Academia.eduAcademia.edu
Celso Luiz Prudente & Rogério de Almeida (Orgs.) Cinema Negro D’África à Diáspora: o pensamento antirracista de Kabengele Munanga  GALATEA cinema negro D’África à Diáspora: o pensamento antirracista de Kabengele Munanga Realização: Apoio: Conselho Editorial: Alberto Filipe Araújo, Universidade do Minho, Portugal Alessandra Carbonero Lima, USP, Brasil Ana Guedes Ferreira, Universidade do Porto, Portugal Ana Mae Barbosa, USP, Brasil Anderson Zalewski Vargas, UFRGS, Brasil Antonio Joaquim Severino, USP, Brasil Aquiles Yañez, Universidad del Maule, Chile Belmiro Pereira, Universidade do Porto, Portugal Breno Battistin Sebastiani, USP, Brasil Carlos Bernardo Skliar, FLASCO Buenos Aires, Argentina Cláudia Sperb, Atelier Caminho das Serpentes, Morro Reuter/RS, Brasil Cristiane Negreiros Abbud Ayoub, UFABC, Brasil Daniele Loro, Università degli Studi di Verona, Itália Elaine Sartorelli, USP, Brasil Danielle Perin Rocha Pitta, Associação Ylê Seti do Imaginário, Brasil Edesmin Wilfrido P. Palacios, Un. Politecnica Salesiana, Ecuador Gabriele Cornelli, Universidade de Brasília, Brasil Gerardo Ramírez Vidal, Universidad Nacional Autónoma de México Jorge Larossa Bondía, Universidade de Barcelona, Espanha Ikunori Sumida, Universidade de Kyoto, Japão Ionel Buse, C. E. Mircea Eliade, Unicersidade de Craiova, Romênia Isabella Tardin Cardoso, UNICAMP, Brasil Jean-Jacques Wunnenberger, Université Jean Moulin de Lyon 3, França João de Jesus Paes Loureiro, UFPA, Belém, Brasil João Franscisco Duarte Junior, UNICAMP, Campinas/SP, Brasil Linda Napolitano, Università degli Studi di Verona, Itália Luiz Jean Lauand, USP, Brasil Marcos Antonio Lorieri, UNINOVE, Brasil Marcos Ferreira-Santos, USP, Brasil Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio, USP, Brasil Marian Cao, Universidad Complutense de Madrid, España Mario Miranda, USP, Brasil Patrícia P. Morales, Universidad Pedagógica Nacional, Ecuador Pilar Peres Camarero, Universidad Autónoma de Madrid, España Rainer Guggenberger, UFRJ, Brasil Regina Machado, USP, Brasil Roberto Bolzani Júnior, USP, Brasil Rogério de Almeida, USP, Brasil Soraia Chung Saura, USP, Brasil Walter Kohan, UERJ, Brasil C EL S O L UIZ PRUDEN T E & ROGÉR IO DE A L MEIDA (ORG S .) cinema negro D’África à Diáspora: o pensamento antirracista de Kabengele Munanga DOI: 10.11606/9786587047560 SÃO PAULO, SP 2023 © 2023 by Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Distribuição gratuita. Coordenação editorial: Rogério de Almeida e Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio Projeto Gráfico e Editoração: Marcos Beccari e Rogério de Almeida Capa: Marcos Beccari Revisão dos autores Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e a autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada. Catalogação na Publicação Biblioteca Celso de Rui Beisiegel Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo C574 Cinema negro: D’África à diáspora – o pensamento antirracista de Kabengele Munanga / Organizado por Celso Luiz Prudente, Rogério de Almeida. -- São Paulo: FEUSP, 2023. 491 p. ISBN 978-65-87047-56-0 (E-book) DOI: 10.11606/9786587047560 1. Cinema 2. Educação 3. Cinema negro 4. Cultura Afro-brasileira 5. História Afro-brasileira 6. Antirracismo I. Prudente, Celso Luiz II. Almeida, Rogério de III. Título CDD 22. ed. 37.045 Ficha elaborada por: Nicolly Leite – CRB-8/8204 Universidade de São Paulo Reitor: Prof. Dr. Carlos Gilberto Carlotti Junior Vice-Reitora: Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda Faculdade de Educação Diretora: Profa. Dra. Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto Vice-Diretor: Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto Avenida da Universidade, 308 - Cidade Universitária - 05508-040 – São Paulo – Brasil E-mail: spdfe@usp.br / http://www4.fe.usp.br/ FEUSP SUMÁRIO Em maio Oswaldo de Camargo 10 Apresentação 12 A conscientização na luta antirracista 14 Filmes da 19ª Mostra Internacional do Cinema Negro 15 Músicas 25 Bola de Nieve, expressão cultural de um Caribe sem fronteiras: pianista, cantor, chansonnier, compositor y otras cositas más - uma pesquisa se fazendo Afrânio Mendes Catani 33 “Quando tá seco logo umedeço, eu não obedeço porque sou molhada”: Semiótica interligando histórias de mulheres, de negritudes e do mundo LGBTQUIA+ Ailton Dias de Melo; Alessandro Garcia Paulino; Cláudia Maria Ribeiro 67 Empoderamento e representatividade na animação Zarafa: a importância de narrativas diversificadas para crianças negras Ana Clara Franco Nunes; Ester Eva Pereira; Leonardo Ribeiro Batista; Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos 89 Sustentabilidade racial e educação antirracista: um ensaio sobre atitudes decoloniais Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos 97 Representações socioculturais da Afro-América: a terceira raiz na perspectiva do documentário etnográfico Humberto Thomé Ortiz; Roberlaine Ribeiro Jorge 111 Negrum3 - Por uma Pretagogia de saberes em corpos negros LGBTQIA Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita; Edileuza Penha de Souza 139 Carolina Maria de Jesus: educação para a resistência Michelle Júlia de Sousa; Hugo Cesar Bueno Nunes; Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos 159 Nosso olhar vem de longe: a estética existencial no filme Chikwembo (moçambique) Júlio César Boaro; Rogério de Almeida 174 A importância da trilha sonora de Barravento na sensibilização da educação musical Alexandre Siles Vargas; Celso Luiz Prudente 192 A literatura infantil nos anos inicias na construção da identidade negra: A representatividade positiva dos aspectos étnicos e culturais da população negra como empoderamento identitário Alexsandra Bruna de Assis Campos; Rubia Helena Naspolini Coelho Yatsugafu 214 As lutas de imagens das minorias versus a política da educação monocultural: as relações étnico-raciais postas em questão Celso Luiz Prudente 238 Educação para o direito e o cinema negro Douglas Martins de Souza; Michel Leite Viana; Luiz Sales do Nascimento 258 Batucada de Nego Véio: memórias do samba e masculinidades na zona leste de São Paulo Fernando de Paula Manelichi; Elizabete Franco Cruz 282 O Conceito de Verdade entre os Gregos Antigos: Mito e História na Representação do Negro no Cinema Flávio Ribeiro de Oliveira 313 Cinema na Educação Infantil: a construção da cultura a partir da 329 representatividade do personagem Kiriku Karla Isabel de Souza; Rogério Garcia Fernandez O Povo negro sob a ótica de intelectuais brasileiros – O reconhecimento 347 da (des)armonia Laudicéia Fagundes Teixeira; Fábio Santos de Andrade; Reginaldo Santos Pereira Um olhar para a negritude: o caminhar de um homem em defesa da 365 equidade racial Maria Francisca Morais de Lima; Luiz Carlos Ferreira Notas sobre o pós-abolição no cinema a partir do filme “O fio da memória” 374 (1991), de Eduardo Coutinho Robson Pereira da Silva; Grace Campos Costa; Lays da Cruz Capelozi Luiz Gama: o contributo civilizatório da negritude como 406 uma contra-perspectiva da missão civilizadora ocidental Ana Vitória Luiz e Silva Prudente; Alexandre Filordi de Carvalho O cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas que 430 reverberam silenciados e revelam invisibilidades Antonio Luiz do Nascimento Sonhar nas Sombras, Alcançar o Estrelato. O Cinema na Vida 446 de Milton Gonçalves Elaine Pereira Rocha A Presença Negra na Amazônia: história, lutas e resistência 473 Maria Aparecida Costa Oliveira, Gisely Storch do Nascimento, Fábio Santos de Andrade e Celso Luiz Prudente Educação e cidadania: sobre acolhimento e respeito em ações afirmativas 484 João Carlos Salles O ensino da cultura popular para a superação do racismo estrutural Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira 496 Racismo e antirracismo no cinema à luz de Kabengele Munanga Ana Claudia da Cruz Melo, Carmen Lucia Souza da Silva e Ádria Sofia Dias Lage 510 Ficha Técnica 528 Comissão Científica Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE 529 Ficha Técnica SESI 532 Em Maio Oswaldo de Camargo1 Já não há mais razão para chamar as lembranças e mostrá-las ao povo em maio. Em maio sopram ventos desatados por mãos de mando, turvam o sentido do que sonhamos Em maio uma tal senhora Liberdade se alvoroça E desce às praças das bocas entreabertas e começa: “Outrora, nas senzalas os senhores...” Mas a Liberdade que desce às praças nos meados de maio, pedindo rumores, é uma senhora esquálida, seca, desvalida e nada sabe de nossa vida. 1 O mais antigo literato negro vivo. O poema intitulado “Em maio” foi publicado originalmente no livro: CAMARGO, Oswaldo de. 30 poemas de um negro brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p.111/112. 10 em maio Oswaldo de Camargo A Liberdade que sei é uma menina sem jeito, vem montada no ombro dos moleques ou se esconde no peito em fogo dos que jamais irão à praça. Na praça a Esperança se encolhe ante o grito “Ó bendita Liberdade!” E esta sorri e se orgulha, de verdade, do ‘muito’ que tem feito... 11 Apresentação Este livro surge em concomitância à 19ª edição da Mostra Internacional do Cinema Negro (MICINE) e tem a sua significação em um processo dialógico com os impactos dos 20 anos da lei 10.639/2003, que dispõe sobre a obrigatoriedade em todo território nacional brasileiro do ensino da história da África e da cultura afro-brasileira. A possibilidade de atender essa necessidade implicou na compreensão da capacidade pedagógica dos movimentos sociais, que é a principal fonte dialética do processo democrático, com um ensinamento civilizatório que aponta o caminho da contemporaneidade inclusiva, contribuindo para a superação do anacronismo excludente, herdeiro de um processo patogênico favorável a uma entropia no tecido institucional por insuficiência de oxigenação nas veias da democracia, o que favoreceu a negação das relações polissêmicas próprias da identidade fraterna, de tal sorte que, assim, os elementos da violência da dominação se sobrepuseram às substâncias identitárias da solidariedade. Esse fenômeno, que se evidencia em preconceitos, notadamente o racismo, é inegavelmente um fator prejudicial para a compreensão do sentido pátrio do respeito ao outro necessário para a coesão na dinâmica fraterna, solidária e fundamental no projeto de nação, que no caso específico do Brasil, um país multirracial, implica na consciência de respeito à diversidade e no convívio transigente com a multiplicidade específica de nossa nacionalidade. Essa situação é percebida na escolaridade monocultural, cuja contradição é resultado da história única que vem sendo impactada pela força disruptiva dos esforços de amplitude holística da construção da imagem do outro a partir do seu contributo de sujeito, que encontrou sentido legal na lei 10.639/03, alterada pela lei 11.645/08. 12 apresentação 19a Mostra Internacional do Cinema Negro O quadro patológico que caracteriza as relações sociais da atualidade tensiona os esforços para aprofundar as relações humanas, contradição que ainda é percebida no modo ambíguo como o racismo se manifesta em nossa sociedade. Como lembra Kabengele Munanga, embora o brasileiro não se reconheça racista, age com certa naturalidade diante de processos e ações francamente racistas. É por isso que a educação se torna o principal campo de combate dos preconceitos, principalmente os raciais. É nessa linha de compreensão que se evidencia as duas décadas da lei 10.639/03 e os 19 anos de Mostra Internacional do Cinema Negro, ações que se entrelaçam na busca de ações afirmativas para a questão étnico-racial. Nesse contexto, este livro, inspirado na MICINE, homenageia o professor Kabengele Munanga, pela imensurável contribuição de seu legado, que se evidencia na criação de uma pedagogia antirracista, importante forma de luta que emana de sua trajetória como professor de Antropologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Os organizadores 13 A conscientização na luta antirracista Com a criação e curadoria do Prof. Celso Luiz Prudente, a Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE chega à sua 19ª edição em 2023, dando continuidade ao trabalho cultural e acadêmico realizado ao longo dos anos. O projeto, que visa principalmente o cinema negro, abrange exibições de filmes, mesas de debates, palestras e a produção de um livro sobre a temática. O tema de 2023 é “D’África à diáspora: o pensamento antirracista de Kabengele Munanga”. O propósito é observar a dinâmica das relações étnico-cinematográficas da africanidade. Kabengele Munanga é professor e antropólogo que trouxe para o Brasil o estudo do racismo na Universidade de São Paulo – USP, com o intuito de contribuir para a superação da desigualdade social, promovendo o respeito à diversidade em um país multirracial como o Brasil. A proposta também é dialogar sobre os impactos dos 20 anos da Lei 10.639/2003, que trata da obrigatoriedade do ensino no Brasil da história da África e da cultura afrobrasileira. O SESI-SP é uma instituição que trabalha pela educação de forma ampla, e onde a cultura é parte importante desse processo. Desta forma, a parceria com a Mostra Internacional do Cinema Negro - MICINE e todos os projetos desenvolvidos pela instituição visam à formação de novos públicos em artes, democratizar e ampliar o acesso à cultura, além de incentivar a produção e a difusão de obras das mais variadas vertentes artísticas. SESI-SP 14 Filmes da 19a Mostra Internacional do Cinema Negro Longa-metragem Andança os encontros e as memórias de Beth Carvalho Brasil, 2023, 115min. Documentário Direção: Pedro Bronz Sinopse: Beth Carvalho, a “Madrinha do Samba”, foi uma das maiores sambistas do Brasil, ajudou a revelar grandes nomes e a revitalizar o gênero musical. Sua sensível capacidade de percepção da realidade fez com que ela própria documentasse os ilustres encontros ao longo dos seus 53 anos de palcos e pagode. As imagens do documentário são parte desse vasto acervo pessoal nas mais diferentes mídias: super-8, vh-s, minidv, k7 e fotos. O filme se debruça sobre esse material de Beth Carvalho para traçar um recorte único, íntimo da carreira e da vida dessa singular figura da cultura nacional. Classificação indicativa: 12 anos Awurê na Bahia Brasil, 2021, 138 min., documentário Direção: David Obadia Sinopse: Nossa viagem pela Rota do Samba de Roda nos presenteou com incríveis encontros, profundos saberes e inesquecíveis histórias, mas sobre tudo nos nutriu de aprendizados que levaremos por toda vida. Classificação indicativa: livre 15 filmes 19a Mostra Internacional de Cinema Negro Cidade Correria Brasil, 2020, 83 min., ficção Diretora: Juliana Vicente Elenco: Daniela Joyce. Hugo Bernardo, Igor da Silva, Jardila Baptista, Karla Suarez, Livia Laso, Marcelo Magano, Patrick Sonata, Thiago Rosa, Vanessa Rocha, Adriana Schneider, Lucas Oradovchi. Sinopse: Cidade Correria é Brasil pulsante e radicalmente coletivo. Por dentro do processo do espetáculo, o encontro do transbordamento das urgências cotidianas, contradições, alegrias, delírios, feridas e potências através da voz e nascimento do Coletivo Bonobando, grupo inspirador que se expande do palco para o mar, do mar para a cidade, da cidade para a tela. Classificação indicativa: livre “Os Filhos de João” - O admirável mundo novo baiano Brasil, 2009, 75 min., documentário Direção: Henrique Dantas Sinopse: A trajetória dos Novos Baianos, grupo encabeçado por Pepeu Gomes, Baby do Brasil, Moraes Moreira, Luiz Galvão e Paulinho Boca de Cantor. Nos anos 1970, a banda ganhou um padrinho famoso e influente: João Gilberto. Classificação indicativa: 14 anos A Mãe de todas as lutas Brasil, 2020, 84 min., documentário Direção: Susanna Lira Sinopse: Uma narrativa que recorre à memória para vislumbrar um futuro de mudanças sob a ótica feminina. O filme acompanha a trajetória de Shirley Krenak e Maria Zelzuita, mulheres que estão na frente da luta pela terra no Brasil. Shirley trazem a missão de honrar as mulheres e a sabedoria das Guerreiras Krenak, da região de Minas Gerais. Maria Zelzuita é uma das sobreviventes do Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, e suas trajetórias nos ligam ao conceito da violência e apropriação do corpo feminino. Classificação indicativa: 14 anos 16 filmes 19a Mostra Internacional de Cinema Negro Memórias Afro-Atlânticas Brasil, 2019, 76 min., documentário Direção: Gabriela Barreto Elenco: Babá Nino de Oxumarê, Ialorixá Gbala-mi, Luiz Pepeu, Mãe Carmen Oliveira da Silva, Makota Mama, Mameto Kamurici, Gabi Guedes, Monica Millet, Nancy de Souza e Silva (D. Cici), Taata Zinge, Takuyra Costa, Tamoacy Costa, Tanael Costa, Valmir Pereira dos Santos, Xavier Vatin, Yeda Pessoa de Castro. Sinopse: “Memórias Afro-Atlânticas” segue os passos da pesquisa conduzida na Bahia no início da década de 1940, pelo linguista afro- americano Lorenzo Turner (18901972). Ao longo de meses de trabalho, Turner acumula preciosos registros em áudio e fotografia, retratando a experiência linguística e musical de personalidades como Mãe Menininha do Gantois, Joãozinho da Goméia e Manoel Falefá. Através de imagens e sons raros, o documentário revisita terreiros de candomblé registrados por Turner e reencontrarem a nascentes e memórias vivas quase 80 anos depois. Classificação indicativa: livre Mimbó Brasil, 2022, 53 min., documentário Direção: Chico Rasta Sinopse: Após fugirem de fazendas em Pernambuco, três pessoas escravizadas andaram 680 quilômetros até chegarem ao Piauí. Durante 30 anos eles viveram escondidos numa caverna e fundaram a comunidade do Mimbó. Hoje seus descendentes lutam por seus direitos Classificação indicativa: livre Vivendo no limite Cuba, 88min. Documentário Direção Belkis Vega Tradução: Kelvin dos Santos Valentim, Kathy Yvonne Meza Trafian Santos Tradução e Edição: Karla Isabel de Souza Sinopse: O conflito entre a vida e a morte é um grande conflito da existência humana Classificação indicativa: 12 anos 17 filmes 19a Mostra Internacional de Cinema Negro MÉDIA-METRAGEM KABENGELE o griô antirracista Brasil, 2023, 27m24s, documentário Direção: Celso Luiz Prudente Sinopse: Uma observação crítica e reflexive da trajetória de um antropólogo, Kabengele Munanga, que vem do Congo, em razão de uma perseguição implacável da ditadura local. Mas se torna uma referência acadêmica na USP, na luta antirracista junto com o movimento negro brasileiro. Classificação indicativa: livre Caminhos Afrodiaspóricos pelo Recôncavo da Guanabara Brasil, 2022, 20 min., documentário Direção: Wagner Novais Elenco: Sophia Martins, Renan Dionata, Mãe Celina de Xangô, Renato Noguera, Helena Theodoro, Dandara Suburbana e Monica Lima. Sinopse: Carmem, uma viajante do tempo, reúne dados para a criação de uma mitologia afrodiaspórica no território da Pequena África. Em suas andanças, reúne um legado ancestral, descobre que o tempo é cíclico e que todos podem contribuir para um future melhor. Classificação indicativa: livre ẸnitíLànà - aquele que abre o caminho Brasil, 2022 39m42s, documentário Direção: Filipe Brito SINOPSE A Web série resgata memória e resistência da luta antirracista no Brasil por meio da figura de Rafael Pinto. A produção, dividida em 4 capítulos, apresenta a trajetória de uma das lideranças mais importantes do movimento negro brasileiro e conta com depoimentos de Sueli Carneiro, Milton Barbosa, Edna Roland, entre outros. Classificação indicativa: Livre 18 filmes 19a Mostra Internacional de Cinema Negro Ewé de òsányin: o segredo das folhas Brasil, 2021, 22 min., Aventura/animação Direção: Pâmela Peregrino Elenco: Òsányìn: MAROON, Esù: Yuri Kevin, Caipora: Janaina Truká-Tupan, Véia: Alzení Tomáz, Criança das Folhas: Natalia Fróes, Cientista: Sílvia Janayna Ilébomim, Som de crianças: Arthur Felipe Melo da Silva, Marcos Paulo Souza Siqueira, Caiê Lima Souza, Samuel Jonatas Santos da Silva. Sinopse: Uma criança nasce com folhas em seu corpo e sua mãe busca a cura. Na escola, porém, as outras crianças a discriminam e ela foge para mata! Na Caatinga, encontra seres encantados de tradições indígenas e negras e caminha numa aventura de autoconhecimento. Sua busca a leva até Òsányìn, o Orisà das folhas, que apresenta o poder das plantas e a importância da preservação ambiental. Classificação indicativa: livre #ForaCargill Brasil, 2022, 35min. Documentário Direção: Francisco Weyl Sinopse: #FORACARGILL tem como cenário as ilhas do município de Abaetetuba afetadas pela construção do Terminal de Uso Privado da empresa Norte americana em território do Programa de Assentamento Agro-Extrativista Santo Afonso, na Ilha do Xingu, Município de Abaetetuba, onde vivem e trabalham cerca de 200 famílias, numa área de 2.705,6259 hectares. O DOC contrapõe o projeto privatista a um mundo coletivo, ancestral, de conhecimentos e saberes próprios, ameaçado de desaparecer, bem como essas comunidades tradicionais se organizam e como lutam para conquistar acesso e permanência à terra, os impactos ambientais e sociais causados pela construção do porto, portanto, é através das falas das lideranças e das pessoas da comunidade, inclusive as ameaçadas, que o narrar os conflitos e perigos aos quais estão submetidas as comunidades locais na Amazônia Paraense. Classificação indicativa: 12 anos 19 filmes 19a Mostra Internacional de Cinema Negro Tributo a Januário Garcia Brasil, 1969, 34 min., documentário Direção: Dom Filó Elenco: Januário Garcia. Sinopse: Uma homenagem a Januário Garcia, Fotógrafo brasileiro com extensor trabalho nas áreas de publicidade, música e documentação de afrodescendente sem âmbitos social, político, cultural e econômico. Ele participava de importantes espaços de memória, arte e cultura do povo negro além do âmbito profissional. “Na minha geração ninguém vai poder falar que o negro não tem memória, porque vai ter. Eu vou fazer essa memória” Januário Garcia. Classificação indicativa: 14anos Nhinguitimo (O Vento Sul) Moçambique, 2021, 23 min., ficção Direção: Licinio Azevedo Elenco: Antonio Sitoi, Jorge Vaz, Ivan Barrama, Antonio Cabrita, Luis Sarmento, Silvana Pompal, Nurodine Daude, Joana Manhiça, Vitor Tomás. Sinopse: Moçambique, 1960. Nas noites quentes, na pequena vila no fértil vale do rio Incomati, os homens reúnem-se na cantina do Rodrigues, dividida em duas partes. Uma das partes, com balcão frigorífico, o único da vila, com boas mesas e cadeiras confortáveis, é apenas para os brancos, os chefes da administração colonial. A outra parte, sem nenhum conforto, é para trabalhadores agrícolas e jovens moçambicanos da vila, frequentada também por prostitutas. Num e noutro lado, as conversas incidem sobre a colheita do milho que se aproxima. Vírgula Oito, trabalhador da machamba do Rodrigues, mas que tem a sua própria machamba na “Reserva Indígena”, vangloria-se da fertilidade da sua terra, irrigada pelas águas do rio, revela planos sobre o que fará com o dinheiro da venda do milho, que inclui casar-se com a sua apaixonada. Os seus planos não se realizam, pois o próspero cantineiro convence o administrador da vila a passar para os colonos as terras da reserva. Vírgula Oito enlouquece, tomado por uma fúria assassina. Classificação indicativa: livre 20 filmes 19a Mostra Internacional de Cinema Negro Se essa rua fosse minha Brasil, 2022, 39 min., documentário Direção: Julia Lea de Toledo Elenco: Romeu de Medeiros, Cristina Costa, Custódio Cândido e Márcio Careca. Sinopse: No centro do Rio de Janeiro, longe dos típicos cartões postais da “Cidade Maravilhosa”, uma pequena rua revela uma cidade diferente. Nela, Romeu, fluent em inglês, vive a condição de morador de rua; Cristina, companheira em todos os momentos, denuncia a miséria que os cerca. Careca manobra os carros dos pacientes de uma clínica médica enquanto pede proteção às suas entidades religiosas. Custódio, ou Botafogo para os íntimos, passa seus dias preocupados com a possibilidade de uma ação de despejo enquanto deposita sua fé nas apostas do jogo do bicho. Essas quarto figures convivem numa movimentada rua de um bairro em acelerada deterioração, e seus dramas pessoais, diariamente, se cruzam. Classificação indicativa: 10 anos CURTA-METRAGEM A Arte Alimenta a Vida Brasil, 2022, 12 min., documentário Direção: Éder Santos e Dones Santos Sinopse: A formação política exige tempo e dedicação. Em tempos de desmontes dos direitos conquistados, a resistência dos povos indígenas é exemplo de enfrentamento. O que está em jogo é mais que a democracia: é nossa sobrevivência. O filme traz o pensamento e a obra do artista Dones, indígena arte-educador que traduz sua tradição ancestral contribuindo para a afirmação da imagem positiva da luta dos povos originários do Brasil. Classificação indicativa: Livre Bigorrilho Brasil, 2023, 7m53s, documentário Direção: Leonne Gabriel e Guarani Ribas Prado Sinopse: Na rotina do taxistaTangerina o tempo deixa de ser absoluto e passa a ser relativo. A percepção da velocidade das horas oscila ao longo do dia no ponto de taxi em 21 filmes 19a Mostra Internacional de Cinema Negro Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro (Brasil). O novo e o velho, o passado e o future estão sobrepostos e não passam de uma mera ilusão da percepção do tempo. Classificação indicativa: livre Como desaparecer completamente Brasil, 2022, 18 min., ficção Direção: Kalel Pessôa Elenco: Beatriz Negrão, Maiteh Gil e Natalia Souza. Sinopse: é uma releitura surreal e metafórica do romance de ficção Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças. O filme conta a história de Helena, uma jovem que, tomada pelo fantasma da culpa, decide se submeter a um procedimento que apagará as lembranças que ela tem de sua ex-namorada Celeste. A partir daí, o filme começa a recontar partes da trajetória e das memórias do casal, da memória mais recente até a memória mais antiga. E quanto mais o procedimento continua, mais as memórias ficam deterioradas, como uma película de filme que se desgasta com o tempo. Classificação indicativa: 16 anos Flores para minha mãe Macau/China, 2021, 12m23s, documentário Direção: Vitória Santos Sinopse: Trata-se de um documentário que aborda a questão do trabalho doméstico em Macau, apresentando um curto percurso de vida de três trabalhadoras domésticas, que partilham as suas experiências, anseios e esperanças. O trabalho doméstico é comumente mal remunerado e sem garantias trabalhistas, apesar de ser essencial à economia local. As três trabalhadoras domésticas entrevistadas interpelam-nos pelo exemplo de abnegação e entrega às famílias que amparam com o seu trabalho enquanto prestam total dedicação e sustento às suas próprias famílias, presentes ou distantes. Estas trabalhadoras representam flores que florescem em meio da adversidade sendo, portanto, as mais raras e bonitas. Classificação indicativa: 12 anos 22 filmes 19a Mostra Internacional de Cinema Negro Ladrão Brasil, 2022, 19m38s, Ficção Direção: Felipe Cordeiro Sinopse: As angústias e dilemas de um trabalhador de aplicativo do ramo de entrega de refeições, que tem sua moto roubada durante uma das entregas. Classificação indicativa: 12 anos Lua Brasil, 2017, 6m14s, documentário Direção: Rosa Miranda Elenco: Lua Guerreiro. Sinopse: Documentário onírico sobre as vivências de infância e o momento de sua transição de gênero de Lua Guerreiro, trans, não binária que se expressa pelo que é considerado feminino. Classificação indicativa: livre Marielle presente – eu sou porque nós somos Brasil, 2019, 8 min., documentário Direção: Dom Filó e Pedro Oliveira Sinopse: Muitas Marielles nasceram após a sua morte, transformando em realidade o respeito aos direitos humanos e abrindo novos caminhos para o combate as desigualdades em nosso país. Classificação indicativa: 10 anos Nome Sujo Brasil, 2022, 14 min., ficção Direção: Artur Roraimana Sinopse: Lucas é um jovem adulto que precisa lidar com a responsabilidade de trabalhar para se sustentar. Quando uma câmera que ele queria muito comprar entra em promoção, o jovem inicia uma busca por meios de realizar seu desejo. Classificação indicativa: 16 anos 23 filmes 19a Mostra Internacional de Cinema Negro A Obra Portugal, 2022, 13m43s, documentário Direção: Carolina Rosendo Sinopse: O que de si trazemos homens que constroem as casas de Lisboa. Classificação indicativa: Livre Romão Brasil, 2022, 10min., documentário Direção: Clementino Júnior Elenco Marços Romão Sinopse: Marcos Romão, personagem importante da militância negra no Brasil e que atuou em outros países, faz uma breve reflexão sobre as diferenças do combate ao racismo ao longo de 4 décadas de abertura política. Classificação indicativa: livre 24 Músicas da Mostra Músicas tema da 19ª Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE MAR DO RECÔNCAVO Música: Anderson Brasil / Celso Luiz Prudente Interprete: Vanessa Moreno, Josiara, Anderson Brasil A ema gemeu no tronco do jurema, a ema gemeu no tronco do jurema (2x). Foi na beira do Rio que a menina cresceu, tomou banho de Lua e um beijo ela me deu. Foi quebrando essa coco que a menina aprendeu a sambar, pisando no barro ancestral como vovó ensinou. Pedindo a benção ao mais velho, dançando com pescador, catando a concha bonita, sorrindo para o mar. É vida que dinheiro não paga, é tempo que Kitembo que conta, é sonho não quero acordar. Menina...não pise na direita, deixa o teu passo na esquerda pra gente ser feliz Menina...não pise na direita, deixa o teu passo na esquerda pra vida melhorar 25 músicas 19a Mostra Ilha do amor Música: Rogério Almeida/Anderson Brasil/Lula Barbosa/Celso Luiz Prudente Interprete: Fabiana Cozza acompanhada pelo instrumentista clássico Fi Maróstica Seja mais bacana, Tenha aroma de cana A fé coletiva no amor, Ilha doce livre Havana, No mar do sonho há amor, Tenho uma semente de fé cuba no meu coração Sonhamos em lá bodeguita... Hálito de mojito do mar Cantando tocando na tez cor de canela Da ilha a mais aberta janela Todos os corações batem pra ela No sonho que é fiel sonhamos com todas as corres Fidelidade as flores Coração comandante da paz Que na ilha se faz a mais profunda lição de amor A fé coletiva do amor ilha doce livre Havana, Ilha doce livre Havana. 26 músicas 19a Mostra O Barqueiro Negro Música: Anderson Brasil/Celso Luiz Prudente Interprete: Paulo Ronqui e Grupo Metallumfonia da UNICAMP A todos os barcos que estão além-mar Escrevo uma carta, um conto de amor Sobre um pescador, que sorri pros anzóis Esquece a razão, se rende a maré O barqueiro negro oculta segredos sobre uma presença Que está nas águas, tem canto sereno, acalma as ondas Mas o mar é a gota de luz Do sorriso da Lua Que no sonho de amor brinca nua Na praia do pescador há fé, há paixão, há amor. Os faróis têm verdade, nos levam pra casa... Sussurro do mar. 27 músicas 19a Mostra Lua negra Música: Rosa Marya Colin /Anderson Brasil /Celso Luiz Prudente Interprete: Paulo Ronqui e Grupo Metallumfonia da UNICAMP Você nem notou, nem sequer ouviu, o que te falei do nosso jardim, do aroma do Éden, não lembrou do dia em que eu conheci você Adão. Eu sou uma lua no céu da sua boca, onde o clarão da noite guarda o mistério do dia. Eu sou a pérola negra que você furtou, do lindo vaso banto. Depois fez de mim escreva com egoísmo de quem não conhece o amor. Negou o que sou... Eu sou a Lua Negra, irreverente de amor, livre na felicidade. Eu tenho meu jeito, o meu jeito livre de ser mulher oh Adão, eu tenho meu jeito, o meu jeito livre de ser mulher oh Adão. Mas hoje sei o amor é sagrado, e há sempre tempo para o meu coração oh Adão. Oh! Adão oh! Adão 28 músicas 19a Mostra O magrelo (Músicas da 18ª Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE) Música: Anderson Brasil /Celso Luiz Prudente Interprete: Anderson Brasil Participação Especial: Ivan Sacerdote Arranjo: Anderson Brasil Menino magrelo aparece à costela, a fome não conseguiu lhe vencer Andava descalço na beira da estrada, sonhava um dia ser jogador Amava a vida, o menino amava a vida Amava a vida, sonhava ser jogador... Brincava feliz numa poça de lama, ele encantava animais Dinheiro não tinha, mas ele era rico, pois, ele tinha os avós Amava a vida, sonhava ser jogador.... Um dia cruzou com fuzil, mas a bala não tinha um dono Morreu mais um Francisco, um filho do Brasil Morreu, mas uma criança numa favela do meu Brasil Morre Chico, more João, morre um pouco do meu coração Morrem Marias no alemão, morre o preto, morre o pobre Morre o sonho de nação Sua pipa voa, na imitação, pássaro Sansa Kromá, que protege o coração No canto do Banto, o mais onírico, livre e lúdico, do magro negro erê. O mais onírico livre e lúdico, do magro negro erê 29 músicas 19a Mostra Ibeji Música: Anderson Brasil /Celso Luiz PrudenteI nterprete: Tiganá Santana Percussão: Emanuel Magno Stanchi Violino: Mário Soares Piano: Edson Filho Violão: Anderson Brasil Arranjo: Anderson Brasil Mixagem: Fábio Gonçalves Aqui é um menino preto sozinho Na dor da orfandade eu plantei uma semente do bem No jardim do meu coração Deus fez brotar no menino O cachimbo do sábio ancião O ensino da magia ancestral Faz dele o mestre sala que vem Com a elegância gentil de uma porta bandeira que dança no carnaval Eu não sou saci pererê, Sou erê, Ibeji, Quero brincar com você, O pretinho sabia que na praça, Na escola, na feira, na igreja e na galeria A indiferença é a feição desta branca burguesia Como é triste a branca solidão Rica e fria Margarida que brota como bem de quem tem a raiz da mais-valia A perna que falta é o carinho Sociedade é madrasta do pretinho Flor da meritocracia cheira mal No rico vaso dourado da desigualdade racial Eu não sou saci pererê A avó Nanã contou pé pé pé pé pé pé pelezinho, 30 músicas 19a Mostra Duas pernas geniais do Pelé, Minha avó Nanã contou pé pé pé pé pé pé pelezinho Duas pernas geniais do Pelé, Pelezinho, pelezinho, pelezinho, pelezinho, pelezinho, pé, pé. 31 músicas 19a Mostra Fina Beleza (Músicas da 17ª Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE) Anderson Brasil e Celso Luiz Prudente Interprete: Fabiana Cozza Músico: Fi Maróstica O Griô cantou, sua boca banto escreveu Cantou lá na senzala onde o samba nasceu O banto canto doce da liberdade Com luta consciência plantou Quando a mão do negro colheu Palmares Onde brancos pobres e negros com indígenas cantaram, Pedagogia comunal da afro solidariedade O samba é alma do Brasil, viu? O jeito da gente é assim Mesmo o corpo negro sendo negado aqui O meu samba acorda até robô, em marte a NASA utilizou, a coisinha do pai. Beth, o Almir, Luis e Aragão, dom interplanetário da fé da afro perfeição. Primeiro saber egípcio banto, arte paciente de Deus, sua fina beleza. O samba é egípcio banto, Deus conta as suas belezas... Eu sou o samba, Zé Keti que me disse Mesmo com o corpo negro negado aqui Eu sou o samba. Griô Zé Keti resiste O poeta não muda de opinião 32 Bola de Nieve, expressão cultural de um Caribe sem fronteiras: pianista, cantor, chansonnier, compositor y otras cositas más – uma pesquisa se fazendo Afrânio Mendes Catani (USP/UERJ/ PQ-CNPQ)1 O objeto central da pesquisa é examinar a trajetória artística de Ignacio Jacinto Villa y Fernández (11.09.1911 - 02.10.1971), conhecido mundialmente como Bola de Nieve. Nascido em Asunción de Guanabacoa, município de Cuba pertencente à província da Cidade de Havana, é o último dos 6 filhos de Domingo, cozinheiro, e Inés Fernández, que sobreviveu (o casal teve 13 filhos, mas «vingaram» Juliana, Berta, Domingo, Orlando, Raquel e Ignacio). Raúl Martínez (1986, p. 7) escreveu que Inés era “...negra, cuentera, organizadora de fiestas y capaz de bailar la mejor rumba de cajón o el toque de yemanjá, durante sus labores caseros si le podía oír una romanza de zarzuela, sentada a su máquina de coser o frente a la batea de ropa; asimismo alimentaba amorosamente a sus seis hijos sobrevivientes...”. 1 Professor titular aposentado e sênior na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE - USP), Programa de Pós - Graduação em Educação (PPGE - FE )- USP; Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM) - USP; Professor titular visitante (2021-2023) junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC) da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), campus de Duque de Caxias; Pesquisador PQ do CNPq. E-mail: amcatani@usp.br. 33 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani Bola foi uma das mais ricas expressões musicais caribenhas, apresentando-se em dezenas de países e gravando quase uma dúzia de discos de “larga duración” (LPs). Formado em conservatório, desde pequeno deslizou suas delicadas mãos pelas teclas pretas e brancas de pianos em cinemas, cabarés, teatros, hotéis, filmes, em carreira solo ou acompanhado por orquestras, privilegiando em especial as vertentes musicais que desenvolveu: o folclore afro-cubano, boleros e canções de sua autoria e de outros compositores, versões e interpretações de sucessos internacionais, além da adaptação musical de poemas de autores conhecidos. Um ataque cardíaco o matou no México, pouco mais de vinte dias após completar 60 anos. Pesquiso a respeito de Bola de Nieve há mais de três décadas, desde que fui à Cuba pela primeira vez, em 1989, em viagem de trabalho na área cinematográfica, participar de seminário no âmbito do Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, Nesses 35 anos transcorridos desde então, voltei algumas vezes ao país, amealhando muito material acerca da carreira do artista, a saber: livros, artigos de jornais e de revistas, CDs, anotações, conversas com músicos e estudiosos, diários de viagem, transcrições de letras de suas canções, além de assistir a filmes, documentários e telejornais em que ele participou. Materiais complementares foram coletados em outros países - Argentina, Chile, Espanha, México, Uruguai, Venezuela e Reino Unido -, em distintas ocasiões, intercaladas com outras pesquisas e atividades (cursos, congressos, conferências, mesasredondas, estágios de pós-doutorado). O exame sintético desse vasto conjunto de fontes encontra-se em análise no presente momento. A intenção era realizar, ao longo dos anos 2020 e 2021, viagem de trabalho à Ilha, com a finalidade de coletar materiais adicionais, checar informações, procurar documentos, conversar com especialistas etc. Entretanto, a pandemia por Covid-19 impediu a saída do país. Nesse sentido, antes de estabelecer um texto com maior amplitude analítica, optei por apresentar, nas linhas seguintes, os contornos gerais da investigação, bem como uma parte significativa das fontes de pesquisa - referências bibliográficas, filmes em que Bola de Nieve participou de forma direta ou indireta, documentários sobre ele, além de detalhar sua discografia, listando o conjunto das canções gravadas por Bola que consegui localizar e mapear até agora. Entendo que ainda é possível amealhar mais material a respeito do artista de Guanabacoa, razão pela qual ainda não redigi o texto final. 34 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani A partir de meu longo envolvimento com o objeto desta pesquisa, posso afirmar com convicção que para se compreender de forma plena o conjunto da produção musical de Bola de Nieve, assim como sua trajetória profissional no campo cultural cubano nas décadas de 1930 a 1960, é preciso realizar, igualmente, o estudo da sociedade cubana no período que antecede à Revolução de 1959, pesquisar alguns dos principais artistas que deixaram o país em razão da nova ordem social e econômica, além dos gêneros musicais predominantes, exigindo uma forma de análise em que as fronteiras entre vários campos do conhecimento - sociologia, história, economia, música, literatura, cinema adquirem grande dose de porosidade. No que se refere à literatura, por exemplo, penso ser indispensável estudar autores como Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), José Lezama Lima (1910-1976), Severo Sarduy (1937-1993), Reinaldo Arenas (1943-1990), dentre outros, além de, quanto aos gêneros musicais, não se olvidar da salsa, do mambo, do chá-chá-chá, do próprio “latin jazz” que, aqui e ali, dialogam constantemente com Bola. Também as grandes orquestras, os arranjadores e os programas de rádio são relevantes nesse sentido, em razão das andanças do músico por distintos ambientes habaneros e por outros sítios nacionais e internacionais. No livro Cuatro músicos de una villa, Leonardo Depreste (1990) fala na apresentação que Guanabacoa, que se situa do outro lado da Baía de La Habana, “es una tierra de santería”, uma cidade de fortes raízes artísticas, e desde os anos de 1920, aproximadamente, vem sendo um laboratório musical. Além de Ernesto Lecuona (18951963), “el maestro”, Rita Montaner (1900-1958), “la única”, Bola de Nieve (1911-1971), “con su sonrisa y su canción” e de Juan Arrondo (1914-1979), “el enamorado del amor”, revelou uma grande quantidade de figuras de prestígio e de renome internacional nos domínios da música: José Mateu, fundador de um conservatório e professor no mesmo local; José Alemán, contrabaixista; José Echániz, pianista; Gerardo Guanche, maestro e diretor; Juan de Diós Alfonso, clarinetista e diretor de orquestra. Bola de Nieve trabalhou ininterruptamente por mais de 45 anos, desde o início de suas atividades profissionais, fazendo de tudo nos palcos e nos estúdios. Aos 12 anos iniciou seus estudos de solfejo e teoria musical com o maestro Gerardo Guanche e, pouco depois, começou a aprendizagem de piano no Conservatório de José Mateu, situado na rua Adolfo del Castillo, entre Bertematti e Jesús Nazareno, em Guanabacoa (Martínez Rodríguez, 1998, p. 6). A família mudava-se com frequência 35 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani de residência, pois enfrentavam grandes dificuldades para pagar o aluguel. Em 1927, Ignacio matriculou-se na Escola Normal para Professores. “Segundo o escritor Miguel Barnet, os estudos de Bola de Nieve neste centro docente lhe serviram para dotá-lo de uma cultura integral e de uma visão de mundo muito pessoal (...) Não pode iniciar então os estudos de Pedagogia na Universidade de Havana em razão dos distúrbios estudantis e da crise econõmica ocorrida durante a ditadura de Machado e, como jovem pobre e negro, teve que ganhar o sustento e, também, ajudar economicamente a sua família trabalhando como pianista no Cine Carral, de sua cidade natal, acompanhando películas mudas e, mais tarde, como integrante da orquestra de Gilberto Valdés no cabaré La Verbena, na Avenida 41, em Marianao” (Martínez Rodríguez, 1998, p. 6). Alguns anos depois, está tocando como pianista de Rita Montaner, que o convidou para acompanhá-la, com contrato de exclusividade. Em 1933 realizou sua primeira viagem internacional, ao México, atuando com Montaner no Teatro Politeama. “E por seu talento e simpatia pessoal obteve a admiração e a amizade de prestigiada(o)s compositora(e)s, como María Grever, Agustín Lara e Guty de Cárdenas, entre outra(o) s” (idem, p. 7). Segundo suas próprias palavras, tinha “voz de manguero”, mas atingia a excelência no que se refere à interpretação em canções como “Si me pudieras querer”, “Se equivocó la paloma”, “No puedo ser feliz”, “Mesié Julián”, “Drume, negrita”, “Vete de mí”, “Mamá Perfecta”, “Epabilate”, “El botellero”, “La vie en rose”, “La flor de la canela”, “Chivo que rompe tambó”, “Babalú”, “Ay Mamá Inés”, apenas para destacar aquelas que eram mais solicitadas em suas apresentações. “El susurro, el grido, el llanto, la alegría, la sonrisa, la risa, la tristeza, el amor, la jocosidad, lo dramático, lo lírico, se daban las manos en las interpretaciones singulares de este cubano que ‘salía al escenario dispuesto a morir’’’ (Ojeda, 1998, p. 86). Sem ser um cantor no sentido tradicional da palavra, ele alcançava como intérprete enorme eficácia, aliando técnica, conhecimento musical e excelência enquanto pianista - dimensão essa que muitas vezes acabou sendo subestimada. Em suma, “voz y piano se integraban como un todo único, compacto, en sus actuaciones” (Ojeda, 2018, p.86). 36 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani Ojeda (1998, p. 86-87) lembra, ainda, como já se enunciou em linhas anteriores, que houve um grupo de compositora(e)s que sempre estiveram presentes no repertório de Bola, como María Grever, Emilio y Eliseo Grenet, Ernesto Lecuona, Eduardo Sánchez de Fuentes, Gonzalo Roig, Vicente Garrido, Margarita Lecuona, Moisés Simons, Marta Valdés, Chabuca Granda, Ary Barroso, Armando Oréfiche, Adolfo Guzmán. Bola chegou a ser chamado de o Bobby Short da Cuba pré-revolucionária, em uma Havana em que a vida noturna era dinâmica e milhares de dólares irrigavam as boates e os night clubs diariamente. O artista, em várias ocasiões, explicitou sua autocrítica, por vezes dura, que praticava, além de fornecer algumas indicações sobre a escolha de seu repertório. Procurarei explorar a possibilidade não desprezível, destacada por mais de um comentarista do conjunto de seu trabalho: sua dimensão de arranjador junto às principais orquestras cubanas. No que se refere à sua voz, ao rigor quanto ao repertório e ao modo de executar as canções, pode-se ler em suas declarações no encarte que acompanha o CD Bola de Nieve con suspiro (Montilla, 1991), o seguinte: “Não sou exatamente um cantor, senão alguém que fala as canções, que lhes outorga um sentido especial, uma significação própria, utilizando a música para realçar a interpretação. Gostaria de ter sido cantor de ópera, mas tenho voz de camelô, tenho voz de vendedor de pêssegos, de ameixas, então me resignei a vender ameixas no palco, sentado ao piano (...) Quando a canção que eu canto com esta voz de camelô fica, a meu juízo, melhor na voz de outro cantor, eu a saco do meu repertório. Sempre digo que eu não canto, mas que expresso o que as canções ou pregões ou poemas musicalizados têm em seu interior. Cultivo a expressão mais que a impressão. Não me interessa impressionar, mas sim tocar a sensibilidade de quem escuta”. Uma das observações mais cruéis sobre Bola de Nieve é realizada por Eduardo Galeano (2007, p. 183-184) que, estando em Havana, foi convidado para a casa do artista, que lhe fez uma série de perguntas sobre Montevidéu e Buenos Aires. “Queria saber que era da vida de pessoas e lugares que ele havia conhecido e querido há trinta ou quarenta anos”. Logo, conta o escritor uruguaio, não tinha mais sentido dizer a Bola “já não existe” ou “foi esquecido”. Bola também compreendeu, Galeano acredita, porque ele começou a falar de Cuba, disso que ele chamava de yorubá-marxismo-leninismo, “síntese invencível da magia africana com a ciência dos brancos”. Contou fofocas e histórias de pessoas 37 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani da alta sociedade que antes lhe pagavam para cantar. Posteriormente, “sentou-se ao piano. Cantou Drume Negrita, depois cantou Ay, mama Inês e o pregão do vendedor de amendoins. Tinha a voz muito gasta, mas o piano o ajudava a levantá-la cada vez que ela caía. Em dado momento interrompeu a canção e ficou com as mãos no ar. Voltouse para mim e com estupor afirmou: ‘O piano acredita em mim. Acredita em tudo, tudinho’”. Para a presente pesquisa, em termos indicativos, talvez seja possível classificar o repertório de Bola de Nieve, a partir do exame do conjunto de suas gravações e apresentações em shows, em Cuba e no exterior, em quatro grandes vertentes musicais: 1) folclore afro - cubano - são excelentes exemplos, dentre outras, “El manisero”, “Babalú”, “Drume, negrita”, “Chivo que rompe tambó”, “Ay Mamá Inés”; 2) boleros alheios e de sua autoria - destaques: “No puedo ser feliz”, “Ay, amor”, “Si me pudieras querer”, “No dejes que te olvide”, “Vete de mí”, “Tú no sospechas”, “No niegues que me quisiste”; “Aquellos ojos verdes”; “En nosotros”; 3) versões com interpretações pessoais de sucessos originários de vários países - Itália: “Arrivederci Roma”; “Monasterio Santa Chiara”; Catalunha: “Le decembre congelat”; Estados Unidos: Be careful, it’s my heart”; “Tenderly” Peru: “La flor de la canela”; França: “La vie en rose”; Brasil; “Os quindins de yayá”: 4) adaptação musical de poemas de autoria de Nicolás Guillén, Federico García Lorca, L. A. de la Cruz Muñoz, Rafael Alberti. No Brasil, Caetano Veloso e Nana Caymmi cantaram e gravaram parte do repertório do músico cubano (“Ay, amor”, “Drume, negrita”, “Vete de mí”, “La flor de la canela”) e Nana Caymmi (“No puedo ser feliz”). Na Espanha, o cineasta Pedro Almodóvar o incluiu como banda sonora nas películas “La ley del deseo” (1987) e “La flor de mi secreto” (1995). Além disso, foi montado um show de Fabiana Cozza em 2017, depois ampliado para algumas outras casas de espetáculos, sobre Bola de Nieve, além dela gravar o CD “Ay amor!”, com repertório do músico cubano. Em sua primeira montagem foi dirigida por Elias Andreato e acompanhada pelo pianista Pepe Cisneros, cubano naturalizado brasileiro. Em suma, acho que Bola de Nieve, o cantor cubano pouco conhecido por aqui, ainda vai dar muito o que falar: negro, santero, homossexual, pró-revolucionário, se 38 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani autodefinia “marxista-yorubá-fidelista”. No filme Bola de Nieve (2003), de José SánchezMontes, de onde essa informação foi retirada, um dos depoentes afirma o que Bola era: “Un ser atormentado que repetía: ‘You soy un hombre triste que canta alegre’”. Referências ACOSTA, Leonardo. El bolero y el Kitsch. In: GIRO, Radamés (Selección). Panorama de la Música Popular Cubana. La Habana: Editorial Letras Cubanas; Santiago de Cali: Editorial Facultad de Humanidades, 1996, p. 269-283. ACOSTA, Leonardo. Elige tú, que canto yo. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 1993. ACOSTA, Leonardo. La Habana, capital del jazz latino? In: GIRO, Radamés (Selección). Panorama de la Música Popular Cubana. La Habana: Editorial Letras Cubanas; Santiago de Cali: Editorial Facultad de Humanidades, 1996, p. 245-253. ALMENDROS, Néstor. Mea Cuba. Barcelona: Plaza e Janes, 1992, ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça (trad. Irène Kubrick). Rio de Janeiro: Record, 2a. ed., 1995. BALIERO, Carmén, Bola de Nieve; la falta de bola en el espíritu general. In: La Caja (Revista del ensayo negro). Buenos Aires, n. 9, p. 27, septiembre - octubre, 1994. BARNET, Miguel. Autógrafos cubanos. La Habana: Ediciones Unión de Escritores y Artistas de Cuba (UNEAC), 1990. BARNET, Miguel. Bola de Nieve: su universal cubanía. In: Bohemia, La Habana, año 70, n. 39, p. 10-14, 29. 09. 1978. BARNET, Miguel. Viendo mi vida pasar. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 1987. CABRERA INFANTE, Guillermo. Três tristes tigres (trad. Stella Leonardos). São Paulo: Global, 2a. ed. 1986. CABRERA INFANTE, Guillermo. Havana para um Infante defunto (trad. João Silvério Trevisan). São Paulo: Companhia das Letras, 1987. CABRERA INFANTE, Guillermo. Vista do amanhecer no trópico (trad. Josely Vianna Baptista e José Antônio Arantes). São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 39 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani CABRERA INFANTE, Guillermo. Delito por dançar o chá-chá-chá (Trad. Floriano Martins). Rio de Janeiro: Ediouro, 1995. CABRERA INFANTE, Guillermo. A ninfa inconstante (trad. Eduardo Brandão). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CABRERA INFANTE, Guillermo. Cine o sardina. Madrid: Santillana, 1998. CALADO, Carlos. Lendário Bola de Nieve recebe homenagem delicada. São Paulo, “Ilustrada”, Folha de S. Paulo, 03. 07. 2007. CALADO, Carlos. Cultura traz hoje a voz ‘cult’ do cubano Bola de Nieve. São Paulo, “Ilustrada”, Folha de S. Paulo, 04. 04.1992. CALADO, Carlos. Vozeirão de Bola de Nieve emociona. São Paulo, “Ilustrada”, Folha de S. Paulo, 05. 12. 1995. CALDEIRA, Jorge. Bola de Nieve virou raridade. São Paulo, “Ilustrada”, Folha de S. Paulo, 10. 09. 1991. CAMPOAMOR, Fernando G. Bola de Nieve o la sinfonía de Guanabacoa. In: Bohemia, La Habana, año 63, n. 42, p. 34-37, 15. 10. 1971. CASAVELLA, Francisco. Un cubano que carraspa como el Pato Donald. In: La Maga, Buenos Aires, p. 32, 21. 05. 1997 (Teatro). CASTELLANOS, Orlando. Bola de Nieve, ese eterno personaje de Ignacio Villa. Entrevista póstuma, a punto de partir. In: Bohemia, La Habana, año 63, n. 41, p. 53-54, 08. 10. 1971. CASTELLANOS, Orlando. Entrevista con Bola de Nieve. La Habana: Ediciones Unión de Escritores y Artistas de Cuba (UNEAC), 1992. CELA, Camilo José. Bola de Nieve - Depoimento ao Suplemento “Mais!”. São Paulo, Folha de S. Paulo, p. 6.7, 12. 04. 1991. CHARME cubano. Veja. São Paulo, p. 151, 20. 12. 1995. CONTE, Antonio. Bola de Nieve: déjame que te cuente. In: Cuba Internacional. La Habana, año 4, n. 29, p. 63-67, 1972. DEPESTRE CATONY, Leonardo. Cuatro músicos de una villa. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 1990. 40 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani DIAS, Mauro. Trinta anos sem o gênio de Bola de Nieve. São Paulo, “ Caderno 2”, O Estado de S. Paulo, p. 5, 30. 09. 2001. ETKIN, Mariano. Bola de Nieve: el humilde equilibrio de un antivirtuoso. In: La Caja (Revista del ensayo negro). Buenos Aires, n. 9, p. 27, septiembre - octubre, 1994. FEILING, C. E. Bola de Nieve: Del puente a la alameda. In: La Caja (Revista del ensayo negro). Buenos Aires, n. 9, p. 26, septiembre - octubre, 1994. FRANQUI, Carlos. Cuba:el libro de los doce. México: Ediciones Era, 3a. ed., 1977. GALEANO, Eduardo. Días y noches de amor y de guerra. Madrid: Alianza, 2007, p. 183184. GALILEA, Carlos. Los cuentos de Bola de Nieve. Madrid, El País, p. 6, 28. 09. 1996. GIRO, Radamés. Los motivos del son. Hitos en su sendero caribeño y universal. In: GIRO, Radamés (Selección). Panorama de la Música Popular Cubana. La Habana: Editorial Letras Cubanas; Santiago de Cali: Editorial Facultad de Humanidades, 1996, p. 219 230. GIRO, Radamés. Todo lo que usted quiso saber sobre el mambo...In: GIRO, Radamés (Selección). Panorama de la Música Popular Cubana. La Habana: Editorial Letras Cubanas; Santiago de Cali: Editorial Facultad de Humanidades, 1996, p. 231 - 244. GUILLÉN, Nicolás. Despedida de duelo de Bola de Nieve. La Habana, Granma, p. 3, 06. 10. 1971. GUILLÉN, Nicolás. Páginas Cubanas: autobiografía de un poeta na revolução. São Paulo: Brasiliense, 1985. HIJUELOS, Oscar. Os Mambo Kings tocam canções de amor (trad. Adalgisa Campos da Silva). Rio de Janeiro: Objetiva, 1989. KARAN, Lúcia. Nieve volta em dois CDs. São Paulo, “Ilustrada”, Folha de S. Paulo, 27.08. 1996. KRIGER, Clara; PORTELA, Alejandra (Compiladoras). Cine Latinoamericano I Diccionario de Realizadores. Buenos Aires: Ediciones del Jilguero, 1997. LABAKI, Amir. Samba, salsa e tango fazem Havana dançar. São Paulo, “Ilustrada”, Folha de S. Paulo, 08. 12. 1996. 41 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani LEYMARIE, Isabelle. La salsa et le latin jazz. Paris: Presses Universitaires de France, 1993. LEZAMA LIMA, José. Paradiso (trad, Josely Vianna Baptista). São Paulo: Brasiliense, 1997. MALETA COCIÑA, Jorge. Bola de Nieve. In: CASARES RODICIO, Emilio (Org.). Diccionario del Cine Iberoamericano: España. Portugal y América. Madrid: Sociedad General de Autores y Editores (SGAE)/Fundación Autor, Vol. 1, 2011, p. 919. MANRUPE, Raúl; PORTELA, María Alejandra. Un Diccionario de Films Argentinos (1930 - 1995). Buenos Aires: Ediciones Corregidor, 2001. MANRUPE, Raúl; PORTELA, María Alejandra. Un Diccionario de Films Argentinos (1996 - 2002). Buenos Aires: Ediciones Corregidor, 2004. MARTÍN, Edgardo. Panorama histórico de la música en Cuba. La Habana: Universidad de La Habana, 1971. MARTINEZ, Paulo Henrique. Ignacio Villa, o sonoro Bola de Nieve. In: Diário de Marília. Marília, SP, p.10 - A, 19. 02. 1997. MARTÍNEZ RODRÍGUEZ, Raúl. Bola de Nieve. In: Revolución y Cultura. La Habana, n. 111, p. 32-37, noviembre, 1986a. MARTÍNEZ RODRÌGUEZ, Raúl. Déjame que te cuente. In: OJEDA, Miguelito (Selección). Bola de Nieve. La Habana: Instituto Nacional del Libro - Editorial Letras Cubanas, 1998, p. 5-16. MARTÍNEZ RODRÍGUEZ, Raúl. Ignacio Villa y Fernández, Bola de Nieve. La Habana: Museo Nacional de la Música - Imprensa de Divulgación del Ministerio de Cultura, 1986b. MONJEAU, Federico; SAAVEDRA, Guillermo. Bola de Nieve; el teatro de la voz. In: La Caja (Revista del ensayo negro). Buenos Aires, n. 9, p. 24 - 25, septiembre - octubre, 1994. MOORE, Robin D. Nationalizing Blackness: Afrocubanismo and artistic revolution in Havana, 1920-1940. Pittsburgh: University of Pittsburgh, 1997. OJEDA, Miguelito (Selección). Bola de Nieve. La Habana: Instituto Nacional del Libro Editorial Letras Cubanas, 1998. 42 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani ORAMAS, Ada. Entrevista con Bola de Nieve In: Cuba. La Habana, n. 43, p. 54 - 57, noviembre, 1965. PACHECO, Carlos. Bola de Nieve; cincuenta años después vuelve a tener un lugar en la noche porteña. In: La Maga. Buenos Aires, p. 32, 21. 05. 1997. PACHECO, Carlos. Cecilia Rossetto - Ignacio rompía con todo, con talento y audacia. In: La Maga, Buenos Aires, p. 33, 21. 05. 1997. PACHECO, Carlos. Virgilio Expósito - Cuando escuché “Vete de mi” casi me muero. In: La Maga. Buenos Aires, p. 33, 21. 05. 1997. PADILLA, Herberto. La mala memoria. Madrid: Plaza e Janes Editora, 1989. POLA, J. A.; MESA Aida.A Bola, Rita y Lecuona. In: Bohemia. La Habana, año 66, n. 34, p. 21, agosto, 1974. RODRÍGUEZ SOSA, Fernando. Bola, con su sonrisa y su canción. In: Revolución y Cultura. La Habana, n. 108, p. 16 - 25, agosto, 1981. RODRÍGUEZ SOSA, Fernando. Sin Bola hace cinco años. In: Cuba. La Habana, año VIII, n. 87, p. 70, octubre, 1976. RUIZ hijo , Rosendo. El bolero cubano. In: GIRO, Radamés (Selección) . Panorama de la Música Popular Cubana. La Habana: Editorial Letras Cubanas; Santiago de Cali: Editorial Facultad de Humanidades, 1996, p. 255 - 268. RUIZ hijo , Rosendo; GONZÁLEZ - RUBIERA, Vicente; ESTRADA, Abelardo. Canción contra “canción” . In: GIRO, Radamés (Selección) . Panorama de la Música Popular Cubana. La Habana: Editorial Letras Cubanas; Santiago de Cali: Editorial Facultad de Humanidades, 1996, p. 285 - 294. SAAVEDRA, Guillermo. Bola de Nieve. In: La Caja (Revista del ensayo negro). Buenos Aires, n. 9, p. 22, septiembre - octubre, 1994 SARDUY, Severo. De donde son los cantantes. Madrid: Cátedra, 1993. SOLÍS, Marta. Bola era así! In: Siempre. México, DF, n. 957, p. 40-41, 27. 10. 1971. SUZUKI JR., Matinas. Ele cantava boleros. São Paulo, “Folhetim”, Folha de S. Paulo, p. 7, 06.07.1986. 43 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani TORRES, Dota Ileana. Apuntes sobre el feeling. In: GIRO, Radamés (Selección). Panorama de la Música Popular Cubana. La Habana: Editorial Letras Cubanas; Santiago de Cali: Editorial Facultad de Humanidades, 1996, p. 341 - 363. VALDÉZ, Zoé. La hija del embajador. Barcelona: Emecé, 1996. VALDÉZ, Zoé. La nada cotidiana. Barcelona: Planeta, 2010. VALDÉZ, Zoé. Te di la vida entera. Barcelona: Planeta, 2008. VALDÉZ, Zoé. Sangre azul. Buenos Aires: Emecé, 1998. VALDÉZ, Zoé. Traficantes de belleza. Barcelona: Planeta, 1998. VIAN, Enid (Ed.). Bola de Nieve. La Habana: Instituto cubano del Libro - Editorial de ciencias Sociales, 1992. Filme Bola de Nieve (2003) - Direção: José Sánchez - Montes) - Produção: Cuba/Espanha/ México, 73 minutos. ”Cubano, negro, santero, homosexual, pro-revolucionario y, sobre todo músico”. Esse é o início da sinopse do documentário, em cujo cartaz pode-se ler quase, como um subtítulo, o seguinte: “El hombre triste que cantava alegre”. Programa Radiofônico “Satélite” - Rádio Cultura FM (103,3 MHz) - Emissão de 04 de Abril de 1992, dedicada a Bola de Nieve. Filmografia A respeito do presente item optei pela transcrição das breves considerações realizadas por Miguelito Ojeda (1998) a respeito, uma vez que explica de maneira sintética a participação geral de Bola de Nieve em uma série de produções cinematográficas. 44 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani Para Ojeda (1998) “ante todo, hay una verdadera escassez de videos, noticieros y otros materiales sobre el gran artista; esta realidad convierte a los pocos metros de películas que hemos localizado en documentos históricos” (p. 102). Segundo o organizador dessa antologia analítica e documental acerca do músico cubano, “al considerar la aparición de Bola en filmes extranjeros, debemos tener en cuenta que fueron cintas de un fácil comercialismo y escasos valores artísticos, en las que Bola de Nieve hacia intervenciones musicales sobre las bases de su repertorio habitual. Particular importancia tienen, pues, los noticieros señalados, la película Nosotros, la música, y el dibujo animado Viva papi a la hora de salvar la imagen de Bola de Nieve. Tal vez, de todos estos materiales, sea Yo soy la canción que canto la más artística y orgánica presencia del Bola en el cine cubano. (Ojeda, 1998, p. 102-103). Materiais Fílmicos Breves 1. Bola de Nieve (18 minutos e meio de duração, 200 metros) - Arquivo dos Estúdios de Animação do Instituto Cubano de Radio y Televisiòn (ICRT). Nesse filme Bola de Nieve canta “Ay, Mamá Inés”. Canta e dança “El mambo”, em francês. Há cenas de uma reunião com amigos em sua casa. Ele conta como Rita Montaner lhe colocou o apelido de Bola de Nieve. Canta outra vez “Ay, Mamá Inés”, agora em sua casa, além de “El Manisero”. Aparecem várias tomadas sem áudio em que ele atua, fotos junto a Fidel, com familiares, com Lecuona, em gestos característicos, além de parte de sua atuação na China. Canta “Mesié Julián” em um estúdio de televisão. “Esta lata termina con escenas de la llegada del cadáver al aeropuerto, el traslado del ataúd, vistas de las coronas que le enviaron Fidel Castro y Osvaldo Dorticós y escenas de Guillén mientras despedía el duelo” (Miguelito Ojeda, 1998, p. 100). 2. Trova Antigua (vários) - Sem data. Existe na Filmoteca del Noticiero Nacional de Televisión. “En unos 4 pies de película se ve a Bola rodeado de público mientras Nicolás Guillén hace uso de la palabra en un acto cultural” (Ojeda, 1998, p. 100). 3. Noticiero ICAIC Latinoamericano. Edição # 360, 15 de maio de 1967. Nesse número do Noticiário do Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficas 45 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani (ICAIC) Bola de Nieve canta vários números de seu repertório (Ojeda, 1998, p. 100). 4. Noticiero ICAIC Latinoamericano. Edição # 531, 21 de outubro de 1971. Homenagem póstuma a Bola de Nieve, com cenas do estúdio da Radio Habana Cuba, onde o artista fez sua última gravação, ao piano. Chegada do féretro no aeroporto; Bola cantando “La flor de Canela”, “No puedo ser feliz”, “Drume Negrita”. O poeta Nicolás Guillén “despide el duelo en el cementerio de Guanabacoa donde fue sepultado el artista. Cenas de Bola em frente a sua casa natal em Guanabacoa e distintos planos do enterro” (Ojeda, 1998, p. 101) . B . Filmes em que Bola de Nieve aparece como intérprete de suas músicas ou em que ocorrem a utilização de suas canções nas bandas sonoras das películas (como intérprete ou não) 1. Madre Querida (1935) - Dirección: Juan Orol - México, 76 minutos. Productora: Aspa Films. “Es un clásico en el subgénero de ‘películas de madres’, tan característico de la producción mexicana, cuyo ‘Himno a la madre’, coreado por los niños de un orfanato hacía, al parecer, correr ríos de lágrimas” (Kriger; Portela, 1997, p. 404). Intérpretes: Luisa María Morales, Alberto Marti, Carlos Dominguez, Antonio Licega, Mercedes Moreno. 2. Adiós Buenos Aires (1938) - Dirección: Leopoldo Torres Ríos - Argentina, 85 minutos. Producción: Cinematográfica Terra. É um musical em que o tango dá o tom. “Una chica, su novio y un amigo toman una canción desechada y la convierten en éxito” (Manrupe; Portela, 2001, p. 6). Intérpretes: Tito Lusiardo, Amelia Bence, Floren Delbene, Esther Borja, Bola de Nieve, Esteban Serrador, Vicente Forastieri, María Goicochea, Ernesto Villegas, Blanca Mora. 3. Sucedió en La Habana (1938) - Dirección: Ramón Peón - Cuba/México. Combinação de música, romance e comédia em uma visita guiada aos locais noturnos mais badalados de Havana. No elenco se destaca a presença de Rita Montaner. Música de Ernesto Lecuona e Miguelito Valdés, com a inserção de canções de Bola de Nieve. 4. El Romance del Palmar (1938) - Dirección: Ramón Peón - Cuba/México, 90 minutos. Producción: Películas Cubanas S. A. (Pecusa). Filme que segue a tradição teatral cubana, com intérpretes populares, destacando-se Rita Montaner. Realizado 46 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani a partir do êxito de Sucedió en La Habana (1938). Dirección musical: Gonzalo Roig, com canções de Ernesto Lecuona, Gilberto Valdés, Félix B. Caignet, Bola de Nieve, Antonio Fernández, Alberto Villalón. Intérpretes: Carlos Orellana, Rita Montaner, Luana Alcañiz, Juan Torena, Aline Rico, Ramón Pérez Díaz, José María Linares-Rivas, Federico Piñero, Enriqueta Sierra, María de los Ángeles Santana, Arnaldo Sevilla, Lolita Berrio, Alberto Garrido. 5. Melodías de América (1941) - Dirección: Eduardo Morera - Argentina, 94 minutos. Producción: Estudios San Miguel. Pretende ser uma resposta argentina aos filmes temáticos latino-americanos produzidos por Hollywood como parte da política da “Boa Vizinhança”. “Un cantor mexicano se enamora en Río de Janeiro de una chica porteña”. (Manrupe; Portela, 2001, p. 366). Intérpretes: Silvana Roth, José Mojica, Pedrito Guatucci, María Santos, Bola de Nieve, Armando Bó, Carmen Brown, Ana María González, Lenny Omar. 6. Embrujo (1941) - Dirección: Enrique Telémaco Susini - Argentina, 100 minutos. Producción: Lumiton. Fala do romance de Pedro I, do Brasil, após a independência do país, com Domitila de Castro, a Marquesa de Santos. Intérpretes: Jorge Rigaud, Pepita Serrador, Alicia Barrié, Ernesto Vilches, Santiago Gómez Cou, Carlos Tajes, Amery Darbón, Francisco Pablo Donadío, Lalo Bouhier, Pablo Lagarde, María Ruanova, Bola de Nieve. “Los familiares de Bola nos hablaron con particular simpatía del filme argentino Embrujo; en él, Villa hizo un papel melodramático de un hombre de vida y acciones violentas. La ficha mínima de la película es la siguiente: Realizador y guionista: Enrique Susini. Coguionista: Pedro Miguel Obligado. Producción: Enrique T. Susini y Cesar José Guerrico. Fotografía: José María Beltrán. Cámara: Pedro Marzialetti. Música: George Andreani. Duración: 100 minutos. Fecha: 1941. Intérpretes: George Rigaud, Alicia Barrié, Pepita Serrador, Ernesto Vilches, Santiago Gómez, Bola de Nieve y otros. El argumento se basa en la novela de Paulo Setúbal La marquesa de Santos. Se estrenó el 18 de junio de 1941 en la sala Monumental” (Ojeda, 1998, p. 103). 7. Una Mujer en la Calle (1955) - Dirección: Alfredo B. Crevenna - México, 90 minutos. Producción: Cinematográfica Latina. A prostituta Lucero, escapando da 47 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani polícia, se refugia na casa da anciã Nena e de sua irmã Isabel, ambas solteironas. Em sua casa Lucero encontrará a paz e o amor que sempre sonhou, decidindo abandonar o homem que sempre a explorou. Intérpretes: Marga López, Prudencia Grifell, Ernesto Alonso, José María Linares. 8. Kid Tabaco (1955) - Dirección: Zacarías Gómez Urquiza - México, 101 minutos. Producción: Cinematográfica Coloso y Produtora Cinematográfica. O lutador mexicano Kid Tabaco necessita participar no maior número possível de combates para conseguir o dinheiro necessário para se casar com Diana. Intérpretes: Armando Silvestre, Lilia del Valle, Ana Bertha Lepe, Júlio Taboada, Carlos Múzquiz. 9. Nosotros, la Música (1964) - Dirección: Rogelio París - Cuba, 80 minutos. “Asesor musical: Odilo Urfé. Productor: Humberto Hernández. Intérpretes: Bola de Nieve, Celeste Mendoza, Ana Gloria, Elena Burque, Charanga a la francesa, Septeto Nacional, Silvio y Ada, Quinteto instrumental de Música Moderna, Orquesta de Chapottín, Comparsas del Cocuyé y del Orilé”(Ojeda, 1998, p. 102). Oscilando entre a produção musical e o documentário etnográfico, o filme discorre acerca dos prazeres sociais da música cubana para músicos, figuras públicas e o “comum dos mortais” de Cuba. 10. Viva papi (1982) - Dirección: Juan Padrón - Cuba, 5 minutos. Productor: Paco Prats. “Animación: Mario García Montes. Dirección musical: Manuel Duchesne Cuzán. Música: Lucas de la Guardia. Caricaturas de Bola de Nieve: Juan David. Voz e piano: Bola de Nieve. Argumento: Harry Reade” (Ojeda, 1998, p. 102). “En este dibujo animado se establece un diálogo entre la voz de Bola de Nieve y las imágenes de un niño que está triste porque su papá trabaja haciendo tuercas. El niño quisiera que su padre guiará una locomotora o volará un avión o fuera un caballero con armadura. La voz de Bola de Nieve le sugiere que piense en lo que pasaría si en el mundo no hubiera tuercas… la locomotora, el avión y la armadura se desarmarían. El niño se da cuenta de la utilidad del trabajo y admira mucho más a su padre. Se utiliza una grabación inédita de Bola de Nieve realizada en el año 1963” (OJEDA, 1998, p. 102). 11. Yo soy la canción que canto (1985) - Dirección: Mayra Vilasís - Cuba, 27 minutos. Este filme es “un documental en homenaje al Bola con guión y dirección de Mayra Vilasís, voz de Nicolás Guillén y la participación de la soprano Alina Sánchez y el pianista Guillermo Tuzzio. Ofrece imágenes de archivo, fotos, instantes de la última entrevista realizada al Bola, testimonios de amigos y familiares para proponer un acercamiento 48 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani a la vida y obra artística del inmenso Ignacio Villa. Fue realizado en colores y dura 27 minutos. En espera de otros merecidos homenajes, este de Mayra Vilasís es, en los momentos de realizar esta investigación, la más interesante visión del Bola en nuestro cine” (Ojeda, 1998, p. 103). 12. Vete de mí (una de pasiones) (1996) - Dirección: Alberto Ponce - Cuba/ Argentina, 19 minutos. O cineasta Ponce, oriundo da Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICT), de San Antonio de los Baños, “realizó el docu-ficción Vete de mí (una de pasiones) (...) Ofrece un interesante documental en el que entrevistas, filmaciones en Cuba, materiales de Archivo, imágenes oníricas y otros recursos conforman un cuadro artístico sobre la famosa canción de los Hermanos Expósito y la fabulosa versión de Bola de Nieve, con producción de Vania Cosin, fotografía y cámara de Patricio Riquelme, sonido directo de Roberto Rodríguez, producción en Cuba de Yamila Suárez y Mónica Cifuentes, y dirección de arte de Juan Manuel Eujenian y Cristian Perenyi” (Ojeda, 1998, p. 103). C - Relação de Recitais Mais uma vez irei me valer da obra organizada por Miguelito Ojeda (1998), que procura estabelecer a relação, embora bastante lacunar, como ele próprio esclarece, dos recitais realizados por Bola de Nieve em Cuba e no exterior. O organizador escreve, com propriedade, que “cuando inicié la localización de los programas de teatro que se editaron para los recitales de Bola, me di cuenta de que, en su gran mayoría, los recitales anteriores al triunfo de la Revolución no aparecían en los archivos de las instituciones culturales consultadas, lo que impide conocer con detalles cuántos y cómo fueron estructurados. Aunque con la fundación del Archivo General del Consejo Nacional de Cultura se organizó nuestra memoria cultural, no aparecen registrados en él todos los recitales que ofreció Bola a partir de la organización de dicho Archivo, pues algunos se realizaron sin programas, otros emplearon un programa itinerante que no indicaba ni día ni lugar, y además, Bola convertía en recitales algunas de sus presentaciones en público, a petición de sus admiradores. No obstante las 49 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani limitaciones señaladas, esta relación mínima de recitales de Bola refleja su vital actividad artística hasta los últimos meses de su vida” (Ojeda, 1998, p. 85). Para o estudioso da obra do músico cubano os recitais de Bola de Nieve geralmente eram estruturados em duas partes. “Bola solía abrirlos con una primera sección dedicada a géneros como el bolero, la canción, musicalizaciones de textos de poetas, baladas, sambas, berceuses, elegías, couplets y canciones anónimas. En ocasiones, presentaba pequeños bloques con obras de algún compositor y también incluía interpretaciones en idiomas diferentes, Particular importancia tenían sus versiones sobre clásicos de cancioneros como el mexicano, el francés, el norteamericano y el italiano. cada una de estas partes o secciones de sus recitales avanzaba hacia un clímax musical, estético, interpretativo y artístico, porque él iba manejando con gran inteligencia la popularidad de las obras, la naturaleza de la interpretación, y los factores emotivos propiciados por su actuación” (Ojeda, 1998, p. 85). “La segunda parte de sus recitales giraba alrededor del mundo más cercano a la música folklórico-popular. Aparecían interpretaciones antológicas en su voz, anónimos del siglo XIX, versos de Guillén musicalizados, pregones, guaguancós, tangos-congos, mayombes y sketches negros. El público acostumbraba a exigirle, en cada parte de las presentaciones, sus piezas más famosas si no estaban incluidas en el programa” (Ojeda, 1998, p. 86). Os elementos cênicos dos quais Bola se valia na apresentação de seus recitais eram os mais simples e despojados possíveis: “el piano, el micrófono a la altura de su garganta, una cortina de fondo y luces generales en el escenario” (Ojeda, 1998, p. 86). A seguir, uma lista, reconhecidamente bastante incompleta, dos recitais de Bola de Nieve, conforme Ojeda (1998, p. 87- 90): 1936 2 de junho: Liceo Artístico y Literario de Matanzas 50 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani 1942 - 1949 21 de maio de 1942: Cafetería Odeón Bar, Buenos Aires 21 de novembro de 1948: Carnegie Hall, Nova Iorque 1948 : Debuta em Madrid, acompanhado por Concha Piquer 1953 - 1959 1953: Recitais no Teatro Lara, Madrid 1955-1956: Trabalha no night club Montmartre 1956 : Salón de las Américas, Unión Panamericana 06 de abril de 1959: Teatro de la Música, Praga Dezembro de 1959: Teatro Camilo Henriquez, Santiago do Chile 1960 14 de agosto: Palacio de Bellas Artes 1962 27 de fevereiro: Club de Juventud de los Amigos de Cuba en Gottwaldov 30 de junho: Teatro Amadeo Roldán Julho: Oriente (não se especificam nem dia nem lugar) 25 de agosto: Círculo Cultural Cárdenas 26 de agosto: Teatro Sauto, Matanzas Agosto: Atuação especial no Primer Festival de Música Popular Cubana Outubro: Pinar del Río (não se especificam nem dia nem lugar) 22 de dezembro: Teatro Amadeo Roldán 1963 24 de março: Palacio de Bellas Artes (pelo 50o. aniversário del Museo Nacional) Abril: Centro de Cultura, Holguín (não se especifica o dia) Maio: Pinar del Río (não se especificam nem dia nem lugar) Maio: Matanzas (não se especificam nem dia nem lugar) Junho: Camagüey (não se especificam nem dia nem lugar) Junho: Escuela Nacional de Arte (não se especificam nem dia nem lugar) 51 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani 14 de julho: Teatro Amadeo Roldán Julho: Cada de Cultura de cienfuegos (não se especifica o dia) 12 de agosto: Matanzas (não se especifica o lugar) 19 de agosto palacio de Bellas Artes Agosto: Teatro Amadeo Roldán (Segundo Festival de Música Popular Cubana) 1964 26 de fevereiro: Pinar del Río (não se especificam nem dia nem lugar) 27 de fevereiro: Palacio de Bellas Artes (junto com Zenaida Manfugás) 30 de março: Casa de Cultura de Santa Clara 26 e 28 de março: Tournée por oriente (não se especificam lugares) 16 de julho: Teatro Estrada, Bayamo, Oriente 25 de julho: Teatro Amadeo Roldán 11 e 12 outubro: Las Villas (como homenagem ao Cuarto Aniversario de las Juventudes Comunistas; não se especifica lugar) 18 de novembro: Palacio de bellas Artes, México 30 de novembro: Auditorio A, Centro Cultural Zacatenco, México 1965 31 de maio: Palacio de Bellas Artes (junto com María Cervantes) 23 de junho: Las Villas (não se especifica lugar) 23 de julho: Biblioteca Nacional José Martí 1o. e 2 de agosto: (não se especificam lugares) 22 e 23 de setembro: Camagüey (não se especificam lugares) 1966 24 de janeiro: Palacio de Bellas Artes 17 de fevereiro : Palacio de Bellas Artes (em homenagem ao 53o. aniversário da Fundación del Museo Nacional) 30 e 31 de maio: Pinar del Río (não se especificam lugares) 9 de junho: Teatro Amadeo Roldán (recital de canções mexicanas pelo terceiro aniversário da fundação da Sociedad Cubano-Mexicana de Relaciones Culturales) 52 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani 6 de setembro: Teatro de los Compositores, México 8 de setembro: Auditorio A, Centro Cultural Zacatenco, México 18 de setembro: Instituto Cubano-Mexicano de Intercambio Cultural 19 de setembro: Centro Cultural Coyoacán, México 16 de dezembro: Biblioteca Nacional José Martí 26 de dezembro: Palacio de Bellas Artes 1967 16 de janeiro: Encuentro Rubén Darío (Varadero) 16 de fevereiro: Museo Napoleónico 7 de abril: Aula Magna de la Universidad de La Habana 18 de julho: Teatro Coyoacán, México 29 de julho: Festival Mundial de Espetáculos, Canadá 11 de agosto: Gran Logia de Cuba 30 de setembro: Teatro Amadeo Roldán (orquestra dirigida por Enrique Jorrín) Novembro: Recital para os latinoamericanos residentes em Cuba (não se especificam nem dia nem lugar) 1968 23 de janeiro: Liceo Artístico y Literario de Guanabacoa 19 e 20 de fevereiro: Las Villas (não se especificam lugares) 26 de fevereiro: Palacio de Bellas Artes 28 de março: Museo Napoleónico 10 e 11 de março: Teatro Amadeo Roldán 19 de maio: Pinar del Río (não se especifica lugar) 18 de julho: Biblioteca de Santa Clara 22 de setembro: Acto Especial na Alameda Central del Distrito Federal, México 8 de outubro: Teatro Degollado, México 15 de novembro: Universidad Autónoma de hidalgo, México 1969 10 e 23 de fevereiro: Teatro Lara, España 10 de maio: Teatro Amadeo Roldán 53 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani 8 de junho: Palacio de Bellas Artes 9 de junho: Palacio de Bellas Artes (Sociedad Cubano-Mexicana de Relaciones Culturales) 12 e 15 de agosto: Teatro Sauto, Matanzas Novembro: Recitais em Holguín, Bayamo e Santiago de Cuba (programa único que não especifica nem dias nem lugares) 28 de dezembro: Teatro García Lorca 1970 5 de janeiro: Palacio de Bellas Artes 25 de julho: Teatro Amadeo Roldán 22 e 23 de agosto: Teatro Sauto, Matanzas 24 de setembro: Sala Talia, ciudad de La Habana 1971 Julho: Amadeo Roldán (não se especifica o dia) D - Discografia O pesquisador cubano Miguelito Ojeda, ao organizar o catálogo básico de gravações musicais de Bola de Nieve, destacou que lhe chamou a atenção a pouca quantidade de discos encontrados, relativamente. Não é supérfluo recordar que Ignacio Villa faleceu em 1971, ou seja, até aquela época existiam apenas vinis e fitas cassete. Ele acrescenta ainda duas considerações relevantes: a seleção musical que aparece em cada um destes discos é bastante similar, levantando a hipótese segundo a qual isso se deve ao fato de o músico nascido em Guanabacoa “era muito exigente para incorporar obras a seu repertório” (Ojeda, 1998, p. 91). Sua primeira obra registrada no Centro Nacional de Direitos do Autor, segundo o estudioso, ocorreu em 4 de março de 1932. Trata-se da berceuse Drumi, mobila. Demorou mais sete anos (15 de julho de 1939) para que fosse realizado o registro da canción Si me pudieras querer, talvez sua música mais popular. Vinte e sete anos mais tarde (11 de maio de 1966) decidiu registrar, exatas, uma dezena de obras de sua produção musical, embora não tenha formalizado, até a sua morte, outras doze. Para Ojeda (1998, p. 91), 54 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani uma possível explicação para tal procedimento é que Bola “não se considerava um grande compositor musical; declarou isso em várias ocasiões e se mostrou conservador na hora de registrar suas criações”. A relação de suas obras registradas aparece à página 99 do texto de Ojeda (1998), a saber: Obra Drumi, mobila Si me pudieras querer No dejes que te olvide Ay, venga, paloma, venga Manda conmigo papé No siento No quiero que me odies Carlota ta morí Por qué me la dejaste Gênero Berceuse Canción Canción Balada Sketch negro Bolero (letra de outro autor) Bolero Elegia Couplet querer? Canción Pobrecitos mis recuerdos Canción Canción de la barca Pero tú nunca comprenderás Canción Fecha de Registro 4 - 3 - 1932 15 - 7 - 1939 11 - 5 - 1966 11 - 5 - 1966 11 - 5 - 1966 11 - 5 - 1966 11 – 5 - 1966 11 – 5 - 1966 11 – 5 - 1966 11 – 5 - 1966 11 – 5 - 1966 11 – 5 - 1966 Bola de Nieve deixou de efetuar o devido registro das seguintes composições: 1 - El reumático o Negro reumático 2 - Tú me has de querer 3 - Es tan difícil (Villa - Sabre Marroquín) 4 - Ay, amor 5 - Becqueriana (L. A. de la Cruz - Villa) 6 - Arroyito de mi casa 7 - Me dices loco 8 - Cuando te encuentre (sobre el poema de L. A. de la Cruz Muñoz) 55 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani 9 - Si no tengo a quién querer 10 - Todo en mi vida ha sido decepción 11 - Niña de la enagua blanca (Gutiérrez Nájera - Villa) 12 - Cuando ya se va la Bana Acrescenta o investigador que “las dos últimas obras musicales aquí relacionadas las canto en el teatro Amadeo Roldán el 22 de diciembre del año 1962. Las partes de piano de sus composiciones musicales se conservan en el Archivo Nacional” (Ojeda, 1998, p. 99). Ojeda localizou dez (10) discos em vinil de “larga duración”, isto é, Long Plays(LPs), gravados por Bola de Nieve ao longo de sua carreira. Praticamente tudo que ele gravou acabou sendo reproduzido sob a forma de Compact Discs (CDs) a partir do momento em que esse suporte se generalizou e as novas gerações “redescobriram” o artista cubano. Os discos de “larga duración”, são os seguintes: 1. MKL 3049, RCA Victor Mexicana. Bola de Nieve. 2. F8-op-8491-1a, Montilla (grabado en España). Bola de Nieve (Snow Ball). 3. S. L. P 800, Sonotone. Éste sí es Bola. 4. CAM 200, RCA Victor Mexicana. Los éxitos de Bola de Nieve. 5. IPF 031, Foton, México (estéreo). 6. S.M.L.D.- M1, Sierra Maestra (Consejo Nacional de Cultura). Recital de Bola de Nieve. 7. LP - 1008, Palma. Otra vez Bola. 8. LPA 1046, Areito. Bola canta Bola. 9. LD 3977, Areito (estéreo). Bola de Nieve in memoriam (I). 10. LD 3978, Areito (estéreo). Bola de Nieve in memoriam (II). Esse conjunto de vinis demandou longo esforço para a sua localização por parte de Miguelito Ojeda, que os encontrou em distintos sítios da capital cubana, quais sejam: Departamento de Música de la Biblioteca Nacional José Martí, Fonoteca de la Radio Metropolitana, Museo Nacional de la Música, Fonoteca del Centro de Investigación y Desarrollo de la Música Cubana (CIDMUC), Discoteca Central del Instituto Cubano de Radio y Televisión (ICRT), além das coleções pessoais de Raquel Villa e Iris Burguet. 56 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani Foram localizadas, também, 7 (sete) Matrizes da Empresa de Ediciones y Grabaciones Musicales (EGREM), contendo quase todas as gravações realizadas por Bola. E foi justamente a EGREM a responsável pelo lançamento de alguns CDs, copiados a partir dessas matrizes, como pode ser observado na relação apresentada a seguir. E - CDs (Selecionados) Tais CDs, cuja breve relação aparece a seguir, foram selecionados a partir de minha coleção pessoal. Acabaram sendo adquiridos ao longo dos anos, sempre que se descobria um lançamento no mercado, não importando se os mesmos continham repertório do autor em grande parte idêntico ao produto anterior. Isso porque, apesar de serem as mesmas músicas, os fonogramas são distintos. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. Bola de Nieve - R B Music, s.d. Bola de Nieve - Kubaney Records, s.d. Bola de Nieve con su piano - Montilla, 1991 [1957] Bola de Nieve - Ay mama Inés - Orféon, s. d. Bola de nieve - Sus grandes éxitos - Mediterráneo, 1991. El inigualable Bola de Nieve - EGREM, 1992. Bola de Nieve - Las grandes canciones del genial artista cubano - Nuevos Medios, 1992. Bola de Nieve interpreta a Ignacio Villa - EGREM/Velas, 1996. Bola de Nieve - Yo soy la canción misma - EGREM, 1996. Bola de Nieve in memoriam (1) - EGREM, s.d. Bola de Nieve in memoriam (2) - EGREM, s.d. No livro organizado por Ojeda (1998, p, 97-98), há a relação de 3 (três) CDs de Bola de Nieve, lançados pela EGREM, que abarcam quase todas as suas canções, com exceção das seguintes: 1. ”Ya no me quieres” - Ignacio Villa (?) 2. “Se equivocó la paloma” - Rafael Alberti/Gustavino (Larga Duración MKL 3049, RCA Victor Mexicana. Bola de Nieve) 57 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani 3. “Ogguere” - Gilberto Valdés (habanera) 4. “Corazón” - Eduardo Sánchez de Fuentes 5. “Ecó” - Gilberto Valdés 6. “Baró” - Gilberto Valdés 7. “No te importe saber” - René Touzet (Larga Duración F 8-op-8491 -1a, Montilla (grabado en España). Bola de Nieve (Snow Ball) 8. “Lacho” - Facundo Rivera 9. “En cest´t an la” (?) - Charles Trenet 10. “Tata Cuñengue” - Eliseo Grenet (Larga Duración S. L. P 800, Sonotone. Éste sí es Bola) 11. “Tú” - María Greever 12. “Una semana sin ti” - Vicente Garrido (Larga Duración CAM 200, RCA Victor Mexicana. Los éxitos de Bola de Nieve) 13. “Me dices loco” - Ignacio Villa 14. “Lo siento” - Ignacio Villa (LPA 1046, Areito. Bola canta Bola) 15. “Bacqueriana” - L. A. de la Cruz/Ignacio Villa (Larga Duración IPF 031, Foton, México (estéreo) 16.”Mi mejor verdad” - (?) 17.”Tú” - María Grever (?) 18.”La Condesa” - (?) 19. “Estás conmigo” - (?) 20. “Oye, corazón” - (?) Apresento, agora, a relação de canções de Bola de Nieve contidas em três CDs lançados pela EGREM, com as costumeiras redundâncias em seu repertório. São eles: CD 040, ARTEX (Licencia EGREM). Para siempre: Bola de Nieve 1. “Mésié Julián” - Armando Oréfiche 2. “Vete de mi” - Hermanos Expósito 3. “Ausencia” - María Grever 58 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. “Tú no sospechas” - María Valdés “La flor de la canela” - Chabuca Granda “Alma mía” - María Grever “No niegues que me quisiste” - Jorge del Moral ”No dejes que te olvide” - Ignacio Villa “Por qué me la dejaste querer?” - Ignacio Villa “No quiero que me odies” - Ignacio Vila “Si me pudieras querer” - Ignacio Villa “Drume, mobila” - Ignacio Villa “Manda conmigo papé” - Ignacio Villa “No puedo ser feliz” - Adolfo Guzmán “Ay, amor” - Ignacio Villa “Babalú” - Margarita Lecuona “Drume, negrita” - Eliseo Grenet “Ay, Mama Inés” - Eliseo Grenet “Chivo que rompe tambó” - Moisés Simons “El manisero” - Moisés Simons CD 0011, EGREM, El inigualable Bola de Nieve Saludo 1.”Caballero de olmedo” - Lope de Vega/Solano 2.”Be Careful, It’s My Heart” - Irving Berlin 3.”La vie en rose” - Edith Piaf 4.”Monasterio Santa Clara” - Barbieri 5.”No puedo ser feliz” - Adolfo Guzmán 6.”Ay, amor” - Ignacio Villa 7.”Vete de mi” - Hermanos Expósito 8.”La flor de la canela” - Chabuca Granda 9.”No dejes que te olvide” - Ignacio Villa 10.”Tú me has de querer” - Ignacio Villa 11.”Por que me la dejaste querer ?” - Ignacio Villa 12.”No quiero que me odies” - Ignacio Villa 59 Afrânio Mendes Catani bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani 13.”Si me pudieras querer” - Ignacio Villa 14.”Alma mía” - María Grever 15.”No niegues que me quisiste” - Jorge del Moral 16.”Ausencia” - María Grever 17.”Tu no sospechas” - Marta Valdés 18.”Te olvidaré” - Manuel Merodio 19.”Babalú” - Margarita Lecuona 20.”Drume, negrita” - Eliseo Grenet 21.”Ay, Mama Inés” - Eliseo Grenet 22.”Vito Manué, tú no sabe inglé” - Nicolás Guillén/Emilio Grenet 23.”Epabilate” - Eliseo Grenet 24.”Chivo que rompe tambó” - Moisés Simons 25.”El manisero” - Moisés Simons 26.”Mesié Julián” - Armando Oréfiche Despedida CD 0193, EGREM. Yo soy la canción misma: Bola de Nieve 1.”Ya no me quieres” - María Grever 2.”Aunque llegue a odiarme” - DR (?) 3. “Déjame recordar” - José Sabre Marroquín 4. “Qué dirías de mí?” - María Grever 5. “Por qué si estás en mí, no estás conmigo?” Jorge del Moral 6. “Felicidad” - DR 7. “Lo decembre congelat” - Anónimo catalán 8. “Becqueriana” - Ignacio Villa 9. “No siento” - Ignacio Villa 10.”Pero tú nunca comprenderás” - Ignacio Villa 11.”Canción de la barca” - Ignacio Villa 12.”Pobrecitos mis recuerdos” - Ignacio Villa 13.”Arroyito de mi casa” - Ignacio Villa 14.”Me contaron de tí” - René Touzet 15.”Adiós felicidad” - Ela O’ Farril 16.”Ay, venga, paloma, venga” - Ignacio Villa/Nicolás Guillén 60 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Afrânio Mendes Catani 17.”Os quindins de Yaya” - Ary Barroso 18.”Mercé” - Eliseo Grenet 19.”Yambanbó” - Nicolás Guillén/Emilio Grenet 20.”El botellero” - Gilberto Valdés 21.”Carlota ta morí” - Ignacio Villa 22.”Drumi, mobila” - Ignacio Villa 23.”Manda conmigo papé” - Ignacio Villa 24.”Mamá Perfecta” - Anónimo F - Letras de algumas das principais canções de Bola de Nieve 1 - Si me pudiera querer (Ignacio Villa) Despertaste nueva vida en mí para ser faro de mi querer y hoy me tienes medio loco porque ya siquiera un poco has de alumbrar mi ilusión. Hoy la vida me ha de sonreír, tengo ya deseos de sentir los besitos de tu boca, que mejor me hacen vivir. Si me pudieras querer como te estoy queriendo yo, si no me fuera traidora la luz de tu amor, yo no sé si existiera por ti solo mi querer, yo no sé qué será la vida sin ti. Pero no quiero pensar que nunca me podrás amar porque la vida no quiere y nada más; deja que Dios o que el destino quieran y entonces la vida también lo querrá. 61 bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras 2- Ay, Amor (Ignacio Villa) Amor, yo sé que me quieres llevarte mi ilusión: amor, yo sé que puedes también llevarte mi alma. Pero, ay, amor, si te llevas mi alma, llévate de mí también el dolor; lleva en ti todo mi desconsuelo y también mi canción de sufrir. Ay, amor, si me dejas la vida, déjame también el alma a sentir; si sólo queda en mí dolor y vida. ay, amor, no me dejes vivir. 3- Tú no sospechas (Marta Valdés) Tú no sospechas cuando me estás mirando las emociones que se van desatando; te juro que a veces me asusto de ver que te has ido adueñando de mí y que ya no puedo frenar el deseo de estar junto a ti. Tú no sospechas estas furias inmensas que me dominan cada vez que te acercas, y aunque no ha habido intención en ti de provocar lo que siento, te vas a enterar de una vez de que te quiero. 62 Afrânio Mendes Catani bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras 4- Vete de mí (Hermanos Expósito) Tu que llenas todo de alegría y juventud y ves fantasmas en la noche de trasluz y oyes el canto perfumado del azul: vete de mí. No te detengas a mirar las ramas muertas del rosal que se marchitan sin dar flor, mira el paisaje del amor, que es la razón para soñar y amar. Yo, que ya he luchado contra toda la maldad, tengo las manos tan desechas de apretar, que ni te puedo sujetar: vete de mí. Seré en tú vida lo mejor de la neblina del ayer cuando me llegues a olvidar cómo es mejor el verso aquel que no podemos recordar. 5- No puedo ser feliz (Adolfo Guzmán) No puedo ser feliz, no te puedo olvidar; siento que te perdí y eso me hace pensar. He renunciado a ti, ardiente de pasión; no se puede tener consciencia y corazón. 63 Afrânio Mendes Catani bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Hoy que ya nos separan la ley y la razón, si las almas hablaran, en su conversación las nuestras se dirían cosas de enamorados. No puedo ser feliz, no te puedo olvidar. 6- Se equivocó la paloma (Alberti - Guastavino) Se equivocó la paloma. Se equivocaba. Por ir al Norte, fue al Sur. Creyó que el trigo era agua. Se equivocaba. Creyó que el mar era el cielo; que la noche, la mañana. Se equivocaba, se equivocaba. Que las estrellas, rocío; que la calor, la nevada. Se equivocaba, se equivocaba. Que tu falda era tu blusa; que tu corazón, su casa. Se equivocaba, se equivocaba. (Ella se durmió en la orilla. Tú, en la cumbre de una rama.) 64 Afrânio Mendes Catani bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras 7- Drume Negrita (Eliseo Grenet) Mamá, a la negrita se le sale lo pie de la cunita y la negra Mercé ya no sabe qué hacé. Tú drume, negrita, que yo te va a comprá nueva cunita, que va tené capité, que va tené cacabé. Si tú drume yo te traigo un mamey muy colorao, y si no drume yo te traigo un babalao que da pau pau. Tú drume, negrita, que yo te va a comprá nueva cunita que va tené capité, que va tené cacabé. 8- El Manisero (Moisés Simons) Maní...maní...maní... Que si te quieres por el pico divertir, cómprame un cucuruchito de maní. Maní...maní...maní... Caserita, no te acuerdas a dormir sin comer un cucurucho de maní. Ay, que calientito y rico está, ya no se puede pedir más... Ay, caserita, no me dejes ir porque después te vas a arrepentir y va a ser muy tarde ya. 65 Afrânio Mendes Catani bola de nieve, expressão cultural de um caribe sem fronteiras Manisero se va... Caserita, no te acuestes a dormir sin comer un cucurucho de maní. Cuando la calle sola está, casera de mi corazón, el manisero entona su pregón y si la niña escucha mi cantar llama desde su balcón: - Dame de tu maní, que esta noche no voy a poder dormir sin comer un cucurucho de maní. Maní...me voy... Maní...maní...maní... 66 Afrânio Mendes Catani “Quando tá seco logo umedeço, eu não obedeço porque sou molhada”: semióticas interligando histórias de mulheres, de negritudes e do mundo lgbtquia+ 1 Ailton Dias de Melo2 Alessandro Garcia Paulino3 Cláudia Maria Ribeiro4 Rizomaticamente emaranhados nos fios que problematizam a dimensão pedagógica do cinema negro Iniciamos este artigo, na secura de nossa vontade de saber, com uma pergunta que explode em nós: o que concorre para a produção das subjetividades? Encontramos fios para puxar em Félix Guattari (1992, p. 11). O primeiro: “componentes semiológicos significantes que se manifestam através da família, da educação, do meio ambiente, da religião, da arte, do esporte; o segundo: “elementos fabricados pela indústria das 1 LGBTQIA+ - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queer, Intersexuais, Assexual e outras minorias de gênero e sexuais, como pansexuais, não binárias, etc. 2 Doutor em Educação e Ciências (FURG), Professor do Centro Universitário de Lavras - Unilavras e membro dos Grupos de Pesquisa Fesex – Relação entre filosofia e educação para a sexualidade na contemporaneidade: a problemática da formação docente - UFLAe Gese – Grupo de pesquisa Sexualidade e Escola – Universidade Federal do Rio Grande – RS. 3 Doutor em Educação (UFSCAR). Membro do Grupo de Pesquisa Fesex. 4 Professora Titular aposentada do Departamento de Educação da Universidade Federal de Lavras – MG. Membro do Fesex. 67 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro mídias, do cinema etc.”. Por enquanto, emaranhamo-nos nestes fios que anunciam nossa secura, pois o seco é “símbolo de esterilidade” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 808). Mas também de possibilidades de mergulhar no imaginário das águas e pensar com Foucault que, Na linguagem ocidental, a razão pertenceu por muito tempo à terra firme. Ilha ou continente, ela repele a água com uma obstinação maciça: ela só lhe concede sua areia. A desrazão, ela, foi aquática, desde o fundo dos tempos e até uma data bastante próxima. E, mais precisamente, oceânica: espaço infinito, incerto; figuras moventes, logo apagadas, não deixam atrás delas senão uma esteira delgada e uma espuma; tempestades ou tempo monótono; estradas sem caminho” (FOUCAULT, 2002, p. 205). Reportamo-nos às desrazões e ao terceiro item do que concorre para a produção das subjetividades, segundo Guattari (1992, p. 11) “dimensões semiológicas significantes colocando em jogo máquinas informacionais de signos, funcionando paralelamente ou independentemente, pelo fato de produzirem e veicularem significações e denotações que escapam então às axiomáticas propriamente linguísticas”. Produzir e veicular significações faz borbulhar a letra da música Banho, de Tulipa Ruiz, quando descobre suas ligações com Oxum e Iemanjá. Foi composta para o álbum cantado por Elza Soares “Deus é mulher”5, com a participação do bloco afro formado somente por mulheres da cidade de São Paulo: Ilú Obá de Min. Fundado em 2004, tendo como madrinha a cantora Leci Brandão. Criado pelas percussionistas Beth Beli, Girlei Luiza Miranda e Adriana Aragão. Elas procuravam uma forma de aumentar a participação feminina no toque do tambor – mãos femininas que tocam o tambor para Xangô. Tambores que clamam pela justiça. Em 2016 o bloco fez uma homenagem à Elza Soares – a Pérola Negra. Tudo interligado: as mulheres, a negritude, o mundo LGBTQIA+, na conexão com Elza Soares encharcando-nos com o desejo de saber. Algumas formas de conhecer desafiam-nos a pensar os processos de subjetivação: “potências de pensar filosoficamente, de conhecer cientificamente, de agir politicamente” (GUATTARI, 1992, p. 130). Conhecimento como um devir que se deixa inundar pelo imaginário das 5 Deus é mulher é o 33°álbum de estúdio da cantora e compositora Elza Soares, lançado em 2018. 68 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro águas subsidiado nas desrazões de Foucault (2002) e no referencial teórico de Deleuze e Guattari sob a lógica da complexidade enunciando o conceito de rizoma referindose a um sistema de conexões sem início nem fim engalfinhando linhas, estratos, intensidades e segmentaridades (DELEUZE; GUATTARI, 2011). Autores mergulham em concepções de documentários para apresentar o documentarista como quem cria, recria ou ressignifica realidades (FRÓIS, 2007). Mascarello (2006), na obra que organiza sobre a História do Cinema traz um capítulo sobre o documentário de autoria de Francisco Elinaldo Teixeira que diz ser o documentário: uma forte conotação representacional, ou seja, o sentido de um documento histórico que se quer veraz, comprobatório daquilo que “de fato” ocorreu num tempo e espaço dados. Aplicada ao cinema por razões pragmáticas de mobilização de verbas, ela desde então disputou com a palavra ficção essa prerrogativa de representação da realidade e, consequentemente, de revelação da verdade (TEIXEIRA, 2006, p. 253). Propomo-nos, portanto, a entrar nas águas do banho cantado por Elza Soares, em suas marés, cachoeiras, limpeza debaixo da água, sólidos e líquidos, pranto, seco e molhado, resistências: não obedeço porque sou molhada, enxáguo a nascente, maresia, rio, lagoa dando um viva para o múltiplo, tentando nos umedecer no imaginário das águas (BACHELARD, 1998). Em banhos que, rizomaticamente, não cessariam de “conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 23). Mergulhemos no labirinto-rede de Umberto Eco (1985) fazendo borbulhar o filme Rainha de Katwe. Xeque Mate: a rainha de Katwe Neste labirinto-rede que nos propusemos mergulhar, assumimos com Umberto Eco (1985, p. 46-47) que “cada caminho pode se ligar com qualquer outro, de maneira que o labirinto já não possui centro e periferia, tampouco saída, porque ele é potencialmente infinito”. Nas possibilidades desses caminhos infindáveis, não podemos deixar de mencionar os vários mergulhos possíveis quando pensamos nas histórias das mulheres 69 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro negras frente ao cinema. Perpassamos idealizações por várias películas como: “Preciosa” (2009), “Histórias Cruzadas” (2011), “A cor púrpura” (1985), “Estrelas além do tempo” (2016), fazendo minar uma série de discussões e problematizações sobre os mais variados recortes, a saber: violência contra as mulheres, superação, mulheres na pesquisa, violência sexual, dentre outros temas tão palpáveis e necessários em nossa sociedade. Para encharcar esse momento, nos propusemos a reprofundar e tibungar nas subjetividades das imagens produzidas pelo filme “A rainha de Katwe” (2016), filme que conta a história de uma criança Ugandense chamada PhionaMutesi e sua busca incessante para tornar-se uma das maiores jogadoras de xadrez do mundo. A trama perpassa aspectos de pobreza, de superação por meio da educação e da busca para a transformação do cenário de vida vivenciado pela família. Queremos ressaltar que o filme é uma produção dos Estúdios Disney, no qual tem ampla bilheteria em suas películas e chega ao alcance de milhares de sujeitos ao redor do mundo.Neste sentido, seus endereçamentos subjetivam os/as telespectadores/as das mais variadas formas, carregando consigo, uma história de ausências. “Os/as personagens da Disney têm nos ensinado a valorizar e desvalorizar corpos, comportamentos, profissões e belezas específicas” (BALISCEI; CALSA; STEIN, p. 142, 2017). Quando nos aprofundamos nas teorizações sobre uma pedagogia do cinema, os estudos culturais e principalmente sobre as temáticas de gênero e sexualidade, entramos em conflito com algumas de suas produções no que tange a padronização de estereótipos de feminilidade e na ausência de discussões mais amplas sobre a questão racial (BALISCEI; CALSA; STEIN, 2017). Essa justificativa se faz necessária neste texto, pois escolhemos operar com um filme dos estúdios Disney e no que isso pode acarretar frente a uma dívida cultural para as mulheres e meninas negras. Nota-se que a primeira princesa negra é representada por Tiana, no filme “A princesa e o sapo” (2009). E que na contramão de significações tomamos como uma possibilidade de reconfiguração a personagem Phiona, que reconstrói por intermédio da educação novas possibilidades de se pensar aspectos ligados a regionalidade, a questão racial e a educação/esporte como transformadoras de realidades. Phiona ancorada em sua curiosidade e na metáfora de que o pequeno pode virar grande, devido a uma jogada do xadrez (quando se leva o peão até o outro lado do tabuleiro) vislumbra anseios e desejos em relação ao seu futuro, mesmo em meio a tantas incertezas advindas da realidade existencial na maior favela de Uganda - Katwe. 70 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro Acessamos Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 966) para elucidarmos algumas perspectivas presentes na relação entre o xadrez frente aos caminhos percorridos por Phiona. Para os autores,“o simbolismo desse jogo, originário da Índia, liga-se claramente ao da estratégia guerreira [...] O desenrolar do jogo é um combate entre peças negras e peças brancas, entre a sombra e a luz, entre os Titãs (asura) e os Deuses (deva)”. Estratégia guerreira é ponto ápice tanto do jogo quanto da visualização de uma menina que procura se superar e tecer novas possibilidades para uma vida tão precária. O combate entre as peças brancas e pretas, os antagonismos entre sombra e luz são parte do processo de construção de uma identidade por parte de Phiona, que vive outros paradoxos em meio a ausência do pai e os infortúnios da pobreza e a justificativa de um deus que não olha pelas pessoas. Ainda para os autores “o tabuleiro é uma representação do mundo manifestado [...], simboliza a tomada de controle, não só sobre adversários e sobre um território, mas também sobre si mesmo, sobre o próprio eu” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 966-967). A concretização dessas simbologias se faz expressa no momento em que Phiona consegue estabelecer que a partir do esporte e de sua trajetória de batalhas e guerras entre tantos cenários de alternância, se materializa nas potencialidades da tomada de controle e também de si mesma. Tornar-se uma das maiores jogadoras de xadrez do mundo, a rainha de Katwe. Sobre esse contexto de alternância Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 967), ainda nos elucidam: O tabuleiro de xadrez simboliza também a aceitação e o domínio da alternância, como observa Roger Caillois: alternância das casas brancas e negras, tal como dos dias e das noites, alternância de entusiasmos e de controles, de exaltação e de contenção de desejos, principalmente porque, numa extensão como essa, absolutamente coerente, não há peça alguma que não tenha repercussão sobre as demais. Este artigo assume também essa alternância ao iniciar a problematização de outro filme: Lionheart. Outra história de mulher negra. Outro fio a ser puxado nos processos de subjetivação. 71 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro Não se curve: o filme Lionheart “Não se curve”. Essa exortação, curta e simbólica, aparece no centro da trama no filme “Lionheart”. Adeze Obiagu vivida pela atriz e diretora nigeriana Genevieve Nnaji, assume os negócios da família, a Lionheart Transport, depois do adoecimento de seu pai, o grande patriarca e provedor. No entanto, Adeze, que se preparou por anos para assumir como presidente da empresa, assume o comando com a mediação de um tio. Ao se afastar do comando da empresa para se recuperar, o pai de Adeze escolhe um irmão, que embora o tenha ajudado no início da empresa é inexperiente para negócios. Se comparado a Adeze, o Chief Ernest Obiagu, personifica o grande herói. É admirado pelos funcionários e toda família. Julga que Adeze, embora preparada, ainda precisa aprender que nem tudo acontece como se planeja e por isso traz o irmão para fazer a mediação da atuação da filha. Além de lidar com o cotidiano da empresa como diretora de logística e operações, com a ausência do pai, Adeze se descobre, em uma auditoria externa, uma enorme dívida contraída pelo seu pai através de financiamentos. Adeze Obiagu é uma mulher de negócios, inteligente, formada nos EUA, que acorda ainda na madrugada para fazer corrida todos os dias, altiva e sempre muito elegante, chega cedo ao escritório, chefia uma grande equipe, tem uma agenda repleta de atividades e carrega sobre os ombros todas as expectativas do pai. Ela é o legado do pai, em detrimento do irmão, músico desacreditado por quase todos, que passa a vida em um estúdio sem emplacar nenhum sucesso. Parece sempre protegido pela mãe, que em vários momentos do filme o defende e é a única que aparece em seu estúdio em uma cena, demonstrando gostar do que ouve. Depois de descobrir a dívida, Adeze Obiagu corre não só de madrugada. Passa a ter uma outra corrida durante todos os seus dias e noites, contra os prazos dos bancos credores. Na empreitada de tentar renegociar prazos e emplacar um plano capaz de livrar a empresa da falência e consequentemente da venda a um grande concorrente, no ápice do filme, Adeze está exausta. Fisicamente abatida, sem forças para se levantar, ela procura o pai. No entanto, é interceptada pela mãe no caminho. Sua mãe personifica a grande matriarca que cuida do lar e de todos. Sempre preocupada com o descanso e alimentação dos entes e uma grande conselheira. Depois do desabafo de Adeze, sua mãe AbiailObiagu a exorta com firmeza: Não se curve! Relembra a grande saga do patriarca, 72 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro Ernest Obiagu, na conquista de todos os bens que possuem, e o quanto todos confiam, acreditam e esperam de Adeze. Ela não pode falhar, deve manter o foco e acreditar que vai conseguir. Adeze Obiagu recupera o vigor que a conduzirá ao desfecho de sucesso, não só resolvendo o problema econômico da empresa como assumindo a presidência depois da renúncia do pai. A trama de Lionheart tem uma inversão da clássica relação edipiana de identificação e desejo. A menina Adeze admira o pai, mas não o “deseja”, ela assume seu lugar se identificando com suas atribuições de gestor e líder. É como ele. Já o irmão, que em certo momento diz se parecer com o pai apenas por causa da barba, em nenhuma cena é visto na empresa da família, não cogita ou deseja o lugar do pai. Pelo contrário, anuncia o conforto da distância, deixando bem marcado a não identificação e a busca de proteção da mãe. Embora tenhamos aqui uma potente linha de problematização, vamos puxar uma outra ponta, também potente, com a qual queremos tecer um pouco mais. Não se curve, diante dos problemas e dificuldades, reverbera um: Não desista! Você não pode desanimar! Você não pode desapontar a todos! Essas e outras afirmações explícitas ou não na trama são presentes na história das mulheres que de alguma forma ousam subverter a ordem social, histórica e cultural estabelecidas pelo patriarcado. Ser guerreira, de fibra, de aço, incansável, persistente, empoderada está associada a ser uma mulher que vence em detrimento de quê? O grande modelo, a inspiração, a referência de Adeze Obiagu, é ou deve ser seu pai, um homem, e todo seu esforço é para ocupar um lugar que não é dela historicamente. A que custo? O do desgaste inesgotável de si mesma se fazendo exceção à regra? Ou temos uma outra versão da mulher, que mesmo não mãe, transfere seu objeto de dedicação, como ser capaz de doação total, de entrega sem reservas, de um amor inesgotável para além de si mesma. Nossa extenuante admiração por uma mulher negra que rompe com o ciclo naturalizado de lugar, atribuição e capacidade feminina assumindo o lugar de um grande homem, catalisa nossa perspectiva sexista e racista? Não falhar, não errar, não se cansar é uma prova de resistência? De qual acusação as mulheres precisam se defender com provas? São perguntas retóricas, nós sabemos as respostas e precisamos problematizá-las. Adeze Obiagu não é apenas uma protagonista de um filme, ela é o centro da empresa Coração de Leão, em torno da qual gira toda a trama. Ela personifica a Lionheart Transport e luta bravamente, não só pela sua sobrevivência para garantir o sustento de sua família, mas 73 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro também das famílias de dezenas de funcionários e sobretudo, como repete várias vezes, pelos valores da empresa que presta um serviço de conduzir pessoas a seus destinos. Não pode se curvar, diante de tanta responsabilidade. Luta com coração de leão? “Poderoso, soberano, símbolo solar e luminoso ao extremo, o leão, é a própria encarnação do Poder, da Sabedoria e Justiça” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2019, p. 538). É um fardo bastante pesado, que dificulta o não sucumbir, o não baixar os ombros, o não se curvar. Se manter ereta, de pé, esguia é um exercício a ser lembrado a uma mulher, por se tratar de um grande esforço a quem tem “natureza curvada”? A ironia da pergunta é para puxar uma outra ponta da linha para nossa problemática tecitura. Os autores do Malleus Maleficarum,6 O martelo das Feiticeiras, manual criado para a caça às bruxas durante a inquisição católica, afirmam que, a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia pelas muitas abominações carnais. E convém observar que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é por assim dizer, contrária a retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente (...) portanto, a mulher perversa é, por natureza, mais propensa a hesitar na fé, e consequentemente, mais propensa a abjurá-la – fenômeno que conforma a raiz da bruxaria (KRAEMER; SPRENGER, 2017, p. 94-95). No cerne da discussão citada acima, está a natureza da mulher. Como houve uma falha na formação da primeira mulher, esta ficou marcada pela curvatura, contrária à retidão. Imperfeita deve se esforçar mais? Se quiser manter a reta deve lutar com bravura, provar que é possível suplantar sua natureza decaída? Provar o contrário do estabelecido pela criação, que missão árdua, difícil e cruel? Até quando? Joice Berth, arquiteta e urbanista, no livro Empoderamento (2019), da Coleção Feminismos Plurais, chama a nossa atenção para o quanto é preciso cuidar dos conceitos, enquanto sentido e luta, em uma perspectiva histórica, sobretudo no campo do feminismo. 6 Malleus Maleficarum Maleficat & earumhaeresim, ut frameapotenissimaconterens foi publicado, em 1486-1487pelos dominicanos Heinrich Kraemer e James Sprenger, na Alemanha, em cumprimento à bula papal Summis Desiderantis Affectibus de Inocêncio VIII, que os autorizava criar um manual de combate à feitiçaria. 74 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro A intelectual e feminista negra Lélia Gonzales afirmava que, como mulheres negras não compartilhamos somente história de opressão; é preciso conhecer as trilhas dos caminhos de luta percorridos nessas opressões. Em outras palavras, não perder a perspectiva histórica de resistência e possibilidade de resistir a partir da autodefinição (BERTH, 2019, p. 92). Ao retomar e ziguezaguear histórica e socialmente por conceitos como poder e empoderamento, Joice Berth (2019) aponta para a importância da aliança entre conscientização crítica e transformação das práticas, na busca de processos contestadores e revolucionários, individuais e coletivos. Isto para que os discursos, os conceitos, as pautas e lutas não sejam apropriados indevidamente por quem, na tentativa de manter o estado atual das coisas, trabalha e tem êxito na pasteurização das reivindicações, na produção de fachadas e no fortalecimento do paternalismo patriarcal que insiste em exigir obediência. Outra história de resistências borbulhou no documentário problematizado a seguir. Resistências: não obedeço porque sou molhada – Elza & Mané – amor em linhas tortas7 A Diretora do documentário Caroline Zilberman diz que o trabalho de pesquisa no acervo da TV Globo foi intenso, depois das leituras biográficas. Foram dois meses para assistir e separar as imagens, antes de partir para pesquisas em jornais — uma parte particularmente difícil, uma vez que Elza e Garrincha ocupavam das páginas esportivas, seções de música e colunas sociais às manchetes policiais nos últimos anos do relacionamento. Eles se conheceram em 1962, quando o jogador ainda era casado, e a união durou de 1966 a 1982. Em cenas iniciais do documentário Garrincha está em Pau Grande – RJ em frente as águas que podem anunciar inúmeras transformações. Águas que constataremos foram turbulentas. “A navegação entrega o homem (e acrescentamos, as mulheres) à incerteza da sorte” (FOUCAULT, 1972, p. 12). Nesse movimento já anunciado da 7 Documentário que traz a criação e direção de Caroline Zilberman e navega pelo relacionamento entre Elza Soares e Garrincha. Uma relação que combateu preconceitos e foi marcada pelo amor, pelo alcoolismo e pela violência. 75 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro escrita rizomática que “deve ser produzida, construída, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 43) perguntamos: quais são as recusas, os medos, as ansiedades, os desafios, as ousadias, quando navegamos por processos de subjetivação? O que é preciso e o que não é preciso? Fernando Pessoa pede para si o espírito desta frase, considerando que: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. Caetano Veloso compõe “Os argonautas” para falar de navegadores ousados. De um coração que não aguenta tanta tormenta! E traz a imagem do barco para afirmar que “navegar é preciso; viver não é preciso”! Mas... é preciso!?... Com todas as entonações possíveis. Quanta contradição, paradoxo, enigma ao navegar por entre o preciso e o impreciso, por entre produções intelectuais que possam criar problematizações. O documentário em tela é potente para tal. Mergulhemos, mais uma vez, nas histórias. Garrincha começou o contato com o álcool praticamente ao nascer, quando sua família o alimentava com uma mamadeira contendo cachaça, mel e canela em pau - o popular “cachimbo” dos indígenas nordestinos. Ou seja, foi estimulado desde cedo a beber. E, no decorrer de sua vida, o álcool fez muito estrago. Cenas marcantes do documentário “Elza & Mané: amor em linhas tortas”navegam pelo copo de bebida e nos instigam novamente, a mergulhar no imaginário das águas8 encharcando-nos com a simbologia da fermentação acionando a língua dos bambaras: “a palavra Kumu – fermentar – designa todo processo através do qual uma substância, ou até mesmo um objeto, é posto em estado de acidificação e de efervescência, capaz de conferir-lhe maior influência sobre os seres que sofrem sua ação” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 422). A fermentação da água ardente influenciou sobremaneira a vida de Mané Garrincha e, no documentário, esteticamente, o copo com bebida e gelo dizem mais do que mil palavras. Um fio será puxado para problematizar o saber, poder, verdade. Por que? Porque Garrincha compunha um tecido social em que as relações de poder eram exercidas sobre ele. Os amigos diziam que Garrincha era um puro, de futebol demoníaco, mas com alma de anjo. Ele não tinha sequer consciência do próprio gênio. Ou seja, tinha o seu talento, mas sofria efeitos devastadores assujeitando-se: 8 O imaginário das águas possibilita agitar a racionalidade, navegando pela imaginação e fantasia (ANDRADE, 2001; RIBEIRO, 2008, 2009; FOUCAULT, 2002). 76 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico; (...) um saber é, também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso; (...) um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam; (...) finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso (FOUCAULT, 2013, p. 220). Navegando pelas relações de poder plurais e relacionais – práticas heterogêneas e sujeitas a transformações: famílias, contratos, mídia, opiniões alheias, dentre outras, e, a bebida encharcando a vida. E toda essa história entrelaçou-se com a de Elza: “preta, pobre, favelada” – suas próprias palavras na entrevista para Bial9. No texto escrito por Celso Prudente e Eunice Aparecida de Jesus Prudente (2022) o autor e a autora consideram: que seu canto é expressão do corpo na mesma medida em que corpo é manifestação do seu canto. Essa diva negra canta com a alma, fazendo um vocal gutural, na garganta que é componente físico, em que distorce a voz, tornando-a multifacetada, como provável instrumento da dinâmica do corpo, e com uma possível ternura da alma, intensificando assim a polissemia existencial da multiplicidade negra (s/p.). Vida polissêmica negada pelo patriarcado eurocêntrico que tenta reduzi-la. “Polissemia humana dos seus diferentes, quais sejam, no caso específico do Brasil, o negro, a mulher, as (os) lgbts, o deficiente, minorias étnicas e religiosas, e outras que reclamam da heteronormatividade” (PRUDENTE; OLIVEIRA, 2019, p. 161). Ainda menina caminhava com a lata d’água na cabeça, distorcendo sua voz, encantada com o louva-a-deus e seus sons. O significado do bichinho nos remete à capacidade de luta, à entrega ao fluxo da vida seguindo seus movimentos. As habilidades de lidar e enfrentar as dificuldades e os desafios que encontra pela frente (AUR, 2017). Pai operário, mãe lavadeira. Em um dos momentos que observava um louva-a-deus foi violentada por 9 Conversa com Bial – Programa levado ao ar em 06/06/2017. 77 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro Lourdes Antonio Soares e, com apenas 12 anos, engravidou. O pai obrigou-a a casar e, segundo o jornalista e biógrafo de Elza, Zeca Camargo, ele dizia: “a honra da sua filha estaria limpa com o casamento”. Teve 8 filhas e ficou viúva aos 21 anos. Os significados do louva-a-deus acompanharam a cantora por toda a sua vida: lutadora, persistente, guerreira, seguindo os fluxos das simbologias dos banhos: nascentes que se transformaram em cachoeiras, em rios, em lagoas. Uma das nascentes foi no programa de calouros de Ary Barroso na Rádio Tupi em 1953. Vestida com a saia e a blusa da mãe, toda fechada com alfinetes, pois a roupa era para o dobro de seu peso, foi perguntada pelo apresentador de que planeta tinha vindo e ela respondeu: do “Planeta Fome”. Elza Soares foi a esse programa para ganhar dinheiro para comprar comida e remédio para o seu filho. Inaugurou ali sua carreira e Ary Barroso disse, depois de ouvi-la cantar, que acabava de nascer uma estrela. Com parte do prêmio pegou um táxi para voltar para casa. Nunca havia andado em um. A história de Elza Soares está encharcada pelas águas dos rios e, a música de autoria de Antonio Candeia Filho e cantada por Liniker10 intitulada Preciso me encontrar representa a intensidade desta mulher: “Deixe-me ir, preciso andar. Vou por aí, a procurar. Rir pra não chorar. Quero assistir ao sol nascer, ver as águas dos rios correr. Ouvir os pássaros cantar. Eu quero nascer, quero viver”. A letra desta música se entretece com a mulher apaixonada pela vida e que superou imensas violências: fome, pobreza, violência física tanto do primeiro marido quanto de Garrincha que a agrediu fisicamente, além de agredi-la com a dependência do álcool. Violência do exílio e das inúmeras críticas à mulher que se tornou amante de Garrincha que fê-lo deixar a mulher e 7 filhas e que foi culpada por ele deixar de ser o campeão do mundo. Conquistou o título em 1958, na Suécia e em 1962, no Chile. Uma mulher culpada por um homem perder um campeonato. Foi ela! A subjetivação das mulheres a partir do apontamento, da responsabilização pelo caos, da culpabilização remonta um dos mitos mais influentes do ocidente. E desde então se repete com frequência. Isso porque a culpa da mulher está no gênesis da humanidade. Eva foi culpada por Adão desobedecer. O primeiro homem desapontou seu criador e pecou, permitindo que a morte entrasse no mundo. Nas primeiras narrativas sobre as origens 10 Liniker - cantora, compositora, atriz e artista visual brasileira. Integrou a banda Liniker e os Caramelows. Em 2020 a banda se separa e em 2021 Liniker lança seu primeiro álbum solo Indigo Borboleta Anil. 78 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro temos um discurso que se pauta em uma sentença: Foi ela! Partindo do pressuposto de que discursos produzem verdades sobre os sujeitos, como apregoa a teorização foucaultiana, olhando aqui de modo especial para a história de e das mulheres, podemos afirmar que discursos produzem verdades sobre seus corpos, comportamentos, formas de ser e estar no mundo. Diante disso, a questão é: podemos afirmar que os discursos, que segundo Foucault em sua odisseia pela História da Sexualidade e no seu exercício na elaboração de uma Hermenêutica do Sujeito, tem função formadora de subjetividade, ligando o sujeito à verdade, construíram uma história de mulheres culpadas? Não buscamos respostas fáceis, lineares, pontuais e restritas à afirmação ou negação. Buscamos problematizar, e com isso queremos dizer estranhar a relação mulher-culpa, na vida de tantas Elzas, degeneradas filhas de Eva, condenadas a parecerem fora do paraíso por terem maculado a origem da humanidade com sua desobediência, por em seus primeiros atos como viventes “terem feito algo errado”. Um dos textos mais reproduzidos e disseminados na civilização ocidental, que abre a coleção dos livros bíblicos, destaca a primeira mulher como a responsável pelo destino cruel da humanidade: a morte como consequência do pecado. Segundo o livro do Gênesis, foi depois da desobediência da mulher que o mal entrou no mundo. A companheira, tirada da costela de Adão, e comeu do fruto proibido e, não satisfeita induziu seu companheiro fazendo com ele também experimente a desobediência. A única coisa que lhe havia sido impedida era o fruto da árvore do centro do jardim. Depois de consumada a desobediência o criador falou diretamente com as criaturas, questionou o que havia acontecido. Adão se justificou confirmando a desobediência que ele cometeu por influência de Eva. “A mulher que me deste como companheira me ofereceu o fruto e eu comi” (BÍBLIA, 2002, p. 21). Foi ela. A culpa foi dela. A mulher recebeu então o castigo de sofrer durante a gravidez; o parto passou a ser acompanhado de dor e o desejo que a fez pecar passou a impelir ao seu marido, sendo a ele submissa. Dor e submissão por ter feito o homem perder o direito da vida eterna. Ela é a culpada pela finitude. Se torna prisioneira de sua culpa. Sendo Eva a primeira, sendo ela a culpada, as mulheres “devem pagar por sua falta num silêncio eterno” (PERROT, 2007, p. 17). Condenadas e expulsas do Éden perdem o direito de andar pelo jardim, de procurar, de rir, de assistir ao sol nascer, de ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros a cantar. Como (re)nascer? Como (re)viver? Para resistir é preciso reinventar a desobediência. 79 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro Preciso me encontrar, na voz de Liniker, potencializa significados e nos instiga, novamente, a entrelaçar os temas da dimensão pedagógica do cinema negro e nós ampliamos para os temas dos documentários. Retornemos então à cantora Liniker – “sou negro, pobre e gay e tenho potência também” em entrevista para El País. Investe numa imagem andrógina diz o Globo G1 em 2015 e mistura turbante, saia, batom e bigode em suas performances musicais. Não se define nem como homem e nem como mulher; prefere o pronome feminino diz na Revista Rolling Stone Brasil, em 2015. Declarou ser uma mulher trans para a Revista Glamour em 2021. A força da música cantada por Liniker, com os tambores do grupo Ilu Obá de Min anunciam, neste artigo, a dimensão política das músicas de Elza Soares. Este anúncio é feito com a simbologia dos tambores que nos toca profundamente. Chevalier e Gheerbrant(1998, p. 861) dizem que o “ruído do tambor é associado à emissão do som primordial, origem da manifestação e, mais geralmente, ao ritmo do universo” (...) “Na África, o tambor está estreitamente ligado a todos os acontecimentos da vida humana. É o eco sonoro da existência” (Idem, 1998, p. 862). Anunciamos, portanto, com os tambores, a cantora Elza Soares que, segundo Bial, em seu programa Conversa com Bial (06/06/2017) que ela é uma fênix, que está sempre renascendo. Desde a pobreza em que nasceu, a fome que experimentou, a participação no programa de calouros de Ary Barroso com o objetivo de ganhar dinheiro para comprar comida e remédio para o filho, até refugiar-se na Itália, fugindo da perseguição no Brasil por participar de um comício de João Goulart, de comício na Central do Brasil em 13 de março de 64. Cantava sem saber do AI-5 e suas consequências. Na Itália substituiu Ella Fritzgerald que teve que se ausentar para uma operação de cataratas. Recebeu o título de cantora do milênio da BBC de Londres. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul atribuiu-lhe o título de Doutora Honoris Causa. No carnaval de 2020 foi tema da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel (RJ): Elza Deusa Soares. Sandra de Sá foi autora do samba enredo. As músicas de Elza Soares fazem pulsar os preconceitos que viveu desde a infância e diz de seu processo de subjetivação: A carne11; “mil nações moldaram minha cara; minha voz uso pra dizer o que se cala; o meu país é meu lugar de fala”12. Djamila 11 A carne. Autores Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Capellette. Álbum do Cóccix até o Pescoço, 2002. 12 Elza Soares - o que se cala. Álbum Deus é mulher. 2018. 80 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro Ribeiro (2017) em seu livro O que é lugar de fala? Feminismos plurais nos subsidia para problematizar a história de resistência da cantora. Os poderes e controles pelos quais navegou. Os discursos que exerceram poder sobre ela e os discursos que produziu: é preciso esclarecer que quando utilizarmos a palavra discurso no decorrer do livro e a importância de se interromper com o regime de autorização discursiva, estamos nos referindo à noção foucaultiana de discurso. Ou seja, de não pensar discurso como um amontoado de palavras ou concatenação de frases que pretendem um significado em si, mas como um sistema que estrutura determinado imaginário social pois estaremos falando de poder e controle (RIBEIRO, 2017, p. 22). Na voz da cantora tantas músicas denunciaram o direito “à existência digna, à voz, estamos falando de locus social” (...) “Absolutamente não tem a ver com uma visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo” (RIBEIRO, 2017, p. 27). Nem somente os/as intelectuais. A contribuição de Foucault (1979) potencializa nossas reflexões: os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente muito melhor do que eles; elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a ideia de que eles são agentes da “consciência” e do discurso também faz parte do sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso (FOUCAULT, 1979, p. 71). Mediante esta citação poderíamos entrelaçar saberes de Prudente (2019), de Ribeiro (2017) e de Foucault (1979) e afirmar que os conceitos que se entretecem e potencializam o que se denomina Cinema Negro “constitui-se hoje como a arte dos 81 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro banidos, não só e apenas do negro brasileiro, mas de todos os escorraçados de um desenvolvimento econômico e social” (MARCOS, 2019, p. 11). As letras das músicas de Elza Soares instigam a pensar: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”; “a mulher do fim do mundo é uma que não tem medo de enfrentar a vida”; exu nas escolas: “é tomar de volta a alcunha roubada de um deus iorubano”; Planeta Fome: “libertação eu não vou sucumbir”; Sua voz lutou contra o racismo, em prol da independência feminina, instigando a assumir o lugar de fala de quem teve, como ela, de enfrentar o machismo e o racismo “Ouço sempre que sou resistente e concordo plenamente. Faço questão de ser ativista. Eu brigo, grito, vou à luta. Pelos gays, pelos negros, pela juventude, pelas mulheres, por quem não é ouvido” (Bárbara Lopes, Agência O Globo). A música Banho, que já nos referimos anteriormente tem a montagem de uma boca que reflete bem a intencionalidade da cantora. Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 133) dizem que a “boca é o símbolo da força criadora”. Conforme já afirmamos, o Cinema Negro e também os documentários veiculam “o negro brasileiro, e por extensão todos os grupos de excluídos, com os traços da sua cultura, e a necessidade premente de sua afirmação existencial” (MARCOS, 2019, p. 11). Mergulhemos, portanto, no documentário “Do ódio ao amor” (2020)13. Tibungar em outras diferenças Inundados pelas possibilidades imagéticas, ousamos navegar por águas turbulentas e caóticas entrelaçando a biografia do ativista Peter Tatchell e as histórias de resistências e transgressões envolvendo temas como religiosidade e os movimentos de libertação LGBTQIA+. Do ódio ao amor se torna um documentário para balançar todas as estruturas normativas de modo a relatar a figura de um homem que vem colocando à prova todo um sistema heteronormativo na busca de alavancar os direitos das “minorias” sexuais e de gênero, intervindo nos mais variados cenários institucionais. A história de Tatchell inicia a partir da afinidade com o movimento negro devido à morte de 4 mulheres negras na guerra do Vietnã, que tem seu início ainda 13 Direção: Cristopher amos; Título Original: Hating Peter Tatchell (2020); Gênero:Documentário Duração:1h31min; País: Austrália. 82 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro na Austrália a ter conhecimento sobre as reivindicações e os processos de resistência ocasionados pelas movimentações sociais, pelos protestos e por entender a necessidade da representatividade das ditas “minorias” nos mais diversos contextos. Mediante aos acontecimentos em sua vida, Peter se muda para o Reino Unido onde busca por meio das frentes de libertação gay e em sua representatividade legislativa o engajamento em causas sociais ligadas ao movimento LGBTQIA+, questões étnicas, ao HIV e tensões ligadas às guerras. Há no decorrer de sua historiografia grandes conflitos com a primeiraministra do Reino Unido, Margaret Tatcher, devido ao seu extremo conservadorismo, principalmente no impedimento de que pautas ligadas a uma educação para as sexualidades fossem veiculadas nas escolas (Cláusula 28 ou Seção 28). Fato bem similar aos acontecimentos presentes na história brasileira na gestão de 2016 a 2022, onde órgãos como SECADI14 foram extintos das pautas sócio-culturais-educativas. Seguindo a cronologia dos acontecimentos adentramos pós-cenário da década de 70, na necessidade de uma movimentação frente às adversidades ocasionadas pelo vírus do HIV e suas decorrências frente a ligação errônea e equivocada à população LGBTQIA+, principalmente no que concerne aos ataques políticos e religiosos. Segundo Peter Tatchell essa foi uma das piores épocas para uma vivência queer. Tatchell tem severos confrontos com a igreja e com a polícia frente suas transgressões e resistências. Peter se junta ao Outrange!15 Procurando ampliar as potências de suas reivindicações e revoluções. Tatchell sempre avançou pelas possibilidades de resistência que navegam pelo próprio poder. Vislumbrar os possíveis caminhos da quebra dos paradigmas, dos padrões e das normas pelo viés da pluralidade. A militância estratégica e bem orquestrada de Tatchell nos aponta para a desobediência como uma forma de lidar com o poder entendido como uma tensão que se estabelece entre as partes, numa relação de confronto, num jogo que envolve a resistência, pois, 14 SECADI – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – MEC. 15 OutRage! was formed in May 1990 at a meeting at the then London Lesbian and Gay Centre in Farringdon, attended by 35 LGBT activists – the joint co-founders. Its formation was prompted by two things. First, escalating queer-bashing violence, including a wave of homophobic murders – in particular, the kicking to death of Michael Boothe in West London. Second, the huge rise in the number of gay and bisexual men arrested and convicted for consenting, victimless behavior. Informação literal retirada do site http://outrage.org.uk/ 83 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, então pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta, sem que para tanto venham a se sobrepor, a perder sua especificidade e finalmente a se confundir. Elas constituem reciprocamente uma espécie de limite permanente, de ponto de inversão possível. Uma relação de confronto encontra seu termo, seu momento final (e a vitória de um dos dois adversários) quando o jogo das reações antagônicas é substituído por mecanismos estáveis [...] (FOUCAULT, 1995, p. 248). As movimentações, resistências e pontos de embate continuam a pulsar pelo documentário finalizando em pautas importantes e necessárias, como protestos contra as ações do ex-presidente do Zimbábue - Robert Mugabe, bem como intervenções mais recentes na Copa do Mundo sediada na Rússia (2018), em que Tatchell desafia as políticas instauradas por Vladimir Putin. Por fim, observamos ao final da película nossas possibilidades de ações frente a Copa do Mundo (2022) que será sediada no Catar. O que podemos esperar nesse movimento borbulhante e desafiador de Peter Tatchell? De securas aos umedecimentos: dimensões pedagógicas do cinema negro em suas considerações finais Nossas problematizações mergulharam nos filmes “A rainha de Katwe” (2016), “Lionheart” (2018); nos documentários “Elza & Mané - amor em linhas tortas” (2022) e “Do amor ao Ódio” (2020) entrelaçando os temas da violência contra as mulheres e a população LGBTQIA+, superação, violência sexual, pobreza, fome, processos educativos formais e não formais, famílias, resistências, dentre tantos outros. Mergulhos no imaginário do seco ao umedecido pelas águas das possibilidades. Derramar, transbordar, inundar, gotejar…Gaston Bachelard (1998, p. 10) afirma que “uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e dissolver a noite. Para sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade. A água assim dinamizada é um embrião; dá à vida o impulso inesgotável”. Esse impulso à vida é um impulso à pesquisa, uma pesquisa encharcada de imaginário. Evocamos múltiplas imagens, múltiplos signos e símbolos que perpassam nosso imaginário individual e coletivo. Dizer 84 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro do imaginário não significa alienação e/ou fuga da realidade. O imaginário não só faz parte da realidade como a constrói. Ao trazer isso para o texto, buscamos problematizar a realidade na tentativa de acessar “aspectos mais profundos dessa realidade, disfarçados pela roupagem colorida do fantástico” (AUGRAS, 2009, p. 10), da arte cinematográfica. Objetivamos, neste artigo, puxar rizomaticamente múltiplos fios para impulsionar conexões, para realizar percursos, inspirada e inspirados primeiramente na letra da música cantada por Elza Soares – Banho16, que diz sobre securas, mas imediatamente, de umedecimentos, de possibilidades de se molhar. Quanto aprendizado ao navegar também por documentários que nos possibilitaram afirmar que não só o cinema é veículo de comunicação, arte e entretenimento, mas como forma de conhecimento (PRUDENTE; OLIVEIRA, 2019). Acrescentamos, como forma de luta política. “Movimento estético, necessariamente de intervenção político-social, assumindo a denúncia da continuada exclusão do negro brasileiro dos centros de poder” (MARCOS, 2019, citado por PRUDENTE; SILVA, 2019, p. 11). O autor refere-se ao Cinema Negro e nós acrescentamos o documentário que pode também instigar a problematizar os “escorraçados de um desenvolvimento econômico e social”(MARCOS, 2019, p. 11). Referências AUGRAS, Monique. Imaginário da magia: magia do imaginário. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2009. AUR, Deise. Significados do louva-a-deus.Green Me. Publicado em: 16 out. 2017. Disponível em: https://www.greenmebrasil.com/informarse/animais/5945-louva-adeus-simbolo-significado/. Acesso em: 21 mai. 2021. ANDRADE, Cláudia Maria Ribeiro. O Imaginário das Águas, Eros e a Criança. Campinas: UNICAMP. Tese de Doutorado. 2001. 16 De autoria de Tulipa Ruiz. Acordo maré, durmo cachoeira. Embaixo sou doce, em cima salgada. Meu músculo no musgo me enche de areia. E fico limpeza debaixo da água. Misturo sólidos com meus líquidos. Dissolvo o pranto com a minha baba. Quando tá seco logo umedeço. Eu não obedeço porque sou molhada.Enxáguo a nascente e lavo a porra toda. Pra maresia combinar com o meu rio viu? Minha lagoa engolindo a sua boa. Eu vou pingar em quem até já me cuspiu. 85 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Coleção Tópicos. BALISCEI, João Paulo; CALSA, Geiva Carolina; STEIN, Vinícius. Tiana, a primeira princesa negra da Disney: olhares analíticos construídos juntos à cultura visual. Visualidades, v. 15, n. 2, p. 137-162, 2017.DOI: https://doi.org/10.5216/vis. v15i2.44123. BERTH, Joice. Empoderamento. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019. BÍBLIA. Português. Bíblia do Peregrino. Comentários de L. A. SCHÖCKEL. São Paulo: Paulus, 2002. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos.12ª ed. Colaboração: André Barbault et al.; coordenação Carlos Sussekind; tradução: Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução de Vera da Costa e Silva et al. 33. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2019. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Vol. 1. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 2011. 2ª. Ed., Coleção TRANS. ECO, Umberto. Pós-escrito a O Nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1985. FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva. 1972. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. (Ed.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica.Tradução: V. P. Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249. FOUCAULT, Michel. Problematização do Sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Organização e Seleção de textos: Manoel Barros da Motta. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. Coleção Ditos & Escritos I. FOUCAULT, Michel. O cuidado com a verdade. In: FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. (Coleção Ditos & Escritos, v. V). 86 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro FOUCAULT, Michel.A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. FRÓIS, Camila Natalino. O espaço para a subjetividade no cinema documentário: uma análise do filme “Promessas de Um Novo Mundo”. Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sudeste, MG: Juiz de Fora; 2007. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992. KRAEMER, Heinrich; SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeira. Trad. Paulo Fróes. 28º ed. Rio de Janeiro: Recorde, 2017. 530 p. MACHADO, Roberto. Impressões de Michel Foucault. São Paulo: n-1, 2017. MARCOS, Adérito Fernandes. Resenha histórica do Cinema Negro. In: PRUDENTE, Celso; SILVA, Darcilene Célia (orgs).A dimensão pedagógica do Cinema Negro. Aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: o olhar de Celso Prudente. 2ª. Ed. revista e ampliada. São Paulo: SP: Editora Anita Garibaldi, 2019. MASCARELLO Fernando (org.).História do cinema mundial. Campinas: Papirus; 2006. Coleção Campo Imagético. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. 190 p. PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus; PRUDENTE, Celso Luiz. Elza Soares: o canto negro que tem a cara do Brasil. São Paulo: Jornal da Usp. Publicado em: 01 fev. 2022. Disponível em: https: jornal.usp.br/?p=487661. Acesso em: 21 mai. 2022. PRUDENTE, Celso; SILVA, Darcilene Célia (orgs.) A dimensão pedagógica do Cinema Negro. Aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: o olhar de Celso Prudente. 2ª. Ed. revista e ampliada. São Paulo: SP: Editora Anita Garibaldi, 2019. PRUDENTE, Celso; OLIVEIRA, Flávio Ribeiro de. A lusofonia de horizontalidade do íbero-ásio-afro-ameríndio versus a verticalidade hegemônica imagética eurohétero-macho-autoritário: a dimensão pedagógica do cinema negro posta em questão. In: PRUDENTE, Celso; SILVA, Darcilene Célia (orgs.) A dimensão pedagógica do Cinema Negro. Aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: o olhar de Celso Prudente. 2ª. Ed. revista e ampliada. São Paulo: SP: Editora Anita Garibaldi, 2019. 87 quando tá seco logo umedeço Ailton D. Melo, Alessandro G. Paulino, Cláudia M. Ribeiro RIBEIRO, Cláudia Maria.Na produção das heterotopias as possibilidades de problematizar gênero e sexualidade navegando nas ambiguidades das águas.ANPEdSul. 2008. RIBEIRO, Cláudia Maria. O imaginário das águas e o aprendizado erótico do corpo. Educar em Revista. Curitiba: PR. N. 35, set/dez. 2009. Revista da UFPR; n. 219). RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte, MG: Letramento: Justificando, 2017. TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Documentário Moderno. In: MASCARELLO Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus; 2006. Coleção Campo Imagético. 88 Empoderamento e representatividade na animação Zarafa: a importância de narrativas diversificadas para crianças negras Ana Clara Franco Nunes Faculdade Sesi de Educação Ester Eva Pereira Faculdade Sesi de Educação Leonardo Ribeiro Batista Faculdade Sesi de Educação Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos Universidade de São Paulo Primeiras considerações Colocamos em perspectiva de análise a importância da dimensão pedagógica do cinema negro como um veículo para combater a marginalização histórica dos negros como minoria. Nos dias atuais, o ativismo racial, as questões socioeconômicas e as lutas culturais têm se manifestado não apenas através de textos escritos, mas também através de meios audiovisuais desempenhando um papel vital nesse processo de mudança. 89 empoderamento Ana Nunes, Ester Pereira, Leonardo Batista, Douglas Santos Especificamente, o cinema negro, ao contar histórias que refletem as experiências, culturas e lutas das pessoas negras, está contribuindo para a superação das barreiras impostas por séculos de opressão. Um aspecto central dessa dinâmica é o impacto nas crianças. Na sociedade contemporânea, em que as crianças estão imersas na tecnologia desde sua tenra idade, o audiovisual exerce uma influência significativa em seu desenvolvimento. As produções audiovisuais não só entretêm, mas também moldam as percepções, atitudes e valores das crianças. Nesse contexto, a presença de narrativas diversas, inclusivas e representativas é sobretudo crucial para permitir que as crianças negras se vejam e se identifiquem positivamente a partir das significações que amídia lhes concede enquanto se constituem. O cinema negro tem atuado como um veículo de empoderamento e inspiração para as crianças negras. Ao assistir a personagens que se assemelham a eles enfrentando desafios, superando obstáculos e alcançando sucesso, as crianças recebem mensagens de que suas próprias histórias e experiências são válidas e importantes. Isso ajuda a construir autoestima, autoconfiança e uma visão mais positiva do seu lugar na sociedade. Além disso, as produções audiovisuais também podem educar as crianças sobre a história, cultura e realidade das pessoas negras. Ao mostrar as lutas históricas, as conquistas e as contribuições significativas das comunidades negras, o cinema negro oferece uma visão mais completa e precisa da diversidade da experiência humana. Isso não apenas desafia estereótipos prejudiciais, mas também cultiva uma compreensão mais profunda da humanidade e da justiça social. Acreditamos que, o poder do cinema negro na infância não deve ser subestimado. Ao dar voz às histórias e às vidas das pessoas negras, essa forma de expressão cultural está contribuindo para a superação de desafios enraizados em séculos de marginalização. Através de imagens, o cinema negro está ajudando a criar uma geração de crianças empoderadas, conscientes e capazes de enfrentar um mundo diversificado com empatia e compreensão. Jogamos luz a um tema crucial: a representação e a identidade da infância negra no contexto da cultura popular e da mídia. Ao explorar características rígidas como padrão de beleza, sucesso, bravura e força, essas qualidades são frequentemente associadas a 90 empoderamento Ana Nunes, Ester Pereira, Leonardo Batista, Douglas Santos um fenótipo mais próximo ao eurocolonizador1. Essa tendência pode ser observada nas figuras de príncipes, princesas, heróis e heroínas presentes em contos de fadas da Disney, bem como nas produções da Marvel, salvo pouquíssimas exceções. No entanto, essa representação é problemática, uma vez que cria um padrão inatingível para muitas crianças negras Brasileiras. Ao negligenciar o fenótipo, as características e as histórias que se alinham às experiências de pessoas de ascendência africana, essas narrativas podem contribuir para a percepção de que a beleza, o sucesso e outras qualidades positivas pertencem exclusivamente a pessoas com traços eurocêntricos. Isso tem implicações profundas para a autoestima e a construção da identidade das nossas crianças negras. No contexto brasileiro, essa falta de representação positiva é particularmente evidente. Poucos personagens negros e ameríndios são retratados em produções voltadas para o público infantil, o que deixa as crianças negras com poucas referências que reflitam sua própria herança cultural e étnica. Esse vazio de representação frequentemente leva à internalização de estereótipos raciais prejudiciais, associando características fenotípicas à cor da pele, textura capilar, cultura e religião desses grupos étnicos. A ausência de representações positivas pode levar as crianças negras a rejeitarem suas próprias identidades culturais e raciais. Esse processo de negação pode afetar a autoestima, a confiança e a conexão com suas raízes. Além disso, essa carência de 1“Eurocolonizador” refere-se à influência e à herança dos colonizadores europeus em diversas partes do mundo durante o período de colonização. O termo abrange a ideia de que os colonizadores europeus, principalmente de nações como Portugal, Espanha, França, Reino Unido, entre outros, exerceram uma dominância cultural, política e econômica sobre as regiões que colonizaram. O conceito de “eurocolonizador” incorpora a ideia de que os valores, normas, línguas, religiões e sistemas de governo trazidos pelos colonizadores europeus tiveram um impacto profundo nas culturas e nas sociedades das regiões colonizadas. Isso muitas vezes resultou em um processo de assimilação forçada das culturas locais às influências europeias. Na discussão contemporânea sobre o “eurocolonizador”, frequentemente se explora como as características e os padrões associados à cultura europeia foram estabelecidos como normativos, muitas vezes em detrimento das culturas locais e indígenas. Essa dinâmica pode ser vista em várias áreas, incluindo representações estéticas, padrões de beleza, poder político e econômico, e até mesmo nas produções culturais, como filmes e literatura, que muitas vezes favorecem os elementos eurocêntricos em detrimento de outras perspectivas. O termo também reflete a influência contínua desses processos coloniais no mundo moderno, manifestando-se em várias formas de desigualdade e injustiça social. Portanto, a referência ao “eurocolonizador” destaca a natureza complexa e de longo prazo do impacto da colonização europeia em todo o globo. 91 empoderamento Ana Nunes, Ester Pereira, Leonardo Batista, Douglas Santos referências pode influenciar negativamente o processo de escolarização, uma vez que a autoimagem e a autoconfiança desempenham um papel importante no desempenho acadêmico. Para combater esses problemas, é fundamental que as mídias e as produções voltadas para crianças diversifiquem suas representações. Criar personagens e histórias que reflitam a variedade de experiências e identidades étnicas é um passo essencial para empoderar a infância negra. Ao oferecer modelos a serem seguidos que se alinham às suas próprias experiências, as crianças negras podem desenvolver uma autoimagem positiva e uma conexão mais profunda com suas origens, promovendo assim a aceitação, a autoestima e o sucesso acadêmico. “Zarafa” e seus ensinamentos “Zarafa” é um filme de animação franco-belga lançado em 2012 mas que ressoa na atualidade, dirigido por Rémi Bezançon e Jean-Christophe Lie. O filme é uma aventura cativante que combina história e fantasia, contando a jornada épica de uma jovem girafa chamada Zarafa. A história começa na África, onde Maki, um menino sudanês, resgata Zarafa, uma girafa órfã, de caçadores de animais selvagens. A partir daí, os dois desenvolvem um vínculo especial. No entanto, Maki é capturado por mercadores de escravos, e Zarafa é presenteada ao rei da França, Charles X, como um presente exótico. O filme segue a jornada de Maki enquanto ele foge dos mercadores de escravos e embarca em uma jornada emocionante para resgatar Zarafa. Ele encontra ajuda ao longo do caminho, incluindo um beduíno chamado Hassan e um aeronauta chamado Malaterre. Juntos, eles enfrentam diversos desafios e perigos, enquanto viajam por paisagens magníficas e encontram personagens intrigantes. A principal ideia do filme “Zarafa” para as crianças negras é explorar temas de amizade, coragem e determinação em face das adversidades. Além disso, o filme também aborda questões como a abolição da escravidão e a exploração colonial, ao retratar as diferentes perspectivas dos personagens em relação à girafa, símbolo da África que desperta curiosidade e respeito na Europa do século XIX. 92 empoderamento Ana Nunes, Ester Pereira, Leonardo Batista, Douglas Santos Fonte: https://assets.almanaquesos.com/w 1 “Zarafa” oferece uma combinação de elementos de aventura, história e fantasia, com belos cenários e personagens envolventes, enquanto aborda questões sociais importantes de forma acessível para o público negro infantil. O filme mostra relevância para crianças de diversas origens, e não apenas crianças negras, por várias razões: 1. Representatividade: O filme apresenta um protagonista sudanês, Maki, que é uma criança negra. Ver um personagem principal que se assemelha a eles pode ajudar as crianças negras a se sentirem representadas e valorizadas na narrativa cinematográfica. 2. Empoderamento: Ao ver um personagem negro como herói da história, as crianças negras podem se sentir inspiradas e empoderadas. Isso ajuda a construir uma autoimagem positiva e autoconfiança, mostrando que também podem ser protagonistas de histórias emocionantes e importantes. 3. Conexão Cultural: O filme explora a cultura africana e suas paisagens, proporcionando uma oportunidade para as crianças negras se conectarem com aspectos da sua herança cultural. Isso pode ser especialmente relevante para aquelas que estão crescendo em ambientes onde a representação cultural é limitada. Neste diapasão, consideramos os ensinamentos de Oliveira e Prudente (2017, p. 113) quando afirmam: 93 empoderamento Ana Nunes, Ester Pereira, Leonardo Batista, Douglas Santos É sensato supor que na era da revolução tecnológica a dimensão social do indivíduo está na representação, e a pessoa é de uma significação específica que não encontra lugar nas redes, sendo uma possível pessoalidade sem exterioridade gregária, pois esta demanda se estabelece em uma relação de rede onde as expressões decorrem da forma, distanciando-se das possibilidades de conteúdo, fenômeno coadunável com a homogeneização da pós-modernidade que pasteuriza as relações, fragmentando os valores da individualidade 4. Diversidade de Histórias: “Zarafa” oferece uma narrativa que não se limita a estereótipos ou papéis secundários para personagens negros. Isso ajuda a quebrar as barreiras de representação e mostra que as histórias protagonizadas por personagens negros podem abordar uma variedade de temas e gêneros. 5. Abordagem de Questões Sociais: O filme também toca em questões históricas, como a abolição da escravidão e a exploração colonial. Isso pode ser uma maneira de introduzir discussões importantes sobre a história e a experiência das pessoas negras, permitindo que as crianças comecem a refletir sobre essas questões de maneira acessível. Com isso, “Zarafa” é importante para as crianças negras porque oferece representatividade positiva, empoderamento e a oportunidade de se conectar com a cultura e a história africana. Além disso, contribui para diversificar as narrativas cinematográficas e proporciona uma perspectiva mais ampla sobre o potencial das histórias protagonizadas por personagens negros. Breves considerações É justo ressaltar que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresenta competências socioemocionais em todas as dez competências gerais para a educação básica e dedica a competência oito para tratar de questões relacionadas ao autocuidado e autoconhecimento (BRASIL, 2017). No contexto da educação infantil, o papel dos professores nessa discussão é fundamental para construir com nossas crianças, valores que possam transformar nosso mundo em um lugar mais justo e inclusivo. 94 empoderamento Ana Nunes, Ester Pereira, Leonardo Batista, Douglas Santos Apontamos para a importância de os educadores assumirem um papel ativo na mediação de temas sensíveis, como a raça e o racismo, desde cedo. Ao abordar questões de diversidade e identidade, os professores têm a oportunidade de não apenas construir conhecimento, mas também cultivar empatia, compreensão e respeito mútuo. O cinema negro a partir do filme “Zarafa” emergiu como uma ferramenta poderosa nesse processo. Como expressão artística, o cinema tem o poder de evocar emoções e conectar as pessoas a experiências e histórias que talvez não tenham vivido pessoalmente. A dimensão pedagógica do cinema negro, quando integrada à educação infantil, pode abrir portas para diálogos significativos sobre racismo, preconceito e estereótipos, permitindo que as crianças compreendam as realidades e os desafios enfrentados por diferentes grupos étnicos. Ao apresentar personagens e narrativas que refletem a experiência negra de maneira autêntica, o cinema negro desafia os estereótipos arraigados que a sociedade muitas vezes perpetua. Ao fazê-lo, ele proporciona um espaço para crianças negras se verem em posições de protagonismo e empoderamento, construindo uma base sólida para a autoestima e autoconfiança. Mas o cinema negro não é apenas para crianças negras; ele também educa crianças de todas as origens, promovendo empatia e a compreensão de que, apesar das diferenças, somos todos seres humanos compartilhando uma jornada conjunta neste mundo. Como educadores, ao abraçar o cinema negro, os professores podem ajudar a criar um futuro em que o racismo seja finalmente superado. Ao capacitar as gerações mais jovens com conhecimento e sensibilidade, eles estão lançando as bases para uma sociedade mais justa e igualitária. Através dessa abordagem, as crianças aprendem desde cedo a valorizar a diversidade, a respeitar a dignidade de todas as pessoas e a desafiar as estruturas discriminatórias. Em última análise, desejamos que a dimensão pedagógica do cinema negro continue sendo um catalisador para uma mudança de paradigma. Ela desafia as percepções ultrapassadas, educa corações e mentes e constrói um futuro em que a discriminação racial seja um capítulo fechado da história. Cada professor tem a oportunidade de desempenhar um papel nessa transformação, contribuindo para um mundo mais equitativo, inclusivo e harmonioso. 95 empoderamento Ana Nunes, Ester Pereira, Leonardo Batista, Douglas Santos Referências BRASIL. Base Nacional ComumCurricular (BNCC) do ensino fundamental. Brasília, 2017.Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. NUNES, H. C. B. ; SOUZA, K. ; SANTOS, DOUGLAS MANOEL ANTONIO DE ABREU PESTANA DOS . Branco sai, preto fica: notas da cinematografia contemporânea sobre o racismo e a multiculturalidade na migração. In: Celso Luiz Prudente; Rogério de Almeida.. (Org.). Cinema Negro: uma revisão crítica das linguagens.. 1ed.São Paulo: FEUSP, 2022, v. 1, p. 125-141.DOI: https:// doi.org/10.11606/9786587047393 Disponível em: www.livrosabertos.sibi.usp.br/ portaldelivrosUSP/catalog/book/946 . Acesso em 18 agosto. 2023. OLIVEIRA, F. R. de; PRUDENTE, C. L. A lusofonia de horizontalidade da imagem do ibero-ásio--afro-amerindio versus a verticalidade da hegemonia imagética do euro-hétero-macho-autoritário: a dimensão pedagógica do cinema negro posto em questão. Lisboa: Aulp, 2017. v. 1. SANTOS. Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos.PENSAMENTOS AFRICANOS E AFRODIASPÓRICOS da injustiça epistêmica à reconstrução de narrativas. 209. ed. Curitiba: Meraki, 2023. v. 1. 1p .Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)DOI: 10.13140/RG.2.2.26524.26243 96 Sustentabilidade racial e educação antirracista: um ensaio sobre atitudes decoloniais Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos USP Universidade de São Paulo dpestana@usp.br “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.” Nelson Mandela Livro “Long Walk toFreedom”, 1995 Diversas formas de discriminação, preconceitos, desigualdades e exclusões se fazem de modo significativo na sociedade em torno da questão racial, embora persista ainda, a ideia da “democracia racial”, neste país plural, chamado Brasil. Nesse sentido, essa discussão objetiva discorrer sobre a necessidade de uma Educação Antirracista, a qual é garantida por uma sociedade onde a sustentabilidade racial aconteça de maneira recorrente nas práticas comprometidas com uma sociedade democrática, de experiências exitosas e respeitosas não apenas com o ensino, mas a partir do esperançar de uma real mudança nos Direitos Humanos dos estudantes e de toda sua comunidade, através de uma “Educação Libertadora” em que se exige o compromisso com as classes minoritárias em direitos. Entende-se por “Educação Libertadora”, um trabalho pedagógico que propõe a educação como um ato libertador (crítico, dialógico, amoroso, emancipatório), por ser 97 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos também um ato político, onde seus envolvidos compreendem a lógica daquilo que os subalternizam e trabalham a favor da transformação do mundo (FREIRE, 1986), corroborando para garantir uma sociedade que seja sustentável racialmente, sendo favorável a prática de uma educação antirracista. Por conseguinte, o presente estudo foi motivado pelos processos de lutas em movimentos sociais antirracistas e educacionais, oriundos da prática educativa com estudantes do ensino fundamental na rede municipal de ensino em Caruaru-PE1, de onde se inicia o desejo e o comprometimento com uma prática docente que seja meio de ressignificar histórias. Num primeiro momento, vale compreender a proposta do que está exposto no título deste estudo, ao se referir a Sustentabilidade Racial, a qual é ainda um termo pouco utilizado e por este motivo não conterá um grande arcabouço teórico. A ideia central é refletir o que é essa sustentabilidade (e para isto utiliza-se conceitos base), interligando pensamentos sociais e raciais que apontem para atitudes fora da lógica colonial (decolonial) que afetem gerações futuras a (re)pensar, (re)criar e praticar relações sustentáveis, que dinamize lógicas antirracistas. É neste bojo que o presente estudo se encontra dividido em três partes. Inicialmente, apresenta a compreensão epistemológica dos conceitos de Sustentabilidade Racial como parte imprescindível para a efetivação de uma Educação Antirracista, conectando as Epistemologias Decoloniais Latino-Americanos, as quais, analisam criticamente as histórias e lógicas apresentadas pela colonialidade eurocêntrica, em seguida, dialoga com autores acerca da aplicabilidade da Lei 10.639/2003 e socializa indícios de práticas educacionais antirracistas, por fim, procede as análises a partir dos indícios encontrados acerca da abordagem temática sobre Sustentabilidade Racial e Educação Antirracista. O itinerário metodológico se deu a partir da Análise de Conteúdo em pesquisas qualitativas, por acreditar conforme Pádua (2002) que tendo como referência Bardin, descreve que tal análise torna “na maioria dos textos analisados, toma a linguagem como transparente, em correspondência imediata com o real, como instrumento de comunicação (suporte de pensamento)” (p.29). 1Este estudo foi apresentado na 4ª Semana de Educação Portuguesa em Lisboa. 98 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos É destacada a contextualização do estudo, e as particularidades de cada fase, essenciais para validação e aplicação da análise de conteúdo na pesquisa. A abordagem qualitativa tomou como referência a análise de conteúdo temática, a qual segundo Minayo (2004) trata das particularidades e especificidades de um nível de realidade que não se quantifica. Foram feitas observações in locus de práticas pedagógicas de professoras do contexto urbano e rural, com o objetivo de confrontar a realidade do que se pensa ser ideal. O estudo, ainda, buscou se fundamentar, mesmo que inicialmente, no aporte teórico decolonial, nos princípios dos direitos humanos, com o estabelecimento de foco nas relações étnico-raciais, em defesa de uma educação antirracista. Sustentabilidade Racial e Educação Antirracista em Ensaios Decoloniais A sustentabilidade como um processo educativo é recorrente nas pautas sobre a educação brasileira, a partir do pacto global, assinado pela ONU em 2015, a chamada “Agenda 2030”, onde Cento e noventa e três Estados-membros compõem a Agenda 2030, os quais, definiram 17 objetivos e 169 metas a nível mundial com o intuito de que ‘ninguém no mundo fosse deixado para trás’, considerando as dimensões social, ambiental, econômica e institucional, a fim de criar transformações sociais e atitudes e pensamentos sustentáveis que devem ser realizadas até 2030. A sustentabilidade social, em termos mais simples, diz respeito aos nossos filhos e netos, ao mundo que deixaremos para eles e tem como principal objetivo, o fortalecimento de uma sociedade estável aos grupos sociais específicos (TRISTÃO, 2008). É importante salientar que um dos critérios para a sustentabilidade ser socialmente desenvolvida é a igualdade no acesso aos recursos e serviços sociais (SACHS, 2008). Num primeiro momento, acredita-se ser óbvio que por questões sociais, culturais e econômicas não existe “igual acesso aos recursos, nem aos serviços sociais”, ainda que sejam essenciais para a população. Para Guedes (2012), é possível compreendermos essa desigualdade quando se observa que a distribuição das moradias em uma cidade é desigual. As piores áreas, aquelas que mais sofrem com enchentes, deslizamentos de terra e falta de serviços públicos, como água tratada e rede de esgoto, são ocupadas pelas pessoas mais pobres e de grupos discriminados, por exemplo, 99 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos os negros. (...) a ocupação das encostas por favelas é um grande risco para a vida das pessoas pela possibilidade de deslizamentos (p.227). É nessa direção, que se faz perceber a lógica da sustentabilidade racial, ou melhor, da falta da sustentabilidade racial, alimentada pelo racismo. Para mudar este quadro de desigualdades é necessário pensar o mundo e a sociedade, dentro de outra perspectiva, de outra lógica de sustentabilidade, de igualdade étnico-racial e de educação. Acredita-se, neste sentido que a ideia de epistemologias do sul2 (BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS), de teorias decoloniais (MIGNOLO, GROSFOGUEL, QUIJANO, WALSH, SILVA E FERREIRA), podem sinalizar indícios deste outro modo de vida, dentro de uma perspectiva anticolonial. Nesta compreensão, a sustentabilidade possui uma relação indissociável com a questão racial, por serem ambas construídas com base na solidariedade, ética, respeito, democracia e outras propostas que fujam dessa lógica avassaladora da colonialidade (QUIJANO, 2007). É nesse contexto que se faz necessária uma educação antirracista que reconstrua as posturas que, dentro da escola, invisibilizou histórias e saberes (a exemplo dos povos africanos) não apresentadas pela colonialidade do saber (QUIJANO), e nesse contexto, Nascimento (2020), consegue fortalecer a relevância da temática da Sustentabilidade Racial “legitimando” o espaço de uma Educação Antirracista ao afirmar que É na tentativa de colaborar com um modelo educativo que legitime a sustentabilidade pautada pela dignidade da existência humana, que aqui enfocarei um dos pontos do conceito necessário de ser aprofundado para o triunfo da cidadania, já que, isoladamente, abarca uma série de demandas influenciadoras das adversidades estabelecidas nas ordens política, social e econômica. Isso posto, cabe destaque ao objetivo número 10 – Redução das Desigualdades do documento “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, a partir do qual pretendo acentuar uma propositura educativa compatível com o combate às desigualdades sociais no Brasil, partindo do entendimento que este é um imbróglio decorrente, sobretudo, da desvalorização das diversidades que configuram o país. (p.3). 2 Entende-se por Epistemologias do Sul, teorias e lógicas outras às teorias eurocêntricas. 100 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos Acredita-se ser um dos maiores propósitos da prática educativa a transformação da sociedade, combatendo a desigualdade social, nisto, corrobora Freire (2003) ao enfatizar que “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda (p.31). Práticas educativas sustentáveis, inclusive racialmente, visibilizam historicamente a construção das culturas dos protagonistas negros da cidade e do campo, que sofreram processo de silenciamento em que “impuseram-lhe formas subalternas de existência, mediante revisão do conceito de socialização” (DIAS, 2016). Com a alteração da LDB pelas leis afirmativas, negros e indígenas, em espaços escolares, tem maior possibilidade de romper os paradigmas coloniais e eurocêntricos que os inviabilizaram e silenciaram durante muitos anos. Ao valorizar a cultura e a história afro-brasileira e dos africanos, estamos colaborando para ruptura do modelo educacional colonial eurocêntrico e ressignificando a história do negro no Brasil, desmistificando o etnocentrismo arraigado no currículo escolar brasileiro (SILVA, et al, 2013). Lei 10.639/2003 e Práticas Pedagógicas Antirracistas A Educação é um dos Direitos Humanos garantidos constitucionalmente e está embasada pela Lei 9.394/1996, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. É importante ressaltar que para o estabelecimento de uma educação antirracista, a Lei de Diretrizes e Bases(LDB_Lei 9.394/1996), foi alterada pela Lei 10.639/2003 e ampliada pela Lei 11.645/2008 que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”. Para Ferreira e Silva (2013) que dissertam a partir de uma lógica decolonial A promulgação da Lei nº 10.639/03 é resultado advindo de dois séculos de lutas protagonizadas pelos sujeitos que resistiram à colonização e continuam lutando pela decolonialidade, o que nos permite afirmar que o ritmo de promoção de equidade neste campo ainda está lento (p.12). 101 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos Nessa direção, é observável que a lei 10.639/2003 e consequentemente a lei 11.645/2008, não é uma reparação da branquitude para a comunidade negra e sim, um fruto das muitas lutas e embates para o enfrentamento a uma educação colonial e propõe alguns desafios ao conjunto dos educadores e dos profissionais da educação que estão à frente da gestão, entre eles: o repensar da escola a partir dos grupos que ocupam seus bancos escolares, revisitando os conteúdos acerca da história e da cultura. É nesse aspecto, que Cunha Júnior (2006) corrobora ao afirmar que o sistema educacional se recusa a admitir que exista racismo brasileiro, fortalecendo assim, um sistema que dá continuidade a omissão da importância da história e cultura da África nos currículos escolares do ensino no Brasil. E em tempos de conservadorismo, o posicionamento da inexistência do racismo, cresce assustadoramente, o que exige cada vez mais, o embate entre a população negra, representada pelos seus movimentos, que exige seu lugar de fala, de produção do conhecimento e as forças conservadoras, instaladas social e politicamente em nossos territórios. Esse reconhecimento nos remete a necessidade de investimentos contínuos em pesquisas que ofereçam suporte a práticas educacionais que privilegiem o diálogo entre as múltiplas identidades e valores, que compõem a teia social brasileira. O “silenciamento” e as posturas de negação da escola sobre as questões da negritude e de atitudes antirracistas favorecem as situações que oprime e exclui pessoas por causa de sua cor, de sua etnia, das raízes culturais, das questões de identidade afrodescendentes (SANTOS, 2011). É nesse contexto do “silenciamento” das culturas “outras”, onde as “culturas predominantes” eram ditadas pelo modelo colonial eurocêntrico que percebe-se a relevância do paradigma decolonial, que Oliveira e Candau (2010), inspiradas em Walsh (Pedagogia Decolonial), consideram que “no campo educacional essa perspectiva não se restringe (...) a mera inclusão de novos temas nos currículos ou nas metodologias-pedagógicas, mas se situa na perspectiva da transformação estrutural e sócio-histórica”(p.27). Não bastam ser incluídas no currículo sem questionar as “bases ideológicas do Estado-nação”, “sob o pretexto de incorporar representações e culturas marginalizadas, apenas reforçam os estereótipos e os processos coloniais de racialização.” (Ibid.). A mobilização para construção deste ensaio consubstanciado pela defesa do direito à vida, ao respeito e a dignidade humana para todas as pessoas que leva a mili102 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos tância no campo dos Direitos Humanos e da pessoa negra que necessita resistir em meio a uma sociedade racista, sexista, classista, sociedade que exclui e mata negros, mulheres, pobres, e outros grupos que ao longo do tempo, também foram subalternizados pela proposta do viés colonial. Cabe aqui sublinhar que, enquanto educadoras compreende-se que os processos de aprendizagem se dão para além do ensino formal na sala de aula, nas comunidades, no “terreiro” da escola, no “terraço” do vizinho que conta histórias. Estes são espaços que constituem aprendizagens, na maioria das vezes, não são considerados pelo ensino formal, no entanto, pelo respeito aos saberes dos educandos (FREIRE, 1996) são espaços de aprendizado, ressignificação e transformação social que, por uma questão ética, includente e de respeito à dignidade humana, assumimos que o território ocupado pela comunidade escolar, precisa se expressar pela via do currículo, anunciando os saberes que nele é produzido e expressa a história, a memória, a cultura dentre outros elementos pertinentes. Em diálogo com Freire (2000, p. 27), assume-se que “O futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta para fazê-lo”. E esse é o grande desafio atual de educadores no Brasil e no mundo, romper com números que nos oprimem, que mostram nossa pobreza, nosso analfabetismo, nossa morte coletiva. Romper com paradigmas que negam a população a ter direitos não iguais, mas equitativamente, que ajude a compreender a importância de ser mais um a garantir o lugar de fala e espaços de empoderamento (RIBEIRO, 2019). Indícios de Sustentabilidade Racial e Educação Antirracista Diante do exposto, concebemos que, após análises de dados referentes à pesquisa, após o confronto de teorias e experiências percebidas e relatadas no estudo que antecede este ensaio, é possível sinalizar com esperança, a existência de algumas práticas sustentáveis racialmente. Silva e Franco (2021), em ensaio realizado também sobre indícios de práticas pedagógicas antirracistas, relatam quem “seja do território camponês ou urbano, as experiências das professoras se fundamentam numa prática docente libertadora e antirracista que é indubitavelmente transformadora” (p.3). 103 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos É neste bojo que se insere o papel da formação enquanto mulheres, educadoras negras e em defesa de pessoas negras, em contextos escolares, no processo de descolonizar histórias, saberes e espaços, constituindo ações educativas e antirracistas que ressignifique o lugar no mundo das crianças negras, que têm o direito de viver dignamente. É relevante pontuar que mesmo após 20 anos de sanção, muito ainda se tem a fazer para a aplicabilidade da Lei. 10.639/2003, pois nas escolas continua-se a trabalhar de modo que o currículo seja único de uma cultura centralizada numa visão europeia, numa perspectiva colonial. Sobre isto, retoma-se a ideia de Freire em Pedagogia do Oprimido, de que em muitas situações, o oprimido se torna «hospedeiro do opressor”. A escola, muitas vezes “hospeda” esta reprodução colonial e opressora e por isso não consegue, sozinha, reestruturar-se de modo decolonial. Desse modo, a Lei 10.639/2003 sem amparo das conexões complexas que acontecem na escola, não é suficiente para a garantia de uma educação pautada nos valores antirracistas e numa perspectiva da pós-decolonialidade. Segue Freire (1987) dizendo que Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com opressor, é impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido que não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestação da desumanização. (p. 32). Um dos objetivos da escola, deveria ser o despertar para a criticidade e através dos conhecimentos propostos pelo currículo, o despertar das consciências. Nesse sentido, compreende-se a impossibilidade de uma Educação para as Relações Étnico-Raciais numa lógica decolonial, visto que a escola, pensa e se move nessa engrenagem colonial de poder, de ser e de fazer. Ainda em Freire, a partir da prática pedagógica, o professor pode propor essa busca de se reconectar aos saberes outros numa inquietude que “na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. [...].” (Ibid, p. 58). 104 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos Retornando à lente teórica de Nascimento (2020), “é inegável a responsabilidade da escola quanto ao trato pedagógico da heterogeneidade que constitui os indivíduos e se abriga em seu anterior”(p.7). Para isto, se almejarmos uma afirmação cidadã sustentável racialmente é necessário fazer com que a escola rompa com as estruturas de poder que ela mesma representa. “Investir em um trabalho educativo de reconstrução do imaginário social hoje, edificado diante do modelo de consciência favorável ao cenário verdadeiramente sustentável no futuro, perpassa pela condução de reflexos sobre as relações étnico-raciais como pauta fixa nos currículos escolares, instigando práticas pedagógicas oportunas a superação de hierarquias étnicas e culturais.”(Ibid, p.8). Assim, segue reflexões que se permite as seguintes interrogações: qual a eficiência da Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana nas escolas públicas e privadas brasileiras no combate a todo e qualquer tipo de discriminação, racismo e preconceito no ambiente escolar? E, quais as causas identificadas pelos/as professores/as como sendo as principais dificuldades para a implementação da Lei 10.639/2003? Em que de fato a Lei 10.639/2003 corrobora na construção de uma sociedade pautada nos princípios da sustentabilidade racial? Nessa direção, o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras e Africana (2004) ao reconhecer a conquista da luta do Movimento Negro em nome de relações raciais justas (p.8), reafirma que o documento tem o propósito de orientar os sistemas de ensino e as instituições que se dedicam à educação, de modo que incluam nos currículos e nas práticas em sala de aulas cuidadosamente as proposta da Lei 10.639/03 e a abordagem da diversidade étnico-racial. Nesse contexto, é possível a construção de uma educação antirracista, a qual estará imbricada a sustentabilidade racial. Os resultados, apontam ainda, indícios de mudanças na realidade histórica, secular, criando mecanismos de processos de reflexão e mudanças, os quais avançaram conforme ampliam-se os resultados da pesquisa e introduzem novas reflexões ao debate temático. Por ser uma quantidade minoritária de indícios, pautas pontuais, essas práticas sustentáveis racialmente, assim como, práticas pedagógicas antirracistas nas esco105 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos las, tendem a não serem vistas, pois são iniciais, não estão estruturadas a uma matriz educacional de poder. E se estivessem nessa lógica estrutural de poder, seria o caso “do espelho reverso”, neste caso, apenas estaríamos trocando apenas as lógicas e não tensionando a colonialidade sobre a decolonialidade. Ao valorizar uma cultura em prol de outras, estamos recriando relações de dominação e submissão. Para encontrar a resposta a essa questão, necessita-se compreender o que é o “posicionamento crítico de fronteira (WALSH, 2005). Oliveira e Candau, vão ajudar a compreender a luz de Walsh, o que é pensamento de fronteira que acontece no espaço da diferença colonial, ou seja, um processo em que o fim não é uma sociedade ideal como abstrato universal, mas o questionamento e a transformação da colonialidade do poder, do saber e do ser, sempre tendo consciência de que estas relações de poder não desaparecem, mas que podem ser reconstruídas ou transformadas, conformando-se de outra maneira. (...) O pensamento de fronteira significa tornar visíveis outras lógicas e formas de pensar, diferentes da lógica eurocêntrica dominante.(...) se preocupa com o pensamento dominante, mantendo-o como referência(...) sujeitando-o ao constante questionamento e introduzindo nele outras histórias e modos de pensar. (p.25) Essa diferença colonial permite aos grupos que foram subalternizados, a exemplo das pessoas negras, a construírem estratégias que propõem conhecimentos outros, outras possibilidades, outros modos de pensar. Dessa forma, é possível fazer um link com o pensamento de Guedes (2012) que embasado nas idéias de Sachs, dá ênfase nas várias dimensões da sustentabilidade, relacionando-a a racialidade, que para alcançarmos temos de valorizar as pessoas, seus costumes e saberes. Por exemplo, neste processo de valorização, a escola tem um papel central, porque deve demonstrar uma equiparidade entre as culturas, sem uma escala de importância durante a abordagem educativa. (p.233). 106 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos Acredita-se que na busca de novas formas da coexistência cidadã em seu potencial político libertador, a pessoa negra seja integrado nesse processo de sustentabilidade racial, os quais, apontou os resultados para o desenvolvimento de ações que indiciam práticas antirracistas, constituídas a partir da mobilização das professoras, pautadas em suas convicções e apoiada por profissionais, comprometidas com a comunidade,constituindo parceria com proposições inventivas das professoras o que pode viabilizar, a partir de processos formativos a superação da subalternização em que foram postas as nossas crianças historicamente, com vistas a educação emancipatória. O estudo conclui ressignificando olhares que antes buscava o que faltava para uma sustentabilidade racial que corrobora com uma prática antirracista, mas por falar numa perspectiva pós-decolonial, fala-se também sobre o esperançar que nos faz olhar para caminhos que se iniciam em “pequenos” espaços, “pequenas” escolas, “pequenas” práticas que já corroboram numa futura ruptura gigantesca da subalternização de povos e culturas. É preciso olhar para o que nos causa esperança!A sustentabilidade racial e a educação antirracista têm se tornado temas fundamentais na busca por uma sociedade mais justa e equitativa. A sustentabilidade racial refere-se à necessidade de se garantir a preservação e promoção da diversidade étnico-racial, bem como a igualdade de oportunidades para todas as pessoas, independentemente de sua origem étnica. Nesse sentido, a educação antirracista desempenha um papel fundamental ao promover atitudes decoloniais, isto é, a desconstrução de ideias e práticas que perpetuam o racismo estrutural. Essas atitudes decoloniais incluem o reconhecimento e a valorização das contribuições das culturas e saberes afro-brasileiros, a inclusão de perspectivas não-hegemônicas nos currículos escolares e a promoção do respeito à diversidade racial no ambiente educacional. A implementação da sustentabilidade racial e da educação antirracista requer a adoção de políticas e práticas inclusivas e transformadoras. É necessário superar os obstáculos históricos e estruturais que têm marginalizado e excluído grupos étnicoraciais, promovendo uma educação que seja verdadeiramente emancipadora e igualitária. Para isso, é essencial que sejam estabelecidos espaços de diálogo e reflexão sobre o racismo, nos quais os estudantes e educadores possam debater e desconstruir concepções preconceituosas, fortalecendo assim o respeito à diversidade racial. Além disso, é fundamental que as políticas públicas e as instituições de ensino promovam 107 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos a formação de professores capacitados para trabalhar com a educação antirracista, proporcionando-lhes os recursos e o apoio necessários para a implementação de práticas pedagógicas que valorizem a diversidade étnico-racial e contribuam para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Referências BRASIL. Diretrizes Curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura da Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/Secretaria de Educação Continuada/Alfabetização e Diversidade, jun. 2005. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação: Lei nº 9.394/96 – 24 de dez. 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1998. Disponível em: www. planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm ____. Lei 10.639/Inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Brasília/DF: Ministério da Educação, 09 de Janeiro de 2003. ______. Lei 11.645/Inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília/DF: Ministério da Educação, 10 de março 2008. __________. CNE/CP. Parecer nº 3, de 10 de março de 2004a. Dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. __________. CNE/CP. Resolução nº 1, de 17 de março de 2004b. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. CUNHA JÚNIOR, Henrique. Africanidades, Afrodescendências e Educação. Goiânia: Ed. da UCG, 2006. DIAS, Adelaide Alves. Crianças do Campo: da invisibilidade ao reconhecimento como sujeito de direito. In.:Psicologia Política. VOL. 16. Nº 37. PP. 379-396. SET. – DEZ. 2016 108 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 ___________. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000. _______ Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. _______ Educação como prática da liberdade. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1986. FERREIRA, Michele Guerreiro; SILVA, Janssen Felipe da. Brasil/África: unidos pelo atlântico, separados pelo currículo escolar? In: PEREIRA, José Alan da Silva; COSTA, Fátima Batista da (Org.). Saberes Múltiplos. Recife: Editora Universitária/ UFPE, 2015, p. 79-102. GUEDES, Valdir Lamim. Consciência negra, justiça ambiental e sustentabilidade. Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 3, n.2, p. 223-238, jul/dez 2012 GROSFOGUEL, Ramón. “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global”. Revista Crítica de Ciências Sociais. 80, 2008. NUNES; SOUZA, SANTOS “Branco sai, preto fica”: notas da cinematografia contemporâneasobre o racismo e a multiculturalidade na migração Hugo Cesar B. Nunes, Karla I. Souza, Douglas Manoel A. A. P. dos Santos In: PRUDENTE, Celso Luiz; ALMEIDA, Rogério de. Cinema negro: uma revisão crítica das linguagens. . Universidade de São Paulo. Faculdade de Educação, 2022. DOI: https://doi.org/10.116 06/9786587047393 Disponível em: www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/ catalog/book/946 . Acesso em 14 janeiro. 2023. MIGNOLO, Walter. Desobediência Epistêmica: a Opção Descolonial e o significado de Identidade Em Política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, Rio de Janeiro, n. 34, p. 287-324, 2008. MINAYO, M. C. S. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8. ed. São Paulo:Hucitec, 2004. NASCIMENTO, Luciana Guimarães. Educação Antirracista em Pauta. Revista África e Africanidades – Ano XIII – n. 34, maio. 2020 - ISSN 1983-2354 OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; CANDAU, Vera Maria Ferrão. Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no Brasil. Educação em Revis109 sustentabilidade racial Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos ta, Belo Horizonte, v.26, n.01, p.15-40, abr. 2010. https://doi.org/10.1590/S010246982010000100002 PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini de. Análise de conteúdo, análise de discurso: questões teórico-metodológicas. Revista de Educação PUC-Campinas, Vol. (13). Recuperado de https://periodicos.puc-campinas.edu.br/reveducacao/article/view/316 QUIJANO, A. (2007), “Coloniality and modernity/rationality”.Cultural Studies, 21 (2-3): 22-32. RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. SACHS, I. Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro:Garamond, 2008 SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São. Paulo; Editora Cortez. 2010. SILVA, J. F.; FERREIRA, M. G.; SILVA, D. J. Educação das Relações Étnico-Raciais: um caminho aberto para a construção da educação intercultural crítica. Reveduc UFSCar, São Carlos, 2013. SILVA, Teresa Raquel; FRANCO, Maria Joselma do Nascimento. Indícios da Educação Antirracista no País de Caruaru Balizados pelos Diálogos Freirianos: Quando as Professoras Mobilizam Práticas Docentes a partis dos Territórios. In: V SEMINÁRIO INTERNACIONAL DO OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS DA AMÉRICA LATINA (SIOMSAL), 1., 2021, Caruaru-PE: Universidade Federal de Pernambuco/Centro Acadêmico do Agreste, 2021. p.325. TRISTÃO, M. A educação ambiental na formação de professores: redes de saberes. 2ª edição. São Paulo: Annablume; Vitória: Facitec, 2008 WALSH, Catherine. Introducion - (Re) pensamiento crítico y (de) colonialidad. In: WALSH, C. Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Reflexiones latinoamericanas. Quito: EdicionesAbya-yala, 2005. p. 13-35. 110 Representações socioculturais da Afro-América: a terceira raiz na perspectiva do documentário etnográfico Humberto Thomé-Ortiz1 Universidad Autónoma del Estado de México, Toluca, Estado de México, México Roberlaine Ribeiro Jorge2 Universidade Federal do Pampa, Bagé, RS, Brasil Introdução As relações entre África e América Latina têm uma longa trajetória cultural que afunda suas raízes na história, sendo um elemento constitutivo do passado, presente e futuro do continente americano. Essa relação tem se desenvolvido em sua evolução histórica, na conformação de suas estruturas econômicas, sua configuração política e desenvolvimento cultural, desempenhando um papel muito importante na construção das identidades nacionais de diversos territórios. De particular importância 1 Humberto Thomé-Ortiz, Universidad Autónoma del Estado de México, Doutor em Ciências Agrárias pela Universidade Autônoma de Chapingo. Diretor do Instituto de Ciências Agrárias e Rurais da Universidade Autônoma do Estado do México. Escreveu mais de 200 produtos acadêmicos sobre pesquisas realizadas em diferentes países da América Latina. E-mail: hthomeo@uaemex.mx 2 Roberlaine Riebeiro Jorge, Reitor da Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA. 111 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge são as contribuições artísticas e a configuração de ideologias contraculturais para as quais os afrodescendentes contribuíram em diferentes épocas e em diferentes latitudes latino-americanas. Apesar da importância das populações afrodescendentes na construção de muitas nações latino-americanas, sua presença foi praticamente eliminada da produção cultural contemporânea, não gerando um justo reconhecimento das grandes contribuições que deram para o fortalecimento da América Latina. Isso influencia a persistência da marginalização, da violência racial e da discriminação a que esses grupos sociais têm sido submetidos (GOLDBERG, 1993). Alguns gêneros cinematográficos, como o documentário, têm privilegiado a visibilidade de sociedades marginalizadas, tornando-se intermediários culturais entre valores periféricos e aqueles que representam ideologias dominantes. O espírito artístico da expressão cinematográfica permite a utilização de estratégias estéticas, narrativas e éticas muito diversas que buscam influenciar a sociedade de forma mais efetiva do que outros gêneros comunicativos. Nesse sentido, é possível esperar impactos profundos na transformação dos imaginários sociais, mudanças que implicam em contratos afetivos, vinculados a um lirismo cinematográfico que, por vezes, atinge um status poético. De acordo com o paradigma antirracista (ético e estético) de MUNANGA (2009), desenvolvido a partir do questionamento antropológico do racismo na sociedade brasileira, há vários elementos a serem considerados na diáspora africana que podem ser extrapolados para as diversas expressões das diferentes culturas afro-americanas que se estendem por toda a América Latina. A africanidade latino-americana pode ser entendida como corporalidade, ou seja, traduz-se em um rosto cultural feito corpo, que reflete uma identidade específica dentro de um mundo heterogêneo. Essa identidade desenvolve um sentimento de pertencimento ligado à história, aos atos emancipatórios e à memória coletiva. Memória fortemente ligada a aspectos negativos como o sistema escravista e o tráfico de pessoas. Certamente, no contexto dos efeitos negativos dessas mobilidades humanas, houve também processos interculturais e de hibridização que resultaram em contribuições dos povos africanos, como a música, a gastronomia, o sincretismo religioso, a língua e exemplos muito diversos de cultura material. Poderíamos conter a experiência temporal da diáspora africana no que HARTOG (2007) denomina regime de historicidade, que funde patrimônio, memória e 112 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge comemoração. No entanto, ao longo das Américas, as experiências de negritude são múltiplas, diversas e heterogêneas, aspecto que justifica a necessidade de desenvolver todo tipo de análise comparativa entre as diferentes identidades dos afrodescendentes latino-americanos e suas expressões (CORREA, 2008). O pensamento de Munanga é fortemente alimentado por imagens antropológicas dos modos de vida das comunidades negras, bem como pela análise de como as relações raciais são construídas. Desde seu primeiro trabalho, interligou os conceitos de raça, etnia e miscigenação, contribuindo para uma visão positiva da sociedade onde a diversidade é uma forma de riqueza para a humanidade (MUNANGA, 2015). Certamente, as coordenadas das sociedades racializadas também são reconhecidas a partir de sua dimensão política, por meio da formação de relações assimétricas de poder ou, quando apropriado, da própria consciência racial. Exemplo disso é a nova onda de escritores afro-brasileiros como Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório e Geovani Martins que estão fazendo um impacto literário de alcance global, através de retratos contemporâneos vívidos do racismo, da marginalidade e da identidade afro-brasileira. Para Munanga (JAIME e LIMA, 2013) na definição racial há um processo atravessado pela consciência como um processo contínuo que se adapta às mutações dos sistemas de dominação. No caso da diáspora africana é possível inferir que há muitas Áfricas espalhadas pelo mundo, expressando diferentes trajetórias históricas, construções culturais, condições materiais de existência e identidades. O cinema, particularmente o documentário etnográfico, pode representar uma oportunidade para ampliar a compreensão da negritude, como movimento social, intelectual e como construção identitária, cujas características devem ser analisadas à luz de suas trajetórias históricas nas quais o racismo estrutural persistiu. As particularidades dos afrodescendentes, sublinhadas no pensamento antirracista, são erguidas para combater o mito da democracia racial, que ofusca as reivindicações levantadas pela consciência negra, reduzindo-as à desigualdade socioeconômica. No caso específico da América Latina, fez-se um pedido de desculpas pela miscigenação como elemento constitutivo das nações, ignorando a importância da diversidade de raças e suas particularidades. Isso opta por uma abordagem de “unidade nacional” que se constrói evitando o debate sobre diversidade. Para Munanga (JAIME e LIMA, 2013), a miscigenação é uma realidade fundante da genética dos brasileiros, que presumimos poder ser perfeitamente estendida a outros países, como o México. 113 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Esse conceito baseia-se na negação fenotípica dos diversos grupos sociais, aspecto com o qual se posterga a construção de nações plurais e multiculturais, eliminando a riqueza que esse fato contém sob o preceito da “unidade”. Não se trata apenas de reconhecimento racial, mas de uma verdadeira luta contra a discriminação, face à qual os produtos audiovisuais podem tornar-se importantes intermediários culturais. A construção de países com democracia racial não se opõe à luta aberta contra o racismo e à exclusão de grupos específicos, como os afrodescendentes. Tentar encaixotar os latino-americanos no qualificativo mestiço vai contra as identidades, contra as histórias pessoais e coletivas em que se traça a configuração das nações. O resgate e a reflexão sistêmica em torno desses temas (aspecto que as representações cinematográficas podem promover), serve para romper com as narrativas negativas e vitimistas do negro, para abrir lugares que representem de forma digna os povos afro-americanos (SILVA e MARÇAL, 2012). Metodologia Foram selecionados dois documentários etnográficos, baseados em dois critérios básicos: i) que fossem documentários vinculados a grupos de afrodescendentes que lhes permitissem ser autorreferenciais e ii) produtos televisivos de amplo espectro que se referissem a um alto impacto social e educacional. Os documentários foram “Quilombos do século XXI” (Rádio e TV Justiça, 2019) e “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020). Recuperou-se o modelo de análise cinematográfica de ZAVALA (2010), a partir do qual se sistematizou a perspectiva do espectador implícita nos materiais analisados, questionando as dimensões éticas, estéticas e intelectuais que fundamentam as diversas interpretações identificadas. Esse modelo foi complementado pela caracterização dos estilos e conteúdos dos documentários etnográficos que circulam nos meios televisivos, desenvolvida por VANNINI (2014). O modelo foi interpretado a partir do paradigma ético e estético do pensamento antirracista de MUNANGA (2009), que buscou entender o cinema como ferramenta para unir as lutas sociais sem renunciar às especificidades de cada etnia. Realizou-se uma análise discursiva do documentário etnográfico, vinculada a uma perspectiva po114 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge lítica contra o racismo, cujo objetivo não era dar origem a um viés ideológico, mas a uma abordagem complementar entre pesquisa social e ação transformadora. Ou seja, o sujeito que analisa adota uma posição política clara em sua perspectiva sobre o objeto estudado. Uma posição que rompe os limites do ideológico, distanciando-nos de qualquer possibilidade de alienação colonial. A análise foi de natureza instrumental e ideológica, baseada nos cinco elementos estruturais da linguagem cinematográfica (Imagem, Som, Montagem, Encenação e Narração). De acordo com o exposto, é possível localizar a análise dos documentários selecionados no campo das ciências sociais, que buscou avaliar esses conteúdos como ferramentas comunicativas que têm a capacidade de influenciar a transformação social (ZAVALA, 2010). Especificamente, no papel que o cinema documental pode ter como ferramenta pedagógica e ética para a construção de uma cultura de paz, que derrote o racismo. Os componentes considerados para o desenvolvimento da análise foram: i) introdução do produto audiovisual; (ii) imagens no quadro do ponto de vista técnico; iii) elementos sonoros; (iv) relação sequencial entre imagens; v) imagens no quadro a partir da perspectiva dramática; (vi) elementos estruturais da história; (vii) convenções narrativas e formais; (viii) relações com outras manifestações culturais; (ix) perspectiva da história; e (x) síntese. Resultados e Discussão O documentário “Quilombos do século XXI” (Rádio e TV Justiça, 2019), narra o reconhecimento dos territórios afrodescendentes a partir da voz das lideranças do movimento negro e historiadores afro-brasileiros, que abordam a questão do racismo estrutural que é uma realidade generalizada, desde a abolição da escravatura no final do século XIX. Nessa produção, retoma-se a dimensão histórica das identidades, a partir da história do Quilombo dos Palmares, sendo esses espaços cenários de negociação e organização social. Um dos aspectos essenciais abordados pelo documentário são os preconceitos de racismo e discriminação, que continuam vigentes no século XXI, aspecto que pode ser verificado com evidências da negação da posse da terra às sociedades afrodescendentes (apenas 6,7% das terras quilombolas têm títulos de propriedade). 115 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge No documentário “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020), os próprios protagonistas relatam a conformação social das terras afrodescendentes da Costa Chica, no México, território compreendido pelas áreas costeiras dos estados de Guerrero e Oaxaca, que têm sido dois cenários historicamente representativos da migração africana para o México. Os três eixos sobre os quais o documentário se estrutura são: i) a história da terceira raiz no México, ii) o papel da cultura africana na configuração da cultura mexicana e iii) a situação atual dos grupos sociais afrodescendentes. O objetivo de ambos os documentários é a descrição de uma ampla gama de fenômenos socioculturais em torno da diáspora africana em direção a dois territórios latino-americanos. Para a consecução desse objetivo, o caráter interpretativo, a tematização, a base empírica e a abordagem crítica dada a esses audiovisuais desempenham um papel crucial. Condições de leitura Sendo documentários etnográficos que são transmitidos em larga escala (televisão aberta) é possível inferir que as condições a partir das quais o produto audiovisual pode ser lido são muitas e variadas. No entanto, é importante notar que ambos os documentários questionam aspectos como a objetividade e o realismo audiovisual, o que pode levar a leituras parciais, metropolitanas e/ou reducionistas da diversidade racial latino-americana. Esses documentários não se destinam exclusivamente às comunidades negras, pelo contrário, depreendemos que se destinam a um público aderente a visões urbanas e cosmopolitas, que busca reduzir as distâncias, físicas e simbólicas, entre grupos raciais que se disfarçaram através do mito da democracia racial. O problema dos grandes públicos para os quais esses produtos são direcionados, faz com que seja necessário refletir sobre seus públicos-alvo. A estrutura naturalista e cotidiana de ambos os documentários, por meio dos quais descrevem aspectos como família, amor, memória e exílio, evidenciam que esses conteúdos são atrativos para si e para os outros. Ao tentar responder à pergunta Para quem esses documentários foram feitos?, fica claro que há diferentes espectadores, afrodescendentes e não afrodes116 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge cendentes, que lerão o audiovisual de forma diferente, dependendo de seus horizontes interpretativos e contratos simbólicos de leitura. Para o caso específico do público afrodescendente, fica claro que é o que nas palavras de Godard é “um cinema feito para a memória”, enquanto para os não afrodescendentes é um cinema para a interculturalidade e contra o racismo. O enquadramento dos dois produtos estudados, dentro do gênero documentário etnográfico, confere-lhes uma ação educativa ou, pelo menos, formativa sobre as culturas afrodescendentes e seu papel na formação das sociedades latino-americanas. É importante ressaltar que ambas as produções ocorreram no âmbito da televisão estatal, de modo que pode-se inferir que entre suas finalidades está a dinamização de políticas públicas de fortalecimento dos Estados multiétnicos. Quanto à arquitetura do título, no caso de “Quilombos do século XXI”, a reivindicação das comunidades afrodescendentes pode ser apreciada no contexto de sua evolução histórica contemporânea, enquanto em “Afroméxico, a africanidade da Costa Chica”, as reivindicações são enquadradas na dimensão territorial, abrindo caminho para reconhecer diferenças regionais nas diversas experiências da diáspora africana no México. Início O documentário “Quilombos do século XXI” busca construir o arquétipo de um herói nacional de libertação e antirracismo: Zumbi dos Palmares. No caso do documentário “Afroméxico”, através de uma colagem de imagens são resgatados os valores da diversidade e da coletividade, o que mostra uma mensagem de coesão e orgulho sobre a comunidade afrodescendente. 117 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Imagem 1. Início do documentário Fonte: “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019) Imagem Dada a natureza diaspórica dos afrodescendentes latino-americanos, deve-se considerar que esses grupos têm enfrentado historicamente condições de desterritorialização e reterritorialização (BHABHA, 1994), que a criação cinematográfica pode representar a partir da imagem-movimento, passando pela consciência e espacialidade, nas quais se estabelece a dialética entre sujeito e objeto (DELEUZE, 1984). Estar representado de forma justa no imaginário coletivo abre as portas para repensar os níveis de integração e mobilidade social. No caso de “Quilombos do século XXI”, as imagens recriam um realismo com efeito dramático, a partir do uso contrastante de registros cromáticos e da riqueza morfológica dos objetos visuais apresentados. A perspectiva da câmera permite recriar ambientes íntimos, mas sempre a partir de uma perspectiva externa que se propõe a gerar sentidos de objetividade e verossimilhança. Close-ups com efeito bokeh, fotos panorâmicas, panning sobre a paisagem, fotos estáticas em objetos e fotos aéreas de drones são privilegiados). O documentário “Afroméxico” recorre ainda ao uso de uma ampla paleta cromática e de uma grande complexidade de formas, através da qual constrói um efeito 118 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge poético, onde a perspetiva da câmara permite desenvolver um lirismo narrativo em que privilegiam close-ups, panoramas, garimpos sobre objetos materiais e composições clássicas simétricas. Imagem 2. Composição das imagens Fonte: “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020) Som Em ambos os documentários, a música étnica (em suas variantes regionais) e os instrumentos de percussão são utilizados como clichês da identidade acústica afrodescendente, aspectos que se combinam com a riqueza da paisagem sonora como elemento constitutivo da estética cotidiana e da complexidade do material audiovisual. Por outro lado, a oralidade captada nos depoimentos dos entrevistados, permite recuperar a dimensão subjetiva das experiências, bem como suas formas culturais regionalizadas. Em “Quilombos do século XXI” o som desempenha um papel fundamental na força narrativa e na contextualização da história, enquanto em “Afroméxico” tem uma carga decididamente estética e poética. 119 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Imagem 3. Paisagem sonora no documentário Fonte: “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019) Edição No documentário “Afroméxico” a edição responde a uma organização temática sequencial, que permite delinear uma ordem lógica e cronológica através de uma estrutura rigidamente organizada. No caso de “Quilombos do século XXI”, há também uma disposição estruturada que recorre a intercalar com sucesso diferentes momentos dos depoimentos recuperados para construir um discurso polifônico e unitário. Em ambos os casos, a cena responde aos imperativos de gerar um produto educacional, que proporcione uma sensação de confiança e verossimilhança, considerando que as licenças criativas são realmente escassas. 120 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Imagem 4. Fragmento de entrevista Fonte: “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019) Cena Em ambos os documentários há uma performance da mise-en-scène, onde a ruralidade, o espaço aberto e os lugares públicos marginalizados constituem as coordenadas espaciais que permitem o desenvolvimento da ancoragem territorial (linguística e cultural). Esses cenários abertos se entrelaçam com espaços íntimos, a partir de um princípio contemplativo, permitindo um fluxo constante entre a experiência individual e coletiva, dando origem à configuração de um espaço liminar entre identidades afro e latino-americanas, mas não raro caindo nos clichês dos cenários precários da negritude. 121 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Imagem 5. Ruralidade litorânea Fonte: “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020) Personagens A cultura material é uma forma de caracterizar os atores sociais representados em ambos os documentários. Formas indiretas de representação dos personagens são apreciadas, através de objetos materiais como suas roupas típicas, acessórios, ferramentas tradicionais, artesanato e ofícios. Com vários desses recursos, é possível construir pontos focais e uma perspectiva estética que opta por uma espécie de realismo poético. Uma questão muito interessante é que a dimensão estética nesses produtos costuma ser alimentada por detalhes etnográficos profundamente atrativos na construção do discurso audiovisual, que ajudam a gerar perspectivas de alteridade, numa possibilidade de mobilização no tempo e no espaço. Esse tipo de audiovisual tem sido considerado como antecedente para diversas formas de reinterpretação do tempo livre, como o turismo virtual, especialmente interessante após a pandemia da COVID-19 (JUNYU, et al., 2022). No caso de “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020), os personagens são representados por meio de figuras arquetípicas que buscam ser representativas do patrimônio cultural, material e imaterial do povo afro-mexicano, além de vozes autoritárias que reconstroem a memória histórica da diáspora. Entre os arquétipos patrimoniais encontramos dois artistas plásticos, dois cozinheiros tradicionais, 122 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge dois pecuaristas, dois grupos de dança, um pescador e um camponês, que fingem ser a voz do povo negro do México. Por sua vez, vozes autoritárias são reconstruídas a partir de uma cantora reconhecida nacionalmente, uma antropóloga, uma historiadora e um ativista. Em todos os casos, os depoimentos são recuperados a partir da entrevista estruturada, que é intercalada com a encenação. Por outro lado, em “Quilombos do século XXI” os personagens são representados por figuras de autoridade (moral, acadêmica e política) através da multiperspectiva, construída a partir da perspectiva de diversos ofícios, profissões e/ou trajetórias pessoais. As vozes que encarnam são as de dois ativistas, um sociólogo, um professor de história, um líder comunitário, um antropólogo, um funcionário público, um artista visual e um estudioso das línguas e cosmogonias africanas. Nesse caso, recupera-se também a estrutura clássica da entrevista com abordagem antropológica. É evidente que ambos os produtos são documentários convencionais onde outras formas de personificação de atores sociais poderiam ser experimentadas. Por exemplo, a partir de «metacomentários» combinados com autorrepresentações (Nichols, 1991) como forma de romper com a ilusão de realidade dos discursos colonizadores, abrindo a possibilidade de que as histórias se contem, ou seja, como forma de gerar equilíbrio entre visões internas e externas sobre grupos afrodescendentes. Imagem 6. O artista plástico Fonte: “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020) 123 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Narração A narração em ambos os documentários focaliza sua natureza psicológica, mobilizando emoções, sentimentos e valores. Esta é construída de forma fragmentada, a partir do resgate de múltiplas perspectivas, com uma lógica polifônica que recupera riqueza e heterogeneidade a partir de uma história decididamente elíptica. É possível identificar aparentes contradições, que subjazem ao enfrentamento de uma sociedade hiperconectada, multirracial e multicultural, onde as diferenças se borram, no contexto de projetos culturais homogeneizadores. As histórias de vida e depoimentos retratados apresentam caminhos sinuosos e trajetórias não lineares que, não necessariamente, podem ser captadas através de uma imagem clara da realidade. A possibilidade de contar a verdade sobre a diáspora africana na América Latina tem a ver com a possibilidade de que seus próprios atores sociais estejam envolvidos na forma como são representados, por exemplo, através das narrativas que desejam implantar, através do documentário. Nesse sentido, os produtos audiovisuais analisados aproximam-se mais do documentário reflexivo, ou seja, seu potencial comunicativo, crítico, social e antirracista tem mais a ver com a finalidade da estrutura narrativa do que com uma representação “objetiva” e “autêntica” da realidade (RUBY, 1988). No entanto, percebe-se também que ambos os documentários são construídos a partir da visão externa e distante (sempre contada a partir de posições de autoridade política, moral e/ou intelectual) que busca criar um argumento didático. A narrativa estruturada terá um papel importante na lógica interna do discurso, que visa alcançar a “objetividade” e construir uma perspectiva coerente. 124 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Imagem 7. O território través do discurso cinematográfico Fonte: “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019) Gênero e estilo Sendo os documentários parte fundamental da cultura contemporânea, os documentários podem ser entendidos como produtos complexos, cujo caráter testemunhal pode cumprir funções importantes em termos de geração de conhecimento empírico (HINDMARSH &TUTT, 2012). A popularidade desse tipo de conteúdo tem a ver com a forma como eles são distribuídos massivamente, bem como com sua capacidade de representar a realidade a partir de perspectivas originais. Como mencionado acima, ambos os materiais estão situados dentro do gênero documentário etnográfico. Mais especificamente, poderiam ser classificados dentro do subgênero do ensaio audiovisual, que se situa entre a realidade e a ficção, entre a narrativa e a não narrativa, entre o visual e o não visual (Corrigan, 2011). A perspectiva do documentário etnográfico sobre as sociedades afrodescendentes latino-americanas tem natureza polissêmica, poliédrica e complexa. Isso implica o desafio de representar as sociedades negras a partir de sua interseccionalidade geracional, de gênero, racial e de classe (ARENAS, 2012). O documentário com perspectiva etnográfica serve de reservatório para as representações simbólicas e reivindicações políticas (NICHOLS, 1991) das comunidades 125 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge afrodescendentes. Sendo, ao mesmo tempo, um cenário apropriado para transcender estereótipos raciais, construídos a partir de categorias binárias, como preto e branco, eles e nós, alteridade e normatividade. Isso contribui para erradicar atos e propensões racistas, arraigados na cultura dominante. Os documentários etnográficos têm ganhado espaço dentro da mídia televisiva, aspecto que lhes permite acessar públicos maiores e ter plataformas de distribuição mais amplas (VANINI, 2014). O documentário etnográfico televisivo é um subgênero híbrido que pode conter vários elementos etnológicos, mas simultaneamente se alimenta do imaginário social. Convencionalmente, esses tipos de produtos tendem a se adaptar aos gêneros e formatos da televisão educativa, bem como às diversas plataformas híbridas de televisão, constituindo assim a possibilidade de gerar inovações tecnológicas para os próprios meios de comunicação. Em muitos casos, são produtos que fornecem meios para a educação formal em combinação com fins de entretenimento. A hibridização de estilos é uma característica dos produtos audiovisuais do século XXI que, através de uma grande diversidade de recursos, pretendem criar estímulos mais fortes do que aqueles que vêm da “realidade”. Isso significa que a convergência de aspectos racionais e emocionais nos permite reconstruir não apenas uma representação da diáspora africana, mas também uma ação comunicativa militante em torno dela. Essa hibridação entre o audiovisual etnográfico e a etnoficção (ROUCH, 2003), será uma estratégia eficiente para a articulação de discursos audiovisuais antirracistas, uma vez que a variegação entre subgêneros da ficção documental e cinematográfica, permitirá o desenvolvimento de perspectivas mais complexas do que as de uma “objetividade” colonialista, associada ao documentário etnográfico em sentido estrito. Ambos os documentários se distanciam das produções etnográficas colonialistas, que por meio de uma suposta representação objetiva da realidade, muitas vezes reproduzem estereótipos racistas. Esse tipo de realismo documental focaliza paisagens, recursos bioculturais, vestimentas típicas e muitos outros objetos, que anulam a voz do sujeito, gerando um efeito de descoberta, identificação ou apropriação, (PIAULT, 2000), das culturas afrodescendentes, mas deixando seus atores sociais sem voz. É uma espécie de cópia dos estereótipos de observação de campo das tradições antropológicas do início do século XX. A fusão entre documentário etnográfico e ficção permite representar culturas afrodescendentes, através de perspectivas históricas e posições políticas. Isso difere 126 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge das perspectivas autoetnográficas, abrindo caminho para materiais experimentais, mais bem aceitos pelo público televisivo, onde predominam estratégias narrativas em primeira pessoa. A classificação desse tipo de documentário está se tornando cada vez mais complexa, no entanto, é possível apontar para uma tendência a uma abordagem participativa (NICHOLS, 2010). Ao mesmo tempo, é possível identificar cinco estilos: poético, expositivo, performativo e observacional. Nos dois documentários analisados é possível identificar o uso desses estilos como recursos comunicativos. O estilo poético, em ambos os documentários, privilegia a forma e considerações estéticas, aspecto que pode ser visto em momentos em que o discurso se estrutura a partir de vários elementos lúdicos, desordenados, fragmentados e ambíguos. A história contada é composta por fragmentos do cotidiano, com forte charme visual. Podemos observar uma edição descontínua em que, por vezes, o caráter dos protagonistas e as coordenadas de tempo e espaço aparecem borrados. Os dois documentários dão um peso considerável à carga artística, o que fica evidente pela força da trilha sonora e pela estetização visual do cotidiano (LIPOVETSKY E SERROY, 2015). Em ambos os casos, o estilo expositivo desempenha um papel importante na adaptação de ambos os produtos aos gêneros e formatos da televisão educativa (CRAWFORD E TURTON, 1992). Podemos ver isso nos momentos em que o peso artístico perde força e seu lugar é ocupado por uma narrativa autoritária (dados históricos, estatísticos e informações culturais validadas). Por outro lado, também é possível identificar um estilo performático em ambas as produções. Em vários momentos fica evidente a encenação de aspectos etnológicos que buscam representar realidades específicas, por meio de ferramentas retóricas. A tênue linha entre realidade e ficção serve para problematizar uma narrativa concreta, para enfatizar aspectos específicos, retomando elementos da ficção, que se combinam com recursos clássicos do documentário etnográfico, tais como: interpretação, contextualização social, entrevista, descrição densa e observação. Por fim, há traços do estilo observacional, próximos às práticas da antropologia clássica e etnográfica (GRIMSHAW, 2011). No entanto, hoje, existem múltiplas maneiras de desenvolver uma perspectiva, portanto, de um ângulo estruturalista, o observacional, é sempre uma aspiração pretensiosa (GRIMSHAW E RAVETZ, 2009), 127 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge além de não ser um estilo popular dentro das tendências atuais da produção audiovisual. Ambos os documentários fazem uso desse recurso, gerando visões estereotipadas de afro-mexicano e afro-brasileiro, respectivamente. De forma independente, devemos abordar o caráter participativo de ambas as produções, aspecto especialmente valioso por sua potencial contribuição decolonial (CALDERÓN e SÁNCHEZ, 2021) para o desenvolvimento de posições críticas da sociedade, como a necessidade de lutar contra o racismo. Nesse tipo de documentário, seus protagonistas estão envolvidos na concepção, produção e edição de materiais audiovisuais (ÖZERDEM E BOWD, 2013). O documentário participativo é intrinsecamente um produto etnográfico, que implica lógicas colaborativas e cujo cerne é a entrevista em profundidade (NICHOLS, 2010), uma vez que fornece significado sociocultural, mas, paradoxalmente, pode alterar comportamentos cotidianos devido à presença da câmera e de pessoas fora do grupo social de referência. Deve-se levar em consideração que as articulações sociais às quais o documentário participativo pode dar origem são atravessadas por relações assimétricas de poder, sensibilidades, classe social, gênero, etnia e muitas outras variáveis. Observa-se que ambos os audiovisuais correspondem a uma variante denominada documentário reflexivo, por meio da qual é viável abordar histórias pessoais e coletivas (GABARA, 2019), bem como dar uma perspectiva política à diáspora africana nos dois países latino-americanos. No entanto, no caso do “Afroméxico” há vieses culturalistas que podem diluir as reivindicações sociopolíticas das comunidades afrodescendentes. O estilo reflexivo inclui uma presença explícita da pessoa que filma o vídeo, com a qual o ato de gravar adquire um caráter militante e político em torno do assunto abordado. Neste caso, ela se faz presente através da presença implícita e permanente de um entrevistador. A reflexividade pode ter como objetivo escrutinar expectativas sobre o próprio documentário ou sobre o mundo político no qual ele está circunscrito (NICHOLS, 2010). 128 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Imagem 8. Realidade e ficção em uma cena intimista de estilo performativo Fonnte: “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020) Intertextualidade Somente no caso de “Quilombos do Século XXI” são apresentados elementos de intertextualidade, aspecto muito relevante para a construção de perspectivas complexas dentro da estrutura do documentário etnográfico. O documentário brasileiro faz alusão às obras «Foundations of cultural Studies” (Hall, 2019) e “Quilombos. geografia africana, cartografia étnica e territórios tradicionais” (Sanzio, 2009). Da mesma forma, são apresentados documentos oficiais de reconhecimento de terras, arquivos em vídeo de atos legislativos em favor dos afrodescendentes, arquivos históricos referentes à exclusão e o marco legal composto pela Convenção 169, Constituição de 1988 e Lei 10.639. Todos esses documentos fornecem verossimilhança à história, mas, acima de tudo, são testemunhas relevantes para fazer uma crítica ao racismo estrutural e para a memória histórica. 129 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Imagem 9. Intertextualidade. Fonte: “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019) Paradigma antirracista (dimensões ética e estética) Em “Quilombos do século XXI” observam-se as relações raciais à luz da identidade afro-brasileira e da preservação da cultura, onde se destacam a exaltação dos valores afro-brasileiros e a negritude. Há uma consciência espacial da diáspora africana onde se distingue o conceito de “Quilombo” como espaço histórico de resistência e resiliência em busca de liberdade e “Comunidades Quilombolas” como espaço histórico de resistência cultural. As relações raciais expressas no documentário se baseiam nas formas de conexão entre as comunidades afrodescendentes e o Estado brasileiro, onde o reconhecimento dos territórios e a posse da terra são a base fundamental das reivindicações negras, atravessadas pela educação intercultural, pelo respeito à história, à cultura e à religião. Faz-se uma crítica à noção de miscigenação no Brasil, tendo clareza sobre seu papel na dissolução das diferenças e nas demandas das comunidades afrodescendentes. A perspectiva histórica do paradigma antirracista do documentário está fortemente ancorada nos territórios e atravessa a experiência individual e coletiva. A origem escrava da diáspora africana no Brasil permite compreender a exclusão como um elemento estrutural que tem fortes implicações nas sociedades negras contemporâneas. 130 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Na mesma linha, discute-se o problema do racismo estrutural, ligado à falta de reconhecimento da propriedade da terra e à luta por um Brasil igualitário. No caso de “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020) é importante mencionar que sua perspectiva antirracista é muito mais frouxa, já que o documentário opta por uma visão patrimonialista. A consciência racial está intimamente associada ao orgulho étnico, ao re-reconhecimento das raízes e da identidade cultural. As cenas repletas de detalhes sobre a cultura material, por meio de máscaras, instrumentos musicais e pintura. Aspectos que são complementados por expressões culturais como dança, música, gastronomia e artes plásticas. Esses aspectos são marcadores importantes de ser afrodescendente no México, uma vez que este se reduz à cor da pele, como aponta Edgardo Miguel Paz em fragmento de entrevista: “... sem pele escura, mas com sangue negro...” Imagem 10. Entrevista com Egardo Miguel Paz. Fonte: “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020) As relações raciais são construídas a partir de uma interculturalidade dinâmica que ignora os problemas estruturais do racismo no México, no entanto, enfatiza as especialidades produtivas dos grupos afrodescendentes que têm a ver com os processos 131 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge de adaptação biocultural aos territórios onde os diferentes fluxos migratórios se estabeleceram. Com menos contundência do que no documentário brasileiro, a pegada histórica da escravidão é reconhecida, mas não há elementos pedagógicos ou críticas antirracistas. Foram detectadas tomadas extremas, médias, longas e extremamente longas, ângulos diferentes (múltiplas perspectivas) e jogos de luz que, em cada caso, permitem reconstruir alguns aspectos derivados dessa relação colaborativa. Em ambas as produções, a edição é totalmente orientada para exaltar a narrativa e levar à resolução final da história (BERNARD, 2010). Síntese Em “Quilombos do século XXI”, o discurso audiovisual é um elemento constitutivo para desenvolver uma ação educativa e uma militância dinâmica em torno das pautas antirracistas e de reconhecimento das comunidades afrodescendentes brasileiras. Através da figura do Quilombo se expressa a resistência a busca da liberdade como valor superior. Embora “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020), transmita alguns elementos históricos para contextualizar a diáspora africana no México e sublinhe sua importância na configuração da cultura nacional, sob uma apologia patrimonialista (de unidade nacional e miscigenação) ignora a necessidade de criticar o racismo e apontar a dívida histórica e a marginalidade vivida pelos povos afrodescendentes neste país. 132 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Tabela 1. Síntese da Análise Instrumental Análisis Instrumental Variável “Quilombos do século XXI” (Radio e TV Justiça, 2019) “Afroméxico, la africanidad de la Costa Chica” (Canal Once, 2020) Condições de Leitura Título: Educação intercultural e reivindicações raciais na dimensão temporal. Enquadramento genérico: conteúdo educativo a partir do documentário gerado sob os auspícios da administração pública. Direção: Billa Franzoni (Experiência em documentário e trajetória na televisão cultural). Thiago Oliveira (ator, cineasta e produtor). Título: Educação intercultural e reivindicações raciais na dimensão espacial. Enquadramento genérico: Conteúdo educativo do documentário no âmbito da televisão educativa. Direção: Ana Cruz Navarro (experiência em séries documentais, televisão cultural e educativa). Susana Harp (cantora e promotora da riqueza da miscigenação racial no México). Inicio Arquétipo do herói nacional antirracista Diversidade e coletividade Imagem Imagens realistas com amplos registros cromáticos, riqueza de formas. Perspectiva orientada para a objetividade Imagens poéticas, com uma ampla paleta de cores e complexidade de formas. Perspectiva orientada para um lirismo narrativo. Som Riqueza narrativa e contextualização através do som: instrumentos de percussão, paisagens sonoras e a voz de atores sociais. Contextualização e função estética através de peças musicais, instrumentos de percussão e paisagens sonoras. Edição Contextualização e função estética através de peças musicais, instrumentos de percussão e paisagens sonoras. Organização temática sequencial, através de uma estrutura organizada Cena A cena é recriada no espaço aberto, no meio rural, no público e no marginal, entrelaçada com a intimidade da esfera íntima com produção mínima. Os personagens são sustentados em sua voz de autoridade (moral, acadêmica, política) e a partir da multiperspectiva. A cena destaca a paisagem tropical, o espaço rural, a pequena comunidade e o cotidiano marginalizado. Os personagens são recriados através de tipologias do cotidiano que se intercalam com a voz experiente. Narração Ordem lógica e cronológica linear, através da integração de fragmentos unidos tematicamente. Estrutura narrativa em quatro partes (identidade, reivindicações, transformações sociais, vida contemporânea). Efeito crítico e emocional da estrutura narrativa. Ordem lógica e cronológica, linear através de marcadores com fluxo sequencial. Estrutura narrativa em três partes (história, contribuição cultural, vida contemporânea). Efeito patrimonialista da estrutura narrativa, carente de uma dimensão crítica. Gênero e estilo Documentário etnográfico itimista e detalhista. A partir do espaço privado, da cultura material e da entrevista em profundidade, recuperam-se as principais demandas políticas. Documentário etnográfico expositivo e observacional. A base da estrutura é baseada em fragmentos de entrevistas, mas a partir de uma visão externa, associada à antropologia audiovisual. Intertextualidade 2 Trabalhos acadêmicos 5 Documentos oficiais 1 Arquivo de vídeo 1 Arquivo Histórico 3 documentos legais Não se apresenta Paradigma antirracista MK (Dimensões ética e estética) Consciência racial através da identidade, cultura, luta social, valores afro-brasileiros. Relações raciais da consciência crítica ao conceito de miscigenação e unidade nacional Reconhecimento histórico da exclusão estrutural Reconhecimento do racismo estrutural Consciência racial através do orgulho, raízes e identidade cultural Relações raciais baseadas em uma interculturalidade dinâmica Memória histórica de escalvitud Não são apresentados elementos pedagógicos ou críticas antirracistas Síntese Documentário político com forte intenção pedagógica antirracista e que coloca em pauta demandas afro-brasileiras Documentário culturalista com forte ênfase poética que ignora a questão do racismo e da não-violência Fonte: Elaboração própria 133 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Considerações finais Nos dois casos estudados, o documentário etnográfico é plenamente enriquecido por ser capaz de atingir públicos mais amplos, como o oferecido pela mídia aberta de televisão. Nessa perspectiva, os gêneros documentais podem ser, simultaneamente, uma ferramenta de pesquisa como meio de acesso universal ao conhecimento, por meio da divulgação e difusão de conhecimentos com relevância social. A grande diversidade de estilos, formas e propósitos que o documentário etnográfico adquire revela seu grande potencial para experimentar novas formas de criar e recriar novos conhecimentos. Esse enorme potencial criativo não é peneirado apenas pela racionalidade acadêmica, mas pelas diferentes sensibilidades envolvidas em seu processo criativo, razão pela qual é possível conceber o documentário como produto do sentimento, numa dimensão humana para gerar novos conhecimentos e novas sensibilidades. É possível perceber, nesse gênero, a possibilidade de gerar novas pedagogias eficientes para disseminar o pensamento antirracista, o valor da diversidade e as demandas estabelecidas pelos grupos afrodescendentes na América Latina. Os documentários, por suas limitações de recursos, tempo e formatos, sempre proporcionarão visões parciais dos problemas sociais, aspecto para o qual quanto maior for a produção existente, que proporcione mais ângulos e perspectivas, melhores serão as condições para que o cinema seja uma ferramenta de educação intercultural e de combate ao racismo. O documentário etnográfico, então, torna-se um documento social que atesta os efeitos produzidos por um racismo estrutural institucionalizado, diante do qual mudanças profundas devem ser consideradas. Com isso, busca reconhecer as contribuições das sociedades negras para a riqueza do nosso continente mas, ao mesmo tempo, destacar as desigualdades e exclusões que esses grupos vivenciam. Da mesma forma, essas produções podem ser caracterizadas como documentários participativos com fortes componentes de reflexividade, que embora não sejam evidentes no produto audiovisual, é evidente que emergem de uma constante negociação entre o produtor que representa a cinematografia e a comunidade que está representada. Nesses casos, a interpretação é relativamente aberta às habilidades de leitura do público. 134 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge Nos dois exemplos abordados, percebem-se duas perspectivas: uma antirracista e outra patrimonialista, que apesar de sua relevância temática ainda se orientam pelas convenções tradicionais da linguagem audiovisual antropológica, deixando de fora as enormes possibilidades de inovação e experimentação a que os gêneros híbridos do século XXI podem dar origem, que possuem infinitas possibilidades de reprodução e distribuição, através da democratização tecnológica. Prova disso é a disponibilização dos materiais estudados no YouTube. Pesquisas futuras devem abordar o potencial de novos produtos experimentais e gêneros híbridos como ferramentas eficazes para dispersar valores antirracistas e de diversidade, que serão diretrizes fundamentais para a melhoria da qualidade de vida na sociedade contemporânea. Referências ARENAS, F. Cinematic and literary representations of Africans and afro-descendants in contemporary Portugal: Conviviality and conflict on the margins. Cadernos de Estudos Africanos, n. 24, p. 165-186, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.4000/ cea.676. Acesso em: 03 maio 2023. BERNARD, S. Documentary Storytelling: Creative Nonfiction on Screen. Burlington, MA: Focal Press, 2010. 368 p. BHABHA, H. The Location of culture. London: Routledge, 1994. 408 p. CALDERÓN, O. y SÁNCHEZ, A. Feminist counter-cinema and decolonial countervisuality: subversions of audiovisual archives in Un’ora sola ti vorrei (2002) and Pays Barbare (2013). Studies in Documentary Film, vol.15, núm. 3, p. 187-202, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1080/17503280.2020.1782807 . Acesso em: 26 maio 2023. CORREA, S. M. de S. Presentismo negro: um tópico subjacente na história afro-brasileira. Anos 90, Porto Alegre, vol. 15, núm. 27, p. 257-285, 2008. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/b7a4/2f25bd4a45feb4a766dbcadd8a4f668a8d7d.pdf. Acesso em: 03 maio. 2023. 135 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge CORRIGAN, T. The Essay Film: From Montaigne, After Marker. New York: Oxford University Press, 2011. 256p. CRAWFORD, P. y TURTON, D. Film as Ethnography. Manchester: Manchester University Press. 1992. 322p. DELEUZE, G. La imagen movimiento. Estudios sobre cine 1. Barcelona: Paidós, 1984. 318 p. GABARA, R. From Ethnography to Essay. Realism, Reflexivity and African Documentary Film. In: HARROW, K. y GARRITANO, C. A Companion to African Cinema. Hoboken, NJ: John Wiley & Sons. 2019. p. 358-377. GEERTZ, C. Works and Lives: The Anthropologist as Author. Stanford: Stanford University Press, 1988. 157 p. GOLDBERG, D. Racist culture: Philosophy and the politics of meaning. Oxford: Blackwell, 1993. 313 p. GRIMSHAW, A. 2011. The Bellwether Ewe: Recent Developments in Ethnographic Filmmaking and the Aesthetics of Anthropological Inquiry. Cultural anthropology, vol. 26, pp. 247-62, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j. 1548-1360.2011.01098.x Acesso em: 26 maio 2023. GRIMSHAW, A. y RAVETZ, A. Observational Cinema: Anthropology, Film, and the Exploration of Social Life. Bloomington: Indiana University Press, 2009. 224 p. HALL, S. Essential Essays, Volume 1: Foundations of Cultural Studies. Durham: Duke Universitiy Press, 2019. 424p. HARTOG, F. Regímenes de historicidad. Presentismo y experiencias del tiempo. México: UIA, 2007. 243 p. HINDMARSH, J., y TUTT, D. Video in Analytical Practice. In: PINK, S. Advances in Visual Methodology. Thousand Oaks, CA: Sage. 2012. p. 57-62. JAIME, P. y LIMA, A. Da África ao Brasil Entrevista com o Prof. Kabengele Munanga. Revista de Antropologia, vol. 56, núm. 1, pp. 507-551, 2013. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/43854882. Acesso em: 09 maio 2023. 136 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge JUNYU, L., XIAO, X., ZIXUAN, X., CHENQI, W., MEIXUAN, Z. y YANG, Z. The potential of virtual tourism in the recovery of tourism industry during the COVID-19 pandemic, Current Issues in Tourism, vol. 25, núm. 3, pp. 441-457, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1080/13683500.2021.1959526. Acesso em: 26 maio 2023. LIPOVETSKY, G. Y SERROY, G. La estetización del mundo: Vivir en la época del capitalismo artístico. Barcelona: Anagrama. 2015. 416 p. MUNANGA, K. Origens africanas do Brasil contemporaneo: historias, linguas, culturas e civilizacoes. Sao Paulo: Global, 2009. 112 p. MUNANGA, K. Negritude, usos e sentidos. Brasil: Autêntica, 2015. 102 p. NICHOLS, B. Introduction to Documentary. Bloomington: Indiana University Press. 2010. 368p. NICHOLS, B. Representing reality: Issues and concepts in documentary. Indianapolis: Indiana University Press, 1991. 336 p. ÖZERDEM, A., y BOWD, R. Participatory Research Methodologies: Development and Post-Disaster/Conflict Reconstruction. Farnham: Ashgate, 2013. 298p. PIAULT, M. Anthropologie et cinéma. Paris: Nathan, 2000. 285p. ROUCH, J. Ciné‐Ethnography. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003. 416p. RUBY, J. 1988. The image mirrored: reflexivity and the documentary film. In: ROSENTHAL, A. New Challenges for Documentary, Berkeley: University of California Press. 1998. 520 p. SANZIO, R. Quilombos: geografia africana, cartografia étnica, territórios tradicionais. Brasil: Editora Mapas Consultoria. 2009. 189 p. SILVA, J. y MARÇAL, M. MUNANGA, Kabengele. Origens africanas do Brasil contemporaneo: historias, linguas, culturas e civilizacoes. Sao Paulo: Global, 2009. 112 p. Práxis Educativa (Brasil), vol. 7, núm. 1, pp. 279-283, 2012. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/894/89423377014.pdf. Acesso em: 03 maio 2023. STOLLER, P. 2007. Ethnography/Memoir/Imagination/Story. Anthropology and Humanism, vol. 32, pp.178-91, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1525/ ahu.2007.32.2.178. Acesso em: 26 maio 2023. 137 representações socioculturais da afro-américa Humberto Thomé-Ortiz, Roberlaine R. Jorge VANNINI, P. Ethnographic Film and Video on Hybrid Television: Learning from the Content, Style, and Distribution of Popular Ethnographic Documentaries, vol. 44, núm. 4, pp. 1-26, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1177/089124161453 Acesso em: 23 maio 2023. ZAVALA, L. Teoría y práctica del análisis cinematográfico. México: Trillas, 2010. 231 p. ZAVALA, L. El análisis cinematorgráfico y su diversidad metodológica. Casa del tiempo, n.30, p. 65-69, 2010. Disponível em: https://www.uam.mx/difusion/casadeltiempo/30_iv_abr_2010/casa_del_tiempo_eIV_num30_65_69.pdf. Acesso em: 03 maio 2023. Filmografía AFROMÉXICO – La africanidad de la Costa Chica. 21 enero 2020. 1 documental (29 min). Publicado por el canal Canal Once. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=EN5pl8plH0g. Acesso: 30 jan. 2023. QUILOMBOS do século XXI. 17 noviembre 2019. 1 documental (25 min 04 s). Publicado por el canal Rádio e TV Justiça. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=CNhqvWJjGII. Acesso em: 27 fev. 2023. 138 Negrum3 - Por uma Pretagogia de saberes em corpos negros LGBTQIA+ Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita1 Edileuza Penha de Souza2 O Cinema negro ousa dizer o que se cala Mil nações Moldaram minha cara Minha voz Uso pra dizer o que se cala O meu país É meu lugar de fala Mil nações Moldaram minha cara Minha voz Uso pra dizer o que se cala Ser feliz no vão, no triz, é força que me embala O meu país É meu lugar de fala O que se cala 1 Mestre em Artes Visuais pela Universidade de Brasília e professor na Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF). 2 Doutora em Educação e comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). 139 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza No Brasil desde a chegada dos primeiros(as) trabalhadores(as) escravizados(as) foi implantado o movimento de luta e resistência, o que possibilitou a construção de novos valores para manutenção e continuidade da vida. A crença nos Òrìṣàs, Inquices, Santos, Voduns, Egunguns e outras divindades espirituais assegurou a institucionalidade de um continuum civilizatório recriando e legitimando a herança africana, “influenciando a vida cotidiana, dando sentido à vida em comunidade e fortalecendo os pilares da cultura” (LUZ, 2000, p. 97). Nosso entendimento é que o Cinema Negro, e como diz a música “o que se cala”, imortalizada na voz de Elza Soares3 - por conta do nosso lugar de fala, o Cinema Negro Brasileiro (CNB), tem origem ancestral, o que significa ir além da produção de luzes e movimentos, de narrativas e estéticas. A ancestralidade âncora na existência, no tempo, no pensamento, na memória e na transmissão de conhecimentos. Assumimos na Pretagogia (Petit, 2015), uma forma de compreender que a narrativa desenvolvida no filme traz no corpo e na fala das personagens saberes construídos na luta por emancipação (GOMES, 2017). Essa perspectiva ancestral confronta o projeto genocida fundado na colonização mercantil4. Ou seja, pessoas negras, recriam na diáspora um outro modo de vida, o que possibilita a garantia da existência e da continuidade enquanto povo. Desde sua tese de doutoramento, a pesquisadora Edileuza Penha de Souza (2013) vem afirmando que o conceito de CNB, é uma, das muitas, ações do Movimento Negro Organizado (MNO), ou seja, foram nas organizações de resistência ao sistema escravocrata, antes e após a assinatura da Lei Áurea5(13 de maio de 1888), que nossos 3 Cantora e compositora, emprestou sua voz a vários gêneros musicais. Ao longo de pouco mais de 60 anos de carreira, eleita pela Rádio BBC de Londres como a cantora brasileira do milênio. Nasceu e faleceu no Rio de Janeiro, 23 de junho de 1930 – 20 de janeiro de 2022. 4 “o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão europeia foi também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos. Mas o epistemicídio foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista ou, durante boa parte do nosso século, a expansão comunista (neste domínio tão moderno quanto a capitalista); e também porque ocorreu tanto no espaço periférico, extra-europeu eextra-norte-americano do sistema mundial, como no espaço central europeu e norte-americano, contra os trabalhadores, os índios, os negros, as mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas, sexuais).” (SANTOS, 1995, p. 328). 5 Assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888. A lei decretava “a liberdade total” aos/às trabalhadores(as) escravizados(as) no Brasil. No entanto, sem nenhuma política pública de reparação, a chamada abolição da escravatura despejou nas ruas famílias negras, que até os dias de hoje lutam por justiça e reparação. 140 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza ancestrais ergueram nossos destinos. Este artigo demarca as ações do MNO como princípio fundador do Cinema Negro Brasileiro. Acredito que é nas primeiras palavras escritas por homens e mulheres negras no Brasil, grafadas em panfletos, periódicos, cadernos, jornais e tantos outros instrumentos de letramento que se encontram os primórdios para elaboração do conceito daquilo que hoje se denomina Cinema Negro (SOUZA, 2013, p.69). Após a falsa abolição, movimentos como a Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental do Negro (TEN), e a carta escrita pelo ator Grande Otelo, em 1953, atualmente reivindicada por grupos de cineastas e atores(atrizes) negros(as) como o Primeiro Manifesto da Imprensa Negra no Brasil - são alguns marcos do MSN que constituem o CNB na contemporaneidade, como instrumento de denúncia da ausência de pessoas negras no audiovisual e expressa a necessidade da visibilidade negra como elemento de diversidade. Compreender o Movimento Social Negro, como marco do CNB, passa por entender o patrimônio histórico e cultural do Brasil como herança dos saberes produzidos e sistematizados pela população negra. Neste sentido, vale lembrar que muito da produção de filmes realizados por cineastas negros(as) somente tem sido possível graças à colaboração do MSN, de sindicatos e organizações civis, possibilitando um crescimento contínuo da representação negra no audiovisual. Nosso entendimento é que o CNB subverte o que historicamente foi chamado de Cinema Brasileiro ou Cinema Nacional, criando um cinema de emergências. Um cinema que descoloniza corpos e mentes dando visibilidade à existência negra. E nessa perspectiva, buscamos analisar o curta-metragem NEGRUM3 (2018), do roteirista e diretor Diego Paulino6. Consideramos a ancestralidade como um conceito-chave 6 Além do curta-metragem NEGRUM3, Diego Paulino roteirizou e dirigiu o piloto de série “Paleta de Cores” (2016) contemplado pelo Prêmio Antonieta de Barros para Jovens Comunicadores Negros. Foi membro do comitê de seleção de Edital de Produção de Curtas na SPcine 2021 e do júri no Festival Fade to Black. Ministrou aula de roteiro no Núcleo Baiano de Animação em Stop Motion (NUBAS Escola) e aula de “Criação de narrativas especulativas” na Fundação Getúlio Vargas. Desenvolveu série de constructed reality na Endemol Shine Brasil para AmazonStudios Br. Atualmente, desenvolve seu primeiro longa de ficção, “Experiências Incômodas em Dias Nublados’’ em coprodução com a Vitrine Filmes e VOLTA Filmes. 141 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza para compreender o discurso de liberdade e existência, presentes na narrativa fílmica. Buscamos no Afrofuturismo perquirir o caráter pedagógico do curta, para demonstrar como um filme pode realizar mudanças e reconstituir histórias da população negra. Recorremos à filosofia freiriana como uma das bases de análise do filme, sobretudo por entender que trata-se de um filme libertador, que nos ensina a aprender que a qualquer tempo, é preciso ter esperança. De Zózimo Bulbul ao Manifesto das Bixas Pretas Ator e diretor Zózimo Bulbul7 foi pioneiro na luta pela representação da cultura negra na televisão e no cinema. Toda sua vida e carreira foi pautada na militância de edificar um Cinema Negro Brasileiro, consolidando esse feito em 2007 quando criou o Centro Afro Carioca de Cinema, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano organiza o “I Encontro de Cinema Brasil África”8 com objetivo de recuperar a memória da presença do negro e suas temáticas no cinema negro nacional e internacional(MENDONÇA e SOUZA, 2020). Pai do cinema negro brasileiro, Zózimo Bulbul (21 de setembro de 1937 — 24 de janeiro de 2013) foi pioneiro ao cunhar a necessidade de se construir um cinema negro brasileiro, um cinema produzido e protagonizado por negros. Em seu primeiro filme como diretor, “Alma no Olho” (Brasil, 1974), se vale dos resto dos negativos da película ‘Compasso de Espera’ (1969) de Antunes Filho, e cria uma obra de arte que viria a se tornar o primeiro clássico do cinema negro brasileiro.(MENDONÇA e SOUZA, 2020, p.575) Zózimo conviveu com artistas que participaram do TEN e colaborou diretamente com os Movimentos Dogma Feijoada (2000) e o Manifesto do Recife (2001). Esses dois Movimentos se destacam pelas especificidades na luta pela representação midiática de pessoas negras e na denúncia das desigualdades raciais no setor do audiovisual no Brasil. 7 Sobre o assunto, ver: CARVALHO, CARVALHO, Noel dos Santos. Cinema e representação racial: o cinema negro de Zózimo Bulbul. São Paulo, tese de doutorado em sociologia, FFLCH-USP, 2006. 8 Atualmente o evento é cunhado por: “Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul - Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas”, em homenagem ao seu criador. 142 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza Em 1999 produtores, documentaristas e curtametragistas negros de São Paulo se unem e organizam o I Encontro de Realizadores e Técnicos Negros, o encontro ocorreu no Museu da Imagem e do Som (MIS) e teve uma abrangência nacional, com a participação de cineastas negros estreantes e consagrados. No ano seguinte é realizado também em São Paulo o 11º Festival Internacional de Curtas Metragens e na programação a Mostra da Diversidade Negra. No final da Mostra o cineasta Jeferson De torna público o Manifesto Dogma Feijoada – Gênese do Cinema Negro Brasileiro, conhecido como Cinema Feijoada, a declaração estabelece sete fundamentos para a realização de um cinema negro (CARVALHO e DOMINGUES, 2015). (1) o filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro; (2) o protagonista deve ser negro; (3) a temática do filme tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira; (4) o filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes; (5) personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos; (6) o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro; (7) super-heróis ou bandidos deverão ser evitados. (DE e CARVALHO, 2005, p. 96) Em 2001, na 5ª edição do Festival de Cinema do Recife, Joel Zito Araújo lança o documentário: “A negação do Brasil” (2000), fruto de sua tese de doutorado9. O filme projeta suas lembranças entrecruzadas a depoimentos de atrizes e atores negros, rememorando seus processos de pertencimento e identidade negra. No festival artistas negros brasileiros apresentam um outro manifesto exigindo mudanças nas representações das imagens dos/as negros/as no audiovisual, e conclamam: 1) O fim da segregação a que são submetidos os atores, atrizes, apresentadores e jornalistas negros nas produtoras, agências de publicidade e emissoras de televisão; 2) A criação de um fundo para o incentivo de uma produção audiovisual multirracial no Brasil; 3) A ampliação do mercado de trabalho para atrizes, atores, técnicos, produtores, diretores e roteiristas afrodescendentes; 4) A criação de uma nova estética para o Brasil que valorize a diversidade e a pluralidade étnica, regional e religiosa da população brasileira (DE e CARVALHO, 2005, p. 98-99). 9 ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil: identidade racial e estereótipos sobre o negro na história da telenovela brasileira. Universidade de São Paulo: USP, 1999. 143 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza Esses dois manifestos pautaram a emergência de um cinema de combate às estereotipias. Possibilitou a criação de narrativas que reescreve a história, bem como demarca o pioneirismo de cineastas negros e negras na luta por uma sociedade mais justa e fraterna. Em outras palavras esses manifestos se configuram como alguns dos marcos do MSN que edificam o Cinema Negro Brasileiro, orientando assim perspectivas de uma sociedade, e consequentemente de uma escola antirracista. Entendemos assim, que o CNB também se constitui como uma iniciativa pioneira e exitosa que se apoia na Pedagogia da Esperança10 para edificar e difundir uma educação que promova a equidade de gênero e raça, tanto quanto o desenvolvimento e preservação da vida humana. Partindo desses dois movimentos, o professor Lecco França (2020) denomina o filme Negrum3 como, “uma espécie de manifesto estético e político da “bixa preta”. No documentário performático, com o rosto pintado de preto, o ator Félix Pimenta, nos convida a conhecer o “Manifesto Pelo Espaço Preto”. As ideias contidas no manifesto, nos permite estabelecer que o CNB tem uma perspectiva pedagógica, uma vez que demonstra uma articulação coletiva em busca da construção de uma outra sociedade para sujeitos negros, que reestabelece laços com a ancestralidade de matriz africana e vislumbra um futuro negro que celebra a pluralidade da negritude. Firmar o Manifesto da Bixa Preta, não significa criar um outro termo que universalize toda a experiência LGBTQIA+ negra. No entanto, consideramos relevante explicar o porquê do emprego do termo “bixa”. Na verdade, compreendemos que esse vocábulo, empregado historicamente como forma de ofensa, foi ressignificado para edificar um imaginário acerca das múltiplas sexualidades, que em algum momento se viram física ou verbalmente oprimidas. Além de ser algo importante para a narrativa fílmica, que abarca múltiplas identidades de gênero e sexualidades. O termo “bixa” consegue abarcar expressões de sexualidades, tais como a de indivíduos racializados. Neste sentido, evocamos autores como Vidarte (2019) e Silva (2020), para os quais o termo “bixa” apresenta múltiplas possibilidades, a exemplo do coletivo Afrobixas11. Silva (2020) explicita que o coletivo optou pelo termo “bixa”, por entender que a 10 Livro escrito por Paulo Freire, traz uma reflexão sobre o clássico: “Pedagogia do oprimido” (1968). Em “Pedagogia da Esperança”, o autor analisa suas experiências pedagógicas em quase três décadas em diferentes países. 11 O coletivo Afrobixas, é um coletivo de jovens negros que propõe debates acerca de raça, gênero e sexualidades no Distrito Federal. 144 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza terminologia abarca outras expressões de sexualidade e de identidade de gênero presentes nas pessoas que compõem o grupo. Por sua vez, Vidarte (2019) nos ajuda a compreender essa circunstância, ao propor uma ética bixa, uma ética não universalizante, mas, que: deveria recuperar a solidariedade entre os oprimidos, discriminados e perseguidos, evitando estar a serviço das éticas neoliberais criptorreligiosas herdadas em que fomos criados e nas quais se forjaram nossos interesses de classe, e recuperar a solidariedade com os outros que foram e são igualmente oprimidos, discriminados e perseguidos por razões diferentes de sua orientação sexual (VIDARTE, 2019, p. 22). O conceito da ética bixa trazido por Vidarte (2019) contempla grupos e coletivos sociais que vivenciam múltiplas opressões: raciais, sociais, territoriais ou religiosas. O emprego do termo ao tratar o filme como um manifesto possibilita abarcar as sexualidades negras e evidenciar a interseccionalidade dos sistemas de opressão, contra os quais vislumbramos no CNB um mecanismo de resistência. As similaridades das ideias contidas nos debates sobre CNB, se fazem presente no Manifesto pelo Espaço Preto. Em ambos, temos um religar-se com o passado, a valorização da negritude e a construção de novas perspectivas de futuro. Neste sentido, corroboramos com a proposta de França (2020) ao dizer que NEGRUM3, é um manifesto da bixa preta. São “bixas” todas as pessoas que coletivizam experiências de autocuidado, de identidades e de ancestralidade. Manifesto pelo Espaço Preto Na minha pele preta Tão escura quanto a noite Carrego a história de gerações Da minha e das passadas Carrego as vozes daqueles que vieram antes de mim E resisto hoje em nome daqueles que virão depois Se a minha pele preta é meu manto de coragem Uso de sua proteção para avançar e perdurar no cotidiano Contrariando estatística, desviando de projéteis de chumbo Que miram na luz do sol ou ao brilho da lua Não importa o tecido ou acessório que me cubra 145 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza A minha pele preta, escura e sombria Reluz como as estrelas do firmamento a cada dia vivido Das histórias de luta que carrego em minhas veias, cabelo, boca e nariz. Busco forças para reinventar um futuro onde a existência minha e de meus irmãos Seja a própria ideia fundamental de ser humano Aspiramos aos cosmos pela simples possibilidade de sonhar Aspiramos ao espaço sideral para além do etéreo e longínquo Mas também, ao espaço em sua forma mais literal, espaço. Lutamos pela individualidade de nossos corpos e a pluralidade da nossa negritude Ao exercer as nossas múltiplas formas de ser Não introjete em nossas veias suas ideias pálidas e esquálidas Ou suas máximas retrógradas que delimitam a sexualidade e o gênero Nossos corpos negros e celestes são maiores do que isso Juntos escurecemos o céu desbotado que nos cobre, em busca de recriar nosso presente Reconhecemos a força daqueles que vieram antes de nós E, concebemos o futuro àqueles que estão por vir (Paulino, 2018). Ser uma Bixa Preta implica em assumir a construção de novos valores. E, neste sentido, compreendemos o Manifesto das Bixas Pretas como mais um elemento de expressão do Movimento Social Negro. O Manifesto agrega o respeito e a valorização da diversidade afetiva e sexual e consolida a ancestralidade de matriz africana como um processo educativo que se manifesta na intimidade e nos corações. É nessa perspectiva ancestral e transcendente que o filme NEGRUM3 nos convida a realizar um casamento entre a sociedade e a intimidade, nos desafia a ser fiel aos nossos corpos e sonhos. O filme nos oferece a esperança de restaurar o sagrado existente em cada ser humano. Se volta à transmissão do conhecimento, da manutenção da saúde, do autocuidado e do bem-estar de cada pessoa preta. Negrum3 na escola - Por uma Pretagogia da Esperança O curta-metragem “Negrum3” apresenta-se como um filme‐ensaio sobre negritude, viadagem e aspirações espaciais dos filhos da diáspora. Trata-se, portanto, 146 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza de um documentário performático que se divide em três partes, nas quais se propõe um mergulho na caminhada de jovens negros da cidade de São Paulo e a quebra de padrões estéticos e de saberes, ao deslocar a fala para personagens negras, cujas experiências rompem com os padrões de raça, de gênero e de sexualidade impostos pela sociedade heterocisnormativa. Nos apropriamos do conceito de Pretagogia desenvolvido pela professora Sandra Petit (2015), como categoria de análise fílmica. A Pretagogia está ligada diretamente aos valores da cosmovisão africana, assim como NEGRUM3 nos oferece elementos divinos como representação simbólica da identidade negra. “Ela produz respostas especialmente densas perante a vitalidade. Resguarda o espírito do herói e da heroína em plena jornada de superar obstáculos. A partida, a iniciação e o retorno cíclico refaz o movimento negro” (LIMA, 2015, p.19). O filme defende a arte e o direito de ser “Bixa Preta”, orgulhosamente clama por respeito e pelo direito de existir. Por sua vez, “a Pretagogia se alimenta dos saberes, conceitos e conhecimentos, de matriz africana, o que significa dizer que se ampara em um modo particular de ser e de estar no mundo. Esse modo de ser é também um modo de conceber o cosmos, ou seja, uma cosmovisão africana” (PETIT, 2015, p. 120). É na luta de combate ao racismo e a todo tipo de preconceitos e discriminação que se edifica uma educação libertadora e se conecta com os saberes ancestrais, expressos no corpo e na oralidade do povo negro. Assentada nos valores das tradições de matriz africana, o respeito aos sagrados, o culto ao corpo, o desejo e o espírito se conectam diretamente com a ideia de cuidado e autocuidado. Assim como o filme Negrum3 a pretagogia dialoga com narrativas de empoderamento, protagoniza a ancestralidade e o corpo negro enquanto fonte espiritual e clama pela urgência desses elementos nos espaços educativos. Almeida (2017) afirma que a relação entre cinema e educação pode ser observada segundo diferentes possibilidades, dependendo de como se concebe a própria educação: seja no sentido estrito do aprendizado de conteúdos curriculares, seja no sentido de ampliação das referências culturais da pessoa. O autor observa que, no contexto escolar, o cinema pode ser empregado como um mediador entre os(as) estudantes e determinado conteúdo, como uma forma de despertar o interesse pelo conhecimento ou, ainda, como um instrumento para desenvolver a criticidade do(a) discente. 147 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza Defendemos a concepção de que o cinema educa, não porque está associado a algum conteúdo, mas porque permite ao universo educacional atuar nas formas de pensamento, no imaginário, uma vez que tensiona as relações estabelecidas na sociedade (ALMEIDA, 2017). No governo da presidenta Dilma Rousseff12 foi sancionada a Lei 13.006/2014, que determina a exibição de duas horas mensais de cinema nacional em todas as escolas do Brasil. Essa lei tornou o cinema um componente complementar ao currículo, que deve ser incorporado à proposta pedagógica da escola. No entanto, um dos muitos desafios que essa nova lei apresenta diz respeito à seleção dos filmes que chegarão às escolas: como garantir que a multiplicidade de temas, realizadores e realizadoras, propostas estéticas e discursivas, que atualmente fazem o cinema brasileiro ser destaque em festivais no mundo inteiro, seja também objeto de apreciação de toda comunidade escolar brasileira? (FRESQUET e MIGLIORIN, 2015). Uma das qualidades da lei é transformar a escola em um local de encontro entre o cinema e o público, que em diversos momentos não tem acesso às salas comerciais de exibição: “mais do que isso, a possibilidade de acesso a sistemas de expressão e signos, blocos de ideias e estéticas marginalizadas pelo mercado e pelo sistema oligopolista de exibição” (FRESQUET e MIGLIORIN, 2015, p. 8). Nesse sentido, a proposta existente na lei 13.006/2014 permite aproximar as produções do CNB ao espaço escolar e, assim contribuir para a realização de debates acerca de temas urgentes na sociedade. Visto que essas produções têm desenvolvido experimentações estéticas e trazido para o centro de suas narrativas personagens, até então, marginalizados pelo cinema hegemônico. Outra lei federal que expressa o caráter pedagógico do cinema negro é a Lei 10.639/200313. Criada com o propósito de ressignificar a cosmovisão africana, essa lei propõe uma prática pedagógica afrobrasileira que possibilita a reconstituição da história da população negra. Acreditamos, portanto, que as leis 10.639/2003 e a 13.006/2014 se fortalecem com as produções do CNB, ambos desempenham um papel de importância pedagógica 12 A lei 13.006/2014 acrescenta § 8º ao art. 26 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de diretrizes e bases da educação nacional), e passa obrigar a exibição de filmes de produção nacional, por no mínimo duas horas mensais nas escolas de educação básica.http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2011-2014/2014/Lei/L13006.htm 13 A Lei 10639/2003, assinada em 2003 torna obrigatório o ensino de cultura e história afro-brasileira no ensino básico do Brasil. Consultar:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm 148 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza ao possibilitar debates e ações ligadas à população negra no Brasil como a religiosidade, e a circularidade. Estes instrumentos promovem o contato entre a escola e as múltiplas vivências da população negra no Brasil — como as de negros/as LGBTQIA+ — que, muitas vezes, são excluídas desses espaços, contribuindo para alcançar o objetivo de uma escola que respeite as diferenças e se volta para instituir uma pedagogia da esperança. Afrofuturismos - o futuro negro de NEGRUM3 Esteticamente, NEGRUM3 inspira-se no afrofuturismo, movimento estético, social e cultural, que une elementos da ficção especulativa a história das culturas africanas. O afrofuturismo é um movimento político, social e estético. Muitas vezes compreendido também como subgênero da ficção científica. Os holofotes da tecnologia, permite que esse movimento torne o sonho e a fantasia em realidade. O que parece ser utopia (o desejo de ser fada e princesa no início do filme) se transforma em realidade quando ao final se descortina toda a ancestralidade negra africana. “(...) em um aspecto amplo o afrofuturismo pode ser pensado pela junção da experiência negra e narrativas de ficção especulativa” (FREITAS e SOUZA, 2018, p. 496). Os filmes inspirados pela estética afrofuturista reelaboram o passado, com o intuito de especular um futuro negro que rompa com a hostilidade do presente. Há neles um infringir os limites de tempo e de espaço, para criar formas de se enxergar no mundo enquanto sujeito negro (FREITAS e SOUZA, 2018). Negrum3 é um filme com estética afrofuturista composto de três atos. Em suas performances questiona as vivências de ser e do ser negro nos espaços urbanos. As narrativas desenvolvidas perpassam por experiências corporais e estéticas que acessam referências africanas e afrodiaspóricas na busca de especular novas possibilidades de vida para o corpo negro. O curta-metragem é protagonizado por Eric Oliveira, Félix Pimenta, Aretha Sadick14 e outros artistas da cidade de São Paulo. O filme inicia-se com uma performance que destaca o corpo de Eric: um corpo negro, seminu, sozinho em um fundo preto. Corta para um espelho partido, o encontro da personagem com o espelho causa estranhamento, ao não se perceber na imagem refletida (Figura 1). 14 Eric Oliveira - DJ, modelo e performer. Félix Pimenta - dançarino performer, pesquisador, professor e coreógrafo de danças urbanas. Aretha Sadick - multiartista trans, performer, atriz. 149 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza Figura 1: Erick se olha no espelho - Fonte: Frame do filme Negrum3. Ele continua despido, como uma figura sem identidade, até que num novo corte, aparecem várias roupas no cenário. Erick ainda em um processo de se reconhecer, começa a utilizar esses diferentes acessórios e roupas que aparecem em cena (figura 2). Figura 2: Erick se olha no espelho com as roupas penduradas no palco - Fonte: Frame do filme Negrum3. Cortado somente por uma batida, essa cena é composta por um quase silêncio. O som da cena ecoa como se fossem batidas do coração, surgem ruídos produzidos pelos movimentos da personagem. Eric parece brincar com as suas múltiplas imagens, que 150 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza se apresentam nos diversos pedaços do espelho quebrado e nas roupas que mudam a todo instante por meio de uma montagem que, a cada corte, apresenta a personagem de maneira diferente. Tudo se mistura nesse processo de autorreconhecimento, a liberdade do corpo é o ponto principal do início da cena, um corpo que brinca, um corpo livre, que tem uma identidade fluida. As mudanças de roupa também alteram a postura da personagem, de um ar de medo, passa a ter altivez, ao usar essas roupas e acessórios. Ela passeia olhando para cada vestimenta, tudo é uma grande experimentação das possibilidades ali presentes. A personagem parece não ter mais medo do que vê no espelho. Em Negrum3, o espelho é também uma metáfora e, ao mesmo tempo que quebrado, se constitui como disputa em torno da representação do corpo negro. Inteiro recupera a identidade, as origens ancestrais e as tradições de poder. O diretor, não se furta das referências simbólicas. O espelho, não é apenas um objeto político, educacional e espiritual, ele representa a transformação e a consciência. Sua superfície reflete os múltiplos processos de construção de memória do estar no mundo e ser uma Bixa-preta (DA-RIN, 2004; SODRÉ, 2009). O silêncio da sequência inicial do filme é quebrado pela fala da própria personagem, que discorre sobre a não aceitação da sociedade, sobre ser um corpo e uma estética proibidos. Sua fala se mistura a outras em off, que dão continuidade a esses questionamentos. Nelas, percebem-se as inúmeras violências vivenciadas por corpos negros dissidentes, ficam expressos o racismo, a LGBTfobia, a gordofobia, a misoginia, que constituem violências físicas e psicológicas (MESQUITA, 2021). A resistência a esse processo violento em que vivem corpos negros, aparece no filme a partir da afirmação da negritude. Isso permite a compreensão de que há diferentes vivência negras e possibilita romper com os estereótipos associados ao corpo negro. A maneira como esse processo se realiza fica evidente na sequência, em que Erick demonstra que sua identidade negra é fator de fortalecimento. A banda sonora se modifica para tambores e as tomadas se tornam mais longas, a personagem se observa no espelho mais atentamente e parece não rejeitar a imagem que vê. O poema “Me Gritaron Negra” da poeta peruana Victoria Santa Cruz, o qual se tornou uma bandeira contra o racismo, começa a ser declamado por uma voz em off. No poema, percebe-se a mudança na maneira como a interlocutora entende a palavra 151 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza negra, que deixa de ser um insulto, para tornar-se afirmação destemida da identidade e da humanidade negras. A afirmação da identidade negra faz com que Eric se fortaleça e enfrente a cidade se expressando livremente pelas ruas. Seu corpo revela esse novo momento, caminha altivo e encontra outros corpos negros, e juntos festejam o encontro com sorrisos e danças. Ao som da batida do funk os corpos dançam e celebram suas existências e pertencimentos. Ultimando a primeira parte do filme a ancestralidade é celebrada com alegria, pois o existir é também símbolo “de sobrevivência, resistência e expansão da cultura negra no mundo” (PETIT, 2015,p. 26). O segundo ato de Negrum3, se inicia por meio de um close no rosto de Félix Pimenta, cujos cabelos são ajeitados para que ele possa entrar em cena (Figura 3). Essa imagem denota que o empoderamento e a aceitação envolvem também uma experiência estética-corporal. Destaco a personagem que arruma Félix: seu figurino remete à orixá Iansã, que representa para o candomblé, religião de matriz africana, a força da natureza e a força feminina. O filme, nesse momento, faz referência à força ancestral que possibilita a Félix entrar em cena. Figura 3: Os cabelos de Félix são arrumados - Fonte: frame do filme Negrum3. Após um zoom out, é possível observar todo o ambiente em que a cena se desenvolve. A personagem, então, interpreta o Manifesto pelo Espaço Preto, em um 152 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza cenário repleto de obras com corpos ensanguentados, que tanto remetem à luta pela sobrevivência do povo negro, quanto ao genocídio perpetrado contra negros e negras desde a diáspora forçada do continente africano (NASCIMENTO, 2016). Enquanto o manifesto é lido, a montagem traz imagens que remetem a ideia de um futuro em que negros e negras possam expressar-se. Com uma dinâmica rápida, a leitura do manifesto é acompanhada por cenas de uma performance de dança, que se misturam a imagens de um centro urbano com prédios altos e luzes neon. No topo desses prédios, veem-se corpos negros que representam a multiplicidade do ser negro(a): tons de pele, texturas de cabelo, formas corporais. A música eletrônica dá o tom da dança e da montagem. Esse conjunto de fatores sintetizam as referências temporais desse ato do filme, em que a ancestralidade prepara Félix para a leitura do manifesto no qual se clama por um futuro diferente para a população negra. Finalmente, na terceira parte, em um cenário quase carnavalesco afrofuturista, com muito brilho e luz, Aretha Sadick e Erick descem uma enorme escada e se encontram para uma nova performance. Ela chega em uma nave espacial, com ornamentos que remetem ao Egito antigo e aos impérios de reis e de rainhas africanas, como ela mesma afirma em sua fala. Em uma celebração musical, as batidas eletrônicas do funk combinam-se às imagens na criação de uma utopia afrofuturista. Em seu canto de celebração do futuro, Aretha novamente lembra o processo de diáspora forçada pelo qual passou o povo negro e adverte-lhe que chegou a hora de tomar posse do que é seu. Projeta-se o futuro, em constante diálogo com o passado, por meio da valorização dos que possibilitaram a chegada desse momento, dos que lutaram e morreram pela independência do corpo negro, que mais uma vez dança e celebra. Imediatamente após o trecho “Hoje vamos olhar para o futuro de onde tudo começou!”, há um corte rápido — em sincronia com a batida eletrônica do funk —, e aparece Erick (protagonista do primeiro ato do filme), que se junta à performance de Aretha. Há um visível contraste entre a caracterização das duas personagens: enquanto o figurino e os adereços de Aretha remetem ao passado africano, as formas geométricas do figurino de Erick aludem ao futuro negro. Materializa-se, por meio das imagens (figura 3), a confluência temporal anteriormente sugerida na fala de Aretha: passado e futuro se encontram na construção do presente. 153 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza Figura 4: Erick e Aretha: futuro e passado - Fonte: Frame do filme Negrum3. As sequências que compõem essa parte do filme podem ser associadas a concepção filosófica ubuntu, segundo a qual toda a realidade está integrada. Portanto, a existência do indivíduo só tem sentido quando ele se insere em uma comunidade, trabalhando em conjunto com seus pares. Para Nogueira (2012), o sentido da palavra “ubuntu” alude àquilo que “é comum a todas as pessoas” A ética ubuntu é encontrada em inúmeras comunidades bontúfonas, o que permite concluir que o filme busca reconectar-se com o passado africano (2012, p. 148). Destacamos a referência a uma constituição social que remete às sociedades do continente africano, não como mera volta ao passado, mas como um processo de construção identitária importante no presente, para que se possa vislumbrar a perspectiva de um futuro melhor para os descendentes da população negra. Por meio da recuperação de conceitos e valores presentes na ancestralidade negra, propõe-se a possibilidade de reformulação do presente e do futuro. Nesse sentido, corrobora-se a ideia de que o cinema constitui uma prática epistemológica, que pode converter-se em “instrumento de superação do eurocentrismo, para além da tentativa de coisificação, imposta pela euroheteronormatividade” (PRUDENTE e PÉRIGO, 2020 p. 428). Ao tratar da epistemologia, Oliveira (2018) afirma que, como forma de produção de significado, ela é peça-chave na afirmação ou na negação de determinada cultura. Entendemos, pois, que reconhecer o CNB como produção epistêmica pressupõe 154 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza considerá-lo como relevante mecanismo de produção de signos acerca das negritudes no Brasil, por meio dos quais se propõe a afirmação da cultura de matriz africana ressignificada na diáspora, em um reencontro ancestral, que permite conjecturar novos processos de formação identitária e reconstrução de sociedade. O cinema que constrói mil nações O processo dialógico que ocorre em produções como NEGRUM3 constitui dimensões pedagógicas da pretagogia. Observamos que o Cinema Negro Brasileiro é uma arte que, por um lado, afirma a presença e a cultura negra e, por outro, questiona a estrutura de produção cultural e do saber. O filme, portanto, traz a compreensão de que as múltiplas expressões da sexualidade negra sempre existiram, o que permite vislumbrar um futuro no qual se rompe com os binarismos impostos pela colonialidade. Corrobora-se a ideia de uma ancestralidade negra travesti, em consonância com o pensamento de Oliveira (2020). Com base nessas considerações, reafirmamos que NEGRUM3 possibilita reformular a história negra e inserir a experiência de sexualidades dissidentes na construção de sua cultura. A ancestralidade torna compreensíveis as múltiplas experiências da população negra, no continente africano e toda a diáspora, permitem a reconfiguração do real, para conceber um mundo onde raça, gênero e sexualidade não se convertam em fatores de exclusão. Assim, trazer a imagens de pessoas LGBTQIA+ como pertencentes a uma ancestralidade negra permite, pois, o deslocamento do olhar, bem como a construção de nova lógica de compreensão das estruturas sociais, realçando o sentido pedagógico do Cinema Negro Brasileiro. Em Negrum3, Diego Paulino apresenta pensamentos e metodologias do Cinema Negro Brasileiro, trabalha em seus filmes narrativas ligadas à negritude e compõe uma experiência racial perpassada por uma sexualidade dissidente.Corpos que fogem à heteronormatividade predominante na sociedade e na produção cinematográfica brasileira, tomam o protagonismo da história do filme e reformulam a maneira como se apresentam ao público. Trazem à tona novas formas de viver e performar socialmente. São narrativas construídas a partir de novos referenciais, as quais ressaltam 155 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza como a negritude e a sexualidade interagem na construção da identidade e, embora retratem opressões, enaltecem subjetividades e corporeidades que fogem à norma social(MESQUITA, 2021). O cinema tem o potencial de produzir sentido, sua imagem em movimento pode realizar mudanças paradigmáticas, pela forma como se retratam determinados temas, possibilita inclusive novas relações temporais. Essa dimensão epistemológica do cinema é o que permite a reflexão do papel do CNB “enquanto agente de interação entre as representações reais e imaginárias” (PRUDENTE e PÉRIGO, 2020, p. 423) da população negra, instaurando sua dimensão pedagógica, no sentido de que ele tem a capacidade de construir novos conhecimentos. A dimensão pedagógica do CNB dota o espaço escolar de novos mecanismos de discussão das relações étnico-raciais. Esta vertente do cinema coloca o negro em destaque e questiona o lugar ocupado por ele na sociedade. Edifica uma filmografia que humaniza a população negra. “Esta relação étnico-cinematográfica da africanidade traz o negro em primeiro plano, desarticulando o processo eurocêntrico de massificação, descolonizando hábitos e conceitos” (PRUDENTE e PÉRIGO, 2020, p.427). Referências ALMEIDA, Rogério de. CINEMA E EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS E PERSPECTIVAS. Educação em revista, v. 33, 2017. ARAUJO, Joel Zito. O Negro na TV pública. 1. ed. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2010. CARVALHO, Noel dos Santos. Cinema e representação racial: o cinema negro de Zózimo Bulbul. São Paulo, tese de doutorado em sociologia, FFLCH-USP, 2006. CARVALHO, Noel dos Santos; DOMINGUES, Petrônio. DOGMA FEIJOADA A INVENÇÃO DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO. Disponível em: https://www. scielo.br/j/rbcsoc/a/F8PqhJ4SqNGnhnjdJhKYpVK/?format=pdf&lang=pt >. Acesso 24 maio 2022. DA-RIN, Silvio. Espelho Partido – tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004. 156 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza DE, Jéferson; CARVALHO, Noel dos Santos. Dogma feijoada: o cinema negro brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005. FRANÇA, Lecco. NEGRUM3, uma celebração de corpos pretes em dissidência. Disponível em: < https:// revistaafirmativa.com.br/3625-2/. Acesso 27 abr. 2022. FREITAS, Kenia. SOUZA, Edileuza Penha. O sacrifício da mulher negro no cinema afrofuturista– Distopia, morte e renascimento. In: Avanca/Cinema. Avanca: Edições cine-clube de Avanca, 2018. FRESQUET, Adriana. MIGLIORIN, Cesar. Da obrigatoriedade do cinema na escola, notas para uma reflexão sobre a lei 13.006/14. Cinema e educação: a lei, v. 13, p. 4-21, 2015. GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petropólis, RJ: Vozes, 2017. IVO, Pedro. Narrativas Afrobixas. Editora Appris, 2020. LIMA, Heloisa Pires. Prefacio. In: PETIT, Sandra Haydée. Pretagogia: Pertencimento, Corpo-Dança Afroancestral e Tradição Oral - Contribuições do Legado Africano para a Implementação da Lei da 10.639/03. Fortaleza: EdUECE, 2015. LUZ, Narcimária Correia do Patrocínio. Abebe: a criação de novos valores na educação. SECNEB, 2000. MENDONÇA, André; SOUZA, Edileuza Penha de. Percepções do clássico Alma no Olho e o cinema negro de Zózimo Bulbul. In: Avanca/Cinema. Avanca: Edicçõescine-clube de Avanca, 2020. MESQUITA, Marcus Vinicius Azevedo de. Corpos negros fora do armário: potencialidades pedagógicas dos filmes Negrum3 e O Arco do Tempo. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) — Universidade de Brasília, Brasília, 2021. NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva SA, 2016. NOGUERA, Renato. Ubuntu como modo de existir: elementos gerais para uma ética afroperspectiva. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/ as (ABPN), v. 3, n. 6, p. 147-150, 2012. 157 negrum3 Marcus Vinicius Azevedo de Mesquita, Edleuza Penha de Souza OLIVEIRA, Eduardo. Epistemologia da ancestralidade. Disponível: https:// filosofia-africana. weebly. com/textos-diaspoacutericos. html. 2018. OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes. Nem deusa, nem louca, nem feiticeira, nem criminosa: ancestralidade negra travesti em África e na diáspora!. In: RODRIGUES, Alexsandro; CAETANO, Marcio; SOARES, Maria da Conceicão Silva. Queer (i) zando Currículos e Educação: narrativas do encontro. Editora Devires, 2020. PETIT, Sandra Haydée. Pretagogia: Pertencimento, Corpo-Dança Afroancestral e Tradição Oral - Contribuições do Legado Africano para a Implementação da Lei da 10.639/03. Fortaleza: EdUECE, 2015. PRUDENTE, Celso Luiz; PÉRIGO, Agnaldo. A dimensão pedagógica do Cinema Negro na percepção do etnoletramento em educação básica. Amazônica-Revista de Antropologia, v. 12, n. 1, p. 419-444, 2020. SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez Editora, 1995. SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes; 2009. SOUZA, Edileuza Penha de. Cinema na Panela de Barro: Mulheres Negras, narrativas de amor, afeto e identidade, 2013. Tese (Doutorado em Educação), Universidade de Brasília (UnB). Brasília, 2013. VIDARTE, Paco. Ética bixa. Proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. Tradução: Pablo Cardellino Soto e Maria Selenir Nunes dos Santos. São Paulo: n-1 edições, 2019. 158 Carolina Maria de Jesus: educação para a resistência Michelle Júlia de Sousa1 Hugo Cesar Bueno Nunes2 Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos3 1 Michelle Júlia de Sousa, ORCID: https://orcid.org./0000-0002-5787-3174 Universidade de São Paulo/Faculdade de Educação - FEUSP Doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo na área de Educação e Ciências Sociais: Desigualdades e Diferenças. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Lavras. Graduada em Ciências Biológicas - Tem desenvolvido trabalhos na linha de Formação de Professores, Ensino de Ciências, Educação Ambiental e Sociologia da Infância. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4084673047601549 E-mail: michelle_sousa@usp.br 2 Hugo Cesar Bueno Nunes, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5143-6339 Faculdade SESI de Educação (FASESP) Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo - USP. Coordenador de Graduação - Licenciaturas - Faculdade SESI de Educação/FASESP. Coordenador do Grupo de Estudos da Diferença na Educação GEDE/FASESP. Lattes: Lattes: http://lattes.cnpq.br/0982033663220541. E-mail: hnunes@faculdadesesi.edu.br 3 Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos, ORCID: https://orcid.org/0000-00021861-0902 Universidade de São Paulo/Instituto de Estudos Avançados Pedagogo e Psicanalista. Sócio(a) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Membro da Rede Nacional da Ciência para a Educação. Tem experiência na área de Educação, na intersecção entre Psicanálise e Educação. Atualmente é Editor da Revista Impressa Análises de discurso. Docente da Faculdade SESI de Educação. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3941575427040698. E-mail: dpestana@usp.br 159 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos Introdução “... não tenho força física, mas minhas palavras ferem...” Maria Carolina de Jesus Não obstante as mais diferentes problematizações passíveis de serem criadas, nos indagamos: como trazer à baila a condição do negro e sua história, sua cultura para o campo da educação formal? O quanto obras como a de Carolina nos propiciam retirar o véu que acoberta as mazelas que acometem muitos dos nossos estudantes por este Brasil a fora? Sabemos que apesar de fundamental, a Lei 10.639 que inclui o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira na educação básica, infelizmente, em muitas escolas passa ao largo, e são tratadas como perfumaria, principalmente no mês de novembro quando se comemora o dia da consciência negra. Neste diapasão, propomos intentarmos no campo da educação algumas nuances que nos atravessam neste tempo-espaço e que nos mantem imersos e vívidos nesta ambiência que compõe nossa vida-escola-educação. Destarte, quando colocamos uma lupa no campo de formação de professores e professoras, percebemos que embora a comunidade negra brasileira totalize mais de cinquenta e seis por cento da população, tal representatividade, principalmente da mulher e negra, não está presente nos referenciais de formação para docentes da Educação Básica, como afirma Santos (2009) não é possível existir qualquer espécie de conhecimento sem que haja e se valorize seus representantes e suas práticas sociais, pois é por esse caminho que o conhecimento ou a experiência de determinado grupo será reconhecido e/ou validado. Para Santos (2009), a colonização tenta transformar diferenças em desigualdades sociais, e o que encontramos hoje nos movimentos de luta da sociedade, são diferentes tipos de resistências, pluralidade social e cultural, o que certamente nos obriga a análises e avaliações mais complexas das diferentes interpretações e intervenções no mundo produzidas pelos diferentes tipos de conhecimentos. Assim, é a dominação epistemológica colonial que traduz relações profundamente desiguais do ser, saber, e poder, suprimindo historicamente saberes outros dos povos e/ou nações que foram colonizados, explorados e que tiveram suas 160 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos identidades ofuscadas, ou mesmo, degeneradas. Com a falta de referencial africano e afro-brasileiro no currículo dos cursos de formação docente, há uma perpetuação de um referencial predominantemente eurocentrado, o qual produz práticas pedagógicas na educação básica que em grande parte ignora e perpetua o apagamento de nossas raízes. Em contraponto a este paradigma que permeiam nossas escolas, concordamos com hooks (2020) quando defende uma educação que inclua autores e autoras negras, principalmente mulheres, visto que a educação como prática de liberdade só será possível quando os/as docentes incorporarem em suas práticas a possibilidade de formar seus/ suas estudantes valorizando o multiculturalismo, sendo assim, corroborarmos com a autora quando afirma que “é preciso instituir locais de formação onde os professores tenham a oportunidade de expressar seus temores e ao mesmo tempo aprender a criar estratégias para abordar a sala de aula e o currículo multicultural” ( p.52). Para Moreira e Candau (2008) quando defendemos o multiculturalismo em educação, estamos a nos posicionar de forma incisiva a favor da luta contra a opressão e a discriminação que certos grupos minoritários têm sido submetidos ao longo do tempo por grupos mais poderosos e privilegiados, além do envolvimento em ações politicamente comprometidas. Outra perspectiva que nos saltam aos olhos, como bem descreveu Silva (2010) é referente a discriminação racial presente nos livros didáticos na educação básica brasileira. É nítido como os currículos e não obstante as práticas pedagógicas, são marcados por valores colonizadores que ignoram, ocultam, excluem e degeneram toda perspectiva das diferenças, tendo na relação do binarismo cartesiano da ciência moderna seu principal ponto de apego, e assim, valorizando apenas o homem, branco, cristão, cis hétero, como sendo a norma e o modelo de humanidade a ser seguido. Essa lógica é reproduzida também em relação ao gênero, visto que os autores dos livros didáticos também em sua maioria são homens. Assim, retomando hooks (2020) não podemos perder de vista que raça, gênero e classe são categorias interseccionais, temas que atravessam e são atravessados pelo sexismo colonial. Para Silva (2010), a falta de representatividade de negras e negros nos livros didáticos produz um sentimento de rejeição inconsciente, um tipo de saber que humilha, levando os/as sujeitos envolvidos a se apegar a estereótipos padronizados. 161 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos O livro didático ao veicular estereótipos que expandem uma representação negativa do negro e uma representação positiva do branco, está expandindo a ideologia do branqueamento, que se alimenta das ideologias, das teorias e estereótipos de inferioridade/superioridade raciais, que se conjugam com a não legitimação pelo Estado, dos processos civilizatórios indígena e africano, entre outros, constituintes da identidade cultural da nação (SILVA, 2010, p. 17 apud SILVA, 1989, p. 57). Ao privar os grupos minoritários de conhecer, entender e refletir sobre sua história, seu povo, suas raízes, a escola introjeta a ideia de que só existe um tipo de cultura, de religião, de povo ou mesmo de realidade. Quando usamos a expressão “grupos minoritários” nos lembramos de um trecho da música do rapper Baco Exu do Blues4 que problematiza essa questão da seguinte maneira “[...] O Brasil tem uma população de negros maior que a de brancos, temos menos valor por ser maioria? A ironia da maioria virar minoria” (BACO EXU DO BLUES, 2018). Nesse sentido, a falta de autoras negras nos livros utilizados nas escolas faz parte de uma conjuntura do racismo estrutural que embrenha a sociedade, que invisibiliza uma população que é maioria, convertendo-a em minoria. Fanon (1952) na obra “Pele Negra, Máscaras Brancas” descreve que a primeira forma do colonizador devastar uma cultura é privando um povo de sua linguagem, pois ao perder sua referência de comunicação, sua história, as pessoas negras se convencem de que aquela outra língua, aquele outro costume é melhor, e mesmo a cor de sua pele não está à altura de viver em uma sociedade cujos valores são europeus. Portanto, expressão é pertença. Nessa direção Maria Carolina de Jesus denuncia as iniquidades sociais e o total desamparo de um Estado negligente traçando uma analogia de cor com a fome: Eu sou negra e a fome é amarela e dói muito [...] A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago. [...] Resolvi tomar uma média e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, 4 Baco Exu do Blues. Bluesman. Bluesman. São Paulo, Selo EAEO Records, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-xFz8zZo-Dw&ab_channel=999. Acesso em: 26/02/2023 162 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos (JESUS, 2014 p. 44). Ao se deslocar de sua cultura para se inserir na cultura europeia o/a negro/a não se vê acolhido pelos/as brancos/as e ao retornar para sua comunidade também não é acolhido pelos seus pares, pois já perdera a identidade de sua origem e não se encaixa na nova realidade, vivendo um processo de solidão (FANON, 1952). Entretanto, no Brasil, há resistência (re-existência) na poesia expressa em música, na literatura, no audiovisual, como visto nas artes de Baco, Carolina e Jeferson De, os quais produziram em diferentes linguagens, um fluxo de possível para que possamos nunca mais esquecermos de onde viemos e principalmente, não matarmos em nossos estudantes suas mais difusas identidades. Muitas das nossas produções e artistas reconhecidos internacionalmente, nascem dentro da cultura negra, como exemplos temos o samba, o rap, o funk, o slam etc., nos provando diariamente a qualidade de tais produções. Mas ainda assim, nos questionamos: qual o espaço que as mulheres negras têm nestes campos? Como as mulheres negras têm se expressado e sido valorizadas pela sua arte historicamente? Entendemos que por meio da cultura de branqueamento as crianças negras introjetam desde muito pequenas que sua cor, seu cabelo é feio, sujo e que querem ter traços brancos para se identificarem com o que lhes é apresentado como bom, certo, limpo pela sociedade. É apresentado às crianças negras uma estética branca, privando-as de se desenvolverem a acessarem aspectos e características artísticas, lúdicas e culturais que valorizem suas histórias, suas realidades e/ou mesmo suas ancestralidades. Para Oliveira (2004), as crianças negras são maltratadas desde a creche, e assim, tem dificuldades para construir uma autoimagem positiva, enfrentando comportamentos racistas com os adultos desde o início de sua socialização, aspecto que só reforça o apagamento de certas identidades que não se afinam com o paradigma que orienta nossa sociedade e muitas das instituições de ensino. A educação no Brasil é um campo de disputa de narrativas para valores éticos, políticos e estéticos constante, assim, a luta permanente caracteriza a construção efetiva de uma educação que seja de fato justa, equânime e igualitária para todos e todas. Para Silva (2010) o fato de as instituições escolares oferecerem ou não oportunidades de acesso e permanência de maneira diferenciada contribui para maior 163 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos evasão da população negra, aumentando o abismo social existente historicamente. O mapa da desigualdade de 2020, realizado pela Rede Nossa São Paulo e pelo Programa Cidades Sustentáveis exprime as desigualdades escancaradas nos distritos e capital paulista, o documento apresenta diversos indicadores que analisa dados de 2012 a 2019, entre eles direitos humanos, meio ambiente, população, educação, saúde, cultura, renda, acesso a transporte, entre outros5. O processo de socialização e silenciamento das crianças negras encontra eco na atuação de muitos e muitas docentes na educação básica. Assim, é urgente tratarmos destas questões nos mais diferentes espaços de formação de professores/as e, para isso, lançarmos mão de obras literárias, audiovisuais que denunciem as mazelas do povo pobre e negro deste país, faz-se imprescindível pela sua capacidade de sensibilização e descrição da realidade como ela é. Porém, este movimento não é fácil e muito menos simples, como reafirmam Abramowics; Rodrigues; Cruz (2011) quando buscamos mudar as relações dentro da escola no que concerne a valorização da cultura negra, precisamos mudar todo o caráter desta iniciação e fazermos mudanças em nós mesmos. O Racismo, o preconceito, toda uma micropolítica fascista que exclui a diferença, colocando-a no lugar do desvio, do negativo, dá certo, pois cada um de nós trabalha ativamente em favor desta lógica. Carolina Maria de Jesus: ética, estética, política de uma resistência “…O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças” Carolina Maria de Jesus Carolina Maria de Jesus nasceu no sudeste de Minas Gerais, na cidade de Sacramento, no dia 14 de março de 1914. Era neta de escravizado e filha de uma lavadeira, teve sete irmãos. Já na infância trabalhava para contribuir com a renda familiar. Na formação escolar estudou até o segundo ano primário no colégio Alan 5 Entre a multiplicidade de dados apresentados, é importante destacarmos alguns: na cidade de São Paulo em média 2 pessoas para cada dez mil habitantes sofreram violência de racismo e injúria racial, um aumento de 35%, a violência contra as mulheres aumentou 64%, número que salta de 50.566 para 83.001, os casos de feminicídio aumentaram 72% na mesma época. No que diz respeito à renda, a média das famílias ricas é 3,6 vezes maior do que a média das famílias mais pobres, sendo um valor de R$ 9.591,93, para o distrito de Alto de Pinheiros e R$ 2.628,63, para Lajeado. 164 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos Kardec, sua passagem rápida pela escola se deu por incentivo de uma das clientes de sua mãe e foi interrompida devido às necessidades de sua família, que precisou mudar diversas vezes, sua história é atravessada pela fome. “É um dia simpático para mim. É o dia da abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. [...] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual - a fome!” (JESUS, 2014. p. 32). Mudou-se para Franca-SP com sua família em 1930, e em 1948 foi morar na favela do Canindé na capital paulista. Ganhava seu sustento e de seus três filhos catando papel. “Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha. Parece que vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato felicidade.” (JESUS, 2014. p. 81). Carolina usava os cadernos que encontrava no lixo para escrever sobre seu cotidiano e pensamentos6. Dessa forma, a obra “Quarto de despejo” surge como uma análise da desigualdade social que estabelece a posição da autora na obra como, mulher, negra, pobre, periférica e de baixa escolaridade e denuncia, enquanto o centro da cidade é a sala de visitas, a favela é o quarto onde se joga o indesejável, o entulho, tudo aquilo que se quer esconder. Sua escrita, no entanto, é sua forma de se recusar a ser “despejo”, a ser “resto”. “...O senhor Dario ficou horrorizado com a primitividade em que eu vivo. Ele olhava tudo com assombro. Mas ele deve aprender que a favela é o quarto de despejo de São Paulo. E que eu sou uma despejada” (JESUS, 2014. p. 147). Carolina ao longo de sua obra traz reflexões sobre o lugar da mulher negra na sociedade, e de como ela tem consciência de que a solidão traz alguma proteção frente a violência de ser solo, criando e educando seus três filhos sozinha, sem um marido ou homem que a violenta e lhe faça mal, compara sua vida com a de mulheres que são casadas e violentadas ao longo de todo o livro. [...] Elas aludem que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas têm marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. [...] Os meus filhos não são sustentados com pão da igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pedem socorro eu tranquilamente no meu 6 Em 1958 o jornalista Audálio Dantas, repórter da Folha da Noite, foi até a favela do Canindé para fazer uma reportagem e encontrou Carolina, que lhe apresentou suas anotações, que se tornaram um livro. Em 1960 Quarto de despejo foi lançado e vendeu mais de cem mil exemplares, foi um grande sucesso e marca da literatura no Brasil, Carolina Maria de Jesus foi uma das escritoras brasileiras mais expressivas, seu livro foi traduzido para mais de dez idiomas (DANTAS, 1993). 165 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos barracão ouço valsas vienenses. [..] Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas (JESUS, 2014. p. 16). Interessante observar que a esquizofrenia das relações de gênero é bem descrita em o quarto de despejo conforme acima referenciado, para além da confusão capitalística em associar o amor feminino ao trabalho não remunerado, há uma responsabilização da mulher para todas as áreas da vida masculina, a mulher passa a ser a “provedora” da existência do homem. De qualquer modo, é sempre a mulher que sofre mais com o caráter esquizofrênico das relações sexuais, não apenas porque chegam ao final do dia com mais trabalho e mais preocupação nas costas, mas também porque recai sobre elas a responsabilidade de fazer a experiência sexual prazerosa para o homem. Esse é o motivo pelo qual mulheres costumam ser menos sexualmente responsivas que homens. O sexo é trabalho para elas, é um dever. O dever de agradar é tão construído em sua sexualidade que aprendem a ter prazer em dar prazer, em provocar os homens e excitá-los. Pelo fato de se esperar que proporcionem uma libertação, inevitavelmente se tornam o objeto sobre o qual os homens descarregam sua violência reprimida. São estupradas, tanto na própria cama quanto na rua, precisamente porque são configuradas para serem provedoras da satisfação sexual, as válvulas de escape para tudo o que dá errado na vida dos homens, e os homens têm sido autorizados a voltar seu ódio contra elas se não estiverem à altura do papel, particularmente quando se recusam a executá-lo (FEDERICI, 2019, p.56/57) A autora também denuncia o descompromisso com a paternidade que ela vivencia com o progenitor de sua filha mais nova, pai de Vera: Fui na tesouraria para receber o dinheiro. Quando chegou a minha vez não encontrei o dinheiro. A Vera queria comprar um vestido. Eu disse-lhe que o seu pai não havia levado o dinheiro. Ela ficou triste e disse: - Mamãe, o meu pai não presta! (JESUS, 2014. p. 166) A postura dos homens relatada pela autora revela a condição de violência vivenciada pelas mulheres no Brasil, e escancara a falta de intervenção do Estado com a criação de políticas públicas para oferecer suporte e acolhimento para as mães solo 166 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos deste País. As situações narradas por Carolina nos levam a refletir e discutir o contexto da mulher, mãe solo, negra em uma sociedade patriarcal, sexista, cujos valores estão alicerçados na inferiorização e abandono da mulher negra. No Brasil, de acordo com os dados levantados pelo IBGE em 2018, o número de mães chefes de família era de 11 milhões, sendo a maioria negras, 61%. De acordo com a Síntese dos indicadores Sociais do IBGE, 63% dessas famílias estão abaixo da linha da pobreza com cada componente vivendo com aproximadamente R$ 145,00 por mês. Esses dados revelam a atualidade da obra de Carolina, escrita entre os anos de 1950 e 1960 e mostra a realidade perversa que o/a pobre, negro/a, periférico/a enfrenta nesse País historicamente desigual. A solidão e o preconceito que Carolina e todas as mulheres que como ela sustentaram e sustentam seus lares, que experienciam a ausência e/ou abandono de seus companheiros desde muito novas é apontada por Fanon (1952) que discute o desejo pelo branqueamento que negros e negras têm ao buscarem se envolver com brancos/as, trata do sentimento de inferioridade em relação aos brancos/as e como isso é sintoma histórico, “Embranquecer a raça, salvar a raça, mas não no sentido que poderíamos supor: não para preservar “a originalidade da porção do mundo onde elas cresceram”, mas para assegurar sua brancura” (FANON, 1952, p.57), que mesmo quando a mulher negra se envolve com o homem branco, não se casa com ele, é com a mulher branca que o branco vai se casar. Todas essas mulheres de cor, desgrenhadas, à caça do branco, esperam. E certamente um dia desses se surpreenderão não querendo mais se atormentar, mas pensarão “em uma noite maravilhosa, um amante maravilhoso, um branco”. Porém também elas talvez compreendam um dia “que os brancos não se casam com uma mulher negra.” Mas aceitam correr o risco, porque precisam da brancura a qualquer preço (FANON, 1952, p.59). hooks (2000) em sua forte e arrebatadora obra “Vivendo de amor” escreve como a escravização do povo negro criou barreiras para o desenvolvimento da afetividade e de como isso é fortemente marcado nas mulheres negras, que vivem uma solidão constante desde a infância e quando adultas reproduzem a postura que foram ensinadas, 167 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos a autora discorre como a falta de afeto para as mulheres as impedem de conhecer e viver o amor, aponta caminhos para o autoconhecimento e o desenvolvimento do amor interior. É necessário discutir também os papéis de gênero presentes na sociedade e de como o racismo está intimamente ligado ao machismo, hooks (2019) aborda que o machismo molda e determina diferentes relações de poder e que o sexismo presente na sociedade “[...] criam barreiras nocivas entre as mulheres”, alimentando um sistema patriarcal que domina e oprime as mulheres negras, que dificulta a luta por alcance de direitos que possibilitam a construção de uma vida digna, onde a supremacia branca define as relações e interações entre os diferentes grupos. Davis (2016) discute como a escravização dos corpos negros definiram a maneira pela qual a mulher negra foi desumanizada, e de como o racismo atravessa as relações na sociedade. hooks (2019) ao tratar da importância de uma educação libertadora demonstra preocupação para a formação de professores/as negros/as comprometidos com a construção de uma educação crítica, pois, ela compreende que os estabelecimentos de ensino superiores oferecem uma formação que fortalece a manutenção da dominação branca. Nessa mesma direção, Gomes (2009) reflete que esse cenário no Brasil, muda com a inserção de intelectuais negros/as nas Universidades, possibilitando maior espaço para o debate e, consequentemente, colaborando para uma outra formação de professoras e demais profissionais demandando pesquisas que revelam compromisso social e acadêmico com os movimentos sociais. Carolina foi e continua sendo uma autora muito fecunda para além do Quarto de Despejo, sua produção conta com romances, contos, poemas, e, além daqueles que foram publicados, inclusive depois de sua morte, como Diário de Bitita, ainda há milhares de páginas de material inédito de Carolina a serem dissecados, entre eles, romances, poemas e crônicas Em todo esse trabalho, a escritora deixou marcada uma visão particularmente Caroliniana do mundo e de uma sociedade desigual, que pode ter se transformado de sua época para cá, mas que persiste discriminando, isolando e assassinando a população negra e periférica. O mapa da desigualdade no Brasil de 2020 apresenta um aumento de 67% no número de pessoas vítimas de violência racial, segundo o Fórum Brasileiro de 168 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos Segurança Pública em parceria com a Unicef, em 2019 quase 5 mil crianças e adolescentes foram mortas de forma violenta no País, esses dados são referentes a 21 estados. Na escrita, Carolina pôde expressar a voz que era negada a quem vivesse em suas condições. Uma voz que, apesar de todas as dificuldades, preconceito e do insistente esquecimento que se estende até os dias de hoje, persiste como a base de uma obra autêntica e importante, mas, sobretudo, humana e legítima. Considerações finais A obra literária, Quarto de despejo, tanto quanto o documentário, Carolina, traz por meio de relatos e algumas cenas uma visão singular da potência que foi Maria Carolina de Jesus frente aos desafios impostos pela sua condição de vida, como acenamos no início deste texto, Maria Carolina de Jesus tinha uma fome existencial intensa, inconformada pela condição social que lhe vestia, porém, limitada muitas vezes em suas ações devido a sua condição de moradora de uma favela. Mas como bem demonstra o documentário de Jeferson De, sobre a vida e obra de Maria Carolina, viver em condições precárias não foi limitador para que ela pudesse se destacar como uma escritora preta e reconhecida internacionalmente. Quando cotejamos seus escritos com o campo da educação, vemos uma preocupação inerente por parte da autora, com a educação de seus filhos. No diário, Carolina demonstrava uma preocupação constante com a educação das crianças, mesmo não considerando sua condição de vida digna, se mostrava preocupada em fornecer e apoiar com frequência a vida escolar de seus três filhos. “O José Carlos não quer ir à escola porque está fazendo frio e ele não tem sapato. Mas hoje é dia de exame, ele foi. Eu fiquei com medo, porque o frio está congelando. Mas o que hei de fazer?” (JESUS, 2014 p. 66) Em muitas passagens ela chamava atenção para a leitura, domínio das contas e mesmo quando estavam doentes, não deixava que faltassem em dia de testes, “...Eu estou contente com os meus filhos alfabetizados. Compreendem tudo. O José Carlos disse-me que vai ser um homem distinto e que eu vou tratá-lo de Seu José. Já tem pretensões: quer residir em alvenaria” (JESUS, 2014 p. 140). A obra “Quarto de despejo”, em seu caráter pedagógico revela como a autora chama atenção acerca da educação, escreve com uma consciência que revela a indignação 169 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos com a falta de assistência dos adultos em expô-la a situações constrangedoras, ou mesmo quando são agredidas física e verbalmente pelos/as adultos/as em situações que ela considera desnecessária. “A Silvia e o esposo já iniciaram o espetáculo ao ar livre. Ele está lhe espancando. E eu estou revoltada com o que as crianças presenciam, ouvem palavras de baixo calão, Oh! se eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais decente” (JESUS, 2014. p. 94). A autora, ao longo de sua obra desperta a reflexão para uma formação crítica, cidadã das crianças, em qualquer que seja a prática pedagógica se apoiando em seus escritos, os princípios da autora produzirão uma educação justa, equânime e igualitária pois colaboram para uma reflexão importante da organização da sociedade em seus mais variados aspectos. Diante disso, compreendemos que trabalhar com a literatura de Carolina na Educação Básica por meio das mais diversas estratégias é uma condição privilegiada para produzir pensamentos mais afeitos às diferenças e de antemão, valorizar as diferentes culturas que compõe nossa sociedade. Portanto, faz-se urgente oportunizar espaço e tempo para debates relevantes em torno da presença da mulher negra, periférica e escritora, para que os estudantes aumentem a capacidade de expressão e percepção do mundo, através da sensibilidade, dando ênfase ao respeito e empatia, a fim de combater o racismo. Nesse sentido, na tentativa de suprir essas lacunas na formação docente, foi sancionada a Lei 10.639/2003 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e instituiu a presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” nas instituições de ensino, uma lei que representa a luta e a vitória do movimento negro para ter sua história lida e reconhecida pela sociedade brasileira. A Lei é reforçada no texto das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, 2004. Esses documentos possibilitam que este conteúdo seja trabalhado nas instituições de ensino e oferecem bases para que trabalhadores da educação possam se orientar para desenvolver suas aulas e atividades de ensino. Nessa perspectiva, consideramos que a obra de Carolina e o documentário de mesmo nome, contribui para o engajamento de uma educação igualitária, proporcionando caminhos para o alcance de uma educação como prática de liberdade (hooks, 2020) e ao propor que sua obra seja adotada na educação básica, nos baseamos 170 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos na necessidade de haver mais obras voltadas para construção da identidade negra e feminina no repertório escolar do País. E ainda, flertamos com a proposta de Souza (2016) que ao desenvolver sua tese propõe uma metodologia de ensino baseada na lógica exúlica7, a qual busca trazer os diálogos da margem para o centro do debate como um aspecto fundamental, o qual poderá contribuir com justiça cognitiva para uma educação que se pretenda efetivamente igualitária. Referências ABRAMOWICZ, A.; RODRIGUES, T. C.; CRUZ, A. C. J. A diferença e a diversidade na educação. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFScar, São Carlos/SP, v. 2, n. 2, p. 85-97, jul./dez., 2011. ACAYABA, CÍNTIA; REIS, THIAGO. Brasil teve quase 5 mil mortes violentas de crianças e adolescentes em 2019; 75% eram negros, revela Anuário. G1, 18/10/2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/18/brasil-tevequase-5-mil-mortes-violentas-de-criancas-e-adolescentes-em-2019-75percent-eramnegros-revela-anuario.ghtml>. Acesso em: 27/02/2023. Baco Exu do Blues. Bluesman. São Paulo, Selo EAEO Records, 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-xFz8zZo-Dw&ab_channel=999>. Acesso em: 26/02/2023. BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de dezembro de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/ l9394.htm>. Acesso em: 25/03/2023. BRASIL, Parecer CNE/CP n.º 3, de 10 de março de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana, 2004, Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/ cnecp_003.pdf>. Acesso em: 25/03/2023. 7A lógica exúlica está ligada a cosmologia africana, a qual não separa o sagrado do cotidiano, à medida em que se mantém vivos e mortos unidos na comunidade. Esta lógica não permite o pensamento binário, pois se estrutura nas singularidades e peculiaridades próprias da ancestralidade inerente a cada pessoa, sendo a ancestralidade quem faz o ser humano ser uno e múltiplo na lógica exúlica (SOUZA, 2016). 171 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos JEFERSON DE. CAROLINA (Brasil, 2003, Cor, 14´): Direção: Jeferson De. DANTAS, AUDÁLIO. Prefácio. In: JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo, Ática, 2014. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. FANON, FRANTZ. Pele negra máscaras brancas. Salvador, EDUFBA: 2008. FREDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019. GOMES, NILMA LINO. Intelectuais Negros e Produção do Conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 419-443. hooks, bell. Vivendo de amor. In: WERNECK, J. O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas: Criola, 2000. ______. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019. ______ O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2019. JESUS, CAROLINA MARIA DE. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo, Ática, 2014. MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. (Org.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. OLIVEIRA, FABIANA DE. Um estudo sobre a creche: o que as práticas educativas produzem e revelam sobre a questão racial? (Dissertação Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos (UFScar), 2004. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/2555?show=full Acesso em: 20/02/2023. SANTOS, BOAVENTURA DE SOUSA; MENESES, MARIA PAULA. Introdução. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p. 9-21. 172 Carolina Maria de Jesus Michelle J. Sousa, Hugo C. B. Nunes, Douglas A. P. Santos SILVA, ANA CÉLIA DA. Ideologia do branqueamento. In: ______ Identidade Negra e educação. Salvador: Ianamá, 1989. _______. Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático. Salvador: EDUFBA, 2010. SILVA, VITÓRIA RÉGIA DA. Um retrato das mães solo na pandemia. Gênero e número. 18/06/2020. Disponível em: <https://azmina.com.br/reportagens/umretrato-das-maes-solo-na-pandemia/>. Acesso em: 27/03/2023. SOUZA, E. L. Experiências de infâncias com produções de culturas no Ilê Axé Omo Oxé Ibá Latam. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos (UFScar), 2016. Disponível em: https://repositorio. ufscar.br/handle/ufscar/7877 Acesso em: 30/03/2023. 173 Nosso olhar vem de longe: a estética existencial no filme Chikwembo (Moçambique) Júlio César Boaro1 Rogério de Almeida2 Nervosamente, eu sento-me à mesa e escrevo dentro de mim, Deixa passar o meu povo, “oh let my people go...” E já não sou mais que instrumento! (Noêmia de Sousa) “Só se pode subverter o real, no cinema ou alhures, se se aceita, antes, todo o existente, pelo simples fato de existir.” (Eduardo Coutinho) Introdução ou ligando o cinematógrafo Ao pensarmos em cinema africano, podemos incorrer num erro, o de generalizar um imenso continente com um único tipo de produção fílmica; o mais correto seria nos referirmos a cinemas africanos, dada a multiplicidade e complexidade de cada sociedade ou país. No mundo contemporâneo, devido à influência de três grandes áreas do conhecimento – antropologia, etnologia e linguística –, procurou-se uma abertura 1 Especialização em Arte e Educação Arizona State University - (ASU). Mestre em Educação (USP). Doutorando em Educação (USP). Bolsista CNPq. 2 Prof. Titular da FEUSP, coord. do Lab_Arte e bolsista produtividade CNPq. 174 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida maior para a compreensão dos outros povos não euro-norte-americanos e, referindose ao continente africano, tal “abertura para o outro” deveu-se principalmente a Marcel Griaule, e seus estudos sobre o povo Dogon (do Mali), na década de 1930. Mas a abertura para a compreensão do outro não significa apenas uma tolerância no sentido de uma obrigatoriedade da aceitação por questões iluministas, e sim uma compreensão de que, no fundo, há algo muito semelhante entre eles e nós, não no sentido de uma descendência étnica comum, mas no sentido de que, independente do tempo histórico e da localização geográfica, há algo de humano que compartilhamos mesmo sem o saber: o conceito de liberdade, a ideia de deus, a relação entre homem e natureza, o significado de uma obra artística, o amor entre pais e filhos, entre tantas outras características em comum. Quando falamos de arte, adentramos um dos campos mais complexos e difíceis de definir. Este conceito carrega consigo toda uma carga de história cultural, normas e formas (inclusive formas de olhar), que faz com que haja discordâncias perenes, que podem avizinhar-se, caso cuidados não sejam tomados e não sejam afastados preconceitos a respeito do modo de ser e estar de outros indivíduos, e quando se trata de produção artística de outras sociedades, muitas vezes distantes no tempo e espaço, tais conceitos antecipados de compreensão correm o risco de desembocar em rios caudalosos de rejeição e hierarquização de valores. Imaginemos nossa educação estética como um barco. Este barco foi fabricado por normas e ideias bem definidos, como as normas europeias de arte. Nele carregamos nossa forma de ver o mundo artístico navegando por rios ou mares que nos mostram paisagens que acostumamos a chamar de belas, porque assim nos foi ensinado e passamos a gostar delas. Muito distante está um farol que nos guiará nas noites em que a razão perde momentaneamente seu rumo e faz com que o barco (nossa sensibilidade estética) corra o risco de abalroarmos pedras ou bancos de areia que não estavam em nosso mapa, então nos desviamos dizendo “isto é belo” ou “isto não é bonito, não é arte”. As medidas nas quais o barco foi planejado e construído habilmente foi-nos passada pelos cânones de arte e instituições sociais (entre elas, a escola). Mas e se num determinado momento desta viagem (poderíamos fazer uma alusão à vida?) nosso barco desvia-se do rumo, por vontade dos ventos (forças da natureza), ou por volição de seu comandante (nós mesmos), e adentramos por “mares nunca dantes navegados” (como diria Camões) 175 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida e começamos a ver paisagens diferentes das que nos acostumamos a observar, e se, ao invés de usarmos a fácil dicotomia do belo/feio, simplesmente suspendêssemos nossas noções de navegação estética (desligássemos os aparelhos de posicionamento), diminuíssemos a velocidade da navegação e permitíssemos olhar o que a nova paisagem nos mostra? “Se te fores à Ítaca, procura demorar-te ao máximo” diria Kavafis em seu poema3. O demorar traz consigo a capacidade de uma maior observação, mas há algo mais que o vagar também nos sugere: a apreciação. Permitir que os sentidos tomem os rumos do caminho, que os detalhes nos penetrem pela afetividade pode proporcionar uma mudança de norte, talvez até então não pensada. Mas este maravilhamento não é fácil: se estamos acostumados a achar belo a estética, a forma e os efeitos dos cinemas europeu, norte-americano ou asiático, como poderíamos usar o mesmo conceito para compreender a cinematografia africana? Achar belo ou não, não se trata de uma obrigação, a arte não pode ser imposta como uma norma ou lei que precisa ser cumprida, mas é o espírito e a razão sensível que nos permitirá uma compreensão da arte como expressão de um artista ou de uma sociedade. Ao ancorarmos nosso barco de referenciais euro- ocidentais, podemos descer, sentir a leveza que a água do mar nos proporciona, e adentrarmos a paisagem estranha a nós e, para isto, podemos ter como norte alguns caminhos. De maneira mais objetiva, para penetrarmos nos domínios da produção artística africana, primeiro deveremos entender por que o que se produziu e se produz na África pode ser considerado arte e, principalmente, porque os filmes africanos estão dentro desta categoria. Esta arte a qual faremos referência não se trata da arte moderna ou contemporânea da pintura ou escultura, mas sim a uma produção ligada à cultura e à história dos filmes de Moçambique que não se fixa somente em sua experiência de resistência à opressão colonial, mas também baseada em valores como o mito, a cosmogonia, a espiritualidade, as diferenças sociais, a questão da sustentabilidade e de relacionamentos familiares. Desde que o homem europeu adentrou a África Austral, onde se situa nosso objeto de estudo, o olhar para com os africanos desta região era de superioridade. Esta região era tida como a terra dos idólatras, e que deveria ser convertida à religião cristã. Religiosidade e ideologia andam lado a lado, e em alguns momentos, confundem-se, e ambas podem servir como instrumentos de dominação e controle. Arqueologicamente, 3 Konstantínos Kaváfis, poeta grego, (1863-1933), trecho do poema, “Se te fores à Ítaca”. 176 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida os primeiros objetos encontrados na África subsaariana foram considerados como “ídolos”, cuja utilidade, segundo o pensamento cristão, era servir para práticas maléficas. Até hoje, parte das obras que se produz na África, quando foge a determinados cânones artísticos ocidentais, é considerada com função exclusivamente de adoração espiritual. Em cinco séculos de contato dos europeus com os subsaarianos, a arte africana passou por várias etapas de desprezo e inferiorização. Para o pensamento eurocêntrico, a inferioridade de uma sociedade implica, necessariamente, a inferioridade de toda a sua produção artística, científica, filosófica e espiritual; naturalmente, o que se produzia no território negro não escapava a estes critérios. A arte africana ancestral e o cinema africano A avaliação dos cinemas africanos passou por diversas etapas, desde ser considerado como um produto de afirmação do colonizador, cinema de formas limitadas, alvo de sátiras, mostrando os africanos como exóticos e inumanos, até um cinema que merece integrar os grandes festivais mundiais. A maior parte da produção cinematográfica do continente africano carece de recursos financeiros, a exceção de África do Sul e Nigéria (no subsaariano), e de alguns países do norte e oeste da África de influência idiomática francesa, como o Mali e o Senegal. No caso de Burkina Faso, há uma idiossincrasia, pois este país pretendeu ser um dos polos desta arte no continente, e direcionava para isso recursos vultosos dentro de sua capacidade. Indo para a África Austral, no caso de Moçambique, os parcos recursos financeiros vêm desde governos das províncias, bem como financiados por institutos europeus, como Goethe Institut, ou de grupos cristãos (porém, estes financiam produções de costumes, como cuidados na prevenção de doenças e consumo de drogas), como produções independentes do cinema contemporâneo cujos recursos são dos próprios cineastas. Um exemplo é o grupo Afrocinemakers4. Em uma live e em vídeos de entrevistas com os cineastas, é mostrada que há, para os mais de vinte e dois jovens cineastas e a equipe de produção, apenas uma máquina fotográfica que é usada no modo gravação, um computador de mesa para a produção, e grande quantidade de improviso, como armas feitas de papelão, e microfones ambiente sustentados por 4 https://www.youtube.com/watch?v=6X0PD_A0GGI&t=73s&ab_channel=AFROCINEMAKERS 177 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida cabos de vassoura5, como está no vídeo de JJ Nota, um dos cineastas do grupo, intitulado “Como fazer um filme sem dinheiro”. Apesar destas dificuldades monetárias, este grupo produz uma grande quantidade de curta e média metragens. Da mesma maneira que a arte escultórica africana era acusada de ser inferior devido às técnicas utilizadas não serem iguais às europeias, o cinema de Moçambique também sofre esta crítica indigesta, porém, com um olhar mais apurado e despido de preconceitos, as técnicas cinematográficas dos cinemas europeus e norteamericano estão presentes nos filmes, mas isto não é o essencial, não se assiste a um filme de Moçambique, do Benim, de Angola ou de Gana com esta régua de medição, é preciso despir-se das roupagens tecnográficas e produzir uma desconstrução estética em seu ser para adentrar esta seara; consideremos três passos: desconstrução, desencanto e reconstrução. A desconstrução é saber que os filmes africanos do subsaara, em sua maioria, tratarão de questões relacionadas à cultura destes países, o que torna o espectador um viajante (por isso, a mitohermêneutica se faz presente). Ainda que seja possível fazer uma leitura cinematográfica com os conceitos conhecidos do cinema mundial (as técnicas e especialmente os cinco Cs6 da cinematografia), prender-se a fórmulas engajadas só nos fará perder parte, se não o todo do que será visto, por isso, o segundo passo é tão importante quanto este. Desencantar-se é retirar o encanto da estética, ou seja, descriar, fazer a mente e a compreensão criarem uma nova forma de ver a realidade a partir do ponto de vista daquelas pessoas (o ponto de vista do cineasta também traz consigo a forma de ver o mundo de sua população, à exceção daqueles que são formados em escolas europeias e tentam, a todo custo, produzir filmes com as fórmulas desta grande escola de cinema). Peguemos, por exemplo, o curta metragem Tlhuka (de Gil de Oliveira), também do grupo Afrocinemakers. Sem adentrar com profundidade na análise deste curta, que merece um artigo dedicado somente a ele, o que vemos. Um filme em preto e branco, duas mulheres como personagens principais (a mãe, cujo nome é Nothisso, e sua filha adolescente). O tom do preto e branco é mais escuro que o normal, e o filme é conto e poesia negro moçambicano em movimento, 5 https://www.youtube.com/watch?v=-Bd0O4bNGr0&ab_channel=AFROCINEMAKERS 6 Os cinco Cs da cinematografia são: corte, composição, close-ups, continuidade/câmera e ângulo. 178 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida com trilha sonora que lembra os antigos rituais ronga, idioma falado no filme, que é um dos quarenta e três idiomas de Moçambique. Não se encontra ali nenhum efeito especial, embora se utilize o recurso de vários ângulos (vertical, horizontal, inclinado, transversal e à distância). Penetrar nos costumes desta etnia nos levará a uma outra compreensão da arte do cinema, do diálogo entre as várias artes (poesia, artes visuais, arte sonora, literatura). Daí poderá vir o encanto, outra maneira de ler o visível e o que não se vê. Deste movimento, inicia-se o terceiro. A reconstrução do olhar estético para com o cinema austral africano nos remete a um conjunto de centenas de etnias, cujos filmes não são em grande parte falados na língua oficial, e que, portanto, a questão do retorno financeiro não é o principal objetivo. O que temos é um olhar voltado para a cultura, a manutenção e transmissão dos costumes, sendo o cinema um veículo de perpetuação e resistência à cultura imposta pelo colonizador, portanto cumprindo uma função educativa. Logo, um cinema de resistência não precisa ser necessariamente o que produz filmes sobre as guerras de independência e as guerrilhas, mas formas sutis de rechaçar a opressão cultural. Tal qual a arte escultórica, que precisou ultrapassar os conceitos de arte saindo do campo do exotismo para uma arte original, o cinema africano também precisou se deslocar de um cinema de paisagens e animais para um cinema de reflexão e imposição da palavra. Para que pudesse ser considerada arte, foi necessário, no campo dos estudos, que esta produção passasse pelas noções necessárias a todas as obras. Como há um subjetivismo tenso e permanente ao considerar tal ou qual produção como arte, fiquemos, a princípio, com a definição de cinema preconizada por Canudo: o cinema se soma às artes tradicionais: arquitetura, música, pintura, escultura, poesia e dança. Ele é, ao mesmo tempo, a fusão das artes plásticas e das artes rítimas, da Ciência e da Arte...ele deve desenvolver esta faculdade extraordinária e pungente de representar o imaterial. (apud Agel, 1957, p.10) Ao formular essa definição, Ricciotto Canudo, o primeiro a definir o cinema como a sétima arte, pensou dar um norte a todas as formas de produção cinematográfica, embora tenha visto apenas o cinema nascente, em fins do século XIX e início do século XX. 179 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida Gombrich nos diz que a forma de pensar do primitivo está mais próxima do início do surgimento da humanidade; assim, nas sociedades ditas primitivas, não há algo que possa ser chamado de arte, já que toda a produção como “pinturas e esculturas são usadas para realizar trabalhos de magia”; continua ele dizendo que para compreendermos esta produção é impossível entendermos esses estranhos começos se não procurarmos penetrar na mente dos povos primitivos e descobrir qual é o gênero de experiência que os faz pensar em imagens como algo poderoso para ser usado e não como algo bonito para contemplar. (Gombrich, 1999, p. 20). A interpretação da arte africana foi fortemente influenciada por Gombrich. Ele nos diz que, para compreendermos a arte dos nativos, é necessário nos imaginarmos nos primórdios da humanidade. Daí, já vemos que há uma classificação sobre a arte, da arte primitiva (portanto, de povos atrasados) para a arte desenvolvida, a greco-romana. Esta é, sem dúvida, uma leitura positivista e que influenciou a maneira como o mundo ocidental também compreendeu o cinema subsaariano. A África, sob o ponto de vista acima, hegeliano e positivista, bem como tudo o que se produziu lá como extensão de sua cultura, estaria então um tanto quanto “atrasada” com relação à sociedade do Velho Continente; destarte, ela estaria num estágio infantil, muito longe da arte adulta. Mas não apenas ela, as artes de outros povos colonizados também estariam neste mesmo estágio subalterno. Neste exercício de olhar a arte de povos tão antigos cujas sociedades apresentavam traços complexos de alta organização social, se faz necessário definir alguns caminhos e, para isso, elegemos duas vias possíveis que nos ajudarão a refletir sobre a produção fílmica africana, e especialmente do cinema moçambicano. Linhas teóricas para a compreensão do cinema moçambicano Para adentrarmos a complexidade do cinema de Moçambique, escolhemos duas linhas teóricas que nos ajudarão a penetrar neste universo múltiplo. A teoria estética e a mitohermenêutica. 180 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida A teoria estética diz respeito à nossa sensibilidade, ou seja, como a obra afeta os sentidos do observador, “a significação de uma obra não é importante para sua apreciação, a única coisa que conta é a forma como ela nos afeta.” (Einstein, Carl apud Munanga 2004, p. 35). Esta teoria procura fugir da necessidade de uma interpretação etnológica, abrindo espaço para uma capacidade mais democrática de leitura artística, pela qual qualquer pessoa, independente de seu nível cultural ou da diferença cultural em relação a outras culturas, pode ter um prazer estético, se assim a obra proporcionar ao observador. Crê que a obra, por si só, pode produzir prazer. Esta teoria leva-nos a outra reflexão, que é a existência de conceitos artísticos entre os africanos, ou seja, a arte pela arte. Rompe-se, desta forma, interpretações que prendem a arte negro-africana a uma estrutura dupla de religiosidade e representação, negando um funcionalismo para a mesma. Como toda teoria, chama-nos para uma outra reflexão. Se os povos africanos produzem arte pela arte, como saber qual é ou quais são os conceitos estéticos de belo e feio entre estes povos, sem penetrar na cultura deles? Há, portanto, um impasse: se por um lado, tenta-se retirar a analise etnológica ou antropológica do campo da ciência, fazendo com que a interpretação artística esteja livre do cientificismo, por outro, ao atribuir a existência de conceitos estéticos entre as etnias africanas, dificulta nossa entrada nesta complexidade sem o auxílio das ciências citadas. A tentativa para a superação deste dilema deu-se com outra ciência, a linguística. Na linguística buscou-se a existência de palavras como belo, feio, maravilhoso, ruim, entre outros adjetivos que pudessem classificar uma arte, porém, quanto mais se tenta evitar o fechamento de uma interpretação, mais complexa se torna, pois, mesmo sabendo ou concluindo a existência de adjetivos voltados para as obras, nada garante que o que significa belo para a sociedade ocidental é o mesmo conceito de belo entre as etnias de Moçambique. Nesse embate entre interpretação e conhecimento, a teoria estética nos auxiliará (e não é pouco) para utilizarmos nossa noção de beleza sensível, ao depararmos com produções artísticas de outros povos. Será necessário, mais uma vez, suspender nossa noção estética (não abandoná-la, pois é parte de nosso ser neste mundo) e dar espaço para outras noções diferentes, somando-se a que temos. Isto é uma reeducação artística. A forma é o que importa nesta teoria, como afirma Munanga (2004, p. 36), “pouco importa que o objeto fosse feito para um determinado culto. Para a teoria estética, o objeto deve ser olhado por si mesmo, sendo o essencial apenas o aperfeiçoamento de sua forma.” Chamamos esse pensamento de formalismo. 181 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida Para alcançar os objetivos a que esta pesquisa se propõe, que é o conhecimento, discussão e pesquisa da produção cinematográfica africana e sua relação com o conceito de estética, mitologia, arte e cultura destes povos, como uma maneira de educação não formal, adotaremos as seguintes linhas de pesquisa definindo como objetivos gerais: Compreender mitohermeneuticamente (Ferreira-Santos, 2008) as origens do cinema africano dos países citados, sua relação com as etnias e seus mitos e cosmogonia de origem expressos nos filmes confrontando a noção de uma África sem história (Hegel) e sem arte (Gombrich), com a consideração de uma tradição milenar complexa de arte, cultura e ancestralidade, como formadora do ethos africano; esta abordagem é compreendida como hermenêutica simbólica de cunho antropológico que se apresenta tanto como estilo filosófico – no sentido de manter uma atitude de inquietação e questionamento; como método de investigação – no sentido de estabelecer procedimentos sistemáticos de pesquisa acadêmica. Esta mitohermenêutica, na reflexão sobre a educação, se debruça sobre a interpretação das obras da arte e das culturas, mas, principalmente, situa a compreensão de si mesmo como ponto de partida, meio e fim de toda jornada interpretativa. Portanto, não se trata de uma simples técnica de interpretação, mas uma jornada interpretativa em que o hermeneuta se instala na paisagem cultural das obras com que trabalha, viaja ao seu interior e reconstrói os sentidos de tal imersão. (Ferreira-Santos, 2008, p. 4). Compreender um filme é compreender-se a si mesmo. Isso significa que a participação do hermeneuta é fundamental para o exercício interpretativo, uma vez que é ele, em diálogo com as obras estudadas, que poderá sondar os sentidos possíveis e sua rede de relações. No caso, é a recorrência simbólica presente nas obras estudadas que possibilitará a interpretação, ou seja, permitirá que se compreenda o sentido dessas obras. O símbolo, nessa acepção, é compreendido como signo que remete a um indizível e invisível significado, sendo assim obrigado a encarnar concretamente essa adequação que lhe escapa, pelo jogo das redundâncias míticas, rituais, iconográficas que corrigem e completam inesgotavelmente a inadequação (Durand, 1988, p. 19). 182 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida Portanto, o símbolo possibilita o sentido por meio da recorrência, por aquilo que repete. “Não que um único símbolo não seja tão significativo como todos os outros, mas o conjunto de todos os símbolos sobre um tema esclarece os símbolos, uns através de outros, acrescenta-lhes um ‘poder’ simbólico suplementar” (idem p. 17). São essas recorrências que buscaremos na obra selecionada para estudo, a fim de compreender melhor a cultura moçambicana pelo viés da etnia onde se realizou o filme. Chikwembo – o filme Chikwembo é um filme produzido em 2009 pelo cineasta Júlio Silva, o idioma do filme é o changane, com legendas em português. Chikwembo é traduzido como feitiço. A obra é divida em duas partes: a primeira chama-se Chikwembo e a segunda, O Regresso do Espírito. A primeira parte do filme inicia-se com imagens da Reserva do Banhine, que é descrito geograficamente para que o espectador possa saber onde ele fica dentro do mapa de Moçambique. Após imagens de uma região ainda habitada por animais selvagens, há um corte para uma jovem que está peneirando farinha, seu celular toca e começa um diálogo, é seu noivo que, sem motivo aparente, comunica que a está deixando. Ela, Catarina, sem entender o que está acontecendo, disse, entre outras coisas, que ele, de nome Langa, foi enfeitiçado por uma “rapariga” da cidade. Embora uma das características do cinema africano seja a dicotomia entre cidade e interior rural, ainda é cedo para chegarmos a esta conclusão, pode ser que tal antagonismo seja simbólico. O filme é realizado com atores amadores e moradores da região (em sua maioria), por isso, ao assistirmos Chikwembo, faz-se necessário nos despirmos das análises clássicas de filme de ator, ou seja, aquela crítica que projeta sobre as atuações o peso de toda a obra, daí já vemos que o cinema de Moçambique escapa e sugere que o acompanhemos por um viés inteiramente outro, onde os cânones ocidentais não alcançam. Esta parte inicial, do rompimento da relação, termina com a cena em que Catarina, após uma crise de choro, caminha com um galão de água sobre a cabeça, numa estrada de terra em meio a um matagal. Na sequência, Langa desembarca da carroceria de uma caminhonete que servia como meio de transporte para várias pessoas, e é imediatamente reconhecido pela própria Catarina e por uma amiga sua. Langa agora está com uma outra mulher. Ele 183 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida é indiferente às lagrimas de Catarina. O diretor usa o enquadramento fechado nesta cena, para permitir que o espectador observe, em detalhe, a expressão do rosto das personagens. A cena parte do enquadramento aberto para o fechado, denotando um momento de tensão. Langa apresenta Rosa, sua nova namorada, para a família; seu irmão o afasta da comemoração, o chama para um canto e o alerta para o perigo da volta da tristeza que ele causou a Catarina, ele ignora o perigo. Qual perigo? O perigo da vingança por feitiço/ Catarina volta para casa chorando, se põe aos pés de sua mãe que toma suas dores e promete vingança: vai atrás de uma amiga que lhe apresenta um feiticeiro. Inicia-se a segunda parte da história ainda dentro do primeiro filme. Este ponto de tensão é importante porque uma das justificativas da colonização era impor o cristianismo a todos os povos africanos dominados, uma vez que precisavam ser salvos das práticas maléficas. Cristianismo histórico e positivismo dialogam no sentido de acreditarem num estágio evolutivo da humanidade. Os africanos, durante muito tempo, foram tratados como crianças que precisavam de um pai a guiá-los. Também se faz importante narrar este acontecimento que produz um corte na história, direcionando-a para outro rumo, porque demonstra que as prática ancestrais dos povos africanos, a que muitos chamam de bruxaria ou animismo, continuaram a ser praticadas e continuam apesar de mais de cinco séculos de opressão católica (no caso das colônias portuguesas). Lembrando Nietsche que diz que onde houver repressão dos sentidos, surge a resistência, a opressão da religião do colonizador não foi tão eficaz a ponto de anular e extinguir por completo as manifestações espirituais da África Austral e, neste caso, de Moçambique. Chikwembo se opõe ao conceito de magia em Durkhein, pois para este “embora as práticas mágicas sejam suficientemente difundidas no seio de um grupo social, elas diferem substancialmente da religião, pelo fato de não terem a função de promover a unidade e a identidade entre os membros de um grupo.” (Durkhein apud Weiss, p. 11, 2012). Neste caso, como as práticas espirituais são uma característica daquele grupo, elas promovem a identificação entre seus membros, já que, culturalmente, eles a reconhecem como parte de sua vida. No decorrer do filme, o irmão de Langa ao ouvir o som dos cantos e tambores, comemora, pois diz que as mães curandeiras estão felizes, e esta é a tradição: o canto, a dança e os instrumentos, esta tradição, continua ele, toca fundo o coração e faz com que 184 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida se reconheçam. Segue-se aí uma longa sequência de canto e dança tradicional da região de Gaza. Rosa, ao ir tomar banho, é picada por uma cobra e desaparece, no que os habitantes dizem que este acontecimento é fruto de magia; a família de Langa, em desespero, procura uma sacerdotisa para esclarecer a dúvida e responder se Rosa está viva. No decorrer desta primeira parte do filme, Rosa é localizada num esconderijo de um feiticeiro, Langa e seu irmão a localizam, a resgatam e a trazem para casa, mas o conflito ainda continua. O diretor faz a opção por colocar pequenos obstáculos no caminho da volta, que dificultam ainda mais o caminho, Langa não crê que tudo isso é fruto de magia. Lembrando a estrutura do mito, em que o herói aceita o desafio e retorna com o objetivo concretizado (o resgate de uma pessoa, a localização da pedra filosofal, a vitória sobre inimigos reais ou imaginários), Langa passa pelo vale dos leões e dos elefantes em direção à aldeia, enquanto o diretor faz uso de uma música instrumental de mistério, que dá abertura para um canto gutural tribal, em língua changane. A primeira parte termina desta forma, com Langa retornando a Maputo com Rosa, abandonando de vez Catarina. O diretor opta por começar a segunda parte com o mesmo canto identitário que finalizou o primeiro, agora com o irmão de Langa (de nome Mavanga), falando que se casou com Catarina, atitude esta que é reprovada pela sua mãe, que acusa Langa de ingratidão. A oposição campo-cidade aqui é mais evidente, uma vez que este diálogo ocorre enquanto mãe e filho capinam a terra. A mãe de Langa fica doente, adoece e momentaneamente se torna incapaz para o trabalho, Langa retorna de Maputo e a trilha sonora nos prepara para um novo conflito, agora de ordem familiar: Langa contra seu irmão que desposou Catarina. Há dois momentos seguintes do filme que merecem atenção: a opção do diretor de fotografia pelos planos abertos e fechados. Langa, quando vai embora da casa de seu irmão após a discussão, é filmado num plano aberto, com ele em uma grande floresta. Esta opção de plano nos permite ver o homem menor se comparado à grandeza da natureza, depois o plano vai se fechando na medida em que o personagem adentra a floresta, fecha-se tanto que o faz entrar em contato com um sacerdote da magia, conhecido por sua aparência rude e por ter roupas em cores escuras. A dicotomia das 185 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida cores nos remonta ao claro e ao escuro, algo um tanto indefinido e irreal, inumano portanto. Langa entra em discussão com este homem que promete vingança. O plano de abre e há um corte para a cena seguinte. Uma anciã, cujo rosto está novamente em plano fechado, ensina aos jovens (homens e mulheres) como se prepara a bebida de canhô. Em detalhes, o sumo de canhô é descrito, preparado e apreciado por todos, inclusive por Langa que, bebendo, revela ter entrado em contato com este homem na floresta, logo em seguida passa mal e é levado a uma casa onde uma anciã poderá resolver a questão. A música ao fundo novamente nos coloca num ponto de tensão a ser solucionado. Julio Silva, o cineasta, ao dirigir atores amadores e moradores locais, nos remonta aos primórdios do cinema, na sua estreita ligação com o teatro. Agel (1957) nos diz que “o cinema designa o aspecto poético das coisas e dos seres, suscetível de ser revelado pelo novo meio de expressão.” (p.11). E continua ele: “os elementos fundamentais dessa escritura (o cinema arte poética) são quatro: a cenografia, a luz, a cadência (isto é, o ritmo da história) e a máscara (o ator e os intérpretes) destes elementos, o último é que merece destaque.”. Neste caso, a opção por filmar com moradores locais, com gestos teatralizados (no caso, o ser indefinido da floresta ou feiticeiro), até com gestos naturais (a maioria age como se não estivesse sendo filmados, principalmente as mulheres no filme que são mais naturais nos gestos, nas indignações e nas sensações), Silva rompe com um cânone do cinema propagado por Dulac que diz que a produção fílmica só se faz com atores profissionais, caso contrário, não é cinema. (in Agel, 1957, p. 12). O cinema e a música em conjunto, por si, podem provocar o drama, o movimento também aqui se faz e ele é elemento fundamental em Chikwembo. Não há fixadez, há idas e vindas na busca de soluções, o que gera conflito, movimento, tensão e faz desenrolar a história. Longe da cidade grande e desenvolvida, (Maputo), esta aldeia de Gaza foge de regras racionais e segue as suas próprias tradições. A ida de Langa para Maputo fez com que ele se sentisse “moderno”, desacreditando das tradições; ao ter problemas, muitos dos quais gerados por ele, retorna à aldeia em Gaza onde é obrigado a se moldar ou remoldar-se às tradições, sentindo-se menor diante de tudo, por isso o plano sequência aberto e depois fechado quando há o conflito, e mais fechado ainda (em close up) nas falas dos personagens, pois é nos olhos que vemos o caminho a ser percorrido. O crítico israelense cristão René Schwob afirma que “é 186 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida nas raízes do ser, no ponto de tangência de nosso ser mais secreto, mais ignorado de nós mesmos e aquele que mais nos deleita, que o cinema nos faz enfim, descer... à mais prodigiosa sondagem no turvo infinito que trazemos em nós.” (apud Agel, 1957, p. 16). Gaza, a região onde se passa a história, tem uma ocupação muito antiga com registros históricos que comprovam que lá já havia reinos e sociedades estruturadas antes da chegada dos portugueses: Muito antes de aí haver quaisquer sul-africanos brancos, os bantos tinham na realidade ocupado as únicas partes do subcontinente com um clima e pluviosidade adequados à agricultura intensiva. Haviam deixado o alto e seco Karoo do planalto central. (Oliver e Fage apud Santos, 2007, p. 30). Historicamente, o Império de Gaza era fortemente estruturado e preparado para o combate, com um preparo militar relatado por viajantes. Em sua pesquisa de doutorado, Santana nos diz que A força militar desse império era formada por uma pluralidade de regimentos, os quais eram constantemente renovados e treinados para a realização de razias nas povoações que ainda não se encontravam sob o domínio Nguni ou para guerras de proporções maiores, como foi a de 18951897 contra os portugueses. Cada regimento se destacava por suas formas de vestir, suas danças e cantos guerreiros, que eram utilizados como parte das cerimônias destinadas à preparação moral e religiosa dos soldados, de modo a instigar-lhes autoconfiança em sua capacidade guerreira e a certeza da vitória. (Santana, 2016, p. 5) Numa sequência de um novo romance de Langa, agora com uma moça chamada Carolina, ele vai até a casa onde reside esta moça e a procura (onde ele a havia acompanhado no dia anterior), no que é atendido de forma bastante rude pela mãe da moça que lhe diz que Carolina já morrera há muito tempo. Embora não seja o objetivo deste estudo analisar a utilização das cores no filme, mesmo sabendo que ela é um importantíssimo elemento da mise-en-scène, ou seja, tudo o que compõe a cena, a cor branca da roupa de Carolina merece destaque. 187 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida Entre a maioria dos povos africanos subsaarianos (entre os bantos e o tronco linguístico congo-níger, o que inclui os yoruba), a cor branca é associada com o mundo não material. Muitos chamam de mundo dos mortos, porém, esta nomenclatura não tem correspondência na maioria das culturas africanas, uma vez que há diversos tipos de morte, e não somente a morte física como para os ocidentais. A cor branca está ligada ao estado não físico da morte, à entrada no mundo dos mortos, uma vez que ela é ausência das cores, conforme diálogo no filme sul-africano Incheba7, onde um ancião explica aos jovens iniciados porque eles são pintados de branco. Esta perda de noção e de consciência que confunde Langa nos leva também a uma perda de entendimento do que pode ocorrer, por isso a teoria estética nos permite a compreensão de outra cultura pelo seu próprio viés. Então temos aí vários microconflitos que Langa enfrenta no percurso de sua existência, tanto entre as existências visíveis como as invisíveis, obrigando-o a retornar, em seu ser, à sua cultura que deixara de lado sob a alegação de uma suposta maturidade dada pela convivência na grande cidade. Por baixo e por dentro da existência de Langa, os conflitos fazem com aquilo que Heidegger chama de “volta para casa” para habitar poeticamente as coisas, significa estar na presença dos deuses e ser tocado pela proximidade essencial das coisas. À guisa de conclusão, ou desligando o cinematógrafo Ao optar por colocar vários elementos estilísticos ao filme, o diretor Julio Silva se contrapõe aos ditames do que conhecemos como cinema do ocidente, ou seja, ele opta por colocar moradores locais como atores, busca a essência das tradições espirituais, faz valorizar a música, a dança e os frutos do lugar, valoriza a oralidade, traço marcante das culturas africanas e, principalmente, exclui a língua portuguesa (a língua do colonizador), como elemento fundamental da obra. Colocando o africano na tela, na frente das câmeras e atrás dela, com sua reduzida equipe de produção, o diretor faz não somente uma afirmação estilística, mas acima de 7 Filme sul-africano de 2007, dirigido por Jhon Trengove. No Brasil, saiu com o título de Os Iniciados. O filme retrata a iniciação de jovens masculinos na vida adulta, porém, um deles é homossexual e rejeita as tradições de sua etnia. Inxeba em xhosa significa cicatriz. A obra concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro no ano seguinte. 188 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida tudo, uma afirmação política, a saber: que é a busca de descolonização da mente: o ato da produção, a disponibilidade, a quantidade, a essência do cinema africano, por assim dizer, é, sem dúvida, o pré-requisito mais óbvio. É necessário que existam filmes feitos por africanos sob a condição africana, antes que se possa falar sobre o cinema africano. Os recursos para a produção de filmes, sua distribuição e acessibilidade ao público africano são fatores indispensáveis para a existência de uma cinematografia. (Wa Thiongo’, 2007, p. 27). Ao nos dispormos a assistir um filme africano, especialmente de países cujos financiamentos são rarefeitos (Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Gabão, Benin, República Centro Africana, Zâmbia, Burundi, Etiópia entre outros), precisamos preparar nosso espírito para adentrarmos um universo cuja produção fílmica nos remete, muitas vezes, aos primórdios do cinema, sem grandes efeitos especiais ou locações riquíssimas, ou carros de alto custo ou figurinos que poderiam estar nas passarelas europeias. O cinema africano, especialmente feito por africanos e para o público africano tem um posicionamento de valorizar sua cultura, suas tradições e enfrentar os dilemas do cinema, formando suas próprias regras, tentando a todo momento fugir da interpretação limitada e triádica de conflito entre tradição e modernidade, animais selvagens e magia. Ainda que estes elementos estejam presentes em boa parte das produções, as leituras sobre eles e seus significados é que precisam mudar. Estes são elementos fundantes dos costumes, como o diálogo entre homem e natureza, natureza e cultura, produção de bens de consumo e sustentabilidade, dinheiro e sacralização entre tantos outros temas. Nesse sentido, identificamos uma dimensão educativa no cinema africano, a qual está associada aos fundamentos educativos do cinema (Almeida, 2017), principalmente no que diz respeito aos fundamentos antropológico e mítico, pelos quais se observa o papel do cinema na ampliação do conhecimento sobre outras culturas, inclusive as mais descentradas, possibilitando também a valorização de grupos minoritários, no modo como vivenciam suas contradições. No caso do cinema africano, o fundamento mítico se mostra presente não apenas na menção direta aos mitos, mas sobretudo por cumprir a função de reconciliar nossa consciência com o mistério do universo, oferecer uma imagem interpretativa desse mistério, além de impor uma ordem moral 189 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida e auxiliar o indivíduo na busca de uma congruência com a cultura de seu povo e sua existência particular. Há, portanto, o que Celso Luiz Prudente (2021) observa como uma dimensão pedagógica do cinema negro, pela qual a imagem do negro, seja africano ou afrodescendente, é afirmada, pois “ensina à sociedade a maneira como ela deve ser tratada, ajudando na superação do seu anacronismo excludente” (p. 15). Ainda que Chikwembo contenha esses elementos, ele nos convida para um olhar mais aprofundado não somente sobre o que estamos vendo, mas principalmente, sobre o que não está explicito na tela como elemento principal, mas sim, espalhado umbilicalmente entre os povos africanos, qual seja: a resistência em manter-se vivo culturalmente, mesmo que para isso tenha que pagar um preço que é de percorrer caminhos já imaginados pela indústria cinematográfica. Manter viva a sua cultura, oralidade e espiritualidade é uma continuação das diversas guerras de independências e guerras de guerrilhas a que muitos destes países passaram, e, por extensão, manter-se vivos cultural e espiritualmente como seus diversos descendentes o fazem espalhados pelos diversos lugares do mundo pós-diáspora negra. Referências AGEL, Henri. Estética do cinema. São Paulo: Cultrix, 1957. ALMEIDA, Rogério de. CINEMA E EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS E PERSPECTIVAS. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 33, 2017. Disponível em http:// educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-6982017000100157&lng=p t&nrm=iso. ARAUJO, Emanoel. Museu Afro-Brasil: Um conceito em perspectiva. São Paulo: Museu Afro-Brasil, 2006. BALOGUN, Ola. Forma e Expressão nas Artes Africanas, in Introdução à Cultura Africana. Lisboa: Edições 70, 1977. DURAND, Gilbert. A Imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix- EDUSP, 1988. FERREIRA-SANTOS, M. Espaços crepusculares: poesia, mitohermenêutica e educação de sensibilidade. Revista @mbienteeducação (São Paulo), volume 1, número 1, jan/julho 2008. 190 nosso olhar vem de longe Júlio César Boaro, Rogério de Almeida GOMBRICH, Ernest H. História da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 1997, vol.1, p.254. MUNANGA, Kabengele. A dimensão estética na arte negro-africana tradicional em “África e africanias” de José de Guimaraes. São Paulo: Museu Afro-Brasil, 2006. PRUDENTE, Celso L. A imagem de afirmação positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio na dimensão pedagógica do Cinema Negro. Educação E Pesquisa, 47, 2021. https://doi. org/10.1590/S1678-4634202147237096 RICOEUR, Paul. Hermenêutica e Ideologias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. SANTANA, Jacimara Souza. Tradição Oral do Império de Gaza, Identidade Nyanga e Contestação ao colonialismo no sul de Moçambique (C. 1895-1956) - Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano IX, NºXVI, Janeiro/2016 SANTOS, Gabriela Aparecida. Reino de Gaza: o desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821 – 1897) – dissertação de mestrado – FFLCH, 2007 WA THIONG’O, Nguni. A descolonização da mente é um pré-requisito para a prática criativa do cinema africano. P.25 à 34 in MELEIRO, Alessandra. Cinema no Mundo: indústria, política e mercado. Àfrica v.1. São Paulo, Escrituras Editora, 2007 WEISS, Raquel. Durkheim e as formas elementares d vida religiosa – Debates do NER – Porto Alegre, ano 13, n.22 – julho/dezembro de 2002. 191 A importância da trilha sonora de Barravento na sensibilização da educação musical Alexandre Siles Vargas Universidade do Estado da Bahia – UNEB Celso Luiz Prudente Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT O propósito do nosso artigo é levantar uma discussão que demonstra a possibilidade de uma relação interseccional de linguagens estruturantes no cinema negro. Apontaremos aspectos fundamentais do surgimento dessa tendência das relações étnico-cinematográfica afrodiaspórica, observando-a no âmbito do seu surgimento ou no processamento das desigualdades sociorracias, que se apresenta em uma possibilidade de coralidade étnico-racial, considerando que na sociedade brasileira raça e cor se confundem (Ianni, 1982). Esse fenômeno da coralidade sociorracial se expressa em um conflito, caracterizado na luta de uma multiculturalidade miscigênica contra o autoritarismo de uma monoculturalidade, vista na hegemonia do ideal branco-europeu, que impregnou as relações de escolaridade. De tal sorte que as culturas decorrentes do universo eurocaucasiano são promovidas pelas relações institucionais em detrimento das culturas dos povos descendentes dos diversos, que demonstram inquestionável estranheza em relação aos nomos, do branco eurocidental. Os diversos configuram as culturas que se formaram na dinâmica da ibericidade, da asiaticidade, da africanidade e da amerindidade, vitimadas pela eurocolonização (Prudente; Silva, 2019). 192 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente É de suma importância para a nossa reflexão crítica a compreensão de alguns pontos identitários, que configuram os diversos, tornando-se essenciais na linha de descendência. Razão pela qual, observamos uma identidade lusofônica, observada na relação comum dos grupos raciais que se constituíram como objetos da colonização europeia. Incluindo também os ibéricos, que foram concomitantemente protagonistas coloniais, mas essa posição não lhes furtou a triste condição de objeto colonial (Prudente; Silva, 2019). Para nossa preocupação cumpre observar no universo europeu uma política de representação que tenta colocar as outras formas de existência, que são constituintes do diverso em um simbolismo estereotipado, negando-lhes os traços epistêmicos para justificar a nefasta violência da eurocolonização. Essa negação dos traços cognitivos dos povos das culturalidades do diverso é feita por um reducionismo da euroheteronormatividade, que significa, para nossa reflexão crítica, o sentido, a razão e a norma da supremacia branca europeia, (Prudente; Silva, 2019), estabelecida por um mero sentido de brancura, que foi objeto na crítica reflexiva sartriana (SARTE, 1960, p. 105): O homem branco, branco porque era homem, branco como o dia, branco como a verdade, branco como a virtude, iluminava a criação qual uma tocha, desvelava a essência secreta e branca dos seres. O que esperáveis que acontecesse quanto tirastes a mordaça que tapava estas bocas negras? É provável que essa tentativa reducionista eurocaucasiana deu origem a uma luta de horizontalidade ontológica dos povos do diverso que se fez contra a verticalidade autoritária do universalismo europeu. Fenômeno que concorreu para o surgimento de um conflito caracterizado no multiculturalismo, dado pelo branco ibérico (português e espanhol), o amarelo asiático, o preto africano e o vermelho ameríndio, contra o monoculturalismo de tentativa reducionista do branco europeu. Com o fluxo migratório do processo colonial, essa contradição conflituosa ganha intensidade no processamento das descendências dos diversos mundos raciais, que são estranhos aos nomos eurocaucasiano e suas descendências, protegidas, desse modo, pela forte institucionalidade do ideal branco europeu, que se faz em detrimento da diversidade racial nas sociedades multirraciais, com economia dependente, como é o caso específico do Brasil (Prudente, 2021). 193 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente Observamos que a política getulista, influenciada pelo positivismo europeu, tentou construir uma mitologia de um país branco urbano industrial, prescindindo da real ruralidade miscigênica. Com esse propósito, o governo getulista concorreu por uma comunicação racista, onde o branco europeu simbolizava a harmonia e a perfeição, em detrimento das outras raças, formadoras da sociedade brasileira, que formavam uma amálgama cultural miscigênica, posta como imperfeita e atrasada. É nesse período getulista que o governo desenvolveu uma política artística de contenção ideológica, formando os cursos musicais de massa orfeônico em que se estudava a música europeia, negando a musicalidade da amalgama cultural ibero-ásio-afro-ameríndio. Esse mesmo fenômeno se deu também no incremento para a formação ao trabalho, na perspectiva da subordinação no processo da relação de capital e trabalho. O filme Barravento de Glauber Rocha expõe o diverso negro, em uma filmagem realizada na praia do Buraquinho que é próximo da cidade de Salvador, na Bahia. Nesta obra, a africanidade musical é associada a momentos lúdicos, gregários e conflitantes que provocam a reflexão/ação na comunidade da vila de pescadores como na práxis da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (2005). A africanidade no cinema de Glauber denuncia a verticalidade da relação de forças em que o poder hegemônico domina o principal instrumento de trabalho dos pescadores - a rede de pesca. Glauber traz luz à riqueza da musicalidade do diverso negro, proporcionando a experiência com a sonoridade dos instrumentos musicais, do canto e a imagem dos corpos negros, que por muito tempo foram negados no cinema, pela concepção racista do poder hegemônico eurocaucasiano. Ao expor o negro em sua luta e musicalidade, Glauber estimula a sensibilização para a cultura e história africana e afro-brasileira. Com base na reflexão crítica das cenas do filme Barravento levantaremos a questão: como a musicalidade do cinema negro pode ser um elemento favorável para a educação das relações étnico-raciais, na educação musical? Acreditamos que a importância desse artigo está no esforço de apontar uma relação entre a musicalidade africana e o cinema negro, observando como poderá auxiliar na sensibilização dos estudantes em relação às qualidades estéticas da africanidade musical. Assim, esse estudo se justifica pela utilização dessa musicalidade cinematográfica afrodiaspórica no processo de educação musical como um caminho proativo para a educação das relações étnico-raciais, chamando atenção para que os educadores percebam e trabalhem a 194 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente musicalidade da trilha sonora na sala de aula, com a finalidade da sensibilização dos educandos às qualidades estéticas presentes na trilha sonora do cinema negro. O cinema negro se estabelece como uma tendência artística no plano da educação das relações étnico-raciais. Razão pela qual se torna um elemento fundamental no processo da discussão pedagógica da emergência da africanidade, frente ao problema da escolaridade monocultural, que buscou por princípio a concorrência da institucionalização do ensinamento das artes exclusivamente pela visão eurocidental. A musicalidade nessa tendência artística da educação das relações étnico-cinematográfica, com a amplitude holística que é própria do sentido civilizatório da recuperação da imagem do diferente, na perspectiva da cultura de paz implicada no respeito à diversidade, é provavelmente um contributo cultural, que chama atenção para a convivência na perspectiva da alteridade. Tendo em vista que as relações de humanidade na dinâmica racial têm a sua polissemia, que é coadunável com a complementariedade merleau-pontyana, (Prudente, 2014), esse fenômeno sugere uma riqueza cultural que será importante como um fator estimulante à sensibilização das pessoas. Nesse contexto, observamos que a trilha sonora do filme Barravento traz os elementos musicais de origem negra importantes para a educação das relações étnico-raciais. Um dos caminhos possíveis para a educação das relações étnico-raciais seria a aula de música com apreciação do filme Barravento. Isto porque a experiência da apreciação estimula a sensibilização à vibração sonora e à imagem, ligadas ao sentido da percepção sonora e visual que ocorre à distância. A experiência com as qualidades estéticas da musicalidade da trilha sonora do filme Barravento concorreria para o estímulo das percepções e provocando insights nos sentimentos humanos. Como é percebido na filosofia da educação musical estética de Reimer (1970) para o autor, as qualidades estéticaspodem ser percebidas no ritmo, melodia, harmonia, forma musical, timbre, colorido, textura, intensidade, altura que são componentes de uma música. Portanto, a experiência da apreciação sonora e visual com as qualidades estéticas da sonoridade, instrumentalidade e corporeidade negra presente em Barravento favorecerá a educaçãodas relações étnico-raciais, que, nas palavras da pesquisadora Nilma Gomes, “deve ser uma educação para a criticidade, mudanças de postura, reconhecimento da beleza e da riqueza das diferenças”. (GOMES, 2013, p. 83). 195 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente É provável que a tamboralidade negra de Barravento possa promover, por meio da música, uma identidade cultural entre jovens e adultos miscigênicos, tornandose fundamental para o processo educacional que tenta trazer luz à cultura e história africana e afro-brasileira. Sendo uma ação pedagógica favorável para o cumprimento da Lei 10.639/03 e, posteriormente a Lei nº 11.645/08, que alterou o Artigo 26-A da Lei 9.394 - Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (BRASIL, 1996), que dispõe: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afrobrasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). § 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). § 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). A filmografia do cinema negro retrata a história e cultura afro-brasileira, sendo viável a sua presença no currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística como conteúdo para as aulas de música na educação de jovens e adultos.A relevância dessa nossa preocupação fica ainda mais cristalina, quando se observa espaços legais que são possíveis acomodar a emergência do ensino do cinema negro e a sua intersecção de linguagem, sobretudo na dinâmica musical do filme Barravento. Ainda que a legislação possível tenha uma compreensão conservadora ou letárgica em relação ao dimensionamento do cinema como produção de sentido, como sugerem Rosália Duarte (2009), Adriana Fresquet (2013), Rogério Almeida (2017), nessa mesma linha de discernimento, é relevante que o cinema como forma epistêmica conforme Celso Prudente (2021) venha integrar o currículo escolar. Pensamos que ainda assim com essas 196 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente dificuldades de compreensão temática específica da filmografia não caberia qualquer justificativa para a falta do ensinamento dessa filmografia étnica em favor das minorias, pois a sua obrigatoriedade encontra lugar nos dispositivos legais. Observamos, com efeito, a Lei 13.006/14 que acrescenta o § 8º ao Art. 26 da Lei nº 9.394 (BRASIL, 1996): “a exibição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, 2 (duas) horas mensais”. A experiência vivenciada na exibição fílmica é passível de aproveitamento no ensino de música1 , nas atividades de composição, apreciação, performance, estudos literários e aquisição de habilidades técnicas musicais (SWANWICK, 1991). Com destaque para a atividade de apreciação musical direcionada à percepção das qualidades estéticas da musicalidade, como se vê na trilha sonora do cinema negro, que subsidiará às atividades de composição e estudos sobre a história e cultura africana e afro-brasileira, com aquisição de técnicas instrumentais e vocais, que são voltadas para a performance do repertório de origem negra. O filme Barravento, em razão da sua importância histórica, foi o primeiro longametragem de Glauber Rocha, o mais eminente ideólogo do cinema novo, com mérito de ter sido também a principal referência cinematográfica, com o filme Leão de Sete Cabeças (1971), para o surgimento da emergência do cinema negro brasileiro (Prudente e Oliveira, 2017). Considerando que o cinema novo e a bossa nova são movimentos culturais que se entrelaçam no eixo da compreensão da dinâmica miscigênica, caracterizada na amálgama do ibero-ásio-afro-ameríndio, que significava a polissemia proletária em um processo de horizontalidade ontológica de luta contra a verticalização da persistente eurocolonização, simbolizada no burguês, como o euro-hetero-machoautoritário (Prudente; Silva, 2019). A luta de classe se estabelece como uma espécie de abstração na tessitura da bossa nova e é estruturante na forma de sintaxe do cinema novo, (Prudente, 1995), (Gerber, 1997) (Siles Vargas; Nogueira de Souza; Prudente, 2023). Observamos ainda que a abstração das lutas de classes, nesses dois movimentos artísticos de influência 1 O ensino de música tem apoio no Artigo 26 da Lei 9394/96, que no “§ 2º O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica. (Redação dada pela Lei nº 13.415, de 2017)” (BRASIL, 1996); sendo que no “§ 6º As artes visuais, a dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o § 2º deste artigo. (Redação dada pela Lei nº 13.278, de 2016)” (BRASIL, 1996). 197 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente marxista, é percebida como signos de polaridade, observado no negro como expressão proletária e o desdobramento de pobreza e o branco como configuração burguesa e o dimensionamento de dominação. Para essa observação urge a necessidade da elucidação, no qual esse discernimento conceitual foi uma demanda substancial da insurgência estética do glauberianismo, que emprestou a dinâmica da culturalidade miscigênica brasileira para uma hermenêutica marxista de teluricidade específica, que tem, ‘ao nosso quase cego ver’, uma relação dialógica com a escola de Frankfurt. É, contudo, sugestivo apontar que o Barravento ainda não foi estudado na perspectiva da aula de música como pretendemos fazer, dialogando com a educação musical estética e a educação das relações étnico-raciais. Compreendemos, com essa preocupação, que a junção da filmografia étnicocinematográfica em questão e o ensino de música concorrem para fortalecer a educação das relações étnico-raciais. Isso poderá viabilizar, com efeito, a sensibilização das pessoas, implicando também na inclusão da diversidade cultural, representada na africanidade, que é marginalizada pelo comportamento da escolaridade monocultural, onde se localiza também o ensino musical. A apreciação da obra cinematográfica é essencialmente uma atividade musical, em razão da forte presença da trilha sonora no filme, apresentando-se como um caminho pedagógico para a sensibilização, tendo, como ponto de partida, o contato com a axiologia africana que será vista no tratamento estético da musicalidade negra. O contato em voga será ampliado, com a literatura da negritude, instrumentos musicais, danças, lutas, teatro (Prudente, 2011), performance na roda de samba, de capoeira e criação musical a partir da africanidade. Neste sentido, a realização de Barravento trouxe uma intersecção de linguagem, em razão de uma intelectualidade multimídia que Glauber já expressava na época, isso contribuiu para uma análise das suas qualidades estéticas musicais (Reimer, 1970), sendo um caminho para o desenvolvimento da sensibilização à cultura negra, contribuindo para aplicabilidade da legislação brasileira. Isso foi feito com a conquista educativa do movimento negro para a disciplina da educação das relações étnico-raciais, que se constituiu em uma fragmentação da escola monocultural, abrindo espaço para o multiculturalismo com a natureza musical, que se vê na dinâmica do dia-a-dia baiano, observado no onirismo utópico do cinema glauberiano, (Prudente, 2011). 198 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente A filosofia da educação musical estética de Reimer (1970) aponta que a dimensão qualitativa das estéticas é resultante da sonoridade dos elementos musicais, como o ritmo, melodia, harmonia, forma musical, timbre, colorido, textura, intensidade e altura, considerando que esses elementos têm o poder de aguçar as percepções acerca dos sentimentos. Segundo Reimer (1970, p. 39) “a educação musical é uma educação dos sentimentos humanos, alcançada por via do desenvolvimento da capacidade de resposta às qualidades estéticas do som, que são expressas por meio da sonoridade resultante da combinação dos elementos musicais”. Segue o autor: (1970, p. 40), “a música é essencial para a progressiva sensibilização em relação aos elementos musicais”, pois contém as condições para a percepção que é essencial aos sentimentos humanos. Observamos a preocupação desse autor, quando ele sugere que os professores de música têm o poder de enriquecer a qualidade de vida das pessoas, aguçando as percepções das dimensões sentimentais, a partir do repertório musical. Para isso, Reimer (1970) indica a escolha de músicas que sejam passíveis de compreensão, para que facilitem o acesso às suas qualidades estéticas, de modo “que abranjam o entendimento das possibilidades de respostas humanas” (p. 40). O autor também sinaliza que o repertório seja ampliado com “músicas étnicas e de grupos culturais do jazz, pop, folk” (Reimer, 1970, p. 40). Com essa afirmação, Reimer (1970) aponta para a importância da escolha do repertório musical diversificado para que os estudantes tenham uma experiência enriquecedora, com mais possibilidades de percepção sobre os sentimentos humanos e, consequentemente, maior enriquecimento da qualidade de vida. Percebemos também a preocupação de Reimer (1970) em esclarecer que as qualidades estéticas não são algo místico ou de difícil acesso. Ao contrário, são “identificáveis, nomeáveis, capazes de serem manipuladas, criadas, discutidas, isoladas, reinseridas no contexto” (Reimer, 1970, p. 40). Todavia, os professores de música precisam mostrar essas qualidades aos estudantes, tornando-as perceptíveis na escuta da melodia, harmonia, ritmo, colorido, textura e forma musical. Neste sentido, a atividade de apreciação musical é relevante para que os estudantes consigam perceber essas dimensões qualitativas, tendo por isso oportunidade de sentirem o poder expressivo da música. A importância de uma reflexão sobre a educação musical estética se estabelece na conjugação do significado da experiência, diante de uma adjetivação da estética, que 199 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente observamos na consideração de Reimer, com a relação da música à experiência de vida. Em suas palavras, “as qualidades estéticas podem ser experienciadas na percepção do significado da experiência, resultante da relação entre qualidade estética e qualidade de vida. As qualidades das experiências estéticas influenciam no sentido do significado” (REIMER, 1970, p. 25). O autor complementa que “a experiência artística provoca insights da realidade subjetiva; esta experiência significa o auto entendimento, um caminho em que o senso humano da natureza da arte pode ser explorado e alcançado” (REIMER, 1970, p. 25). Compreendemos que a percepção das qualidades estéticas da música tem reflexo no autoconhecimento, na medida em que provoca insights, que expressam a realidade subjetiva. Quanto mais a pessoa tiver contato com uma determinada cultura musical, mais experiências poderão ter para ressignificar diferentes formas criativas. Percebemos, contudo, que a apreciação da musicalidade negra se estabelece como um programa ou conteúdo para o ensino da educação das relações étnico-raciais, que tem a necessidade de mais campanhas institucionais em proveito da aplicabilidade da legislação vigente. Promovendo, dessa maneira, experiência com as qualidades estéticas da africanidade, conjugada com a demanda estética cujo dimensionamento das corporalidades e circularidades dos saberes sagrados da cosmovisão africana passa por um processo de existencialidade lúdica (Prudente; Silva, 2019). A ludicidade presente nas atividades de apreciação é coadunável com as atividades próprias do fazer musical e da composição, promovendo notáveis experiências, que influenciam na interpretação dos significados. Entendemos, portanto, que a educação musical estética é um importante contributo para o entendimento da sensibilização a partir da percepção das qualidades estéticas, que se tem na trilha sonora. Essa forma de compreensão é, com efeito, um elemento contributivo para tornar o estudante mais aberto ao conhecimento sobre a história africana e a cultura afro-brasileira, como se vê em Barravento, que traz o enredo da luta de pescadores tradicionais, adeptos da cultura dos orixás, marcada pela tamboralidade dos cantos dos rituais da orixalidade, (Siles Vargas; Nogueira de Souza; Prudente, 2023). Na educação musical com base na educação das relações étnico-raciais, nos países multirraciais, como é o caso específico do Brasil, faz-se necessária a consideração do processo psicopedagógico para buscar relações de equidade, entre as experiências teóricas e práticas, essa acuidade deve ser a concorrência para garantir as experiências 200 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente que promovam a sensibilidade dos estudantes, em relação à diversidade cultural. Essa linha de preocupação é coadunável com a pesquisadora Alicia Loureiro (2012), quando ela chama atenção para que se considere o processo de educação musical, no intuito de buscar o equilíbrio entre o vetor didático e a vetorização artística. A autora aponta essa necessidade com o propósito de fomentar a valorização, tanto da razão quanto dasensibilidade, na demanda educativa da questão musical. Essa autora ainda aponta que os estudantes precisam ter a oportunidade de acessar o “conhecimento musical organizado e sistematizado” ao mesmo tempo em que experimentam o desenvolvimento da “criatividade, imaginação e da sensibilidade” (Loureiro, 2012, p. 128). Esse fenômeno trará mais possibilidades de compreensão no cinema, pela sua condição de única mídia transformadora que permite ao espectador uma ação ativa na qual ele interfere, indo no impossível e no possível, como aponta Agamben (2014). Essa relação ativa de participação na obra cinematográfica, que no caso específico do cinema negro demonstra intersecção de linguagem, permite, no ensino da música, a realização de atividades de composição, performance, estudos literários, aquisição de habilidades técnicas, e, principalmente, a sensibilização na apreciação musical. Isto em razão da sensibilização diante de um processo midiático mais amplo, que por conta disso, comporta ainda mais as questões e os problemas da diversidade. A sensibilização por meio da atividade de apreciação é um elemento fundante da educação musical estética, sendo por isso um elemento que cumprirá a função de base para a educação das relações étnico-raciais, a partir do cinema negro. Na perspectiva da sensibilização para a musicalidade negra, a atividade de apreciação musical é a que mais se encaixa com a experiência de assistir uma obra fílmica. Isto ocorre porque está diretamente relacionada à sensibilidade para a vibração sonora e, também, à imagem, que estão interligadas ao sentido da percepção sonora e visual, que ocorre à distância. Essa percepção está relacionada para a forma pela qual o ser humano visualiza o mundo e o explica a si mesmo, denominado como representação icônica por Bruner (1969). O autor acredita que esta representação se baseia “na organização visual (ou em qualquer outro sentido) e no uso de imagens sinópticas” (VARGAS, 2017, p. 3). A apreciação musical tem o poder da sensibilização à distância por via da fruição da musicalidade negra da trilha sonora, sendo que os materiais são as qualidades estéticas percebida na sonoridade do ritmo, melodia, harmonia, forma musical timbre, colorido, textura, intensidade, altura, dentre outros elementos musicais. 201 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente A realização da atividade de apreciação não depende de as pessoas terem habilidade de cantar ou tocar um instrumento. Desta forma, uma maior quantidade de pessoas poderá desenvolver a sensibilização para as qualidades estéticas musicais da africanidade, buscando o respeito à diversidade que é a principal lacuna da escola monocultural, sendo também a razão excludente da escolaridade estranha a dinâmica multicultural, Prudente (2019). Observamos nessa relação dialógica com Alícia Loureiro, que a sensibilização musical decorrente do processo dinâmico da educação musical. Sendo um caminho pertinente para a urgente necessidade da educação das relações étnico-raciais. Nesse contexto, a partir da apreciação das qualidades estéticas da trilha musical do filme Barravento poderá haver desdobramentos músicos-pedagógicos relacionados a aspectos da história africana no âmbito do processo dinâmico da cultura afro-brasileira, como subsídio à reflexão crítica e ação transformadora na perspectiva civilizatória do respeito ao diferente e na busca holística da complementariedade humana, mostrando-se essencial para a sensibilização musical. As atividades de apreciação musical e a reflexão crítica transformadora não carecem de habilidades musicais para serem realizadas, mas fortalecem o cinema negro como um instrumento pedagógico democrático a favor da educação das relações étnico-raciais. A qualidade da arte de causa das artes negras, como foi percebida pelo jurista Dalmo Dalari (2002) parece sugerir a compreensão da interseccionalidade das linguagens, considerando a amplitude relacional delas em proveito de um esforço de união civilizatória em proveito da liberdade, que se estabelece como condição essencial na existência da manifestação artística de africanidade e das minorias, implicada no espaço escolar na verticalidade monocultural. Esse elemento de união em processo interseccional de linguagem, na possível condição de causa da arte negra encontrará na ritualidade religiosa o seu lócus. De tal sorte que, a música e o cinema negro brasileiro têm inequívoca relação estreita, tendo em vista que o cinema negro nasceu na tendência cinematográfica cinemanovista, que por sua vez tem entrelaçamento transversal com a bossa nova, em que se coloca nos dois vetores: música e cinema, a questão racial do negro, como protagonista. Esse fenômeno se torna mais cristalino na demanda da orixalidade presente tanto entre os bossanovista quanto nos meios do cinemanovismo, caracterizando a sinergia da ritualidade da musicalidade e do cinema negro, como possíveis conhecimentos essenciais, do negro, Prudente (2011), que caracteriza a sua ontologia presente na filmografia glauberiana de Barravento, como observa os autores: 202 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente A presença da instrumentalidade musical nesse título do cinema novo aparece como uma dimensão da orixalidade. Considerando que a ritualidade afrodiasporica se dá num processo da corporalidade negra em que a música e a dança se estabelecem como uma solução indissolúvel nas culturas bantu, sendo aqui um traço da herança da africanidade. Em Barravento (1962), confirmamos a tese de Prudente, que o negro é referencial estético do cinema novo de Glauber Rocha e levantamos em que medida essa musicalidade é essencial na ontologia do afrodescendente. Para nossa percepção a tamboralidade negra traduz os valores fundamentais da africanidade que estão presentes nos folguedos carnavalescos que tem origem no ticumbi bantu. (SILES VARGAS; NOGUEIRA DE SOUZA; PRUDENTE. 2023, p. 114). Chamaremos atenção para a instrumentalidade do arco musical do berimbau na capoeira, um instrumento cujo formato tem a estrutura de um arco de caça de origem africana milenar. Para o etnomusicólogo Kay Shafer, “a invenção do arco de caça, pensase ter acontecido no norte da África cerca de 30.000 e 15.000 anos atrás.” (Shafer, 1977, p. 1). Cabe observar que, devido à sua origem milenar, “muitas formas de arco musical podem ser encontradas”no continente africano, em especial na África do Sul e África Central (Shafer, 1977, p.2). Assim, Shafer (1977)sinaliza a existência de diferentes formatos desse instrumento musical africano conhecido entre nós por berimbau. “No Brasil, têm sido encontrados quatro tipos de berimbau: o birimbao ou berimbau de metal, o berimbau-de-boca, o berimbau-de-bacia e o berimbau-de-barriga” (SHAFER, 1977, p.12). Abordaremos, o berimbau de barriga que é o tradicional da capoeira de Salvador exibido em Barravento. O berimbau de barriga ou apenas berimbau é um instrumento que tem um arame esticado em uma madeira (biriba), cuja percussão com uma vareta produz uma sonoridade que ressoa na cabaça (a caixa acústica) de onde é projetado o som. O movimento de encostar a pedra no arame produz uma diferença de altura (entre som grave e agudo) e o de aproximar e distanciar a cabaça da barriga (corpo) do músico modifica a sonoridade como se fosse um efeito sonoro conhecido como wha-wha. O berimbaué tocado com uma vara pequena segurada pela mesma mão que segura o chocalho, ao percutir a corda com a vareta o músico produz duas sonoridades, uma da corda e outra do som estridente do caxixi. Os etnomusicólogos Prudente e Gilioli (2013) apontam que: 203 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente O berimbau, instrumento musical originário da região onde se localiza atualmente Angola (lá chamado de ‘mbulumbumda e com vários modelos diferentes), era utilizado, até o século XIX, no comércio urbano [do Brasil]por comerciantes, vendedores, feirantes e até mesmo de mendigos como chamariz para seus clientes só depois esse instrumento veio a ser incorporado pela capoeira, que antes apenas utilizava tambores. (p. 76-77) O berimbau foi incorporado à capoeira; tornou-seum dos principais instrumentos musicais da baianidade nagô presente na africanidade do filme Barravento de Glauber Rocha. A sonoridade resultante de materiais comoarame, pedra, vareta, caxixi e cabaça apresenta um espectro de frequências, intensidade, altura, timbre, ritmo, melodia, harmonia, textura, colorido e forma musical, que sãopercebidas como qualidade estética. Essa sonoridade tocada ciclicamente promove a sensação musical rítmico-melódico, em que a repetição consciente dá vida ao toque. Cada toque tem um ritmo melódico característico constituído na combinação das diferenças entre as frequências, grave e aguda, produzidas com o encostar da pedra e com o afastamento e aproximação do corpo do músico. Razão pela qual o berimbau e a capoeira na sua relação com o caráter da circularidade e corporalidade negra se faz presente também de forma transversal no filme Barravento por combinar com os diferentes níveis de expressões musicais e corporais da baianidade, que a realização de Glauber Rocha desenvolve na existencialidade lúdica gregária do culto dos orixás. Nessa linha de compreensão, a qualidade estética da trilha sonora representada na sonoridade do berimbau reforça ainda mais a relevância da musicalidade africana na educação das relações étnicoraciais, dada pela interseccionalidade de linguagem do cinema negro, que dimensiona a sensibilização fundamental para no ensino da música. No Barravento, a circularidade e corporalidade da música e dança e o seu dimensionamento de resistência envolve um fazer musical, na cena em que os moradores da comunidade se utilizam da percussão corporal ao baterpalmas, tocar pandeiro e percutir numa caixa pequena com as mãos (Figura 1). A cena progride agregando mais pessoas à roda de samba, reforçando, o aspecto lúdico e do processo gregário da música, que se apresenta organizada de forma circular (Figura 2). 204 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente Figura 1 – Percussão corporal. Fonte: Barravento (1962) Figura 2 – Roda de samba. Fonte: Barravento (1962) Observamos que a genialidade glauberiana construiu uma sugestão de pluridimensionalidade para o berimbau colocando-o na cena da circularidade lúdica gregária do processo existencial da dança e música da roda de samba. Fazendo o mesmo também no processamento do sentido da resistência com uma técnica crescente da cena que se desdobra numa luta entre as personagens Firmino e Aruã (Figura 3), na qual o berimbau é o elo da relação e o protagonista instrumental dessa relação comunal, de demandas lúdicas e gregárias. A sonoridade do toque de berimbau nesta cena tem semelhança como o que Shaffer (1977) registrou como toque de Angola, executado por mestre Canjiquinha como apresentaremos a seguir (Figura 4): 205 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente Figura 3 - Berimbau na cena da luta. Fonte: Barravento (1962) Figura 4 - Toque de Angola por mestre Canjiquinha. Fonte: Shaffer (1977) Fonte: Shaffer (1977) 206 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente Durante a cena o berimbau é acompanhado por um canto responsorial, que repete de forma cíclica o seguinte texto: Adão, Adão! Oi cadê Salomé, Adão Oi cadê Salomé, Adão, mas Salomé foi passear. Adão, Adão! Oi cadê Salomé, Adão Oi cadê Salomé, Adão, Mas foi pra Ilha de Maré (Mestre Jogo de Dentro) Transversalmente, Glauber aborda a questão de gênero presente no pensamento euro-hetero-macho-autoritário (Prudente; Silva, 2019), quando escolhe uma música que marca a presença da mulher nomeada como Salomé. Este canto rememora a importância da mulher na cosmovisão da africanidade, se referindo à sua participação na roda de capoeira como ato de valentia. Vale ressaltar, a importância de mulheres como Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Filipa na luta da Independência da Bahia. É provável que essa criatividade cênica tenha como subjacência na memoralidade de um contributo militar com essência da corporalidade africana, que norteou as experiências campais da guerra do Paraguai. Esse fenômeno ‘ao nosso quase cego ver’ persiste na cultura afrobrasileira na dinâmica musical que traça a relação geográfica do Brasil e do Paraguai pelo dimensionamento das águas, onde a orixalidade nutria de força querigmática os africanos. Assim, a partir do filme Barravento, a trilha sonora nos remete ao toque do berimbau, reforçado com um cântico cujo refrão é «Paranauê, paranauê paraná» (Mestre Genaro e Paranaê, 2009). Esses africanos foram compulsoriamente envolvidos na guerra do Paraguai, em razão de uma dificuldade física e fragilidade emocional, que implicava coragem na linha de oficialidade militar daquela época. Constatamos essa reflexão crítica, em Prudente e Gilioli: Os velhos guerreiros africanos da região bantu usam de emboscadas e táticas de surpreender o adversário. Trouxeram essa tradição para as lutas das senzalas e também a levaram para a guerra da Tríplice Aliança, como foi conhecida a Guerra do Paraguai. Afora as táticas de guerra, como a capoeira foi decisiva para o êxito nas batalhas quando essas ocorriam em campo aberto. (2013, p.77) 207 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente Por outro lado, para além da luta física, no filme Barravento temos o berimbau usado como traço de resistência na corporalidade negra na luta de classe. Neste sentido, o marxismo cinemanovista do diretor indicou para uma criatividade original e profundamente crítica e reflexiva, considerando que Glauber Rocha usou a musicalidade do berimbau na trilha sonora para construir uma abstração das lutas de classes. A cena que observamos é caracterizada pela presença da carroça que é meio de produção, do carroceiro que é força produtiva alienada em proveito do capital e do policial como uma espécie de jaguncismo de defesa patrimonial do capital, fugindo da impessoalidade do servidor público, protegendo a rede de pesca de um detentor desse meio de produção estranho a comunidade, que vive com dificuldade de alimentação e depende da pesca para a sobrevivência. Percebemos dessa maneira que, as imagens da carroça, carroceiro, policial e rede significam a exploração capitalista da classe dominante, caracterizada como uma ordem burguesa e a sonoridade do berimbau se impõem como uma resistência axiológica da africanidade, entrelaçada como uma insurgência contra a exploração econômica, que tem configuração racial. Nesse processo dinâmico Glauber estabelece a luta de classe essencial à sintaxe do cinema novo com um tratamento de coralidade sociorracial. O preto simbolizando o proletariado versus a dominação branca representando a burguesia, Gerber (1997), Prudente (1995). Considerando esse contributo autoral de Glauber Rocha fica ainda mais cristalino a amplitude que a trilha sonora do cinema negro pode atribuir como significação na dinâmica da educação das relações étnico-raciais no processo disciplinar da sensibilização, no âmbito da educação musical, que ganha com isso o valor agregado do respeito à diversidade um elemento fundante no multiculturalismo musical. Desta forma, as qualidades estéticas da trilha sonora do filme Barravento poderão ser objeto da sensibilização do ser humano para a musicalidade negra por meio da apreciação musical com destaque ao berimbau. A partir desse contato com a trilha de Barravento, o professor de música pode ampliar o repertório musical dos estudantes com obras que destacam o berimbau como a obra instrumental intitulada de “Saudades”, que foi gravada pelo músico Naná Vasconcelos pela EMC Records no ano de 1979 na Alemanha. Esse álbum é constituído de músicas compostas por Naná Vasconcelos como, por exemplo: O Berimbau, Vozes, Ondas e Dado; e por Egberto Gismonti com a música Cego Aderaldo. Além do berimbau, os arranjos trazem diferentes ritmos, melodias, harmonias, formas musicais, timbres, 208 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente coloridos, texturas, intensidades, alturas e efeitos que podem ser escutados e percebidos na sonoridade de diferentes instrumentos como percussão, cordas friccionadas, cordas dedilhadas, sopro, além de vozes. Com essa obra, o professor poderá conduzir os estudantes à percepção das qualidades estéticas, enriquecendo a qualidade de suas vidas e sensibilizando-os para a diversidade. O artigo nos leva a concluir que a musicalidade do cinema negro pode ser um elemento favorável para a educação das relações étnico-raciais na educação musical, no sentido do desenvolvimento integral do estudante, realizado mediante processo musico pedagógico com a musicalidade negra, que inevitavelmente tem reflexo na concepção de corporalidade, circularidade e religiosidade do dinamismo comunal lúdico e gregário da africanidade. Neste processo, ganha destaque a sensibilização à música, instrumentos, cantos, danças e lutas forjadas na oralidade da comunidade negra, como apresentadas em Barravento. De tal forma que a conjugação educação musical e cinema negro será favorável à educação das relações étnico-raciais como subsídio à experiência musical que se faz na ludicidade e no sentido coletivo percebido na capoeira, (Prudente; Silva 2019). Neste contexto, o ensinamento do cinema negro dimensionado pela trilha sonora musical apresenta a sonoridade de elementos musicais, os quais, na visão de Reimer (1970), são formas objetivas de despertar a resposta às qualidades estéticas musicais, provocando insights acerca da subjetividade dos sentimentos humanos. É pertinente a conclusão de que a musicalidade da trilha sonora na relação étnico-cinematográfico de Barravento pode viabilizar o acesso à subjetividade dos sentimentos do povo negro, contribuindo na luta contra o racismo. A resposta a essas qualidades estéticas da musicalidade africana dessa tendência étnico-cinematográfica é conjugada com o conhecimento da religiosidade expressa na orixalidade, em momentos em que instrumentos musicais são utilizados como forma de comunicação com as entidades religiosas. Conjugada com o senso de coletividade expressa em práticas musicais gregárias comunais, (Prudente; Silva 2019), em um processo qualitativo e educacional como ocorre em Barravento. Conjugada com a percepção do negro como minorias, e como sujeito de sua libertação. Neste sentido, além da sensibilização com as qualidades estéticas musicais, ocinema negro favorece o desenvolvimento da reflexão crítica e ação como na práxis libertadora, Freire (2005). 209 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente É nessa linha de compreensão que percebemos a pertinência da apreciação musical da trilha sonora do cinema negro no ensinamento tanto de aspectos da subjetividade da criatividade, imaginação e sensibilidade negra, quanto do fazer musical e reflexão crítica. Portanto, em nossa perspectiva, a conjugação da educação musical com o cinema negro favorece a educação das relações étnico-raciais, por meio da sensibilização à musicalidade e aos valores civilizatórios da cosmovisão africana primogênita. Referências: AGAMBEN, Giorgio. O cinema de Guy Debord. Território de filosofia. Aurora Baêta. 26 de maio de 2014. Disponível em: https://territoriosdefilosofia.wordpress. com/2014/05/26/o-cinema-de-guy-debord-giorgio-agamben/ Acesso em: 01 maio 2020. Texto originalmente publicado em: AGAMBEN, Giorgio. L. in: Image et mémoire, Hoëbeke, 1998, pp. 65-76. ALMEIDA, Rogério de. (2017). Cinema e educação: fundamentos e perspectivas. Educ. rev. [online]. 2017, vol. 33, e153836. Epub Apr 03.DOIhttps:// doi.org/10.1590/0102-4698153836>. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/ kbqWpx6Vq6DszHrBT887CBk/abstract/?lang=pt Acesso: 15 ago. 2020. Barravento. [filme]. Direção: Glauber Rocha, lançamento na França em 1969. Produtora Iglu Filmes Produção: Braga Netto 1962. (1h20m). BRASIL, Lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 de dez. 1996. ______. Lei nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 10 jan. 2003. _____. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 10.639 de 2003, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da temática “História e Cultura Afro-brasileira 210 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente e Indígena”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2008/lei/l11645.htm.>. Acesso em: 10 jun. de 2022. BRASIL, A.; VARGAS, A. S. O carnaval educa: um olhar a partir da primeira capital do Brasil. Revista Extraprensa, [S. l.], v. 14, n. 1, p. 254-273, 2020. DOI: 10.11606/ extraprensa2020.174451. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/extraprensa/ article/view/174451. Acesso em: 13 set. 2023 BRUNER, Jerome S. Uma Nova Teoria da Aprendizagem. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1969 DALARI, Dalmo. Apresentação (In:) Prudente, Celso Luiz. Mãos Negras: Antropologia da arte negra. 3. ed. São Paulo: Panorama do Saber, 2002. v. 1. 152p DUARTE, Rosália. (2009). Cinema & educação. Belo Horizonte: Autêntica FRESQUET, Adriana. Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005. GERBER, Raquel. (1997). Glauber Rocha e a experiência inacabada do cinema novo. (Coleção Cinema, v. 1).Riode Janeiro: Paz e Terra. GOMES, Nilma Lino. Educação, relações étnico-raciais e a Lei 10.639/03. Portal Geledés: Instituto Da Mulher Negra, 2011. Disponível em: https://www.geledes.org. br/educacao-relacoes-etnico-raciais-e-lei-10-63903-2/ . Acesso em: 13 jun. 2019. IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, 360p. SWANWICK, Keith. A basis for music education. 9ª ed. London: Routledge, 1991. LANGER, Susane K. Langer. Philosophy in a New Key. New York: Mentor Books, 1942, p. 191. Leão de Sete Cabeças. [filme]. Direção: Glauber Rocha. Paris: Polifilm; Claude Antoine Filmes, 1971, (01h03min.). LOUREIRO, Alicia. M. A. O ensino de música na escola fundamental. 8 ed. São Paulo: Papirus, 2012. MESTRE Genaro; Paranaê (composição). Paranaue. Grupo Capoeira Angola, 2009. Disponível em: https://www.letras.mus.br/grupo-capoeira-angola/1266182/ acesso em 23 ago. 2023. 211 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente Mestre Jogo de Dentro. (composição). Cadê Salomé. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=cCcNyy6zCAU acesso em 23 ago. 2023. PRUDENTE, Celso Luiz. A dimensão pedagógica do Cinema Negro: a imagem de afirmação positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio. REVISTA EXTRAPRENSA, v. 13, p. 5-305, 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/extraprensa/article/ view/163871. PRUDENTE, Celso Luiz. A imagem de afirmação positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio na dimensão pedagógica do Cinema Negro. EDUCAÇÃO E PESQUISA, v. v.47, p. e237096, 2021. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ep/article/view/193616 PRUDENTE, Celso Luiz.A dimensão pedagógica da alegoria carnavalesca no Cinema Negro enquanto arte de afirmação ontológica da africanidade: pontos para um diálogo com Merleau-Ponty. Revista de Educação Pública, v. 23, 2014, p. 403-424. Disponível https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/educacaopublica/article/ em: view/1624 Acesso em 26 jan. 2020. PRUDENTE, Celso Luiz. Tambores negros: antropologia da estética da arte negra dos tambores sagrados dos meninos do Morumbi: pedagogia afro. São Paulo: Fiuza, 2011. PRUDENTE, Celso Luiz. Barravento: O negro como possível referencial estético do Cinema Novo de Glauber Rocha. 1ª. ed. São Paulo: Editora Nacional 1995. PRUDENTE, Celso Luiz; GILIOLI, Renato de Sousa Porto. Povos Bantos no Brasil. Mogi das Cruzes: Oriom. 2013. 103p. PRUDENTE, Celso Luiz; OLIVEIRA, Flávio Ribeiro de. (2017). A lusofonia de horizontalidade da imagem do ibero-ásio-afro-ameríndio versus a verticalidade da imagética do euro-hétero-macho-autoritário: a dimensão pedagógica do cinema negro posto em questão. In: Confluências de Culturas no mundo lusófono. XXVII Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa. Campinas, 1ªed. Portugal: AULP, 2017, v. 1, p. 107-116. Disponível em: http://aulp.org/wp-content/uploads/2019/01/ Atas_Campinas_ISBN_eletronico.pdf> Acesso em 18 dez 2020. PRUDENTE, Celso Luiz; SILVA, D. C. . A dimensão pedagógica do cinema negro aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: o olhar de Celso Prudente.. 2ª. ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2019. 239p. 212 a importância da trilha sonora de barravento Alexandre Siles Vargas e Celso Luiz Prudente REIMER; Bennett. A philosophy of music education. New Jersey: Prentice Hall, Englewood Cliff, 1970. SARTRE, Jean-Paul. (1960). Reflexões sobre o racismo. Tradutor J. Guinsburg. 2ª Ed. São Paulo: Ed. Difusão. Europeia do Livro. SILES VARGAS, A.; NOGUEIRA DE SOUZA, A.; PRUDENTE , C. L. A musicalidade e orixalidade no filme Barravento: a pedagogia do cinema negro. Revista Trama Interdisciplinar, [S. l.], v. 14, n. 1, p. 114–132, 2023. Disponível em: http://editorarevistas. mackenzie.br/index.php/tint/article/view/15482 . Acesso: 23 maio. 2023 SHAFFER, Kay. O berimbau-de-barriga e seus toques. 1977. Disponível em: https:// www.capoeirashop.fr/img/cms/O_berimbau_de_barriga_e_seus_toques-Kay_Shaffer. pdf Acesso 20 ago. 2023. VARGAS, A. S. Ensino e aprendizagem de Samba-Reggae: recursos e procedimentos. In: I Encontro Internacional de Cultura, Linguagens e Tecnologias do Recôncavo. Anais do I Encontro Internacional de Cultura, Linguagens e Tecnologias do Recôncavo - ENICECULT. Santo Amaro, 2017b. Disponível em: http://enicecultufrb.org/ocs/ index.php/enicecult/ Ienicecult/paper/view/403/16. Acesso em: 20 mar. 2019. VASCONCELOS, Nana. Álbum Saudades. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=C-Z5BVqg3Vk Acesso em 20 ago. 2023. 213 A literatura infantil nos anos inicias na construção da identidade negra: A representatividade positiva dos aspectos étnicos e culturais da população negra como empoderamento identitário Alexsandra Bruna de Assis Campos Rubia Helena Naspolini Coelho Yatsugafu Introdução O presente artigo resulta de um trabalho de conclusão de curso, intitulado como Dossiê II, que foi realizado no ano de 2022, durante o Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso. A primeira autora do presente trabalho, sob orientação da segunda autora, tratou da questão do racismo. A temática foi escolhida, tanto em função dos principais aspectos de sua vida pessoal durante a trajetória escolar, assim como de sua trajetória formativa, tendo em vista as experiências com as questões das relações étnico-raciais. Além disso, durante a graduação a autora pôde vivenciar, durante o estágio obrigatório e o não-obrigatório, situações que contribuíram com a pesquisa realizada. Dentre algumas dessas vivências do estágio, a autora revisita uma das atividades de observação em que percebeu a dificuldade de algumas crianças negras em identificarem a cor da sua pele, durante as atividades de autorretrato. Ainda que seja importante e necessário falar sobre o racismo, há muitos momentos difíceis, especialmente para quem se vê diante da situação. As vivências 214 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu em que se percebeu o racismo no cotidiano escolar, como o silenciamento por parte da equipe pedagógica, atitude que fortalece ainda mais o racismo, despertaram o desejo de discutir sobre o racismo através de um olhar pedagógico – um olhar pudesse apresentar elementos que contribuíssem com uma construção identitária da população negra de forma positiva. Nesse sentido, além de se contextualizar historicamente a representatividade da população negra em nossa sociedade, também foram abordados livros da literatura infantil que apresentam aspectos históricos, culturais e étnico-raciais que pudessem contribuir ricamente para a construção da identidade negra de forma positiva durante os anos iniciais, com o objetivo de colaborar com a autoestima e o empoderamento de crianças negras. A literatura infantil na construção da identidade negra enquanto potência nos anos iniciais A questão racial é um tema que exige do(a) professor(a) sensibilidade para discussão. Em 2023 é inaceitável que um(a) professor(a) realize suas aulas negando a existência do racismo. Após 20 anos da Lei 10.369/03, ainda é possível perceber que muitos professores têm dificuldade em falar sobre a questão racial na sala de aula com os alunos. Então o que precisa ser feito é encontrar meios que potencializem e possam transformar a percepção de crianças negras e brancas com relação à negritude. Como destaca Munanga, alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados, não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala como momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que ela traz à nossa cultura e à nossa identidade nacional. Na maioria dos casos, praticam a política de avestruz ou sentem pena dos “coitadinhos”, em vez de uma atitude responsável que consistiria, por um lado, em mostrar que a diversidade não constitui um fator de superioridade e inferioridade entre os grupos humanos, mas sim, ao contrário, um fator de complementaridade e de enriquecimento da humanidade em geral; e por outro lado, em ajudar o aluno discriminado 215 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu para que ele possa assumir com orgulho e dignidade os atributos de sua diferença, sobretudo quando esta foi negativamente introjetada em detrimento de sua própria natureza humana. (BRASIL, 2005,p. 15) Dito isso, o trabalho docente exige do(a) professor(a) habilidades que transcendem os conteúdos pedagógicos, tal como competências que ajudem a lidar com situações adversas em sala de aula, como as relações sociais, mantendo uma postura ética, política e estética entre os alunos. Uma vez que a escola é um ambiente em que todos os sujeitos devem se sentir valorizados, é preciso repensar o currículo escolar e a formação do(a) professor(a), com base na Lei 10.369/03. Além disso, não há como negar que a discriminação racial vivida pelas crianças afeta diretamente a construção da sua identidade. Para que o sujeito consiga criar uma imagem positiva sobre a sua identidade ou sua cor, é preciso que o seu próprio corpo seja uma fonte de harmonia e prazer. Caso o corpo seja fonte de dor, o sujeito passa a rejeitar ou até mesmo “esquecer” o que causa o sofrimento (SOUZA, 1983). Em consequência dessas situações, a criança negra passa a construir a imagem de si mesma de forma pejorativa como relacionada ao feio e sujo, enxergando no branco qualidades que deseja para si, como sendo o belo. O rapper e autor Emicida, criador do livro Amoras, diz em uma entrevista em seu canal do Youtube, chamado também Emicida, ao responderà pergunta sobre o motivo que o levou a criar um livro infantil, que, enquanto um homem negro, já passou por várias situações de racismo, especialmente na escola, e quando essas situações aconteciam, o autor relata que não sabia como se defender, que passou a achar que o problema era ele. Nesse sentido, o autor diz que a negritude enquanto uma potência positiva precisa chegar até as crianças, antes dos traumas vivenciados pelo racismo. Desse modo, a literatura, como uma ferramenta de leitura com poder de desenvolvimento cognitivo, emocional e social, é um meio de formação de indivíduos mais críticos, sensíveis e conscientes. Sendo assim, uma das formas de trabalhar as questões étnico-raciais como uma representatividade positiva é utilizando a literatura afro-centrada, em consonância com a Lei 10.369/03, na construção de práticas pedagógicas antirracistas. 216 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu Elementos importantes no trabalho da literatura infantil a partir da representatividade negra A população negra, historicamente, sempre foi um grupo que sofreu tentativas de opressão, silenciamento e exclusão, e seus aspectos culturais, históricos, e até mesmo físicos, passaram por um processode extermínio que feriram e ferem a população negra até os dias de hoje. Ainda que a Lei 10.369/03 tenha atendido algumas demandas da luta do movimento negro em busca da valorização da cultura afro nos currículos escolares, é importante ressaltar que ainda há uma deficiência enorme com relação à forma com que é trabalhado o assunto nas escolas, especialmente nos livros didáticos e em alguns livros de literatura infantil que tentam se adequar às questões de representatividade e que, em muitas vezes, acabam tornando a representatividade estereotipada. Na pesquisa de Eliane Cavalleiro (2010) na educação infantil foi possível perceber que as crianças, desde muito cedo, constroem sua identidade influenciadas por meios externos, sejam eles positivos ou negativos. Em vista disso, levando em consideração todo o processo histórico ao qual o negro foi submetido e representado, é primordial que, ao trabalhar assuntos relacionados a África ou ao negro, seja rompidaa visão depreciativa, equivocada e silenciadora de vozes. Um dos aspectos mais importantes para a construção positiva da identidade do indivíduo negro, é o contato com livros onde existem personagens que representem suas características de forma positiva, com intuito de promover o empoderamento, a autoestima, a valorização do seu cabelo, da cor de sua pele, da sua história etc. Ao mencionarmos aspectos da história da população negra, é primordial que falemos sobretudo das mulheres negras, pois ahistória da mulher negra em relação ao racismo e ao machismo é marcada por uma trajetória de muita luta. Desde a período da escravidão, a mulher negra era vista e tratada como objeto e com isso sofreu várias formas de violência, tendo sua integridade violada. Como ressalta Lelia Gonzales (2020), (...) discriminação de sexo e raça faz das mulheres negras o segmento mais explorado e oprimido da sociedade brasileira, limitando suas possibilidades de ascensão. Em termos de educação, por exemplo, é importante enfatizar que uma visão depreciativa dos negros é transmitida nos textos escolares e perpetuada em uma estética racista constantemente transmitida pela mídia 217 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu de massa. Se adicionarmos o sexismo e a valorização dos privilégios de classe, o quadro fica então completo. Começando por essas articulações ideológicas adotadas pelas escolas, nossas crianças são induzidas a acreditar que ser um homem branco e burguês constitui o grande ideal a ser conquistado. Em contraste, elas são também induzidas a considerar que ser uma mulher negra e pobre é um dos piores males. Devem-se levar em conta os efeitos da rejeição, da vergonha e da perda de identidade às quais nossas crianças são submetidas, especialmente as meninas negras. (GONZALES, 2020. p. 145) A autora também destaca a importância das mulheres negras na construção da sociedade, afirmando que “[a] mulher negra é responsável pela formação de um inconsciente cultural negro brasileiro. Ela passou os valores culturais negros; a cultura brasileira é eminentemente negra, esse foi seu principal papel desde o início.” (GONZALEZ, 2020. p. 285). Nesse sentido, é primordial a potencialidadede trabalhar, no cotidiano das crianças, a representatividade dessas mulheres e a importância que elas tiveram e têm em nossa sociedade. É importante que crianças negras passem a enxergar em seus semelhantes a possibilidade de alcançar seus sonhos e objetivos de modo que isso fortaleça também outros(as) meninos(a) negros(as), ainda que vivam em uma sociedade estruturalmente racista. Com relação aos homens, precisamos trabalhar com o objetivo de acabar com o estereótipo construído em nossa sociedade sobre o homem negro. O estereótipo de malandro associado à negritude é uma construção social com raízes históricas no Brasil. Os negros foram e são vistos como desonestos e predispostos a cometer crimes e isso acontece desde os tempos da escravidão. Com a abolição da escravatura, essa visão negativa dos negros continuou enraizada e contribuiu decisivamente para que negros fosseme ainda sejamexcluídos dos processos econômicos e sociais do país: “nessa construção ideológica negro representou uma figura indolente que o fez malandro, com proposito de legitimar com isto a condição de lumpen proletariado, que ainda é caracterizado como feição da malandragem urbana” (OLIVEIRA; PRUDENTE, 2016, p. 289). Infelizmente esse estereótipo tem servido como uma maneira para justificar a discriminação. Podemos analisar dados estatísticos sobre evasão escolar, percebendo 218 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu as relações destes com a porcentagem carcerária do Brasil, que é composta majoritariamente por homens negros e casos de violência policial e racismo, como o de Georgy Floyde, que são bastantes comuns no Brasil, e que hoje tem mais visibilidade como uso das redes sociais. Como salienta Fanon Nas profundezas do inconsciente europeu elaborou-se um emblema excessivamente negro, onde estão adormecidas as pulsões mais imorais, os desejos menos confessáveis. E como todo homem se eleva em direção à brancura e à luz, o europeu quis rejeitar este não-civilizado que tentava se defender. Quando a civilização europeia entrou em contacto com o mundo negro, com esses povos selvagens, todo o mundo concordou: esses pretos eram o princípio do mal. (2008 p. 160) Dentro das escolas, é muito comum situações em que haja o estereótipo do menino negro, como bagunceiro, mal educado, agressivo, etc. Essas situações presentes em nosso cotidiano, causam no menino negro danos gravíssimos com relação à sua autoestima e autoimagem. Como afirma Santos: “A violência racista subtrai do sujeito a possibilidade de explorar e extrair do pensamento todo o infinito potencial de criatividade, beleza e prazer que ele é capaz de produzir” (1983 p.10). Sendo assim,uma das maneiras de colaborar parao aluno sentir orgulho de si e das características que o constituem é apresentar a ele um acervo de literatura infantil que possibilite a construção de uma identidade étnico-racial positiva. Com relação aos meninos é importante que eles possam se sentir representados, desde aspetos éticos e estéticos, para que, de fato, realizem uma construção em que se sintam valorizados. Além disso, a literatura é um instrumento que pode contribuir também para a desconstrução de estigmas, estereótipos e preconceitos ainda enraizados nos espaços escolares. Outro tema a ser abordado com crianças é o cabelo afro. Lidar com a temática é um assunto que exige muito cuidado e atenção por parte dos professores. Nilma Gomes em uma pesquisa por quatro salões étnicos na região de Belo Horizonte, com 17 mulheres negras e 11 homens negros, recolheu depoimentos sobre a trajetória dessas pessoas, com relação ao corpo como identidade. Um dos aspectos mais comuns nos depoimentos está relacionado à trajetória escolar: 219 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu (...) experiência com o corpo negro e o cabelo crespo não se reduz ao espaço da família, das amizades, da militância ou dos relacionamentos afetivos. A trajetória escolar aparece em todos os depoimentos como um importante momento no processo de construção da identidade negra e, lamentavelmente, reforçando estereótipos e representações negativas sobre esse segmento étnico / racial e o seu padrão estético. (GOMES, 2002, p.41) Na adolescência esse processo se torna um pouco mais difícil, pois é o momento em que meninas e meninos negros passam a lidar com novos sentimentos, como a vaidade e a autoestima, e muitas vezes precisam lidar com a rejeição. E nesse momento é de extrema importância que já tenham construído uma base forte com relação às suas características físicas, de maneira positiva: A rejeição do cabelo pode levar a uma sensação de inferioridade e de baixa autoestima contra a qual faz-se necessária a construção de outras estratégias, diferentes daquelas usadas durante a infância e aprendidas em família. Muitas vezes, essas experiências acontecem ao longo da trajetória escolar. A escola pode atuar tanto na reprodução de estereótipos sobre o negro, o corpo e o cabelo, quanto na superação dos mesmos. (GOMES, 2002, p. 47) Portanto, a literatura infantil se apresenta como uma das ferramentas quando precisamos discutir o tema cabelo afro, com as crianças. É necessário que essa discussão seja realizada de forma leve e empática, para que possam realmente compreender e relacioná-la com a realidade. Um outro aspecto relevante para o fortalecimento deidentidade é a possibilidade de as crianças conhecerem a história de seus antepassados, como, por exemplo,aprendendo sobre a história da África e a história do negro no Brasil, de modo que se apresente um novo paradigma que rompa com a visão depreciativa do negro, como também se proporcione compreensões sobre as contribuições culturaisnegras apresentadas positivamente, como gestos, língua, comportamentos etc. Portanto, os aspectos a serem considerados no trabalho da literatura infantil afro-centrada, na perspectiva da representatividade enquanto potência, é a valorização da identidade negra, a desconstrução dos estereótipos, o empoderamento feminino, 220 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu o enaltecimento da beleza da pessoa negra (como o cabelo crespo) eo combate à intolerância religiosa, mediante a apresentação positiva dos orixás que fazem parte da cultura africana. Propostas de livros de literatura infantil que podem contribuir para práticas educativas antirracistas Diante dos aspectos mencionados anteriormente, foi selecionado um pequeno acervo da literatura infantil afro-centrada, cujas obras estão disponíveis em meios digitais e/ou impressos e que podem auxiliar professores em suas práticas pedagógicas antirracistas, tendo em vista o negro como protagonista e a valorização da cultura afro. O primeiro deles, Pequenas Grandes Lideres, apresenta a história de algumas mulheres negras líderes que abriram caminhos para que outras mulheres negras pudessem seguir. Entre elas há cientistas, políticas, doutoras, pintoras, escultoras, dançarinas, etc., todas negras. A autora do livro conta que escreveu o livro como uma homenagem ao mês das mulherese as escolhidas por ela foram todas negras. A autora relata que durante a pesquisa sobre as histórias dessas mulheres se emocionou bastante, pois relembrava quando era mais nova e pensava nos tipos de sonhos que poderia ter tido se tivesse ouvido falar dessas mulheres enquanto crescia, se soubesse que tantas pessoas que se pareciam com ela tinham feito coisas incríveis (HARRISON, 2022).Na capa do livro (Figura 1) vê-se algumas mulheres importantes da história: Figura1- Capa do livro Pequenas Grandes Líderes. Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022. 221 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu A autora também escreveu o livro Little Leaders Expecptional Men in Black History (2019), que, atualmente, está disponível apenas na versão em inglês. O Pequeno Príncipe Preto, por sua vez, é uma adaptação de uma peça teatral de Rodrigo França, escrita como uma releitura de O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupery (1900-1944). Além de apresentar um menino negro como protagonista, a história mostra vários aspectos da cultura Africana, como, por exemplo, a árvore Baobá, que é originária do continente africano e é considerada uma árvore sagrada que simboliza uma conexão entre a vida e a morte. Apresenta também a filosofia africana Ubuntu,que significa “Eu sou porque nós somos”, e simboliza o conceito de humanidade, empatia, compaixão, humildade etc. Essa obra aborda de forma leve o conceito de ancestralidade evaloriza as características físicas do menino, como a cor da pele, o tamanho da boca, do nariz, o cabelo etc. O autor relata que o livro possui ingredientes da sua família, como a avó que ensinou a ele sobre ancestralidade, os pais que ensinaram a valorizar a cultura negra e o irmão que é apaixonado pela filosofia Iorubá. A mensagem que o autor quer transmitir em seu livro é que devemos nos amar como realmente somos e que devemos semear o amor entre nós (FRANÇA, 2020). Figura 2 - Capa do livro O Pequeno Príncipe Preto. Fonte: acervo pessoal das autoras, 2022. 222 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu Amoras, do Rapper Emicida, é um livro é muito interessante, pelo fato de trazer vários elementos que tornam possível realizar a leitura com diferentes perspectivas. Nele, o autor aborda representatividade afro, com Zumbi dos Palmares, Martin Luther King e o lutador Muhammad Ali. O livro também traz elementos como o cabelo afro “cabelo de nuvens”, a cor da pele “pretinha como uma amora”, referências religiosas como os orixás. Além disso, o autor também mostrauma boa relação afetiva entre um pai que uma filha que estão passeando em um pomar (EMICIDA, 2018). Figura 3 - Capa do livro Amoras. Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022. Todos os livros aqui apresentados têm como personagem principal uma criança negra. Nesse sentido, ainda que indiretamente, todos dialogam sobre aspectos relacionados à criança negra, como o cabelo crespo, a cor da pele e antepassados, por exemplo. Mas em alguns momentos se faz necessário uma atenção maior quando o assunto é relacionado ao cabelo, visto que a experiência da criança com o cabelo crespo começa muitas vezes muito cedo e muitas vezes de forma negativa, tornando uma experiência delicada a ser discutida e que merece cuidado. Ainda que a manipulação do cabelo esteja presente em diversas culturas, para o negro esse processo é carregado de muitos conflitos (GOMES, 2002). Para trazer a importância e a visibilidade do cabelo crespo, apresentam-se alguns livros que trazemo cabelo crespo de forma positiva, mas demandam o diálogo durante as leituras para a quebra de estereótipos. Seguem abaixo alguns dos livros que abordam a temática: 223 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu Meu crespo é de rainha é uma obra escrita por Bell Hooks e aborda a importância do cabelo crespo. No livro a autora apresenta, utilizando um poema ilustrado, as várias formas de penteados e cortes que podem ser feitos, o que é muito importante para trabalhar representatividade e autoestima de crianças negras, com o objetivode reverter a situação de invisibilidade. Figura 4 - Capa do livro meu crespo é de rainha. Fonte: https://pin.it/3EUTG3q, 2022. Em O cabelo de Lelê, de Valéria Belém, o mesmo tema é abordado em um poema ilustrado. A história apresenta a valorização dos traços da cultura negra, como pode ser visto em um trecho que diz “depois do atlântico, a África chama e conta uma trama de sonhos e medos, de guerras e vidas e mortes no enredo, também de amor no enrolado cabelo” (BELÉM, 2007). Figura 5 - Capa do livro O cabelo de Lelê. Fonte:https://pin.it/yu5a6ND, 2022. 224 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu Amor de cabelo, de Matthew Cherry, apresenta a história de Zuri, uma menina com cabelo crespo. A mãe de Zuri não está em casa, pois estava se tratando de um problema de saúde, e quando chega o dia da mamãe voltar para casa, Zuri quer fazer um penteado diferente. O pai da menina tenta alguns penteados, mas eles não funcionam, então Zuri assiste a um vídeo em que sua própria mãe ensina a fazer um moicano afro. Todos os elementos da história são muito interessantes, como, por exemplo, a história de superação da mãe de Zuri e o fato de construir a imagem de um pai que é presente, além de trazer elementos muito atuais, como o uso da internet para conhecer e se conectar com pessoas que possuem as mesmas características físicas e que podem ajudar a cuidar e amar o cabelo afro. A história também está no formato deum CurtaMetragem de animação, que foi vencedor do Oscar em sua categoria. Figura 6 - Capa do livro Amor de Cabelo. Fonte: acervo pessoal das autoras, 2022. As tranças de Bintou, de Sylviane Diouf, apresenta a história de uma menina que não estava satisfeita com o fato de não poder colocar tranças em seu cabelo como as mulheres mais velhas de sua comunidade. O livro nos mostra que em algumas culturas as tranças podem fazer parte de um ritual que marca um novo ciclo de vida. Além disso, a história aborda a importância do respeito aos mais velhos e também dialoga sobre paciência. 225 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu Figura 7 - Capa do livro As tranças de Bintou. Fonte: https://pin.it/68JNRoA, 2022. Em Os mil cabelos de Ritinha, Paloma Monteiro apresenta, em forma de poema, uma menina com cabelo crespo que é muito feliz porque tem várias pessoas do seu convívio que fazem penteados em seu cabelo. A mamãe faz trança, a Tia Ana traz uma fita, a dona Graça faz um Black Power, a vovó faz um coque abacaxi e o avô faz a trança nagô. A história aborda elementos importantes para a criança de cabelo crespo e traz a história de forma muito positiva. Figura 8 - Capa do livro Os mil cabelos de Ritinha. Fonte: https://pin.it/9D8Z1zV, 2022. 226 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu Em Sulwe, Lupira Nyong’o conta a história de uma menina que tinha muita insegurança por conta da cor da sua pele e rezava todos os dias para ter a cor da pele mais clara. Um dia, Sulwe decidiu se abrir para a sua mãe, que, com muito carinho e afeto, explicou para a menina que o brilho estava nela própria, já que o seu nome significa estrela. Em uma noite, Sulwe então aprendeu com a estrelas sobre como as pessoas associavam a noitea coisas ruins, como coisas assustadoras. Então, a noite se irritou e abandonou a Terra, fazendo com que as pessoas reconhecessem sua importância, assim como a luminosidade. A pequena garota entendeu que a noite é tão importante quanto o dia e que quando ela precisasse de algo que fizesse-a lembrar do seu brilho, bastava olhar para o céu no momento mais escuro da noite que ela se lembraria do quanto é importante e bela. Com isso Sulwe passou a se sentir linda por dentro e por fora. A autora contaque a história de Sulwe é muito parecida com a dela, pois sofria muito racismo por ter a pele escura como a cor da noite. A autora relata que seus sentimentos só mudaram quando passou a ter contato com mulheres negras quer eram reconhecidas também por sua beleza. A autora também ressalta que a beleza a que ela se refere é a manifestação interna de gentileza conosco e com os outros. Pode ser um livro comque muitas crianças se identifiquem, portanto muito necessário em sala de aula para dialogar com as crianças. Figura 9 - Capa do Livro Sulwe. Fonte: acervo das autoras, 2022. 227 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu Chapeuzinho vermelho e o boto-cor-de-rosa é uma obra de adaptação de Cristina Agostinho e Ronaldo, da obra originalmente francesa intitulada Chapeuzinho Vermelho. Na versão brasileira a Chapeuzinho Vermelho mora nas margens do Rio Negro, no estado da Amazônia. Quando a garota vai levar algumas frutas típicas como tacamã, abiu e camu-camupara a sua avó, encontra um boto-cor-de-rosa no caminho. No decorrer da história são apresentados vários elementos da cultura brasileira, especificamente da região do Amazonas. A obra desperta o enorme desejo de recontar outras obras clássicas, na perspectiva de valorizar elementos que fazem parte do cotidiano das crianças brasileiras, assim como outros livros da coleção de adaptação, como Cinderela e Chico Rei e Joãozinho e Maria. Figura 10 - Capa do Livro Chapeuzinho vermelho e o boto cor de rosa. Fonte: https://revistacanjere. com.br/literatura-infantil%EF%BB%BF/, 2022. Portanto, é possível perceber que há inúmeros livros que abordam os aspectos mencionados anteriormente. Tendo em vista aexperiência da autora principal deste artigo como estagiária do curso de Pedagogia, percebe-se queo que impossibilita ou dificulta o trabalho do(a) professor(a) utilizando esses livros como referências é o fato de não priorizarem a temática no momento da escolha ou compra dos materiais. Os livros aqui apresentados foram escolhidos utilizando como parâmetro os aspectos étnicos e estéticos com relação à história contada e a representação das ilustrações, tendo em vista 228 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu que esses aspectos devem ser observados para que de fato seja realizada uma construção positiva utilizando os livros de literatura infantil. Além disso, é primordial que se faça o bom uso do livro literário para que as crianças possam compreender o contexto da história e relacioná-las com a realidade. Práticas pedagógicas que possibilitam um trabalho com a Literatura Infantil que potencialize a identidade negra nos anos iniciais Diante dos livros literários apresentados, é possível perceber que a literatura infantil se apresenta como uma possibilidade para a abordagem de uma educação antirracista e da construção de uma representatividade positiva da identidade negra no cotidiano escolar. Contudo, é necessário refletir sobre as práticas pedagógicas no momento de trabalhar os livroscom as crianças. Como afirma o autor Cosson (2009) em Letramento literário: teoria e prática: A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência ser real realizada. É mais do que um conhecimento a ser reelaborado, ela é incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade. No exercício da literatura podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço da nossa experiência e ainda assim, sermos nós mesmos. É por isso que interiorizamos com mais intensidade as verdades dadas pela poesia pela ficção. (COSSON, 2009, p. 17) E é por essas e outras características que o autor nos diz que a literatura deve ocupar um lugar especial na escola e na vida dessas crianças. Entretanto, apenas ler para as crianças o acervo literário aqui proposto, cujas temáticas estão relacionadas à negritude, não é suficiente para que a finalidade a ser atingida através da leitura seja alcançada, pois, como diz o autor recém citado, ler implica troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também com a sociedade onde ambos estão localizados, pois os sentidos são resultado de compartilhamento de pessoas do mundo entre os homens no tempo e no espaço” (COSSON, 2009). 229 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu Para que o sentido das leituras seja alcançado, o autor propõe uma sistematização do processo literário. A primeira parte do processo está relacionada com a escolha dos livros: Aceitar a existência do cânone como herança cultural que precisa ser trabalhada não implica prender-se ao passado em uma atitude sacralizadora das obras literárias. Assim como a adoção de obras contemporâneas não pode levar à perda da historicidade da língua e da cultura. É por isso que o lado do princípio positivo da atualidade das obras é preciso entender a literatura para além de um conjunto de obras valorizadas como capital cultural de um país. (COSSON, 2009, p. 34) Como afirma o autor, é importante valorizar os clássicos literários, mas também se faz necessáriaa adoção de obras contemporâneas que atendam às demandas da atualidade. Com relação à temática abordada nesse trabalho, podemos propor como atividade para os alunos o reconto de obras clássicas, em uma perspectiva de valorização da cultura local e também a quebra de “padrão”, como, por exemplo, a de princesas e príncipes loiros, brancos, entre outros. Com relação às obras escolhidas e apresentadas nesse trabalho, é evidente que a grande maioria das relacionadas ao tema proposto são obras atuais, contemporâneas, visto que a temática passa a ganhar maior visibilidade a partir dos anos 2000, com a Lei 10.369/03. Ainda que haja um bom acervo, no qual existem os elementos citados anteriormente, é importante se atentar para a forma como o livro é apresentado em sua totalidade, para que de fato tenha significados positivos ao aluno. O autor ressalta que a prática da leitura deve ocorrer de forma linear. O primeiro passo é a antecipação, que é o momento no qual o leitor tem suas aproximações iniciais com a obra, antes de entrar no texto propriamente dito. Esse é o momento no qual o aluno pode se sentir instigado a realizar a leitura. O autor cita, por exemplo, os elementos que compõem o texto, como a capa, número de páginas e o título (COSSON, 2009, p.40). A antecipação é muito importante e deve ser valorizada. É nesse instante que a criança tem contato com a capa do livro e com os personagens, podendo ser esse o momento em que a criança negra (que é a principal referência desse trabalho) possa se 230 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu sentir representada e com desejo de realizar a leitura. Outro fator importante sobre a antecipação é o momento de apresentar o autor da obra. Embora tenhamos vários autores que não são negros, que têm consciência sobre a importância da representatividade, boa parte dos livros aqui apresentados foram escritos por mulheres e homens negros, como Emicida, Lázaro Ramos, Lupita Nyong, Vashith Harrison, Rodrigo França, Matthew Cherry, Bell Hooks, entre outros. Autores(as) negros(as) também são referências de personalidades para essas crianças se inspirarem. O segundo momento citato pelo autor é a “decifração”. Ele corresponde à leitura por meio de letras e palavras. O autor cita a dificuldade que alguns alunos podem apresentar nesse momento, pelo fato de não terem familiaridade com as palavras contidas no texto (COSSON, 2009, p. 42). O(a) professor(a), como mediador(a), precisa conhecer bem a obra que será apresentada e realizar uma breve antecipação de situações que podem ocorrer durante a leitura da mesma, como a existência de palavras desconhecidas pelos alunos ou até mesmo pelos próprios professores. Podemos usar, como um exemplo, o livro Amoras de Emicida, no qual o autor disponibiliza um glossário no final da obra, que serve como auxilio para que a leitura do texto possa alcançar seus significados. Segue a imagem: Figura 11 - Glossário do livro Amoras. Fonte: Acervo pessoal da autora, 2022. O ato de apresentar aos alunos palavras que não fazem parte do cotidiano é uma prática que enriquece o repertório linguístico e também ajuda-os a não perderem o interesse pela leitura(COSSON, 2009). 231 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu A última etapa do processo inicial de leitura é, finalmente, o momento da interpretação. O autor ressalta que é muito comum que se confunda a decifração com a interpretação, mas, com relação à interpretação, “o centro desse processamento são as inferências que levam o leitor a entretecer as palavras com os conhecimentos que tem do mundo” (COSSON, 2009, p.42). Cosson também ressalta que a leitura pode ser considerada como um ato solitário, mas a interpretação do texto nunca deixa de ser solidária: “A razão disso é que, por meio do compartilhamento de suas interpretações, os leitores ganham consciência de que são membros de uma coletividade e de que essa coletividade fortalece e amplia seus horizontes de leitura” (COSSON, 2009, p. 68). Visto que o trabalho proposto tem finalidade pedagógica, ou seja, dialogar com as crianças a respeito da diversidade étnico-racial ou contribuir para que os(as) educadores(as) o façam, faz-se necessária uma atenção maior adeterminados momentos dos textos. O Pequeno Príncipe Preto é um livro muito rico de informações, reflexões e diálogos, mas aqui são selecionadas duas páginas que se considera essenciais para um momento de maior reflexão. Seguem as imagens: Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022. 232 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu É muito comum presenciar cenas em que crianças negras apresentam dificuldade em se identificarem com a sua cor de pele. Nessas páginas do livro é possível enxergar a possibilidade de diálogo com as crianças realizando algumas perguntas, como: “Vocês concordam com o Pequeno Príncipe Pretoquando ele fala sobre o ‘lápis cor dele’?”; “Quando você faz o seu autorretrato, qual lápis você usa para pintar a sua cor de pele?”; “A cor do lápis que você usa é parecida com a cor da sua pele?”; entre outras questões que podem surgir durante a interpretação do texto. Figura 13 -Página do livro O pequeno príncipe que fala sobre ancestralidade. Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022. Nesta página o autor fala sobre ancestralidade. No próprio texto ele traz algumas reflexões sobre conhecer o passado. Também é possível dialogar sobre a cor da pele, pois o autor apresenta imagens de alguns homens negros que são os seus antepassados. Pode-seperguntar às crianças: “Por que vocês acham que as pessoas têm cores de peles diferentes?, Vocês se acham parecidos com algum familiar, como os avós?”; entre outras. Em Pequenas Grandes Líderes, por sua vez,há a possibilidadede várias formas de trabalho com as crianças, de acordo com o ano da turma, por ser um livro com muitas 233 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu páginas. Como a autora do livro o escreveu como homenagem ao mês das mulheres, pode-se utilizá-lo com a mesma finalidade. É muito comum que durante o mês das mulheres as escolas adotem em seu planejamento atividades em que as crianças pesquisem sobre mulheres. Como o livro Pequenas Grandes Líderes não apresenta mulheres brasileiras, pode-se propor que as crianças apresentem mulheres negras brasileiras que foram e são importantes para o país. Existe também a possibilidade de realizar um estudo sobre os Reinos Africanos antes ou após a leitura, no qual pode ser proposto às crianças a realização de uma pesquisa sobre mulheres importantes desses reinos. Caso as crianças tenham dificuldades quanto à pesquisa, por questões socioeconômicas, podemos apresentar,utilizando folha impressa, um breve resumo sobre algumas mulheres, como Dandara, Lelia Gonzales, Carolina Maria de Jesus, Ruth Souza, as Amazonas de Daomé, entre outras muitíssimas mulheres,que não caberiamneste pequeno artigo. Além de um trabalho que deve ser pensado de maneira organizada, uma abordagem que potencialize a arte precisa considerar a leitura poética e estética do texto literário, como uma forma de expressão artística, que requer um espaço de imaginação, experimentação e criação, como afirma Ostetto: Arte, na educação, não se resume a momentos e atividades isolados. E, se estamos pretendendo a educação do “ser poético”, implicado na totalidade do olhar, da escuta, do movimento, que se expressa mobilizando todos os sentidos, será importante vermos tais ações como educação estética (mais do que o ensino de arte) que se realiza no dia a dia. Afirmamos, dessa maneira, um princípio que deve atravessar todo o cotidiano, pois tem a ver com atitude (...) (OSTETTO, 2011, p. 5) Dessa forma, o(a) professor(a), como mediador(a), deve proporcionar experiências nas quais seja possível relacionar a leitura poética literária com o cotidiano dos alunos, contribuindo para a construção de um olhar mais amplo das crianças sobre o mundo, a natureza, a cultura, como forma de melhorar suas experiências estéticas para que possam ganhar novos significados (OSTETTO, 2011). A literatura abre portas para inúmeras possibilidades para alcançar o objetivo da atividade literária. Para tanto, é necessário que o(a) professor(a), em sala de aula, 234 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu reconheça o contexto no qual as crianças estão inseridas e sua idade, ano escolar, nível de alfabetização etc., para que, dessa forma, possa propor atividades de registros das interpretações. Como Ostetto (2011) e Cosson (2009) afirmam, o trabalho estético sobre a arte deve respeitar e ampliar o repertório de registro das atividades. O(a) professor(a) precisa possibilitar, por exemplo, que os alunos tenham contato com diferentes tipos de materiais para que possam criar intimidade com diversos tipos de instrumentos, com o propósitode desenvolver outras formas de linguagem e habilidades, sejam por meio de desenhos, colagens, encenação de peças inspiradas na obra, produção de cartaz ou varal, apresentação de música com relação ao tema proposto, entre outras possibilidades que podem partir das ideias das próprias crianças de acordo com seus gostos e imaginação. No trabalho com a literatura infantil que tem como finalidade o trabalho de valorização dos aspectos relacionados à criança negra, portanto, é essencial que a apresentação da arte expressa nos livros dialogue com uma perspectiva ética, estética e poética, com o objetivo de valorizar os aspectos mencionados. Considerações finais A construção identitária da população negra sofre, desde o período colonial, tentativas de opressão que afetam diretamente a construção da sua identidade como um povo. Com objetivo de desconstrução da visão eurocêntrica sobre o que é considerado belo e ideal, foram apresentados neste artigo alguns elementos que devem ser considerados importantes a serem abordados durante a ação pedagógica que trabalha em prol da luta antirracista e em conformidade com a Lei 10.369/03. Para que o objetivo seja atingido, é preciso ampliar a discussão com relação ao racismo estrutural e recreativo, muito presentes dentro das escolas. E, nesse sentido, a literatura infantil se apresenta como um importante meio para a construção de identidade negra de forma positiva e, mesmo, como uma oportunidade de vivência de práticas educacionais antirracistas. 235 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu Referências AGOSTINHO, C.; COELHO, R. Chapeuzinho vermelho e o boto-cor-de-rosa. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2020. BELEM, Valéria. O cabelo de Lelê. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007. BRASIL. Ministério da Educação, Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Superando o Racismo na escola. 2ª ed. Brasília, 2005. BRASIL. Ministério da Educação, Secretária de Educação Básica. Linguagem oral e linguagem escrita na educação infantil: Praticas e interações. 1ed. Brasília: MEC/ SEB, 2016. BRASIL. Ministério da educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03 / Brasília, 2005. BRASIL. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 1998. CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. 6. ed. – São Paulo: Contexto, 2010. CHERRY, Matthew. Amor de cabelo. Tradução: Nina Rizzi. 6 ed. Rio de Janeiro: Galerinha Record, 2022. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Editora Contexto, 2009. D’AVYLA, Jerry. Diploma de Brancura: política social e racial no Brasil - 1917-1945. Rradução: Claudia Santana Martins - São Paulo: Editora UNESP, 2006. DIOUF, Sylviane. As tranças de Bintou. São Paulo: Cosac &Naif, 2004. EMICIDA. Amoras. 1ª ed. São Paulo: Companhia das letrinhas, 2018. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. FRANÇA, Rodrigo. O Pequeno Príncipe Preto. Rodrigo França – 1. ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020. GOMES, Nilma. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação social. Revista Brasileira de Educação, 2002. 236 a literatura infantil nos anos iniciais Alexsandra B. Assis Campos e Rubia H. N. C. Yatsugafu HARRISON, Vashti. Pequenas Grandes Líderes: mulheres importantes da história negra.Vashti Harrison; tradução de Carolina Candido. – Rio de Janeiro, RJ: HaperKids, 2022. HOOKS, Bell. Meu crespo é de rainha. São Paulo: Boitatá, 2018. MONTEIRO, Paloma. Os mil cabelos de Ritinha. Rio de Janeiro: Semente Editorial, 2019. MONTESSORI, Maria Tecla Artemesia. Pedagogia científica: a descoberta da criança. Tradução AuryAzélioBrunetti. São Paulo: Editora Flamboyant, 1965. NYONG’O. Lupita. Sulwe. Rio de Janeiro: Rocco Pequenos Leitores, 2019. PRUDENTE, Celso Luiz. (2019). Futebol e samba na estrutura estética brasileira: a esfericidade da cosmovisão africana versus a linearidade acumulativa do pensamento ocidental. In: A dimensão pedagógica do cinema negro: aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: o olhar de Celso Prudente. Dacirlene Célia Silva. (Org.). 2ª ed. São Paulo: Anita Garibaldi. p. 87-111. OSTETTO, Luciana. Educação Infantil e Arte: sentidos e práticas possíveis.Unesp, 2011, PAIXÃO, Fernando. África: um breve passeio pelas riquezas e grandezas africanas. 2ª ed. – Fortaleza: Editora IMEPH, 2012. PEREIRA, M.; SILVA, M. Percurso da Lei 10.369/03: Antecedentes e Desdobramentos. Linguagem e Cidadania. v. 14, 2012. PIMENTA, Selma G. & LIMA, Maria Socorro L. Estágio e Docência: diferentes concepções. São Paulo. Cortez Editora. 2006. SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro; tradução de Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. 237 As lutas de imagens das minorias versus a política da educação monocultural: as relações étnico-raciais postas em questão Celso Luiz Prudente1 Observei na política da educação a questão da imagem nas relações étnico-raciais do negro. Pude observar isso na emergência das políticas públicas, que foram resultados das lutas das minorias vulneráveis. Constatei na escolaridade monocultural, uma política eurocêntrica. Pareceu-me oportuno refletir alguns aspectos da política educacional, que se deram no âmbito da questão da imagem. Essa reflexão observou a possibilidade de vícios do período colonial, que concorreram para formação da educação monocultural, e como ela buscou a desarticulação das culturas, que lhes são estranhas. Questionei e em que medida o intento de desarticulação persistiu nas relações étnico-racial do afrodescendente e dos não brancos, razão pela qual foram considerados nesse artigo os pontos políticos que colocaram a persistência na pauta dessa discussão. Coube-me a percepção, com efeito, na dinâmica da estrutura das relações nas instituições políticas possíveis elementos reformistas, de contra transformação, que 1 Celso Luiz Prudente – Livre-Docente e Doutor pela FE/USP. Pós-Doutor pelo IEL/UNICAMP. Professor Associado da Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT. Antropólogo, Cineasta. Curador da Mostra Internacional do Cinema Negro. Apresentador e Diretor do Programa Radiofônico: QUILOMBO ACADEMIA, da Rádio USP, FM 93,7 de São Paulo. Artigo originalmente publicado: PRUDENTE, Celso Luiz. POLÍTICAS E GESTÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR. In: Gionara Tauchen E Alfredo Gabriel Buza. (Org.). As lutas de imagens das minorias versus a política da educação monocultural: as relações étnico-raciais postas em questão.. 1 ªed. Curitiba: CRV, 2019, v. 1. 238 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente constituíram indicativos de nuances de hibridismo, que concorreram para formar uma percepção da persistência de baldas estruturantes. Estes comportamentos persistentes impactaram também a demanda educacional, considerando-a aí como reflexo das relações de poder. Chamo atenção para o provável tentame reformista, que foi a contra transformação, sendo um entrave às relações de exaustão, que se deram nas fricções, da demanda de polaridades de interesses conflitantes, que tem possível dinâmica binária. Para essa abordagem, quando uma instituição política experimentava, por razão de um componente estruturante, uma crise exaustiva ao invés de se desenvolver a observância dela em favor do surgimento de outra instituição. Tratavam-na de outra forma, substituindo o componente patológico. Constatando, de tal sorte, que a nova instituição emergencial mostrava na sua origem nódulo da estrutura anterior, impregnando-se aí do valor estruturante da outra, tornando-a híbrida. Esse hibridismo pareceu concorrer à persistência axiológica na política institucional emergente. Nessa linha de abordagem, constatei, por exemplo, que elementos estruturais do Período Colonial persistiram na era do Império. Persistência que se reiterou ainda na República, persistindo nesse curso até os dias de hoje. Notei a persistência em voga nas ações políticas, em diferentes sistemas econômicos, transformando-os, ‘ao meu quase cego ver’, em prováveis instituições híbridas. Para minha percepção, foi necessária a compreensão do processo histórico, que se convencionou chamar de Período Colonial. Considerei aqui alguns pontos, sobretudo no âmbito da: formação do Estado; destino na origem das políticas públicas, e; a difícil relação entre trabalho e consumo; considerando, nessa linha de abordagem, que esses pontos foram essenciais no escravismo, que foi base no Brasil Colonial, impregnando outras instituições políticas, apontando-as para uma considerável insensibilidade com a força de trabalho. Na reflexão em voga, esses pontos concorreram para a constituição dos fatores, que se tornaram elementos estruturantes nas relações políticas, uma vez que eles impactaram no âmbito político, refletindo, dessa maneira, nas complexas relações educacionais. Como foi observado nessa comunicação, conforme seguem: a) Formação do Estado; b) Destino na origem das políticas públicas, e; c) Difícil relação entre trabalho e consumo. 239 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente a) Formação do Estado Para a circunspecção com o Período Colonial, como processo histórico, foi sugestivo considerar a questão do Estado, como fator fundamental e impactante nas diferentes relações políticas, que implicaram as instituições brasileiras. Constatei uma inversão histórica, cujo Estado nasceu antes que Nação. Foi sensato supor que em decorrência disso a estrutura estatal se mostrou diferente dos sentimentos próprios da natureza de nação. Os grupos privilegiados pela coroa portuguesa, já chegaram à condição de expressão do estado antes que se formasse a nação, na formação da ocidentalidade brasileira. Com a empresa do “descobrimento” os portugueses promoviam a colonização em um processo na qual a ibericidade foi também objeto da hegemônica colonização europeia. Revelando, nesse contexto, um Estado de estrutura eurocidental, que antecipou a formação de uma Nação, que se formava inequivocamente no processo de negação da axiologia ibero-ásio-afro-ameríndia. Foi percebida nessa reflexão uma ação política, que já demonstrava uma espécie de comportamento sugestivo daquilo que foi chamado posteriormente de darwinismo social. Comportamento que se mostrou aí como princípio estruturante na formação do Estado, que se revelou definitivamente contrário e estranho à Nação, que se formava na perspectiva da égide de violência absoluta em proveito do interesse externo, que foi um componente essencial ao Estado, na medida em que foi também elemento fundante da educação monocultural eurocêntrica. b) Destino na origem das políticas públicas As políticas públicas se constituíram em elemento substancial na origem ocidental do Brasil. Ao contrário da serôdia como foi dito as políticas públicas, que foram apelidadas de cotas têm a mesma idade da ocidentalidade brasileira. Em outras palavras se tornou cabível dizer com conforto, que o Brasil nasceu sob os auspícios das cotas, ou seja, das políticas públicas. Reiterou-se aqui demasiadamente a provável dissimulação das cotas em razão das mesmas se constituírem como lógica estrutural na formação do Estado. Esta linha de abordagem revelou a natureza classista do estado cuja ação políti240 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente ca, que lhe foi essencialmente peculiar. Isto foi feito em detrimento dos grupos étnicos, ameríndios, africanos e ibéricos, que formaram de forma atípica a Nação, na medida em que a formação foi posterior ao surgimento do Estado em questão. Este se formou estruturalmente em vantagem dos grupos dominantes, que expressavam ou estavam mais próximos de sua essência eurocidental. Foi pertinente a suposição de que todas as ações da política estatal foram feitas em benefício dos segmentos, que nessa localidade, foram estabelecidos pela coroa portuguesa, no atendimento da colonização europeia, que o vitimou também em longo prazo. Aqui se considerou também o português como vítima da colonização eurocidental, que tentava, como em outros processos coloniais, fragmentar seus traços epistemológicos. Com efeito, compreendi no resultado da violenta máquina colonial, que os verdadeiros beneficiários da colonização foram os ingleses, que fizeram disso o acúmulo fundamental para a formação da Revolução Industrial. Para tanto se buscou na essência das relações estatais um favorecimento da possível axiologia europeia, em detrimentos dos valores que lhe fossem estranhos. As dinâmicas das culturas de origem não europeia, tais como: a amerindidade, a africanidade, a ibericidade e asiaticidade, demonstraram assim a mais inequívoca negação epistêmica por parte da ação política decorrente da estrutura estatizante. Isto concorreu para um comportamento esquizofrênico do povo brasileiro, que passou talvez negar por isto sua origem ibérica, asiática, africana e ameríndia. As observações reflexivas postas em voga concorreram à demonstração dos fins étnico-classistas das políticas públicas, que já estavam na origem do Brasil, antes mesmo da formação do fundante componente nacional. Como se constatou nas capitanias hereditárias com as sesmarias, que impactaram todas as relações de propriedade brasileira, configuradas na política étnico-racial de dominação eurocidental caucasiana, configurada no proprietário em detrimento dos seus diferentes, caracterizados nos despossuídos. Essa lógica eurocêntrica serviu de base para a escolaridade monocultural, na medida em que se desconsideravam as outras culturas diferentes das eurocidentais, formadoras da nacionalidade brasileira. 241 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente c) Difícil relação entre trabalho e consumo Nesse contexto, fiz a opção pela observância das relações de consumo e de trabalho, que se estabeleceram no inexorável processo assimétrico essencial à ação política decorrente desse estado étnicoclassita eurocaucasiano1. Percebi aqui a teleologia da lógica dessa ação política estatal, cujo princípio se constituiu na concorrência do acúmulo ao interesse externo de ordenação lusitana de fim eurocidental, que se mostrou como elemento estruturante do estado. Por outro lado, tive o discernimento que, as relações de consumo se constituíram em componente substancialmente contrário as forças de trabalho. De tal sorte compreendi que, à força de produção não cabia o sentido de consumo dos bens resultantes do trabalho, considerando que este estava voltado ao atendimento da ordem estatal, cujos fins foram os interesses externos da colonização eurocidental, que foi instrumentalizada pela coroa portuguesa. Este fenômeno só foi possível em razão do imaginário negativo que os europeus desenvolveram em relação às águas tanto marítimas quanto fluvial, em razão da nau dos loucos, pois os insanos mentais eram colocados em barcos e postos mar adentram conforme se observa em estudos artísticos do renascentismo, que se viu em Foucault: (...) É a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos. A Narrenschift é, evidentemente, uma composição literária, emprestada sem dúvida do velho ciclo dos argonautas, recentemente ressuscitado entre os grandes temas míticos e ao lado de Blauwe Schute de Jacob Van Oestvoren em 1413, de Borgonha. A moda é a composição dessas Naus cuja equipagem e heróis imaginários, modelos éticos ou tipos sociais, embarcam para uma grande viagem simbólica que lhes traz, senão a fortuna, pelo menos a figura de seus destinos ou suas verdades. É assim que Symphorien Champier compõe sucessivamente uma Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza em 1502, depois uma Nau das Damas Virtuosas em 1503. Existe também uma Nau da Saúde, ao lado de Blauwe Schute de Jacob van Oestvoren em 1413, da Narrenschiff de Brant (1497) e da obra de Josse Bade: Stultiferae erae naviculae scaphae fatuarummulierum (1498). O quadro de Bosch, evidentemente, pertence aessa onda onírica. 242 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. “As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos demercadores e peregrinos.” (FOUCAULT, 2005, p.9). Nesse contexto, consideraram-na, como uma espécie de constituição de um lugar próprio do “castigo divino”, que se mostrou reservado aos insanos mentais. Esse imaginário europeu concorreu para uma recusa, que foi dada mediante qualquer possibilidade de incursão ao mar. Esse costume foi constatado como quimérico e estava na contramão do projeto colonial cristão da Igreja situação que emulou para estratégia acumulativa papal uma vez que encontrou nos ibéricos a alternativa às explorações da África e das Índias, que se fizeram nos empreendimentos essencialmente marítimos. A Igreja teve um respeito colonial com os costumes eurocidentais em detrimento aos nomos diferentes da axiologia europeia. Restava nesse processo o trabalho compulsório aos povos de cultura, africana, asiática, ameríndia e ibérica. Por outro lado, tornou-se o consumo derivado do trabalho restrito aos interesses externos da colonialidade europeia. Aos grupos de imagem ibero-ásio-afro-ameríndio estava reservado o destino de desprovidos dos bens de seus próprios trabalhos. Fez-se aí uma lógica nefasta, na qual quem edificava não tinha moradia, bem como quem plantava não tinha alimentação. As ações políticas de estado foram discernidas como o atendimento estrutural em favor da dominação eurocolonial. Isso foi feito para garantir o produto dessa colonização como fator de consumo exclusivo do interesse da hegemonia europeia. Ficava compreendido assim o trabalho como algo circunscrito a demanda compulsória, que se tentou impor aos atores das culturas estranhas aos nomos da hegemonia de eurocidentalidade. Nesse contexto, foi notada a tentativa de reservar às relações desprivilegiadas de trabalho as culturas da: ibericidade, asiaticidade, africanidade e amerindidade. Percebida na lógica de seleção étnico-racial estruturante do estado, que se traduzia na concorrência do privilégio ao segmento que mostrava mais proximidade com o fenótipo colonial, que foi neste caso específico impreterivelmente anglo-saxônico, articulado na 243 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente instrumentalização luso-ibérica vista aqui como vítima mais privilegiada, na medida em que fez o papel de operador nesse jogo colonial europeu. A lógica que foi percebida nessa linha de discernimento se expressou substancialmente nas relações de estado brasileiro, e que já estavam também na origem estatal. Nesta linha de observação, conclui que esses três pontos postos acima constituíram uma lógica impregnada na estrutura do estado. Essa impregnação estrutural persistiu nas relações políticas das diferentes instituições estatais, demonstrada aqui na demanda educacional, sobretudo no processamento das políticas públicas de relações étnico-raciais do afrodescendente, amerindiodescendente e do iberodescendente, que se originaram nas lutas de imagem das minorias vulneráveis, que foram beneficiadas infamemente por cotas, em relação ao eurodescendente, que foi o verdadeiro beneficiário das cotas. A ação política de estado em favor de suposta imagem de superioridade inata dos segmentos dominantes, que são mais próximos das semelhanças dos fenótipos da referência colonizadora eurocidental. Esse foi um discernimento que teve como intento essencial a imposição da lógica da superioridade racial dos europeus, que se fazia em detrimento das expressões culturais diferentes aos nomos europeus próprios da ocidentalidade, que se mostrou o elemento mais caro da escolaridade monocultural. O mais nefasto balbucio contra as representações epistêmicas das culturalidades: ibérica, asiática, africana e ameríndia, teve articulação com objetivo de impor nelas a marca da inferioridade, fragmentando-as nos traços epistêmicos. Isso se fez com o propósito de justificar o episódio da colonização, no qual o comportamento estatal se tornou um nódulo euro-étnico-classista estrutural, impregnando todas as instituições, sobretudo a políticas públicas da educação, constituindo-se em objeto do artigo, em curso. Considerando que raça e classe se confundem no Brasil, em que a pirâmide social parece formula química; sendo escura embaixo e na medida em que sobe vai clareando. Segundo Prudente: (...) a pirâmide social brasileira parece uma fórmula química. É assim escura embaixo na medida em que sobe vai clareando, isto confirma o que se observou nesta abordagem que por questão historicamente determinada a classe expressa raça no mesmo processo construtivo no qual a raça indica classe. 244 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente (PRUDENTE. 2018. p. 91) É de bom alvitre considerar alguns pontos que contribuíram, ‘ao meu quase cego ver’, para traçar a trajetória das políticas públicas. Isso com o intuito de contribuir para urgente necessidade de levantar alguns pontos para possível construção de uma pequena historiografia das cotas, que revelou que as políticas públicas no Brasil foram beneplácito quase que exclusivamente dos eurodescendentes. Trataram-nas, por esta razão, com zeloso silêncio e dissimulação. Buscando nesse comportamento a concorrência pelo mito da superioridade racial do branco. Esses pontos foram elencados assim: 1) Capitanias hereditárias2: Em conformidade com o Tratado de Tordesilhas, a coroa portuguesa delimitou o Brasil ocidental em generosas faixas quemmoranspraias3. Com o propósito do atendimento da baixa nobreza portuguesa, que se encontrava no inequívoco distúrbio socioeconômico, constado na relação constitucional entre o rei e o donatário em dois documentos, que se traduziram em cartas de doação e foral. Respectivamente a primeira designava a questão da posse, já a segunda determinava os deveres que implicavam o donatário. Cumpri lembrar que as capitanias eram transmitidas de pai aos filhos, mostrando, contudo que se obstava a venda. Os donatários receberam uma sesmaria de dez léguas de costa, cabendo-lhes por compromisso: a fundação de vilas, distribuição de terra aos que desejavam cultivá-las, e a construção de engenhos. Dessa maneira foi demonstrado que os donatários foram detentores do 245 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente exercício de plena autoridade no âmbito judicial e na demanda administrativa, exercitaram-na respectivamente, aplicando justiça e nomeando funcionários. O poder do donatário, representante da hegemonia colonial europeia, permitiu que decretasse a pena de morte para o africano escravizado, o ameríndio subjugado pela máquina da evangelização e ibérico empobrecido livre. Nessa linha de abordagem, compreendeu-se que as vítimas da pena de morte formaram uma espécie de taxionomia hierárquica por distância da semelhança com o fenótipo da eurocolonização. Usando a lógica na qual tanto mais distante dessa referência europeia quanto mais próximo estava da imposição da pena máxima. Cada donatário recebeu uma sesmaria que se constituiu em dez léguas de costa. 2) Sesmarias: O Príncipe Regente D. João IV, cujo nome completo, foi João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís Antonio Domingos Rafael de Bragança nasceu em 13 de Maio de 1767. Isto chamou atenção para o dia 13/05/1888, como data da Abolição, que tem sido por sinal objeto de controversa, apontada pela crítica reflexiva da militância como Abolição inacabada. Este príncipe regente no pleno uso de suas atribuições determinou por decreto, que privilegiava os estrangeiros radicados no Brasil. Privilégio no qual os beneficiários receberam por sesmarias datas de chão. Segue a observância do Decreto: Sendo conveniente ao Meu Real Serviço, e ao Bem público aumentar a lavoira, e a População, que se acha muito diminuta neste Estado; e por outros motivos, que Me forão presentes: Hei por bem, que aos Estrangeiro residente no Brasil, se possão conceder Datas de terras por Sesmarias pela mesma fórma, com que segundo as Minhas Reaes Ordens se concedem aos Meus Vassallos, sem embargo de qualquer Leis, ou Disposiçõens em contrário. A meza do Desembargo do Paço o tenha assim entendido, e a foça executar. Palácio do Rio de Janeiro em vinte e cinco de Novembro de mil oitocentos e oito. Com a rubrica DO PRÍNCIPE REGENTE N.S. Regist. Na impressão Regia. (DECRETO s/nº de 25 de novembro de 1808. Sesmaria). 246 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente Nessa análise reflexiva observei que as sesmarias foi um benefício que se deu na origem do estado exclusivamente em vantagem do eurocaucasiano. 3) Concessão de terras e outros benefícios aos imigrantes alemães no século XIX: O mandatário brasileiro mostrava inegável convicção em relação aos benefícios que no seu entender seriam dados pela imigração, razão pela qual promoveu a ida à Europa do major Georg Anton von Schäffer, com o propósito de trazer interessados ao Brasil. Para o cumprimento desta missão este oficial militar embarcou de início para Hamburgo, onde concorreu ao estabelecimento de acordo contratual em proveito da vinda de imigrantes para lida na teluricidade brasileira. Esta ação governamental o indicou como primeiro passo o contato com o Grão Ducado de Mecklemburgo-Schwerin, e contatando-se posteriormente Birkenfeld, que pertencia ao Ducado de Oldenburgo. No afã de persuadir os Alemães para esta imigração o mando em voga lhe sugeriu um elenco de vantagens, que se iniciavam no custeio da passagem pelo governo e seguiu subsequentemente à concessão de lote de chão com setenta e oito hectares notadamente na região sul do Brasil. Estes benefícios contavam ainda com pagamentos de diárias, que foram caracterizados em centos sessenta réis dados respectivamente no ano inicial e metade na segunda anuidade. Notei que foi somado também nesse quadro de vantagens um número de animais, que se classificaram em bois, vacas, cavalos, porcos e galinhas. Estes benefícios corresponderam ao número de pessoas de cada grupo familiar. 4) Lei do Boi – cotas para filhos de fazendeiros nas Universidade Federais No período do autoritarismo militar, o segundo presidente, desse processo histórico, o Marechal Artur da Costa e Silva promoveu a mais evidente ação de política educacional, que se fazia em interesse da persistência do nódulo eurocolonial nas relações estatais, que as impregnou privilegiando dessa maneira a hegemonia imagética do euro-hétero-macho-autoritário. Isto se tratava da Lei nº 5.465, de 03/07/1968 conhecida como Lei do Boi, e também chamada de lei do boi gordo, que foi editada no mesmo ano do AI – 5. Obser247 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente vei que esse assunto passou de forma silenciosa e dissimulada tanto nos discursos mais aguerridos da esquerda quanto nas posturas conservadoras mais arraigadas da direita, prejudicando por sua vez a necessidade da construção de uma pequena historiografia das costas, como elemento fundamental para o discernimento das políticas públicas na educação, demonstrando que os eurodescendentes sempre foram absolutamente os primeiros e os verdadeiros beneficiários das políticas públicas, com apelido de cotas. Esta lei dispunha das garantias de cinquenta por cento de vagas para agricultores e filhos de agricultores, para o meu discernimento se entendendo por agricultor o fazendeiro, em escolas agrícolas e veterinárias e cursos superiores, da União. Os processos de divulgação e seleção, desses benefícios estavam restritos ao âmbito desse estrato social, aconteciam, por isso, nas suas organizações classistas e organizações de financiamentos de créditos atinentes. Estas políticas públicas do estado euroclassita brasileiro sempre foram posta e desenvolvidas de forma silenciosa e dissimulada, buscando-se com isto incrementar o mito da superioridade racial caucasiana. Esse comportamento, reitera privilegiando-se dessa maneira os traços raciais mais próximos da semelhança do fenótipo da eurocolonização branca, que se configurou na hegemonia imagética do euro-hétero-macho-autoritário. Segundo o Decreto nº 63.788, de 12/12/1968 que regulamentou a lei em voga: O Presidente da República, usando das atribuições que lhe confere o artigo 83, item II, da Constituição, e tendo em vista o que dispõe a Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968, Decreta: Art. 1º Os estabelecimentos de ensino médio e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária mantidos pela União, reservarão preferencialmente, cada ano, para matricula na primeira série 50% (cinquenta por cento) de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural; nos estabelecimentos de ensino médios mantidos pela União, 30% (trinta por cento) das vagas restantes serão reservadas, preferencialmente, para os agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residiam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio. § 1º As reservas mencionadas nestes neste artigo serão feitas sem prejuízos dos alunos repetentes que venham a renovar sua matrícula, incluindose nesse direito os que pretendam transferência de um para outro 248 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente estabelecimento, obedecido sempre o que sobre transferência dispuser o respectivo Regimento. § 2º Para matrícula nas escolas superiores de Agricultura e Veterinária mantidas pela União, a preferência de que trata este artigo se estenderá aos candidatos portadores de certificados de conclusão de 2º ciclo expedidos por estabelecimentos de ensino agrícola. § 3º Em qualquer caso, os candidatos atenderão as exigências da legislação vigente, inclusive as relativas aos exames de admissão ou de habilitação. (...) Parágrafo único. As provas de vinculação mencionadas neste artigo serão fornecidas pela Confederação Nacional de Agricultura, através das Associações Rurais, ou pelo instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário ou ainda por entidades filiadas ao sistema da Associação Brasileira de Credito e Assistência Rural. Art. 5º Para a aplicação deste decreto os Diretores dos estabelecimentos aqui mencionados receberão orientação e assistência da Coordenação Regional do Ministério da Educação e Cultura. (DECRETO nº 63.788, de 12/12/1968). O quadro acima mostrou inequívoca ação política educacional do estado étnicoclassita eurocolonial em favor do eurodescendente. 5) Verba a fundo perdido para salvar os bancos Em 04/12/1995, o presidente da república subscreveu o conjunto composto pela Medida Provisória nº 1.179 e a Resolução nº 2.208, ambas de 3/11/95, que originou o Programa de Estimulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional - PROER. Este conjunto de Medida Provisória e Resolução criaram um generoso programa de financiamento favorável aos juros e aos prazos de pagamento, cujo propósito foi salvar os bancos ou estimular fusões de instituições financeiras. Para minha percepção ficou cristalino que esse benefício aos financistas aí, posteriormente, diante do barulho próprio da temática sugeriu que um universitário afrodescendente cotista se tornaria passível do complexo de inferioridade. Chamo atenção, que ninguém ouviu, por outro lado dizer que um banqueiro eurodescendente se sentiria sequer constrangido ou com complexo de inferioridade por receber bilhões em 249 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente vantagem com pagamento a custo zero ao indisponível Tesouro Nacional, em uma ação cotista cercada de silêncio e dissimulação em favor eurodescendente. 6) Perdão das dívidas dos ruralistas Em cumprimento ao fim da lógica do estado étnicoclassita eurocolonial, que foi feito uma ação política para beneficiar o fazendeiro eurodescendente. Fazendo por meio da medida provisória, a MP nº 793/2017, que lhe abolia do peso de suas dívidas públicas. Instituindo-se, com efeito, pelo instrumento jurídico em questão o Programa de Regularização Tributaria Rural - PRP, feito na Secretaria da Receita Federal e na MP da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional - PGFN. O Programa de Regularização Tributaria Rural - PRP ficou conhecido como Refiz Rural, que teve como objetivo facilitar o pagamento das dívidas dos produtores rurais com a Previdência. Comentava-se que esta renúncia fiscal começou em uma previsão de R$ 6.0 bilhões e chegaria a três anos em torno de R$ 18 bilhões. Percebi, nessa reflexão, que esses benefícios eram resultados de políticas públicas silenciosas e dissimuladas para favorecer o mito da superioridade racial do branco. 7) O papel do estado étnico-racial do branco Esses pontos elencados acima indicaram para uma pista que mostrou o papel do estado euro-étnico-racial classista, que se revelou estruturalmente como provedor e dissimulador das políticas públicas dos grupos privilegiados, que mostravam mais semelhança fenotípica com a imagem do euro-hétero-macho-autoritário4 segundo Prudente e Oliveira: De tal sorte que os grupos mais próximos da semelhança com o fenótipo da força colonial de hegemonia imagética caracterizada no euro-hétero-macho-autoritário e o desdobramento da heteronormatividade serão, desta forma, mais privilegiados em detrimento dos outros seguimentos também miscigênicos, não brancos e mais passíveis de aproximação com a feição configurada na imagem do ibero-ásio-afro-ameríndio. (PRUDENTE; OLIVEIRA, 2018, p. 179-196) 250 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente Na perspectiva do tentame de imposição da hegemonia imagética eurocidental, que se deu aqui esta persistência caucasiana para a construção e a manutenção do poder branco-europeu colonial, que se tornou estrutura do estado brasileiro. Cuja origem foi reiterada, nesse artigo, como anterior as demandas de nacionalidade. Essa anástrofe política concorreu para a formação de um Estado estranho às demandas da Nação. Construíram-no, nessa linha de abordagem, substancialmente na relação étnico-racial do branco como privilégio da persistência colonial, em detrimento das culturas diferentes das axiologias eurocidentais. Pude notar dessa maneira nas relações derivadas da lógica estatal que se constituíram em ações políticas, configuradas em cotas de relações étnico-racial do branco. Essas cotas foram construídas em um quadro de solércia favorável à dissimulação imagética do caráter classista da relação étnico-racial do eurodescendente, considerando que raça e classe se confundem no Brasil. Esse fenômeno se revelou como uma derivação estatal estruturante persistente favorável à dominação da colonialidade eurocidental, que se fez provavelmente por meio de políticas públicas resultantes da injunção imagética da verticalidade do euro-hétero-macho-autoritário. Isso se desenvolveu essencialmente com o ensaio da fragmentação epistêmica da imagem de horizontalidade do ibero-ásio-afro-ameríndio5 A política da escolaridade monocultural se configurou em um processo de diferentes de cores, que contrariava o respeito à diversidade. Fenômeno que se estabeleceu no tentame da fragmentação do traço epistemológico dos nomos estranhos à axiologia eurocolonial, caracterizada na cor branca. Na minha percepção foi construído, de tal sorte, estereótipos com esta finalidade de desarticular os diferentes dos nomos eurocidentais, classificando-os assim, o africano como preto que servia só para o serviço braçal alienado, o ameríndio como vermelho inculto e avesso ao progresso, o asiático pequeno e estéril, o lusitano “suposto” branco como burro empobrecido que ficou no imaginário como burro sem rabo6. Reservou-se, contudo para o branco europeu a condição de referência paradigmática, por ser branco e meramente branco: Pois o branco desfrutou durante três mil anos o privilégio de ver sem que o vissem; era puro olhar, a luz de seus olhos subtraía tôdas às coisas da sombra natal, a brancura de sua pele também era um olhar, de luz conden251 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente sada. O homem branco, branco porque era homem, branco como o dia, branco como a verdade, branco como a virtude, iluminava a criação qual uma tocha, desvelava a essência secreta e branca dos seres. O que esperáveis que acontecesse quanto tirastes a mordaça que tapava estas bocas negras? (SARTRE. 1960, p. 105). Foi usado para manutenção do mito da brancura uma espécie folcloridade racial7 estereotipada de caráter multicor, sobretudo desprovida da consciência do respeito à diversidade. Para justificar a superioridade racial do branco, como razão inquestionável da política monocultural excludente, favorecendo a manutenção da lógica estrutural de persistência étnicoclassita eurocolonial, do estado brasileiro. 8) Revolução Tecnológica Presumi nessa reflexão que prescindir da história das cotas no Brasil foi uma tentativa de esconder das amplas massas, formadas pelos grupos de imagens ibero-ásio-afro-ameríndio, que os segmentos dominantes de representação imagética do euro-hétero-macho-autoritário são superiores e signos do desenvolvimento. Foi necessário, para tal, o uso da solércia para impor o tentame de mostrar que as benesses dadas pela política de estado brasileiro foram resultantes inatas da eurocolonização, que foi representado pela verticalidade do homem branco detentor de mais analogia com a feição do eurocolonizador, mostrado aqui como anglo-saxônico. Entendi nesse quadro que foi articulado um processo de negação dos traços epistêmicos das expressões humanas estranhas à axiologia europeia. Diante do poder simbólico e material da masculinidade do homem caucasiano europeu, quaisquer manifestações de humanidade, que lhes são diferenciais se tornam vítimas da tentativa de coisificação, condicionando-as para a mera sobrevivência, como coisa, um apêndice em proveito da existência do euro-hétero-macho-autoritário colocado na condição de minoria. O artigo aponta que as manifestações dos nomos, da ibericidade, da asiaticidade, da africanidade e da amerindidade foram vitimadas pela eurocolonização. Assim como os grupos que se expressaram estranhos ao dimensionamento da verticalidade do machismo branco europeu, tais como: as mulheres, os homossexuais, os deficientes, os 252 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente ameríndios, os africanos, os asiáticos, os ibéricos e outros são minorias na medida em que não combinavam com a euroheteronormatividade8. Para essa linha de abordagem, na Revolução Tecnológica as relações abstratas da representação se tornaram mais significativas, que as relações concretas da realidade factual. Sendo sensato supor que a representação se demonstrou mais importante que o real. Nessa era tecnológica a informação se fez substancial tal como a máquina se mostrou essencial na era industrial. Percebi nesse contexto que as lutas de classes ganharam o ápice histórico - cientifico na sociedade industrial se traduziram em lutas das minorias, que foram vulnerabilizadas pela tentativa de coisificação própria da euroheteronormatividade. Pareceu-me ainda que essas lutas de minorias vulneráveis se projetassem em lutas de imagens. Como se observou em Prudente e Oliveira: De tal sorte que os grupos mais próximos da semelhança com o fenótipo da força colonial de hegemonia imagética caracterizada no euro-hétero-macho-autoritário e o desdobramento da heteronormatividade serão, desta forma, mais privilegiados em detrimento dos outros seguimentos também miscigênicos, não brancos e mais passíveis de aproximação com a feição configurada na imagem do ibero-ásio-afro-ameríndio. Fenômeno que chama atenção para um emergente conflito de natureza iconográfica, que tem sido uma espécie de motor da história, no curso da Revolução Tecnológica, que tem na informação a sua essência, razão pela qual possivelmente as lutas de classes se projetam em lutas de imagens. PRUDENTE, OLIVEIRA. 2018. pág. 179-196. Para essa reflexão foi considerado também que essas minorias caracterizadas na horizontalidade democráticas da imagem do ibero-ásio-afro-ameríndio desenvolveram uma luta ontológica, contra verticalidade da hegemonia imagética do euro-hétero-macho-autoritário. Luta ontológica em proveito da imagem de afirmação positiva das minorias vulneráveis. Essas lutas se deram no combate da negação de ícone epistêmico, que lhes tentaram impor para sustentação do mito da superioridade eurocolonial branco. A ontologia dessas lutas foi demonstrada na dinâmica de contemporaneidade inclusiva, que lhes foi própria, contrariando o anacronismo excludente da dominação 253 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente imagética do euro-hétero-macho-autoritário, que foi compreendida aqui como essência eurocêntrica da escolaridade monocultural. Fenômeno que se constitui em nódulo estrutural do estado brasileiro, que persistiu tornando as instituições políticas hibrida que tem o estruturante vício da relação étnico-clássico eurocolonial, mostrando persistência do Brasil Colonial à República, da atualidade. Ação política que se fez beneficiando os grupos supostamente brancos, que mostraram mais traços análogos aos fenótipos da eurocolonização em um processo silencioso e dissimulado. Fiz aqui um gráfico sobre as participações étnico-raciais nas políticas públicas do estado brasileiro. Ficou constado, dessa maneira, que as cotas étnico-raciais, em proveito do afrodescendente e do amerindiodescendente se deram de forma diminuta. Isso se deu diante da vantajosa presença do eurodescendente na política pública do estado étnicoclassita eurocidental, por exemplo: sesmarias 64%, alemães 26%, boi gordo 4%, PROERD 5%, afrodescendentes 1%, que foi ilustrado como segue: Gráfico elaborado pelo autor que compõe o acervo do selo Coleção Celso Prudente Africanidade. Esse fenômeno de muito barulho concomitante a ausência de espaço com visibilidade à discussão em favor da historicidade das cotas, evitando tal discussão para não se mostrar os eurodescendentes como os verdadeiros beneficiários das cotas, no estado brasileiro étnico-clássico eurocolonial. 254 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente Conclui, contudo que no âmbito das cotas os afrodescendentes tomaram o apertado vagão do último trem das políticas públicas, mas pagando o elevado preço de toda sorte da solércia na qual os beneficiários das cotas raciais são inferiores e escorias dependentes do estado. Concluindo, com efeito, que a política de escolaridade monocultural se mostrou impregnada pelo nódulo estruturante do estado étnico-clássita eurocolonial, demonstrando com isto contrário ao sentimento de horizontalidade democrática da imagem do ibero-ásio-afro-ameríndio e todas as minorias vulneráveis. Referências AVELAR, Juarez. 50 contos que a vida em contou – Livro de memórias. São Paulo. Life editora. 2018. p. 63 e 65. BRASIL. Decreto nº 63.788, de 12 de dezembro de 1968. Regulamenta a Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968, que dispõe sobre o preenchimento de vagas nos estabelecimentos de ensino agrícola. Senado Federal. Disponível em: <http://legis.senado. gov.br/legislacao/ListaTextoSigen.action?norma=486420&id=14312992&idBinario=15804837&mime=application/rtf> acesso em 29 mar 2019. BRASIL. Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968. Dispõe sobre o preenchimento de vagas nos estabelecimentos de ensino agrícola. Planalto. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5465impressao.htm acesso em 29 de mar 2019. FOUCAULT, Michel . História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2005. 8ª Ed. PORTUGAL. Decreto s/nº de 25 de novembro de 1808. Biblioteca digital Luso-Brasileira. Decreto das Sesmarias. Disponível em: <http://bdlb.bn.br/acervo/handle/123456789/2> acesso em 12 mar 2018. PRUDENTE, Celso Luiz. A dimensão pedagógica do cinema negro: uma arte ontológica de afirmação positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio origem do cinema negro e a sua dimensão pedagógica. In: Celso Luiz Prudente; Dacirlene Célia silva. (Org.). A dimensão pedagógica do cinema negro aspectos de uma arte para a afirma255 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente ção ontológica do negro brasileiro: O olhar de Celso Prudente. 1ªed.Curitiba: Prisma, 2018, v., p. 67-90. PRUDENTE, Celso Luiz; OLIVEIRA, F. R. A luta ontológica de afirmação da imagem positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio como elemento democrático da lusofonia: Pontos reflexivos para um diálogo da dimensão pedagógica do cinema negro e a Revolução dos Cravos. In: Celso Luiz Prudente; Dacirlene Célia Silva. (Org.). A dimensão pedagógica do cinema negro aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: O olhar de Celso Prudente. 1ªed.Curitiba: Prisma, 2018, v., p. 179-196. PRUDENTE, Celso Luiz; SILVA, D. C. A dimensão pedagógica do cinema negro aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: O olhar de Celso Prudente. 1ª. ed. Curitiba: Prisma, 2018. 239p ______. Étnico Léxico: para compreensão da Prudentalidade. In: A dimensão pedagógica do cinema negro aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: O olhar de Celso Prudente. 1ª. ed. Curitiba: Prisma, 2018.p. 214-224. SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o racismo. Tradutor J. Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Ed. Difusão. Europeia do Livro, 1960. p. 105. 256 as lutas de imagens das minorias Celso Luiz Prudente Notas 1 Eurocaucasiano – Usou-se para definir o branco essencialmente caucasiano que aqui foi um táxon específico para definir o branco europeu. Pareceu-se, por outro lado, que as relações de consumo se constituíram em componente substancialmente contrário as forças de trabalho. Discerniu-se, de tal sorte que à força de produção não cabia o sentido de consumo dos bens resultantes do trabalho, considerando que este estava voltado ao atendimento da ordem estatal, cujos fins foram 2 Capitanias Hereditárias - Nos idos de 1536 o rei de Portugal, Dom João III instituiu na ocidentalidade das terras brasileiras as Capitanias hereditárias, instituindo-as no litoral em quatorze distritos. Os mesmos foram divididos subsequentemente em quinze lotes, sendo estes objetos de partilhas em favor de doze donatários. Concluiu-se que os donatários foram beneficiários de doação de terras do poder real lusitano. Por outro lado se tornaram depositários da confiança da realeza portuguesa. 3 Quemmoranspraias - É um termo que se usou para tratar as relações que derivam dos sentidos de praianos 4 Euro-hétero-macho-autoritário - Silogismo deste autor, e tem como objetivo demonstrar verticalidade nefasta peculiar do poder, que de expressão europeia, branco ocidental, exerce sobre as minorias. Tornando-as ainda caracterizadas na condição subalterna, diante do mito da superioridade racial do homem (hétero/macho) caucasiano. Sentido europeu do poder masculino, macho que se estabelece como uma força impositiva para manifestações que lhes são diferentes (o negro, o homossexual, a mulher...) 5 Ibero-ásio-afro-ameríndio - Trata-se de uma categoria autoral que compreende a unidade de todos os povos de culturas ibéricas, asiáticas, africanas e ameríndias, na medida em que o ponto identitário é a língua portuguesa que se faz na condição de povos que foram vítimas da colonização euro ocidental 6 Burro sem rabo – O lusitano está infelizmente no imaginário brasileiro como burro em razão da falta de consciência identitária do ibero-afro-ásio-ameríndio. Constatou-se em um livro de contos autobiográficos de um estudante de medicina da Universidade do Brasil no Rio de Janeiro que se formava e precisou fazer o transporte de uma cadeira para fotografia de formatura. Na condição de estudante geralmente sem dinheiro a contratação do meio de transporte mais barato que foi o burro sem rabo. Uma carroça com tração humana que geralmente era puxado por portugueses empobrecidos, como segue: “Depois de vencer mais um obstáculo, ao conseguir a cadeira, surgiu outro: como transportá-lo? Pensei logo em um burro-sem-rabo que daria conta de carregá-lo e seria mais barato que um caminhão de carga. Assim o meio de transporte que contratei muito comum no Rio de Janeiro daquela época que fazia grandes mudanças de residências. (...) o transportador, de estatura mediana, transpirava por todos os poros, e, com seu legítimo sotaque lusitano, reclamou pela primeira vez (...) (AVELAR. 2018. p. 63 e 65) 7 Folcloridade racial – Processo pelo qual se desrespeita uma raça desconsiderando a sua cultura como tem sido feito em relação a produção cultural do afrodescendente e do amerindiodescendente, para concorrer em favor do mito da superioridade da cultura do eurodescendente 8 Euroheteronormatividade – Sentido de euroheteronormatividade vai estabelecer as normas que pautam as relações de existência tendo como referência o paradigma europeu. (PRUDENTE e SILVA. 2018. p. 219). 257 Educação para o direito e o cinema negro Douglas Martins de Souza1 Michel Leite Viana2 Luiz Sales do Nascimento3 1. Dogma e antirracismo No ano 2000 surgiu no audiovisual brasileiro o Manifesto Dogma Feijoada, parodia do manifesto Dogma 951 do cinema dinamarquês. O Dogma brasileiro denunciava o racismo presente em todo o processo de produção cinematográfica nacional. O Manifesto apresentava sete pontos de orientação para a produção de filmes sobre negros: (1) o filme tem que ser dirigido por realizador negro brasileiro; (2) o protagonista deve ser negro; (3) A temática do filme tem que estar relacionada com a cultura negra brasileira; (4) O filme tem que ter um cronograma exequível. (5) Personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos; (6) O roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro; (7) Super-heróis ou bandidos deverão ser evitados. O manifesto problematizava a sub-representação racial na produção audiovisual e denunciava os estereótipos como elementos de construção do racismo estético 1 Advogado, mestre em Direito e Doutor em Filosofia pela PUC- SP. 2 Professor das redes públicas municipais de São Vicente e Santos, Bacharel licenciado em Educação Física. 3 Procurador de Justiça – MP-SP, mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP, e professor da graduação e do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Santos. 258 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento antinegro proibindo-os (dogma nº 6). Também exigia que se assegurasse a presença negra na realização (dogma nº 1) como pressuposto da dignidade do sujeito discriminado, traduzindo para o cinema a consigna antirracista “nada de nós sem nós”. O que impedia o negro de dirigir, protagonizar, tematizar sua cultura com um cronograma exequível? O que impedia filmar sem estereótipos privilegiando o negro comum? O que impedia filmar abstendo-se de super-heróis e bandidos? O que, afinal, impedia o Cinema Negro de existir? É comum dizermos de nós mesmos que vivemos numa sociedade racista sem que ninguém se considere racista. O que está por trás desse enigma? O que faz com que haja racismo em todo lugar sem que haja racista em lugar nenhum?2 1.1 Dimensões do racismo Considerado o pressuposto da impropriedade do termo raça para distinguir seres humanos, podemos nos ocupar das definições dos correlatos preconceitos, racismo e discriminação. Racismo e discriminação estão definidos na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (referida neste artigo como “Convenção”), recém-aprovada no Brasil.3 De acordo com a Convenção, entende-se por racismo “qualquer teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de ideais que enunciam um vínculo causal entre características fenotípicas ou genotípicas de indivíduos e seus traço intelectuais, culturais e de personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial” (Art. 1º, nº 4). Discriminação racial é a “distinção, exclusão, restrição ou preferência em qualquer área da vida pública ou privada cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais” (Artigo 1º, nº 1). Silvio Almeida, por sua vez, define preconceito como “juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias” (ALMEIDA, 2019, p. 25). Relaciona preconceito, racismo e discriminação às concepções individualista, institucional e estrutural. A concepção individualista trata racismo como patologia, reduzindo-o ao plano individual na forma de discriminação direta. 4 259 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento Logo se percebe sua limitação de manter o racismo no plano individual. O racismo também está na dimensão plurissubjetiva. Nas relações intersubjetivas, considera-se que as instituições são modos de orientação, rotinização e coordenação de comportamentos aptos a estabilizar os sistemas sociais. A instituição pode naturalizar o predomínio de um grupo racial. Portanto, o racismo como fenômeno transindividual pauta a questão do legado discriminatório e sua resiliência. Podemos questionar se as instituições estabilizam a hegemonia de grupos raciais. Ao fazê-lo, geram o racismo institucional. Nota relevante na categoria de racismo institucional é relação de poder de um grupo étnico-racial a despeito dessa condição estar ou não escrita. O poder está implícito. Portanto, é uma relação de dominação, sendo necessário investigar como o racismo sobrevive no ordenamento jurídico que o refuta. Podemos afirmar que, para o racismo individual, nosso ordenamento é antirracista e para o racismo transindividual nosso ordenamento jurídico é apenas não-racista. A diferença entre “não-racismo” e “antirracismo” é a mesma da abstenção e da ação. O não-racista se abstém diante da discriminação de grupo por considerar o racismo uma patologia e recusar suas dimensões sociais. O antirracista age, reparando os efeitos por meio de ações afirmativas contrapondo-se ativamente ao racismo. A primeira atitude admite a falsa neutralidade da meritocracia. A segunda refuta. É próprioda perspectiva antirracista denunciar a meritocracia como expediente de perpetuação de privilégios de grupo. 1.2 Racismo estrutural e forma social racista No campo do racismo transindividual, Silvio Almeida descreve ainda a concepção estrutural.5 O filósofo identifica o racismo como componente orgânico da estrutura social. Nesses termos, o racismo “de algum modo” também se apresenta como parte da estrutura. Diz o filósofo: As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. (2018, p. 36). A partir daí conclui-se que as instituições são racistas porque a sociedade é racista. As instituições reproduzem o racismo da estrutura social marcada por conflitos. 260 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento Por inércia, o racismo presente na vida cotidiana se reproduz nas instituições. Almeida ressalta a presença do racismo na vida cotidiana sublinhando a necessidade de agir contra sua força inercial. Portanto, há necessidade de mecanismos institucionais de enfrentamento. Muniz Sodré faz objeção à concepção estrutural desenvolvida por Silvio Almeida. Destaca que a normalidade do racismo não decorre propriamente de qualquer estrutura, ainda que seja útil a expressão “racismo estrutural” por seu forte apelo político no ativismo afro. Houve uma estrutura racista antes da abolição e o racismo pós-abolição sobreviveu a ela. Podemos cogitar de um racismo sem estrutura, se compreendido o termo como algo externo à conduta. O racismo cotidiano ou normalidade racista (racismo resiliente), convive com o ordenamento jurídico dissimulando-se sem se estruturar por ser insuscetível de receber qualquer amparo. Uma totalidade estruturada racista não comportaria dissimulação. Sua formalização estaria, ato contínuo, cancelada. É uma questão a ser resolvida na caracterização do racismo resiliente. A longa trajetória da mobilização racista pósabolição não se estrutura por ter sido exatamente a extinção da estrutura racista o preâmbulo do regime republicano cujo princípio é a igualdade perante a lei. No caso da discriminação racial de grupo, a estrutura não se evidencia. Diferentemente, a forma social racistade que nos fala Moniz Sodré, funciona sem uma estrutura jurídico-política, sendo esta a principal dificuldade para enfrentá-la. Demanda consenso para reconhecê-la e pactuação para removê-la, vez que segue paralelamente preservando e atualizando afetos preexistentes originados na segregação. Há uma cultura furtiva cuja dinâmica se desenvolve dissimuladamente por caminhos indiretos. A ideia de um racismo resiliente disseminado em nossa formação social sugere que seja multiforme, em processo de permanente mutação. A cultura racista sendo dinâmica, subsiste furtivamente no plano dos afetos, percorrendo aestrutura social, metamorfoseando-se. 1.3 O dogma contra o enigma Retomemos Dogma Feijoada para examiná-lo nessas referências. O programa do manifesto reagia à discriminação indireta. Buscava reparar a discriminação assegurando 261 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento a presença negra. O antirracismo na dimensão transindividual acontece através de política pública. Se chamados a demonstrar a assimetria e a justiça de seu programa para superação do eurocentrismo e seus efeitos, cineastas negros necessitariam pôr a questão em números, de modo a quantificar a disparidade entre grupos raciais na indústria do audiovisual. A atualidade de Dogma Feijoada para a diversidade étnico-racial no cinema permanece. A dificuldade para tratar do tema em nosso direito também. Por analogia, podemos avaliar a dificuldade examinado o resultado da principal iniciativa levada a juízo para tratar do mesmo assunto. Em 2005 o Ministério Público do Trabalho – MPT, criou o Programa de Promoção da Igualdade de Oportunidades para Todos – PPIOT. Iniciou por Brasília, no mercado de trabalho bancário, valendo-se de levantamento estatístico onde a sub-representação dos negros era evidente. O cotejo demostrou diferença entre 19 e 34 pontos percentuais em desfavor dos negros ao comparar a composição étnico-racial do quadro de empregados do setor e a composição étnico-racial da População Economicamente Ativa – PEA, do Distrito Federal. O MPT entendeu que caberia aos empregadores reverter o quadro. Foi à Justiça.6 Mesmo com a prova estatística da sub-representação o Judiciário não reconheceu discriminação indireta, indeferindo todas ações em primeira instância. O MPT recorreu. O Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região – TRT/10, desqualificou estatística como prova, indo ao socorro das empresas que não podiam, em sua opinião, ser responsabilizadas por discriminação quando “se sabe que [o Estado] falha violentamente no respeito aos direitos e garantias fundamentais e, mais especificamente no tocante à formação educacional, negando semelhantes oportunidades de desenvolvimento aos cidadãos”.7 O MPT foi ao Tribunal Superior do Trabalho. Além de recusar a prova estatística, o TST entrou no mérito da questão afirmando ser impossível ao Judiciário atuar como legislador positivo “implementando ‘cotas’ ou metas para correção das alegadas disparidades estatísticas encontradas nos quadros de empregados do Banco em cotejo com a população economicamente ativa do Distrito Federal”8. O conceito de discriminação indireta foi rejeitado com a desqualificação do meio de prova apto a demonstrá-la. O paralelo entre os programas de Dogma Feijoada e Promoção da Igualdade de Oportunidade para Todos do MPT, como dito, está no objeto. Dogma propôs aos 262 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento produtores fazerem Cinema Negro contra a exclusão, assegurando a presença negra no audiovisual brasileiro. O MPT buscou o mesmo objetivo no mercado de trabalho bancário. Ao recusar a prova estatística, o Judiciário limitou a reparação por racismo à hipótese da concepção individualista. O Judiciário Trabalhista não reconhece racismo intersubjetivo para efeitos de proteção na discriminação de grupo. Há um enigma a desafiar o Dogma. A concepção individualista de racismo é o enigma que protege a discriminação racial coletiva em qualquer lugar, do banco ao cinema. Esse enigma tem a forma da ignorância epistemológica jurídica. Como enfrentar em juízo a discriminação indireta contra grupos historicamente prejudicados? Estamos diante de inequívoca epistemologia racista, não sendo admissível que nosso Direito rejeite a categoria de discriminação indireta, e desqualifique a prova estatística aplicando expedientes próprios da discriminação direta individualista nos casos de discriminação racial de grupo. Reforça, em âmbito judicial, a ideologia da meritocracia e seu instrumento operativo: a falsa neutralidade ou neutralidade aparente. A limitação do direito antidiscriminatório à divisa individualista, antes injusta, agora também é ilegal. Desde janeiro de 2022, a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, emendou nossa Constituição Federal, nela introduzindo um sistema antidiscriminatório dotado de instrumentos apropriados e específicos para reverter a discriminação indireta, ampliando, inclusive, seu escopo de proteção para além da discriminação racial9 . A Convenção impede a aplicação da neutralidade aparente onde a igualdade formal impactar desfavoravelmente grupos vulnerabilizados. AConvenção também adota o princípio do não-retrocesso, impedindo que haja reversão, limitação ou restrição no direito e garantiasantidiscriminatórios (Artigo 16, nº 1) desautorizando eventual interpretação restritiva desses direitos. A luta de cineastas contra o racismo ganha um importante reforço com a atualização normativa. A Convenção constitucionaliza a epistemologia da equidade entre nós. De acordo com nossa Constituição, tratados e convenções sobre direitos humanos devem seguir o rito das emendas constitucionais para validação em nosso Direito. É o caso. Há vinte anos, ao ousar exigir a presença negra em nosso cinema, Dogma Feijoada se deparou com o tema da sub-representação no setor e propôs superá-lo. O MPT expôs o enigma 263 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento da epistemologia jurídica inadequada. Com a aprovação da Convenção Interamericana antirracista, a epistemologia jurídica do racismo individualista que já era anacrônica, passou a inconstitucional. Pode-se dizer do Cinema Negro antirracista que ele agora tem lugar em nossa Constituição. 2. Desnaturalização do cinema não negro e sua pedagogia Não nos enganemos, não há coincidência nas mortes de Miguel, Marielle, João Pedro, George Floyd e tantos outros.Não são casos isolados.Eles foram mortos peloracismo, e existe um projeto claro da burguesia de extermínio do povo negro. É criada pelo capitalismo, sistema que dá sustentação ao racismo, uma cultura permanente de ódio e desprezo ao povo negro que para muitas pessoas, por diversasvezes passa despercebido. Convido-o a assistir alguns desses programas policialescos vespertinos que sãotransmitidos pelas redes de televisão aberta diariamente, neles se pode perceber quequando o possível crime for cometido pelo homem negro, a polícia é super agressiva e o apresentador em tom elevado de voz e gestos espalhafatosos atribui ao mesmo as alcunhas de bandido, periculoso, mau elemento, entre outros adjetivos nada nobres, emesmo sem a certeza dos fatos apurados o apresentador em entonação de voz indignadabate o martelo imaginário como se fosse um juiz e imputa a esse homem expostoviolentamente em rede nacional o veredito da culpa. Repare, porém, que se o possível criminoso em questão for um homem branco erico, a polícia, mesmo com um mandado de prisão em mãos tratará o mesmo comeducação e humanidade, o apresentador do programa vai se dirigir ao suspeito em tomde voz ameno e com gestos contidos e dará a esse homem senão a certeza da absolvição,ou pelo menos o benefício da dúvida. Perceba que na maioria das vezes se retrata o povo negro em novelas, séries ouem filmes como: promíscuo, bandido, prisioneiro, trabalhador subalterno,escravizado, louco, caricato ou morador de rua. Pessoas sem nome, sem família,sem passado, sem história, e geralmente a mulher que entra em cena calada, com umuniforme de empregada doméstica e uma bandeja em mãos, serve a refeição a umatípica família branca da aristocracia e sai de cena como entrou, em silêncio. O porteirosem nome que 264 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento apenas acena e dá bom dia para algum morador do edifício, o moço dobalcão, o tio da faxina, o rapaz ou a moça que fazem isso ou aquilo, mas que nunca sãochamados pelos nomes, como se fossem coisas, não pessoas. Observe que quando recebemos por meio do WhatsApp, ou outro aplicativoqualquer de trocas de mensagens, piadas, memes em formato de textos, fotos e/ouvídeos com pessoas bêbadas, banguelas, analfabetas, pessoas em situações vexatórias oupassando qualquer tipo de vergonha, repare bem se na grande maioria das vezes estaspessoas objetificadas para causarem gargalhadas, constrangimentos, ódio ou desprezo,que serão compartilhadas nos grupos de futebol e boteco, reflita a partir de agora, e veráque na imensa maioria das vezes essas pessoas são negras. Visto que somos tomados por uma avalanche midiática negativa todos os dias,que nos faz acreditar que o povo negro é feio, bandido, analfabeto entre outrosadjetivos pejorativos, e não é por acaso ou coincidência do destino, mas algocoordenado para ser introjetado em nosso imaginário, o quanto o povo negro édesprezível. Repare que nos compadecemos com ataques terroristas em países estrangeiros,principalmente se estes países forem os Estados Unidos ou algum país da Europa e issonão é errado, afinal todo ser humano merece ser respeitado, porém pouco ligamos parachacinas nas periferias brasileiras, que pintam o chão de vermelho com sangue decorpos jovens crivados de bala que na sua maioria são corpos pretos, colocamos filtrosna nossa foto de perfil da rede social, em solidariedade a atentados em países europeus,porém todos os anos acontecem chacinas nas periferias, morros e favelas brasileiras enão se vê um só filtro nas redes sociais em apoio ao ocorrido, não que filtros nas redessociais alterem a realidade de um povo, o que quero dizer é que no geral as pessoasnão se comovem com jovens pretos e pretas assassinados num bailão de comunidadecomo ocorreu por exemplo no morro do Alemão, no Rio de Janeiro, ou o caso dos novede Paraisópolis, na periferia de São Paulo, ou a mais recente chacina que ocorreu naoperação escudo no Guarujá, litoral de São Paulo. E por que isso não comove a maioria das pessoas? Talvez porque acabamos nosacostumando a ver o povo negro sendo retratado dessa maneira, a tragédia do povonegro é vista como lugar comum. Achamos que o povo negro, o povo que vive nasperiferias, merece mesmo isso, normalizamos a tragédia, acreditamos que seja algonatural, quando os corpos crivados de balas estirados no chão são de pessoas negras, periféricas. 265 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento A classe dominante no Brasil, vem desde a colonização do país impondo aos povos não brancos o seu modo de viver, atuando muitas vezes de maneira violenta, mas também de forma ideológica, reforçando a ideia de povos atrasados, sem cultura, semalma e naturalmente sem Deus (leia-se o Deus do homem branco) o que justificava todotipo de barbárie contra os povos originários, tudo em nome de civilizar esses povossupostamente atrasados sem alma e sem religião. O mesmo aconteceu com o povo raptado do continente africano, o sequestro nãoera apenas dos seus corpos, não lhe tiravam apenas a liberdade, mas a sua maneira de enxergar a vida, a sua religião, sua dança, sua música, culinária. Tiravam dessa gente oque há de mais caro para um povo, a sua cultura, que segundo o psiquiatra e revolucionário martinicano Frantz Fanon “é o conjunto dos comportamentos mentais e motores oriundos do encontro do homem com a natureza ecom o seu semelhante” (2021, p.8). Vejam só, que a tragédia dos europeus comove mais as pessoas do que a tragédiado povo negro.Se você fizer uma rápida pesquisa vai ver que o número de mortes dopovo negro e indígena na colonização das Américas é imensamente superior ao demortes no holocausto, porém esse fato repudiável da nossa história não parece noscomover tanto quanto o holocausto dos judeus. E nem parece gerar interesse naindústria cinematográfica.Veja, em países como o Congo, por exemplo, houve umholocausto muito mais sangrento do que o holocausto judeu, pois pesquisas remontam maisde dez milhões de Congoleses mortos pelo colonialismo Belga, e seu chefe máximo, osanguinário rei Leopoldo II, não aparece nas listas dos piores seres humanos que jáhabitaram a terra, assim como aparecem Hitler, Mussolini, Franco e Salazar. Talvezesses anteriormente citados tenham entrado para história como seres humanosextremamente cruéis pelo fato de terem perseguido, torturado e matado pessoasbrancas. Já Leopoldo II, ditador Belga, muito mais cruel do que seus colegas europeus,que promoveu um dos piores massacres da nossa história, passa despercebido pelosprodutores da sétima arte, não se acha nas plataformas de streams, em salas de cinemasconvencionais ou cine arte, novelas ou séries sobre a terrível história do colonialismobelga, em terras congolesas, muito provavelmente por ter cometido seus crimes noCongo, terra de gente preta, gente essa que é desumanizada nas telonas e na vida real. Aliás, não achamos muita coisa também na sétima arte sobre as revoluçõesanticoloniais africanas, suas lutas por independência, dificilmente 266 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento assistiremos nastelonas as histórias de Amílcar Cabral e a luta pela independência da Guiné Bissau,Frantz Fanon e a revolução Argelina ou a revolução socialista da Burkina Faso e seulíder máximo Thomas Sankara, Samora Machel em Moçambique ou Agostinho Netoem Angola. No entanto, sobre a África e o povo negro, num geral, achamos abundantementenas telas hollywoodianas, histórias sobre escravidão, morte e miséria. Enquanto aburguesia for dona dos meios de comunicação de massa, entre eles o cinema, continuaráproduzindo e distribuindo seus conteúdos midiáticos de maneira a convencer apopulação a achar normal vermos moradores de rua negros,algemados, morando em periferia, ou ocupando postos de trabalhos consideradossubalternos, e seguiremos a ver nas telonas, apenas conteúdo do interesse da classedominante. Eles contarão ao povo quem são os heróis e heroínas, os papéis de destaquee protagonismo, que continuarão sendo interpretados por pessoas de pele branca. A classe dominante, branca, acredita não ser racializada, na sua percepção, osoutros povos é que tem raça, entendem-se como aquilo que é natural, divino, se julgamum povo universal e quem foge ao padrão da branquitude é anormal, exótico, inferior, eesse entendimento distorcido da realidade faz com que essa classe dominante branca seache no direito de subjugar e objetificar outros povos, povos não brancos, logicamente,e é claro que essa visão de mundo vai parar nas telas de cinema mostrando ao mundo oquanto são belos e morais os valores da branquitude, o quanto a sua cultura é superior àde outros povos e como tudo que não vem do branco é errado e então precisa serconsertado. Por isso é urgente a democratização das mídias, enquanto isso não ocorre o povonão branco continuará a sofrer essa invasão cultural, fazendo assim com que o povonegro acredite que cultuar a religião dos seus antepassados é pecado, que sua maneirade dançar é promiscua, seu corpo está fora do padrão, seu jeito de viver a vida é feio esem valor e pior que precise se adequar aos modos de viver da branquitude para que possa ser aceito em sociedade. Enquanto as mídias não forem democratizadas dependeremos do esforçohercúleo, coragem e grandeza de cineastas como o veterano Joel Zito e outros da novageração, como Sophia Fidalgo, Viviane Ferreira e Jeferson De, sem esquecer do pioneiroZózimo Bulbul (em memória) que sem o mesmo financiamento que as grandes produtoras 267 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento recebem, fizeram e fazem das tripas, coração para que possamos conhecerum pouco das histórias do povo negro, para que o povo negro consiga se reconhecer nastelas de cinema. E é só com os meios de produção de cinema sob controle da classe trabalhadora,sob controle dos trabalhadores de cinema, é que a sétima arte produzirá conteúdo dointeresse da classe trabalhadora. Só assim o nosso povo poderá conhecer através docinema as histórias dos seus ancestrais, as nossas e dos nossos verdadeiros heróis, que lutaram para fazer avançar os nossos direitos e pela nossa liberdade, como: Aquatune, Maria Mahim, Laudelina de Campos Melo, Dandara e Zumbi dos Palmares, Luiz Gama, André e Antônio Rebouças, Dragão do Mar, João Cândido, Oswaldão, Marighela, Minervino de Oliveira, Manuel Balaio e tantos outros. Só então serão massificadas no seio do povo as histórias de luta por libertaçãodo povo negro, nosso jovens poderão conhecer além do Superman e outros heróis daMarvel, também Manuel Balaio e a Balaiada, a Revolta dos Malês entre outras históriasde luta, além da Liga da Justiça, conhecerão também a República Palmarina, o quilombo mais famoso, longevo e resistente (durou por volta de cem anos) da nossahistória, a população com olhos vidrados na telona saberá quem foram seus verdadeirosheróis e heroínas e que maioria de seus ancestrais já havia se libertado com seuspróprios meios e que o 13 de maio, dia da Lei Aurea, na verdade foi o dia da falsa abolição, saberão aquilo que hoje só acadêmicos e uma pequena parcela da sociedadeque tem acesso à leitura e ao ensino de qualidade conseguem saber. Ainda sobre democratização das mídias, sim, é preciso cada vez mais contar as histórias do passado e do presente do povo negro, porém sem cair na falácia neoliberalde que representatividade é tudo, claro que ela é importante, é muito bom para a autoestima de um jovem negro poder assistir um filme com Lázaro Ramos ou ChristianMalheiros, ou uma mulher negra assistir Zezé Mota ou Taís Araújo, porémrepresentatividade tem seus limites, ela por si só não vai acabar com o racismo, como aideologia neoliberal quer nos fazer acreditar através dos seus meios de comunicação,entre eles o cinema, diversos filmes apontam que para que o negro consiga o seu lugarao sol, basta que ele se esforce bastante, trabalhe até mais tarde, acorde mais cedo, nãotire férias, ou seja, faça sacrifícios desse tipo, abdique de seus momentos de descanso elazer, filmes como: A Procura da Felicidade, protagonizado pelo ator Will Smith,mostram bem a forte 268 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento ideologia neoliberal, um homem negro com um filho aindapequeno que é abandonado pela esposa, passa por todo tipo de agruras, porém no finaldo filme, consegue vencer, se tornar uma pessoa de sucesso, no entanto a sociedade estátão embebecida pela ideia de meritocracia que não consegue perceber a contradição aprópria ideia de meritocracia no filme, a mesma passa impune a maioria do público, aofinal do filme, depois da personagem desprender todo seu esforço para vencer na vida,Chris Gardner (Will Smith) senta-se numa luxuosa mesa de reunião de negócios comoutros vencedores, que não por acaso são todos brancos, ou seja, quem assisti ao filmenão sabe quanto esforço aqueles homens brancos fizeram para estar ali, passando a ideiade que aquele lugar de poder é naturalmente do homem branco enquanto Chris Gardner,homem negro, tem que fazer por merecer aquele trabalho privilegiado, consegue seulugar de destaque através de muito esforço, ou seja, venceu por seus méritos, mesmonum filme que quer vender a ideia de meritocracia o homem negro no poder ainda éuma exceção, visto que, entre esses homens poderosos do mundo dos negócios, ele era oúnico negro, em outros termos, disfarçadamente o filme nos diz que a maioria do povonegro não vence na vida por que é preguiçoso por natureza. Por isso para que não caiamos na falácia da meritocracia ou darepresentatividade vazia, com um fim nela mesma, sem levar em conta questõeshistóricas e/ou de classe, precisamos desenvolver a consciência de que é necessáriotransformar a nossa sociedade que hoje é pautada pelo lucro, numa sociedade quecoloque o ser humano no centro de suas ações ou correremos o risco de esquecer que osgrandes empresários donos das grandes produtoras de cinema são os mega capitalistasde hoje que herdaram sua riqueza dos seus antepassados escravocratas de ontem queficaram ricos através do sangue e suor do povo negro escravizado e hoje detém os meiosde produção, entres eles as produções cinematográficas que é um dos meios por ondeestes convencem os povos oprimidos do mundo todo que são eles (homens brancos) osbastiões da moral e bons costumes da humanidade. Existe uma parte do movimento negro que acredita que é preciso que a mulhernegra e o homem negro ocupem lugares destacados na sociedade para que a vida dopovo negro melhore, porém, veja que essa é apenas uma saída individual, e uma visãoum pouco limitada. Se o sistema capitalista não for derrubado, isso não acontecerá. Veja este exemplo: Obama, um homem negro na presidência dos EUA, o país mais 269 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento poderoso domundo, não conseguiu acabar com o racismo no mundo e nem mesmo em seu país, vocêque leu até aqui pode estar pensando, será mesmo, duvido? Para você que não acredita,faça uma rápida pesquisa e vai ver que na época em que Obama, governava o país apopulação carcerária era a maior do mundo e continua sendo até hoje a maior, nogoverno Obama, eram 2,2 milhões de presos, sendo que 60% dessa população carcerariaera de negros e hispânicos, Obama, passou os seus dois mandatos presidenciais comtropas do exército Norte-americano, invadindo países pobres do terceiro mundo, e porque ele fez isso? Porque ele, assim como seus antecessores brancos, governou o país aserviço do capitalismo e não a serviço do povo. Com isso eu não quero dizer que mulheres e homens negros não devam procurarum lugar de destaque no mercado de trabalho, não é isso que estou dizendo, todos nósdevemos lutar por condições melhores de vida, o que quero dizer é que isso por si sónão acaba com o racismo, pois o racismo é fundamental ao capitalismo brasileiro e sem a consciência de que o capitalismo brasileiro, depende do racismo para impor a misériaa nosso povo, não conseguiremos mudar a situação do povo negro, que sofre com oracismo do dia a dia. A saída para a emancipação do povo negro, do povo pobre deste país é coletiva,não basta ocupar os lugares privilegiados que hoje são ocupados por homens brancos,mas transformar radicalmente o sistema de opressão. Temos que combater o racismo para ontem e também precisamos derrubar ocapitalismo brasileiro, claro que o racismo não acabará automaticamente como numpasse de mágica através de uma transição para uma sociedade socialista, porém será umgrande passo em direção a esse sonho de viver numa sociedade livre do racismo, já queno socialismo os meios de produção são coletivos e a economia é pensada não para olucro, mas para proporcionar ao povo as condições materiais e culturais de existência: emprego, segurança, habitação, educação e saúde, condições essas que hoje são negadasa grande parte da população e sobretudo para a população negra. 3. Educação para o direito e o cinema negro Se a saída para a emancipação do povo negro é coletiva, como acima referido, impondo-se a transformação radical do sistema de opressão, além da militância política, 270 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento que pode abicar em uma efetiva ruptura institucional inaugural de um novo sistema produtivo, imprescindível se faz o manejo do ordenamento jurídico, ainda que nos quadrantes da ordem vigente, pois que além dos efeitos concretos das normas legisladas, das políticas públicas elaboradas e executadas, e das decisões judiciais prolatadas, os produtos dessas atividades, quais sejam a legislativa, a executiva, e a judicante, têm consequências pedagógicas importantes na transformação e/ou formação das subjetividades. E as atividades legislativa, administrativa e judicante, são permeadas pelo Direito. Com efeito, os operadores jurídicos, seja com suas atividades ancilares, como assessores jurídicos parlamentares no processo de criação da lei, de advogados públicos assessorando os Chefes de Executivo na elaboração e execução de políticas públicas, seja atuando de forma protagonista, como juízes, promotores e advogados, construindo a chamada distribuição de justiça por meio das decisões judiciais, devem, para o desiderato de emancipação do povo negro, do povo pobre, pensar como um negro (Moreira, 2019). Este pensar como um negro depende da Educação para o Direito, que se realiza nos cursos de graduação, de especialização, mestrado ou doutorado. Imprescindível, pois, o estudo da filosofia jurídica,10 que leve à compreensão científica e crítica dos sistemas normativos. Os cursos de Direito e afins, em todos os níveis (graduação e pós-graduação), devem oferecer Filosofia do Direito como matéria obrigatória, a fim de justificar princípios gerais, axiomas e supostos da Ciência do Direito 11. A Filosofia do Direito reparte-se, como é sabido, para fins pedagógicos, em ontologia jurídica,12 epistemologia jurídica,13 e a axiologia14. Já a Ciência do Direito a ser ministrada nas universidades, em todos os graus, decorrente da visão filosófica adotada, sob esse viés do pensamento negro,15 que podemos entender como uma visão própria do Direito crítico, pois fornece o instrumental necessário à transformação/aperfeiçoamento das subjetividades, refletir-se-á na formação dos futuros profissionais nas atividades legislativa, executiva e judicante. A Ciência Jurídica ocupa-se do Direito, tal qual hoje o entendemos, como fruto das necessidades do então novel sistema econômico capitalista, nascido na Idade Moderna,16 e forjado na Idade Contemporânea17 por meio de revoluções, guerras civis e guerras entre Estados, além de ideologias, como a do colonialismo e do neocolonialismo. 271 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento Neste processo, a técnica juridicizou a propriedade privada, o contrato e a autonomia da vontade, configurou o sujeito de direitos, e deu nova roupagem às ideias de república e democracia, elaborando a ideia de Estado de Direito, depois de Estado Social e outros institutos e instituições jurídicas, sendo responsável também por revestir juridicamente o escravagismo, o despotismo, o patriarcalismo, a xenofobia, e o sistemático desrespeito pelos Direitos Humanos. Todos esses temas devem ser objeto de reflexão acadêmica, primeiro no campo da filosofia jurídica, depois da ciência do direito como teoria geral, e finalmente em cada ramo do direito a ser estudado, como aqui proposto, por uma visão crítica, mais especificamente, a partir do pensar como um negro. Pensar o Direito como um negro não significa que, necessariamente, o professor e o aprendiz devam ser negros. É preciso compreender o que vem a ser o lugar de fala18. Não é possível deixar de tratar de tema tão caro à cidadania e ao Direito quanto o antirracismo, por ser o professor pessoa branca, ocupando um lugar de sujeito universal, e sem se sentir racializado. É preciso que fale de sua percepção, e n’um movimento dialético, também aprenda com outros professores e alunos negros (Pinheiro, 2012). Aliás, esse aprendizado pode ser também do próprio aluno negro, pois muitos internalizam e reproduzem o racismo contra eles mesmos, (Pinheiro 2012), conforme já demonstrou um clássico do antirracismo. (Fanon, 2008) E o cinema negro pode contribuir decisivamente para auxiliar a educação para o direito de forma crítica, pois que a sétima arte assim se qualifica não apenas em razão do protagonismo de negras e negros como diretores, atores e atrizes, mas também porque o negro se consubstancia como um sujeito histórico 19. Assim, uma boa introdução sobre o tema em aula de Filosofia Jurídica, base para a compreensão crítica do estudo científico de todos os ramos do Direito, abordando o racismo e o antirracismo, assim como a internalização e reprodução do primeiro por pessoas negras, em prejuízo da própria cidadania (direito a ter direitos), é a veiculação do filme Cores e Botas20 para ulterior discussão e reflexão com a classe. Outras películas terão importância para o desbravamento posterior, por exemplo, do Direito Constitucional e Direitos Humanos das minorias, como O dia de Jerusa, porquanto é possível refletir sobre a discriminação múltipla em nossa sociedade, em prejuízo do princípio constitucional da igualdade, uma vez que é abordada, não 272 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento apenas a discriminação em razão da raça, mas também de gênero, vale dizer da mulher negra, e ainda do etarismo21. A filosofia do direito, ministrada com o instrumental de veiculação do cinema negro, pode dar a direção, também, ao estudo do direito processual penal, com a exibição do filme Preto no Branco, objetivando discutir como o garantismo, na prática, nem sempre alcança as pessoas negras22. Dado o limitado espaço próprio de um artigo científico, é de se sugerir, perfunctoriamente, apenas mais alguns filmes do cinema negro objetivando a educação jurídica crítica e antirracista. O primeiro, para discussão sobre o trinômio democracia-autoritarismo-racismo, e de como esses conceitos traduzem situações limites que influenciam ou determinam a vida das pessoas, é imprescindível que o professor discuta e reflita com seus alunos com base no documentário Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil 23. O segundo é M8 – Quando a morte socorre a vida, propício à discussão das ações afirmativas, especialmente o sistema de cotas para ingresso em nossas universidades e instituições, e é serviente também, à percepção do desprezo social pelos corpos negros, e pelas religiões de matriz africana, 24. Por fim, o documentário Abolição 25 serve ao questionamento da interpretação que se tem conferido aos princípios da legalidade e da igualdade quando se trata de suas incidências em casos jurídicos envolvendo racismo e ações afirmativas. Em verdade, a sociedade liberal de livres e iguais decorre do sistema capitalista, que necessita de mão de obra livre para vender a força de trabalho em suposto estado de igualdade com o capitalista que o contrata, bem como permitir que as mercadorias sejam trocadas em larga escala no mercado26. A sociedade de livres e iguais depende da legalidade como instrumento técnico para funcionar,27, mas no Brasil, como nos demais países de capitalismo periférico dependente, a legalidade não funciona apenas como neutralização da desigualdade por meio da estabilização jurídica da propriedade privada ou do contrato, mas serve como instrumento jurídico de favorecimentos e privilégios,28 como o dos brancos. Por isso, em acréscimo à compreensão hermenêutica de quem pensa como um negro, para quem não basta apenas interpretar o princípio da igualdade como sendo substancial (ou material), mas também como igualdade relacional,29 parece importante a ideia de neutralidade aparente. 273 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento A expressão não decorre da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, que tem status de norma supralegal, pois que ingressou em nosso ordenamento jurídico ainda sob a égide da Constituição pretérita. Alvissareira, no entanto, é a inserção, em nossa ordem jurídica, por meio do Decreto n.º 10.932, de 10 de janeiro de 2022, da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Primeiro, porquanto, por força do § 3º, do artigo 5º, da Constituição Federal, insere-se no ordenamento jurídico brasileiro equiparando-se às emendas constitucionais. Assim, é possível servir como paradigma para controle de convencionalidade. Por fim, o documento normativo traz os conceitos de discriminação indireta,30 discriminação múltipla ou agravada,31 e prevê as ações afirmativas32 (agora com o status de norma constitucional, condicionando materialmente as demais espécies normativas) como uma obrigação dos Estados-Partes (artigo 5). É no seu artigo 1.2 que surge a ideia de neutralidade aparente, como sendo dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro, que acaba por acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem. É ela que caracteriza a discriminação racial indireta, e que, ao lado da igualdade relacional, pode servir aos processos estruturais33 que objetivem a obrigação de elaboração e execução de ações afirmativas. Assim, a educação para o direito, ainda que nos quadrantes da ordem vigente, com base no cinema negro, poderá ser um importante instrumento de consequências pedagógicas na transformação e/ou formação das subjetividades antirracistas. 274 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento Referências ALMEIDA, Silvio Luiz. Racismo estrutural. São Paulo, Pólen, 2019. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Atos que instituíram sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial (cotas) no processo de seleção para ingresso em instituição pública de ensino superior. Alegada ofensa aos arts. 1º, caput iii, 3º, IV, 4º VIII, 5º, I, II, XXXIII, XLI, LIV, 37, caput, 205, 206, Caput, I, 207, Caput e 208, v, todos da constituição federal. julgada improcedente. ADPF186/ DF. Partido Democratas – DEM e outros. Relator: Ricardo Lewandowski. Acórdão Plenário; Data do julgamento: 26/04/2012. CARVALHO, Noel dos Santos. Imagens do negro no cinema brasileiro: o período das chanchadas. CAMBIASSU – Edição Eletrônica. Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão – UFMA - São Luiz: janeiro/junho de 2013. CARVALHO, Noel dos Santos e DOMINGUES, Petrônio. Dogma feijoada – a invenção do cinema negro brasileiro. In Revista Brasileira de Ciências Sociais, Volume 33, número 96/2018. https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/ F8PqhJ4SqNGnhnjdJhKYpVK/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 1º de agosto de 2023. CRUZ, Maira Guimarães De La, HERMES Manuela e VALE Silvia Teixeira (Organizadores). Direito antidiscriminatório. Salvador: Escola Judicial/TRT-5, 2021. DE, Jeferson. Negro no cinema. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005. DINIZ, Maria Helena. A Ciência Jurídica. São Paulo. Editora Resenha Universitária. 1982 FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo, SãoPaulo, Paz e Terra, 2011. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005. FANON, Frantz Omar. Racismo e cultura. Terra sem Amos: Brasil, 2021. ______.Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina, Porto Alegre, RS, L&amp;PM,2011. 275 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento GONZALES, Lelia. Racismo e sexismo na cultura brasileira in Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, 1984, p. 223-244. MASCARO, Alysson Leandro.Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro – 3ª edição -São Paulo: Quartier Latin. 2019 MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo. Editora Contracorrente, 2019. MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas, SãoPaulo, Anita Garibaldi, 2020. PARO, Vitor Henrique. O capital para educadores: aprender e ensinar com gosto a teoriacientifica do valor, São Paulo, Expressão Popular, 2022. PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Como ser um educador antirracista. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023 PRUDENTE, Celso Luiz. A dimensão pedagógica do cinema negro: uma arte ontológica de afirmação positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio, in. A dimensão pedagógica do cinema negro – aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: o olhar de Celso Prudente, pp. 59/76 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2006. RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Palas Editora, 2011. SODRÉ, Moniz. O Fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional. Petrópolis: Vozes, 2023. Obama, o Nobel da Paz que se tornou o 1º presidente dos EUA a estar em guerradurante todos os dias de seu mandato 19 de janeiro 2017. Disponível em&lt;https://www.bbc. com/portuguese/internacional-38642556&gt; Acesso em: 01 de agostode 2023. Obama põe o foco nas injustiças do sistema penal do EUA, 15 de julho de 2015Disponível em&lt;https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/16/ internacional/1437069179_466370.html&gt;Acesso em: 01 de agosto de 2023. 276 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento Notas 1 O Dogma 95 recebe esse nome por ter sido redigido em 1995. Suas regras “dogmáticas” estão articuladas em dez pontos: 1. As filmagens devem ser feitas no local. Não podem ser usados acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre). 2. O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena). 3. A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos - ou a imobilidade - devidos aos movimentos do corpo. (O filme não deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar). 4. O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial. (Se há pouca luz, a cena deve ser cortada, ou então, pode-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera). 5. São proibidos os truques fotográficos e filtros. 6. O filme não deve conter ação “superficial”. (Homicídios, Armas etc. não podem ocorrer). 7. São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (O filme ocorre na época atual). 8. São inaceitáveis os filmes de gênero. 9. O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm, padrão, com formato de tela 4:3. (A regra foi abrandada para permitir a realização de produções de baixo orçamento). 10. O nome do diretor não deve figurar nos créditos. Os dogmas ficaram conhecidos como “voto de castidade”. 2 “Seja como for, o manifesto lançado em 2000 ensejou uma surpreendente discussão sobre a possibilidadede um cinema brasileiro feito por negros, sem incorrer nos discursos – panfletários e/ou de vitimização – típicos dos movimentos antirracistas. De forma pragmática, cavou uma agenda mínima para se pensar um cinema negro nacional. Nos anos seguintes, Jeferson De e os realizadores afro-brasileiros que se aglutinavam em torno do movimento passaram a se encontrar frequentemente. Criaram, então, um nome para o grupo, Cinema Feijoada, e mantiveram um site na internet até 2004 (com a biografia, a filmografia, fotos de cena, making off e informações sobre os novos projetos dos integrantes do grupo). Também promoveram mostras e debates sobre as imagens e representações do negro no cinema”. CARVALHO, Noel dos Santos &DOMINGUES, Petrônio. Dogma feijoada – a invenção do cinema negro brasileiro. In Revista Brasileira de Ciências Sociais, Volume 33, número 96/2018, p.6). 3 Promulgada no Brasil pelo Decreto 10.932 de 10 de janeiro de 2022. 4 As formas de discriminar podem ser direta e indireta. No primeiro caso, identifica-se o ato discriminatório e a pessoa do discriminador. O proprietário pode impedir o acesso de negros ao restaurante recusando-se a servi-los. É uma discriminação direta. Tanto ato quanto o agente são identificáveis. Por essa razão vincula-se à concepção individual. Discriminação indireta prescinde tanto do ato quanto da pessoa do discriminador. A forma indireta está na complexidade da relação social historicamente construída desde os tempos da segregação racista mantida por resiliência na cultura após a extinção das normas de origem. Na discriminação indireta o agente discriminador é difuso; verificável pelo resultado social da exclusão injustificável mantida por gerações. No Brasil, discriminação direta é crime. Contudo, o racismo que realmente dirige espaços de poder em nossa sociedade vincula-se à dimensão transindividual sob a forma de discriminação indireta, demandando mecanismos próprios de enfrentamento. 5 Concordamos com Muniz Sodré quanto à vacuidade da expressão quando estamos diante do desafio de elaborar estratégias de enfrentamento da forma furtiva como o racismo se apresenta em nossa formação social. SODRÉ, Moniz. O Fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional. Petrópolis: Vozes, 2023. 277 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento 6 Cinco Ações Civis Públicas distribuídas respectivamente nas 12ª, 13ª, 14ª, 15ª e 16ª Varas do Trabalho do Distrito Federal. Segue, respectivamente, o nº dos processos 00936-2005-012-10-00-9; 00952-2005 013-10-00-8, 00928-2005-014-10-00-5, 00943-2005-015-10-00-0, 00930-2005-016-10-00-7. Todas indeferidas em primeiro com indeferimento mantido em segundo grau de jurisdição. Segue os números das ações na primeira instância trabalhista. 7 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. Recurso Ordinário n. 00963-2005-012-1000-9. Relator para o acórdão Juiz Revisor Oswaldo Florentino Neme Junior; Órgão Julgador: Primeira Turma; Recorrente: Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Brasília; Recorridos: HSBC Bank Brasil S. A. – Banco Múltiplo e Ministério Público do Trabalho. Data de julgamento: 21.032007; Data de publicação: 30.03.207. 8 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de Instrumento no Recurso de Revista n. 009524003.2005.5.10.0013. Relator Ministro Walmir de Oliveira da Costa; Agravante: Ministério Público do Trabalho; Agravados: Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Brasília e Itaú Unibanco S/A; Órgão julgador: Primeira Turma; Data de julgamento: 08.04.2015. 9 Nos termos da Convenção, considera-se intolerância, “o ato ou conjunto de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes ou contrárias. Pode manifestar-se como marginalização e a exclusão de grupos em condições de vulnerabilidade da participação em qualquer esfera da vida pública ou privada como violência contra esses grupos” (Artigo 1, nº 6). 10 Todas as ciências estão em estreito contato com a filosofia, uma vez que possuem princípios gerais, axiomas e supostos que não entram dentro do objeto que investigam, daí a necessidade de uma consideração filosófica que permita justificá-los (nota de rodapé 31 maria helena diniz – p.12. 11 Há quem entenda não existir uma Ciência Jurídica, mas simples técnica jurídica. Autorizada doutrina explica essa compreensão: “Para uns a Ciência do Direito não é, na realidade, uma ciência, porque o seu objeto (o Direito) modifica-se no tempo e no espaço e essa mutabilidade impede ao jurista a exatidão na construção científica, ao passo que o naturalista tem diante de si um objeto permanente ou invariável, que lhe permite fazer verificações, experiências e corrigir os erros que, porventura, tiver cometido, Para outros, que constituem a maioria, é a Jurisprudência uma ciência.” DINIZ, Maria Helena. A Ciência Jurídica. São Paulo. Editora Resenha Universitária. 1982, p.10 12 A ontologia objetiva capturar a essência do Direito, investigando o que é o Direito para defini-lo. Ibid, p. 11, nota de rodapé– nota 30 13 A epistemologia, ou gnoseologia, estuda o problema do conhecimento do Direito, isto é, tem a incumbência de estudar os pressupostos, os caracteres do objeto, o método do saber científico e de verificar suas relações e princípios, sendo, a epistemologia, nesse sentido, a Teoria da Ciência Jurídica, tendo por objetivo o estudo dos problemas do objeto e método da Jurisprudência, sua posição no quadro das ciências e suas relações com ciências afins.Ibid, p.11 Nota de rodapé,– nota 30. 14 A axiologia Jurídica se ocupa dos valores do Direito, indicando suas finalidades, cuidando do problema da justiça e demais valores que o ordenamento jurídico deve perseguir.Ibid, nota de rodapé p. 12 – nota 31. 278 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento 15 Pensar como um negro significa reconhecer as relações entre o privilégio branco e a opressão negra. Um jurista que pensa como um negro precisa interpretar a igualdade tendo em vista as relações de poder que estruturam os lugares sociais dos diferentes grupos raciais. Isso significa que ele deverá rejeitar a afirmação de que a raça não possui relevância nos processos de estratificação. Argumentos dessa natureza encobrem o fato de que a raça designa uma relação de poder e estabelece o lugar que negros e brancos ocupam dentro da sociedade. É por meio dela que os lugares sociais são prescritos, é por meio dela que os sujeitos sociais são construídos. Infelizmente, esse processo permanece encoberto por uma epistemologia da ignorância, elemento central da ideologia racial brasileira. MOREIRA, Op. Cit, p.287. 16 A trajetória da filosofia do direito moderno é a saída do direito como instância política, da vontade, do arbítrio, para a instância da técnica, da estabilidade, onde a legalidade se assenta em si mesma, e não mais na sua criação e manutenção constante por parte da política (...) A modernidade eleva a legalidade à expressão de uma racionalidade universal. MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro – 3ª edição -São Paulo: Quartier Latin. 2019, p. 50. 17 A partir da plenitude da lógica capitalista, e a partir do momento em que a produção coordena a circulação mercantil, o Estado perde seu caráter ambíguo de resquício de antigos privilégios, O direito, na passagem da modernidade para a contemporaneidade, deixa de ser o princípio filosófico ou demanda econômica para tornar-se o direito burguês, tendo em vista que os Estados, com as revoluções liberais, são a partir de então Estados burgueses. A igualdade e a liberdade de negócio até então privilégio e concessão, passam a se encontrar na estabilidade da forma da lei. Abre-se o mundo do positivismo jurídico. Já não mais é necessário afirmar um mundo burguês numa pretensão de jusnaturalismo. O Estado burguês dá o seu próprio direito positivo burguês .Ibid, p. 33. 18 É interessante a alegoria para fazer compreender o que vem a ser o lugar de fala, explicada em livro sobre antirracismo na educação, que aqui sintetizamos da seguinte forma:podemos imaginar um ônibus onde uma pessoa é assaltada, e a seguir uma emissora de televisão faz reportagem entrevistando a vítima, o assaltante, e as testemunhas presenciais. Cada um falará sobre o que viu, ouviu e sentiu. E nenhuma dessas pessoas conseguirá falar pela outra, pois ninguém conseguirá sentir o que a vítima sentiu no momento do ato ilícito, assim como ela não conseguirá se colocar no lugar do assaltante, que pode até ter tido motivos moral e/ou juridicamente apreciáveis, e nem esses dois protagonistas conseguirão enxergar como as testemunhas que presenciaram o assalto. Cada um poderá falar sobre o mesmo fato ou fenômeno, conforme sua posição. PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Como ser um educador antirracista. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023, p. 62. 19 Vê -se aí de forma cristalina e inequívoca a dimensão pedagógica do cinema negro. No projeto cinematográfico que o negro vai para além da posição de protagonista, sendo sujeito histórico, na medida em que reescreve com objetiva a sua própria representação, inspirando assim as minorias como um todo na luta contra a euroheteronormatividade que foi dada pela imagética de dominação do euro-hétero-macho-autoritário. PRUDENTE, Celso Luiz & SILVA, Dacirlene Célia (org.) A dimensão pedagógica do cinema negro: uma arte ontológica de afirmação positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio, in A dimensão pedagógica do cinema negro – aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: o olhar de Celso Prudente, pp. 59/76. 20 Os autores deste artigo assistiram juntos ao filme, para debates e reflexões, no dia 6/07/2023, , no link https://www.youtub.com/watch?v=L18EYEygU0o. Dir: Juliana Vicente. Ano: 2010. Duração: 15’50”. 279 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento Formato: 35mm. País: Brasil. Idioma: Português. Com: JhenyferLauren, Luciano Quirino, Dani Ornellas, Bruno Lourenço.SINOPSE - Joana tem um sonho comum a muitas meninas dos anos 80: ser Paquita. Sua família é bem-sucedida e a apoia em seu sonho. Porém, Joana é negra, e nunca se viu uma paquita negra no programa da Xuxa. 21 Os autores deste artigo assistiram em conjunto ao filme, para debates e reflexões, no dia 6/07/2023, no link https://youtube.com/results?search_query=o+dia+de+jerusaDiretora: Viviane Ferreira . Ano 2014. Duração: 20 min. País: Brasil. Idioma: Português. Com: Léa Garcia, Débora Maçal, Adriana Paixão, Dirce Thomaz, Flavia Rosa, Edson Montenegro. SINOPSE - O filme conta o encontro da sensitiva Silvia, uma jovem pesquisadora de mercado que enfrenta as agruras do subemprego enquanto aguarda o resultado de um concurso público, e da graciosa Jerusa, uma senhora de 77 anos, testemunha ocular do cotidiano vivido no bairro do Bixiga, recheado de memórias ancestrais. No dia do aniversário de Jerusa, enquanto espera sua família para comemorar, o encontro entre suas memórias e a mediunidade de Silvia lhes proporciona transitar por tempos e realidades comuns às suas ancestralidades. 22 Os autores deste artigo assistiram em conjunto ao filme, para debates e reflexões, no dia 6/07/2023, no link htpps://www.youtube.com/watch?v=rW5DwuRQVuY .Diretor: Valter Rege. Ano 2017. Duração: 15 minutos. País: Brasil. Idioma: Português. Com Maria Bopp, Marcos Oliveira, Guilherme Lopes, Taiguara Nazareth, Carolina Holanda.SINOPSE - Roberto Carlos é um jovem negro de 20 anos que está correndo para pegar o ônibus quando é abordado por policiais e levado para delegacia. Uma moça o acusa de roubar sua bolsa, mas ele jura inocência. 23 Os autores deste artigo assistiram em conjunto ao filme, para debates e reflexões, no dia 6/07/2023, no link https://www.youtube.com.watch?v=7wHNxOohoPA Diretor: Belisário Franca. Ano 2016. Duração: 1h 20 m. País: Brasil. Idioma: Português. Com Sidney Aguiar Filho, Aloísio da Silva, Argemiro Santos, Maria da Glória, Cirece Bittencourt, Reginaldo Alves Almeida. SINOPSE - A partir da descoberta de tijolos marcados com suásticas nazistas em uma fazenda no interior de São Paulo, o filme acompanha a investigação do historiador Sidney Aguilar e a descoberta de um fato assustador: durante os anos 1930, 50 meninos negros e mulatos foram levados de um orfanato no Rio de Janeiro para a fazenda onde os tijolos foram encontrados. 24 Os autores deste artigo assistiram em conjunto ao filme, para debates e reflexões, no dia 6/07/2023, no linkhttps://www.youtube.com/watch?v=v=uk_rvigyFiQ&t=2s . Diretor: Jeferson De. Ano: 2019. Duração: 1h 24m. País: Brasil. Idioma: Português. Com Juan Paiva Maurício, Raphael Logam, Giulia Gaioso Suzana, Mariana Nunes, Bruno Peixoto Domingos, Lázaro Ramos, e Zezé Mota. SINOPSE - Maurício começa a estudar na renomada Universidade Federal de Medicina em razão de aprovação pelo sistema de cotas. Em sua primeira aula de anatomia, ele conhece M8, o cadáver que servirá de estudo para ele e os amigos. Durante o semestre, o mistério da identidade do corpo só pode ser desvendado depois que ele enfrentar suas próprias angústias. 25 Os autores deste artigo assistiram em conjunto ao filme, para debates e reflexões, no dia 23/08/2023, no link https://www.facebook.com/watch/?v=755110381347975, Diretor: Zózimo Bulbul. Ano: 1988. Documentário. Duração: 150 min.. País: Brasil. Idioma: português. SINOPSE - Cem anos após a assinatura da Lei Áurea, que aboliu (pelo menos em lei), o regime da escravatura no Brasil, pairam no ar inúmeras interrogações sobre o que foi feito do negro durante esse tempo em que pouco ou nada se falou desse 280 educação para o direito Douglas M. Souza, Michel L. Viana, Luiz S. Nascimento tema. E quando se falou, foi menos para resolver, que para apaziguar contradições antagônicas acumuladas durante anos. (ALSN/DFB-LM, citado no site da Cinemateca Brasileira). 26 Tal qual um grande mercado, no qual todos são compradores e vendedores e não pessoas com uma história e uma condição, ou com necessidades, um mercado no qual importa mais a mercadoria que as pessoas que lá se encontram, o direito também iguala, na universalidade da técnica legislativa, as classes sociais, as diferenças sociais e individuais, as expectativas e necessidades diversas. O direito acaba, de certo modo, por fazer com que a técnica universal seja a técnica do contrato capitalista. MASCARO, Op.cit., p. 54. 27 O capitalismo, assim, é o modo econômico que fará da igualdade e da liberdade sustentos da circulação econômica livre entre iguais, a partir daí instaurando-se a legalidade como mediação que estabelece esta igualdade formal. Ibid, p. 73. 28 A legalidade, como instância técnica favorável a uma burguesia nacional nas suas relações produtivas e mercantis, no caso brasileiro encontra não apenas a estabilização jurídica da propriedade privada ou do contrato, mas, para além disso, encontra a instrumentalização dos mios jurídicos como forma de favorecimento de relações de fomento e privilégio, resultantes desta interdependência do Estado para com o capital interno e externo. Ibid, p. 96. 29 Mais do que a criação de critérios distributivos justos, a igualdade no mundo atual deve estar preocupada com relações sociais igualitárias. O conceito de igualdade social ou relacional está baseado na ideia de que uma cultura democrática precisa eliminar relações hierárquicas responsáveis pela marginalização de grupos sociais. Essas relações são estabelecidas a partir das disparidades de status cultural entre os diversos grupos sociais, sendo que elas podem ser vistas como exemplos paradigmáticos tendo em vista a relevância social da raça nas democracias liberais. MOREIRA, Op. Cit., p. 249. 30 Cf.artigo 1.2 da Convenção Interamericana de contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. 31 Cf. artigo 1.3.da Convenção Interamericana de contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. 32 Cf. artigo 1.5. da Convenção Interamericana de contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. 33 O C. Supremo Tribunal Federal já trata de processos estruturais, fixando o Tema698. Pesquisa em . https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur484369/false, no dia 28/08/23, às 22:07. 281 Batucada de Nego Véio: memórias do samba e masculinidades na zona leste de São Paulo Fernando de Paula Manelichi1 Elizabete Franco Cruz2 Introdução Este artigo se origina da dissertação Batucada de Nego Véio: memórias do samba e masculinidades na zona leste de São Paulo, desenvolvida pelo primeiro autor no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação de Elizabete Franco Cruz segunda autora neste artigo. Apesar de ser um trabalho acadêmico, este texto é mais do que isso, é fruto de sua vivência como homem negro periférico envolvido visceralmente com a cultura do samba na Zona Leste de São Paulo, que se propôs a estudar e pensar a experiência de um grupo de homens negros que participam da Velha Guarda de Bambas, Batucada de Nego Véio nosubúrbio de São Paulo. O coletivo é formado em sua maioria por homens, baluartes do samba de São Paulo, que tiveram participação na escola de samba Nenê de Vila Matilde e, com mudanças no carnaval paulistano, não encontraram mais seu espaço de pertencimento 1 Batuqueiro, bacharel em obstetrícia, mestre em ciências pelo PROMUSPP/EACH/USP - Programa de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo 2 Psicóloga, mestre em psicologia social e doutora em educação, professora do curso de obstetrícia e do PROMUSPP/EACH/USP Programa de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. 282 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz junto à escola. Em 2018, formaram um grupo à beira de um campo de futebol da várzea e, a partir dali, preservam e transmitem a cultura do samba paulistano na periferia da cidade. Com o objetivo de registrar as memórias do grupo e compreender os sentidos das masculinidades construídas neste cenário, realizamos uma pesquisa qualitativa, entrevistando nove homens negros com faixa etária entre 55 a 77 anos. As entrevistas foram transcritas e analisadas com inspiração nos procedimentos descritos por Spink et al. (2010), sendo que vários eixos temáticos emergiram nos diálogos estabelecidos com os participantes, tais como a relação com o samba, a escola, a família, a violência e a masculinidade. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. O objetivo deste artigo é apresentar alguns elementos da pesquisa – especialmente o registro da memória do grupo, que é importante como herança cultural do povo e mais especificamente do homem negro em São Paulo – e uma reflexão sobre resistências produzidas neste contexto. A figura do nego véio, que através da oralidade conta suas memórias de construção de uma identidade de negritude brasileira, é o ponto central desse estudo. Nessa construção, o contato com a terra, ritmos, cantos, danças, culinária e território configuram valores e sentidos construídos pelo negro em sua diáspora, a fim de se encontrar enquanto sujeito. Nesta linha de raciocínio, afirma Ribeiro (1995, p. 114): Os negros do Brasil, trazidos principalmente da costa ocidental da África, foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais que falavam dialetos e línguas não inteligíveis uns aos outros. A África era, então, como ainda hoje o é, em larga medida, uma imensa Babel de línguas. Embora mais homogêneos no plano da cultura, os africanos variavam também, largamente essa esfera. Tudo isso fazia com que a uniformidade racial não correspondesse a uma unidade linguística e cultural. De acordo com Mbembe (2013), em uma diáspora forçada pelo escravismo, o indivíduo trazido de África para o Brasil vê seus signos, valores e identidades sofrerem inúmeras tentativas de apagamento nesse percurso. Em um novo mundo, em um novo 283 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz contexto, a necessidade de reinvenção de seu status e dos seus signos tem dificuldade para ser, uma vez que sua memória também foi abalada por esse processo, que tem a palavra como força criadora de sua significação: Ainda de acordo com Achile Mbembé (2013), um caminho de afirmação social e cultural, para o corpo negro, é a reunião de indivíduos em corpos coletivos, buscando a formação de comunidades identitárias capazes de ressignificar suas histórias, memórias e projetar novos caminhos e subjetividades, coletivas e individuais, baseados em suas tradições. Segundo o autor: A defesa da humanidade do negro está quase sempre ligada à reivindicação do caráter específico da raça e das suas tradições; dos seus costumes e da sua história. Toda a linguagem se desenvolve ao longo deste limite, do qual decorrem todas as representações do que é negro. Mbembé (2013, p. 159): Uma vez que o registro étnico historiográfico do indivíduo escravizado é de posse de quem o escraviza, a manutenção da memória e da oralidade se transforma em formas de resistências ao se reinventar e sobreviver no novo mundo. A criação de uma comunidade identitária com quem sofre essas degradações lado a lado é a maneira espontânea de se manter uma condição também de futuro. Ribeiro (1995) diz que a assimilação da língua do opressor possibilita a criação de uma identidade cultural, uma vez que elementos mantidos nas memórias do escravizado contribuem para a criação de uma cultura que resume a vida na colônia como nem européia, nem africana, mas brasileira. Nesse amalgamento linguístico, as expressões que servem como ensejos de liberdade para esses povos se manifestam em formas de ritos, movimentos corporais, gostos e sentimentos que remetem à liberdade. Sobre a memória, Ribeiro (1995, p. 116) afirma: Concentrando-se em grandes massas nas áreas de atividade mercantil mais intensa, onde o índio escasseava cada vez mais, o negro exercia um papel decisivo na formação da sociedade local. Seria, por excelência, o agente de europeização que difundiria a língua do colonizador e que ensinaria aos escravos recém chegados as técnicas de trabalho, as normas e valores próprios da subcultura a que se via incorporado. Consegue, ainda assim, exercer influência, seja emprestando dengues ao falar lusitano, seja 284 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz impregnando todo o seu contexto com o pouco que pôde preservar da herança cultural africana. Como esta não podia expressar-se nas formas de adaptação – por diferir, consideravelmente, no plano ecológico e tecnológico, dos modos de prover a substância na África -, nem tampouco nos modos de associação – por estarem rigidamente prescritos pela estrutura da colônia como sociedade estratificada, a que se incorporava na condição de escravo -, sobreviveria principalmente no plano ideológico, porque ele era mais recôndito e próprio. Quer dizer, nas crenças religiosas e nas práticas mágicas, a que o negro se apegava no esforço ingente por consolar-se do seu destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso em que submergia. Junto com esses valores espirituais, os negros retêm, no mais recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e musicais, como saberes e gostos culinários. Retomando a visão de Mbembe (2013), a experiência da memória negra diaspórica não pode ser vista como única e linear, pois ela se molda de acordo com o tempo, com o espaço e com as condições gerais que as fazem se construir. Nesse contexto, comunidades identitárias distintas produzem sentidos distintos para suas experiências de vida, pois: […] decerto são complexas as distâncias, mas também os parentescos entre a memória enquanto fenômeno sociocultural e a história enquanto epistemologia. Manifestam-se interferências entre o discurso histórico e o discurso da memória. […] Esta maneira de definir o sujeito apresenta dificuldades evidentes. As formas negras de mobilização da memória da colônia variam segundo as épocas, aquilo que está em jogo e as situações. Quanto aos modos de representação da experiência colonial propriamente dita, vão desde a comemoração ativa ao esquecimento, passando pela nostalgia, pela ficção, pelo recalcamento, pela amnésia e pela reapropriação, até diversas formas de instrumentalização do passado nas lutas sociais em curso. Mbembe (2013, p. 179) Trazendo esse contexto histórico da relação do negro com a memória e com a oralidade, tradicionalmente, a cultura sambística do homem negro da Zona Leste de São 285 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz Paulo se mantém viva na transmissão da memória e dos costumes característicos de seus remanescentes mais antigos, que passam suas questões socioculturais para as gerações mais novas de forma oral e artística. A partir desse contato, através de símbolos, a comunidade formada pela interação dessas gerações cria os valores do presente e do futuro: Contrariamente às leituras que instrumentalizam o passado, defendo que a memória, tal como a recordação, a nostalgia ou o esquecimento, se constrói antes de tudo por imagens psíquicas entrelaçadas. É sob essa forma que ela surge no campo simbólico, e até político, ou ainda no campo da representação. O seu conteúdo são imagens de experiências primordiais e originárias que ocorreram no passado, e das quais não fomos necessariamente testemunhas. O importante na memória, na recordação ou no esquecimento, não é tanto a verdade como jogo de símbolos e a sua circulação, os desvios, as mentiras, as dificuldades de articulação, os pequenos atos falhados e os lapsos, em suma, a resistência ao reconhecimento. Enquanto forças complexas de representação, a memória, a lembrança e o esquecimento são, por outras palavras, atos sintomáticos. Estes atos, só tem sentido em relação a um segredo que não o é verdadeiramente, mas que, no entanto, nos recusamos a confessar. É nisto que eles provêm de uma operação física e de uma crítica do tempo. (MBEMBÉ; 2013, p. 180) Sendo a oralidade o vetor da transmissão de valores do passado que ressignificam o futuro, os conhecimentos transgeracionais do signo negro criado em solo brasileiro se traduzem muitas vezes em forma de arte, que, além de ensinar, trazem orgulho e dignidade de ser. Trazemos para reflexão um samba composto por Aldir Blanc, Luiz Carlos da Vila e Moacyr Luz (2003), intitulado “Cabô meu pai”: O pai me disse que a tradição é lanterna/Vem do ancestral e é moderna/ Bem mais que o modernoso/E aí é o meu coração que governa/Na treva é a luz mais eterna/O todo mais poderoso/Também me disse com aquele jeito orgulhoso/Que o samba é mais que formoso/Que ninguém lhe passa a perna/É à marola que vira o mar furioso/Netuno misterioso o tesouro das cavernas/A jura é pra quem rezar/A reza é pra quem jurar/A alma é pra sempre do criador/Maré muda com o luar/Futuro é pra quem lembrar/Se é isso que o pai ensinou cabo/Cabô, meu pai, cabô. 286 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz Na canção, através do contato entre gerações, o pai passa para o filho o sentido expresso na tradição como uma luz que tem a capacidade de guiar, de conduzir. Essa luz vem do ancestral, e não deixa de ser moderna, em uma sugestão de que seja mais moderna do que a própria criação da modernidade, trançada por valores capitalistas e globalizados, provenientes de culturas marcadas pela força da branquitude. Pensar a respeito desse recorte do homem marcado pela transmissão dos valores e saberes através de memória e da oralidade é pensar também os seus espaços de socializações, onde o encontro possa resultar nessa continuidade de identidade. Frank Ribart (2002, p. 3) escreveu sobre este tema: […] o carnaval enquanto contexto de interação generalizada da sociedade (mesmo se esta dimensão sofre variações segundo as temporalidades) induz significados e implicações particulares para os sujeitos sociais que participam das manifestações culturais negras, em relação, por exemplo, a outros contextos: bairro, comunidade. Segundo Rodrigues (2010, p. 12), “[…] uma sociedade ligada à oralidade, valoriza a vivência coletiva […]” e é esse o ambiente característico dos encontros e reuniões do grupo Batucada de Nego Véio, o espaço de encontro, o lugar de criação coletiva, da interação que torna legítima uma expressão, que cria um signo identitário capaz de reunir diversidades em uma mesma unidade. A Batucada de Nego Véio Depois que o visual virou quesito/Na concepção desses sambeiros/O samba perdeu a sua pujança/Ao curvar-se à circunstância/Imposta pelo dinheiro/E o samba que nasceu menino pobre/Agora se veste de nobre/No desfile principal/Onde o mercenarismo impõe a sua gana/E o sambista que não tem grana/Não brinca mais o carnaval/Ai que saudade que eu tenho/ Das fantasias de cetim/O samba hoje é luxo importado/Organdi, alta costura/Com luxuosos bordados/E o sambista que mal ganha pra viver/ Até mesmo o desfile/Lhe tiraram o prazer de ver. (Samba dos compositores Neném e Pintado, apresentado no disco “Pé no chão” de 1978 da cantora Beth Carvalho) 287 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz Em um universo social no qual quase tudo que lhe identifica lhe foi tomado, pouco a pouco o homem negro, motivado principalmente por suas expressões religiosas, artísticas e culturais passa a se reencontrar em comunidades identitárias que exercem papel fundamental em seu auto reconhecimento enquanto sujeito. Em uma abordagem histórica, Frank Ribart (2002, p. 3), afirma que: A possibilidade de grupos de negros, mais ou menos importantes e organizados, desfilar e ocupar a rua, fora do contexto de manifestações ligadas ao calendário católico (Bonfim, ranchos, reisados), surge, é claro, pelo investimento e pela conquista dos espaços por parte da festa negra que teve a capacidade de impor, de uma certa maneira, a sua própria definição da natureza e do estatuto ligado ao que representa tal momento de celebração coletiva. Trazendo essa definição e abordagem para o século XX, de acordo com relatos de antigos participantes da Escola de Samba Nenê de Vila Matilde e de Seu Nenê, um samba que nos tempos que a escola iniciava sua organização, ainda no Largo do Peixe, empolgava os ânimos da comunidade, era um samba de Assis Valente e Ataulfo Alves (1942) que narrava o sentimento de pertencimento cultural relacionado ao samba (Silva, 2000): Oi, batuca no chão sem pena/Batuca no chão sem dó/Batuca no chão, morena/Que o chão é o povo que vira pó/Aí, morena, o chão é o povo que vira pó/Podem me deixar sem luz, mas sem samba, não senhor/É o samba que traduz, meu prazer e minha dor/Mesmo assim você condena/Minha raça bronzeada, todo o mal da cor, ó morena, é gostar da batucada. Um processo permanente, que vem alimentando o extermínio do povo negro de forma complexa e estrutural, é observado historicamente através da apropriação cultural. De acordo com Rodney Willian (2009), não conseguimos conceitualizar esse termo se não buscarmos entender a diversidade entre as distintas culturas materiais e imateriais. Segundo o autor, uma série de características particulares às comunidades identitárias, que se baseiam em culturas imateriais é observada no uso de símbolos, expressões, condutas e saberes incompreensíveis para indivíduos provenientes das 288 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz culturas que se baseiam em características materiais. Desse modo, o conflito surge do uso de elementos culturais originários de uma cultura por indivíduos provenientes de outro processo de construção biopsicossocial. Nesse cenário conflituoso, o homem negro é historicamente destituído dos lugares e posições a ele atribuídos culturalmente, processo que ocorre em razão de indivíduos que se apropriam de suas manifestações, enraizados pelas características dos interesses materiais intrínsecos às suasconstruções pessoais e coletivas. Um samba em forma de crônica composto por Nei Lopes e Renato Barbosa Silva, gravado por João Nogueira no álbum Espelho de 1977, já relatava os mandos e desmandos da apropriação cultural dentro das escolas de samba: [...] Mas eu de sambista/Tive que ser jornalista/Pra me valorizar (Passei no tal vestibular)/E agora veja só você: Trabalho no Caderno B/Critico samba popular (Seu Tinhorão vem devagar)/Um dia então fui chamado/ Convidado pra jurado/De julgar samba-enredo (Confesso até que tive medo)/No meio da quadra/Apareceu um camarada/Com jeitão de Ipanema (Era um artista de cinema)/Virou-se pra mim/Foi dizendo logo assim:/”Sou diretor de carnaval” (Até aí nada de mal…)/Esse é o samba dos cartolas/Vai dar grana pra escola/De direito autoral (Toca na Rádio Mundial)/Se é coisa que eu não adoto/É nego cabalando voto/Na maior cara de pau/E o samba de sobra/Era um tremendo boi com abóbora/Rimava açúcar com sal/Antes de eu virar a mesa/Pra acabar com a safadeza/Foi armada um trelelê (Era judô e karatê)/E o tal do branco cabeludo/Me deu tanto do cascudo/Que eu nem sei mais escrever (Tá pensando que eu sou telha?)/Dona Condessa aborrecida/Me expulsou do JB (Veja você…). Usando a cultura sambística como exemplo desse fenômeno, nota-se em toda história de construção de uma cultura popular nacional, o uso comercial dessa manifestação em prol de interesses capitalistas, sistema no qual os menos favorecidos são sempre os seus criadores e cultivadores. O comércio dos direitos autorais, o comércio de fantasias, a manipulação midiática sobre o espetáculo carnavalesco, o apelo turístico e o acesso às fontes de trabalho e emprego geradas pelo carnaval, todos são elementos de cancelamento do povo negro em sua própria manifestação. Geraldo Filme (1980) foi feliz ao retratar o processo brasileiro de apropriação cultural em Vá cuidar de sua vida: 289 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz Vai cuidar de sua vida, diz o dito popular/Quem cuida da vida alheia da sua não pode cuidar/Crioulo cantando samba era coisa feia/Esse negro é vagabundo, joga ele na cadeia/Hoje o branco está no samba, quero ver como é que fica/Todo mundo bate palmas quando ele toca a cuíca/Vai cuidar de sua vida, diz o dito popular/Quem cuida da vida alheia da sua não pode cuidar/Negro jogando pernada, mesmo jogando rasteira/Todo mundo condenava uma simples brincadeira/E o negro deixou de tudo, acreditou na besteira/Hoje só tem gente branca na escola de capoeira/Vai cuidar de sua vida, diz o dito popular/Quem cuida da vida alheia da sua não pode cuidar/Negro falava de umbanda, branco ficava cabreiro/Fica longe desse nego, esse nego é feiticeiro/Hoje negro vai à missa e chega sempre primeiro/O branco vai pra macumba e já é babá de terreiro. Na canção, o compositor retrata o cenário da cultura imaterial negra paulistana, que pouco a pouco é apropriada pelo branco, que não necessariamente compreende suas nuances mais subjetivas nesse processo. Esse cenário é detalhadamente descrito no filme documentário Lavapés, Ancestralidade e Permanência (2017). Nele, é retratada a história de construção de uma das escolas de samba pioneiras do carnaval de São Paulo, junto com a ancestralidade e a permanência de uma comunidade negra histórica da periferia do centro da cidade, em uma dinâmica de crescimento urbano segregadora, higienista e, na maioria das vezes, racista. Aos 37’58’’ do filme, Rosemeire Marcondes, neta da fundadora e matriarca da escola, Madrinha Eunice, diz: Minha avó sempre dizia: depois que o visual virou quesito; acabou, é uma indústria né? Você não tem o carnaval mais, você tem um evento, muito grande, onde se ganha muito dinheiro. Você não desfila, você marcha; porque quando você percebe, acabou o desfile, quando você pensa que está indo pro samba, mano, acabou, entra pro ônibus e vamos embora. Você não pode brincar o carnaval à vontade, você é obrigado a seguir o padrão que eu passo pra vocês poderem desfilar, você não curte o carnaval, né? Nós estamos em uma disputa e eu preciso que vocês cantem senão eu perco o carnaval, então isso virou uma disputa; que é tão pouco tempo, que você paga uma fortuna pra desfilar no grupo especial, nas grandes escolas e você desfila 20 minutos, porque você passa em uma hora e dez, quatro mil, cinco mil componentes; você tem que correr. 290 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz Minha avó dizia para todos nós, cuidado, os brancos vão tomar conta de tudo isso e nós vamos ficar sem nada […]. Um dos grandes baluartes do carnaval de São Paulo, Mestre Carlão do Peruche, fundador de uma das escolas de samba mais antigas ainda vivas da cidade, o Unidos do Peruche, em depoimento para o documentário Samba à Paulista – fragmentos de uma história esquecida – parte 2, aos 21’58’’, relata que: O carnaval já não existe mais. Se você falar que existe desfile das escolas de samba, eu aceito, desfile, mas carnaval não. Pegam nóis aqui na quadra com a escola, levam pra concentração no Anhembi, acabou de desfilar, os 65 minutos, voltamos pra quadra. Olha, nós estamos no sambódromo, estamos confinados, pra não falar presos, dá um pulo na Ipiranga com a São João, hoje é sábado de carnaval, vai lá, não tem nada, antigamente eu participava, nóis participava, agora é diferente, ainda se fosse pra melhor…, né? Neste contexto, de apropriação cultural dos espaços das escolas de samba, a Batucada de Nego Véio se coloca como um potencial para a memória do homem negro em convivência comunitária, de valorização do sambista, além de representar a resistência cultural sendo um corpo coletivo vivo dentro da dinâmica social da cidade de São Paulo, dando cenário ideal para se pensar as construções não só das masculinidades negras, mas também suas intersecções com outros marcadores sociais. Entre 2015 e 2016, a pesquisa iniciou com uma longa busca atrás de antigos mestres, indivíduos ainda vivos que de várias formas construíram uma linda história de glórias e que, com o passar do tempo, foram totalmente desvalorizados e mantidos sem reconhecimento pelos atuais componentes da agremiação que construíram. O intuito principal dessa busca era o de documentar fatos e memórias em um filme de longa metragem a fim de registrar e mostrar nossa história para as novas gerações, atualmente distantes dessa herança cultural.3 3 O filme ainda é um projeto a ser desenvolvido e possuiu algumas gravações. Neste meio tempo a Batucada de Nego Véio se fortaleceu e o primeiro autor deste texto fez a dissertação de mestrado, registrando a história do grupo e memórias de parte de seus membros. 291 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz Memoráveis reencontros foram vivenciados nesse processo. Amigos de longa data, construtores de belas páginas da história da comunidade, os quais, em alguns casos, não se viam há mais de dez anos, animados pela euforia proporcionada com a memória coletiva, espontaneamente passaram a se agrupar em jogos e festivais de futebol de várzea de diversos campos da zona leste. Concomitantemente, outros grupos de antigos batuqueiros da Vila Matilde espontaneamente começam a se organizar para rodas de sambas antigos em campos de futebol de várzea como o Colorado do Morro do Jardim São Nicolau e o Artur Alvim, na Cidade A.E. Carvalho. Não demorou muito tempo até que essas iniciativas se fundissem em um único movimento. Com a frequência espontânea dos encontros, cria-se entre esses indivíduos, em 2018, a demanda da fundação de um grupo organizado com o objetivo principal do encontro e da manutenção das raízes culturais abandonadas pela escola de samba. No dia 7 de setembro de 2018 é fundada, à beira do campo de futebol do Artur Alvim, a Velha Guarda de Bamba, Batucada de Nego Véio. Vale ressaltar que a relação da cultura do samba e batucada com os campos de futebol de várzea é crucial para a reflexão a respeito da construção dos saberes e costumes dos homens que as perpassam. Em uma sociedade desigual, mantida através da opressão e da repressão, principalmente policial; historicamente, indivíduos e culturas marginalizadas usam espaços, como campos, morros e favelas, para expressar suas vidas com maior liberdade. A fundação da Batucada de Nego Véio teve iníciosem grandes pretensões, porém, em pouco tempo, após poucas reuniões e apresentações, todas em festivais de diferentes times e campos de futebol de várzea, a notícia de sua existência se espalhou com rapidez e, contando com o suporte da criação de um grupo em rede social, de onde surgiu também o nome do grupo, que em menos de um ano de existência já era composto por mais de cem integrantes ativos. Mensalmente são organizados encontros durante os quais são compartilhados saberes, culinárias, memórias e sambas. Grande parte dos encontros inicia com uma reunião na qual são discutidas as questões relativas às atuações e questões administrativas do grupo. Durante a pandemia ocasionada pela Covid-19, cessaram os encontros oficiais do grupo, sendo organizadas atividades articuladas remotamente por intermédio da 292 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz rede social. A principal dessas atividades foi a arrecadação e doação de alimentos e outros utensílios para integrantes e famílias próximas dos participantes do grupo que enfrentaram muitas dificuldades impostas pela situação pandêmica. Em 2021, com o retorno de grande parte das atividades cotidianas, o grupo voltou a se encontrar, criando uma rotina de ensaios e confraternizações. Simultaneamente, a Liga das Escolas de Samba do Carnaval de São Paulo, visando o resgate de valores apagados do carnaval, cria um departamento intitulado Comissão das Velhas Guardas. O departamento logo começa um trabalho de incentivo a visibilidade das Velhas Guardas das Escolas de Samba e propõe um desfile de abertura do carnaval do grupo especial no qual a Batucada de Nego Véio foi convidada para participar, sendo ela a base do cortejo com as Velhas Guardas do samba paulistano. A faixa etária média dos integrantes do grupo vai dos 45 aos 70 anos de idade, tendo também participantes mais novos, como é o caso do primeiro autor deste texto; e participantes mais velhos, como é o caso do Betão, Clovis Messias, Landão e até mesmo, o Olegário com 91 anos e que indiretamente participa do grupo. A formação dessa comunidade significa muito para esses indivíduos. Encontram nessa produção coletiva respostas e soluções para problemas históricos que afetam sua interação pessoal e social no mundo. Segundo Plínio Marcos (1974): “Um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas, jamais será um povo livre”. É o que observamos em algumas das memórias dos seus integrantes. Memórias do Samba O samba é o ponto em comum que reúne todos os participantes em uma mesma comunidade identitária. Pensaremos a partir daqui alguns elementos que significam essa cultura a partir das vivências individuais, resultando em uma performance coletiva. Para isso, pensaremos a produção cultural, o território e a história que resulta no contexto atual da Batucada de Nego Véio. De acordo com a perspectiva sambística abordada por todos os entrevistados, é unânime a importância de Alberto Alves da Silva, o Seu Nenê, para a construção dessa comunidade. O “Cacique”, como ficou conhecido pelos integrantes da escola de samba, foi o principal mestre e incentivador de todos os elementos necessários para se construir 293 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz uma agremiação carnavalesca. Em seus ensinamentos, agregou valores históricos e tradições ancestrais, os unindo em torno das famosas batucadas da Vila Matilde. Nesse processo, uniu pessoas de diversos bairros, principalmente da Zona Leste, em forma de uma comunidade identitária. Betão, por ser sobrinho do Seu Nenê, membro da família Alves, a qual é muito importante para a cultura negra paulistana, teve contato eminente com a escola de samba de diversas formas. De acordo com seu depoimento, percorreu grande parte dos cargos essenciais dentro de uma agremiação. Entre outras funções, foi passista, mestre sala, diretor de harmonia, diretor de ala e batuqueiro. Ao falar a respeito de Nenê de Vila Matilde, ressalta tudo o que aprendeu na escola e todas as características positivas relativas à contribuição cultural que a escola produziu. Comunidade boa de samba no pé, boa em composição e boa em batucada, porém, em muitos carnavais, deixou a desejar no quesito de recursos e administração. Segundo ele: O Nicolau queria que a escola de samba viesse naquela cadência, aí nós nos encontramos com o Peruche, e o Peruche quando viu a Nenê, eles aceleraram o ritmo, o Nicolau não deixou os cara acelerar, viemos na cadência, sabe o quê que aconteceu? Os caras pararam e foram pra ver a Nenê tocar, risos, o nosso ritmo esculachava os caras, tanto é que é o seguinte, todas as escolas de Samba imitavam a Nenê aqui em São Paulo […] O problema da Escola era sempre todo o problema de alegoria e de fantasia, porque os caras não, não… A gente achava que o seguinte, que a escola de samba tinha que fazer samba, fazer um bom samba, uma boa bateria e os caras dançando, cantando e sambando, essa era a nossa meta, entendeu? Fantasia e alegoria não eram o forte daquela escola de samba, tanto é que quando fazia um pouco, ela chegava na cabeça, entendeu? Betão exerceu influência nas manifestações culturais paulistanas ao buscar frequente contato com o samba carioca. Em sua entrevista, relata algumas passagens nesse intercâmbio. Com seu conhecimento, foi fundamental na orientação a outras comunidades sambísticas da cidade de São Paulo. Em anos em que não participou da construção do carnaval da Nenê de Vila Matilde, foi influente em outras agremiações, 294 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz sendo ele um dos responsáveis por auxiliar a comunidade do Vai-Vai na passagem de cordão para escola de samba em 1974. Segundo o entrevistado Landão, o samba foi a principal atividade que pôde realizar em toda sua vida. Essa expressão lhe proporcionou boas convivências, lhe deu responsabilidade e foi o principal aspecto na sua construção de vida. Dentro da escola de samba, também tem uma longa caminhada, passando por diversos cargos na organização carnavalesca. Foi folião de ala, foi batuqueiro, foi mestre sala, rei momo e entre outras atribuições foi um dos mais consagrados mestres de harmonia da cidade de São Paulo. Tem o título de Embaixador do Samba e Cidadão Samba, além de hoje fazer parte da Comissão das Velhas Guardas da Liga das Escolas de Samba. Em seu relato, em seu primeiro contato com Seu Nenê: […] eu via o Seu Nenê, ia levar lá os instrumentos pra consertar, pra soldar, levava os agogôs, os varão de surdo pra soldar, então soldava assim com metal, aquela solda de metal, então eu soldava os surdos, os agogôs, enfim, a minha vida dentro do samba não é de agora, não é de hoje […]. Ele nos conta que, após perder o pai, em um dos momentos mais difíceis da sua vida, foi Seu Nenê quem o acolheu. Vale ressaltar que da escola de samba, por diversas vezes componentes da escola foram “resgatados” pelo Cacique. Segundo Landão: […] fui mandado embora, fui morar na rua. A gente vai se desgastando, a vida muda, você não tem mais a sua cama pra você dormir, você não tem mais sua mesa pra comer, aí vim morar na Praça da Sé. Quando eu estava quase assim pra desviar o pensamento, […], teve um dia que o Seu Nenê passou e me viu na Praça da Sé, ele voltou e perguntou o que eu estava fazendo ali, eu tentei me esconder dele, ele me levou pra casa, me levou pra casa dele, morei lá uns tempos, nesse período aí que eu comecei a encostar mais no Seu Nenê e comecei a enxergar mais como era o samba. Mais tarde, com maior influência dentro da escola de samba, Landão relata ter tido um contato muito maior com Seu Nenê. Foi a partir desse ponto que passou a compreender a grandeza do mestre e consequentemente os fundamentos do samba: 295 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz […] o Seu Nenê também era um cara muito inteligente, que tinha um ouvido assim bem... Errar todo mundo erra, mas acho que ele mais acertou do que errou. Esse também foi um baluarte de primeira estância, de primeira qualidade, hoje, o samba de São Paulo deve muito ao senhor Alberto Alves da Silva, pela sua astucia, pela sua coragem, pela sua dedicação, pelo seu conhecimento. Ele ia até o Rio de Janeiro, ele era fã do Paulo da Portela e ele trouxe muita coisa pra São Paulo e com ele muita gente aprendeu muito, porque ele trouxe muita coisa para as escolas de samba, que hoje em dia as pessoas não gostam nem de falar. Ele passou muitas coisas pra escola de samba, ele foi o primeiro presidente, pelo menos que eu vi, de escola de samba, eu não sei, nunca vi, que recebeu uma comenda de um presidente da república. O presidente da república na época, que fez essa comenda ao senhor Alberto Alves da Silva, foi o Dr. Fernando Henrique Cardoso, foi recebida em Brasília. Sérgião figura como um dos mais conhecidos batuqueiros da Zona Leste. Iniciado na escola de samba como pandeirista malabarista, ao passar para o ritmo, se consagrou na bateria como um dos principais tocadores de surdo de terceira da história. De acordo com seu relato, construiu no samba suas principais relações de vida. Para o entrevistado: “[…] ser sambista pra mim é isso, é ter o samba no coração, é ter o samba no coração. É respeitar os componentes, independente da ideologia deles de ser […]”. Outro fator interessante é sua filiação a um carioca, assim como Betão, que era neto de carioca. O diálogo rítmico e cultural da Nenê de Vila Matilde é famoso por ter trazido para São Paulo elementos do samba carioca, diferentemente dos grupos do centro que traziam elementos do samba de bumbo caipira e do “tambu”, o que pode começar a se explicar por esses detalhes. Ao refletir sobre os valores da Batucada de Nego Véio, ele diz: “Devido, digamos, a uma direção errada, deu no que deu, e graças a Deus que nós montemos a Batucada de Nego Véio, a realidade é uma só. Quem representa o samba do Seu Nenê, do samba da Vila, é a Batucada de Nego Véio”. Canhoto inicia sua entrevista dizendo que, primeiramente, o ponto fundamental de sua vida é gostar do samba, fala também sobre a característica de formação de contingente humano e dos recursos da bateria da escola de samba na época, que era formada por uma imensa maioria de homens negros e por instrumentos ainda primitivos se comparados com os de hoje em dia, levando em consideração o peso e o seu tipo de 296 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz construção. Em sua observação, é evidenciado também que a mudança da infraestrutura dentro das baterias de escolas de samba trouxe alterações rítmicas para essa expressão no decorrer dos tempos. Segundo ele: […] os negrão, quando pegava, tocava, hein? Tocava, os cara tocava, tinham um ouvido, uma marcação fora de série, era uma batida fora de série, a tradição do Seu Nenê, isso no ano de 1968, 1969, 1970, 1971, 1972, nossa, nóis tinha uma batucada. Um dos poucos integrantes da Batucada de Nego Véio que não é batuqueiro, Nato, narra em seu discurso toda sua caminhada nos bastidores do carnaval e na montagem de importantes alas e que o samba foi o cenário para grande parte de suas vivências. Ao ser indagado sobre a importância do samba para sua construção, ele responde: “Ser sambista pra mim é tudo, né? […] é uma escola que você aprende, até educação ali você aprende, aprende a ser gente, depende muito do lugar, mas se for uma família mesmo, ali você aprende uma pá de fita meu.” Como o próprio entrevistado discorre, foi no samba que aprendeu e assimilou a maior parte dos valores que dão sentido à sua vida. Nato também relata ter tido bastante proximidade com Seu Nenê. Como todos os outros entrevistados, foi o Cacique quem aprovou sua entrada na escola de samba: “[…] quando foi em 1972, aí os caras encarnaram na minha porque eu tinha muita amizade com o Cacique, né? Com o Seu Nenê”. Ao narrar sobre 1985, quando a Nenê de Vila Matilde se sagrou a única escola de São Paulo a desfilar na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, coloca o nome do Seu Nenê ao lado de grandes artistas e baluartes do samba brasileiro: “[…] a única Escola de São Paulo a desfilar no Rio, foi nóis, ao lado de Alcione, Dona Ivone Lara, Seu Nenê, todos baluartes do Rio, ali da Portela, do Salgueiro, de várias escolas… E ali também foi onde nós aprendemos muito”. Torrado, desde seus primeiros momentos de vida a serem narrados, abordou o samba como diretriz que o conduziu nos melhores e nos piores momentos. Criado em internato, cultivou o amor pelo samba sem de fato ter o apoio familiar comum aos outros entrevistados. Entretanto ao conhecer sua mãe, aos 18 anos, descobriu que mesmo aprendendo sua cultura de forma espontânea, sua família era frequentadora da escola de samba, e nela trilhou seu caminho. Segundo ele: “Eu esperava o Seu Nenê 297 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz sair pra porta, ficava aqueles dois PM lá, certo? O Seu Nenê saía e eu metia o peito, entrava com tudo, quando o Seu Nenê via nóis lá dentro. Ele falava: “Tô com vontade de sambar”. Reconhecido pela arte do malabarismo com pandeiro, criou uma das mais conhecidas alas de pandeiristas da história do carnaval, pôde levar seu dom para o mundo e pra outras cidades e estados do país. Quando indagado a falar sobre o samba, respondeu: […] se não fosse o mundo do samba, a minha primeira casa que eu ia morar, ela caiu hoje, hoje é parque, a segunda está em pé, quando eu conheci o mundo do samba, eu parei com tudo, certo, é por isso que sou essa pessoa e esse personagem que eu sou hoje, certo? De acordo com o entrevistado, foi a cultura sambística quem deu melhores acessos e possibilidades de vida, discorreu categoricamente que, se não fosse o samba em sua vida, teria passado boa parte da vida em encarceramento. Ainda menciona que o tempo de convivência no samba traz maturidade e conhecimento. Esses aspectos de autoconhecimento ajudaram Torrado a oferecer acesso à cultura aos que não tinham. Após observar a vulnerabilidade das crianças moradoras de seu bairro, começou a introduzi-las no samba; com o aumento da procura por parte desses jovens, criou um projeto intitulado “ala do pandeiro de ouro”, que teve como principal objetivo utilizar a cultura do samba como contribuição para resgatar da ociosidade crianças moradoras de áreas de risco. Em pouco tempo, montou uma ala inspiradora, chegando a iniciar no samba mais de trinta crianças. Pascoal relata toda sua caminhada no samba como parte fundamental de sua vida. Mestre de bateria consagrado relembra suas relações interpessoais na sua trajetória de batuqueiro. Ingressou na escola de samba ainda adolescente, foi ritmista por poucos anos, pois logo no começo de sua caminhada passou a integrar a direção de bateria. Foi diretor por 14 anos, até que se tornou mestre no lugar de seu irmão. Sobre seu contato com Seu Nenê, ele relata: “O Seu Nenê, eu aprendi, meu mestre quando eu cheguei foi o Divino, mas eu fiquei pouco com o Divino, né? Fiquei com o Divino de 1978 até 1982, né? Mas o Seu Nenê foi o meu professor”. 298 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz Sobre o jeito com que Seu Nenê se relacionava com os diretores de bateria, Pascoal relatou que: O Seu Nenê, ele nunca falava que a batucada tava boa, ele chegava com a quadra lotada, né? Lotada, lotada, parava na porta com a mão no bolso, aí, uma vez, uma vez só, acho que foi no último carnaval antes dele ser finado que ele disse que a batucada tava boa. Aí ele falava assim, que não podia falar que a batucada tava boa, às vezes tava boa, mas ele não falava que tava boa, por quê? Pra não relaxar, esse aí era o macete, né? Claudemir, mestre da bateria da escola Nenê de Vila Matilde no decorrer de 15 anos, traz em sua narrativa muito valor agregado ao samba. Criado dentro dessa cultura relata sua passagem pela escola de samba como mestre e também como passista. Embora tenha ganhado concurso na escola para mestre sala, foi direcionado pelo Seu Nenê para a direção de bateria. Para Claudemir, o Cacique também figurou em sua história como um grande mestre, lhe ensinando os fundamentos do samba. A valorização dos elementos tradicionais do samba também faz parte de suas crenças primordiais. Dentro da comunidade identitária, construiu sua família e tem no samba a principal ocupação de sua vida. Atualmente, como mestre de bateria da Batucada de Nego Véio, ao lado de seu irmão, se mantém ativo na resistência dessa cultura. Na entrevista de Carga, podemos ressaltar que todas as suas experiências de vida narradas estão diretamente envolvidas com o samba, seja no âmbito cultural, seja no âmbito relacional, seja no âmbito profissional. O samba constrói sua experiência de vida ao passo que sua experiência também constrói o samba. Batuqueiro, profissional na manutenção de instrumentos de baterias de escolas de samba, jurado do quesito bateria pela União das Escolas de Samba de São Paulo (UESP) e professor de ritmo, vive o samba com intensidade desde sua primeira infância. Sobre a essência do batuqueiro da Vila Matilde: […] nós somos diferenciados, certo? Nós tivemos esse dom, certo mano? De ter um patriarca aí, o Seu Nenê de Vila Matilde que ensinou as coisas pra nós, ensinou nós a gostar do bagulho, e mano, tudo o que a gente 299 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz aprendeu, somos todos oriundos dele cara, nós somos oriundos da Nenê de Vila Matilde, não da Nenê de Vila Matilde, e sim do Seu Nenê, você entendeu? Daí depois sim, dos coadjuvantes que se tornam a Nenê de Vila Matilde, né mano? Entendeu? Ainda sobre a essência dessa cultura, fala sobre o falecido Betinho, filho de Seu Nenê e ex-presidente da escola de samba: Você queria um presidente de escola de samba mais malandro, mais sambista e que entendia de samba mais do que o Betinho? Se perdeu nos outros pontos? Beleza, mas no ponto escola de samba ele era diferenciado, entendeu mano? Sempre foi, tinha conhecimento, a malandragem do samba, entendeu mano? Um samba no pé diferenciado, então, quer dizer mano, a Batucada de Nego Véio é pra mim hoje tudo isso daí cara, a gente aprendeu lá atrás e hoje a gente pode colocar sem preocupação de, puta mano, será que vai dar certo? Seu Nenê e sua família tiveram muita importância na história da comunidade do samba da Zona Leste, porém, como ele mesmo ensinava, uma escola de samba é construída pela reunião de muitas pessoas, e ninguém faz nada sozinho. Da fundação até os tempos mais recentes, muitos foram os baluartes que ajudaram a escrever essa caminhada. Considerando todo o valor que o samba traz para suas vidas e performances como cidadãos, um fator que afeta a todos os participantes de forma negativa, é a modernização e a apropriação cultural do samba e do carnaval por grupos e populações estrangeiras a este costume. Uma vez que essa expressão dá sentido para suas existências, as suas respectivas desapropriações desse movimento acarretam consequências em suas experiências de vida, podendo ser prejudiciais para suas comunidades e para seus corpos. Ao ser indagado sobre a evolução do samba no decorrer do tempo, de forma espontânea respondeu o Betão: Pra mim está uma porcaria, principalmente o de São Paulo, os caras desfilando parecem soldadinho de chumbo, não tem mais dança, não tem mais passista, acabaram com os passistas, antigamente não, era todo 300 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz mundo cantando e dançando. […] as escolas de samba que vieram, os caras se organizaram, tem as torcidas, os caras tem dinheiro, tem patrocínio, já as outras não […] O entrevistado, com objetividade mostra falta de identificação ao movimento carnavalesco atual e relata as padronizações que a apropriação cultural do samba trouxe como consequência. Aborda também a invasão do movimento por indivíduos que não necessariamente respeitam os fundamentos dessa cultura. Landão, além de concordar com o sentido expresso na fala de Betão, traz ainda o fator financeiro que distancia o samba da população que o inventou, fator fundamental para a mudança e modernização das expressões que cada vez mais afastam o povo pobre e o povo negro do carnaval. Ao ser questionado sobre as mudanças corriqueiras ao carnaval no decorrer do tempo, Landão, contrariado, relata sobre o samba ter mudado muito, porém para pior. Na perspectiva do entrevistado, o samba se curvou para as padronizações que o capitalismo exerce sobre essa expressão popular, as comunidades pouco a pouco foram perdendo suas identidades e minando as diversidades artísticas dessa expressão popular. Segundo Landão, atualmente o sambista verdadeiro não tem mais espaço dentro da manifestação que criou: […] a conversa que tem no meio dos sambistas de verdade, é soldadinho de chumbo, cadê o sambista? Não tá nem na arquibancada, talvez na televisão assistindo, porque o espaço dele acabou, ele vai ,de vez em quando, na arquibancada do ensaio técnico. Canhoto, tocador de surdo de primeira, em meio ao seu discurso, sem que fosse questionado, trouxe bastante preocupação com as mudanças impostas ao carnaval, as quais fazem com que as tradições do samba se percam. Segundo ele: “[…] eu fico muito preocupado se um dia o samba morrer, viu mano? Se um dia o samba morrer, acaba a comunidade e a gente é preocupado com isso aí, tem que manter as escolas de samba, eu fui da época das escolas de samba, que é o seguinte, né?”. O entrevistado relata sua experiência individual como exemplo das consequências reais que a apropriação cultural traz para a escola. Após ter sido consagrado como um dos pilares do carnaval de São Paulo, respeitado batuqueiro e consagrado por mestres 301 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz de outras comunidades e agremiações, foi impedido de entrar na escola de samba que ajudou a construir por integrantes atuais que mal conhecem a história da comunidade onde trabalham. Sobre o significado da Batucada de Nego Véio, ele diz: […] então, significa que quando você ficar véio, você honrar o que você fez né? E o que significa a Batucada de Nego Véio, é isso daí, tem gente, senhores e senhoras tudo com a gente, se divertindo, tocando, mostrando a sua alegria, mostrando sucesso, né? Que chegou até certo tempo, né? E a Batucada de Nego Véio, ela tá superando, levantando algumas coisas antigas, algumas histórias que não podem ser terminadas, tem que ser contadas […] então a “Batucada de Nego Véio”, ela tá transformando algumas pessoas, sabe? Levantando a sua moral em um modo de dizer, levantando seu ego, tirando tristeza de muita gente, coisa de sambista, né? Aquele dia foi legal pra caramba. O cara quando vai sendo deixado pra trás, é fogo, porque você sabe, né? O que dá sobrevida pro cara é a alegria, né? Você não vê idoso triste vivo, na “Batucada de Nego Véio”, você vê que tem outras agremiações também querendo acompanhar, isso é muito bom […] A respeito das mudanças impostas ao carnaval e à comunidade do samba, Torrado relata que com o término do projeto “Pandeiros de Ouro”, a imensa maioria dessas crianças abandonaram as expressões artísticas e culturais, o único desses participantes ativo no samba, está passando por um novo resgate pelo Torrado, que há pouco tempo o encontrou em situação de vulnerabilidade e o resgatou novamente, dessa vez para a Batucada de Nego Véio. Sambista adepto das expressões tradicionais, Pascoal mostra-se insatisfeito com as mudanças que a modernização do carnaval exerce nas escolas de samba, principalmente nas baterias. Segundo ele: […] o carnaval mudou e infelizmente só mudou pra pior, antigamente você saia na escola de samba, sua fantasia era humilde, você tirava maior onda, hoje em dia não, se você não fizer um desfile luxuoso, pra rico ver, não é desfile… Principalmente os ritmos, as batucadas, nossa senhora, batucada… o quê que fizeram com as baterias de São Paulo? Não é só São Paulo não… as do Rio também […] a gente fica muito triste de ver o andar do carnaval, 302 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz da batucada, principalmente a batucada porque nós somos ritmistas, o foco que criou, né meu? Pra mim, perdeu todo o brilho das baterias, infelizmente. […] De acordo com seu relato, as apropriações culturais que afetam de forma intensiva o carnaval atual, atingem diretamente as identidades das comunidades do samba, nesse processo, o fazer coletivo vai gradativamente se esvaziando de sentidos. Segundo ele: Eu acho isso daí uma besteira, uma besteira, sem condições… Como pode chegar uma pessoa de fora e falar? Quer dizer, eles não estão pensando em um carnaval para o povo, eles estão pensando em um carnaval pra eles, pra vender, pra vender DVD, vender vídeo, isso daí não existe… acabaram com o carnaval, acabaram, acabaram mesmo. Como pode querer padronizar todas as batucadas? […] não pode deixar morrer essa tradição não e ela está praticamente extinta já. Tá agonizando, né? Agonizando pedindo socorro. Pensem nisso, voltem o que eram as baterias antes e vai ficar bem melhor […] a Batucada de Nego Véio, foi fundada também com esse intuito de manter a tradição matildense, da Vila Matilde, né? Quinem, agora surgiu também a batucada do Camisa Verde, né? Por mim, eu gostaria que todas as escolas, todas as escolas, principalmente as antigas, montassem a sua bateria da velha guarda, com seu ritmo tradicional, sua afinação e seu andamento que é pra eles verem o que é uma batucada e não ser essas batucadas, bateria de cartilha, isso daí é pra playboy ver, pra branco ver, pra jurado ver, meu. Risos. Claudemir reflete as mudanças do carnaval dos tempos dos desfiles de rua, gratuitos para a população em comparação com os desfiles dentro do polo cultural do Anhembi. Sobre esse aspecto da modernização do carnaval ele relata: […] Ah, na Tiradentes, você é louco, era mais, era animado, era o povão, o povão ainda participava, né? Porque acabava a arquibancada, tinha uma grande parte ainda ali nas cordas, né? Ficava ali a torcida das escolas e tal, se é louco, era de graça, Tiradentes era de graça, tirava nos postos o ingresso, né? Lá o povão participava, no Anhembi não, desfilou, já era, vai embora 303 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz […] se você não comprou o seu ingresso, tem que ir embora, risos, o povo mesmo hoje em dia só vai ao ensaio técnico, até no Rio de Janeiro, pega fogo no ensaio técnico. O entrevistado conclui que antes da inauguração do Anhembi, nos antigos carnavais realizados na Avenida Tiradentes, as entradas para os desfiles das escolas de samba eram gratuitas, o que permitia que a grande massa popular, amante de samba, que acompanhava durante todo o ano a construção do carnaval, tivesse acesso ao principal evento dessa expressão. Esse contexto motivava o folião e o sambista, pois havia mais empolgação, mais alegria, mais espontaneidade. Com a apropriação e capitalização do carnaval, grandes empresas passaram a lucrar muito com o evento, enquanto o sambista que realmente faz a festa acontecer, precisa pagar para participar, o que foi afastando e minando a cultura carnavalesca das camadas mais populares que realmente faziam o movimento acontecer. De acordo com a entrevista de Carga, as padronizações que descaracterizam as identidades das comunidades carnavalescas partem de uma série de fatores que atualmente estão expressos no regulamento julgador do carnaval. Para ele: “- Muitas coisas que estão fazendo na bateria, tão estragando o batuque cara, batuque é batuque, a função de uma bateria dentro de uma escola de samba é manter o canto e a dança da escola, ponto.” Sobre as tentativas de desapropriações do samba e da comunidade, o homem negro sempre resistiu. Relatando passagens que evidenciam esse potencial, encontramos nos relatos de Sérgião e Betão, elementos interessantes. Sobre uma tentativa da prefeitura de demolição da quadra da escola de samba, relatou Sérgião: […] eu só vi o Negute dando uma paulada no cara do trator: “Você vai derrubar? Seu filho da puta?”. E pá, pá, mas sentamos o pau, e os caras do caminhão, eram dois ou três caminhão, subiu ali, não tem o Bar do Berró ali? “Subiram”, risos, ficaram lá na Amador, aí chamaram a Rota. Aí os caras falaram: “- sai daí porque a Rota vai pegar vocês dois, é flagrante”, e nóis: “- É flagrante? É flagrante o caramba!” Descemos pro Seu Nenê e fiquemo lá escondido, com o pandeiro na mão, porque ele quis carregar o pandeiro, com o pandeiro na mão e lá […]. 304 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz Vale ressaltar desse ocorrido, a passagem em que ficaram escondidos com o pandeiro na mão. O pandeiro faz parte do símbolo da escola, pois foi o primeiro instrumento do Seu Nenê. A águia do pavilhão da agremiação carrega um pandeiro em suas asas. Há cinco anos, foi feito um concurso para a escolha do logotipo que identificaria a Batucada de Nego Véio. Todo integrante pôde concorrer, porém, havia alguns pré-requisitos. Um deles era a obrigatoriedade da presença de um pandeiro na arte. Uma das passagens mais antigas referentes ao uso da violência na construção do carnaval e da resistência da escola foi narrada no depoimento de Betão: […] nós estávamos na rua, foi assim, coisa de fim de ano, tava na rua lá fazendo um samba e tal, bem no bar ali da Dona… que era do Ismael… ali onde é o Berró ali, então… nóis tava fazendo um samba lá, daí os caras passaram e quase atropelando, xingaram nóis, daí, foi os caras vieram de faca e tal, foi aquele pau no meio da rua, então pensamos, pra evitar isso daí, é melhor a gente ter um local, daí começamos a batalhar pra gente fazer mesmo uma quadra, aí foi que nós inauguramos lá, capinamos todo o terreno, deixamos o terreno plano e o caramba, daí construímos a quadra, dai de domingo a gente ia lá, tinha que carregar tijolo e tal. Sobre a mesma passagem, conta Seu Nenê em depoimento em Silva (2000, p. 81): […] nessa época, nós estávamos mal, o Moraes Sarmento não tinha aparecido ainda, era a época em que estávamos começando a nos organizar. Estávamos naquela brincadeira, no dia de Natal, aquela animação, e passou o bucheiro, eram mais ou menos umas quatro horas da tarde, acho que ele estava cheio de vinho e passou com a perua verde no meio da batucada. A turma xingou, ele deu a volta no quarteirão e passou pela segunda vez. Aí começamos a xingar a mãe dele de tudo quanto foi nome, porque a rapaziada também, não era mole, ele voltou e passou de novo, até que o pessoal meteu o chocalho na boca do bucheiro, pra quê?! O covarde foi lá embaixo e, depois de uma meia hora, subiu com dez caras dentro da perua, todos com revólver e facão. Eles batiam com o facão e, quando o pessoal queria avançar, eles apontavam o revólver, senão, davam tiro pra cima. O pessoal ficou com medo, teve neguinho que pulou até muro. Quem 305 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz apanhou mais foi o Paulistinha, o Paulistinha veio apanhando até o alto da rua, até que uma mulher deixou ele entrar no quintal dela. Chutaram os instrumentos para o meio do mato… quando a confusão aconteceu, eram umas quatro horas da tarde; as sete, aqueles que apanharam foram buscar reforços, vieram uns cento e cinquenta homens mais ou menos, acho que a escola inteira e mais o pessoal do futebol, pois éramos todos amigos. Foi um fuzuê, queriam colocar fogo na casa do bucheiro, mas aí teve alguns que usaram a cabeça… no outro dia, fomos eu e o bucheiro para a delegacia, o delegado fez ele pagar as coisas que tinha destruído, ele puxou umas notas… fez de estrago… e nós pegamos. Sobre a importância da Batucada de Nego Véio, Carga relata que tem sido um dos pontos mais importantes de nossa cultura na atualidade: […] a Batucada de Nego Véio é isso cara, nóis não quer agradar a ninguém e nem precisa, nóis só quer fazer o nosso batuque do nosso jeito mano, entendeu? Sai diferenciado? Sai porque nós somos diferenciados, certo? Nós tivemos esse dom, certo mano? De ter um patriarca aí, o Seu Nenê de Vila Matilde que ensinou as coisas pra nós, ensinou nós a gostar do bagulho e mano, tudo o que a gente aprendeu, somos todos oriundos dele. A Batucada de Nego Véio, nas narrativas dos entrevistados, aparece como um ponto de acolhimento do sambista mais velho, e também como uma esperança de resposta a essas mudanças impostas pelas apropriações culturais. Para o Landão: Agora nós estamos na Batucada de Nego Véio, onde a gente está assim tentando fazer o melhor, né? Uma doação das pessoas aí que estão se doando, você é uma delas, né? E todos eles lá, eu só tenho que agradecer pela Batucada de Nego Véio existir. Aquela essência ela não morreu, nós estamos revivendo ela, né? Segundo o entrevistado Sérgião: Enquanto a gente viver, a gente vai tocar o samba, temos a Batucada de Nego Véio que se tornou um, um exemplo bom, é resistência. Hoje nós temos o 306 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz pé no chão, hoje eu tenho o pé no chão, eu sei o que eu tenho que fazer, eu sei como é que eu tenho que chegar e como tocar. Eu agradeço muito ao Landão, meu primo Landão que está sempre me orientando e a gente vai continuar, não vamos parar não meu amigo. Quando questionado sobre a Batucada de Nego Véio, Canhoto concluiu que: - Olha, a Batucada de Nego Véio, significa muita coisa, viu? Muita cosia, ela significa o presente, o passado, ela significa pra mim muita coisa, como se diz? A comunidade, o samba, a cultura, que tem que ser levada, né? A Batucada de Nego Véio vem de uma tradição que tem muito componente que veio da escola de samba, né? Surgiu a Batucada de Nego Véio, mas ela surgiu para os nego véio não ficar pra trás, entendeu? Porque os nego véio tava pra trás…, tava pra trás. Segundo o entrevistado Nato: - Pô, é o meu mundo, isso daí é o que faz eu ver a cara da geração antiga, porque nóis não tinha mais opção, né? Não tinha mais pra onde correr, devido aos acontecimentos que houve na Vila, as mudanças de diretoria, mudanças de estrutura, esse pessoal não acompanhou a mesma essência do Cacique e dos caras dos “nego véio”, entendeu? Porque se eles acompanhassem, eu acredito que a escola estaria até melhor hoje em dia, porque se nós aprendemos com os mais velhos, de repente você vai chutar a bunda dos caras, pros caras saírem fora, mas e daí? Vão aprender com os mais novos? Os mais novos ainda estão começando a aprender. Quando indagado sobre a importância da Batucada, Torrado diz: […] parabéns pra toda família Batucada de Nego Véio, porque só tem como falar bem, só tem como falar bem, não tem como falar mal, até o Landão tá virando intérprete agora, entendeu? Eu peço pra todo mundo chegar com nóis, chega com nóis, certo? Respeitando os mais velhos, porque nós respeitamos vocês, é só isso que eu tenho pra falar sobre a Batucada de Nego Véio, a melhor batucada de escola de samba do estado de São Paulo, não desrespeitando as outras, mas nós somos do primeiro de janeiro, né? 307 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz Batucada de Nego Véio é a do primeiro de janeiro, e também de oitenta e cinco, quando o cacique rodou a baiana, Juruna vestiu camisa, gravata e paletó, lá no Rio de Janeiro, é esse pessoal da Batucada de Nego Véio que estava lá, representando o estado de São Paulo no Rio de Janeiro, era tudo jovem, isso foi em mil novecentos e oitenta e cinco, certo? É o que eu tenho que falar, tem que ter uma história, o estado de São Paulo, qual foi a outra escola de samba do estado de São Paulo que pisou na Marquês de Sapucaí? Nenê de Vila Matilde, por isso que nóis tem história, Batucada de Nego Véio tem história, respeitando à todas as outras batucadas que vem aí […] Segundo Pascoal: “Pra mim tá sendo muito importante porque é uma história nova, né meu? É uma história nova pra nóis, não só eu, nóis… fundamos e estamos construindo, né? É muito importante, com certeza!”. Para o entrevistado Claudemir: Batucada de Nego Véio, pra mim foi o máximo, você reunir os antigão, né? Tava tudo afastado do samba e hoje em dia tem nosso lugar, até eu mesmo, não tenho mais valor pra essa molecada, convite pra estar na batucada deles a gente nem tem mais, então, reunir essa rapaziada, fazer com que eles se sintam bem, né? Falar, pô, eu sou importante ainda no mundo do samba, não é verdade? Pô, Canhoto cara, você é louco, Sérgião, você é doido cara, os pioneiros aí da Batucada, quando eu cheguei no samba eles já estavam há muito tempo, né? Então, resgatar esse povo é muito gratificante, entendeu? Para o Carga: A Batucada de Nego Véio tá significando muito pra minha vida mano, porque eu achei que ia parar com essas paiaçadas, risos, e agora não dá não mano, agora é “Batucada de Nego Véio”, sabe por quê cara? Porque é muito melhor, é… é como…deixa eu fazer uma comparação legal… é como você trabalhar, tá ligado? E se aposentar com duzentos por cento, ao invés de você se aposentar com cem por cento. Não podemos deixar de refletir sobre como o conjunto de valores referentes às memórias dos entrevistados produzem um sentido comum sobre as construções de suas masculinidades, as quais são atravessadas pela cultura periférica. Ao analisar 308 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz as entrevistas, podemos notar nas narrativas dos participantes, valores baseados no respeito, na raça, na honra, no lazer, na arte, na família e na valorização do saber ancestral, porém, além de todos os sentidos positivos dessas construções, impossível deixarem de mencionar aspectos mais tóxicos dessas masculinidades, que acabam resultando em diversas formas de violências. Nesse universo que envolve o território periférico, mais especificamente a Zona Leste da cidade de São Paulo, os espaços de lazer são organicamente afetados pelas mazelas de um sistema desigual, que são as diversas formas de violências às quais a população periférica se vê exposta desde os tempos mais antigos até o contemporâneo. Para os participantes, esse fator não está ligado diretamente ao samba, mas às condições sociais que caracterizam as relações da população paulistana. Considerações finais A valorização das memórias e da oralidade resultou no melhor caminho possível para o encaminhamento da pesquisa. Sentimos em cada entrevistado certa necessidade de falar, todos agradeceram a participação em um tom de alívio, às vezes até de desabafo. Através da oralidade eles aprenderam com os homens que vieram antes deles e transmitiram para outros jovens da comunidade elementos que, para além desta documentação escrita, levarão esses sentidos produzidos, de forma oral, para onde forem e principalmente para as próximas gerações. A territorialidade presente nos costumes dos homens entrevistados e na história dessa comunidade, dialoga diretamente com as narrativas encontradas nas entrevistas, em que momentos, fatos e personagens apresentados pela fundamentação teórica são representados pelos discursos presentes no estudo. Da mesma forma, a desapropriação da comunidade sambística da Zona Leste se apresenta como um aspecto comum ao afeto de todos os participantes. As questões relativas às construções das masculinidades, embora complexas, também se fazem entendíveis quando levadas em consideração a trajetória histórica e social do homem negro até os dias atuais. Dos tempos de cativeiro às periferias e favelas, uma série de tentativas de encobrimentos socioculturais tenta sufocá-lo e mantê-lo em um não lugar na sociedade, na família e no mercado de trabalho. A objetificação desse 309 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz corpo se instaura, sendo ele aceitável socialmente de forma seletiva como artista ou atleta em alusão a uma performance esperada para esse indivíduo fora do campo da intelectualidade. Apesar disso, homem negro com a força de sua cultura tem muito mais a oferecer e ensinar. Dentro dos sentidos observados pela pesquisa encontramos a valorização da família como um dos principais aspectos de suas vivências, junto a esse sentido podemos observar a paternidade, contrariando os massivos enunciados publicados sobre a ausência paterna do homem negro. A ascensão do grupo Batucada de Nego Véio revela que existem outros modelos de sociedade que podemos almejar, sociedade essa que pode estar fundamentada no amor, na cooperação e na valorização do resgate das tradições culturais, espirituais e políticas. Os sentidos narrados por estes homens são produzidos através de uma experiência de masculinidade atravessada pelos fatores raça e classe. Nesse enlace percebemos com nitidez o porquê futebol e samba são elementos que permeiam com importância o homem da comunidade. Um contexto gerado pela exclusão social que cria dignificações de existências coletivas, que empoderam, trazem alegria, convivências e acima de tudo sobrevivência. Como um dos entrevistados relata, “não existe nego véio triste vivo”. Podemos destacar também a importância da experiência e do conhecimento de vida dos homens mais velhos na manutenção de uma comunidade. Nesse contexto, surgem importantes personagens da história, os “griôs”, como foi o Seu Nenê. Um homem que dedicou sua existência à resistência cultural, agregou integrantes de toda uma região da cidade em torno de uma comunidade identitária e deu significado a uma população que a necropolítica abandonou. A convivência interpessoal nas atividades da Batucada de Nego Véio promove um ambiente de interação que reaproxima e cria novos laços, comprovando na prática toda a importância da coletividade do povo negro, colocando em xeque a prepotência de uma intelectualidade que há séculos não responde aos problemas estruturais da sociedade. A Batucada de Nego Véio aparece para fixar valores ancestrais, ressignificar e descobrir tudo aquilo que o embranquecimento não apaga. Todos esses aspectos de convivências, expressões culturais e resistências negras surgem como respostas às demandas impostas pela força do capitalismo e pelas opressões oferecidas pela branquitude, que não buscam entender ou respeitar valores ancestrais que são transmitidos de gerações a gerações através de costumes e oralidades. 310 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz Esses valores estrangeiros ao do samba pouco a pouco se apropriam dessa cultura, tendo como intuito principal a produção de capital e consequentemente de poder, e é nesse contexto que a Batucada de Nego Véio surge como um oásis para o indivíduo negro, periférico em um religar às suas matrizes existenciais. Referências BRASIL. Atlas da violência. Brasília, DF: Ipea. 2020 BRASIL. Mapa do encarceramento. Brasília, DF: Ipea, 2015. GOMES, N.L.; LABORNE, A.M.P. Pedagogia da crueldade: racismo e extermínio da juventude negra. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 34, e197406, 2018. MBEMBÉ, A. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1, 2013. RIBART, F. Memória, identidade e oralidade: considerações em torno do carnaval negro da Bahia (1974-1993). Revista de História UFC, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 123138, 2002. RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro, A formação e o sentido do Brasil. 2. ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995. RODRIGUES, L.G. A arte das narrativas orais urbanas.Porto Alegre. 2010. SILVA, A. A.; BRAIA A. Memórias do Seu Nenê da Vila Matilde. São Paulo: Lemos editorial, 2000. SPINK, M. J. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. WILLIAN, R. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019. Músicas e filmes ALDIR BLANC, LUIZ CARLOS DA VILA, MOACYR LUZ. Cabô, meu pai. Rio de Janeiro, 2003. ASSIS VALENTE, ATAÚLFO ALVES. Batuca no chão. Rio de Janeiro. 1942 CAMISA VERDE E BRANCO, Ideval. Ginga Brasil Moreno ou Menino cor de canela.Disco dos sambas enredos das escolas de samba do grupo especial de São Paulo, 1985. GERALDO FILME. Vá cuidar de sua vida. São Paulo, 1980. MARCO ANTONIO. O azul e branco. São Paulo, 2002. 311 batucada de nego véio Fernando de Paula Manelichi e Elizabete Franco Cruz NEI LOPES, RENATO BARBOSA SILVA. Malandro J.B. Gravado no Disco Espelho por João Nogueira, 1977. NENEM E PINTADO. Visual. Gravado no disco Pé no chão da cantora Beth Carvalho, 1978. LAVAPÉS, Ancestralidade e Permanência. Fapesp, Unesp, Coletivo Mapa Xilográfico, 2017. SAMBA À PAULISTA. Fragmentos de uma história esquecida. Direção de Eduardo Mello, Produção de Yara Camargo e Leandro Freire. Financiamento: Pró Reitoria de Cultura e Extensão da USP, Co-produção: TV Cultura, 2007. SEU NENÊ DA VILA MATILDE. Direção de Carlos Cortez. Produção de CPC – Umes, Birô de Criação e GULLANE Filmes, 2000. WILSON DAS NEVES. Puxando Conversa. Direção de Valter Filé. Apoio da Casa de Ciência da UFRJ, Cecip – Centro de Criação de Imagem Popular. Produção: imagemnaação – Núcleo de desenvolvimento de comunicação e cidadania, 2004. 312 O Conceito de Verdade entre os Gregos Antigos: Mito e História na Representação do Negro no Cinema Flávio Ribeiro de Oliveira Instituto de Estudos da Linguagem – Unicamp Em homenagem ao professor Celso Luiz Prudente, por sua luta pelo Cinema Negro 1. Mito e verdade Em nossa cultura, o homem comum costuma associar a ideia de “mito” àquelas de “mentira”, de “falsidade”, de “engano”. Na pergunta “isso é mito ou realidade?”– pergunta que tantas vezes ouvimos nos dias de hoje – o termo “mito” equivale a “mentira”, “falsidade”. Para os antigos gregos, contudo, a ideia de mito tinha um outro valor. Nosso termo “mito” vem do grego antigo. Em grego, mûthos significa simplesmente “palavra”, “relato”, “narrativa”: o mûthos é uma sequência de palavras que têm um sentido1. Pode ter o mesmo valor que tem, para nós, a palavra “história” na expressão “vou te contar uma história”. Essa “história” pode ser verdadeira. Portanto, entre os gregos, o mito poderia ser uma forma de dizer a verdade. O conteúdo dos cantos do poeta era mito: aquilo que Homero e Hesíodo cantavam era mito. No período arcaico da história grega, normalmente o homem 1 Cf. Chantraine (1990), pág. 718. 313 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira comum tomava como verdadeiros e fidedignos os relatos feitos pelos poetas2. E as Musas eram a garantia da verdade desses relatos. “Musa”, para um grego antigo, tinha valor bem diferente daquele que hoje o termo tem normalmente entre nós: para nós, “Musa” é uma bela mulher que inspira o poeta. Para os gregos, as Musas eram deusas – elas eram as deusas que transmitiam o canto aos poetas. Aquilo que os poetas cantavam era verdadeiro porque provinha diretamente das Musas: as Musas eram fonte do canto do poeta e, portanto, garantia de sua verdade. Os gregos arcaicos não tinham o mesmo conceito de “autoria” que temos hoje: por exemplo, para nós Dante Alighieri é o autor da Divina Comédia. Isso é incontestável: o poema é dele; ele o concebeu e o criou; ele o realizou. Para um grego antigo, contudo, o autor de um poema, em última instância, era a Musa: as palavras do poema fluíam da Musa para o poeta; a Musa cantava através da boca do poeta. Não é por acaso que os grandes poemas de Homero e de Hesíodo começam com uma evocação a essa deusa: “canta, deusa, a ira de Aquiles, filho de Peleu...” (Homero, Ilíada, I, 1: mênin áeide, theá, Peleiádeo Akhiléos...); “canta para mim, Musa, o homem muito astucioso...” (Homero, Odisseia, I, 1: ándra moi énnepe Moûsa, polútropon...); “comecemos cantando as Musas Helicônides...” (Hesíodo, Teogonia, I, 1: Musáon Helikoniádon arkhómeth’ aeídein...); “Musas da Piéria,[...] cantai Zeus” (Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, I, 1-2: Moûsai Pieríethen, [...] Dí’ ennépete...). Tais evocações da Musa, da deusa, não são meros ornamentos retóricos: elas têm uma função essencial no estabelecimento do estatuto epistemológico do poema, pois são a garantia do valor de verdade da palavra cantada. Nesse sentido, o termo mûthos – o conteúdo da palavra cantada pelo poeta – se aproxima do nosso conceito de História: é uma narrativa verdadeira sobre o nosso passado, sobre os nossos antepassados, sobre as nossas origens. 2. Verdade e evidência Portanto, na Grécia Arcaica, o mito narrado pelo poeta dizia a verdade. Mas essa verdade não era definida – como o é entre nós – pela conformidade a determinados princípios lógicos, por um lado, e pela conformidade empírica com a realidade 2 Cf. Pratt (1993), pág. 2: “archaic culture, according to the prevailing view, regarded the poet as a speaker of truth”. 314 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira observada3: a palavra do poeta era verdadeira em si, por sua própria natureza sagrada: ela não carecia de comprovação empírica. Contudo, antes de prosseguirmos essa análise, convém esclarecer o sentido que tinha, para os antigos gregos, o conceito de verdade. Como se concebia a verdade na Grécia arcaica? O termo que normalmente se usa em grego antigo para designar a verdade é alétheia. Trata-se de um substantivo composto, formado de um prefixo (a-) e de um radical (leth-)4. Em grego, o prefixo a- tem o mesmo valor que tem, em português, o prefixo ade algumas palavras de origem grega (por exemplo, “apolítico”): seu valor é restritivo; ele nega aquilo que o radical seguinte afirma (no exemplo dado, “apolítico” significa “não-político”: o indivíduo apolítico é aquele que não se ocupa de política, que não faz política, que nega a política). O radical leth- é de origem indo-europeia: essa mesma raiz aparece em latim, no verbo lateo (“estar escondido”, “passar despercebido”)5. O particípio presente latino (latens) perdura no português, no adjetivo “latente” (“latente” é aquilo que está oculto, que ainda não se manifestou, que ainda não apareceu). O verbo latino lateo corresponde ao verbo grego lantháno (cujo infinitivo aoristo é latheîn), que também significa “estar oculto”, “passar despercebido”. Portanto, esse radical se associa basicamente à ideia de “ocultamento”. O termo alétheia – com o prefixo negativo a – significa primitivamente “aquilo que não se oculta”, “aquilo que não se esconde”. A verdade, na concepção grega arcaica, é aquilo que não se oculta: a verdade é evidente; ela aparece inevitavelmente; ela não se esconde e não pode ser escondida. Diríamos, hoje, em linguagem coloquial, que, para aqueles gregos antigos, a verdade “está na cara”: é evidência imediata, inegável, insofismável. Imediata, pois o acesso a ela é direto e não se requer nenhuma operação abstrusa do intelecto para contemplar o verdadeiro; inegável, pois não se pode negar aquilo que aparece diante de nossos olhos; insofismável, pois nenhuma cavilação sofisticada pode ocultá-la ou mitigar sua força. A verdade é evidência plena: nenhuma retórica (hoje diríamos: nenhuma “narrativa”) pode ocultá-la ou suprimi-la. 3 Cf. Detienne (2006), pág. 51. 4 Para uma análise da etimologia do radical leth- e de seus derivados, cf. Chantraine (1984), págs. 618619. 5 Cf. Ernout & Meillet (1951), pág. 610. 315 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira 3. Verdade e esquecimento O radical grego leth-, contudo, desenvolveu um valor secundário, dependente daquele valor básico de “ocultamento”: ele também se associa à ideia de “esquecimento”. A proximidade nas noções de “ocultamento” e de “esquecimento” é evidente, mesmo entre nós: hoje, quando alguém se esquece de algo – do nome de alguém, por exemplo – pode dizer: “me fugiu”. Aquilo que esquecemos foge de nós, se esconde de nós, se oculta à nossa consciência. Esse valor de esquecimento que o radical leth- pode assumir aparece, por exemplo, no substantivo léthe (“esquecimento”). Como nome próprio, Léthe designa um dos rios que circundavam o Hades, o Inferno dos antigos gregos. O Léthe era o rio do esquecimento: as almas dos mortos, ao atravessarem o Léthe em sua jornada para o Hades, se esqueciam de tudo o que viveram aqui, no mundo dos vivos. Esse mesmo valor de “esquecimento” também aparece no substantivo lethargía (que corresponde a “letargia” em português): o termo é composto do radical leth- (com valor de “esquecimento”) e do tema do adjetivo argós (“inativo”), adjetivo composto, por sua vez, de um prefixo a- privativo e da raiz de érgon (“trabalho”, “atividade”, “ação”): o estado de letargia é um estado de esquecimento e de inatividade. Com relação à alétheia, se emprestarmos à raiz o seu sentido derivado, o termo assume uma nuance de significado importante: o verdadeiro é, sim, aquilo que não se oculta (e que não pode ser ocultado), mas é também aquilo que não se esquece (e que não pode ser esquecido)6. 4. Mito e falsidade Para o público arcaico que ouvia os poemas de Homero, de Hesíodo e dos outros poetas, os mûthoi que eles cantavam eram, em si mesmos, verdadeiros: sua fonte divina – a Musa – garantia essa verdade. Contudo, no século IV a.C.,a respeito dos mûthoi cantados pelos poetas, Platão (República, 377d) fez a seguinte afirmação: “de fato, eles [Homero, Hesíodo e os outros poetas], compondo para os homens mitos falsos, os narravam e os narram” (hoûtoi gár pou múthois toîs anthrópois pseudeîs suntithéntes, élegon 6 Para uma discussão sobre os dois valores de alétheia, cf. Pratt (1993), págs. 17-22. 316 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira te kaì légousin). Para Platão, os mitos compostos e cantados pelos poetas eram falsos, mentirosos (pseudeîs). Entre a concepção arcaica (aquela que via no mito dos poetas uma verdade intrínseca) e a platônica (que considerava falsos os mitos), o que ocorreu? Por que a palavra cantada do poeta deixa de ser considerada reveladora da alétheia, da verdadeevidência? De fato, uma mudança radical ocorre no modo como se concebia a alétheia. A partir do século V a.C., surge na Grécia uma forma de pensamento que altera aquela concepção arcaica de verdade e modifica os modos de acesso a ela: surgem e se difundem na Grécia a Filosofia e a História – disciplinas que propõem novos meios de se obter a verdade, em substituição ao acesso direto a uma verdade-evidência transmitida pelo canto sagrado do poeta. Para o filósofo, a verdade deve se conformar às exigências da razão: está submetida a princípios lógicos verificáveis racionalmente. Para o historiador, a verdade deve se conformar a princípios empíricos: é verdadeiro aquilo que eu observo com meus próprios olhos, ou aquilo que testemunhas observaram com seus próprios olhos; o verdadeiro deve se conformar ao mundo observado. Passa a haver critérios formais internos para o estabelecimento da verdade – seu estabelecimento deixa de depender de um caráter intrínseco de sacralidade garantido pela Musa. Nesse novo universo intelectual, o conceito de verdade é problematizado. A mudança que mais nos interessa, aqui, é aquela operada pelo pensamento filosófico. Para o filósofo, a verdade deixa de ser evidente: como ela já não se revela imediatamente aos homens por meio do canto sagrado do poeta, será preciso buscá-la por meio do exercício metódico da razão, que revelará uma verdade que se ocultava. A verdade deixa de ser o não-oculto, o imediatamente evidente, para se tornar aquilo que está oculto, mas que se deve desocultar: desse momento em diante, há que se desentocar a verdade. Tomemos como exemplo o pensamento de Parmênides de Eleia: para esse filósofo, o mundo aparente, aquilo que se mostra imediatamente aos nossos sentidos, não revela a verdade. O mundo que aparece a nossos sentidos nos revela movimento: aparentemente, tudo se move. Contudo, segundo Parmênides, a razão nos mostra que o movimento não existe: é uma ilusão; o mundo real – o Ser – é perpétuo repouso. A verdade do mundo deve ser buscada para além da aparência, para além da evidência, para além daquilo que se revela imediatamente. 317 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira O pensamento de Heráclito de Éfeso aponta num sentido oposto ao de Parmênides, mas conserva aquele mesmo princípio epistemológico (a verdade deve ser buscada pela investigação racional, para além do que imediatamente se apresenta aos nossos sentidos): para Heráclito, nossa percepção ordinária do mundo nos mostra muitas coisas em repouso. Contudo, essa percepção é falsa: na verdade, mesmo aquilo que aparentemente está em repouso está sempre a se mover, de modo imperceptível. No universo, todas as coisas estão sempre em movimento: ainda que não o possamos perceber pelos sentidos como uma verdade imediata e evidente, a razão nos mostra que tudo flui e que o repouso não existe. O surgimento e estabelecimento da Filosofia na Grécia antiga altera a concepção arcaica de verdade: a verdade, que antes era uma evidência transmitida pela palavra sagrada do poeta, insuflada pela Musa, passa a ser concebida como algo que está oculto, para além da evidência imediata, e que deve ser buscado laboriosamente por meio da atividade da razão. A verdade se problematiza: já não a recebemos mais pronta e perfeita da boca do poeta; oculta, ela precisa ser buscada com método, com paciência e com ciência. Nesse quadro, o que acontece com o mûthos cantado pelo poeta? A partir do advento da Filosofia e da História como disciplinas centrais na cultura grega, o mito começa a perder seu estatuto de portador de uma verdadeevidência intrínseca7: gradativamente, passa a ser associado com as ideias de fantasia, de fábula, de falsidade, de mentira. O mito é desalojado de sua posição epistemológica de discurso verdadeiro e passa a equivaler a discurso fantasioso, fabuloso, mentiroso. O homem cultivado não mais busca a verdade no mito cantado pelo poeta, mas no discurso racional concebido pelo filósofo e pelo historiador. Com o tempo, as narrativas míticas passam a ser vistas como mero entretenimento, desprovido de um valor de verdade essencial. Configura-se a ideia do mito como falsidade, como mentira (ideia que se vê, por exemplo, no valor que adquire o elemento de composição mito- em termos técnicos da psiquiatria como “mitômano”, “mitomania” e derivados, que, em português, começam a ser usados a partir do século XX: o mitômano é aquele que tem o hábito doentio de mentir e de fantasiar). 7 Cf. Bremmer (1988), pág. 5: “The traditional mythoi now came under attack from philosophers and historians”. 318 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira O mito, desde a Grécia do período clássico, ficará marcado por essa dialética entre o verdadeiro e o falso: por um lado, é portador de uma verdade sagrada; por outro, é veículo de falsidades, de fábulas fantasiosas. Não surpreende que um dos políticos mais abjetos e asquerosos da história do Brasil seja chamado de “mito” por seus apoiadores – que pensam, decerto, naquele valor antigo que tinha o mito: o veículo de uma verdade sagrada. Contudo, a verdade histórica vê nessa personagem repugnante o outro valor de mito: ele é uma farsa, uma falsidade, um reles mentiroso. O mito como mentira: The Birth of a Nation, de D. W. Griffith No quadro teórico dos conceitos gregos de verdade (a alétheia, que era, em princípio, evidência sagrada e, mais tarde, se problematiza e passa a ser vista como verdade oculta que deve ser desentocada) e de mito (o mûthos, que era, na época arcaica, discurso verdadeiro e sagrado e que passa a ser, depois do surgimento da Filosofia e da História, narrativa fabulosa, mentirosa) e considerando a tensão dialética entre seus significados, pretendo discorrer brevemente sobre um filme historicamente mentiroso – The Birth of a Nation, filme racista concebido e realizado por homens brancos – e sobre a necessidade da reação histórica – e reação afirmativa da verdade histórica – promovida pelo Cinema Negro. Lançado em 1915, The Birth of a Nation havia sido rodado em nove semanas, entre julho e outubro de 1914. O filme, dirigido por D. W. Griffith, baseava-se em um roteiro de Thomas Dixon Jr. que, por sua vez, era a adaptação de um romance do próprio Dixon intitulado The clansman: a historical romance of the Ku Klux Klan. Dixon, nascido na Carolina do Norte em 1864, era um suprematista branco fanático que costumava denunciar os males da miscigenação racial e apontar a imperiosa necessidade de se reprimir, segregar e até mesmo expulsar os negros da América8. Seu roteiro – e o filme dirigido por Griffith – tinha a pretensão de apresentar um relato verdadeiro9 dos 8 Cf. Pitcher (1999), pág. 51. 9 Franklin (1979, pág. 426) afirma que Dixon estava tão confiante na exatidão histórica do roteiro do filme, que oferecera um prêmio de mil dólares para qualquer um que fosse capaz de apontar alguma imprecisão histórica emseu relato. Ainda segundo Franklin (1979, pág. 425), Dixon afirmara que o filme “was the true story of Reconstruction and of the redemption of the South by the Ku Klux Klan” (grifo meu). Cf. também Briley (2008), pág. 455: “Griffith asserted that he was simply presenting the historical truth” (grifo meu). 319 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira acontecimentos em um período delicado da História do Sul dos Estados Unidos – aquele período chamado de “Era da Reconstrução”, após a derrota dos confederados sulistas na Guerra Civil, que terminara em 1865 com a derrota do Sul e com o consequente fim da escravidão, imposto ao Sul pelos vencedores unionistas. Os autores do filme – o roteirista Dixon e o diretor Griffith – tinham a pretensão de apresentar um relato fidedigno de determinado período da História norte-americana. E muitos dos que assistiram ao filme em seu lançamento e nos anos subsequentes também consideravam historicamente verdadeiro aquilo que o filme relatava. E menciono, aqui, apenas um exemplo: em 18 de fevereiro de 1915, Woodrow Wilson, presidente dos Estado Unidos, assistiu ao filme, junto com Dixon, em uma sessão privada na Casa Branca. Ao final da projeção, teria dito a Dixon: “it is like writing history with lightning. And my only regretis that it is all so terribly true”10. O próprio presidente dos Estados Unidos, portanto, considerava que aquele relato cinematográfico apologético da Ku Klux Klan era História escrita com relâmpagos – e que aquela história era verdadeira. E não se engane o leitor: a lástima (“regret”) de Woodrow Wilson é pelo sofrimento dos brancos retratado no filme: ele lastima que esse sofrimento seja terrivelmente verdadeiro... Contudo, antes de avançarmos, convém apresentar aqui um rápido resumo do nauseabundo enredo de The Birth of a Nation. O filme nos mostra o destino de duas famílias norte-americanas de elite no período da Guerra Civil e da Reconstrução – famílias amigas que a guerra separa: os Cameron são do Sul dos Estados Unidos; são retratados de forma idealizada e encarnam os ideais e valores do Sul. Os Stoneman são do Norte. Phil, Tod e Elsie Stoneman são filhos de Austin Stoneman, um Republicano radical que era membro do Congresso dos Estados Unidos. Phil e Tod são colegas de escola de Ben e Wade Cameron: convidados pelos amigos, passam uma temporada de visita na casa da família Cameron em Piedmont, na Carolina do Sul. Durante essa temporada, Phil Stoneman apaixona-se por Margaret Cameron, irmã de seus colegas Ben e Wade; Ben Cameron, por sua vez, ao ver uma fotografia de Elsie Stoneman, irmã de Phil e Tod, também se apaixona por ela. Os romances entre esses dois casais orientarão a parte sentimental do filme. Quando irrompe a guerra, os rapazes Stoneman retornam ao Norte para ingressar no exército da União; os rapazes da família Cameron, por sua vez, alistam10 Franklin (1979), pág. 425. 320 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira se no exército confederado, do Sul rebelde. Ben Cameron é ferido em batalha e feito prisioneiro; é levado para um hospital em Washington, onde Elsie Stoneman trabalha como enfermeira: finalmente conhece pessoalmente a irmã de seu amigo, por quem tinha um amor platônico. Por outro lado, no plano político, Austin Stoneman – pai de Elsie, de Tod e de Phil – busca, por meio de astúcia, sublevar os negros do Sul contra seus senhores brancos. Tod Stoneman morre na guerra, assim como Wade e Duke Cameron (outro dos irmãos Cameron). A guerra enfim termina, com a derrota do Sul – eo fim da luta e da carnificina parece trazer esperança para essas duas famílias e para a nação: o país, agora, é guiado com juízo e sensatez por Abraham Lincoln – na visão delirante de Dixon, Lincoln era um verdadeiro amigo do Sul11. Contudo, Lincoln é assassinado, e Austin Stoneman passa a usar seu poder político para estabelecer um governo negro nos estados sulistas derrotados que antes formavam a Confederação. A partir daí,Austin Stoneman e outros republicanos radicais do Congresso impõem sua lei ao Sul derrotado, que passa a ser dirigido por oportunistas do Norte, com a ajuda dos antigos escravos – que são retratados como gente sem educação e facilmente controlável pelos espertalhões do Norte. Legisladores negros são retratados de forma caricata,embriagando-se, tirando os sapatos e jogando cartas durante uma sessão da assembleia... Os negros submetem seus antigos senhores a sucessivas humilhações e violências. Para proteger as famílias brancas acuadas e vilipendiadas, Ben Cameron idealiza e organiza a Ku Klux Klan. Austin Stoneman, para controlar melhor a situação, mudara-se para Piedmont, na Carolina do Sul, onde passou a patrocinar a carreira política de um mestiço chamado Silas Lynch, que termina por se tornar vice-governador do estado. No plano afetivo, o término da guerra traz o reatamento dos romances entre os rapazes e moças das duas famílias: Ben e Elsie, Phil e Margaret. Mas as desgraças se sucedem: Gus, um soldado negro da União, ataca sexualmente a jovem Flora Cameron (irmã mais nova de Ben Cameron); a moça, para evitar o estupro, atira-se de um penhasco e morre. Ben, para vingar a irmã, convoca a Ku Klux Klan: Gus é capturado, julgado e executado pela Klan. 11 Cf. Pitcher (1999), pág. 51. 321 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira Em seguida, Phil Stoneman e o a família Cameron (com exceção de Ben) são perseguidos por tropas de negros, que buscam prender todos aqueles que podem estar associados à Ku Klux Klan. Junto com dois veteranos do exército da União e com a filha pequena de um deles, Phil e os Cameron se refugiam em uma pequena cabana afastada. A cabana é cercada pelos negros. Enquanto isso, na cidade, o vice-governador Lynch (que é mestiço) faz avanços sexuais para Elsie Stoneman e a pede em casamento. Ela resiste, mas é, então, presa e amordaçada por ele. Lynch diz a Austin Stoneman que pretende se casar com uma mulher branca; este não se opõe, mas, quando fica sabendo que aquela mulher branca é a sua própria filha, fica arrasado – contudo, nada pode fazer: Lynch tornara-se poderosos demais. Neste momento do filme, Ben e os cavaleiros da Ku Klux Klan entram na cidade: eles são mostrados como heróis que gloriosamente chegam em tempo de salvar os brancos inocentesque estavam sendo oprimidos e ameaçados pelos negros – e, principalmente, para salvar a jovem Elsie, sequestrada pelo lascivo e brutal Lynch. Ao perceber a chegada da Klan, Lynch, muito assustado, tenta fugir, levando Elsie consigo, mas os homens da Klan o detêm. Simultaneamente, Phil Stoneman e os Cameron permanecem sitiados pelos soldados negros na cabana afastada (do ponto de vista técnico, Griffith faz aqui um admirável trabalho de montagem, lançando as bases do que viria a ser a linguagem moderna do cinema). Os cavaleiros da Klan, cavalgando heroicamente para salvar as vítimas dos negros, são assimilados de forma romântica a lendários cavaleiros medievais, empenhados em proteger os justos e inocentes12. Quando finalmente Elsie é salva das garras do malvado Lynch, o filme nos mostra os cavaleiros da Klan como heróis que resgatam a virgem ameaçada. Elsie, libertada de seu raptor, atira-se enfim aos braços de seu amado, Ben. Lynch, o raptor, é capturado pela Klan. O filme não o mostra, mas o próprio nome de Lynch sugere um incentivo ao linchamento como forma de punição por sua soberba e por sua violência: Griffith e Dixon parecem sugerir que o linchamento seria um meio legítimo de controle social sobre afro-americanos que se recusassem a ficar no lugar que lhes é próprio13. 12 Cf. Briley (2008), pág. 457. 13 Cf. Briley (2008), págs. 457-458. 322 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira Executado com sucesso o resgate de Elsie, os cavaleiros da Klan partem para salvar os brancos sitiados na pequena cabana. Neste momento, os soldados negros estão tentando invadir a cabana; na tentativa, eles rasgam as roupas de Margaret Cameron (irmã de Ben e namorada de Phil): aqui também – como no caso de Elsie, assediada antes por Lynch – há enorme tensão sexual: nesse filme, a sexualidade do negro é constantemente retratada como uma ameaça aos brancos14. Na cabana sitiada, os homens brancos se preparam para matar as suas próprias filhas: a morte seria menos terrível do que o estupro a que inevitavelmente os negros as submeteriam. Contudo, mais uma vez os heróis da Klan chegam em tempo, salvam os justos e inocentes das garras dos negros arruaceiros e preservam a honra das mulheres brancas do Sul – preservam, enfim, a própria civilização branca do Sul. Elsie e Margaret retornam para casa sãs e salvas, imaculadas, em um cortejo triunfante, cercadas pelos cavaleiros da Ku Klux Klan, seus protetores e guardiães da civilização branca contra as ameaças dos negros violentos e insubordinados. Nas ruas, o povo – o povo branco, bem entendido – saúda os heróis da Klan; os negros se encolhem e se esgueiram, derrotados e medrosos. Depois de salvar a pureza das mulheres brancas, os membros da Klan forçam os negros a entregar as suas armas. No plano seguinte, o filme mostra alguns negros tentando votar nas eleições legislativas – mas os valentes membros da Ku Klux Klan, armados, os expulsam: Como nota Briley, “black sexuality and political power are contained”15. A história se conclui com um duplo casamento (Phil Stoneman casa-se com Margaret Cameron; Ben Cameron, com Elsie Stoneman), unindo as famílias Cameron e Stoneman e simbolizando a unificação do Norte e do Sul brancos. O filme racista de Dixon e de Griffith é isto: uma descarada apologia da Ku Klux Klan, uma explícita defesa do suprematismo branco.A má-fé aleivosa dos autores, em seu trabalho de falsificação histórica, retrata os negros como homens libidinosos, arrogantes, bêbados, violentos, grosseiros, cruéis, a exercer sua petulância e sua lascívia contra brancos nobres, pacíficos, generosos e bem-educados. Mc Ewan qualifica The Birth of a Nation como “extreme filmic exemple of racial misrepresentation”16. Simmons 14 Cf. Briley (2008), págs. 457-458. 15 2008, pág. 458. 16McEwan (2007), pág. 98. 323 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira chama-o de “one of the ugliest artifacts of American popular art”17. Briley se refere ao filme como “racista epic”18. Pitcher afirma que “far from capturing the ‘truth’ of the Civil War and Reconstruction, [...] Birth presentes a skewed version of this period that relies on racist themes”19. Para Stokes, “the racism of this film was not episodic and intermitent. It was built into its very structure and narrative”20. Na concepção e na montagem do filme, Griffith conscientemente enfatiza a ideia de que afro-americanos não eram e nunca poderiam ser iguais aos brancos na sociedade norte-americana: navisão do diretor, os negros são naturalmente inferiores aos brancos e revelam-se incompetentes sempre que buscam assumir as funções que antes eram exercidas pelos brancos21. O filme de Dixon e Griffith é uma clamorosa e ultrajante farsa. Ele apresenta mentiras torpes como se fossem verdades históricas. É cheio de distorções, meiasverdades e falsificações históricas manifestas, descaradas22. Está visceralmente impregnado do mais abjeto racismo, que orienta seu projeto de uma sociedade branca ideal nos Estados Unidos. Não é necessário perder muito tempo para refutar, do ponto de vista histórico, as falsificações operadas por Dixon e Griffith. Baste a afirmação de Franklin, que resume bem a questão: “there is not a shred of evidence to support the film’s depiction of blacks as impudent, vengeful, or malicious in their conduct toward the whites”23. Por outro lado, filme não faz nenhuma menção aos horrores praticados pelos brancos contra os afro-americanos durante toda a história dos Estados Unidos24: nenhuma menção ao genocídio de um povo, às atrocidades da escravidão, à imposição de uma miséria material atroz, à segregação, aos linchamentos... Contudo, embora nenhum historiador sério dê valor às patacoadas de Dixon e Griffith, a fantasiosae abominável versão que esses autores apresentaram sobre o 17 Simmons (1993), pág. 105. 18 Briley (2008), pág. 454. 19 Pitcher (1999), págs. 50-51. 20 Stokes (2015), pág. 607. 21 Cf. Stokes(2015), págs. 605-606. 22 Cf. Franklin (1979), págs. 426-427. 23 Franklin (1979), pág. 427. 24 Cf. Franklin (1979), pág. 432: não se encontra no filme “anything about the oppression of freedmen by Southern whites, the reign of Southern white terror that followed the close of the Civil War, the persistence of white majority rule even during Radical Reconstruction”. 324 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira período da Reconstrução teve consequências nefastas: contribuiu para o renascimento e fortalecimento da Ku Klux Klan nos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX25. O projeto político que o filme propõe é o de uma nação na qual os negros estejam excluídos de qualquer protagonismo social ou político: a nova nação que nasce em The Birth of a Nation é uma nação branca, com a população negra desarmada, submissa aos brancos, proibida de votar e afastada das ruas26. Como notou Stokes, trata-se do projeto de uma “dominant white society from which African Americans had been excluded”27. O cinema que mente Retornemos àquele conceito grego de verdade – a alétheia, a verdade que não se esconde, a verdade que não se esquece. O cinema de Griffith mente porque, ao contrário do que se faz quando se busca a alétheia – o desvelamento de uma verdade oculta – Griffith, ao invés de revelar,mantém oculto. Seu cinema é um cinema de ocultamento. Em seu cinema estão ocultos o trabalho massacrante dos negros, a miséria material forçada, a insalubridade, a exclusão de toda e qualquer participação política, os castigos físicos, a opressão sofrida cotidianamente, os linchamentos. Seu cinema oculta a humanidade do homem negro e da mulher negra. O que seu cinema revela não é a alétheia, não é verdade-evidência: são falsificações. Ao criar suas falsificações históricas, Griffith perpetra vilezas morais nauseantes, se pensarmos na realidade brutal da condição dos negros americanos no século XIX: na falsificação griffithiana da História, são os negros que oprimem os brancos inocentes! Griffith oculta a verdade e tira da cartola falsidades sórdidas, que expõe e tenta vender como se fossem verdades: seu cinema é um cinema falsário. Portanto, quando Griffith estabelece o mito da fundação da nova nação americana, esse mito é mito no segundo sentido da palavra: é um relato falso, é uma fábula mentirosa. Não aquele mito arcaico, que trazia a verdade imediata e sagrada, 25 Cf. Pitcher (1999), pág. 51; “not surprisingly, the resurgence of the Ku Klux Klan during the late 1910s and 1920s was greatly facilitated by the popularity of this epic film”. Cf. também Lennard (2015), pág. 616: “The Birth of a Nation is often credited with reviving the Ku Klux Klan, or at least reviving popular interest in the organization”; cf. também Simcovitch (1972), passim. 26 Cf. Stokes (2015), pág. 606. 27 Stokes (2015), pág. 606. 325 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira garantida pela deusa, mas o mito falsificado e falsificador, filho do engano e pai das fake-news de hoje, patrono de movimentos fascistóides que desprezam a verdade e que contam com o triunfo da mentira para justificar a opressão que exercem sobre os que não pertencem a seu grupo, a sua milícia, a sua casta, a sua religião, a sua raça. 7. Verdade e anistia A nossa palavra “anistia” também é uma palavra de origem grega: vem do grego amnestía, que significa em primeiro lugar “esquecimento” e, a partir daí, “perdão”, “anistia”. A palavra grega se compõe de um prefixo a- privativo e de um radical mneque significa “lembrança”, “memória”, “recordação” (o mesmo que aparece em mnéme, “memória” em grego: daí vem o adjetivo “mnemônico” do português). Anistiar alguém é deixar de se lembrar de seus crimes. Se considerarmos os sentidos básicos de alétheia em grego – “o que não se oculta” e “o que não se esquece” – verificaremos que essa ideia de verdade se opõe à ideia de anistia: a anistia propõe o esquecimento; a verdade é aquilo que não se pode esquecer. Não podemos anistiar o racismo, porque não podemos esquecer o racismo – e esquecer é anistiar. Não podemos esquecer o cinema racista e não podemos esquecer as ofensas ignóbeis de Griffith – e devemos refutar Griffith: ao mito aleivoso, portador de falsidade, deve-se responder com o mito autêntico, aquele que funda uma visão de cultura: o mito que porta em si uma verdade sagrada. Como resposta antropológica ao cinema falsificador, devemos afirmar um cinema-verdade; como resposta ao cinema que oculta a verdade, devemos criar um cinema que revele o que se ocultava; em oposição ao cinema que propõe o esquecimento, devemos nos lembrar sempre – sem anistia. 8. Cinema negro e a verdade histórica sobre os negros da América Não podemos aceitar que a História dos negros da América continue a ser contada apenas pelo opressor branco – apenas por aquele que o antropólogo e cineasta Celso Luiz Prudente classifica como o “euro-hétero-macho-autoritário”28: daí a 28 Sobre esse conceito antropológico, cf., por exemplo, Prudente & Costa Oliveira (2020), pág. 51, pág. 55, etc.; Prudente & Oliveira (2017), pág. 113, etc. 326 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira importância fundamental de resgatar o olhar do negro e a voz do negro, para que ele conte a sua própria História, para que ele coloque em evidência a alétheia – a verdade que estava oculta, mas que não se deve mais ocultar, que estava esquecida, mas que não se deve mais esquecer. Para que, assim, o mûthos mentiroso afirmado por racistas como Dixon e Griffith desapareça no confronto com a verdade devastadora que não se pode mais esconder, que não se pode mais esquecer e que não será anistiada – uma verdade de opressão, de brutalidade, de massacre, de linchamento, de genocídio; uma verdade que não foi abolida por atos burocráticos de governantes brancos que pretendem ter suprimido a escravidão: essa verdade continua viva, interpelando-nos nas periferias, nas favelas, nos subúrbios pobres de toda a América. O Cinema Negro dá voz aos que foram oprimidos– e que o são ainda hoje – para que digam a verdade, para que a opressão passada nunca seja esquecida e para que a opressão presente nunca seja ocultada; ao fazê-lo, o Cinema Negro resgata o mito como verdade, como fundamento antropológico de uma narrativa verdadeira sobre nossas origens – narrativa verdadeira e, por isso mesmo, sagrada: nosso mito fundador, que está na raiz de nossa cultura e que há de gerar uma nação muito diferente daquela que nasceu com The Birth of a Nation. Referências BREMMER, JAN. “What is a Greek myth?”, in BREMMER, J. Interpretations of Greek mythology. London, Routledge, 1988, págs 1-9. BRILEY, RON. “Hollywood’s reconstruction and the persistence of historical mythmaking”, in The History Teacher, 41, 2008, págs. 453-468. CHANTRAINE, PIERRE. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris, Klincksieck, 1984 (v.1), 1990 (v.2). DETIENNE, MARCEL. Les maîtres de vérité dans la Grèce archaïque. Paris, LGF, 2006. ERNOUT, ALFRED& MEILLET, ANTOINE. Dictionnaire étymologique de la langue latine. Paris, Klincksieck, 1951. FRANKLIN, JOHN H. “’Birth of a Nation’: propaganda as History”, in The Massachusetts Review, 3, 1979, págs. 417-434. 327 o conceito de vertade entre os gregos antigos Flávio Ribeiro de Oliveira HESÍODO. Théogonie. Lest Travaux et les jours. Le bouclier. Texte établi et traduit par P. Mazon. Paris, Belles Lettres, 1972 HOMERO. Homeri opera. Iliadis. Recognovit brevique adnotatione critica instruxit D. B. Monro et Th. W. Allen.Oxford, Clarendon Press, 1920. HOMERO. Homeri opera. Odyssea. Recognovit brevique adnotatione critica instruxit Th. W. Allen.Oxford, Clarendon Press, 1922. LENNARD, KATHERINE. “Old purpose, new body: ‘The Birth of a Nation’ and the revival of the Ku Klux Klan”, in The Journal of the Gilded Age and Progressive Era, 14, 2015, págs. 616-620. McEWAN, PAUL. “Teaching ‘The Birth of a Nation’”, in Cinema Journal, 47, 2007, págs. 98-101. PITCHER, CONRAD. “Griffith’s controversial film ‘The Birth of a Nation’”, in OAH Magazine of History, 13, 1999, págs. 50-55. PLATÃO. Platonis rempublicam. Recognovit brevique adnotatione critica instruxit S. R. Slings. Oxford, Clarendon Press, 2003. PRATT, LOUISE. H. Lying and poetry from Homer to Pindar. Ann Harbor, University of Michigan Press, 1993. PRUDENTE, CELSO L. & COSTA OLIVEIRA, SILVANAdos SANTOS. “A dimensão pedagógica do Cinema Negro e a autoestima para o desenvolvimento da criança na escolaridade”, in Trama Interdisciplinar, 11, 2020, págs. 46-63. PRUDENTE, CELSO L. & OLIVEIRA, FLÁVIO R. de. “A lusofonia de horizontalidade da imagem do ibero-ásio-afro-ameríndio versus a verticalidade da hegemonia imagética do euro-hétero-macho-autoritário: a dimensão pedagógica do cinema negro posto em questão”, in Confluência de culturas no mundo lusófono – XXVII Encontro da Associação de Universidades de Língua Portuguesa. Campinas, 2017, págs. 107-116. SIMCOVITCH, MAXIM. “The impact of Griffith’s ‘Birth of a Nation’ on the modern Ku Klux Klan”, in Journal of Popular Film and Television, 1, 1972, págs. 45-54. SIMMONS, SCOTT. The films of D. W. Griffith. Cambridge, Cambridge University Press, 1993. STOKES, MELVYN.“Rethinking Griffith and racism”, in The Journal of the Gilded Age and Progressive Era, 14, 2015, págs. 604-607. 328 Cinema na Educação Infantil: a construção da cultura a partir da representatividade do personagem Kiriku Karla Isabel de Souza1 Rogério Garcia Fernandez2 Contextualização do Personagem Kiriku é um personagem criado pelo ilustrador francês Michel Ocelot inspirado em um conto de fadas africano. Com Kiriku o animador francês ficou mundialmente conhecido e o personagem ganhou uma trilogia3. O primeiro filme da trilogia é “Kiriku e a Feiticeira” (1998),que foi realizado a partir de uma técnica de papercutting. Papercutting ou corte de papel,é uma técnica chinesa do século IV dC que evoluiu em todo o mundo para se adaptar aos diferentes estilos culturais a aos avanços tecnológicos. Nessa técnica os desenhos são cortados em uma única folha de papel, em oposição a várias folhas adjacentes, como na colagem. O longa “Kiriku e a feiticeira”, ganhou, em 1999, um prêmio no Festival de Animação Annecy e a partir dessa data o personagem ganhou o mundo. Mas afinal, quem é Kiriku? 1Pedagoga pós doutora em Educação pela Universidad Alcalá Henares – Espanha. Professora da Faculdade Sesi de Educação 2 Sociólogo doutor em comunicação audiovisual e publicidade pela Universidad Complutense de Madrid - Espanha 31998: Kiriku e a Feiticeira (Kirikou et la sorcière), 2005: Kiriku e os animais selvagens (Kirikou et lesbêtessauvages), 2012: Kiriku e homens e mulheres (Kirikou et leshommes et lesfemmes) 329 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez Kiriku é um menino que morava em uma aldeia indígena, em Senegal, África. Uma criança muito inteligente, corajosa, dotada de muita esperteza e sabedoria. Com tantas habilidades Kiriku se torna uma liderança na aldeia já no primeiro filme. No primeiro longa Kiriku luta contra uma feiticeira do mal. Em suas estratégias não vemos violência, o pequeno herói se caracteriza por agir usando a sua inteligência. Já no primeiro filme descobre que a feiticeira tinha um problema e vivia em um grande sofrimento. Kiriku então, usando estratégias orientadas pelo seu avô, consegue retirar o feitiço que causava sofrimento na feiticeira. Libertando a feiticeira consegue também que sua aldeia passe a viver em paz.O segundo filme, “Kiriku e os animais selvagens”, é uma história que conta algumas ações que omenino Kiriku realizou no primeiro longa, mas que não apareceram no filme. As histórias são contadas pelo avô que entende que as ações não devem ser esquecidas. No terceiro longa metragem, “Kiriku, os homens e as mulheres”, o avô vai até uma gruta para novas revelações. O avô se recordava de outras situações interessantes da infância de Kiriku, do tempo em que ele ajudava os homens e mulheres de sua aldeia, e também de outros lugares. São novas revelações sobre o menino que o longa vem apresentar com uma narrativa é muito bem construída que envolve o expectador. Os expectadores em questão são as crianças, que tem em sua história uma trajetória de muitas conquistas políticas, com grandes reconhecimentos, muitas possibilidades, mas que exigem atenção da sociedade. Este texto busca, em primeiro lugar, mostrar a importância de personagens como Kiriku para pautar a representatividade das crianças na sociedade, bem como pautar temas relevantes relacionados à infância chamando a atenção da sociedade para temas relevantes à infância. Assim, este texto tem usa recentes pesquisas na área de infância, que tratam da cultura da infância. O personagem Kiriku ganha relevância nessa construção porque apresenta as questões teóricas em forma de narrativa. Nesse contexto é preciso primeiro apresentar a criança da nossa sociedade, na sequencia dialogar com as características que compõe a cultura da infância e por fim dialogar com o personagem Kiriku. 330 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez Apresentando as crianças - história Podemos começar pelo reconhecimento político da criança no Brasil. Na verdade, o reconhecimento da criança como cidadão é muito recente. No Brasil, foi a partir da Constituição de 1988 que a criança pequena e a criança bem pequena passam a ter seus direitos reconhecidos e ganham o direito a educação infantil. O movimento pelo direito à educação infantil começa nos anos 70 com as mulheres trabalhadoras (Faria, 2015), que buscam espaço para deixar seus filhos e filhas seguros quando vão trabalhar. Mas somente depois da Constituição de 1988 são publicados documentos como o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e a LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) onde as crianças pequenas e as crianças bem pequenas passam a ser reconhecidas, ou seja, passam a ser cidadãos de direito. Mesmo tendo sido uma luta das mulheres trabalhadoras (Faria, 2015) o direito à educação infantil é da criança, algo que é bastante relevante quando tratamos de cultura, pois, sendo direito da criança, a família não tem a decisão final sobre a entrada ou não da criança na escola. Claro que ainda vivemos um momento de grande crise, pois o direito das crianças bem pequenas ainda não estão totalmente atendido. Vivemos falta de vagas em espaços públicos na educação infantil. Segundo o ECA é dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: ensino fundamental (6 a 14 anos), obrigatório e gratuito; progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; e atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a 6 anos de idade, sem deixar claro que esse atendimento será gratuito. Um segundo ponto que aparece juntamente com a questão dos direitos das crianças pequenas e bem pequenas é a discussão sobre o conceito de infância. É importante destacar que a infância é uma fase da vida que possui muitas particularidades, segundo Kramer (2003), os olhares sobre a infância são construídos social e historicamente. Ou seja, para além do direito ao acesso e permanência é preciso que outras garantias sejam asseguradas. O modo como as crianças são introduzidas na vida social varia de acordo com a organização de cada sociedade. Historicamente a criança passou por diferentes contextos até o reconhecimento de seus direitos, como já mencionado, mas esse fato 331 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez se deu porque, a partir de pesquisas na educação infantil se entendeu que a criança bem pequena aprende e constrói cultura. Além de ser uma construção que aconteceu recentemente ainda precisa ser entendida e ser aceita pela sociedade. Philippe Ariès (1978) faz um estudo sobre a infância baseado em imagens, principalmente pinturas, conseguindo chegar a algumas observações que explicam alguns entendimentos sociais sobre a criança. Na Idade Média (Ariès, 1978) as famílias não reconheciam as crianças como pertencentes ao grupo até que se tivesse certeza que conseguiriam sobreviver. As altas taxas de mortalidade geravam insegurança, assim as crianças bem pequenas não eram parte constitutiva da família. Ao atingir uma idade em que estava garantida a sobrevivência, a criança passava a integrar as famílias. Ariès (1978) analisando as pinturas medievais mostrando, por exemplo, as vestimentas das crianças, que, ao serem idênticas as dos adultos, mostra que não existia traços que os distinguisse, a única diferença entre criança e adultos era apenas o seu tamanho. Ou seja, as crianças passam a integrar as famílias mas são vistas como adultos em miniatura. Uma outra curiosidade é a forma como as crianças eram introduzidas à sociedade, desde que aprendiam a falar, acompanhavam um adulto em sua trajetória diária, e por imitação aprendiam e eram introduzidas ao grupo, a um oficio, a uma responsabilidade (Ariès, 1978). Um outro fato interessante, são as brincadeiras, que hoje são entendidas como meio de aprendizagem das crianças (Kishimoto, 2011), na idade média, foram observadas porAriès (1978), como uma forma de interação com os adultos. Os relatos de Ariès (1978) mostram as crianças integradas em fases da vida. Na primeira, as crianças se relacionavam com os brinquedos, assim o autor denomina de“Idade dos brinquedos”, onde as crianças brincam com cavalo de pau e bonecas. Já identificando as atividades a serem desenvolvidas na vida adulta. O segundo momento é a “Idade da escola”, onde as imagens retratam os meninos aprendendo a ler e as meninas aprendendo a fiar. Por fim, as imagens então deixam de retratar as crianças em atividades consideradas preparatórias para a vida adulta e passam a retratar a efetivamente a vida adulta. As idades da vida da criança não correspondiam apenas às etapas biológicas, mas sim a funções sociais(Ariès, 1978). No século XVII acontece uma mudança considerável em respeito ao sentimento de infância, com o avanço da medicina, a relação deixa de ser indiferente. A criança 332 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez passa a ser reconhecida e começa a ser tratada com carinho e atenção, um sentimento inteiramente novo e as famíliaspassam a se organizar em torno das crianças(Ariès, 1978). Surge o sentimento de infância, onde os adultos passam a se divertir com as crianças,no que Ariès (1978) chama de sentimento de “paparicar”, onde as mulheres passam a ser incumbidas de cuidar dessas crianças, ou seja, as mães ou as amas (mulheres escravas, ou empregadas que ficavam encarregadas de cuidar das crianças) passam a dedicar o tempo diário no cuidado com a criança. Ainda no século XVII a criança deixou de ser divertida e se tornou educável, pois a “paparicação” tornou-se um problema, já que as crianças ficavam mimadas e mal-educadas(Ariès, 1978). Quanto ao conceito da infância, se observa a denominação de “adultos imperfeitos”. Nesse contexto de dificuldade em entender a infância alguns estudos culturais passam a ser importantes. Como um terceiro ponto podemos pensar na perspectiva de introduzir as crianças ao mundo do conhecimento, ou seja, a entrada da criança na escola. A escola é um importante meio de introduzir as crianças em outras culturas, à socialização, mas também cumpre o papel de dar acesso aos conhecimentos. Vale um ponto de observação para o fato daescola começar atendendo apenas os meninos, as meninas passam a ter acesso a este espaço apenas a partir do século XVIII. O modelo de escola adotado acaba também contribuindo na construção de novos significados para a infância. Apresentando as crianças –as pesquisas na educação infantil Para além dos estudos pedagógicos sobre educação, contribuições da psicologia, sociologia, outras áreas ajudaram a chegar nas concepções que temos hoje sobre criança e infância. Autores como Walter Benjamin (2004; 2013) trazem grandes contribuições, mostrando muitas vezes a perspectiva e olhar a partir da infância, ou da memória que temos da nossa infância. No livro “Rua de mão única — Infância berlinense: 1900” onde Benjamin (2013)traz uma série de fragmentos que narram a experiência de sua infância serviram e servem para mostrar como a infância era organizada na perspectiva da criança. Benjamin (2013) se apresenta como uma criança da burguesia na Berlim do início do século XX que mantem uma relação com objetos e situações que marcaram 333 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez suas lembranças. Suas descrições tratam de cenas e lugares, outras são relatos de sonhos e reflexões detalhados de como era sua vida. Relatos, como os de Benjamin (2013), serviram tambémpara mostrar a importância de objetos e situações na representatividade e construção da personalidade de uma pessoa. O que se observa nos relatos de Benjamin (2013),é que não são apenas descrições ou relatos, são momentos de interação, do que hoje entendemos como construção de cultura para a criança(Kuhlmann JR, 1998). Há, sem dúvidas, sentimentos envolvidos. “Do mesmo modo que, a partir da casa que habita e do bairro onde mora,criamos uma imagem da natureza e da personalidade de alguém, assimtambém eu fazia em relação aos animais do Jardim Zoológico. Desde osavestruzes, formando alas sobre um fundo de esfinges e pirâmides, até o hipopótamo, que ocupava o seu pagode como um mágico prestes a encarnarno deus demoníaco a quem serve, não havia praticamente animal cuja habitação eu não adorasse ou tem esse. Mais raros eram aqueles que tinhamalgo de especial já na localização dos seus abrigos. Eram quase semprehabitantes da zona periférica do Jardim Zoológico, onde este confinava comos cafés e o recinto de exposições. De todos os habitantes dessas zonas, omais especial era sem dúvida a lontra” (Benjamin, 2013, 84). Considerando os avanços na concepção de infância entendemos que a brincadeira tem um papel muito importante, pois os teóricos passaram a considerar a atividade de brincar como algo que tem significação para a construção do entendimento de infância. “Brincar não é uma dinâmica interna do indivíduo, mas uma atividade dotada de significação social que, como outras, necessita de aprendizagem” (Brougère, 1995, 20). A educação infantil passa a trabalhar com o propósito de desmistificar a ideia de que o brinquedo é próprio da infância e passa a associar a cultura humana em geral. Vale destacar que a criança pequena é iniciada na brincadeira por pessoas que cuidam ou estão próximas a ela. Para Brougère (1995) a criança entra progressivamente na brincadeira do adulto, de quem ela é inicialmente o brinquedo, o espectador ativo e depois o real parceiro. “Hoje, a imagem de infância é enriquecida, também, com o auxílio de concepções psicológicas e pedagógicas, que reconhecem o papel do 334 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez brinquedo, da brincadeira, como fator que contribui para o desenvolvimento e para a construção do conhecimento infantil” (Kishimoto, 1997, 111). As pesquisas na educação infantil definem e explicam a diferença de jogo, brinquedo e brincadeira. Segundo Kishimoto (2011)a definição de jogo não é tarefa fácil, já que cada pessoa entende do seu jeito, quebra cabeça ou jogos políticos, cada um entende da sua maneira. O jogo para Kishimoto (2011, 1997) pode ser entendido como: 1. Sistema linguístico dentro de um sistema social; 2. Sistemas de regras; 3. Objeto. No primeiro caso, o jogo depende de um contexto social e da linguagem, considerando que o jogo tem valor dentro de um contexto, significa assumir a ideia e aplicar as experiências que surgem na sociedade, desse modo o jogo tem a função que a sociedade lhe atribui (Kishimoto,2011). No segundo caso, o jogo assume uma estrutura sequencial, que expõe sua modalidade, por exemplo, jogo de dama, que tem regras diferentes do jogo de xadrez, essas estruturas sequenciais diferenciam o jogo, quando se joga executamos as regras ao mesmo tempo em que se desenvolve uma atividade lúdica. Segundo Huizinga (1996), “é no jogo e pelo jogo que uma civilização se desenvolve”, nessa perspectiva fica entendido que o jogo e a brincadeira estão na essência do ser humano ajudando em nossa construção, o brincar torna-nos mais humanos na medida em que nos ajuda a nos relacionar com imprevistos. Brincadeiras e jogos, são para crianças, mesmo na escola, uma forma de entender e utilizar regras. Jogos são práticas muito empregadas no processo de ensino aprendizagem de matemática, por exemplo,onde é possível se apropriarde diferentes conteúdos, para além dos próprios conceitos matemáticos. Para Kishimoto (1996) é importante considerar a vivencia da criança para e como o jogo. “... enquanto fato social, o jogo assume a imagem, o sentido que cada sociedade lhe atribui. É este o aspecto que nos mostra por que, dependendo do lugar e da época, os jogos assumem significações distintas.”(Kishimoto, 1996, 14) 335 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez Reconhecer e utilizar as regras são habilidades que precisam ser praticadas pelas crianças para que possam estar em diferentes grupos considerando as especificidades políticas e culturais. São, na verdade, um meio de despertar aspectos morais, sociais e emocionais fundamentais na formação do do conviver humano. Para além de um jogo, a possibilidade de se relacionar em grupo, permite a criança ser estimulada para o uso do raciocínio logico, cooperação em equipe, obediência as regras, senso de responsabilidade, justiça e respeito mútuo, sendo assim, ele irá aprender a ouvir a opinião do próximo e não terá medo de expor a suas próprias ideias e concepções. Brougère (1995) tem a intenção de desmistificar a ideia de que o brinquedo é próprio da infância e passa a associar a cultura humana em geral, sendo que o “brincar não é uma dinâmica interna do indivíduo, mas uma atividade dotada de significação social que, como outras, necessita de aprendizagem” (Brougère, 1995, 20). O objeto brinquedo acaba ganhando significado conforme a sua utilização. As crianças costumam, a partir de sua imaginação, usar objetos (como brinquedos), e nessa ação projetam uma experiencia que sempre é dotada de significado. Um carrinho pode voar nas mãos de uma criança e esse voar pode levar a outras concepções e ideias. Uma mesma atividade pode ser jogo ou não, se observarmos que para muitos, por exemplo, uma criança em aldeia indígena, atirando com arco e flecha, pode estar se divertindo e brincando, ou seja, é um jogo. Já na perspectiva da comunidade indígena, a criança está se preparando para caçar animais. Assim, é muito complexo definir o jogo, pois depende do ponto de vista de quem o observa, uma mesma conduta pode gerar diferentes formas de interpretação, uma questão cultural. O jogo, como aquisição de conhecimento, é reconhecido por autores como Vygotsky e Piaget (Kishimoto, 1997) como algo que o homem, como ser que se constrói coletivamente na interação com o outro, cujo capacidade de raciocínio, está diretamente ligado a sonhar, imaginar e jogar. Nesta concepção o jogo é visto, como produtor de conhecimento. Segundo Brougére (1995), no jogo lidamos com uma noção aberta, as características do jogo, afirma atitudes que são próprias das crianças, auxilia nos grupos sociais, contém tempos e espaços, além de possuir regras, é também uma atividade livre que proporciona leveza, alegria e entretenimento, porém favorece o desenvolvimento físico, cognitivo, social e moral. 336 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez Para a criança é essencial o ato de brincar, e na escola, teoricamente se torna uma ferramenta importante, pelo fato da criança estar intimamente interessada nas brincadeiras, o que contribui para que o aprendizado ocorra já que a criança está tranquila e feliz para receber novas informações. É na escola que a brincadeira pode vir a se apresentar de modo diferente, a criança, por exemplo, tem envolvimento diferente no recreio e nas aulas na educação física. Geralmente as crianças tendem a brincar de diversas maneiras que vão se modificando em função da faixa etária e do número de parceiros(Kishimoto,1998), existem as brincadeiras de faz de conta, por exemplo, que permitem que as crianças entrem no mundo da imaginação e propicie que as crianças aceitem as perspectivas do outro representando e criando novas situações, como por exemplo, brincar de escolinha ou de imitar a mãe, fazendo comidinha. São nestas atividades que ocorrem as interpretações que a criança faz sobre seu meio social e, efetivamente pode gerar ampliações com reflexão sobre sua própria realidade. Para Wallon (1979) a compreensão sobre a cultura infantil é um tipo de simulação de situações cotidianas que vai do outro a si mesmo, como uma fusão das ideias na qual explicam algumas oposições, na brincadeira de faz de contas, por exemplo, basta um pequeno estímulo, que faz com que a criança se transporte para um mundo cheio de criatividade, expressando o que a criança tem dentro de si. Para Kishimoto (2010), a opção pelo brincar desde o início da educação infantil, é o que garante a cidadania da criança, portanto surge a importância de ser incorporado no aprendizado delas e implica determinar o que se pensa da criança, na infância por meio de brincadeiras, É através dessa atividade que a criança consegue satisfazer seus interesses, refletindo assim sua realidade. “Em um ambiente de bem estar, o relaxamento e a tranquilidade, favorecem a exploração, levam a criança a observar, os que brincam, escolher o que quer fazer, ou como quer fazer e com quem brincar, aprende sem medos sem pressões ou punições, a diferenciar o mundo das pessoas e dos objetos” (Kishimoto, 2010, p.10). Muitas das brincadeiras utilizadas pelas crianças são usadas nas culturas indígenas como preparação para pesca e caça como, arco e flecha, anzol e vara. Enfim, 337 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez cada contexto social constrói a sua própria imagem de jogo conforme seus modos de vida e seus valores que se expressão por meio da linguagem. Segundo Kishimoto (2011) existem quatro tipos de jogos e brincadeiras, o primeiro são os jogos educativos que são materializados nos jogos de tabuleiro que exige do aluno a compreensão do número e das operações matemáticas e do quebracabeça, que se destina no ensino das formas, esses e muitos outros ajudam no processo de ensino-aprendizagem da matemática. O segundo são os jogos tradicionais infantis, que são aqueles considerados como parte da cultura popular, como por exemplo, pião, amarelinha e entre outros, cujos criadores são anônimos, mas como foram passados de geração em geração, continuam na memória infantil. O terceiro são os jogos de faz-de-conta, sendo estes, simbólicos, quando a criança participa desse tipo de brincadeira ela estará aprendendo a criar símbolos, por isso essa situação imaginaria é de grande importância na hora de garantir a racionalidade do ser humano. O quarto e último são os jogos de construção, com ele se estimula a imaginação e o desenvolvimento afetivo e intelectual, além de enriquecer a experiência sensorial, o estimulo a criatividade e a desenvolver habilidades por meio de construção e transformação do desmontar. Dentro da ideia das interações das crianças com jogos, brinquedos e brincadeiras, precisamos definir o brinquedo. De acordo com a autora Kishimoto (1996) o brinquedo é representado como um “objeto suporte da brincadeira”, ou seja, com um único brinquedo a criança pode criar várias brincadeiras, além disso, o brinquedo tem uma relação intima com a criança e não possui regras quanto ao seu uso, representando certas realidades, colocado a criança na presença de reproduções de tudo que acontece no cotidiano, na natureza e nas construções humanas. Assim, Kishimoto ressalta: “O brinquedo estimula a representação, a expressão de imagens que evocam aspectos da realidade. Ao contrário, jogos, como xadrez e jogos de construção, exigem, de modo explícito ou implícito, o desempenho de certas habilidades definidas por uma estrutura preexistente no próprio objeto e suas regras.” (Kishimoto, 1996, 15). 338 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez A BNCC (2017) também fala de experimentações, ou seja, da criança ter a possibilidade de experimentar novas sensações, descobertas e aprende a partir de medos e ansiedades. Destaca que o trabalho pedagógico na educação infantil está concentrado no brincar e que é o professor que vai atuar articulando conhecimentos. O momento de brincar é também uma forma de linguagem. O papel do adulto de conduz a brincadeira, no caso da escola de educação infantil, o professor ou professora é o de oferecer espaços específicos e recursos próprios para a promoção desse desenvolvimento individual e coletivo. “Brincar cotidianamente de diversas formas” em diferentes espaços e tempos com diferentes parceiros, crianças adultos, ampliam do e diversificando seu acesso a produções culturais, seus conhecimentos, sua imaginação, suas criatividades, suas experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas, cognitivas, sócias e relacionais. (BNCC, 2017, p. 36) A representatividade de Kiriku Temos uma representatividade do personagem Kiriku na questão racial sem dúvida nenhuma, mas este não é o tema central da discussão desse texto. Aqui queremos pensar para além da potencialidade racial que o menino representa, a ideia é expor as possibilidades que personagens, como Kiriku têm, na construção da cultura da infância. E, em especial Kiriku, apresenta uma gama de relações políticas e culturais que são importantes na infância de todas as crianças. Entendemos cultura aqui,considerando os filmes em que Kiriku é personagem, seguindo um conceito semiótico de cultura, entendida como um sistema de interação de signos interpretáveis (Geertz, 2003). A cultura não é algo que se atribui de maneira casual, como acontecimentos sociais, modos de conduta, instituições ou processos sociais, segundo Geertz (2003) a cultura é um contexto dentro do qual se pode descrever todos esses fenômenos de maneira inteligível. Nos filmes protagonizados pelo Kiriku temos uma criança que exerce protagonismo, expressa desejos, dialoga com adultos, com outras crianças e até com animais. Isso significa que Kiriku tem a ideia do diálogo, contudo imbuída de uma concepção cultural que considera toda a sua comunidade. Não é um signo interpretável (Geertz, 1989) é uma prática que está incorporada no dia a dia da criança. 339 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez Considerando a prática etnográfica de Geertz (1989) para reconhecer e ter acesso ao mundo conceitual que vivemos.Quando se fala em cultura, não se pode fazer uma série de observações e incluir dentro de um único domínio, uma ideia, ou uma lei. Quando se pensa em estudar cultura os atos simbólicos representam o discurso social. No caso do menino Kiriku, principalmente nos dois últimos filmes, temos os relatos do avô, que mostra toda a dinâmica de interações sociais que o menino realiza. Assim, segundo Geertz (1989) não se pode fazer generalizações sobre o homem como homem, mas entender os homens como capazes de chegar a ser e o que realmente chegam a ser um por um. Ao observar Kiriku, temos indivíduos guiados por esquemas culturais, por sistemas de significaçõeshistoricamente criados em virtude dos quaisformam formamos, ordenamos, sustentamos e, que com estes dirigem a vida na aldeia. Os filmes trazem uma organização social que, neste caso, coloca o menino como um agente, que baseada na sua cultura, organiza ações e representa a possibilidade de reordenar a cultura. Mesmo que em muitos momentos a ideia da brincadeira está presente nas ações do menino Kiriku, suas ações têm reflexo e estão organizadas nos interesses da aldeia. “Um dos modos maisúteis- mas desde logo não o único de distinguir entre cultura e sistema social, é considerar a primeira como um sistema ordenado de significados e de símbolos em termos cujo lugar é a integração social, e considerar o sistema social como o meio de estruturar a interação social por ela mesma (…). Cultura é o padrão de significados atendendo a todos os seres humanos, interpretando suaexperiência e orientando suaação; a estrutura social é a forma que toma essaação, a rede existente de relações humanas” (Geertz, 1989, 133). A questão do brincar no filme Kiriku é algo extremamente relevante. Considerando que é um exercício humano, a criança que brinca interpreta suas próprias imaginações, imitações e memórias (Vygotsky, 2007; Benjamin, 2004). No filme, algumas ações que se parecem com brincadeiras, poisas mesmas contêm o controle da linguagem simbólica, representam a cultura ao qual o menino faz parte. No Brasil a questão do brincar é tema dos documentos do MEC – Ministério da Educação (Brasil, 2007), principalmente quando trata do ensino fundamental de nove 340 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez anos. Houve um movimento de entendimento sobre a infância por conta da inclusão da criança de seis anos de idade como obrigatório no ensino fundamental I. Considerando as pesquisas sobre infância no Brasil (Kramer, 2003), onde observamos o reconhecimento que da criança como produtora de cultura,houve uma evoluçãocom relação ao entendimento da importância das brincadeiras, como uma atividade própria da criança, cheia de sentido para ela, através da qual ela consegue desenvolver suas capacidades de adaptação e da interação, conquistando assim sua liberdade. O que se comunica com o brincar é complexo, retrata um discurso organizado com lógica e características próprias, o qual permite que as crianças transponham espaços e tempos e transitem entre os planos da imaginação e da fantasia explorando suas contradições e possibilidades (Brasil, 2007). Esse exercício acontece a todo momento no filme Kiriku, principalmente quando ele interage com animais ou encontra soluções não esperadas pelos adultos. O brincar é entendido como umaimportante ação para o processo para a criança produzir novos valores, e também incluivárias experiências, a memória e a imaginação, entre a realidade e a fantasia (Brasil, 2007). Quando uma criança brinca de cuidar de uma boneca, por exemplo, está ao mesmo tempo se preparando para cuidar do outro, por isso a brincadeira não se restringe a um gênero. No filme, Kiriku não se distancia de ninguém, sabe a importância do cuidado, e tem na experiencia, principalmente com sua mãe, que é a responsável por contar a Kirikou, logo após sua chegada ao mundo, o que havia acontecido com os homens da aldeia e a feiticeira. Podemos considerar, que nessa situação, existiu um processo de transmissão da cultura pela oralidade, um exemplo, entendemos a presença da prática de jogo simbólico (Geertz, 1989). Kiriku é conduzido a refazer seus próprios personagens, ou seja, aprender certas coisas através do distanciamento que toma em certas situações, e posicionamentos que assume mediante decisões que tem que tomar. É quando Kirikuaprende sobre o mundo, no brincar a criança retrata aquilo que quer entender e conhecer (Brasil, 2007). Considerando que é na infância que o ser humano está se constituindo culturalmente, a brincadeira assume importância fundamental como forma de participação social e como atividade que possibilita a apropriação, a ressignificação 341 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez e a reelaboração da cultura pelas crianças (Brasil, 2007). No filme Kiriku podemos observar diferentes momentos onde o menino usa de estratégias da infância para resolver problemas na aldeia. São estratégias específicas que podemos considerar como atividades lúdicas relacionadas a jogos. Por exemplo, na cena em que Kiriku descobre o que causa falta de água na aldeia, temos o uso de estratégias de jogo (Kishimoto, 1997). É como se Kiriku, desde que entendeu a forma de pensar da feiticeira Karabá, passasse a resolver as situações problemas baseado em contexto. Uma outra situação que serve como exemplo para mostrar que Kiriku está envolto no universo da brincadeira, é quando a feiticeira monta uma armadilha para as crianças, que estão brincando no rio, quando um barco falso se aproxima e sabiamente Kiriku percebe a armadilha e salvas todas as crianças da aldeia. As duas ações podem ser interpretadas como ações relacionadas a jogos, ações muito importantes relacionadas a infância e a construção da cultura. Percebe se que Kiriku vive e realiza as ações descritas como se estivesse brincando, podemos identificar essa ação porque durante as ações ele tem o poder de tomar decisões, expressar sentimentos e valores conhecendo a si mesmo e os outros. São atitudes de crianças quando estão imersas em jogos, com brinquedos e em brincadeiras. Kiriku, nos filmes, tem a oportunidade de descobrir o mundo, além de praticar o que lhe dá prazer, expressando e partilhando sua individualidade, e se formando como pessoa de identidade própria, por meio de diferentes modos de agir. O lúdico pode ser observado em vários momentos do filme porque Kiriku realiza as atividades se divertindo. Sempre quando termina uma ação o menino age com naturalidade. O elemento lúdico, que compõe os jogos, brinquedos e brincadeirasé um potente recurso na educação. O filme mostra um menino imerso em suas atividades e ações que se relacionam com as grandes atividades humanas. Nesse momento observamos que Kiriku, assim como acontece com as crianças, passam a se enxergar como um ser social. Isso é observado quando ele procura seu avô e entende questões que corresponde a necessidades especificas do mundo dos adultos. Outra situação interessante que remete às brincadeiras é o fato da feiticeira ter, como servos, um grupo que pode ser descrito como robôs. Nesse caso os robôs fazem parte do imaginário de algumas culturas, ou seja, tem uma forte relação com identidades 342 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez culturais e grupos sociais específicos, essa ação no filme remete a brinquedos e suas funções específicas. O significado do “robô” passa a ser conhecido em outras culturas. Sem característicasculturais universais, mas que ao se apresentar, permitem que outras culturas conheçam a perspectiva. Situações como a do robô no filme, no universo infantil, servem para que elas conheçam outras situações e concepções em um universo diferente das situações e concepções presentes na sua cultura (Benjamin, 2004, Brougère, 1995). Essas relações também são importantes para a construção da moralidade da criança. A conversa de Kiriku com o sábio avô demonstra a importância de se buscar o conhecimento por meio do questionamento e do diálogo. Ao final da conversa o pequeno menino reuniu elementos suficientes para saber que a força de pessoas como a malvada feiticeira está exatamente no desconhecimento das outras, no comodismo e na desunião. Conclusões sobre a representatividade de Kiriku Kiriku representa as crianças de forma multicultural, principalmente quando pensamos na criança do mundo, a criança representada e defendida pela UNESCO (Organização das Nações Unidas, 1989). Kiriku é também um menino muito brasileiro, foi usado nessa reflexão porque esteve muito presente nas escolas, muitas vezes, nas discussões sobre racismo, no entanto tem a potencialidade de mostrar o protagonismo que as crianças pequenas e bem pequenas têm na formação e consolidação da sua cultura considerando temas diversificados. Considerando as questões brasileiras, Florestan (1979) analisa o processo de formação da cultura infantil a partir da forma de organização das crianças, em momentosde brincadeiras. Florestan (1979)estudou as crianças de um bairro específico da cidade de São Paulo. E descreveu especificidades dogrupo compostos por meninos ou meninas, com especificações culturais. Florestan (1979) observou que a formação destes grupos se dão a partir do desejo de brincar das crianças, tendo como ponto inicial de formação a vizinhança, onde não há uma divisão de gênero nos grupos de crianças pequenas, por exemplo. 343 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez “até o fim da primeira infância e às vezes também durante parte da segunda infância, não se verificam círculos fechados entre as crianças do grupo infantil, participando dos folguedos tanto os meninos como as meninas” (Florestan, 1979, p. 237). A questão do brincar está entendida em Kiriku que experimenta diferentes estratégias para resolução de problemas, como se estivesse brincando. No filme, como protagonista, reproduz as manifestações e representações do mundo dos adultos, e consegue elaborar e produzir culturas a partir dessas relações. Considerando especificações brasileiras podemos citar outro personagem de filme. O menino protagonista do longa “O menino e o mundo” (2014) – que vamos chamar aqui de Menino, pois no longa os personagens ocupam lugares (pai, mãe, menino, pássaro, etc) e não tem nomes. Este texto poderia ter sido produzido baseado na analise do filme, no entanto, decidimos pelo longa Kiriku por ter tido apelo mundial. No entanto, tanto Kiriku quando o Menino, mostram a importância do brincar na construção da cultura infantil. O poder da socialização de atividades realizadas com iguais, em uma oportunidade de organizar e criar um regulamento interno. Os dois meninos mostram que se aprende e se ensina na solidariedade, respeito às regras, àhierarquia e àinteração com os demais (Fernandez, 1979). Por fim, ressaltamos que existe uma cultura infantil caracterizada por sua natureza e interface lúdica. Ainda cabe destacar que as produções, manifestações e regras criadas nos grupos de crianças pequenas e bem pequenas são cultura infantil e que devem ter seu espaço de produção garantido na escola. Recomendamos fortemente que filmes com Kiriku e o Menino e mundo sejam visto por adultos e que estes passem a olhar as crianças bem pequenas e pequenas como cidadãos de direitos. 344 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez Videografia Kirikou et la sorcière. Animação Direção: Michel Ocelot, Roteiro Michel Ocelot (1h 10min), 1999. Kirikou et lesbêtessauvages. Animação Direção: Michel Ocelot, Roteiro Michel Ocelot (1h 10min), 2005. Kirikou et leshommes et lesfemmes. Animação Direção: Michel Ocelot, Roteiro Michel Ocelot (1h 10min), 2012. O Menino e o mundo. Animação. Direção: Alê Abreu. Roteiro Alê Abreu (1h 25min), 2014. Referências ARIÉS, P. História Social da Criança e da Família. 2. Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. BRASIL, MEC. LDB – Lei de diretrizes e bases da educação. Brasília: 1996. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade / organização JeaneteBeauchamp, Sandra Denise Pagel, Aricélia Ribeiro do Nascimento. – Brasília: MEC/SEB, 2007. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. BNCC – Base Nacional Comum Curricular. – Brasília: MEC/SEB, 2017. BENJAMIN, W. Rua de mão única — Infância berlinense: 1900. São Paulo: Autêntica, 2013. BENJAMIN, W. Reflexões; a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: ed. 34, 2004. BROUGÈRE, G. Brinquedo e cultura. São Paulo Cortez, 1995. FERNANDES, F. As trocinhas do Bom Retiro. In: ______. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. Petrópolis:Vozes, 1979. 345 cinema na educação infantil Karla Isabel de Souza e Rogério Garcia Fernandez GEERTZ, C. A interpretação das culturas. São Paulo: Guanabara Koogan, 1989. HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1996. KRAMER, S. A Política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. 7ª Ed. São Paulo: 2003. KUHLMANN JR, M. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998. FARIA, A. L. G.Carta a Mario de Andrade-80 anos dos Parques Infantis. Revista Magistério, Edição Especial, Prefeitura Municipal de São Paulo: n.2, p.6-9, 2015. KISHIMOTO, T. M.Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. Ed Cortez, 14ª edição, São Paulo: 2011. KISHIMOTO, T. M. Jogos infantis: o jogo, a criança e a educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. UNESCO. Organização das Nações Unidas, Convenção dos direitos da Criança, 1989. WALLON, H. As origens do pensamento na criança. São Paulo: Manole, 1989. VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 346 O Povo negro sob a ótica de intelectuais brasileiros – O reconhecimento da (des)armonia Laudicéia Fagundes Teixeira1 Fábio Santos de Andrade2 Reginaldo Santos Pereira3 No cenário histórico brasileiro o racismo vincula-se, principalmente, ao fim do período de escravização dos africanos e afrobrasileiros, estruturando-se no século XX com fundamentos nas teses de inferioridade dos negros em relação aos brancos e necessidade de branqueamento populacional. Buscando respaldo no darwinismo social ou teorias das raças, o racismo científico foi concebido como doutrina universal e racional, e afirmação que biologicamente 1 Mestra em Educação pela Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT). Professora no curso de Bacharelado em Direito da Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), campus de Pontes e Lacerda - MT. 2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Pós-doutor em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Professor Associado da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), atuando no Departamento Acadêmico de Ciências da Educação (DACED/ Vilhena) e no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Mestrado e Doutorado Profissional (PPGEEProf). 3 Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Professor Adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), atuando no Departamento de Ciências Humanas, Educação e Linguagem (DCHEL) e no Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Educação (PPGED) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista - BA. 347 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira havia hierarquias entre as raças humanas. Nesse sentido, promovia uma “raça” como desenvolvida e com aptidão para governar as demais. Tais linhas viam a miscigenação como algo negativo, pois era impossível que os caracteres fossem transmitidos de maneira satisfatória. Sendo assim, a mestiçagem além de ser tratada como um erro era uma forma de degeneração. Já a tese de branqueamento, que vigorou até a década de 1930, possuía maior adesão à mestiçagem, uma vez que seus seguidores acreditavam que naturalmente a mistura racial levaria à eliminação de caracteres das raças “inferiores”, (Barbosa, 2016, p. 264). Nesse contexto, a miscigenação começa a ganhar espaço positivo no cenário brasileiro. Tal fato consolidou o racismo no ideário de civilização por meio da mestiçagem que se tornou um projeto político e social para o reconhecimento do Brasil como Estado Nação. Para Vieira (2016, p. 68), A miscigenação é o resultado do violento intercurso sexual entre colonizadores e as populações autóctones e africanas para cá trazidas, ambas sob o jugo da escravização. Esta dimensão jamais pode ser confundida com a mestiçagem responsável pela hierárquica construção de valores nacionais, que supostamente equiparava contribuições de imigrantes europeus, etnias africanas e indígenas. Fazer com que ambos os conceitos se interpretassem foi a estratégia utilizada para a consecução de uma suposta democracia batizada de racial, no interior da qual estariam estabelecidos padrões supostamente horizontais de reconhecimento, prestígio e igualdade entre imigrantes, africanos e indígenas. Nesse sentido, Ribeiro (1995) ao descrever os brasilíndios ou mamelucos paulistas que possuíam pais brancos, de maioria lusitanos, com mães indígenas, foram vítimas de duas rejeições: a primeira pelos pais, que não os reconheciam como filhos, pois se tratavam de impuros filhos da terra; e a segunda se dava pelo gentio materno, em que os indígenas entendiam que a mulher era uma espécie de saco depositário de sementes e, portanto, os filhos pertenceriam ao homem. Nesse sentido, cria-se a concepção de ninguendade, que significa filhos de ninguém. O autor entende a miscigenação como algo aceitável, uma vez que não havia proibição legal ou religiosa. 348 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira Nós, brasileiros, somos um povo em ser impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade. (Ribeiro, 1995, p.446). Entre o final do século XIX e início do XX o eixo de debate nacional se constituiu na pluralidade racial oriunda do processo de colonização do Brasil. Tal situação seria para a elite à época um entrave para a construção de uma nação que coubesse nos moldes europeus, ou seja, branca. Nesse sentido, as diferenças de pensamentos entre os intelectuais à época foram deixadas de lado em busca da criação de uma identidade étnica para o País. A questão fundante da união era saber como transformar a pluralidade de raças e mesclas, existentes entre culturas e valores tão distintos em uma coletividade, uma nação e um só povo (Munanga, 2019, p. 50-51). Nessa trilha reflexiva destacaram intelectuais como Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Alberto Torres, Manuel Bonfim, João Batista Lacerda, Edgar Roquete Pinto e Oliveira Vianna. A principal questão de Silvio Romero (2001) era saber se a população brasileira, considerando negros, brancos e indígenas, seria capaz de fornecer uma feição própria, e que nesse processo nasceria um povo tipicamente brasileiro, resultado da mestiçagem com processo de uma formação ainda em curso. No entanto, o processo resultaria na dissolução da diversidade racial e cultural, consequentemente teríamos uma sociedade brasileira homogênea. Além de que, no processo de mestiçagem, a dissolução dos caracteres não brancos culminaria no seu desaparecimento e a predominância biológica e cultural da raça branca. Nina Rodrigues (1957), por sua vez, discorda da tese lançada por Romero e defende que os produtos da mestiçagem das raças são degradados. O intelectual cita como causas de degradação das raças quatro fatores: a) defeitos dos colonizadores portugueses, que considerou como povo atrasado e arredio da civilização; b) insucesso na catequização; c) clima, e; d) riqueza do solo. Nina entendia que a responsabilidade moral e penal deveria ser aplicada de forma diferenciada a depender da raça, chegando a propor a criação de dois códigos penais. O pensamento de Rodrigues, hoje considerado racista, deve ser entendido em seu tempo e espaço histórico. Dessa forma, a contribuição de Nina 349 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira Rodrigues para o projeto de identidade nacional foi no campo da institucionalização e a legislação da diferença. Podemos dizer que Euclides da Cunha (1902) acreditava na existência de vários tipos étnicos em consequência da heterogeneidade racial, dos cruzamentos, do território e situações históricas. Euclides da Cunha compreende o mestiço como (quase) sempre desequilibrado, decaído, um produto desprovido das características “boas” das raças cruzadas, sendo a energia física dos selvagens e a atitude intelectual dos superiores. Como seguia a tese de que a seleção natural conservaria os mais aptos hereditariamente, o mestiço se construiria como um intruso. Para ele, o Brasil não poderia ser considerado como um povo ou nação, descrevendo a miscigenação como um desequilíbrio e, portanto, o maior problema enfrentado pelo país. Entre os anos 1870 a 1930 para os intelectuais à época, o país não tinha jeito de ser civilizado dentro do padrão europeu, os autores Nina Rodrigues, Manoel Bonfim e Silvio Romero contribuíram para o desenvolvimento da ideia de sub-raça mestiça brasileira. A predominância de negros, indígenas e mestiços na população brasileira era responsável pela condição de subdesenvolvimento econômico, então foram pensadas várias políticas racialistas para o alcance da nação como civilizada. Conhecida como a geração de 1930, os intelectuais Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior e Gilberto Freyre, percorreram o caminho de compreender a formação da sociedade brasileira, iniciando as pesquisas pelas transformações sociais causadas pela compreensão da influência da escravidão e o advento da abolição, os indígenas e negros na civilização e colonização do Brasil. Esse momento também pode ser descrito como o primeiro momento da sociologia no território brasileiro como atividade autônoma. Sergio Buarque de Holanda escreveu Raízes do Brasil em 1936, nessa obra o autor se concentra entre o choque da tradição e modernidade na sociedade brasileira, e consequentemente analisa as origens sociais para explicar o atraso existente no Brasil. A grande defesa do autor é de que o brasileiro é cordial, estando atrelado a isso a dificuldade de se desvincular dos laços familiares, portanto é um homem cordial, generoso e devido a sua intimidade com ou outros, que apesar de confiar apenas após conhecer, utiliza-se do sufixo “inho” para uma infinidade de situações. A grande tese do autor para que o Brasil fosse reconhecido como civilização é por conta da cordialidade brasileira. 350 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes expressões de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças. (Holanda, 1995, p. 146-147). No ano de 1942, Caio Prado Junior, publicou o livro Formação do Brasil Contemporâneo, no capítulo nomeado Raças, (Prado Jr, 2001, p. 98) entende que para o indígena a mestiçagem constituiu o traço característico mais profundo e notável como a solução encontrada pelos colonizadores portugueses para o que chamou de problema indígena. O intelectual entende que a contribuição da população negra é mais significativa do que a indígena. No entanto, apesar do grande número de negros introduzidos no território nacional, o número de mulheres trazidas era pequeno e os homens eram vistos como úteis para o trabalho o que contava como desfavorável para a contribuição da população negra na mestiçagem. (Prado Jr, 2001, p. 106). Ainda, segundo o autor, a imposição da escravidão aos negros nunca foi por eles contestada. Gilberto Freyre pode ser considerado como o intelectual que teve mais êxito em sua tese. Ao retomar a temática racial considerada como parte fundamental para a compreensão do Brasil e a construção da identidade nacional, Freyre (2003) desloca o conceito de raça para o de cultura. Desse modo, houve a possibilidade de distanciamento de raça enquanto fator biológico para o cultural. O doutorado de Freyre foi nos Estados Unidos da América, numa época em que crescia uma abordagem em contraponto à antropologia física - a antropologia cultural. A antropologia cultural está baseada numa perspectiva de não colocar uma cultura em posição superior a outra, o relativismo cultural que parte de uma perspectiva antropológica da existência de diferentes culturas livres de etnocentrismo, ou seja, conhece-se os elementos das outras culturas e não os classifica conforme sua visão e experiência. Freyre (2003) retorna ao Brasil e tem uma “solução” para o problema da construção da identidade nacional. Ele defende a tese de que a contribuição para a civilização do país 351 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira é exatamente este Brasil cadinho, que significa um recipiente de porcelana utilizado para fundir substâncias, nesse caso, seria a fusão das características mais importantes das três raças, portanto, a mestiçagem seja no campo biológico ou cultural constitui para o Brasil uma identidade brasileira. A tese lançada por Freyre (2003) posteriormente se transformou em uma política e o Brasil passou a ser reconhecido, em âmbito nacional e internacional, como um país isento de racismo e convivência harmônica entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos. A mestiçagem, como articulada no pensamento brasileiro entre o fim do século XIX e meados do século XX, seja na sua forma biológica (miscigenação), seja na forma cultural (sincretismo cultural), desembocaria numa sociedade uniracial e unicultural. Uma tal sociedade seria construída segundo o modelo hegemônico racial e cultural branco ao qual deveriam ser assimiladas todas as outras raças e suas respectivas produções culturais. O que subentende o genocídio e o etnocídio de todas as diferenças para criar uma nova raça e uma nova civilização, ou melhor, uma verdadeira raça e uma verdadeira civilização brasileiras. (Munanga, 2019, p. 85). Em mesmo sentido, podemos citar como exemplo o sincretismo religioso, que se manifesta como se todas as culturas por meio da mestiçagem fossem adaptadas de cada grupo étnico-racial, integrando umas às outras. Segundo as imagens que o mito pretende transmitir, as religiões africanas, ao se encontrarem no Brasil com a religião católica, ter-se-iam amalgamado ou se fundido naturalmente, intercambiando influências de igual para igual, num clima de fraterna compreensão recíproca. [...] o sincretismo católicoafricano decorre da necessidade que o africano e seu descendente tiveram de proteger suas crenças religiosas contra as investidas destruidoras da sociedade dominante. (Nascimento, 2016, p. 133). O que se pode perceber é que o racismo e a centralização do poder ou dominância de uma cultura – a europeia – permanecem, só que com roupagens diferentes. Dissemina-se a ideia de que os negros e os indígenas tiveram suas culturas 352 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira incorporadas e ao mesmo tempo incorporaram a cultura do branco, contudo, no trecho em que fala que a mulher indígena recém-batizada, carrega a ideia de superioridade da religião católica desvalorizando a crença da indígena em outras religiões ou até mesmo a não crença, e por fim, esposa e mãe de família, passa pelo processo do patriarcado, enquanto seus conhecimentos indígenas apenas são utilizados para a servidão, seja da economia ou da vida doméstica. A ideia apresentada refere-se à herança de Portugal – a estrutura patriarcal familiar, no entanto, o que se escapa às linhas do autor é o reflexo do legado pago pelas mulheres negras e indígenas. Conforme escrito por Caio Prado Jr. (2000), uma das desvantagens na contribuição da população negra para o Brasil foi o número pequeno de mulheres trazidas para o território, o que demonstra por si só o desequilíbrio demográfico entre os sexos durante o período da escravidão, o que chegava a proporção de uma mulher para cinco homens, sendo que os senhores de escravos possuíam monopólio sexual das poucas mulheres existentes, assim, as escravas negras seriam vítimas fáceis, vulneráveis a qualquer agressão sexual do senhor branco, sendo transformadas em prostitutas como meio de sobrevivência e impedidas de possuir qualquer estrutura familiar. (Nascimento, 2016, p. 73; Munanga, 2019, p.86). Se comparado ao trecho de Ribeiro (1995), ilumina a ideia de ninguendade em que a mulher indígena é tratada como um elemento transformado em saco depositário das sementes dos homens e que portanto, seu papel social e no processo de miscigenação se dá pela procriação desses filhos que a rejeita e são rejeitados e utilizados como mão-deobra pelos pais, trazendo para a teoria formulada por Freyre (2003), podemos perceber que o discurso em torno dessa mulher permanece com as mesmas formas: depósitos de sementes, agora batizada, que passa a gerar filhos - não mais rejeitados, mas produtos de transformação social – e que ela (mulher indígena) serve para a sociedade no campo econômico e vida doméstica com seus utensílios e experiencias de indígenas. Nesse contexto, Freyre (2003) entende a raça, como expressão da cultura do país, que foi formada pela união das três raças. A “genialidade” do autor está exatamente na retirada do conceito de raça do campo biológico e o situado no campo da cultura. Tal movimento propiciou a construção da tese, permitindo por exemplo que fosse amplamente divulgado que o país se constituiu como modelo de democracia racial, sendo o que melhor lidava com a integração de todas as raças e sendo elas contempladas 353 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira pelo campo social e jurídico de igual modo, pois supostamente, todas as três raças faziam parte da fusão cultural que havia se transformado na identidade brasileira. O mito das três raças, ao se difundir na sociedade, permite aos indivíduos, das diferentes classes sociais e dos diversos grupos de cor, interpretar, dentro do padrão proposto, as relações raciais que eles próprios vivenciam. Isto coloca um problema interessante para os movimentos negros. Na medida em que a sociedade se apropria das manifestações de cor e as integra no discurso unívoco do nacional, tem-se que elas perdem sua especificidade. Tem-se insistido muito sobre a dificuldade de se definir o que é o negro no Brasil. (Ortiz, 1985 p. 43). A mestiçagem, para Freyre (2003), produziu pessoas como nós, criando uma cultura mista, plural, própria e nova para o país. E, portanto, essa seria a extraordinária contribuição à civilização humana dada pelo Brasil. A figura cultural da mestiçagem teria equacionado qualquer problema racial nesse país, o que derivou na construção da tese da democracia racial. A narrativa é homogeneizadora, ou seja, não há diferença em termos raciais e todo agente que mobiliza um argumento racial é tido como racista. A reflexão em torno do ideal de homogeneidade permite observar que havia um acordo tácito entre nossos intelectuais, políticos e elite econômica, tanto em relação à inadequação do povo para a formação da nação, devido ao seu caráter heterogêneo, quanto à forma que a nação era imaginada como sinônimo de homogeneidade racial e de harmonia política ou, melhor dizendo, de branquitude e civilização. A mudança nesta perspectiva, com a “aceitação” da diversidade e pluralidade da população existente no país, tem origem na ideia de que algo de novo estava em desenvolvimento no novo mundo. (Silvério; Trinidad, 2012, p. 900). Ribeiro (1995) ao relatar que o produto do cruzamento entre mulheres negras ou indígenas com o homem brancos desejava a identificação com o pai/branco/português, sem êxito, e de igual monta também não podia se identificar com a mãe devido à “cultura indígena” (ou por carregar as características das raças tidas como inferiores), gerava ao produto dupla rejeição identitária. Freyre (2003) ao disseminar em seu livro a teoria das três raças, compreende tal movimento, como uma busca por uma identidade 354 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira própria, única, nova, ou seja, a identidade de brasileiro. Ainda que com abordagens diferentes, ambos trabalham a mestiçagem como uma busca pela identidade. Assim, Ribeiro (2995) elucida a dupla rejeição identitária do mestiço, enquanto Freyre (2003) entende a necessidade do mestiço de buscar uma identidade própria. Ao relacionarmos os pensamentos trazidos pelos autores é possível perceber uma espécie de costura entre os autores em torno do conceito de identidade. A busca pela identidade nacional referiase à necessidade de construção do Brasil como nação civilizada, seja na identidade de autodefinição ou atribuída. As contribuições de Munanga em torno do conceito de identidade e sua função vão ao encontro do que entendemos como a pretensão da elite intelectual à época. A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc. (Munanga, 1994, p. 177-178). Considerando que as nações são constituídas de diversas culturas e apenas se unificam pelo processo violento de conquista e posterior eliminação da cultura diferente, ao se criar uma identidade nacional os intelectuais à época não conseguiram escapar da construção da identidade associada a estrutura de poder. Nesse sentido, Gomes (2005, p.41) entende que: A identidade não é algo inato. Ela se refere a um modo de ser no mundo e com os outros. É um fator importante na criação das redes de relações e de referências culturais dos grupos sociais. Indica traços culturais que se expressam através de práticas linguísticas, festivas, rituais, comportamentos alimentares e tradições populares, referências civilizatórias que marcam a condição humana. Hall (2000, p.103) contribui para o conceito de identidade ao entendê-la como uma construção das organizações políticas que precisam implantar certas ideias ao 355 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira povo. Elas funcionam por meio da exclusão, sendo uma construção discursiva de um exterior constitutivo e da produção de sujeitos marginalizados, que é construído fora do campo natural ou mesmo do representável. Assim, quando Freyre (2003) introduz a ideia de identidade brasileira, dentro do conceito de identidade e toda a estrutura da sociedade brasileira à época, tornase explícito que ao contrário do que querem fazer crer, a necessidade de criar uma identidade única, parte da classe dominante daquele período para que o Brasil fosse reconhecido como uma nação civilizada e que portanto, não há relação com a falta de identificação dos sujeitos, mas sim de uma necessidade das elites política e intelectual. É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída. (Hall, 2000, p.109). Para Munanga (2019, p. 102), os negros, mestiços e pardos aspiram à brancura para uma possível fuga das barreiras impostas à raça que consequentemente impedem a ascensão socioeconômica e política desses grupos. Assim questiona como se pode entender a criação dessa construção identitária mestiça uma vez que é necessário seguir um padrão imposto – a branquitude – e excluir as demais? Uma possível resposta para tal questionamento está no fragmento abaixo: As identidades podem funcionar, ao longo de toda a sua história, como pontos de identificação e apego apenas por causa de sua capacidade para excluir, para deixar de fora, para transformar o diferente em “exterior”, em abjeto. Toda identidade tem, à sua “margem”, um excesso, algo a mais. A unidade, a homogeneidade interna, que o termo “identidade” assume como fundacional não é uma forma natural, mas uma forma construída de fechamento: toda identidade tem necessidade daquilo que lhe “falta” – mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado e inarticulado. (Hall, 2000, p. 110). 356 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira O mito da democracia racial associada ao racismo por vezes velado e encoberto, torna distante o indivíduo da compreensão real da história, criando uma ideia equivocada de convivência harmônica entre as raças. O que ocorre em verdade é que ideologicamente houve as marcações dos papéis e lugares na sociedade. E quando esses espaços (quase) impenetráveis pela população negra são questionados, se invoca a desigualdade social como substituto da racial, a mestiçagem, a aparência, e por vezes culpabiliza os negros pelo próprio sistema que foram submetidos. Assim, os estereótipos podem ser considerados como instrumentos morais e ideológicos com impacto direto na reprodução da relação de poder que legitimam os papeis e posições de acordo com a ordem social (Biroli, 2011). Engendrados na identidade negra os estereótipos se ressignificam de acordo com o tempo, a política e a situação econômica. A essencialidade da identidade permanece nas estruturas da sociedade desde a sua gênese, mantendo os privilégios da população branca, sempre, portanto, o estereótipo positivo e inquestionável, o que faz com que as mudanças, quando ocorrem, sejam lentas e pequenas devido à ausência de interesse da classe dominante na mudança das posições. A construção da nação brasileira está estruturada - dentre outras coisas - a partir do mito da democracia racial. Uma parcela expressiva da sociedade brasileira compartilha a crença de ter construído uma nação diferentemente dos Estados Unidos e da África do Sul, por exemplo - não caracterizada por conflitos raciais abertos. Além disso, imagina-se que em nosso país as ascensões sociais do negro e do mulato nunca estiveram bloqueadas por princípios legais tais como os conhecidos Jim Crow e o Apartheid dos referidos países. Para os que imaginam e advogam a singularidade paradisíaca brasileira, isto significa dizer que o critério racial jamais foi relevante para definir as chances de qualquer pessoa no Brasil. (Bernardino, 2002, s/p) Apesar da política de branqueamento não ter sido exitosa como pretendido, o ideal permanece “inconscientemente” no processo de construção da identidade da pessoa negra, sendo incorporado pela população e se apresenta como desvalorização da estética negra, supervalorizando, de outro lado, a estética branca. 357 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira A supervalorização do branco em contrapartida à desvalorização do negro, faz com que as pessoas queiram de certa forma rejeitar a identidade negra e passar por um interminável processo de embranquecer, esse processo por vezes é marcado por contradições e opressões externas, mas principalmente internas, que acaba por impor a negação de si próprio e suas características fenotípicas. [...] a branquitude faz da brancura uma imagem fetiche. O ciclo de violência se realiza com a introjeção desse ideal, que leva o sujeito negro a desejar um futuro identificatório antagônico em relação à realidade de seu corpo! Sendo o Eu antes de tudo uma representação corporal, como se constitui o projeto pessoal, o vir-a-ser de um sujeito que tem na realidade e na aparência do corpo os traços que visa apagar? [...] Diante do ideal branco, o corpo negro pode ser vivido como uma ferida aberta ou um objeto perseguidor. O crime perfeito se consuma justamente quando o negro busca se branquear, o que, no limite, é a negação de si mesmo. Um desejo que deságua no desejo da própria extinção. (Vannuchi, 2019, p. 67). Ainda assim, recai um olhar sobre o negro que constantemente o lembra da sua não brancura, e o fato de ser negro nunca é esquecido, sendo a primeira a ser lembrada antes de quaisquer características. Antes de tudo ele será negro, permanecendo em eterna vigilância por ser negro. Fanon no livro Pele negra, máscaras brancas, (2008, p. 2634), entende tal situação com o conceito da zona do não-ser, sendo uma região estéril e árida habitada apenas pelo negro, que foi lançado nesse espaço devido ao olhar imperial do branco. O negro não é um homem, já que não comporta as características do homem branco, tido como universal, aquele que jamais necessita anunciar sua condição racial, por ser o normal. Que quer o homem? Que quer o homem negro? Mesmo expondo-me ao ressentimento de meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem. Há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer. A maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos. [...] O problema é muito importante. Pretendemos, nada mais nada menos, liberar o homem de cor de si próprio. 358 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira Avançaremos lentamente, pois existem dois campos: o branco e o negro. [...] O negro quer ser branco. O branco está fechado na sua brancura. O negro na sua negrura. (Fanon, 2008, p. 26-27). O colonizado, por vezes, quer a estampa, o status do colonizador. Há uma espécie de subjetividade do colonizado e o ideário do colonizador. Fanon pode ser entendido em sua fala como o ato do negro de reivindicar para si a identidade de outrem – do branco, não há melhor instrumento de dominação do que o ato de transformar a narrativa do colonizador no querer do colonizado. E, portanto, para ascender à condição de ser, o sujeito da zona do não-ser buscará embranquecer, não necessariamente a epiderme, mas com máscaras brancas, seja na fala, na cultura etc. Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural – toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. [...] De um dia para o outro, os pretos tiveram de se situar diante de dois sistemas de referência. Sua metafísica ou, menos pretensiosamente, seus costumes e instâncias de referência foram abolidos porque estavam em contradição com uma civilização que não conheciam e que lhes foi imposta. (Fanon, 2008, pp. 34 - 104). Tal fenômeno é marcado pela ocidentalização, em que pessoas de determinado grupo foram construídas no signo de negros, para tanto, essa construção impôs limites, marcas e o tratou como inferior, rejeitando toda e qualquer característica portada por esse grupo, tornando assim, a construção fora dos padrões esperados para uma civilização ou grupo civilizado. Mais adiante, com o advento da modernidade construiu sua aproximação não com o entorno, mas com a ancestralidade que foi remetida para a invisibilidade. Mas ao mesmo tempo, são homens e mulheres livres e estão marcados pela ocidentalização, este grupo está sendo marcado por estar em um lugar em que supostamente ele é, mas a construção da sua humanidade não é, então ele é sem ser, ele está fora e não dentro da sociedade. (Mbembe, 2014). 359 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira Neste contexto, os processos de racialização têm como objetivo marcar estes grupos de populações, fixar o mais possível os limites nos quais podem circular, determinar exactamente os espaços que podem ocupar, em suma, conduzir a circulação num sentido que afaste quaisquer ameaças e garanta a segurança geral. Trata-se de fazer a triagem destes grupos de populações, marcá-los individualmente como <<espécies>>, <<séries>> e <<tipos>>, dentro de um cálculo geral do risco, do acaso e das probabilidades, de maneira a poder prevenir perigos inerentes à sua circulação e, se possível, a neutralizá-los antecipadamente, muitas vezes por paralização, prisão ou deportação. A raça, deste ponto de vista funciona como um dispositivo de segurança fundado naquilo que poderíamos chamar o princípio do enraizamento biológico pela espécie. A raça é simultaneamente, ideologia e tecnologia do governo. [...] Permanecerá inacabada a crítica da modernidade, enquanto não compreendermos que o seu advento coincide com o surgir do princípio de raça e com a lenta transformação deste princípio em paradigma principal, ontem como hoje, para as técnicas de dominação. (Mbembe, 2014, p. 71-102). No caso do Brasil, ao supor uma identidade brasileira, para inscrever os negros e indígenas a estratégia utilizada foi para além da invisibilidade da ancestralidade, ordenando a afirmação de supostas características dessas populações concebidas em tempos que remontam a escravidão e que se conectam ao conceito de raça em sentido biológico, associando aspectos morais e intelectuais ao fenótipo das pessoas, além de atribuir aos negros e indígenas a responsabilidade pelas mazelas sociais seja no campo político e econômico. Mbembe (2014, p.102) ao falar que o mundo continuará sendo, ainda que não queira admiti-lo, um mundo de raças e que o significante racial permanece sendo uma linguagem nas relações com o outro, com a memória e o poder. Constitui-se nas estruturas de poder por meio da racialização de grupos, ontem e hoje, questões que vem sendo tratadas nesta pesquisa permanecem atuais, como podemos ver no trecho abaixo que se refere à fala do atual vice-presidente da República Brasileira Hamilton Mourão, à época em um momento de campanha eleitoral. Ao utilizar tal referência, precisa-se de cautela, considerando o local de fala alegado por Mourão, que ainda que o pertencimento étnico de indígena necessite de 360 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira reconhecimento por uma coletividade, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribunais, ainda assim, há que se entender qual a ideia central da fala. Obviamente não será objetivo do trabalho identificar ou não Mourão como indígena, mas analisar a construção da teoria das três raças sobre a perspectiva dessa fala. A primeira questão se funda no fato de localizar seu ponto de fala enquanto indígena, se houve no Brasil uma junção das três raças, teoricamente todo cidadão nascido em território brasileiro seria identificado como branco, negro e indígena, não havendo a necessidade de se identificar enquanto um ou outro. Pois seria redundante, bastando a identidade brasileira. Ressalto que o argumento foi movido apenas como provocação da análise, ainda que haja forte pressão para a validação do pensamento, inclusive largamente utilizado por contrários às cotas étnico-raciais, às desigualdades e marcas do racismo permanecem nas bases da estrutura social. O que se infere é que o Brasil não vive a tão falada democracia racial, e para caber na nacionalidade foi e continua sendo necessário lançar mão e negar a si mesmo. A segunda questão está na responsabilização de negros e indígenas pelas mazelas sociais. Relacionando a fala de Mourão e a difusão do conceito de raça em sentido biológico, vemos que as bases permanecem conservadas. Ao indígena foi atribuída a indolência que por uma rápida busca no dicionário significa condição da pessoa sem ânimo nem força física; preguiça, morosidade; insensibilidade; incapacidade para sentir dor. Já ao negro foi atribuída a malandragem que segundo o dicionário significa comportamento próprio do malandro; pessoa que gosta da vida boêmia, sem trabalhar; ausência de atividade, falta de trabalho; vadiagem; modo de vida que opta por agir irresponsavelmente, dentre outras. Ressalta-se que a vadiagem é tipificada como contravenção penal. Situado no meio do caminho entre a casa grande e a senzala, o mulato prestou serviços importantes à classe dominante. Durante a escravidão, ele foi capitão-de-mato, feitor e usado noutras tarefas de confiança dos senhores, e, mais recentemente, o erigiram como símbolo da nossa “democracia racial”. Nele se concentram as esperanças de conjurar a “ameaça racial” representada pelos africanos. E estabelecendo o tipo mulato como primeiro degrau na escada da branquificação sistemática do povo 361 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira brasileiro, ele é o marco que assinala o início da liquidação da raça negra no Brasil. (Nascimento, 2016, p. 83). O terceiro ponto a ser levantando é com relação à reprodução do racismo por uma pessoa que se autodeclara pertencente a um dos grupos racializados, pois evidenciam quão profundas são as raízes do branqueamento social e reforçam o estigma imposto a esses grupos – indígenas e negros, a utilização do lugar de fala em uma sociedade marcada pelo ideal de branqueamento é uma estratégia utilizada para a institucionalização da identidade nacional. A fala de Mourão possui maior impacto social do que as inúmeras falas racistas de seu companheiro de presidência. Problema com que os movimentos negros se deparam é de como retomar as diversas manifestações culturais de cor, que já vem muitas vezes marcadas com o signo da brasilidade. Uma vez que os próprios negros também se definem como brasileiros, tem-se que o processo de ressignificação cultural fica problemático. O mito das três raças é, neste sentido exemplar, ele não somente encobre os conflitos raciais como possibilita a todos de se reconhecerem como nacionais. (Ortiz, 1985, p.44). Dentro desse viés, podemos entender a fala de Mourão como reforço das identidades produzidas pelas instituições como mecanismo de inferiorizar determinados grupos e manter o domínio de outro. Em que a dominação ultrapassa os limites da miscigenação e transforma o oprimido como “parte” integrante da sociedade dando a ele o signo de brasileiro. A reivindicação dessa brasilidade entre os cidadãos e sobretudo pela população negra os tem levado para os presídios e cemitérios. 362 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira Referências BARBOSA, Maria Rita de Jesus. A influência das teorias raciais na sociedade brasileira (1870-1930) e a materialização da Lei no 10.639/03. Revista Eletrônica de Educação. V. 10. 2016. Disponível em: <reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/ viewFile/1525/502>. Acesso em: 29.jun.2020. BERNARDINO, Joaze. Ação Afirmativa e a Rediscussão do Mito da Democracia Racial no Brasil. Estud. Afro-Asiát. Vol. 24. Nº 2. Rio De Janeiro, 2002. Disponível em:< https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X200200020000 2&lng=pt&tlng=pt>. Acesso em: 10.fev.2020. BIROLI, Flávia. Mídia, tipificação e exercícios de poder: a reprodução dos estereótipos no discurso jornalístico Rev. Bras. Ciênc. Polít. no.6 Brasília July./Dec. 2011. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-33522011000200004&script=sci_ arttext>. Acesso em: 02.jul.2020. CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo, Ministério da Cultura - Fundação Biblioteca Nacional: 1902. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. FANON, Frantz. Um revolucionário, particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018. FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48 ed. rev. São Paulo: Global, 2003. GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: Uma Breve Discussão. Coleção para todos. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – Brasília: Ministério da Educação, 2005. HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 4. ed. São Paulo: Ed. Universidade, 1963. Disponível em:< https://biowit.files.wordpress.com/2010/11/raizes-do-brasil. pdf>. Acesso em: 16.jun.2020. 363 o povo negro Laudicéia F. Teixeira, Fábio S. Andrade e Reginaldo S. Pereira MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. MUNANGA, Kabengele. Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os discursos anti-racistas no Brasil. In: SPINK, Mary Jane Paris (Org.) A cidadania em construção: uma reflexão transdisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade negra. 5ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado. 3ª edição. São Paulo: Perspectivas, 2016. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000. 364 Um olhar para a negritude: o caminhar de um homem em defesa da equidade racial Maria Francisca Morais de Lima1 Luiz Carlos Ferreira2 “Um girassol chamado Celso Prudente, calor, vitalidade e energia positiva são características desse grande ser de luz que, com sua inteligência, sabedoria, respeito e amizade,cativa e atrai todos os que o conhece” Introdução O jovem da periferia, uma utopia que se tornou realidade a partir de experiências memoráveis e significativas que acabaram por levar dois irmãos a grandes descobertas que tornaram possível a realização de sonhos de outrem uma vez que a questão cultural ocupou a centralidade de todos os anseios e sonhos de igualdade e equidade social destes dois jovens, que por sua vez, foi fundamental para a formação humana, integral e unilateral desse jovem e hoje um intelectual das letras e das questões imagéticas. 1 Doutora em Língua Portuguesa pela PUC-SP. Pró-reitora de Extensão e Cultura do Instituto Federal de Educação do Amazonas - IFAM. 2 Mestrando em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação - PROFNIT Universidade Estadual do Amazonas e Professor do Instituto Federal de Educação do Amazonas - IFAM 365 um olhar para a negritude Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira 1. O início de tudo: O Movimento Negro Unificado - MNU A década de 70, auge da ditadura militar no Brasil, foi marcada pela ascensão internacional dos movimentos de massa, a descolonização revolucionária em Angola foi um exemplo e, o Brasil, a despeito de viver o autoritarismo militar, foi o primeiro país a reconhecer o governo marxista de Agostinho Neto, em Luanda. No Brasil, a participação de intelectuais negros e daqueles que defendiam a causa foi essencial para o fortalecimento da produção crítica não só na esfera cinematográfica, teatral e poética da cultura negra brasileira. O jovem negro, assim como foi típico da década, buscou romper, principalmente no campo das ideias literárias romper com toda opressãoque o regime militar trouxe à sociedade que não comungava com o silenciamento da arte, da cultura e da liberdade de expressão. Para tanto, houve um movimento que buscava em referências, não só brasileiras como também de outros países da América latina, bandeiras de luta, entre eles destacam: a figura icônica de Che Guevara a; Zumbi dos Palmares, entre outros, o quese mostrou fundamental para o intelectualismo rebelde do jovem negro que se acomodou na polissemia da ligação do guevarismo ao foquismo (vertente do marxismo) de origem negra, o que nos permite entender hoje o viés ideológico e a percepção das produções de Celso Prudente. Para a produção desse caminhar autobibliográfico de Celso Prudente, encontrei em seu memorial uma poesia do erudito Osvaldo de Camargo que, segundo o próprio Celso foi fundamental para essa identificação de que intelectual ele seria e que agora, tomando como base, o pouco que conheço deste humanista, alvoro- me a interpretar essa auto identificação. 366 um olhar para a negritude Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira Dê-me a mão. Meu coração pode mover o mundo com uma pulsação ... Eu tenho dentro em mim anseio e glória que roubaram a meus pais. Meu coração pode mover o mundo, porque é o mesmo coração dos congos, bantos e outros desgraçados, é o mesmo. É o mesmo coração dos que são cinzas e dormem debaixo da Capela dos Enforcados ... é o coração da mucama e do moleque; (CAMARGO, 1961. p. 51-52) A poesia apresenta uma sutileza e polidez na linguagem que sintetiza o discurso de Celso Prudente que, às vezes, fala mais com o coração do que com as palavras. Seu sentimento de revolta pela segregação ao menos favorecidos e, ao mesmo tempo, de orgulho por se sentir e fazer pertencer a uma negritude sem nacionalidade, é sem dúvida uma característica do seu fazer humanista. Nesse processo de formação, Celso fala da importância do cinema para a identidade racial do afrodescendente jovem que se dava por um processo em que o cinema ocupava centralidade, tornando-se assim um lócus para discussões e questionamentos. Naquele período houve um processo de desconstrução do “belo”, uma vez que seu amigo Zózimo Bulbultornava-se símbolo de afirmação e beleza, em uma sociedade que mostrava o negro como feio, violento, objeto sexual de vício patológico, o que era muito comum em sociedades em que os brancos detinham o poder econômico, social, cultural e intelectual. Celso Prudente, em muitas de suas falas e histórias que nos encantam, retoma ao filme Terra em transe (1967), considerado como uma espécie de manifesto político de Glauber Rocha, onde Zózimo Bulbulteve uma atuação transversal, fazendo um personagem um jornalista cinematográfico, uma vez que, naquele momento em razão das contestações e das lutas sociais, o jornalismo estava em alta. Celso enfatiza que a participação do negro como protagonista rompeu a barreira de tentativa da 367 um olhar para a negritude Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira invisibilidade, inspirando-o assim, como jovem negro, a possibilidade de mais conforto e fala nas paqueras de jovens intelectualistas, que despontavam para a poesia e o teatro, pois, continua “ tudo era novidade, eu como todos meus amigos e amigas queríamos de qualquer forma demonstrar que estávamos em luta e em profundo desacordo com a sociedade, fosse na roupa, na maneira de sentar e entre outras”. Por fim, as recorrências culturais da época formaram um ambiente quefoi fundamental para a formação do histórico Movimento Negro Unificado – MNU, movimento político contra o racismo, formados por intelectuais ilustres e consagrados como o teatrólogo Abdias do Nascimento, o sociólogo Clóvis Moura, o poeta Eduardo de Oliveira, a antropóloga Lélia Gonzales, o poeta Oliveira Silveira, a historiadora Beatriz do Nascimento, e a socióloga Elisa Larkin Nascimento. Vale ressaltar que a sua formação foi essencialmente juvenil, tendo como fundadores - Celso Prudente, Milton Barbosa, Rafael Pinto, Hamilton Cardoso, Neusa Pereira dos Santos, Lenny Blue de Oliveira, Neninho de Obaluaê e Wilson Prudente. 2. O Cinema negro na perspectiva ontológica de Celso Prudente O cinema brasileiro,ao longo de décadas, vem tratando o negro quase sempre de forma estereotipada e restrita a relações de subordinação. Celso Prudente, enquanto pesquisador apresenta um dado que, às vezes, passa despercebida, que é a pouca frequência da presença do negro na função de diretor ou personagem de destaque. Embora o preconceito seja algo muito presente, a cultura cinematográfica brasileira há temposregistra a história do negro cuja tendência cinematográfica no âmbito étnico, denominada cinema negro, ganhou visibilidade no 8º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, em 1997 e na Mostra Internacional do Cinema Negro, em 2004. Celso Prudente enfatiza: no que diz respeito aos elementos cinematográficos enfatiza: o cinema negro recente ressalta os aspectos socioculturais do negro, a influência dos cultos afro-brasileiros, em particular a mitologia yorubáque se configura como um conjunto de crenças que inspirou o candomblé e é baseado na vida em harmonia e em comunidade. Nessa percepção não há separação entre homens e animais, os quais passam por um processo de personificação, agindo, pois, como humanos. 368 um olhar para a negritude Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira A questão mítica voltada para a formação de raça e crença é muito interessante, nesse contexto, oprofessor Celso Prudente reforça ainda a importância do culto à ancestralidade, por isso, não só nos textos desse antropólogo e de outros estudiosos, a continuidade da vida é sempre evidenciada por meio da figura feminina, sua força, beleza são sempre evidenciadas na literatura e no cinema negro. Outro ponto destaca o autor, diz respeito à música e aos instrumentos musicais, os quais caracterizam traços dos conhecimentos essenciais da africanidade. 3. A relação com o IFAM O entusiasmo do Dr. Celso Luz Prudente, homem negro, defensor das causas da negritude, dos povos indígenas e dos quilombolas, impulsionou o interesse pelo Amazonas, sua cultura, sua luta por direitos e diversidade de povos que formaram o Estado. Esse interesse o levou a querer conhecer, não só o Instituto Federal do Amazonas – IFAM, como também as instituições de Ensino Superior do Amazonas. Para um primeiro contato com instituições de ensino superior do Amazonas, Dr. Celso Luiz Prudente, conversou com um amigo da década de 70, prof. Luiz Carlos Ferreira, docente do IFAM, amante da causa negra e então Diretor de Extensão e produção (PROEX), o que contribuiu para intensificara relação com o IFAM, uma vez que desde 2019, o Dr. Celso Luiz Prudente participa, junto ao Núcleo de Estudos Afro Brasileiros e Indígenas - NEABI como palestrante em mesas redondas, seminários, oficinas, entre outras atividades. Em 2020, teve uma participação significativa no I Encontro de Formação das Comissões de Hétero Identificação do IFAM, junto com o Prof. Adèrito Fernandes Marcos, africano de Moçambique e professor da Universidade São José em Macau China. (http://www2.ifam.edu.br/noticias/i-encontro-de-formacao-das-comissoesde-heteroidentificacao-do-ifam). Em 2021, no Evento SER NEGRA o Prof. Celso Luiz Prudente participou de uma palestra: A ontologia da luta de horizontalidade da imagem do ibero-ásio-afroameríndio versus a verticalidade da hegemonia imagética do euro-hétero-machoautoritário: a dimensão pedagógica do cinema negro posta em questão. https://www. even3.com.br/sernegra2021/ 369 um olhar para a negritude Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira A partir do primeiro contato, em 2019, o prof. Celso Luiz Prudente não tem medido esforços para projetar o IFAM na área de ensino, pesquisa, extensão e inovação junto à comunidade Internacional pertencente à lusofonia, com destaque: 1. Indicação do IFAM para filiação junta à AULP, com correspondência ao então Presidente da AULP Prof. Dr. Orlando da Mata, o que rendeu bons frutos em termos de parceria; 1.1 - Articulação junto à ARTECH internacional, para que o professor Jaime Cavalcante Alves, Reitor do IFAM, tivesse assento como conferencista na Conferência Internacional de 2021. Vale ressaltar que a participação exitosa do IFAM possibilitou outros contatos com instituições lusófonas; 1.2 – Indicação de 2 professores do IFAM no Comitê Científico da Conferência Internacional; 1.3 – Articulação para o Acordo de Cooperação Técnica do IFAM com a Universidade SÃO JOSÉ de MACAU cujo acordo está vigente; 1.4 –Aproximaçãodo IFAM com a Universidade Pedagógica de Maputo, o que oportunizou a participação do Reitor Prof. Dr. Luís Jorge Manuel António Ferrão, na Palestra Magna de abertura do evento SER NEGRA; 1.5 Assento, em 2021, do IFAM na 17ª MOSTRA INTERNACIONAL DO CINEMA NEGRO; Assento em 2022 do IFAM NA 18ª MOSTRA INTERNACIONAL DO CINEMA NEGRO e assento, em 2023, na 19ª mostra INTERNACIONAL DO CINEMA NEGRO Em 2022, participação do IFAM na Mesa Redonda com Reitores: DÉCADA DOS AFRODESCENDENTES DA ONU e a UNIVERSIDADE O IFAM –foi representado pela prof. Dra. Maria Francisca Morais de Lima (reitora substituta do IFAM) que dividiu essa mesa com UNIPAMPA: Prof. Roberlaine Ribeiro Jorge (Reitor) e Fac. ZUMBI dos Palmares – Prof. José Vicente. Vale ressaltar que aparticipação de representantes do IFAM nesse evento foi de suma importância para a projeção da atividade de fechamento da Década do Afrodescendente (2015-2024) com agenda integrada à ONU em Manaus (AM) mediada pelo IFAM, Belém (PA) mediada pela UFPA concluindo em São Paulo com mediação da Curadoria Mostra Internacional do Cinema Negro, FE-USP e FIESP. 370 um olhar para a negritude Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira II – Participação da mesa redonda: A Mulher e a Educação das Relações Étnicoraciais – Prof.ª Dra. Maria Francisca Morais de Lima; III – Participação na mesa redonda: Experiência Civilizatória do Afrodescendente e o Problema Monocultural na Educação – Prof. Luiz Carlos Ferreira (docente do IFAM). Vale ressaltar que ainda na 18ª Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE tivemos a oportunidade, como representantes do IFAM, por meio do Dr. Celso Luiz Pudente, curador da mostra, de uma aproximação institucional com a UNIPAMPA e com o prof. Dr. Júlio TaimiraChibemoda Universidade de Moçambique, o que irá gerar parceiras extremamente exitosas. 4. Honoris Causa: título mais que merecido Enquanto instituição de ensino voltada para a educação básica, técnica e superior, o IFAM tem como,entre tantas diretrizes, uma educação de qualidade que prima pela igualdade e equidade social. Daí a importância do da pesquisa, extensão e inovação para o alcance desse objetivo. Ao longo do tempo em que tivemos o privilégio de conhecer as teorias e os sonhos do Dr. Celso Luiz Prudente, nasceu uma gratidão e uma necessidade de darmos um pouco do muito que recebemos deste ilustre antropólogo e entusiasta de uma cultura voltada para a negritude. Nesse sentido, começamos a perceber que tínhamos um papel muito importante no processo de um reconhecimento acadêmico, entre tantos os que o prof. Dr. Celso Luiz Prudente tem, ou seja, o IFAM resolve conceder o título de Dr. Honoris Causa que é uma honraria a quem se destacou com relevância à temáticas sociais, políticas, acadêmicas, ente outras.O título de Professor Dr. Honoris Causa é concedido a personalidades que se destacaram pelo exemplar exercício de atividades acadêmicas ou que, de forma singular, tenham prestado relevantes serviços à Instituição. A Pró-reitoria de Extensão do IFAM, ao analisar a trajetória do prof. Dr. Celso Luiz Prudente como cidadão defensor e militante de causas hetero-étnico-raciais, professor com reconhecida e exitosa atuação acadêmica e cultural que transcende as fronteira nacionais com forte atuação nas nações lusófonas, pelas contribuições dadas ao IFAM por meio de palestras, aulas magnas, apoio e articulação para a internacionalização 371 um olhar para a negritude Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira da instituição, não foi difícil mostrar ao Conselho Superior do IFAM o grau de merecimento deste homem cuja vida vem sendo em pró da igualdade e equidade social. Assim, em 20 de março de 2023, na 58ª Reunião Ordinária do Conselho Superior houve a apreciação do Processo 23443.001119/2023-91 queconcedeu o Título Acadêmico de Professor Dr. Honoris Causa, ao Professor Doutor Livre Docente CELSO LUIZ PRUDENTE, com fulcro no art. 191, 192 e 195 da Resolução nº 2, CONSUP/ IFAM, de 28/3/2011. Essa honraria foi concedida pelo IFAM a esse profissional que acumula em sua escalada: 37 anos de dedicação à docência/atividades científico culturais; 17 livros publicados/organizados; 34 capítulos de livro publicados; 15 artigos em periódicos; 8 artigos em Anais e Congressos; 7 prêmios/títulos recebidos; 12 projetos de pesquisa; 8 projetos de extensão; 104 textos em jornais/revistas; 47 apresentações de trabalho/ conferência/palestra; 38 trabalhos técnicos (Mostras de Cinema, Seminários, Festivais, etc...); 139 entrevistas, mesas redondas, programas e comentários na mídia; 8 músicas (composições); 58 produções Visuais; 91 produções culturais; 9 Orientações de Mestrado e 1 Orientação de Doutorado. Conclusão O texto escrito eterniza a história de pessoas que se destacam e mudam realidades, ao longo de suas vidas. Enquanto autores cujas linhas retratam um pouco do ser humano que é o prof. Dr. Celso Luiz Prudente, Sentimo-nos lisonjeados e extremamente felizes, uma vez que coube a nós a solicitação da honraria e o trilhar desta teia tão instigante que é a vida deste homem tão humano: que sofre, que se angustia, que se revolta, que chora e, às vezes não entende por que em pleno 2023, vivência realidades vividas em outras décadas. “Os desafios sociais, a conquista de direitos, a empatia e a luta constante pela equidade social é o que nos move e fortalece” (Os autores). 372 um olhar para a negritude Maria Francisca Morais de Lima e Luiz Carlos Ferreira Referências CATANI, Afrânio Mendes. Para furar o desânimo. (In:) PRUDENTE, Celso Luiz; SILVA, Paulo ViníciusBaptista (Org.). ANAIS da 16ª Mostra Internacional do Cinema Negro: educação, cultura e semiótica. 1.ed. São Paulo: Jandaíra, 2020. v. 1. CARVALHOSA, Zita. 8º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo [catálogo] Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1997, p. 75. RESOLUÇÃO Nº 2, DE 28 DE MARÇO DE 2011. Concessão de Título Acadêmico de Professor Honoris Causa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – IFAM PRUDENTE, Celso Luiz. Rádio USP estréia nova programação. 2021. (Programa de rádio ouTV/Comentário). Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/radio-uspestreia-nova-programacao/Acesso em agosto de 2023. 373 Notas sobre o pós-abolição no cinema a partir do filme “O fio da memória” (1991), de Eduardo Coutinho Robson Pereira da Silva1 Grace Campos Costa2 Lays da Cruz Capelozi3 No ano de 1988, comemorou-se o centenário da abolição da escravatura no Brasil, ocorrido no dia 13 de maio daquele ano. A partir dessa data, o cineasta Eduardo Coutinho recebeu um convite para fazer um documentário acerca do tema, sugerido pela então Secretária da Cultura do Estado do Rio de Janeiro, a socióloga Aspásia Camargo4, na gestão Moreira Franco (1987-1991). A proposta do filme surge como uma 1 Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Licenciado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Pós-doutorado em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Bolsista CNPq. 2Doutora em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHI) do Instituto de História (INHIS) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Integra o Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC). Membro da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. 3 Doutora em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHI) do Instituto de História (INHIS) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Integra o Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC). Membro da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. 4 Cf.: (RODRIGUES, 2012). 374 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi produção financiada pela Fundação de Artes do Estado do Rio de Janeiro. Entretanto, O fio da memória ultrapassou a data prevista para o lançamento, sendo estreado apenas no ano de 1991. Isso aconteceu devido à complexidade do próprio tema que buscava visitar cem anos de experiências de uma população historicamente marginalizada. O respectivo documentário foi pouco visto por espectadores brasileiros, uma vez que foi vendido para canais estrangeiros, a partir da produção associada a Channel 4, La Sept, Tropicolor INC., E.C.Filmes, Cinefilmes. Com carreira extensa na televisão – o cineasta dirigiu alguns episódios do Globo Repórter, na Rede Globo, na década de 1970 – e, reconhecido no meio cinematográfico nacional, com destaque dado à obra Cabra marcado para morrer (1984), Coutinho realizou em O fio da memória uma série de entrevistas com pessoas oriundas do movimento negro e anônimos, sendo este o seu segundo documentário em longametragem, filmado em 16mm. Segundo o diretor, trata-se de “um filme que sequer foi ampliado para 35mm, que não existiu, que ninguém viu. No máximo umas 200 pessoas. Foi um impasse do qual eu saí filmando Boca de Lixo, em 1992, sem dinheiro nenhum, sem cobrança alguma.” (LINS, 2007, p.81). Apesar das adversidades, o filme foi premiado no XX Festival Cinematográfico Internacional de Montevidéu, na categoria Melhor Documentário Ibero-Americano, de 1992. O fio da memória é um documentário que carrega consigo parte da visão da última geração de escravizados no Brasil, revisitando suas experiências, planos e destinos após a abolição da instituição escravocrata, suas percepções sobre o acontecimento e seus respectivos desdobramentos. Plasma no ecrã sujeitos carregados de desejos e atos de emancipação, mas também marcados pelas evidências da exclusão social e política definidas em critérios raciais. Ana Maria Rios e Hebe Mattos (2004) afirmam que o tema do pós-abolição se ocupa de tratar e encarar as visões, expectativas e ações de sujeitos libertos e seus processos de inserção e lutas em um mundo livre carregado de desigualdade de acesso à cidadania política “com a presunção de plenos direitos a todos cidadãos” (RIOS, MATTOS, 2004, p. 173). Nesses termos, o Brasil, no final do século XIX, optou pelo quadro de “relações pessoais que se faziam definidoras de direitos num quadro de manutenção de relações hierárquicas e clientelísticas” (RIOS, MATTOS, 2004, p. 173). Ou seja, não se aproveitou o ensejo do acontecimento da abolição para o efetivo enfrentamento e a produção de uma resposta sistemática ao racismo, como o primeiro grande feito da emergente República que já se delineava. 375 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi Nestes termos, no documentário de Eduardo Coutinho o que se tem é um mosaico de histórias sobre parte da população negra brasileira, em dimensões cotidianas, como suas relações familiares, com as artes, com as religiosidades, nas instituições de ensino da História, nos reformatórios, e, nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Nas palavras de Coutinho, “fui filmando sem roteiro algum e acabei pagando um preço.” (LINS, 2007, p.83), isso se deve por fazer da memória e suas reminiscências condutora de alcances da história do filme, no qual marcos periodizadores da História fatual do Brasil não tem mais ou menos importância do que as visões e experiências da população negra que, muitas vezes, foram obliteradas e secundarizadas do processo histórico. Segundo Jaime Rodrigues (1999, p. 180), Eduardo Coutinho encontrou, por exemplo, em Gabriel Joaquim dos Santos um personagem possuidor da condição elementar para a elaboração de um ensaio documental sobre a condição do negro no Brasil da atualidade daquele contexto da produção, o centenário da abolição. “O roteiro, mesmo que não estivesse fechado antes do início da filmagem, sugere uma inspiração nas lembranças do Sr. Gabriel.” (RODRIGUES, 1999, p. 180). A memória e o testemunho são usados como método do cinema documental de Coutinho, o que potencializa a gramática do cineasta da contação de histórias. Isso é indicado por Mariana Tavares que afirma: Nossa hipótese, que é evidente a cada documentário – desde Cabra marcado para morrer (1964/1984) até As canções (2011), seu último documentário – é que o testemunho ocupa um lugar central nas obras de Coutinho, especialmente em O fio da memória (1991), por basear-se essencialmente em relatos que têm como fundamento a relação da história com a memória. Consideramos o testemunho como principal método desenvolvido por Coutinho não apenas pelos relatos, mas por outras escolhas como a rejeição da voz over e da ausência de sons como trilha sonora, entre outros recursos técnicos que dizem respeito à linguagem audiovisual. Ainda que tenha uma formação como cineasta, a recusa do diretor reduz os documentários a fala de seus personagens e valorizando suas narrativas em primeiro plano e colocando-as no centro das obras. Dessa maneira, o testemunho – fruto das entrevistas – é o que direciona e dá vida a cada documentário, sendo que sem o mesmo, a obra de Coutinho perderia sua característica principal. (TAVARES, 2020, s.n) 376 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi Assim, existe um fio de narrativa que costura esses retalhos constituídos por breves depoimentos, relatos, principalmente, preconizando em O Fio da Memória a história do filho de ex-escravos, Gabriel Joaquim dos Santos, de 92 anos, que recebe narração pela voz em off do ator Milton Gonçalves, que o personifica. As imagens da casa de Gabriel, a Casa da Flor, são mostradas logo no início da película, onde seu sobrinho, Vilson dos Santos, faz a atuação se passando pelo próprio tio. Posteriormente, sob uma nova narração, feita em off pelo escritor Ferreira Gullar, o espectador é informado sobre a biografia de Gabriel. Durante a história do filho de um ex-escravo com uma mulher indígena, algumas fotos antigas são exibidas. Cabe salientar, que o angariamento documental do filme de Coutinho começou a ser gestado ainda no final dos anos de 1970, quando os depoimentos de Gabriel foram registrados num pequeno gravador. Depois de sua morte, descobriu-se que ele tinha deixado vários cadernos de assentamento onde estavam anotados, alternadamente, fatos do cotidiano, da história da região e da história do Brasil. Figura 1 - 00:05:33 Figura 2 - 00:06:08 A partir das gravações originais, Coutinho coloca rapidamente a voz que representa Gabriel, oferecendo mais detalhes sobre a sua vida. Imagens de Gabriel escrevendo em sua casa, em meio a artefatos produzidos por ele, no Distrito de Vinhateiros, são mostradas em um plano médio a fim de enquadrar o trato do personagem 377 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi com seus próprios objetos e o registro de suas memórias, enquanto o narrador lê trechos do diário de Gabriel, pelos quais este explica detalhadamente como foi feita a decoração da sua casa, com pedras e cacos de vidro. Figura 3: 00:07:23 Há uma amálgama entre os detalhes da decoração da casa e os escritos de Gabriel, que também relatam notícias econômicas, políticas e sociais do Brasil entre o final do século XIX e a segunda metade do século XX. Esses fragmentos da vida nacional são entremeados com informações do cotidiano do personagem, apontando para uma bricolagem entre a macro e a micro história. Essas visões, plasmadas no documentário, possuem o encontro entre história e memória que, de certa feita, arquiteta a construção e desconstrução do fato histórico, especialmente pela apropriação e da propagação da tensão entre o indivíduo, objeto da história, em uma dialética do aprendiz, narrador e sujeito, como expõe Jaime Rodrigues (1999, p. 180): Da chamada “história do Brasil”, o Sr. Gabriel foi ao mesmo tempo aprendiz, narrador e sujeito. Foi aprendiz quando relatou que aqui havia portugueses e escravos, que D. Pedro deixou o Brasil para cá e Portugal para lá, que Washington Luís caiu, que as forças brasileiras foram lutar na 2ª Guerra Mundial. Foi narrador quando contou em seus registros pessoais a vida 378 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi cotidiana de São Pedro da Aldeia; a mulher matou o marido num baile, o fulano se amasiou com beltrana... Foi sujeito quando contou sobre a greve na salina em que trabalhava, em 1946; sobre suas relações com os pais e a família; sobre seu amigo tornado irmão Guilherme e, acima de tudo, sobre a maneira como ele concebeu e realizou a Casa da Flor. A forma de expor suas lembranças sobre os grandes fatos na periodização da história do Brasil e os mecanismos que ele usou para registrá-las trazem o Sr. Gabriel para o lado dos homens comuns. Os fatos se situam num plano longínquo, e com eles mantemos uma relação de conhecimento unilateral, sem interação possível. O Brasil foi colonizado, os negros foram escravizados, D. Pedro proclamou a independência e esse passado é imutável enquanto fato. Mas o conteúdo das reminiscências pessoais do Sr. Gabriel o torna um homem excepcional. De um lado, ele não estabeleceu nenhuma relação de hierarquia que torne o grito do Ipiranga mais importante do que a morte do marido no baile, nem a greve na salina têm menos espaço em seus diários do que a queda de um presidente – embora essa falta de hierarquia seja bastante comum em outros depoimentos ou narrativas de história de vida. A maior excepcionalidade está no suporte que ele inventou para imprimir suas memórias: para além dos diários anárquicos, a Casa da Flor é uma autêntica casa da memória, com sua arquitetura encantada e encantadora. Dessa forma, por meio de reminiscências pessoais, de fatos da história factual e de situações cotidianas, Gabriel não apenas reproduz a memória histórica das cartilhas didáticas que ele teve acesso ao ingressar na Igreja Evangélica. Ele se coloca como um sujeito ativo da sua própria história, registrando em pedras e até mesmo construindo a sua casa, muito semelhante à construção de um templo.5 Sob esse prisma, Gabriel reconfigura a história sem o critério da hierarquização. Ao mostrar cartilhas, com dados da história dos grandes personagens presentes nos livros didáticos tradicionais de História, ele mantém, através das suas lembranças e da construção da sua casa – com cacos de vidros, pedras e objetos doados por terceiros –, processos de significação da sua história. 5 Não por acaso, a casa construída por Gabriel Joaquim dos Santos ao longo de sua vida, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em São Pedro da Aldeia, no Rio de Janeiro, no ano de 1987. Disponível em: https://www.ipatrimonio.org/sao-pedro-da-aldeia-casa-da-flor/. Acesso em 18 de ago. 2023. 379 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi Em outro momento, Eduardo Coutinho traz para cena um ex-escravizado, que na ocasião da entrevista filmada tinha aproximadamente 120 anos, o Sr. Manoel Deodoro Maciel, nascido por volta de 1869, morador do município de São Gonçalo. Com ele, Coutinho conversa sobre o mundo do trabalho e sobre os acontecimentos da escravidão à abolição. Seu Manoel fala sobre os atos da Princesa Isabel de maneira doce e romantizada. O diretor remunera o personagem por seus depoimentos e disponibilidade em conceder as entrevistas, e fez questão de filmar este ato e a reação de seu entrevistado, não deixando como bastidor o processo de negociação com um sujeito de aproximadamente 120 anos, que havia se aposentado apenas seis anos antes da realização da entrevista, como aponta Yago Paschoa (2019, p. 73): Em São Gonçalo a equipe de Coutinho chega a Manuel Deodoro Maciel. Homem de 120 anos e que quatro meses após a gravação do vídeo, morreu. Foi escravizado em Minas Gerais, vindo ao Rio de Janeiro, deixando qualquer laço familiar para trás. Passou a residir na casa do seu ex-patrão, que o aposentou seis anos antes da entrevista, cujas imagens revelam um homem que mal pode se sustentar de pé, resultado da exploração que deforma o corpo. Manuel Deodoro trabalhou duro até os seus 114 anos, entre a labuta compulsória e a assalariada. Mas ao ser perguntado por Coutinho se é melhor do que na época da escravização, ele responde: “comigo é na nota” (10’:05”), fazendo referência ao preço do seu trabalho. Assim, a partir da relação entre memória e história, o documentário busca tratar de maneira poética e didática os fios de parte da experiência da população negra liberta pós-abolição que alcançam visões sobre esse período da história brasileira que, no documentário, é vista pela associação de imagens documentais, ficcionais e didáticas, a partir de personagens, como Gabriel, que, segundo Coutinho (LINS, 2007, p. 77) faziam do imaginário um eixo de construção de lampejos da História por fragmentos, que arquitetava uma síntese extraordinária de histórias. A memória se equipara ao fazer artístico de Gabriel acerca da construção da Casa da Flor, que nas palavras de Coutinho: “Me pareceu corresponder um pouco à memória do negro, à medida que ela foi destruída pela escravidão. E ele tinha que recuperar com fragmentos a sua identidade. Era uma pessoa que juntava os fragmentos, os cacos da sua vida, para construir uma imagem. Por isso o escolhi como eixo” (LINS, 2007, p. 77). 380 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi O que a África te lembra? Depois dos relatos iniciais de Gabriel e Manoel, o filme aborda o cotidiano em uma sala de aula e outros espaços do ambiente escolar, nos quais Coutinho produz uma série de questões feitas diretamente aos estudantes. Em um dado momento do filme, especificamente a partir do minuto “13’:45”, uma professora branca mostra um livro didático com um mapa da África e pergunta aos alunos negros o que o continente africano os faz lembrar: Professora: Olha [apontando para o livro] o que te faz lembrar a África? O que tem de importante a África para você? Para mim a Itália tem muita importância, porque eu nasci lá. Aluno: África? Onde moram os negros. Figura 4 - 00:13:16 Esse procedimento pedagógico de distinção posto na identificação geográfica marca também a posição distintiva racial de um sujeito pretensamente proveniente de um processo de imigração subvencionada versus um sujeito descendente de processos de deslocamentos forçados de cunho escravista. Esse jogo aponta para “encontros que tecem a educação das relações étnico-raciais no Brasil” (PASCHOA, 2019), no caso da cena do filme, isso acontece antes daLei n. 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que estabeleceu a 381 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi alteração das diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. No filme, em 1988, a professora afirma ter nascido na Itália e o estudante negro apresenta um distanciamento marcado pelo critério racial para dizer o que sabe sobre o continente; a África é vista apenas como morada dos negros, parte do senso comum sobre o continente. Kabengele Munanga, em Por que ensinar a História Da África e do Negro no Brasil de Hoje (2015), aponta para se pensar o continente para além dos lugares cristalizados dados a partir da experiência escravocrata e reprodutora de essencializações raciais que reduzem uma História densa, rica e complexa às simplificações que desumanizam historicamente a população negra. Esse processo de supressão da África, segundo Munanga, é proveniente de uma esquematização ocidental da História feita a partir de Hegel, na qual o referido continente não “podia ser objeto de estudos historiográficos e inventou[se] novas ciências capazes de apreender as sociedades “primitivas” africanas e não europeias em geral, que ainda viviam entre o reino da fatalidade e não do espírito, da liberdade e do progresso” (MUNANGA, 2015, p. 27). Para Munanga, parte da resolução do enfrentamento desta postura epistemológica estaria em, primeiramente: “Reconhecer que a África tem história é o ponto de partida para discutir a história da diáspora negra que na historiografia dos países beneficiados pelo tráfico negreiro foi também ora negada, ora distorcida, ora falsificada” (MUNANGA, 2015, p. 28). Na passagem “O que te lembra a África?” (13’:37”), do documentário de Coutinho, nos chama atenção para a percepção construída acerca do negro brasileiro reproduzida na formação escolar, além da questão da afirmação da ideologia da miscigenação como um fator dificultador da construção positivada da identidade negra no país, bem como o desdobramento da evocação cristalizada de uma memória da escravidão no Brasil, a qual Munanga destaca que: A memória da escravidão no Brasil é ora esquecida ou negada, ora descrita negativamente como uma simples mercadoria ou uma força animal de trabalho sem habilidades cognitivas. A construção da memória da escravidão começa por justificativas ideológicas. Estas apresentam a escravidão como um gesto civilizador para integrar o africano na “civilização humana”. E para justificar essa missão era preciso atribuir ao africano “abstrato” as qualidades tais como a preguiça, libidinagem, vagabundagem, deslealdade 382 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi etc. que apenas o chicote da escravidão poderia corrigir. Esse retrato depreciativo forjado contra os escravizados foi por força da pressão psicológica introjetado pelos sujeitos escravizados que acabaram por aceitálo como que fazendo parte de sua natureza humana negra. No entanto, essa construção memorial da escravidão teria sido feita positivamente incluindo numerosos aportes dos escravizados na economia brasileira colonial, no povoamento do país e nos diferentes domínios da cultura. (MUNANGA, 2015, p. 29). Sobre o processo de miscigenação, Kabengele Munanga afirma que o embranquecimento populacional do Brasil possui um caráter eugenista, e que se iniciou no final do século XIX. Como consequência, a identidade negra fragmentou-se na questão referente à negritude e, por conseguinte, houve uma separação entre o negro e o mestiço: A grande explicação para essa dificuldade que os movimentos negros encontram e terão de encontrar, talvez por muito tempo, não está na sua incapacidade de natureza discursiva, organizacional ou outra. Está, sim, nos fundamentos da ideologia racial elaborada a partir do fim do século XIX a meados do século XX pela elite brasileira. Essa ideologia, caracterizada entre outros pelo ideário do branqueamento, roubou dos movimentos negros o ditado “a união faz a força” ao dividir negros e mestiços e ao alienar o processo de identidade de ambos. (MUNANGA, 2019, p. 25-26) Esse tipo de ideologia é posto no filme a partir da constatação da reprodução escolar acerca da presença do negro na História do Brasil por meio de critérios da miscigenação, da positivação distintiva da experiência da imigração eurocentrada em detrimento da marginalização da população negra, sobretudo devido ao jogo da desigualdade racial no mundo do trabalho, da passagem do trabalho escravo para a liberdade marcada pela manutenção da precarização da vida dos agora libertos, posta na cena em que estão presentes a professora e os estudantes negros. No filme, a questão da África só endereçada a estudantes negros, interpelados por pessoas brancas. O processo de identidade negra a que se refere Munanga (2012, p.10), não deve ser visto no 383 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi sentido individual, mas sim no coletivo, que tem se limitado em atos de autoatribuição ou autodefinição. Portanto, é necessário a construção da identidade coletiva negra, desconstruindo não só a visão colonial que inferioriza o negro e os coloca à margem da história, como a superação de um pensamento cristalizado de que o processo de mestiçagem seja o caminho para o embranquecimento da população como um ideal a ser perseguido. Nesses termos, é fundamental a presença da escola para fortalecer a identidade da população negra, uma vez que os livros didáticos e o ensino da história adotaram, até certo tempo, uma visão eurocentrista do passado, a qual Munanga chama atenção para a necessidade de novas possibilidades de abordagem: O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional. (MUNANGA, 2005, p. 17) Nas cenas do documentário, em que nos é mostrado o espaço da sala de aula, a professora “de origem italiana” nos parece passiva-agressiva ao apresentar o conhecimento aos educandos, instigando muito mais o conhecimento prévio dos alunos do que os complexificando e os aprofundando de forma crítica e problematizadora. Dentro dessas discussões sobre as práticas escolares, Nilma Lino Gomes, nos atenta que para além da inserção e a evidência dada aos personagens históricos negros, também seria papel da escola, discutir sobre o racismo historicamente presente em nossa sociedade, isso porque Esse é um ponto importante porque rompe com a hipocrisia da nossa sociedade diante da situação da população negra e mestiça da nossa sociedade diante da população negra e mestiça desse país e exige posicionamento dos(as) educadores(as). Essa constatação também contribuiu para o 384 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi desmascarar a ambiguidade do racismo brasileiro que se manifesta através do histórico movimento de afirmação/negação. No Brasil, o racismo ainda é insistentemente negado no discurso do brasileiro, mas se mantém nos sistemas de valores que regem o comportamento da nossa sociedade, expressando-se através das mais diversas práticas sociais. (GOMES, 2005, pp.147-148) Segundo Yago Paschoa (2019, p.74), nessa sequência do filme de Coutinho, a partir da prática do “corte seco”, busca-se construir um pensamento documental denotado em cadeia de jogos de interpelação fragmentados no ambiente escolar, dados em situações de ensino e aprendizagem e nas perguntas do diretor feitas diretamente aos estudantes. Dessa maneira, o diretor age [...] imprescindindo, assim, do coletivo; da elaboração que se arranja pela cooperação mútua dos sujeitos implicados. Bom assinalar que, Coutinho explora seu dispositivo mais cristalino na edição dessa cena: o corte seco. Sem isso, o sentido dado a essa passagem não estaria definido. Desde a professora de origem italiana até a última fala, o vídeo atravessa espaços diferentes da escola, busca afirmações dadas em momentos distintos. Ou seja, não foi uma narração cronológica, linear. (PASCHOA, 2019, p.74) Nos registros feitos no ambiente escolar, no final dos anos de 1980, já existia a preocupação sobre o papel de Zumbi dos Palmares, Princesa Isabel e Princesa Anastácia e as suas relações com à escravidão no Brasil e a simbolização de processos de emancipação, por parte da população negra. Tal preocupação é fruto especialmente das lutas do Movimento Negro, inclusive participante das reivindicações constituintes de então. Os movimentos sociais da população negra receberam atenção das lentes do diretor em outros momentos do filme O Fio da Memória, como as passeatas filmadas e presentes no documentário. Em uma determinada cena, Eduardo Coutinho entrevista um grupo de alunos e questiona-os sobre quem foi Zumbi dos Palmares. Coutinho: Quem foi Zumbi? Aluno: Zumbi dos Palmares eu não sei quem foi não, mas ele é um grande guerreiro. É o chefe e lutava. 385 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi Coutinho: Mas ele lutava em que lugar? Aluno: Nos Palmares. Coutinho: O que era Palmares? Aluno: Um lugar em que os negros que conseguissem fugir iam pra lá. Coutinho: E quando eles iam pra lá...o que faziam? Aluno: Lutava, matava...e alguns deles morriam também. Coutinho: E como é que morreu Zumbi? Aluno: Ele morreu a tiros. Posteriormente, após passar outros relatos durante o documentário, a cena na sala de aula é retomada, onde Coutinho também continua interpelando outros alunos sobre o mesmo assunto: Coutinho: Me diz uma coisa, como e quando que libertou...que história é essa? Aluna: A abolição da escravatura, né? A Lei Áurea, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Aluno: A princesa Isabel podia libertar os escravos porque ela era uma princesa. Se não fosse uma princesa, não tinha a ver não. Coutinho: Por que? Aluno: Porque não tinha força. Coutinho: Por que ela tinha força? Aluno: Príncipe e princesa têm força. Coutinho: Mas os outros não tinham força...os brancos, os negros... não tinham? Aluno: Não tinha arma. Um outro aluno tenta responder à questão desenvolvida por Coutinho Aluno: Quem fez a abolição? O branco fez a abolição. [Um aluno interrompe e afirma que foram os pretos e os brancos]. Ah...aquela mulher, como chama...calma aí. A que libertou os escravos. [Um outro aluno interrompe e afirma que foi a escrava Anastácia]. Coutinho: Escrava Anastácia? Ela que libertou os escravos? Segundo aluno: Diz que é... Primeiro Aluno: Foi a princesa Isabel. Segundo Aluno: Mas ela só tem uma carta. Primeiro Aluno: Então, carta para libertar. Segundo Aluno: Mas quem é que lutava pelos negros era a escrava Anastácia. 386 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi Segundo Paschoa (2019, p. 74), a maneira pela qual Coutinho produz as interpelações faz com que os estudantes concluíssem, “[...] afinal, que a princesa Isabel apenas assinou a conquista dos negros e que se tem um nome a ser lembrado, é escrava Anastácia.” O documentário aponta para a data 13 de maio de 1888, a qual marca a abolição da escravatura, como uma espécie de espaço de disputa. Sobre isso, Munanga (2015, pp.28-29) aponta que: A abolição da escravatura no Brasil em 1888 (quarenta anos depois da França e 24 anos depois dos Estados Unidos), não foi uma ruptura, pela sua incapacidade em transformar as profundas desigualdades econômicas e sociais, pois não se organizou uma resposta ao racismo que se seguiu para manter o status quo. Nessa manutenção, a relação mestre/escravo se metamorfoseou na relação branco/negro, ambas hierarquizadas. A data de 13 de maio é, sem dúvida, uma data histórica importante, pois milhares de pessoas morreram para conseguir essa abolição jurídica, que não se concretizou em abolição material, o que faz dela uma data ambígua. Por isso o Movimento Negro investe hoje na data de 20 de novembro, que tem a ver com o processo de mudança. Trata-se de compreender as causas desse silêncio organizado e não ficar preso à aceitação da “culpabilidade”, conceito de pensamento cristão e dos tribunais que serve para apaziguar as tensões sem buscar as saídas do impasse político. Na versão oficial da abolição, coloca-se o acento sobre o abolicionismo, mas se apaga ao mesmo tempo o que veio antes e depois. Nesse sentido, a abolição está inscrita, mas esvaziada de sentido. A Lei Áurea de 13 de maio de 1888 é apresentada como grandeza da Nação, mas a realidade social dos negros depois desta lei fica desconhecida. O discurso abolicionista tem um conteúdo paternalista. Nele, os negros são considerados como crianças grandes ainda incapazes de discernir seus direitos e deveres na sociedade livre. A educação fica ainda dominada pelo eurocentrismo sem questionar o universalismo abstrato nele contido. A questão do negro tal como colocada hoje se apoia sobre uma constatação: o tráfico e a escravidão ocupam uma posição marginal na história nacional. No entanto, a história e a cultura dos escravizados são constitutivas da história coletiva como o são o tráfico e a escravidão. Ora, a história nacional não integra ou pouco integra os relatos de sofrimento, de resistência, de silêncio e de participação. 387 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi A abolição da escravatura é apresentada como um evento do qual a República pode legitimamente se orgulhar. Mas a celebração da data até hoje tenta fazer esquecer a longa história do tráfico e da escravidão para insistir apenas sobre a ação de certos abolicionistas e marginalizar as resistências dos escravizados. A mim me parece que a celebração acompanha-se de uma oposição sempre atualizada de duas memórias: a memória da escravidão negativamente associada aos escravistas e a memória da abolição positivamente associada à nação brasileira. No entanto, as duas memórias deveriam dialogar para se projetar no presente e no futuro do negro, ou se constituindo numa única memória partilhada. Nessa tensão produzida acerca da memória histórica da abolição no Brasil, o filme segue ampliando a perspectiva sobre tal acontecimento, para além da versão oficial, a partir da menção à escrava Anastácia, que aparece primeiramente na fala dos estudantes e assume o protagonismo negro no processo histórico de luta por emancipação, antes, durante e pós-abolição. Assim, há um efetivo deslocamento da figura da Princesa Isabel, uma mulher branca redentora, para a figura mítica e ancestral de uma mulher negra escravizada, Anastácia. A posição dada à Anastácia, elencada pelo aluno na sala de aula, como a verdadeira libertadora dos escravos, também é enviesada por estar carregada de elementos míticos referentes ao seu status de santa popular cultuada por vários setores da população, como a quem atribuem muitos milagres, inclusive a libertação dos escravos. Porém, essa santa popular carrega um valor simbólico inestimável na composição de parte da construção da identidade do povo negro. 388 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi Figura 5 – “13 de maio de 1988: a princesa esqueceu de renovar nossa carteira de trabalho” Movimento Negro Unificado - Ilê Ayê - Grupo Ginga. Disponível em: https: https://twitter. com/MundosTrabalho/status/1392815472635256832 Essa disputa fica clara, nas posições do Movimento Negro na ocasião do centenário, momento da produção do documentário O Fio da Memória. Por exemplo, em Salvador, o Movimento Negro Unificado, juntamente com a Associação Cultural Ilê Aiyê, elaborou uma série de outdoors,em que se contestava os termos do fim da escravidão, a qualidade da abolição e o descaso com o qual homens e mulheres negras foram tratados e, por conseguinte, alijados de direitos e acesso à dignidade da vida como libertos, bem como se questionava a benevolência depositada na Princesa Isabel. Segundo Claudia Regina de Paula (2013, p. 69), a mesma movimentação aconteceu em 11 de maio de 1988, no centro do Rio de Janeiro, quando a polícia militar e o exército ocuparam a Praça X, na Candelária, no trecho da Avenida Presidente Vargas e a Central do Brasil, a fim de impedir a realização da “Marcha Negra contra a Farsa da Abolição”. Para Nilma Gomes, o Movimento Negro Unificado tem um papel crucial nas articulações acerca das discussões sobre a história e a cultura do negro no Brasil. Ao ressignificar a raça, esse movimento social indaga a própria história do Brasil e da população negra em nosso país, constrói novos enunciados e instrumentos teóricos, ideológicos, políticos e analíticos para explicar como o racismo brasileiro opera não somente no Estado, mas também na 389 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi vida cotidiana das suas próprias vítimas. Além disso, dá outras visibilidades à questão étnico racial, interpretando-a como trunfo, e não empecilho para a construção de uma sociedade mais democrática, onde todos, reconhecidos na sua diferença, sejam tratados igualmente como sujeitos de direitos. Ao politizar a raça, o Movimento Negro desvela a sua construção no contexto das relações de poder, rompendo com visões distorcidas, negativas e naturalizadas sobre negros, sua história, cultural, prática e conhecimento. (GOMES. 2017, p. 24) “A muda Anastácia fala dos horrores gráficos da escravidão”... O processo de ressignificação do protagonismo acerca do acontecimento da abolição da escravatura também acontece poeticamente em O Fio da Memória, quandoa voz em off do segundo narrador, Ferreira Gullar, oferece um tom didático e informacional ao espectador que observa esfinges, imagens e pinturas sacralizadas de Anastácia, quando busca-se explicar a existência dela e as interpretações em torno de sua figura, a qual seria nas palavras do poeta [...] uma princesa africana trazida para Bahia do século passado. Rebelando-se contra a dominação de seus senhores, Anastacia teria morrido martirizada. Sua imagem é de uma mulher negra, de olhos azuis com uma máscara de Flandres na boca e uma gargantilha no pescoço. Instrumentos de castigo comuns durante a escravidão. Figura 5 - 00:19:03 390 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi A figura da escrava Anastácia carrega a força simbólica que foi amplamente apropriada e associada, segundo Jerome S. Handler e Kelly E. Hayes (2009), a um conjunto de mitos que passaram a descrever a luta, o sofrimento tido como virtuoso e a morte dolorosa de uma escrava, que foi tornada símbolo do orgulho negro, com uma capacidade de circulação massiva, a partir de sua representação presente em terreiros de Umbanda e Candomblé, bem como em igrejas católicas, como a Igreja do Rosário, localizada no centro Rio de Janeiro que, em 1968, montou uma exposição de efeméride aos 80 anos de Abolição da Escravatura, destacando a litografia de Jacques Etienne Arago - Castigo de Escravos, de 1839, na qual a figura da escrava Anastácia foi retratada. A escrava Anastácia se tornou uma figura cultuada principalmente entre as populações negras, sendo vista como uma protetora e intercessora dos mais vulneráveis. Seu culto se desenvolveu especialmente entre as mulheres negras, que viam nela uma fonte de força e resistência. Ao longo do tempo, vários aspectos simbólicos foram atribuídos à Anastácia. Em algumas representações, ela aparece com uma máscara facial, simbolizando o processo de silenciamento e a invisibilidade socialmente produzida sobre os escravizados e seus descendentes. Em outras, suas mãos estão amarradas, simbolizando a violência que ela sofreu e a luta pela liberdade e emancipação de toda uma população. Assim, por essa figura, podemos observar como as representações foram sendo moldadas conforme o contexto histórico. Segundo Handler e Hays, a força simbólica da escrava Anastácia pode ser medida a partir da sua enorme presença simbólica de forma religiosa e política: De santuários espalhados pelo Brasil a camisetas, faixas políticas e salões de beleza, Anastácia olha para o mundo através dos dentes da máscara de metal que envolve sua boca. Geralmente de um azul penetrante e sobrenatural, os olhos da escrava negra parecem comunicar aquilo que seus lábios algemados não conseguem. Para seus defensores, a muda Anastácia fala dos horrores gráficos da escravidão: o abuso sexual e o estupro, os trabalhos forçados e os castigos torturantes sofridos por gerações de escravos negros. Testemunhando silenciosamente esse sofrimento, a imagem de Anastácia confronta o espectador 391 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi com uma história cujos detalhes dolorosos vivem na memória popular, e não nas versões oficiais da história brasileira. Nos últimos trinta anos, a imagem de Anastácia proliferou em todo o Brasil, pois se acredita que a escrava mártir que ela representa tornou-se o foco de movimentos políticos e religiosos. Para alguns, como os membros do movimento negro ou movimento da consciência negra, Anastácia é um símbolo do orgulho negro e da resistência heroica: uma lembrança dos horrores da escravidão e de seu legado contínuo de racismo. Para outros. Anastácia é objeto de práticas devocionais católicas e adquiriu a reputação de ser uma figura poderosa e santa que possui o poder místico de intervir na vida de seus devotos. Estátuas da Anastácia mascarada podem ser encontradas entre outros santos católicos populares em casas particulares e capelas públicas nas cidades brasileiras. Houve até mesmo um abaixo-assinado solicitando à Igreja Católica que a reconhecesse como santa (Teixeira, s.d.: 7-9; Burdick, 1998: 71). Anastácia também atraiu um número considerável de seguidores entre os praticantes da Umbanda, juntando-se ao panteão eclético de entidades espirituais cuja ajuda e sucesso são objeto das atenções rituais dos praticantes. Embora sua imagem tenha se tornado icônica no Brasil, é duvidoso que Anastácia, como figura histórica, tenha realmente existido. (HANDLER; HAYES, 2009, p. 26) [tradução nossa] Em O Fio da Memória, após Ferreira Gullar narrar as informações sobre a escrava Anastácia em meio as imagens da mártir, o documentário nos diz que uma imagem de Anastácia foi exposta no Museu do Negro que, na época, era um anexo a Igreja do Rosário no centro da cidade do Rio de Janeiro. A imagem passou a receber visitas que mais pareciam com procissões religiosas, e que as pessoas levavam dinheiro para colocar na estátua, fotos pessoais, santinhos contendo orações e papéis com pedido de promessas ou orações particulares. Ainda em 1988, o Museu foi fechado para 392 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi reformas e só foi reaberto no ano posterior e ao voltar ao funcionamento, a imagem de Anastácia foi retirada por decisão da diocese do Rio de Janeiro, devido à condição de santa popular e não canonizada pela Igreja. Tensões sobre o sincretismo… O ano de 1988, não apenas marcava o centenário da Abolição da Escravidão no Brasil, mas também a promulgação da Constituição Federal atual. Na carta magna, todos os homens são iguais e o racismo configura como crime inafiançável6. Tal processo de obliteração da santa popular, entretanto, pode ser compreendido como uma ação de “desafricanização”, onde elementos da cultura afro são abafados, quando não são embranquecidos, mediante padrões europeus já expressamente impostos, como, por exemplo, a religião e profusão de milagres que justifiquem a canonização, que não aconteceu no caso de Anastácia. Segundo Munanga: No nosso entender, o modelo sincrético, não democrático, construído pela pressão política e psicológica exercida pela elite dirigente, foi assimilacionista. Ele tentou assimilar as diversas identidades existentes na identidade nacional em construção, hegemonicamente pensada numa visão eurocêntrica. Embora houvesse uma resistência cultural tanto dos povos indígenas como dos alienígenas que aqui vieram ou foram trazidos pela força, suas identidades foram inibidas de manifestar-se em oposição à chamada cultura nacional. Esta, inteligentemente, acabou por integrar as diversas resistências como símbolos da identidade nacional. Por outro lado, o processo de construção dessa identidade brasileira, na cabeça da elite pensante e política, deveria obedecer a uma ideologia hegemônica baseada no ideal do branqueamento. Ideal esse perseguido individualmente pelos negros e seus descendentes mestiços para escapar aos efeitos da discriminação racial, o que teve como consequência a falta de unidade, de solidariedade e de tomada de uma consciência coletiva, enquanto segmentos 6 A lei criminalizando o racismo veio antes da Constituição Federal de 1988, com a promulgação da Lei 1390, de 03 de julho de 1951, intitulada de Lei Afonso Arinos, então deputado federal do Governo de Getúlio Vargas. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1390.htm. Acesso em 20 de ago. de 2023. 393 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi politicamente excluídos da participação política e da distribuição equitativa do produto social. (MUNANGA, 2004, p. 123-124) O documentário explora imagens sobre o sincretismo religioso em diversos momentos. Destacamos aqui um caso em especial, quando Coutinho registra a festividade realizada na Catedral de Caxias, município do Grande Rio, em homenagem à morte de Zumbi dos Palmares. O evento foi organizado por membros tanto da Teologia da Libertação quanto pela Pastoral Negra, mesclando elementos de cultos afro-brasileiros e aos ritos católicos, onde, por exemplo, vemos o uso da pipoca (deburù), elemento de oferenda pertencente ao ritual da festa do Orixá da Terra, Obaluaiê, responsável pela nutrição, a doença e a cura, “cultuado especialmente no mês de agosto com uma das cerimônias mais emblemáticas do Candomblé: o Olubajé, uma festa que só pode ser realizada com o dinheiro que os devotos pedem nas ruas em troca de um punhado de pipocas, sua principal oferenda.” (RODINEY, 2020, s.n.). Segundo Fábio Libório Rocha (2023, p. 23) no terreiro vivido na festa do Olubajé verifica-se um processo de sociabilidade posto em torno de “uma fartura de comida oferecida gratuitamente a todos os presentes, subvertendo a noção consumista e utilitarista do capitalismo atual”. Esse ritual, agora sem o sincretismo, é mostrado no documentário quando é filmado a festa do Olubajé, registrada em 18 de agosto de 1990, no terreiro de candomblé da Mãe de santo francesa, Gisèle Omindarewá, em Santa Cruz da Serra, na baixada fluminense. Essas cenas são mostradas logo após o narrador indicar os dados acerca do óbito de Gabriel Joaquim do Santos, que morreu no dia 03 de abril de 1985, enterrado no cemitério de Santa Isabel, em Cabo Frio. As informações sobre o filho de ex-escravo e artista são dadas com imagens do cemitério vistas a partir de um sobrevoo registrado pela câmera. O narrador indica que o personagem foi enterrado em uma urna mortuária, de onde foi tirado três anos depois, jogado em um depósito de restos mortais com outras pessoas de maneira indiferente. A imagem do depósito lotado de restos mortais é acompanhada de uma trilha sonora que emula o som de um sopro carregado de vento com uma coloração quase de tom fúnebre, depois apresenta-se uma imagem de uma escultura de um de anjo presente jazigos suntuosos e, por fim, aparece a imagem do Orixá Obaluaiê, orixá também da vida e da morte, responsável por manipular os elementos da cura e da doença, o rei de todos os espíritos do mundo. 394 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi A partir da sequência de imagens dispostas nesse momento do filme, constrói-se um vínculo imagético e narrativo entre o personagem falecido; o Orixá, Obaluaiê, que tem a Calunga (o cemitério) como ponto de força e a festividade carregada de sociabilidade afro-religiosa do Candomblé, o Olubajé, em que se entoa os toques e pontos em louvor a Nanã e seu filho Obaluaiê, sendo eles os “nagôs que lidam com a vida e a morte”. Nesse processo estabelece-se uma quebra com a perspectiva do sincretismo estimulado, por exemplo, exposto nas imagens registradas anteriormente, em 20 de novembro de 1988, na Catedral de Caxias, com culto de exaltação a Zumbi, realizado pelo Frade Franciscano, Frei David Raimundo dos Santos, um dos propositores de uma espécie de Teologia Negra da Libertação, e os celebrantes pertencentes também aos cultos afrobrasileiros. Figura 5 e 6 - 01:44:58 e 01:45:18 Para o sociólogo Clóvis Moura, que lançou a obra A sociologia do Negro Brasileiro, em 1988, no mesmo ano do documentário e do centenário da abolição, o sincretismo hierarquiza a religião cristã como superior, além de ser uma das principais características no processo de miscigenação: Estabelecida uma escala de valores em cima das diferentes religiões em contato e elegendo-se o catolicismo como religião superior, teremos como conclusão lógica a necessidade de se fazer com que as religiões chamadas fetichistas, inferiores, se incorporem, também, aos padrões católicos ou 395 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi cristãos de um modo geral. Esse processo deve se dar da mesma forma como, nos contatos étnicos, se apregoa um branqueamento progressivo da nossa população através da miscigenação até chegar-se a um tipo o mais próximo possível do branco europeu. (MOURA, 2019, p. 65) Assim, o embranquecimento não ocorreu apenas no sentido biológico, mas também nas esferas religiosas e culturais, e com a propagação do mito da harmonia racial brasileira. Retomando a Constituição, a afirmação de que todos são iguais e devem ser tratados como iguais, minimiza-se, apenas teoricamente, pois existe e permanece a extrema [in]diferença social existente entre brancos e negros na sociedade, cujo resultado não se altera na prática, pois o problema do racismo se mantém entre nós, como herança de um passado escravista. Embora, deve-se destacar as lutas e os avanços que o povo negro vem historicamente traçando, não podemos nos esquecer das lutas que o Movimento Negro teve ao longo de várias décadas desde a sua ampliação e unificação em meados da década de 1970, principalmente ao que se refere ao campo educacional. O MN foi responsável por diversos ganhos na lei, desde a inclusão de negros na escola pública, passando pela tramitação da primeira lei (Lei 4.024/61) sobre a inclusão da discussão de raça nos currículos nacionais de ensino em 1960. Segundo Gomes, No entanto, apesar de ter feito parte das polêmicas e debates em torno da aprovação da referida lei, a raça operou mais como um recurso discursivo na defesa dos ideais universalistas de uma educação para todos vigentes na época. (GOMES, 2017, p. 13) Essas discussões sobre raça ficaram congeladas no período militar, pois os movimentos sociais, ainda que sufocados, contemplavam outras questões mais abrangentes acerca do enfrentamento à repressão erigida por um Estado de cunho autoritário. Foi só com a abertura política que o MNU teve um novo respiro e possibilidade de ampliação de conhecimento e retomada de pautas raciais, tais como a formação de mais pessoas e com isso a maior circulação de ideias e pesquisas sobre o tema da identidade negra. Foi também a partir da década de 1980 e 1990 que o MNU teve um maior acesso às políticas públicas, podendo assim colocar em ações práticas as experiências feitas nas pesquisas até então. Uma das maiores vitórias para o Movimento 396 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi Negro veio em 2003 com a instauração da lei 10.639/03 que tornava obrigatório o ensino de História da cultura afro-brasileira e africana nas escolas e no ano seguinte a criação do Ministério da Educação, a Secretária de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) o Movimento Negro ressignifica e politiza a raça, compreendendo-a como construção social. Ele reeduca e emancipa a sociedade, a si próprio e o Estado, produzindo novos conhecimentos e entendimentos sobre as relações étnico-raciais e o racismo no Brasil, em conexão com a diáspora africana. (GOMES, 2017, p. 23) Articulações entre o racismo e o colorismo Outras implicações ocorridas pela dinâmica de mestiçagem, segundo Munanga, é a aceitação do negro como mulato e a divisão daqueles que possuem pele mais clara em relação às pessoas com pele escura, onde são retratados no documentário. Sobre a questão referente a crise de autoidentidade, sobretudo ao utilizar outros termos para não se declarar como negro, temos novamente uma cena ocorrida na sala de aula. Coutinho entrevista outro grupo de alunos para fazer questões relativas à escravidão. Coutinho: Os escravos eram o quê? Da onde que vinham? Aluna: Eles eram exportados, né. Eles vendiam escravos. Coutinho: E de que lugar eles vinham? Aluna: Na África, né? Coutinho: Eram brancos, eram índios, como é que eles eram? Aluna: Eram mestiços, né? Coutinho: Porque mestiços? Aluna: Eram assim [apontando para o próprio cabelo] ...cafuzos, meio morenos, de cabelo duro. Coutinho: Você é o quê? Branca, cafuza...o que você é? Aluna: Acho que eu sou cafuza [com um sorriso envergonhado]. 397 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi Figura 7 - 00:13:42 Assim, através do uso “cafuza” (miscigenação entre ameríndios e negros africanos)para se autodesignar, a jovem faz uma tentativa em se colocar em uma categoria com mais proximidade do tom de pele clara, em dificuldade de se autorreconhecer no processo de mestiçagem. De modo geral, segundo Munanga, se colocar no intermédio entre negro e branco oferece uma possibilidade de ter acesso aos privilégios que o branco goza socialmente: A maior parte das populações afro-brasileiras vive hoje nessa zona vaga e flutuante. O sonho de realizar um dia o “passing” que neles habita enfraquece o sentimento de solidariedade com os negros indisfarçáveis. Estes, por sua vez, interiorizaram os preconceitos negativos contra eles forjados e projetam sua salvação na assimilação dos valores culturais do mundo branco dominante. Daí a alienação que dificulta a formação do sentimento de solidariedade necessário em qualquer processo de identificação e de identidade coletivas. Tanto os mulatos quanto os chamados negros “puros” caíram na armadilha de um branqueamento ao qual não todos terão acesso, abrindo mão da formação de sua identidade de “excluídos”. (MUNANGA, 2019, p. 109). Clóvis Moura se debruçou na questão do colorismo, feita depois do censo de 1980, onde os brasileiros deveriam responder qual a cor de sua pele. Foram identificadas 398 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi 136 tonalidades diferentes, onde existe a preocupação em não se considerar propriamente negro7. O filósofo Frantz Fanon pontuou bem ao exprimir a vontade do negro em se aproximar da dinâmica da branquitude: O negro quer ser como o branco. Para o negro, há um só destino. E ele é branco. Já faz muito tempo que o negro admitiu a inquestionável superioridade do branco e todos os seus esforços visam conquistar uma existência branca. (FANON, 2020, p. 169) O colorismo é uma prática social e ideologia de distinção racial que opera como uma espécie de tecnologia do racismo que age sobre as pessoas negras e pardas, que no Brasil se fundamenta a partir de uma inferiorização do negro em relação ao branco, seria então variações das tensões entre e a inferiorização da negritude e a supervalorização da branquitude, definindo acessos e restrições a partir de critérios raciais, arquetípicos e fenotípicos, especialmente àqueles que remetem as marcas da africanidade e o pertencimento não branco. As dimensões de inferioridade são produções que se referem aos parâmetros da branquitude. Cabe salientar que o colorismo é constantemente relacionado com a política do embranquecimento e com os debates sobre “o que é ser pardo” e “o que é ser negro” no Brasil (RODRIGES, 2023, p. 33). Segundo Devulsky (2021), nesses termos, a cor da pele é usada como um indicador hierarquizante de beleza, sucesso e status social, e aqueles que possuem uma tonalidade de pele mais clara são considerados superiores aos de pele mais escura. Esse fenômeno pode ser observado tanto nas relações interpessoais quanto nas representações midiáticas e institucionais. Outro fator que contribui para o colorismo é o legado do sistema de escravidão, que dividiu os negros em categorias com base na cor da pele. Os escravistas criaram hierarquias de cor para separar os escravizados, atribuindo diferentes funções e tratamentos com base na tonalidade da pele. Os negros de pele clara, muitas vezes, eram colocados em posições de um suposto privilégio, como os trabalhadores domésticos, enquanto os de pele mais escura eram relegados aos trabalhos mais pesados nas plantações, embora ambos ainda continuavam a ser escravos. Essa divisão dentro da comunidade negra resultou em tensões e rivalidades baseadas na cor da pele, perpetuando assim o colorismo como tecnologia racial. No contexto 7 Cf.: (MUNANGA, 2019). 399 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi brasileiro, o colorismo é também influenciado pela miscigenação racial e cultural que ocorreu a partir do período colonial. A população brasileira como resultado de uma mistura complexa de diferentes grupos étnicos, incluindo indígenas, africanos, brancos e as várias combinações entre eles. Essa diversidade étnica e racial gerou uma ampla gama de tonalidades de pele na população brasileira. No entanto, mesmo diante dessa diversidade, a pele clara ainda é considerada como ideal e associada à uma valorização social da branquitude em detrimento da negritude, pela qual afirma-se um aspecto de supremacia da brancura da pele e age em caráter discriminatório. A discriminação em uma sociedade mestiça de maioria negra precisa de um instrumental ideológico que não permita que dá mestiçagem surja uma confusão racial entre brancos e negros. O colorismo, assim, facilita o enquadramento discriminatório necessário para manter as desigualdades entre os grupos, restringindo o acesso de mestiços à identidade branca enquanto houver elementos visíveis de negritude. A identidade branca é, por excelência, restritiva, enquanto a negra é inclusiva, posto que a reserva de poder no capitalismo precisa, necessariamente, ser salvaguardada de qualquer tipo de horizontalização. (DEVULSKY, 2021, p. 134) Entretanto, no escopo mestiço, a tentativa de obter regalias em que o branco tem mais vantagem em relação ao negro, não se concretizou em boa parte da população miscigenada do país e só aumentou o fosso da desvalorização e desumanização da população negra na estrutura racista da sociedade brasileira, criando cisões entre a população não branca, ou seja, produziram-se hierarquias e segregações entre a população negra. Não brancos, de pele clara, a de famílias de baixa renda, não são considerados brancos pelos pertencentes a esse grupo racial e, muitas vezes, não conseguem romper com a exclusão social e financeira que lhe foram renegadas desde seus antepassados, inclusive por critérios raciais. A segunda implicação causada pelo processo de mestiçagem, sobretudo ao que se refere ao colorismo, é a classificação de quem pode ser considerado preto ou não, causando o enfraquecimento e a fragmentação do movimento negro no Brasil, pois dificulta a capacidade de construção de identidades políticas viabilizadoras. Para exemplificar essa questão no documentário, há a cena referente à Confraria do Garoto, outra comemoração feita no dia 13 de maio, onde fica explícito a 400 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi materialização do problema aqui mencionado. Liderado por comerciantes, geralmente brancos da cidade, a escolha da rainha do Centenário da Abolição, Fátima Jú, não agrada alguns participantes do evento, pois se trata de uma mulher negra da pele não retinta, que recebeu a faixa de “Miss Pretinha”.A reclamação consistia no fato que a jovem não era retinta “o suficiente” para representar a rainha do Centenário. Uma senhora, negra retinta, se revolta com a escolha e discute com um dos dirigentes do evento, um senhor branco: Senhora Negra : Tá errado! Isso aí é safadeza. Com tanta preta, menina bonita, porque que não mostrou. Tá errado! Cem anos da Lei Áurea, cem anos hoje de maio de 1888. Hoje era para sentar uma preta bem nega ali sem cabelo. [Entre aplausos e algumas vaias, a senhora continua] estou zangada! Estou zangada que eu sou negra e eu não tenho nem cabelo. Eu sou negra mesmo, eu sou raiz, com muita honra. Dirigente: Posso falar? Te convidei para o evento... Senhora Negra: E depois que aquilo ali não é mulher, é um homem. Branco não gosta mesmo de preto e a escravatura nunca acabou no Brasil. O preconceito nunca vai acabar. Eu provo e reprovo, com toda a confiança de minha alma, que vocês não gostam mesmo de nós. Com tanta preta bonita aí, por que você não botou? Dirigente: Agora você vai me escutar. A partir do momento que 51% dos brasileiros são pretos... Senhora Negra: Mulato é mulato, preto é preto. Essa cor aí não é nego, não. Essa cor que tá aí é parda. Preta sou eu, negra sou eu. [Apontando para pessoas que estão do seu lado] essa aqui é parda, esse aqui é negro. Dirigente: 51% da população brasileira é negra. Senhora Negra: Isso vai ter que acabar. O negro só serve para votar, eu tô falando é com o repórter e não com o senhor. : 51% da população brasileira é a raça negra. Quem tem 51% de ações é o dono da empresa. Qual líder vocês têm? Por que não tomaram o poder? Vocês têm 51%. Diante deste diálogo, percebe-se a disputa sobre quais são as características necessárias para ser considerado negro, afinal de contas, de acordo com a percepção da mulher que assistia ao desfile, a rainha do centenário é uma mulher “parda”, utilizando401 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi se o cabelo como um marcador racial. Ademais, o debate acalorado mostra a posição do homem branco acumulador de capital capaz de descaracterizar as experiências de uma mulher negra, inclusive debochando do problema da representatividade negra na política, pouco antes da sequência do filme trazer à cena a entrevista com a deputada federal Benedita da Silva, atuante na Constituinte, como uma espécie de contraponto ao questionamento feito pelo dirigente do evento da “Miss Pretinha”. Outro aspecto também não pode ser ignorado. Para além da questão racial, permanece a questão relativa ao gênero. O espectador é informado que Fátima Jú foi eleita a mulata mais bonita do Brasil, no Programa do Chacrinha, exibido pela Rede Globo. Dessa forma, é endossado o estereótipo da mulata sensual, difundida amplamente pela literatura brasileira e, posteriormente, por outros meios de comunicação. Portanto, o padrão de beleza e sensualidade feminina entra na hierarquização racial: quanto mais a mulher se aproximar do padrão de branquitude, ainda que tenha descendência negra, mais desejada ela se torna. Assim, “no âmbito das classificações de gênero, ao encarar de maneira tão explícita o desejo do masculino branco, a mulata também revela rejeição que essa encarnação esconde: à rejeição à negra preta.” (CORRÊA, 1996, p. 50). A conclusão é que o colorismo promove a dissolução da consciência coletiva e a desunião, onde prejudica práticas que deveriam ser utilizadas para o fortalecimento da negritude no Brasil, sobretudo no campo político. Portanto, não é apenas na esfera discursiva ou organizacional que dificulta a coesão do movimento negro no país, mas na teia histórica que se inicia no século XIX até meados do século XX, pelo embranquecimento populacional defendido pela elite brasileira. A conclusão de Munanga é que tal ideologia, “caracterizada entre outros pelo ideário do branqueamento, roubou dos movimentos negros o ditado ‘a união faz a força’ ao dividir negros e mestiços e ao alienar o processo de identidade de ambos” (2019, p. 19). Considerações sobre o emaranhado de fios Como já mencionamos anteriormente, o documentário reúne várias parcelas da sociedade com intuito de refletir sobre o marco de cem anos após a abolição e as consequências desse processo até então. Portanto, selecionamos determinados trechos 402 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi para evidenciarmos algumas questões ocorridas após 1888, como o mito da democracia racial, o projeto de miscigenação brasileira e, consequentemente, a hierarquização da negritude causada pelo colorismo. Assim, a partir do documentário de Eduardo Coutinho, podemos observar que o diretor coloca em cena os efeitos e debates dos quais se acerca a questão do contexto da pós-abolição no país. Sobretudo, ao trazermos determinados temas do “ensaio documental” em diálogo com a produção intelectual de Kabengele Munanga. O fio da memória nos provoca a rever percepções clássicas acerca das relações entre racialização, cidadania, emancipação e o passado escravista que reverbera entre nós em práticas de racismo. Eduardo Coutinho, 1988, foi perspicaz ao trazer essas problemáticas também como um problema de educação. Para além das questões sociológicas, Coutinho dialoga e torna a voz do personagem Gabriel, como um agente histórico, dotado de memórias pessoais e coletivas, cujas reminiscências são materializadas na construção da Casa da Flor. “Mas eu vi e vou contando aos outros como foi”, diz Gabriel, em uma das suas últimas falas do documentário. Gabriel evidencia as ambiguidades oriundas nas questões raciais do país, explicitando as dicotomias entre passado/presente. Essa dimensão dada ao referido personagem conduz o aparecimento dos temas e a tentativa do diretor em reconstituir parte da memória negra pós-abolição, porém, o que o filme faz é abrir a memória para um emaranhado de fios pelos quais a população negra presente no filme apresenta suas percepções sobre o acontecimento que motiva o documentário, inclusive apresentando óticas diferentes para as experiências marcadas por questões raciais. 403 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi Referências CORRÊA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu (6/7), Campinas – São Paulo, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 1996, p. 35-50. DEVULSKY, Alessandra. Colorismo (Coleção Feminismos Plurais). São Paulo: Jandaíra, 2021. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador – saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017. GOMES, Nilma Lino. Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação. In: MUNANGA, Kabengele. (Org). Superando o racismo na escola. Brasília: SECAD, 2005. HAYES, K.;HANDLER, J. (2009). Escrava Anastácia: The Iconographic History of a Brazilian Popular Saint. African Diaspora 2, 1, 25-51, Available From: Brill https:// doi.org/10.1163/187254609X430768 [Accessed 30 August 2023] LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2021. MUNANGA, Kabengele. Identidade, Cidadania e Democracia: algumas reflexões sobre os discursos anti-racistas no Brasil. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas, SP, v. 5, n. 1, p. 17–24, 2006. DOI: 10.20396/resgate.v5i6.8645505. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/ view/8645505. Acesso em: 21 ago. 2023. MUNANGA, Kabengele. Negritude afro-brasileira: perspectivas e dificuldades. Revista de Antropologia, vol. 33, 1990, pp. 109–17. MUNANGA, Kabengele. Negritude e identidade negra ou afrodescendente: um racismo ao avesso? Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/ as (ABPN), [S. l.], v. 4, n. 8, p. 06–14, 2012. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/ site/article/view/246. Acesso em: 21 ago. 2023. 404 notas sobre o pós-abolição no cinema Robson P. Silva, Grace C. Costa e Lays C. Capelozi MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e sentidos. 3º ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. MUNANGA, Kabengele. Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil de hoje?. Revista do Instituto de Estudos brasileiros, p. 20-31, 2015. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 5º ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. MUNANGA, Kabengele. (org.). Superando o Racismo na Escola. Brasília: Ministério da Educação, Secretária de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. PAULA, Cláudia Regina de et al. Pilares negros: educação, fé e política na Diocese de Duque de Caxias (1988-2000). Tese em Educação. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013. ROCHA, Fábio Libório. Dádiva como conceito de socialização do Olubaje do Candomblé na RIDE-Distrito Federal. Revista de Alimentação e Cultura das Américas, v. 3, n. 2, p. 23-35, 2022. RODNEY, Pai. É a doença que nos ensina que saúde é um bem precioso. In: Carta Capital, Colunas e Blogs, São Paulo, 20 de março de 2020. Disponível em: http://www. cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/e-a-doenca-que-nos-ensina-que-saude-eum-bem-precioso/. Acessado em 12 de agosto de 2023. RODRIGUES, Jaime. Fios de O Fio da memória. Revista de História, [S. l.], n. 141, p. 179-182, 1999. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/ view/18892. Acesso em: 21 ago. 2023. RODRIGUES, Josiel William Paes. Colorismo: uma visão aplicada. Dissertação em Economia. Araraquara: UNESP, 2023. RODRIGUES, Laércio Ricardo de Aquino. A primazia da palavra e o refúgio da memória: o cinema de Eduardo Coutinho, 2012, 331 f. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas 2012. 405 Luiz Gama: o contributo civilizatório da negritude como uma contra-perspectiva da missão civilizadora ocidental Ana Vitória Luiz e Silva Prudente1 Alexandre Filordi de Carvalho2 Introdução “Luiz Gama: o Contributo Civilizatório da Negritude como uma contraperspectiva da Missão Civilizadora Ocidental” elucida o que foi e é a Missão Civilizadora Ocidental, que existe desde o período colonial e ainda persiste por meio da perversidade da globalização – que tem como proposta econômica o desamparo, gerador do brutalismo de Mbembe (2021). Ao longo do texto elucidamos que a Missão Civilizadora resulta na completa desorientação existencial, pois o Ocidente se desumaniza na medida em que tenta impor uma geografia carcerária que, segundo Mbembe (2021), propõe a relegação de pessoas consideradas sem direitos e, portanto, sem dignidade. 1 Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com licenciatura em Artes Visuais. É Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com orientação do Prof. Dr. Alexandre Filordi de Carvalho, é integrante do grupo de pesquisa GRIITE\CNPq, pesquisadorae produtora da Mostra Internacional de Cinema Negro (MICINE), assistente de produção do programa radiofônico Quilombo Academia da Rádio USP e analista educacional da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP). 2 Professor Associado III no Departamento de Educação da Universidade Federal de Lavras (UFLA) pesquisador permanente do Programa de Pós-graduação da UNIFESP. É pós-doutor em Educação pela Universidad Complutense de Madrid e pela Uniersidade Estadual de Campinas. Coordenador do GRIITE/CNPq. 406 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho Em sequência, na contraposição a Missão Civilizatória que nos endereça a perversidade, reconhecemos o Contributo Civilizatório da Negritude por meio do perfil de Luiz Gama, um líder negro com compromisso ético com a cultura de paz. Nessa parte do artigo, que nomeamos “Contributo Civilizatório da Negritude: um sorriso negro”, referenciamos o corpo negro como expressão de resistência, transgressão e combate ao projeto desumanizador das Missões Civilizadoras, contrariamente à ideia de mercadoria que a colonialidade propôs ao corpo negro e suas produções artísticas, epistemológicas, cosmogônicas e culturais. Discernimos que o Contributo Civilizatório da Negritude propõe a libertação e a autonomia daquele que é entendido como “o outro”, livrando-os os grilhões de uma charlatã imposição de verdade única. Concluímos, no presente texto, que a Dimensão Pedagógica do Cinema Negro está para além da linguagem cinematográfica, justamente porque ela se estabelece como um Contributo Civilizatório da Negritude ao reconhecer o outro como ser dotado da capacidade de consciência e discernimento e portanto livre para construir outras possibilidades de relações sociais que proporcionem uma cultura de paz. O que é elucidado ao focarmos no perfil de Luiz Gama, pois dessa forma reconhecemos a magnitude da produção artística associada à dimensão de consciência racial, que é basilar para o agenciamento do Contributo Civilizatório da Negritude. Missão Civilizadora Ocidental: do Período Colonial à Globalização, perversidade A noção de tempo e espaço contraídos se difundiu por meio da ciência e da tecnologia em um contexto de globalização que tenta impor um discurso único: o culto ao consumo. Vivemos, portanto, em um Mundo confuso e confusamente percebido, isso porque a globalização – como elucidou Milton Santos,ao propor uma nova globalização– tem se imposto como uma “fábrica de perversidades” para a maior parte da humanidade. Uma vez que nessa globalização a pobreza se alastra como “resultante de um sistema de ação deliberada” (SANTOS, 2016, p. 72), também recepcionada como um fenômeno banal, natural e inevitável, quando na verdade é produzida politicamente. Recentemente, Mbembe (2021) se valeu na noção de brutalismo para esquadrinhar tal cenário. Sintetiza-o utilizando a descrição de um mundo dominado pelo pathosda demolição e da produção que, sob uma escala planetária, assola a vida 407 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho como força geomórfica. A pobreza, por exemplo, seria mero conluio consequente dos modos pelos quais o brutalismo justifica o “pleno uso da lei com o intuito de multiplicar os estados de não direito e de desmantelar todas as formas de resistência” (Mbembe, 2021, p. 14). Na sociedade capitalista,o brutalismo se ancorou ao racismo colonial. Desde então, há uma contundente tentativa de homogeneização da “geografia carcerária”, expressão de Mbembe (2021), que, por meio do mercado, por sua vez, a serviço da hegemonia do poder e do suposto saber eurocêntrico, arquiteta a manutenção do poder desta geografia carcerária: são lugares de internamento, espaços de relegação, dispositivos para colocar de lado pessoas consideradas intrusas, sem titulação e, portanto, sem direitos e, ao que se acredita, sem dignidade. Fugindo de mundos e lugares tornados inabitáveis por uma predação dupla, exógena e endógena, elas entram onde não deveriam, sem terem sido convidadas e sem que sejam desejadas. Ao agrupá-las e colocá-las de lado, não se trata de resgatálas (Mbembe, 2021, p. 195). Ocorre que a geografia carcerária também se dissipa em formas subjetivas, isto é, confiscam e internam riquezas simbólicas, expressivas e multi-perspectivantes com relação à vida, ao mundo e ao cosmos. O lastro colonial faz dos sujeitos brutalizados espécies de “outro desprezado”, nos termos de Viveiros de Castro (2015). Nesse caso, enquanto “uma das manifestações típicas da natureza humana é a negação de sua própria generalidade” (Viveiros de Castro, 2015, p. 35), justamente porque não há predicado essencial e unificador para a condição humana, o que o geist colonial produziu foi justamente a supressão da riqueza e da multiplicidade acerca da “natureza humana”. O grande justificador da “geografia carcerária” foi a introdução intrusiva do dualismo pautado por uma concepção mononaturalista, “um apartheid radical entre seus respectivos habitantes (Viveiros de Castro, 2015, p. 54), quer dizer, entre os colonizados e os colonizadores. A derivação não poderia ser outra: nasceu assim a coisa do mundo mais bem compartilhada, o etnocentrismo, conforme sustenta Viveiro de Castro (2015), logo, o outro desprezado, justificadamente, passivo de toda geografia carcerária. Delinear 408 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho tal cenário correspondem ao questionamentode monocultura. Em jogo estão as cosmopercepções que nos revelam variadas dimensões epistemológicas e possibilidades de vida. As multiplicidades étnico-raciaisafirmam não um relativismo cultural mas a singularidade única de toda maneira de se perspectivar as diferenças que somos. No limite, “se coloca o problema da tradução do perspectivismo nos termos da ontosemiótica da antropologia ocidental” (Viveiro de Castro, 2015, p. 67). E como o próprio antropólogo explicou, isto é uma questão de etograma, quer dizer, a origem de todo perspectivismo está no corpo, pois é, em sua singularidade, “feixe de afetos e capacidades, e que é a origem das perspectivas” (Viveiros de Castro, 2015, p. 66). Ora, é insofismável encontrarmos nas dimensões expressivas do perspectivismo condições de resistência não apenas contra o brutalismo vigente, mas igualmente maneiras produtivas de se fazer circular etogramas para além daqueles circunscritos à geografia carcerária de sanha colonial. Perante a imposição vertical e disseminada do que Prudente (2019) denominou de euro-hétero-macho-autoritário, podemos afirmar que existem múltiplas criações artísticas, científicas, políticas e econômicas geradoras e afirmadoras de perspectivismos. Aliás, é nessa direção, veremos de modo mais preciso adiante, que o cinema negro se circunscreve. Com efeito, estaríamos nos movendo em outra direção: para além da limitada produção simbólica carcerária eurocaucasiana, com sua onto-semiótica colonial. A lógica colonial, de axiologia cartesiana, estabelece uma condição de antagonismo entre os diferentes. Dessa forma específica, comoreferência, o eurohétero-macho-autoritário e seus derivados simbólicos como a única existencialidade possível. A partir daí, “a humanidade instala-se na monocultura, prepara-se para produzir civilização em massa, como beterraba. Seu trivial só incluirá esse prato”, diz nada mais nada menos que Lévi-Strauss (2016, p. 38-39). O “trivial” dessa condição também condicionou à mesa expressiva a extensão de significados como visão de mundo (Weltanschauung) reduzida às “especiarias morais”, dizia Lévi-Strauss (2016). O que se consolidou a chamar Ocidente não passa de uma harmonia impositiva entre o que deveria prevalecer em todo esse cenário. Por conseguinte, “a ordem e a harmonia do Ocidente exigem a eliminação de uma massa extraordinária de subprodutos nocivos que hoje infectam a terra” (Lévi-Strauss, 2016, p. 39). 409 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho Os termos brutais do antropólogo são partículas aceleradoras nas necessárias intervenções perspectivantes contra o próprio brutalismo ocidental. A crítica que Viveiros de Castro (2015, p. 43) profere à dicotomização clássica entre Natureza e Cultura fornece indícios contra o reducionismo a tudo que se pretende reduzido ao “universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e instituído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade etc.” Como sabemos, porém, as dimensões ou domínios cosmológicos não ocidentais não passam por esses esquadrinhamentos. E é o alongamento das estratégias coloniais, sintetizado hoje pelo “brutalismo”, o cúmplice valorativo do reducionismo das riquezas e diferenças onto-semióticas. Por conseguinte, as estratégias que permanecem, infelizmente, são expressasem polos reducionistas de positividadee negatividade, o que não permite a convivência da multiplicidade etográfica, pois a colonialidade propõe, em sua essência, a dominação e a subjugação do “outro”. Sabendo que as navegações que trouxeram os ibéricos e outros grupos étnicos europeus para o que hoje entendemos como Américas tinham uma expectativa de expansão territorial, observamos que “as empreitadas coloniais buscaram propagar um pensamento único”, conforme argumentaPrudente (2023, p. 22). O brutalismo da geografia carcerária continua, sob a égide da globalização perversa, ratificando a argamassa ocidentalizante de pensamento único.Esse pensamento único se relaciona tanto com uma perspectiva de dimensão cristã quanto comuma lógica acumulativa, expressa ideário econômico de mercantilização da existência.Aliás, Leiris (2007) em A África fantasma evidencia, com todas as letras, que a violência cristã se infiltrou nas estratégias coloniais como vontade unificadora de tradução de sentidos e de valores. Tudo que fosse contrário ao seu diapasão de verdades ortodoxas era passivo de brutalização. De longe a verdade é que “os regimes ontológicos ameríndios divergem daqueles mais difundidos no Ocidente precisamente no que concerne às funções semióticas inversas atribuídas ao corpo e à alma (Viveiros de Castro, 2015, p. 34-35). Sem sombra de dúvidas, o mesmo vale para os africanizados aportados para as colônias e lançados à geografia carcerária de seus investimentos expressivos. Seja como for, o registro é sempre o mesmo, como ensinou Memmi (2007, p. 17, grifos originais): O privilégio colonial não é unicamente econômico. Quando observamos o convívio entre o colonizador e o colonizado, logo descobrimos que tanto a 410 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho humilhação cotidiana do colonizado quanto seu esmagamento objetivo não são apenas econômicos; o triunfo permanente do colonizador não é apenas econômico. O pequeno colonizador, o colonizador pobre, também se considerava, e em um certo sentido realmente o era, superior ao colonizado; objetivamente, e não apenas em sua imaginação. E isso também fazia parte do privilégio colonial. Ora, ainda no contexto colonial, as diferenças observadas pelos ibéricos fizeram com que aquela multiplicidade de grupos étnico-raciais, encerradas no conceito de “índios”, fossem consideradas inferiores. Imediatamente a eles se somariam os africanos escravizados. As características físicas e culturais, dos grupos indígenas foram observadas,“a feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto” (CAMINHA, 1500)1 e uma vez que não podiam subtraí-las por completo, focaram-se em “exorcizar” as diferenças cosmogônicaspor meio da conversão. Em suas cartas quadrimestrais, o Padre José Antônio de Anchieta relatava os efeitos das doenças trazidas pelos ibéricos,a vasta natureza do Brasil,aponta a cultura indígena como “mau costume”e discorre sobre a resistência dos indígenas a violenta alienação que visava a conversão: “os adultos, aos quais o mau costume de sus pais quase se converteu em natureza, cerram os ouvidos para não ouvir a palavra de salvação e converter-se ao verdadeiro culto de Deus” (ANCHIETA, 1560, p.57). A estratégia privilegiada do ocidentalismo colonizador constituiu a Missão Civilizadora, que, em suma, foi: A dominação política do outro pela invasão do seu território, a exploração econômica de suas riquezas naturais e a sujeição cultural que pretendia substituir as culturas, religião e visão de mundo dos povos indígenas por outras consideras melhores e superiores. (...) As doenças venéreas, gripes e outras endemias trazidas pelos europeus contribuíram também para piorar o quadro demográfico das populações à chegada dos portugueses, no século XV, contavam-se por milhões e que hoje não chegam aos duzentos mil. (MUNANGA, GOMES, 2016, p. 15-16). 411 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho As missões civilizadoras também deixaram marcas profundas nas diferentes massas continentais, na África, Ásia e Oceania, para além das Américas. Ainda que em diferentes contextos, repetiu-se a tentativa de “civilizar” os “selvagens” e incorporá-los forçosamente ao esforço laboral em favor do colonialismo. Seja em suas terras natais ou por meio do tráfico humano seguido de escravidão, todos os grupos assimilados como “o outro” sofreu com a tentativa de sua desumanização. A narrativa de uma suposta superioridade cultural foi usada como retórica para esconder as motivações reais, a saber, “a dominação política do outro pela invasão do seu território, a exploração econômica de suas riquezas naturais e a sujeição cultural que pretendia substituir as culturas, religião e visão de mundo” (MUNANGA, GOMES, 2016, p.15). Vamos destrinchar um pouco mais a ideia de Missão Civilizadora.Para tanto é preciso trazer um pouco da contextualização histórica de como o cristianismo se disseminou por Roma e adotou como propósito o fortalecimento da Igreja por meio da expansão.A missão, portanto, em um entendimento cristão, é a da salvação por meio da fé na ideia de um único Deus e a manutenção desse Deus por meio da propagação da palavra daquele que seria seu filho, em latim, Jesus Cristo. E essa missão é o ato de enviar ou de ser o enviado no encargo de tornar civil, tornar cortês.Civilização vem do latim, relativo a cidadão, aquele que vive na cidade, a palavra civilizadora declara o propósito de tirar o outro da barbárie, da selvageria associada a vida fora dos padrões cristãos. A visão unificadora do cristianismo – no pensamento do evangelista Saulo de Tarso, ou seja, o Apóstolo São Paulo – foi usada na perspectiva do fortalecimento da Igreja de Constantinopla, que adotou para o seu propósito de expansão e poder. (...) Para contornar a expressiva presença do paganismo frente a ainda rarefeita expressão cristã, desenvolveu-se uma política de dominação da imagem. (PRUDENTE, PRUDENTE, 2022, p.87). Césaire (2020)responsabiliza o cristianismo que, com o seu pedantismo, fez a desonesta equação “cristianismo = civilização; paganismo = selvageria” e, por meio da colonização,“adicionou o abuso moderno à antiga injustiça; o racismo odioso à velha desigualdade” (2020, p. 27). Lévi-Strauss (2016, p. 233) relembra a estratégia que os padres salesianos encontraram para “civilizar” os povos Boboro: 412 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho A distribuição circular das cabanas em torno da casa dos homens é de tal importância, no que se refere à via social e à prática do culto, que os missionários salesianos da região do rio das Garças logo aprenderam que o meio mais seguro de converter os Bororo consiste em fazê-los trocar sua aldeia por outra onde as casas são colocadas em fileiras paralelas. Desorientados em relação aos pontos cardeais, privados da planta que fornece um argumento a seu saber, os indígenas perdem rapidamente o sentido das tradições, como se seus sistemas social e religioso fossem complicados demais para dispensar o esquema patenteado pela planta da aldeia e cujos contornos são perpetuamente reavivados por seus gestos cotidianos. A missão civilizadora não apenas resultou no sequestro e na escravização de povos,destruição de culturas, epistemicídios, assassinatos em nome de uma suposta fé e/ou moral, estupros e torturas públicas, mas em uma completa desorientação existencial. Na tentativa de desumanizar aquele compreendido como “o outro”, o ocidente desumanizou a si: A colonização, repito, desumaniza até o homem mais civilizado; que a ação colonial, o empreendimento colonial, a conquista colonial fundada no desprezo pelo homem nativo e justificada por esse desprezo, inevitavelmente, tende a modificar a pessoa que o empreende, que o colonizador, ao acostumarse a ver o ouro como animal, ao treinar-se para tratá-lo como um animal, tende objetivamente, para tirar o peso da consciência, a se transformar, ele próprio, em animal (CÉSAIRE, 2020, p. 23). É inegável, dessa forma, a concepção de Césaire de que “a Europa é responsável perante a comunidade humana pela maior pilha de cadáveres da história” (2020, p. 26) e que se mantém no contexto tecnológico da globalização com o abandono da ideia de solidariedade em uma proposta econômica baseada em desamparo, como ressalta a ideia de brutalismo de Mbembe. Não obstante, estamos diante do que Santos (2016) nomeia como perversidade sistêmica. Mas podemos afirmar que a perversidade sistêmica atual não passa de uma extensão da forma colonial de agir. Em pesquisa recente, cujo título por si só converge 413 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho para o que estamos sustentando – A nova era do império: como o racismo e o colonialismo ainda dominam o mundo – Andrews (2023) nos faz enxergar o vertiginoso recrudescimento do racismo, eivado de formas brutais, no âmbito global, contudo, à guisa da mesma fórmula da exploração mercantil. Ora, a nova Missão Civilizadora abraça o fundo causal do mesmo disparador colonial: subjugação e aniquilação de muitos em detrimento de poucos. Na contemporaneidade,a civilização se molda pelo seu nível de consumo e, para ter acesso aos bens, é preciso integrar o mercado. Mas ter não é o suficiente. É preciso que vejam suas posses, a imagem - por meio das mídias de massa - ganham o status de carta de propriedade para quem almeja o pertencimento. Parecer que se tem, já nos ensinava Debord (2000), passou também a ser a nossa entrada na sociedade do espetáculo. Doravante,a Missão Civilizadora se estabelece com o apoio dos algoritmos, com o uso das inteligências artificiais para o mercado de consumo e a exposição de um ideal hegemônico espetacular. Assim, estamos em um ambiente de constante competitividade que nos leva a ausência da compaixão: A globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais da selva, reduz as noções de moralidade pública e particular a quase nada. O período atual tem como uma das bases esse casamento entre ciência e técnica, essa tecnociência, cujo uso é condicionado pelo mercado. (...)a ciência passa a produzir aquilo que interessa ao mercado, e não à humanidade em geral, o professo técnico e científico não é sempre um progresso moral. (SANTOS, 2016, p. 65). O empobrecimento das ciências humanas e a consequente dificuldade para interpretar o mundo não são meras consequências. Esse processo facilitou para o retrocesso humanístico, no qual nos distanciamos da política “já que a condução do processo político passa a ser atributo das grandes empresas” (Santos, 2016, p.60), deixando o caminho aberto não apenas “ao abandono das solidariedades e ao fim da ética, mas também da política” (2016, p. 61). Eis uma expressão do reducionismo da humanidade, por meiodas Missões Civilizadoras colonialistas do Ocidente. Aviolenta lógica acumulativa de bens, própria do eurocaucasianismo, estabelece a marginalização, 414 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho se não a exclusão e o assassínio de tudo que não exterioriza a “sua imagem e semelhança” que agora deve serrevelado em muitos pixels e em filmagens 4k. Aqui, “a sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas apenas pela hegemonia econômica. Domina-as como sociedade do espetáculo (Debord, 2000, p. 38, grifos originais). Nesse caso, basta dizer que o espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura (Debord, 2000, p. 30, grifos originais). É considerando tal horizonte que o Cinema Negro se estabelece na compreensão de Prudente (2019) como filmografia das minorias vulnerabilizadas e, logo, como possibilidade de resistência contra o brutalismo e novas colonizações expressivas de nosso tempo. Uma vez que a cultura é uma área em que habita as dinâmicas de dominação e resistência, em uma relação de força e de luta pelo poder, é preciso que aquele que é entendido como outro fale por si e para os seus. Verifica-se, portanto, a importância de uma imagem de afirmação positiva de toda alteridade. No entanto, para nossos interesses neste texto, privilegiaremos a perspectiva afrodescendente.É notório que as mídias de massa têm função fundamental de formação na sociedade contemporânea, no entanto, o contributo civilizatório da negritude se expressa em uma formulação mais próxima da multiplicidade da perspectiva onto-semiótica. Não se trata apenas de reafirmar, pelo cinema negro, instâncias expressivas contra a humanidade negra brutalizada, mas também de ampliar os coeficientes experimentais da própria expressividade humana. Afinal de contas, foi aniquilando estes coeficientes que o colonialismo fez reinar a monocultura da fé, da arte, da moral, do corpo, da cultivo da vida etc. Contributo Civilizatório da Negritude: um sorriso negro. Nas manifestações de arte negra, sobretudo na dança, na música, no teatro e no cinema, há ensinamentos de união, que são próprios do sentimento lúdico gregário da africanidade (Prudente, 2019). Razão pela qual a contribuição etnográfica de Marcel 415 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho Mauss (2003) é de suma importância para entendermos o sentido de coletividade na arte negra, que demonstra “dádiva” nas relações de trocas em contraponto às sociedades ocidentais. As sociedades ocidentais são estruturadas pela hegemonia do poder e do saber da euroheteronormatividade. Doravante, a ideia iluminista de “homem universal”, calcado em direitos essencialistas de igualdade e de liberdade, cedeu lugar à figura do ‘animal econômico’: A própria palavra interesse é recente, de origem técnica contábil: “interest”, em latim, que se escrevia nos livros de contabilidade referindo-se aos rendimentos a receber. Nas morais antigas mais epicurianas, é o bem e o prazer que se busca, e não a utilidade material. Foi preciso a vitória do racionalismo e do mercantilismo para que entrassem em vigor, e fossem elevadas à altura de princípios, as noções de lucro e de indivíduo. (...) (MAUSS, 2003, p. 307). A africanidade se organiza a partir do sentido artístico e sagrado da circularidade dos saberes, que se observa na tamboralidade africana (PRUDENTE, 2019), compreensão que está para além lógica de acumulação.O corpo negro e suas produções não são mercadorias, mas sim veículos de resistência, transgressão e combate ao projeto desumanizador das Missões Civilizadoras ocidentais. O Contributo Civilizatório da Negritude se constrói por meio das epistemologias do Sul global, que se evidenciam por meio da intersecção de linguagens, pois propõe a libertação e a autonomia daquele que é entendido como “o outro” das amarras de uma suposta verdade única.Leiris (2007) inclusive ressalta expressividade negra como condição cortante da massa localizável de sentidos e de valores ocidentais, sempre ávidos por serem traduzidos à compreensão almejada. No artigo “O comportamento civilizatório do afrodescendente versus o segregacionismo imagético do eurocaucasiano”, Celso Luiz Prudente e Ana Vitória Prudente (2021) apresentam o Quilombo dos Palmares, A revolta da Chibata, o Teatro Experimental do Negro (TEN) e os folguedos carnavalescos como contributos da cultura africana fundamentais para a formação da brasilidade. Podemos observar, assim, que a produção artística associada à dimensão de consciência racial é fundamental para o agenciamento do Contributo Civilizatório da Negritude, bem como a compreensão de 416 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho empatia e o estabelecimento de relações afetivas também permitem a comunhão em prol das mutações sociais resistentes aos prolongamentos colonizadores. Afinal, se a política é liberdade e, portanto, pluralidade existencial, ela deve regular e organizar o convívio mesmo no campo das diferenças. E, não por acaso, para Gramsci (1982) os intelectuais orgânicos são expressões da relação íntima entre a dinâmica laboral e a intelectual, o acesso a cultura na vida cotidiana. É nesse sentido que Hall (2003) estabelece que o intelectual orgânico é fundamental para uma reorganização nas relações étnico-raciais no contexto da diáspora. Se por um lado a Missão CivilizadoraOcidental buscava a dominação e a subjugação da diferença, o Contributo Civilizatório da Negritude não quer destituir a humanidade do outro e sim reafirmar aqueles que foram historicamente marginalizados. Na ótica de Munanga, por negritude entendemos que se refere: (...) à história comum que liga de uma maneira ou de outra todos os grupos humanos que o olhar do mundo ocidental “branco” reuniu sob o nome de negros. A negritude não se refere somente à cultura dos povos portadores da pele negra que de fato são todos culturalmente diferentes. Na realidade, o que esses grupos humanos têm fundamentalmente em comum não é como parece indicar o termo Negritude à cor da pele, mas sim o fato de terem sido na história vítimas das piores tentativas de desumanização e de terem sido culturas não apenas objeto de políticas sistemáticas de destruição, mas mais do que isso, de terem sido simplesmente negada a existência dessas culturas (MUNANGA, 2020, p. 19-20). Do período colonial à contemporaneidade, a tamboralidade africana busca instaurar a política de paz, que é oposta ao totalitarismo que se verifica na monocultura ocidental baseada no universalismo iluminista: Ao retornarmos, por exemplo, ao século XVIII, temos o homem branco e europeu como a principal referência para os parâmetros de civilidade, universalidade e racionalidade; é diante desse projeto iluminista, que temos a construção da ideia do homem moderno. Fica cristalino, portanto, que a classificação humana baseada na divisão binária (branco e não-branco) entre raças serviu como uma das tecnologias para a destruição dos povos 417 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho originários em todos os continentes, mas sobretudo nas Américas e da África, e ainda serve como manutenção do poder para o euro-caucasiano. Durante séculos a noção de raça operou sobre os registros biológico e étnico-cultural e, ainda hoje, a noção de raça ainda é um fator político importante, pois é reflexo da estrutura social racializada. Se o poder é o elemento central nas relações étnico-raciais, podemos, por conseguinte, afirmar que o racismo é dominação, uma vez que há a dimensão subjetiva do racismo, praticada por indivíduos, bem como há dimensões de concretude nas práticas racistas, que aludem as raízes da formação das instituições e da estrutura da sociedade como um todo. Fomos ensinados a desvalorizar as epistemologias africanas, ensinaram-nos a nos sujeitar e, quando não, a rejeitar os corpos negros (PRUDENTE, 2023, p. 67). Em outras palavras, “mesmo o Iluminismo, que cultuava a liberdade e a igualdade, também propagou o racismo” (PRUDENTE, 1980, p. 125). Por outra lado, a tamboralidade reflete a circularidade dos saberes, no sentido de representar não apenas os saberes produzidos pela e na luta dos oprimidos contra um sistema que privilegia as violentas proposições de epistemicídio e necropolítica de corpos não-brancos, especialmente da juventude negra brasileira. O contributo civilizatório da negritude se estabelece também por meio da compreensão de Césaire (2022) de que a negritude (...) pode ser definida em primeira linha como conscientização a diferença, como memória, como fidelidade e como solidariedade. Mas a negritude não é apenas passiva. Ela não é da ordem do sofrer e do sujeitar-se. Não é nem comiseração nem lamúria. A negritude resultada de uma postura ativa e ofensiva do espírito. É um despertar, e um despertar da dignidade. É um rechaço, um rechaço da opressão. É um combate, e um combate contra a desigualdade. É também revolta. (...) a negritude foi uma revolta contra aquilo que eu chamaria de reducionismo europeu (CÉSAIRE, 2022, p. 216-217). As principaiscriações de agenciamento de afirmação de diferenças e de multiperspectivismo na/pela negritudeadvêm de sua correlação direta com as produções culturais. Elas são observáveis especialmente por meio da produção musical, 418 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho literária,alimentícia, cênica, filmográfica e reconhecendo também a resistência geopolítica por meio de quilombos e revoltas sócio-políticas. Nas cosmogonias africanas um corpo que dança é um corpo de fé, um corpo que canta e toca tambor se conecta com o sagrado, e o respeito à biodiversidade é um prérequisito a existência. Este corpo perspectiva a disparidade valorativa da antropologia ocidental, na medida que são afins de múltiplas onto-semióticas. Vale ressaltar que “etmologicamente, um afim é aquele que está situado ad finis, aquele cucjo domínio faz fronteira como o meu. Os afins são aqueles que comunicam pelas bordas, que têm ‘em comum’ apenas o que os separa” (Viveiros de Castro, 2015, p. 76). Ora, o corpo permeado pela africanidade são dotados de outros afins. Logo, na intersecção das fronteiras de outras corporeidade, enriquecem a própria condição humana ao afirmar a riqueza não unificada cuja pretensão colonial reduziu o corpo à demandas de subjugação específica. Desse modo, podemos acrescentar ainda com Viveiros de Castro (2015, p. 66, grifos originais), “o que estamos chamando de ‘corpo’, portanto, não é uma fisiologia distintiva ou uma anatomia característica; é um conjunto de manieras ou modos de ser que constituem um habitus, um ethos, um etograma”. E se o corpo é um dos lugares nos quais a história se escreve, falemos da existência dos nossos, da vida daqueles que se empenharam pela construção de uma sociedade mais justa. Falemos dos corpos que tentaram esconder, invisibilizar, sujeitar, branquear e assassinar aqueles dotados de outros afetos, habitus, ethos e etograma. Afinal, a justificativa do brutalismo atual perpassa a geografia carcerária desses corpos, impedindo-os se afirmarem como são: diferentes, singulares, únicos e dotados de perspectivismos contra-coloniais. Engano superficial seria conceber que a Missão Civilizadora Ocidental não segue tentandoencarcerar os corpos negros na representação da monstruosidade, instaurando o medo e impondo o estigma de bandido, ladrão e vagabundo. Brasil, século XXI, 6 de agosto de 2019: nada mais nada menos que alguém do estatuto de pessoa pública de um vice-presidente da República afirma: “Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena [...] e a malandragem oriunda do africano” (Congresso em Foco, 2019). Nas vísceras do pacto da branquitude colonial, as violências de enquadramento do euro-hétero-macho-autoritário subalternizam os povos originários e africanos à geografia carcerária da potência de suas subjetividades. É a lógica do traçado de um “retrato do colonizado” (Memmi, 2007) prevalecendo em detrimento das possibilidades de afirmação de outros modos de se existir e de se relacionar. 419 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho Pensamos contudo que delinear e defender a história dos que insistiram a lutar contra tal dimensão é vital para evidenciarmos, desde a matriz de poder da Missão Civilizadora Ocidental, “a opressão política e a exploração econômica não têm o direito de ir procurar desculpas entre suas vítimas” (Lévi-Strauss, 2016, p. 434). Para tanto, traremos a experiência de um homem negro retinto inteligente, escritor, advogado que lutava por justiça em uma sociedade que buscava a manutenção da desigualdade. Urge reconhecer outras perspectivas para a construção da sociedade que buscamos/ queremos habitar, na qual conhecimento e preconceito são antitéticos. Por isso, neste artigo, apresentamos o perfil de Luiz Gama como uma imagem de afirmação positiva da negritude, que está a favor da Dimensão Pedagógica do Cinema Negro para além das questões fílmicas, manifestando-se na construção de uma outra possibilidade de civilização mais humanista. Focaremos no perfil de Luiz Gama reconhecendo sua existênciae, por consequência, sua obra, como uma das contribuições civilizatórias da negritude na fragmentação da verticalidade do euro-hétero-macho-autoritário (PRUDENTE, 2019). Neste artigo, o Cinema Negro não se relaciona com a linguagem cinematográfica, mas com o entendimento de que a Dimensão Pedagógica do Cinema Negro está para além do Cinema, justamente porque ela se estabelece como um Contributo Civilizatório da Negritude ao reconhecer o outro (no caso o negro) como senhor de si e de sua história, sendo um ser autônomo e livre para construir outras possibilidades de relações sociais que proporcionem uma cultura de paz. É nesse mesmo prisma que verificamos a produção histórica de Luiz Gama, que vivenciou a luta libertária em um contexto histórico de escravidão. O perfil de um líder negro com compromisso ético: Luiz Gama O primeiro monumento público em homenagem a um líder negro foi erguido na cidade de São Paulo, em um processo que correu de 1929 a 1931. Trata-se da herma de Luiz Gama, um dos raros intelectuais negros reconhecido como tal ainda no século XIX. Seu busto imponente se defronta, em São Paulo, com a Rua Rego Freitas, um juiz escravagista e, portanto, um desafeto de Gama, com um olhar altivo e superior, no centro de uma das maiores metrópoles do Mundo. 420 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho É preciso, já de antemão, pontuar: o Estado de São Paulo foi bastião da escravatura, para além do Brasil ter sido o último país do globo a abolir a escravidão; Campinas, espécie de feudo dos barões da cafeicultura, foi a última cidade a fazê-lo. Por isso é tão significativa essa força presente no imaginário concreto da cidade de São Paulo: a de um homem negro, retinto, que consegue comprovar de alguma maneira seu direito à liberdade e passa a atuar nesse sentido, participando da libertação dos africanos aqui escravizados pelo poder colonial lusitano. Escritor, poeta, um dos primeiros jornalistas negros do país, mas acima de tudo advogado, eis o perfil do baiano Luiz Gama, que atuou de forma contundente a favor dos escravizados no judiciário. Sua história faz jus ao título de patrono da abolição, a despeito do tentame recorrente de inviabilizá-lo, por parte da hegemonia do poder. O motivo: a donação história deveria recair exclusivamente na branquitude da coroa, representada pela Princesa Isabel, filha mais velha de Dom Pedro II e saudada como baluarte da abolição. O apagamento de Luiz Gama viria ao encontro da sanha eurocêntrica que, sendo a mesma responsável pela eugenia e pela geografia carcerária dos africanos sob a égide da escravidão, pretendia se redimir na invenção conveniente de uma narrativa que pudesse favorecê-la. Gama nasceu em um país ainda pouco afeito à independência mental, política e econômica.Mas ainda assim, nasceu livre, no estado da Bahia. Muito do que sabemos a seu respeito se dá por conta da carta autobiográfica escrita por ele a Lúcio Mendonça, um amigo, também intelectual, advogado, idealizador da Academia Brasileira de Letras. Segundo pesquisas feitas principalmente pela linguista, pesquisadora da vida e obra de Luiz Gama, Prof.ª Dr.ª Ligia Fonseca Ferreira, docente da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP): Gama se dizia filho de uma africana livre, Luiza Mahin, pintada como uma mulher “altiva, geniosa, insofrida e vingativa” (in Moraes, 2005, p.69), envolvida em revoltas negras como as inúmeras que agitam a Bahia dos anos 1830. Contrariamente, porém, ao que sonharam alguns a partir de uma interpretação fantasiosa do que escrevera Luiz Gama, atribuiu-se equivocadamente à mítica Luiza Mahin um papel de liderança jamais comprovado na Revolta dos Malês (Reis, 2003, p.303). Luiz Gama, no entanto, alude à adesão 421 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho de seus pais a um outro levante baiano. Sua mãe teria se dirigido ao Rio de Janeiro, ali desaparecendo, após a “Revolução do Dr. Sabino” em 1837, movimento que proclama uma república provisória em repúdio ao poder monárquico central, a exemplo do que ocorria em outro ponto do país, como a Revolução Farroupilha. Quanto à figura paterna, é também descrita como a de um “revolucionário em 1837”, pertencente a “uma das principais famílias da Bahia de origem portuguesa” (in Moraes, 2005, p.70). Luiz Gama, porém, jamais revelaria o nome do pai que o vendeu aos dez anos de idade como escravo, protagonizando o primeiro dramático episódio de sua existência. Aos dezoito anos, aprende a ler e a escrever e consegue as provas de ter nascido livre. (FERREIRA, 2007, p. 271). Luiz Gama é lembrado por suas grandes atuações no exercício de se fazer valer a lei e estabelecer a justiça, bem como as condições de direitos, ainda que ele seja intitulado de rábula – que segundo o dicionário pode ser compreendido tanto com um advogado charlatão, quanto como alguém que exerce a advocacia mesmo sem possuir formação acadêmica para tal – adjetivo questionado pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador do Instituto Max Planck, em Frankfurt, na Alemanha e pela professora e pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira, professora de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)2. Não à toa os cursos de direito do Brasil têm uma dívida histórica com Gama, bem como para o movimento negro, principalmente o Largo São Francisco (onde se localiza o curso de Direito da Universidade de São Paulo – USP), que não o recebeu como estudante de direito e que, no centenário da abolição da escravatura, fez uma campanha para que fosse erguida uma homenagem ao Min. Ruy Barbosa – responsável pela queima dos arquivos gerais da escravidão – tentando desmobilizar o movimento organizado pela imprensa negra, principalmente pelo Jornal “O Progresso”,mobilizados na defesa da homenagem o Dr. Luiz Gama. Se há por parte dos juristas uma reticência em reconhecer a grandeza daquele que conseguiu ser mais astuto que seus algozes em muitas batalhas no campo da justiça, as áreas de linguagens e comunicações não negam seu valor. É sintomático que o título de ‘Doutor honoris causa’ concedido postumamente, no ano de 2021, a essa grande 422 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho liderança jurídica do movimento negro não tenha sido idealizado por professores do curso de direito, e sim pelo docente Dennis de Oliveira, das áreas de comunicação da Universidade de São Paulo. Não é o acaso que leva Luiz Gonzaga Pinto da Gama, nascido em Salvador, no dia 21 de junho de 1830 e falecido em São Paulo no 24 de agosto de 1882, ao reconhecimento por parte da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Gama foi um pioneiro no campo da imprensa e da literatura, atuando enquanto escritor, poeta e jornalista, seu domínio discursivo contundente é um registro documentado formalmente. Sendo um dos poetas do Romantismo brasileiro, lançou apenas um livro, “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”, publicado originalmente no ano de 1859 e reeditado em 1861. Por outro lado, no campo das comunicações, Gama foi pioneiro, criando o primeiro semanário ilustrado, o “Diabo Coxo”, na cidade de São Paulo, em parceria com o desenhista Ângelo Agostini, em 1864, além de ter colaborado com diversos veículos midiáticos: Radical Paulistano, o Correio Paulistano e A Província de São Paulo (hoje O Estado de São Paulo). A importância de Gama se expressa na fala de Gomes (2017), lembrandonos que “A imprensa negra paulista, com suas diferentes perspectivas, pode ser considerada como produtora de saberes emancipatórios sobre a raça e as condições de vida da população negra.” (2017, p. 29). Dessa forma, faz sentido o que nos aponta a grande pesquisadora de Luiz Gama, a Prof. Dr. Ligia Fonseca Ferreira, no programa “Diversidade em Ciência” do Prof. Dr. Ricardo Alexino na Rádio USP3, o abolicionista foi também um pioneiro no campo da Educação. No artigo “Luiz Gama autor, leitor, editor: revisitando as Primeiras Trovas Burlescas de 1859 e 1861”, Ferreira (2019) nos lembra: Em pleno período romântico, durante o qual o negro-escravo desponta como tema na poesia ou personagem no romance, as Primeiras Trovas Burlescas (PTB) inscrevem uma figura até então ausente da produção literária brasileira: o negro autor, que se enuncia e deseja ser visto enquanto tal (“negro sou”). O pseudônimo estampado na capa não é fortuito: “Getulino” deriva de “Getúlia”, território da África do Norte, entre as atuais Argélia e Mauritânia, habitada pelos “getulos” na Antiguidade. O autor assumia de cara sua origem africana. Tal fato encerra ineditismo e transgressão. (FERREIRA, 2007, p. 109) 423 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho O perfil de Luiz Gama revela sua relevância na história brasileira e sua produção prática e teórica contundente e que ainda se mostram atuais. A imagem de Luiz Gama é representativa, e isso se dá, também, por meio da luta protagonizada pelo Movimento Negro que, segundo a Prof. Dr. Nilma Lino Gomes (2017), é educador, de reconhecer essa figura como um líder negro. Dialogando com a Dimensão Pedagógica do Cinema Negro, há nesse empenho por parte do Movimento Negro o interesse em valorizar essa imagem por seu caráter pedagógico. Gama, portanto, representa uma possibilidade de construção de negritude no sentido de aquisição de consciência negra e como uma ação de um movimento de luta pelo fim da escravidão e pelo fim da monarquia. Luiz Gama sonhava com um país “sem reis e sem escravos”, sua existência e suas produções contribuíram para que possamos vivenciar essa realidade na contemporaneidade, eis um dos seus contributos civilizatórios. Gomes (2017) nos lembra que os movimentos sociais (...) são produtores e articuladores dos saberes construídos pelos grupos não-hegemônicos e contra-hegemônicos da nossa sociedade. (…) Muito do conhecimento emancipatório produzido pela sociologia, antropologia e educação no Brasil se deve ao papel educativo desempenhado por esses movimentos. (GOMES, 2017, p. 16). Em outras palavras, apreende-se, então, que muito do acesso que temos a essa figura se dá por uma luta do Movimento Negro, que busca “um lugar de existência afirmativa” (GOMES, 2017, p.21)sob um prisma menos eurocentrado. Sua relação próxima com a literatura, com o direito e sua presença na cidade por meio das artes plásticas/visuais permitiu a materialidade da sua contribuição, bem como a propagação da sua história e de seus feitos. Se no século XIX ele foi reconhecido a ponto de ter uma herma sua no centro da cidade, apenas no século XXI tivemos sua história contada no cinema - o que reafirma nosso entendimento de que há uma Missão Civilizadora Ocidental que tenta inviabilizar os feitos e personalidades que não compõe a verticalidade da imagem do euro-héteromacho-autoritário (Prudente, 2019). Luiz Gama teve sua vida roteirizada por Luiz Antônio no filme Doutor Gama (2021), que apresentou o perfil dessa figura representativa para o Movimento Negro a partir do olhar de um realizador negro, Jeferson De. 424 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho A cinebiografia do abolicionista é uma maneira de dar vazão a sua existência que transcende o seu período histórico, uma vez que as mídias de massa facilitam o acesso do público com essa personalidade. Jeferson De é um importante cineasta negro que também trouxe contribuições fílmicas e teóricas para a compreensão do Cinema Negro, e ao apresentar a história de Gama potencializa a ideia de Contributo Civilizatório da Negritude que há no Cinema Negro. Não analisamos aqui o filme em si, pois entendemos o valor da experiência cinematográfica, principalmente no campo das relações étnico-raciais, ao abordar uma figura histórica como essa. Mais do que ser inteligível ou não, essa é uma cinebiografia que deve ser sentida e vivenciada não só do prisma cinematográfico, mas do Cinema como produtor de sentidos e do Cinema Negro como veículo do Contributo Civilizatório da Negritude, justamente por ser a filmografia das maiorias minorizadas e portanto vulnerabilizadas. Considerações Finais No Brasil, “coexistem, lado a lado, a sobrevivência da sociedade escravista e as inovações da sociedade capitalista” (BASTIDE; FERNANDES, 2008, p. 21). Por isso, é fundamental informar sobre a cultura afro-brasileira e africana sem misticismo, em ações permeadas de tentativas de folclorização, colocando-a dentro de um prisma de exotificação. É preciso usar-se do Cinema Negro para estabelecer uma representação do outro que o coloque como agente de sua própria existência, isso porque a cultura e a produção afro-brasileira e africanas são partes inegáveis da construção de identidade do povo brasileiro, e expressão do Contributo Civilizatório da Negritude avesso a Missão Civilizadora Ocidental. Nesse sentido, é preciso levar às últimas consequências a noção abrangente que Joel Rufino dos Santos (1985) interpõe para o Movimento Negro, trata-se de“(...) todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo (aí compreendidas mesmo aquelas que visavam à autodefesa física e cultural do negro)”. E, portanto, concordando com a Gomes (2017),pensar o Movimento Negro como educador “produzindo conhecimento emancipatório, como articuladores dos saberes construídos e sistematizados por grupos não-hegemônicos” (PRUDENTE, 2023, p. 51) é algo urgente e precípuo. 425 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho Partindo da conceituação de Prudente (2019), do Cinema Negro como a filmografia dos vulnerabilizados, compreendemos que o Cinema Negro é um contributo civilizatório da negritude fora dos circuitos colonizadores, isso porque atua em nome da fragmentação da violenta verticalidade da Missão Civilizadora Ocidental, como vimos, tão presente no contexto contemporâneo. Entendemos como determinante para a luta antirracista conhecer e reconhecer os perfis de grandes líderes do Movimento Negro e por consequência desestruturar a propagação moderna e atualizada da Missão Civilizadora Ocidental, que visa a definição da diferença como sinônimo de permissividade para a violência e por consequência produção de desigualdades. A valorização de outras histórias por meio das Mídias de Massa como Cinema, Rádio, publicação literária e outras produções de cunho cultural permitem um contato com o perspectivar do mundo e da vida, da ética e da estética, da corporeidade e das culturas afro-brasileiras e africanas, com personagens negras que sejam representativas do perspectivismo e do etogramacontra-coloniais. Finalmente, ponderamos que o Cinema Negro, na perspectiva de Contributo Civilizatório da Negritude, transcende a linguagem cinematográfica, uma vez que propõe a libertação e a autonomia de todos aqueles que são entendidos como “o outro”, em especial a população negra que tanto sofre e sofreu com a geografia carcerária com suas estratégias de negação da sua humanidade. Referências Bibliográficas ANCHIETA, José de. “Carta Ir. José de Anchieta ao Geral P. Diogo Laínes, Roma” São Vicente, Io de junho de 1560. In: Associação Comercial de São Paulo (org). Minhas Cartas - Por José de Anchieta. São Paulo: Associação Comercial de São Paulo, Editora Melhoramentos, Páteo do Collegio, 2004. p. 56-76. BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008. CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020. CONGRESSO EM FOCO. Mourão diz que país herdou “indolência” do índio e “malandragem” do africano. Congresso em Foco, 6 de ago. 2018. Acessado em 17 426 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho de set. 2023. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/mouraodiz-que-pais-herdou-indolencia-do-indio-e-malandragem-do-negro/> DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. FERREIRA, L. F. Luiz Gama: um abolicionista leitor de Renan. Estudos Avançados, São Paulo, v.20, n.60, p.271-88, 2007. GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos na luta por emancipação. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1982. Disponível em: https://cesarmangolin.files. wordpress.com/2010/02/gramsci-os-intelectuais-e-a-organizacao-da-cultura1.pdf [Último Acesso 14 de setembro de 2023]. HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representações da UNESCO no Brasil, 2003. LEIRIS, Michel. A África fantasma. São Paulo: CosacNaify, 2007. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. 1ª Edição. São Paulo: Cosac Naify, 2003. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1888?show=full [Último Acesso em 11 de setembro de 2023]. MBEMBE, Achille. Brutalismo. São Paulo: N-1, 2021. MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O Negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006. MUNANGA. Kabengele. Negritudes: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. PRUDENTE, Ana Vitória Luiz e Silva. Mostra Internacional de Cinema Negro: A Educação nas relações étnico-raciais para além da euroheteronormatividade. Dissertação (Mestrado) - Guarulhos: UNIFESP, 2023. 427 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho PRUDENTE, Celso Luiz; PRUDENTE, Ana Vitória. O Comportamento Civilizatório do Afrodescendente versus o segregacionismo imagético do eurocaucasiano. In: SANTOS, Hélio. A resistência Negra ao Projeto de Exclusão Racial: Brasil 200 anos (1822-2022). São Paulo: Jandaíra, 2022. PRUDENTE, Celso Luiz. (2019) A dimensão pedagógica do cinema negro: uma arte ontológica de afirmação positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio. In: SILVA, Dacirlene Célia; PRUDENTE, Celso Luiz (org.). A dimensão pedagógica do cinema negro – aspectos de uma arte para a afirmação ontológica do negro brasileiro: o olhar de Celso Prudente. São Paulo/SP: Editora Anita Garibaldi, 2019. PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. Preconceito racial e igualdade jurídica no Brasil. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 1980. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-03032008-103152/publico/ Eunice_Aparecida_de_Jesus.pdf[Último acesso em 12 de set. de 2023]. SANTOS, Joel Rufino dos. O Movimento Negro e a Crise Brasileira. In Movimentos Sociais no Brasil – Vol. I – n.º 2 – Política e Administração. São Paulo: FESP, 1985. Disponível em: http://joelrufinodossantos.com.br/paginas/artigos/o-movimentonegro-e-a-crise-brasileira.asp [Último Acesso 13 de setembro de 2023]. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 24ªed. Rio de Janeiro: Record, 2015. Referências Audiovisuais Doutor Gama [Filme].Direção Jeferson De e roteiro de Luiz Antonio, Brasil. 2021 Longa-metragem. (80 min). 428 luiz gama Ana Vitória L. S. Prudente e Alexandre Filordi de Carvalho Notas 1 Disponível em https://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf [Último Acesso 15 de set. 2023]. 2 “Ela diz que esse tipo de trabalho coloca ‘Luiz Gama no lugar que ele merece’ e enaltece a tarefa ‘de esforço hercúleo’ empreendida por Lima. ‘Ele trabalhou como um detetive ao longo de vários anos nessas pesquisas e realmente levantou fontes e aspectos da obra de Luiz Gama que ampliam o que conhecemos”, argumenta a professora.’ (disponível emhttps://www.dw.com/pt-br/documentos-in%C3%A9ditos-confirmam-que-luiz-gama-era-advogado/a-59756876 Último Acesso no dia 14 de setembro de 2023). 3 Rádio USP, Programa “Diversidade em Ciência” do dia 19 de abril de 2021. Disponível em: https:// jornal.usp.br/atualidades/ligia-fonseca-ferreira-fala-sobre-luiz-gama-como-jornalista-abolicionista-do-seculo-19/Acesso no dia 07 de set. de 2023. 429 O cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas que reverberam silenciados e revelam invisibilidades Antonio Luiz do Nascimento Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT “Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo”. Glauber Rocha Cinema Negro: Proposta tridimensional em perspectiva científico-filosófica, educativo-cultural e política O cinema negro brasileiro constitui em importante meio para difusão de pautas emancipatórias para as forças sociais em movimento, sobretudo, àquelas que reivindicam a superação das desigualdades raciais e econômicas. Para entendimento desse assunto, ocupei-me numa espécie de “mineração” de referências disponibilizadas nos mais diversos repositórios virtuais e ou digitalizados que amplificaram minhas fontes bibliográficas gráficas e impressas. 430 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento Para uma sociedade que caminha inexoravelmente do grafo para digital, não é nenhuma surpresa que hoje as redes computacionais contenham um extraordinário volume de dados e informações de natureza multimídia. Isto as coloca como local estratégicos às produções de vanguardas e difusão em larga escala. A concentração de um grande número de dados e informações acerca do cinema negro na internet, portanto, não é um mero acaso. Apesar de ser comum atualmente, destacamos que movimento negro foi pioneiro no uso das novas tecnologias da comunicação e informação Ela se deu no âmbito de uma ação tática da intelectualidade que buscava equalizar limitações econômicas para impulsionar e capilarizar suas produções de filmes e, também, criar núcleos de debate e discussão de temas caros, como p. exe. denúncia a violência do racismo estrutural. Na ordem, podemos afirma que o cinema negro subverteu os ditames econômicos e empresariais de uma indústria gráfico-editoria e midiática pouco ou nada afeta as suas causas e ideários. É provável que a era da informação revela mais possibilidades favoráveis à afirmação e resistência das minorias. Assim, o cinema negro é uma filmografia dos grupos minoritários que concorrem pela imagem de afirmação positiva. PRUDENTE (2019, p. 12), ponderou: “(...) as relações abstratas da representação se tornaram mais importantes do que as relações concretas do fato. Notou-se nesta linha de discernimento que as lutas de classes se traduziram em conflitos de minorias vulneráveis, projetando-se em lutas de imagens”. De fato,como as novas tecnologias tornaram o audiovisual mais acessível e viável para cineastas independentes, incluindo aqueles que pertencem à comunidade negra. Câmeras digitais de alta qualidade e software de edição vêm facilitando a produção de filmes com orçamentos mais modestos, permitindo que histórias e experiências negras sejam contadas de forma mais autônoma e diversa. Os desdobramentos desses avanços abriram livre acesso ao público “ultra-acadêmico”, portanto, isso se tornou em um marco fundamental do caráter democrático e democratizante do cinema negro junto ao grande público. Nunca é demais considerar que o cinema é uma das mais valiosas formas de comunicação de massa, um dos meios mais eficazes para a difusão de mensagens. Ele une e socializa, possibilitando reflexão para apreender a realidade e mudá-la. Assim, “(...) o cinema é único porque, no sentido pleno do termo, é um filho do socialismo… Num 431 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento único ato cinematográfico, o filme funde o povo a um indivíduo, uma cidade a um país. Funde-os mediante mudança desconcertante e transferência, mediante o escorrer de uma lágrima…” (Serguei EISENSTEIN, 2002, apud. FERREIRA, 2018). Esse protótipo de proposta cinematográfica, poeticamente delineado por Eisenstein, tem o propósito não só de acompanhar a mudança, mas também de ele próprio filmar essa mudança com a eclosão de novas formas e conceitos estéticos. Por conseguinte, o cinema nasce como arma de engajamento político-cultural. FERREIRA (2018), em seu artigo aludindo: “120 anos de Eisenstein: cinema é revolução”, destacou que a primeira escola no mundo a profissionalizar a prática do cinema teve como um de seus alunos Serguei Eisenstein, que transformou o cinema de entretenimento vazio; em ferramenta política. Nas palavras desse autor,Vladimir Lênin compreendeu que, “(...) o cinema era a mais importante das artes e foi logo colocado a serviço da revolução com a criação do Vsesoyuznyi Gosudarstvenyi Institut Kinematografii (VGIK), ou Instituto de Cinematografia de Todos os Estados da União, em 1919, a despeito das dificuldades encontradas durante a Guerra Contra-revolucionária (1918-1921)” (op. cit, 2018). A percepção leninista da força do cinema no início do século XX evidencia uma aguda compreensão do papel da nascente indústria cinematográfica que desde as primeiras sessões de filme em cinema dos irmãos Louis e Auguste Lumière em 1895, verificamos o nascer de uma poderosa forma de arte-tecnologia com poder de projetar a subjetividade humana de forma e maneira nunca vista antes. Das pioneiras produções fílmicas com abordagem de temas prosaicos como: crianças se alimentando, comboio chegando numa estação de trem, operários saindo de fábrica etc. O cinema evoluiu rapidamente para narrativas elaboradas que revelaram o enorme potencial intrínseco à nascente indústria cinematográfica. Não obstante, os primeiros filmes terem como foco o “trivial e cotidiano”, os feitos dessas produções foram per si revolucionários, considerando não apenas o ineditismo, mas pelas extraordinárias capacidades das produções em aplacar um grande público ávido por novidades e estabelecer um novo senso estético. O cinema como cosmovisão urbano-industrial foi fundamental para romper fronteiras culturais rigidamente estabelecidas. E, por tangenciar realidades objetivas em representações oníricas, as produções se tornaram no grande fetiche social. O poder transcendental do cinema foi, e é ainda hoje, um feito espetacular que não por acaso, desde sua criação, inseriu-se no rol da chamada sétima arte. ANDRADE, LAIANE L. 432 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento S. et. alli (2019, p.95), ressaltaram que o cinema “(...) nasceu mudo e através desse aspecto vinha sua principal vantagem, a universalidade. Deste modo, o mesmo filme era exportado para vários países”. Ainda segundo esses autores, o processo de transição do cinema “mudo” para sonoro não aconteceu tranquilamente, “já que alguns cineastas consideravam que a nova invenção tirava o encanto do filme, provocando um desequilíbrio no limite estabelecido pelo cinema mudo entre o real e irreal” (op. cit, p.95). Esse entendimento é bastante oportuno para se compreender que a expressividade do cinema mudo nunca foi, efetivamente, “mudo”. Posto isso, afirmamos que em uma única película de um filme seja mudo ou sonoro é possível ver refletido a omnilateralidade humana em franca oposição a percepção unilateral, considerando o caráter multidimensional de qualquer que seja a produção fílmica. Nessa direção, tanto as corporações capitalistas como os Estados não demoraram a conceber o cinema como um poderoso instrumento econômico, político e ideológico de inconteste impacto no grande público. Desde a aurora do cinema, a concepção e o processo de produção fílmica foram tangidos pela lógica mercadológica, em primeiro plano, e, ainda, pela busca da hegemonia política e cultural por parte de estados, governos e sociedade civil. Nesse aspecto, o cinema, como uma forma de arte e entretenimento de massa, tem a capacidade de impactar amplamente a percepção de indivíduos e comunidades sobre o mundo ao seu redor. De acordo com Max Horkheimer & Theodor W. Adorno (2002), teóricos referências da chamada “Escola de Frankfurt”, as produções cinematográficas comerciais são produtos da cultura de massa que são projetados para entreter e atrair o público em massa. No entanto, argumenta que em larga medida as produções na dimensão mercantil comercial são padronizadas, simplificadas e destinadas a atender aos gostos e às expectativas do público médio. Isso resulta em uma homogeneização da cultura e na perda da individualidade e da autonomia do público. Não obstante, temos que ter atenção aqui às contradições entre o cinema da indústria cultural, bem como as capacidades criadoras e criativas derivadas de iniciativas de produções cinematográficas de cunho contra-hegemônicas. Afinal, elas ilustram as tensões e conflitos na base da hegemonia político-cultural, como atenção ao desenvolvimento de movimentos sociais e civis que se engalfinham no entrechoque das lutas de classe decorrentes das relações conflitivas entre capital/trabalho. 433 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento As contradições resultantes das tensões e das lutas fundamentais revelam que o cinema produzido pela indústria cultural, embora dominado pelos grandes estúdios e empresas que possuem recursos financeiros e infraestrutura para produzir filmes em larga escala, não são “muralhas” inexpugnáveis, como se apresenta à primeira vista. Mesmo narrativas únicas e universais acerca de fatos e acontecimentos seletivos e ideologicamente elaborados ao sabor dos interesses que buscam determinar quais histórias serão ou não contadas não é um processo monolítico, ao contrário, são eivados de fissuras. As iniciativas cinematográficas contra-hegemônicas são geralmente independentes, com recursos limitados e dificuldades para obter financiamento e distribuição marcam toda a história do cinema por desafiar o status quo e ampliar as vozes e perspectivas marginalizadas. Assim, as produções cinematográficas contra-hegemônicas enfrentam desafios para alcançar um público amplo devido à falta de recursos e à infraestrutura limitada de distribuição. Não obstante, elas geralmente dependem de festivais de cinema independentes, circuitos de exibição comunitários para alcançar seu público-alvo. Atualmente, apoiam-se em plataformas de streaming alternativas para ampliar acesso e difundir propostas. Não perdendo a dimensão das contradições, nosso entendimento é que em uma pequena película de um filme é possível apreender vicissitudes humanas em múltiplas determinações. Tarefas duramente perseguidas pela arquitetura, pintura, escultura, música, literatura e teatro (incluindo a dança). Sem se desconsiderar a importância e os valores dessas importantes expressões artísticas, vemos que o cinema é implícita e ou explicitamente uma síntese sensorial plena na forma e conteúdo, na qual na sintaxe cinematográfica; produtos, produtores, patrocinadores e público compõem a obra de arte de maneira inexorável. Assim como as clássicas “Belas Artes”, o cinema se converteu, paulatinamente, em instrumento de poder em busca de corações e mentes… A constituição da indústria cinematográfica e sua instrumentalização por corporações e governos fizeram dele também um meio de dominação, controle e afirmação ideológica. De tal sorte que, deixou de ser um mero entretenimento descompromissado e ou “caça-níquel” para se converter numa poderosa indústria multimilionária e ainda uma máquina de guerra que poderíamos chamar sem exagero de: “Pentágono Hollywoodiano”. 434 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento Telonas,Telinhas e Smartphones Não obstante a linguagem televisiva e cinematográfica possui algumas diferenças, mesmo que ambas utilizem a imagem em movimento como meio de comunicação. Acredito que a principal diferença está na forma como a narrativa é construída. Na televisão, a narrativa é mais fragmentada e segmentada em partes, geralmente com tempo de duração menor. Isso se deve ao fato de que os programas de televisão são organizados em séries horárias e precisam captar a atenção do público de forma mais rápida e direta. Além disso, a televisão também costuma ser mais cuidadosa para o entretenimento e a informação imediata, o que requer uma abordagem mais direta e ágil. Na perspectiva do cinema, a narrativa é mais longa e complexa, pois, em termos gerais, é com uma construção mais elaborada de personagens, sonoplastias e enredos. Os filmes são geralmente produzidos para serem assistidos em sessões únicas (mesmo que tenham sequências em outras temporadas). Seja como for, ele permite uma abordagem mais profunda e elaborada da história. Além disso, o cinema costuma ser mais voltado à arte e à reflexão, permitindo que os cineastas explorem questões mais profundas e complexas. Outra diferença importante, sobretudo no âmbito da indústria cinematográfica business, é a forma como as imagens e sons são captados e editados. Na televisão, as imagens e sons são captados em equipamentos cujo processo de edição é relativamente mais “simples”, e, com poucos cortes e transições. Por outro lado, no cinema “profissional” faz uso de sofisticados aparatos tecnológicos que transformam imagens e sons que passam por processos de edição mais elaborados, com mais cortes, transições e efeitos visuais e sonoros. Entrelaçar cinema e a televisão, indicando a amplitude conceitual de uma tecnologia que parece ainda não ter epílogo. Ao contrário, o cinema adentra os nossos dias com uma extraordinária força renovada, como consequência dos avanços tecnológicos, advindos, sobretudo, de plataformas computacionais desenvolvidas no século XXI. No curso da transmutação do cinema de “telonas” a “telinhas” de televisores e smartphones vem ocorrendo uma evolução (e porque não dizer Revolução nas produções fílmicas). Essas produções configuram arquiteturas tecnológicas que refletem, ao 435 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento longo das últimas décadas, transformações que tiveram desdobramentos significativos na forma como os filmes vêm sendo produzidos, distribuídos e consumidos, abrindo assim novas possibilidades criativas e desafiando as estruturas tradicionais da indústria cinematográfica. A transição do cinema de telonas para telinhas, representada pela popularização da televisão e dos formatos domésticos de exibição de filmes, como DVD e Blu-ray, e, atualmente em streaming, trouxeram consigo uma maior acessibilidade e conforto para o público. Pois, as pessoas podiam assistir a filmes em suas casas, em seu próprio ritmo e de acordo com suas emoções. Essa transformação levou ao desenvolvimento de novos gêneros e formatos, como as séries de TV, que permitem narrativas mais longas e complexas. Com a presença contínua dos smartphones e a melhoria da qualidade de imagem e de alguns desses dispositivos, os filmes hoje podem ser acessados em qualquer lugar e a qualquer momento. Isso deu origem a uma nova forma de consumo de filmes, permitindo que se assista a filmes durante deslocamentos, intervalos de tempo ociosos e em ambientes não tradicionais. A evolução das produções fílmicas nessas tecnologias abriu enormes possibilidades para construção e reconstrução cinematográficas. Logo, colocando o acesso e criatividade intelectual em dimensão inimaginável. De fato, os avanços tecnológicos, as câmeras digitais acessíveis e portáteis permitem que cineastas independentes e amadores produzam filmes com orçamentos reduzidos. Além disso, com o emprego de aplicativos de edição de vídeo em smartphones, ferramentas acessíveis para a criação e a pós-produção de filmes eliminaram custos e barreiras técnicas. Nessa perspectiva, a disseminação da Internet e o desenvolvimento de plataformas de streaming, como Netflix, Amazon Prime Video, YouTube e outras tantas, forneceram novas formas de distribuição de filmes. Agora, os cineastas têm a possibilidade de alcançar um público global sem depender das estruturas tradicionais de distribuição de filmes. Portanto, com uso dos smartphones (nucleado pela Inteligência Artificial - IA), a experiência de visualização personalizada e individualizada dá conveniência para assistir a filmes em qualquer momento e em qualquer. Destacamos ainda que, as redes sociais e os aplicativos de compartilhamento de vídeos geram importante ambiente colaborativo para desencadear e ampliar as discussões possibilitando compartilhar expe436 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento riências de filmes, garantindo o engajamento e a interação social em torno da cultura cinematográfica. Assim, para além de questões de hardware e softwares, o que nos importa prioritariamente aqui é estabelecer os diferenciais narrativos na linguagem cinematográfica, televisiva e cibernética constituem atualmente uma única coisa naquilo que chamamos de multimídia. Segundo Juliana SANGION (2012, p. 53), o hibridismo do cinema com as novas plataformas, principalmente em relação à televisão, indica que a TV “(...) substituído os filmes não somente no tempo livre do público, mas também no espaço dos cinemas, quando os filmes assumem uma estética e uma linguagem inerente muito mais à televisão do que ao padrão cinematográfico tradicional”. O hibridismo do cinema com as novas plataformas é um fenômeno que tem se intensificado nos últimos anos com o integrado de novas tecnologias de comunicação e a popularização da internet. Seja como for, penso que as novas plataformas para consumo e produção fílmicas possibilitam enormemente um alvorecer para novos talentos e produções de grande relevância e criatividade. Logo, no bojo desses novos processos estruturais, éticos e estéticos, observamos que o cinema em geral e, o cinema negro em especial, possui uma enorme capacidade de produzir discursos sobre a história, seja pela sua capacidade ontológica e epistemológica de representar a historicidade de uma época ou de um fenômeno, constrói, de uma só vez, uma narrativa na qual se acha imbricada uma explicação, que por mais que queira ser descritiva, é também explicativa. Para o pesquisador Jorge NÓVOA (2008), há uma profunda relação entre cinema-história. Para tanto, destaca que existe especificidade em uma obra de arte e da linguagem estética é que, “passado os eventos e as condições que lhes deram origem e sobre as quais buscou interferir, representar e explicar, guarda sempre as propriedades metafísicas do ‘belo’. Transcende a seu mundo, a seu objeto e a seu tempo, sem perder suas especificidades, suas particularidades e sua historicidade.” Intelectuais orgânicos às inteligências coletivas Segundo Gramsci, os intelectuais orgânicos são indivíduos ou grupos que surgem de dentro das classes subalternas, mas no curso de processos sócio-históricos adquirem consciência de classe e se tornam articuladores políticos e intelectuais. Eles de437 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento sempenham um papel crucial na luta pela transformação social, construindo alianças e promovendo a conscientização política dentro de suas próprias comunidades. Essa abordagem é fundamental para nosso entendimento do processo criador de uma nova cultura que, a rigor, não significa apenas realizar individualmente descobertas “originais”, mas mais difundir criticamente verdades já descobertas. Assim, (...) O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato ‘filosófico’ bem mais importante e ‘original’ do que a descoberta, por parte de um ‘gênio filosófico’, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais (p. 95-96). Nesse entendimento gramsciano, os intelectuais desempenham um papel crucial na formação da cultura e na luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Os intelectuais não são apenas aqueles que cultivam conhecimento e cultura, mas também aqueles que exercem influência sobre a opinião pública e ajudam a moldar a visão de mundo das pessoas. Assim, os intelectuais podem atuar como “orgânicos” ou “tradicionais”. Os intelectuais orgânicos são aqueles que estão intimamente ligados às classes subalternas e lutam por sua emancipação. Gramsci pondera ainda que os intelectuais tradicionais são aqueles que reproduzem as ideias dominantes e ajudam a manter a hegemonia cultural da classe dominante. A luta por uma sociedade mais justa e igualitária passa pela formação de uma nova cultura, que reflita as aspirações e necessidades das classes subalternas. Isso implica na necessidade de uma transformação cultural, que só pode ser alcançada por meio da ação de intelectuais orgânicos engajados na construção de uma nova hegemonia cultural. Penso que esse o entrelaçamento conceitual do papel e função dos intelectuais orgânicos, concebido ainda na década de 1930 por Gramsci se acopla em certa medida com as teorias contemporâneas da chamada “inteligência coletiva”, conforme delineada por Pierre Lévy ao sistematizar a Cibercultura dos dias atuais. Fazer essa correlação me parecer bastante apropriada para destrinchar os paradoxos e contradições de uma totalidade social dinâmica e complexa. Até porque, a perspectiva conceitual da Inteligência Coletiva proposta por Pierre Lévy, refere-se à capacidade das pessoas se conectarem e compartilharem conhecimento e sabedoria através das redes de comunicação e informação, especialmente com o advento da internet e das tecnologias digitais, conside438 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento rando que ela emerge quando indivíduos colaboram e interage em ambientes digitais, trocando assim ideias, informações e experiências, para resolver problemas, criar conhecimento e inovar. Essas interconexões de mentes e da colaboração potencializam a produção de conhecimento e sedimentam ideias e práticas coletivas. Além desses aspectos pontuados até o momento, a coordenação dos saberes pode ocorrer no ciberespaço, no qual não é apenas composto por tecnologias e instrumentos de infraestrutura, mas também é habitado pelos saberes e pelos indivíduos que os possuem (LÉVY, 2000). Por conseguinte, o ciberespaço permite que os indivíduos mantenham-se interligados independentemente do local geográfico em que se situam Para Lèvy, ele desterritorializa saberes e funciona como suporte ao desenvolvimento da inteligência coletiva. Na correlação conceitual de Lévy e Gramsci verificamos que em ambos há uma notória atenção ao papel dos intelectuais na formação da cultura tendo como horizonte uma crença imanente os indivíduos edificarem uma sociedade mais justa e igualitária. Não obstante esses pensadores não elaborarem estudos específicos acerca do cinema, porém, os seus conceitos e suas ideias-forças, permitem-nos desenvolver análises importantes sobre a lógica, significado e papel do cinema. Nessa feita, enquanto Gramsci destaca o papel dos intelectuais orgânicos na construção e disseminação de ideologias que sustentam uma determinada ordem social, Lévy, por outro lado, enfocou a capacidade das pessoas de se comunicarem e colaborarem para criar conhecimento e solucionar problemas em ambientes digitais. Pensando o mundo em momentos distintos e com desenvolvimentos tecnológicos singulares; Gramsci, nas primeiras décadas do século XX e Lévy, nos primórdios do século XXI. O primeiro, no contexto “tipográfico”,e, outro, no contexto “cibernético”, eles entenderam em suas respectivas suas respectivas conjunturas políticas e o papel tático das novas tecnologias para chegar a uma hegemonia cultural, seja no âmbito das ideias e valores propagados pelos intelectuais orgânicos; seja na construção coletiva de sentido e conhecimento através de inteligências coletivas em redes digitais. A relação entre os estudos gramscianos acerca dos intelectuais orgânicos e da inteligência coletiva de Pierre Lévy reside no reconhecimento do poder das ideias e da produção colaborativa de conhecimento na construção da cultura e da sociedade. Ambos os conceitos ressaltam a importância do engajamento intelectual e da formação de consensos para influenciar a dinâmica social e cultural. 439 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento Nesse sentido, o engajamento político dos envolvidos é o que efetivamente configura a proposta do Cinema Negro, como ação intelectual nas dimensões científico-filosófica, educativo-cultural e política que, por sua vez, trava uma titânica disputa pela hegemonia no entrechoque das classes fundamentais da sociedade capitalista. Muito embora o engajamento político assuma diferentes formas e objetivos no âmbito de movimentos sociais, associações civis e de partidos políticos, ele se concretiza ainda em ações e campanhas de caráter mais individual, como o boicote a empresas e governos que não respeitam as liberdades e os direitos humanos. Sem desconsiderar os emaranhados de contradições, dilemas e perspectivas acerca do sentido e significado do que seja engajamento político, penso que é fundamental manter o foco no seu papel de promotor de mudanças e de vanguardista em questões de direitos e justiça social. Visto que, o engajamento político é a fonte geradora de conflitos e polarizações apaixonadas, sobretudo, em contextos de grande desigualdade social e política. Reverberar silenciados e revelar invisibilidades Como podemos situar a discussão e análise do significado do Cinema Negro na perspectiva conceitual que reflete sobre Intelectuais Orgânicos e Inteligências Coletivas, considerando tanto nas abordagens de Antonio Gramasci como na de Pierre Lèvy? Ao analisar o Cinema Negro, que se configura nas experiências, perspectivas e narrativas das comunidades negras, podemos relacioná-lo aos potentes esquemas conceituais formulados sobre o intelectual orgânico e da inteligência coletiva, na medida em que destacamos cineastas e demais partícipes do Cinema Negro enquanto forças sociais vivas que desafiam as representações estereotipadas da população negra e buscam redefinir identidades invisibilizadas e vozes e silenciadas. De imediato situamos o Cinema Negro como movimento elaborado e estruturado em coletivos intelectuais que cooperam e articulam experiências e lutas das comunidades negras que desafia as narrativas hegemônicas e, assim, contribui para a construção de uma consciência coletiva mais elaborada e empoderada. Analisar o significado do Cinema Negro à luz dos conceitos de intelectuais orgânicos e inteligências coletivas, revela um movimento étnico-cinematográfico que 440 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento possui uma dimensão muito mais ampla do que aparenta a primeira vista. Ou seja, não se trata apenas de um gênero cinematográfico, inversamente a isso, ele é uma ação impetuosa que desafia as estruturas de poder retrógradas e reacionárias como o poder singular da arte e ciência. Logo, é essencial entendê-lo em sua configuração tridimensional, a saber: científico-filosófica, educativo-cultural e política. No contexto do Cinema Negro, os intelectuais orgânicos são os cineastas, roteiristas, atores e outros profissionais do cinema que emergiram das comunidades afrodescendentes para desenvolver produções que expressam seus projetos de vida e visão de mundo, tendo quase sempre o horizonte da transformação social em foco. Nessa direção, esse grupo de intelectuais abordarem questões como racismo, discriminação, desigualdade social, e cultura através de suas obras, o que os tornam artífices de uma visão autêntica e poderosa que reverberam silenciados e revelam Invisibilidades. Para tanto, os grupos envolvidos com nas propostas do Cinema Negro tem como característica um elevado senso de colaboração e ajuda mútua que galvaniza a união de forças que amplificaram suas vozes e modelam suas consciências sociais e políticas, desafiando as estruturas de poder retrógradas e reacionárias que perpetuavam o racismo e a opressão. O Cinema Negro representa uma forma de intelectualidade orgânica que conjuga uma potente inteligência coletiva, onde criadores negros se uniam para desafiar e subverter as narrativas dominantes, destacando aqui as realidades e a resiliência das comunidades afrodescendentes. Este movimento converte-se, portanto, como uma poderosa ferramenta de resistência cultural e social, contribuindo para a formação política de caráter libertário e libertador. Considerações Finais A importância do cinema negro como uma ferramenta para a inclusão de afrodescendentes no âmbito cultural indica uma força potente que se utiliza das novas tecnologias da comunicação e informação como “ariete”. Com um quadro crescente de cineastas independentes que passam a ter mais meios e oportunidades para contar histórias e inscrever experiências, eles vêm contribuindo para a democratização da sociedade com princípios ético-estéticos alicerçados na diversidade e inclusão. 441 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento Assim, nosso objetivo principal foi e é desencadear a discussão sobre questões raciais e sociais, bem como, colocar em relevo saberes étnico-cinematográficos que nascem de belíssimas produções fílmicas que fazem contraponto ao racismo estrutural. Nesse aspecto, o surgimento e evolução do Cinema Negro do Brasil, especialmente na pós-Constituição de 1988, ocorrem em concomitância ao estabelecimento de princípios democráticos e democratizantes, nos quais, forças sociais do campo democrático e progressistas questionam moral e estética erigidas por uma burguesia estruturada, objetiva e subjetivamente, nas bases de uma escravatura tardia abolida. Assim, o Cinema Negro é inequivocamente o cinema de minorias (que paradoxalmente são a maioria da população brasileira). Ele oferece um importante lugar de fala e visibilidade para ruptura de estruturas erigidas nos preconceitos e racismo e que amalgama a hegemonia imagética eurocêntrica e euroheteronormativa alicerçadas em detrimento da diversidade dos demais povos, incluindo o africano e o ameríndio, com bem destaca o cineasta e pesquisador Celso Luiz Prudente (op. cit). Pois bem, dialogando com autores e autoras diversos e, em dados aspectos destoantes, com abordagem epistêmica distintas, deu-se como opção teórico-metodológica para produzir um painel interpretativo capaz de ampliar nossa compreensão da realidade objetiva e subjetiva, na qual o conceito de intelectuais orgânicos que (re)organizam a cultura e as artes possuem auxilia desvendar sentidos e significados da militância do movimento negro especialmente o meio artístico cultural, como é o caso do cinema. Daí, nosso esforço de situar a discussão e análise no Cinema Negro em perspectiva conceitual de Intelectuais Orgânicos e de Inteligências Coletivas. Penso que destacar esses conceitos-chave elaborados nas obras de Antonio Gramsci e de Pierre Lévy iluminam salas escuras de Cinema Negro para uma melhor visualização de produtores e produtos de saberes que fazem a conjugação de arte, a ciência e a consciência. 442 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento Referências ANDRADE, Leilane Lima Sena de et. al. A expressividade do cinema mudo na construção de significados. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/dic/article/ view/14753. Acesso em: 26 mai. 2019. COTRIM, Ivan; PRUDENTE, Celso Luiz; SANTOS, Éder Rodrigues. Arte e enfrentamento: cinema novo e a dimensão pedagógica do cinema negro. CINEMA NEGRO: Educação, Arte, Atropologia. São Paulo.FEUSP-Mostra Internacional do Cinema Negro, 2021. p.224-241 EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. FERREIRA, Joaquim. 120 anos de Eisenstein: cinema é revolução. Disponível em: https:// pcb.org.br/portal2/18510, Acesso em set. 2022. FERREIRA, Viviane (2016). Cinema Novo e Cinema Negro: da estética da fome à estética do faminto. Disponível em: http://nobrasil.co/cinema-novo-e-cinema-negro-da-estetica-da-fome-estetica-do-faminto/. Acesso em 26 de mai. 2019. GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere: introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Ed. e trad. de Carlos N. Coutinho. Coed. de Luiz S. Henriques e Marco A. Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v. 1. HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas. Pp. 169 a 214. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2002. LÉVY, P. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2003. LÉVY, P. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2000. —---.. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2000. MARTINS, Marcos Francisco. Gramsci, os intelectuais e suas funções científico-filosófica, educativo-cultural e política. Pro-Posições, Campinas, v. 22, n. 3 (66), p. 131148, set./dez. 2011. MELO, Ana Cláudia, SILVA. Carmen. Amador, Zélia: contribuições à dimensão pedagógica do Cinema Negro. CINEMA NEGRO: Educação, Arte, Atropologia. São Paulo. FEUSP-Mostra Internacional do Cinema Negro, 2021. p.16-24. 443 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento MOTTA, Nelson. A Primavera do Dragão - A juventude de Glauber Rocha. Ed Objetiva. Rio de Janeiro, 2011. NÓVOA, Jorge. “A teoria da relação cinema-história como base para a epistemologia da razão-poética e para a reconstrução do paradigma historiográfico. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://e-archivo.uc3m.es/ bitstream/handle/10016/17746/teoria_novoa_CIHC_2008.pdf. Acesso em: 14 set. 2022. RIBEIRO, Marcelo (2011). O nascimento de uma nação: estética, ideologia, máscaras. Disponível em: https://www.incinerrante.com/textos/o-nascimento-de-uma-nacao-estetica-ideologia-mascaras. Acesso em: 25 mai. 2019. ROCHA, Glauber. Estética da Fome 65; in ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004, pp. 63-67. PRUDENTE, Celso Luiz. A imagem de afirmação positiva do ibero-ásio-afro-ameríndio na dimensão pedagógica do Cinema Negro. EDUCAÇÃO E PESQUISA, v. v.47, p. e237096, 2021.Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ep/article/view/193616 —-- CINEMA NEGRO: Pontos reflexivos para a compreensão da importância da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/ sites/000/2/download/revista3/revista3-48.pdf. Acesso em: 25 mai. 2019. —--. A dimensão pedagógica do Cinema Negro: a imagem de afirmação positiva do íbero-ásio-afro-ameríndio. Revista Extraprensa, [S. l.], v. 13, n. 1, p. 6-25, 2019. DOI: 10.11606/extraprensa2019.163871. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/extraprensa/article/view/163871. Acesso em: 1 out. 2022. MARX, Karl. O Capital – crítica da economia política.. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2008, p. 108 SANGION, Juliana. Cinema e TV no Brasil: breve panorama a partir da criação da Globo Filmes. Revista Ciência & Cultura. São Paulo, v.64 nº.3, 2012. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v64n3/a18v64n3.pdf. Acesso em: 22 mai. 2019. SCHVARZMAN, Sheila. Salas de cinema em São Paulo nos anos 1920: diferenciação social e gênero no imaginário crítico. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 25, 444 o cinema negro, intelectuais orgânicos e inteligências coletivas Antonio Luiz do Nascimento n. 49, p. 153-174, 2005. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/escritos/ numero08/cap_03.pdf. Acesso em: 23 mai. 2019. VILLAVERDE, João. O Nascimento de uma nação marca o início do domínio de Hollywood sobre o cinema mundial. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 2015, n. 1659472, 1 ago. 2015. Cultura, p. B1. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/ noticias/cinema,o-nascimento-de-uma- HYPERLINK “https://cultura.estadao.com. br/noticias/cinema,o-nascimento-de-uma-nacao-marca-o-inicio-do-dominio-de-hollywood-sobre-o-cinema-mundial,1659472”nacao-marca-o-inicio-do-dominio-de-hollywood-sobre-o-cinema-mundial,1659472. Acesso em: 24 mai. 2019. 445 Sonhar nas Sombras, Alcançar o Estrelato. O Cinema na Vida de Milton Gonçalves Elaine Pereira Rocha1 Departamento de História e Filosofia da University of the West Indies (estabelecida em 1948 como uma extensão do College of the University of London) Introdução Sem dúvida, um dos rostos e das vozes mais conhecidas do meio televisivo, o ator e diretor Milton Gonçalves tem uma trajetória artística muito rica, que se iniciou no teatro e se estendeu para o cinema, a televisão e o rádio. Foi o ator negro brasileiro que alcançou maior reconhecimento durante mais de 60 anos de carreira. Sua experiência de vida, no entanto, vai muito além dos papéis que interpretou nos palcos e nas telas. Ao longo de nove décadas, Milton Gonçalves viveu importantes eventos históricos para o Brasil, como a Era Vargas e a Ditadura Militar por exemplo, e participou ativamente de outros, como o MovimentoDiretas Já! Mais do que isso, sua biografia apresenta uma visão da História Negra no Brasil: Seus avós haviam enfrentado a escravidão e o difícil período que seguiu a abolição, 1 Mestre em História pela PUC-SP e pela University of Pretoria (África do Sul), Doutora em História pela USP. Professora Associada do Departamento de História e Filosofia da University of the West Indies (estabelecida em 1948 como uma extensão do College of the University of London), campus Cave Hill, Barbados, desde 2007. 446 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha sendo que o avô materno morreu com, aproximadamente, 56 anos, trabalhando em meio às fileiras de um cafezal em Monte Santo de Minas, em 1930; os avós paternos se casaram menos de dois meses depois da abolição da escravatura, ele com 30 anos, ela com mais ou menos 20. Seus pais se juntaram às levas de trabalhadores negros que migraram das fazendas para a capital paulista durante a primeira fase da Era Vargas, enfrentando pobreza, marginalidade e discriminação racial. (ROCHA 2019). Sua vida de sucesso não deveria ser contada pela perspectiva racial, mas é importante que seja, porque ser negro e ser artista, há sessenta anos, eram elementos quase antagônicos. Da mesma forma, ser pobre e ser negro é diferente de ser apenas pobre. Sendo assim, sair de uma situação de extrema pobreza para o estrelato, e construir uma carreira profissional como ator e diretor, sendo negro no Brasil, possui especificidades que abrangem questionamentos de ordem social, cultural e política. Já na cidade de São Paulo, Milton foi testemunha de um período de grande progresso. O crescimento urbano, que em princípio ofereceu trabalho a seu pai e tios na construção civil, incluiu um grande desenvolvimento cultural, com a inauguração de cinemas e teatros, e facilitou o acesso da população mais pobre ao entretenimento da grande cidade, por meio de investimentos no transporte público e na malha viária, criadas para facilitar a circulação de mercadorias e trabalhadores. As obras de modernização da cidade vinham desde 1930, com a construção de avenidas, parques e jardins, ganhando grande ímpeto no período de Prestes Maia. Isso abriu um mercado de trabalho para mão de obra pouco qualificada e atraiu muitos que vinham das áreas rurais. Por outro lado, como essas obras se concentraram no centro da cidade, demoliram inúmeros imóveis, e agravaram o problema de moradia para os pobres. Os governantes propunham planos para criar áreas para moradia popular na periferia, com a abertura de loteamentos destinados aos trabalhadores, mas os salários baixos, a precariedade de meios de transportes regulares e a instabilidade de emprego, que obrigava os trabalhadores a estarem constantemente buscando trabalho, aliado a problemas estruturais como as enchentes e a lama acumulada nas ruas, eram fatores de desestímulo para a mudança das famílias das áreas centrais para a periferia. (Cordeiro 2005). 447 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha História, Biografia e Cinema Neste artigo, proponho examinar o impacto do cinema na experiência do ator Milton Gonçalves, ainda que não me atenha a um estudo detalhado dos papéis que Milton tenha desempenhado no cinema, meu objetivo é demonstrar como um jovem negro numa sociedade racista se aproximou do cinema, e posteriormente das artes cênicas, encontrando ali um veículo para desenvolver sua arte e construir uma carreira profissional brilhante. A necessidade de uma historiografia do negro foi defendida por Marc Ferro (2003), como uma das medidas para se prevenir e remediar os abusos cometidos pela história. Reconhece-se que a historiografia é também corrompida pelo discurso do vencedor, ao qual se alia para manter e reforçar o status quo e com isso a exploração de grupos marginalizados por grupos dominantes. Por isso, seguimentos marginalizados social, econômica e politicamente, relegam a proposta de distanciamento e neutralidade acadêmica para abraçar a história como parte da tarefa de lutar por direitos iguais, pelo reconhecimento do protagonismo histórico e por fazer válida a sua perspectiva acerca de eventos históricos. Nesse sentido, John Hope Franklin (1999) também advogou por uma história dos negros nos Estados Unidos, combatendo a tese de ausência de fontes e de invisibilidade, convidando historiadores a lançarem-se nos arquivos públicos e privados com outra perspectiva, abrindo-se para a interdisciplinaridade e para o uso de novas fontes e objetos de pesquisa. Assim, a biografia de um personagem negro deixa de ser a história de uma experiência particular, para ser uma oportunidade de se entender a sociedade na qual aquele individuo se insere. A abordagem biográfica tem sido recuperada por estudiosos, na busca de uma história que contemple mais do que fatos e cronologias, que some a esses a experiência individual num determinado contexto, desenhando táticas, estratégias, alianças e resistências no decorrer de uma vida que de alguma maneira refletiu uma determinada situação de raça, classe ou gênero. Nas palavras de Miriam Moreira Leite (1984, p.xii): Raramente as particularidades de um biografado deixam de ser desdobramentos de condições de vida coletiva de que participou, da cultura 448 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha incorporada, do trabalho exercido e da influência real ou imaginária de multiplicador ou subversor da camada social, nacional, religiosa ou política exerceu. Principalmente quando no que se refere ao século XX, a história do cinema brasileiro não inclui o protagonismo negro como foco para análise, seja como público, ator, diretor ou produtor. Muito associada à história do cinema europeu e norte-americano, cronistas dessa história no Brasil trataram o assunto como se fosse independente de questões sociais e raciais. O cinema surge na historiografia como território embranquecido. Edith Piza (2000), refere-se a uma geografia social da raça, na qual explica a experiência do negro como sendo o “outro” no lugar público e na tradição cultural brasileira. Para ela esses lugares distinguem-se mais como espaços sociais do que naturais, marcado pelos lugares onde as pessoas moram, trabalham, estudam, passam férias, etc., marcado pela existência de um código de normas invisível, segundo o qual as pessoas ocupam determinados lugares sociais, segundo a sua origem racial, e comportam-se de acordo com as regras desse espaço. Desta maneira, o lugar da raça é o lugar de visibilidade no qual todos se veem como iguais, definindo “o outro” como não pertencente a aquele lugar. Ampliando-se a análise da psicóloga, pode-se dizer que o sujeito “fora do lugar” corresponde a uma ameaça ao grupo dominante daquele espaço. Ao propor o cinema como “agente, produto e fonte da história”, Marc Ferro (1983) explica que a importância do cinema como elemento cultural faz com que sua análise não se limite aos estudos sobre como os diferentes gêneros evoluíram ou foram tratados por cronistas e diretores. Para ele, o historiador Deve olhar para a função histórica do filme, para a sua relação com as sociedades que o produzem e consomem, e ao mesmo tempo para processos sociais envolvidos na produção das obras, no cinema como fonte da história. Como agentes e produtos da história, os filmes e o mundo dos filmes mantêm uma relação complexa com o público, com dinheiro e com o Estado, e esta relação é um dos eixos de sua história. Embora estes - o público, o dinheiro e o Estado - sejam os protagonistas, é a evolução da relação entre eles que determina como a técnica e até mesmo o estilo dos cineastas mudam e também como o filme se desenvolve como 449 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha forma de arte, pois o filme como arte não pode ser separado das culturas que o produzem ou o público a que se destina. (FERRO, 1983, p.358). Por isso, entender o contexto em que o cinema se desenvolve no Brasil e, dentro deste, como os negros se situavam naquela sociedade é muito importante para uma visão mais compreensiva sobre como que no mesmo período em que pessoas negras lutavam por trabalho, moradia, educação, e cidadania, já participavam – ainda que de forma marginal – do desenvolvimento do cinema no Brasil. Ser Pobre e Negro, Ver Cinema, Assistir Cinema Por volta de 1938-1939, a família Gonçalves tentava se estabelecer, numa segunda tentativa, na cidade de São Paulo. A oportunidade que tiveram anos antes, também na capital, quando Bonfim Gonçalves arrumou um trabalho que lhe permitia viver com sua mulher e filho no canteiro da obra, enquanto construíam um grande prédio, não se repetiu na segunda tentativa e Maria foi morar com o menino na casa onde trabalhava como doméstica, enquanto o marido ia e vinha, de acordo com os empregos que conseguia. Moravam na região dos jardins, área nobre da capital, e o menino saía pelas ruas do bairro, observando os prédios. Naquela época, uma experiência o marcou: Eu tinha uns 6 anos e ganhava uns tostões tomando conta das frutas de um português… Naquele tempo eu já andava muito. Menino de uns seis, sete anos podia andar pela rua. A gente brincava e se escondia na rua Augusta, esquina com a Alameda Tietê e ia naquele cinema que tinha, no Cine Paulista. Um dia, eu estava passeando na Avenida Paulista, andando distraído… que ainda tinha aquelas casas grandes naquela época. O policial veio e falou: “ – O que você tá fazendo aqui, ô neguinho?” Eu disse: “ – Eu tô passeando.” Ele falou: “ – Vai andando, vai… vai… Aqui não é lugar de preto passear!” Então eu sempre tive na minha cabeça: “Aqui não é lugar de negro passear”.1 O território de São Paulo, para o pequeno Milton era marcado pela trajetória do trabalho, desde os seis anos de idade, pelo pode/não pode, pelo território branco, onde 450 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha se necessita autorização para andar e onde a liberdade poderia ser contestada a qualquer momento, não apenas pelas autoridades institucionais, mas pelas regras nem sempre escritas do racismo paulista. As dificuldades enfrentadas pelos negros imigrantes na cidade de São Paulo foram estudadas por historiadores como Kim Butler (1998), que afirma que a história dos negros em São Paulo é essencialmente uma história de imigrantes que chegam à cidade entre 1910 e 1940, em busca de sonhos e tinham que se adaptar à nova realidade, num processo lento e doloroso. Em geral, a vida era marcada por tensões e decepções, pela exclusão e pelo racismo. A discriminação racial é uma herança colonial difícil de ser apagada. No início do século XX, ela passa a ser denunciada pelos jornais dirigidos aos leitores negros. Na primeira página do jornal O Alfinete, de vinte e dois de setembro de 1918, um edital falava da opressão que os negros sofriam, numa sociedade ainda dominada por ideias escravocratas, apontando que o ideal de democracia que inspirara a República, para os negros era uma mentira. Alguns anos depois, o artigo publicado pelo jornal O Kosmos, em dezenove de outubro de 1924, comenta uma carta de autoria de um certo Bernardo Vianna, e publicada pelo jornal A Gazeta, na qual se descrevia o sofrimento dos trabalhadores negros em São Paulo: Vae [sic] à fábrica, mas não lhe dão serviço, muitas vezes nem lhe deixam falar com os gerentes. Procura annuncios [sic] nos jornaes [sic], acorre pressuroso onde precisam de empregados e embora chegue primeiro do que qualquer outro candidato, por ser de cor é posto à margem e recusado.2 No artigo continua, e nele, a denúncia apresentada pelo leito é discutida pelo editor, que confirma que a questão da discriminação do trabalhador negro é fato comum em São Paulo, e que era preciso reconhecer “que os homens pretos da cidade de São Paulo estão sofrendo (sic) uma guerra muda e odiosa”.3 Samuel Lowrie (1938) indica que os índices de mortalidade infantil e de adultos cresceram na cidade de São Paulo, durante a Primeira República. Ele compara dados obtidos para a população em geral, e para negros e pardos, concluindo que mesmo que todos os grupos das classes inferiores estivessem sujeitos às epidemias e aos problemas relacionados às baixas condições sanitárias, a mortalidade entre negros e pardos era maior. Segundo Lowrie, o maior problema eram as precárias condições de saúde da população negra, vivendo em situação de extrema pobreza. 451 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha No dia vinte e dois de junho de 1924, o jornal O Clarim da Alvorada denunciava: Uns vivem sem moradia, dormem em albergues e outros logares [sic] horríveis; outros são perseguidos pela polícia, e morrem muitas vezes nos hospitais. A quem é que devemos pedir por esses pobres infelizes, a não ser aos caridosos e conhecedores dos sofrimentos desses deserdados da sorte? Observando-se as sociedades vicentinas, veremos que há, em suas reuniões, um elevado número de vicentinos que são nossos irmãos de raça... 4 Ainda que se reconheça a importância dos dados estatísticos para a compreensão do status da família negra na sociedade brasileira, por décadas, essas estatísticas foram usadas na construção de um discurso que culpabiliza os negros como responsáveis principais por suas condições de vida. Além disso, autores como Florestan Fernandes (2008) descreveram as condições precárias em que os negros viviam em São Paulo como fator de impedimento para qualquer avanço social. A questão é que esses mesmos estudos ignoraram as redes familiares e de solidariedade baseadas em lugares de origem, profissão e vizinhança, que amenizavam as limitações dessas pessoas, ajudando-as na busca de trabalho, no cuidado com as crianças, idosos e doentes, e nas penúrias do dia a dia. Muito importante também é a sociabilidade e a produção e reprodução da cultura entre indivíduos discriminados, que junto com as redes de apoio contribuem para fortalecer a resistência à opressão. Junte-se a isso o grande esforço que famílias e, muitas vezes as mães, fizeram para manter as crianças em segurança e garantir alguma educação escolar. Minha mãe nunca me abandonou. Eu vivi um tempo com ela, na casa da patroa, ali nos jardins. Eu ia na escola, no Grupo Escolar que ficava ali por perto, na esquina das ruas Augusta e Estados Unidos. Um dia essa senhora disse: “ – Deixa ele aqui comigo.” A minha mãe não tinha condições de me levar pra todo lugar que ela trabalhava. Eu era o filho mais velho, tinha uns sete anos, minha irmã e meu irmão tinham ficado com a minha vó.5 Seguindo uma tendência comum, Milton deixou a escola após terminar o Grupo Escolar. Segundo ele, começara a estudar assim que chegou a São Paulo, com seis ou sete anos já sabia ler um pouco. Isso ajudava porque muitas vezes ele tinha que tomar o 452 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha ônibus para ir de um bairro a outro. Mas sua educação era feita de idas e vindas, devido às mudanças de moradia e das condições e lugar de trabalho. Eu fiz o Grupo Escolar mas não fui para o ginásio. Naquela época quem chegasse ao ginásio já era um milagre. E eu não podia, porque o ginásio era de dia, não tinha à noite e eu tinha que trabalhar. Uma vez tentei fazer o Madureza, que era na cidade, mas não havia a menor condição.6 As circunstâncias que limitaram a escolaridade de Milton em sua infância e adolescência afetavam grande parte da população negra e parda na cidade de São Paulo. De acordo com documentos oficiais, em 1934 havia 85.000 alunos matriculados em escolas públicas da cidade de São Paulo, entre esses apenas 7% eram negros. O censo de 1940 revelou que apenas 3% dos alunos negros e 2% dos pardos conseguiram completar o primário, comparado com 92% dos alunos brancos. (BUTLER, 1998). O grande problema era a prevalência do analfabetismo entre a população negra. As pressões econômicas empurravam alunos negros para fora do sistema escolar em poucos anos, ao passo que o racismo predominante na sociedade levasse professores a discriminar o aluno negro. Em A Voz da Raça, de seis de maio de 1933, um exemplo dessa discriminação: Nós os negros não queremos dominar, não queremos ser fascistas, queremos apenas o nosso direito e o nosso lugar na comunhão nacional, porque ter alguma cousa nominalmente não é ter de fato, ademais não somos estrangeiros e se fossemos (bem que nos pese isso) não precisaríamos lutar pela nossa integridade, visto como os amarelos que não são brancos (está claro) não lutam para isso e vão progredindo dentro de uma pátria que não é sua. É dura esta verdade, em todo caso, é verdade! Há pouco tempo, um nosso patrício negro me contara uma história do seu filho inteligente, que ia mal amparado pela escola porque a professora declarara em plena classe que “negro com ela não aprende” como si o negro frequentando uma escola pública pedisse uma esmola...7 Ainda que se considere que as mulheres negras tinham alguma vantagem sobre os homens, no mercado de trabalho paulista, a vantagem está na possibilidade de moradia, 453 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha porque elas tinham que enfrentar uma jornada intensa de trabalho e pagamentos diminutos e irregulares. Por isso, o trabalho das crianças era parte fundamental da renda da família. Milton teve vários tipos de trabalho: foi babá, ajudante em quitanda, entregador em alfaiataria, engraxate e ajudante em salão de beleza, entre outros. Isso era importante para ajudar sua mãe, mas também havia a possibilidade de ter algum dinheiro para o lazer no fim de semana. Por muito tempo a história ignorou a visão das camadas mais pobres, sobretudo dos negros. No entanto, um breve exame das fontes iconográficas, como as fotografias de lugares e de eventos públicos denunciam a presença negra. Vendedores ambulantes, jornaleiros, engraxates, carregadores, empregadas e empregados domésticos, carroceiros, construtores e esmoleiros circulavam pela cidade, viam os prédios, viam os cinemas, ouviam as conversas sobre os filmes e, sem dúvida alguma, quando começaram a surgir os pequenos cinemas que nada mais eram que salas de projeção, mas que cobravam um preço acessível aos trabalhadores, essas pessoas começaram a assistir ao espetáculo mágico das imagens em movimento. Milton andava pelas ruas de São Paulo numa época em que os cinemas se proliferavam, via o prédio com pessoas entrando e saindo, ele via os cartazes e ouvia conversas sobre os filmes. Desde muito jovem, a mãe lhe dava uns tostões para que fosse ao cinema, enquanto ela estava trabalhando, para evitar que ele ficasse perambulando pelas ruas e se envolvesse em problemas. O cinema foi, dessa forma, um lugar seguro, onde Maria poderia ter certeza de que seu filho estaria guardado por algumas horas. Segundo o ator, foi em pequenas salas de cinema que ele ia, a troco de algumas moedas, assistir filmes de Carlitos e outros filmes mudos. A minha mãe me estimulava a ir ao cinema, porque quando eu estava no cinema não estava na rua. E aí a gente ia pro cinema onde passavam seriados, documentários, o jornal do DIP e depois o filme principal. Então a gente ficava muito tempo. Era uma salinha pequena, e o velho italiano cobrava uns trocados dos meninos que se enfileiravam para entrar. E era o dono mesmo que recebia as moedas e rodava o filme pra gente.8 O número de cinemas cresceu muito na capital paulista a partir da dos anos 1920. Alguns eram ambientes luxuosos, como o Paramount, o Metro, o Cine Art, e o 454 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha Marrocos, todos cinemas projetados por engenheiros especializados, decorados com mármore e muito luxo. Entre 1930 e 1950 mais e mais cinemas de luxo surgiam pelo chamado “centro novo” da cidade. Em entrevista à SESC TV, Milton Gonçalves contou: Eu ia muito aqui, em São Paulo, à Liberdade no cinema japonês, eu vi muitos filmes ali. Nos anos 40. Um que tinha ali na Conselheiro Furtado, eu ia muito ali. Cine Recreio, que era ali na João Mendes, eu ia muito ali. Aqueles cinemas furrecas da cidade, eu ia muito, porque eu gostava. E lá no bairro onde eu passei a morar em Santana, o Cine Hollywood, o Cine Orion, Cine Santa Terezinha, Cinema Colonial, que era na Voluntários da Pátria… Eu fui a muitos. Era o meu divertimento.9 Não era fácil ingressar nos cinemas luxuosos. Além do preço mais caro, alguns cinemas não aceitavam negros, outros não rejeitavam abertamente, mas impunham regras na vestimenta que tornavam difícil o acesso para os mais pobres: No tempo da minha adolescência tinha a coisa de se apresentar adequadamente. Fosse no paletó muito bem passado ou no cabelo alisado a ferro quente da minha irmã. Não era só no vestir. Quando eu tinha treze, catorze anos tinha cinema que tinha que ter o terno para entrar. E a minha mãe lavava e engomava aquele terno de linho no ferro a carvão, mas eu não podia andar em desvantagem em São Paulo.10 O esforço valia a pena. O cinema era um lugar mágico. Ao apagar das luzes, desaparecia a realidade da discriminação e das privações. Heróis, soldados, romances, comédias, tudo vinha como um remédio contra a dureza da realidade que o cercava. Saindo dali, Milton começou a fazer cinema, brincando: Eu tinha essa habilidade de externar uma emoção diferente daquela minha genuína. Eu tinha essa tendência a teatralizar tudo. Pegava um pedaço de madeira e brincava de espada, virava o rei Artur... Eu sonhava muito. Eu sonhava que tinha um outro mundo no qual a vida era melhor. O cinema era a minha brincadeira.11 455 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha Além dos filmes de fantasia aos quais com grande entusiasmo, informações políticas e culturais eram transmitidas no cinema. Assim, um pouco do que chamamos macro história marcou a trajetória do ator, que assistia a filmes curtos sobre a Segunda Guerra Mundial e sobre futebol, por exemplo. Milton contou quando Diamante Negro (Leônidas da Silva) foi reconhecido pela mídia como o herói brasileiro da Copa do Mundo de 1938 que ajudou o Brasil a conquistar a terceira colocação, todos os meninos negros queriam ser jogadores de futebol, uma onda que se ampliou depois de 1954, quando o Brasil terminou na sexta colocação. O jovem tentou construir uma carreira no futebol, mas a falta de tempo para praticar e o custo do uniforme e chuteiras o impediram de realizar o sonho. Sorte da dramaturgia brasileira. Negros no Cinema Brasileiro: uma Longa Caminhada O crescimento urbano no Brasil foi acelerado a partir de 1890, quando mudanças estruturais na política, na economia e na sociedade começaram a romper com a ordem tradicional ruralista e novos negócios e serviços passam a atrair trabalhadores para as cidades. Quanto mais pessoas, mais negócios e mais serviços, e assim a população crescia nas cidades, graças à chegada dos imigrantes estrangeiros e dos imigrantes nacionais vindos de outras regiões ou simplesmente do interior do estado. A vida urbana era mais diversificada: cafés se multiplicavam, bondes e trens moviam pessoas de uma parte à outra, casas de entretenimento, como teatros e bailes eram criadas para atrair um público diverso Apesar de não haver segregação racial formal no espaço urbano de São Paulo, a documentação aponta para uma segregação econômica, cujo resultado era a concentração dos negros em áreas relativamente próximas ao centro comercial da capital e nas imediações dos bairros de elite, onde havia abundância de possibilidades de trabalho. Havia, no entanto um contraste entre os logradouros. Enquanto as ruas de comércio eram calçadas, iluminadas e bem cuidadas, e os bairros de elite eram também calçados, iluminados e arborizados, nas cercanias poderiam ser encontrados becos e ruelas enlameadas e malcheirosas; prédios decadentes divididos em cômodos de aluguel, e as vilas e favelas de aspecto repugnante. Ainda que houvesse brancos pobres, em geral imigrantes estrangeiros, vivendo em cortiços e nas vilas e negros vivendo em regiões 456 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha mais abastadas, é fato que, nos bairros de elite os negros eram empregados que viviam nos quartos do fundo. A presença de atores negros no teatro brasileiro nasceu com a criação do teatro. Desde os primeiros anos da República, com a urbanização e o desenvolvimento de casas de entretenimento, artistas negros, em geral músicos e dançarinos/as, participavam de espetáculos nas principais cidades, além de exercerem as funções mais servis na costura, limpeza e apoio em geral. A imprensa do período indica a existência de casas de espetáculo voltadas para diferentes estilos e classes sociais, da ópera às chamadas revistas. Um dos mais famosos empreendedores do teatro brasileiro do período foi o pardo baiano João Cândido Ferreira, que após passar um tempo em Paris, adotou o apelido que os franceses lhe deram: De Chocolat. Ele voltou ao Rio de Janeiro em 1926, onde fundou a Companhia Negra de Revistas. Na mesma época, também no Rio, surgiu a Companhia Bataclan Preta e em 1930 a Companhia Mulata Brasileira. (NEPOMUCENO, 2006). Tais companhias seguiam a fórmula do teatro de revistas, gênero que surgiu no final do século XIX, que destoava do teatro dramático tradicional por promover o riso, trazer temas do cotidiano e misturar músicas e danças populares à encenação teatral. É também chamado de “teatro ligeiro”, nome que remete ao estilo pouco elaborado dos textos, nos quais mesclam-se elementos do cotidiano e do contexto político, econômico e social, além da tendência ao improviso. (MADEIRA, 2000). Também num circo, em 1925, teve início a carreira do ator Grande Otelo. (SANTOS, 2016). A partir 1910, o teatro de revistas ganhou popularidade, caindo no gosto das camadas mais baixas, apesar de ser duramente criticado pela elite. As companhias de teatro negras seguiram esta tendência muito de perto, retratando elementos do cotidiano da população negra e marginalizada, falando de seus problemas e desafios de forma cômica. Era comum satirizarem problemas gerados pelo preconceito racial e pelo conflito de classes. Além disso, incorporava ritmos populares como o maxixe e os batuques, seguindo a tendência francesa. A grande referência para esse período é o ator, compositor, produtor e diretor De Chocolat. A sua estreia ocorreu no Rio de Janeiro em 31 de julho de 1926. Seu advento assinalou o início do teatro negro no Brasil, isto é, uma variante temática 457 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha do teatro ligeiro que, sem modificar as estruturas dos gêneros existentes nas revistas e burletas, procurou estilizá-los com números de danças e canções inspiradas na cultura afro-brasileira ou afro-americana. Outro aspecto inerente a essa manifestação foi a constante referência à epiderme, uma espécie de sublimação brasileira das diferenças raciais, tão assinaladas pelas “marcas de cor”, conforme os títulos das revistas apresentadas: Tudo Preto, Preto e Branco, Carvão Nacional, Café Torrado. (BACELAR, 2007). O sucesso do teatro ligeiro negro, no Rio de Janeiro, suscitou muitas críticas. Curiosamente, a maior parte delas não era pelo seu conteúdo –provavelmente porque, de fato, seguia um formato já conhecido na Europa e no Brasil – mas sobre o fenótipo dos participantes e pelo tipo de música que apresentavam. Em outras palavras, a maior crítica era sobre o fato de os membros dessas companhias serem negros e apresentarem sua cultura. Uma atriz negra alcançou, no Rio de Janeiro, um estrondoso sucesso. Era a excozinheiraAscendina dos Santos, que desde o início de 1926 vinha atuando no Teatro Carlos Gomes, com a Companhia Carioca de Burletas (NEPOMUCENO (2006). Apesar da atriz Apesar da atriz ter seu talento reconhecido em alguns jornais do Rio de Janeiro, ao ponto de terem-lhe oferecido um contrato de trabalho, ela também foi alvo de ridículo; a revista semanal O Malho, por exemplo, publicou em vários textos no qual se refere à atriz em 1926, inclusive uma falsa entrevista com a atriz, na qual ela é apresentada como uma criada doméstica falando mal o português. O texto chega a colocar em dúvida sua moral, como se vê no trecho seguinte: - Mas de certo. Quero prova que os preto [sic], no Brasil, são mesmo, ali, de facto! E vamodeixá dessa história de dizê que são só os portuguez que gosta da gente! Meu camarim, no triatrovéve cheio! É portuguz, é italiano, é hispanhó e muito brasileiro...E não é perciso sê atriz... Quarqué cozinheira sabe muito bem disso![sic].12 A revista chegou a publicar uma bela foto, de corpo inteiro da atriz; em alguns momentos parece reconhecer seu talento, mas em seguida inclui algum comentário de mal gosto, como este, publicado em 20 de fevereiro de 1926, no qual elabora uma outra entrevista falsa, dessa vez com o diretor teatral Gastão Tojeiro: “A novidade da 458 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha Companhia de Burletas continua a ser uma só, a retinta Ascendina! Não monto mais nada, não ensaio cousa alguma inédita, continuo a representar ‘Ai Zizinha!’, grande êxito de Clara Branca das Neves, nome recém-adoptado pela genial e eminente artista!”.13 A visibilidade de Ascendina, a cozinheira que virou atriz consagrada, suscitou boatos de que o aumento no número de teatros de revistas que empregavam atores e atrizes negras iria afetar a ordem social. Preocupavam-se com a possibilidade de uma crise da mão de obra nas cidades. Rumores falavam de uma “crise de domésticas”, relacionando o sucesso das revistas negras ao declínio na oferta de trabalhadores domésticos, primeiro no Rio de Janeiro, e depois em São Paulo. Em julho de 1926, Menotti Del Picchia escreveu no jornal Correio Paulistano(atentem para o fato de que sua cozinheira era alfabetizada!), aqui citado por Nepomuceno (2006, p.137): Quando li no jornal o telegrama da ‘companhia preta’ o demônio do ‘pavor doméstico’ entrou em mim. E procurei esconder o jornal, que minha cozinheira sempre lia… Saí, tratei de negócios, discuti política(...) Voltei cansado. Faminto, fui para a sala de jantar. Nada de aparecer a comida. Estranhei... fui à cozinha. Vi sobre a mesa o “Diário Popular”... Na despensa encontrei a preta. Estava toda enfeitada, experimentando umas penas do espanador no alto da garofinha. – Pancrácia, e o jantar? –Jantá, o sinhô tá loco? O sinhô não vê que eu vô entrá como estrela do Bataclán? Segundo autores como Olívia Gomes da Cunha (2007), Maria Izilda Santos de Matos (2002) e George Andrews (1991), naquele período não houve tal crise na mão de obra doméstica, mas um superávit, quando imigrantes passaram a competir com os trabalhadores nacionais por esse tipo de emprego. Inegável é o fato de que a elite não via com bons olhos a possibilidade de uma nova frente de trabalho abrir-se para afrodescendentes. O sucesso de negros e negras nos palcos poderia influenciar empregadas domésticas a tentarem a sorte como artistas, o que poderia afetar a qualidade de vida dos patrões brancos. A Companhia Negra de Revistas de DeChocolat teve vida efêmera, de 1926 a 1927. Mas marcou definitivamente a cena cultural brasileira, e seu estilo foi copiado por outras 459 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha companhias. Um de seus atores mais jovens tornou-se o mais prolífico ator negro no cinema brasileiro Grande Otelo, em 1927, aos doze anos de idade. Por volta da mesma época, o menino também atuava em circos (SANTOS 2016). O circo-teatro, trazido para o Brasil por imigrantes europeus no final do século XIX, empregou homens e mulheres negras e tornou-se uma opção barata de lazer para as camadas mais pobres da população (PIMENTA 2009). Em1908, o ator negro Benjamin de Oliveira, do Circo Spinelli, onde além de ser palhaço também protagonizava papéis dramáticos, foi contratado para fazer o papel do índio Peri, no filme mudo Os Guaranis, um dos primeiros filmes brasileiros. (RODRIGUES, 2001).Atores negros já haviam protagonizado filmagens no Brasil, principalmente as reportagens ou documentários que tinham como tema a cultura afrobrasileira, como Dança Baiana, de 1901, Dança dos Capoeiras, de 1905, “seis reportagens sobre a Revolta da Chibata em 1910; e mais um misterioso e não identificado Família de colonos africanos em uma fazenda, do mesmo ano. (RODRIGUES, 2001, p. 78). A primeira tentativa conhecida de se fazer um filme de ficção histórica no Brasil aconteceu em 1912, com A vida de João Cândido, o tema, porém ainda era muito polêmico, pois envolvia a rebeldia negra e um motim contra a Marinha Brasileira. Segundo Rodrigues (2001), a única cópia do filme foi confiscada por um Chefe de Polícia. Temos então, já no início do século, os negros atuando como atores em ficção e em filmes elaborados sobre suas próprias vidas. Homens e mulheres estavam presentes quando a cena era sobre música e dança, por exemplo, e eram comumente recrutados para papéis que refletiam o estigma associado à população negra: empregadas domésticas, peões ignorantes, bandidos, bêbados, malandros. Depois da já citada importante atuação de Benjamin de Oliveira em Os Guaranis, o drama produzido em Pernambuco, A Filha do Advogado, de 1926, tinha um homem negro num papel de destaque, ainda que fosse como um sujeito de moral duvidosa. “Coadjuvante e não apenas figurante, esse Gerôncio é um dos primeiros personagens negros da nossa cinematografia, trazendo já alguns traços dos arquétipos pejorativos do futuro: corrupção, superstição e covardia.” (RODRIGUES, 2001, p. 79). A década seguinte marcou a história dos negros no país. Apesar da crise econômica mundial, a modernização de São Paulo não parava, com a construção de avenidas, parques e jardins, ganhando grande ímpeto no período de Prestes Maia. Tal 460 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha progresso era marcado pela prevalência da discriminação racial, apoiada em ideias eugenistas revitalizadas no debate mundial daquele período. A Constituição de 1934 determinava o ensino da eugenia nas escolas, medida mantida pela Constituição de 1937, e que não apenas ofereceu suporte para as práticas racistas, como exigia que professores reproduzissem nas salas de aula a ideologia que pregava a hierarquia racial e a propensão natural de negros e pardos à degeneração moral, aliada a uma capacidade intelectual inferior (DÁVILA, 2005). Jornais negros denunciavam situações de exclusão, discriminação e injustiças contra homens e mulheres negras, descrevendo, por exemplo, o caso de crianças negras rejeitadas por organizadores de grupos de escoteiros, denunciando que filhos de proeminentes intelectuais negros eram rejeitados em escolas católicas. Nas ruas, a polícia estava em alerta para coibir os negros qualquer ato considerado crime, real ou eminente, como as batucadas, capoeiras, os bêbados, mendigos, ou simplesmente a presença de homens e mulheres negras em locais considerados “fora do lugar dos pretos”. Em 1931, dentre os serviços oferecidos pela Frente Negra Brasileira, estava uma escola de artes dramáticas, frequentada por rapazes e moças, conforme mostra o jornal da entidade A Voz da Raça. Dois anos depois, um grupo de rapazes e moças, membros do grupo de teatro da Frente Negra Brasileira foi abordado pela polícia. Segundo o jornal A Voz da Raça de dezoito de março daquele ano, eram aproximadamente nove horas da noite quando os jovens terminaram seus ensaios e os rapazes seguiam para acompanhar as moças às suas casas quando policiais os interceptaram, querendo saber o que faziam por ali. Insatisfeitos com a explicação de que se tratava de um grupo de atores amadores, o oficial lhes deu voz de prisão, ordenando que fossem todos para dentro da viatura. O incidente foi contornado e ninguém foi preso quando ficou provado que estavam falando a verdade. A produção cinematográfica havia se desenvolvido muito durante o período entre guerras, tanto no mundo como no Brasil. O cinema brasileiro em termos de gênero se dividia em dois, o cinema dramático e a comédia, inspirada no teatro de revistas, que recebeu o nome de chanchada. Conforme explica Camila Delfino Silva (2012), o estilo se definiu já na década de 1930 e incluía números musicais. Em geral eram produções acanhadas, com baixos recursos técnicos e de orçamento. Em contraste, 461 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha o cinema dramático seguia a tradição europeia, com roteiros traduzidos ou inspirados nos europeus ou americanos. A Escola de Teatro Martins Pena foi criada em 1908, no Rio de Janeiro, sendo a primeira escola de teatro da América Latina, mas como se pode imaginar, o número de atores formados na escola não era suficiente para nutrir o crescimento da profissão, que nos anos 1930 incluíram o rádio e o cinema. A maio parte dos atores, diretores e outros profissionais não havia cursado essa escola, aprendiam na prática. O Serviço Nacional de Teatro (SNT) foi criado no início do Estado Novo e tinha como objetivo não apenas controlar essa forma de comunicação, sendo a censura uma das características da Era Vargas, mas de desenvolver e promover o teatro como um instrumento pedagógico, na formação cívica do brasileiro. Um dos primeiros produtos do SNT foi a criação do Curso Prático de Teatro, em 1939, depois incorporado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. O cinema recrutou atores nos teatros e nos circos. Em 1935, Grande Otelo estreou no cinema brasileiro enquanto ainda atuava no teatro. (SANTOS, 2016). Entre 1935 e 1950 atuou em trinta filmes, com papéis de destaque. Ao todo foram 138 filmes, entre chanchadas e dramas, no teatro o número de peças é incerto, mas em seus 62 anos de carreira pode-se afirmar que foram mais de uma centena. Artistas negros e negras ganharam maior destaque a partir de 1940, com o crescimento do número de teatros e companhias e com o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional. O crescente número de artistas negros, músicos e esportistas que alcançavam visibilidade e reconhecimento não era garantia contra o racismo. Na edição de fevereiro de 1950, um artigo do Quilombo refere-se à discriminação racial sofrida pelo diretor do Teatro Experimental do Negro, Abdias Nascimento, e seus convidados: Ruth Cardoso, Claudiano Filho e Mariana Gonçalves, que foram barrados à entrada do Hotel Glória, no Rio de Janeiro quando se realizava o “Baile dos Artistas”, no carnaval de 1949, apesar de portarem convites. O incidente chegou aos ouvidos do então Presidente Dutra, que por sua vez, pediu providências ao Ministério da Justiça. O artigo, publicado às vésperas do carnaval de 1950, indicava que a denúncia tinha surtido efeito e que Abdias Nascimento e Ruth Cardoso havia, naqueles dias, recebido convite para “abrilhantar” o Baile dos Artistas (ROCHA, 2019). Por volta do dia 10 de julho de 1950, Katherine Dunham, famosa bailarina negra dos Estados Unidos que em turnê pelo Brasil, chegou à cidade de São Paulo para 462 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha se apresentar no Teatro Municipal. A artista era esperada, tendo passado pelo Rio de Janeiro na semana anterior à sua vinda para a capital paulista. Entre 4 e 11 de julho, os jornais davam notícias diárias, anunciando o espetáculo de balé de alta categoria que estava por vir. Entretanto, ao chegar ao Esplanada Hotel, um dos mais importantes da cidade, localizado nas imediações do Teatro Municipal, a bailarina teve sua reserva cancelada e foi impedida de se hospedar ali, por ser negra. O fato causou grande escândalo, mas só repercutiu nos jornais paulistas depois que Abdias Nascimento, Roger Bastide, Cory Gomes de Amorim, diretor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Rossini Tavares de Lima, então presidente do Centro Folclórico Mário de Andrade, entre outros, enviaram ao Jornal da Noite um documento narrando o fato. Na mesma edição, o jornal apresentou, na contracapa, outra manchete sobre o incidente, sob o título: “Devemos encetar um movimento para cortar de vez os pruridos do racismo no Brasil”. Nele, o jornalista negro Geraldo Campos de Oliveira declarava não estar surpreendido pelo incidente, já que o que ganhava agora notoriedade porque acontecia com uma celebridade internacional, acontecia todos os dias com brasileiros negros, em hotéis, barbearias, boates e cassinos. Menos de uma semana depois da notícia aparecer nos jornais, o escândalo envolvendo Dunham voltou a ganhar destaque nas páginas do Jornal de Notícia em 19 de julho de 1951, informando que, em razão do ocorrido com a bailarina americana, o Deputado Federal Afonso Arinos apresentara na Câmara um projeto de lei que tornava a discriminação racial crime. A Lei, aprovada em julho de 1951, tornou o racismo uma contravenção penal e passível de pena de prisão de três meses a um ano para infratores, além de multa. (ROCHA, 2019). Do Teatro, ao Cinema, à Televisãoe ao Mundo A Escola de Arte Dramática foi criada na Universidade de São Paulo em 1948, trazendo uma forte tradição europeia. Enquanto isso, a ampliação dos grupos de teatro em igrejas, centros comunitários e escolas trouxe para os palcos as indagações de outras classes, da classe média, muito interessada nas leituras comunistas, e da classe trabalhadora, preocupada em sobreviver. A grande emigração de nordestinos, depois 463 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha da seca de 1932, levou artistas e intelectuais para centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro onde se somaram a outros imigrantes que influenciaram a produção literária, que basicamente alimentava o teatro e o cinema, como Solano Trindade. Surgiram os temas realistas e a crítica social séria, que antes era velada pelo humor, no Teatro de Revistas. Naquele meio tão efervescente, os primeiros formandos da Escola de Arte Dramática começaram a atuar já no início dos anos 1950, como foi o caso de José Renato Pécora, fundador do Teatro de Arena. Parte do processo de urbanização de São Paulo foi a construção de teatros populares em regiões periféricas da cidade. Em 1952 foi inaugurado o teatro Arthur Azevedo, na Mooca, reformados os teatros Colombo, no Brás, e o teatro São Paulo, na rua da Glória. Nesses teatros, que eram propriedade do governo, as companhias não pagavam aluguel para uso, barateando os ingressos para o público. A medida levantou críticas sobre os gastos públicos, criando teatros localizados fora das zonas nobres, onde – segundo os críticos – o público não estava habituado a ir ao teatro. (NEIVA, 2016). O aumento do número de teatros e cinemas, além de aumentar as oportunidades de trabalho para artistas e ampliar as opções de lazer para o público, criou outros empregos diretos e indiretos. Milton Gonçalves, aos 21 anos de idade, trabalhava numa gráfica que, entre outras coisas, imprimia ingressos para teatros.Um dos clientes era Leonel Cogan que levou para imprimir uns ingressos para uma peça que seria no teatro do Colégio Caetano de Campos, na Praça da República. Dias depois, Cogan retornava à gráfica e conversou com Milton, querendo saber o que ele tinha achado. Diante do entusiasmo do jovem, prometeu inclui-lo em futuras produções. Seu primeiro papel foi um soldado de chocolate, num espetáculo para o público infantil. Mas, havia outra peça, do mesmo clube de teatro, voltada para o público adulto, no qual ele foi convidado para fazer o papel de um escravo. A peça era O Dote, de Artur de Azevedo. E este espetáculo estreou num teatro que não existe mais, Teatro Colombo, ali perto da chamada Estação do Norte, no Brás. E o Leonel Cogan fez uma molecagem comigo. Ele convidou todo o bairro. Que eu, nessa época, já morava na Ponte Grande, ali onde tem o Tietê, o Floresta e a Associação Atlética São Paulo. E ele levou todo mundo, e eu maquiado para parecer um preto velho... Olhem, eu acho que eu devo ter feito uma bobagem 464 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha muito grande, mas de qualquer maneira, a estreia pra mim foi auspiciosa. Primeiro, porque eu não esqueci o texto, segundo por que o galã, aquele que fazia lá o papel de mocinho esqueceu o texto e eu assoprei o texto pra ele... E foi uma emoção muito grande, todo mundo bateu palmas.14 As oportunidades não pararam mais, Milton era chamado para atuar com diferentes companhias de teatro, até porque as pessoas dessa área se conheciam. Sua voz inconfundível e clara, e sua habilidade em decorar textos e atuar foram prontamente reconhecidas por onde ele passava. Apesar dos convites, não havia pagamento envolvido, e ele sabia que precisava continuar trabalhando na gráfica, ensaiando nas noites e às vezes nos fins de semana. Por um tempo, foi trabalhar com Egydio Eccio, no Teatro dos Comediantes. No grupo de Egydio, Milton aprendeu a fazer outras coisas no teatro: iluminação, cenografia e contrarregra, ali também ele teve a oportunidade de trabalhar com atores mais experientes. Um deles era Sérgio Rosa, um parente próximo de Vianinha e, numa noite de espetáculo, Vianinha e Guarnieri estiveram no teatro assistindo à peça, foi quando conheceram o ator Milton Gonçalves. Ainda que a questão econômica pesasse, fazendo com que em épocas de muito trabalho Milton se afastasse um pouco do teatro, a descoberta daquele novo mundo, de atores, diretores, cenários, histórias o fascinava. Tudo era aprendizado. Foi uma aventura maravilhosa! Fiquei encantado com o palco. Eu ia ao cinema, mas jamais imaginei que o teatro tivesse aquela força! Abrir a cortina e, de repente, você mergulhar no espetáculo. Fui descobrir as vísceras do teatro! (VALENTINETTI, 2005, p. 22) E foi o acaso que colocou nas suas mãos os ingressos para a sua primeira peça de teatro, e a curiosidade que o colocou no palco, atuando para crianças e logo em seguida para adultos. Em seu meio, aquele mundo era alienígena. Seus familiares levariam um tempo para se dar conta do que era essa nova empreitada de um de seus membros. No início a mãe e os irmãos não foram assistir Milton atuar, e só muito depois se deram conta da importância de tudo aquilo. Aliás, Milton Gonçalves também levou um tempo para entender que ser ator de teatro poderia ser a sua nova profissão. 465 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha Em 1956, José Renato convidou dois jovens talentosos do Teatro Paulista do Estudante para se incorporarem ao Teatro Arena com seu grupo. Ambos vinham da experiência do teatro amador, mas traziam uma grande bagagem cultural, artística e política: Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho. Logo depois vieram outros, como Augusto Boal, recém-chegado de um curso de dramaturgia realizado nos Estados Unidos, para onde fora com o intuito de tornar-se doutor em química, e Sérgio Rosa, Vera Gertel e Mariuza. (BASBAWN, 2009). Com a proposta de formar uma grande equipe, e entendendo o teatro como espaço também de formação, o novo Teatro Arena, iniciou o recrutamento de novos integrantes entre os vários grupos de teatro amador existentes na cidade de São Paulo. Aí o Sérgio Rosa me procurou na gráfica, onde eu continuava, e disse: “Olha, tem um diretor novo que vai fazer um espetáculo chamado Ratos e Homens, ele é recém-chegado dos Estados Unidos, vai ser o Teatro de Arena, e ele abriu testes para fazer vários personagens.” O diretor era Augusto Boal. “- Eu fui lá, já tenho um personagem, você não quer ir lá? Eu falei que tinha um ator negro que podia fazer o personagem de Crooks…” E eu respondi:“- Claro que quero!” (VALENTINETI, 2005, P.23-4). Parte da proposta do Teatro de Arena, era tornar-se um centro de educação, promovendo estudos e debates sobre técnicas de dramaturgia, literatura, sociedade e política, tendo o espaço do teatro como local da educação. Além disso, dentro do grupo, membros desempenhavam funções diversas, combinando apoio técnico, como iluminação, cenário, manutenção, com outras funções mais artísticas como a escrita de textos, direção e atuação.O Arena era uma escola prática de teatro no sentido mais literal. Além dos laboratórios de interpretação, Alfredo Boal – logo no início – ofereceu aos atores um curso teórico, aberto a outros grupos, que incluía dramaturgia e análise de peças teatrais. (MORAES, 1991). Sem dúvida, o maior sucesso do Teatro de Arena foi a peça Eles não Usam Black Tie, em 1958. A este, seguiram-se outros grandes sucessos de bilheteria e de crítica. O grupo se dividia entre funções e em elencos que atuavam em diferentes lugares nos mesmos dias. Milton Gonçalves decidiu então largar o trabalho na gráfica e se dedicar à profissão de ator. 466 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha Em 1958, com um convite para participar do elenco do filme O Grande Momento, de Roberto Santos, Milton Gonçalves estreou no cinema. Roberto Santos também era do Partido Comunista, amigo de Guarnieri, e frequentava os seminários do Teatro de Arena. Quando estava compondo o elenco para seu filme, era natural que buscasse ali os atores necessários. Mesmo envolvido com tudo que tivesse relação com o Teatro de Arena, Milton não desperdiçou a chance ao ser chamado por Roberto de Farias para fazer no cinema o filme Cidade Ameaçada, lançado em 1960. Trata-se de um drama policial ambientado na cidade de São Paulo. Trazia no elenco, além de Milton Gonçalves, Jardel Filho, Eva Vilma, Dionísio Azevedo, Reginaldo Faria (irmão do diretor), Ambrósio Fregolente, Douglas de Oliveira e Eduardo Abbas. O filme foi indicado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes, e rendeu o prêmio SACI de melhor atriz para Eva Vilma. (VALENTINETI, 2005). A carreira no Teatro de Arena continuou a ser o centro da vida profissional de Milton. Tanto que não hesitou em transferir-se para Rio de Janeiro, acompanhando o grupo liderado por Vianinha, quando houve a cisão do ARENA em 1962. E foi no Rio de Janeiro que a situação ficou muito complicada, com o Golpe Militar de 1964. A Ditadura fechou os teatros, e passou a censurar duramente a cultura brasileira. Também suspendeu os subsídios para a cultura. Além disso, muitos autores e pessoas ligadas às artes dramáticas foram perseguidas e tiveram que sumir por um tempo. Segundo Milton Gonçalves, foi terrível, não havia trabalho, não havia dinheiro e não havia nenhuma perspectiva de que as coisas iriam melhorar a curto prazo. Sua larga experiência no Arena, porém, fazia de Milton um excelente profissional, somado ao seu talento como ator, isso o fazia um profissional muito cogitado. Por isso, em meio à grande crise, ele foi convidado para atuar em dois filmes: História de um Crápula e Procura-se uma Rosa, de Jesse Valadão. (VALENTINETI, 2005). Aparentemente, um trabalho trazia outro, ainda que houvesse intervalos entre os projetos. Eu estava assim, perdido, até que apareceram os irmãos José Renato dos Santos Pereira e José Geraldo dos Santos Pereira, que iam fazer um filme, no interior de Minas Gerais e me convidaram. O filme era Grande Sertão, inspirado no romance Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa.15 467 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha Aquele convite, aparentemente salvou Milton Gonçalves, não apenas da crise financeira em que vivia, mas da própria repressão, que assombrava os ex-membros do Teatro Arena, conhecido por seu direcionamento político em proximidade com o Partido Comunista. Para gravar o filme, Milton ficou em Minas Gerais por vários meses, mas o projeto acabou não sendo concretizado. Lá em Minas ele encontrou Otávio Graça Melo, que também participou do filme. Foi ele quem contou a Milton sobre essa nova emissora de televisão que estavam montando. Ele me perguntou: “- O que você vai fazer quando terminar aqui?” Eu disse: “- Eu não sei, volto pro Rio, porque pra São Paulo eu não volto de jeito nenhum.” Então ele me disse para eu procurá-lo no Rio, porque ele estava montando o elenco para uma nova emissora de televisão que iria ser inaugurada. Era a Globo.16 Consagração e Estrelato Milton Gonçalves foi o primeiro ator contratado pela Rede Globo de Televisão, onde atuou como ator e diretor em novelas, teledramas e programas de humor por mais de 50 anos, até 2020. A carreira de sucesso na televisão não o afastou do cinema, seu primeiro amor como ator. Ao todo foram 67 filmes, aproximadamente 50 peças de teatro e centenas de trabalhos na televisão, que lhe renderam 14 prêmios. A consagração como ator no cinema veio em 1974, com o filme A Rainha Diaba, que rendeu a Milton Gonçalves quatro prêmios como melhor ator: Coruja de Ouro, Air France, Candango e Prêmio Governador do Estado de São Paulo. A proposta de representar um travesti no cinema brasileiro era nova e muito ousada, uma época em que havia um grande preconceito contra o homossexualismo. Depois de consultar a família, Milton procurou se informar, buscar material, estudar os trejeitos, chegou a falar com psicólogos e passou a observar os travestis da cidade, para entender um pouco mais sobre a homossexualidade. Naquele projeto, toda a disciplina e técnicas de interpretação aprendidas no Teatro de Arena e desenvolvidas desde então renderam ao ator a capacidade de criar e viver um personagem que era completamente fora de sua zona de conforto, de sua experiência. Milton explicou que para um ator, interpretar uma mulher ou interpretar 468 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha um homossexual num esquete de comédia é algo comum. Mas aquele papel exigia que ele interpretasse um homossexual masculino que se travestia, vivendo num ambiente hostil, na marginalidade da Lapa carioca. Tinha que ter os trejeitos sem ser uma caricatura, mantendo a tensão dramática da estória. (ROCHA, 2019) Me lembro quando, em 75, no Cine-Palácio, aqui na cidade, o Hugo Carvana, que havia ganhado no ano anterior, anunciava os prêmios. Eu sentado na plateia com a minha mulher e meu filho […] Aí o Carvana, de cima, olhou para mim – ele era o mestre de cerimônias – logo depois a Teresa Rachel anunciou “Melhor Ator do Ano…”, o Carvana me olhou de novo, os meus olhos se encheram de lágrimas, os olhos da minha mulher se encheram de lágrimas. “Melhor Ator do Ano: Milton Gonçalves, por ‘Rainha Diaba’…” O cinema veio abaixo, o cinema veio abaixo! (VALENTINETTI, 2005, p.68). A história de Milton Gonçalves poderia ser simplesmente a biografia de um ator brasileiro, seu fascínio pelo cinema enquanto criança e sua carreira como jovem ator, do teatro ao cinema e televisão. Porém, ser negro no Brasil ainda significa ter de enfrentar obstáculos e limitações específicas, que são impostas por vestígios de uma cultura racializada que teima em nãomorrer. Ao engajar-se na carreira de ator, Milton, como outros afro-brasileiros, não aceitou o “lugar do negro”, que a sociedade havia demarcado no pós-abolição. Sua luta como ator está entrelaçada com sua luta contra o racismo. 469 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha Notas 1 Milton Gonçalves, entrevistado por Elaine Rocha em Junho de 2011. 2 Os Pretos em São Paulo. O Kosmos, São Paulo, 19 de outubro de 1924, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/844896/69 Acesso em: 18 agosto 2023. 3 Idem. 4 De que necessitamos. O Clarim da Alvorada, 22 de junho de 1924, p. 1. Disponível em: http://biton. uspnet.usp.br/imprensanegra/index.php/o-clarim-da-alvorada/o-clarim-da-alvorada-22061924/ Acesso em: 17 agosto 2016. 5 Milton Gonçalves, entrevistado por Elaine Rocha em Junho de 2011. 6 Idem. 7 A Voz da Raça. São Paulo, 6 de maio de 1933, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/ docreader.aspx?bib=845027&pasta=ano%20193&pesq Acesso em: 16 Agosto 2023. 8 Milton Gonçalves, entrevistado por Elaine Rocha em Junho de 2011. 9 SESC TV, Sala de Cinema: Milton Gonçalves. Entrevista. Publicada em 08 de agosto de 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=egCKBUMa100 Acesso em 18 de setembro de 2018. 10 Milton Gonçalves, entrevistado por Elaine Rocha em Junho de 2011. 11 Idem. 12 Theatros - Communicado Especial. O Malho, 13 de fevereiro 1926, p. 13. 13 Theatros - Depois do Carnaval. O Malho, 20 de fevereiro 1926, p. 40. 14 Milton Gonçalves, entrevistado por Elaine Rocha em Junho de 2011. 15 Idem. 16 Idem. Referências Bibliográficas ANDREWS, G. R. Blacks and Whites in São Paulo, Brazil 1888-1988. Madison: University of Wisconsin Press, 1991. BACELAR, J. A história da Companhia Negra de Revistas (1926-1927). Revista de Antropologia, São Paulo, v.50, n.1, São Paulo, p. 437-443, 2007. BASBAUM, H.José Renato: Energia eterna. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. BUTLER, K. Freedoms given, freedoms won. Afro-Brazilians in post-abolition São Paulo e Salvador. New Jersey: Rutgers Univ. Press, 1998. 470 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha CORDEIRO, S. L. Moradia popular na cidade de São Paulo (1930-1940) – Projetos e ambições.Histórica Revista Online do Arquivo Público do estado de São Paulo, n. 1, São Paulo, p. 1-13, 2005. CUNHA, O. G. Criadas para servir: domesticidade, intimidade e retribuição. In: CUNHA, O.; GOMES, F. (Org.).Quase cidadão: histórias e antropologias do pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2007, p. 377-417. DÁVILA, J. Diploma de Brancura. Política social e racial no Brasil, 1917-1945. São Paulo: UNESP, 2005. FERNANDES, F. A Integração do negro na sociedade de classes. 5a. ed., São Paulo: Globo, 2008. FERRO, M. Film as an Agent, Product and Source of History. Journal of Contemporary History, v.18, n. 3, [S.I.], p. 357-364, Jul. 1983. FERRO, M. The use and abuse of history. New York, Routledge, 2003. FRANKLIN, J. H. Raça e história: ensaios selecionados. Rio de Janeiro, Rocco, 1999. LOWRIE, S. O elemento negro na população de São Paulo. Revista do Arquivo Municipal,v.4, n.48, São Paulo, p.5-56,1938. MADEIRA, G. Paschoal Carlos Magno (1906-1980): mosaico de um culturalista. 2000. 248p. Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2000. MATOS, M. I. S. Cotidiano e Cultura: História, cidade e trabalho. Bauru: EDUSC, 2002. MORAES, D. Vianinha: Cúmplice da Paixão. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991. NEIVA, S. M. O Teatro Paulista do Estudantes nas origens do nacional popular. 2016. 224p. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas), Escola de Comunicação e Arte, Universidade de São Paulo, 2016. NEPOMUCENO, N. Testemunhos de poéticas Negras: De Chocolat e a Companhia Negra de Revistas do Rio de Janeiro (1926-1927).2006. 167p.Dissertação (Mestrado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. 471 sonhar nas sombras, alcançar o estrelato Elaine Pereira Rocha PIMENTA, D. A dramaturgia circense: conformação, persistência e transformação. 2009. 187p.Tese (Doutorado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. PIZA, E.Branco no Brasil? Ninguém sabe, ninguém viu. In HUNTLEY, L.; GUIMARÃES, A. S. (Org.) Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p.97-125. ROCHA, E. P. Milton Gonçalves, memórias de um ator afro-brasileiro. São Paulo: e-Manuscrito, 2019. SANTOS, T. P. Entre Grande Otelo e Sebastião: tramas, representações e memórias. 2016. 597p. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016. RODRIGUES, J. C. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. SILVA, C. D.Grande Otelo, um Pícaro na cena brasileira. 2012. 150p. Dissertação (Mestrado em Teatro)Instituto de Artes, Universidade Federal de Uberlândia, 2012. VALENTINETTI, C. Milton Gonçalves, um negro em movimento. Brasília: Farani, 2005. 472 A Presença Negra na Amazônia: história, lutas e resistência Maria Aparecida Costa Oliveira1 Gisely Storch do Nascimento2 Fábio Santos de Andrade3 Celso Luiz Prudente4 Ao longo da história do Brasil, região amazônica atraiu milhares de exploradores levados pelas lendas sobre a abundância de riquezas minerais, o verdadeiro “Eldorado”, onde seria possível encontrar tesouros grandiosos. Com esse intuito, muitas expedições 1 Doutoranda em Educação Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Mestre em Educação Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Graduada em Pedagogia. Supervisora Pedagógica no Instituto Federal de Rondônia (IFRO), Campus Colorado do Oeste/ RO. 2 Doutoranda em Educação Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Mestre em Educação Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Professora no Instituto Federal de Rondônia (IFRO), Campus Colorado do Oeste/ RO. Graduada em Letras. 3 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Pós-doutor em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Professor Associado da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), atuando no Departamento Acadêmico de Ciências da Educação (DACED/Vilhena) e no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Mestrado e Doutorado Profissional (PPGEEProf). 4 Livre-Docente em Cultura Afro-brasileira e Indígena, Cinema e Hermenêutica pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP). Doutor em Cultura pela Universidade de São Paulo (FEUSP). Pós-Doutor em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP). Professor Associado da Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT. Professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Mestrado e Doutorado Profissional (PPGEEProf). 473 a presença negra Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente foram organizadas e transitaram explorando a região, tendo como marco o século XVIII quando os portugueses exerceram verdadeiro domínio exploratório, intensificando o comércio e tendo como centro de importação e exportação a cidade de Belém, no Pará. Salles (1971), destaca que existia uma grande curiosidade portuguesa pela Amazônia e, certamente, essa curiosidade visava o encontro do Eldorado. Para Stori (2022, p. 52), “O Eldorado enraizou-se de tal forma na mentalidade europeia que chegou a figurar na cartografia da América do Sul como um espaço real, ainda que não descoberto.” Foi justamente a busca pelo Eldorado que fez com que o tráfico de africanos escravizados se estabelecesse na região amazônica. Dessa forma, podemos considerar que a história das comunidades negras da Amazônia nasce nos campos africanos, onde crianças, jovens e adultos foram retirados(as) de seus lugares e inseridos(as) em um ambiente desconhecido, onde foram explorados(as) e submetidos(as) a vários os tipos de violência. Sampaio (2011), assegura que a utilização de mão de obra negra escravizada na região amazônica foi intensificada a partir da segunda metade do século XVIII, onde se verificou um aumento importante no número de trabalhadores introduzidos na região para atender aos interesses exploratórios da Coroa Portuguesa, conduzidos pelo Marquês de Pombal e tendo suas medidas vinculadas à Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Outro fator impulsionador que provoca a ocupação da região no outro extremo amazônico banhado pelo rio Guaporé, na divisa com a Bolívia, foi o esgotamento das riquezas na região de Cuiabá como nos apontam Andrade, Pereira e Andrade (2021, p. 212) A presença de populações branca e negra em um território historicamente indígena (Amazônia - Brasil e Bolívia) está ligada à migração para as margens do rio Guaporé, no século XVIII, tendo em vista a descoberta de riquezas minerais que passariam a substituir as minas esgotadas da região de Cuiabá. Nesse período de intensificação da inserção do povo negro na região amazônica destaca-se a figura do Padre Antônio Vieira, cujos os pensamentos, como destaca Salles (1971), visavam a introdução de negros(as) escravizados(as) trazidos(as) de Angola. 474 a presença negra Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente Com isso, decretara-se a proibição da escravização dos indígenas, pois o objetivo de alguns membros da base católica era o desenvolvimento das missões e a entrega das aldeias aos padres da Companhia de Jesus. Antônio Vieira argumentava que os indígenas eram uma raça nativa fraca e só pela segregação poderiam servir, como a experiência havia demonstrado, e os negros já vinham sendo escravizados em todos os tempos, desde as relações que estabeleciam entre os povos nas terras da África. Às justificativas apresentadas somaram-se às de que o povo negro, que também já era escravizado em outras regiões do Brasil, era mais resistente às doenças da época. Na mesma trilha, Eltermann (2020), afirma que durante o século XIX os médicos procuraram entender como as moléstias se manifestavam nos diferentes tipos raciais, buscando assim explicar como as diferenças entre as raças, sendo elas físicas, psíquicas ou mesmo habituais, permitiam diferentes predisposições às doenças. Eram diversos os estudos, relacionados às doenças e às raças, desenvolvidos por médicos na sociedade brasileira a partir da década de 1840. Eltermann (2020), aponta ainda que pesquisadores brasileiros procuraram relacionar a febre amarela com a escravização. Na visão deles, os negros e negras seriam responsáveis pela transmissão da doença e não contraíam sua forma grave, diferentemente dos imigrantes europeus, dentre os quais a doença se alastrava com facilidade. A explicação estaria em uma maior resistência imunológica dos africanos, devido a uma experiência realizada com a doença no continente africano. Esses argumentos se propagaram pela região amazônica tornando a escravização do povo negro um mecanismo lucrativo para a exploração e a escravização indígena não se apresentava mais tão atrativa. Assim, a inserção do homem e da mulher negra na região amazônica foi acontecendo gradualmente e à medida que o sistema de exploração os incorporava. Com a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão em meados de 1755, a vinda dos africanos para a Amazônia se intensificou, devido ao estabelecimento da política pombalina instaurada na época, que fomentou as atividades agrícolas comerciais. Com o trabalho indígena sendo diminuído gradativamente, a mão de obra negra escravizada foi aumentada, posto que foram dados subsídios pela isenção de impostos sobre o comércio de africanos. (Peres, 2017, p. 84). 475 a presença negra Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente A inserção compulsória do povo negro por meio da política pombalina de isenção de impostos causou transformações significativas no panorama amazônico. Ao atender às finalidades da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, a política proporcionou um aumento expressivo no número de negras e negros africanos escravizados(as) na região. Contudo, com o aumento significativo da presença da mão de obra negra escravizada, o medo de rebeliões, como já acontecia em outras partes do Brasil, passou a assombrar os colonizadores. Para Gomes (2017), muitas obras do século XIX se limitam em registrar uma presença reduzida de negros(as) escravizados(as) na região amazônica. Relatórios da Província apresentam que no ano de 1856 haviam 913 (novecentos e treze) negros(as) na região do Amazonas, distribuídos na capital e nos municípios de Barcelos, Silves, Vila Bela e Maués. No ano de 1884, há registros de um total de 1501 (mil quinhentos e um) negros(as) escravizados(as) distribuídos(as) entre os municípios de Manaus, Manicoré, Itacoatiara, Tefé, Maués, Borba, Silves, Parintins e Barcelos. Já Salles (1971), aponta que nos 22 (vinte e dois) anos de existência, a Companhia Geral de Comércio introduziu, apenas no Pará, 12.587 (doze mil, quinhentos e oitenta e sete) negros e negras que foram escravizados. Entretanto, estima-se que esse número tenha ultrapassado 14 mil. Percebe-se a grande quantidade de negros escravizados no Amazonas no século XIX, embora tenha persistido uma interpretação de que o número de africanos impactou modestamente a economia regional a “presença negra” e a “história da escravidão” no território amazônico foram negadas por um longo período. [...] No entanto, a contribuição do negro em relação a sua cultura, mesmo que matizada e misturada pela relação com os indígenas e com os colonos oriundos de Portugal, além dos migrantes de outras partes, constituem em seu conjunto a memória da Amazônia. (Gomes, 2017, p. 23, 24). A presença marcante de negros e negras na Amazônia impactaram a cultura local. Resistiram, sobreviveram e fizeram da região sua casa, espalhando saberes e culturas; se reinventaram construindo uma grande riqueza cultural que permeia a sociedade amazônica contemporânea. A contribuição histórica e cultural dos(as) africanos(as) e dos(as) afrodescendentes para a formação da região amazônica é inquestionável. 476 a presença negra Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente Lutas e resistência negra na região amazônica A história de colonização da Amazônia está intrínseca ao processo de colonização da sociedade Brasileira, sendo marcada por momentos de grandes conflitos, exploração, discriminação, racismo e preconceito. O povo negro na região amazônica aprendeu a reconhecer o espaço com se o fosse seu e logo já o dominava melhor do que os escravizadores. Nesse contexto, acentua-se a frequência nos registros de lutas contra os seus exploradores, a recusa em desenvolver as atividades impostas e as fugas e revoltas. Funes (2012), aponta que, em pouco tempo, os negros e negras circulavam por propriedades vizinhas e conheciam toda a região amazônica, pois eram frequentes os casos em que eles(as), a mando de seus senhores, deslocavam-se em longas distâncias, circulando pelos rios, lagos e igarapés. Era comum vê-los(as) desenvolvendo atividades de pesca ou conduzindo embarcações pelos rios. Contudo, o fato de serem vistos desenvolvendo trabalhos sem o controle direto do escravizador não significava a existência de liberdade, eram momentos de autonomia aos poucos conquistados. Para Funes (2012), nesse período o povo negro conseguiu espaço para negociar e manifestase como agente histórico, mesmo dentro do sistema de escravização. Cabe também destacar que muitos negros e negras fugiram das propriedades, de seus “senhores”, aproveitando da complexidade geográfica da região, das longas distâncias a serem percorridas no trabalho e dos rios que constituíam caminhos naturais. Os destinos mais comuns eram os centros urbanos ou o refúgio nas matas. Após a fuga, tentavam se misturar às camadas populares, mudavam de nome ou juntavam-se a quilombos já existentes. Funes (2012) aponta que homens e mulheres negras em fuga circulavam ao longo dos rios, em especial pelo Amazonas, deslocando-se com certa facilidade pois já conheciam muito bem a região, entre o Baixo Amazonas e Manaus e vice-versa. [...] Nesse sentido, havia a possibilidade de grande mobilidade espacial para os cativos em fuga, que procuravam passar por libertos, misturando-se às camadas populares um tanto matizadas, onde um mulato podia passar por um tapuia, um curiboca, por um cafuzo. Assim, a qualidade da cor se diluía, quebrando um elemento a mais de identidade do escravo fujão, já que 477 a presença negra Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente costumava também trocar de nome. Outra saída encontrada pelo escravo em fuga era valer-se de instrumentos legais que garantissem a ex-cativos o status de livre, e a partir daí encontrar mecanismos para preservar a condição de liberto. (Funes, 2012, 194). Com essa constante busca pela liberdade e a vasta possibilidade de fuga, a formação de quilombos se tornou uma importante alternativa também na região Amazônica. Era a possibilidade de constituir espaços livres, onde planejavam e lutavam para garantir a sobrevivência, almejando a liberdade para organização política, social e econômica. Perez (2017, p. 86), destaca que, Os quilombos amazônicos se organizaram a partir de especificidades territoriais e com “estruturas sociais particulares”, e nessa experiência coletiva desenvolveram saberes e práticas educativas, à medida que foram se constituindo, reafirmando, assim, uma trajetória ativa de resistência em manter vivos seus modos de ser, pensar e educar. A formação de quilombos representou um momento histórico que não se limitava apenas a abrigar escravizados africanos que fugiam e lutavam pela liberdade, mas, uniu-se à mesma luta dos indígenas, fugitivos da justiça e com apoio de pessoas contrárias à opressão. Com isso, os quilombos desenvolveram um código moral e de justiça bastante peculiar, se espalharam pela Amazônia, ocupando normalmente lugares estratégicos e de difícil acesso, o que se tornou um fator determinante para a sobrevivência coletiva. Peres (2017), aponta a existência de conflitos de terras que perdura até os dias atuais na região do Marajó, onde as comunidades remanescentes de quilombos resistem bravamente para não serem esmagadas pelo agronegócio, e permanecem lutando para legitimar seus direitos como donos das terras, pois, essas terras já haviam sido ocupadas no passado por seus ancestrais que foram escravizados. De acordo com Leite (2010, p.31), As intensas mobilizações quilombolas e a lentidão dos processos de titulação das terras instauram um estado de incerteza sobre essa nova ordem. Os passos percorridos de tramitação dos processos se rendem e se submetem à cultura cartorial, que foi montada pelos donatários para atender a seus 478 a presença negra Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente interesses. O percurso é incerto, é definido não somente pela legislação, mas pelo jogo de forças e poderes há muito solidamente institucionalizados. Não há nenhuma garantia de que os atuais procedimentos administrativos consigam transpor as armadilhas instituídas pela máquina cartorial em seus tramites “regulares”. Lopes, Medeiros e Soares (2015) chamam a atenção refletindo sobre o número expressivo de quilombos constituídos na Amazônia. Em 2005, no Pará, por exemplo, foram identificados 293 (duzentos e noventa e três) áreas quilombolas. Na Amazônia Legal existem atualmente 148 quilombos titulados pelo Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), abrigando 11.754 mil famílias. Além disso, há 144 processos de regularização de territórios quilombolas abertos. (Brasil, 2023). Assim, para Lopes, Medeiros e Soares (2015), a proporção numerosa de quilombos na Amazônia enfatiza que ocorreram modos diferenciados de formação dessas comunidades. A resistência e a fuga marcaram a constituição de quilombos no país, mas, também existiu uma variedade na formação dos agrupamentos relacionados a doações, compras, heranças e até ao abandono da terra por parte dos “senhores” devido às crises econômicas. No entanto, comprovar, todas essas práticas têm sido um grande desafio para as comunidades remanescentes, considerando a inexistência de documentos e os avanços da pressão sobre as terras. A auto-identificação, critério determinante para a legalização da posse da terra, já expressou a segregação social, espacial e racial no Brasil. Hoje é bandeira de luta e ressignifica o que representa ser um quilombo na atualidade. A invisibilidade dos quilombos, tão estratégica em princípio, deixou de ser o parâmetro dessas comunidades que passaram a reclamar seus direitos ancestrais e a demarcar suas territorialidades no território amazônico. O que se percebe atualmente é a intensificação das lutas pelo direito territorial e o renascimento dos debates que contemplam a diversidade de modos de vida das populações tradicionais e, em particular, das populações quilombolas. (Lopes; Medeiros; Soares, 2015, p. 1.283). Em julho de 2023 completou 135 (cento e trinta e cinco) anos em que foi abolida a escravização no Brasil. A libertação dos(as) escravizados(as) aconteceu depois 479 a presença negra Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente de muita luta e resistência. A presença negra no Brasil marca-se também às margens dos rios do baixo Amazonas, onde a resistência e a luta permanecem. Os desafios da resistência negra na Amazônia frente à expansão do agronegócio Pesquisar e estudar sobre as matrizes africanas na Amazônia é estudar os componentes étnicos da população, considerando que a miscigenação se estruturou na região e com isso os modos de vida apresentados pelos afrodescendentes refletem na relação estabelecida entre a sobrevivência dos grupos, definindo assim, a região como um território étnico que evidencia a resistência e luta pela terra. Na outra margem da história agraria do Brasil, o agronegócio tem se expandido de forma significativa e, atualmente, segundo dados do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA) em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), corresponde a 24,8% do Produto Interno Bruto Brasileiro (PIB), (PIB do agronegócio Brasileiro, 2023). Contudo, dados apontam que a expansão do agronegócio tem ocorrido de forma desenfreada, avançando sobre as terras dos pequenos produtores, gerando uma série de problemas de ordem ambiental. Neste cenário, as comunidades tradicionais, que desenvolveram uma profunda interdependência com a natureza em seus modos de vida, como é o caso dos quilombos, se veem novamente em posição de resistência, pressionadas pela expansão do agronegócio, sob o pano de fundo de grande produtor de riquezas ao país. Em contraponto, os quilombolas situam-se na defesa da terra como espaço de memória, saberes, cultura e modos de vida. Arruda, Silva e Nora (2023), apontam que na atualidade a floresta amazônica destaca-se como um dos maiores patrimônios naturais do território brasileiro em avanço no processo de degradação, relacionados à agropecuária, extrativismo e à biopirataria. Causando também a perda de propriedades pelas comunidades tradicionais devido ao avanço do agronegócio. A resistência em terras da Amazônica é marcada pelos povos tradicionais que lutaram e lutam contra a exploração de suas riquezas. Arruda, Silva e Nora (2023), descrevem que, Historicamente, sabe-se que a floresta amazônica possui grande importância como área de exploração das conhecidas drogas do sertão, especiarias 480 a presença negra Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente retiradas da floresta e comercializadas. Em meados do século XIX, o ciclo da borracha impulsionou o deslocamento migratório para a região; no século XX, acompanhando o período de desenvolvimento país, passando por grandes governantes como Getúlio Vargas, que possibilitou a implantação das indústrias de base, concentrando-se na Região Centro-Sul e Juscelino Kubitscheck, que em seu mandado garantiu a integração nacional, através de seus planos e metas “cinquenta anos em cinco”. Desde então é observado um crescente desenvolvimento da região amazônica. Contudo, recentemente, a expansão da fronteira agrícola tem sido o fator de grande impacto, seja aos pequenos produtores, seja às comunidades tradicionais, o que traz severos impactos ambientais e sociais às comunidades tradicionais, como indígenas, ribeirinhos e quilombolas que dependem dos recursos naturais preservados para darem continuidade às suas tradições e subsistência, bem como preservar a memória histórica de seu povo. Todavia, é comum que a Amazônia seja analisada pela sua biodiversidade, suas comunidades tradicionais formadas por indígenas, ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, pescadores, camponeses, contudo, pouco se fala da presença de africana na região identificada pelos quilombos. A despeito desse tema Funes (1995, p. 10) destaca que [...] por muito tempo houve a idéia de a Amazônia ser marcada como uma região de cultura indígena, isso fez com que a escravidão e a cultura africana fossem colocadas num segundo plano, dessa forma, durante muito tempo esse tema constituiu-se num verdadeiro vazio na historiografia regional. É apenas a partir da década de trinta do século passado que começaram a surgir os primeiros estudos sobre a presença africana na região Amazônica. Descortinar a presença africana na região Amazônica é reconhecer o processo histórico de homens e mulheres que outrora foram vítimas do olhar do colonizador sobre o outro, vítimas de um processo de desumanização e exterritorial, é reconhecer a dívida histórica que a sociedade tem com os africanos escravizados, bem como, reconhecer e valorizar sua valorosa contribuição para formação cultural do país. Assim, falar de quilombos e quilombolas é valorizar o seu legado e o seu direito constitucional 481 a presença negra Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente às terras que outrora, por uma questão de sobrevivência permaneceram invisíveis, hoje, pelas mesmas razões, precisam reclamar e clamar pelos seus direitos. Sobre isso Leite (2000, p. 335), destaca que, o quilombo significa, para esta parcela da sociedade brasileira, sobretudo um direito a ser reconhecido e não propriamente apenas um passado a ser rememorado. Referências ANDRADE, Fábio Santos de; PEREIRA, Reginaldo Santos; ANDRADE, Silvana Viana. O Divino Guaporé: multiculturalismo e religiosidade no Vale do Guaporé. In. PRUDENTE, Celso Luiz Prudente; ALMEIDA, Rogério de. Cinema Negro: Educação, Arte e Antropologia. 1ed.São Paulo: FEUSP, 2021. ARRUDA, Fernanda Aparecida Antunes de; SILVA, José Carlos Marinho da; NORA, Giseli Dalla. A territorialidade e a resistência na floresta amazônica. Revista Geopauta, Vol. 07, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/geop/a/ hXhr8VbNZk5csJqhXmbBqFq/?format=pdf&lang=pt . Acesso em 10 de agosto de 2023. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/incra/pt-br/assuntos/ governanca-fundiaria/quilombolas. Acesso em 29 de set. de 2023. ELTERMANN, Ana Claúdia Fabre. Brasil, um país doente: o racismo científico no final do século XIX. Revista Porto das Letras, Vol. 06, Nº 02. 2020. Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/portodasletras/article/view/11544. Acesso em 04 de maio de 2022. FUNES, Eurípedes A. Negro na Amazônia: Recuperando sua História. In. SAMPAIO, Patrícia M. (org.). O fim do silêncio – presença negra na Amazônia. Belém: Açaí. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/afro/a/34vm649kpYW4Ypx8SKCNM pg/?lang=pt. Acesso em: 25 de abril de 2022. FUNES, Eurípedes A. Nasci nas Matas nunca Tive Senhor: história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas. pag. 137-142. Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. 482 a presença negra Maria Ap. Oliveira, Gisely Nascimento, Fábio Andrade e Celso Prudente Universidade de São Paulo, 1995. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ ojs/index.php/resgate/article/view/8645536. Acesso em: 28 de abril de 2022. GOMES, Jéssica Dayse Matos. Mocambos na Amazônia: História e identidade étnicoracial do Arari, Parintins Amazonas. 2017. Disponível em: https://tede.ufam.edu.br/ handle/tede/6363. Acesso em: 04 de maio de 2022. LEITE, Ilka Boaventura. Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Etnográfica, Florianopolis, Vol. IV, n. 2, p. 333-354. 2000 LEITE, Ilka Boaventura. Humanidades insurgente: conflitos e criminalização dos povos quilombolas. In: ALMEIDA, A. W. (Org.). Cadernos de debates nova cartografia social: territórios quilombolas e conflitos. Manaus: UEA Edições, 2010. LOPES, Carla Joelma de Oliveira; MEDEIROS, Glaucia Rodrigues Nascimento Medeiros; SOARES, Lucélia dos Reis Santos Soares. Quilombos contemporâneos na Amazônia: debates e contribuições geográficas. Anais do ENAMPEGE, 2015. Disponível em: http://www.enanpege.ggf.br/2015/anais/arquivos/4/132.pdf . Acesso em: 11 de out. 2022. PERES, Érica de Souza. A presença negra na Amazônia: um olhar sobre a Vila de Mangueira em Salva Terre (PA). Diversidade Interculturais e Currículo. V. 2. UEPA, Belém, v. 2. p. 8 -14. 2017. Disponível em: https://periodicos.uepa.br/index. php/marupiira/article/view/909. Acesso em: 28 de abril de 2022. PIB do agronegócio Brasileiro. Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea). Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq). Universidade de São Paulo (USP). Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro. aspx. Acesso em 20 de set. 2023. SALLES, Vicente. O negro no Pará: sob o regime da escravidão. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, Belém: UFPA, 1971. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. (org.). O fim do silêncio: presença negra na Amazônia. Belém: Açaí / CNPq, 2011. STORI, Bruno. A lenda do Eldorado: transformações do mito doradista na cartografia da América do Sul. Epígrafe, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 49-81, 2022. 483 Educação e cidadania: sobre acolhimento e respeito em ações afirmativas 1 João Carlos Salles Professor do Departamento de Filosofia FFCH-UFBA 1. Devemos sempre renovar nosso compromisso com uma sociedade democrática. Passada a mais inclemente tormenta, sendo possível agora um diálogo com o governo federal, importa refletir econtinuar a defender os valores universitários mais essenciais e permanentes. Afinal, outro mundo é possível, mas nenhum valerá a pena em nosso país sem uma universidade pública e inclusiva, capaz de realizar, de norte a sul, ensino, pesquisa e extensão de qualidade. Estivemos juntos e misturados no combate aos desmandos vários de um governo tirano. Não fomos cúmplices dos absurdos que o obscurantismo mais completo nos quis impor. Agora, após uma vitória tão significativa, não podemos ser cúmplices de nenhum rebaixamento de nossos sonhos. Qualquer o governo, nossa medida é o bem comum – uma luta, pois,constante e de longa duração, que nos leva a resistir na tormenta e na calmaria contra toda e qualquer limitação de nossos sonhos deveras utópicos. Nada deve arrefecer, por exemplo, nossa defesa da universidade como espaço 1Aula inaugural do semestre 2023.1 da Universidade Federal do Pampa. Agradeço o honroso convite do amigo e reitor da UNIPAMPA, Roberlaine Ribeiro Jorge, que tem travado conosco o bom combate em defesa dos melhores valores da universidade pública. 484 educação e cidadania João Carlos Salles autônomo. Chova ou faça sol, é nosso dever, por exemplo: (a) Combater a separação entre excelência acadêmica e compromisso social, uma vez que afirmar apenas o compromisso social ou apenas a excelência acadêmica, como dimensões separadas, é diminuir o brilho de nossa gente, que pode e deve iluminar com seu talento o espaço específico da vida acadêmica, produzindo ciência, cultura e arte; (b) Combater a separação entre ciência básica e ciência aplicada, que se amesquinha inclusive na separação entre os interesses da ciência, da tecnologia e da inovação, por um lado, e os dilemas das humanidades. (c) Reafirmar, por outro lado, a ligação entre todos os níveis de ensino – contra, portanto, a oposição (enviesada e perigosa) entre educação básica e educação superior (d) Afirmar a universidade como parte de um projeto de nação e, portanto, como um projeto que nos coloca a todos em linha de conta, tendo todas as nossas instituições padrões de qualidade comensuráveis. Sim, no ambiente da universidade pública e contra interesses privatizantes, cabe insistir, nossa luta é sem trégua. Mesmo neste momento de clareira, de abertura, após tenebrosa noite, muitos são os riscos. Assim, precisamos estar preparados para o conflito (como sempre estivemos), mas também para a sutileza, como nunca podemos deixar de estar. Escapamos do escabroso, do abjeto. Pulamos a fogueira e, todavia, caímos no Brasil, no Brasil ele mesmo, digamos assim, com suas ambiguidades e sutilezas, com suas melhores esperanças e suas violências as mais ordinárias. Deixado a si mesmo, nosso país é assustador: excludente, autoritário, mal letrado – e isso é assim, que fique claro, em todo o Brasil, retrógrado tanto no Sul quanto no Nordeste, embora de maneira diversa e aparentemente oposta. Pensando no contexto da política e da cultura institucionais, é obviamente conservador e pode ser também retrógrado o cenário em que podemos operar, ao falarmos de conhecimento, de igualdade, de combate a preconceitos. Continuamos, pois, a viver a paradoxal situação de uma cultura rica, em diversas dimensões e por toda parte, mas situada em um espaço público primitivo, tosco, de sorte que a experiência da vida pública em nosso país tem amarras concretas, tanto simbólicas quanto práticas. Desse modo, a abertura de um semestre letivo, sempre carregada de esperanças, émais que oportuna para refletirmos sobre os laços internos entre educação e cidadania. Farei isso, então, de duas maneiras. A primeira, bastante breve, em considerações gerais 485 educação e cidadania João Carlos Salles sobre a relação entre essas duas dimensões. Em segundo lugar, discutirei a importância do aprofundamento das ações afirmativas, que as traduzem, refletindo sobre uma possível ambiguidade que pode afetar e pôr em risco o significado mais profundo de nossas políticas de inclusão, que não podem se afastar do duplo desígnio de enriquecimento do processo educacional e de aprofundamento da cidadania. 2. O pensamento liberal clássico costuma ver a educação como condição de cidadania. Concede inclusive que esta talvez seja a única obrigação a ser arcada pelo Estado, que deveria custear a educação básica, como se o Estado firmasse então um compromisso com o cidadão futuro. Daria a esse futuro cidadão as condições de exercer seus direitos de escolha nos limites de uma democracia formal e representativa. Não recusemos a importância dessa ideia. Todavia, ela é insuficiente e mesmo perigosa em sua insuficiência. Por meio dela, cidadãos abstratos se formam para exercer um poder de escolha, reconhecendo sua unidade na matemática do voto ou na celebração de um título acadêmico. O indivíduo, tomado no abstrato e em função do seu futuro exercício de cidadania, teria compromisso apenas com a defesa de seus valores já familiares e interesses individuais. E a educação, supondo um laço comum entre idênticos, poderia assumir a mera tarefa de reproduzir distorções e sublimar exclusões, e não a tarefa de reinventar a ligação entre os contratantes do pacto social. Importa-nos afirmar o outro lado da equação, ou seja, pensar a cidadania como condição da educação. O cidadão, tomado agora não como um ente abstrato cuja formação tão só permitiria uma participação mais esclarecida em um debate eleitoral, tem agora concretude, cor, história, gênero, idade, classe, raça. Sua vida pública não se limita a uma participação eleitoral anódina, mas carrega, também em palavras, também em sua formação, as marcas de sua instalação social, de modo que a educação, assim pensada, não mais deve encobrir diferenças nem sublimar exclusões. Por isso mesmo, é mais que oportuno pensar as tarefas da educação e as tarefas da cidadania, lembrando que a produção de uma unidade cívica, caso esconda uma diversidade social perversa, é mera dominação; e a produção de uma unidade pela educação, caso apague uma diversidade cultural rica, é mera catequese, adestramento. Pensar, em conformidade com uma nova matriz, a conjunção entre educação e cidadania, é restabelecer um solo utópico para um projeto de nação, no qual a universidade 486 educação e cidadania João Carlos Salles pública, por exemplo, não se restrinja à função instrumental de formação técnica para o mercado. Ao contrário, ao associarmos os dois termos, estamos também ligando o presente ao passado, a parte ao todo, o interesse eventual do poder aos desígnios mais elevados da liberdade. E recolocamos, enfim, para nossas escolas e faculdades, a tarefa especial de constituição de um espaço de iniciação à vida comum, no qual o processo de formação de pessoas e o processo de produção do conhecimento guardam analogia profunda com a produção democrática da sociabilidade. Sigamos, pois, à luzdo espírito de uma conjunção estreita entre educação e cidadania, para o segundo e bem mais extenso momento de nossa reflexão, cujo tema mais específico é o significado e a importância das ações afirmativas no solo de uma sociedade como a nossa, marcadamente excludente e autoritária. 3. A conjugação entre um acolhimento compassivo e um autêntico respeito comporta imenso desafio teórico e, sobretudo, político.2 Não por acaso, pode parecer mesmo contraditória, como se ocultasse um oxímoro e uma armadilha a ligação entre ‘concernir’ e ‘respeitar’. Pretendemos analisar a ligação entre esses conceitos em uma situação que amiúde os solicita como complementares, qual seja, a dos processos de aprendizagem e de formação. A experiência que temos em mente não se dá fora dos marcos das instituições acadêmicas, mas a benção de aparente racionalidade no interior da academia não suprime uma perigosa ambiguidade presente em tais termos. Pretendemos, assim, mostrar tal ambiguidade na implementação de ações afirmativas na educação superior (em particular, no caso do Brasil), quando os termos da equação, então tornados indicadores concretos, nos permitem levantar diversas questões. Por exemplo: Como o processo de aprendizagem pode não significar um aprofundamento da servidão? Servidão dos alunos aos mestres, das escolas aos poderes constituídos, do espírito criador ao ranço da repetição? Como transformar em política o que pode subverter o segredo aparentemente comum a toda política, qual seja, o de preservar e reproduzir os privilégios anteriores com o máximo de sutileza? Por outro lado, como a instituição pode ser subversiva em relação a si mesma, sabendo 2As noções de “compassionate concern” e “robust respect” são usadas emsentido mais específico por Michele Moody-Adams, in Making Space for Justice, New York: Columbia University Press, 2022, p. 4. 487 educação e cidadania João Carlos Salles evocar e criar condições para que cada estudante esteja na posição de julgar posições e comportamentos por si mesmo, ou seja, de seu lugar, levando ao centro a contribuição de seu lugar próprio, que deixa então de ter a marca de um lugar natural? Um traço do processo de subordinação que tolhe o processo de aprendizagem reside na redução do aprendizado a um processo isolado, valendo o coletivo tão só pela estatística. Faz parte então de um modelo de combate, de uma perspectiva utópica da aprendizagem, criar condições para que cada estudante seja legião, ou seja, para que nele transpirem os movimentos sociais, as forças da história. Por outro lado, faz parte desse mesmo modelo, um tanto paradoxalmente, criar condições para que cada estudante esteja em linha de conta com todos os recursos da linguagem e tenha pontes para culturas que não são diretamente a sua.A construção da justiça, acreditamos, não sendo vista como externa, depende da capacidade coletiva de harmonizar essas medidas desejavelmente desarmônicas, compreendendo que a aparente placidez da vida institucional pode ocultar formas profundas e violentas de tradução de conflitos sociais. 4. Para analisar a tensão efetiva entre “concernir” e “respeitar”, tomaremos um modelo ideal, o das condiçõesde uma comunicação desimpedida. Enquanto modelo descritivo, ele pode ser tão artificial quanto a afirmação contrafactual de que todos somos iguais em direitos. Por outro lado, como modelo normativo, ele não deixa de ser necessário, assim como é necessária a afirmação reiterada de nossa igualdade. A tensão presente entre os termos, bem como entre a natureza descritiva ou normativa do modelo, fica mais clara quanto levamos em conta uma experiência particular, a saber, a da implantação de ações afirmativas na universidade pública brasileira. Nosso objetivo é, portanto, ler as implicações desse modelo abstrato como guia desafiador e instável na implementação de ações políticas concretas, de modo que o acolher não se torne uma forma de condescendência que mantém a subordinação, nem o respeitar seja uma mera formalidade, que acaba por suprimir a emergência de novos valores e conteúdos. Ora, quais são os traços essenciais (cada qual necessário e, em conjunto, suficientes) de uma comunicação desimpedida? Em instituiçõescomo as acadêmicas e sobretudo em experiência de ensino, nas quais os conflitospodem e devem ser resolvidos pela palavra, são condições ideais de argumentação: (i) a igualdade de direitos de quantos 488 educação e cidadania João Carlos Salles argumentem; (ii) a igualdade potencial de compreensão; (iii) o reconhecimento da alteridade potencial ou efetiva; e (iv) a crença comum na eficácia da linguagem. A justificação desses traços é relativamente simples.Não a detalharemos aqui. Basta dizer que tal justificação, em suma, lembra-nos que (1) o autoritarismo é infenso ao debate, (2) dificuldades individuais devem ser superadas coletivamente, (3) o mérito se constrói como uma experiência coletiva e não como um privilégio eventualmente oriundo de alguma desigualdade e, enfim, (4) a linguagem é necessária para a experiência democrática de convencimento e a construção da sociabilidade. O maior desafio das instituições é tornar realidade um modelo tão próximo da utopia. O modelo, porém, pode servir como um guia, sendo aplicável a políticas amplas e ao dia a dia, inclusive no espaço da sala de aula. O modelo tem por base um processo de procura de convencimento não unilateral, ou seja, todos devem, em última instância, estar em condições de convencer e de serem convencidos. Aqui, convencer significa trilhar um caminho que todos devem poder seguir, caso diante das mesmas evidências e recursos. O modelo de comunicação torna-se um modelo de encontro. Ele não retira a prerrogativa do professor, não transforma o professor em um simples aluno, mas visa a renovar a autoridade do professor no exercício do ensino. O professor, assim, não tem uma autoridade formal; e o ensino não pode se reduzir a uma catequese. De certa forma, o modelo valoriza a experiência da aprendizagem ao valorizar a experiência prévia dos agentes (nada passivos) envolvidos no processo, e nos lembra uma imagem de Martin Buber: Quando, seguindo nosso caminho, encontramos um homem que, seguindo o seu caminho, vem a nosso encontro, temos conhecimento somente de nossa parte do caminho, e não da sua, pois esta vivenciamos apenas no encontro. (BUBER, 2001, p. 100). Essa descrição do encontro coloca o desafio de valorização plena da alteridade, que está na base do modelo de comunicação ideal. Esse modelo, para nos valermos de uma analogia adicional, valoriza a contribuição inusitada que resulta de nossa abertura para o outro, que não pode ser tratado como uma massa informe, a ser moldada em conformidade com padrões que pouco têm a ver com sua natureza e história. 489 educação e cidadania João Carlos Salles Permitam uma analogia. O ofício daformação de pessoasparece-nos mais semelhante à arte de esculpir obras em madeira. O barro aceita quase tudo – a começar do ser humano. A argila (e até o mármore) permite curvas ou linhas retas, mas a madeira não é assim passiva, e costuma resistir de um modo sempre único, como reagem as palavras. A madeira não se deixa torcer de qualquer jeito. A forma nela não brota de um silêncio prévio, e texto algum nasce mesmo de uma página em branco. Insidiosa, sua matéria se aninha, sugere, antecipa, guarda linhas de força, a memória dos nós, os acasos, as cicatrizes do tempo. A madeira permite ousadias ou condena o artesão a repetições. E só o verdadeiro artista lhe arranca formas inusitadas e nela adivinha o destino implacável de anjo ou demônio, antes oculto e indefinido. O artista sim consegue despertar a forma mais secreta e restituir significados, levando-nos a ver com autêntica surpresa desenhos antes adormecidos. A analogia aplica-se a nosso modelo e a todo ofício da expressão e da formação humana – esse esforço que não se reduz à palavra, mesmo encontrando nesta um especial exemplo. De certa forma, ao refletirmos sobre ações afirmativas, estamos também refletindo sobre a luta pela expressão no barro, na madeira, em sons, em cores, corpos e, especialmente, na palavra; enfim, sobre a luta pela afirmação da linguagem e, de modo mais específico, pelo direito à palavra e sobre as relações íntimas e deveras ambíguas entre a conquista da linguagem e suas promessas de liberdade. 5. Ações afirmativas são instrumentos permanentes de construção da sociabilidade. Elas ultrapassam a mera reparação individual ou a reposição do valor de um grupo, constituindo sobretudo um meio de longa duração de invenção possível da humanidade. Por isso, mais que abençoarem uma comunidade com uma solução, elas nos confrontam com muitas medidas em aberto. Vejamos o caso da universidade pública na sociedade brasileira. A sociedade brasileira é estruturalmente desigual e arraigadamente autoritária. Nesse contexto, a universidade pública começa no início do século passado como um projeto das elites, mal contemplando em cursos menos valorizados camadas da população condenadas a alguma espécie de subserviência. Não por acaso, o número de vagas era relativamente pequeno, sendo flagrante então o déficit de vagas no ensino 490 educação e cidadania João Carlos Salles superior – déficit, aliás, que ainda é significativo, mesmo após a grande expansão de vagas e criação de novas universidades nas duas últimas décadas. A Universidade Federal da Bahia, por exemplo, não chegava a20 mil alunos nos anos 90. Agora, o número de discentes de graduação e pós-graduação já é superior a 50 mil. Todavia, mesmo após um tal salto e com o esforço das universidades para que a exclusão vivida fora do ambiente universitário não seja vivenciada em nosso meio, preserva-se a desigualdade em nosso ambiente. Notável, porém, é o número de estudantes em vulnerabilidade. Cerca de 70% dos alunos da UFBA têm renda familiar mensal per capita de até um salário mínimo e meio. E desses estudantes em vulnerabilidade, cerca de 50% deles têm renda familiar mensal per capita de menos de meio salário mínimo. Nesse contexto, sem o extremoesforço por oferecer moradia, alimentação e acesso a material escolar, não se pode pedir que os estudantes possam corresponder ao mínimo padrão de qualidade acadêmica. Além disso, é preciso ter em conta outro déficit, qual seja, o fato de que esses estudantes (tendo muita vez sua herança cultural negada) vivem uma privação sistemática de acesso aos bens de cultura, estando afastados da capacidade de valorizar até mesmo sua própriaherança e de ter domínio sobre outros meios de expressão na linguagem. As formaturas oferecem um bom exemplo do ritual de passagem que estamos vivendo. Estudantes se formam acompanhados de seus pais, que muitas vezes estão pisando pela primeira vez no território de uma universidade. Esse ritual é emocionante, dá a entender em cada caso que uma página pessoal e social está sendo virada. Esse ritual, porém, pode também ser ilusório, muito em conformidade com os procedimentos sutis de discriminação próprios da sociedade brasileira, que costumava ser descrita pela ideologia dominante como uma espécie de democracia racial – quando, ao contrário, nossa sociedade é marcada por um racismo estrutural, ora bastante explícito, ora violentamente sutil. A população majoritariamente negra em nossas cadeias e a violência das estatísticas são suficientes para mostrar a face explícita da violência racial. Por outro lado, a imagem de um convívio cordial estava dada na inexistência de uma clara separação dos espaços destinados a brancos ou a negros, por exemplo. A exclusão havia e continua a haver, sem dúvida. Clubes recusavam filiação, empregos exigiam o que chamavam de “boa aparência”, e prédios residenciais separavam elevadores “sociais” de 491 educação e cidadania João Carlos Salles elevadores de “serviço”, de modo que a discriminação social ficava acobertada por uma separação aparentemente neutra de funções. Outra maneira sutil de discriminar, tornando invisível a presença, se dá com a exigência de fardas para empregadas e babás em condomínios. Sua presença nos espaços estaria autorizada por sua negação. Negros ou pardos (ou pessoas flagrantemente pobres) só estariam nesses lugares por suas funções e não como pessoas. A farda seria uma espécie de manto de invisibilidade. Aqui, podemos lembrar uma historieta do Padre Brown, do inteligente conservador G. K. Chesterton. Padre Brown descobre o mistério de alguém que teria aparecido morto, quando, por seu próprio testemunho ao telefone pouco antes de ser assassinado, não havia ninguém com ele. Simplesmente, ele não considerava o empregado fardado do correio um alguém. Dado tamanho contexto de exclusão, é preciso aplicar o modelo ainda com mais força, de modo que as diferenças de acesso à linguagem, o reconhecimento da alteridade, o respeito à diferença e a afirmação da igualdade possam se dar mesmo em condições tão extremas e desiguais. Caso contrário, não se levando em conta esse quadro de discriminação, o acesso ora propiciado a camadas amplas pode mitigar a dor, mas não superar, nem de longe, a grave desigualdade. A segregação, afinal de contas, com suas sutilezas, pode bem ser traduzida em profissões de distintos “apelos e relevâncias”, de distinta acolhida no mercado ou no imaginário. Pessoas passam a ser concernidas pela efetividade das ações afirmativas, sem que estejam sendo plenamente respeitadas. Em sendo assim, até os diplomas distribuídos fartamente podem se transformar em mantos de invisibilidade e boa parte da ascensão social pode ainda ser feita pelo elevador de serviço. 6. No Brasil, superar a pobreza extrema é tarefa antiga e sempre urgente. Entretanto, superar a miséria não é superar a servidão; não constitui por si uma medida do diálogo democrático que temos o dever de desejar. Uma legislação ambiental progressista não garante por si a proteção do meio ambiente, e leis de proteção à diversidade não implicam o fim do preconceito; assim, precisamos querer mais, precisamos retirar do modelo ideal suas consequências mais profundas. Dessa forma, mesmo tendo uma utilidade para orientar políticas públicas imediatas (como quando na UFBA foi preciso decidir em favor das bolsas de assistência estudantil, apesar da elevada dívida com a fornecedora de energia elétrica), nosso 492 educação e cidadania João Carlos Salles modelo pode orientar-nos a decidir por mais e a ter um horizonte pragmaticamente utópico, como se disséssemos com Clarice Lispector: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.” (LISPECTOR, 1980, p.50) Poder articular palavras é, então, abrir um novo campo de direitos. Importa aqui afastar qualquer inocência em relação ao termo ‘liberdade’, que é deveras ambíguo. Alguns podem acreditar livre quem não encontra obstáculos externos à sua realização – um curso d’água que não encontra uma barreira, por exemplo. Para valorizar a liberdade, caberia então apenas desimpedir o que antes enfrentava obstáculos para se realizar. Ora, com isso, estabelece-se uma certa ilusão das origens, como se estas estivessem bem definidas, sem possibilidade alguma de redefinição posterior. Nesse sentido, podemos listar exigências políticas e acadêmicas suscitadas por tal esforço ainda incompleto de construção democrática. Como política, a articulação entre as noções de ‘acolher’ e de ‘respeitar’ à luz de um modelo de comunicação desimpedida leva-nos a algumas consequências, dentre as quais podemos apontar que: (i) as pontes entre a instituição que acolhe e as comunidades acolhidas precisam ter duas direções. Esta é uma consequência de natureza institucional e também epistemológica. Por um lado, as pontes criadas não podem significar um ato de pura catequese, que desconheceria a riqueza prévia de quilombolas, indígenas, comunidades de fundo de pasto, comunidades tradicionais, saberes populares. Por outro lado, o encontro ele mesmo deve agregar valor, de sorte que não cabeensejar uma mera lógica de substituição e ocupação de espaço, que desconheceria inclusive a existência anterior de procedimentos acadêmicos consistentes de produção de saber. Cabe assim afastar unilateralidades. Ou seja, cabe evitar tanto alguma espécie de dominação eurocêntrica ou etnocêntrica, como também, aoconcernir e acolher novas pessoas e novos saberes, estabelecer uma dimensão de respeito mútuo, de modo que o diálogo cultural e epistemológico leve ao acréscimo e cresça pela multiplicação e não opere por simples supressão; (ii) a construção de um espaço de diálogo equivale ao exercício de semear liberdades. Esta, uma consideração filosófica ampla. Em exercício de construção deliberada da sociabilidade, liberdade não é simples afirmação do que existia antes do encontro, não é mera reparação ou modo de tornar equivalentes os desiguais. No espaço do encontro, tanto não tem liberdade quem pode fazer qualquer coisa, quanto não a 493 educação e cidadania João Carlos Salles tem quem não pode fazer nada. Sendo o indivíduo uma invenção da linguagem que o articula, tanto sua liberdade não pode ser mera indiferença, quanto nunca será livrea simples afirmação idiossincrática. Ao contrário, é preciso poder inventar coletivamente nossas identidades e idiossincrasias. (iii) afirmar positivamente tal modelo ideal, transformá-lo em política pública, implica recusar uma certa ideia individualista de liberdade. Esta, uma consideração também filosófica, mas bem mais específica. No espaço do encontro, a liberdade não pode ser simples obrigação de retorno à origem ou afirmação do que já estava dado, embora posto a ferros. Servidão não pode ser destino. O indivíduo livre deve assim superar as inibições que não são uma marca de natureza; deve ser capaz de fazer a terapia das ilusões que o condenam à servidão por simplesmente estar em sociedade. Se o indivíduo fosse anterior à sociedade, retornar à sua limitação, retornar a um si mesmo, seria como reencontrar o que a vida comum (dada como posterior) teria apagado. Ora, mantida tal ilusão, o indivíduo apareceria como transparente a si mesmo, enquanto o outro seria sempre opaco, além de intransponível obstáculo. O modelo tem então a consequência profunda de nos ensinar que não há verdadeira liberdade sem a possibilidade de um exercício comum da imaginação. (iv) a tarefa da implantação de modelos de comunicação não se limita à sala de aula. Esta é, enfim, uma consideração política central. Com tamanho desafio de reconhecimento recíproco e reinvenção, tal implantação de uma cultura profundamente democrática não pode estar restrita a códigos de conduta científica ou acadêmica. Por óbvio, além do exercício específico da educação,seu sucesso depende da sociedade, de contextos que doravante autorizem a expressão plena da linguagem, afastando quaisquer manifestações de autoritarismo e obscurantismo e, sobretudo, combatendo as desigualdades estruturais, sociais, culturais e econômicas, em nosso país, que atravessam sim relações de gênero, classe e raça. 7. Não é previsível o que pode resultar da aplicação de modelos radicais de política pública. Apenas devemos poder querer fazer bem mais do que repetir alguma prosa, do que apenas receber ensinamentos de cuja elaboração não participamos, pois precisamos querer ter condições de elaborar e incluir nossa própria narrativa. 494 educação e cidadania João Carlos Salles Não basta aprender a repetir fórmulas que nos fizeram saber de cor, mas é preciso sim poder expressar inclusive o que pode dissolver tais fórmulas. Pensamos, afinal, com fórmulas para podermos ir além delas; aprendemos de cor muita coisa para podermos ampliar os limites da linguagem. Por assim dizer, queremos poder fazer nossa própria literatura e, ao dominarmos os signos, ser capazes de juntos fazer poesia. É muito talvez, mas está longe de ser tudo. Afinal de contas, fazer política é a arte de nunca nos contentarmos com os abismos. Concluímos, enfim. Em nossa fala, tão somente lembramos tarefas que são as da educação enquanto associada a projetos radicais de cidadania – a saber, criar as condições de organização da experiência por meio de experiências de linguagem que não predeterminem nem consolidem relações de exclusão ou de dominação. A tarefa da educação, que é especialmente a da universidade pública, é afinal prover cada sujeito das condições de exercício pleno de sua subjetividade, e garantir a precedência da palavra, do símbolo, do gesto significativo, sobre todas as formas de poder, de modo que nossa comunicação, sendo desimpedida, expresse uma sociedade na qual sejamos economicamente iguais e nos encontremos de forma democrática, realizandode forma coletivao vaticínio enunciado outrora porHerder: Quanto mais profundamente alguém descer em si mesmo, na construção e na origem de seus pensamentos mais antigos, mais ele cobrirá os olhos e pés e dirá: eu sou o que eu me tornei. (HERDER, 2015, 66-67) Referências BUBER, M., Eu e Tu, São Paulo: Centauro, 2001, p. 100. HERDER, J. G., “Do conhecer e do sentir da alma humana”, apud HONNETH, A., O Direito da Liberdade, São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 66-67 LISPECTOR, Clarice, Perto do coração selvagem, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 50. 495 O ensino da cultura popular para a superação do racismo estrutural Ivoneides Maria Batista do Amaral1 Benedito Dielcio Moreira2 Este artigo contém uma reflexão sobre o papel da escola como fonte de afirmação de identidade na comunidade de pescadores ribeirinhos da cidade de Rosário Oeste, em Mato Grosso, distante cerca de 120 quilômetros da Capital, Cuiabá. Referente a história do munícipio, consta no Ipatrimônio (2018)a fundação no ano de 1757, quando o senhor Inácio Manoel Tourino e sua esposa Maria Francisca Tourino chegam à região acompanhados de um grupo de pessoas atraídos pela fertilidade das terras. Estabeleceram-se à margem direita do Ribeirão monjolo. Com essa ocupação, iniciou-se o convívio de múltiplas identidades, entre elas os indígenas da nação Bakairi. Discute-se aqui o papel da escola como fonte de afirmação e identidade da população ribeirinha e a atual conjuntura da comunidade de pescadores da colônia Z13 da cidade de Rosário Oeste. Busca evidenciar a escola como aporte na valorização dos processos culturais, sem o estigma da desigualdade, colocando as ações da comunidade como um valor cultural. Intenciona mostrar que os pescadores da colônia Z13 enfrentam 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação emEstudos de Cultura Contemporânea- ECCO, daUniversidade Federal de Mato Grosso-UFMT. 2 Doutorado em Educação pela Universität Siegen, Alemanha, Pesquisador Associado da Universidade Federal de Mato Grosso e Professor do Programa de Pós-Gradução em Estudos de Cultura Contemporânea-ECCO. Líder do Grupo de Pesquisa Multimundos. 496 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira o duplo desafio de sobreviver frente às suas origens como brasileiros e as imposições da modernidade capitalista, que nega a esse grupo de trabalhadores o reconhecimento de sua história. Questiona-se como resistem os pescadores ribeirinhos, pretos e desfavorecidos economicamente, não sendo reconhecidos como parte da diversidade brasileira. Discute ainda que falta nas escolas atividades sobre os costumes e práticas culturais e como isso atua na invisibilidade do Outro marginalizado e excluído. Maturama e Ximena (2004) evidenciam que o nosso viver está relacionado com outras vidas, humanas, animais e vegetais. Já Munanga (2008a) reforça que a diversidade é um fator de complementariedade e enriquecimento da humanidade. O escopo teórico interdisciplinar propicia a relação entre cultura, educação e o negro, representada aqui no papel do pescador ribeirinho. E tudo começou com o avanço para o interior dos bandeirantes. Com a chegada dos portugueses, os indígenas sofrem a perda de suas terras e são forçados ao trabalho escravo, por isso muitos fugiram e foram perseguidos como criminosos. De acordo com Barros (1989), os primeiros Bakairis tem sua presença registrada em 1738, nas minas de Mato Grosso, no Vale Guaporé, na condição de escravos e, posteriormente, na região de Diamantino, munícipio a 77 quilômetros de Rosário Oeste. Os indígenas já praticavam como modo de sobrevivência as atividades de ribeirinhos, agricultores e pescadores. Esse processo de formação e exploração da região, de acordo com registro do Ipatrimônio (2018),foi realizada também pelas mãos de negros escravizados, forçados a trabalhar na construção de estradas,casas, cultivo de alimentos e nas minas auríferas em Cuiabá e Diamantino. Localidades, como a de Rosário Oeste, que surgiram em função da exploração do ouro, com o fim das atividades comerciais na região tornamse improdutivas para o sustento dos moradores (QUEIROZ, 2013).As cidades ficaram praticamente abandonadas pelos governantes e pelas famílias mais abastadas, que deixaram os serviçais e moradores, em sua maioria negros, mestiços e indígenas contando apenas com a própria sorte. Esse abandono foi sentido principalmente pelos negros, que trazem em sua história o sofrimentoda escravidão. No final do século XIX sofrem com o ideário de branqueamento contra as múltiplas identidades que constitui o país. Munanga (2008b) 497 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira discute que essa ideia de branqueamento ainda está presente na mente de negros e mestiços, prejudicando a busca pela identidade baseada na negritude e mestiçagem. Em Rosário Oeste, de acordo com Infosanbas (2023), utilizando os dados do IBGE (2010), aproximadamente 4.345 pessoas se declararam brancas, 1.100 se declararam negras, (108)se declararam asiáticas, 2.456 pardas e 29 pessoas se declararam indígenas. Ao discutir sobre a dificuldade das pessoas se identificarem como negras, Munanga (2008b), reforça que a ideia de branqueamento rouba o elemento negro de sua importância numérica. Outrora ponto de parada obrigatório para quem se dirigia ao Norte do Estado, hoje Rosário Oeste vive com a escassez de alimentos, ausência de política pública de toda ordem, sobretudo para a agricultura familiar, evasão dos jovens e a cobiça das elites cidadinas pelas áreas ribeirinhas da região, ocupadas por famílias de pescadores artesanais. Com o esvaziamento da cidade, a migração de famílias e jovens para a periferia da região metropolita de Cuiabá, a proibição por força de lei da pesca artesanal e a liberação da pesca esportiva há uma atmosfera de angústia em uma cultura secular que se esvai em nome de um progresso que os moradores tradicionais não fazem parte. Nascida na diversidade, com exploradores a serviço da coroa portuguesa, negros e indígenas escravizados (MATTOS (2013), assiste-se hoje em Rosário Oeste um tipo de discriminação institucional e legalizada: com o argumento de que o Rio Cuiabá precisa ser repovoado de peixes, nega-se a uma comunidade de pescadores artesanais constituída por 98% de pessoas pretas e abre-se o mesmo rio para a pesca esportiva, e as suas margens para casas de veraneio e pousadas. A atividade pesqueira artesanal em Rosário Oeste não era e não é apenas um meio de subsistência, é sobretudo uma atividade de resistência, de enfrentamento, de sobrevida de uma cultura. Após anos de escravidão os negros seguem marginalizados na cidade, com dificuldades para a prática milenarde agricultura familiar e pesca. Atividades, desenvolvidas pelos povos originários com suas próprias técnicas de relação com a terra e com o meio ambiente. Os pretos, pobres e indígenas encontraram na pesca artesanal a possibilidade de liberdade, enquanto trabalho permite condições para manter a família e pensar no futuro dos filhos, sempre esperançosos de obtenção de uma boa formação escolar e um futuro profissional promissor. A questão é que, mesmo sendo parte do cotidiano de muitas famílias, a pesca artesanal é vista como irrelevante e inferior, pertencente a um pequeno grupo visto 498 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira como insignificante para a sociedade.Isso reforça a impossibilidade, mesmo no século XXI,de uma sociedade pluralista, mesmo porque após a abolição reside na competição e na rivalidade do sistema capitalista a permanência no presente de um passado escravocrata. Nessa perspectiva, no ambiente escolar são limitadas as possibilidades de contribuições sociais e culturais dos pescadoresenquanto protetores do meio ambiente e do rio Cuiabá. De modo geral, esse grupo é invisível, pois o progresso diz respeito agrandes empreendimentos, como as usinas hidrelétricas, hotéis e o avanço do agronegócio na região. À luz dos ensinamentos de Arroyo (2015, p. 49), compreende-se que na construção de currículos de formação de docentes-educadores e da educação é importante estar aberto à “consciência de mudança”, para inovar a rigidez das “grades” em que nossa tradição curricular “aprisiona os conhecimentos a serem ensinados e aprendidos nas escolas”. Diante das mudanças sociais contemporâneas, questiona-se qual o papel da educação e o modo de ensinar; mostra-se apenas um ponto de vista, o progresso. Esse que aprisiona os grupos menores, como os pescadores artesanais: no cuidado com o meio ambiente, retira dele apenas o necessário para sobreviver. Há um crescente movimento na sociedade pela busca da igualdade racial. Mattos (2013) entende como resultado positivo dessa batalha a lei 10.639 de 2003, que torna obrigatório o ensino de história da África e cultura afro-brasileira nas escolas, além das cotas nas universidades para afrodescendentes. Isso possibilita aos jovens negros participar do movimento pelos direitos civis. Theodoro (2008) reforça que a população afrodescendente no Brasil tem características culturais marcantes, que precisam ser mais estudadas, sendo a escola o espaço de produção de saberes. O constitutivo de identidade, entrelaça-se com a cultura, a educação eo modo de subsistência presente na realidade local. As variações culturais são encaradas como formas marginais de existência, os segmentos culturais diferenciados, encarados como não participantes ou membros parciais da sociedade global (ordem industrial) convertem-se num problema educacional que resistir com a forte influência do modernismo exacerbado que permeia nossa sociedade contemporânea. (SODRÉ, 1989, p. 132) 499 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira Ao olhar para realidade de Rosário Oeste é possível observar o distanciamento da educação escolar dos problemas enfrentados pelos (348) homens e mulheres que vivem da pesca, vinculados a colônia Z13. Para eles, o rio Cuiabá é um meio de sobrevivência. Enquantoa partir do século XVIII as águas do rio Cuiabá foi o caminho para se chegar às minas de ouro e diamante no norte do estado de Mato Grosso, com o fim da extração do ouro e outros recursos, como o látex e a poaia, hoje, depois de três séculos de colonização, ocupação e definição de limites geográficos (GARCIA; BONFIM, 2022), Rosário Oeste é conhecida apenas como o ponto de passagem para o “nortão”. Dessa forma, observa-se que a representação cultural efetivada por meio da pesca artesanal, realizada principalmente por pessoas afrodescendentes, não está conseguindo resistir aos embates políticos impostos pela modernidade. Sodré (1989) reforça que a ideologia modernizadora impermeabiliza a admissão do “Outro” cultural, reforça os estereótipos sociais e os preconceitos de classe e de cor, na medida em que recusa qualquer diferença. Conforme Theodoro (2008, p.82), “na literatura brasileira o negro é palavra excluída, ocultada com frequência ou uma representação inventada pelo outro, sendo sempre o elemento marginal”, ou seja, a modernidade reforça que as culturas excluídas aparecem com valores negativos. Nesse sentido, a ação da pesca artesanal que envolve a preservação do ambiente, do rio e a forma de se manter livre por meio da pesca não é visto como significativa. Contrapõe à modernidade, por isso o grupo afrodescendente incomoda por sua resistência e liberdade. Observa-se a influência da modernidade e interesses políticos sobre a educação, tornando a cultura local uma atividade restrita e com pouca representatividade, pois os preconceitos, conforme Munanga (2008a), permeiam o cotidiano das relações sociais, como ocorre com os pescadores artesanais, que vivenciam o desafio de sobreviver nesse contexto de desigualdades, em especial sofrem com os impactos diretamente nas águas do rio Cuiabá, causados pela produção agrícola, pecuária e a Usina do Manso3. Os questionamentos nos direcionam à reflexão sobre a cultura da pesca como parte da identidade regional, que segue o caminho de resistência traçado pela comunidade, 3A Usina de Manso, construída em parceria com a iniciativa privada, está localizada no estado de Mato Grosso, no rio Manso, principal afluente do rio Cuiabá. O consórcio PROMAN, formado pelas empresas Odebrecht, Servix e Pesa, participa como parceiro com 30% do total dos investimentos. Disponível em: https://www.furnas.com.br Acessado em: 06 de junho de 2022. 500 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira ressaltando sua trajetória em Mato Grosso. Faz-se necessário encontrar as marcas de uma essência diferenciada e autêntica, que constitui o espírito coletivo de um povo (MUNANGA, 2008b). Rio Cuiabá, como espaço de resistência Tendo suas nascentes no município de Rosário Oeste, o rio Cuiabá em seu percurso vai tomando uma proporção de amplitude e força para chegar até o pantanal mato-grossense, onde realiza a confluência com o rio Paraguai, em um percurso aproximado de 828 Km (REIS, 2008). Sua trajetória é inicialmente formada por dois pequenos cursos de água, Cuiabá do Bonito e Cuiabá da Larga, que afloram na Serra Azul, com altitude de cerca de 500 metros. O ponto de união desses dois cursos de água é denominado Limoeiro, onde o rio passa a ser chamado de Cuiabazinho. Quando recebe as águas do rio Manso, o rio dobra o seu volume de água, tendo daí em diante o nome de rio Cuiabá, com grande importância hídrica, social, cultural e econômica para o estado: é o Cuiabá que abastece a maioria das cidades da região. Mesmo sendo primordial para a sobrevivência de muitas comunidades humanas e não humanas, a poluição do rio Cuiabá é pouco comentada e não se observa grande feitos para a sua recuperação. São poucos os estudos voltados para os impactos decorrentes da agricultura e pecuária na região. Conforme Araújo (2012), nesse cenário a bacia do rio Cuiabá, a partir da década de 90, torna-se mais explorada. O crescimento populacional e econômico da Baixada Cuiabana acelera o uso intenso do rio, porém os municípios não têm estrutura para acompanhar esse processo de urbanização. A importância histórica do rio Cuiabá para a sociedade mato-grossense e brasileira é secular. O rio Cuiabá foi a principal via de comunicação da capital para o centro-sul brasileiro, onde, no começo de sua ocupação, os bandeirantes paulistas, seguindo a denominada via das monções, saíam de São Paulo e aportavam em Cuiabá. Trata-se de um rio que historicamente é representado como fonte de vida e de recursos para a cidade, ao longo do qual é localizada, até hoje, uma série de comunidades, cuja principal fonte de renda consiste na pesca artesanal e que serve, junto com seus afluentes, como principal fonte de abastecimento de água na região. (ARAÚJO, 2012, p. 12). 501 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira Diante dessa realidade, a falta de políticas públicas e ações que favoreçam a preservação do rio Cuiabá, entre outras degradações em seu entorno, reflete no cotidiano da região, na subsistência dos pescadores artesanais e nas manifestações culturais da cidade. Infelizmente, isso também não é reconhecido como deveria nas atividades educacionais. Salienta-se que a escola, as casas e as ruas estão interligadas, constituem os espaços de cidadania, do viver cotidiano, é a arena das questões relevantes para a comunidade, como o rio Cuiabá e a atuação dos pescadores artesanais. O uso da terra e da água voltado para a subsistência é a vida e o cotidiano dos rosarienses. É uma forma de resistência, mostrou e ainda mostra a capacidade desse grupo se reinventar. Mas essas práticas são pouco difundidas na formação educacional. Raramente no ambiente escolar são levantadas questões que evidenciam a importância do rio Cuiabá como fonte de vida e subsistência, pouco se fala sobre a circularidade produtiva do ambiente para as famílias ribeirinhas. Para Maturama (2004), vivemos o pensamento linear, apáticos na maioria das vezes, apenas observando as transformações ocasionadas pelo pensamento contemporâneo, em que a exploração econômica e ambiental não tem limites. Freire (1985, p. 6) afirma que “os políticos - educadores esqueceram-se de respeitar a compreensão de mundo, da sociedade, da sabedoria popular, o senso comum que os educandos têm”. Muitas vezes os professores, alunos e alunas são envoltos por outras realidades e contextos que não debatem sobre questões que permeiam o cotidiano da comunidade, suas angústias e memórias. Munanga (2008a, p. 11) reforça que “não podemos esquecer que somos produtos de uma educação eurocêntrica, e que podemos em decorrência desta reproduzir consciente ou inconscientemente os preconceitos que permeiam a nossa sociedade”. Consequentemente deixamos de lado a diversidade entre os grupos humanos, separados entre superiores e inferiores na perspectiva de produtividade, do lucro e acúmulo financeiro, pensamento difundido também nas escolas. Em outros termos, não se valoriza a autonomia do uso responsável de recursos naturais, uma vez que as atividades de subsistência realizadas pela população ribeirinha não são respeitadas como parte daproteção do meio ambiente. Com isso, a representação do pescador ribeirinho artesanal continua sendo difundida como a de um cidadão improdutivo, afastando-os,mantendo-os às margens das discussões políticas, sociais e econômicas. 502 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira O pescador artesanal, segundo Diegues (2004, p.182), “é um pequeno produtor que participa diretamente do processo da pesca, dono de um cabedal enorme de conhecimentos e dos instrumentos de trabalho, operando seja em unidades familiares seja com “camaradas” e companheiros”. O pescador realiza uma prática secular utilizada como meio de sobrevivência, processo de pertencimento e propagação da cultura. Portanto, faz-se necessário contextualizar a realidade desse grupo que compõe a história da sociedade Mato-Grossense. A escola na construção da cidadania Em suma, o reconhecimento do Outro está em respeito à diversidade. Munanga (2008a) aponta a escola como o espaço propicio para discutir assuntos que são depreciativos e preconceituosos em relação aos povos e culturas. Escamoteadas no cotidiano dos alunos com ascendência étnico-racial e social, as contribuições dos negros para a sociedade não têm visibilidade. Portanto, essa discussão na escola é o primeiro passo para a formação de novos sujeitos protagonistas, tanto no processo de construção do conhecimento como da ação ética diante dos mundos presencial e virtual. O resgate da memória coletiva da comunidade negra precisa ser praticado nos espaços que envolvem a multiplicidade de culturas, apesar das condições desiguais. Trata-se de uma tarefa da escola, fundamentalmente, mas também da família e dos meios de comunicação. De acordo com Moreira (2015, p.1138), “juntamente com a escola e a família, os meios de comunicação social tradicionais e as tecnologias de informação constituem fontes de saber e de socialização, especialmente de adolescentes e jovens”. Fomentar o respeito ao Outro é vital para a formação de novos sujeitos, protagonistas e atuantes na propagação do reconhecimento social. Assim, conforme Mattos (2013), um primeiro passo é saber que o racismo e o preconceito estão presentes nas relações e na organização da sociedade.Quando se aceita esse fato, torna-se possível pensar em estratégias de educação e combate.Repensar as formas tradicionais de educar e abrir espaços para o fomento das atividades tradicionais e culturais, reconhecer e dar visibilidadeà presença dos grupos étnicos, como as comunidades ribeirinhas,são também formas de educar e promover a cidadania. A BNCC (2018, p.554) ressalta que “as transformações na ação das pessoas são mediadas pela cultura”. Em sua etimologia latina, a cultura remete à ação de cultivar 503 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira saberes, práticas e costumes dos grupos em sua diversidade. Nessa perspectiva, Munanga (2008b, p.14) reforça que “as matrizes étnico-raciais, que deram ao Brasil atual sua feição multicolor, composta de índios, negros, orientais, brancos e mestiços”, estão presentes na escola, por isso a escola deve ser um núcleo de mudança, de respeito à diversidade do povo brasileiro. Para Theodoro (2008), somente por meio de uma releitura dos elementos que responde pela identidade cultural do país, com um aprofundamento pedagógico, podemos resgatar uma cultura nossa. O ambiente escolar de formação e troca de conhecimentos provoca nos alunos e alunas o desejo de compreender e respeitar a cultura do Outro. Para Freire (1987, p.33), “a situação existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no risível intelectual, mas no nível da ação”. Ou seja, cabe à escola ser aliada dos anseios da comunidade na proposição de ações para a preservação do meio ambiente e da história local. A escola na contemporaneidade atua quase que exclusivamente baseada em conteúdos alheios à realidade do aluno, torna ausente as reflexões sobre as comunidades tradicionais. Conforme o Decreto n. 6040 de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), compreende-se que o desenvolvimento sustentável como promoção da melhoria da qualidade de vida dos povos e comunidades tradicionais nas gerações atuais é a garantia das mesmas possibilidades de participação ativa na sociedade para as gerações atuais e futuras, com respeito aos seus modos de vida e tradições. Em Rosário Oeste muitas famílias contam com orgulho que conseguiram manter os filhos na escola, em cursos técnicos e faculdades, utilizando o dinheiro que recebiam com a venda dos peixes. Quantas histórias de vida são possíveis a partir da pesca, para muitos um ato de pertencimento social, cultural e econômico. Diante dessa realidade, a modernidade e o racismo não pode se sobrepor, deixando o passado e o presente de pessoas negras esquecidos ou excluídos da atualidade. A investigação e a tomada de consciência acerca da trajetória da modernidade e seus efeitos no ambiente são retratados por Dubar (1997), ao afirmar que o modernismo reduz a socialização a qualquer forma de integração cultural, é uma concepção estratégica de funcionamento do transnacional, que transforma os espaços, pensamentos e valores. Nesse percurso refletimos sobre o processo de esquecimento da cultura popular, na atuação pedagógica. Freire (1985) reforça que o povo luta incessantemente 504 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira na recuperação de sua humanidade. Para ele, a pedagogia precisa ser objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamentona luta por sua libertação. Sobre a prática pedagógica é preciso considerar os estudos sobre cultura popular regional em prol da sua preservação e das lutas enfrentadas no cotidiano por milhares de pessoas em todo o estado de Mato Grosso. São comunidades invisíveis que desaparecem na paisagem urbana e rural por não pertencerem a um padrão econômico imposto pelo modelo econômico. O pescador artesanal ribeirinho tenta resistir a esse padrão econômico. Como afirma Catenacci (2001),é necessário observar nossas raízes, as condições materiais e essenciais para a vida. Como protagonistas, os pescadores tentam mostrar suas vivências e experiências cotidianas na relação com as águas do rio Cuiabá, com os peixes e o ambiente. Mostram conexão com a realidade circundante. Discutir a importância das questões populares e da comunidade nas escolas é lidar com a pluralidade cultural brasileira, segundo Theodoro (2008) é o processo de construir ponte, escola e vida comunitária, em que todos são absolutamente necessários. A atuação e participação social dos pescadores artesanais da colônia Z13 de Rosário Oeste, enquanto representantes da cultura regional, tem características marcantes para a produção de saber. Acompanhar de perto a história e a atuação dos moradores de Rosário Oeste frente às ações políticas, sociais e populares, é conhecer um pouco da história do estado de Mato Grosso. Outro aspecto é observar a prática da pesca como manifestação cultural. Conforme Costa e Silva (2020, p.131) “os territórios tradicionais de pesca são lugares de memória e espaços de resistência, pois a história, o trabalho e a cultura dos pescadores são indissociáveis destes espaços, essenciais para reprodução cultural do grupo”. Na perspectiva de dinamizar o processo de ensino aprendizagem, fortalecendo a cultura local, e a diversidade que constitui a sociedade, Arroyo, ressalta a urgência em tratar sobre a políticas pedagógicas de inclusão, Os docentes-educadores/as e as crianças, os adolescentes, os jovens e adultos têm direito a conhecer a produção dessa história, dessa consciência de mudança de que são sujeitos os trabalhadores. Têm direito a entender que são processos formadores, de produção de Outros conhecimentos, culturas, valores, a ser incorporados nos currículos e nas práticas pedagógicas. Toda 505 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira a riqueza de práticas educativas, formadoras que acontece no trabalho, nas ações coletivas emancipatórias pressiona por ser incorporada nos currículos (ARROYO 2015, p. 50). A escola é um ambiente representativo da pluralidade, e comporta em seus espaços diversidade humana em sua intensa riqueza e singularidade, seja em gênero, etnia, religião, cultura, sexualidade ou condição física. A cultura é tudo aquilo que resulta da criação humana. A BNCC (2018, p. 09) enfatiza que o ensino por competências deve “valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural”, condição vital no processo de ensino e aprendizagem. A escola deve ser o lugar da validação do conhecimento focalizado na produção da diversidade. Para Moreira (2015, p. 1139), “a escola, tradicionalmente, mantém-se como uma das instituições mais próximas do cotidiano dos adolescentes e dos jovens. É, embora não hegemônica nem a única, ainda é um fórum de debates, de reflexão, de muitas vozes”. Catenacci (2001) reforça que a cultura popular está ameaçada pelo processo de modernização, pois há uma incompatibilidade entre as manifestações populares e os avanços modernos na sociedade.Dessa forma, a distinção entre educação escolar e cultura popular, representada neste estudo pelos pescadores artesanais ribeirinhos de Rosário Oeste, se estende a outros grupos que desenvolvem ações que integram a identidade do povo brasileiro. Esses grupos, muitas vezes silenciados pelo racismo estrutural, precisam compor o espaço pedagógico e envolver a escola. A Constituição Federal do Brasil de 1988, em seu artigo 210, reconhece a necessidade de fixar conteúdo para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica com valores culturais, artísticos, nacionais e regionais. Porém, na rotina escolar, as manifestações populares são invisibilizadas e minimizadas no currículo. Como afirma Schmidt (2003), o conjunto de experiências e conhecimento que a escola oferece aos estudantes é a forma dos interesses sociais e da cultura elitizada que se materializa na sociedade. DaMatta (1994) relata que a cultura se refere a fenômenos coletivos, sendo a cultura popular um guia para os membros de uma dada sociedade. Basta uma rápida reflexão sobre a indivisibilidade crescente de inúmeras manifestações da cultura popular mato-grossense, diante das mudanças no cenário regional,e teremos a dimensão da força da modernidade. 506 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira Ao discutirmos a invisibilidade dos pescadores, a decadência da cidade de Rosário Oeste, do rio Cuiabá, o que se objetiva é tanto chamar a atenção para o cumprimento de diretrizes legais na educação quanto fortalecer as reflexões sobre o Outro. Destacase os estudos da cultura popular por ser um meio de superar o racismo e todo tipo de preconceito no ambiente escolar. Consideramos um desafio evidenciar o pescador como parte do desenvolvimento sociocultural do país, pois em toda história ele é descrito com inferioridade e excluído do processo de comunicação, por não cumprir os desígnios do capitalismo. Propõe-se que o ambiente escolar, dentre os múltiplos discursos, evidencie a militância e resistência dos negros, tendo como modelo o pescador artesanal no combate à exclusão social, étnica e racial. Nessa experiência é possível aportar significativas estratégias de resistência das pessoas pretas, que lidam com o ambiente de modo interdisciplinar, atuam no campo da sustentabilidade, preservação do rio e do ambiente. São aprendizagens, se postas nas escolas, que se irradiam do cotidiano escolar para as ruas, empresas e residências. Sabe-se que esse caminho não é simples, é construído com embates de forças desiguais. Por isso necessário. Referências ARAÚJO, Gabriella Costa. Padrões espaciais da qualidade da água na Bacia do Rio Cuiabá e Rio São Lourenço – Mato Grosso Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, 2012. ARROYO, M. G. Os Movimentos Sociais e a construção de outros currículos. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 55, p. 47-68, jan./mar. 2015. Editora UFPR. Disponível em: https://www.scielo.br/j/er/a/ xYJBbBhyTpcKNjp5HpxZVht/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 20 de outubro, 2022. BARROS, Edir Pina de. Processo integrado de resgate a memória cultural Bakairi. In: Ministério da Cultura. Fundação Nacional pró-memória/ sphanminc. Dez 1989. http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/Museu_Oficina_Kuikare.pdf. Acesso em: 12 de ago. 2023. 507 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira BRASIL, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular, BNCC. Educação é base, 2018. Ministro da Educação. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec. gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 16 out. 2022. CATENACCI, Vivian. Cultura popular: entre a tradição e a transformação. Perspec. [online] vol.15 no.2 pp.28-35, ISSN 1806-9452. São Paulo, abril/junho. 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/spp/v15n2/8574.pdf. Acesso em: 15 de jul. 2020. COSTA Manuela Areias; SILVA Luciano Pereira da. Movimento Social de Pescadores e Pescadoras Artesanais em Mato Grosso: patrimônio cultural e lutas políticas. Revista brasileira de história e ciências sociais RBHCS VOL.12 N° 23 janeiro-junho 2020. DAMATTA, Roberto. Treze pontos riscados em torno da cultura popular. Anuário Antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994. DUBAR, Claude. A socialização: a contribuição das identidades sociais e profissionais. Portugal: Porto Editora, 1997. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. ___________Virtude do educador. Pronunciamento verbal de realizado em 21 de junho de 1985. No conselho de Educação de adultos da América Latina, 1985. GARCIA, Pedro Maciel de Paula, BONFIM, Carolina Santos. A mineração e os limites geográficos na colonização de Cuiabá e Mato Grosso. 2022 © TerraeDidat. Campinas, SP v.18. 2022. INFOSANBAS.ORG.BR. Informações contextualizadas sobre o saneamento básico no Brasil. Municípios/Rosário Oeste-MT. 2018. Disponível em: https://infosanbas.org. br/municipio/rosario-oeste-mt. Acesso em:28 de set. 2023 IPATRIMÔNIO.GOV. Patrimônio Cultural Brasileiro. Rosário Oeste – Casarão da Fundação de Cultura e Turismo. 2018. Disponível em: https://www. ipatrimonio.org/rosario-oeste-casarao-da-fundacao-de-cultura-e-turismo/#!/ map=38329&loc=-14.836484999999987,-56.42813199999999,17. Acesso em: 08 de set.2023. MATTOS, Regiane Augusto. História e cultua afro-brasileira.2°ed. São Paulo: Contexto, 2013. MATURANA Humberto XIMENA Romesín. Ética e desenvolvimento sustentável – caminhos para a construção de uma nova sociedade. Conferência: Paz Dávila Y. Instituto Matriztica. Psicologia & Sociedade; 16 (2): 102-110; set/dez.2004. 508 o ensino da cultura popular Ivoneides Maria Batista do Amaral e Benedito Dielcio Moreira MAZZOTTI, Alda Judith Alves. Uso e abuso dos estudos de caso., Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro. Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 129, p. 637-651, set./ dez. 2006. Ministério da Cultura. Fundação Nacional pró-memória/ sphanminc. Processo integrado de resgate a memória cultural Bakairi. Edir Pina de Barros. Dez 1989. Ver em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/Museu_Oficina_Kuikare.pdf. Acesso em: 12 de ago. 2023. MOREIRA, Benedito Dielcio. Participar com os jovens e adolescentes da experiência de aproximação com o mundo adulto: o desafio da educação. Educ. Soc., Campinas, v. 36, nº. 133, p. 1137-1155, out.-dez., 2015. MUNANGA, Kabengele(Org.).Superando o racismo na escola. 2° ed. Brasília, ministério da educação, Secretaria de Educação, Alfabetização e diversidade, 2008a. ___________Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 3° ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008b. (Coleção Cultura Negra e identidades) QUEIROZ, Charles Barbosa de. A vila de Diamantino de 1805 A 1862: o olhar dos viajantes. dissertação de Mestrado, pós-graduação programa de História, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá-MT,2012. REIS, Sebastiana Lindaura de Arruda. Comunidades ribeirinhas e suas representações sociais de ambiente sob impactos de represas das bacias do rio Paraná e rio Cuiabá-MT . Tese (doutorado em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais) Universidade Estadual de Maringá, Dep. de Biologia, 2008. SCHMIDT, Elizabeth Silveira. Currículo: uma abordagem conceitual e histórica. Publ. UEPG Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicada, Linguagens, Letras e Artes, Ponta Grossa, 59-69, jun.2003. SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala: função e linguagem da televisão no Brasil. 5° ed. Petrópolis, Vozes, 1989. QUEIROZ, Charles Barbosa de. A vila de Diamantino de 1805 A 1862: o olhar dos viajantes. Dissertação de Mestrado, pós-graduação, programa de História, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá-MT, 2013. THEODORO, Helena. Buscando Caminhos na tradição.Superando o racismo na escola. 2° ed. Brasília, ministério da educação, Secretaria de Educação, Alfabetização e diversidade, 2008. P. 79 -96. 509 Racismo e antirracismo no cinema à luz de Kabengele Munanga Ana Claudia da Cruz Melo Universidade Federal do Pará, Brasil Carmen Lucia Souza da Silva Universidade Federal do Pará, Brasil Ádria Sofia Dias Lage Universidade Federal do Pará, Brasil Ao questionar “o que é afinal a arte afro-brasileira”, o pensamento de Kabengele Munanga (2019), antropólogo e professor, torna-se o ponto central, neste artigo, para refletirmos sobre como um conjunto de filmes produzidos, entre o final do século XIX e início do século XX, nos estúdios de Thomas A. Edison, nos Estados Unidos, fizeram do cinema, então arte recém-nascida, expressão que, talvez, mais tenha contribuído não apenas para romper com as formas artísticas plásticas e visuais africanas, como também se tornar uma tecnologia social potente de propagação do racismo. Reflexão que propomos empreender, primeiro, buscando pontuar as contribuições que o próprio Munanga traz à definição do qualificativo “afro” atribuído à arte brasileira. E, no segundo momento, ao analisarmos as representações de afro-americanos nesta produção cinematográfica estudada. Por fim, pontuaremos como o debate sobre a dimensão pedagógica do Cinema Negro pode situar-se na contemporaneidade como uma forma de luta antirracista. 510 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage O pensamento de Munanga (2019), que parte do questionamento sobre “o que é afinal a arte afro-brasileira” e que alicerça este artigo, nos coloca, a princípio, diante do quanto os conceitos de arte e de belo, ao longo dos séculos, foram mudando de sentido, de tal modo que, no momento atual, a arte é de múltiplas formas e o belo deixa de ser um objetivo, pois agora também pode visar “à simples criatividade, à fantasia, ao jogo, à expressão pessoal, à busca do pitoresco, da originalidade, etc.” (Munanga, 2019, p. 6). Desta compreensão, o antropólogo então explica que o problema que coloca não é descobrir nas artes plásticas afro-brasileiras aspectos universais da arte em geral, mas sim descrevê-la em relação à arte brasileira e que “descobrir a africanidade presente ou escondida nessa arte constitui uma das condições primordiais de sua definição” (Munanga, 2019, p. 6). Contudo, observa que entender o que é a “africanidade” é fundamental, uma vez que os criadores da arte afro são descendentes de africanos escravizados que foram “transplantados para o novo mundo”. Um processo que envolve rupturas com a estrutura social original e que, hipoteticamente, pode ter resultado em perda de identidade e, ao mesmo tempo, na criação de novas formas. Para que os elementos culturais africanos pudessem sobreviver à condição de despersonalização de seus portadores pela escravidão, eles deveriam ter, a priori, valores mais profundos. A esses valores primários vistos como continuidade foram acrescidos novos valores que emergiram do novo ambiente. Ora, no contexto tradicional africano, as artes eram praticadas funcionalmente por membros especiais da comunidade, que, acreditava-se, teriam aprendido o ofício dos espíritos, e não dos mortais. Por essa razão a prática da arte era reservada à linhagem de certas famílias em particular. Em certos grupos étnicos, os escultores usavam um distintivo de classe e tinham uma posição de destaque na corte real (Munanga, 2019, p. 7). Conforme Munanga (2019), para que os elementos artísticos ou culturais fiquem retidos na memória de quem foi “cortado de suas raízes” seria necessário que o indivíduo pertencesse ao núcleo de sua existência, pois este é o último que resiste à ruptura. Nesse sentido, para este antropólogo, no Brasil, não houve a continuidade e a recriação de todos os elementos da arte africana, já que para cá não foram transportadas “a totalidade de suas estruturas social, política, econômica e religiosa” (2019, p. 8), 511 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage apenas houve a continuidade de algumas formas da arte afro, recriadas parcialmente “em função de suas novas condições de vida”. Um campo cultural, segundo Munanga, resistente, onde se pode observar a continuidade da arte africana, foi o da religiosidade. Mesmo que ainda nos navios negreiros os cativos fossem batizados na religião Católica, e tão logo chegassem ao Brasil fossem proibidos de praticar suas religiões, Munanga explica que várias fontes de resistência e de sobrevivência foram encontradas, entre as quais a associação entre os orixás e os santos católicos, base do surgimento de uma linguagem plástica afro-brasileira. É dentro dessa correspondência baseada nas semelhanças funcionais entre santos católicos e orixás que devemos historicamente situar a questão da continuidade das formas artísticas plásticas africanas e o surgimento de uma linguagem plástica afro-brasileira. Uma linguagem sem dúvida religiosa praticada por causa da repressão ideológica e política (Munanga, 2019, p. 11). Contudo, por muito tempo a arte afro-brasileira ficou restrita, segundo Munanga, às casas de cultos. Algo que só começa a mudar a partir dos anos 1930 e 1940, desdobramento também de estímulos científicos e culturais e do reconhecimento de artistas. Sendo que a maioria desses artistas afro-brasileiros negros e mestiços, hoje consagrados, ainda não teve a integralidade de suas obras devidamente visitada por críticos e avaliadores. Algo que, na avaliação de Munanga, poderia corroborar para classificá-los ou para conceituar a arte afro- brasileira, na medida em que seria possível conhecer a variedade das obras de artistas e a história de vida de cada um deles. Com base nos “poucos estudos existentes” sobre as obras de renomados artistas que tratam de maneira sistemática das temáticas negra e suas formas ou da cultura com raízes africanas, o antropólogo afirma que, para a arte merecer e conservar o atributo e qualificativo de “afro”, há que se considerar vários elementos. Entre os quais estão “a forma ou o estilo; as cores e seu simbolismo; a temática; a iconografia e as fontes de inspiração, todos harmoniosamente articulados através do domínio de uma técnica capaz de dar corpo e existência a uma obra de arte autêntica” (Munanga, 2019, p. 18). Ressalta, entretanto, que isso não quer dizer que uma obra de arte tenha que reunir todas estas características, bastaria apenas as mais relevantes como a forma e o tema. Portanto, a partir desta noção 512 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage mais ampla, como poderíamos situar o cinema frente à “afroarte”? E como o cinema poderia contribuir mais efetivamente às lutas antirracistas? Isso porque no caso do cinema, uma arte visual em essência e historicamente reconhecido como a arte do tempo e do espaço, uma arte síntese (Canudo, 2007, p. 14) que reuniu todas as outras que o antecederam (pintura, arquitetura, escultura, música, poesia e dança), o qualificativo “afro” vinculado à temática racial e na perspectivas das colonialidades1 torna-se extremamente complexo, mesmo que o atributo negro associado ao cinema, com estas compreensões, atualmente já seja usual. Em 2022, a plataforma de streaming Netflix lançou, após 20 anos de produção, o documentário A História do Cinema Negro nos EUA (Is That Black Enough For You?!?), no qual anunciava que o historiador e crítico cultural, Elvis Mitchell, traçava, nesta produção, a evolução e a revolução do Cinema Negro, de suas origens ao impacto dos filmes da década de 1970. No Brasil, o Cinema Novo, da geração do cineasta Glauber Rocha, encontrou na ideia do Cinema Negro uma das suas principais sustentações para contestar os vieses colonizadores brasileiros, seja nas temáticas ou pelos seus personagens protagonizados por atrizes e atores negros - Antônio Pitanga, Eliezer Gomes, Luiza Maranhão, Ruth de Souza, Zózimo Bulbul, entre outros. No ano 2000, o manifesto Dogma Feijoada, escrito pelo cineasta Jeferson De, propôs, inclusive, as bases de sustentação conceitual do Cinema Negro no Brasil. Por outro lado, já são inúmeras as mostras ou festivais de Cinema Negro, entre os quais o mais longevo no Brasil é a própria Mostra Internacional do Cinema Negro de São Paulo, que em 2023 registra a sua 19ª edição. Contudo, pensar no cinema especialmente a partir dos filmes produzidos na primeira década da História do Cinema Mundial, quanto à representação das pessoas que viveram a escravidão 1Por “colonialidade”, partimos da compreensão de Aníbal Quijano e de outros autores latino-americanos que discutem este conceito associado ao poder e às questões raciais que configuram a dominação na América (Latina), perdurando mesmo depois da independência dos países da região em relação às nações colonizadoras. Para Quijano (2007, p. 285, tradução nossa): “A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão global do poder capitalista. Baseia-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população mundial como pedra angular desse padrão de poder, e atua em cada um dos planos, escopos e dimensões, materiais esubjetivas, da existência cotidiana e em escala social” (La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se funda en la imposición de una clasificación racial / étnica de la población del mundo como piedra angular de dicho patrón de poder, y opera en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones, materiales y subjetivas, de la existencia cotidiana y a escala social). 513 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage ou dos descendentes de africanos escravizados, seria encontrar-se como uma quase completa ausência de qualquer referência estética em relação à arte e à cultura de nações africanas que sofreram com a escravidão em países como os Estados Unidos?! Ou o cinema enquanto arte que estava nascendo forma-se também sobre práticas criativas firmadas na ideologia racista? Ideologia racista no Cinema Para discutir o racismo, inclusive como ideologia, Munanga analisa que “para ser racista, coloca-se como postulado fundamental a crença na existência de ‘raças’ hierarquizadas dentro da espécie humana”. E acrescenta: “no pensamento de uma pessoa racista existem raças superiores e raças inferiores” (Munanga, 2009, p. 9). Contudo, o antropólogo avança ao detalhar que o “problema fundamental não está na raça, que é uma classificação pseudocientífica rejeitada pelos próprios cientistas da área biológica”. Para ele, o “nó do problema está no racismo que hierarquiza, desumaniza e justifica a discriminação” (Munanga, 2022, p. 121). Como uma ideologia, o racismo está nas entranhas da História do Cinema. Nos Estados Unidos, sabe-se que boa parte desta história foi marcada pelo veto acerca da representação de afro-americanos, sobretudo de si mesmo. Conforme Stam (2003), na fase dos estúdios de Hollywood, o racismo figurava em documentos oficiais e em práticas não oficiais. Dois exemplos disso são o Código Hays, que proibia as representações de miscigenação, e o “preceito” de Louis B. Mayer, de que os “negros deveriam ser mostrados apenas como engraxates ou porteiros” (Stam, 2003, p. 300). A preservação, o restauro e a conservação dos filmes produzidos nos Estados Unidos, nos primeiros anos de existência do cinema, também permitem que se constate o quanto o racismo foi uma prática recorrente na pré-Hollywood. Diferentemente dos Estados Unidos, no Brasil, contudo, existem poucas referências entre os anos 1898-1912, porque quase nada restou ou ainda há de imagens cinematográficas brasileiras deste período. Além do que no Brasil, na primeira década de existência do cinema, mais se consumiu filmes estrangeiros do que se produziu (Gomes, 2016, p. 177). Estudar o multiculturalismo no cinema brasileiro nesta fase seria, portanto, se ver obrigado a “recorrer a matérias de jornais, fotogramas, memórias, propaganda e outros materiais de arquivo” (Stam, 2008, p. 97). 514 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage Assim sendo, a nossa análise fílmica e extrafílmica centra-se em cinco produções dos estúdios de Thomas A. Edison. Sobre estes filmes buscou-se observar as representações de afro-americanos nas produções cinematográficas com o objetivo de situarmos o cinema, nos seus primeiros anos de nascimento, diante do qualificativo “afro” e de identificarmos como o cinema contribuiu à ideologia racista. Os filmes analisados foram acessados por meio do box de DVDs Edison A Invenção dos Filmes, lançado, nos Estados Unidos, em 2005 (Edison: The Invention of the Movies), com cerca de 860 minutos, e 140 filmes da Edison Company, produzidos entre 1891-1918. Os filmes selecionados foram: 1) Competição de Comer Melancia (Watermelon Eating Contest, USA, 1896); 2) Competição de Melancia (Watermelon Contest, 1900); 3) Uma briga em Preto e Branco (A Scrap in Black and White, 1903); 4) O Caminho da Melancia (The Watermelon Patch, 1905); e 5) Gás Hilariante (Laughing Gas, 1907). Desses cinco curtas-metragens, três remetem às históricas associações racistas que supremacistas brancos (Figura 1), nos Estados Unidos, fazem entre a melancia e os afro-americanos. Para o professor de Ciência Política, Richard Waterman, filmes concebidos como comédia que, atualmente, são compreendidos como imagens violentas contra homens, mulheres e crianças e que dão a perceber o racismo sofrido por afro-americanos (Waterman, 2019). Para Waterman, esses filmes produzidos, entre 1894 e 1915, são uma “farce comedy”. Conforme este autor, inclusive, o cinema dos primeiros tempos teria sido responsável não apenas por reforçar “todo estereótipo pejorativo imaginável” como também por legitimá-lo para sociedade branca norte-americana. O filme retrata as atitudes da sociedade em relação à raça durante o período específico em que é produzido [...]. Os filmes não representam apenas uma forma de entretenimento de massa, mas também fornecem uma janela sobre as atitudes dos milhões de espectadores que os assistiram diariamente2 (Waterman, 2019, p. 2-3, tradução nossa). 2 “Film portrays society’s attitudes about race during the particular period when a movie is produced [...]. Movies represent not merely a mass form of entertainment, they also provide a window on the attitudes of the millions of people who viewed them daily”. 515 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage Figura 1 - Três curtas com associações racistas aos afro-americanos produzidos pelos estúdios de Thomas A. Edison. Fonte: Still de Watermelon Eating Constest (1896), Watermelon Constest (1900) e The Watermelon Patch (1905) Filmado em setembro de 1896, o curta Competição de Comer Melancia é assinado por William Heise e James White e, atualmente, assim como os demais analisados, está no acervo do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa). Com 50 segundos de duração, trata-se de uma filmagem de dois homens jovens que parecem competir para saber quem come primeiro, e mais rápido, grande fatia de melancia. A própria sinopse deste curtíssimo, presente no DVD 1, explica que a Edison Company, assim como outras produtoras americanas da época, filmava “estereótipos raciais bem conhecidos” que associavam as imagens dos afro-americanos aos “ladrões de galinha preta e comedores de melancia”. A segunda produção com a mesma temática, de outubro de 1900, Competição de Melancia, constante no mesmo DVD 1, com 2 minutos e 56 segundos de duração, apresenta a imagem de quatro rapazes negros que também comem com rapidez grandes fatias de melancia, cospem os caroços enquanto brincam e riem uns com os outros. O terceiro curta com esta associação, O Caminho da Melancia, com 11 minutos de duração, incluído no DVD 2, foi filmado em outubro de 1905, por Edwin S. Porter e Wallace McCutcheon. Começa com um plano aberto de uma plantação de melancias, que tem dois espantalhos. Em seguida, dois homens negros entram no quadro engatinhando e acabam chocando suas cabeças. Olham para a câmera e riem, enquanto gesticulam. Em seguida acenam e outros seis homens negros aparecem e começam a comer as melancias no chão. As roupas dos espantalhos caem e surgem personagens vestidos com “figurinos de esqueletos humanos”, que gesticulam 516 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage e correm em direção aos rapazes negros que se apressam levando as melancias. Vários caem e tropeçam uns nos outros. Os esqueletos continuam a correr atrás deles, que pulam cercas sempre carregando as melancias. Até que conseguem despistar os esqueletos durante a perseguição. A sequência seguinte apresenta homens, mulheres, crianças e idosos dançando, dentro de uma casa, enquanto um deles toca um violão. Depois de vários passos de dança e muitos risos, um deles joga uma melancia no chão que se parte em vários pedaços. Todos pegam do chão um pedaço da fruta e começam a comer. Na sequência seguinte, homens brancos com cães surgem e se deparam com a casa que solta fumaça pela chaminé. Os homens brancos bloqueiam a saída da fumaça da moradia. As pessoas que ainda estavam comendo melancia dentro da casa começam a ficar sufocadas. Em seguida, fogem pelas janelas e pelo telhado. Do lado de fora, são recebidas por homens brancos com cães, com chutes e empurrões. Michelle Wallace, autora do livro Black Macho and the Myth of the Superwoman, em entrevista constante no box de DVDs dos estúdios de Thomas Edison, explica que as melancias eram muito consumidas pelos sulistas, nos Estados Unidos, e associa-se à classe trabalhadora, aos pobres, aos interioranos porque eram eles que plantavam e colhiam as frutas. Segundo ela, não há uma explicação sobre em que momento se passou a associar a melancia aos afro-americanos. Mas é fato que havia uma “obsessão nesses materiais racistas” e em representar negros “roubando comida”, jogando ou sonolentos. Para Wallace (2005), todos esses estereótipos são indissociáveis da própria condição socioeconômica daqueles que viviam no sul dos Estados Unidos, onde o seu desenvolvimento se deu firmado sobre a ideologia racista, em que negros descendentes de escravos vindos do continente africano foram submetidos à fome, à pobreza e à rotina exaustiva do trabalho rural. Por isso, afirma Wallace (2005), quando se analisa cada estereótipo não haveria nenhum ato (fome, cansaço ou diversão) que seja motivo de vergonha e que todos eles foram gerados por uma “sociedade hipócrita”. Em Uma briga em Preto e Branco (Figura 2), curta de 1903, com um minuto de duração, assinado por Alfred C. Abadie, vê-se duas crianças em disputa de luta de boxe. Esta produção também é marcada pelo racismo presente no cinema em relação aos afro-americanos. A escritora Michelle Wallace (2005), inclusive, o define como um filme “bem estranho” porque adultos brancos colocam duas crianças, uma branca e outra negra, para lutarem. Sendo que sempre deixam o garoto negro apanhar. Algo que, 517 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage segundo a escritora, sugere atitudes diferentes em relação às crianças e dos próprios meninos em relação à raça. Inclusive na entrevista presente no box de DVDs, Wallace (2005) questiona: “Em que idade uma criança percebe plenamente quem ela é? De forma que se permite ser racista? Com que idade uma criança entende isso?”. Figura 2 - Filme de luta de boxe protagonizado por duas crianças, produzido pelos estúdios de Thomas A. Edison. Fonte: Still de A Scrap in Black and White (1903). Por outro lado, como observa Waterman (2019), assim como o cinema comportou e propagou atitudes racistas, também há de se considerar que este mesmo cinema, dos primeiros tempos, foi um lugar antirracista, ainda que de forma minoritária. Esta hipótese reside no fato de que a elite branca não frequentava as primitivas salas de cinema, os nickelodeons, lugares de diversão popular e frequentados por imigrantes, trabalhadores e pobres. Perspectiva a se considerar no caso do curta Gás Hilariante, de 1907, de Edwin Porter e J. Searle Dawley, com nove minutos de duração. Protagonizado por Bertha Regustus (Figura 3), atriz afro-americana, este filme tem algumas exceções quanto às representações cinematográficas de pessoas negras no final do século XIX e início do século XX. Gás Hilariante narra a história de uma mulher que recebe uma excessiva dose de óxido nitroso no consultório do dentista e passa a ter crises de risos que afetam todas as pessoas que ela encontra ao longo de um único dia. 518 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage Figura 3 - Atriz afro-americana protagoniza filme produzido pelos estúdios de Thomas A. Edison. Fonte: Still de Laughing Gas (1907). O incomum desta produção, primeiro, reside no fato de ter uma atriz afro-americana atuando, já que era recorrente no cinema atores brancos usando blackface, ou seja, com a pele pintada. Conforme Waterman (2019), outro aspecto a se considerar, para a época das comédias mudas, é que a mulher negra está no consultório para tratamento dentário e, mais, é atendida por um dentista branco. Também não mostra a mulher negra trabalhando como criada na propriedade de pessoas brancas, mas sim interagindo “dentro da sociedade branca”, andando de bonde, ao ponto dos efeitos do seu riso afetarem indistintamente negros e brancos. “Estas são imagens notavelmente positivas para este momento da história”, mesmo que o filme tenha a sua faceta racista na sequência do dentista quando remove o dente da personagem, este fica “superdimensionado, sugerindo que os afro-americanos têm dentes semelhantes aos dos animais”. E o autor conclui: “Logo, não é totalmente positivo, pois os risonhos afro-americanos ainda continuavam sendo foco principal do humor do filme”3(Waterman, 2019, p. 13, tradução nossa). Apesar desta sequência racista, a escritora Michelle Wallace (2005) afirma que Gás Hilariante precisa ser compreendido com um passo significativo dado pelo cinema na representação dos 3 “These are remarkably positive images for this time in history [...]. When the dentist removes her tooth it is oversized, suggesting that African Americans have animal-like teeth [...]. Thus, thei mage is not entirely positive, for laughing African Americans were still the main focus of the film’s humor”. 519 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage negros. Para ela, é inquestionável que o curta traz a beleza de Bertha Regustus como o diferencial. Wallace (2005) observa que Bertha Regustus era negra, linda e alta, por isso deveria ser hipnotizante vê-la, razão que possivelmente levou o diretor querer mostrá-la, “destacar essa pessoa singular”. A escritora, inclusive, cita o curta Gás Hilariante como o exemplo de que nem todos os filmes, desta época, eram racistas e que a superação do racismo se dará na medida em que a indústria cinematográfica amadurece, se consolida e se reinventa. Assim sendo, com base nesses aspectos tratados nas cinco produções dos estúdios de Thomas A. Edison, pioneiro do cinema americano e grande exportador de filmes para o Brasil, é possível inferir que o qualificativo “afro” relacionado ao cinema, no seu nascimento, não teria praticamente nenhum dos elementos mencionados por Munanga (2019) para merecer usá-lo, seja em relação ao estilo; às cores e seu simbolismo; à temática; à iconografia ou às fontes de inspiração. Ao contrário, a representação da cultura africana e dos afro-americanos parece ter sido usada para reforçar ideologias supremacistas dos anglo-americanos em relação aos afro-americanos. Sobretudo porque os cineastas afro-americanos, do cinema mudo, não tinham condições financeiras de custear a produção e mais ainda a distribuição de seus filmes. Consequentemente, mesmo o cineasta negro mais prolífico de toda a era do cinema mudo, Oscar Micheaux, foi forçado a voltar às práticas dos primeiros cineastas, viajando pelo país com um número limitado de cópias de seus filmes [...]. Sem rede de distribuição eficaz, os cineastas afro-americanos fizeram relativamente poucas cópias de seus filmes, muitos filmes feitos por afro-americanos estão desaparecidos atualmente. Por exemplo, apenas três dos filmes mudos de Oscar Micheaux existem atualmente, e um deles está faltando material significativo4 (Waterman, 2019, p. 5, tradução nossa). 4 “Consequently, even the most prolific filmmaker of the entire silent era, Oscar Micheaux, was forced to revert to the practices of the very first filmmakers, traveling around the country with a limited number of copies of his films [...]. Without an effective distribution network, African American filmmakers made relatively few copies of their films, one major reason why so many African American made films are missing today. For instance, only three of Micheaux’s silent films presently exist, and one of them is missing significant materia”. 520 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage Waterman observa ainda que a produção de filmes por cineastas afroamericanos também precisava quase sempre passar pela censura de conselho controlado por brancos, que frequentemente excluíam cenas e modificavam as tramas. Razão esta pela qual alguns filmes, que temos acesso nos dias de hoje, incluindo de produtoras comandadas por afro-americanos, teriam acabado por reforçar estereótipos racistas. Segundo Waterman, este seria o caso da Ébano Companhia Cinematográfica (Ebony Film Corporation), que causou indignação na comunidade afro-americana devido a alguns filmes e pelo uso da logomarca de um macaco com blackface. Mas ainda que houvesse dificuldade financeira e a falta de controle sobre a distribuição de filmes, Waterman afirma que na comunidade negra “havia uma necessidade desesperada de filmes feitos por afro-americanos”5 (2019, p. 8, tradução nossa) e alguns desses filmes, do cinema mudo, foram responsáveis por construir uma nova cultura negra urbana. Pesquisas recentes sobre esta produção têm reiterado não apenas a existência da realização de filmes mudos negros como também a colocam como resistência ao racismo. Em 2017, Dino Everett, arquivista da Escola de Artes Cinematográficas da Universidade do Sul da Califórnia, examinando um lote de filmes, encontrou um rolo de nitrato do século XIX. No rolo, estava a película intitulada Something Good, Negro Kiss (Algo bom, Beijo Negro, USA, 29’’), de 1898, que seria a versão afroamericana (Figura 4) do filme The Kiss, produzido nos estúdios de Thomas A. Edison, em 1896. Em entrevistas veiculadas em 2018, a professora especialista em cinema afro-americano, Allyson Field, da Universidade de Chicago, declarou que este filme, dirigido por William Nicholas Selig, se tratava da representação cinematográfica mais antiga do amor negro, que rompe com os estereótipos racistas da época. “Não é um corretivo para todas as deturpações racializadas, mas nos mostra que isso não é a única coisa que estava acontecendo”6 (UChicago, 2018, tradução nossa). 5 “There was a desperate need for African American made films”. 6 “It’s not a corrective to all the racialized misrepresentation, but it shows us that that’s not the only thing that was going on”. 521 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage Figura 4 - Something Good, Negro Kiss (1898) é considerado a versão afro-americana de The Kiss (1896). Fonte: Still Something Good-Negro Kiss (1898). Logo, perante o constatável predomínio de um cinema que apagou a representação da cultura afro, de que haveria lacunas a se preencher ou histórias a se escrever quanto a um possível cinema afro-americano e afro-brasileiro, como não reconhecer que as políticas afirmativas precisam alcançar o campo do cinema e do audiovisual, em todas as suas fases (produção, distribuição e exibição, incluindo a pesquisa e a história acerca de cada uma destas esferas)?! Como não vê-lo também como um lugar das lutas antirracistas?! Afinal, como argumenta Munanga (2016, p. 39): “as mudanças sociais não se fazem com discursos, embora saibamos que a retórica e os discursos sejam importantes. As mudanças sociais se fazem com políticas, políticas públicas afirmativas, às vezes universalistas, às vezes específicas”. Portanto, ter políticas afirmativas no campo do cinema e do audiovisual seria atuar para superar longos anos de apagamentos e também ir ao encontro das Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008 que tornaram obrigatório o ensino da história e da cultura do negro, da África e dos povos indígenas no Brasil. Cinema: lugar de lutas antirracistas Desde as primeiras projeções e realizações cinematográficas dos estúdios 522 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage de Thomas A. Edison, mais de um século já se passou. Contudo, o debate sobre a importância da diversidade no cinema continua mais vivo do que nunca, demonstrando a importância do etnoletramento e de se tratar da Dimensão Pedagógica do Cinema Negro, abordagens que se fundamentam na “reflexão acerca da inquietude humana em relação às formas de representação da realidade em diferentes espaços e contextos” (Prudente; Périgo, 2020, p. 422) e que propõem irmos além da “filmografia que tentava fixar o negro em papéis de escravidão, por meio da empregada doméstica, da faxineira e dos bandidos” (Prudente; Périgo, 2020, p. 426). De Hollywood, ainda hoje, vêm vários exemplos dessa necessidade de se tratar de etnoletramento fundamentado na Dimensão Pedagógica do Cinema Negro. Um deles se dá após a divulgação de que a atriz e cantora Halle Bailey foi escolhida para interpretar a princesa Ariel no live-action de A Pequena Sereia (2023), quando a “Disney precisou administrar uma avalanche de comentários negativos” (Vieira, 2022). Por outro lado, a própria Halle Bailey se declarou emocionada com a reação de crianças negras ao vê-la nas telas (Figura 5). Uma das crianças no vídeo viral, na internet, exclamou maravilhada: “Ela é negra!”. Figura 5 - Halle Bailey se emociona com a recepção do filme A Pequena Sereia por crianças negras. 523 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage Fonte: @HalleBailey - Twitter (2022) Outro exemplo que demonstra a necessidade de se falar de etnoletramento, por meio do Cinema Negro, se constata nos dados da pesquisa sobre diversidade e representatividade no mundo do audiovisual, realizada pela Paramount Global, gigante do mercado de mídias dos Estados Unidos. O levantamento realizado em 15 países, incluindo o Brasil, divulgado pela CNN Brasil, em 2022, revelou que nove entre dez pessoas no mundo afirmaram que a “representatividade na televisão e nos filmes tem um impacto no mundo e influencia a percepção que temos de determinados grupos ou pessoas”(Cardoso; Negrão, 2022). A maioria dos entrevistados, 52%, disse se sentir mal representado nos filmes e séries. “Ou seja, por mais que os filmes e as séries estejam melhorando no quesito incluir pessoas diferentes nas telas, a representação de diferentes grupos não é feita de forma fidedigna” (Cardoso; Negrão, 2022). A pesquisa da Paramount Global revelou ainda que 18% das pessoas negras no mundo percebem que são retratadas como criminosas e 16% como perigosas. No Brasil, os índices são ainda maiores: “23% das pessoas negras sentem que são retratadas como criminosas e 24% como perigosas” (Cardoso; Negrão, 2022). Portanto, considerar a Dimensão Pedagógica do Cinema Negro, em contextos educacionais com foco no etnoletramento, pode nos dar a ver, a compreender ou a refletir sobre como os processos cinematográficos ou audiovisuais carregam em si não apenas imaginários, mas também signos, códigos representativos, representações socioculturais, afetos e, sobretudo, estruturas ideológicas das mais diversas ordens, como é o caso da “ideologia racista, considerada uma das fundadoras da sociedade brasileira” (Borges, 2018, p. 53) e também dos Estados Unidos, que têm sua história atravessada por leis segregacionistas após a abolição da escravatura. Ou proporcionar que mais e mais adultos, jovens, crianças e adolescentes se encantem e se identifiquem com as personagens e as histórias dos filmes, séries e telenovelas que assistimos todos os dias. Nas palavras de Prudente e Périgo (2020), que um adolescente afrodescendente, de natureza quilombola, consiga se perceber como o herói nas realizações do Cinema Negro, “identificando-se com os modelos discutidos que representam sua concepção racial, aproximando-se da realidade cidadã, concorrendo contra as assimetrias sociorraciais” (2020, p. 429). Nesse sentido, parece fundamental, por fim, tensionar o papel das escolas de Cinema, das faculdades de Artes, de Museologia, de Comunicação, e 524 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage os espaços de aprendizado de maneira geral, como propõe Munanga (2022), no sentido não apenas de reconhecer a importância do debate sobre as temáticas da diversidade e das diferenças, mas o quanto o mundo vem se complexificando há mais de um século: Tanto as antigas migrações combinadas com o tráfico humano e a colonização dos territórios invadidos quanto as novas migrações póscoloniais combinadas com os efeitos perversos da globalização econômica criam problemas que prejudicam a convivência pacífica entre os diversos e os diferentes. Entre esses problemas têm-se as práticas racistas, a xenofobia e todos os tipos de discriminações, notadamente religiosas, chamadas intolerâncias religiosas. As consequências de tudo isso engendram as desigualdades e se caracterizam como violação dos direitos humanos, especialmente o direito de ser ao mesmo tempo igual e diferente (Munanga, 2022, p. 117). Para Munanga, a questão fundamental, atualmente, é como combinar a igualdade com as diferenças e aponta uma direção: Emprestando os argumentos de Alain Tourraine (1997, p. 371), não vejo outro caminho a não ser a associação da democracia política com a diversidade cultural baseadas na liberdade do Sujeito. Finalmente, de que temos realmente medo? Das diferenças ou das semelhanças escondidas atrás das diferenças? O ego e o alter estão sempre juntos, numa relação dialógica (Munanga, 2022, p. 127). Perspectiva trazida por Munanga que mais uma vez nos coloca, no mínimo, diante da necessidade urgente de nos questionarmos sobre qual é o lugar hoje do cinema e do audiovisual, da afroarte ou da arte indígena no Brasil, país que segue sendo ardoroso consumidor das produções dos Estados Unidos que, de sua parte, ainda buscam se encontrar acerca de temas como diversidade e representatividade. Até quando a arte cinematográfica e audiovisual brasileira continuará a se embalar nas redes das lógicas da colonialidade? 525 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage Referências BAILEY, Halle. [People have been sending these reactions to me]. USA, 12 set. 2022. Twitter: @HalleBailey. Disponível: https://twitter.com/HalleBailey/ status/1569455744046747648. Acesso em: 18 ago. 2023. BORGES, Juliana. O que é encarceramento em massa? Belo Horizonte-MG: Letramento - Justificando, 2018. 144 p. CANUDO, Ricciotto. Manifiesto de las Siete Artes. In: ROMAGUERA I RAMIÓ, Joaquim; THEVENET, Homero Alsina (org.). Textos y Manifiestos del Cine: Estética, Escuelas, Movimientos, Disciplinas, Innovaciones. Madrid: Cátedra, 2007. (Signo e Imagem). p. 15-18. CARDOSO, Bárbara; NEGRÃO, Matheus. No Brasil, 23% dos negros se sentem representados como criminosos em filmes e séries. CNN Brasil POP Verso, São Paulo, 6 jun. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/no-brasil-23das-pessoas-negras-se-sentem-representadas-como-criminosas-em-filmes-e-seriesmostra-pesquisa/. Acesso em: 27 jul. 2022. EDISON: A Invenção dos Filmes. Curadoria de Steven Higgins e Charles Musser. New York: Bret Wood, 2005. Box 4 DVDs (860 min.), son., color. GOMES, Paulo Emílio Sales. Uma Situação Colonial? São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 544 p. MUNANGA, Kabengele. A Luta dos Negros e das Negras Continua: entrevista com Kabengele Munanga.[Entrevista cedida a] Felipe Bruno Martins Fernandes, Florita Cuhanga António Telo e Rosangela Cordaro. Cadernos de Gênero e Diversidade, Salvador, v. 2, n. 2, p. 38-44, jul.-dez. 2016. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/ index.php/cadgendiv/article/view/21391. Acesso em: 15 jul. 2023. MUNANGA, Kabengele. Arte afro-brasileira: o que é afinal?. Paralaxe, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 5–23, dez. 2019. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/paralaxe/ article/view/46601. Acesso em: 18 ago. 2023. MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 93 p. MUNANGA, Kabengele. O mundo e a diversidade: questões em debate. Estudos Avançados, São Paulo, v. 36, n. 105, p. 117–129, jun. 2022. Disponível em: https:// 526 racismo e antirracismo Ana Claudia C. Melo, Camen Lucia S. Silva e Ádria Sofia D. Lage www.revistas.usp.br/eav/article/view/198485/182615. Acesso em: 18 ago. 2023. PRUDENTE, Celso Luiz; PÉRIGO, Agnaldo. A dimensão pedagógica do Cinema Negro na percepção do etnoletramento em educação básica. Amazônica: Revista de Antropologia, Belém, v. 12, n. 1, p. 419-444, out. 2020. Disponível em: https:// periodicos.ufpa.br/index.php/amazonica/article/view/8535. Acesso em: 18 jun. 2023. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (comps.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia. Universidad Javeriana, 2007. p. 285-327. Disponível em: https://biblioteca. clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 15 jun. 2023. STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003. 400 p. STAM, Robert. Multiculturalismo Tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiros. São Paulo: Edusp, 2008. 528 p. UCHICAGO Cinema Expert Helps Identify 1898 Film as Earliest Depiction of AfricanAmerican Affection. Division of the humanities - The University of Chicago, Chicago, 28 dec. 2018. Disponível: https://humanities.uchicago.edu/articles/2018/12/ uchicago-cinema-expert-helps-identify-1898-film-earliest-depiction-africanamerican. Acesso: 15 jul. 202. VIEIRA, Carissa. Cinema Negro: um panorama histórico sobre a diversidade no audiovisual. Revista Claudia, São Paulo, 20 nov. 2022. Disponível: https://claudia. abril.com.br/cultura/cinema-negro-diversidade-no-audiovisual. Acesso em: 18 ago. 2023. WALLACE, Michelle. Entrevista nos extras. EDISON: A Invenção dos Filmes. Curadoria de Steven Higgins e Charles Musser. New York: Bret Wood, 2005. Box 4 DVDs (860 min.), son., color. WATERMAN, Richard W. The dark side of the farce: racism in early cinema, 1894–1915. Politics, Groups, and Identities, Portland, v. 9, n. 4, p. 784-806, out. 2019. Disponível: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/21565503.201 9.1674670. Acesso em: 18 ago. 2023. 527 Ficha Técnica Curador Celso Luiz Prudente Direção artística Celso Luiz Prudente Assistente de direção Ana Beatriz Prudente Ana Vitória Prudente Coordenação acadêmica Celso Luiz Prudente Cláudia Maria Ribeiro Rogério de Almeida Coordenação de Produção Dacirlene Célia Silva Produção executiva Gargântua Produções 528 Comissão Científica Mostra Internacional do Cinema Negro – MICINE COORDENADORES: Celso Luiz Prudente - Universidade Federal do Mato Grosso UFMT Hugo Cesar Bueno Nunes - Faculdade SESI de Educação FASESP Rogério de Almeida - Faculdade de Educação da USP FE/USP MEMBROS: Adérito Fernandes Marcos - Universidade de São José em Macau China Afrânio Mendes Catani - USP/UERJ/Pq-CNPQ Ailton Dias de Melo - Centro Universitário de Lavras Unilavras Alessandro Garcia Paulino - Universidade Federal de São Carlos UFSCAR Alexandre Filordi de Carvalho - Universidade Federal de São Paulo UNIFESP Ana Claudia da Cruz Melo - Universidade Federal do Pará UFPA Anderson Fabrício Andrade Brasil - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB Benedito Dielcio Moreira - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT Carlos Eduardo Paiva - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT Carmen Lucia Souza da Silva - Universidade Federal do Pará UFPA Cláudia Maria Ribeiro - Universidade Federal de Lavras UFLA/MG Dennis de Oliveira - Universidade de São Paulo USP Douglas Manoel Antonio de Abreu Pestana dos Santos - Universidade de São Paulo USP 529 comissão científica Douglas Martins de Souza - Pontifícia Universidade Católica PUC/SP Edileuza Penha de Souza - Universidade de Brasília UnB Egidia Marques Souto - Universidade de Paris Sorbonne Elizabete Franco Cruz - Escola de Artes Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo EACH/USP Elni Elisa Willms - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT Emerson Ferreira Rocha - Universidade de Brasília UNB Eunice Aparecida de Jesus Prudente - Universidade de São Paulo USP Fábio Santos de Andrade - Universidade Federal de Rondônia UNIR Flávio Ribeiro de Oliveira - Instituto de Estudos da Linguagem UNICAMP Grace Campos Costa - Universidade Federal de Uberlândia UFU Humberto Thomé-Ortiz - Universidad Autónoma del Estado de México, Toluca, México João Alegria Pontifícia - Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC Rio João Clemente de Souza Neto - Universidade Presbiteriana Mackenzie Júlio Taimira Chibemo - Universidade Alberto Chipande Beira Moçambique Kabengele Munanga - Universidade de São Paulo USP Karla Isabel de Souza - Faculdade SESI de Educação FASESP Lays da Cruz Capelozi - Universidade Federal de Uberlândia UFU Letícia Xavier de Lemos - Capanema Universidade Federal de Mato Grosso UFMT Luiz Felipe de Alencastro - Fundação Getúlio Vargas FGV e Universidade de Paris Sorbonne Luís Jorge Manuel António Ferrão - Universidade Pedagógica de Maputo Moçambique Luiz Sales do Nascimento - Pontifícia Universidade Católica de Santos Marcos José Zablonsky - Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC/PR Marcos Moreira - Universidade Federal de Brasília UNB Maria Francisca Morais de Lima - Pró-reitora do Instituto Federal de Educação do Amazonas – IFAM Mariana Conde Rhormens Lopes - Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Maristela Carneiro - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT Michelle Júlia de Sousa - Universidade de São Paulo/Faculdade de Educação FEUSP Noel dos Santos Carvalho - Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 530 comissão científica Paulo Morais-Alexandre - Instituto Politécnico de Lisboa, Portugal Paulo Ronqui - Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Reginaldo Santos Pereira - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB Ricardo Alexino Ferreira - Universidade de São Paulo USP Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB Roberlaine Ribeiro Jorge - Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA Roberto Silva - Universidade de São Paulo USP Robson Pereira da Silva - Universidade Federal de Uberlândia UFU Rogério Garcia Fernandez - Universidad Complutense de Madrid – Espanha Rosenilton Silva de Oliveira - Universidade de São Paulo USP Rubia Helena Naspolini Coelho Yatsugafu - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT Sara Moraes - Universidade Federal de Brasília UNB Sérgio Pereira dos Santos - Universidade Federal de Mato Grosso UFMT 531 Ficha Técnica SESI SESI – SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA DEPARTAMENTO REGIONAL DE SÃO PAULO PRESIDENTE Josué Christiano Gomes da Silva CONSELHEIROS André Luiz Pompéia Sturm Dan Ioschpe Elias Miguel Haddad Luiz Carlos Gomes de Moraes Antero José Pereira Narciso Moreira Preto Sylvio Alves de Barros Filho VandermirFrancesconi Júnior Massimo Andrea Giavina-Bianchi Irineu Govêa Marco Antonio Melchior Alice Grant Marzano Marco Antonio Scarasati Vinholi Sérgio Gusmão Suchodolski Daniel Bispo Calazans 532 ficha técnica sesi SUPERINTENDENTE DO SESI-SP Alexandre Ribeiro Meyer Pflug GERENTE EXECUTIVA DE CULTURA Débora Viana SUPERVISOR TÉCNICO DE CULTURA Luis Davi Gambale SUPERVISOR DE GESTÃO DE PROJETOS CULTURAIS Jonatas Willian de Oliveira Sousa NÚCLEO DE CONTRATAÇÕES ARTÍSTICAS ANALISTAS DE SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS Eduardo Viegas Cerigatto Ione Augusta Barros Gomes Jonatã Ezequiel da Silva EQUIPE DE ARTES VISUAIS E AUDIOVISUAL ANALISTAS DE ATIVIDADES CULTURAIS Elder Baungartner Eliana Garcia Larissa Lanza CENTRO CULTURAL FIESP SUPERVISOR TÉCNICO Marcio Madi MEDIADORES CULTURAIS Alcides Moraes Neto 533 ficha técnica sesi Maria Fernanda Guerra Rodrigo Domingos de Andrade ORIENTADORA DE ARTES CÊNICAS Priscila Aparecida Gabriela Borges ORIENTADORES DE PÚBLICO Éderly Cármen C. Ribeiro Rocha Herbert de Souza Laurentino Matheus Cardoso Nogueira MONITORES DE ARTE EDUCAÇÃO Alessandra Rossi Diana Proença Modena Ítalo Ângelo Pereira Galiza Joyce Neves Tainá Alves Custodio Thalita Marangon Bião Vinicius Araujo Buava ENCARREGADO MAQUINISTA Nilson dos Santos MAQUINISTAS Alessandro dos Santos Peixoto Menes Santos Machado ILUMINADORES André Luiz Porto Salvador Dara Thayna de Lima G. Duarte Rubens Marcel G. Torres Masson Rutílio Gomes Pauferro 534 ficha técnica sesi SONOPLASTAS Charles Alves dos Santos Roberto Aparecido Coelho Roselino Henrique Silva CONTRARREGRAS Carlos Leandro de Carvalho Braga Evandro Pedro da Silva Júlio Silva Neto ESTAGIÁRIAS Bianca Moriel Rodrigues Maria Fernanda Minuci Motta Yasmin de Souza Araújo NÚCLEO DE MEMÓRIA CULTURAL ANALISTA DE ATIVIDADES CULTURAIS Josilma Gonçalves Amato ESTAGIÁRIAS Nathaly Fernandes Souza Thais dos Anjos Bernardo EQUIPE DE COMUNICAÇÃO DIRETORA EXECUTIVA DE MARKETING E COMUNICAÇÃO CORPORATIVA Ana Claudia Fonseca Baruch GERENTE DE MARKETING E COMUNICAÇÃO CORPORATIVA Leticia R. C. Martins Acquati 535 ficha técnica sesi DIREÇÃO DE CRIAÇÃO Bruno Bertani GERENTE DE PLANEJAMENTO DIGITAL Rafael Queirós GERENTE DE IMPRENSA Rose Matuck ASSESSORA DE COMUNICAÇÃO Mariana Soares de Andrade Lima ESTAGIÁRIO Klelvien Cabilo Arcenio 536 Realização: Apoio: