Um marco miliário de
Caracalla, em Vila Nova de
Gaia, no contexto do noroeste
peninsular
Joana Leite*, Alexandre Beites**, Armando Coelho***
Palavras-chave
Marco Miliário; Imperador Marco Aurélio Antonino (Caracalla); viação Romana; reutilização; propaganda política;
uniicação do império.
Keywords
Roman Milestone, Emperor Marcus Aurelius Antoninus (Caracalla); roman roads; political propaganda; Empire
uniication
Resumo
Relativamente escassos e dispersos a sul do Rio Douro,
os Marcos Miliários continuam a revelar-se como um
precioso manancial informativo na sua dupla vertente
de documento e monumento, revelando estratégias de
mobilidade e intencionalidades de visibilidade política.
A descoberta de um marco miliário em Vila Nova de
Gaia, dedicado ao Imperador Caracalla, volta a abrir a
discussão cientíica sobre a existência de uma via secundária que percorresse o litoral, paralela à via XVI do Itinerário de Antonino. Associado ao prestígio da dinastia
antonina e ao culto imperial, este objeto arqueológico dá
ainda pistas relevantes sobre a reutilização do seu suporte pétreo em períodos históricos posteriores e engrossa a
percentagem de marcos miliários em que o seu sentido foi
reinventado.
Abstract
he few Roman milestones, located in the south side of the
River Douro, continue to be a precious source of information due to its duplicity of document and monument; they
reveal mobility strategy and pretend political visibility.
he inding of a Roman milestone in Vila Nova de Gaia,
dedicated to the Emperor Caracalla, reopens the scientiic
discussion regarding the existence of a secondary roman
road on the coast, parallel to the Road XVI of the Antonine Intinerary. Associated to the prestigious Antonine
dynasty and the imperial cult, this archaeological element
gives important clues regarding the reuse of the stone
marker in later historical periods and increases the percentage of milestones whose function has been reinvented.
* Arqueóloga (joana.leite.80@gmail.com);
** Arqueólogo (alexandrebeites@gmail.com);
*** Professor catedrático. Presidente do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto; Membro do Cento de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM)
(acfsilva@sapo.pt).
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1. Circunstâncias da descoberta
do marco miliário
No dia 2 de outubro de 2000 foi descoberto,
pelos autores deste artigo Joana Leite e Alexandre
Beites, no concelho de Vila Nova de Gaia,
freguesia de Valadares, lugar de Tartomil, em
concreto na foz do rio Valverde1 - aluente do rio
Febros - com as coordenadas 41º 05’ 25.70’’ N /
8º 39’ 23.35’’ O e à altitude de 6 metros do nível
médio das águas do mar, um fragmento de marco
miliário inédito, por ocasião de uma passagem
fortuita no local.
Apesar de estar claramente deslocado do
seu contexto original - o que não é de estranhar
face às frequentes reutilizações de que os marcos
miliários são alvo - jazia encostado ao pilar central
de um pequeno pontão2, que atravessa esse curso
de água a jusante, em contacto direto com as
águas desse rio e sustentado apenas pela areia da
praia de Valadares, encontrando-se orientado a
poente com o seu campo epigráico no correto
posicionamento de leitura.
A remoção do achado do seu local de
descoberta aigurou-se premente por duas
questões essenciais: por um lado, pela iminente
possibilidade de perda do vestígio arqueológico
em causa uma vez que todos os ribeiros com
estas características são alvo de trabalhos3 de
manutenção frequentes que incluem, muitas das
vezes, o revolvimento dos blocos pré existentes
e novas deposições de blocos pétreos para que a
força das águas não escave fossos que inviabilize
a passagem pedonal segura do areal e, por outro
lado, as águas do próprio rio (detentor de um
caudal bastante irregular) funcionariam como
um agente abrasivo do suporte epigráico, já por
si em regular/mau estado de conservação.
Nesse sentido e mediante conhecimento/
consentimento do então, IPA (Instituto Português
de Arqueologia), IPPAR (Instituto Português do
Património Arquitetónico), Pelouro da Cultura
de Vila Nova de Gaia e Presidente da Junta de
Freguesia o marco miliário foi provisoriamente
mantido em reserva cientíica dos seus
descobridores e após o seu estudo preliminar
Figura 1. Enquadramento espacial do local da
descoberta do marco miliário (edição gráfica de
Manuel Nunes).
1
Embora os residentes o conheçam como ribeiro de Valadares/Valadarinhos, a designação “Valverde” é a que consta na
Carta Militar de Portugal nº 133.
2
Foi construído em 1972 com orientação E-O no com o objetivo de substituir uma anterior ponte de madeira na avenida
litoral Infante Sagres.
3
Poucos meses depois da descoberta do marco miliário (início de 2001) a ribeira de Valverde sofreu um intenso trabalho de
requaliicação que a alterou completamente - fruto da política autárquica de recuperação e reordenamento da orla marítima
de Gaia que incluiu, entre outras ações, a limpeza e renaturalização das ribeiras. Atualmente (2012), a mesma ribeira, na sua
foz, e particularmente no pontão onde foi encontrado o fragmento de marco miliário, está a sofrer a 2ª fase de requaliicação,
pela empresa Águas de Gaia.
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Joana Leite, Alexandre Beites e Armando Coelho. Um marco miliário de Caracalla, descoberto em Vila Nova de Gaia…. p. 49-60
foi integrado na coleção arqueológica da Casa
Municipal de Cultura de Vila Nova de Gaia Solar Condes de Resende, a 16 de maio de 2001.
2. Características morfológicas
e epigráicas do marco miliário
2.1. Morfologia
Este monumento epigráico reduz-se a cerca
de metade de um cilindro em granito, de grão
médio, com aproximadamente 100kg e 28cm
x 57cm (respetivamente altura e diâmetro),
formando um semicírculo com 86cm de
perímetro.
Trata-se portanto de um marco miliário já
muito fustigado, diminuído não só nas dimensões
da sua altura como nas do seu perímetro que é
reduzido a metade pelo cuidado corte transversal
que lhe é feito à posteriori (provavelmente ainda
durante a Idade Média) fruto da reutilização
entretanto equacionada e que atualmente se
desconhece. Marcas dessa reutilização são ainda
os entalhes que apresenta no topo e na base para
eventual encaixe. Note-se que, no momento em
que se terá partido intencionalmente o marco,
Figura 2. Pormenor do local da descoberta do marco miliário
(edição gráfica de Manuel Nunes e fotografia de Joana Leite).
todo o trabalho terá sido empreendido com o
máximo cuidado e com a preocupação de deixar
intactas as letras que revelam o prestígio do objeto
arqueológico, como no ponto 4.2. se explanará.
Saliente-se que em Espanha, na localidade de
Aciveiro - San Xoán de Río foi encontrado
um marco dedicado ao imperador Marco
Aurélio Caro cujas dimensões e características
morfológicas são em tudo idênticas às do marco
em análise, neste caso pela reutilização como
contrapeso de lagar (Colmenero,2004:574).
Figura 3. Fragmento do marco
miliário de Caracalla com campo
epigráfico em destaque (fotografia
de Paulo Lemos).
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No entanto, os marcos miliários completos
dedicados ao Imperador Caracalla possuem uma
média de 2m de altura e 62cm de diâmetro.
15 linhas) com a seguinte transcrição: [DIV]I •
ANTONINI • PI[I PRONEPOTI] / [DIVI H]
ADRIANI• ABN[E]P[OTI], ou seja, bisneto do
Divino Antonino Pio , trineto do Divino Adriano.
2.2. Campo epigráico leitura e interpretação
Trata-se portanto de um fragmento de um
monumento honoríico que, mesmo longe de
estar completo, nos remete para o imperador
Marcus Aurelius Antoninus Pius Felix Aug(ustus)
- Caracalla - cujo reinado se prolongou de 211
a 217 d.C. Esta constatação prende-se com a
típica enumeração da iliação do imperador que
terá mandado fazer a via ou a sua reparação,
apresentando-se os marcos miliários como uma
autêntica árvore genológica simbólica. No caso
em concreto, pela referência de parentesco que
o objeto arqueológico ostenta, e dado que o
Imperador Adriano não teve trinetos, considerase a sucessão de imperadores linear e à terceira
geração surge então Caracalla - imperador
vigente.
As condições ideais de incidência da luz solar
no momento do achado permitiram de imediato
o reconhecimento de algumas letras gravadas no
suporte pétreo em questão, no entanto, só um
trabalho aturado de observação, que recorreu
a várias técnicas, sobretudo baseadas nos jogos
de luz, e em último recurso à utilização do
bicromático4, possibilitou a leitura integral da
mesma. Note-se que a área epigrafada sofreu
um desgaste irregular, sendo que se estivermos
de frente para ela e a dividirmos em três partes
longitudinais iguais notamos um bom estado de
conservação na área à esquerda, um mau estado
de conservação na zona central, que se encontra
bastante erodida, e um regular/fraco estado de
conservação na superfície do suporte mais à
direita.
Assim, o campo epigráico disponível revela
a inscrição ordenada em duas linhas (que seriam
a terceira e quarta linha do campo epigráico
original, que na totalidade ostentaria entre 10 a
Tal como nos demais marcos miliários
conhecidos do imperador Caracalla para o
território nacional e mesmo para o noroeste
peninsular, que perfazem um total de 38 (Fig. 7),
os carateres apresentam uma modelação quase
uniforme, com variações entre os 8/9cm de
altura e os espaços interlineares entre os 1,5cm
e os 2,5cm (podendo chegar aos 4cm em outros
Figura 4. Decalque do campo epigráfico reminiscente do marco miliário (edição gráfica de Paulo Lemos e decalque de Joana Leite).
4
Trata-se de uma técnica que consiste na aplicação de cal na totalidade do campo epigráico, seguida de óxido de ferro, de
forma a que as reentrâncias dos carateres apareçam destacadas a branco, por contraste com toda a restante superfície da pedra
que ica a negro, efeito que hoje se consegue por meios digitais. Cumpre-nos agradecer ao Prof. Doutor António Baptista
Lopes a sua colaboração neste processo.
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Joana Leite, Alexandre Beites e Armando Coelho. Um marco miliário de Caracalla, descoberto em Vila Nova de Gaia…. p. 49-60
casos), sendo que as palavras aparecem sempre
(neste caso) e quase sempre (nos restantes marcos
analisados) separadas por pontos distinguentes.
cruzeiro ou de sarcófagos e em última instância
através da gravação de cruzes na sua superfície,
notadas em 3 dos 38 casos.
Como curiosidades apontam-se a ausência
propositada do E em ABN(E)P e a falta do H em
(H)Adriano. No primeiro caso, trata-se de uma
estratégia de gestão de superfície no marco, que
economizaria espaço e harmonizaria o campo
epigráico, uma vez que a abreviatura de iliação
aqui gravada, apesar de menos utilizada nos
marcos miliários (só se conhece mais uma marco
deste imperador que recorre a esta fórmula de
escrita), não constitui erro. O mesmo já não
podemos dizer para a ausência do H em Adriani,
que terá certamente sido um lapso do gravador,
embora esse erro se encontre replicado em outros
5 marcos dedicados a Caracalla onde também
foi suprimida essa letra. Não eram invulgares
as incorreções nas gravações dos marcos
miliários, como aliás o refere por inúmeras vezes
(Colmenero 2004: 554, 571, 620 e 727).
De salientar que no verso do campo epigráico
- parte aplanada que transforma o marco miliário
num semicilindro - se encontra uma cruz gravada
que remontará possivelmente à Idade Média,
atestando a reutilização do mesmo e mudança de
sentidos.
A este propósito note-se que da totalidade
dos marcos conhecidos do imperador Caracalla
para o território português e noroeste da
Península Ibérica sensivelmente 37% sofreu uma
profunda alteração do seu propósito original,
tendo sido reaproveitados para as mais variadas
funcionalidades. Paralelamente às reutilizações
que serviram as necessidades quotidianas mais
usuais, como bebedouro, pia para gado, suporte
para poste em madeira, soleira de porta e alicerce
de casa, os marcos miliários do Caracalla, assim
como tantos outros, assistiram ainda a intentos de
índole simbólica como o de cristianização desses
próprios monumentos, trazendo-os para a esfera
do sagrado, como nos casos em que serviram de
suporte de alpendre de Igreja e Casa Paroquial,
de suporte ao altar-mor de uma igreja, de base de
Figura 5. Pormenor da superfície do marco onde é visível o intento
posterior de reutilização (fotografia de Paulo Lemos).
Figura 6. Decalque da cruz, de braços iguais, presente no marco
miliário e representação do seu corte longitudinal (edição gráfica de
Paulo Lemos e decalque de Joana Leite).
3. Contexto original
de proveniência
A par da descontextualização face ao seu
local de origem, a inexistência da base do marco,
onde estariam gravadas as milhas respeitantes à
distância entre a civitates ou e o local da colocação
de tal referência material, diicultam uma
perspetivação mais aproximada do seu contexto
original de proveniência.
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Procurando ultrapassar esse constrangimento,
e no intuito de averiguar a proveniência do
marco, toda a zona envolvente foi percorrida com
base numa prospeção sistemática, mas nenhum
vestígio que se associasse a este foi encontrado.
Presume-se que esta pedra tenha sido
aí colocada não muito tempo antes da sua
descoberta. Por um lado a sua associação a este
espaço terá de ser posterior a 1972 (data de
construção do pontão onde estaria encostada)
e ainda assim será pouco provável que aí
permanecesse há já 30 anos, se considerarmos as
constantes alterações do areal, quer pelo avanço
do mar nessa zona de praia, quer pelo próprio leito
que a ribeira (de caudal irregular) vai escavando,
quer pelas frequentes deposições de pedras
nesse local (que o próprio presidente da Junta
de Freguesia de Valadares, à data da descoberta,
referiu serem frequentes para estabilizarem o
leito da ribeira).
A
descontextualização
dos
objetos
arqueológicos passíveis de serem facilmente
removidos do seu local de origem é aliás uma
situação recorrente em contextos urbanos.
São poucos os marcos miliários encontrados
in situ, mas ainda assim se constata que não se
afastam muito do seu local de origem. A causa
mais iminente desta descontextualização são
as reutilizações posteriores, nomeadamente as
referidas no ponto anterior.
No caso do marco encontrado em Vila
Nova de Gaia, tentar seguir o seu rasto, desde
o local de origem ao sítio onde foi descoberto,
implica determo-nos em primeira instância nas
marcas mais recentes que exibe, relativas à sua
reutilização. Desse modo há que ter presente
a cruz simples de braços iguais aí insculturada.
A gravação de cruzes em todo o tipo de pedras
durante a Idade Média/Contemporânea é
sobejamente conhecida, e o seu intuito, paralelo
ao da sacralização de espaços ou reconversão
de ícones considerados pagãos, será o de dividir
espaços, funcionando como termos territoriais,
que neste caso cremos ter sido o seu propósito,
mais concretamente o da divisão entre a freguesia
de Valadares e Madalena. A esse respeito, reira| 54 |
se um documento de 1284 que ao descrever os
limites da Madalena alude o seguinte a dado
momento “E porque nom poderom seer certos de
duas mamoas que y stam quaes delas era a mamoa
que chamam dos Bezerros de sseu prazimento
dambos e per aluidro domees boos anciãos fezerom
poner cruzes em huma pedra que esta antre Pedra
Longa e o dicto crasto e dês i per outras pedras que
estam nas ditas deuisões dos termhos ata huma
pedra que esta perto do valo da vinha de Joam
Martiz de Vila Chaa.” (cit. por Meirelles e Vale,
1997:27,28).
Já a aproximação ao seu contexto original, em
pleno período romano, leva-nos a apontar como
local muito provável o Castro de Valadares, a 1,5
km em linha reta do local da descoberta.
A própria etimologia do topónimo Valadares
radica da existência de um espaço privilegiado
de defesa, já que provem de VALADAR /
VALLADO (qualquer obstáculo de entrave a uma
invasão), neste caso, o próprio castro (Guedes,
2000: 23-24). Independentemente da sua
relevância, poucos elementos de estudo existem
para este castro. Apenas se pode dizer que foi
sondado em 1937 pelo Prof. Dr. Carlos Teixeira
que aí recolheu algum espólio e o depositou no
Museu de Antropologia da cidade do Porto e
que nos dias de hoje já pouco dele restará por
ter servido como pedreira e como terreno de
construção a algumas habitações, não escapando
à expansão da malha urbana. Em associação
cronológica e espacial a este espaço reira-se a
vizinha Necrópole do Sameiro e Necrópole do
Alto da Vela, em Gulpilhares.
Ainda que vestígios da viação romana em
Gaia sejam praticamente inexistentes Armando
de Matos, (1937:660-679) defende que seria
precisamente pelo castro de Valadares que
passaria a estrada romana litoral, servindo
núcleos de povoamento rural. Assim, e segundo
o que acredita ser o traçado da via, ela “…entraria
no concelho de Grijó e Guetim, seguindo por entre S.
Félix e Sermonde, a que pertence o lugar de Brantães;
rasgaria as terras de Serzedo e de Perosinho; servindo
nessa altura o castro de Monte Murado, subiria
por Canelas e Gulpilhares, a procurar o castro de
Joana Leite, Alexandre Beites e Armando Coelho. Um marco miliário de Caracalla, descoberto em Vila Nova de Gaia…. p. 49-60
Figura 7. Mapa parcial do concelho de Vila Nova de Gaia com os principais eixos viários atuais em destaque e com alusão hipotética à
proveniência original do marco (castro de Valadares e via romana secundária/litoral) (edição gráfica de Manuel Nunes).
Valadares e daí, aproximando-se do da Madalena,
em direitura a Calem.” e acrescenta ainda “É nesta
corda que deverão procurar-se os miliários e os
vestígios do pavimento da famigerada via.”.
Associar este marco à via secundária
que partindo de Cale seguiria pelo litoral,
acompanhando a linha de costa para servir os
castros (nomeadamente o de Valadares) e as
comunidades piscatórias espalhadas ao longo
da frente marítima até entroncar na via XVI do
Itinerário de Antonino Braga-Lisboa, faz todo o
sentido. Aliás, Colmenero (1989:390) avança
com a hipótese de que a construção das vias
secundárias ou ramais de ligação entre as estradas
oiciais se iniciou no reinado de Caracalla, no
princípio do século III, talvez com o intuito de
facilitar a cobrança da annona5. Para além de que é
de consenso generalizado considerar que a partir
deste imperador se pretende unir os núcleos mais
romanizados.
A corroborar a existência desta via secundária
não se pode deixar de referir a maior e mais
atualizada base de dados de viação romana em
5
Portugal, criada em 2004 por Pedro Soutinho
(htp://viasromanas.planetaclix.pt/vrhist.html)
que vai mais longe remetendo para origens préromanas o troço da estrada romana que seguia
próximo do Castro da Madalena e da Necrópole
do Sameiro. De acordo com esta fonte a via
continuaria depois junto da necrópole do Alto da
Vela em Gulpilhares, inletindo mais a sul para o
lugar de Brito, em S. Félix da Marinha. A passagem
da via neste sítio é reforçada pela referência à
«estrada mourisca» na doação que Trutesindo
Mendes fez das suas terras em Brantães e S. Félix
da Marinha, ao Mosteiro de Grijó, indicando que
estas icavam acima e abaixo da estrada mourisca
junto do ribeiro de Serzedo. A estrada seguiria
depois para Anta, passava a nascente de Espinho e
seguia para Paramos, próximo do Castro de Ovil,
em direção a Ovar e Estarreja até ao rio Vouga.
Desta forma, a associação do marco miliário a
esta via secundária e em concreto à área que faria
a ligação com o castro de Valadares parece-nos
repleta de sentido, ainda mais se considerarmos
que o castro se localiza em plena área divisória
de freguesias (Madalena e Valadares)6 e que a
Imposto que cobrava a tributação de géneros às populações com o objetivo de abastecer a logística necessária das legiões.
6
Paralelamente a alguma confusão bibliográica, que se refere ao mesmo castro como sendo ora o castro de Valadares, ora
o Castro da Madalena, ainda hoje existe alguma indeinição na atribuição da freguesia a este espaço arqueológico, que, na
realidade, se espraia em ambas, embora em maior percentagem na de Valadares.
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sua reutilização posterior, que cuidadosamente
o lapidou e afeiçoou, o transformou, muito
provavelmente, numa das pedras que terão
servido de divisão/termo das freguesias durante
a Idade Média.
4. O imperador Caracalla
e apresentando uma boa deinição de carateres
que são profundamente gravados em bisel, sendo
que a referência ao imperador surge sempre em
dativo e não em nominativo (sujeito indireto)
(Colmenero,1987), o que se aplica na íntegra
para o marco miliário em questão, tendo em
consideração o elevado grau de desgaste que
apresenta.
Será também fundamental compreender o
marco miliário em estudo na estratégia viária do
Imperador para o território nacional e noroeste
peninsular, quer em termos de dispersão de
marcos, quer no que se refere a uma balização
cronológica do seu investimento e mesmo das
características epigráicas transversais destes
monumentos.
Cronologicamente, os marcos remetem-nos
na totalidade para os anos 213 e 214, em que
Caracalla é investido de poder tribunício pela
XVII e XVIII vez, respetivamente, o que signiica
que será na reta inal do seu reinado que terá uma
política viária mais intensa e se dá uma eclosão de
miliários por parte deste imperador (Colmenero,
2004). Sendo igualmente nesses anos que, muito
possivelmente, se poderá também enquadrar o
marco em análise.
Nesse sentido, os marcos miliários ordenados
por Caracalla contam-se entre os de melhor
execução, aproveitando bem o campo epigráico
A nível espacial, o seu investimento viário
é notavelmente maior no noroeste peninsular,
aliás, Caracalla apresenta-se com o conjunto
4.1. Contexto viário Peninsular
Figura 8. Mapa de dispersão dos marcos miliários de Caracalla no território nacional e noroeste peninsular (edição gráfica de Manuel
Nunes).
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Joana Leite, Alexandre Beites e Armando Coelho. Um marco miliário de Caracalla, descoberto em Vila Nova de Gaia…. p. 49-60
mais expressivo de miliários logo a seguir
ao Imperador Adriano. A área do conventus
bracaraugustanus7 e em concreto a via XVIII
do Itinerário de Antonino (que ligava Braga a
Astorga pelo Gerês8) são as maiores apostas
do imperador, onde também executa obras de
reparação pela associação de dois miliários a
uma coluna na Portela do Homem que apresenta
a gravação: “Vias et pontes tempora vetustate
colapsas restituerunt” que refere expressamente
um novo arranjo na via (Almeida,1968). Aliás,
é com Caracalla que se inicia o melhoramento
de algumas calçadas da rede não oicial de
caminhos (Colmenero, 2004:780), de que muito
provavelmente fará parte o marco descoberto em
Gaia.
Mas a sua presença é igualmente notada na via
XVII (que ligava Braga a Astorga por Chaves), na
via XIX (Braga-Astorga, via Ponte de Lima), na
via XVI (Braga-Lisboa), onde terá empreendido
arranjos de melhoramento, paralelamente a ações
de propaganda e na via XII (Lisboa-Mérida, via
Alcácer do Sal/Évora). Terá ainda procedido a
reformas viárias no troço Lisboa - Conimbriga,
visíveis pelo marco de Soure (Colmenero:1987).
4.2. Propósito político da
implantação dos marcos miliários
Compreender a ligação entre o reinado de
Caracalla e este artefacto é conhecer a estratégia
política deste governante para todo o Império.
Quer isto dizer que na epígrafe em análise
está consubstanciado o legado político de
Marcus Aurelius Antoninus (ou como seria
mais conhecido - Caracalla) através da forte
legitimação de uma nova dinastia, graças ao
investimento em propaganda imperial, num
período economicamente conturbado.
Caracalla herda do seu pai, Septimio Severo,
uma estratégia inteligente de inclusão para a nova
dinastia Severiana - uma ligação genealógica
forjada com a anterior dinastia Antonina que,
ao ser rica em iguras ilustres, granjeava o seu
prestígio social. Assim, em 195 d. C., Septimio
proclama-se ilho de Marcus Aurelius e nomeia
o seu primogénito como Marcus Aurelius
Antoninus, atribuindo-lhe a intitulatura de
Caeser.
Na epígrafe em análise, o genitivo abnepos,
relativo a Adriani marca precisamente essa
sucessão genealógica, que associa o Imperador
Adriano a Marcus Aurelius Antoninus, que seria
seu trineto.
Este foi o primeiro passo para que toda a
estratégia política de Caracalla tivesse como
denominador comum a reputação dos antoninos.
Essa realidade manifestou-se nomeadamente nas
nomenclaturas atribuídas à nova Constituição Antoniniana (212 d. C.) - que outorgou o direito
de cidadania a todos os homens livres do mundo
romano; no grande investimento público da
construção das termas - Antoninas - e na criação
de uma nova moeda - Antoninianus (215 d. C.).
O culto ao Imperador, enquanto forma de
legitimação política, em especial no noroeste,
não é uma situação nova, remonta ao tempo de
Augusto e foi ciclicamente reutilizada pelos vários
poderes que o sucederam. Os marcos miliários
foram precisamente um dos instrumentos
por excelência para publicitar a obra feita e
na governação de Caracalla reconhece-se
para o noroeste peninsular um signiicativo
investimento na rede viária, como foi explorado
no ponto anterior.
Ora, Caracalla relança obras públicas e com
isso a atividade económica para o noroeste, mas
sobretudo faz propaganda ao poder imperial,
precisamente no suporte mais público para os
7
Sensivelmente metade dos marcos miliários conhecidos para este imperador contavam as milhas para a capita viarum
Bracara (COLMENERO, 2004:780).
8
A via romana que saía de Braga para Astorga, passando pelo Geres, é a mais recente e a mais direta das quatro estradas que,
segundo Antonino, de Braga para lá se dirigiam.
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que usam a rede viária: os marcos miliários.
É discutível a efetiva amplitude desta agenda
em termos de obras, mas é indiscutível o
aproveitamento propagandístico que daí adveio.
Mas qual seria a razão para esta atenção
especial no noroeste peninsular?
É de facto inegável esse enfoque por parte
de Caracalla no noroeste, sendo ele, de resto,
responsável pela tentativa em reconhecer a
especiicidade cultural da Callaecia no contexto
do noroeste, encarando-a como uma província
- a Hispania Nova Citerior Antoniniana / legatus
Augusti propraetore Provinciae Hispaniae Novae
Citerioris Antoninianae (CIL II 2661 / 5680).
Medida que só com Diocleciano, em 284-288 d.
C. seria formalizada, perdendo Asturica Augusta
primazia em relação a Bracara Augusta.
Um destaque tão incisivo de propaganda neste
local tem uma explicação - moldar mentalidades.
Pretendia-se erguer o valor de Caracalla entre a
sociedade, enquanto imperador e divindade. De
facto, este marco miliário surge numa tendência
política de reforço da autoridade imperial no
noroeste, face à falta de legitimidade política da
dinastia dos Severos.
Robert Etienne (1974:191) reforça a
ideia que o culto imperial funcionaria como
a apropriação de Roma, do valor do culto do
chefe, profundamente impregnado na sociedade
indígena e que este fenómeno se deve em grande
parte ao êxito do processo de “romanização”
nesta província.
Vasco Mantas (1996:129) refere-se à
população indígena hispânica, já no séc. I d. C.,
como: “Populações muito aptas para o serviço
militar, e que (…) contribuíram largamente para
o recrutamento das legiões e das tropas auxiliares,
e vocacionadas para o culto do chefe, circunstância
extremamente importante e que explica a amplitude
da implantação do culto imperial no solo hispânico,
indiscutivelmente terra de Caudilhos.” Estes recursos
humanos, tradicionalmente reconhecidos como
capazes e iéis para a guerra, seriam a força que
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Roma ambicionava para a concretização de
conquistas militares e desta forma alavancar de
novo a economia urbana que vinha a deinhar.
5. Conclusão
A descoberta, em Vila Nova de Gaia, de parte
de um marco miliário dedicado ao Imperador
Caracalla veio levantar várias questões e abrir
novas pistas.
Por um lado, o facto desta evidência material
se localizar a sul do Douro, já por si, reveste o
achado de alguma excecionalidade. Entre o Porto
e Coimbra restam apenas 4 miliários, o miliário
de Úl, hoje deslocado para o centro de Oliveira
de Azeméis, o miliário de Adães, no mesmo
concelho mas entretanto desaparecido, o miliário
da Vimieira, colocado atualmente no átrio da
Câmara Municipal da Mealhada, e o miliário do
Arco da Traição, em Coimbra, que hoje está no
Museu Machado de Castro.
Seria este um miliário da VIA XVI BragaLisboa?
De facto, perceber o entrançado da rede
viária romana é assunto complexo, sobretudo
no que diz respeito à localização do traçado das
vias secundárias, mas a sua investigação, que
encontra nos miliários parte signiicativa da
informação disponível, é de importância extrema
na medida em que funcionaram como uma
grande bacia hidrográica, drenando os recursos
das regiões atravessadas, fazendo circular
mercadorias e ideias e ixando populações, para
além de funcionarem como poderosos esteios da
organização da paisagem (Mantas,1996).
Sugerimos que, neste caso, e apesar da
sua descontextualização face ao seu local de
proveniência, pudesse estar colocado nas
imediações do castro de Valadares e que, ainda
nesse mesmo espaço, tenha sido reutilizado como
marco medieval de divisão territorial, pela cruz
inscrita, e porque toda a área correspondente ao
castro marca, pelo menos já desde o século XIII,
a divisão entre as terras de Valadares e Madalena.
Dessa forma faria parte de uma via secundária
Joana Leite, Alexandre Beites e Armando Coelho. Um marco miliário de Caracalla, descoberto em Vila Nova de Gaia…. p. 49-60
que seguia uma rota mais litoral relativamente à
via XVI, facto que aliás não será de estranhar se
considerarmos que Caracalla investiu na rede
não oicial de caminhos.
Apesar do nome de Caracalla estar ligado
sobretudo à reparação de diversas vias,
o seu investimento é consideravelmente
maior no noroeste peninsular (sobretudo no
conventus bracaraugustanus). O seu propósito
propagandístico é indiscutível, sobretudo se
considerarmos que funcionariam como reforço
da autoridade imperial face à falta de legitimidade
política da dinastia dos Severos.
À semelhança da totalidade dos marcos
encontrados dedicados ao imperador Caracalla
no território português e noroeste peninsular o
marco encontrado deverá balizar a sua cronologia
entre os anos 213-214 e encontra-se atualmente
em exposição na Casa Solar Condes de Resende.
6. Bibliograia
6.1. Estudos
ALMEIDA, C. A. F. (1968) - Vias Medievais - I Entre Douro e Minho.Porto: Faculdade de Letras da
Universidade do Porto.
COLMENERO, A. R. (1987) - AQVAE FLAVIAE - Fontes epigráicas, Vol 1. Chaves: Câmara
Municipal de Chaves.
COLMENERO, A. R.; SIERA, S. F.; ASOREY, R. A. (2004) - Miliarios e outras inscricións viarias
romanas do Noroeste hispánico (conventos bracarense, lucense e asturicense). Santiago de Compostela:
Consello da Cultura Galega. Sección de Patrimonio Histórico. Colección Gran Formato CALLAECIÆ ET ASTURIÆ ITINEA ROMANA.
ÉTIENNE, R. (1974) - Le culte impérial dans la Péninsule Ibérique, d’Auguste à Dioclétien. Paris: Ed. de
Boccard (Bibliothèque dês Écoles Française d’Athénes et de Rome).
GUEDES, J. A. R. (2000) - Vila de Valadares: toponímia / Vila Nova de Gaia. Vila Nova de Gaia:
Câmara Municipal e Junta de Freguesia de Valadares.
MANTAS, V. G. C. (1996) - A rede viária romana da Faixa Atlântica entre Lisboa e Braga. Tese de
Doutoramento (policopiada). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
MATOS, A. (1937) - As estradas romanas no concelho de Gaia. Vila Nova de Gaia: Brotéria, 24 (6).
MEIRELLES, M. A.; VALE, M. C. (1997) - S. Salvador de Valadares: tradição e modernidade. Vila Nova
de Gaia: Junta de Freguesia de Valadares.
SILVA, A. C. F. (2010) - Epigraia e povoamento entre Douro e Vouga, in PINTO, F. M. S. (coord.),
Arqueologia da Terra de Santa Maria: balanços e perspectivas, Liga dos Amigos da Feira, p. 43-52 (in
specie, p.46, Figs. 9 e 10).
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Oppidum | ano 7 | número 6 | 2012-2013
STYLOW, A. U. (coordenador) - Corpus Inscriptionum Latinarum, vol. II: Inscriptiones Hispaniae
Latinae - segundo os conventus astigitanus, cordubensis e terraconensis (CIL II). Universidade de
Alcalá.
6.2. Cartograia
Carta Militar de Portugal: folha nº 133 [Material Cartográico], Instituto Geográico do Exército,
Escala 1:25 000. Lisboa: I.G.E., 1998.
SOUTINHO, P. (2004-2012) - Vias Romanas em Portugal [Em linha]. [Consult. 30 maio 2012].
Disponível em WWW: _URL: htp://viasromanas.planetaclix.pt/vrhist.html.
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