTE, PRUDENTE, 2022, p.87).
Césaire (2020)responsabiliza o cristianismo que, com o seu pedantismo, fez a
desonesta equação “cristianismo = civilização; paganismo = selvageria” e, por meio da
colonização,“adicionou o abuso moderno à antiga injustiça; o racismo odioso à velha
desigualdade” (2020, p. 27). Lévi-Strauss (2016, p. 233) relembra a estratégia que os
padres salesianos encontraram para “civilizar” os povos Boboro:
412
luiz gama
Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho
A distribuição circular das cabanas em torno da casa dos homens é de
tal importância, no que se refere à via social e à prática do culto, que os
missionários salesianos da região do rio das Garças logo aprenderam que
o meio mais seguro de converter os Bororo consiste em fazê-los trocar
sua aldeia por outra onde as casas são colocadas em fileiras paralelas.
Desorientados em relação aos pontos cardeais, privados da planta que
fornece um argumento a seu saber, os indígenas perdem rapidamente o
sentido das tradições, como se seus sistemas social e religioso fossem
complicados demais para dispensar o esquema patenteado pela planta da
aldeia e cujos contornos são perpetuamente reavivados por seus gestos
cotidianos.
A missão civilizadora não apenas resultou no sequestro e na escravização de
povos,destruição de culturas, epistemicídios, assassinatos em nome de uma suposta
fé e/ou moral, estupros e torturas públicas, mas em uma completa desorientação
existencial. Na tentativa de desumanizar aquele compreendido como “o outro”, o
ocidente desumanizou a si:
A colonização, repito, desumaniza até o homem mais civilizado; que a
ação colonial, o empreendimento colonial, a conquista colonial fundada no
desprezo pelo homem nativo e justificada por esse desprezo, inevitavelmente,
tende a modificar a pessoa que o empreende, que o colonizador, ao acostumarse a ver o ouro como animal, ao treinar-se para tratá-lo como um animal,
tende objetivamente, para tirar o peso da consciência, a se transformar, ele
próprio, em animal (CÉSAIRE, 2020, p. 23).
É inegável, dessa forma, a concepção de Césaire de que “a Europa é responsável
perante a comunidade humana pela maior pilha de cadáveres da história” (2020, p. 26)
e que se mantém no contexto tecnológico da globalização com o abandono da ideia
de solidariedade em uma proposta econômica baseada em desamparo, como ressalta
a ideia de brutalismo de Mbembe. Não obstante, estamos diante do que Santos (2016)
nomeia como perversidade sistêmica.
Mas podemos afirmar que a perversidade sistêmica atual não passa de uma
extensão da forma colonial de agir. Em pesquisa recente, cujo título por si só converge
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para o que estamos sustentando – A nova era do império: como o racismo e o colonialismo ainda
dominam o mundo – Andrews (2023) nos faz enxergar o vertiginoso recrudescimento
do racismo, eivado de formas brutais, no âmbito global, contudo, à guisa da mesma
fórmula da exploração mercantil. Ora, a nova Missão Civilizadora abraça o fundo causal
do mesmo disparador colonial: subjugação e aniquilação de muitos em detrimento de
poucos.
Na contemporaneidade,a civilização se molda pelo seu nível de consumo e,
para ter acesso aos bens, é preciso integrar o mercado. Mas ter não é o suficiente. É
preciso que vejam suas posses, a imagem - por meio das mídias de massa - ganham o
status de carta de propriedade para quem almeja o pertencimento. Parecer que se tem,
já nos ensinava Debord (2000), passou também a ser a nossa entrada na sociedade do
espetáculo. Doravante,a Missão Civilizadora se estabelece com o apoio dos algoritmos,
com o uso das inteligências artificiais para o mercado de consumo e a exposição de
um ideal hegemônico espetacular. Assim, estamos em um ambiente de constante
competitividade que nos leva a ausência da compaixão:
A globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição
primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais da selva,
reduz as noções de moralidade pública e particular a quase nada. O período
atual tem como uma das bases esse casamento entre ciência e técnica, essa
tecnociência, cujo uso é condicionado pelo mercado. (...)a ciência passa a
produzir aquilo que interessa ao mercado, e não à humanidade em geral, o
professo técnico e científico não é sempre um progresso moral. (SANTOS,
2016, p. 65).
O empobrecimento das ciências humanas e a consequente dificuldade para
interpretar o mundo não são meras consequências. Esse processo facilitou para o
retrocesso humanístico, no qual nos distanciamos da política “já que a condução do
processo político passa a ser atributo das grandes empresas” (Santos, 2016, p.60),
deixando o caminho aberto não apenas “ao abandono das solidariedades e ao fim da
ética, mas também da política” (2016, p. 61). Eis uma expressão do reducionismo da
humanidade, por meiodas Missões Civilizadoras colonialistas do Ocidente. Aviolenta
lógica acumulativa de bens, própria do eurocaucasianismo, estabelece a marginalização,
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se não a exclusão e o assassínio de tudo que não exterioriza a “sua imagem e semelhança”
que agora deve serrevelado em muitos pixels e em filmagens 4k. Aqui, “a sociedade
portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas apenas pela
hegemonia econômica. Domina-as como sociedade do espetáculo (Debord, 2000, p. 38,
grifos originais). Nesse caso, basta dizer que
o espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social.
Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver
nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica
moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura (Debord, 2000, p.
30, grifos originais).
É considerando tal horizonte que o Cinema Negro se estabelece na compreensão
de Prudente (2019) como filmografia das minorias vulnerabilizadas e, logo, como
possibilidade de resistência contra o brutalismo e novas colonizações expressivas de
nosso tempo. Uma vez que a cultura é uma área em que habita as dinâmicas de dominação
e resistência, em uma relação de força e de luta pelo poder, é preciso que aquele que é
entendido como outro fale por si e para os seus. Verifica-se, portanto, a importância de
uma imagem de afirmação positiva de toda alteridade. No entanto, para nossos interesses
neste texto, privilegiaremos a perspectiva afrodescendente.É notório que as mídias de
massa têm função fundamental de formação na sociedade contemporânea, no entanto,
o contributo civilizatório da negritude se expressa em uma formulação mais próxima
da multiplicidade da perspectiva onto-semiótica. Não se trata apenas de reafirmar, pelo
cinema negro, instâncias expressivas contra a humanidade negra brutalizada, mas também
de ampliar os coeficientes experimentais da própria expressividade humana. Afinal de
contas, foi aniquilando estes coeficientes que o colonialismo fez reinar a monocultura da
fé, da arte, da moral, do corpo, da cultivo da vida etc.
Contributo Civilizatório da Negritude: um sorriso negro.
Nas manifestações de arte negra, sobretudo na dança, na música, no teatro e no
cinema, há ensinamentos de união, que são próprios do sentimento lúdico gregário da
africanidade (Prudente, 2019). Razão pela qual a contribuição etnográfica de Marcel
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Mauss (2003) é de suma importância para entendermos o sentido de coletividade na
arte negra, que demonstra “dádiva” nas relações de trocas em contraponto às sociedades
ocidentais. As sociedades ocidentais são estruturadas pela hegemonia do poder e do
saber da euroheteronormatividade. Doravante, a ideia iluminista de “homem universal”,
calcado em direitos essencialistas de igualdade e de liberdade, cedeu lugar à figura do
‘animal econômico’:
A própria palavra interesse é recente, de origem técnica contábil: “interest”,
em latim, que se escrevia nos livros de contabilidade referindo-se aos
rendimentos a receber. Nas morais antigas mais epicurianas, é o bem e o
prazer que se busca, e não a utilidade material. Foi preciso a vitória do
racionalismo e do mercantilismo para que entrassem em vigor, e fossem
elevadas à altura de princípios, as noções de lucro e de indivíduo. (...)
(MAUSS, 2003, p. 307).
A africanidade se organiza a partir do sentido artístico e sagrado da circularidade
dos saberes, que se observa na tamboralidade africana (PRUDENTE, 2019),
compreensão que está para além lógica de acumulação.O corpo negro e suas produções
não são mercadorias, mas sim veículos de resistência, transgressão e combate ao projeto
desumanizador das Missões Civilizadoras ocidentais. O Contributo Civilizatório da
Negritude se constrói por meio das epistemologias do Sul global, que se evidenciam por
meio da intersecção de linguagens, pois propõe a libertação e a autonomia daquele que
é entendido como “o outro” das amarras de uma suposta verdade única.Leiris (2007)
inclusive ressalta expressividade negra como condição cortante da massa localizável de
sentidos e de valores ocidentais, sempre ávidos por serem traduzidos à compreensão
almejada.
No artigo “O comportamento civilizatório do afrodescendente versus o
segregacionismo imagético do eurocaucasiano”, Celso Luiz Prudente e Ana Vitória
Prudente (2021) apresentam o Quilombo dos Palmares, A revolta da Chibata, o Teatro
Experimental do Negro (TEN) e os folguedos carnavalescos como contributos da cultura
africana fundamentais para a formação da brasilidade. Podemos observar, assim, que
a produção artística associada à dimensão de consciência racial é fundamental para o
agenciamento do Contributo Civilizatório da Negritude, bem como a compreensão de
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empatia e o estabelecimento de relações afetivas também permitem a comunhão em
prol das mutações sociais resistentes aos prolongamentos colonizadores. Afinal, se a
política é liberdade e, portanto, pluralidade existencial, ela deve regular e organizar
o convívio mesmo no campo das diferenças. E, não por acaso, para Gramsci (1982)
os intelectuais orgânicos são expressões da relação íntima entre a dinâmica laboral e a
intelectual, o acesso a cultura na vida cotidiana.
É nesse sentido que Hall (2003) estabelece que o intelectual orgânico é
fundamental para uma reorganização nas relações étnico-raciais no contexto da diáspora.
Se por um lado a Missão CivilizadoraOcidental buscava a dominação e a subjugação da
diferença, o Contributo Civilizatório da Negritude não quer destituir a humanidade do
outro e sim reafirmar aqueles que foram historicamente marginalizados. Na ótica de
Munanga, por negritude entendemos que se refere:
(...) à história comum que liga de uma maneira ou de outra todos os grupos
humanos que o olhar do mundo ocidental “branco” reuniu sob o nome de
negros. A negritude não se refere somente à cultura dos povos portadores
da pele negra que de fato são todos culturalmente diferentes. Na realidade, o
que esses grupos humanos têm fundamentalmente em comum não é como
parece indicar o termo Negritude à cor da pele, mas sim o fato de terem
sido na história vítimas das piores tentativas de desumanização e de terem
sido culturas não apenas objeto de políticas sistemáticas de destruição, mas
mais do que isso, de terem sido simplesmente negada a existência dessas
culturas (MUNANGA, 2020, p. 19-20).
Do período colonial à contemporaneidade, a tamboralidade africana busca
instaurar a política de paz, que é oposta ao totalitarismo que se verifica na monocultura
ocidental baseada no universalismo iluminista:
Ao retornarmos, por exemplo, ao século XVIII, temos o homem branco
e europeu como a principal referência para os parâmetros de civilidade,
universalidade e racionalidade; é diante desse projeto iluminista, que temos
a construção da ideia do homem moderno. Fica cristalino, portanto, que
a classificação humana baseada na divisão binária (branco e não-branco)
entre raças serviu como uma das tecnologias para a destruição dos povos
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originários em todos os continentes, mas sobretudo nas Américas e da
África, e ainda serve como manutenção do poder para o euro-caucasiano.
Durante séculos a noção de raça operou sobre os registros biológico e
étnico-cultural e, ainda hoje, a noção de raça ainda é um fator político
importante, pois é reflexo da estrutura social racializada. Se o poder é o
elemento central nas relações étnico-raciais, podemos, por conseguinte,
afirmar que o racismo é dominação, uma vez que há a dimensão subjetiva do
racismo, praticada por indivíduos, bem como há dimensões de concretude
nas práticas racistas, que aludem as raízes da formação das instituições e
da estrutura da sociedade como um todo. Fomos ensinados a desvalorizar
as epistemologias africanas, ensinaram-nos a nos sujeitar e, quando não, a
rejeitar os corpos negros (PRUDENTE, 2023, p. 67).
Em outras palavras, “mesmo o Iluminismo, que cultuava a liberdade e a
igualdade, também propagou o racismo” (PRUDENTE, 1980, p. 125). Por outra lado, a
tamboralidade reflete a circularidade dos saberes, no sentido de representar não apenas
os saberes produzidos pela e na luta dos oprimidos contra um sistema que privilegia
as violentas proposições de epistemicídio e necropolítica de corpos não-brancos,
especialmente da juventude negra brasileira. O contributo civilizatório da negritude
se estabelece também por meio da compreensão de Césaire (2022) de que a negritude
(...)
pode
ser
definida
em
primeira
linha
como
conscientização a diferença, como memória, como fidelidade
e como solidariedade. Mas a negritude não é apenas passiva.
Ela não é da ordem do sofrer e do sujeitar-se. Não é nem comiseração
nem lamúria. A negritude resultada de uma postura ativa e
ofensiva do espírito. É um despertar, e um despertar da dignidade.
É um rechaço, um rechaço da opressão. É um combate, e um combate
contra a desigualdade. É também revolta. (...) a negritude foi uma revolta
contra aquilo que eu chamaria de reducionismo europeu (CÉSAIRE, 2022,
p. 216-217).
As principaiscriações de agenciamento de afirmação de diferenças e de multiperspectivismo na/pela negritudeadvêm de sua correlação direta com as produções
culturais. Elas são observáveis especialmente por meio da produção musical,
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literária,alimentícia, cênica, filmográfica e reconhecendo também a resistência
geopolítica por meio de quilombos e revoltas sócio-políticas.
Nas cosmogonias africanas um corpo que dança é um corpo de fé, um corpo que
canta e toca tambor se conecta com o sagrado, e o respeito à biodiversidade é um prérequisito a existência. Este corpo perspectiva a disparidade valorativa da antropologia
ocidental, na medida que são afins de múltiplas onto-semióticas. Vale ressaltar que
“etmologicamente, um afim é aquele que está situado ad finis, aquele cucjo domínio faz
fronteira como o meu. Os afins são aqueles que comunicam pelas bordas, que têm ‘em
comum’ apenas o que os separa” (Viveiros de Castro, 2015, p. 76). Ora, o corpo permeado
pela africanidade são dotados de outros afins. Logo, na intersecção das fronteiras de
outras corporeidade, enriquecem a própria condição humana ao afirmar a riqueza não
unificada cuja pretensão colonial reduziu o corpo à demandas de subjugação específica.
Desse modo, podemos acrescentar ainda com Viveiros de Castro (2015, p. 66,
grifos originais), “o que estamos chamando de ‘corpo’, portanto, não é uma fisiologia
distintiva ou uma anatomia característica; é um conjunto de manieras ou modos de
ser que constituem um habitus, um ethos, um etograma”. E se o corpo é um dos lugares
nos quais a história se escreve, falemos da existência dos nossos, da vida daqueles que
se empenharam pela construção de uma sociedade mais justa. Falemos dos corpos
que tentaram esconder, invisibilizar, sujeitar, branquear e assassinar aqueles dotados
de outros afetos, habitus, ethos e etograma. Afinal, a justificativa do brutalismo atual
perpassa a geografia carcerária desses corpos, impedindo-os se afirmarem como são:
diferentes, singulares, únicos e dotados de perspectivismos contra-coloniais.
Engano superficial seria conceber que a Missão Civilizadora Ocidental não segue
tentandoencarcerar os corpos negros na representação da monstruosidade, instaurando
o medo e impondo o estigma de bandido, ladrão e vagabundo. Brasil, século XXI, 6 de
agosto de 2019: nada mais nada menos que alguém do estatuto de pessoa pública de um
vice-presidente da República afirma: “Temos uma certa herança da indolência, que vem
da cultura indígena [...] e a malandragem oriunda do africano” (Congresso em Foco,
2019). Nas vísceras do pacto da branquitude colonial, as violências de enquadramento
do euro-hétero-macho-autoritário subalternizam os povos originários e africanos à
geografia carcerária da potência de suas subjetividades. É a lógica do traçado de um
“retrato do colonizado” (Memmi, 2007) prevalecendo em detrimento das possibilidades
de afirmação de outros modos de se existir e de se relacionar.
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Pensamos contudo que delinear e defender a história dos que insistiram a lutar
contra tal dimensão é vital para evidenciarmos, desde a matriz de poder da Missão
Civilizadora Ocidental, “a opressão política e a exploração econômica não têm o direito
de ir procurar desculpas entre suas vítimas” (Lévi-Strauss, 2016, p. 434). Para tanto,
traremos a experiência de um homem negro retinto inteligente, escritor, advogado
que lutava por justiça em uma sociedade que buscava a manutenção da desigualdade.
Urge reconhecer outras perspectivas para a construção da sociedade que buscamos/
queremos habitar, na qual conhecimento e preconceito são antitéticos. Por isso, neste
artigo, apresentamos o perfil de Luiz Gama como uma imagem de afirmação positiva
da negritude, que está a favor da Dimensão Pedagógica do Cinema Negro para além
das questões fílmicas, manifestando-se na construção de uma outra possibilidade de
civilização mais humanista.
Focaremos no perfil de Luiz Gama reconhecendo sua existênciae, por
consequência, sua obra, como uma das contribuições civilizatórias da negritude na
fragmentação da verticalidade do euro-hétero-macho-autoritário (PRUDENTE, 2019).
Neste artigo, o Cinema Negro não se relaciona com a linguagem cinematográfica, mas
com o entendimento de que a Dimensão Pedagógica do Cinema Negro está para além
do Cinema, justamente porque ela se estabelece como um Contributo Civilizatório
da Negritude ao reconhecer o outro (no caso o negro) como senhor de si e de sua
história, sendo um ser autônomo e livre para construir outras possibilidades de relações
sociais que proporcionem uma cultura de paz. É nesse mesmo prisma que verificamos
a produção histórica de Luiz Gama, que vivenciou a luta libertária em um contexto
histórico de escravidão.
O perfil de um líder negro com compromisso ético: Luiz Gama
O primeiro monumento público em homenagem a um líder negro foi erguido
na cidade de São Paulo, em um processo que correu de 1929 a 1931. Trata-se da herma
de Luiz Gama, um dos raros intelectuais negros reconhecido como tal ainda no século
XIX. Seu busto imponente se defronta, em São Paulo, com a Rua Rego Freitas, um
juiz escravagista e, portanto, um desafeto de Gama, com um olhar altivo e superior, no
centro de uma das maiores metrópoles do Mundo.
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Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho
É preciso, já de antemão, pontuar: o Estado de São Paulo foi bastião da
escravatura, para além do Brasil ter sido o último país do globo a abolir a escravidão;
Campinas, espécie de feudo dos barões da cafeicultura, foi a última cidade a fazê-lo.
Por isso é tão significativa essa força presente no imaginário concreto da cidade de São
Paulo: a de um homem negro, retinto, que consegue comprovar de alguma maneira seu
direito à liberdade e passa a atuar nesse sentido, participando da libertação dos africanos
aqui escravizados pelo poder colonial lusitano.
Escritor, poeta, um dos primeiros jornalistas negros do país, mas acima de
tudo advogado, eis o perfil do baiano Luiz Gama, que atuou de forma contundente
a favor dos escravizados no judiciário. Sua história faz jus ao título de patrono da
abolição, a despeito do tentame recorrente de inviabilizá-lo, por parte da hegemonia
do poder. O motivo: a donação história deveria recair exclusivamente na branquitude
da coroa, representada pela Princesa Isabel, filha mais velha de Dom Pedro II e saudada
como baluarte da abolição. O apagamento de Luiz Gama viria ao encontro da sanha
eurocêntrica que, sendo a mesma responsável pela eugenia e pela geografia carcerária
dos africanos sob a égide da escravidão, pretendia se redimir na invenção conveniente
de uma narrativa que pudesse favorecê-la.
Gama nasceu em um país ainda pouco afeito à independência mental, política e
econômica.Mas ainda assim, nasceu livre, no estado da Bahia. Muito do que sabemos a
seu respeito se dá por conta da carta autobiográfica escrita por ele a Lúcio Mendonça,
um amigo, também intelectual, advogado, idealizador da Academia Brasileira de Letras.
Segundo pesquisas feitas principalmente pela linguista, pesquisadora da vida e obra de
Luiz Gama, Prof.ª Dr.ª Ligia Fonseca Ferreira, docente da Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP):
Gama se dizia filho de uma africana livre, Luiza Mahin, pintada
como uma mulher “altiva, geniosa, insofrida e vingativa” (in Moraes,
2005, p.69), envolvida em revoltas negras como as inúmeras que
agitam a Bahia dos anos 1830. Contrariamente, porém, ao que
sonharam alguns a partir de uma interpretação fantasiosa do que
escrevera Luiz Gama, atribuiu-se equivocadamente à mítica Luiza
Mahin um papel de liderança jamais comprovado na Revolta dos
Malês (Reis, 2003, p.303). Luiz Gama, no entanto, alude à adesão
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de seus pais a um outro levante baiano. Sua mãe teria se dirigido ao
Rio de Janeiro, ali desaparecendo, após a “Revolução do Dr. Sabino”
em 1837, movimento que proclama uma república provisória em
repúdio ao poder monárquico central, a exemplo do que ocorria
em outro ponto do país, como a Revolução Farroupilha. Quanto
à figura paterna, é também descrita como a de um “revolucionário
em 1837”, pertencente a “uma das principais famílias da Bahia de
origem portuguesa” (in Moraes, 2005, p.70). Luiz Gama, porém,
jamais revelaria o nome do pai que o vendeu aos dez anos de idade
como escravo, protagonizando o primeiro dramático episódio de sua
existência. Aos dezoito anos, aprende a ler e a escrever e consegue as
provas de ter nascido livre. (FERREIRA, 2007, p. 271).
Luiz Gama é lembrado por suas grandes atuações no exercício de se fazer valer a
lei e estabelecer a justiça, bem como as condições de direitos, ainda que ele seja intitulado
de rábula – que segundo o dicionário pode ser compreendido tanto com um advogado
charlatão, quanto como alguém que exerce a advocacia mesmo sem possuir formação
acadêmica para tal – adjetivo questionado pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima,
pesquisador do Instituto Max Planck, em Frankfurt, na Alemanha e pela professora e
pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira, professora de Letras da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp)2.
Não à toa os cursos de direito do Brasil têm uma dívida histórica com Gama,
bem como para o movimento negro, principalmente o Largo São Francisco (onde se
localiza o curso de Direito da Universidade de São Paulo – USP), que não o recebeu
como estudante de direito e que, no centenário da abolição da escravatura, fez uma
campanha para que fosse erguida uma homenagem ao Min. Ruy Barbosa – responsável
pela queima dos arquivos gerais da escravidão – tentando desmobilizar o movimento
organizado pela imprensa negra, principalmente pelo Jornal “O Progresso”,mobilizados
na defesa da homenagem o Dr. Luiz Gama.
Se há por parte dos juristas uma reticência em reconhecer a grandeza daquele
que conseguiu ser mais astuto que seus algozes em muitas batalhas no campo da justiça,
as áreas de linguagens e comunicações não negam seu valor. É sintomático que o título
de ‘Doutor honoris causa’ concedido postumamente, no ano de 2021, a essa grande
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liderança jurídica do movimento negro não tenha sido idealizado por professores do
curso de direito, e sim pelo docente Dennis de Oliveira, das áreas de comunicação da
Universidade de São Paulo.
Não é o acaso que leva Luiz Gonzaga Pinto da Gama, nascido em Salvador,
no dia 21 de junho de 1830 e falecido em São Paulo no 24 de agosto de 1882, ao
reconhecimento por parte da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de
São Paulo. Gama foi um pioneiro no campo da imprensa e da literatura, atuando
enquanto escritor, poeta e jornalista, seu domínio discursivo contundente é um registro
documentado formalmente. Sendo um dos poetas do Romantismo brasileiro, lançou
apenas um livro, “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”, publicado originalmente
no ano de 1859 e reeditado em 1861. Por outro lado, no campo das comunicações,
Gama foi pioneiro, criando o primeiro semanário ilustrado, o “Diabo Coxo”, na cidade
de São Paulo, em parceria com o desenhista Ângelo Agostini, em 1864, além de ter
colaborado com diversos veículos midiáticos: Radical Paulistano, o Correio Paulistano
e A Província de São Paulo (hoje O Estado de São Paulo).
A importância de Gama se expressa na fala de Gomes (2017), lembrandonos que “A imprensa negra paulista, com suas diferentes perspectivas, pode ser
considerada como produtora de saberes emancipatórios sobre a raça e as condições
de vida da população negra.” (2017, p. 29). Dessa forma, faz sentido o que nos aponta
a grande pesquisadora de Luiz Gama, a Prof. Dr. Ligia Fonseca Ferreira, no programa
“Diversidade em Ciência” do Prof. Dr. Ricardo Alexino na Rádio USP3, o abolicionista
foi também um pioneiro no campo da Educação. No artigo “Luiz Gama autor, leitor,
editor: revisitando as Primeiras Trovas Burlescas de 1859 e 1861”, Ferreira (2019) nos
lembra:
Em pleno período romântico, durante o qual o negro-escravo desponta
como tema na poesia ou personagem no romance, as Primeiras Trovas
Burlescas (PTB) inscrevem uma figura até então ausente da produção
literária brasileira: o negro autor, que se enuncia e deseja ser visto enquanto
tal (“negro sou”). O pseudônimo estampado na capa não é fortuito:
“Getulino” deriva de “Getúlia”, território da África do Norte, entre as
atuais Argélia e Mauritânia, habitada pelos “getulos” na Antiguidade. O
autor assumia de cara sua origem africana. Tal fato encerra ineditismo e
transgressão. (FERREIRA, 2007, p. 109)
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O perfil de Luiz Gama revela sua relevância na história brasileira e sua produção
prática e teórica contundente e que ainda se mostram atuais. A imagem de Luiz Gama é
representativa, e isso se dá, também, por meio da luta protagonizada pelo Movimento
Negro que, segundo a Prof. Dr. Nilma Lino Gomes (2017), é educador, de reconhecer
essa figura como um líder negro. Dialogando com a Dimensão Pedagógica do Cinema
Negro, há nesse empenho por parte do Movimento Negro o interesse em valorizar
essa imagem por seu caráter pedagógico. Gama, portanto, representa uma possibilidade
de construção de negritude no sentido de aquisição de consciência negra e como uma
ação de um movimento de luta pelo fim da escravidão e pelo fim da monarquia. Luiz
Gama sonhava com um país “sem reis e sem escravos”, sua existência e suas produções
contribuíram para que possamos vivenciar essa realidade na contemporaneidade, eis
um dos seus contributos civilizatórios. Gomes (2017) nos lembra que os movimentos
sociais
(...) são produtores e articuladores dos saberes construídos pelos grupos
não-hegemônicos e contra-hegemônicos da nossa sociedade. (…) Muito
do conhecimento emancipatório produzido pela sociologia, antropologia
e educação no Brasil se deve ao papel educativo desempenhado por esses
movimentos. (GOMES, 2017, p. 16).
Em outras palavras, apreende-se, então, que muito do acesso que temos a essa
figura se dá por uma luta do Movimento Negro, que busca “um lugar de existência
afirmativa” (GOMES, 2017, p.21)sob um prisma menos eurocentrado. Sua relação
próxima com a literatura, com o direito e sua presença na cidade por meio das artes
plásticas/visuais permitiu a materialidade da sua contribuição, bem como a propagação
da sua história e de seus feitos.
Se no século XIX ele foi reconhecido a ponto de ter uma herma sua no centro da
cidade, apenas no século XXI tivemos sua história contada no cinema - o que reafirma
nosso entendimento de que há uma Missão Civilizadora Ocidental que tenta inviabilizar
os feitos e personalidades que não compõe a verticalidade da imagem do euro-héteromacho-autoritário (Prudente, 2019). Luiz Gama teve sua vida roteirizada por Luiz
Antônio no filme Doutor Gama (2021), que apresentou o perfil dessa figura representativa
para o Movimento Negro a partir do olhar de um realizador negro, Jeferson De.
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A cinebiografia do abolicionista é uma maneira de dar vazão a sua existência
que transcende o seu período histórico, uma vez que as mídias de massa facilitam o
acesso do público com essa personalidade. Jeferson De é um importante cineasta
negro que também trouxe contribuições fílmicas e teóricas para a compreensão do
Cinema Negro, e ao apresentar a história de Gama potencializa a ideia de Contributo
Civilizatório da Negritude que há no Cinema Negro. Não analisamos aqui o filme em
si, pois entendemos o valor da experiência cinematográfica, principalmente no campo
das relações étnico-raciais, ao abordar uma figura histórica como essa. Mais do que ser
inteligível ou não, essa é uma cinebiografia que deve ser sentida e vivenciada não só
do prisma cinematográfico, mas do Cinema como produtor de sentidos e do Cinema
Negro como veículo do Contributo Civilizatório da Negritude, justamente por ser a
filmografia das maiorias minorizadas e portanto vulnerabilizadas.
Considerações Finais
No Brasil, “coexistem, lado a lado, a sobrevivência da sociedade escravista e as
inovações da sociedade capitalista” (BASTIDE; FERNANDES, 2008, p. 21). Por isso,
é fundamental informar sobre a cultura afro-brasileira e africana sem misticismo, em
ações permeadas de tentativas de folclorização, colocando-a dentro de um prisma de
exotificação. É preciso usar-se do Cinema Negro para estabelecer uma representação
do outro que o coloque como agente de sua própria existência, isso porque a cultura e a
produção afro-brasileira e africanas são partes inegáveis da construção de identidade do
povo brasileiro, e expressão do Contributo Civilizatório da Negritude avesso a Missão
Civilizadora Ocidental.
Nesse sentido, é preciso levar às últimas consequências a noção abrangente
que Joel Rufino dos Santos (1985) interpõe para o Movimento Negro, trata-se de“(...)
todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo (aí
compreendidas mesmo aquelas que visavam à autodefesa física e cultural do negro)”.
E, portanto, concordando com a Gomes (2017),pensar o Movimento Negro como
educador “produzindo conhecimento emancipatório, como articuladores dos saberes
construídos e sistematizados por grupos não-hegemônicos” (PRUDENTE, 2023, p. 51)
é algo urgente e precípuo.
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Partindo da conceituação de Prudente (2019), do Cinema Negro como a
filmografia dos vulnerabilizados, compreendemos que o Cinema Negro é um contributo
civilizatório da negritude fora dos circuitos colonizadores, isso porque atua em nome da
fragmentação da violenta verticalidade da Missão Civilizadora Ocidental, como vimos,
tão presente no contexto contemporâneo. Entendemos como determinante para a luta
antirracista conhecer e reconhecer os perfis de grandes líderes do Movimento Negro e por
consequência desestruturar a propagação moderna e atualizada da Missão Civilizadora
Ocidental, que visa a definição da diferença como sinônimo de permissividade para
a violência e por consequência produção de desigualdades. A valorização de outras
histórias por meio das Mídias de Massa como Cinema, Rádio, publicação literária e
outras produções de cunho cultural permitem um contato com o perspectivar do
mundo e da vida, da ética e da estética, da corporeidade e das culturas afro-brasileiras
e africanas, com personagens negras que sejam representativas do perspectivismo e do
etogramacontra-coloniais.
Finalmente, ponderamos que o Cinema Negro, na perspectiva de Contributo
Civilizatório da Negritude, transcende a linguagem cinematográfica, uma vez que
propõe a libertação e a autonomia de todos aqueles que são entendidos como “o outro”,
em especial a população negra que tanto sofre e sofreu com a geografia carcerária com
suas estratégias de negação da sua humanidade.
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luiz gama
Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho
Notas
1 Disponível em https://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf [Último Acesso
15 de set. 2023].
2 “Ela diz que esse tipo de trabalho coloca ‘Luiz Gama no lugar que ele merece’ e enaltece a tarefa ‘de esforço hercúleo’ empreendida por Lima. ‘Ele trabalhou como um detetive ao longo de vários anos nessas
pesquisas e realmente levantou fontes e aspectos da obra de Luiz Gama que ampliam o que conhecemos”,
argumenta a professora.’ (disponível emhttps://www.dw.com/pt-br/documentos-in%C3%A9ditos-confirmam-que-luiz-gama-era-advogado/a-59756876 Último Acesso no dia 14 de setembro de 2023).
3 Rádio USP, Programa “Diversidade em Ciência” do dia 19 de abril de 2021. Disponível em: https://
jornal.usp.br/atualidades/ligia-fonseca-ferreira-fala-sobre-luiz-gama-como-jornalista-abolicionista-do-seculo-19/Acesso no dia 07 de set. de 2023.
429
O cinema negro, intelectuais orgânicos e
inteligências coletivas que reverberam
silenciados e revelam invisibilidades
Antonio Luiz do Nascimento
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT
“Onde houver um cineasta, de qualquer idade
ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu
cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe
do Cinema Novo”.
Glauber Rocha
Cinema Negro: Proposta tridimensional em perspectiva científico-filosófica,
educativo-cultural e política
O cinema negro brasileiro constitui em importante meio para difusão de pautas
emancipatórias para as forças sociais em movimento, sobretudo, àquelas que reivindicam a superação das desigualdades raciais e econômicas. Para entendimento desse
assunto, ocupei-me numa espécie de “mineração” de referências disponibilizadas nos
mais diversos repositórios virtuais e ou digitalizados que amplificaram minhas fontes
bibliográficas gráficas e impressas.
430
o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
Para uma sociedade que caminha inexoravelmente do grafo para digital, não
é nenhuma surpresa que hoje as redes computacionais contenham um extraordinário
volume de dados e informações de natureza multimídia. Isto as coloca como local estratégicos às produções de vanguardas e difusão em larga escala.
A concentração de um grande número de dados e informações acerca do cinema
negro na internet, portanto, não é um mero acaso. Apesar de ser comum atualmente,
destacamos que movimento negro foi pioneiro no uso das novas tecnologias da comunicação e informação Ela se deu no âmbito de uma ação tática da intelectualidade que
buscava equalizar limitações econômicas para impulsionar e capilarizar suas produções
de filmes e, também, criar núcleos de debate e discussão de temas caros, como p. exe.
denúncia a violência do racismo estrutural.
Na ordem, podemos afirma que o cinema negro subverteu os ditames econômicos e empresariais de uma indústria gráfico-editoria e midiática pouco ou nada afeta
as suas causas e ideários. É provável que a era da informação revela mais possibilidades
favoráveis à afirmação e resistência das minorias. Assim, o cinema negro é uma filmografia dos grupos minoritários que concorrem pela imagem de afirmação positiva.
PRUDENTE (2019, p. 12), ponderou: “(...) as relações abstratas da representação se
tornaram mais importantes do que as relações concretas do fato. Notou-se nesta linha
de discernimento que as lutas de classes se traduziram em conflitos de minorias vulneráveis, projetando-se em lutas de imagens”.
De fato,como as novas tecnologias tornaram o audiovisual mais acessível e
viável para cineastas independentes, incluindo aqueles que pertencem à comunidade
negra. Câmeras digitais de alta qualidade e software de edição vêm facilitando a produção de filmes com orçamentos mais modestos, permitindo que histórias e experiências
negras sejam contadas de forma mais autônoma e diversa. Os desdobramentos desses
avanços abriram livre acesso ao público “ultra-acadêmico”, portanto, isso se tornou em
um marco fundamental do caráter democrático e democratizante do cinema negro junto ao grande público.
Nunca é demais considerar que o cinema é uma das mais valiosas formas de comunicação de massa, um dos meios mais eficazes para a difusão de mensagens. Ele une
e socializa, possibilitando reflexão para apreender a realidade e mudá-la. Assim, “(...) o
cinema é único porque, no sentido pleno do termo, é um filho do socialismo… Num
431
o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
único ato cinematográfico, o filme funde o povo a um indivíduo, uma cidade a um país.
Funde-os mediante mudança desconcertante e transferência, mediante o escorrer de
uma lágrima…” (Serguei EISENSTEIN, 2002, apud. FERREIRA, 2018).
Esse protótipo de proposta cinematográfica, poeticamente delineado por Eisenstein, tem o propósito não só de acompanhar a mudança, mas também de ele próprio filmar essa mudança com a eclosão de novas formas e conceitos estéticos. Por
conseguinte, o cinema nasce como arma de engajamento político-cultural. FERREIRA
(2018), em seu artigo aludindo: “120 anos de Eisenstein: cinema é revolução”, destacou
que a primeira escola no mundo a profissionalizar a prática do cinema teve como um de
seus alunos Serguei Eisenstein, que transformou o cinema de entretenimento vazio; em
ferramenta política. Nas palavras desse autor,Vladimir Lênin compreendeu que, “(...) o
cinema era a mais importante das artes e foi logo colocado a serviço da revolução com
a criação do Vsesoyuznyi Gosudarstvenyi Institut Kinematografii (VGIK), ou Instituto de
Cinematografia de Todos os Estados da União, em 1919, a despeito das dificuldades
encontradas durante a Guerra Contra-revolucionária (1918-1921)” (op. cit, 2018).
A percepção leninista da força do cinema no início do século XX evidencia uma
aguda compreensão do papel da nascente indústria cinematográfica que desde as primeiras sessões de filme em cinema dos irmãos Louis e Auguste Lumière em 1895, verificamos o nascer de uma poderosa forma de arte-tecnologia com poder de projetar a
subjetividade humana de forma e maneira nunca vista antes. Das pioneiras produções
fílmicas com abordagem de temas prosaicos como: crianças se alimentando, comboio
chegando numa estação de trem, operários saindo de fábrica etc. O cinema evoluiu
rapidamente para narrativas elaboradas que revelaram o enorme potencial intrínseco à
nascente indústria cinematográfica. Não obstante, os primeiros filmes terem como foco
o “trivial e cotidiano”, os feitos dessas produções foram per si revolucionários, considerando não apenas o ineditismo, mas pelas extraordinárias capacidades das produções em
aplacar um grande público ávido por novidades e estabelecer um novo senso estético.
O cinema como cosmovisão urbano-industrial foi fundamental para romper
fronteiras culturais rigidamente estabelecidas. E, por tangenciar realidades objetivas em
representações oníricas, as produções se tornaram no grande fetiche social. O poder
transcendental do cinema foi, e é ainda hoje, um feito espetacular que não por acaso,
desde sua criação, inseriu-se no rol da chamada sétima arte. ANDRADE, LAIANE L.
432
o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
S. et. alli (2019, p.95), ressaltaram que o cinema “(...) nasceu mudo e através desse aspecto vinha sua principal vantagem, a universalidade. Deste modo, o mesmo filme era
exportado para vários países”. Ainda segundo esses autores, o processo de transição
do cinema “mudo” para sonoro não aconteceu tranquilamente, “já que alguns cineastas
consideravam que a nova invenção tirava o encanto do filme, provocando um desequilíbrio no limite estabelecido pelo cinema mudo entre o real e irreal” (op. cit, p.95).
Esse entendimento é bastante oportuno para se compreender que a expressividade do
cinema mudo nunca foi, efetivamente, “mudo”.
Posto isso, afirmamos que em uma única película de um filme seja mudo ou
sonoro é possível ver refletido a omnilateralidade humana em franca oposição a percepção unilateral, considerando o caráter multidimensional de qualquer que seja a produção fílmica. Nessa direção, tanto as corporações capitalistas como os Estados não
demoraram a conceber o cinema como um poderoso instrumento econômico, político
e ideológico de inconteste impacto no grande público.
Desde a aurora do cinema, a concepção e o processo de produção fílmica foram
tangidos pela lógica mercadológica, em primeiro plano, e, ainda, pela busca da hegemonia política e cultural por parte de estados, governos e sociedade civil. Nesse aspecto,
o cinema, como uma forma de arte e entretenimento de massa, tem a capacidade de
impactar amplamente a percepção de indivíduos e comunidades sobre o mundo ao seu
redor. De acordo com Max Horkheimer & Theodor W. Adorno (2002), teóricos referências da chamada “Escola de Frankfurt”, as produções cinematográficas comerciais
são produtos da cultura de massa que são projetados para entreter e atrair o público em
massa. No entanto, argumenta que em larga medida as produções na dimensão mercantil comercial são padronizadas, simplificadas e destinadas a atender aos gostos e às
expectativas do público médio. Isso resulta em uma homogeneização da cultura e na
perda da individualidade e da autonomia do público.
Não obstante, temos que ter atenção aqui às contradições entre o cinema da indústria cultural, bem como as capacidades criadoras e criativas derivadas de iniciativas
de produções cinematográficas de cunho contra-hegemônicas. Afinal, elas ilustram as
tensões e conflitos na base da hegemonia político-cultural, como atenção ao desenvolvimento de movimentos sociais e civis que se engalfinham no entrechoque das lutas de
classe decorrentes das relações conflitivas entre capital/trabalho.
433
o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
As contradições resultantes das tensões e das lutas fundamentais revelam que
o cinema produzido pela indústria cultural, embora dominado pelos grandes estúdios
e empresas que possuem recursos financeiros e infraestrutura para produzir filmes em
larga escala, não são “muralhas” inexpugnáveis, como se apresenta à primeira vista. Mesmo narrativas únicas e universais acerca de fatos e acontecimentos seletivos e ideologicamente elaborados ao sabor dos interesses que buscam determinar quais histórias serão
ou não contadas não é um processo monolítico, ao contrário, são eivados de fissuras.
As iniciativas cinematográficas contra-hegemônicas são geralmente independentes, com recursos limitados e dificuldades para obter financiamento e distribuição
marcam toda a história do cinema por desafiar o status quo e ampliar as vozes e perspectivas marginalizadas. Assim, as produções cinematográficas contra-hegemônicas enfrentam desafios para alcançar um público amplo devido à falta de recursos e à infraestrutura
limitada de distribuição. Não obstante, elas geralmente dependem de festivais de cinema independentes, circuitos de exibição comunitários para alcançar seu público-alvo.
Atualmente, apoiam-se em plataformas de streaming alternativas para ampliar acesso e
difundir propostas.
Não perdendo a dimensão das contradições, nosso entendimento é que em uma
pequena película de um filme é possível apreender vicissitudes humanas em múltiplas
determinações. Tarefas duramente perseguidas pela arquitetura, pintura, escultura, música, literatura e teatro (incluindo a dança). Sem se desconsiderar a importância e os
valores dessas importantes expressões artísticas, vemos que o cinema é implícita e ou
explicitamente uma síntese sensorial plena na forma e conteúdo, na qual na sintaxe cinematográfica; produtos, produtores, patrocinadores e público compõem a obra de arte
de maneira inexorável.
Assim como as clássicas “Belas Artes”, o cinema se converteu, paulatinamente,
em instrumento de poder em busca de corações e mentes… A constituição da indústria
cinematográfica e sua instrumentalização por corporações e governos fizeram dele também um meio de dominação, controle e afirmação ideológica. De tal sorte que, deixou
de ser um mero entretenimento descompromissado e ou “caça-níquel” para se converter
numa poderosa indústria multimilionária e ainda uma máquina de guerra que poderíamos chamar sem exagero de: “Pentágono Hollywoodiano”.
434
o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
Telonas,Telinhas e Smartphones
Não obstante a linguagem televisiva e cinematográfica possui algumas diferenças, mesmo que ambas utilizem a imagem em movimento como meio de comunicação.
Acredito que a principal diferença está na forma como a narrativa é construída.
Na televisão, a narrativa é mais fragmentada e segmentada em partes, geralmente com tempo de duração menor. Isso se deve ao fato de que os programas de televisão são organizados em séries horárias e precisam captar a atenção do público de forma
mais rápida e direta. Além disso, a televisão também costuma ser mais cuidadosa para
o entretenimento e a informação imediata, o que requer uma abordagem mais direta e
ágil.
Na perspectiva do cinema, a narrativa é mais longa e complexa, pois, em termos
gerais, é com uma construção mais elaborada de personagens, sonoplastias e enredos.
Os filmes são geralmente produzidos para serem assistidos em sessões únicas (mesmo
que tenham sequências em outras temporadas). Seja como for, ele permite uma abordagem mais profunda e elaborada da história. Além disso, o cinema costuma ser mais
voltado à arte e à reflexão, permitindo que os cineastas explorem questões mais profundas e complexas.
Outra diferença importante, sobretudo no âmbito da indústria cinematográfica business, é a forma como as imagens e sons são captados e editados. Na televisão, as
imagens e sons são captados em equipamentos cujo processo de edição é relativamente
mais “simples”, e, com poucos cortes e transições. Por outro lado, no cinema “profissional” faz uso de sofisticados aparatos tecnológicos que transformam imagens e sons que
passam por processos de edição mais elaborados, com mais cortes, transições e efeitos
visuais e sonoros.
Entrelaçar cinema e a televisão, indicando a amplitude conceitual de uma tecnologia que parece ainda não ter epílogo. Ao contrário, o cinema adentra os nossos dias
com uma extraordinária força renovada, como consequência dos avanços tecnológicos,
advindos, sobretudo, de plataformas computacionais desenvolvidas no século XXI.
No curso da transmutação do cinema de “telonas” a “telinhas” de televisores e
smartphones vem ocorrendo uma evolução (e porque não dizer Revolução nas produções fílmicas). Essas produções configuram arquiteturas tecnológicas que refletem, ao
435
o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
longo das últimas décadas, transformações que tiveram desdobramentos significativos
na forma como os filmes vêm sendo produzidos, distribuídos e consumidos, abrindo
assim novas possibilidades criativas e desafiando as estruturas tradicionais da indústria
cinematográfica.
A transição do cinema de telonas para telinhas, representada pela popularização
da televisão e dos formatos domésticos de exibição de filmes, como DVD e Blu-ray, e,
atualmente em streaming, trouxeram consigo uma maior acessibilidade e conforto para
o público. Pois, as pessoas podiam assistir a filmes em suas casas, em seu próprio ritmo
e de acordo com suas emoções. Essa transformação levou ao desenvolvimento de novos gêneros e formatos, como as séries de TV, que permitem narrativas mais longas e
complexas.
Com a presença contínua dos smartphones e a melhoria da qualidade de imagem e de alguns desses dispositivos, os filmes hoje podem ser acessados em qualquer
lugar e a qualquer momento. Isso deu origem a uma nova forma de consumo de filmes,
permitindo que se assista a filmes durante deslocamentos, intervalos de tempo ociosos
e em ambientes não tradicionais. A evolução das produções fílmicas nessas tecnologias
abriu enormes possibilidades para construção e reconstrução cinematográficas. Logo,
colocando o acesso e criatividade intelectual em dimensão inimaginável.
De fato, os avanços tecnológicos, as câmeras digitais acessíveis e portáteis permitem que cineastas independentes e amadores produzam filmes com orçamentos reduzidos. Além disso, com o emprego de aplicativos de edição de vídeo em smartphones,
ferramentas acessíveis para a criação e a pós-produção de filmes eliminaram custos e
barreiras técnicas.
Nessa perspectiva, a disseminação da Internet e o desenvolvimento de plataformas de streaming, como Netflix, Amazon Prime Video, YouTube e outras tantas, forneceram novas formas de distribuição de filmes. Agora, os cineastas têm a possibilidade de
alcançar um público global sem depender das estruturas tradicionais de distribuição de
filmes.
Portanto, com uso dos smartphones (nucleado pela Inteligência Artificial - IA),
a experiência de visualização personalizada e individualizada dá conveniência para assistir a filmes em qualquer momento e em qualquer. Destacamos ainda que, as redes
sociais e os aplicativos de compartilhamento de vídeos geram importante ambiente colaborativo para desencadear e ampliar as discussões possibilitando compartilhar expe436
o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
riências de filmes, garantindo o engajamento e a interação social em torno da cultura
cinematográfica.
Assim, para além de questões de hardware e softwares, o que nos importa prioritariamente aqui é estabelecer os diferenciais narrativos na linguagem cinematográfica,
televisiva e cibernética constituem atualmente uma única coisa naquilo que chamamos
de multimídia.
Segundo Juliana SANGION (2012, p. 53), o hibridismo do cinema com as novas
plataformas, principalmente em relação à televisão, indica que a TV “(...) substituído
os filmes não somente no tempo livre do público, mas também no espaço dos cinemas,
quando os filmes assumem uma estética e uma linguagem inerente muito mais à televisão do que ao padrão cinematográfico tradicional”.
O hibridismo do cinema com as novas plataformas é um fenômeno que tem se
intensificado nos últimos anos com o integrado de novas tecnologias de comunicação
e a popularização da internet. Seja como for, penso que as novas plataformas para consumo e produção fílmicas possibilitam enormemente um alvorecer para novos talentos
e produções de grande relevância e criatividade. Logo, no bojo desses novos processos
estruturais, éticos e estéticos, observamos que o cinema em geral e, o cinema negro em
especial, possui uma enorme capacidade de produzir discursos sobre a história, seja pela
sua capacidade ontológica e epistemológica de representar a historicidade de uma época
ou de um fenômeno, constrói, de uma só vez, uma narrativa na qual se acha imbricada
uma explicação, que por mais que queira ser descritiva, é também explicativa.
Para o pesquisador Jorge NÓVOA (2008), há uma profunda relação entre cinema-história. Para tanto, destaca que existe especificidade em uma obra de arte e da
linguagem estética é que, “passado os eventos e as condições que lhes deram origem e
sobre as quais buscou interferir, representar e explicar, guarda sempre as propriedades
metafísicas do ‘belo’. Transcende a seu mundo, a seu objeto e a seu tempo, sem perder
suas especificidades, suas particularidades e sua historicidade.”
Intelectuais orgânicos às inteligências coletivas
Segundo Gramsci, os intelectuais orgânicos são indivíduos ou grupos que surgem de dentro das classes subalternas, mas no curso de processos sócio-históricos adquirem consciência de classe e se tornam articuladores políticos e intelectuais. Eles de437
o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
sempenham um papel crucial na luta pela transformação social, construindo alianças
e promovendo a conscientização política dentro de suas próprias comunidades. Essa
abordagem é fundamental para nosso entendimento do processo criador de uma nova
cultura que, a rigor, não significa apenas realizar individualmente descobertas “originais”, mas mais difundir criticamente verdades já descobertas. Assim, (...) O fato de que
uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária
a realidade presente é um fato ‘filosófico’ bem mais importante e ‘original’ do que a descoberta, por parte de um ‘gênio filosófico’, de uma nova verdade que permaneça como
patrimônio de pequenos grupos intelectuais (p. 95-96).
Nesse entendimento gramsciano, os intelectuais desempenham um papel crucial na formação da cultura e na luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Os
intelectuais não são apenas aqueles que cultivam conhecimento e cultura, mas também
aqueles que exercem influência sobre a opinião pública e ajudam a moldar a visão de
mundo das pessoas. Assim, os intelectuais podem atuar como “orgânicos” ou “tradicionais”. Os intelectuais orgânicos são aqueles que estão intimamente ligados às classes
subalternas e lutam por sua emancipação. Gramsci pondera ainda que os intelectuais
tradicionais são aqueles que reproduzem as ideias dominantes e ajudam a manter a hegemonia cultural da classe dominante.
A luta por uma sociedade mais justa e igualitária passa pela formação de uma
nova cultura, que reflita as aspirações e necessidades das classes subalternas. Isso implica na necessidade de uma transformação cultural, que só pode ser alcançada por meio
da ação de intelectuais orgânicos engajados na construção de uma nova hegemonia cultural.
Penso que esse o entrelaçamento conceitual do papel e função dos intelectuais
orgânicos, concebido ainda na década de 1930 por Gramsci se acopla em certa medida
com as teorias contemporâneas da chamada “inteligência coletiva”, conforme delineada
por Pierre Lévy ao sistematizar a Cibercultura dos dias atuais. Fazer essa correlação me
parecer bastante apropriada para destrinchar os paradoxos e contradições de uma totalidade social dinâmica e complexa. Até porque, a perspectiva conceitual da Inteligência
Coletiva proposta por Pierre Lévy, refere-se à capacidade das pessoas se conectarem e
compartilharem conhecimento e sabedoria através das redes de comunicação e informação, especialmente com o advento da internet e das tecnologias digitais, conside438
o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
rando que ela emerge quando indivíduos colaboram e interage em ambientes digitais,
trocando assim ideias, informações e experiências, para resolver problemas, criar conhecimento e inovar. Essas interconexões de mentes e da colaboração potencializam a
produção de conhecimento e sedimentam ideias e práticas coletivas.
Além desses aspectos pontuados até o momento, a coordenação dos saberes
pode ocorrer no ciberespaço, no qual não é apenas composto por tecnologias e instrumentos de infraestrutura, mas também é habitado pelos saberes e pelos indivíduos que
os possuem (LÉVY, 2000). Por conseguinte, o ciberespaço permite que os indivíduos
mantenham-se interligados independentemente do local geográfico em que se situam
Para Lèvy, ele desterritorializa saberes e funciona como suporte ao desenvolvimento da
inteligência coletiva.
Na correlação conceitual de Lévy e Gramsci verificamos que em ambos há uma
notória atenção ao papel dos intelectuais na formação da cultura tendo como horizonte
uma crença imanente os indivíduos edificarem uma sociedade mais justa e igualitária.
Não obstante esses pensadores não elaborarem estudos específicos acerca do
cinema, porém, os seus conceitos e suas ideias-forças, permitem-nos desenvolver análises importantes sobre a lógica, significado e papel do cinema. Nessa feita, enquanto
Gramsci destaca o papel dos intelectuais orgânicos na construção e disseminação de
ideologias que sustentam uma determinada ordem social, Lévy, por outro lado, enfocou
a capacidade das pessoas de se comunicarem e colaborarem para criar conhecimento e
solucionar problemas em ambientes digitais.
Pensando o mundo em momentos distintos e com desenvolvimentos tecnológicos singulares; Gramsci, nas primeiras décadas do século XX e Lévy, nos primórdios do
século XXI. O primeiro, no contexto “tipográfico”,e, outro, no contexto “cibernético”,
eles entenderam em suas respectivas suas respectivas conjunturas políticas e o papel
tático das novas tecnologias para chegar a uma hegemonia cultural, seja no âmbito das
ideias e valores propagados pelos intelectuais orgânicos; seja na construção coletiva de
sentido e conhecimento através de inteligências coletivas em redes digitais.
A relação entre os estudos gramscianos acerca dos intelectuais orgânicos e da
inteligência coletiva de Pierre Lévy reside no reconhecimento do poder das ideias e da
produção colaborativa de conhecimento na construção da cultura e da sociedade. Ambos os conceitos ressaltam a importância do engajamento intelectual e da formação de
consensos para influenciar a dinâmica social e cultural.
439
o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
Nesse sentido, o engajamento político dos envolvidos é o que efetivamente configura a proposta do Cinema Negro, como ação intelectual nas dimensões científico-filosófica, educativo-cultural e política que, por sua vez, trava uma titânica disputa pela
hegemonia no entrechoque das classes fundamentais da sociedade capitalista. Muito
embora o engajamento político assuma diferentes formas e objetivos no âmbito de movimentos sociais, associações civis e de partidos políticos, ele se concretiza ainda em
ações e campanhas de caráter mais individual, como o boicote a empresas e governos
que não respeitam as liberdades e os direitos humanos.
Sem desconsiderar os emaranhados de contradições, dilemas e perspectivas
acerca do sentido e significado do que seja engajamento político, penso que é fundamental manter o foco no seu papel de promotor de mudanças e de vanguardista em
questões de direitos e justiça social. Visto que, o engajamento político é a fonte geradora
de conflitos e polarizações apaixonadas, sobretudo, em contextos de grande desigualdade social e política.
Reverberar silenciados e revelar invisibilidades
Como podemos situar a discussão e análise do significado do Cinema Negro na
perspectiva conceitual que reflete sobre Intelectuais Orgânicos e Inteligências Coletivas, considerando tanto nas abordagens de Antonio Gramasci como na de Pierre Lèvy?
Ao analisar o Cinema Negro, que se configura nas experiências, perspectivas e narrativas das comunidades negras, podemos relacioná-lo aos potentes esquemas conceituais
formulados sobre o intelectual orgânico e da inteligência coletiva, na medida em que
destacamos cineastas e demais partícipes do Cinema Negro enquanto forças sociais vivas que desafiam as representações estereotipadas da população negra e buscam redefinir identidades invisibilizadas e vozes e silenciadas.
De imediato situamos o Cinema Negro como movimento elaborado e estruturado em coletivos intelectuais que cooperam e articulam experiências e lutas das comunidades negras que desafia as narrativas hegemônicas e, assim, contribui para a construção de uma consciência coletiva mais elaborada e empoderada.
Analisar o significado do Cinema Negro à luz dos conceitos de intelectuais orgânicos e inteligências coletivas, revela um movimento étnico-cinematográfico que
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o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
possui uma dimensão muito mais ampla do que aparenta a primeira vista. Ou seja, não
se trata apenas de um gênero cinematográfico, inversamente a isso, ele é uma ação
impetuosa que desafia as estruturas de poder retrógradas e reacionárias como o poder
singular da arte e ciência. Logo, é essencial entendê-lo em sua configuração tridimensional, a saber: científico-filosófica, educativo-cultural e política.
No contexto do Cinema Negro, os intelectuais orgânicos são os cineastas, roteiristas, atores e outros profissionais do cinema que emergiram das comunidades afrodescendentes para desenvolver produções que expressam seus projetos de vida e visão
de mundo, tendo quase sempre o horizonte da transformação social em foco. Nessa
direção, esse grupo de intelectuais abordarem questões como racismo, discriminação,
desigualdade social, e cultura através de suas obras, o que os tornam artífices de uma
visão autêntica e poderosa que reverberam silenciados e revelam Invisibilidades.
Para tanto, os grupos envolvidos com nas propostas do Cinema Negro tem
como característica um elevado senso de colaboração e ajuda mútua que galvaniza a
união de forças que amplificaram suas vozes e modelam suas consciências sociais e políticas, desafiando as estruturas de poder retrógradas e reacionárias que perpetuavam o
racismo e a opressão.
O Cinema Negro representa uma forma de intelectualidade orgânica que conjuga uma potente inteligência coletiva, onde criadores negros se uniam para desafiar
e subverter as narrativas dominantes, destacando aqui as realidades e a resiliência das
comunidades afrodescendentes. Este movimento converte-se, portanto, como uma poderosa ferramenta de resistência cultural e social, contribuindo para a formação política
de caráter libertário e libertador.
Considerações Finais
A importância do cinema negro como uma ferramenta para a inclusão de afrodescendentes no âmbito cultural indica uma força potente que se utiliza das novas tecnologias da comunicação e informação como “ariete”. Com um quadro crescente de
cineastas independentes que passam a ter mais meios e oportunidades para contar histórias e inscrever experiências, eles vêm contribuindo para a democratização da sociedade com princípios ético-estéticos alicerçados na diversidade e inclusão.
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o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
Assim, nosso objetivo principal foi e é desencadear a discussão sobre questões
raciais e sociais, bem como, colocar em relevo saberes étnico-cinematográficos que nascem de belíssimas produções fílmicas que fazem contraponto ao racismo estrutural.
Nesse aspecto, o surgimento e evolução do Cinema Negro do Brasil, especialmente na pós-Constituição de 1988, ocorrem em concomitância ao estabelecimento de
princípios democráticos e democratizantes, nos quais, forças sociais do campo democrático e progressistas questionam moral e estética erigidas por uma burguesia estruturada, objetiva e subjetivamente, nas bases de uma escravatura tardia abolida.
Assim, o Cinema Negro é inequivocamente o cinema de minorias (que paradoxalmente são a maioria da população brasileira). Ele oferece um importante lugar de
fala e visibilidade para ruptura de estruturas erigidas nos preconceitos e racismo e que
amalgama a hegemonia imagética eurocêntrica e euroheteronormativa alicerçadas em
detrimento da diversidade dos demais povos, incluindo o africano e o ameríndio, com
bem destaca o cineasta e pesquisador Celso Luiz Prudente (op. cit).
Pois bem, dialogando com autores e autoras diversos e, em dados aspectos destoantes, com abordagem epistêmica distintas, deu-se como opção teórico-metodológica
para produzir um painel interpretativo capaz de ampliar nossa compreensão da realidade objetiva e subjetiva, na qual o conceito de intelectuais orgânicos que (re)organizam
a cultura e as artes possuem auxilia desvendar sentidos e significados da militância do
movimento negro especialmente o meio artístico cultural, como é o caso do cinema.
Daí, nosso esforço de situar a discussão e análise no Cinema Negro em perspectiva conceitual de Intelectuais Orgânicos e de Inteligências Coletivas. Penso que destacar esses
conceitos-chave elaborados nas obras de Antonio Gramsci e de Pierre Lévy iluminam
salas escuras de Cinema Negro para uma melhor visualização de produtores e produtos
de saberes que fazem a conjugação de arte, a ciência e a consciência.
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o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas
Antonio Luiz do Nascimento
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Sonhar nas Sombras, Alcançar o Estrelato. O
Cinema na Vida de Milton Gonçalves
Elaine Pereira Rocha1
Departamento de História e Filosofia da University of the West Indies
(estabelecida em 1948 como uma extensão do College of the University of London)
Introdução
Sem dúvida, um dos rostos e das vozes mais conhecidas do meio televisivo, o
ator e diretor Milton Gonçalves tem uma trajetória artística muito rica, que se iniciou
no teatro e se estendeu para o cinema, a televisão e o rádio. Foi o ator negro brasileiro
que alcançou maior reconhecimento durante mais de 60 anos de carreira.
Sua experiência de vida, no entanto, vai muito além dos papéis que interpretou
nos palcos e nas telas. Ao longo de nove décadas, Milton Gonçalves viveu importantes
eventos históricos para o Brasil, como a Era Vargas e a Ditadura Militar por exemplo,
e participou ativamente de outros, como o MovimentoDiretas Já!
Mais do que isso, sua biografia apresenta uma visão da História Negra no Brasil:
Seus avós haviam enfrentado a escravidão e o difícil período que seguiu a abolição,
1 Mestre em História pela PUC-SP e pela University of Pretoria (África do Sul), Doutora em História
pela USP. Professora Associada do Departamento de História e Filosofia da University of the West Indies (estabelecida em 1948 como uma extensão do College of the University of London), campus Cave
Hill, Barbados, desde 2007.
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
sendo que o avô materno morreu com, aproximadamente, 56 anos, trabalhando em
meio às fileiras de um cafezal em Monte Santo de Minas, em 1930; os avós paternos se
casaram menos de dois meses depois da abolição da escravatura, ele com 30 anos, ela com
mais ou menos 20. Seus pais se juntaram às levas de trabalhadores negros que migraram
das fazendas para a capital paulista durante a primeira fase da Era Vargas, enfrentando
pobreza, marginalidade e discriminação racial. (ROCHA 2019). Sua vida de sucesso não
deveria ser contada pela perspectiva racial, mas é importante que seja, porque ser negro
e ser artista, há sessenta anos, eram elementos quase antagônicos. Da mesma forma, ser
pobre e ser negro é diferente de ser apenas pobre. Sendo assim, sair de uma situação
de extrema pobreza para o estrelato, e construir uma carreira profissional como ator e
diretor, sendo negro no Brasil, possui especificidades que abrangem questionamentos
de ordem social, cultural e política.
Já na cidade de São Paulo, Milton foi testemunha de um período de grande
progresso. O crescimento urbano, que em princípio ofereceu trabalho a seu pai e tios
na construção civil, incluiu um grande desenvolvimento cultural, com a inauguração
de cinemas e teatros, e facilitou o acesso da população mais pobre ao entretenimento
da grande cidade, por meio de investimentos no transporte público e na malha viária,
criadas para facilitar a circulação de mercadorias e trabalhadores.
As obras de modernização da cidade vinham desde 1930, com a construção de
avenidas, parques e jardins, ganhando grande ímpeto no período de Prestes Maia. Isso
abriu um mercado de trabalho para mão de obra pouco qualificada e atraiu muitos que
vinham das áreas rurais. Por outro lado, como essas obras se concentraram no centro
da cidade, demoliram inúmeros imóveis, e agravaram o problema de moradia para
os pobres. Os governantes propunham planos para criar áreas para moradia popular
na periferia, com a abertura de loteamentos destinados aos trabalhadores, mas os
salários baixos, a precariedade de meios de transportes regulares e a instabilidade
de emprego, que obrigava os trabalhadores a estarem constantemente buscando
trabalho, aliado a problemas estruturais como as enchentes e a lama acumulada nas
ruas, eram fatores de desestímulo para a mudança das famílias das áreas centrais para
a periferia. (Cordeiro 2005).
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
História, Biografia e Cinema
Neste artigo, proponho examinar o impacto do cinema na experiência do ator
Milton Gonçalves, ainda que não me atenha a um estudo detalhado dos papéis que
Milton tenha desempenhado no cinema, meu objetivo é demonstrar como um jovem
negro numa sociedade racista se aproximou do cinema, e posteriormente das artes
cênicas, encontrando ali um veículo para desenvolver sua arte e construir uma carreira
profissional brilhante.
A necessidade de uma historiografia do negro foi defendida por Marc Ferro
(2003), como uma das medidas para se prevenir e remediar os abusos cometidos pela
história. Reconhece-se que a historiografia é também corrompida pelo discurso do
vencedor, ao qual se alia para manter e reforçar o status quo e com isso a exploração de
grupos marginalizados por grupos dominantes. Por isso, seguimentos marginalizados
social, econômica e politicamente, relegam a proposta de distanciamento e neutralidade
acadêmica para abraçar a história como parte da tarefa de lutar por direitos iguais, pelo
reconhecimento do protagonismo histórico e por fazer válida a sua perspectiva acerca
de eventos históricos.
Nesse sentido, John Hope Franklin (1999) também advogou por uma história dos
negros nos Estados Unidos, combatendo a tese de ausência de fontes e de invisibilidade,
convidando historiadores a lançarem-se nos arquivos públicos e privados com outra
perspectiva, abrindo-se para a interdisciplinaridade e para o uso de novas fontes e
objetos de pesquisa.
Assim, a biografia de um personagem negro deixa de ser a história de uma
experiência particular, para ser uma oportunidade de se entender a sociedade na qual
aquele individuo se insere. A abordagem biográfica tem sido recuperada por estudiosos,
na busca de uma história que contemple mais do que fatos e cronologias, que some a esses
a experiência individual num determinado contexto, desenhando táticas, estratégias,
alianças e resistências no decorrer de uma vida que de alguma maneira refletiu uma
determinada situação de raça, classe ou gênero. Nas palavras de Miriam Moreira Leite
(1984, p.xii):
Raramente as particularidades de um biografado deixam de ser
desdobramentos de condições de vida coletiva de que participou, da cultura
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
incorporada, do trabalho exercido e da influência real ou imaginária de
multiplicador ou subversor da camada social, nacional, religiosa ou política
exerceu.
Principalmente quando no que se refere ao século XX, a história do cinema
brasileiro não inclui o protagonismo negro como foco para análise, seja como
público, ator, diretor ou produtor. Muito associada à história do cinema europeu e
norte-americano, cronistas dessa história no Brasil trataram o assunto como se fosse
independente de questões sociais e raciais. O cinema surge na historiografia como
território embranquecido.
Edith Piza (2000), refere-se a uma geografia social da raça, na qual explica a
experiência do negro como sendo o “outro” no lugar público e na tradição cultural
brasileira. Para ela esses lugares distinguem-se mais como espaços sociais do que
naturais, marcado pelos lugares onde as pessoas moram, trabalham, estudam, passam
férias, etc., marcado pela existência de um código de normas invisível, segundo o
qual as pessoas ocupam determinados lugares sociais, segundo a sua origem racial, e
comportam-se de acordo com as regras desse espaço. Desta maneira, o lugar da raça é o
lugar de visibilidade no qual todos se veem como iguais, definindo “o outro” como não
pertencente a aquele lugar. Ampliando-se a análise da psicóloga, pode-se dizer que o
sujeito “fora do lugar” corresponde a uma ameaça ao grupo dominante daquele espaço.
Ao propor o cinema como “agente, produto e fonte da história”, Marc Ferro
(1983) explica que a importância do cinema como elemento cultural faz com que sua
análise não se limite aos estudos sobre como os diferentes gêneros evoluíram ou foram
tratados por cronistas e diretores. Para ele, o historiador
Deve olhar para a função histórica do filme, para a sua relação com
as sociedades que o produzem e consomem, e ao mesmo tempo para
processos sociais envolvidos na produção das obras, no cinema como fonte
da história. Como agentes e produtos da história, os filmes e o mundo dos
filmes mantêm uma relação complexa com o público, com dinheiro e com
o Estado, e esta relação é um dos eixos de sua história.
Embora estes - o público, o dinheiro e o Estado - sejam os protagonistas, é
a evolução da relação entre eles que determina como a técnica e até mesmo
o estilo dos cineastas mudam e também como o filme se desenvolve como
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
forma de arte, pois o filme como arte não pode ser separado das culturas que
o produzem ou o público a que se destina. (FERRO, 1983, p.358).
Por isso, entender o contexto em que o cinema se desenvolve no Brasil e, dentro
deste, como os negros se situavam naquela sociedade é muito importante para uma visão
mais compreensiva sobre como que no mesmo período em que pessoas negras lutavam
por trabalho, moradia, educação, e cidadania, já participavam – ainda que de forma
marginal – do desenvolvimento do cinema no Brasil.
Ser Pobre e Negro, Ver Cinema, Assistir Cinema
Por volta de 1938-1939, a família Gonçalves tentava se estabelecer, numa
segunda tentativa, na cidade de São Paulo. A oportunidade que tiveram anos antes,
também na capital, quando Bonfim Gonçalves arrumou um trabalho que lhe permitia
viver com sua mulher e filho no canteiro da obra, enquanto construíam um grande
prédio, não se repetiu na segunda tentativa e Maria foi morar com o menino na casa onde
trabalhava como doméstica, enquanto o marido ia e vinha, de acordo com os empregos
que conseguia. Moravam na região dos jardins, área nobre da capital, e o menino saía
pelas ruas do bairro, observando os prédios. Naquela época, uma experiência o marcou:
Eu tinha uns 6 anos e ganhava uns tostões tomando conta das frutas de um
português…
Naquele tempo eu já andava muito. Menino de uns seis, sete anos podia
andar pela rua. A gente brincava e se escondia na rua Augusta, esquina com
a Alameda Tietê e ia naquele cinema que tinha, no Cine Paulista.
Um dia, eu estava passeando na Avenida Paulista, andando distraído… que
ainda tinha aquelas casas grandes naquela época.
O policial veio e falou: “ – O que você tá fazendo aqui, ô neguinho?” Eu disse:
“ – Eu tô passeando.” Ele falou: “ – Vai andando, vai… vai… Aqui não é lugar
de preto passear!”
Então eu sempre tive na minha cabeça: “Aqui não é lugar de negro passear”.1
O território de São Paulo, para o pequeno Milton era marcado pela trajetória do
trabalho, desde os seis anos de idade, pelo pode/não pode, pelo território branco, onde
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
se necessita autorização para andar e onde a liberdade poderia ser contestada a qualquer
momento, não apenas pelas autoridades institucionais, mas pelas regras nem sempre
escritas do racismo paulista. As dificuldades enfrentadas pelos negros imigrantes
na cidade de São Paulo foram estudadas por historiadores como Kim Butler (1998),
que afirma que a história dos negros em São Paulo é essencialmente uma história de
imigrantes que chegam à cidade entre 1910 e 1940, em busca de sonhos e tinham que se
adaptar à nova realidade, num processo lento e doloroso. Em geral, a vida era marcada
por tensões e decepções, pela exclusão e pelo racismo.
A discriminação racial é uma herança colonial difícil de ser apagada. No início
do século XX, ela passa a ser denunciada pelos jornais dirigidos aos leitores negros.
Na primeira página do jornal O Alfinete, de vinte e dois de setembro de 1918, um
edital falava da opressão que os negros sofriam, numa sociedade ainda dominada por
ideias escravocratas, apontando que o ideal de democracia que inspirara a República,
para os negros era uma mentira. Alguns anos depois, o artigo publicado pelo jornal O
Kosmos, em dezenove de outubro de 1924, comenta uma carta de autoria de um certo
Bernardo Vianna, e publicada pelo jornal A Gazeta, na qual se descrevia o sofrimento
dos trabalhadores negros em São Paulo:
Vae [sic] à fábrica, mas não lhe dão serviço, muitas vezes nem lhe deixam
falar com os gerentes. Procura annuncios [sic] nos jornaes [sic], acorre
pressuroso onde precisam de empregados e embora chegue primeiro do
que qualquer outro candidato, por ser de cor é posto à margem e recusado.2
No artigo continua, e nele, a denúncia apresentada pelo leito é discutida pelo
editor, que confirma que a questão da discriminação do trabalhador negro é fato comum
em São Paulo, e que era preciso reconhecer “que os homens pretos da cidade de São
Paulo estão sofrendo (sic) uma guerra muda e odiosa”.3
Samuel Lowrie (1938) indica que os índices de mortalidade infantil e de adultos
cresceram na cidade de São Paulo, durante a Primeira República. Ele compara dados
obtidos para a população em geral, e para negros e pardos, concluindo que mesmo que
todos os grupos das classes inferiores estivessem sujeitos às epidemias e aos problemas
relacionados às baixas condições sanitárias, a mortalidade entre negros e pardos era
maior. Segundo Lowrie, o maior problema eram as precárias condições de saúde da
população negra, vivendo em situação de extrema pobreza.
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
No dia vinte e dois de junho de 1924, o jornal O Clarim da Alvorada denunciava:
Uns vivem sem moradia, dormem em albergues e outros logares [sic]
horríveis; outros são perseguidos pela polícia, e morrem muitas vezes nos
hospitais. A quem é que devemos pedir por esses pobres infelizes, a não ser
aos caridosos e conhecedores dos sofrimentos desses deserdados da sorte?
Observando-se as sociedades vicentinas, veremos que há, em suas reuniões,
um elevado número de vicentinos que são nossos irmãos de raça... 4
Ainda que se reconheça a importância dos dados estatísticos para a compreensão
do status da família negra na sociedade brasileira, por décadas, essas estatísticas foram
usadas na construção de um discurso que culpabiliza os negros como responsáveis
principais por suas condições de vida. Além disso, autores como Florestan Fernandes
(2008) descreveram as condições precárias em que os negros viviam em São Paulo
como fator de impedimento para qualquer avanço social. A questão é que esses mesmos
estudos ignoraram as redes familiares e de solidariedade baseadas em lugares de origem,
profissão e vizinhança, que amenizavam as limitações dessas pessoas, ajudando-as na
busca de trabalho, no cuidado com as crianças, idosos e doentes, e nas penúrias do
dia a dia. Muito importante também é a sociabilidade e a produção e reprodução da
cultura entre indivíduos discriminados, que junto com as redes de apoio contribuem
para fortalecer a resistência à opressão. Junte-se a isso o grande esforço que famílias e,
muitas vezes as mães, fizeram para manter as crianças em segurança e garantir alguma
educação escolar.
Minha mãe nunca me abandonou. Eu vivi um tempo com ela, na casa da
patroa, ali nos jardins. Eu ia na escola, no Grupo Escolar que ficava ali por
perto, na esquina das ruas Augusta e Estados Unidos. Um dia essa senhora
disse: “ – Deixa ele aqui comigo.” A minha mãe não tinha condições de me
levar pra todo lugar que ela trabalhava. Eu era o filho mais velho, tinha uns
sete anos, minha irmã e meu irmão tinham ficado com a minha vó.5
Seguindo uma tendência comum, Milton deixou a escola após terminar o Grupo
Escolar. Segundo ele, começara a estudar assim que chegou a São Paulo, com seis ou
sete anos já sabia ler um pouco. Isso ajudava porque muitas vezes ele tinha que tomar o
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Elaine Pereira Rocha
ônibus para ir de um bairro a outro. Mas sua educação era feita de idas e vindas, devido
às mudanças de moradia e das condições e lugar de trabalho.
Eu fiz o Grupo Escolar mas não fui para o ginásio. Naquela época quem
chegasse ao ginásio já era um milagre. E eu não podia, porque o ginásio era
de dia, não tinha à noite e eu tinha que trabalhar.
Uma vez tentei fazer o Madureza, que era na cidade, mas não havia a menor
condição.6
As circunstâncias que limitaram a escolaridade de Milton em sua infância e
adolescência afetavam grande parte da população negra e parda na cidade de São Paulo.
De acordo com documentos oficiais, em 1934 havia 85.000 alunos matriculados em
escolas públicas da cidade de São Paulo, entre esses apenas 7% eram negros. O censo de
1940 revelou que apenas 3% dos alunos negros e 2% dos pardos conseguiram completar
o primário, comparado com 92% dos alunos brancos. (BUTLER, 1998).
O grande problema era a prevalência do analfabetismo entre a população negra.
As pressões econômicas empurravam alunos negros para fora do sistema escolar em
poucos anos, ao passo que o racismo predominante na sociedade levasse professores
a discriminar o aluno negro. Em A Voz da Raça, de seis de maio de 1933, um exemplo
dessa discriminação:
Nós os negros não queremos dominar, não queremos ser fascistas, queremos
apenas o nosso direito e o nosso lugar na comunhão nacional, porque
ter alguma cousa nominalmente não é ter de fato, ademais não somos
estrangeiros e se fossemos (bem que nos pese isso) não precisaríamos lutar
pela nossa integridade, visto como os amarelos que não são brancos (está
claro) não lutam para isso e vão progredindo dentro de uma pátria que não
é sua. É dura esta verdade, em todo caso, é verdade!
Há pouco tempo, um nosso patrício negro me contara uma história do
seu filho inteligente, que ia mal amparado pela escola porque a professora
declarara em plena classe que “negro com ela não aprende” como si o negro
frequentando uma escola pública pedisse uma esmola...7
Ainda que se considere que as mulheres negras tinham alguma vantagem sobre os
homens, no mercado de trabalho paulista, a vantagem está na possibilidade de moradia,
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
porque elas tinham que enfrentar uma jornada intensa de trabalho e pagamentos
diminutos e irregulares. Por isso, o trabalho das crianças era parte fundamental da
renda da família. Milton teve vários tipos de trabalho: foi babá, ajudante em quitanda,
entregador em alfaiataria, engraxate e ajudante em salão de beleza, entre outros. Isso
era importante para ajudar sua mãe, mas também havia a possibilidade de ter algum
dinheiro para o lazer no fim de semana.
Por muito tempo a história ignorou a visão das camadas mais pobres, sobretudo
dos negros. No entanto, um breve exame das fontes iconográficas, como as fotografias
de lugares e de eventos públicos denunciam a presença negra. Vendedores ambulantes,
jornaleiros, engraxates, carregadores, empregadas e empregados domésticos, carroceiros,
construtores e esmoleiros circulavam pela cidade, viam os prédios, viam os cinemas,
ouviam as conversas sobre os filmes e, sem dúvida alguma, quando começaram a surgir
os pequenos cinemas que nada mais eram que salas de projeção, mas que cobravam
um preço acessível aos trabalhadores, essas pessoas começaram a assistir ao espetáculo
mágico das imagens em movimento. Milton andava pelas ruas de São Paulo numa época
em que os cinemas se proliferavam, via o prédio com pessoas entrando e saindo, ele via
os cartazes e ouvia conversas sobre os filmes.
Desde muito jovem, a mãe lhe dava uns tostões para que fosse ao cinema,
enquanto ela estava trabalhando, para evitar que ele ficasse perambulando pelas ruas e
se envolvesse em problemas. O cinema foi, dessa forma, um lugar seguro, onde Maria
poderia ter certeza de que seu filho estaria guardado por algumas horas. Segundo o ator,
foi em pequenas salas de cinema que ele ia, a troco de algumas moedas, assistir filmes de
Carlitos e outros filmes mudos.
A minha mãe me estimulava a ir ao cinema, porque quando eu estava
no cinema não estava na rua. E aí a gente ia pro cinema onde passavam
seriados, documentários, o jornal do DIP e depois o filme principal. Então
a gente ficava muito tempo. Era uma salinha pequena, e o velho italiano
cobrava uns trocados dos meninos que se enfileiravam para entrar. E era o
dono mesmo que recebia as moedas e rodava o filme pra gente.8
O número de cinemas cresceu muito na capital paulista a partir da dos anos
1920. Alguns eram ambientes luxuosos, como o Paramount, o Metro, o Cine Art, e o
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
Marrocos, todos cinemas projetados por engenheiros especializados, decorados com
mármore e muito luxo. Entre 1930 e 1950 mais e mais cinemas de luxo surgiam pelo
chamado “centro novo” da cidade. Em entrevista à SESC TV, Milton Gonçalves contou:
Eu ia muito aqui, em São Paulo, à Liberdade no cinema japonês, eu vi
muitos filmes ali. Nos anos 40. Um que tinha ali na Conselheiro Furtado,
eu ia muito ali. Cine Recreio, que era ali na João Mendes, eu ia muito ali.
Aqueles cinemas furrecas da cidade, eu ia muito, porque eu gostava. E lá
no bairro onde eu passei a morar em Santana, o Cine Hollywood, o Cine
Orion, Cine Santa Terezinha, Cinema Colonial, que era na Voluntários da
Pátria… Eu fui a muitos. Era o meu divertimento.9
Não era fácil ingressar nos cinemas luxuosos. Além do preço mais caro, alguns
cinemas não aceitavam negros, outros não rejeitavam abertamente, mas impunham
regras na vestimenta que tornavam difícil o acesso para os mais pobres:
No tempo da minha adolescência tinha a coisa de se apresentar
adequadamente. Fosse no paletó muito bem passado ou no cabelo alisado a
ferro quente da minha irmã.
Não era só no vestir. Quando eu tinha treze, catorze anos tinha cinema que
tinha que ter o terno para entrar.
E a minha mãe lavava e engomava aquele terno de linho no ferro a carvão,
mas eu não podia andar em desvantagem em São Paulo.10
O esforço valia a pena. O cinema era um lugar mágico. Ao apagar das luzes,
desaparecia a realidade da discriminação e das privações. Heróis, soldados, romances,
comédias, tudo vinha como um remédio contra a dureza da realidade que o cercava.
Saindo dali, Milton começou a fazer cinema, brincando:
Eu tinha essa habilidade de externar uma emoção diferente daquela minha
genuína. Eu tinha essa tendência a teatralizar tudo. Pegava um pedaço de
madeira e brincava de espada, virava o rei Artur... Eu sonhava muito. Eu
sonhava que tinha um outro mundo no qual a vida era melhor. O cinema
era a minha brincadeira.11
455
sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
Além dos filmes de fantasia aos quais com grande entusiasmo, informações
políticas e culturais eram transmitidas no cinema. Assim, um pouco do que chamamos
macro história marcou a trajetória do ator, que assistia a filmes curtos sobre a Segunda
Guerra Mundial e sobre futebol, por exemplo. Milton contou quando Diamante Negro
(Leônidas da Silva) foi reconhecido pela mídia como o herói brasileiro da Copa do
Mundo de 1938 que ajudou o Brasil a conquistar a terceira colocação, todos os meninos
negros queriam ser jogadores de futebol, uma onda que se ampliou depois de 1954,
quando o Brasil terminou na sexta colocação. O jovem tentou construir uma carreira
no futebol, mas a falta de tempo para praticar e o custo do uniforme e chuteiras o
impediram de realizar o sonho. Sorte da dramaturgia brasileira.
Negros no Cinema Brasileiro: uma Longa Caminhada
O crescimento urbano no Brasil foi acelerado a partir de 1890, quando mudanças
estruturais na política, na economia e na sociedade começaram a romper com a ordem
tradicional ruralista e novos negócios e serviços passam a atrair trabalhadores para as
cidades. Quanto mais pessoas, mais negócios e mais serviços, e assim a população crescia
nas cidades, graças à chegada dos imigrantes estrangeiros e dos imigrantes nacionais
vindos de outras regiões ou simplesmente do interior do estado. A vida urbana era
mais diversificada: cafés se multiplicavam, bondes e trens moviam pessoas de uma parte
à outra, casas de entretenimento, como teatros e bailes eram criadas para atrair um
público diverso
Apesar de não haver segregação racial formal no espaço urbano de São
Paulo, a documentação aponta para uma segregação econômica, cujo resultado era
a concentração dos negros em áreas relativamente próximas ao centro comercial da
capital e nas imediações dos bairros de elite, onde havia abundância de possibilidades
de trabalho. Havia, no entanto um contraste entre os logradouros. Enquanto as ruas de
comércio eram calçadas, iluminadas e bem cuidadas, e os bairros de elite eram também
calçados, iluminados e arborizados, nas cercanias poderiam ser encontrados becos e
ruelas enlameadas e malcheirosas; prédios decadentes divididos em cômodos de aluguel,
e as vilas e favelas de aspecto repugnante. Ainda que houvesse brancos pobres, em geral
imigrantes estrangeiros, vivendo em cortiços e nas vilas e negros vivendo em regiões
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
mais abastadas, é fato que, nos bairros de elite os negros eram empregados que viviam
nos quartos do fundo.
A presença de atores negros no teatro brasileiro nasceu com a criação do teatro.
Desde os primeiros anos da República, com a urbanização e o desenvolvimento de casas
de entretenimento, artistas negros, em geral músicos e dançarinos/as, participavam
de espetáculos nas principais cidades, além de exercerem as funções mais servis na
costura, limpeza e apoio em geral. A imprensa do período indica a existência de casas
de espetáculo voltadas para diferentes estilos e classes sociais, da ópera às chamadas
revistas.
Um dos mais famosos empreendedores do teatro brasileiro do período foi
o pardo baiano João Cândido Ferreira, que após passar um tempo em Paris, adotou
o apelido que os franceses lhe deram: De Chocolat. Ele voltou ao Rio de Janeiro em
1926, onde fundou a Companhia Negra de Revistas. Na mesma época, também no
Rio, surgiu a Companhia Bataclan Preta e em 1930 a Companhia Mulata Brasileira.
(NEPOMUCENO, 2006).
Tais companhias seguiam a fórmula do teatro de revistas, gênero que surgiu no
final do século XIX, que destoava do teatro dramático tradicional por promover o riso,
trazer temas do cotidiano e misturar músicas e danças populares à encenação teatral. É
também chamado de “teatro ligeiro”, nome que remete ao estilo pouco elaborado dos
textos, nos quais mesclam-se elementos do cotidiano e do contexto político, econômico
e social, além da tendência ao improviso. (MADEIRA, 2000). Também num circo, em
1925, teve início a carreira do ator Grande Otelo. (SANTOS, 2016).
A partir 1910, o teatro de revistas ganhou popularidade, caindo no gosto das
camadas mais baixas, apesar de ser duramente criticado pela elite. As companhias
de teatro negras seguiram esta tendência muito de perto, retratando elementos do
cotidiano da população negra e marginalizada, falando de seus problemas e desafios
de forma cômica. Era comum satirizarem problemas gerados pelo preconceito racial e
pelo conflito de classes. Além disso, incorporava ritmos populares como o maxixe e os
batuques, seguindo a tendência francesa. A grande referência para esse período é o ator,
compositor, produtor e diretor De Chocolat.
A sua estreia ocorreu no Rio de Janeiro em 31 de julho de 1926. Seu advento
assinalou o início do teatro negro no Brasil, isto é, uma variante temática
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
do teatro ligeiro que, sem modificar as estruturas dos gêneros existentes
nas revistas e burletas, procurou estilizá-los com números de danças e
canções inspiradas na cultura afro-brasileira ou afro-americana. Outro
aspecto inerente a essa manifestação foi a constante referência à epiderme,
uma espécie de sublimação brasileira das diferenças raciais, tão assinaladas
pelas “marcas de cor”, conforme os títulos das revistas apresentadas: Tudo
Preto, Preto e Branco, Carvão Nacional, Café Torrado. (BACELAR, 2007).
O sucesso do teatro ligeiro negro, no Rio de Janeiro, suscitou muitas críticas.
Curiosamente, a maior parte delas não era pelo seu conteúdo –provavelmente porque,
de fato, seguia um formato já conhecido na Europa e no Brasil – mas sobre o fenótipo
dos participantes e pelo tipo de música que apresentavam. Em outras palavras, a maior
crítica era sobre o fato de os membros dessas companhias serem negros e apresentarem
sua cultura.
Uma atriz negra alcançou, no Rio de Janeiro, um estrondoso sucesso. Era a excozinheiraAscendina dos Santos, que desde o início de 1926 vinha atuando no Teatro
Carlos Gomes, com a Companhia Carioca de Burletas (NEPOMUCENO (2006). Apesar da
atriz Apesar da atriz ter seu talento reconhecido em alguns jornais do Rio de Janeiro, ao
ponto de terem-lhe oferecido um contrato de trabalho, ela também foi alvo de ridículo;
a revista semanal O Malho, por exemplo, publicou em vários textos no qual se refere à
atriz em 1926, inclusive uma falsa entrevista com a atriz, na qual ela é apresentada como
uma criada doméstica falando mal o português. O texto chega a colocar em dúvida sua
moral, como se vê no trecho seguinte:
- Mas de certo. Quero prova que os preto [sic], no Brasil, são mesmo, ali, de
facto! E vamodeixá dessa história de dizê que são só os portuguez que gosta
da gente! Meu camarim, no triatrovéve cheio! É portuguz, é italiano, é
hispanhó e muito brasileiro...E não é perciso sê atriz... Quarqué cozinheira
sabe muito bem disso![sic].12
A revista chegou a publicar uma bela foto, de corpo inteiro da atriz; em alguns
momentos parece reconhecer seu talento, mas em seguida inclui algum comentário
de mal gosto, como este, publicado em 20 de fevereiro de 1926, no qual elabora uma
outra entrevista falsa, dessa vez com o diretor teatral Gastão Tojeiro: “A novidade da
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Companhia de Burletas continua a ser uma só, a retinta Ascendina! Não monto mais
nada, não ensaio cousa alguma inédita, continuo a representar ‘Ai Zizinha!’, grande êxito
de Clara Branca das Neves, nome recém-adoptado pela genial e eminente artista!”.13
A visibilidade de Ascendina, a cozinheira que virou atriz consagrada, suscitou
boatos de que o aumento no número de teatros de revistas que empregavam atores
e atrizes negras iria afetar a ordem social. Preocupavam-se com a possibilidade de
uma crise da mão de obra nas cidades. Rumores falavam de uma “crise de domésticas”,
relacionando o sucesso das revistas negras ao declínio na oferta de trabalhadores
domésticos, primeiro no Rio de Janeiro, e depois em São Paulo. Em julho de 1926,
Menotti Del Picchia escreveu no jornal Correio Paulistano(atentem para o fato de que
sua cozinheira era alfabetizada!), aqui citado por Nepomuceno (2006, p.137):
Quando li no jornal o telegrama da ‘companhia preta’ o demônio do ‘pavor
doméstico’ entrou em mim. E procurei esconder o jornal, que minha
cozinheira sempre lia… Saí, tratei de negócios, discuti política(...) Voltei
cansado. Faminto, fui para a sala de jantar. Nada de aparecer a comida.
Estranhei... fui à cozinha. Vi sobre a mesa o “Diário Popular”... Na despensa
encontrei a preta. Estava toda enfeitada, experimentando umas penas do
espanador no alto da garofinha.
– Pancrácia, e o jantar?
–Jantá, o sinhô tá loco? O sinhô não vê que eu vô entrá como estrela do
Bataclán?
Segundo autores como Olívia Gomes da Cunha (2007), Maria Izilda Santos
de Matos (2002) e George Andrews (1991), naquele período não houve tal crise na
mão de obra doméstica, mas um superávit, quando imigrantes passaram a competir
com os trabalhadores nacionais por esse tipo de emprego. Inegável é o fato de que a
elite não via com bons olhos a possibilidade de uma nova frente de trabalho abrir-se
para afrodescendentes. O sucesso de negros e negras nos palcos poderia influenciar
empregadas domésticas a tentarem a sorte como artistas, o que poderia afetar a qualidade
de vida dos patrões brancos.
A Companhia Negra de Revistas de DeChocolat teve vida efêmera, de 1926 a 1927.
Mas marcou definitivamente a cena cultural brasileira, e seu estilo foi copiado por outras
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companhias. Um de seus atores mais jovens tornou-se o mais prolífico ator negro no
cinema brasileiro Grande Otelo, em 1927, aos doze anos de idade. Por volta da mesma
época, o menino também atuava em circos (SANTOS 2016). O circo-teatro, trazido
para o Brasil por imigrantes europeus no final do século XIX, empregou homens e
mulheres negras e tornou-se uma opção barata de lazer para as camadas mais pobres da
população (PIMENTA 2009).
Em1908, o ator negro Benjamin de Oliveira, do Circo Spinelli, onde além
de ser palhaço também protagonizava papéis dramáticos, foi contratado para fazer o
papel do índio Peri, no filme mudo Os Guaranis, um dos primeiros filmes brasileiros.
(RODRIGUES, 2001).Atores negros já haviam protagonizado filmagens no Brasil,
principalmente as reportagens ou documentários que tinham como tema a cultura afrobrasileira, como Dança Baiana, de 1901, Dança dos Capoeiras, de 1905, “seis reportagens
sobre a Revolta da Chibata em 1910; e mais um misterioso e não identificado Família de
colonos africanos em uma fazenda, do mesmo ano. (RODRIGUES, 2001, p. 78). A primeira
tentativa conhecida de se fazer um filme de ficção histórica no Brasil aconteceu em 1912,
com A vida de João Cândido, o tema, porém ainda era muito polêmico, pois envolvia a
rebeldia negra e um motim contra a Marinha Brasileira. Segundo Rodrigues (2001), a
única cópia do filme foi confiscada por um Chefe de Polícia.
Temos então, já no início do século, os negros atuando como atores em ficção e
em filmes elaborados sobre suas próprias vidas. Homens e mulheres estavam presentes
quando a cena era sobre música e dança, por exemplo, e eram comumente recrutados
para papéis que refletiam o estigma associado à população negra: empregadas domésticas,
peões ignorantes, bandidos, bêbados, malandros. Depois da já citada importante
atuação de Benjamin de Oliveira em Os Guaranis, o drama produzido em Pernambuco,
A Filha do Advogado, de 1926, tinha um homem negro num papel de destaque, ainda que
fosse como um sujeito de moral duvidosa. “Coadjuvante e não apenas figurante, esse
Gerôncio é um dos primeiros personagens negros da nossa cinematografia, trazendo já
alguns traços dos arquétipos pejorativos do futuro: corrupção, superstição e covardia.”
(RODRIGUES, 2001, p. 79).
A década seguinte marcou a história dos negros no país. Apesar da crise
econômica mundial, a modernização de São Paulo não parava, com a construção de
avenidas, parques e jardins, ganhando grande ímpeto no período de Prestes Maia. Tal
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progresso era marcado pela prevalência da discriminação racial, apoiada em ideias
eugenistas revitalizadas no debate mundial daquele período. A Constituição de 1934
determinava o ensino da eugenia nas escolas, medida mantida pela Constituição de
1937, e que não apenas ofereceu suporte para as práticas racistas, como exigia que
professores reproduzissem nas salas de aula a ideologia que pregava a hierarquia racial
e a propensão natural de negros e pardos à degeneração moral, aliada a uma capacidade
intelectual inferior (DÁVILA, 2005).
Jornais negros denunciavam situações de exclusão, discriminação e injustiças
contra homens e mulheres negras, descrevendo, por exemplo, o caso de crianças
negras rejeitadas por organizadores de grupos de escoteiros, denunciando que filhos
de proeminentes intelectuais negros eram rejeitados em escolas católicas. Nas ruas,
a polícia estava em alerta para coibir os negros qualquer ato considerado crime, real
ou eminente, como as batucadas, capoeiras, os bêbados, mendigos, ou simplesmente
a presença de homens e mulheres negras em locais considerados “fora do lugar dos
pretos”.
Em 1931, dentre os serviços oferecidos pela Frente Negra Brasileira, estava uma
escola de artes dramáticas, frequentada por rapazes e moças, conforme mostra o jornal
da entidade A Voz da Raça. Dois anos depois, um grupo de rapazes e moças, membros do
grupo de teatro da Frente Negra Brasileira foi abordado pela polícia. Segundo o jornal
A Voz da Raça de dezoito de março daquele ano, eram aproximadamente nove horas da
noite quando os jovens terminaram seus ensaios e os rapazes seguiam para acompanhar
as moças às suas casas quando policiais os interceptaram, querendo saber o que faziam
por ali. Insatisfeitos com a explicação de que se tratava de um grupo de atores amadores,
o oficial lhes deu voz de prisão, ordenando que fossem todos para dentro da viatura.
O incidente foi contornado e ninguém foi preso quando ficou provado que estavam
falando a verdade.
A produção cinematográfica havia se desenvolvido muito durante o período
entre guerras, tanto no mundo como no Brasil. O cinema brasileiro em termos de
gênero se dividia em dois, o cinema dramático e a comédia, inspirada no teatro de
revistas, que recebeu o nome de chanchada. Conforme explica Camila Delfino Silva
(2012), o estilo se definiu já na década de 1930 e incluía números musicais. Em geral
eram produções acanhadas, com baixos recursos técnicos e de orçamento. Em contraste,
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o cinema dramático seguia a tradição europeia, com roteiros traduzidos ou inspirados
nos europeus ou americanos. A Escola de Teatro Martins Pena foi criada em 1908,
no Rio de Janeiro, sendo a primeira escola de teatro da América Latina, mas como se
pode imaginar, o número de atores formados na escola não era suficiente para nutrir o
crescimento da profissão, que nos anos 1930 incluíram o rádio e o cinema. A maio parte
dos atores, diretores e outros profissionais não havia cursado essa escola, aprendiam
na prática. O Serviço Nacional de Teatro (SNT) foi criado no início do Estado Novo e
tinha como objetivo não apenas controlar essa forma de comunicação, sendo a censura
uma das características da Era Vargas, mas de desenvolver e promover o teatro como
um instrumento pedagógico, na formação cívica do brasileiro. Um dos primeiros
produtos do SNT foi a criação do Curso Prático de Teatro, em 1939, depois incorporado
à Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O cinema recrutou atores nos teatros e nos circos. Em 1935, Grande Otelo
estreou no cinema brasileiro enquanto ainda atuava no teatro. (SANTOS, 2016). Entre
1935 e 1950 atuou em trinta filmes, com papéis de destaque. Ao todo foram 138 filmes,
entre chanchadas e dramas, no teatro o número de peças é incerto, mas em seus 62 anos
de carreira pode-se afirmar que foram mais de uma centena. Artistas negros e negras
ganharam maior destaque a partir de 1940, com o crescimento do número de teatros
e companhias e com o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional. O
crescente número de artistas negros, músicos e esportistas que alcançavam visibilidade
e reconhecimento não era garantia contra o racismo.
Na edição de fevereiro de 1950, um artigo do Quilombo refere-se à discriminação
racial sofrida pelo diretor do Teatro Experimental do Negro, Abdias Nascimento, e seus
convidados: Ruth Cardoso, Claudiano Filho e Mariana Gonçalves, que foram barrados
à entrada do Hotel Glória, no Rio de Janeiro quando se realizava o “Baile dos Artistas”,
no carnaval de 1949, apesar de portarem convites. O incidente chegou aos ouvidos do
então Presidente Dutra, que por sua vez, pediu providências ao Ministério da Justiça. O
artigo, publicado às vésperas do carnaval de 1950, indicava que a denúncia tinha surtido
efeito e que Abdias Nascimento e Ruth Cardoso havia, naqueles dias, recebido convite
para “abrilhantar” o Baile dos Artistas (ROCHA, 2019).
Por volta do dia 10 de julho de 1950, Katherine Dunham, famosa bailarina
negra dos Estados Unidos que em turnê pelo Brasil, chegou à cidade de São Paulo para
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
se apresentar no Teatro Municipal. A artista era esperada, tendo passado pelo Rio de
Janeiro na semana anterior à sua vinda para a capital paulista. Entre 4 e 11 de julho, os
jornais davam notícias diárias, anunciando o espetáculo de balé de alta categoria que
estava por vir. Entretanto, ao chegar ao Esplanada Hotel, um dos mais importantes
da cidade, localizado nas imediações do Teatro Municipal, a bailarina teve sua reserva
cancelada e foi impedida de se hospedar ali, por ser negra.
O fato causou grande escândalo, mas só repercutiu nos jornais paulistas
depois que Abdias Nascimento, Roger Bastide, Cory Gomes de Amorim, diretor do
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Rossini Tavares de Lima, então
presidente do Centro Folclórico Mário de Andrade, entre outros, enviaram ao Jornal
da Noite um documento narrando o fato.
Na mesma edição, o jornal apresentou, na contracapa, outra manchete sobre o
incidente, sob o título: “Devemos encetar um movimento para cortar de vez os pruridos
do racismo no Brasil”. Nele, o jornalista negro Geraldo Campos de Oliveira declarava
não estar surpreendido pelo incidente, já que o que ganhava agora notoriedade porque
acontecia com uma celebridade internacional, acontecia todos os dias com brasileiros
negros, em hotéis, barbearias, boates e cassinos.
Menos de uma semana depois da notícia aparecer nos jornais, o escândalo
envolvendo Dunham voltou a ganhar destaque nas páginas do Jornal de Notícia em 19
de julho de 1951, informando que, em razão do ocorrido com a bailarina americana, o
Deputado Federal Afonso Arinos apresentara na Câmara um projeto de lei que tornava
a discriminação racial crime. A Lei, aprovada em julho de 1951, tornou o racismo uma
contravenção penal e passível de pena de prisão de três meses a um ano para infratores,
além de multa. (ROCHA, 2019).
Do Teatro, ao Cinema, à Televisãoe ao Mundo
A Escola de Arte Dramática foi criada na Universidade de São Paulo em 1948,
trazendo uma forte tradição europeia. Enquanto isso, a ampliação dos grupos de teatro
em igrejas, centros comunitários e escolas trouxe para os palcos as indagações de
outras classes, da classe média, muito interessada nas leituras comunistas, e da classe
trabalhadora, preocupada em sobreviver. A grande emigração de nordestinos, depois
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Elaine Pereira Rocha
da seca de 1932, levou artistas e intelectuais para centros urbanos como São Paulo e Rio
de Janeiro onde se somaram a outros imigrantes que influenciaram a produção literária,
que basicamente alimentava o teatro e o cinema, como Solano Trindade. Surgiram os
temas realistas e a crítica social séria, que antes era velada pelo humor, no Teatro de
Revistas. Naquele meio tão efervescente, os primeiros formandos da Escola de Arte
Dramática começaram a atuar já no início dos anos 1950, como foi o caso de José Renato
Pécora, fundador do Teatro de Arena.
Parte do processo de urbanização de São Paulo foi a construção de teatros
populares em regiões periféricas da cidade. Em 1952 foi inaugurado o teatro Arthur
Azevedo, na Mooca, reformados os teatros Colombo, no Brás, e o teatro São Paulo, na
rua da Glória. Nesses teatros, que eram propriedade do governo, as companhias não
pagavam aluguel para uso, barateando os ingressos para o público. A medida levantou
críticas sobre os gastos públicos, criando teatros localizados fora das zonas nobres, onde
– segundo os críticos – o público não estava habituado a ir ao teatro. (NEIVA, 2016).
O aumento do número de teatros e cinemas, além de aumentar as oportunidades
de trabalho para artistas e ampliar as opções de lazer para o público, criou outros
empregos diretos e indiretos. Milton Gonçalves, aos 21 anos de idade, trabalhava numa
gráfica que, entre outras coisas, imprimia ingressos para teatros.Um dos clientes era
Leonel Cogan que levou para imprimir uns ingressos para uma peça que seria no teatro
do Colégio Caetano de Campos, na Praça da República. Dias depois, Cogan retornava
à gráfica e conversou com Milton, querendo saber o que ele tinha achado. Diante do
entusiasmo do jovem, prometeu inclui-lo em futuras produções. Seu primeiro papel foi
um soldado de chocolate, num espetáculo para o público infantil. Mas, havia outra peça,
do mesmo clube de teatro, voltada para o público adulto, no qual ele foi convidado para
fazer o papel de um escravo. A peça era O Dote, de Artur de Azevedo.
E este espetáculo estreou num teatro que não existe mais, Teatro Colombo,
ali perto da chamada Estação do Norte, no Brás. E o Leonel Cogan fez uma
molecagem comigo. Ele convidou todo o bairro. Que eu, nessa época, já
morava na Ponte Grande, ali onde tem o Tietê, o Floresta e a Associação
Atlética São Paulo. E ele levou todo mundo, e eu maquiado para parecer
um preto velho... Olhem, eu acho que eu devo ter feito uma bobagem
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Elaine Pereira Rocha
muito grande, mas de qualquer maneira, a estreia pra mim foi auspiciosa.
Primeiro, porque eu não esqueci o texto, segundo por que o galã, aquele
que fazia lá o papel de mocinho esqueceu o texto e eu assoprei o texto pra
ele... E foi uma emoção muito grande, todo mundo bateu palmas.14
As oportunidades não pararam mais, Milton era chamado para atuar com
diferentes companhias de teatro, até porque as pessoas dessa área se conheciam. Sua voz
inconfundível e clara, e sua habilidade em decorar textos e atuar foram prontamente
reconhecidas por onde ele passava. Apesar dos convites, não havia pagamento
envolvido, e ele sabia que precisava continuar trabalhando na gráfica, ensaiando nas
noites e às vezes nos fins de semana. Por um tempo, foi trabalhar com Egydio Eccio, no
Teatro dos Comediantes. No grupo de Egydio, Milton aprendeu a fazer outras coisas
no teatro: iluminação, cenografia e contrarregra, ali também ele teve a oportunidade de
trabalhar com atores mais experientes. Um deles era Sérgio Rosa, um parente próximo
de Vianinha e, numa noite de espetáculo, Vianinha e Guarnieri estiveram no teatro
assistindo à peça, foi quando conheceram o ator Milton Gonçalves. Ainda que a questão
econômica pesasse, fazendo com que em épocas de muito trabalho Milton se afastasse
um pouco do teatro, a descoberta daquele novo mundo, de atores, diretores, cenários,
histórias o fascinava. Tudo era aprendizado.
Foi uma aventura maravilhosa!
Fiquei encantado com o palco. Eu ia ao cinema, mas jamais imaginei que o
teatro tivesse aquela força! Abrir a cortina e, de repente, você mergulhar
no espetáculo. Fui descobrir as vísceras do teatro! (VALENTINETTI,
2005, p. 22)
E foi o acaso que colocou nas suas mãos os ingressos para a sua primeira peça de
teatro, e a curiosidade que o colocou no palco, atuando para crianças e logo em seguida
para adultos. Em seu meio, aquele mundo era alienígena. Seus familiares levariam um
tempo para se dar conta do que era essa nova empreitada de um de seus membros. No
início a mãe e os irmãos não foram assistir Milton atuar, e só muito depois se deram
conta da importância de tudo aquilo. Aliás, Milton Gonçalves também levou um tempo
para entender que ser ator de teatro poderia ser a sua nova profissão.
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sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
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Em 1956, José Renato convidou dois jovens talentosos do Teatro Paulista do
Estudante para se incorporarem ao Teatro Arena com seu grupo. Ambos vinham da
experiência do teatro amador, mas traziam uma grande bagagem cultural, artística e
política: Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho. Logo depois vieram outros,
como Augusto Boal, recém-chegado de um curso de dramaturgia realizado nos Estados
Unidos, para onde fora com o intuito de tornar-se doutor em química, e Sérgio Rosa,
Vera Gertel e Mariuza. (BASBAWN, 2009). Com a proposta de formar uma grande
equipe, e entendendo o teatro como espaço também de formação, o novo Teatro Arena,
iniciou o recrutamento de novos integrantes entre os vários grupos de teatro amador
existentes na cidade de São Paulo.
Aí o Sérgio Rosa me procurou na gráfica, onde eu continuava, e disse: “Olha, tem um diretor novo que vai fazer um espetáculo chamado Ratos
e Homens, ele é recém-chegado dos Estados Unidos, vai ser o Teatro de
Arena, e ele abriu testes para fazer vários personagens.” O diretor era
Augusto Boal. “- Eu fui lá, já tenho um personagem, você não quer ir lá? Eu
falei que tinha um ator negro que podia fazer o personagem de Crooks…” E
eu respondi:“- Claro que quero!” (VALENTINETI, 2005, P.23-4).
Parte da proposta do Teatro de Arena, era tornar-se um centro de educação,
promovendo estudos e debates sobre técnicas de dramaturgia, literatura, sociedade
e política, tendo o espaço do teatro como local da educação. Além disso, dentro do
grupo, membros desempenhavam funções diversas, combinando apoio técnico, como
iluminação, cenário, manutenção, com outras funções mais artísticas como a escrita
de textos, direção e atuação.O Arena era uma escola prática de teatro no sentido mais
literal. Além dos laboratórios de interpretação, Alfredo Boal – logo no início – ofereceu
aos atores um curso teórico, aberto a outros grupos, que incluía dramaturgia e análise
de peças teatrais. (MORAES, 1991).
Sem dúvida, o maior sucesso do Teatro de Arena foi a peça Eles não Usam Black
Tie, em 1958. A este, seguiram-se outros grandes sucessos de bilheteria e de crítica. O
grupo se dividia entre funções e em elencos que atuavam em diferentes lugares nos
mesmos dias. Milton Gonçalves decidiu então largar o trabalho na gráfica e se dedicar
à profissão de ator.
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Elaine Pereira Rocha
Em 1958, com um convite para participar do elenco do filme O Grande Momento,
de Roberto Santos, Milton Gonçalves estreou no cinema. Roberto Santos também era
do Partido Comunista, amigo de Guarnieri, e frequentava os seminários do Teatro de
Arena. Quando estava compondo o elenco para seu filme, era natural que buscasse ali
os atores necessários. Mesmo envolvido com tudo que tivesse relação com o Teatro de
Arena, Milton não desperdiçou a chance ao ser chamado por Roberto de Farias para fazer
no cinema o filme Cidade Ameaçada, lançado em 1960. Trata-se de um drama policial
ambientado na cidade de São Paulo. Trazia no elenco, além de Milton Gonçalves, Jardel
Filho, Eva Vilma, Dionísio Azevedo, Reginaldo Faria (irmão do diretor), Ambrósio
Fregolente, Douglas de Oliveira e Eduardo Abbas. O filme foi indicado para a Palma de
Ouro no Festival de Cannes, e rendeu o prêmio SACI de melhor atriz para Eva Vilma.
(VALENTINETI, 2005).
A carreira no Teatro de Arena continuou a ser o centro da vida profissional de
Milton. Tanto que não hesitou em transferir-se para Rio de Janeiro, acompanhando
o grupo liderado por Vianinha, quando houve a cisão do ARENA em 1962. E foi no
Rio de Janeiro que a situação ficou muito complicada, com o Golpe Militar de 1964. A
Ditadura fechou os teatros, e passou a censurar duramente a cultura brasileira. Também
suspendeu os subsídios para a cultura. Além disso, muitos autores e pessoas ligadas às
artes dramáticas foram perseguidas e tiveram que sumir por um tempo. Segundo Milton
Gonçalves, foi terrível, não havia trabalho, não havia dinheiro e não havia nenhuma
perspectiva de que as coisas iriam melhorar a curto prazo. Sua larga experiência no
Arena, porém, fazia de Milton um excelente profissional, somado ao seu talento como
ator, isso o fazia um profissional muito cogitado. Por isso, em meio à grande crise, ele
foi convidado para atuar em dois filmes: História de um Crápula e Procura-se uma Rosa,
de Jesse Valadão. (VALENTINETI, 2005). Aparentemente, um trabalho trazia outro,
ainda que houvesse intervalos entre os projetos.
Eu estava assim, perdido, até que apareceram os irmãos José Renato dos
Santos Pereira e José Geraldo dos Santos Pereira, que iam fazer um filme,
no interior de Minas Gerais e me convidaram. O filme era Grande Sertão,
inspirado no romance Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa.15
467
sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
Aquele convite, aparentemente salvou Milton Gonçalves, não apenas da crise financeira
em que vivia, mas da própria repressão, que assombrava os ex-membros do Teatro
Arena, conhecido por seu direcionamento político em proximidade com o Partido
Comunista. Para gravar o filme, Milton ficou em Minas Gerais por vários meses, mas
o projeto acabou não sendo concretizado. Lá em Minas ele encontrou Otávio Graça
Melo, que também participou do filme. Foi ele quem contou a Milton sobre essa nova
emissora de televisão que estavam montando.
Ele me perguntou: “- O que você vai fazer quando terminar aqui?” Eu
disse: “- Eu não sei, volto pro Rio, porque pra São Paulo eu não volto de
jeito nenhum.” Então ele me disse para eu procurá-lo no Rio, porque ele
estava montando o elenco para uma nova emissora de televisão que iria ser
inaugurada. Era a Globo.16
Consagração e Estrelato
Milton Gonçalves foi o primeiro ator contratado pela Rede Globo de Televisão,
onde atuou como ator e diretor em novelas, teledramas e programas de humor por
mais de 50 anos, até 2020. A carreira de sucesso na televisão não o afastou do cinema,
seu primeiro amor como ator. Ao todo foram 67 filmes, aproximadamente 50 peças de
teatro e centenas de trabalhos na televisão, que lhe renderam 14 prêmios.
A consagração como ator no cinema veio em 1974, com o filme A Rainha Diaba,
que rendeu a Milton Gonçalves quatro prêmios como melhor ator: Coruja de Ouro,
Air France, Candango e Prêmio Governador do Estado de São Paulo. A proposta de
representar um travesti no cinema brasileiro era nova e muito ousada, uma época em
que havia um grande preconceito contra o homossexualismo. Depois de consultar a
família, Milton procurou se informar, buscar material, estudar os trejeitos, chegou a
falar com psicólogos e passou a observar os travestis da cidade, para entender um pouco
mais sobre a homossexualidade.
Naquele projeto, toda a disciplina e técnicas de interpretação aprendidas no
Teatro de Arena e desenvolvidas desde então renderam ao ator a capacidade de criar
e viver um personagem que era completamente fora de sua zona de conforto, de sua
experiência. Milton explicou que para um ator, interpretar uma mulher ou interpretar
468
sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
um homossexual num esquete de comédia é algo comum. Mas aquele papel exigia que
ele interpretasse um homossexual masculino que se travestia, vivendo num ambiente
hostil, na marginalidade da Lapa carioca. Tinha que ter os trejeitos sem ser uma
caricatura, mantendo a tensão dramática da estória. (ROCHA, 2019)
Me lembro quando, em 75, no Cine-Palácio, aqui na cidade, o Hugo Carvana,
que havia ganhado no ano anterior, anunciava os prêmios. Eu sentado na
plateia com a minha mulher e meu filho […] Aí o Carvana, de cima, olhou
para mim – ele era o mestre de cerimônias – logo depois a Teresa Rachel
anunciou “Melhor Ator do Ano…”, o Carvana me olhou de novo, os meus
olhos se encheram de lágrimas, os olhos da minha mulher se encheram de
lágrimas. “Melhor Ator do Ano: Milton Gonçalves, por ‘Rainha Diaba’…” O
cinema veio abaixo, o cinema veio abaixo! (VALENTINETTI, 2005, p.68).
A história de Milton Gonçalves poderia ser simplesmente a biografia de um
ator brasileiro, seu fascínio pelo cinema enquanto criança e sua carreira como jovem
ator, do teatro ao cinema e televisão. Porém, ser negro no Brasil ainda significa ter de
enfrentar obstáculos e limitações específicas, que são impostas por vestígios de uma
cultura racializada que teima em nãomorrer. Ao engajar-se na carreira de ator, Milton,
como outros afro-brasileiros, não aceitou o “lugar do negro”, que a sociedade havia
demarcado no pós-abolição. Sua luta como ator está entrelaçada com sua luta contra o
racismo.
469
sonhar nas sombras, alcançar o estrelato
Elaine Pereira Rocha
Notas
1 Milton Gonçalves, entrevistado por Elaine Rocha em Junho de 2011.
2 Os Pretos em São Paulo. O Kosmos, São Paulo, 19 de outubro de 1924, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/844896/69 Acesso em: 18 agosto 2023.
3 Idem.
4 De que necessitamos. O Clarim da Alvorada, 22 de junho de 1924, p. 1. Disponível em: http://biton.
uspnet.usp.br/imprensanegra/index.php/o-clarim-da-alvorada/o-clarim-da-alvorada-22061924/
Acesso em: 17 agosto 2016.
5 Milton Gonçalves, entrevistado por Elaine Rocha em Junho de 2011.
6 Idem.
7 A Voz da Raça. São Paulo, 6 de maio de 1933, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/
docreader.aspx?bib=845027&pasta=ano%20193&pesq Acesso em: 16 Agosto 2023.
8 Milton Gonçalves, entrevistado por Elaine Rocha em Junho de 2011.
9 SESC TV, Sala de Cinema: Milton Gonçalves. Entrevista. Publicada em 08 de agosto de 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=egCKBUMa100 Acesso em 18 de setembro de 2018.
10 Milton Gonçalves, entrevistado por Elaine Rocha em Junho de 2011.
11 Idem.
12 Theatros - Communicado Especial. O Malho, 13 de fevereiro 1926, p. 13.
13 Theatros - Depois do Carnaval. O Malho, 20 de fevereiro 1926, p. 40.
14 Milton Gonçalves, entrevistado por Elaine Rocha em Junho de 2011.
15 Idem.
16 Idem.
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472
A Presença Negra na Amazônia:
história, lutas e resistência
Maria Aparecida Costa Oliveira1
Gisely Storch do Nascimento2
Fábio Santos de Andrade3
Celso Luiz Prudente4
Ao longo da história do Brasil, região amazônica atraiu milhares de exploradores
levados pelas lendas sobre a abundância de riquezas minerais, o verdadeiro “Eldorado”,
onde seria possível encontrar tesouros grandiosos. Com esse intuito, muitas expedições
1 Doutoranda em Educação Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Mestre em Educação Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Graduada em Pedagogia. Supervisora
Pedagógica no Instituto Federal de Rondônia (IFRO), Campus Colorado do Oeste/ RO.
2 Doutoranda em Educação Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Mestre em Educação Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Professora no Instituto Federal de Rondônia (IFRO), Campus Colorado do Oeste/ RO. Graduada em Letras.
3 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Pós-doutor em Educação
pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Professor Associado da Universidade Federal
de Rondônia (UNIR), atuando no Departamento Acadêmico de Ciências da Educação (DACED/Vilhena) e no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Mestrado e Doutorado Profissional
(PPGEEProf).
4 Livre-Docente em Cultura Afro-brasileira e Indígena, Cinema e Hermenêutica pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP). Doutor em Cultura pela Universidade de São Paulo
(FEUSP). Pós-Doutor em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP). Professor Associado da Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT. Professor colaborador no Programa de
Pós-Graduação em Educação Escolar, Mestrado e Doutorado Profissional (PPGEEProf).
473
a presença negra
Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente
foram organizadas e transitaram explorando a região, tendo como marco o século XVIII
quando os portugueses exerceram verdadeiro domínio exploratório, intensificando o
comércio e tendo como centro de importação e exportação a cidade de Belém, no Pará.
Salles (1971), destaca que existia uma grande curiosidade portuguesa pela Amazônia e,
certamente, essa curiosidade visava o encontro do Eldorado. Para Stori (2022, p. 52),
“O Eldorado enraizou-se de tal forma na mentalidade europeia que chegou a figurar na
cartografia da América do Sul como um espaço real, ainda que não descoberto.”
Foi justamente a busca pelo Eldorado que fez com que o tráfico de africanos
escravizados se estabelecesse na região amazônica. Dessa forma, podemos considerar
que a história das comunidades negras da Amazônia nasce nos campos africanos, onde
crianças, jovens e adultos foram retirados(as) de seus lugares e inseridos(as) em um
ambiente desconhecido, onde foram explorados(as) e submetidos(as) a vários os tipos
de violência.
Sampaio (2011), assegura que a utilização de mão de obra negra escravizada
na região amazônica foi intensificada a partir da segunda metade do século XVIII, onde
se verificou um aumento importante no número de trabalhadores introduzidos na
região para atender aos interesses exploratórios da Coroa Portuguesa, conduzidos pelo
Marquês de Pombal e tendo suas medidas vinculadas à Companhia Geral de Comércio
do Grão-Pará e Maranhão.
Outro fator impulsionador que provoca a ocupação da região no outro extremo
amazônico banhado pelo rio Guaporé, na divisa com a Bolívia, foi o esgotamento das
riquezas na região de Cuiabá como nos apontam Andrade, Pereira e Andrade (2021, p.
212)
A presença de populações branca e negra em um território historicamente
indígena (Amazônia - Brasil e Bolívia) está ligada à migração para as
margens do rio Guaporé, no século XVIII, tendo em vista a descoberta de
riquezas minerais que passariam a substituir as minas esgotadas da região
de Cuiabá.
Nesse período de intensificação da inserção do povo negro na região amazônica
destaca-se a figura do Padre Antônio Vieira, cujos os pensamentos, como destaca Salles
(1971), visavam a introdução de negros(as) escravizados(as) trazidos(as) de Angola.
474
a presença negra
Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente
Com isso, decretara-se a proibição da escravização dos indígenas, pois o objetivo de
alguns membros da base católica era o desenvolvimento das missões e a entrega das
aldeias aos padres da Companhia de Jesus. Antônio Vieira argumentava que os indígenas
eram uma raça nativa fraca e só pela segregação poderiam servir, como a experiência
havia demonstrado, e os negros já vinham sendo escravizados em todos os tempos,
desde as relações que estabeleciam entre os povos nas terras da África. Às justificativas
apresentadas somaram-se às de que o povo negro, que também já era escravizado em
outras regiões do Brasil, era mais resistente às doenças da época.
Na mesma trilha, Eltermann (2020), afirma que durante o século XIX os
médicos procuraram entender como as moléstias se manifestavam nos diferentes tipos
raciais, buscando assim explicar como as diferenças entre as raças, sendo elas físicas,
psíquicas ou mesmo habituais, permitiam diferentes predisposições às doenças. Eram
diversos os estudos, relacionados às doenças e às raças, desenvolvidos por médicos na
sociedade brasileira a partir da década de 1840.
Eltermann (2020), aponta ainda que pesquisadores brasileiros procuraram
relacionar a febre amarela com a escravização. Na visão deles, os negros e negras
seriam responsáveis pela transmissão da doença e não contraíam sua forma grave,
diferentemente dos imigrantes europeus, dentre os quais a doença se alastrava com
facilidade. A explicação estaria em uma maior resistência imunológica dos africanos,
devido a uma experiência realizada com a doença no continente africano. Esses
argumentos se propagaram pela região amazônica tornando a escravização do povo
negro um mecanismo lucrativo para a exploração e a escravização indígena não se
apresentava mais tão atrativa. Assim, a inserção do homem e da mulher negra na região
amazônica foi acontecendo gradualmente e à medida que o sistema de exploração os
incorporava.
Com a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão
em meados de 1755, a vinda dos africanos para a Amazônia se intensificou,
devido ao estabelecimento da política pombalina instaurada na época, que
fomentou as atividades agrícolas comerciais. Com o trabalho indígena
sendo diminuído gradativamente, a mão de obra negra escravizada foi
aumentada, posto que foram dados subsídios pela isenção de impostos
sobre o comércio de africanos. (Peres, 2017, p. 84).
475
a presença negra
Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente
A inserção compulsória do povo negro por meio da política pombalina de
isenção de impostos causou transformações significativas no panorama amazônico. Ao
atender às finalidades da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, a
política proporcionou um aumento expressivo no número de negras e negros africanos
escravizados(as) na região. Contudo, com o aumento significativo da presença da mão
de obra negra escravizada, o medo de rebeliões, como já acontecia em outras partes do
Brasil, passou a assombrar os colonizadores.
Para Gomes (2017), muitas obras do século XIX se limitam em registrar uma
presença reduzida de negros(as) escravizados(as) na região amazônica. Relatórios da
Província apresentam que no ano de 1856 haviam 913 (novecentos e treze) negros(as)
na região do Amazonas, distribuídos na capital e nos municípios de Barcelos, Silves,
Vila Bela e Maués. No ano de 1884, há registros de um total de 1501 (mil quinhentos
e um) negros(as) escravizados(as) distribuídos(as) entre os municípios de Manaus,
Manicoré, Itacoatiara, Tefé, Maués, Borba, Silves, Parintins e Barcelos.
Já Salles (1971), aponta que nos 22 (vinte e dois) anos de existência, a Companhia
Geral de Comércio introduziu, apenas no Pará, 12.587 (doze mil, quinhentos e oitenta
e sete) negros e negras que foram escravizados. Entretanto, estima-se que esse número
tenha ultrapassado 14 mil.
Percebe-se a grande quantidade de negros escravizados no Amazonas no
século XIX, embora tenha persistido uma interpretação de que o número
de africanos impactou modestamente a economia regional a “presença
negra” e a “história da escravidão” no território amazônico foram negadas
por um longo período. [...] No entanto, a contribuição do negro em
relação a sua cultura, mesmo que matizada e misturada pela relação com
os indígenas e com os colonos oriundos de Portugal, além dos migrantes
de outras partes, constituem em seu conjunto a memória da Amazônia.
(Gomes, 2017, p. 23, 24).
A presença marcante de negros e negras na Amazônia impactaram a cultura
local. Resistiram, sobreviveram e fizeram da região sua casa, espalhando saberes e culturas;
se reinventaram construindo uma grande riqueza cultural que permeia a sociedade
amazônica contemporânea. A contribuição histórica e cultural dos(as) africanos(as) e
dos(as) afrodescendentes para a formação da região amazônica é inquestionável.
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a presença negra
Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente
Lutas e resistência negra na região amazônica
A história de colonização da Amazônia está intrínseca ao processo de
colonização da sociedade Brasileira, sendo marcada por momentos de grandes conflitos,
exploração, discriminação, racismo e preconceito. O povo negro na região amazônica
aprendeu a reconhecer o espaço com se o fosse seu e logo já o dominava melhor do
que os escravizadores. Nesse contexto, acentua-se a frequência nos registros de lutas
contra os seus exploradores, a recusa em desenvolver as atividades impostas e as fugas
e revoltas.
Funes (2012), aponta que, em pouco tempo, os negros e negras circulavam por
propriedades vizinhas e conheciam toda a região amazônica, pois eram frequentes os
casos em que eles(as), a mando de seus senhores, deslocavam-se em longas distâncias,
circulando pelos rios, lagos e igarapés. Era comum vê-los(as) desenvolvendo atividades
de pesca ou conduzindo embarcações pelos rios. Contudo, o fato de serem vistos
desenvolvendo trabalhos sem o controle direto do escravizador não significava a
existência de liberdade, eram momentos de autonomia aos poucos conquistados. Para
Funes (2012), nesse período o povo negro conseguiu espaço para negociar e manifestase como agente histórico, mesmo dentro do sistema de escravização.
Cabe também destacar que muitos negros e negras fugiram das propriedades,
de seus “senhores”, aproveitando da complexidade geográfica da região, das longas
distâncias a serem percorridas no trabalho e dos rios que constituíam caminhos naturais.
Os destinos mais comuns eram os centros urbanos ou o refúgio nas matas. Após a fuga,
tentavam se misturar às camadas populares, mudavam de nome ou juntavam-se a
quilombos já existentes. Funes (2012) aponta que homens e mulheres negras em fuga
circulavam ao longo dos rios, em especial pelo Amazonas, deslocando-se com certa
facilidade pois já conheciam muito bem a região, entre o Baixo Amazonas e Manaus e
vice-versa.
[...] Nesse sentido, havia a possibilidade de grande mobilidade espacial para
os cativos em fuga, que procuravam passar por libertos, misturando-se
às camadas populares um tanto matizadas, onde um mulato podia passar
por um tapuia, um curiboca, por um cafuzo. Assim, a qualidade da cor se
diluía, quebrando um elemento a mais de identidade do escravo fujão, já que
477
a presença negra
Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente
costumava também trocar de nome. Outra saída encontrada pelo escravo
em fuga era valer-se de instrumentos legais que garantissem a ex-cativos
o status de livre, e a partir daí encontrar mecanismos para preservar a
condição de liberto. (Funes, 2012, 194).
Com essa constante busca pela liberdade e a vasta possibilidade de fuga, a
formação de quilombos se tornou uma importante alternativa também na região
Amazônica. Era a possibilidade de constituir espaços livres, onde planejavam e lutavam
para garantir a sobrevivência, almejando a liberdade para organização política, social e
econômica. Perez (2017, p. 86), destaca que,
Os quilombos amazônicos se organizaram a partir de especificidades
territoriais e com “estruturas sociais particulares”, e nessa experiência
coletiva desenvolveram saberes e práticas educativas, à medida que foram
se constituindo, reafirmando, assim, uma trajetória ativa de resistência em
manter vivos seus modos de ser, pensar e educar.
A formação de quilombos representou um momento histórico que não se
limitava apenas a abrigar escravizados africanos que fugiam e lutavam pela liberdade,
mas, uniu-se à mesma luta dos indígenas, fugitivos da justiça e com apoio de pessoas
contrárias à opressão. Com isso, os quilombos desenvolveram um código moral e
de justiça bastante peculiar, se espalharam pela Amazônia, ocupando normalmente
lugares estratégicos e de difícil acesso, o que se tornou um fator determinante para a
sobrevivência coletiva.
Peres (2017), aponta a existência de conflitos de terras que perdura até os dias
atuais na região do Marajó, onde as comunidades remanescentes de quilombos resistem
bravamente para não serem esmagadas pelo agronegócio, e permanecem lutando para
legitimar seus direitos como donos das terras, pois, essas terras já haviam sido ocupadas
no passado por seus ancestrais que foram escravizados. De acordo com Leite (2010, p.31),
As intensas mobilizações quilombolas e a lentidão dos processos de titulação
das terras instauram um estado de incerteza sobre essa nova ordem. Os
passos percorridos de tramitação dos processos se rendem e se submetem
à cultura cartorial, que foi montada pelos donatários para atender a seus
478
a presença negra
Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente
interesses. O percurso é incerto, é definido não somente pela legislação,
mas pelo jogo de forças e poderes há muito solidamente institucionalizados.
Não há nenhuma garantia de que os atuais procedimentos administrativos
consigam transpor as armadilhas instituídas pela máquina cartorial em seus
tramites “regulares”.
Lopes, Medeiros e Soares (2015) chamam a atenção refletindo sobre o
número expressivo de quilombos constituídos na Amazônia. Em 2005, no Pará, por
exemplo, foram identificados 293 (duzentos e noventa e três) áreas quilombolas. Na
Amazônia Legal existem atualmente 148 quilombos titulados pelo Instituto Nacional da
Colonização e Reforma Agrária (Incra), abrigando 11.754 mil famílias. Além disso, há
144 processos de regularização de territórios quilombolas abertos. (Brasil, 2023).
Assim, para Lopes, Medeiros e Soares (2015), a proporção numerosa de
quilombos na Amazônia enfatiza que ocorreram modos diferenciados de formação
dessas comunidades. A resistência e a fuga marcaram a constituição de quilombos no
país, mas, também existiu uma variedade na formação dos agrupamentos relacionados a
doações, compras, heranças e até ao abandono da terra por parte dos “senhores” devido
às crises econômicas. No entanto, comprovar, todas essas práticas têm sido um grande
desafio para as comunidades remanescentes, considerando a inexistência de documentos
e os avanços da pressão sobre as terras.
A auto-identificação, critério determinante para a legalização da posse
da terra, já expressou a segregação social, espacial e racial no Brasil. Hoje
é bandeira de luta e ressignifica o que representa ser um quilombo na
atualidade. A invisibilidade dos quilombos, tão estratégica em princípio,
deixou de ser o parâmetro dessas comunidades que passaram a reclamar
seus direitos ancestrais e a demarcar suas territorialidades no território
amazônico. O que se percebe atualmente é a intensificação das lutas
pelo direito territorial e o renascimento dos debates que contemplam a
diversidade de modos de vida das populações tradicionais e, em particular,
das populações quilombolas. (Lopes; Medeiros; Soares, 2015, p. 1.283).
Em julho de 2023 completou 135 (cento e trinta e cinco) anos em que foi
abolida a escravização no Brasil. A libertação dos(as) escravizados(as) aconteceu depois
479
a presença negra
Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente
de muita luta e resistência. A presença negra no Brasil marca-se também às margens dos
rios do baixo Amazonas, onde a resistência e a luta permanecem.
Os desafios da resistência negra na Amazônia frente à expansão do agronegócio
Pesquisar e estudar sobre as matrizes africanas na Amazônia é estudar os
componentes étnicos da população, considerando que a miscigenação se estruturou na
região e com isso os modos de vida apresentados pelos afrodescendentes refletem na
relação estabelecida entre a sobrevivência dos grupos, definindo assim, a região como
um território étnico que evidencia a resistência e luta pela terra.
Na outra margem da história agraria do Brasil, o agronegócio tem se expandido
de forma significativa e, atualmente, segundo dados do Centro de Estudos Avançados
em Economia Aplicada (CEPEA) em parceria com a Confederação da Agricultura e
Pecuária do Brasil (CNA), corresponde a 24,8% do Produto Interno Bruto Brasileiro
(PIB), (PIB do agronegócio Brasileiro, 2023). Contudo, dados apontam que a expansão
do agronegócio tem ocorrido de forma desenfreada, avançando sobre as terras dos
pequenos produtores, gerando uma série de problemas de ordem ambiental.
Neste cenário, as comunidades tradicionais, que desenvolveram uma
profunda interdependência com a natureza em seus modos de vida, como é o caso dos
quilombos, se veem novamente em posição de resistência, pressionadas pela expansão
do agronegócio, sob o pano de fundo de grande produtor de riquezas ao país. Em
contraponto, os quilombolas situam-se na defesa da terra como espaço de memória,
saberes, cultura e modos de vida.
Arruda, Silva e Nora (2023), apontam que na atualidade a floresta amazônica
destaca-se como um dos maiores patrimônios naturais do território brasileiro em avanço
no processo de degradação, relacionados à agropecuária, extrativismo e à biopirataria.
Causando também a perda de propriedades pelas comunidades tradicionais devido ao
avanço do agronegócio.
A resistência em terras da Amazônica é marcada pelos povos tradicionais
que lutaram e lutam contra a exploração de suas riquezas. Arruda, Silva e Nora (2023),
descrevem que,
Historicamente, sabe-se que a floresta amazônica possui grande importância
como área de exploração das conhecidas drogas do sertão, especiarias
480
a presença negra
Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente
retiradas da floresta e comercializadas. Em meados do século XIX, o ciclo da
borracha impulsionou o deslocamento migratório para a região; no século
XX, acompanhando o período de desenvolvimento país, passando por
grandes governantes como Getúlio Vargas, que possibilitou a implantação
das indústrias de base, concentrando-se na Região Centro-Sul e Juscelino
Kubitscheck, que em seu mandado garantiu a integração nacional, através
de seus planos e metas “cinquenta anos em cinco”. Desde então é observado
um crescente desenvolvimento da região amazônica.
Contudo, recentemente, a expansão da fronteira agrícola tem sido o fator de
grande impacto, seja aos pequenos produtores, seja às comunidades tradicionais, o que
traz severos impactos ambientais e sociais às comunidades tradicionais, como indígenas,
ribeirinhos e quilombolas que dependem dos recursos naturais preservados para darem
continuidade às suas tradições e subsistência, bem como preservar a memória histórica
de seu povo.
Todavia, é comum que a Amazônia seja analisada pela sua biodiversidade,
suas comunidades tradicionais formadas por indígenas, ribeirinhos, seringueiros,
castanheiros, pescadores, camponeses, contudo, pouco se fala da presença de africana
na região identificada pelos quilombos. A despeito desse tema Funes (1995, p. 10)
destaca que
[...] por muito tempo houve a idéia de a Amazônia ser marcada como uma
região de cultura indígena, isso fez com que a escravidão e a cultura africana
fossem colocadas num segundo plano, dessa forma, durante muito tempo
esse tema constituiu-se num verdadeiro vazio na historiografia regional.
É apenas a partir da década de trinta do século passado que começaram a
surgir os primeiros estudos sobre a presença africana na região Amazônica.
Descortinar a presença africana na região Amazônica é reconhecer o processo
histórico de homens e mulheres que outrora foram vítimas do olhar do colonizador
sobre o outro, vítimas de um processo de desumanização e exterritorial, é reconhecer
a dívida histórica que a sociedade tem com os africanos escravizados, bem como,
reconhecer e valorizar sua valorosa contribuição para formação cultural do país. Assim,
falar de quilombos e quilombolas é valorizar o seu legado e o seu direito constitucional
481
a presença negra
Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente
às terras que outrora, por uma questão de sobrevivência permaneceram invisíveis,
hoje, pelas mesmas razões, precisam reclamar e clamar pelos seus direitos. Sobre isso
Leite (2000, p. 335), destaca que, o quilombo significa, para esta parcela da sociedade
brasileira, sobretudo um direito a ser reconhecido e não propriamente apenas um
passado a ser rememorado.
Referências
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483
Educação e cidadania: sobre acolhimento e
respeito em ações afirmativas
1
João Carlos Salles
Professor do Departamento de Filosofia FFCH-UFBA
1. Devemos sempre renovar nosso compromisso com uma sociedade democrática.
Passada a mais inclemente tormenta, sendo possível agora um diálogo com o governo
federal, importa refletir econtinuar a defender os valores universitários mais essenciais
e permanentes. Afinal, outro mundo é possível, mas nenhum valerá a pena em nosso
país sem uma universidade pública e inclusiva, capaz de realizar, de norte a sul, ensino,
pesquisa e extensão de qualidade.
Estivemos juntos e misturados no combate aos desmandos vários de um governo
tirano. Não fomos cúmplices dos absurdos que o obscurantismo mais completo nos
quis impor. Agora, após uma vitória tão significativa, não podemos ser cúmplices
de nenhum rebaixamento de nossos sonhos. Qualquer o governo, nossa medida é o
bem comum – uma luta, pois,constante e de longa duração, que nos leva a resistir na
tormenta e na calmaria contra toda e qualquer limitação de nossos sonhos deveras
utópicos.
Nada deve arrefecer, por exemplo, nossa defesa da universidade como espaço
1Aula inaugural do semestre 2023.1 da Universidade Federal do Pampa. Agradeço o honroso convite do
amigo e reitor da UNIPAMPA, Roberlaine Ribeiro Jorge, que tem travado conosco o bom combate em
defesa dos melhores valores da universidade pública.
484
educação e cidadania
João Carlos Salles
autônomo. Chova ou faça sol, é nosso dever, por exemplo:
(a) Combater a separação entre excelência acadêmica e compromisso social, uma
vez que afirmar apenas o compromisso social ou apenas a excelência acadêmica, como
dimensões separadas, é diminuir o brilho de nossa gente, que pode e deve iluminar com
seu talento o espaço específico da vida acadêmica, produzindo ciência, cultura e arte;
(b) Combater a separação entre ciência básica e ciência aplicada, que se
amesquinha inclusive na separação entre os interesses da ciência, da tecnologia e da
inovação, por um lado, e os dilemas das humanidades.
(c) Reafirmar, por outro lado, a ligação entre todos os níveis de ensino – contra,
portanto, a oposição (enviesada e perigosa) entre educação básica e educação superior
(d) Afirmar a universidade como parte de um projeto de nação e, portanto, como
um projeto que nos coloca a todos em linha de conta, tendo todas as nossas instituições
padrões de qualidade comensuráveis.
Sim, no ambiente da universidade pública e contra interesses privatizantes, cabe
insistir, nossa luta é sem trégua. Mesmo neste momento de clareira, de abertura, após
tenebrosa noite, muitos são os riscos. Assim, precisamos estar preparados para o conflito
(como sempre estivemos), mas também para a sutileza, como nunca podemos deixar de
estar. Escapamos do escabroso, do abjeto. Pulamos a fogueira e, todavia, caímos no
Brasil, no Brasil ele mesmo, digamos assim, com suas ambiguidades e sutilezas, com
suas melhores esperanças e suas violências as mais ordinárias.
Deixado a si mesmo, nosso país é assustador: excludente, autoritário, mal letrado
– e isso é assim, que fique claro, em todo o Brasil, retrógrado tanto no Sul quanto no
Nordeste, embora de maneira diversa e aparentemente oposta. Pensando no contexto
da política e da cultura institucionais, é obviamente conservador e pode ser também
retrógrado o cenário em que podemos operar, ao falarmos de conhecimento, de
igualdade, de combate a preconceitos. Continuamos, pois, a viver a paradoxal situação
de uma cultura rica, em diversas dimensões e por toda parte, mas situada em um espaço
público primitivo, tosco, de sorte que a experiência da vida pública em nosso país tem
amarras concretas, tanto simbólicas quanto práticas.
Desse modo, a abertura de um semestre letivo, sempre carregada de esperanças,
émais que oportuna para refletirmos sobre os laços internos entre educação e cidadania.
Farei isso, então, de duas maneiras. A primeira, bastante breve, em considerações gerais
485
educação e cidadania
João Carlos Salles
sobre a relação entre essas duas dimensões. Em segundo lugar, discutirei a importância do
aprofundamento das ações afirmativas, que as traduzem, refletindo sobre uma possível
ambiguidade que pode afetar e pôr em risco o significado mais profundo de nossas
políticas de inclusão, que não podem se afastar do duplo desígnio de enriquecimento do
processo educacional e de aprofundamento da cidadania.
2. O pensamento liberal clássico costuma ver a educação como condição de cidadania.
Concede inclusive que esta talvez seja a única obrigação a ser arcada pelo Estado, que
deveria custear a educação básica, como se o Estado firmasse então um compromisso
com o cidadão futuro. Daria a esse futuro cidadão as condições de exercer seus direitos
de escolha nos limites de uma democracia formal e representativa.
Não recusemos a importância dessa ideia. Todavia, ela é insuficiente e mesmo
perigosa em sua insuficiência. Por meio dela, cidadãos abstratos se formam para
exercer um poder de escolha, reconhecendo sua unidade na matemática do voto ou
na celebração de um título acadêmico. O indivíduo, tomado no abstrato e em função
do seu futuro exercício de cidadania, teria compromisso apenas com a defesa de seus
valores já familiares e interesses individuais. E a educação, supondo um laço comum
entre idênticos, poderia assumir a mera tarefa de reproduzir distorções e sublimar
exclusões, e não a tarefa de reinventar a ligação entre os contratantes do pacto social.
Importa-nos afirmar o outro lado da equação, ou seja, pensar a cidadania como
condição da educação. O cidadão, tomado agora não como um ente abstrato cuja
formação tão só permitiria uma participação mais esclarecida em um debate eleitoral,
tem agora concretude, cor, história, gênero, idade, classe, raça. Sua vida pública não se
limita a uma participação eleitoral anódina, mas carrega, também em palavras, também
em sua formação, as marcas de sua instalação social, de modo que a educação, assim
pensada, não mais deve encobrir diferenças nem sublimar exclusões.
Por isso mesmo, é mais que oportuno pensar as tarefas da educação e as tarefas
da cidadania, lembrando que a produção de uma unidade cívica, caso esconda uma
diversidade social perversa, é mera dominação; e a produção de uma unidade pela
educação, caso apague uma diversidade cultural rica, é mera catequese, adestramento.
Pensar, em conformidade com uma nova matriz, a conjunção entre educação e
cidadania, é restabelecer um solo utópico para um projeto de nação, no qual a universidade
486
educação e cidadania
João Carlos Salles
pública, por exemplo, não se restrinja à função instrumental de formação técnica para
o mercado. Ao contrário, ao associarmos os dois termos, estamos também ligando o
presente ao passado, a parte ao todo, o interesse eventual do poder aos desígnios mais
elevados da liberdade. E recolocamos, enfim, para nossas escolas e faculdades, a tarefa
especial de constituição de um espaço de iniciação à vida comum, no qual o processo
de formação de pessoas e o processo de produção do conhecimento guardam analogia
profunda com a produção democrática da sociabilidade.
Sigamos, pois, à luzdo espírito de uma conjunção estreita entre educação e
cidadania, para o segundo e bem mais extenso momento de nossa reflexão, cujo tema
mais específico é o significado e a importância das ações afirmativas no solo de uma
sociedade como a nossa, marcadamente excludente e autoritária.
3. A conjugação entre um acolhimento compassivo e um autêntico respeito comporta
imenso desafio teórico e, sobretudo, político.2 Não por acaso, pode parecer mesmo
contraditória, como se ocultasse um oxímoro e uma armadilha a ligação entre ‘concernir’
e ‘respeitar’.
Pretendemos analisar a ligação entre esses conceitos em uma situação que
amiúde os solicita como complementares, qual seja, a dos processos de aprendizagem
e de formação. A experiência que temos em mente não se dá fora dos marcos das
instituições acadêmicas, mas a benção de aparente racionalidade no interior da academia
não suprime uma perigosa ambiguidade presente em tais termos.
Pretendemos, assim, mostrar tal ambiguidade na implementação de ações
afirmativas na educação superior (em particular, no caso do Brasil), quando os termos
da equação, então tornados indicadores concretos, nos permitem levantar diversas
questões. Por exemplo: Como o processo de aprendizagem pode não significar um
aprofundamento da servidão? Servidão dos alunos aos mestres, das escolas aos poderes
constituídos, do espírito criador ao ranço da repetição? Como transformar em política
o que pode subverter o segredo aparentemente comum a toda política, qual seja, o
de preservar e reproduzir os privilégios anteriores com o máximo de sutileza? Por
outro lado, como a instituição pode ser subversiva em relação a si mesma, sabendo
2As noções de “compassionate concern” e “robust respect” são usadas emsentido mais específico por
Michele Moody-Adams, in Making Space for Justice, New York: Columbia University Press, 2022, p. 4.
487
educação e cidadania
João Carlos Salles
evocar e criar condições para que cada estudante esteja na posição de julgar posições e
comportamentos por si mesmo, ou seja, de seu lugar, levando ao centro a contribuição
de seu lugar próprio, que deixa então de ter a marca de um lugar natural?
Um traço do processo de subordinação que tolhe o processo de aprendizagem
reside na redução do aprendizado a um processo isolado, valendo o coletivo tão só pela
estatística. Faz parte então de um modelo de combate, de uma perspectiva utópica da
aprendizagem, criar condições para que cada estudante seja legião, ou seja, para que nele
transpirem os movimentos sociais, as forças da história.
Por outro lado, faz parte desse mesmo modelo, um tanto paradoxalmente, criar
condições para que cada estudante esteja em linha de conta com todos os recursos da
linguagem e tenha pontes para culturas que não são diretamente a sua.A construção
da justiça, acreditamos, não sendo vista como externa, depende da capacidade coletiva
de harmonizar essas medidas desejavelmente desarmônicas, compreendendo que a
aparente placidez da vida institucional pode ocultar formas profundas e violentas de
tradução de conflitos sociais.
4. Para analisar a tensão efetiva entre “concernir” e “respeitar”, tomaremos um modelo
ideal, o das condiçõesde uma comunicação desimpedida. Enquanto modelo descritivo,
ele pode ser tão artificial quanto a afirmação contrafactual de que todos somos iguais em
direitos. Por outro lado, como modelo normativo, ele não deixa de ser necessário, assim
como é necessária a afirmação reiterada de nossa igualdade. A tensão presente entre os
termos, bem como entre a natureza descritiva ou normativa do modelo, fica mais clara
quanto levamos em conta uma experiência particular, a saber, a da implantação de ações
afirmativas na universidade pública brasileira.
Nosso objetivo é, portanto, ler as implicações desse modelo abstrato como guia
desafiador e instável na implementação de ações políticas concretas, de modo que o
acolher não se torne uma forma de condescendência que mantém a subordinação, nem
o respeitar seja uma mera formalidade, que acaba por suprimir a emergência de novos
valores e conteúdos.
Ora, quais são os traços essenciais (cada qual necessário e, em conjunto,
suficientes) de uma comunicação desimpedida? Em instituiçõescomo as acadêmicas e
sobretudo em experiência de ensino, nas quais os conflitospodem e devem ser resolvidos
pela palavra, são condições ideais de argumentação: (i) a igualdade de direitos de quantos
488
educação e cidadania
João Carlos Salles
argumentem; (ii) a igualdade potencial de compreensão; (iii) o reconhecimento da
alteridade potencial ou efetiva; e (iv) a crença comum na eficácia da linguagem.
A justificação desses traços é relativamente simples.Não a detalharemos aqui.
Basta dizer que tal justificação, em suma, lembra-nos que (1) o autoritarismo é infenso
ao debate, (2) dificuldades individuais devem ser superadas coletivamente, (3) o mérito
se constrói como uma experiência coletiva e não como um privilégio eventualmente
oriundo de alguma desigualdade e, enfim, (4) a linguagem é necessária para a experiência
democrática de convencimento e a construção da sociabilidade.
O maior desafio das instituições é tornar realidade um modelo tão próximo da
utopia. O modelo, porém, pode servir como um guia, sendo aplicável a políticas amplas
e ao dia a dia, inclusive no espaço da sala de aula. O modelo tem por base um processo
de procura de convencimento não unilateral, ou seja, todos devem, em última instância,
estar em condições de convencer e de serem convencidos. Aqui, convencer significa
trilhar um caminho que todos devem poder seguir, caso diante das mesmas evidências
e recursos.
O modelo de comunicação torna-se um modelo de encontro. Ele não retira a
prerrogativa do professor, não transforma o professor em um simples aluno, mas visa a
renovar a autoridade do professor no exercício do ensino. O professor, assim, não tem
uma autoridade formal; e o ensino não pode se reduzir a uma catequese. De certa forma,
o modelo valoriza a experiência da aprendizagem ao valorizar a experiência prévia dos
agentes (nada passivos) envolvidos no processo, e nos lembra uma imagem de Martin
Buber:
Quando, seguindo nosso caminho, encontramos um homem que, seguindo
o seu caminho, vem a nosso encontro, temos conhecimento somente de
nossa parte do caminho, e não da sua, pois esta vivenciamos apenas no
encontro. (BUBER, 2001, p. 100).
Essa descrição do encontro coloca o desafio de valorização plena da alteridade,
que está na base do modelo de comunicação ideal. Esse modelo, para nos valermos de
uma analogia adicional, valoriza a contribuição inusitada que resulta de nossa abertura
para o outro, que não pode ser tratado como uma massa informe, a ser moldada em
conformidade com padrões que pouco têm a ver com sua natureza e história.
489
educação e cidadania
João Carlos Salles
Permitam uma analogia. O ofício daformação de pessoasparece-nos mais
semelhante à arte de esculpir obras em madeira. O barro aceita quase tudo – a começar
do ser humano. A argila (e até o mármore) permite curvas ou linhas retas, mas a madeira
não é assim passiva, e costuma resistir de um modo sempre único, como reagem as
palavras. A madeira não se deixa torcer de qualquer jeito. A forma nela não brota de
um silêncio prévio, e texto algum nasce mesmo de uma página em branco. Insidiosa,
sua matéria se aninha, sugere, antecipa, guarda linhas de força, a memória dos nós, os
acasos, as cicatrizes do tempo.
A madeira permite ousadias ou condena o artesão a repetições. E só o verdadeiro
artista lhe arranca formas inusitadas e nela adivinha o destino implacável de anjo ou
demônio, antes oculto e indefinido. O artista sim consegue despertar a forma mais
secreta e restituir significados, levando-nos a ver com autêntica surpresa desenhos
antes adormecidos.
A analogia aplica-se a nosso modelo e a todo ofício da expressão e da formação
humana – esse esforço que não se reduz à palavra, mesmo encontrando nesta um
especial exemplo. De certa forma, ao refletirmos sobre ações afirmativas, estamos
também refletindo sobre a luta pela expressão no barro, na madeira, em sons, em cores,
corpos e, especialmente, na palavra; enfim, sobre a luta pela afirmação da linguagem
e, de modo mais específico, pelo direito à palavra e sobre as relações íntimas e deveras
ambíguas entre a conquista da linguagem e suas promessas de liberdade.
5. Ações afirmativas são instrumentos permanentes de construção da sociabilidade.
Elas ultrapassam a mera reparação individual ou a reposição do valor de um grupo,
constituindo sobretudo um meio de longa duração de invenção possível da humanidade.
Por isso, mais que abençoarem uma comunidade com uma solução, elas nos confrontam
com muitas medidas em aberto. Vejamos o caso da universidade pública na sociedade
brasileira.
A sociedade brasileira é estruturalmente desigual e arraigadamente autoritária.
Nesse contexto, a universidade pública começa no início do século passado como
um projeto das elites, mal contemplando em cursos menos valorizados camadas da
população condenadas a alguma espécie de subserviência. Não por acaso, o número de
vagas era relativamente pequeno, sendo flagrante então o déficit de vagas no ensino
490
educação e cidadania
João Carlos Salles
superior – déficit, aliás, que ainda é significativo, mesmo após a grande expansão de
vagas e criação de novas universidades nas duas últimas décadas.
A Universidade Federal da Bahia, por exemplo, não chegava a20 mil alunos nos
anos 90. Agora, o número de discentes de graduação e pós-graduação já é superior a
50 mil. Todavia, mesmo após um tal salto e com o esforço das universidades para que
a exclusão vivida fora do ambiente universitário não seja vivenciada em nosso meio,
preserva-se a desigualdade em nosso ambiente.
Notável, porém, é o número de estudantes em vulnerabilidade. Cerca de 70% dos
alunos da UFBA têm renda familiar mensal per capita de até um salário mínimo e meio.
E desses estudantes em vulnerabilidade, cerca de 50% deles têm renda familiar mensal
per capita de menos de meio salário mínimo. Nesse contexto, sem o extremoesforço
por oferecer moradia, alimentação e acesso a material escolar, não se pode pedir que
os estudantes possam corresponder ao mínimo padrão de qualidade acadêmica. Além
disso, é preciso ter em conta outro déficit, qual seja, o fato de que esses estudantes
(tendo muita vez sua herança cultural negada) vivem uma privação sistemática de
acesso aos bens de cultura, estando afastados da capacidade de valorizar até mesmo sua
própriaherança e de ter domínio sobre outros meios de expressão na linguagem.
As formaturas oferecem um bom exemplo do ritual de passagem que estamos
vivendo. Estudantes se formam acompanhados de seus pais, que muitas vezes estão
pisando pela primeira vez no território de uma universidade. Esse ritual é emocionante,
dá a entender em cada caso que uma página pessoal e social está sendo virada. Esse ritual,
porém, pode também ser ilusório, muito em conformidade com os procedimentos sutis
de discriminação próprios da sociedade brasileira, que costumava ser descrita pela
ideologia dominante como uma espécie de democracia racial – quando, ao contrário,
nossa sociedade é marcada por um racismo estrutural, ora bastante explícito, ora
violentamente sutil.
A população majoritariamente negra em nossas cadeias e a violência das
estatísticas são suficientes para mostrar a face explícita da violência racial. Por outro
lado, a imagem de um convívio cordial estava dada na inexistência de uma clara
separação dos espaços destinados a brancos ou a negros, por exemplo. A exclusão havia
e continua a haver, sem dúvida. Clubes recusavam filiação, empregos exigiam o que
chamavam de “boa aparência”, e prédios residenciais separavam elevadores “sociais” de
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educação e cidadania
João Carlos Salles
elevadores de “serviço”, de modo que a discriminação social ficava acobertada por uma
separação aparentemente neutra de funções.
Outra maneira sutil de discriminar, tornando invisível a presença, se dá com a
exigência de fardas para empregadas e babás em condomínios. Sua presença nos espaços
estaria autorizada por sua negação. Negros ou pardos (ou pessoas flagrantemente
pobres) só estariam nesses lugares por suas funções e não como pessoas. A farda seria
uma espécie de manto de invisibilidade. Aqui, podemos lembrar uma historieta do
Padre Brown, do inteligente conservador G. K. Chesterton. Padre Brown descobre o
mistério de alguém que teria aparecido morto, quando, por seu próprio testemunho ao
telefone pouco antes de ser assassinado, não havia ninguém com ele. Simplesmente, ele
não considerava o empregado fardado do correio um alguém.
Dado tamanho contexto de exclusão, é preciso aplicar o modelo ainda com
mais força, de modo que as diferenças de acesso à linguagem, o reconhecimento da
alteridade, o respeito à diferença e a afirmação da igualdade possam se dar mesmo
em condições tão extremas e desiguais. Caso contrário, não se levando em conta esse
quadro de discriminação, o acesso ora propiciado a camadas amplas pode mitigar a dor,
mas não superar, nem de longe, a grave desigualdade.
A segregação, afinal de contas, com suas sutilezas, pode bem ser traduzida em
profissões de distintos “apelos e relevâncias”, de distinta acolhida no mercado ou no
imaginário. Pessoas passam a ser concernidas pela efetividade das ações afirmativas,
sem que estejam sendo plenamente respeitadas. Em sendo assim, até os diplomas
distribuídos fartamente podem se transformar em mantos de invisibilidade e boa parte
da ascensão social pode ainda ser feita pelo elevador de serviço.
6. No Brasil, superar a pobreza extrema é tarefa antiga e sempre urgente. Entretanto,
superar a miséria não é superar a servidão; não constitui por si uma medida do diálogo
democrático que temos o dever de desejar. Uma legislação ambiental progressista
não garante por si a proteção do meio ambiente, e leis de proteção à diversidade não
implicam o fim do preconceito; assim, precisamos querer mais, precisamos retirar do
modelo ideal suas consequências mais profundas.
Dessa forma, mesmo tendo uma utilidade para orientar políticas públicas
imediatas (como quando na UFBA foi preciso decidir em favor das bolsas de assistência
estudantil, apesar da elevada dívida com a fornecedora de energia elétrica), nosso
492
educação e cidadania
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modelo pode orientar-nos a decidir por mais e a ter um horizonte pragmaticamente
utópico, como se disséssemos com Clarice Lispector: “Liberdade é pouco. O que desejo
ainda não tem nome.” (LISPECTOR, 1980, p.50)
Poder articular palavras é, então, abrir um novo campo de direitos. Importa
aqui afastar qualquer inocência em relação ao termo ‘liberdade’, que é deveras ambíguo.
Alguns podem acreditar livre quem não encontra obstáculos externos à sua realização –
um curso d’água que não encontra uma barreira, por exemplo. Para valorizar a liberdade,
caberia então apenas desimpedir o que antes enfrentava obstáculos para se realizar.
Ora, com isso, estabelece-se uma certa ilusão das origens, como se estas estivessem bem
definidas, sem possibilidade alguma de redefinição posterior.
Nesse sentido, podemos listar exigências políticas e acadêmicas suscitadas por tal
esforço ainda incompleto de construção democrática. Como política, a articulação entre
as noções de ‘acolher’ e de ‘respeitar’ à luz de um modelo de comunicação desimpedida
leva-nos a algumas consequências, dentre as quais podemos apontar que:
(i) as pontes entre a instituição que acolhe e as comunidades acolhidas
precisam ter duas direções. Esta é uma consequência de natureza institucional
e também epistemológica. Por um lado, as pontes criadas não podem significar um
ato de pura catequese, que desconheceria a riqueza prévia de quilombolas, indígenas,
comunidades de fundo de pasto, comunidades tradicionais, saberes populares. Por
outro lado, o encontro ele mesmo deve agregar valor, de sorte que não cabeensejar
uma mera lógica de substituição e ocupação de espaço, que desconheceria inclusive a
existência anterior de procedimentos acadêmicos consistentes de produção de saber.
Cabe assim afastar unilateralidades. Ou seja, cabe evitar tanto alguma espécie de
dominação eurocêntrica ou etnocêntrica, como também, aoconcernir e acolher novas
pessoas e novos saberes, estabelecer uma dimensão de respeito mútuo, de modo que o
diálogo cultural e epistemológico leve ao acréscimo e cresça pela multiplicação e não
opere por simples supressão;
(ii) a construção de um espaço de diálogo equivale ao exercício de semear
liberdades. Esta, uma consideração filosófica ampla. Em exercício de construção
deliberada da sociabilidade, liberdade não é simples afirmação do que existia antes do
encontro, não é mera reparação ou modo de tornar equivalentes os desiguais. No espaço
do encontro, tanto não tem liberdade quem pode fazer qualquer coisa, quanto não a
493
educação e cidadania
João Carlos Salles
tem quem não pode fazer nada. Sendo o indivíduo uma invenção da linguagem que o
articula, tanto sua liberdade não pode ser mera indiferença, quanto nunca será livrea
simples afirmação idiossincrática. Ao contrário, é preciso poder inventar coletivamente
nossas identidades e idiossincrasias.
(iii) afirmar positivamente tal modelo ideal, transformá-lo em política
pública, implica recusar uma certa ideia individualista de liberdade. Esta, uma
consideração também filosófica, mas bem mais específica. No espaço do encontro, a
liberdade não pode ser simples obrigação de retorno à origem ou afirmação do que já
estava dado, embora posto a ferros. Servidão não pode ser destino. O indivíduo livre
deve assim superar as inibições que não são uma marca de natureza; deve ser capaz
de fazer a terapia das ilusões que o condenam à servidão por simplesmente estar em
sociedade. Se o indivíduo fosse anterior à sociedade, retornar à sua limitação, retornar a
um si mesmo, seria como reencontrar o que a vida comum (dada como posterior) teria
apagado. Ora, mantida tal ilusão, o indivíduo apareceria como transparente a si mesmo,
enquanto o outro seria sempre opaco, além de intransponível obstáculo. O modelo tem
então a consequência profunda de nos ensinar que não há verdadeira liberdade sem a
possibilidade de um exercício comum da imaginação.
(iv) a tarefa da implantação de modelos de comunicação não se limita
à sala de aula. Esta é, enfim, uma consideração política central. Com tamanho
desafio de reconhecimento recíproco e reinvenção, tal implantação de uma cultura
profundamente democrática não pode estar restrita a códigos de conduta científica ou
acadêmica. Por óbvio, além do exercício específico da educação,seu sucesso depende
da sociedade, de contextos que doravante autorizem a expressão plena da linguagem,
afastando quaisquer manifestações de autoritarismo e obscurantismo e, sobretudo,
combatendo as desigualdades estruturais, sociais, culturais e econômicas, em nosso
país, que atravessam sim relações de gênero, classe e raça.
7. Não é previsível o que pode resultar da aplicação de modelos radicais de política
pública. Apenas devemos poder querer fazer bem mais do que repetir alguma prosa, do
que apenas receber ensinamentos de cuja elaboração não participamos, pois precisamos
querer ter condições de elaborar e incluir nossa própria narrativa.
494
educação e cidadania
João Carlos Salles
Não basta aprender a repetir fórmulas que nos fizeram saber de cor, mas é
preciso sim poder expressar inclusive o que pode dissolver tais fórmulas. Pensamos,
afinal, com fórmulas para podermos ir além delas; aprendemos de cor muita coisa para
podermos ampliar os limites da linguagem. Por assim dizer, queremos poder fazer
nossa própria literatura e, ao dominarmos os signos, ser capazes de juntos fazer poesia.
É muito talvez, mas está longe de ser tudo. Afinal de contas, fazer política é a arte de
nunca nos contentarmos com os abismos.
Concluímos, enfim. Em nossa fala, tão somente lembramos tarefas que são
as da educação enquanto associada a projetos radicais de cidadania – a saber, criar as
condições de organização da experiência por meio de experiências de linguagem que
não predeterminem nem consolidem relações de exclusão ou de dominação. A tarefa
da educação, que é especialmente a da universidade pública, é afinal prover cada sujeito
das condições de exercício pleno de sua subjetividade, e garantir a precedência da
palavra, do símbolo, do gesto significativo, sobre todas as formas de poder, de modo
que nossa comunicação, sendo desimpedida, expresse uma sociedade na qual sejamos
economicamente iguais e nos encontremos de forma democrática, realizandode forma
coletivao vaticínio enunciado outrora porHerder:
Quanto mais profundamente alguém descer em si mesmo, na construção e na
origem de seus pensamentos mais antigos, mais ele cobrirá os olhos e pés e dirá: eu sou
o que eu me tornei. (HERDER, 2015, 66-67)
Referências
BUBER, M., Eu e Tu, São Paulo: Centauro, 2001, p. 100.
HERDER, J. G., “Do conhecer e do sentir da alma humana”, apud HONNETH, A., O
Direito da Liberdade, São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 66-67
LISPECTOR, Clarice, Perto do coração selvagem, Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1980, p. 50.
495
O ensino da cultura popular para a superação
do racismo estrutural
Ivoneides Maria Batista do Amaral1
Benedito Dielcio Moreira2
Este artigo contém uma reflexão sobre o papel da escola como fonte de
afirmação de identidade na comunidade de pescadores ribeirinhos da cidade de
Rosário Oeste, em Mato Grosso, distante cerca de 120 quilômetros da Capital, Cuiabá.
Referente a história do munícipio, consta no Ipatrimônio (2018)a fundação no ano de
1757, quando o senhor Inácio Manoel Tourino e sua esposa Maria Francisca Tourino
chegam à região acompanhados de um grupo de pessoas atraídos pela fertilidade das
terras. Estabeleceram-se à margem direita do Ribeirão monjolo. Com essa ocupação,
iniciou-se o convívio de múltiplas identidades, entre elas os indígenas da nação Bakairi.
Discute-se aqui o papel da escola como fonte de afirmação e identidade da
população ribeirinha e a atual conjuntura da comunidade de pescadores da colônia Z13
da cidade de Rosário Oeste. Busca evidenciar a escola como aporte na valorização dos
processos culturais, sem o estigma da desigualdade, colocando as ações da comunidade
como um valor cultural. Intenciona mostrar que os pescadores da colônia Z13 enfrentam
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação emEstudos de Cultura Contemporânea- ECCO, daUniversidade Federal de Mato Grosso-UFMT.
2 Doutorado em Educação pela Universität Siegen, Alemanha, Pesquisador Associado da Universidade
Federal de Mato Grosso e Professor do Programa de Pós-Gradução em Estudos de Cultura Contemporânea-ECCO. Líder do Grupo de Pesquisa Multimundos.
496
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
o duplo desafio de sobreviver frente às suas origens como brasileiros e as imposições
da modernidade capitalista, que nega a esse grupo de trabalhadores o reconhecimento
de sua história. Questiona-se como resistem os pescadores ribeirinhos, pretos e
desfavorecidos economicamente, não sendo reconhecidos como parte da diversidade
brasileira.
Discute ainda que falta nas escolas atividades sobre os costumes e práticas
culturais e como isso atua na invisibilidade do Outro marginalizado e excluído.
Maturama e Ximena (2004) evidenciam que o nosso viver está relacionado com outras
vidas, humanas, animais e vegetais. Já Munanga (2008a) reforça que a diversidade é
um fator de complementariedade e enriquecimento da humanidade. O escopo teórico
interdisciplinar propicia a relação entre cultura, educação e o negro, representada aqui
no papel do pescador ribeirinho. E tudo começou com o avanço para o interior dos
bandeirantes.
Com a chegada dos portugueses, os indígenas sofrem a perda de suas terras e
são forçados ao trabalho escravo, por isso muitos fugiram e foram perseguidos como
criminosos. De acordo com Barros (1989), os primeiros Bakairis tem sua presença
registrada em 1738, nas minas de Mato Grosso, no Vale Guaporé, na condição de
escravos e, posteriormente, na região de Diamantino, munícipio a 77 quilômetros de
Rosário Oeste. Os indígenas já praticavam como modo de sobrevivência as atividades
de ribeirinhos, agricultores e pescadores.
Esse processo de formação e exploração da região, de acordo com registro do
Ipatrimônio (2018),foi realizada também pelas mãos de negros escravizados, forçados
a trabalhar na construção de estradas,casas, cultivo de alimentos e nas minas auríferas
em Cuiabá e Diamantino. Localidades, como a de Rosário Oeste, que surgiram em
função da exploração do ouro, com o fim das atividades comerciais na região tornamse improdutivas para o sustento dos moradores (QUEIROZ, 2013).As cidades ficaram
praticamente abandonadas pelos governantes e pelas famílias mais abastadas, que
deixaram os serviçais e moradores, em sua maioria negros, mestiços e indígenas
contando apenas com a própria sorte.
Esse abandono foi sentido principalmente pelos negros, que trazem em sua
história o sofrimentoda escravidão. No final do século XIX sofrem com o ideário de
branqueamento contra as múltiplas identidades que constitui o país. Munanga (2008b)
497
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
discute que essa ideia de branqueamento ainda está presente na mente de negros e
mestiços, prejudicando a busca pela identidade baseada na negritude e mestiçagem.
Em Rosário Oeste, de acordo com Infosanbas (2023), utilizando os dados
do IBGE (2010), aproximadamente 4.345 pessoas se declararam brancas, 1.100 se
declararam negras, (108)se declararam asiáticas, 2.456 pardas e 29 pessoas se declararam
indígenas. Ao discutir sobre a dificuldade das pessoas se identificarem como negras,
Munanga (2008b), reforça que a ideia de branqueamento rouba o elemento negro de
sua importância numérica.
Outrora ponto de parada obrigatório para quem se dirigia ao Norte do Estado,
hoje Rosário Oeste vive com a escassez de alimentos, ausência de política pública de
toda ordem, sobretudo para a agricultura familiar, evasão dos jovens e a cobiça das
elites cidadinas pelas áreas ribeirinhas da região, ocupadas por famílias de pescadores
artesanais. Com o esvaziamento da cidade, a migração de famílias e jovens para a
periferia da região metropolita de Cuiabá, a proibição por força de lei da pesca artesanal
e a liberação da pesca esportiva há uma atmosfera de angústia em uma cultura secular
que se esvai em nome de um progresso que os moradores tradicionais não fazem parte.
Nascida na diversidade, com exploradores a serviço da coroa portuguesa, negros
e indígenas escravizados (MATTOS (2013), assiste-se hoje em Rosário Oeste um tipo
de discriminação institucional e legalizada: com o argumento de que o Rio Cuiabá
precisa ser repovoado de peixes, nega-se a uma comunidade de pescadores artesanais
constituída por 98% de pessoas pretas e abre-se o mesmo rio para a pesca esportiva,
e as suas margens para casas de veraneio e pousadas. A atividade pesqueira artesanal
em Rosário Oeste não era e não é apenas um meio de subsistência, é sobretudo uma
atividade de resistência, de enfrentamento, de sobrevida de uma cultura.
Após anos de escravidão os negros seguem marginalizados na cidade,
com dificuldades para a prática milenarde agricultura familiar e pesca. Atividades,
desenvolvidas pelos povos originários com suas próprias técnicas de relação com a terra
e com o meio ambiente. Os pretos, pobres e indígenas encontraram na pesca artesanal a
possibilidade de liberdade, enquanto trabalho permite condições para manter a família
e pensar no futuro dos filhos, sempre esperançosos de obtenção de uma boa formação
escolar e um futuro profissional promissor.
A questão é que, mesmo sendo parte do cotidiano de muitas famílias, a pesca
artesanal é vista como irrelevante e inferior, pertencente a um pequeno grupo visto
498
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
como insignificante para a sociedade.Isso reforça a impossibilidade, mesmo no século
XXI,de uma sociedade pluralista, mesmo porque após a abolição reside na competição
e na rivalidade do sistema capitalista a permanência no presente de um passado
escravocrata.
Nessa perspectiva, no ambiente escolar são limitadas as possibilidades de
contribuições sociais e culturais dos pescadoresenquanto protetores do meio ambiente
e do rio Cuiabá. De modo geral, esse grupo é invisível, pois o progresso diz respeito
agrandes empreendimentos, como as usinas hidrelétricas, hotéis e o avanço do
agronegócio na região.
À luz dos ensinamentos de Arroyo (2015, p. 49), compreende-se que na
construção de currículos de formação de docentes-educadores e da educação é
importante estar aberto à “consciência de mudança”, para inovar a rigidez das “grades”
em que nossa tradição curricular “aprisiona os conhecimentos a serem ensinados e
aprendidos nas escolas”. Diante das mudanças sociais contemporâneas, questiona-se
qual o papel da educação e o modo de ensinar; mostra-se apenas um ponto de vista, o
progresso. Esse que aprisiona os grupos menores, como os pescadores artesanais: no
cuidado com o meio ambiente, retira dele apenas o necessário para sobreviver.
Há um crescente movimento na sociedade pela busca da igualdade racial. Mattos
(2013) entende como resultado positivo dessa batalha a lei 10.639 de 2003, que torna
obrigatório o ensino de história da África e cultura afro-brasileira nas escolas, além
das cotas nas universidades para afrodescendentes. Isso possibilita aos jovens negros
participar do movimento pelos direitos civis. Theodoro (2008) reforça que a população
afrodescendente no Brasil tem características culturais marcantes, que precisam ser
mais estudadas, sendo a escola o espaço de produção de saberes. O constitutivo de
identidade, entrelaça-se com a cultura, a educação eo modo de subsistência presente na
realidade local.
As variações culturais são encaradas como formas marginais de existência,
os segmentos culturais diferenciados, encarados como não participantes ou
membros parciais da sociedade global (ordem industrial) convertem-se num
problema educacional que resistir com a forte influência do modernismo
exacerbado que permeia nossa sociedade contemporânea. (SODRÉ, 1989,
p. 132)
499
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
Ao olhar para realidade de Rosário Oeste é possível observar o distanciamento da
educação escolar dos problemas enfrentados pelos (348) homens e mulheres que vivem
da pesca, vinculados a colônia Z13. Para eles, o rio Cuiabá é um meio de sobrevivência.
Enquantoa partir do século XVIII as águas do rio Cuiabá foi o caminho para se chegar às
minas de ouro e diamante no norte do estado de Mato Grosso, com o fim da extração do
ouro e outros recursos, como o látex e a poaia, hoje, depois de três séculos de colonização,
ocupação e definição de limites geográficos (GARCIA; BONFIM, 2022), Rosário Oeste é
conhecida apenas como o ponto de passagem para o “nortão”.
Dessa forma, observa-se que a representação cultural efetivada por meio
da pesca artesanal, realizada principalmente por pessoas afrodescendentes, não está
conseguindo resistir aos embates políticos impostos pela modernidade. Sodré (1989)
reforça que a ideologia modernizadora impermeabiliza a admissão do “Outro” cultural,
reforça os estereótipos sociais e os preconceitos de classe e de cor, na medida em que
recusa qualquer diferença.
Conforme Theodoro (2008, p.82), “na literatura brasileira o negro é palavra
excluída, ocultada com frequência ou uma representação inventada pelo outro, sendo
sempre o elemento marginal”, ou seja, a modernidade reforça que as culturas excluídas
aparecem com valores negativos. Nesse sentido, a ação da pesca artesanal que envolve
a preservação do ambiente, do rio e a forma de se manter livre por meio da pesca não é
visto como significativa. Contrapõe à modernidade, por isso o grupo afrodescendente
incomoda por sua resistência e liberdade.
Observa-se a influência da modernidade e interesses políticos sobre a educação,
tornando a cultura local uma atividade restrita e com pouca representatividade, pois os
preconceitos, conforme Munanga (2008a), permeiam o cotidiano das relações sociais,
como ocorre com os pescadores artesanais, que vivenciam o desafio de sobreviver
nesse contexto de desigualdades, em especial sofrem com os impactos diretamente nas
águas do rio Cuiabá, causados pela produção agrícola, pecuária e a Usina do Manso3.
Os questionamentos nos direcionam à reflexão sobre a cultura da pesca como parte
da identidade regional, que segue o caminho de resistência traçado pela comunidade,
3A Usina de Manso, construída em parceria com a iniciativa privada, está localizada no estado de Mato
Grosso, no rio Manso, principal afluente do rio Cuiabá. O consórcio PROMAN, formado pelas empresas
Odebrecht, Servix e Pesa, participa como parceiro com 30% do total dos investimentos. Disponível em:
https://www.furnas.com.br Acessado em: 06 de junho de 2022.
500
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
ressaltando sua trajetória em Mato Grosso. Faz-se necessário encontrar as marcas de
uma essência diferenciada e autêntica, que constitui o espírito coletivo de um povo
(MUNANGA, 2008b).
Rio Cuiabá, como espaço de resistência
Tendo suas nascentes no município de Rosário Oeste, o rio Cuiabá em seu
percurso vai tomando uma proporção de amplitude e força para chegar até o pantanal
mato-grossense, onde realiza a confluência com o rio Paraguai, em um percurso
aproximado de 828 Km (REIS, 2008). Sua trajetória é inicialmente formada por dois
pequenos cursos de água, Cuiabá do Bonito e Cuiabá da Larga, que afloram na Serra
Azul, com altitude de cerca de 500 metros. O ponto de união desses dois cursos de
água é denominado Limoeiro, onde o rio passa a ser chamado de Cuiabazinho. Quando
recebe as águas do rio Manso, o rio dobra o seu volume de água, tendo daí em diante o
nome de rio Cuiabá, com grande importância hídrica, social, cultural e econômica para
o estado: é o Cuiabá que abastece a maioria das cidades da região.
Mesmo sendo primordial para a sobrevivência de muitas comunidades
humanas e não humanas, a poluição do rio Cuiabá é pouco comentada e não se observa
grande feitos para a sua recuperação. São poucos os estudos voltados para os impactos
decorrentes da agricultura e pecuária na região. Conforme Araújo (2012), nesse cenário
a bacia do rio Cuiabá, a partir da década de 90, torna-se mais explorada. O crescimento
populacional e econômico da Baixada Cuiabana acelera o uso intenso do rio, porém os
municípios não têm estrutura para acompanhar esse processo de urbanização.
A importância histórica do rio Cuiabá para a sociedade mato-grossense
e brasileira é secular. O rio Cuiabá foi a principal via de comunicação da
capital para o centro-sul brasileiro, onde, no começo de sua ocupação, os
bandeirantes paulistas, seguindo a denominada via das monções, saíam de
São Paulo e aportavam em Cuiabá. Trata-se de um rio que historicamente
é representado como fonte de vida e de recursos para a cidade, ao longo do
qual é localizada, até hoje, uma série de comunidades, cuja principal fonte de
renda consiste na pesca artesanal e que serve, junto com seus afluentes, como
principal fonte de abastecimento de água na região. (ARAÚJO, 2012, p. 12).
501
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
Diante dessa realidade, a falta de políticas públicas e ações que favoreçam a
preservação do rio Cuiabá, entre outras degradações em seu entorno, reflete no cotidiano
da região, na subsistência dos pescadores artesanais e nas manifestações culturais da
cidade. Infelizmente, isso também não é reconhecido como deveria nas atividades
educacionais. Salienta-se que a escola, as casas e as ruas estão interligadas, constituem
os espaços de cidadania, do viver cotidiano, é a arena das questões relevantes para a
comunidade, como o rio Cuiabá e a atuação dos pescadores artesanais.
O uso da terra e da água voltado para a subsistência é a vida e o cotidiano dos
rosarienses. É uma forma de resistência, mostrou e ainda mostra a capacidade desse
grupo se reinventar. Mas essas práticas são pouco difundidas na formação educacional.
Raramente no ambiente escolar são levantadas questões que evidenciam a importância
do rio Cuiabá como fonte de vida e subsistência, pouco se fala sobre a circularidade
produtiva do ambiente para as famílias ribeirinhas. Para Maturama (2004), vivemos o
pensamento linear, apáticos na maioria das vezes, apenas observando as transformações
ocasionadas pelo pensamento contemporâneo, em que a exploração econômica e
ambiental não tem limites.
Freire (1985, p. 6) afirma que “os políticos - educadores esqueceram-se de
respeitar a compreensão de mundo, da sociedade, da sabedoria popular, o senso comum
que os educandos têm”. Muitas vezes os professores, alunos e alunas são envoltos por
outras realidades e contextos que não debatem sobre questões que permeiam o cotidiano
da comunidade, suas angústias e memórias. Munanga (2008a, p. 11) reforça que “não
podemos esquecer que somos produtos de uma educação eurocêntrica, e que podemos
em decorrência desta reproduzir consciente ou inconscientemente os preconceitos
que permeiam a nossa sociedade”. Consequentemente deixamos de lado a diversidade
entre os grupos humanos, separados entre superiores e inferiores na perspectiva de
produtividade, do lucro e acúmulo financeiro, pensamento difundido também nas
escolas.
Em outros termos, não se valoriza a autonomia do uso responsável de recursos
naturais, uma vez que as atividades de subsistência realizadas pela população ribeirinha
não são respeitadas como parte daproteção do meio ambiente. Com isso, a representação
do pescador ribeirinho artesanal continua sendo difundida como a de um cidadão
improdutivo, afastando-os,mantendo-os às margens das discussões políticas, sociais e
econômicas.
502
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
O pescador artesanal, segundo Diegues (2004, p.182), “é um pequeno produtor
que participa diretamente do processo da pesca, dono de um cabedal enorme de
conhecimentos e dos instrumentos de trabalho, operando seja em unidades familiares
seja com “camaradas” e companheiros”. O pescador realiza uma prática secular utilizada
como meio de sobrevivência, processo de pertencimento e propagação da cultura.
Portanto, faz-se necessário contextualizar a realidade desse grupo que compõe a história
da sociedade Mato-Grossense.
A escola na construção da cidadania
Em suma, o reconhecimento do Outro está em respeito à diversidade.
Munanga (2008a) aponta a escola como o espaço propicio para discutir assuntos que
são depreciativos e preconceituosos em relação aos povos e culturas. Escamoteadas no
cotidiano dos alunos com ascendência étnico-racial e social, as contribuições dos negros
para a sociedade não têm visibilidade. Portanto, essa discussão na escola é o primeiro
passo para a formação de novos sujeitos protagonistas, tanto no processo de construção
do conhecimento como da ação ética diante dos mundos presencial e virtual.
O resgate da memória coletiva da comunidade negra precisa ser praticado nos
espaços que envolvem a multiplicidade de culturas, apesar das condições desiguais.
Trata-se de uma tarefa da escola, fundamentalmente, mas também da família e dos meios
de comunicação. De acordo com Moreira (2015, p.1138), “juntamente com a escola e
a família, os meios de comunicação social tradicionais e as tecnologias de informação
constituem fontes de saber e de socialização, especialmente de adolescentes e jovens”.
Fomentar o respeito ao Outro é vital para a formação de novos sujeitos, protagonistas
e atuantes na propagação do reconhecimento social.
Assim, conforme Mattos (2013), um primeiro passo é saber que o racismo e o
preconceito estão presentes nas relações e na organização da sociedade.Quando se aceita
esse fato, torna-se possível pensar em estratégias de educação e combate.Repensar as
formas tradicionais de educar e abrir espaços para o fomento das atividades tradicionais
e culturais, reconhecer e dar visibilidadeà presença dos grupos étnicos, como as
comunidades ribeirinhas,são também formas de educar e promover a cidadania.
A BNCC (2018, p.554) ressalta que “as transformações na ação das pessoas são
mediadas pela cultura”. Em sua etimologia latina, a cultura remete à ação de cultivar
503
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
saberes, práticas e costumes dos grupos em sua diversidade. Nessa perspectiva, Munanga
(2008b, p.14) reforça que “as matrizes étnico-raciais, que deram ao Brasil atual sua feição
multicolor, composta de índios, negros, orientais, brancos e mestiços”, estão presentes
na escola, por isso a escola deve ser um núcleo de mudança, de respeito à diversidade
do povo brasileiro. Para Theodoro (2008), somente por meio de uma releitura dos
elementos que responde pela identidade cultural do país, com um aprofundamento
pedagógico, podemos resgatar uma cultura nossa.
O ambiente escolar de formação e troca de conhecimentos provoca nos alunos e
alunas o desejo de compreender e respeitar a cultura do Outro. Para Freire (1987, p.33),
“a situação existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia
e, assim, lhe exige resposta, não só no risível intelectual, mas no nível da ação”. Ou
seja, cabe à escola ser aliada dos anseios da comunidade na proposição de ações para a
preservação do meio ambiente e da história local. A escola na contemporaneidade atua
quase que exclusivamente baseada em conteúdos alheios à realidade do aluno, torna
ausente as reflexões sobre as comunidades tradicionais.
Conforme o Decreto n. 6040 de 2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT),
compreende-se que o desenvolvimento sustentável como promoção da melhoria da
qualidade de vida dos povos e comunidades tradicionais nas gerações atuais é a garantia
das mesmas possibilidades de participação ativa na sociedade para as gerações atuais e
futuras, com respeito aos seus modos de vida e tradições.
Em Rosário Oeste muitas famílias contam com orgulho que conseguiram
manter os filhos na escola, em cursos técnicos e faculdades, utilizando o dinheiro que
recebiam com a venda dos peixes. Quantas histórias de vida são possíveis a partir da
pesca, para muitos um ato de pertencimento social, cultural e econômico. Diante dessa
realidade, a modernidade e o racismo não pode se sobrepor, deixando o passado e o
presente de pessoas negras esquecidos ou excluídos da atualidade. A investigação e a
tomada de consciência acerca da trajetória da modernidade e seus efeitos no ambiente
são retratados por Dubar (1997), ao afirmar que o modernismo reduz a socialização a
qualquer forma de integração cultural, é uma concepção estratégica de funcionamento
do transnacional, que transforma os espaços, pensamentos e valores.
Nesse percurso refletimos sobre o processo de esquecimento da cultura
popular, na atuação pedagógica. Freire (1985) reforça que o povo luta incessantemente
504
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
na recuperação de sua humanidade. Para ele, a pedagogia precisa ser objeto da reflexão
dos oprimidos, de que resultará o seu engajamentona luta por sua libertação. Sobre a
prática pedagógica é preciso considerar os estudos sobre cultura popular regional em
prol da sua preservação e das lutas enfrentadas no cotidiano por milhares de pessoas
em todo o estado de Mato Grosso. São comunidades invisíveis que desaparecem na
paisagem urbana e rural por não pertencerem a um padrão econômico imposto pelo
modelo econômico.
O pescador artesanal ribeirinho tenta resistir a esse padrão econômico. Como
afirma Catenacci (2001),é necessário observar nossas raízes, as condições materiais e
essenciais para a vida. Como protagonistas, os pescadores tentam mostrar suas vivências
e experiências cotidianas na relação com as águas do rio Cuiabá, com os peixes e o
ambiente. Mostram conexão com a realidade circundante.
Discutir a importância das questões populares e da comunidade nas escolas é
lidar com a pluralidade cultural brasileira, segundo Theodoro (2008) é o processo de
construir ponte, escola e vida comunitária, em que todos são absolutamente necessários.
A atuação e participação social dos pescadores artesanais da colônia Z13 de Rosário
Oeste, enquanto representantes da cultura regional, tem características marcantes para
a produção de saber.
Acompanhar de perto a história e a atuação dos moradores de Rosário Oeste
frente às ações políticas, sociais e populares, é conhecer um pouco da história do estado
de Mato Grosso. Outro aspecto é observar a prática da pesca como manifestação
cultural. Conforme Costa e Silva (2020, p.131) “os territórios tradicionais de pesca são
lugares de memória e espaços de resistência, pois a história, o trabalho e a cultura dos
pescadores são indissociáveis destes espaços, essenciais para reprodução cultural do
grupo”. Na perspectiva de dinamizar o processo de ensino aprendizagem, fortalecendo
a cultura local, e a diversidade que constitui a sociedade, Arroyo, ressalta a urgência em
tratar sobre a políticas pedagógicas de inclusão,
Os docentes-educadores/as e as crianças, os adolescentes, os jovens e
adultos têm direito a conhecer a produção dessa história, dessa consciência
de mudança de que são sujeitos os trabalhadores. Têm direito a entender que
são processos formadores, de produção de Outros conhecimentos, culturas,
valores, a ser incorporados nos currículos e nas práticas pedagógicas. Toda
505
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
a riqueza de práticas educativas, formadoras que acontece no trabalho, nas
ações coletivas emancipatórias pressiona por ser incorporada nos currículos
(ARROYO 2015, p. 50).
A escola é um ambiente representativo da pluralidade, e comporta em seus
espaços diversidade humana em sua intensa riqueza e singularidade, seja em gênero,
etnia, religião, cultura, sexualidade ou condição física. A cultura é tudo aquilo que resulta
da criação humana. A BNCC (2018, p. 09) enfatiza que o ensino por competências deve
“valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais,
e participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural”, condição vital
no processo de ensino e aprendizagem. A escola deve ser o lugar da validação do
conhecimento focalizado na produção da diversidade. Para Moreira (2015, p. 1139),
“a escola, tradicionalmente, mantém-se como uma das instituições mais próximas do
cotidiano dos adolescentes e dos jovens. É, embora não hegemônica nem a única, ainda
é um fórum de debates, de reflexão, de muitas vozes”.
Catenacci (2001) reforça que a cultura popular está ameaçada pelo processo
de modernização, pois há uma incompatibilidade entre as manifestações populares e
os avanços modernos na sociedade.Dessa forma, a distinção entre educação escolar
e cultura popular, representada neste estudo pelos pescadores artesanais ribeirinhos
de Rosário Oeste, se estende a outros grupos que desenvolvem ações que integram
a identidade do povo brasileiro. Esses grupos, muitas vezes silenciados pelo racismo
estrutural, precisam compor o espaço pedagógico e envolver a escola.
A Constituição Federal do Brasil de 1988, em seu artigo 210, reconhece
a necessidade de fixar conteúdo para o ensino fundamental, de maneira a assegurar
a formação básica com valores culturais, artísticos, nacionais e regionais. Porém,
na rotina escolar, as manifestações populares são invisibilizadas e minimizadas no
currículo. Como afirma Schmidt (2003), o conjunto de experiências e conhecimento
que a escola oferece aos estudantes é a forma dos interesses sociais e da cultura elitizada
que se materializa na sociedade.
DaMatta (1994) relata que a cultura se refere a fenômenos coletivos, sendo a
cultura popular um guia para os membros de uma dada sociedade. Basta uma rápida
reflexão sobre a indivisibilidade crescente de inúmeras manifestações da cultura popular
mato-grossense, diante das mudanças no cenário regional,e teremos a dimensão da
força da modernidade.
506
o ensino da cultura popular
Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira
Ao discutirmos a invisibilidade dos pescadores, a decadência da cidade de Rosário
Oeste, do rio Cuiabá, o que se objetiva é tanto chamar a atenção para o cumprimento
de diretrizes legais na educação quanto fortalecer as reflexões sobre o Outro. Destacase os estudos da cultura popular por ser um meio de superar o racismo e todo tipo de
preconceito no ambiente escolar. Consideramos um desafio evidenciar o pescador como
parte do desenvolvimento sociocultural do país, pois em toda história ele é descrito com
inferioridade e excluído do processo de comunicação, por não cumprir os desígnios do
capitalismo.
Propõe-se que o ambiente escolar, dentre os múltiplos discursos, evidencie a
militância e resistência dos negros, tendo como modelo o pescador artesanal no combate
à exclusão social, étnica e racial. Nessa experiência é possível aportar significativas
estratégias de resistência das pessoas pretas, que lidam com o ambiente de modo
interdisciplinar, atuam no campo da sustentabilidade, preservação do rio e do ambiente.
São aprendizagens, se postas nas escolas, que se irradiam do cotidiano escolar para as
ruas, empresas e residências. Sabe-se que esse caminho não é simples, é construído com
embates de forças desiguais. Por isso necessário.
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509
Racismo e antirracismo no cinema à luz de
Kabengele Munanga
Ana Claudia da Cruz Melo
Universidade Federal do Pará, Brasil
Carmen Lucia Souza da Silva
Universidade Federal do Pará, Brasil
Ádria Sofia Dias Lage
Universidade Federal do Pará, Brasil
Ao questionar “o que é afinal a arte afro-brasileira”, o pensamento de Kabengele
Munanga (2019), antropólogo e professor, torna-se o ponto central, neste artigo, para
refletirmos sobre como um conjunto de filmes produzidos, entre o final do século XIX
e início do século XX, nos estúdios de Thomas A. Edison, nos Estados Unidos, fizeram
do cinema, então arte recém-nascida, expressão que, talvez, mais tenha contribuído
não apenas para romper com as formas artísticas plásticas e visuais africanas, como
também se tornar uma tecnologia social potente de propagação do racismo. Reflexão
que propomos empreender, primeiro, buscando pontuar as contribuições que o
próprio Munanga traz à definição do qualificativo “afro” atribuído à arte brasileira.
E, no segundo momento, ao analisarmos as representações de afro-americanos nesta
produção cinematográfica estudada. Por fim, pontuaremos como o debate sobre a
dimensão pedagógica do Cinema Negro pode situar-se na contemporaneidade como
uma forma de luta antirracista.
510
racismo e antirracismo
Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage
O pensamento de Munanga (2019), que parte do questionamento sobre “o que é
afinal a arte afro-brasileira” e que alicerça este artigo, nos coloca, a princípio, diante do
quanto os conceitos de arte e de belo, ao longo dos séculos, foram mudando de sentido,
de tal modo que, no momento atual, a arte é de múltiplas formas e o belo deixa de ser
um objetivo, pois agora também pode visar “à simples criatividade, à fantasia, ao jogo,
à expressão pessoal, à busca do pitoresco, da originalidade, etc.” (Munanga, 2019, p.
6). Desta compreensão, o antropólogo então explica que o problema que coloca não é
descobrir nas artes plásticas afro-brasileiras aspectos universais da arte em geral, mas
sim descrevê-la em relação à arte brasileira e que “descobrir a africanidade presente
ou escondida nessa arte constitui uma das condições primordiais de sua definição”
(Munanga, 2019, p. 6). Contudo, observa que entender o que é a “africanidade” é
fundamental, uma vez que os criadores da arte afro são descendentes de africanos
escravizados que foram “transplantados para o novo mundo”. Um processo que envolve
rupturas com a estrutura social original e que, hipoteticamente, pode ter resultado em
perda de identidade e, ao mesmo tempo, na criação de novas formas.
Para que os elementos culturais africanos pudessem sobreviver à condição
de despersonalização de seus portadores pela escravidão, eles deveriam ter,
a priori, valores mais profundos. A esses valores primários vistos como
continuidade foram acrescidos novos valores que emergiram do novo
ambiente. Ora, no contexto tradicional africano, as artes eram praticadas
funcionalmente por membros especiais da comunidade, que, acreditava-se,
teriam aprendido o ofício dos espíritos, e não dos mortais. Por essa razão
a prática da arte era reservada à linhagem de certas famílias em particular.
Em certos grupos étnicos, os escultores usavam um distintivo de classe e
tinham uma posição de destaque na corte real (Munanga, 2019, p. 7).
Conforme Munanga (2019), para que os elementos artísticos ou culturais
fiquem retidos na memória de quem foi “cortado de suas raízes” seria necessário que
o indivíduo pertencesse ao núcleo de sua existência, pois este é o último que resiste à
ruptura. Nesse sentido, para este antropólogo, no Brasil, não houve a continuidade e a
recriação de todos os elementos da arte africana, já que para cá não foram transportadas
“a totalidade de suas estruturas social, política, econômica e religiosa” (2019, p. 8),
511
racismo e antirracismo
Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage
apenas houve a continuidade de algumas formas da arte afro, recriadas parcialmente
“em função de suas novas condições de vida”. Um campo cultural, segundo Munanga,
resistente, onde se pode observar a continuidade da arte africana, foi o da religiosidade.
Mesmo que ainda nos navios negreiros os cativos fossem batizados na religião Católica,
e tão logo chegassem ao Brasil fossem proibidos de praticar suas religiões, Munanga
explica que várias fontes de resistência e de sobrevivência foram encontradas, entre
as quais a associação entre os orixás e os santos católicos, base do surgimento de uma
linguagem plástica afro-brasileira.
É dentro dessa correspondência baseada nas semelhanças funcionais entre
santos católicos e orixás que devemos historicamente situar a questão
da continuidade das formas artísticas plásticas africanas e o surgimento
de uma linguagem plástica afro-brasileira. Uma linguagem sem dúvida
religiosa praticada por causa da repressão ideológica e política (Munanga,
2019, p. 11).
Contudo, por muito tempo a arte afro-brasileira ficou restrita, segundo
Munanga, às casas de cultos. Algo que só começa a mudar a partir dos anos 1930 e
1940, desdobramento também de estímulos científicos e culturais e do reconhecimento
de artistas. Sendo que a maioria desses artistas afro-brasileiros negros e mestiços, hoje
consagrados, ainda não teve a integralidade de suas obras devidamente visitada por
críticos e avaliadores. Algo que, na avaliação de Munanga, poderia corroborar para
classificá-los ou para conceituar a arte afro- brasileira, na medida em que seria possível
conhecer a variedade das obras de artistas e a história de vida de cada um deles. Com
base nos “poucos estudos existentes” sobre as obras de renomados artistas que tratam de
maneira sistemática das temáticas negra e suas formas ou da cultura com raízes africanas,
o antropólogo afirma que, para a arte merecer e conservar o atributo e qualificativo de
“afro”, há que se considerar vários elementos. Entre os quais estão “a forma ou o estilo;
as cores e seu simbolismo; a temática; a iconografia e as fontes de inspiração, todos
harmoniosamente articulados através do domínio de uma técnica capaz de dar corpo e
existência a uma obra de arte autêntica” (Munanga, 2019, p. 18). Ressalta, entretanto,
que isso não quer dizer que uma obra de arte tenha que reunir todas estas características,
bastaria apenas as mais relevantes como a forma e o tema. Portanto, a partir desta noção
512
racismo e antirracismo
Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage
mais ampla, como poderíamos situar o cinema frente à “afroarte”? E como o cinema
poderia contribuir mais efetivamente às lutas antirracistas?
Isso porque no caso do cinema, uma arte visual em essência e historicamente
reconhecido como a arte do tempo e do espaço, uma arte síntese (Canudo, 2007, p. 14)
que reuniu todas as outras que o antecederam (pintura, arquitetura, escultura, música,
poesia e dança), o qualificativo “afro” vinculado à temática racial e na perspectivas das
colonialidades1 torna-se extremamente complexo, mesmo que o atributo negro associado
ao cinema, com estas compreensões, atualmente já seja usual. Em 2022, a plataforma
de streaming Netflix lançou, após 20 anos de produção, o documentário A História do
Cinema Negro nos EUA (Is That Black Enough For You?!?), no qual anunciava que
o historiador e crítico cultural, Elvis Mitchell, traçava, nesta produção, a evolução e
a revolução do Cinema Negro, de suas origens ao impacto dos filmes da década de
1970. No Brasil, o Cinema Novo, da geração do cineasta Glauber Rocha, encontrou na
ideia do Cinema Negro uma das suas principais sustentações para contestar os vieses
colonizadores brasileiros, seja nas temáticas ou pelos seus personagens protagonizados
por atrizes e atores negros - Antônio Pitanga, Eliezer Gomes, Luiza Maranhão, Ruth
de Souza, Zózimo Bulbul, entre outros. No ano 2000, o manifesto Dogma Feijoada,
escrito pelo cineasta Jeferson De, propôs, inclusive, as bases de sustentação conceitual
do Cinema Negro no Brasil. Por outro lado, já são inúmeras as mostras ou festivais de
Cinema Negro, entre os quais o mais longevo no Brasil é a própria Mostra Internacional
do Cinema Negro de São Paulo, que em 2023 registra a sua 19ª edição. Contudo, pensar
no cinema especialmente a partir dos filmes produzidos na primeira década da História
do Cinema Mundial, quanto à representação das pessoas que viveram a escravidão
1Por “colonialidade”, partimos da compreensão de Aníbal Quijano e de outros autores latino-americanos que discutem este conceito associado ao poder e às questões raciais que configuram a dominação na
América (Latina), perdurando mesmo depois da independência dos países da região em relação às nações
colonizadoras. Para Quijano (2007, p. 285, tradução nossa): “A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão global do poder capitalista. Baseia-se na imposição de uma classificação
racial/étnica da população mundial como pedra angular desse padrão de poder, e atua em cada um dos
planos, escopos e dimensões, materiais esubjetivas, da existência cotidiana e em escala social” (La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se funda
en la imposición de una clasificación racial / étnica de la población del mundo como piedra angular de
dicho patrón de poder, y opera en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones, materiales y subjetivas,
de la existencia cotidiana y a escala social).
513
racismo e antirracismo
Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage
ou dos descendentes de africanos escravizados, seria encontrar-se como uma quase
completa ausência de qualquer referência estética em relação à arte e à cultura de nações
africanas que sofreram com a escravidão em países como os Estados Unidos?! Ou o
cinema enquanto arte que estava nascendo forma-se também sobre práticas criativas
firmadas na ideologia racista?
Ideologia racista no Cinema
Para discutir o racismo, inclusive como ideologia, Munanga analisa que “para
ser racista, coloca-se como postulado fundamental a crença na existência de ‘raças’
hierarquizadas dentro da espécie humana”. E acrescenta: “no pensamento de uma pessoa
racista existem raças superiores e raças inferiores” (Munanga, 2009, p. 9). Contudo, o
antropólogo avança ao detalhar que o “problema fundamental não está na raça, que é
uma classificação pseudocientífica rejeitada pelos próprios cientistas da área biológica”.
Para ele, o “nó do problema está no racismo que hierarquiza, desumaniza e justifica a
discriminação” (Munanga, 2022, p. 121).
Como uma ideologia, o racismo está nas entranhas da História do Cinema. Nos
Estados Unidos, sabe-se que boa parte desta história foi marcada pelo veto acerca da
representação de afro-americanos, sobretudo de si mesmo. Conforme Stam (2003), na
fase dos estúdios de Hollywood, o racismo figurava em documentos oficiais e em práticas
não oficiais. Dois exemplos disso são o Código Hays, que proibia as representações de
miscigenação, e o “preceito” de Louis B. Mayer, de que os “negros deveriam ser mostrados
apenas como engraxates ou porteiros” (Stam, 2003, p. 300). A preservação, o restauro e a
conservação dos filmes produzidos nos Estados Unidos, nos primeiros anos de existência
do cinema, também permitem que se constate o quanto o racismo foi uma prática
recorrente na pré-Hollywood. Diferentemente dos Estados Unidos, no Brasil, contudo,
existem poucas referências entre os anos 1898-1912, porque quase nada restou ou ainda há
de imagens cinematográficas brasileiras deste período. Além do que no Brasil, na primeira
década de existência do cinema, mais se consumiu filmes estrangeiros do que se produziu
(Gomes, 2016, p. 177). Estudar o multiculturalismo no cinema brasileiro nesta fase
seria, portanto, se ver obrigado a “recorrer a matérias de jornais, fotogramas, memórias,
propaganda e outros materiais de arquivo” (Stam, 2008, p. 97).
514
racismo e antirracismo
Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage
Assim sendo, a nossa análise fílmica e extrafílmica centra-se em cinco
produções dos estúdios de Thomas A. Edison. Sobre estes filmes buscou-se observar
as representações de afro-americanos nas produções cinematográficas com o
objetivo de situarmos o cinema, nos seus primeiros anos de nascimento, diante do
qualificativo “afro” e de identificarmos como o cinema contribuiu à ideologia racista.
Os filmes analisados foram acessados por meio do box de DVDs Edison A Invenção
dos Filmes, lançado, nos Estados Unidos, em 2005 (Edison: The Invention of the
Movies), com cerca de 860 minutos, e 140 filmes da Edison Company, produzidos
entre 1891-1918. Os filmes selecionados foram: 1) Competição de Comer Melancia
(Watermelon Eating Contest, USA, 1896); 2) Competição de Melancia (Watermelon
Contest, 1900); 3) Uma briga em Preto e Branco (A Scrap in Black and White, 1903);
4) O Caminho da Melancia (The Watermelon Patch, 1905); e 5) Gás Hilariante
(Laughing Gas, 1907). Desses cinco curtas-metragens, três remetem às históricas
associações racistas que supremacistas brancos (Figura 1), nos Estados Unidos, fazem
entre a melancia e os afro-americanos. Para o professor de Ciência Política, Richard
Waterman, filmes concebidos como comédia que, atualmente, são compreendidos
como imagens violentas contra homens, mulheres e crianças e que dão a perceber
o racismo sofrido por afro-americanos (Waterman, 2019). Para Waterman, esses
filmes produzidos, entre 1894 e 1915, são uma “farce comedy”. Conforme este autor,
inclusive, o cinema dos primeiros tempos teria sido responsável não apenas por
reforçar “todo estereótipo pejorativo imaginável” como também por legitimá-lo para
sociedade branca norte-americana.
O filme retrata as atitudes da sociedade em relação à raça durante o período
específico em que é produzido [...]. Os filmes não representam apenas uma
forma de entretenimento de massa, mas também fornecem uma janela
sobre as atitudes dos milhões de espectadores que os assistiram diariamente2
(Waterman, 2019, p. 2-3, tradução nossa).
2 “Film portrays society’s attitudes about race during the particular period when a movie is produced [...].
Movies represent not merely a mass form of entertainment, they also provide a window on the attitudes
of the millions of people who viewed them daily”.
515
racismo e antirracismo
Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage
Figura 1 - Três curtas com associações racistas aos afro-americanos produzidos pelos estúdios
de Thomas A. Edison. Fonte: Still de Watermelon Eating Constest (1896), Watermelon Constest
(1900) e The Watermelon Patch (1905)
Filmado em setembro de 1896, o curta Competição de Comer Melancia é
assinado por William Heise e James White e, atualmente, assim como os demais
analisados, está no acervo do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa). Com
50 segundos de duração, trata-se de uma filmagem de dois homens jovens que parecem
competir para saber quem come primeiro, e mais rápido, grande fatia de melancia. A
própria sinopse deste curtíssimo, presente no DVD 1, explica que a Edison Company,
assim como outras produtoras americanas da época, filmava “estereótipos raciais
bem conhecidos” que associavam as imagens dos afro-americanos aos “ladrões de
galinha preta e comedores de melancia”. A segunda produção com a mesma temática,
de outubro de 1900, Competição de Melancia, constante no mesmo DVD 1, com 2
minutos e 56 segundos de duração, apresenta a imagem de quatro rapazes negros que
também comem com rapidez grandes fatias de melancia, cospem os caroços enquanto
brincam e riem uns com os outros. O terceiro curta com esta associação, O Caminho
da Melancia, com 11 minutos de duração, incluído no DVD 2, foi filmado em outubro
de 1905, por Edwin S. Porter e Wallace McCutcheon. Começa com um plano aberto
de uma plantação de melancias, que tem dois espantalhos. Em seguida, dois homens
negros entram no quadro engatinhando e acabam chocando suas cabeças. Olham para a
câmera e riem, enquanto gesticulam. Em seguida acenam e outros seis homens negros
aparecem e começam a comer as melancias no chão. As roupas dos espantalhos caem e
surgem personagens vestidos com “figurinos de esqueletos humanos”, que gesticulam
516
racismo e antirracismo
Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage
e correm em direção aos rapazes negros que se apressam levando as melancias. Vários
caem e tropeçam uns nos outros. Os esqueletos continuam a correr atrás deles, que
pulam cercas sempre carregando as melancias. Até que conseguem despistar os
esqueletos durante a perseguição. A sequência seguinte apresenta homens, mulheres,
crianças e idosos dançando, dentro de uma casa, enquanto um deles toca um violão.
Depois de vários passos de dança e muitos risos, um deles joga uma melancia no chão
que se parte em vários pedaços. Todos pegam do chão um pedaço da fruta e começam
a comer. Na sequência seguinte, homens brancos com cães surgem e se deparam com a
casa que solta fumaça pela chaminé. Os homens brancos bloqueiam a saída da fumaça
da moradia. As pessoas que ainda estavam comendo melancia dentro da casa começam
a ficar sufocadas. Em seguida, fogem pelas janelas e pelo telhado. Do lado de fora, são
recebidas por homens brancos com cães, com chutes e empurrões.
Michelle Wallace, autora do livro Black Macho and the Myth of the Superwoman,
em entrevista constante no box de DVDs dos estúdios de Thomas Edison, explica que
as melancias eram muito consumidas pelos sulistas, nos Estados Unidos, e associa-se
à classe trabalhadora, aos pobres, aos interioranos porque eram eles que plantavam
e colhiam as frutas. Segundo ela, não há uma explicação sobre em que momento se
passou a associar a melancia aos afro-americanos. Mas é fato que havia uma “obsessão
nesses materiais racistas” e em representar negros “roubando comida”, jogando ou
sonolentos. Para Wallace (2005), todos esses estereótipos são indissociáveis da própria
condição socioeconômica daqueles que viviam no sul dos Estados Unidos, onde o seu
desenvolvimento se deu firmado sobre a ideologia racista, em que negros descendentes
de escravos vindos do continente africano foram submetidos à fome, à pobreza e à
rotina exaustiva do trabalho rural. Por isso, afirma Wallace (2005), quando se analisa
cada estereótipo não haveria nenhum ato (fome, cansaço ou diversão) que seja motivo
de vergonha e que todos eles foram gerados por uma “sociedade hipócrita”.
Em Uma briga em Preto e Branco (Figura 2), curta de 1903, com um minuto
de duração, assinado por Alfred C. Abadie, vê-se duas crianças em disputa de luta de
boxe. Esta produção também é marcada pelo racismo presente no cinema em relação
aos afro-americanos. A escritora Michelle Wallace (2005), inclusive, o define como
um filme “bem estranho” porque adultos brancos colocam duas crianças, uma branca e
outra negra, para lutarem. Sendo que sempre deixam o garoto negro apanhar. Algo que,
517
racismo e antirracismo
Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage
segundo a escritora, sugere atitudes diferentes em relação às crianças e dos próprios
meninos em relação à raça. Inclusive na entrevista presente no box de DVDs, Wallace
(2005) questiona: “Em que idade uma criança percebe plenamente quem ela é? De forma
que se permite ser racista? Com que idade uma criança entende isso?”.
Figura 2 - Filme de luta de boxe protagonizado por duas crianças, produzido pelos estúdios de Thomas
A. Edison. Fonte: Still de A Scrap in Black and White (1903).
Por outro lado, como observa Waterman (2019), assim como o cinema
comportou e propagou atitudes racistas, também há de se considerar que este mesmo
cinema, dos primeiros tempos, foi um lugar antirracista, ainda que de forma minoritária.
Esta hipótese reside no fato de que a elite branca não frequentava as primitivas salas de
cinema, os nickelodeons, lugares de diversão popular e frequentados por imigrantes,
trabalhadores e pobres. Perspectiva a se considerar no caso do curta Gás Hilariante, de
1907, de Edwin Porter e J. Searle Dawley, com nove minutos de duração. Protagonizado
por Bertha Regustus (Figura 3), atriz afro-americana, este filme tem algumas exceções
quanto às representações cinematográficas de pessoas negras no final do século XIX
e início do século XX. Gás Hilariante narra a história de uma mulher que recebe uma
excessiva dose de óxido nitroso no consultório do dentista e passa a ter crises de risos
que afetam todas as pessoas que ela encontra ao longo de um único dia.
518
racismo e antirracismo
Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage
Figura 3 - Atriz afro-americana protagoniza filme produzido pelos estúdios de Thomas A. Edison.
Fonte: Still de Laughing Gas (1907).
O incomum desta produção, primeiro, reside no fato de ter uma atriz
afro-americana atuando, já que era recorrente no cinema atores brancos usando
blackface, ou seja, com a pele pintada. Conforme Waterman (2019), outro aspecto
a se considerar, para a época das comédias mudas, é que a mulher negra está no
consultório para tratamento dentário e, mais, é atendida por um dentista branco.
Também não mostra a mulher negra trabalhando como criada na propriedade de
pessoas brancas, mas sim interagindo “dentro da sociedade branca”, andando de
bonde, ao ponto dos efeitos do seu riso afetarem indistintamente negros e brancos.
“Estas são imagens notavelmente positivas para este momento da história”, mesmo
que o filme tenha a sua faceta racista na sequência do dentista quando remove o dente
da personagem, este fica “superdimensionado, sugerindo que os afro-americanos
têm dentes semelhantes aos dos animais”. E o autor conclui: “Logo, não é totalmente
positivo, pois os risonhos afro-americanos ainda continuavam sendo foco principal
do humor do filme”3(Waterman, 2019, p. 13, tradução nossa). Apesar desta sequência
racista, a escritora Michelle Wallace (2005) afirma que Gás Hilariante precisa ser
compreendido com um passo significativo dado pelo cinema na representação dos
3 “These are remarkably positive images for this time in history [...]. When the dentist removes her tooth it is oversized, suggesting that African Americans have animal-like teeth [...]. Thus, thei mage is not
entirely positive, for laughing African Americans were still the main focus of the film’s humor”.
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negros. Para ela, é inquestionável que o curta traz a beleza de Bertha Regustus como
o diferencial. Wallace (2005) observa que Bertha Regustus era negra, linda e alta, por
isso deveria ser hipnotizante vê-la, razão que possivelmente levou o diretor querer
mostrá-la, “destacar essa pessoa singular”. A escritora, inclusive, cita o curta Gás
Hilariante como o exemplo de que nem todos os filmes, desta época, eram racistas
e que a superação do racismo se dará na medida em que a indústria cinematográfica
amadurece, se consolida e se reinventa.
Assim sendo, com base nesses aspectos tratados nas cinco produções dos
estúdios de Thomas A. Edison, pioneiro do cinema americano e grande exportador
de filmes para o Brasil, é possível inferir que o qualificativo “afro” relacionado
ao cinema, no seu nascimento, não teria praticamente nenhum dos elementos
mencionados por Munanga (2019) para merecer usá-lo, seja em relação ao estilo;
às cores e seu simbolismo; à temática; à iconografia ou às fontes de inspiração. Ao
contrário, a representação da cultura africana e dos afro-americanos parece ter sido
usada para reforçar ideologias supremacistas dos anglo-americanos em relação aos
afro-americanos. Sobretudo porque os cineastas afro-americanos, do cinema mudo,
não tinham condições financeiras de custear a produção e mais ainda a distribuição
de seus filmes.
Consequentemente, mesmo o cineasta negro mais prolífico de toda
a era do cinema mudo, Oscar Micheaux, foi forçado a voltar às
práticas dos primeiros cineastas, viajando pelo país com um número
limitado de cópias de seus filmes [...]. Sem rede de distribuição
eficaz, os cineastas afro-americanos fizeram relativamente poucas
cópias de seus filmes, muitos filmes feitos por afro-americanos
estão desaparecidos atualmente. Por exemplo, apenas três dos filmes
mudos de Oscar Micheaux existem atualmente, e um deles está
faltando material significativo4 (Waterman, 2019, p. 5, tradução
nossa).
4 “Consequently, even the most prolific filmmaker of the entire silent era, Oscar Micheaux, was forced
to revert to the practices of the very first filmmakers, traveling around the country with a limited number of copies of his films [...]. Without an effective distribution network, African American filmmakers
made relatively few copies of their films, one major reason why so many African American made films
are missing today. For instance, only three of Micheaux’s silent films presently exist, and one of them is
missing significant materia”.
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Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage
Waterman observa ainda que a produção de filmes por cineastas afroamericanos também precisava quase sempre passar pela censura de conselho controlado
por brancos, que frequentemente excluíam cenas e modificavam as tramas. Razão esta
pela qual alguns filmes, que temos acesso nos dias de hoje, incluindo de produtoras
comandadas por afro-americanos, teriam acabado por reforçar estereótipos racistas.
Segundo Waterman, este seria o caso da Ébano Companhia Cinematográfica (Ebony
Film Corporation), que causou indignação na comunidade afro-americana devido a
alguns filmes e pelo uso da logomarca de um macaco com blackface. Mas ainda que
houvesse dificuldade financeira e a falta de controle sobre a distribuição de filmes,
Waterman afirma que na comunidade negra “havia uma necessidade desesperada
de filmes feitos por afro-americanos”5 (2019, p. 8, tradução nossa) e alguns desses
filmes, do cinema mudo, foram responsáveis por construir uma nova cultura negra
urbana. Pesquisas recentes sobre esta produção têm reiterado não apenas a existência
da realização de filmes mudos negros como também a colocam como resistência ao
racismo. Em 2017, Dino Everett, arquivista da Escola de Artes Cinematográficas
da Universidade do Sul da Califórnia, examinando um lote de filmes, encontrou um
rolo de nitrato do século XIX. No rolo, estava a película intitulada Something Good,
Negro Kiss (Algo bom, Beijo Negro, USA, 29’’), de 1898, que seria a versão afroamericana (Figura 4) do filme The Kiss, produzido nos estúdios de Thomas A. Edison,
em 1896. Em entrevistas veiculadas em 2018, a professora especialista em cinema
afro-americano, Allyson Field, da Universidade de Chicago, declarou que este filme,
dirigido por William Nicholas Selig, se tratava da representação cinematográfica
mais antiga do amor negro, que rompe com os estereótipos racistas da época. “Não é
um corretivo para todas as deturpações racializadas, mas nos mostra que isso não é a
única coisa que estava acontecendo”6 (UChicago, 2018, tradução nossa).
5 “There was a desperate need for African American made films”.
6 “It’s not a corrective to all the racialized misrepresentation, but it shows us that that’s not the only thing
that was going on”.
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Figura 4 - Something Good, Negro Kiss (1898) é considerado a versão afro-americana de The Kiss
(1896). Fonte: Still Something Good-Negro Kiss (1898).
Logo, perante o constatável predomínio de um cinema que apagou a
representação da cultura afro, de que haveria lacunas a se preencher ou histórias a
se escrever quanto a um possível cinema afro-americano e afro-brasileiro, como
não reconhecer que as políticas afirmativas precisam alcançar o campo do cinema e
do audiovisual, em todas as suas fases (produção, distribuição e exibição, incluindo a
pesquisa e a história acerca de cada uma destas esferas)?! Como não vê-lo também como
um lugar das lutas antirracistas?! Afinal, como argumenta Munanga (2016, p. 39): “as
mudanças sociais não se fazem com discursos, embora saibamos que a retórica e
os discursos sejam importantes. As mudanças sociais se fazem com políticas, políticas
públicas afirmativas, às vezes universalistas, às vezes específicas”. Portanto, ter políticas
afirmativas no campo do cinema e do audiovisual seria atuar para superar longos anos
de apagamentos e também ir ao encontro das Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008 que
tornaram obrigatório o ensino da história e da cultura do negro, da África e dos povos
indígenas no Brasil.
Cinema: lugar de lutas antirracistas
Desde as primeiras projeções e realizações cinematográficas dos estúdios
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de Thomas A. Edison, mais de um século já se passou. Contudo, o debate sobre a
importância da diversidade no cinema continua mais vivo do que nunca, demonstrando
a importância do etnoletramento e de se tratar da Dimensão Pedagógica do Cinema
Negro, abordagens que se fundamentam na “reflexão acerca da inquietude humana
em relação às formas de representação da realidade em diferentes espaços e contextos”
(Prudente; Périgo, 2020, p. 422) e que propõem irmos além da “filmografia que tentava
fixar o negro em papéis de escravidão, por meio da empregada doméstica, da faxineira
e dos bandidos” (Prudente; Périgo, 2020, p. 426).
De Hollywood, ainda hoje, vêm vários exemplos dessa necessidade de se tratar
de etnoletramento fundamentado na Dimensão Pedagógica do Cinema Negro. Um
deles se dá após a divulgação de que a atriz e cantora Halle Bailey foi escolhida para
interpretar a princesa Ariel no live-action de A Pequena Sereia (2023), quando a “Disney
precisou administrar uma avalanche de comentários negativos” (Vieira, 2022). Por
outro lado, a própria Halle Bailey se declarou emocionada com a reação de crianças
negras ao vê-la nas telas (Figura 5). Uma das crianças no vídeo viral, na internet,
exclamou maravilhada: “Ela é negra!”.
Figura 5 - Halle Bailey se emociona com a recepção do filme A Pequena Sereia por crianças negras.
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Fonte: @HalleBailey - Twitter (2022)
Outro exemplo que demonstra a necessidade de se falar de etnoletramento,
por meio do Cinema Negro, se constata nos dados da pesquisa sobre diversidade e
representatividade no mundo do audiovisual, realizada pela Paramount Global, gigante
do mercado de mídias dos Estados Unidos. O levantamento realizado em 15 países,
incluindo o Brasil, divulgado pela CNN Brasil, em 2022, revelou que nove entre dez
pessoas no mundo afirmaram que a “representatividade na televisão e nos filmes tem
um impacto no mundo e influencia a percepção que temos de determinados grupos
ou pessoas”(Cardoso; Negrão, 2022). A maioria dos entrevistados, 52%, disse se sentir
mal representado nos filmes e séries. “Ou seja, por mais que os filmes e as séries
estejam melhorando no quesito incluir pessoas diferentes nas telas, a representação de
diferentes grupos não é feita de forma fidedigna” (Cardoso; Negrão, 2022). A pesquisa
da Paramount Global revelou ainda que 18% das pessoas negras no mundo percebem
que são retratadas como criminosas e 16% como perigosas. No Brasil, os índices são
ainda maiores: “23% das pessoas negras sentem que são retratadas como criminosas e
24% como perigosas” (Cardoso; Negrão, 2022).
Portanto, considerar a Dimensão Pedagógica do Cinema Negro, em contextos
educacionais com foco no etnoletramento, pode nos dar a ver, a compreender ou a
refletir sobre como os processos cinematográficos ou audiovisuais carregam em si
não apenas imaginários, mas também signos, códigos representativos, representações
socioculturais, afetos e, sobretudo, estruturas ideológicas das mais diversas ordens,
como é o caso da “ideologia racista, considerada uma das fundadoras da sociedade
brasileira” (Borges, 2018, p. 53) e também dos Estados Unidos, que têm sua história
atravessada por leis segregacionistas após a abolição da escravatura. Ou proporcionar
que mais e mais adultos, jovens, crianças e adolescentes se encantem e se identifiquem
com as personagens e as histórias dos filmes, séries e telenovelas que assistimos todos
os dias. Nas palavras de Prudente e Périgo (2020), que um adolescente afrodescendente,
de natureza quilombola, consiga se perceber como o herói nas realizações do Cinema
Negro, “identificando-se com os modelos discutidos que representam sua concepção
racial, aproximando-se da realidade cidadã, concorrendo contra as assimetrias
sociorraciais” (2020, p. 429). Nesse sentido, parece fundamental, por fim, tensionar o
papel das escolas de Cinema, das faculdades de Artes, de Museologia, de Comunicação, e
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os espaços de aprendizado de maneira geral, como propõe Munanga (2022), no sentido
não apenas de reconhecer a importância do debate sobre as temáticas da diversidade e
das diferenças, mas o quanto o mundo vem se complexificando há mais de um século:
Tanto as antigas migrações combinadas com o tráfico humano e a
colonização dos territórios invadidos quanto as novas migrações póscoloniais combinadas com os efeitos perversos da globalização econômica
criam problemas que prejudicam a convivência pacífica entre os diversos e
os diferentes. Entre esses problemas têm-se as práticas racistas, a xenofobia
e todos os tipos de discriminações, notadamente religiosas, chamadas
intolerâncias religiosas. As consequências de tudo isso engendram as
desigualdades e se caracterizam como violação dos direitos humanos,
especialmente o direito de ser ao mesmo tempo igual e diferente (Munanga,
2022, p. 117).
Para Munanga, a questão fundamental, atualmente, é como combinar a
igualdade com as diferenças e aponta uma direção:
Emprestando os argumentos de Alain Tourraine (1997, p. 371), não
vejo outro caminho a não ser a associação da democracia política com a
diversidade cultural baseadas na liberdade do Sujeito. Finalmente, de que
temos realmente medo? Das diferenças ou das semelhanças escondidas
atrás das diferenças? O ego e o alter estão sempre juntos, numa relação
dialógica (Munanga, 2022, p. 127).
Perspectiva trazida por Munanga que mais uma vez nos coloca, no mínimo,
diante da necessidade urgente de nos questionarmos sobre qual é o lugar hoje do
cinema e do audiovisual, da afroarte ou da arte indígena no Brasil, país que segue sendo
ardoroso consumidor das produções dos Estados Unidos que, de sua parte, ainda buscam
se encontrar acerca de temas como diversidade e representatividade. Até quando a arte
cinematográfica e audiovisual brasileira continuará a se embalar nas redes das lógicas
da colonialidade?
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racismo e antirracismo
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Referências
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527
Ficha Técnica
Curador
Celso Luiz Prudente
Direção artística
Celso Luiz Prudente
Assistente de direção
Ana Beatriz Prudente
Ana Vitória Prudente
Coordenação acadêmica
Celso Luiz Prudente
Cláudia Maria Ribeiro
Rogério de Almeida
Coordenação de Produção
Dacirlene Célia Silva
Produção executiva
Gargântua Produções
528
Comissão Científica Mostra Internacional
do Cinema Negro – MICINE
COORDENADORES:
Celso Luiz Prudente - Universidade Federal do Mato Grosso UFMT
Hugo Cesar Bueno Nunes - Faculdade SESI de Educação FASESP
Rogério de Almeida - Faculdade de Educação da USP FE/USP
MEMBROS:
Adérito Fernandes Marcos - Universidade de São José em Macau China
Afrânio Mendes Catani - USP/UERJ/Pq-CNPQ
Ailton Dias de Melo - Centro Universitário de Lavras Unilavras
Alessandro Garcia Paulino - Universidade Federal de São Carlos UFSCAR
Alexandre Filordi de Carvalho - Universidade Federal de São Paulo UNIFESP
Ana Claudia da Cruz Melo - Universidade Federal do Pará UFPA
Anderson Fabrício Andrade Brasil - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
UFRB
Benedito Dielcio Moreira - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT
Carlos Eduardo Paiva - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT
Carmen Lucia Souza da Silva - Universidade Federal do Pará UFPA
Cláudia Maria Ribeiro - Universidade Federal de Lavras UFLA/MG
Dennis de Oliveira - Universidade de São Paulo USP
Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos - Universidade de São Paulo
USP
529
comissão científica
Douglas Martins de Souza - Pontifícia Universidade Católica PUC/SP
Edileuza Penha de Souza - Universidade de Brasília UnB
Egidia Marques Souto - Universidade de Paris Sorbonne
Elizabete Franco Cruz - Escola de Artes Ciências e Humanidades da Universidade de
São Paulo EACH/USP
Elni Elisa Willms - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT
Emerson Ferreira Rocha - Universidade de Brasília UNB
Eunice Aparecida de Jesus Prudente - Universidade de São Paulo USP
Fábio Santos de Andrade - Universidade Federal de Rondônia UNIR
Flávio Ribeiro de Oliveira - Instituto de Estudos da Linguagem UNICAMP
Grace Campos Costa - Universidade Federal de Uberlândia UFU
Humberto Thomé-Ortiz - Universidad Autónoma del Estado de México, Toluca,
México
João Alegria Pontifícia - Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC Rio
João Clemente de Souza Neto - Universidade Presbiteriana Mackenzie
Júlio Taimira Chibemo - Universidade Alberto Chipande Beira Moçambique
Kabengele Munanga - Universidade de São Paulo USP
Karla Isabel de Souza - Faculdade SESI de Educação FASESP
Lays da Cruz Capelozi - Universidade Federal de Uberlândia UFU
Letícia Xavier de Lemos - Capanema Universidade Federal de Mato Grosso UFMT
Luiz Felipe de Alencastro - Fundação Getúlio Vargas FGV e Universidade de Paris
Sorbonne
Luís Jorge Manuel António Ferrão - Universidade Pedagógica de Maputo Moçambique
Luiz Sales do Nascimento - Pontifícia Universidade Católica de Santos
Marcos José Zablonsky - Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC/PR
Marcos Moreira - Universidade Federal de Brasília UNB
Maria Francisca Morais de Lima - Pró-reitora do Instituto Federal de Educação do
Amazonas – IFAM
Mariana Conde Rhormens Lopes - Universidade Estadual de Campinas UNICAMP
Maristela Carneiro - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT
Michelle Júlia de Sousa - Universidade de São Paulo/Faculdade de Educação FEUSP
Noel dos Santos Carvalho - Universidade Estadual de Campinas UNICAMP
530
comissão científica
Paulo Morais-Alexandre - Instituto Politécnico de Lisboa, Portugal
Paulo Ronqui - Universidade Estadual de Campinas UNICAMP
Reginaldo Santos Pereira - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB
Ricardo Alexino Ferreira - Universidade de São Paulo USP
Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
UFRB
Roberlaine Ribeiro Jorge - Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA
Roberto Silva - Universidade de São Paulo USP
Robson Pereira da Silva - Universidade Federal de Uberlândia UFU
Rogério Garcia Fernandez - Universidad Complutense de Madrid – Espanha
Rosenilton Silva de Oliveira - Universidade de São Paulo USP
Rubia Helena Naspolini Coelho Yatsugafu - Universidade Federal de Mato Grosso
UFMT
Sara Moraes - Universidade Federal de Brasília UNB
Sérgio Pereira dos Santos - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT
531
Ficha Técnica SESI
SESI – SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA
DEPARTAMENTO REGIONAL DE SÃO PAULO
PRESIDENTE
Josué Christiano Gomes da Silva
CONSELHEIROS
André Luiz Pompéia Sturm
Dan Ioschpe
Elias Miguel Haddad
Luiz Carlos Gomes de Moraes
Antero José Pereira
Narciso Moreira Preto
Sylvio Alves de Barros Filho
VandermirFrancesconi Júnior
Massimo Andrea Giavina-Bianchi
Irineu Govêa
Marco Antonio Melchior
Alice Grant Marzano
Marco Antonio Scarasati Vinholi
Sérgio Gusmão Suchodolski
Daniel Bispo Calazans
532
ficha técnica sesi
SUPERINTENDENTE DO SESI-SP
Alexandre Ribeiro Meyer Pflug
GERENTE EXECUTIVA DE CULTURA
Débora Viana
SUPERVISOR TÉCNICO DE CULTURA
Luis Davi Gambale
SUPERVISOR DE GESTÃO DE PROJETOS CULTURAIS
Jonatas Willian de Oliveira Sousa
NÚCLEO DE CONTRATAÇÕES ARTÍSTICAS
ANALISTAS DE SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS
Eduardo Viegas Cerigatto
Ione Augusta Barros Gomes
Jonatã Ezequiel da Silva
EQUIPE DE ARTES VISUAIS E AUDIOVISUAL
ANALISTAS DE ATIVIDADES CULTURAIS
Elder Baungartner
Eliana Garcia
Larissa Lanza
CENTRO CULTURAL FIESP
SUPERVISOR TÉCNICO
Marcio Madi
MEDIADORES CULTURAIS
Alcides Moraes Neto
533
ficha técnica sesi
Maria Fernanda Guerra
Rodrigo Domingos de Andrade
ORIENTADORA DE ARTES CÊNICAS
Priscila Aparecida Gabriela Borges
ORIENTADORES DE PÚBLICO
Éderly Cármen C. Ribeiro Rocha
Herbert de Souza Laurentino
Matheus Cardoso Nogueira
MONITORES DE ARTE EDUCAÇÃO
Alessandra Rossi
Diana Proença Modena
Ítalo Ângelo Pereira Galiza
Joyce Neves
Tainá Alves Custodio
Thalita Marangon Bião
Vinicius Araujo Buava
ENCARREGADO MAQUINISTA
Nilson dos Santos
MAQUINISTAS
Alessandro dos Santos Peixoto
Menes Santos Machado
ILUMINADORES
André Luiz Porto Salvador
Dara Thayna de Lima G. Duarte
Rubens Marcel G. Torres Masson
Rutílio Gomes Pauferro
534
ficha técnica sesi
SONOPLASTAS
Charles Alves dos Santos
Roberto Aparecido Coelho
Roselino Henrique Silva
CONTRARREGRAS
Carlos Leandro de Carvalho Braga
Evandro Pedro da Silva
Júlio Silva Neto
ESTAGIÁRIAS
Bianca Moriel Rodrigues
Maria Fernanda Minuci Motta
Yasmin de Souza Araújo
NÚCLEO DE MEMÓRIA CULTURAL
ANALISTA DE ATIVIDADES CULTURAIS
Josilma Gonçalves Amato
ESTAGIÁRIAS
Nathaly Fernandes Souza
Thais dos Anjos Bernardo
EQUIPE DE COMUNICAÇÃO
DIRETORA EXECUTIVA DE MARKETING E COMUNICAÇÃO CORPORATIVA
Ana Claudia Fonseca Baruch
GERENTE DE MARKETING E COMUNICAÇÃO CORPORATIVA
Leticia R. C. Martins Acquati
535
ficha técnica sesi
DIREÇÃO DE CRIAÇÃO
Bruno Bertani
GERENTE DE PLANEJAMENTO DIGITAL
Rafael Queirós
GERENTE DE IMPRENSA
Rose Matuck
ASSESSORA DE COMUNICAÇÃO
Mariana Soares de Andrade Lima
ESTAGIÁRIO
Klelvien Cabilo Arcenio
536
Realização:
Apoio: