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Um marco miliário de Caracalla, em Vila Nova de Gaia, no contexto do noroeste peninsular Joana Leite*, Alexandre Beites**, Armando Coelho*** Palavras-chave Marco Miliário; Imperador Marco Aurélio Antonino (Caracalla); viação Romana; reutilização; propaganda política; uniicação do império. Keywords Roman Milestone, Emperor Marcus Aurelius Antoninus (Caracalla); roman roads; political propaganda; Empire uniication Resumo Relativamente escassos e dispersos a sul do Rio Douro, os Marcos Miliários continuam a revelar-se como um precioso manancial informativo na sua dupla vertente de documento e monumento, revelando estratégias de mobilidade e intencionalidades de visibilidade política. A descoberta de um marco miliário em Vila Nova de Gaia, dedicado ao Imperador Caracalla, volta a abrir a discussão cientíica sobre a existência de uma via secundária que percorresse o litoral, paralela à via XVI do Itinerário de Antonino. Associado ao prestígio da dinastia antonina e ao culto imperial, este objeto arqueológico dá ainda pistas relevantes sobre a reutilização do seu suporte pétreo em períodos históricos posteriores e engrossa a percentagem de marcos miliários em que o seu sentido foi reinventado. Abstract he few Roman milestones, located in the south side of the River Douro, continue to be a precious source of information due to its duplicity of document and monument; they reveal mobility strategy and pretend political visibility. he inding of a Roman milestone in Vila Nova de Gaia, dedicated to the Emperor Caracalla, reopens the scientiic discussion regarding the existence of a secondary roman road on the coast, parallel to the Road XVI of the Antonine Intinerary. Associated to the prestigious Antonine dynasty and the imperial cult, this archaeological element gives important clues regarding the reuse of the stone marker in later historical periods and increases the percentage of milestones whose function has been reinvented. * Arqueóloga (joana.leite.80@gmail.com); ** Arqueólogo (alexandrebeites@gmail.com); *** Professor catedrático. Presidente do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto; Membro do Cento de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) (acfsilva@sapo.pt). | 49 | Oppidum | ano 7 | número 6 | 2012-2013 1. Circunstâncias da descoberta do marco miliário No dia 2 de outubro de 2000 foi descoberto, pelos autores deste artigo Joana Leite e Alexandre Beites, no concelho de Vila Nova de Gaia, freguesia de Valadares, lugar de Tartomil, em concreto na foz do rio Valverde1 - aluente do rio Febros - com as coordenadas 41º 05’ 25.70’’ N / 8º 39’ 23.35’’ O e à altitude de 6 metros do nível médio das águas do mar, um fragmento de marco miliário inédito, por ocasião de uma passagem fortuita no local. Apesar de estar claramente deslocado do seu contexto original - o que não é de estranhar face às frequentes reutilizações de que os marcos miliários são alvo - jazia encostado ao pilar central de um pequeno pontão2, que atravessa esse curso de água a jusante, em contacto direto com as águas desse rio e sustentado apenas pela areia da praia de Valadares, encontrando-se orientado a poente com o seu campo epigráico no correto posicionamento de leitura. A remoção do achado do seu local de descoberta aigurou-se premente por duas questões essenciais: por um lado, pela iminente possibilidade de perda do vestígio arqueológico em causa uma vez que todos os ribeiros com estas características são alvo de trabalhos3 de manutenção frequentes que incluem, muitas das vezes, o revolvimento dos blocos pré existentes e novas deposições de blocos pétreos para que a força das águas não escave fossos que inviabilize a passagem pedonal segura do areal e, por outro lado, as águas do próprio rio (detentor de um caudal bastante irregular) funcionariam como um agente abrasivo do suporte epigráico, já por si em regular/mau estado de conservação. Nesse sentido e mediante conhecimento/ consentimento do então, IPA (Instituto Português de Arqueologia), IPPAR (Instituto Português do Património Arquitetónico), Pelouro da Cultura de Vila Nova de Gaia e Presidente da Junta de Freguesia o marco miliário foi provisoriamente mantido em reserva cientíica dos seus descobridores e após o seu estudo preliminar Figura 1. Enquadramento espacial do local da descoberta do marco miliário (edição gráfica de Manuel Nunes). 1 Embora os residentes o conheçam como ribeiro de Valadares/Valadarinhos, a designação “Valverde” é a que consta na Carta Militar de Portugal nº 133. 2 Foi construído em 1972 com orientação E-O no com o objetivo de substituir uma anterior ponte de madeira na avenida litoral Infante Sagres. 3 Poucos meses depois da descoberta do marco miliário (início de 2001) a ribeira de Valverde sofreu um intenso trabalho de requaliicação que a alterou completamente - fruto da política autárquica de recuperação e reordenamento da orla marítima de Gaia que incluiu, entre outras ações, a limpeza e renaturalização das ribeiras. Atualmente (2012), a mesma ribeira, na sua foz, e particularmente no pontão onde foi encontrado o fragmento de marco miliário, está a sofrer a 2ª fase de requaliicação, pela empresa Águas de Gaia. | 50 | Joana Leite, Alexandre Beites e Armando Coelho. Um marco miliário de Caracalla, descoberto em Vila Nova de Gaia…. p. 49-60 foi integrado na coleção arqueológica da Casa Municipal de Cultura de Vila Nova de Gaia Solar Condes de Resende, a 16 de maio de 2001. 2. Características morfológicas e epigráicas do marco miliário 2.1. Morfologia Este monumento epigráico reduz-se a cerca de metade de um cilindro em granito, de grão médio, com aproximadamente 100kg e 28cm x 57cm (respetivamente altura e diâmetro), formando um semicírculo com 86cm de perímetro. Trata-se portanto de um marco miliário já muito fustigado, diminuído não só nas dimensões da sua altura como nas do seu perímetro que é reduzido a metade pelo cuidado corte transversal que lhe é feito à posteriori (provavelmente ainda durante a Idade Média) fruto da reutilização entretanto equacionada e que atualmente se desconhece. Marcas dessa reutilização são ainda os entalhes que apresenta no topo e na base para eventual encaixe. Note-se que, no momento em que se terá partido intencionalmente o marco, Figura 2. Pormenor do local da descoberta do marco miliário (edição gráfica de Manuel Nunes e fotografia de Joana Leite). todo o trabalho terá sido empreendido com o máximo cuidado e com a preocupação de deixar intactas as letras que revelam o prestígio do objeto arqueológico, como no ponto 4.2. se explanará. Saliente-se que em Espanha, na localidade de Aciveiro - San Xoán de Río foi encontrado um marco dedicado ao imperador Marco Aurélio Caro cujas dimensões e características morfológicas são em tudo idênticas às do marco em análise, neste caso pela reutilização como contrapeso de lagar (Colmenero,2004:574). Figura 3. Fragmento do marco miliário de Caracalla com campo epigráfico em destaque (fotografia de Paulo Lemos). | 51 | Oppidum | ano 7 | número 6 | 2012-2013 No entanto, os marcos miliários completos dedicados ao Imperador Caracalla possuem uma média de 2m de altura e 62cm de diâmetro. 15 linhas) com a seguinte transcrição: [DIV]I • ANTONINI • PI[I PRONEPOTI] / [DIVI H] ADRIANI• ABN[E]P[OTI], ou seja, bisneto do Divino Antonino Pio , trineto do Divino Adriano. 2.2. Campo epigráico leitura e interpretação Trata-se portanto de um fragmento de um monumento honoríico que, mesmo longe de estar completo, nos remete para o imperador Marcus Aurelius Antoninus Pius Felix Aug(ustus) - Caracalla - cujo reinado se prolongou de 211 a 217 d.C. Esta constatação prende-se com a típica enumeração da iliação do imperador que terá mandado fazer a via ou a sua reparação, apresentando-se os marcos miliários como uma autêntica árvore genológica simbólica. No caso em concreto, pela referência de parentesco que o objeto arqueológico ostenta, e dado que o Imperador Adriano não teve trinetos, considerase a sucessão de imperadores linear e à terceira geração surge então Caracalla - imperador vigente. As condições ideais de incidência da luz solar no momento do achado permitiram de imediato o reconhecimento de algumas letras gravadas no suporte pétreo em questão, no entanto, só um trabalho aturado de observação, que recorreu a várias técnicas, sobretudo baseadas nos jogos de luz, e em último recurso à utilização do bicromático4, possibilitou a leitura integral da mesma. Note-se que a área epigrafada sofreu um desgaste irregular, sendo que se estivermos de frente para ela e a dividirmos em três partes longitudinais iguais notamos um bom estado de conservação na área à esquerda, um mau estado de conservação na zona central, que se encontra bastante erodida, e um regular/fraco estado de conservação na superfície do suporte mais à direita. Assim, o campo epigráico disponível revela a inscrição ordenada em duas linhas (que seriam a terceira e quarta linha do campo epigráico original, que na totalidade ostentaria entre 10 a Tal como nos demais marcos miliários conhecidos do imperador Caracalla para o território nacional e mesmo para o noroeste peninsular, que perfazem um total de 38 (Fig. 7), os carateres apresentam uma modelação quase uniforme, com variações entre os 8/9cm de altura e os espaços interlineares entre os 1,5cm e os 2,5cm (podendo chegar aos 4cm em outros Figura 4. Decalque do campo epigráfico reminiscente do marco miliário (edição gráfica de Paulo Lemos e decalque de Joana Leite). 4 Trata-se de uma técnica que consiste na aplicação de cal na totalidade do campo epigráico, seguida de óxido de ferro, de forma a que as reentrâncias dos carateres apareçam destacadas a branco, por contraste com toda a restante superfície da pedra que ica a negro, efeito que hoje se consegue por meios digitais. Cumpre-nos agradecer ao Prof. Doutor António Baptista Lopes a sua colaboração neste processo. | 52 | Joana Leite, Alexandre Beites e Armando Coelho. Um marco miliário de Caracalla, descoberto em Vila Nova de Gaia…. p. 49-60 casos), sendo que as palavras aparecem sempre (neste caso) e quase sempre (nos restantes marcos analisados) separadas por pontos distinguentes. cruzeiro ou de sarcófagos e em última instância através da gravação de cruzes na sua superfície, notadas em 3 dos 38 casos. Como curiosidades apontam-se a ausência propositada do E em ABN(E)P e a falta do H em (H)Adriano. No primeiro caso, trata-se de uma estratégia de gestão de superfície no marco, que economizaria espaço e harmonizaria o campo epigráico, uma vez que a abreviatura de iliação aqui gravada, apesar de menos utilizada nos marcos miliários (só se conhece mais uma marco deste imperador que recorre a esta fórmula de escrita), não constitui erro. O mesmo já não podemos dizer para a ausência do H em Adriani, que terá certamente sido um lapso do gravador, embora esse erro se encontre replicado em outros 5 marcos dedicados a Caracalla onde também foi suprimida essa letra. Não eram invulgares as incorreções nas gravações dos marcos miliários, como aliás o refere por inúmeras vezes (Colmenero 2004: 554, 571, 620 e 727). De salientar que no verso do campo epigráico - parte aplanada que transforma o marco miliário num semicilindro - se encontra uma cruz gravada que remontará possivelmente à Idade Média, atestando a reutilização do mesmo e mudança de sentidos. A este propósito note-se que da totalidade dos marcos conhecidos do imperador Caracalla para o território português e noroeste da Península Ibérica sensivelmente 37% sofreu uma profunda alteração do seu propósito original, tendo sido reaproveitados para as mais variadas funcionalidades. Paralelamente às reutilizações que serviram as necessidades quotidianas mais usuais, como bebedouro, pia para gado, suporte para poste em madeira, soleira de porta e alicerce de casa, os marcos miliários do Caracalla, assim como tantos outros, assistiram ainda a intentos de índole simbólica como o de cristianização desses próprios monumentos, trazendo-os para a esfera do sagrado, como nos casos em que serviram de suporte de alpendre de Igreja e Casa Paroquial, de suporte ao altar-mor de uma igreja, de base de Figura 5. Pormenor da superfície do marco onde é visível o intento posterior de reutilização (fotografia de Paulo Lemos). Figura 6. Decalque da cruz, de braços iguais, presente no marco miliário e representação do seu corte longitudinal (edição gráfica de Paulo Lemos e decalque de Joana Leite). 3. Contexto original de proveniência A par da descontextualização face ao seu local de origem, a inexistência da base do marco, onde estariam gravadas as milhas respeitantes à distância entre a civitates ou e o local da colocação de tal referência material, diicultam uma perspetivação mais aproximada do seu contexto original de proveniência. | 53 | Oppidum | ano 7 | número 6 | 2012-2013 Procurando ultrapassar esse constrangimento, e no intuito de averiguar a proveniência do marco, toda a zona envolvente foi percorrida com base numa prospeção sistemática, mas nenhum vestígio que se associasse a este foi encontrado. Presume-se que esta pedra tenha sido aí colocada não muito tempo antes da sua descoberta. Por um lado a sua associação a este espaço terá de ser posterior a 1972 (data de construção do pontão onde estaria encostada) e ainda assim será pouco provável que aí permanecesse há já 30 anos, se considerarmos as constantes alterações do areal, quer pelo avanço do mar nessa zona de praia, quer pelo próprio leito que a ribeira (de caudal irregular) vai escavando, quer pelas frequentes deposições de pedras nesse local (que o próprio presidente da Junta de Freguesia de Valadares, à data da descoberta, referiu serem frequentes para estabilizarem o leito da ribeira). A descontextualização dos objetos arqueológicos passíveis de serem facilmente removidos do seu local de origem é aliás uma situação recorrente em contextos urbanos. São poucos os marcos miliários encontrados in situ, mas ainda assim se constata que não se afastam muito do seu local de origem. A causa mais iminente desta descontextualização são as reutilizações posteriores, nomeadamente as referidas no ponto anterior. No caso do marco encontrado em Vila Nova de Gaia, tentar seguir o seu rasto, desde o local de origem ao sítio onde foi descoberto, implica determo-nos em primeira instância nas marcas mais recentes que exibe, relativas à sua reutilização. Desse modo há que ter presente a cruz simples de braços iguais aí insculturada. A gravação de cruzes em todo o tipo de pedras durante a Idade Média/Contemporânea é sobejamente conhecida, e o seu intuito, paralelo ao da sacralização de espaços ou reconversão de ícones considerados pagãos, será o de dividir espaços, funcionando como termos territoriais, que neste caso cremos ter sido o seu propósito, mais concretamente o da divisão entre a freguesia de Valadares e Madalena. A esse respeito, reira| 54 | se um documento de 1284 que ao descrever os limites da Madalena alude o seguinte a dado momento “E porque nom poderom seer certos de duas mamoas que y stam quaes delas era a mamoa que chamam dos Bezerros de sseu prazimento dambos e per aluidro domees boos anciãos fezerom poner cruzes em huma pedra que esta antre Pedra Longa e o dicto crasto e dês i per outras pedras que estam nas ditas deuisões dos termhos ata huma pedra que esta perto do valo da vinha de Joam Martiz de Vila Chaa.” (cit. por Meirelles e Vale, 1997:27,28). Já a aproximação ao seu contexto original, em pleno período romano, leva-nos a apontar como local muito provável o Castro de Valadares, a 1,5 km em linha reta do local da descoberta. A própria etimologia do topónimo Valadares radica da existência de um espaço privilegiado de defesa, já que provem de VALADAR / VALLADO (qualquer obstáculo de entrave a uma invasão), neste caso, o próprio castro (Guedes, 2000: 23-24). Independentemente da sua relevância, poucos elementos de estudo existem para este castro. Apenas se pode dizer que foi sondado em 1937 pelo Prof. Dr. Carlos Teixeira que aí recolheu algum espólio e o depositou no Museu de Antropologia da cidade do Porto e que nos dias de hoje já pouco dele restará por ter servido como pedreira e como terreno de construção a algumas habitações, não escapando à expansão da malha urbana. Em associação cronológica e espacial a este espaço reira-se a vizinha Necrópole do Sameiro e Necrópole do Alto da Vela, em Gulpilhares. Ainda que vestígios da viação romana em Gaia sejam praticamente inexistentes Armando de Matos, (1937:660-679) defende que seria precisamente pelo castro de Valadares que passaria a estrada romana litoral, servindo núcleos de povoamento rural. Assim, e segundo o que acredita ser o traçado da via, ela “…entraria no concelho de Grijó e Guetim, seguindo por entre S. Félix e Sermonde, a que pertence o lugar de Brantães; rasgaria as terras de Serzedo e de Perosinho; servindo nessa altura o castro de Monte Murado, subiria por Canelas e Gulpilhares, a procurar o castro de Joana Leite, Alexandre Beites e Armando Coelho. Um marco miliário de Caracalla, descoberto em Vila Nova de Gaia…. p. 49-60 Figura 7. Mapa parcial do concelho de Vila Nova de Gaia com os principais eixos viários atuais em destaque e com alusão hipotética à proveniência original do marco (castro de Valadares e via romana secundária/litoral) (edição gráfica de Manuel Nunes). Valadares e daí, aproximando-se do da Madalena, em direitura a Calem.” e acrescenta ainda “É nesta corda que deverão procurar-se os miliários e os vestígios do pavimento da famigerada via.”. Associar este marco à via secundária que partindo de Cale seguiria pelo litoral, acompanhando a linha de costa para servir os castros (nomeadamente o de Valadares) e as comunidades piscatórias espalhadas ao longo da frente marítima até entroncar na via XVI do Itinerário de Antonino Braga-Lisboa, faz todo o sentido. Aliás, Colmenero (1989:390) avança com a hipótese de que a construção das vias secundárias ou ramais de ligação entre as estradas oiciais se iniciou no reinado de Caracalla, no princípio do século III, talvez com o intuito de facilitar a cobrança da annona5. Para além de que é de consenso generalizado considerar que a partir deste imperador se pretende unir os núcleos mais romanizados. A corroborar a existência desta via secundária não se pode deixar de referir a maior e mais atualizada base de dados de viação romana em 5 Portugal, criada em 2004 por Pedro Soutinho (htp://viasromanas.planetaclix.pt/vrhist.html) que vai mais longe remetendo para origens préromanas o troço da estrada romana que seguia próximo do Castro da Madalena e da Necrópole do Sameiro. De acordo com esta fonte a via continuaria depois junto da necrópole do Alto da Vela em Gulpilhares, inletindo mais a sul para o lugar de Brito, em S. Félix da Marinha. A passagem da via neste sítio é reforçada pela referência à «estrada mourisca» na doação que Trutesindo Mendes fez das suas terras em Brantães e S. Félix da Marinha, ao Mosteiro de Grijó, indicando que estas icavam acima e abaixo da estrada mourisca junto do ribeiro de Serzedo. A estrada seguiria depois para Anta, passava a nascente de Espinho e seguia para Paramos, próximo do Castro de Ovil, em direção a Ovar e Estarreja até ao rio Vouga. Desta forma, a associação do marco miliário a esta via secundária e em concreto à área que faria a ligação com o castro de Valadares parece-nos repleta de sentido, ainda mais se considerarmos que o castro se localiza em plena área divisória de freguesias (Madalena e Valadares)6 e que a Imposto que cobrava a tributação de géneros às populações com o objetivo de abastecer a logística necessária das legiões. 6 Paralelamente a alguma confusão bibliográica, que se refere ao mesmo castro como sendo ora o castro de Valadares, ora o Castro da Madalena, ainda hoje existe alguma indeinição na atribuição da freguesia a este espaço arqueológico, que, na realidade, se espraia em ambas, embora em maior percentagem na de Valadares. | 55 | Oppidum | ano 7 | número 6 | 2012-2013 sua reutilização posterior, que cuidadosamente o lapidou e afeiçoou, o transformou, muito provavelmente, numa das pedras que terão servido de divisão/termo das freguesias durante a Idade Média. 4. O imperador Caracalla e apresentando uma boa deinição de carateres que são profundamente gravados em bisel, sendo que a referência ao imperador surge sempre em dativo e não em nominativo (sujeito indireto) (Colmenero,1987), o que se aplica na íntegra para o marco miliário em questão, tendo em consideração o elevado grau de desgaste que apresenta. Será também fundamental compreender o marco miliário em estudo na estratégia viária do Imperador para o território nacional e noroeste peninsular, quer em termos de dispersão de marcos, quer no que se refere a uma balização cronológica do seu investimento e mesmo das características epigráicas transversais destes monumentos. Cronologicamente, os marcos remetem-nos na totalidade para os anos 213 e 214, em que Caracalla é investido de poder tribunício pela XVII e XVIII vez, respetivamente, o que signiica que será na reta inal do seu reinado que terá uma política viária mais intensa e se dá uma eclosão de miliários por parte deste imperador (Colmenero, 2004). Sendo igualmente nesses anos que, muito possivelmente, se poderá também enquadrar o marco em análise. Nesse sentido, os marcos miliários ordenados por Caracalla contam-se entre os de melhor execução, aproveitando bem o campo epigráico A nível espacial, o seu investimento viário é notavelmente maior no noroeste peninsular, aliás, Caracalla apresenta-se com o conjunto 4.1. Contexto viário Peninsular Figura 8. Mapa de dispersão dos marcos miliários de Caracalla no território nacional e noroeste peninsular (edição gráfica de Manuel Nunes). | 56 | Joana Leite, Alexandre Beites e Armando Coelho. Um marco miliário de Caracalla, descoberto em Vila Nova de Gaia…. p. 49-60 mais expressivo de miliários logo a seguir ao Imperador Adriano. A área do conventus bracaraugustanus7 e em concreto a via XVIII do Itinerário de Antonino (que ligava Braga a Astorga pelo Gerês8) são as maiores apostas do imperador, onde também executa obras de reparação pela associação de dois miliários a uma coluna na Portela do Homem que apresenta a gravação: “Vias et pontes tempora vetustate colapsas restituerunt” que refere expressamente um novo arranjo na via (Almeida,1968). Aliás, é com Caracalla que se inicia o melhoramento de algumas calçadas da rede não oicial de caminhos (Colmenero, 2004:780), de que muito provavelmente fará parte o marco descoberto em Gaia. Mas a sua presença é igualmente notada na via XVII (que ligava Braga a Astorga por Chaves), na via XIX (Braga-Astorga, via Ponte de Lima), na via XVI (Braga-Lisboa), onde terá empreendido arranjos de melhoramento, paralelamente a ações de propaganda e na via XII (Lisboa-Mérida, via Alcácer do Sal/Évora). Terá ainda procedido a reformas viárias no troço Lisboa - Conimbriga, visíveis pelo marco de Soure (Colmenero:1987). 4.2. Propósito político da implantação dos marcos miliários Compreender a ligação entre o reinado de Caracalla e este artefacto é conhecer a estratégia política deste governante para todo o Império. Quer isto dizer que na epígrafe em análise está consubstanciado o legado político de Marcus Aurelius Antoninus (ou como seria mais conhecido - Caracalla) através da forte legitimação de uma nova dinastia, graças ao investimento em propaganda imperial, num período economicamente conturbado. Caracalla herda do seu pai, Septimio Severo, uma estratégia inteligente de inclusão para a nova dinastia Severiana - uma ligação genealógica forjada com a anterior dinastia Antonina que, ao ser rica em iguras ilustres, granjeava o seu prestígio social. Assim, em 195 d. C., Septimio proclama-se ilho de Marcus Aurelius e nomeia o seu primogénito como Marcus Aurelius Antoninus, atribuindo-lhe a intitulatura de Caeser. Na epígrafe em análise, o genitivo abnepos, relativo a Adriani marca precisamente essa sucessão genealógica, que associa o Imperador Adriano a Marcus Aurelius Antoninus, que seria seu trineto. Este foi o primeiro passo para que toda a estratégia política de Caracalla tivesse como denominador comum a reputação dos antoninos. Essa realidade manifestou-se nomeadamente nas nomenclaturas atribuídas à nova Constituição Antoniniana (212 d. C.) - que outorgou o direito de cidadania a todos os homens livres do mundo romano; no grande investimento público da construção das termas - Antoninas - e na criação de uma nova moeda - Antoninianus (215 d. C.). O culto ao Imperador, enquanto forma de legitimação política, em especial no noroeste, não é uma situação nova, remonta ao tempo de Augusto e foi ciclicamente reutilizada pelos vários poderes que o sucederam. Os marcos miliários foram precisamente um dos instrumentos por excelência para publicitar a obra feita e na governação de Caracalla reconhece-se para o noroeste peninsular um signiicativo investimento na rede viária, como foi explorado no ponto anterior. Ora, Caracalla relança obras públicas e com isso a atividade económica para o noroeste, mas sobretudo faz propaganda ao poder imperial, precisamente no suporte mais público para os 7 Sensivelmente metade dos marcos miliários conhecidos para este imperador contavam as milhas para a capita viarum Bracara (COLMENERO, 2004:780). 8 A via romana que saía de Braga para Astorga, passando pelo Geres, é a mais recente e a mais direta das quatro estradas que, segundo Antonino, de Braga para lá se dirigiam. | 57 | Oppidum | ano 7 | número 6 | 2012-2013 que usam a rede viária: os marcos miliários. É discutível a efetiva amplitude desta agenda em termos de obras, mas é indiscutível o aproveitamento propagandístico que daí adveio. Mas qual seria a razão para esta atenção especial no noroeste peninsular? É de facto inegável esse enfoque por parte de Caracalla no noroeste, sendo ele, de resto, responsável pela tentativa em reconhecer a especiicidade cultural da Callaecia no contexto do noroeste, encarando-a como uma província - a Hispania Nova Citerior Antoniniana / legatus Augusti propraetore Provinciae Hispaniae Novae Citerioris Antoninianae (CIL II 2661 / 5680). Medida que só com Diocleciano, em 284-288 d. C. seria formalizada, perdendo Asturica Augusta primazia em relação a Bracara Augusta. Um destaque tão incisivo de propaganda neste local tem uma explicação - moldar mentalidades. Pretendia-se erguer o valor de Caracalla entre a sociedade, enquanto imperador e divindade. De facto, este marco miliário surge numa tendência política de reforço da autoridade imperial no noroeste, face à falta de legitimidade política da dinastia dos Severos. Robert Etienne (1974:191) reforça a ideia que o culto imperial funcionaria como a apropriação de Roma, do valor do culto do chefe, profundamente impregnado na sociedade indígena e que este fenómeno se deve em grande parte ao êxito do processo de “romanização” nesta província. Vasco Mantas (1996:129) refere-se à população indígena hispânica, já no séc. I d. C., como: “Populações muito aptas para o serviço militar, e que (…) contribuíram largamente para o recrutamento das legiões e das tropas auxiliares, e vocacionadas para o culto do chefe, circunstância extremamente importante e que explica a amplitude da implantação do culto imperial no solo hispânico, indiscutivelmente terra de Caudilhos.” Estes recursos humanos, tradicionalmente reconhecidos como capazes e iéis para a guerra, seriam a força que | 58 | Roma ambicionava para a concretização de conquistas militares e desta forma alavancar de novo a economia urbana que vinha a deinhar. 5. Conclusão A descoberta, em Vila Nova de Gaia, de parte de um marco miliário dedicado ao Imperador Caracalla veio levantar várias questões e abrir novas pistas. Por um lado, o facto desta evidência material se localizar a sul do Douro, já por si, reveste o achado de alguma excecionalidade. Entre o Porto e Coimbra restam apenas 4 miliários, o miliário de Úl, hoje deslocado para o centro de Oliveira de Azeméis, o miliário de Adães, no mesmo concelho mas entretanto desaparecido, o miliário da Vimieira, colocado atualmente no átrio da Câmara Municipal da Mealhada, e o miliário do Arco da Traição, em Coimbra, que hoje está no Museu Machado de Castro. Seria este um miliário da VIA XVI BragaLisboa? De facto, perceber o entrançado da rede viária romana é assunto complexo, sobretudo no que diz respeito à localização do traçado das vias secundárias, mas a sua investigação, que encontra nos miliários parte signiicativa da informação disponível, é de importância extrema na medida em que funcionaram como uma grande bacia hidrográica, drenando os recursos das regiões atravessadas, fazendo circular mercadorias e ideias e ixando populações, para além de funcionarem como poderosos esteios da organização da paisagem (Mantas,1996). Sugerimos que, neste caso, e apesar da sua descontextualização face ao seu local de proveniência, pudesse estar colocado nas imediações do castro de Valadares e que, ainda nesse mesmo espaço, tenha sido reutilizado como marco medieval de divisão territorial, pela cruz inscrita, e porque toda a área correspondente ao castro marca, pelo menos já desde o século XIII, a divisão entre as terras de Valadares e Madalena. Dessa forma faria parte de uma via secundária Joana Leite, Alexandre Beites e Armando Coelho. Um marco miliário de Caracalla, descoberto em Vila Nova de Gaia…. p. 49-60 que seguia uma rota mais litoral relativamente à via XVI, facto que aliás não será de estranhar se considerarmos que Caracalla investiu na rede não oicial de caminhos. Apesar do nome de Caracalla estar ligado sobretudo à reparação de diversas vias, o seu investimento é consideravelmente maior no noroeste peninsular (sobretudo no conventus bracaraugustanus). O seu propósito propagandístico é indiscutível, sobretudo se considerarmos que funcionariam como reforço da autoridade imperial face à falta de legitimidade política da dinastia dos Severos. À semelhança da totalidade dos marcos encontrados dedicados ao imperador Caracalla no território português e noroeste peninsular o marco encontrado deverá balizar a sua cronologia entre os anos 213-214 e encontra-se atualmente em exposição na Casa Solar Condes de Resende. 6. Bibliograia 6.1. Estudos ALMEIDA, C. A. F. (1968) - Vias Medievais - I Entre Douro e Minho.Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto. COLMENERO, A. R. (1987) - AQVAE FLAVIAE - Fontes epigráicas, Vol 1. Chaves: Câmara Municipal de Chaves. COLMENERO, A. R.; SIERA, S. F.; ASOREY, R. A. (2004) - Miliarios e outras inscricións viarias romanas do Noroeste hispánico (conventos bracarense, lucense e asturicense). Santiago de Compostela: Consello da Cultura Galega. Sección de Patrimonio Histórico. Colección Gran Formato CALLAECIÆ ET ASTURIÆ ITINEA ROMANA. ÉTIENNE, R. (1974) - Le culte impérial dans la Péninsule Ibérique, d’Auguste à Dioclétien. Paris: Ed. de Boccard (Bibliothèque dês Écoles Française d’Athénes et de Rome). GUEDES, J. A. R. (2000) - Vila de Valadares: toponímia / Vila Nova de Gaia. Vila Nova de Gaia: Câmara Municipal e Junta de Freguesia de Valadares. MANTAS, V. G. C. (1996) - A rede viária romana da Faixa Atlântica entre Lisboa e Braga. 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