As pinturas armoriadas
do palácio Cabral Metelo
Miguel Metelo de Seixas
SEPARATA DA REVISTA
ARMAS E TROFÉUS
REVISTA DE HISTÓRIA, HERÁLDICA, GENEALOGIA E ARTE
IX SÉRIE, TOMO XVI
2014
AS PINTURAS ARMORIADAS
DO PALÁCIO CABRAL METELO
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Miguel Metelo de Seixas *
O projecto “A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro (sécs. XVII,
XVIII e XIX). Anatomia dos Interiores” incluiu desde o início, a par do núcleo
central de História da Arte e disciplinas conexas, uma área de consultoria em Heráldica 1. Trata-se, por isso, de um dos raros projectos que, em Portugal, promovem
a interacção entre aquele ramo da História e a Heráldica 2. Tal raridade poderá
* Doutor em História; investigador do Instituto de Estudos Medievais e do Centro de História
d’Aquém e d’Além-Mar, ambos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / Universidade
Nova de Lisboa; bolseiro de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia;
professor auxiliar da Universidade Lusíada de Lisboa; director do Centro Lusíada de Estudos
Genealógicos e Heráldicos; sócio efectivo e presidente do Instituto Português de Heráldica.
1
O presente texto foi publicado com o título “Interesse e perspectivas da heráldica para o estudo
da casa senhorial. O caso lisboeta do palácio Cabral Metelo” na colectânea Casas Senhoriais Rio-Lisboa e seus interiores (pp. 213-232), coordenada por Marize Malta e Isabel Mayer Godinho
Mendonça, editada em 2014 no Rio de Janeiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em
conjugação com a Universidade Nova de Lisboa e a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva. Três
motivos porém me impeliram a dar este texto novamente à estampa, com pequenas alterações:
em primeiro lugar, a diiculdade de acesso àquele livro para um leitor português; depois, o
interesse directo que este texto pode apresentar para a heráldica portuguesa em geral e lisboeta
em particular; por im, o facto de a edição carioca ter saído com diversas falhas, algumas das
quais podem mesmo diicultar o entendimento do conteúdo. Agradeço a Isabel Mayer Godinho
Mendonça a anuência para republicação do artigo na presente revista.
2
Projecto “A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro (sécs. XVII, XVIII e XIX). Anatomia
dos Interiores”, com sede no Instituto de História da Arte/Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas/Universidade Nova de Lisboa, e inanciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, referência PTDC/EAT-HAT/112229/2009. Quero agradecer aos responsáveis pelo
projecto, Isabel Mayer Godinho de Mendonça e Hélder Carita, o desaio que me lançaram e a
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MIGUEL METELO DE SEIXAS
parecer estranha. Mas a verdade é que a relação entre estas duas áreas do saber
nem sempre tem sido fácil: poder-se-á mesmo dizer que ela tem sido marcada pelo
ferrete da ambiguidade ou mesmo de uma certa desconiança mútua.
Já tive, enquanto participante em congressos de História da Arte, ocasião
de falar e escrever sobre essa relação difícil 3; que é, mutatis mutandi, a mesma
existente, de forma mais lata, entre História e Heráldica 4. Digamos, em jeito de
resumo simplista, que os historiadores tendem a ver na Heráldica, na melhor das
hipóteses, um instrumento de identiicação e de datação; remetem-na, assim, ao
papel de “ciência auxiliar da História”, granjeado nos enclausuramentos disciplinares do século XIX. Mas a Heráldica atravessou na segunda metade do século XX
um processo de profunda renovação epistemológica. E pode, por conseguinte, ir
muito além desse mero papel de fornecedora de dados auxiliares para a pesquisa
histórica: pode tornar-se uma forma de investigação histórica.
O objectivo do presente trabalho consiste em partir de um caso concreto
– o palácio até agora chamado Cabral, à calçada do Combro, em Lisboa – para
mostrar o interesse de que a Heráldica se pode revestir para a história e o entendimento dessa casa senhorial. Interesse que se airma em primeiro lugar no âmbito
tradicional, ou seja, como instrumento de identiicação e datação; e, depois, num
sentido bem mais abrangente, como instrumento de compreensão do próprio
3
4
36
integração que me proporcionaram; e aos meus colegas investigadores deste mesmo projecto,
em especial: Ana Paula Correia, pelas pontes estabelecidas entre Heráldica e Iconograia; Lina
Oliveira, pelo seu aturado trabalho de levantamento e transcrição de inventários, onde tantas
vezes surgem referências a usos heráldicos; Tiago Molarinho e Alexandre Lousada, pelo entusiasmo e proissionalismo que puseram na recolha e análise de fontes patrimoniais e documentais, e a atenção cuidada que têm dedicado à matéria heráldica. Uma palavra especial de agradecimento é também devida a João Portugal, pela leitura atenta que fez do texto e pelas sugestões
daí decorrentes, bem como pela feitura da árvore genealógica que veio enriquecer (e tornar
porventura mais fácil) a compreensão dos meandros familiares aqui expostos.
Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de, “As armas e a empresa do rei D. João II. Subsídios para o
estudo da heráldica e da emblemática nas artes decorativas portuguesas”, in MENDONÇA,
Isabel Mayer Godinho; CORREIA, Ana Paula (coord.), As Artes Decorativas e a Expansão Portuguesa. Imaginário e Viagem. Actas do 2.º Colóquio de Artes Decorativas. 1.º Simpósio Internacional,
Lisboa: Fundação Ricardo Espírito Santo Silva / Centro Cultural e Cientíico de Macau / Escola
Superior de Artes Decorativas, 2010, pp. 46-82; e SEIXAS, Miguel Metelo de, “Art et héraldique au service de la représentation du pouvoir sous Jean II de Portugal (1481-1495)”, in
SAVORELLI, Alessandro (coord.), L’Arme Segreta. Araldica e Storia dell’Arte nel Medioevo (secoli
XIII-XV), Firenze-Pisa, Kunsthistorisches Institut in Florenz – Max-Planck Institut / Scuola
Normale Superiore, no prelo.
Permito-me remeter para as considerações iniciais em SEIXAS, Miguel Metelo de, “Bibliograia
de heráldica medieval portuguesa”; in SEIXAS, Miguel Metelo de; ROSA, Maria de Lurdes
(coord.), Estudos de Heráldica Medieval, Lisboa: Instituto de Estudos Medievais / Centro Lusíada
de Estudos Genealógicos e Heráldicos / Caminhos Romanos, 2012, pp. 509-517.
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
património em estudo e das realidades sociais subjacentes. Em consequência da
análise deste caso concreto, procurarei extrair algumas ilações sobre as perspectivas de aplicação da Heráldica aos estudos de História da Arte, nomeadamente
no enquadramento do referido projecto “A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de
Janeiro”. Entremos então na matéria.
Ao chegar ao im da descida e às proximidades do poço dos Negros, a
calçada do Combro vai-se alargando de maneira a formar um pequeno largo
triangular. O lado esquerdo vê-se preenchido pela extensa e irregular mole do
palácio dos condes de Mesquitela, marcada por uma pedra de armas em cada um
dos seus dois cunhais. O lado direito é ocupado por construções menos ostensivamente idalgas. Porém não menos ricas em heráldica, como se verá.
A primeira dessas outras casas senhoriais exibe uma fachada equilibrada, ao
gosto setecentista, de uma elegância discreta (Figura 1). No seu exterior, indício
algum é fornecido quanto à identidade dos proprietários; nem se perscruta, na
harmonia da fachada, lugar onde pudesse em tempos ter campeado uma pedra
de armas. No interior, em contrapartida, a primeira das salas para as quais o
visitante desemboca após subir a escadaria – o que no século XVIII se chamaria
sala vaga – ostenta no centro do tecto uma pintura heráldica. A casa de jantar
patenteava quatro outros painéis armoriados, colocados aos cantos do tecto, que
Figura 1: Fachada do palácio da calçada do Combro, junto ao Poço Novo
(fotograia do autor).
37
MIGUEL METELO DE SEIXAS
devem ter sido retirados na sequência da compra do imóvel pelo Estado, em
1965. Inicialmente, apenas dispunha de registos fotográicos (a preto e branco)
dessas quatro pinturas mas, seguindo-lhes o rastro, fui encontrá-las no Museu
da Cidade de Lisboa, onde pude observá-las 5. Ao todo, portanto, a casa contava
com cinco pinturas heráldicas, integradas na decoração de duas salas diferentes.
É possível – provável, mesmo – que houvesse mais objectos armoriados, de natureza móvel, disseminados pelas restantes divisões, porém a dispersão do recheio
da casa, operada sem registos, furtou tais manifestações ao nosso conhecimento.
Procedamos pois, em primeiro lugar, à leitura e identiicação do material
heráldico disponível. As quatro pinturas da casa de jantar apresentam evidente
similitude de estilo, constituindo um conjunto uniforme no que respeita tanto
à forma dos escudos (uma cartela ao gosto barroco), à estilização e proporções
das iguras heráldicas e dos ornamentos exteriores, como ainda à cor do fundo
(entre o castanho e a púrpura). Encontram-se, aliás, assinadas pelo mesmo autor
(A. Pinto). Do ponto de vista do seu conteúdo heráldico, tais pinturas podem ser
descritas da seguinte forma:
– Figura 2, escudo esquartelado: I, de vermelho, um castelo de ouro,
mantelado de prata com dois leões
afrontados do primeiro (armas de
Henriques) 6; II, de prata, duas
cabras de vermelho, armadas de
negro, uma sobre a outra (armas de
Cabral) 7; III, de prata, uma faixa de
vermelho, chefe endentado de três
pontas do segundo carregadas de três
moletas de ouro (armas de Metelo);
Figura 2: Painel pintado com as armas de
Francisco Cabral Metelo Pacheco de Lemos e Nápoles
Manuel (primitivamente no palácio Cabral Metelo,
hoje no Museu da Cidade de Lisboa)
5
6
7
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Agradeço a Henrique Carvalho, técnico superior do referido Museu da Cidade de Lisboa, a
pronta identiicação e localização destas pinturas, bem como as facilidades para a sua observação
e reprodução fotográica. Devo-lhe também a informação de que as mesmas pinturas terão
permanecido no palácio de origem durante algum tempo, seguindo depois para o Instituto
Português de Conservação e Restauro, onde foram submetidas a intervenção, sendo posteriormente incorporadas no espólio do Museu da Cidade.
Os leões estão pois coloridos de vermelho, quando deveriam ser de púrpura. Tal troca tanto
poderá dever-se a lapso do pintor como ao citado restauro posterior.
Mais uma vez, veriica-se a substituição do esmalte púrpura pelo vermelho. O pormenor da cor
dos chifres resulta igualmente de uma liberdade tomada pelo pintor.
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
IV, de ouro, duas caldeiras de negro uma sobre a outra, carregadas de
três faixas veiradas de vermelho e de prata, com asas serpentiformes,
e por diferença uma lor-de-lis de vermelho no cantão dextro do
chefe (armas de Pacheco, diferençadas). O escudo assenta sobre uma
cartela de volutas e concheados ao gosto neo-barroco, com um ramo
de loureiro e outro de carvalho, ambos de ouro e passados em aspa,
encimada por um elmo fechado de prata, com plumão branco, e por
timbre um castelo de ouro encimado por um leão de vermelho (timbre
de Henriques) 8.
– Figura 3, escudo esquartelado: I, contra-esquartelado, 1 e 2 de prata,
cinco escudetes de azul em cruz, cada escudete carregado de cinco
besantes do campo, ilete de negro em banda, 2 e 3, de azul, cinco
lores-de-lis de ouro (armas de Albuquerque) 9; II, de verde, uma banda
de vermelho perilada de ouro] e abocada por duas cabeças de serpe
[do mesmo] (armas de Freire de
Andrade); III, de vermelho, uma
banda acompanhada de dois lobos,
tudo de prata (armas de Osório 10);
IV, de vermelho, cinco estrelas
de cinco raios de ouro (armas de
Fonsecas 11). Os elementos exteriores
assemelham-se aos da Figura 2, com
Figura 3: Painel pintado com as armas de
D. Maria Amália Freire Cortês de Albuquerque
(primitivamente no palácio Cabral Metelo,
hoje no Museu da Cidade de Lisboa)
8
Com terceira troca do esmalte púrpura pelo vermelho. Em todos os casos em que deveria estar
presente, a púrpura (esmalte de identiicação assaz difícil) foi substituída pelo vermelho.
9
Com troca do esmalte do campo, que deveria ser de vermelho e não de azul.
10
Não se trata das armas costumeiramente atribuídas aos Osórios pelas cartas de brasão ou pelos
armoriais portugueses, mas das que vêm referenciadas por Pedro de Sousa de Castelo Branco na
sua tradução da obra de VALLEMONT, Abade de, Elementos da Historia, ou o que he necessário
saberse da Chronologia, da Geograia, do Brazão, da Historia universal, da Igreja do Testamento
velho, das Monarchias antigas, da Igreja do Testamento Novo, e das Monarchias novas, Lisboa
Occidental: na Oicina de Miguel Rodrigues, Impressor do Eminent. Senhor Card. Patriarcha,
1741, p. 39.
Estas armas não são, só por si, identiicáveis de forma segura, pois poderiam remeter para outras
famílias; contudo, inscrevo de imediato à identiicação supra por via de dedução genealógica,
que será adiante explicada.
11
39
MIGUEL METELO DE SEIXAS
excepção do timbre, que aqui consiste
num castelo de vermelho encimado
por uma lor-de-lis de ouro (timbre
de Albuquerque 12).
– Figura 4, escudo partido: I, de
vermelho, seis besantes entre dobre-cruz e bordadura tudo de ouro
(armas de Almeida); II, de negro,
três faixas veiradas de prata e de
vermelho (armas de Vasconcelos).
Mais uma vez, os elementos exteriores assemelham-se aos das iguras
anteriores, porém sem elmo, que
aqui é substituído por um coronel
formado por aro e nove hastes rematadas por pérolas, correspondente ao
título de conde.
– Figura 5, escudo cortado: [de azul,]
cinco estrelas de seis raios [de ouro]
postas em cruz; uma alagoa de
prata (armas plenas de Sobral 13).
Os elementos exteriores são exactamente iguais aos da Figura 4.
Figura 4: Painel pintado com as armas de D. José Francisco de Almeida
e Vasconcelos, 1.º conde de Moçâmedes (primitivamente no palácio
Cabral Metelo, hoje no Museu da
Cidade de Lisboa)
Finalmente, a manifestação heráldica da
sala vaga do andar sobrado apresenta também
ela características estilísticas e de composição
Figura 5: Painel pintado com as armas de
D. Maria Margarida Braamcamp Sobral de
Melo Breyner (primitivamente no palácio Cabral
Metelo, hoje no Museu da Cidade de Lisboa)
12
13
40
Trata-se do timbre do ramo de Albuquerques que desde cedo se uniu aos Meneses, dando origem
à casa dos senhores de Cantanhede. O timbre usual de Albuquerque consiste num meio-voo de
negro carregado de cinco lores-de-lis de ouro. Cfr. NORTON, Manuel Artur, A Heráldica em
Portugal. O Armorial Português de Família e Copiadores desaparecidos do Cartório da Nobreza,
Lisboa: Dislivro Histórica, 2004, vol. II, p. 56.
Fica porém a faltar, para completar as armas, a bordadura de vermelho carregada da legenda
“Nomen Honorque Meis” em letras de ouro.
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
que a relacionam de forma inegável com o conjunto da casa de jantar. Eis a
descrição e identiicação desta última pintura:
– Figura 6, escudo esquartelado: I, de verde, uma banda de vermelho
perilada de ouro e abocada por duas cabeças de serpe do mesmo (armas
de Freire de Andrade); II, de prata, duas cabras de púrpura uma sobre
a outra (armas de Cabral); III, de prata, uma faixa de vermelho, chefe
endentado de três pontas do segundo carregadas de três moletas de ouro
(armas de Metelo); IV, de
ouro, duas caldeiras de negro
uma sobre a outra, carregadas de três faixas veiradas
de vermelho e de prata, com
asas serpentiformes, e por
diferença uma lor-de-lis de
vermelho no cantão dextro
do chefe (armas de Pacheco,
diferençadas). Os elementos
exteriores
assemelham-se
aos das Figuras 2 e 3, com
excepção do timbre, que
aqui consiste em duas serpes
Figura 6: Medalhão do tecto da sala vaga do
de ouro afrontadas (timbre
palácio Cabral Metelo, pintado com as armas
de Freire de Andrade).
de Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo.
Uma primeira conclusão aponta para a evidência das ligações familiares
representadas nestas cinco pinturas: elas foram realizadas como unidade e,
portanto, com um escopo comum, ligado à exibição de determinados laços de
parentesco. Não causa dúvida que a sua realização se tenha operado na mesma
época, a mando do mesmo comanditário e pelo mesmo executante, como
evidencia a assinatura. A identiicação dos detentores das armas passa pois necessariamente pelo entendimento dos vínculos de parentesco expressos por este
conjunto armoriado. Assim, perante o desconhecimento de outras fontes documentais ou iconográicas, recai sobre a investigação genealógica a capacidade de
fornecer resposta ao enigma da identiicação dos armígeros, chave para o entendimento do sentido destas pinturas.
A pesquisa genealógica tem as suas parecenças com uma investigação
criminal: partindo de indícios dispersos e amiúde lacunares, vão-se batendo as
fontes usuais até obter cruzamentos de dados que permitam (ou não) chegar
a identiicações positivas. E assim se consegue, com maior ou menor sucesso,
41
MIGUEL METELO DE SEIXAS
reconstituir as teias, por vezes complexas, do emaranhado das gerações sucessivas.
Neste caso concreto, a investigação beneiciou da existência de uma pesquisa de
base sobre os diversos ramos da família Metelo, já realizada por Manuel Arnao
Metello e João Carlos Metello de Nápoles 14. Sigamo-los para ver se lobrigamos o
tal cruzamento de dados que permita encaixar as mensagens heráldicas do palácio
lisboeta no labirinto genealógico desta estirpe:
– O escudo da Figura 2, esquartelado de Henriques, Cabral, Metelo e
Pacheco, é atribuível a Francisco Cabral Metelo Pacheco de Lemos
e Nápoles Manuel 15. Este era ilho de Francisco Cabral da Fonseca
Cerveira da Cunha Osório, herdeiro da casa dos Cabrais em Açores
(Celorico da Beira), e de D. Maria Miquelina Metelo Pacheco de Lemos
e Nápoles; pelo que a lógica de composição destas armas parece basear-se na reserva dos quartéis superiores para os costados paternos (Henriques e Cabral) 16 e dos quartéis inferiores para os costados maternos
(Metelo e Pacheco).
– O escudo da Figura 3, esquartelado de Albuquerque, Freire de Andrade,
Osório e Fonseca, é atribuível a D. Maria Amália Freire Cortês de Albuquerque, mulher do anterior 17. Era ilha do coronel António Freire
Cortês da Fonseca Osório e de D. Rita de Bourbon e Albuquerque,
pelo que a lógica seguida para a ordenação das suas armas privilegia
a ascendência materna, de Albuquerques, cujas armas ocupam o
primeiro quartel. Tal escolha poderá basear-se em dois factores, um
deles social, o outro propriamente heráldico: a importância e o prestígio desta progénie (trata-se dos célebres idalgos da Casa do Arco, em
14
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42
Os nomes de família são todos aqui uniformizados em consonância com a graia actualizada;
abre-se contudo excepção para os nomes de autores, que constam conforme vêm escritos nas
respectivas obras. Assim, o nome Metelo é grafado nesta sua versão actual, mas respeita-se a graia
antiga Metello usada pelos dois autores supra.
METELLO, Manuel Arnao; NÁPOLES, João Carlos Metello de, Metellos de Portugal, Brasil e
Roma, Lisboa: Associação Portuguesa de Genealogia, 1998, pp. 69-70.
A presença das armas de Henriques e Cabral provém da carta de armas concedida em 24 de
Julho de 1779 a Luís da Fonseca Cabral Teles Cerveira Pinto (irmão de um antepassado do
armígero representado na pintura em estudo), a quem foi atribuído um escudo esquartelado
de Pinto, Henriques, Cabral e Cerveira. Cfr. SANCHES DE BAÊNA, Visconde de, Archivo
Heraldico-Genealogico contendo noticias historico-heraldicas, genealogias e duas mil quatrocentas
cincoenta e duas cartas de brazão d’armas, das familias que em Portugal as requereram e obtiveram
e a explicação das mesmas familias em um indice heraldico com um appendice de cartas de brazão
passadas no Brazil depois do acto da independencia do Imperio, Lisboa: Typographia Universal,
1872, vol. I, pp. 449-450. Agradeço esta referência a Lourenço Correia de Matos.
Nascida em 1838 e falecida em 1888. METELLO, Manuel Arnao; NÁPOLES, João Carlos
Metello de, op. cit., p. 70.
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
Viseu); e o facto de as armas de Albuquerque conterem as quinas reais,
o que, segundo a tratadística vigente desde o século XVI, obrigaria a
dar-lhes primazia em relação às demais insígnias presentes num escudo
compósito 18. No caso vertente, os três outros quartéis remetem todos
para a ascendência paterna (Freire, Osório e Fonseca).
Os dois primeiros armígeros assim identiicados foram pais, entre outros,
do Dr. Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo 19 (veja-se Quadro Genealógico
anexo), pelo que se poderá obter a atribuição seguinte:
– O escudo da Figura 6, esquartelado de Freire de Andrade, Cabral,
Metelo e Pacheco, é atribuível a Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo,
ilho dos anteriores. A lógica de organização das suas armas parece
seguir um critério difícil de deinir: o primeiro quartel remete para a
varonia da ascendência materna (Freire), ao passo que o segundo deriva
da varonia da ascendência paterna (Cabral); o terceiro e o quarto quartéis, por sua vez, indicam a ascendência paterna em duas linhas matrilineares (Metelo e Pacheco). Tendo em consideração o nome do armígero,
surge uma explicação básica para esta escolha invulgar: talvez se tenha
seguido, simplesmente, a sequência dos apelidos no nome do armígero:
Freire, Cabral, Metelo; e, na ausência de um quarto apelido armoriado,
completou-se o esquartelado com as armas que, nas pinturas da casa
de jantar, vinham na sequência exacta do terceiro quartel (Metelo), ou
seja, as de Pacheco.
Tais lutuações na escolha dos quartéis colhem aliás precedência noutro
registo patrimonial: a pedra de armas que ornamenta a casa nobre desta mesma
família em Coimbra (Figura 7) 20. Com efeito, o edifício que foi residência dos
18
19
20
Sobre este assunto, veja-se SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVÃO-TELLES, João Bernardo,
“«Privilégios não valem sem serem expressos» A casa da Praça em Óbidos: um caso de heráldica
de família nos inais do Antigo Regime”, Dislivro Histórica, n.º 2, 2009, pp. 225-279.
Nascido em Coimbra em 1867 e falecido em Carcavelos em 1924. METELLO, Manuel Arnao;
NÁPOLES, João Carlos Metello de, op. cit., p. 86.
Devo a Marta Manuel Gomes dos Santos a fotograia desta pedra de armas com que se ilustra o
presente texto e que lhe agradeço tanto mais que a localização da mesma pedra, posta a grande
altura e numa rua estreita, diiculta bastante tal operação. Sobre este exemplar, cfr. MACHADO,
Pedro da França, “Heráldica de Coimbra: os Cabrais Metelos”, Munda, n.º 27, 1994, pp. 43-50.
O autor evidencia a integração desta família, oriunda da Beira Alta, na sociedade coimbrã, que
ocorreu na geração dos pais de Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo; antes, portanto, do passo
seguinte na estratégia de ascensão social, que consistiu na implantação deste último na capital do
reino e no seio da nobreza titular aí residente. A pedra de armas coimbrã já havia sido identii-
43
MIGUEL METELO DE SEIXAS
Figura 7: Pedra de armas da casa dos Cabrais Metelos em Coimbra (fotograia de
Marta Manuel Gomes dos Santos)
Cabrais Metelos nesta cidade,
situado à rua da Matemática,
apresenta um escudo esquartelado de Fonseca, Pacheco, Cabral
e Freire, com timbre de Fonseca
(um touro carregado de uma
estrela). Os três primeiros quartéis reportam-se à ascendência de
Francisco Cabral Metelo Pacheco
de Lemos e Nápoles Manuel (quer por via paterna – Cabral e Fonseca, quer
materna – Pacheco), ao passo que o quarto quartel só pode provir de sua mulher
D. Maria Amália Freire Cortês de Albuquerque. O que situa esta pedra de armas
na conluência genealógica deste casal, permitindo datá-la, de forma lata, no
terceiro quartel de Oitocentos 21.
Vejamos agora quanto às duas restantes pinturas da casa de jantar do
palácio lisboeta:
– O escudo da Figura 4, partido de Almeida e Vasconcelos, com coronel
de conde, correspondendo às armas usadas pelos condes da Lapa e pelos
condes de Moçâmedes, é atribuível a D. José Francisco de Almeida
e Vasconcelos do Soveral de Carvalho da Maia Soares de Albergaria,
1.º visconde e 1.º conde de Moçâmedes 22;
21
22
44
cada por PROENÇA-MAMEDE, Eduardo, “Heráldica Conimbricense”, Munda, n.º 22, 1991,
pp. 53-61, porém sem o enquadramento histórico social que viria a ser fornecido por Pedro da
França Machado. É de notar que a pedra coimbrã já apresenta alguns dos elementos exteriores
que seriam retomados pelas pinturas lisboetas, como os ramos de loureiro e de carvalho passados
em aspa (aliás difundidos pela própria heráldica régia coeva), e o elmo encimado por timbre.
MACHADO, Pedro da França, op. cit.,pp. 44-45.
Viveu entre 1840 e 1908, sendo ilho secundogénito de Manuel Francisco das Misericórdias de
Almeida e Vasconcelos do Soveral de Carvalho da Maia Soares de Albergaria, 2.o conde da Lapa,
e de D. Francisca de Paula Luísa de Sousa (ilha dos 2.os marqueses de Borba). Cfr. PINTO,
Albano da Silveira; SANCHES DE BAÊNA, Visconde de, Resenha das Familias Titulares e
Grandes de Portugal, Lisboa: Empreza Editora de Francisco Arthur da Silva, 1890, tomo II,
pp. 77-78 e 159-160.
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
– O escudo da Figura 5, de armas plenas de Sobral, com coronel de
conde, correspondendo às armas usadas pelos condes do Sobral, é atribuível a D. Maria Margarida Braamcamp Sobral de Melo Breyner 23.
Os dois últimos armígeros eram pais de D. Maria Luísa José de Jesus Luís
Gonzaga Rafael de Sales de Santa Cruz de Almeida e Vasconcelos (1877-1963),
que foi casada com o referido Dr. Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo. Deste
modo, conclui-se que os painéis da casa de jantar representam os progenitores
do casal formado por D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos e Baltazar Cabral
Metelo, icando as armas deste último iguradas no medalhão da sala de entrada.
É de supor que, para completar este quadro genealógico-heráldico, as armas de
D. Maria Luísa estivessem, por sua vez, representadas noutra manifestação entretanto desaparecida (mais um painel?) 24.
A identiicação heráldica operada permite estabelecer uma datação das
pinturas em estudo. Elas são forçosamente posteriores ao casamento entre
D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos e Baltazar Freire Cabral, o qual ocorreu
em 1899; e presumivelmente anteriores à morte deste último, ocorrida em 1924.
Consideremos ainda o facto de ter havido dois ilhos deste casal: o primogénito,
Francisco Xavier de Jesus Freire Cabral Metelo Pacheco, nascido em 1900, casou
em 1922 com D. Maria da Conceição Burnay de Melo Breyner, ilha dos 4.os
condes de Mafra; o secundogénito, José de Almeida e Vasconcelos Freire Cabral,
nascido em 1901, casou em 1929 com D. Maria da Pureza José de Melo, ilha dos
12.os condes de São Lourenço 25 (veja-se Quadro Genealógico anexo). Nenhuma
destas prestigiosas ligações tem expressão nas pinturas heráldicas, pelo que se
pode supor que estas tenham sido realizadas antes do casamento do primeiro
ilho, em 1922 (tanto mais que este matrimónio aparentava os donos do palácio
com a primeira nobreza de Portugal, uma vez que os condes de Mafra constituíam
ramo segundo da antiquíssima casa dos marqueses de Ficalho). Pelo que a heráldica permite datar todas estas manifestações, com segurança, entre os anos 1899
e 1924, podendo eventualmente recuar esta última data para 1922.
23
24
25
Filha de Luís de Melo Breyner e de D. Adelaide Braamcamp Sobral de Almeida Castelo Branco
Narbonne e Lara, sendo esta 2.ª condessa do Sobral por direito próprio e ele conde jure uxoris;
daí, no caso de D. Maria Margarida, a exclusão das armas paternas em prol das maternas, representativas do título. IDEM, Ibidem, tomo II, pp. 625-626.
Seguindo a norma heráldica corrente na época, tais armas deveriam consistir num escudo partido
com as armas do marido à dextra (esquartelado de Freire, Cabral, Metelo e Pacheco) e as armas
paternas à sinistra (partido de Almeida e Vasconcelos). Mas não é impossível que a armígera,
diante da complexidade deste ordenamento, tivesse optado por alguma versão simpliicada.
METELLO, Manuel Arnao; NÁPOLES, João Carlos Metello de, op. cit., pp. 86-87 e 104-105.
45
MIGUEL METELO DE SEIXAS
Como se vê, a heráldica foi até agora aplicada na sua utilidade tradicional
de instrumento de reconhecimento e datação. Ela permitiu uma identiicação
positiva, estabelecendo a ligação do palácio da calçada do Combro com o casal
formado por Baltazar Freire Cabral Metelo e D. Maria Luísa de Almeida e
Vasconcelos. O que leva a precisar a designação até agora atribuída ao palácio:
ele tem sido chamado de palácio Cabral e relacionado com a família dos condes
de Belmonte (Figueiredo Cabral da Câmara) 26. Quando, na verdade, este palácio
pertenceu à família Freire Cabral Metelo. Por im, como vimos, a análise heráldica permitiu ainda estabelecer uma datação das derradeiras intervenções arquitectónicas privadas neste palácio, situando-as entre 1899 e 1922.
Até agora, a análise heráldica foi usada como “ciência auxiliar” da História.
Poder-se-á ir além? Proponho quatro perspectivas complementares:
1) O estudo da Heráldica como forma de História da Arte. É possível,
com efeito, proceder a uma análise histórico-artística das manifestações heráldicas, envolvendo quer as circunstâncias da sua realização, quer a sua inserção nas
correntes da época.
Em relação ao primeiro ponto, as pinturas armoriadas do palácio Cabral
Metelo exibem algumas idiossincrasias capazes de fornecer pistas para determinar
as iliações dos modelos heráldicos seguidos pelo artista. Veriica-se, com efeito,
uma série de peculiaridades na representação de algumas armas:
– nas armas de Albuquerque, o campo das lores-de-lis apresenta-se de
azul e não de vermelho, como é usual;
– no timbre de Albuquerque, o usual meio-voo carregado de lores-de-lis
é substituído por um castelo rematado por uma lor-de-lis;
26
46
Entretanto, Isabel Mayer Godinho de Mendonça, explorando tal assunto, conseguiu esclarecer
a genealogia deste erro, que deverá radicar numa identiicação apressada por parte de Norberto
de Araújo, depois repetida por autores sucessivos. Veja-se o artigo desta autora em “O Palácio
de Fernando de Larre e os seus estuques”. Revista de História da Arte, n.º 13, no prelo. A hipótese de uma ligação do edifício à família Belmonte durante o século XIX não deve contudo ser
liminarmente descartada. Com efeito, o citado 2.º conde da Lapa (avô paterno de D. Maria
Luísa de Almeida e Vasconcelos) era ilho de Manuel de Almeida e Vasconcelos, 1.º conde da
Lapa, e de sua mulher D. Francisca de Paula da Câmara e Meneses. Esta última senhora, por
sua vez, era ilha de D. Pedro da Câmara de Figueiredo Cabral, senhor de Belmonte, e de sua
mulher D. Mariana de Meneses. Teria o palácio da calçada do Combro transitado da família
fundadora para a de Belmonte (supostamente por compra) e desta, por casamento, para a casa
de Lapa/Moçâmedes? Seria, por conseguinte, D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos herdeira
do palácio por via de sua bisavó D. Francisca de Paula da Câmara e Meneses? Só a investigação
poderá vir a esclarecer este ponto.
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
– nas armas de Osório, em vez do escudo de ouro com dois lobos de
vermelho tradicionalmente atribuído por armoriais e cartas de brasão,
igura uma versão com uma banda acompanhada de dois lobos;
– e nas insígnias de Pacheco, em vez das armas plenas, consta um escudo
diferençado com uma lor-de-lis, o que se conigura tanto mais insólito quanto os pequenos móveis usados para diferençar se colocam no
primeiro quartel 27, ao passo que aqui iguram… no último!
Ao procurar a origem desta sequência de singularidades, veriiquei que elas
só aparecem, em conjunto, na versão portuguesa dos Elementos de História do
abade de Vallemont, obra editada em Portugal em 1741 com tradução e ampla
adaptação de Pedro de Sousa de Castelo Branco: nas gravuras (abertas por Claude
de Rochefort 28) com que este erudito completou a versão portuguesa, iguram
quer o campo de azul e o peculiar timbre de Albuquerque (Figura 8) 29, quer
a versão inédita das armas de Osório (Figura 9),
quer ainda a diferença incompreensivelmente
inserida nas armas de Pacheco (Figura 10) 30.
Comparando as estilizações e as proporções
presentes nas gravuras da obra de Pedro de Sousa
de Castelo Branco com as pinturas armoriadas
do palácio Cabral Metelo, logo se veriica, sem
Figura 8: Gravura com as armas de Albuquerque
Meneses na obra Elementos de História Vária
do abade de Vallemont, versão portuguesa de
Pedro de Sousa de Castelo Branco (1741)
27
28
29
30
O tema das diferenças usadas na heráldica portuguesa tem atraído a atenção de alguns autores.
A partir do estudo clássico de SÃO PAYO, Conde de (D. António), Do Direito Heraldico Português. Ensaio Historico Jurídico, Lisboa: Centro Tipográico Colonial, 1927, vejam-se as considerações correctivas de NORTON, Manuel Artur, “Acerca de diferenças”, Armas e Troféus, V série,
tomo VI, 1985-86, pp. 65-74; IDEM, “Acerca de diferenças II”, Armas e Troféus, VI série, tomo
II, 1989-90, pp. 21-28; SAMEIRO, Pedro, “Das diferenças em heráldica”, Armas e Troféus,
VIII série, tomo II, 1998, pp. 51-70; e VASCONCELOS, Francisco de, “A Brica”, Armas e
Troféus, IX série, 2009, pp. 151-180.
Cfr. SOARES, Ernesto, História da Gravura Artística em Portugal, Lisboa: Livraria Sam Carlos,
1971, vol. II, pp. 527-528.
Neste caso, o cromatismo é representado por via do código dos tracejados, comummente usado
em Portugal desde o século XVIII: o esmalte azul é assinalado por linhas horizontais.
VALLEMONT, Abade de, op. cit., pp. 39 (Osório), 45 (Pacheco) e 46 (Albuquerque Meneses).
47
MIGUEL METELO DE SEIXAS
Figura 9: Gravura com as armas de Osório na obra Elementos de História Vária do
abade de Vallemont, versão portuguesa de
Pedro de Sousa de Castelo Branco (1741)
Figura 10: Gravura com as armas de Pacheco na obra Elementos de História Vária do
abade de Vallemont, versão portuguesa de
Pedro de Sousa de Castelo Branco (1741)
contestação, que estas copiaram aquelas. Um simples relance sobre as demais
armas representadas no palácio lisboeta e as respectivas representações na mesma
obra setecentista permite concluir que esta serviu como fonte de inspiração directa
para a maior parte das armas ali representadas (Figura 11). Assinale-se ainda que
as gravuras heráldicas da obra de Vallemont, na sua adaptação portuguesa, foram
depois editadas em separata sob o título de Armas de que uzão os Grandes e Titulos
do Reino de Portugal e suas Familias mais Illustres. O que garantiu a estes modelos
plásticos uma circulação mais facilitada e, bem entendido, mais vasta.
Teria então o artista do palácio Cabral Metelo seguido o modelo fornecido
pelo tratado setecentista? Embora a resposta, face ao exposto, pareça ter de ser
positiva, creio que há ainda outro factor a ter em consideração. A segunda metade
do século XIX constituiu uma fase de profunda remodelação da heráldica. Esta
sobreviveu à queda do Antigo Regime e à implantação do liberalismo e da sociedade industrial; mas, ao adaptar-se a estas novas realidades sociais e políticas,
sofreu uma alteração radical da sua natureza, das suas aplicações, da sua carga
semiótica. Deixou de estar principalmente ao serviço da Coroa e da nobreza,
como instrumento de airmação de estatuto social privilegiado; passou a servir
diferentes intuitos, mais ligados a outras dimensões identitárias: nacionalistas,
48
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
Figura 11: Gravuras com as
armas de Cabral, Fonseca,
Freire de Andrade, Henriques e Vasconcelos na obra
Elementos de História Vária
do abade de Vallemont,
versão portuguesa de Pedro
de Sousa de Castelo Branco
(1741)
comunitárias, historicistas, comerciais, industriais, desportivas 31. E, em simultâneo, ganhou expressões artísticas e literárias até então insuspeitas ou impensáveis 32. Essa capacidade de adaptação que a heráldica tem vindo a demonstrar
desde o seu aparecimento, no século XII, até aos nossos dias, constitui uma característica surpreendente, que tem sido apontada como chave para o entendimento
do sucesso deste código emblemático 33.
31
32
33
Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de, Heráldica, representação do poder e memória da nação: o armorial autárquico de Inácio de Vilhena Barbosa, Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2011,
pp. 393-427; e SEIXAS, Miguel Metelo de, “A heráldica em Portugal no século XIX: sob o
signo da renovação”, Análise Social, n.º 202, vol. XLVII (1.º), 2012, pp. 56-91.
Veja-se, por exemplo, SEIXAS, Miguel Metelo de, “«E o meu brazão… Tem de oiro n’um
quartel vermelho um lys…» Camilo Pessanha e a heráldica”, Oriente, n.º 19, 2008, pp. 44-66.
Cfr. SAVORELLI, Alessandro, Piero della Francesca e l’ultima crociata. Araldica, storia e arte tra
gotico e Rinascimento, Firenze: Le Lettere, 1999.
49
MIGUEL METELO DE SEIXAS
Na fase de transição do século XIX, a heráldica atravessou outrossim uma
remodelação enquanto conhecimento: dos parâmetros normativos e simbólicos que haviam formado a sua espinha dorsal até então, o saber heráldico foi
evoluindo para a condição de “ciência auxiliar da História”. Tal alteração teve
consequências relevantes no que respeita ao panorama editorial: cessaram praticamente as compilações e publicações de tratados de armaria, que haviam sido tão
abundantes sob o Antigo Regime 34; e surgiram as primeiras obras de enquadramento histórico do fenómeno heráldico 35.
Houve, contudo, uma obra que se pode assinalar como excepção neste
período de quebra da produção dos armoriais tradicionais à maneira do Antigo
Regime: trata-se da Collecção dos Brazões das Familias Illustres de Portugal editada,
segundo Augusto Ferreira do Amaral, entre 1834 e 1860 36. O mesmo estudioso
assinala que os compiladores deste armorial oitocentista se inspiraram directamente na obra de Pedro de Sousa de Castelo Branco, como ica patente pela
observação das gravuras (coloridas, na edição oitocentista). Mas não se tratou
de uma mera reedição: é verdade que a Collecção copiou o antecedente armorial “ielmente, na matéria e na forma em tudo quanto o autor entendeu que
não devia ser modiicado. Não obstante, muitas e importantes alterações foram
introduzidas.” 37 Todas elas, tanto omissões como correcções e acrescentos, foram
ditadas pela vontade de actualizar o conjunto de emblemas exibidos.
Todas as armas anteriormente citadas como prova de proximidade entre
as pinturas do palácio Cabral Metelo e as gravuras setecentistas dos Elementos de
História iguram igualmente na Collecção dos Brazões do século seguinte. Com
uma actualização interessante para o caso vertente: na gravura correspondente
às insígnias dos marqueses de Lavradio, os compiladores oitocentistas juntaram
a indicação de que o barão de Moçâmedes usava das mesmas armas (plenas de
Almeida); para assinalar, contudo, que a cada um cabia o respectivo coronel, os
mesmos organizadores recorreram a um estratagema engenhoso: sobre o elmo,
34
35
36
37
50
Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de, “Qual pedra íman: a matéria heráldica na produção cultural do
Antigo Regime”, Lusíada. História, série II, n.º 7, 2010, pp. 357-413.
SEIXAS, Miguel Metelo de, “A heráldica em Portugal no século XIX…”, pp. 85-86.
Collecção dos Brazões das Familias Illustres de Portugal (apresentação e estudo de Augusto Ferreira
do Amaral), Lisboa: A Nova Ecléctica, 2003 (trata-se de edição fac-similada, precedida de
erudita contextualização). Assinale-se que foram também publicadas duas compilações das
armas da nobreza titular, ambas porém com carácter ilustrativo e inseridas em obras que constituíam repertórios actualizados desta mesma camada nobiliárquica: PINTO, Albano da Silveira;
SANCHES DE BAÊNA, Visconde de, Resenha das Familias Titulares e Grandes de Portugal,
Lisboa: Empreza Editora de Francisco Arthur da Silva, 1890; e FREITAS, A. M. de, Annuario
da Côrte Portuguesa para 1895, Lisboa: M. Gomes Editor, 1895.
AMARAL, Augusto Ferreira do, “Apresentação e Estudo”, in Collecção dos Brazões…, p. 21.
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
iguraram metade do coronel de marquês e metade do de barão, em simetria com
a legenda sotoposta (Figura 12).
Não podemos ter a certeza de qual o modelo seguido pelo artista para a
execução das pinturas do palácio Cabral Metelo: tanto pode ser o armorial do
século XVIII como a sua versão oitocentista. Mas é natural que houvesse alguma
preferência por uma obra mais actualizada. Em qualquer caso, a evidência da
inspiração numa das duas obras remete para uma questão amiúde esquecida: a da
circulação de gravuras com imagens heráldicas que, por via de igurinos normalizados, exerceram inluência marcante sobre as realizações plásticas mais variadas
(pedras de armas, pinturas, louça, desenhos, iluminuras, aplicações na indumentária, etc.).
Neste caso, temos a prova de que o artista seguiu um modelo impresso,
cujas omissões terá completado com desenhos seus (para as armas de Metelo, que
não iguram nos referidos armoriais), tratando em seguida de encaixar os escudos
num determinado conjunto de elementos externos ao gosto neo-barroco, porventura também ele copiado de alguma fonte em circulação na época. Terá esta opção
derivado de escolha directa do pintor? Ou antes de recomendação explícita do
comanditário? Estas questões, por ora sem resposta, aiguram-se importantes para
compreendermos como se processava, na prática, a criação deste género de manifestações plásticas.
As opções estilísticas do conjunto de pinturas heráldicas do palácio Cabral
Metelo são também reveladoras de um gosto e de uma sensibilidade próprios da
época e do meio social para o qual foram geradas. Naturalmente, estas pinturas
apresentam as características revivalistas típicas das artes decorativas da transição
do século XIX para o XX.
A escolha do igurino neo-barroco não será, contudo,
fortuita. E é, a vários títulos,
surpreendente. Na verdade,
os revivalismos oitocentistas portugueses colheram
inspiração preferencial na
arte medieval, com marcada
Figura 12: Gravura com as armas
do marquês de Lavradio e do barão
de Moçâmedes na obra Collecção
dos Brazões das Familias Illustres
de Portugal (entre 1834 e 1860).
51
MIGUEL METELO DE SEIXAS
predilecção pelos estilos gótico e manuelino: o que correspondia ao enaltecimento de uma época alçada a um prestígio incomparável pela historiograia e
pela arte romântica.
Neste contexto, a preferência inusitada pelo neo-barroco poderá explicar-se pelo próprio contexto social e objectivo subjacente à realização destas pinturas
armoriadas. Não oferece dúvida que o intuito consistia em fornecer ao observador um verdadeiro quadro genealógico da ascendência do casal proprietário
do palácio. O conjunto destas pinturas forma assim o equivalente às galerias
de retratos de antepassados, aqui patente apenas sob a forma abstracta das suas
armas. Sobressai portanto uma forte carga de auto-exaltação genealógica, valorativa da supremacia da família baseada em critérios de antiguidade e prestígio.
Sucede, porém, que a formação das alianças genealógicas patentes nas
pinturas armoriadas referentes à ascendência de Baltazar Freire Cabral Metelo
(Figuras 2 e 3) aponta para o período inal do Antigo Regime. De igual modo,
as pinturas relativas à ascendência de D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos
(Figuras 4 e 5) retratam famílias que nessa mesma época receberam os seus títulos
de nobreza ou até as suas armas 38. Deste modo, ao escolher um enquadramento
neo-barroco, o artista e o comanditário estavam a remeter (tendo também em
conta o carácter tendencialmente arcaizante da arte heráldica) para a época em
que haviam ocorrido as fusões genealógicas e as titulações nobiliárquicas retratadas naquele conjunto de pinturas armoriadas.
Acresce, por im, que a fundação do edifício para o qual as pinturas foram
mais tarde concebidas, e em cuja decoração foram integradas, datava igualmente
do período barroco ou, mais precisamente, rocaille. Não sendo o palácio originariamente propriedade da família assim retratada, a adaptação das pinturas armoriadas ao estilo do edifício vinha, por assim dizer, proporcionar uma colagem
histórica. Adaptando-se ao igurino barroco, estas pinturas imbricavam, aos olhos
dos observadores de inais do século XIX, a história do palácio com a da família
então sua detentora. O eventual impulso de coerência estética compaginava-se
assim na perfeição com o desejo de valorização nobiliárquica, aproveitando-se do
envolvimento arquitectónico em que a matéria heráldica se enxertava.
2) O estudo da Heráldica como arte decorativa. Procurando ainar a análise
histórico-artística destas manifestações heráldicas, veriica-se a existência de três
outros critérios passíveis de interpretação:
38
52
Os condes de Moçâmedes formam um ramo segundo da linhagem que em 1822 recebeu o título
de conde da Lapa; ao passo que a família Sobral recebeu armas novas em 1776, a que se veio
juntar o título de barão do Sobral em 1813 (depois aumentado para visconde e inalmente para
conde da mesma invocação).
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
– Localização. As armas do dono da casa são iguradas isoladamente no
átrio do andar nobre, a seguir à escadaria, no medalhão central do
tecto. Trata-se de uma escolha que denota a vontade de assinalar ao
visitante a penetração num universo privado, identiicado pelas armas
que, neste contexto, emitem (entre outras mensagens) um sinal de
posse. A sala vaga, à entrada do andar sobrado, guardaria ainda um
pouco do carácter semi-público que tivera sob o Antigo Regime, na
medida em que funcionava como espaço de acolhimento do visitante
e de distribuição entre as diversas unidades funcionais desse mesmo
piso; pelo que se compreende que tenha sido esse o palco escolhido,
pela abrangência dos seus putativos observadores bem como pelo valor
simbólico inerente à localização, para a iguração das armas do proprietário. A preferência pelo medalhão central do tecto deverá prender-se
com os critérios de maior visibilidade e, bem assim, de preenchimento
simbólico do lugar mais elevado. Quanto às restantes quatro pinturas,
denotativas da ascendência dos dois membros do casal, inseriam-se na
casa de jantar, igualmente no tecto; o que remete para a vulgarização,
operada no século XIX, deste género de área de função especializada
(ao contrário do que sucedia até então), que se transformou no espaço
de convivialidade por excelência. Desta forma, pode airmar-se que, a
seguir à sala de entrada, a casa de jantar seria o lugar mais propício para
a exibição eicaz da galeria heráldica; ao passo que as armas patentes na
primeira se destinavam a ser observadas por todos quantos entrassem
no andar nobre (pela escadaria principal), as que ornavam a segunda
dirigiam-se ao círculo mais restrito dos que partilhavam com a família
as formas de sociabilidade burguesa então dominantes.
– Reconstituição da magnitude da heráldica na decoração interior. Infelizmente, veriicou-se o esvaziamento do recheio da casa, a que se
soma o desconhecimento de fotograias que nos mostrem como seria
a decoração na época em que foram realizadas as pinturas. Contudo,
outros casos lisboetas coevos, em estudo no projecto “A Casa Senhorial”, evidenciam que as manifestações actualmente reconhecíveis deveriam ter continuidade em diversos suportes materiais (outras pinturas,
mobiliário, tecidos, porcelanas, vidros, pratas, jóias, objectos de uso
pessoal, etc.). Atendendo à qualidade e dimensão das pinturas sobreviventes, atrevo-me a dizer que estas outras formas de presença heráldica
não podiam deixar de existir no palácio Cabral Metelo. A sua perda
condiciona a percepção que temos do uso da heráldica no seio das artes
decorativas, designadamente no que se prende com a interacção entre
53
MIGUEL METELO DE SEIXAS
decoração integrada e avulsa. E isso deve ser tido em conta quando
temos em mente a reconstituição dos interiores palacianos, em particular no que se prende com a importância que os motivos heráldicos
teriam para a sua decoração interior.
– Articulação da decoração heráldica interior com o exterior do edifício.
O palácio Cabral Metelo não exibe presentemente qualquer manifestação heráldica exterior. Nada, na sua elegante fachada, fornece
indício de que tenha aí sido em tempos colocada (e retirada) uma
pedra de armas. Existe contudo
notícia de que a família Larre, a
quem pertenceu originalmente o
palácio, fez uso de armas, como
se pode observar por uma pedra
provinda da herdade de Bussalfão,
perto de Évora, hoje conservada
no Museu desta cidade 39 (igura
13). A pedra de Évora corresponde
aliás na essência às armas que esta
família usou em França: de ouro,
uma árvore de verde ladeada das
Figura 13: Pedra de armas da herdade
do Bussalfão, junto de Nossa Senhora
de Machede, hoje conservada no
Museu da Cidade de Évora (fotograia de António Rei).
39
54
A existência desta pedra de armas foi-me revelada por Miguel Telles Moniz Côrte-Real, a
quem agradeço todas as indicações fornecidas a esse respeito, nomeadamente a sua descrição
em BARATA, António Francisco, Catalogo do Museu Archeologico da Cidade de Évora, Lisboa:
Imprensa Nacional, 1903, p. 27 (n.º 32). Este autor descreve o escudo da seguinte forma: “uma
arvore no campo, com as raízes patentes e no fundo a palavra LARRE. Foi picado dos lados
da arvore, onde haveria alguns emblemas”; mais indica que a herdade de Bussalfão ou Salfão,
junto a Nossa Senhora de Machede, pertenceu comprovadamente à família Larre, pelo que a
identiicação não causa qualquer dúvida. Devo a António Rei a fotograia da pedra de armas
que ilustra o presente artigo, autorizada por António Alegria, Director do Museu de Évora; a
ambos agradeço a gentileza. A imagem mostra que a palavra LARRE se encontra em exergo,
fora do escudo, não fazendo portanto parte integrante das armas; e evidencia ainda a cartela ao
gosto barroco, de elegante delineamento, encimada pelo que parece ser um coronel de nobreza.
O formato do escudo aproxima-se do que se designa por “cabeça de cavalo”, correspondendo a
uma moda italianizante.
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
letras D e L e acompanhada de uma estrela de azul no cantão dextro da
ponta 40. Se a família Larre ostentava armas numa sua herdade alentejana, por maior força de razão o faria igualmente nas casas de morada na
capital do reino, sobretudo no principal palácio erguido por Fernando
de Larre em São Sebastião da Pedreira 41. Guardam-se hoje no Museu
Arqueológico do Carmo, em Lisboa, duas pedras de armas de origem
desconhecida, cujo escudo apresenta uma árvore ladeada por dois crescentes entrelaçados e uma estrela; estes exemplares têm sido atribuídos,
com reservas, à família Soromenho, de cujas armas divergem porém
bastante 42. Dada a sua similitude com as armas de Larre, tanto na
sua versão francesa como eborense, coloca-se a hipótese de estas duas
pedras provirem do palácio desta família em São Sebastião da Pedreira
(ou mesmo do da calçada do Combro), de onde teriam sido retiradas
no século XIX, quando efectivamente tais casas deixaram de pertencer
aos descendentes desta família, sendo então as pedras recolhidas no
Museu Arqueológico.
Seja como for, a partir do século XIX, as famílias aristocráticas por cujas mãos passou a propriedade da calçada do Combro não
acharam necessário assinalar tal facto por meio da ostentação da respectiva heráldica na fachada do edifício. No actual desconhecimento da
sucessão exacta dos proprietários oitocentistas e da sua presença efec40
41
42
Bibliothèque Nationale de France, Ms. Fr. 32.206, élection de Bayonne, n.º 50. Considere-se
que as iguras picadas na pedra proveniente da herdade do Bussalfão poderiam corresponder
à estrela e a qualquer outro elemento ausente do ordenamento registado no armorial francês.
O uso de tais armas em Portugal nunca foi, tanto quanto sei, objecto de qualquer pedido de
autorização junto da autoridade heráldica competente. O que não se deve propriamente estranhar, uma vez que a heráldica assumida continuou a desempenhar um papel de relevo em
Portugal ao longo da Idade Moderna.
As casas nobres da quinta de São Sebastião da Pedreira, juntamente com o vasto jardim igualmente fundado por Fernando de Larre, permaneceram na posse desta família por cerca de 130
anos; foram adquiridas em 1860 por José Maria Eugénio de Almeida, que as reconstruiu e
redecorou ao gosto oitocentista. O palácio Vilalva, como icou também conhecido pela designação do título nobiliárquico concedido a este capitalista em 1908, acabou por ser vendido em
1947 ao Exército, que continua a ser seu proprietário. Cfr. FRANCO, Luís Farinha, História
do Parque da Fundação Gulbenkian, Lisboa: separata do Guia Botânico do Parque da Fundação
Gulbenkian, 1989.
PINTO, Segismundo; OLIVEIRA, Lina Maria Marrafa de, “Peças de interesse heráldico”, in
ARNAUD, José Morais; FERNANDES, Carla Varela (coord.), Construindo a Memória. As colecções do Museu Arqueológico do Carmo, Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2005,
pp. 382-406, p. 399 (exemplares n.º 1363 e 1364). Acrescente-se ainda que não se conhece, para
o século XVIII, o uso de armas plenas de Soromenho por parte de família alguma.
55
MIGUEL METELO DE SEIXAS
tiva no palácio, será arriscado adiantar qualquer explicação acerca
desta ausência, que pode ter sido motivada por simples falta de ligação
concreta e estável. Pelo contrário, as pinturas armoriadas instaladas por
Baltazar Cabral Metelo e sua mulher evidenciam uma nítida vontade de
apropriação do espaço e de sua transformação num lugar de memória
para a família. Pareceria natural, nesta circunstância, apor uma pedra de
armas na fachada, de forma a tornar esta ligação patente para qualquer
transeunte. Ou, pelo menos, essa teria sido uma opção costumeira nos
tempos do Antigo Regime. Talvez a contenção da heráldica no interior
transmitisse, por parte dos comanditários das pinturas armoriadas, um
relexo do contexto inissecular: tempos inais da monarquia, tempos
de instauração do regime republicano, tempos de profundas alterações
do tecido social – particularmente nas camadas dominantes. Ou então,
mais prosaicamente, a ausência de pedra de armas poderia resultar do
cuidado em evitar a aplicação do imposto criado em 1887, que incidia
precisamente sobre este género de prática, considerada como exibição
sumptuária 43. Os tempos, em suma, eram mais propícios à exaltação
privada das origens idalgas que à sua exibição pública…
3) O estudo da Heráldica como auto-representação. Os emblemas heráldicos desempenham amiúde o papel de auto-representação de indivíduos, grupos
sociais ou instituições. Nesse sentido, as pinturas armoriadas do palácio Cabral
Metelo transmitem visualmente a rede de parentesco próximo do casal comanditário, em sentido ascendente, isto é, relativo à sua proveniência genealógica.
O esquema aplicado revela a vontade de exibir essa ascendência segundo um
plano rigoroso, uma vez que se encontram representados os progenitores de
ambos os membros do casal. Assim, as pinturas assumem-se como sinais denotativos da qualidade das alianças genealógicas da família na geração imediatamente
anterior, vincando a natureza aristocrática dos costados do casal.
Além da presença das armas, que remetem especiicamente para as linhagens assim representadas, abundam nas pinturas os sinais genéricos da condição
43
56
A lei de 15 de Julho de 1887 pode ser consultada na Collecção Oicial da Legislação Portugueza. Ano de 1887, Lisboa: Imprensa Nacional, 1888, pp. 299-300. Esta legislação iscal, que
terá provocado e apeamento (e eventual destruição) de pedras de armas, foi alvo de crítica por
parte de SAMODÃES, Conde de, Os Brasões e os Títulos, Porto: s.n., 1888, e de ORTIGÃO,
Ramalho, “Os nossos brasões”, Brasil Portugal, n.º 25, 1900 (texto depois incorporado em Obras
Completas de Ramalho Ortigão. Folhas Soltas. 1865-1915, Lisboa: Livraria Clássica Editora,
1956, pp. 283-289). Sobre os percalços na aplicação desta lei, veja-se FIGUEIROA-RÊGO,
João de. “A «collecta sumptuária» e alguns aspectos da sua controversa aplicação”. Arquipélago.
História, 2.ª série-VII (2003), pp. 285-304.
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
aristocrática. Podemos classiicá-los em dois grupos: uns, por via das insígnias
originariamente denotativas do estatuto de cavaleiro, aludem tão-somente à
condição nobre, como é o caso de escudos, elmos, paquifes e plumões; os outros
remetem para dignidades especíicas, no caso dos coronéis representativos da
dignidade de conde.
Aigura-se signiicativo veriicar que três das pinturas (Figuras 2, 3 e 6)
exibem apenas os sinais genéricos de nobreza, correspondendo às armas de Baltazar
Cabral Metelo e seus pais, efectivamente membros de uma idalguia não-titular.
Em contraposição, as pinturas referentes às armas dos pais de D. Maria Luísa de
Almeida e Vasconcelos (Figuras 4 e 5) exibem as insígnias condais. A conjugação
destes níveis diferenciados de mensagem nobiliárquica pode ser interpretada
como forma de construção de uma imagem própria desta linhagem, resultante
da fusão da idalguia de província com a nobreza titular de corte. Os casamentos
dos ilhos deste casal, que se deram, como vimos, com rebentos de antigas casas
titulares, vieram sem dúvida reforçar tal inserção da linhagem nos circuitos da alta
nobreza. Deste modo, o conjunto das pinturas armoriadas comunica visualmente
uma representação que a linhagem constrói de si própria e pretende difundir
pelos frequentadores do palácio.
4) O estudo da heráldica como forma de comunicação. A questão assim
abordada leva-nos a uma problemática de fundo: na sua essência, a Heráldica
constitui um fenómeno comunicacional, como assinalou Menéndez Pidal 44.
Como tal, a base da heráldica, ao contrário do que era estatuído pelos tratados de
armaria, não reside na existência e concepção abstracta das armas, mas nas suas
sucessivas manifestações plásticas. O estudo das manifestações heráldicas abrange,
assim, os principais intervenientes neste tipo de processo de comunicação:
– Emissores, que devem ser analisados, em particular, em função da sua
necessidade de criar um sinal heráldico. Para esse efeito, aiguram-se primordiais os estudos biográicos e prosopográicos, capazes de
fornecer indicações sobre a inserção dos indivíduos no tecido social e
cultural, e sobre as motivações e objectivos da emissão dos respectivos
sinais heráldicos.
– Receptores, que podem variar consoante a permanência cronológica
dilatada do mesmo sinal heráldico, tendo também em conta as possíveis alterações de enquadramento social e cultural dos espaços, edifícios ou objectos em que se veriica este mesmo sinal. É importante,
44
MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Faustino, Los emblemas heráldicos. Una interpretación
histórica, Madrid: Real Academia de la Historia, 1993; IDEM, “Apresentação”, in SEIXAS,
Miguel Metelo de; ROSA, Maria de Lurdes (coord.), Estudos de Heráldica Medieval..., pp. 15-24.
57
MIGUEL METELO DE SEIXAS
neste âmbito, procurar compreender a quem se destinavam as imagens
heráldicas: por exemplo, na sua eventual utilidade para a construção e
a manutenção de uma auto-consciência linhagística (como sinais observados, identiicados e transmitidos dentro da família – basta pensarmos
no impacto que as pinturas heráldicas do palácio Cabral Metelo terão
tido sobre os próprios membros da família, em particular os ilhos do
casal comanditário, que terão crescido nestes espaços); ou o seu uso
como instrumento de airmação frente a terceiros, dependendo neste
caso de variados factores que condicionam a exposição e a percepção
dos sinais heráldicos.
– E, inalmente, os próprios meios pelos quais os sinais heráldicos são
transmitidos, querendo com isto signiicar o conjunto de objectos
(no sentido lato) nos quais as mensagens heráldicas se inscrevem e,
consequentemente, pelos quais elas tomam forma. Este conjunto caracteriza-se pela sua vastidão e variedade, sendo praticamente inumeráveis
as formas que os objectos armoriados podem assumir. Curiosamente,
esta dimensão plástica da heráldica tem sido muito menos estudada
que a sua vertente abstracta. Tenha-se em conta que cada manifestação
plástica armoriada deve ser analisada não só no contexto da época
em que foi gerada (nomeadamente na sua relação com as formas de
arte coevas, de que a heráldica constitui amiúde um relexo eivado de
arcaísmos), mas também nas diferentes circunstâncias da perpetuação
da sua existência física (ou iconográica), ao longo da qual a percepção
desse mesmo objecto se vai enquadrando em práticas e interpretações
culturais potencialmente marcadas pelo signo da variação. Assim, um
objecto armoriado não existe apenas em função da sua génese, mas
também do seu próprio percurso histórico.
Em conclusão, espero ter chamado a atenção para o interesse de que a
Heráldica se pode revestir para o estudo do património, em particular no que
se refere ao entendimento das artes decorativas aplicadas ao interior das casas
senhoriais. Terá, em primeiro lugar, icado patente a utilidade da análise heráldica
praticada em moldes tradicionais, isto é, como instrumento passível de fornecer
dados para a identiicação e a datação; neste caso concreto, a heráldica forneceu
conhecimentos precisos sobre os comanditários e a época em que se realizaram as
intervenções da última ocupação privada que o palácio teve, antes de passar para
propriedade do Estado.
Mas, além disso, a Heráldica serviu também para abrir as perspectivas do
entendimento do edifício e em particular do seu interior, pelo menos no que
58
AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO
respeita a esta sua derradeira ocupação por uma família nobre. Nesse sentido,
revela-se importante o entendimento das manifestações heráldicas como documento integral, que funciona como forma de auto-representação e de comunicação, conferindo uma mensagem e um sentido concretos aos objectos e aos
espaços em que se insere.
Creio, por isso, que a inclusão de uma vertente heráldica no projecto
“A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro” poderá trazer vantagens
mútuas para historiadores e heraldistas. A tão propalada interdisciplinaridade
deve funcionar assim: como mútuo enriquecimento, permitindo que cada área do
saber ultrapasse o perigo do coninamento. Espero que o caso do palácio Cabral
Metelo possa revelar algumas potencialidades deste género de colaboração. Não
queria, porém, deixar de apontar para mais longe. A compreensão de casos especíicos é decerto importante, mas não deve deixar de lado a necessidade de começar
a traçar visões de conjunto, até agora inexistentes. Daí a importância e inovação
deste projecto no domínio da Heráldica: porque, ao contrário do que tantas
vezes se vê, os emblemas heráldicos não são (apenas) um retrato abstracto. Eles
correspondem a práticas concretas de representação; agem como sinais visuais
articulados em código, submetidos a modas, integrados em práticas sociais e em
contextos culturais. As análises de casos isolados tendem, portanto, a falsear os
dados: para minorar este risco, deve-se procurar ter uma visão de conjunto tão
vasta quanto possível. E tal torna-se possível com um enquadramento institucional e cientíico como o deste projecto, capaz de fornecer os meios para que se
proceda ao levantamento do património heráldico existente (ou que existiu) no
interior das casas senhoriais. Só esse esforço poderá permitir uma compreensão
integrada da Heráldica enquanto fenómeno social e artístico.
59
60
Figura n.º 2
Figura n.º 3
Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo
D. José Francisco de Almeida e Vasconcelos
1.º Visconde e 1.º Conde de Moçâmedes
Figura n.º 4
D. Maria Margarida Braamcamp de Melo Breyner
(ilha dos 2.ºs Condes de Sobral)
Figura n.º 5
D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos
Figura n.º 6
Francisco Xavier Freire Cabral Metelo Pacheco
D. Maria da Conceição Burnay de Melo Bretner
(ilha dos 4.ºs Condes de Mafra)
D. Maria da Pureza José de Melo
(ilha dos 12.ºs Condes de São Lourenço)
José de Almeida e Vasconcelos Freire Cabral
MIGUEL METELO DE SEIXAS
D. Maria Amália Freire Cortês de Albuquerque
Quadro genealógico
Francisco Cabral Metelo Pacheco de Lemos e Nápoles Manuel