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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Sharine Machado Cabral Melo ARTISTAS E EMPREENDEDORES: Um estudo sobre o trabalho criativo na economia do imaterial DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2015 1 2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Sharine Machado Cabral Melo ARTISTAS E EMPREENDEDORES: Um estudo sobre o trabalho criativo na economia do imaterial DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Comunicação e Semiótica, linha de pesquisa Dimensões Políticas na Comunicação, sob a orientação do Prof. Dr. Rogério da Costa Santos. São Paulo 2015 1 2 Banca examinadora _______________________________________ _______________________________________ _______________________________________ _______________________________________ _______________________________________ 3 AGRADECIMENTOS Nestes quatro anos, passei pelos momentos mais tristes da minha vida. Mas também tive a oportunidade de fazer grandes encontros, que resultaram nesta tese. Agradeço ao meu pai, com imensa saudade, porque, tendo sido um engenheiro brilhante, ele me ensinou a amar as pessoas, as músicas, os livros... À minha família (tios, avós, primos), pelo apoio incondicional e por ser sempre um refúgio seguro, mesmo quando eu estava a muitos quilômetros de distância. Em especial à minha mãe e à minha irmã, pela coragem, força e alegria. Ao Prof. Rogério da Costa, por sua sabedoria e tranquilidade. Por repetir, tantas e tantas vezes, com infinita paciência, que a essência da vida é o próprio desejo, a potência que nos faz perseverar em nossa existência. A memória de suas aulas, principalmente sobre Spinoza, certamente me acompanhará para sempre. A todos os professores do Programa de Comunicação e Semiótica, especialmente Christine Greiner, Cecília Salles, Amálio Pinheiro e Ivo Ibri. À Cida Bueno, por toda a ajuda com a burocracia. Aos colegas de mestrado e doutorado. Aos professores Kate Oakley e David Hesmondhalgh, que me acolheram com tanta disposição e carinho na University of Leeds, me apresentaram a uma nova bibliografia e me ensinaram que uma pesquisa pode, muitas vezes, emergir das contradições. Aos demais professores e funcionários da School of Media and Communication, especialmente Kevin Barnhurst. Aos amigos das diversas partes do mundo que conheci na Inglaterra, por me mostrarem novas perspectivas e por ajudarem a aquecer o longo inverno europeu. À CAPES, por financiar a pesquisa e por me conceder uma bolsa sanduíche, fundamental para minha viagem. Aos coordenadores e colegas da Funarte SP, pelo apoio e pelas discussões. Sem esta experiência, eu não teria escrito esta tese. À Alba, amiga e professora de piano, pelas intermináveis conversas sobre estética, arte e vida. À Mariana, pelo apoio no momento em que pensei em desistir do doutorado. À Amanda, pelas nossas conversas. À Márcia, pela ajuda com a pesquisa. À Vivian, pela revisão desta tese e pela amizade, mesmo quando não nos vemos com frequência. 4 A tarde talvez fosse azul, Não houvesse tantos desejos (Carlos Drummond de Andrade) 5 RESUMO O objetivo desta tese é traçar uma genealogia dos acontecimentos que levaram a “criação” a ser vista como uma atividade integrada ao capitalismo. Se o ato de criar, tendo as Belas Artes como expoente, já foi considerado um “dom divino” ou “natural”, uma exceção ao regime baseado na escassez de recursos e na extração de valor da força física, atualmente, enunciados sobre a “economia criativa” ou a “economia da cultura” incidem sobre ele e buscam gerar ganhos sociais e econômicos. Essa tendência se apresenta na leitura do capitalismo contemporâneo pelo viés do trabalho “imaterial”, que tem uma dimensão tangível (a materialidade das obras ou os corpos que os produziram), mas é centrado essencialmente na cooperação, nos signos e nos afetos, estendendo-se à captura das subjetividades e da potência da vida. A hipótese é que os artistas passam a ser vistos como empreendedores: aqueles que investem a própria vida em busca de riquezas. Foram usadas principalmente duas correntes teóricas: pesquisas sobre biopolítica, governamentalidade e neoliberalismo, iniciadas por Foucault e expandidas por Rose, Negri, Lazzarato, Hardt, entre outros; e pesquisas sobre economia criativa e indústrias culturais, representadas por Bennett, Oakley e Hesmondhalgh, e em parte influenciadas pelos Estudos Culturais. Para marcar as especificidades da América Latina, foi usada principalmente a obra de Canclini. Também há referências da História da Arte, como Gombrich, Shiner e Danto; além da filosofia de Spinoza e da Semiótica de Peirce, como base para as discussões. A Estética foi estudada a partir de textos de Kant, Schiller, Osborne e Deleuze. Por fim, foram realizadas pesquisas quantitativas e qualitativas, com o propósito de investigar o dia a dia do fazer artístico. Conclui-se que há oportunidades para as artes, mas é necessário cuidado para que as diversas correntes não se fechem em seus próprios circuitos de produção ou, na disputa por atenção, invistam somente nos ciclos de financiamento. Há novas formas de exploração do trabalho, mas a potência artística resiste ou, por vezes, adapta-se às questões da política e da economia. Palavras-chave: Artes. Economia. Trabalho Imaterial. Neoliberalismo. 6 ABSTRACT The aim of this thesis is to draw a genealogy of the events which led “creation” to be considered as an integrated activity of capitalism. The creative act, which had the fine Arts as its leading exponent, had been regarded as a natural or divine “gift”, an exception to the economic regime based on scarce resources and on the value extracted from physical strength. However, in the last years, utterances of “creative economy” or “cultural economy” have been focusing on creation to generate social and economic wealth. This tendency is visible when contemporary capitalism is studied in the context of “immaterial” labour, which has a tangible dimension (the materiality of art works or the bodies which produced them), but it is centred essentially on cooperation, signs and affects, extending itself throughout the capture of subjectivity and of the power of life itself. The hypothesis is that the artists are to be seen as entrepreneurs: those who invest their own lives in search of wealth. Mainly, two theoretical trends were used: researches on biopolitic, governmentality and neoliberalism, which had been initiated by Foucault and expanded by Rose, Negri, Lazzarato, Hardt, among others; and researches about creative economy and cultural industries, exposed by British researchers, such as Bennett, Oakley and Hesmondhalgh, who were partly influenced by Cultural Studies. In order to specify Latin American issues, Canclini’s work was also used. There are references about Art History, these include: Gombrich, Shiner and Danto; Spinoza’s philosophy and Peirce’s semiotics have also been utilized as groundwork for the discussion. Aesthetic was specially studied from Kant’s, Schiller’s, Osborne’s and Deleuze’s works. Finally, quantitative and qualitative researches were done to investigate the daily practise of the artists. In conclusion, there are opportunities for the arts, but it is necessary to prevent the artistic movements to enclose themselves in their own production chain or to invest only on funding, disputing for public attention. There are new ways of labour exploitation, but artistic power resists or adapts itself to political and economic affairs. Key words: Arts. Economy. Immaterial labour. Neoliberalism. 7 LISTA DE FIGURAS Figura 1: A Sagrada Família, Rafael Sanzio............................................................ 46 Figura 2: Decreto no 82.394 de 1 de maio de 1982. ................................................ 93 Figura 3: Classificação das indústrias criativas segundo a UNCTAD. ................... 112 Figura 4: Modelo dos círculos concêntricos, elaborado por Throsby. .................... 114 Figura 5: Nuvem de tags dos sites frequentados pelos artistas. ........................... 168 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Subsídio do governo para a Arts Council England. ................................ 117 Tabela 2: Despesas do Governo Federal com o Ministério da Cultura, a Funarte e as premiações culturais. .............................................................................................. 120 Tabela 3: Exportação de bens culturais no período de 2003 a 2012, no Brasil (milhões de dólares). .............................................................................................. 126 Tabela 4: Exportação de artes visuais no período de 2003 a 2012, no Brasil (valores em milhões de dólares). ......................................................................................... 126 Tabela 5: Número de empregados das indústrias criativas no Brasil, por áreas criativas e segmentos, em 2004 e 2013. ................................................................ 127 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Número de referências às palavras “artists”, “culture”, “economy” e “labour”, no mesmo artigo científico, livro, tese ou dissertação, no período de 1890 a 2014. ...................................................................................................................... 104 Gráfico 2: Número de referências às palavras "artists", "culture", "economy" e "labour", no mesmo jornal ou na mesma revista de notícias, no período de 1890 a 2014. ...................................................................................................................... 105 Gráfico 3: Principais jornais e revistas de notícias com referências às palavras "artists", "culture", "economy" e "labour", no período de 1890 a 2014 .................... 105 Gráfico 4: Número de referências às palavras "immaterial labour" e "cognitive economy", no mesmo artigo científico, livro, tese ou dissertação, no período de 1950 a 2014. ................................................................................................................... 106 Gráfico 5: Número de referências às palavras "neoliberalism", no mesmo artigo científico, livro, tese ou dissertação, no período de 1950 a 2014. .......................... 106 Gráfico 6: Número de teses e dissertações, no período de 1997 a 2014, com os termos "creative economy" e "creative industries". ................................................. 125 Gráfico 7: Idade das pessoas que responderam a pesquisa pelo Facebook. ....... 140 8 Gráfico 8: Linguagens artísticas com que trabalham as pessoas que responderam a pesquisa pelo Facebook. ........................................................................................ 141 Gráfico 9: Redes formadas pelos artistas que responderam a pesquisa pelo Facebook. ............................................................................................................... 143 Gráfico 10: Redes formadas pelos artistas que responderam a pesquisa pelo Facebook. ............................................................................................................... 145 Gráfico 11: Porcentagem de artistas que trabalham em mais de um projeto ao mesmo tempo. ........................................................................................................ 151 Gráfico 12: Porcentagem de artistas que participam de projetos coletivos. .......... 152 Gráfico 13: Quantidade de artistas que trabalham em projetos distintos, mas com pessoas em comum. .............................................................................................. 152 Gráfico 14: Quantidade de artistas que trabalham com mais de uma linguagem. 153 Gráfico 15: Quantidade de artistas que costumam frequentar atividades com linguagens diferentes daquelas com que trabalham. ............................................. 153 Gráfico 16: Quantidade de artistas que costumam participar de projetos com diferentes linguagens. ............................................................................................ 154 Gráfico 17: Rede das diferentes linguagens com as quais os artistas trabalham. 154 Gráfico 18: Porcentagem de artistas que já convidaram, por meio de redes sociais, artistas ou outros profissionais para atuarem em projetos. .................................... 160 Gráfico 19: Porcentagem de artistas que já convidaram, por meio de redes sociais, artistas ou outros profissionais para atuarem em projetos, distribuídos por idade. 161 Gráfico 20: Porcentagem de artistas que já foram convidados, por meio de redes sociais, para atuarem em projetos.......................................................................... 161 Gráfico 21: Porcentagem de artistas que já foram convidados, por meio de redes sociais, para atuarem em projetos, distribuídos por idade. .................................... 162 Gráfico 22: Porcentagem de artistas que já obtiveram recursos financeiros por meio de redes sociais...................................................................................................... 162 Gráfico 23: Fatores que mais influenciam as decisões sobre uma atividade cultural, entre o público. ....................................................................................................... 166 Gráfico 24: Fatores que mais influenciam as decisões sobre uma atividade cultural, entre os artistas e produtores culturais. .................................................................. 166 Gráfico 25: Porcentagem de artistas que trocam informações sobre projetos em redes sociais, distribuídos por idade. ..................................................................... 167 Gráfico 26: Quantidade de artistas que costumam participar de discussões em páginas ou grupos específicos na internet. ............................................................ 167 Gráfico 27: Quantidade de artistas que trocam informações sobre projetos em redes sociais .................................................................................................................... 168 Gráfico 28: Principais fontes de informação sobre atividades culturais, segundo os artistas. ................................................................................................................... 169 Gráfico 29: Principais fontes de informação sobre atividades culturais, segundo o público. ................................................................................................................... 169 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .....................................................................................................................12 PARTE I – OS VALORES DA ARTE ....................................................................................18 CAPÍTULO 1 – ARTE, ECONOMIA E TRABALHO IMATERIAL .......................................22 1.1 A cultura como um campo de interesses .................................................................22 1.2 O trabalho imaterial .................................................................................................27 1.3 A inteligência coletiva ..............................................................................................29 1.4 Formas de exploração do trabalho imaterial ............................................................32 1.5 Mas, afinal, a arte é trabalho? .................................................................................35 CAPÍTULO 2 – A DIMENSÃO IMATERIAL DA ARTE EM MEIO AO REGIME INDUSTRIAL .........................................................................................................................................39 2.1 A emergência do trabalho, da economia e da estética ............................................39 2.2 De artesãos a gênios...............................................................................................42 2.3 O mercado, a imaterialidade e a universalidade da arte ..........................................45 2.4 O nascimento da Estética ........................................................................................48 2.5 Desinteresse e universalidade na estética kantiana ................................................50 CAPÍTULO 3 – ARTE, GOVERNO E LIBERDADE ...........................................................54 3.1 Em busca da essência e da liberdade .....................................................................54 3.2 A autonomia da arte é possível? .............................................................................57 3.3 A construção da liberdade .......................................................................................59 3.5 A economia política da arte .....................................................................................64 CAPÍTULO 4 – DO MERCADO DE ARTES À ECONOMIA IMATERIAL ...........................67 4.1 A consolidação do mercado de artes.......................................................................67 4.2 Arte e economia imaterial no século XX ..................................................................70 4.3 A estética da iminência ............................................................................................73 4.4 As artes como trabalho imaterial .............................................................................75 PARTE 2 – O ARTISTA EMPREENDEDOR ........................................................................78 CAPÍTULO 5 – AS ARTES NAS INDÚSTRIAS E NAS POLÍTICAS CULTURAIS .............82 5.1 O problema econômico ...........................................................................................82 5.2 Os primeiros ministérios da cultura..........................................................................84 5.3 Por uma cultura plural .............................................................................................86 5.4 As indústrias culturais..............................................................................................89 5.5 Um apelo à cultura comercial ..................................................................................91 CAPÍTULO 6 – A DINÂMICA CULTURAL NO NEOLIBERALISMO ..................................95 6.1 Diversidade e expansão cultural ..............................................................................95 10 6.2 Transformações no mundo da arte ..........................................................................97 6.3 A retórica da liberdade ............................................................................................99 6.4 Empreendedorismo e capital humano ...................................................................101 CAPÍTULO 7 – A CRIATIVIDADE NO CENTRO DO CAPITALISMO? ............................104 7.1 Arte e trabalho na economia imaterial ...................................................................104 7.2 Os artistas como modelo profissional ....................................................................107 7.3 Entre classes e cidades criativas ...........................................................................110 7.4 O trabalho artístico na economia criativa ...............................................................111 CAPÍTULO 8 – SERÁ APENAS UMA RETÓRICA NEOLIBERAL? .................................116 8.1 A economia criativa como discurso político ...........................................................116 8.2 A economia criativa no Brasil ................................................................................119 8.3 A economia criativa e o neoliberalismo..................................................................122 8.4 O fim ou o começo da economia criativa? E o que vem depois? ...........................124 8.5 O papel das redes .................................................................................................129 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................................134 ADENDO – PESQUISA DE CAMPO ..................................................................................140 O DIA A DIA DO TRABALHO ARTÍSTICO .....................................................................143 Um cenário múltiplo para as artes ...............................................................................143 Um trabalho especial...................................................................................................145 O cotidiano dos artistas ...............................................................................................148 Redes e laços: entre muitos projetos e diversas linguagens .......................................151 A TAL ECONOMIA .............................................................................................................155 Política e economia na visão artística..........................................................................155 Os meios digitais como um recurso profissional ..........................................................160 A importância das conversas ......................................................................................163 Entre mídias de massa e redes sociais .......................................................................165 AS ARTES NO REINO UNIDO...........................................................................................170 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................176 APÊNDICE .........................................................................................................................189 Apêndice A – Formulário da pesquisa realizada pelo Facebook .....................................189 Apêndice B – Transcrição das entrevistas ......................................................................192 Apêndice C – Tabela de linguagens com as quais os artistas trabalham ........................212 ANEXO ..............................................................................................................................213 Anexo A – Termos de consentimento das entrevistas realizadas ...................................213 11 INTRODUÇÃO Peço licença para escrever em primeira pessoa a introdução desta tese. É que, embora exista um grande interesse pelo assunto por parte de diversos pesquisadores, minha preferência pelo tema não surgiu apenas da vida acadêmica, mas principalmente de uma trajetória particular. Sou pianista amadora, bacharel em publicidade e propaganda, e tenho experiência em atendimento ao consumidor. Em 2008, comecei a trabalhar como administradora cultural na Fundação Nacional de Artes – Funarte, um órgão diretamente vinculado ao Ministério da Cultura e, portanto, ao Governo Federal. O Teatro de Arena Eugênio Kusnet e o Complexo Cultural Funarte São Paulo, que pertencem à instituição, acabavam de ser reinaugurados, após um longo período de reformas. Em meio às questões políticas que essa ação suscitava, minhas tarefas – como profissional técnica – passavam a ser as de programar as atividades artísticas e culturais dos espaços, participar da elaboração de editais de ocupação e auxiliar nas estratégias de comunicação com o público e os artistas. Deparei-me, então, com uma lógica distinta tanto da adotada pelos departamentos de marketing quanto daquela intrínseca à paixão e à rígida disciplina que há por trás das escalas e dos arpejos da música clássica. Apesar de ambas as lógicas estarem de alguma forma presentes no campo artístico brasileiro, o que eu via era uma organização que flerta com as estratégias mercadológicas, mas não se deixa capturar completamente por seus padrões, da mesma forma que traz elementos da estética tradicional, porém – sem fazer um julgamento de valores – borra os limites entre as linguagens populares e expande seus domínios para os meios de comunicação de massa e digitais. Não foram, entretanto, essas duas características as que mais me chamaram a atenção. É fato bastante conhecido que o fazer artístico atual já não se enquadra na linha traçada desde o Renascimento pela História da Arte. Também não há novidade em dizer que algo da criação sempre escapa aos modelos previamente estabelecidos pelo mercado. O que mais me marcou foi a grande energia que emerge do trabalho artístico, em seu dia a dia, apesar das dificuldades financeiras ou sociais, da falta de estruturas adequadas, das lacunas na educação formal e de toda a "superficialidade" que alguns críticos não cessam de apontar nas obras contemporâneas (como se elas se restringissem ao que é vendido em leilões ou 12 exposto nas bienais). Quando olhamos para a quantidade de jovens que se formam todos os anos em universidades ou que se lançam, mesmo sem conhecimento técnico, às carreiras de ator, músico, bailarino, poeta ou artista visual; quando reparamos nos profissionais mais experientes, que lutaram durante anos e continuam se esforçando para realizar suas obras, percebemos que todos eles sentem certa necessidade, como afirma Deleuze (1999). Necessidade de exprimir algo na forma de cores, palavras, gestos ou sons, necessidade de criar e de aprofundar as linguagens humanas ou de expandir seus alcances. Talvez a música complexa e ancestral dos povos balineses e as fugas de Bach, os textos de Homero e o teatro de Shakespeare, os quadros de Leonardo Da Vinci e as esculturas de Rodin tenham surgido dessa mesma necessidade, apesar das diferenças entre as épocas e os lugares em que viveram. É a capacidade humana de pensar, de criar e de difundir signos que impulsiona as atividades artísticas e artesanais nas mais diversas culturas. Isso leva ao segundo fato que chamou minha atenção. As artes já não são vistas como algo raro, transcendental, como o produto de um gênio, que deve ser contemplado e preservado. Também não são vistas somente como um ato de resistência – embora esta função seja muito forte e presente. Elas transitam entre esses domínios, mas se revelam em outros patamares, dando vozes aos mais distintos grupos sociais: das famílias dos circos itinerantes aos pesquisadores de dança contemporânea e performance; das atitudes engajadas do hip-hop à perfeição formal da música de concerto, passando pelas experimentações da sonoridade eletrônica; das instalações interativas ao trabalho artesanal em comunidades menos favorecidas. Todos esses grupos reivindicam, não sem conflitos, seu próprio espaço no universo artístico e cultural. Suas vozes ora se combinam, ora destoam, e essas confluências ou divergências de forças ocorrem em um terreno político e econômico, mas também afetivo. É porque suas vidas são investidas nos processos de criação que muitos artistas se filiam a movimentos sociais, participam dos debates políticos, discutem questões da administração pública e privada, opinam sobre os mecanismos de financiamento e patrocínio. É precisamente neste ponto que o afeto, a política e a economia se misturam. Mas há outra dimensão desse cenário. Embora a capacidade de criação seja um traço dos seres humanos, ela nem sempre esteve tão visível quanto hoje em dia. Isso ocorre porque há uma maior atenção voltada para as riquezas sociais e 13 econômicas produzidas pelo chamado “trabalho imaterial”, aquele que, como as artes, coloca em primeiro plano o pensamento, a imaginação, o cuidado, a cognição, o afeto. Claro que qualquer atividade demanda, em certo grau, algum desses elementos, já que não há, de fato, uma dualidade entre corpo e mente. No entanto, no atual sistema capitalista, há uma tendência a valorizar uma forma de trabalho que nem sempre produz objetos de consumo materiais, palpáveis, mas que lida com o intangível dos processos de subjetivação e das relações entre as pessoas. Foi por isso que as redes se tornaram um elemento importante da economia atual, porque elas promovem associações e permitem o fluxo das ideias e dos conhecimentos. Ora, se a criação de signos e a expansão das linguagens operam justamente a partir dos processos de invenção e de compartilhamento, as artes passam a ser mais uma das fontes de riquezas, não somente estéticas, mas também econômicas. Diversos nomes já foram adotados na tentativa de explicar ou, até mesmo, de propor uma organização para esta dinâmica: economia criativa, economia da cultura, um retorno às indústrias culturais, em voga nos anos 1970. De qualquer forma, o importante é captar as práticas e os enunciados que permeiam esses conceitos e que impregnam o dia a dia do trabalho artístico com termos que provêm das áreas da administração de empresas, da publicidade e da economia. No entanto, a noção de que a arte é uma atividade economicamente “desinteressada”, que, apesar das claras relações de mercado, acentuou-se a partir do final do século XVIII, ainda gera ruídos quando os campos artístico e econômico se aproximam. O objetivo desta tese, portanto, é investigar como a criatividade deixou de ser exceção em um regime econômico baseado na escassez para tornarse elemento fundamental em uma fase do capitalismo que busca apropriar-se dos bens imateriais – e, portanto, abundantes – que emergem, não apenas do talento de poucas pessoas, mas principalmente da cooperação e das redes. A hipótese é que os artistas passam a ser vistos, tanto nos domínios do mercado quanto nas políticas públicas, como empreendedores em potencial. Diversas correntes teóricas já se debruçaram sobre o assunto. Por isso, as referências bibliográficas são variadas. Ao me matricular no curso de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, eu tinha em mente estudar as redes sociais compostas por artistas e por outros profissionais das artes, à luz da biopolítica, de forma a poder analisar os modos como a potência que emerge do trabalho artístico é capturada pelos dispositivos políticos e econômicos. A área de pesquisa sobre biopolítica e 14 governamentalidade tem como fonte principal os conceitos analisados por Michel Foucault nos cursos ministrados na década de 1970, no Collège de France. Mas outros autores, como Nikolas Rose e Toni Negri, cada um com seus interesses específicos, revisaram e expandiram essas ideias, fornecendo mais elementos para compreendermos nosso presente. Foucault também influenciou os pesquisadores dos estudos culturais, corrente que foi fundada nos anos 1960 a partir dos textos Culture and Society (WILLIAMS, 1958), The Uses of Literacy (HOGGART, 1957) e The Making of the English Working Class (THOMPSON, 1963). O interesse pelo presente era o principal ponto em comum, mas a tendência marxista do grupo provocou divergências com as ideias de Foucault. Foi Tony Bennett, um dos parceiros de Nikolas Rose, que propôs unir as duas correntes, estudando os processos de governamentalidade no interior das políticas culturais. Por sua vez, esses dois campos de pesquisa – os estudos culturais e os estudos sobre políticas culturais – desenvolveram-se tradicionalmente na Inglaterra, um dos países que mais tarde se tornaria pioneiro na investigação sobre a economia criativa. Por isso, em 2014, decidi passar um período de cinco meses na University of Leeds, School of Media and Communication, que abriga uma grande quantidade de pesquisadores da área. Essa escola também é referência em estudos sobre as indústrias culturais, o que remonta às primeiras análises de Adorno, Horkheimer e Benjamin. Embora, na atualidade, as referências às indústrias culturais e à economia criativa no Brasil venham, em grande parte, da Inglaterra (até mesmo em termos de estratégia política), o que percebi, durante minha estada neste país, é que os pontos de vista são diferentes. Na Inglaterra, em geral, a economia criativa ou as indústrias culturais são tratadas como uma espécie de produção em série de bens de consumo, com as mesmas implicações políticas da exploração do trabalho e das lutas de classes ou de gêneros; já a proposta do governo brasileiro, nos últimos anos, tem sido a de capturar a potência dos artistas para gerar riquezas econômicas, mas apontando também para a diversidade, a inclusão social e as novas dinâmicas específicas dos processos de troca dos bens abundantes, frutos do trabalho imaterial. Certamente, há problemas em ambas as formulações e eles serão discutidos ao longo da tese. No entanto, a proposta é demarcar as especificidades da cultura brasileira e latino-americana. Também, por esse motivo, 15 utilizei, além das referências inglesas, autores como Canclini, que se dedica aos estudos culturais, mas se aproxima das questões específicas de nosso continente. Além disso, algumas noções da semiótica peirceana, principalmente a partir do viés adotado pelos estudos dos processos de criação, e da filosofia de Spinoza aparecem, em segundo plano, em certas passagens. Referências à História da Arte e à Estética são usadas a partir das obras de Gombrich, Shiner, Danto, Osborne e Rancière, e de filósofos como Kant, Schopenhauer, Schiller e Deleuze. Na tentativa de abranger todas essas correntes, muitas vezes contraditórias, optei por dividir a tese em duas partes, subdivididas, por sua vez, em capítulos. A primeira explora os valores sociais e econômicos que a arte adquiriu ao longo da história. Adotando a forma de uma genealogia, a ideia é mostrar como o elemento imaterial, fundamental em quase todas as categorias profissionais da atualidade, apesar de ter sofrido modificações com o tempo, já era ressaltado na arte desde o final do século XVIII, na figura do gênio, nas teorias da estética e na configuração do mercado. Em seguida, a partir dos estudos sobre a governamentalidade, pretendo mostrar como a arte, aos poucos, ocupou seu lugar nas discussões políticas e econômicas, o que expandiu o conceito de criatividade e culminou na concepção dos artistas como modelos para os profissionais contemporâneos. Na segunda parte da tese, a proposta é percorrer o caminho até o empreendedorismo na economia da cultura ou na economia criativa. Sigo, então, as imbricações entre as indústrias culturais, que são em grande parte responsáveis por inserir os artistas no mercado de trabalho formal, e as políticas públicas, que buscam governar suas condutas. Tendo em vista essas questões, consultei documentos, relatórios, leis e editais dos governos do Brasil, da França e do Reino Unido, além de textos publicados por organizações internacionais como a Unesco. A discussão sobre o neoliberalismo também permeia o texto, uma vez que é neste contexto que se dá a transformação dos artistas em empreendedores. Outros autores, como Pascal Gielen, Giorgio Agamben e Gilles Lipovetsky, certamente contribuiriam para o desenvolvimento das ideias. Mas, ora por falta de espaço, ora por ressoarem questões já escritas de outra maneira, eles não foram incluídos, apesar de ter lido seus textos. Por fim, foram realizadas pesquisas quantitativas e qualitativas com artistas, produtores culturais e o público. As entrevistas foram gravadas tanto no Brasil quanto na Inglaterra. Escolhi alguns personagens mais conhecidos e outros, em 16 grande medida, anônimos para explorar como os próprios artistas se veem em meio às novas competências necessárias para criar e difundir suas obras. A maior parte dos assuntos discutidos se diluem ao longo da tese, mas as falas principais e os resultados mais relevantes estão compilados no final do texto, como um complemento. Com isso, espero contribuir para o estudo da produção artística em nossa época, que cria novas formas de exploração do trabalho, principalmente daquele que lida com bens imateriais, mas também pode abrir a oportunidade para que a potência dos artistas se manifeste de diferentes maneiras, ora resistindo, ora adaptando-se às questões da política e da economia. 17 PARTE I – OS VALORES DA ARTE (...) dir-se-á que a vida, ao expandir-se ao acaso, procura, antes de tudo, emanciparse fora dela mesma, romper o seu próprio círculo e só tende a florir para progredir, como se nada lhe fosse mais essencial, como talvez a toda a realidade, do que se libertar de sua própria essência. O supérfluo, então, o luxo, o belo (eu entendo o belo especial que cada época e cada nação cria) é, em qualquer sociedade, o que ela tem de mais eminentemente social, e é a razão de ser de todo o resto, de todo o necessário e de todo o útil. (Gabriel Tarde) Um passeio pelos arredores da Praça Roosevelt, em São Paulo, revela uma grande quantidade de pequenos teatros, muitos deles com não mais que cinquenta lugares. A produção de espetáculos é efervescente. Nas ruas próximas, a Sala São Paulo e o Teatro Municipal se afirmam em meio ao cotidiano de milhares de pessoas que transitam todos os dias pelo local. As artes visuais se expandem. Em vez de se restringirem às galerias e aos museus, as pinturas, as esculturas e as performances alcançam os muros e as ruas da cidade. Os músicos, por sua vez, tocam nos bares, nas esquinas ou em estações de metrô. Alguns estudam em busca de uma vaga em uma das grandes orquestras do país, outros participam de festivais alternativos. Também há os espaços culturais, como as unidades do SESC (Serviço Social do Comércio), ou mesmo, os CEUs (Centros de Artes e Esportes Unificados). Alguns estão localizados no centro da cidade, outros ficam em regiões mais periféricas. Juntos, eles ajudam a compor o circuito dos diversos gêneros artísticos. É comum encontrar atividades variadas em seus catálogos, de concertos clássicos a shows de hip-hop, passando pelas diferentes misturas entre as linguagens. Nas escolas da cidade, muitos alunos se preparam para audições em companhias já estabelecidas ou criam seus próprios coletivos de dança, teatro, música ou artes visuais, usando leis de fomento e outras formas de financiamento ou patrocínio. Além disso, os artistas se articulam em categorias políticas mais estruturadas e ajudam a elaborar novas leis de incentivo às artes, novos prêmios e editais, abertos durante o ano todo, por diferentes instituições, sejam públicas ou privadas. 18 O site da prefeitura de São Paulo lista 363 locais na cidade (mas há muitos outros que ainda não estão registrados), o que inclui 150 centros culturais (públicos e privados), cinco praças dos esportes e da cultura, nove ateliês, cinco galerias, dez casas de espetáculos, dez espaços Mais Cultura, uma Usina Cultural, duas salas específicas para apresentações de dança, 21 museus (públicos e privados), 105 palcos de rua, quatro salas de cinema (além das instaladas em shoppings centers), três cineclubes e 38 teatros (públicos e privados). Isso sem levar em conta bibliotecas, livrarias, espaços para leitura, antiquários, arquivos e centros de documentação, espaços para eventos, circos e cinemas itinerantes, entre outros. (SP CULTURA) Os dados sobre a fruição e a produção cultural no Brasil também revelam vivacidade. De acordo com um artigo publicado pelo site do SESC, 150 mil pessoas compareceram, em 1995, à Pinacoteca do Estado de São Paulo para ver as esculturas de Auguste Rodin. Dois anos depois, as obras de Claude Monet reuniram 401.201 visitantes no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand). No ano seguinte, os quadros surrealistas de Salvador Dalí foram vistos, neste mesmo museu, por 200.143 pessoas. Já em 2007, o artista alemão Kurt Schwitters, um dos precursores da arte pop e conceitual, atraiu 220 mil visitantes à Pinacoteca. Por sua vez, a primeira exposição de Henri Matisse em São Paulo, realizada em 2009, levou 137.540 pessoas ao mesmo espaço. Por fim, em 2012, as exposições realizadas no Centro Cultural Banco do Brasil – O mundo mágico de Escher e Impressionismo: Paris e a modernidade – reuniram, respectivamente 381 mil e 325 mil pessoas. (SESC, 2012) É verdade que apenas uma pequena parcela da população brasileira tem acesso a esta produção. Também é verdade que essa efervescência algumas vezes transmite uma ideia de renovação das linguagens que nem sempre se confirma. Padrões e clichês muitas vezes se repetem. Além disso, as políticas públicas não são totalmente satisfatórias. Algumas privilegiam resultados econômicos, outras não são capazes de alcançar artistas que trabalham fora do chamado eixo Rio-São Paulo. Apesar das dificuldades, obras de grande qualidade florescem do trabalho realizado diariamente, das redes que se formam entre os artistas e da gama de profissionais envolvidos. Ocorre que, de forma independente de seu valor estético, a produção artística chama a atenção de outro ponto de vista. Basta olhar as ofertas de cursos técnicos 19 e profissionalizantes, de graduação ou de pós-graduação para se deparar com disciplinas como gestão de projetos culturais, administração cultural, redação de projetos artísticos. Os planos de governo, assim como os relatórios de instituições internacionais, como a Unesco, trazem dados sobre o consumo cultural e o papel das artes no desenvolvimento econômico e social do país. Segundo a Internacional Trade Center (2014), os setores da chamada "economia criativa" (que variam de acordo com os diversos autores, mas, em geral, englobam as artes visuais e de espetáculos, expandindo-se para atividades como desenvolvimento de softwares, design e publicidade) são responsáveis por 7% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial, o que movimenta US$ 1,3 trilhão anualmente, com uma taxa de crescimento de 9% ao ano (BARBOSA, 2011). Esses valores fazem dos setores criativos a terceira maior indústria do mundo, atrás somente das indústrias de petróleo e de armamentos (MELLO; ZARDO, 2015). Entre ensaios e rascunhos de suas obras, os artistas se deparam, então, com termos como "lucro", "prazos", "cronogramas", "orçamentos" e "contrapartidas". A diversidade cultural não é um conceito novo. Bakhtin (2010), no início do século XX, já havia escrito sobre a "polifonia", uma multiplicidade de vozes contraditórias que compõem as linguagens. As relações entre arte e economia também não são uma novidade. Pelo menos desde o final do século XVIII, os artistas se aproximaram do mercado e do público, mas, antes mesmo dessa época, a compra e a venda de obras de arte já movimentavam a economia de diversos países, como a Holanda. Contudo, as maneiras como se lida com essas duas ideias mudaram. A aura e a raridade das obras, o dom de alguns artistas considerados "gênios" e a técnica de "contemplação desinteressada" da arte permanecem em alguns museus, teatros, galerias e, principalmente, no mercado financeiro e nas casas de leilões – instituições que atribuem valor a atividades de "valor inestimável". No entanto, os artistas emergentes, aqueles que trabalham no dia a dia em busca de financiamento para suas obras, veem-se em uma situação específica: mesmo indiretamente, eles são, em algum grau, afetados pelo discurso que diz que devem produzir certo tipo de riquezas. Conceitos como diversidade, cultura e economia articulam-se novamente, mas com um novo sentido. Já não se trata somente de explorar as relações econômicas intrínsecas ao campo cultural, mas de fazer da cultura, em sua multiplicidade, uma das fontes potenciais de crescimento social e econômico (OAKLEY, 2009a). 20 Esses fatores acompanham um conjunto mais amplo de mudanças, que, desde a segunda metade do século XX, tendem a valorizar a economia dos bens intangíveis, frutos do trabalho imaterial, como as telecomunicações, os serviços e a própria criatividade, presente nos fazeres artísticos, nas empresas ou na produção midiática, em setores que vão da produção cultural à indústria de bens de consumo. A primeira parte desta tese irá explorar esse tema. As artes entram nesse contexto de forma ambígua, uma vez que nem sempre são atividades consideradas "produtivas" ou economicamente "interessadas", ou seja, nem sempre são vistas como um "trabalho" propriamente dito. Por isso, a proposta é investigar, em seguida, os acontecimentos históricos que levaram a arte a ser compreendida como exceção ao regime produtivo, ainda no século XVIII, assim como as relações econômicas que se desenvolveram no campo artístico a partir de então, o que culminou no mercado moderno e, mais recentemente, na imagem dos artistas como profissionais livres e autônomos, como preconizam os valores neoliberais. 21 CAPÍTULO 1 – ARTE, ECONOMIA E TRABALHO IMATERIAL 1.1 A cultura como um campo de interesses Até as primeiras décadas do século XX, a cultura era definida principalmente em termos de "obras e de práticas intelectuais", com ênfase nas atividades artísticas. Atualmente, tem predominado o sentido mais amplo dessa palavra, todo um modo de vida (a whole way of life), como Raymond Williams (1967) havia sugerido ainda nos anos 1960. De acordo com o artigo retrospectivo Cultural studies: two paradigms (Estudos culturais: dois paradigmas), escrito por Start Hall (1980, p. 59, tradução nossa): Ela (a cultura) não mais consiste na soma do "melhor do que foi pensado ou dito", vista como o ápice de uma civilização, a cujo ideal de perfeição, no sentido tradicional, todos aspiravam. Mesmo a "arte", a que se atribuía, no antigo sistema, uma posição privilegiada, o critério dos mais altos valores da civilização, é agora redefinida como apenas uma forma especial de um processo social geral: o ato de atribuir e de receber sentidos e o lento desenvolvimento dos sentidos "comuns" da cultura comum: a cultura, nesse sentido especial, "é ordinária" [...].1 Mas, quando Williams (1967) articulou essas duas concepções de cultura, talvez ele não imaginasse que artistas visuais e designers, músicos, dançarinos e atores fariam parte, em poucas décadas, da "classe criativa" (GILL; PRATT, 2008). O autor tampouco previa que as indústrias culturais, expandidas para conceitos como os de "economia criativa", "economia da cultura", ou mesmo, "economia das artes", entrariam com força nos discursos políticos e acadêmicos (tanto em uma perspectiva crítica quanto como uma proposta mais otimista) e, claro, fariam parte das preocupações diárias de artistas, técnicos e produtores, entre outros profissionais. Como afirma Justin O’Connor (2011), em referência ao conceito de Bruno Latour, a cultura e a criatividade tornaram-se um campo de interesses (matter of concern) na sociedade ocidental, pelo menos nos últimos quarenta anos, o que significa que "algo novo chamou a atenção". O’Connor (2011) refere-se aos anos It no longer consists of the sum of the 'best that has been thought and said', regarded as the summits of an achieved civilization that ideal of perfection to which, in earlier usage, all aspired. Even 'art' assigned in the earlier framework a privileged position as touchstone of the highest values of civilization, is now redefined as only one, special, form of a general social process: the giving and taking of meanings, and the slow development of 'common' meanings a common culture: 'culture', in this special sense, 'is ordinary' [...]. 1 22 1970, época em que as indústrias culturais começavam a emergir como objeto acadêmico e como estratégia de governo. Mas é possível voltar um pouco mais no tempo e perceber que, na década de 1960 mesmo, enquanto Williams (1967) escrevia sua obra, outros acontecimentos já anunciavam a centralidade que a cultura (tendo as artes como uma de suas manifestações possíveis) assumiria, não somente para a sociedade, em geral, mas também para as relações econômicas, em particular. Em 1964, um pequeno livro, chamado Crisis in humanities (Crise nas humanidades), foi publicado na Inglaterra. Como o nome indica, ele trazia artigos de escritores e de acadêmicos interessados nas mudanças percebidas no campo das artes, especialmente na literatura. A introdução, escrita por Sir John Harold Plumb (1964), membro da Universidade de Cambridge e um influente editor da época, dava o tom da obra: segundo o autor, as artes haviam-se "perdido em jargões" ou em "iconografias misteriosas" quando, pela primeira vez, elas eram "capazes de alcançar milhões de homens e de mulheres". Além deste, outro texto do mesmo livro chamava a atenção: o crítico e poeta Graham Hough (1964) respondia a um artigo publicado alguns anos antes pelo físico e romancista Charles Percy Snow (1990), The two cultures (As duas culturas), que dizia que a sociedade estava se dividindo em dois grupos opostos: Intelectuais literários em um polo – no outro, cientistas, e, como os mais representativos, os físicos. Entre os dois, um abismo de incompreensão – algumas vezes (particularmente entre os jovens), hostilidade e antipatia, mas principalmente falta de entendimento. (SNOW, 1990, p.169, tradução nossa)2 Snow (ibidem) sugeria unir as duas culturas por meio da educação. Hough (1964) discordava dessa proposta e afirmava, por sua vez, que havia duas crises na literatura, uma mais superficial e outra profunda: A superficial é fácil de ver: é que as humanidades não fazem nada explodir ou viajar mais rápido, e as autoridades, no presente, não estão interessadas em nada mais. Dessa forma, os estudos não técnicos, dos quais a literatura talvez seja o principal, tendem a perder influência e prestígio e a serem deixados de lado na concorrência geral. (HOUGH, 1964, p.98, tradução nossa)3 Literary intellectuals at one pole – at the other scientists, and as the most representative, the physical scientists. Between the two a gulf of mutual incomprehension – sometimes (particularly among the young) hostility and dislike, but most of all lack of understanding. 2 The superficial one is easy to see: it is that the humanities do not make anything explode or travel faster, and the powers that be are not at present much interested in anything else. So that the untechnical studies, of which literature is perhaps the chief, tend to lose influence and prestige and to be pushed aside in the general scramble. 3 23 Os textos de Hough (1964) e de seus colegas eram uma clara tentativa de recuperar, em uma sociedade técnica e industrial, o papel das atividades artísticas (entendidas no sentido estrito, como a mais alta forma de manifestação cultural). Mas um discurso pronunciado no mesmo ano por Ronald Reagan (1964) ressaltava, em outros termos, uma situação praticamente oposta: ele atacava o Estado de bemestar social, vigente principalmente nos países da Europa, e sugeria uma sociedade que teria a criatividade (não mais restrita às artes) e o desenvolvimento individual como pilares para os avanços tecnológicos. Para Toby Miller (2009), o futuro presidente dos Estados Unidos estava prevendo que as atividades "pós-industriais", a produção de bens "imateriais" ou "intangíveis" seriam, a partir da segunda metade do século XX, o principal motor do capitalismo. No lugar da manufatura, cresceria a importância do mercado financeiro e da produção de "imagens" ou de "ideologias", o que alimentou a seguinte questão: é possível extrair valor sociopolítico e econômico da cultura? O que estava acontecendo? Por um lado, as artes pareciam perder o sentido em uma sociedade pautada pela tecnologia. Por outro, a cultura e a criatividade eram chamadas a sustentar a economia e o desenvolvimento social. Apresentada desta maneira, a aparente contradição pode ser vista como uma ruptura entre duas imagens opostas – e caricaturadas – do que seriam os trabalhadores criativos: o gênio romântico, solitário e avesso às questões políticas e econômicas, corporificado na figura dos artistas; e o empreendedor cultural, que usa a potência de criação, comum a toda a sociedade, para gerar certo tipo de valor, que transita entre o financeiro, pela exploração da propriedade intelectual, e o social, por meio da melhoria de condições de vida em cidades ou em comunidades específicas. O fato é que a discussão não é neutra, nem se trata de um processo de "evolução" ou de uma proposta apenas de "sustentabilidade". Pelo contrário, o debate revela a expansão das noções de cultura e de criatividade para grande parte das categorias profissionais, em busca de novas fontes de recursos econômicos. Contudo, em meio a esse movimento, o papel das artes visuais e de espetáculos parece dúbio, principalmente quando vem associado à Estética, ao pensamento de vanguarda ou à resistência política. Afinal, os diferentes gêneros artísticos, da pintura ao teatro, da dança à literatura, concebidos sem nenhum "interesse", têm a mesma natureza de outras atividades também ditas "criativas", como o design ou a propaganda, com objetivos claramente comerciais? 24 Mas essa pergunta, implícita no debate entre Plumb, Snow e Hough, e que por vezes parece ser natural, também é fruto de práticas e de discursos específicos, que se tornaram correntes no final do século XVIII. O problema das artes como uma atividade "economicamente desinteressada" cresce a partir do momento em que espaços para a contemplação, entre eles, os museus, os teatros e as galerias, destacam as obras dos fins religiosos ou sociais. Entretanto, é justamente essa dinâmica que faz com que a maior parte dos artistas participe das questões econômicas, arrecadando verba com a venda de ingressos para mostras ou apresentações, saindo em busca de patrocínio ou fomento público, ou criando novas formas de obter recursos a partir do financiamento coletivo ou das redes sociais, por exemplo. Embora essas questões sejam recentes, elas já faziam parte da vida de pintores, escultores, músicos, atores, diretores e bailarinos pelo menos desde a decadência do mecenato praticado pela corte e pela Igreja durante a Idade Média e o Renascimento. O que mudou, então, na proposta de Reagan e no discurso que diz que as atividades criativas também podem ser uma fonte de riquezas? Diversos acontecimentos, que serão estudados mais detalhadamente ao longo da tese, contribuíram para essa passagem. O desenvolvimento da Estética e do mercado de artes, que substituía o antigo mecenato, abriu espaço para os debates sobre as políticas culturais (mesmo que nem sempre estruturadas). Nos últimos dois séculos, os argumentos ora tendem ao financiamento pelo Estado ou à "preservação" do patrimônio artístico, ora revelam uma preocupação em criar condições de livre mercado ou de sustentabilidade, na linguagem mais recente. Atrelada a essas questões, a ideia de "autonomia" crescia em referência ao campo cultural (e, neste sentido, nunca foi de fato alcançada), mas também revelava certo modo de governo da sociedade que estava se constituindo, em dois sentidos: o governo das condutas individuais e o governo do Estado, pautado, desde o final do século XVIII, pelo desenvolvimento do liberalismo econômico (FOUCAULT, 2010). A cultura – em um primeiro momento entendida como o "refinamento da educação" de uma classe social emergente e, depois, tendo como base a Estética – nascia como um conjunto de normas sociais e de códigos de conduta (BENNETT et al., 2007). Nesse contexto, a contemplação de obras de arte sem finalidade prática representava, por um lado, o ideal de liberdade e, por outro, a possibilidade de comunicação universal, tendo em vista a moral e a razão. Também relacionado ao avanço do liberalismo, o principal papel dos governantes já não era o de 25 encomendar ou financiar diretamente as obras, embora isso ocorra até hoje com grande frequência, mas o de criar estratégias que articulassem interesses vindos de diversas partes da sociedade. Essa relação entre arte, política e economia levou a diversas perguntas que políticos e pesquisadores tentaram responder: as obras de arte são algo universal, que deve ser democratizado para que todos tenham acesso? Ou, pelo contrário, deve-se valorizar a diversidade? Os Estados são responsáveis pelo financiamento das artes? Ou os artistas devem se adaptar ao livre mercado? Como a economia de um país pode se beneficiar do trabalho dos artistas ou da venda de suas obras? Essas e outras perguntas permanecem na atualidade, mas a palavra autonomia retorna com mais um sentido, presente no discurso de Reagan: o da iniciativa individual. O modelo do artista autônomo em relação a um poder centralizador transfigura-se na imagem do profissional contemporâneo, criativo e capaz de enfrentar de forma segura os problemas relacionados ao trabalho e à vida pessoal. O movimento contrário também é verdadeiro: tanto no financiamento público quanto no privado, entram em jogo elementos da linguagem empresarial. Todo esse debate ainda traz à luz um problema mais antigo: será que, produzindo obras sem nenhum interesse material, a arte é uma forma de trabalho? Pelo contrário, será que, atuando como profissionais ou empreendedores, os artistas valorizam a estética ou a resistência política em suas obras? Ou será que os assuntos econômicos limitam sua autonomia e liberdade? Afinal, de que forma de trabalho a arte se aproxima? Para compreender essas questões, é válido olhar com mais cuidado para meados do século XX, época em que se confrontavam os valores da estética, como constituída a partir do século XVIII, com a ampliação do conceito de criatividade e com mudanças nas relações empregatícias. Era no interior desse ambiente de transformações que Williams, Snow, Hough, Reagan, entre tantos outros, buscavam captar os novos sentidos da arte e da cultura para a sociedade que estava sendo construída. Esse debate continua crescendo até hoje, principalmente a partir da ideia de "trabalho imaterial", que aparece como um pano de fundo para enunciados sobre a "economia criativa" ou "economia da cultura", embora esses termos nem sempre sejam diretamente relacionados pelo pensamento crítico, como será visto a seguir. 26 1.2 O trabalho imaterial Nas décadas de 1950 e 1960, a criatividade despontava como uma possibilidade de recursos para o desenvolvimento social e econômico, ao mesmo tempo em que as mídias tomavam o centro da produção e da difusão de signos, nas mais diversas linguagens. Esses acontecimentos coincidiam com mudanças sociais mais amplas. Segundo Moulier-Boutang (2011), até então, a política econômica ocidental era baseada no uso de energia e de matérias-primas baratas, na importação de mão de obra, no pleno emprego, na adoção de taxas de câmbio fixas e no aumento dos preços, dos salários e da produção. Além disso, o emprego formal nas indústrias e nos escritórios absorvia grande parte dos trabalhadores do setor agrícola. Esse modelo, contudo, logo se tornou insuficiente. Houve, então, um processo de desaceleração econômica, embora a crise não tenha sido generalizada como a anterior, a da década de 1930. Os preços também não entraram em colapso, pelo contrário, a situação abriu o caminho, entre outros aspectos, para o aumento da interdependência global. O Mercado Comum Europeu, criado na década de 1950, fortaleceu-se; e surgiram novas entidades, como o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio – NAFTA, criado em 1994, e o Mercosul (Mercado Comum do Sul), fundado em 1991. Se, nas décadas de 1950 e 1960, a internacionalização refletiu-se na presença crescente de corporações transnacionais, as décadas seguintes foram marcadas pela exposição das economias nacionais ao mercado mundial, o que se intensifica até os dias de hoje. Tendo em vista esse cenário, dois fatores são apontados com frequência como as principais características do capitalismo contemporâneo: a globalização e a economia financeira. No entanto, para Moulier-Boutang (ibidem), esses elementos não são suficientes para explicar as transformações pelas quais o mundo vem passando. É verdade que a economia financeira tem um papel importante no processo de globalização, mas isso não é novidade para o sistema capitalista. Situações semelhantes já foram vividas em épocas anteriores. O que diferencia o cenário atual, na visão do autor, é uma mudança no próprio trabalho, que se “desmaterializa”. Com isso, as relações nas empresas tornam-se mais efêmeras; em vez de funcionários e investidores estáveis, as corporações e os governos lidam agora com diversos públicos e com interesses distintos; os limites entre o trabalho e 27 a vida pessoal também se tornam mais fluidos. Dessa forma, elementos intangíveis passam a ser centrais para uma nova fase do capitalismo, que o autor chama de "capitalismo cognitivo": Por capitalismo cognitivo, nós queremos dizer, então, um modo de acumulação, cujo objeto consiste principalmente em conhecimento, o qual se torna a fonte básica de valor, assim como o ponto principal do processo de valorização. (ibidem, p.57, tradução nossa)4 Como mostra a citação, o conceito de "economia cognitiva", proposto por Moulier-Boutang (ibidem), refere-se principalmente ao "conhecimento", que, de fato, é um componente fundamental nas relações de troca da atualidade. Já outros autores preferem expandir essa noção de maneira a abranger todas as formas de produção "imaterial", o que engloba a educação, a prestação de serviços, o cuidado com a saúde, a criação artística ou midiática, entre outros exemplos. Alguns dos primeiros pesquisadores a tratar do assunto foram Toni Negri e Maurizio Lazzarato (2001). No artigo Trabalho imaterial e subjetividade, que escreveram em 1991, os autores apontavam para a difusão dessa forma de trabalho como uma tendência "irreversível". Segundo eles, com a decadência do modelo fordista, elementos como a inteligência e a personalidade dos trabalhadores assumiram o protagonismo nos processos de produção. Nessa fase, mais do que a exploração do tempo e da força física, o que se busca é capturar a potência de criação e sua capacidade de integração social. Mais de duas décadas se passaram desde que esse texto foi publicado pela primeira vez e, nesse tempo, o conceito de "trabalho imaterial" começou a ser revisto, uma vez que, de fato, não é possível separar o pensamento, o sentimento ou as emoções da materialidade do corpo. Por isso, segundo Christine Greiner (2010, p.106), a discussão deve ser repensada "para além do binômio materialimaterial". De qualquer maneira, a avidez capitalista persiste, principalmente em áreas como cultura, saúde e educação, e expande seus alcances, tentando envolver até mesmo os processos de subjetivação dos trabalhadores e, em última instância, a própria vida. Em um livro mais recente, Multidão, Hardt e Negri (2005) aprofundam essa análise. Para os autores, o trabalho imaterial envolve não só o conhecimento, mas também a comunicação e o afeto. É uma forma de trabalho que cria e difunde signos e novos sentidos por meio da comunicação, ao mesmo tempo em que 4 By cognitive capitalism we mean, then, a mode of accumulation in which the object of accumulation consists mainly of knowledge, which becomes the basic source of value, as well as the principal location of the process of valorisation. 28 manipula sentimentos, como os de tristeza ou alegria, de satisfação ou bem-estar. Para Rogério da Costa (2008, p. 64), já não é mais suficiente "escavar da terra seus recursos naturais", nem "extrair energia do corpo humano". É preciso buscar outras fontes de riquezas. Com isso, há uma "espécie de aprofundamento" no uso da "subjetividade" e passa-se a extrair cada vez mais "os recursos psíquicos que fazem a produção econômica funcionar". São vários os exemplos: a transmissão de uma notícia triste por uma repórter em um telejornal; o atendimento, com um sorriso, de um garçom em um restaurante; o cuidado de uma enfermeira em um hospital. A demanda por recursos imateriais também se manifesta no discurso das empresas em busca de "inovação" e no declínio do modelo fordista, uma vez que a economia de escala vem sendo substituída por uma "economia da variedade" e por estratégias mais flexíveis de produção. Os exemplos são distintos, mas, na base de todas essas mudanças, há uma dimensão comum: a cooperação entre as pessoas (MOULIER-BOUTANG, 2011). 1.3 A inteligência coletiva Na década de 1980, Barry Wellman realizava suas primeiras análises sobre o "capital social". Posteriormente, com o desenvolvimento da internet, o autor voltou suas pesquisas para este meio de comunicação (apud SANTOS, R. d., 2008). De qualquer maneira, o importante em seus estudos é o foco nas redes de contatos que se formam entre as pessoas e que antecedem o uso de tecnologias digitais, como o Facebook, por exemplo. Para Ranie e Wellman (2012), a sociedade não é a soma dos indivíduos, mas um conjunto de relações que oferecem oportunidades ou riscos; não é um grupo coeso e bem-definido, mas é formada por pessoas que se conectam umas às outras de maneira esparsa e fragmentada. Essas características, de uma forma ou de outra, sempre estiveram presentes, mas se intensificaram a partir da segunda metade do século XX, em razão de fatores como o desenvolvimento do transporte e das mídias e da interconexão global em que opera grande parte das empresas, como discutido anteriormente. 29 O fato é que, no capitalismo cognitivo, essa ação coletiva, ou em rede, produz "valores imateriais" que "sobrecodificam os valores materiais ou bens de consumo" (SANTOS, 2008, p.62). Toda essa produção de conhecimento e de inovações requer o investimento em capital humano, por meio da educação, além de grande quantidade de pessoas qualificadas para o trabalho coletivo, por meio das novas tecnologias de comunicação. Assim, questões como propriedade intelectual, redes sociais, alianças e gestão de projetos tornam-se cruciais, uma vez que as estratégias capitalistas são determinadas pela capacidade de engajamento em processos criativos e pela captura de seus benefícios (MOULIER-BOUTANG, 2011). Certamente, os bens de consumo materiais continuam sendo importantes para a economia, e os recursos naturais (finitos) não cessam de ser explorados. Porém, em referência a Lazzarato, Moulier-Boutang (ibidem) ressalta que a principal potência do trabalho não está mais somente na força que transforma a matéria, mas também – e principalmente – nas possibilidades de "invenção". Embora muitos autores critiquem esse ponto de vista, receosos de perder a análise crítica sobre a exploração do "proletariado", os capitalistas perceberam que é possível extrair riquezas não somente do trabalho assalariado, mas também das atividades de criação de toda a sociedade, vista agora uma fonte de recursos praticamente ilimitados. Antonio Negri (1999) compartilha essa ideia. Para propor uma mudança no modo de compreender o trabalho no capitalismo contemporâneo, o autor usa o conceito de afeto adotado por Spinoza (2009, p.152). Segundo o filósofo, o afeto, ou a "paixão do ânimo" é uma ideia pela qual a mente "afirma sua força de existir". É essa força, ou a potência da própria vida, que se revela na atividade diária das pessoas, expande-se de forma difusa e se expressa no trabalho "vivo", "autônomo" em relação ao capitalismo. Cada ser esforça-se por permanecer em sua existência e, para isso, compõe-se com outros seres a sua volta, ou seja, quando cooperam, as pessoas aumentam sua potência de agir. Para Negri (1999), é justamente essa energia produtiva que pode ser capturada para fins econômicos, mas ela antecede qualquer divisão do trabalho e vai além de seus efeitos. Outra maneira de entender o resultado da cooperação é a noção de "bens comuns", que, segundo Lazzarato (2006, p.135): [...] não são simplesmente aqueles que pertencem a todos – como a água, o ar, a natureza –, mas são criados e realizados segundo as modalidades que Marcel Duchamp descreveu para a criação artística: a obra de arte é 30 metade o resultado da atividade do artista e metade o resultado da atividade do público (os que olham, leem, escutam). Lazzarato (ibidem) baseia-se na obra de Gabriel Tarde, filósofo e sociólogo que viveu na segunda metade do século XIX. Tarde (1976), por sua vez, refutava a visão individualista predominante em sua época, que explicava as mudanças ou inovações a partir da genialidade de poucas pessoas. Embora não dispensasse o criador individual, para ele, as mudanças são resultado do aparecimento "mais ou menos fortuito" de um grande número de ideias, importantes ou não, geralmente anônimas, de origem obscura e nem sempre ilustres, mas sempre novas. A essas ideias, o autor dava o nome de invenções ou descobertas, qualquer tipo de inovação referente às linguagens, à religião, à política, ao direito, à indústria ou às artes. No momento da descoberta, não há mudança significativa na sociedade. Mas aos poucos, por um processo chamado de "imitação", as mudanças atingem grande parte das pessoas. Uma combinação de ideias que cria, que inova, é feita por uma pessoa antes de se espalhar pela sociedade. Mas ela depende também da troca de informações e percepções realizada anteriormente (TARDE, 1976). Por isso, Lazzarato (2006) ressalta que as invenções, sejam elas ciência ou arte, são sempre associações entre "fluxos de crenças e de desejos", agenciadas de uma nova maneira. Cada invenção, mesmo quando anônima, é uma "singularidade", uma "diferença", uma "criação de possibilidades": Cada novo começo, cada nova invenção, recai sobre um tecido de relações já constituídas. A integração de um novo começo na rede de cooperações é, por sua vez, o início de outro processo de criação, de uma série de outros acontecimentos imprevisíveis. (ibidem, p.44-45) Os efeitos da invenção são infinitos porque sempre podem participar de novas combinações. Outra característica é que a criação está aberta a todos, "ela se dá diante dos olhos, dos afetos, das inteligências e das vontades de todos", uma vez que convida ao "encontro", aos "possíveis". (ibidem, p.47) A partir dessas ideias, Lazzarato (ibidem, p.138) opõe os bens comuns à economia da escassez, fundada sobre o "trabalho produtivo". O software livre é um exemplo, uma vez que o importante, nesse caso, não é a gratuidade do produto, mas são "as possibilidades abertas pela liberdade de acessar, modificar e difundir o código--fonte, e de aperfeiçoar o software". Com as redes de criação artística, a situação é semelhante, mesmo quando as obras são autorais, protegidas por órgãos como Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) ou SBAT (Sociedade 31 Brasileira de Autores) ou expostas em museus ou galerias, sempre há a possibilidade de apropriação pelos outros artistas e pelo público, sempre podem ser feitas novas interpretações, leituras e traduções, sempre podem ser inspirados novos trabalhos. É com este olhar que Lazzarato (ibidem, p.33) chama a atenção para uma mudança fundamental no modo de entender o capitalismo. Segundo o autor, "a cooperação entre subjetividades quaisquer precede a cooperação entre trabalhadores e capitalistas", ou seja, não é a divisão do trabalho, nos moldes da produção industrial, que promove a criatividade e a inovação, pelo contrário, "a expressão e a constituição de maneiras de sentir, em vez de depender do modo de produção, são anteriores ao funcionamento da economia". Ocorre que o capitalismo busca capturar esses processos de forma a extrair deles também um valor econômico, o que gera os diversos modos de exploração do trabalho na sociedade atual. Este é um tema que interessa aos pesquisadores das indústrias culturais e da economia criativa ou da cultura, principalmente porque, nesses setores, os profissionais tendem a investir toda a sua potência, muitas vezes em troca de salários baixos e poucos benefícios, sem ao menos se darem conta dos limites da vida pessoal, o que torna as formas de abuso mais visíveis. No entanto, os autores que se dedicam a essas áreas nem sempre concordam com as ideias propagadas por Negri, Hardt ou Lazzarato. Essas nuances serão detalhadas a seguir. 1.4 Formas de exploração do trabalho imaterial Em uma tentativa de articular a noção de trabalho imaterial com os debates sobre a precariedade do trabalho cultural ou criativo, Rosalind Gill e Andy Pratt (2008) traçam considerações em torno de conceitos como "afeto", "temporalidade", "subjetividade" e "solidariedade". Para eles, autores como Negri e Lazzarato soam "otimistas", já que, em vez de verem os trabalhadores como "meras vítimas do capital", eles ressaltam a potência de criação das pessoas e da própria vida. Gill e Pratt (ibidem) dizem ainda que a materialidade do trabalho e da exploração resiste e que, muitas vezes, o que Negri, Hardt ou Lazzarato chamariam de potência não é 32 mais do que imposição dos empregadores sobre seus funcionários, em busca de objetivos mercadológicos, como "inovação", embora as horas de produtividade de artistas, designers e outros profissionais muitas vezes se confundam com seus períodos de lazer: Longas horas e a apropriação da vida pelo trabalho devem ser ditadas por escalas punitivas e por prazos opressivos, e devem ser experimentadas como intensamente explorativos, mas também devem ser o resultado de engajamento apaixonado, criatividade e autoexpressão, além de gerar oportunidades para a socialização em campos em que o ato de "fazer contatos" aproxima-se menos de "falar de negócios" com poderosos do que de "descontrair" com amigos, colegas de trabalho e pessoas que compartilham interesses e entusiasmos similares. (ibidem, p.18, tradução nossa)5 Além disso, Gill e Pratt (ibidem) juntam-se a outros pesquisadores das indústrias criativas, como Hesmondhalgh e Baker, clamando pela especificidade das diversas atividades profissionais e pela dificuldade em lutar por um propósito comum: [...] essa política de articulação de bases contingentes [...] ainda deixa tudo para se lutar contra. Não menos importante é a questão sobre o fundamento para essa solidariedade em uma estrutura global caracterizada por enormes disparidades em riqueza e poder. Aliar-se ao designer poderia estar nos melhores interesses da maquiladora? [...]. Eles têm causas comuns ou identidade de interesses? Quais são os modos distintos de exploração em operação? Os diferentes interesses podem ser articulados? (ibidem, p.12, tradução nossa)6 Contudo, em sua crítica ao conceito de "trabalho imaterial", Gill e Pratt (ibidem) não levam em conta os mecanismos pelos quais o capitalismo procura capturar os processos de criação da sociedade e inseri-los, por meio do próprio trabalho, nos modos de produção econômicos. Embora Negri (1999) ressalte atividades de caráter intangível como a comunicação, por exemplo, ele não nega a exploração, pelo contrário, admite que ela esteja a cada dia mais acentuada, mas afirma que perdeu sua especificidade, "tornando-se globalizada" e "inundando territórios". Segundo o autor, isso ocorre porque o processo produtivo vem sendo 5 Long hours and the takeover of life by labour may be dictated by punishing schedules and oppressive deadlines, and may be experienced as intensely exploitative, but they may be also the outcome of passionate engagement, creativity and self-expression, and opportunities for socializing in fields in which "networking" is less about "schmoozing" the h than "chilling" with friends, co-workers and people who share similar interests and enthusiasms. Nevertheless, this politics of articulation of contingent foundations [...] still leaves everything to fight over. Not least is the question of whether there are grounds for such solidarity in a global frame characterized by enormous disparities in wealth and power. Would it actually be in the best interests of "the maquiladora worker to ally herself with the fashion designer?" [...]. Do they have common causes or identity of interests? What are the distinct modes of exploitation in operation? Can their different interests be articulated? 6 33 cada vez mais associado ao investimento em elementos intangíveis, o que acaba por dissociar o valor de um produto ou serviço do trabalho propriamente dito, aquele realizado estritamente nas fábricas ou nos escritórios, expandindo seus domínios para as demais situações da vida e confundindo-se com momentos de descanso e de lazer. Essa situação gera um paradoxo: quanto mais a economia política mascara o valor da força de trabalho, mais essa força se estende ao terreno global, ou ao "terreno biopolítico". Com base na noção de afeto de Spinoza, Negri (ibidem) não propõe a luta de classes nem as formas tradicionais de resistência (por meio dos sindicatos, por exemplo), uma vez que essa abordagem retoma as questões de "territorialização" e de "identidade", características do regime industrial, mas sugere a reapropriação da potência biolítica por parte dos "sujeitos produtivos", já que é justamente essa potência que tem sido controlada pelo capitalismo: Na realidade, a subsunção real da sociedade (isto é, do trabalho social) ao capital generaliza a contradição da exploração em todos os níveis da sociedade, assim como a extensão dos biopoderes abre a uma resposta biopolítica da sociedade: não mais os poderes sobre a vida, mas potência da vida como resposta a esses poderes; em suma, isso abre para a possibilidade da insurreição e da proliferação da liberdade, da produção de subjetividade e da invenção de novas formas de luta. Quando o capital investe a vida inteira, a vida se revela como resistência. (ibidem) Também para Lazzarato (2006, p.151), a "exploração" reside nas maneiras como "a constituição dos desejos e crenças" são subordinadas "aos imperativos da valorização do capital e às suas formas de subjetivação", o que leva ao "empobrecimento" e à "formatação das subjetividades": O paradigma do trabalho ou do emprego legitima a apropriação (em grande medida, gratuita) da multiplicidade de relações constitutivas de mundos, sem nenhuma distinção entre trabalho e não trabalho, entre trabalho e vida; por outro lado, organiza e legitima uma distribuição de renda que ainda está vinculada ao exercício de um emprego, à subordinação da atividade a um patrão, seja público ou privado. [...] É no interior dessa clivagem entre a destruição da riqueza produzida por uma heterogeneidade de subjetividades e agenciamentos, [...] e a sua distribuição regida pelo trabalho ou emprego que se produz excedente, e não apenas na exploração do trabalho. (ibidem, p.151) Além da captura dos bens comuns com o propósito de gerar riquezas para o sistema capitalista, há outras formas de exploração que operam no âmbito do trabalho imaterial. Rogério da Costa (2008), por exemplo, ressalta que o uso de recursos da própria subjetividade é necessário em diversas profissões. Ações como "atender bem", "acolher" e "ser cordial" implicam "uma mobilização da subjetividade que vai além dos conhecimentos e competências de qualquer profissional, daquilo 34 que supostamente ‘se aprende’ no sistema de formação clássico". O problema é que nem sempre os empregadores se perguntam se seus funcionários estão "em condições de responder a essa demanda". Com isso, corre-se o risco de que o trabalho seja canalizado "para um ‘sempre além’ do que se pode, de suas capacidades reais, para um ponto de esgarçamento subjetivo". Se o corpo, no capitalismo industrial, era finito, as atividades cognitivas, de comunicação e afetivas não estabelecem os mesmos limites de exploração: É fato que a mente não pode parar e nem a imaginação cessar ou apaziguar-se. A greve do pensamento e da imaginação com certeza será algo de outra natureza que as greves que conhecemos. E se a mente não pode deixar de funcionar, isso pode significar que ela pode trabalhar continuamente... Ou que não temos a mesma noção dos limites que construímos em relação ao nosso corpo. (SANTOS, R. d., 2008, p.64) Para Rogério da Costa (2008, p.65), a força do capitalismo atual reside justamente no fato de estarmos sempre "trabalhando", uma vez que "estamos sempre refletindo, imaginando, discutindo em qualquer lugar e qualquer situação", mas essa condição pode levar a outros tipos de cansaço, além daqueles sentidos no corpo, talvez a depressão, a angústia e o estresse. O autor propõe então que, para que o trabalho imaterial se sustente, sejam construídos valores como confiança, simpatia, afeto, estima e respeito. Desse modo, abre-se espaço para a emergência da "inteligência coletiva", como forma de resistência à exploração do trabalho e da subjetividade pelo sistema capitalista. 1.5 Mas, afinal, a arte é trabalho? É a partir desta pergunta que Kate Oakley (2009b) faz uma revisão da literatura sobre o trabalho nas indústrias culturais. Apesar da relutância de pesquisadores que se dedicam a essa área, especialmente no que se refere à "materialidade" das lutas entre os diferentes grupos sociais e ao apego à noção de "identidade", as questões discutidas sobre o capitalismo cognitivo e sobre o trabalho imaterial fazem sentido quando aplicadas às artes. Afinal, por mais que precisem de suportes materiais, como uma tela, um palco com cenário e figurinos, um disco ou um instrumento musical, as obras de arte apresentam uma dimensão intangível decisiva. Os artistas lidam com os "bens comuns" por excelência, que, segundo a definição de Lazzarato (2006), têm as características de serem inteligíveis, 35 inapropriáveis, não permutáveis e não consumíveis, o que quer dizer, por exemplo, que uma obra de arte não é propriedade exclusiva de uma pessoa, mas pode – e deve – ser compartilhada sem que isso esgote suas possibilidades. Por outro lado, toda essa produção é passível de ser capturada pelo sistema capitalista, por meio das leis de direitos autorais, do investimento financeiro em obras de artes visuais, do patrocínio de espetáculos de cunho comercial, da reprodução em série de músicas, textos e imagens, e da venda desses bens por grandes conglomerados de comunicação com o propósito de obtenção de lucro. Além disso, uma situação ambígua muitas vezes se estabelece entre o exercício da arte por "prazer" e os diversos modos de "abuso de si": são comuns jornadas que chegam a 16 horas de trabalho diário, entre ensaios, apresentações, gravações e confecções de obras, ao lado de planejamento, redação e implementação de projetos. Assim como em qualquer outra atividade profissional, condições como estas podem levar à angústia, ao estresse e à depressão. Entretanto, essas duas características – a arte como uma espécie de bem comum e a atividade dos artistas como produção de valores imateriais que podem ser convertidos em riquezas pelo sistema capitalista – nem sempre foram compreendidas dessa maneira, tampouco diretamente relacionadas. Por isso, ainda soa tão estranho tratar artistas como empreendedores ou como profissionais. Mesmo quando a atividade artística é remunerada (afinal, os artistas também precisam de alguma fonte de renda) e mesmo quando há excessos como os citados acima, "fazer arte" nem sempre foi considerado um "trabalho". A discussão é antiga. A arte já foi vista como a produção de "bens não essenciais", relacionados ao prazer, ao divertimento ou à vocação. Em outros casos, foi percebida como a própria antítese do trabalho, como a celebração de uma produção cultural comum (ABRAMS, 1953; EHRENREICH, 2006; apud OAKLEY, 2009b). Além disso, Moulier-Boutang (2007) lembra que a cultura, seja ela aristocrática ou popular, nunca foi vista como um bem puramente mercadológico. O teatro, na Idade Média ou na Grécia antiga, era uma atividade religiosa. A construção de catedrais, por exemplo, fomentou as artes e o artesanato, mas suas obras eram resultado do esforço coletivo e eram gratuitas ao acesso do público. Já no Renascimento, a subvenção da Corte ou da Igreja era fundamental para a economia das artes, que continuavam a ser percebidas como fruto da colaboração, embora fossem usadas como forma de poder e, muitas vezes, fossem acessíveis 36 apenas às camadas mais favorecidas da população. Ora, assim como ocorre atualmente com o "trabalho imaterial", essa ideia da cultura como "bem público" revela a dificuldade em mensurar diretamente os ganhos financeiros relacionados à atividade dos artistas e dos artesãos: Se o belo ou o espetacular, o divertimento ou o sublime produzem os efeitos que vão do desvio da ira popular, da sublimação das pulsões, do efeito multiplicador do emprego à manifestação do poder e da majestade reais (são, portanto, os custos incidentais de toda forma de poder), seu balanço contábil não é mensurável diretamente: só os custos aparecem enquanto as vantagens e os ganhos são indiretos. (ibidem, p.91, tradução nossa)7 Por isso, para Moulier-Boutang (ibidem), o fomento às artes apresenta uma dimensão política essencial. Também, por esse motivo, é comum encontrar em vários países e nas mais diversas cidades do mundo instituições como ministérios da cultura, conselhos para as artes, fundações culturais e de educação. Nesses casos, embora o suporte às artes seja muitas vezes frágil, a questão econômica tem apenas um papel secundário, já que o investimento em "cultura" geralmente é justificado pela sua capacidade de "transformar as vidas não apenas de indivíduos, mas de toda a comunidade" (BELFIORE; BENNETT, 2008, p.10). Mas será que esta é uma situação natural ou ela foi construída em um tempo e um espaço específicos? Se é verdade que, desde a antiguidade, a arte foi usada para propósitos comuns, como o culto religioso, por exemplo, foi somente no século XVIII, quando as obras se dissociaram de suas finalidades práticas, que elas puderam emergir como um bem "universal". Desde então, o caráter público das artes não somente foi permeado por relações de poder de cunho político, mas também foi atravessado pelo desenvolvimento do sistema capitalista. A burguesia foi transformada em cliente dos artistas e estabeleceram-se instâncias propriamente estéticas de avaliação da arte, que, assim como a ciência e a economia, desenvolvia--se com pretensa autonomia (CANCLINI, 2012). Com menos interferências da Igreja e do Estado, os artistas entraram em relação também com o mercado, com o público anônimo dos museus, dos teatros e das galerias. Ao mesmo tempo, surgia o conceito de História da Arte, com períodos demarcados por estilos bem-definidos e obras que devem ser contempladas com "desinteresse". Si le beau ou le spectaculaire, le divertissement ou le sublime produisent des effets qui vont du détournement de l’ire populaire, de la sublimation des pulsions, de l’effet multiplicateur d’emploi à l’inculcation de la puissance et de la majesté royale (ils sont donc les faux frais de toute forme de pouvoir), leur bilan comptable n’est pas mesurable directement: seuls les coûts apparaissent tandis que les avantages et les gains sont indirects. 7 37 Contudo, quanto mais os artistas se aproximavam da economia, mais o novo sistema os afastava do conceito de "trabalho", entendido desde então como o esforço produtivo de que se extrai o valor de um bem de consumo. É essa ideia que ainda hoje se opõe à noção do artista como um trabalhador. Por outro lado, também é este o conceito que vem se transformando no modelo de um profissional autônomo, o que se estende para outras categorias, diluindo os limites entre a vida e as atividades produtivas em geral. Por isso, é válido aprofundar um pouco mais o estudo dessa época, a fim de compreender os processos que levaram aos modos de inserção da arte no capitalismo contemporâneo – e também a todas as críticas que esses mecanismos recebem. As análises de Foucault são bastante úteis para verificar a emergência da "vida", da "economia" e das "linguagens" na passagem do século XVIII para o século XIX, pois foi a partir de certo grau de autonomia que esse cenário passou a proporcionar às artes que a estética pôde desenvolver. Também é importante observar como, em meio à aspereza da produção industrial que definiu esse período, a arte distinguia-se justamente por seus elementos intangíveis ou imateriais. Ao contrário das noções de Lazzarato, Negri ou Moulier-Boutang sobre os bens comuns, frutos da combinação de ideias e do trabalho coletivo, as obras passavam a ser vistas como produto de um gênio, cultivado como um dom especial e não como uma característica de todas as pessoas. Assim, em vez da abundância, as artes tinham valor por sua raridade, ou por sua aura, o que, no entanto, não impedia que os artistas se relacionassem com outros profissionais e com os mais diversos interesses, em uma sociedade marcada também pelo desenvolvimento do pensamento liberal. 38 CAPÍTULO 2 – A DIMENSÃO IMATERIAL DA ARTE EM MEIO AO REGIME INDUSTRIAL 2.1 A emergência do trabalho, da economia e da estética Among men, the most dissimilar geniuses are of use to one another; the different produces of their respective talents, by the general disposition to truck, barter, and exchange, being brought, as it were, into a common stock, where every man may purchase whatever part of the produce of other men’s talents he has occasion for. (Adam Smith) No final do século XVIII, novas técnicas industriais eram inventadas, entre elas, a linha de produção. Ao contrário do sistema artesanal, que permitia o domínio sobre todo o processo de confecção de um produto, nas fábricas, os empregados realizavam tarefas específicas, fragmentadas e repetitivas. Com isso, a análise econômica, antes baseada no comércio e na troca de mercadorias, voltava sua atenção para um novo elemento: a força empregada pelos trabalhadores em suas atividades transformava-se em uma "unidade de medida", de forma que as riquezas deixavam de ser estabelecidas com base nos objetos trocados ou em necessidades (como os alimentos, por exemplo) e passavam a ser decompostas segundo as "unidades de trabalho que foram depositadas" nos bens produzidos. O economista Adam Smith foi um dos primeiros a usar essa abordagem, levando em conta os movimentos de industrialização em sua época. Para ele, a produtividade fundava-se justamente sobre a "divisão de tarefas" e o "acúmulo de capitais". (FOUCAULT, 2007, p.308) Se Smith transformou o trabalho em unidade de medida, foi outro autor, David Ricardo, que distinguiu, pela primeira vez, duas manifestações dessa mesma atividade: a primeira é aquela constituída pelo esforço e pelo tempo empregados na fabricação de um produto, ou seja, é o trabalho que os operários têm a oferecer e que os empresários aceitam ou demandam, retribuindo por salários; já a segunda é a energia "que extrai os metais, produz os bens, fabrica os objetos, transporta as mercadorias". É essa última que permite "fixar o valor de uma coisa", não apenas 39 por ser "representável em unidades", mas porque, "como atividade de produção", passa a ser "a fonte de todo valor". Com essa observação, o próprio "valor" de um bem produzido em série deixava de ser "signo" e transformava-se em um "produto", que "extrai sua origem do trabalho" (ibidem, p.349). Contudo, quando inserido em uma linha de produção, o trabalho passava a ser visto também como algo em que se investe tempo e esforço sem que se reconheça nele uma "necessidade imediata". Esse raciocínio leva a certo pensamento de "finitude": afinal, em que atividades as pessoas estão investindo sua potência, sua vida? Certamente, as pessoas "trocam" porque têm "necessidades e desejos", mas elas só são capazes de realizar essa troca e de ordená-la porque todas são submetidas aos mesmos efeitos do "tempo", da "fadiga" e "da própria morte” (ibidem, p.307;09). No livro As palavras e as coisas, Foucault (ibidem) partiu dessa análise para estudar um novo regime de práticas e de discursos que passaria a constituir o período "moderno", como denominado pelo autor. Em meio às transformações sociais que a Revolução Industrial trazia consigo, os seres humanos se deparavam com a finitude da vida, que, por sua vez, formava um novo "campo de saberes", dobrando-se sobre si mesma e estabelecendo uma organização interna, assim como as relações com o mundo exterior. Também nessa época, a economia tornava-se uma nova área de conhecimento e, de maneira semelhante, desenvolvia-se segundo suas próprias leis: A partir de Smith, o tempo da economia não será mais aquele, cíclico, dos empobrecimentos e dos enriquecimentos; também não será o crescimento linear das políticas hábeis que, aumentando sempre ligeiramente as espécies em circulação, aceleram a produção mais rapidamente do que elevam os preços; será o tempo interior de uma organização que cresce segundo sua própria necessidade e se desenvolve segundo leis autóctones – o tempo do capital e do regime de produção. (ibidem, p.310) Foi ainda nesse período que a linguagem deixou de atuar em um regime de representação para voltar-se sobre sua coerência interna, sua gramática: assim surgia a literatura. Ora, esses enunciados são propícios para a afirmação da autonomia da arte. Na era moderna, uma obra passava a ter por fim sua própria existência e a sustentar-se a partir de uma organização interna a si mesma, como se fosse um ser vivo (BECQ, 1984). Em um quadro, por exemplo, as formas e as cores tornavam-se mais importantes do que o assunto representado; em uma música instrumental, as relações harmônicas e a perfeição formal chamavam mais atenção 40 do que sua função religiosa ou sua proposta de acompanhamento para o canto e a dança; em uma peça de teatro, a linguagem empregada pelos personagens, o cenário e o figurino tomavam o lugar da catequização, por um lado, e, por outro, do divertimento. Mas não era somente a obra que se tornava autorreferente, eram também as relações políticas e econômicas que apoiavam sua produção. Em vez da arte que se integrava às igrejas e adornava os salões da nobreza europeia, as academias surgiam nessa época como um espaço específico – autônomo – para a contemplação de pinturas e esculturas, compostas "sem nenhuma utilidade prática". Da mesma maneira, museus, casas de espetáculos, teatros e galerias eram construídos com o único propósito de apresentar a arte a um público que já não era formado por mecenas que encomendavam trabalhos aos artistas, mas por pessoas anônimas que buscavam apenas "novidades". O prazer nas artes passava a ser contemplativo. (SHINER, 2001). Para que esses espaços se sustentassem, uma rede de galeristas e de empresários se formava, fechando o circuito econômico da arte. Contudo, havia uma singularidade nessas instituições capitalistas. Ao contrário da linha de produção, que extraía do trabalho dos empregados o valor de um produto, no final do século XVIII, críticos e investidores, filósofos e teóricos da arte concentravam-se em fatores intangíveis ou imateriais, ressaltando, por sua vez, as virtudes da "criação espontânea" dos artistas. Como um "dom", segundo o pensamento da época, não era algo adquirido pelo treinamento, mas obtido da Natureza ou de Deus, não era propriamente o trabalho que gerava o valor da arte (ibidem). Nem sempre foi assim. Este era o resultado de um longo processo que, em meio ao regime industrial, e em consonância com os ideais propagados pelo fim das monarquias absolutistas e pela ascensão da classe burguesa, fazia com que a arte se destacasse do trabalho – ou da atividade artesanal – e passasse a ser produto de inspiração ou de genialidade. Se, nos períodos anteriores, o preço de uma obra era função dos materiais utilizados, do tempo e do esforço investidos para atender a uma demanda, agora seu valor passava a envolver, além da coerência interna, o talento e a personalidade do autor (ibidem). 41 2.2 De artesãos a gênios A palavra arte é derivada do latim “ars” e do grego “techné”, o que significa qualquer atividade humana executada com habilidade e graça: da confecção de um sapato à pintura de um quadro, da escultura ao governo de um povo. Além disso, assim como ocorre atualmente em diversas culturas, a arte era entendida como uma atividade coletiva: a pintura de afrescos, como a obra de Rafael, envolvia muitas pessoas; as peças de teatro, como as de Shakespeare, eram uma compilação dos textos de muitos autores; e, na época em que Bach compôs suas músicas, era comum o empréstimo de melodias e harmonias, sacras e profanas, entre os diversos compositores. Além disso, escultores, ceramistas e pintores trabalhavam para mecenas, que geralmente especificavam o conteúdo, a forma e o material das obras (ibidem). A partir da Renascença, artistas e artesãos passaram a ter mais prestígio do que na Idade Média. Os membros da corte precisavam de muitos colaboradores para adornar salões, tocar em festas, encenar peças de teatro, e alguns dos artistas tornavam-se mais conhecidos e gozavam de mais liberdade. O aparecimento de autorretratos e de biografias, como as escritas por Vassari, foi um grande passo em direção à reputação que pintores, escultores, músicos, dramaturgos e dançarinos iriam atingir na sociedade, mas, nessa época, ainda não seria possível atribuir-lhes o caráter de criador individual ou de gênio sem algum exagero (ibidem). Foi na Holanda protestante, no século XVII, que surgiu um dos esboços mais próximos do que o campo artístico iria se tornar no Ocidente. Como o país não tinha muitas terras para explorar, o investimento em obras de arte era comum e barato. No entanto, havia uma diferença em relação aos pintores e escultores da Idade Média e da Renascença, a não ser que pintassem retratos, os holandeses produziam suas obras antes de vendê-las no mercado. Esse costume proporcionava mais independência aos artistas, que podiam escolher o tema e a técnica utilizada. Por outro lado, eles se viam em contato com o público e com os intermediários, que negociavam os quadros visando ao lucro. Como a concorrência era acirrada, muitos se especializavam em determinados ramos ou gêneros da pintura e chegavam a produzir obras em série. (GOMBRICH, 1981) 42 Nesse cenário, um exemplo se destacava: Rembrandt. A historiadora de arte Svetlana Alpers (2010) mostrou como o pintor foi capaz de criar uma nova forma de se relacionar tanto com os mecenas quanto com o mercado, aproveitando as características do capitalismo que estava nascendo. Ele fazia circular papéis que representavam suas obras, trabalhando como em um sistema de crédito e obtendo recursos por meio de empréstimos, assim como o mercado financeiro funciona atualmente. Relacionada a esse sistema de vendas, a característica mais marcante de Rembrandt talvez fosse sua técnica: em vez do acabamento liso dos quadros da época, ele preferia deixar visíveis as pinceladas. Mais do que uma questão de estilo, para Alpers (ibidem), esta era uma forma de transferir para o próprio pintor a decisão sobre o acabamento do trabalho. Como, na época, era comum que o preço dos quadros fosse calculado sobre o tempo necessário para produzi-los, se o acabamento ficasse a critério do artista, era ele quem definia o valor da obra. Dessa forma, Rembrandt adotava a principal característica da arte na era moderna: a fusão entre a obra e o artista. A partir do tratamento peculiar da tinta e do uso de sua assinatura como uma marca, o pintor distinguia seus quadros das mercadorias feitas em série e criava um objeto especial, com uma "aura" de individualidade e, por isso mesmo, um alto valor. O fato é que o método adotado por Rembrandt iria se espalhar pela Europa e por parte do continente americano. No século XVIII, com a decadência da monarquia absolutista, houve uma queda drástica no número de encomendas feitas pela Corte ou pela Igreja. Com o fim do monopólio real, pintores, escultores, músicos, atores e dramaturgos perderam uma importante fonte de renda. De acordo com um relatório da Comissão de Instrução Pública Francesa, escrito em 1795: As artes perderam muito com a Revolução. Elas perderam a decoração das igrejas, das casas religiosas; a decoração dos palácios dos reis e seus prazeres, dos monumentos reais construídos por adulação ou das tumbas construídas por luto, das estátuas e pinturas feitas para recepção para a academia; finalmente, as artes perderam tudo o que poderiam esperar das compras de luxo dos indivíduos. (apud SHINER, 2001, p.170-71, tradução nossa)8 Mas os ideais republicanos (liberdade, igualdade e fraternidade), que apontavam para a queda dos privilégios aristocráticos, também inspiravam os The arts have lost a great deal from the Revolution. They have lost the decoration of churches, of religious houses; the decoration of the places of Kings and their pleasures, of royal monuments built from flattery or tombs from mourning, of statues and paintings for reception to the Academy; finally the Arts have lost all they might expect from the luxury purchases of individuals. 8 43 artistas a buscarem novos recursos para suas atividades, o que dava a impressão de certo grau de autonomia: [...] [artistas] são livres por natureza: a essência do gênio é a independência; e certamente eles têm sido vistos, nesta memorável Revolução, entre os mais zelosos partidários. (ibidem, p.171, tradução nossa)9 Novas categorias (poesia, pintura, escultura, arquitetura, música) eram criadas em oposição ao artesanato e às artes populares (confecção de sapatos, bordados, música e literatura populares, entre outros). As artes visuais, por exemplo, deixavam de ser um "ofício ordinário" e convertiam-se em uma disciplina ensinada nas "academias". De acordo com Greffe (2007), essas instituições rompiam com as corporações de artistas, que datavam, aproximadamente, de 1100. Ao contrário do título recebido por herança da família ou por anos de treinamento em um sistema de mestres e aprendizes, elas apareciam como uma associação profissional, estruturada por laços interpessoais, e, com isso, formavam uma "elite" interna à atividade. As exposições anuais, que passavam a ser organizadas por essas academias, também representavam uma grande mudança. Acostumados a seguir a encomenda de mecenas ou a pintar ou esculpir de acordo com o "gosto" do "grande público", os artistas agora precisavam fazer com que suas obras chamassem mais atenção do que as dos outros participantes (GOMBRICH, 1981). Além da maior preocupação com a forma, para Gombrich (ibidem), um dos efeitos dessas alterações foi que pintores e escultores passaram a se inspirar nos mais diversos assuntos, em vez de se restringirem a temas da mitologia ou religiosos, como faziam anteriormente. Cada vez mais, eles buscavam elementos em sua própria subjetividade. O paradoxo é que, assim como no tempo de Rembrandt, o que mais contribuía para a autonomia dos artistas era o estabelecimento do mercado.10 […] [artists] are free by nature: the essence of genius is independence; and certainly, one has seen them, in this memorable Revolution, among the most zealous partisans. 9 É importante ressaltar que as classificações da história da arte não são estanques. Os artistas certamente imprimiam um traço pessoal às obras antes mesmo do Renascimento e, após este período, elementos da criação em rede e das técnicas artesanais persistem, assim como temas políticos e religiosos. As questões de mecenato ou de mercado também estavam presentes em períodos distintos. No entanto, algumas características são mais iluminadas em determinadas épocas e locais. 10 44 2.3 O mercado, a imaterialidade e a universalidade da arte No século XVIII, foram organizadas as primeiras empresas privadas que realizavam espetáculos de teatro e concertos musicais. Já no campo da literatura, era a invenção dos direitos autorais que contribuía para o estabelecimento de poetas e romancistas. A primeira lei foi escrita em 1709, na Inglaterra, e dizia que o autor de um manuscrito poderia vendê-lo por dois termos de quarenta anos. Essa formulação agradava ainda aos editores que desejavam acabar com a "pirataria", ou com a cópia ilegal dos textos. Na área de artes visuais, por sua vez, a exibição nos salões das academias elevava a reputação de alguns pintores. Como consequência, o preço dos quadros aumentava, e estes passavam a ser negociados por uma rede de empresários e de curadores, o que também movimentava o comércio entre galerias e museus (SHINER, 2001). Como já foi dito, a construção desses novos espaços públicos ou privados, assim como as novas relações profissionais que se estabeleciam, constituía um cenário propício para que os artistas praticassem sua arte sem se preocupar em cumprir demandas específicas, o que transmitia também a sensação de que o "campo cultural" funcionava a partir de uma dinâmica e de uma economia internas. Esse ambiente levou a outras formas de restrição, como a imposição de padrões acadêmicos, por exemplo, o que seria criticado mais tarde pelos movimentos de vanguarda. Contudo, mais do que analisar a autonomia real dos artistas (que é sempre uma tendência que não pode ser totalmente alcançada), o importante para o escopo desta tese é verificar que era um elemento intangível que impulsionava o mercado de artes ainda em seus primórdios. É claro que o esforço físico e a habilidade técnica são qualidades fundamentais de uma obra (mesmo quando se pensa na arte conceitual, por exemplo, que envolve outros critérios, talvez os limites da própria materialidade), mas o fator diferencial passava a ser principalmente a "genialidade" do autor. Essa noção estendia-se a obras criadas em períodos anteriores e, por isso, a História Universal da Arte também passava a ser narrada dessa perspectiva. Realmente, uma fuga de Bach é importante por suas melodias e harmonias, pela complexidade do desenvolvimento do tema, e por outras questões de ordem técnica, mas também por ter sido composta pelo próprio Bach, já não importando tanto seus 45 apelos religiosos. Outro exemplo é o catálogo dos salões de Belas Artes, que ocorriam em Paris. A publicação de 1801 trazia o anúncio de venda de uma obra de Rafael, um pintor renascentista que retratou a sagrada família, como era o costume em sua época, mas a explicação enfatizava não o material ou a técnica, e sim o talento do artista (figura 1). Figura 1: A Sagrada Família, Rafael Sanzio. Fonte: http://babel.hathitrust.org. Acesso em: 03 fev. 2015. Licença: obra e fotografia em domínio público. De acordo com Shiner (2001), nesse novo sistema, o comprador não adquiria apenas um quadro, uma escultura, um texto ou uma partitura musical – agora obras que aspiravam à autonomia –, mas também a imaginação e a criatividade. Sem critérios tangíveis que pautassem a avaliação da arte, seu valor passava a ser "inestimável", e seu preço de mercado passava a ser determinado pela perfeição da forma, mas também pela reputação do autor, pelo desejo e pela disposição do comprador – elementos tão caros ao mercado financeiro da atualidade. Por abranger 46 a subjetividade do artista, a obra passava a ser envolvida também em uma "aura", um caráter único, o que fazia com que seu valor fosse diretamente relacionado à sua escassez. Por outro lado, o mercado de artes destacava as obras de sua função social e estabelecia um ambiente comum para sua apreciação. Por isso, apesar de se fechar em seu próprio circuito econômico, e de girar principalmente em torno de obras "raras", ele remetia ao ideal de universalidade. Afinal, quais pessoas não sentem amor, tristeza, dor ou alegria, como expressos nos quadros, nas músicas e nas peças de teatro? Tudo isso faz parecer que a arte era o avesso da sociedade industrial que emergia no final do século XVIII. No entanto, ela não poderia estar mais bem inserida nesse contexto. Em meio à classe burguesa, que dominava a produção de bens de consumo, o poder soberano11 era, aos poucos, substituído por um jogo de interesses em nome da "liberdade" e da "igualdade". E não havia nada melhor do que a beleza "desinteressada", criada pela natureza ou pelos gênios, para simbolizar esses ideais e, ao mesmo tempo, criticar a fragmentação do trabalho operada pelas fábricas. De acordo com Schiller (2011, p.37): […] divorciaram-se o Estado e a Igreja, as leis e os costumes; a fruição foi separada do trabalho; o meio do fim; o esforço, da recompensa. Eternamente acorrentado a um pequeno fragmento do todo, o homem só pode formar-se enquanto fragmento; ouvindo eternamente o mesmo ruído monótono da roda que ele aciona, não desenvolve a harmonia do seu ser e, em lugar de imprimir a humanidade em sua natureza, torna-se mera reprodução de sua ocupação, de sua ciência. Quando remetia a certa forma de prazer universal, a arte era capaz de oferecer uma nova unidade para os seres humanos e a cultura. Porém, em vez de levar ao "conhecimento" por meio de imagens repletas de significados ou de músicas feitas com o propósito de agradar a Deus, a contemplação das obras passava a envolver o "sentimento", e transformava-se, com isso, em uma atividade sem finalidade prática, mas que levava, por sua vez, às regras de conduta, ao domínio da própria razão, à ética ou à moral (entendida, no sentido kantiano, como o exercício da liberdade de pensamento, em detrimento dos desejos do corpo e em Foucault distingue o poder soberano, que era exercido por reis e monarcas sobre um território e seus súditos, do conceito de biopolítica, uma forma de gerir a vida que emerge ao mesmo tempo em que o liberalismo econômico. Segundo Foucault, biopolítica pode ser entendida como: "a maneira pela qual se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas propostos à prática governamental, pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, raças […]" (FOUCAULT, 2013). Mas é importante ressaltar que os períodos não são estanques: a biopolítica e o poder soberano convivem até hoje. 11 47 função de um objetivo mais elevado: a construção de uma comunidade, de um comum acordo entre todos os cidadãos). Foi por envolver todas essas dimensões – um circuito econômico que funcionava a partir de critérios imateriais, baseados na subjetividade dos artistas e na universalidade das obras – que o desenvolvimento do mercado trouxe consigo mais uma novidade: a Estética. De acordo com Shiner (2001), foi apenas quando uma nova organização da economia e da sociedade transformou a arte em um "campo autônomo", no avesso do sistema de produção, que foi possível perguntar efetivamente: "o que é arte?" (ibidem). Ou, de acordo com Gombrich (1981), foi somente quando a arte perdeu todas as outras finalidades que ela pôde preocuparse especificamente com questões inerentes à sua prática, como o estilo e a personalidade dos artistas. Não que a beleza e o sublime não fossem importantes em épocas anteriores, mas a partir dos textos de filósofos como Kant, Schiller e Schopenhauer, esses termos alcançaram um novo patamar, tornando-se eles próprios uma justificativa plausível para esta nova forma de entender o papel de imagens, textos e sons (SHINER, 2001). 2.4 O nascimento da Estética Da Idade Média ao Renascimento, a questão do "gosto" por uma obra de arte já havia sido amplamente discutido. Normalmente, o problema era relacionado a algum tipo de "interesse", fosse ele religioso ou político, prático ou moral. Já a partir da segunda metade do século XVIII, a postura mais adequada frente a uma obraprima passou a ser justamente o "desinteresse". Os motivos dessa mudança vinham tanto da política e da aristocracia quanto da filosofia e da religião. De acordo com a primeira perspectiva, apenas aqueles com tempo livre para a reflexão seriam capazes de olhar além dos próprios interesses e de ter uma visão mais ampla da sociedade. Conforme trecho da revista Spectator, escrito em 1712, pelo jornalista Joseph Addison (1945 [1712], p.278, tradução nossa): Um homem de imaginação polida é levado a muitos prazeres que o vulgar não é capaz de receber. Ele pode conversar com uma pintura e encontrar uma agradável companhia em uma estátua. Ele encontra um repouso secreto em uma narração, e frequentemente sente mais satisfação na perspectiva de campos e prados do que outros sentem em sua possessão. Isso lhe dá, de fato, uma espécie de propriedade de todas as coisas que vê, e torna as mais rudes e incultas partes da natureza administradas por seus 48 prazeres: de forma que ele olha para o mundo como se tivesse outra luz, e descobre nele uma multidão de charmes que se escondem dos seres humanos comuns.12 Já do ponto de vista teológico, o conceito de "desinteresse" enfatizava "o amor genuíno a Deus", que não tinha nenhum outro objetivo além desse afeto. Para Karl Philipp Moritz (apud SHINER, 2001, p.145, tradução nossa), por exemplo, a ideia da arte como algo autossuficiente tinha a ver com o vocabulário da contemplação religiosa: Como o belo objeto dirige completamente nossa atenção para si mesmo, ele faz com que nos esqueçamos de nós mesmo por um momento, de forma a parecermos nos perder nele, e precisamente esta perda, esse esquecimento de nós mesmos, é o mais alto grau do prazer puro e desinteressado que a beleza nos garante… um prazer que deve ser cada vez mais próximo do amor desinteressado, se este for genuíno. 13 Além dessas duas perspectivas, um terceiro elemento emergia nos discursos filosóficos: o conceito de "sublime", qualquer coisa na natureza ou na arte que produzisse a sensação de grandeza imensurável. Mais do que um objeto meramente "belo", o sublime passava a ser visto como algo vasto e, por vezes, assustador, mas que proporcionava prazer ao ser contemplado de um ângulo seguro, como, por exemplo, uma alta montanha ou uma tempestade no mar (SHINER, 2001). Juntas, essas três ideias – a universalidade, a contemplação desinteressada e o sublime – seriam fundamentais para o desenvolvimento da Estética. Baumgarten (1993) foi um dos primeiros autores a escrever sobre o assunto, em uma obra publicada em 1750. Para ele, a palavra grega aiesthesis tinha a ver com uma lógica própria aos sentidos (visão, audição, paladar, tato e olfato). Adotando esse termo em seus textos, ele efetuava uma ruptura com o antigo sistema, dando ênfase ao sentimento, dissociando a arte de questões fisiológicas ou sociais (o que inevitavelmente acontecia quando associada ao "gosto"), e abrindo o caminho para a que a Estética se tornasse um campo específico de conhecimento (SHINER, 2001). A Man of a Polite Imagination is let into a great many Pleasures, that the Vulgar are not capable of receiving. He can converse with a Picture, and find an agreeable Companion in a Statue. He meets with a secret Refreshment in a Description, and often feels a greater Satisfaction in the Prospect of Fields and Meadows, than another does in the Possession. It gives him, indeed, a kind of Property in everything he sees, and makes the most rude uncultivated Parts of Nature administer to his Pleasures: So that he looks upon the World, as it were in another Light, and discovers in it a Multitude of Charms, that conceal themselves from the generality of Mankind. 12 As the beautiful object draws our attention completely to itself, it makes us forget ourselves for a while so that we seem to lose ourselves in it and precisely this loss, this forgetting of ourselves, is the highest degree of pure and disinterested pleasure that beauty grants us… a pleasure which must be ever closer to disinterested love, if it is to be genuine. 13 49 Entretanto, mesmo com todas essas novidades, Baumgarten (1993) ainda estava preso a um sistema filosófico clássico: para ele, não havia separação precisa entre sentimento e inteligência, havia somente uma diferença de grau. Foi Kant, quarenta anos mais tarde, que separou, definitivamente, os domínios da sensibilidade e da razão, de forma que a estética deixava de ser "conhecimento" e passava a significar, efetivamente, "sentir" (BAYER, 1995). 2.5 Desinteresse e universalidade na estética kantiana De acordo com Kant (2012), os seres humanos não têm acesso aos objetos do mundo, mas apenas aos fenômenos, aquilo que os afeta. Esses fenômenos, por sua vez, são submetidos a conceitos a priori – independentes da experiência. Mas não há objetos que sejam submetidos à faculdade14 de sentir, há apenas um acordo, livre e indeterminado, chamado pelo filósofo de "senso comum": cores e sons, por exemplo, não se referem a conceitos, mas "extravasam o entendimento". (DELEUZE, 2000, p.61). Além disso, não há na Natureza uma finalidade para se produzir algo Belo. Há apenas um poder sem objetivo, "apropriado por acaso ao exercício harmonioso de nossas faculdades" (KANT, 2012; DELEUZE, 2000, p.60). De fato, alguns objetos parecem ter sido feitos sem nenhuma utilidade, apenas para estimular a harmonia. Flores, paisagens e pássaros coloridos simplesmente oferecem uma ocasião para que sejam contemplados, sem nenhum desejo ou interesse. É por isso que, quando se julga se algo é belo, não se usa o conhecimento, mas o sentimento de prazer ou desprazer. Este é, portanto, um julgamento estético, não lógico, e a complacência (no sentido de aprazer, agradar) deve ser desinteressada (KANT, 2012). Esse raciocínio leva a crer que a contemplação é subjetiva, uma vez que não há conceitos preestabelecidos que auxiliem no julgamento. E, de fato, Kant (ibidem) acreditava que a beleza não é uma característica do objeto. Mas há um paradoxo Há dois sentidos da palavra "faculdade": "as relações de uma representação em geral" e "uma fonte específica de representações". No primeiro sentido, Kant distingue a "faculdade de conhecer" (a representação em relação ao objeto "do ponto de vista do acordo ou da conformidade"); a "faculdade de desejar" (quando a relação entre a representação e o objeto é de causalidade); e a "faculdade de sentir" (em que a representação se relaciona com o sujeito). No segundo sentido, há uma faculdade "passiva", a "faculdade de recepção", e três faculdades "ativas": a "imaginação", o "entendimento" e a "razão" (DELEUZE, 2000, p.11-15) 14 50 nessa proposição: se o julgamento não deve ser baseado em um desejo ou em uma inclinação do sujeito, ele não tem nenhuma condição privada como fundamento. Portanto, concluía o autor, a complacência diante de algo belo é válida para todas as pessoas, comunicável universalmente. Ao fazer do desinteresse a chave da universalidade estética, o filósofo não somente a distinguia do "prazer ordinário" ou da "utilidade", mas traçava um caminho para a "moral", que, em sua filosofia, era relacionada à "liberdade" (SHINER, 2001). Para Kant (1784), "liberdade" era o ato de "fazer um uso público da razão", ou seja, pensar "livremente" e difundir o conhecimento ou o "esclarecimento" de forma a acabar com o "misticismo" e a "superstição" que, segundo ele, dominavam sua época e eram praticados por pessoas que "obedeciam cegamente", sem raciocinar por si mesmas. Um exemplo positivo para o autor seria o "padre" (visto aqui como uma figura pública), que "desfruta de uma liberdade ilimitada de servir-se de sua própria razão e de falar em seu próprio nome". No entanto, "razão" também é um conceito específico na obra kantiana: algo que apresenta um interesse pelo conhecimento "universal". Da mesma forma, o "desejo" só alcança seu sentido mais elevado quando busca não a "representação de um objeto" particular, mas sua "pura forma". Se, na contemplação do belo, os conceitos do entendimento são "alargados ao infinito" e a imaginação livra-se deles, é o "senso comum estético" que torna possível o exercício da razão e da moral (DELEUZE, 2000, p.14; 56). Segundo exemplo de Deleuze (2010, p.90): Nos sons, cores e livres matérias, a Razão descobre outras tantas apresentações de suas ideias. [...] O lírio branco não é mais simplesmente reportado aos conceitos de cor e de flor, mas desperta a Ideia de pura inocência, cujo objeto, jamais dado, é um análogo reflexivo do branco na flor-de-lis. A "ideia do acordo sem alvo entre a natureza e nossas faculdades" define, portanto, "um interesse da razão". Contudo, há um detalhe importante: esse interesse não incide sobre o belo em si, ou haveria uma contradição na obra de Kant. Ele recai, pelo contrário, somente sobre a "aptidão da natureza para produzir coisas belas" (ibidem, p.89). Novamente conforme Deleuze (ibidem, p.89): O prazer estético é desinteressado, mas nós experimentamos um interesse racional pelo acordo das produções da natureza com nosso prazer desinteressado. É por isso que, para Kant (2012; DELEUZE, 2000), toda essa harmonia das faculdades só tem sentido quando é a própria Natureza que produz coisas belas. Mas isso traz um problema: de que forma a arte criada pelas pessoas poderia 51 destinar alguém à moralidade? O filósofo resolveu essa questão inserindo na arte um elemento natural também, o Gênio: Gênio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte. Já que o próprio talento enquanto faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza, também se poderia expressar assim: Gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte. (KANT, 2012, p.163) Kant (ibidem, p.176) concebia o gênio como "um talento para a arte"; "originalidade exemplar do dom natural de um sujeito no uso livre de suas faculdades do conhecimento". Por isso, para ele: "o produto de um gênio é um exemplo não para a imitação, mas para a sucessão por outro gênio, que por este meio é despertado para o sentimento de sua própria originalidade". Com isso, o filósofo queria dizer que não há na arte "regras" que possam ser ensinadas a qualquer pessoa. O treinamento da técnica é importante, assim como o exemplo de artistas anteriores, mas se não houver o gênio, o trabalho não resulta em uma obra-prima. Com esse argumento, Kant (2012; apud SHINER, 2001) fazia das obras uma criação espontânea e aprofundava a ruptura já discutida entre a arte e o trabalho produtivo, assim como as polaridades entre artistas e artesãos. Sua lista de Belas Artes incluía poesia, música, pintura, escultura, arquitetura, oratória e jardinagem. Ele também reconhecia que outras categorias poderiam ser tratadas como arte desde que criadas para serem somente apreciadas, sem uma intenção determinante. Outra diferença era percebida quanto à motivação para a atividade: os artistas criam por prazer, enquanto os artesãos, assim como os trabalhadores, recebem um pagamento por cumprir uma encomenda com um propósito específico. De acordo com Shiner (2001), ao reforçar as polaridades entre a estética e a finalidade prática, entre os artistas e os artesãos, entre as belas artes e o artesanato, Kant (2012) criava uma filosofia capaz de justificar o sistema de artes moderno. Embora ele próprio estivesse mais preocupado com o sublime na Natureza do que nas obras humanas, seu texto inspirou uma visão romântica de diversos autores que conectavam a estética diretamente às Belas Artes – ou à atividade dos gênios. A obra de Kant, portanto, é exemplar de um período de transição do classicismo para o romantismo: "um exercício desregrado de todas as faculdades, que vai definir a filosofia futura, como para Rimbaud o desregramento de todos os sentidos deveria definir a poesia do futuro" (DELEUZE, 1991, p. 131). Talvez, por 52 isso, suas ideias ainda ecoem nos debates sobre a criação e os mecanismos de difusão das artes. Quando se discute a "autonomia" dos artistas em relação aos interesses capitalistas ou ao Estado, mesmo que a teoria dos gênios já tenha sido há muito refutada, é certo ideal romântico que aparece como um pano de fundo. Além disso, apesar do classicismo da forma, é o elemento imaterial da arte que se destaca em suas críticas – a subjetividade dos artistas e a contemplação do público, a moral e a razão. Deixando em segundo plano o trabalho artesanal, fechava-se, dessa maneira, um imaginário que iria persistir por muito tempo. Seguindo por esse caminho, o iluminismo também levaria a uma reflexão sobre sua própria época, sobre o governo e sobre as condutas individuais. Esses fatores se cruzariam em busca da "liberdade" que a arte proporciona e do jogo de interesses entre "sujeitos livres", o que ficaria mais evidente na política e na economia. 53 CAPÍTULO 3 – ARTE, GOVERNO E LIBERDADE 3.1 Em busca da essência e da liberdade Mas eu não quero ser senão eterno. Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essência ou nem isso. E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde pousou uma sombra e que não fique o chão nem fique a sombra mas que a precisão urgente de ser eterno boie como uma esponja no caos e entre oceanos de nada gere um ritmo. (Carlos Drummond de Andrade) As ideias lançadas por Kant ressoaram por muitos anos. Algumas vezes, foram usadas como fontes de inspiração, outras vezes, criticadas. Schopenhauer (2003; WAGNER, 2010), por exemplo, acreditava que a "essência das coisas" não poderia ser conhecida pela ideia proveniente de suas relações, pois estas revelariam somente o "fenômeno". Porém, ao contrário do que pensava Kant, alcançar a "essência" não era uma tarefa impossível. A chave desse acesso estaria na "autoconsciência", local em que a natureza se manifesta como "vontade". O compositor romântico Richard Wagner (2010) foi influenciado por noções como essas ao fundamentar suas teorias estéticas. Em um texto dedicado ao centenário de Beethoven, ele afirmou que a música é a única linguagem capaz de proporcionar a unidade entre os homens e o mundo exterior, pois ela revela "o mais profundo de nós mesmos": O objeto do som que escutamos coincide de modo imediato com o sujeito do som que proferimos: compreendemos sem a mediação do conceito o que nos diz o grito de socorro, de lamento ou de alegria e a ele retribuímos imediatamente. Se o grito, a queixa ou o som de prazer que emitimos é a exteriorização mais imediata do afeto da vontade, assim compreendemos o som análogo que chega premente a nosso ouvido como a incontestável exteriorização do mesmo afeto; e aquela ilusão, como a da aparência da luz, de que a essência fundamental do mundo fora de nós não é inteiramente idêntica à nossa, não é possível aqui, de modo que aquele abismo visível a nosso olhar desaparece de imediato. (WAGNER, 2010) Enunciados semelhantes atravessaram gerações de artistas e afetaram não só a música, mas também outros gêneros, levando, em última análise, à abstração. Já no século XX, Kandinsky (2014) buscava em suas obras a expressão de "verdades internas". Segundo ele, na Idade Moderna, os homens sentiam falta de 54 "ideais", uma vez que eram sufocados por anos de "materialismo": retornar à estética "primitiva" seria, portanto, um modo de despertar emoções "sutis” e "não nomeadas". Sua busca se acentuou quando Schoenberg respondeu a uma carta sua, concordando com "a eliminação da vontade consciente na arte" (SCHOENBERG; KANDINSKY, 1987). Inspirado pela música, Kandinsky tentava pintar assim como um músico compõe, usando elementos específicos de sua linguagem, que não representassem necessariamente a natureza. Em alguns de seus momentos mais brilhantes, talvez ele tentasse captar, em formas e cores, os próprios sons: A pintura hoje preocupa-se quase exclusivamente com a reprodução de formas naturais e de fenômenos. Sua tarefa é agora a de testar sua força e seus métodos, conhecer a si mesma como a música o fez por um longo tempo, e então usar seus poderes para um fim verdadeiramente artístico. (KANDINSKY, 2014) Outro filósofo a contribuir com as teorias estéticas foi Friedrich Schiller (2011). Tendo vivido na segunda metade do século XVIII, talvez ele não pudesse imaginar que o caminho que estava sendo traçado levaria a obras abstratas, dissonâncias e novas harmonias. De todo modo, ideias como as suas também influenciaram os circuitos artísticos que viriam a se concretizar. Na transição da Idade Clássica para a Moderna, Schiller propunha que razão e sentimento fossem reintegrados, o que ocorreria justamente na contemplação das Belas Artes. Em uma obra genuína, a "liberdade" e a "necessidade", o "dever" e a "inclinação", o "espiritual" e o "sensório" constituiriam uma união harmônica, chamada de "jogo". Assim como propunha Kant, o exercício estético não deveria levar a nenhum objetivo instrumental, pelo contrário, apenas quando as pessoas alcançassem o desinteresse e a apreciação incondicional, elas se tornariam realmente livres e humanas: No Estado estético, todos – mesmo o que é instrumento servil – são cidadãos livres que têm os mesmos direitos que o mais nobre, e o entendimento, que submete violentamente a massa dócil a seus fins, tem aqui que pedir-lhe o assentimento. (ibidem, p.135) A educação estética não seria, portanto, um simples exercício, mas quase um processo de salvação da humanidade. Com isso, Schiller (2011; SHINER, 2001) elevava as Belas Artes ao mais alto patamar da sociedade que já projetava no século XIX: Somente o gosto permite harmonia na sociedade, pois institui harmonia no indivíduo. Todas as outras formas de representação dividem o homem, pois se fundam exclusivamente na parte sensível ou na parte espiritual; somente a representação bela faz dele um todo, porque suas duas naturezas têm de estar de acordo. Todas as outras formas de comunicação dividem a 55 sociedade, pois se relacionam exclusivamente com a receptividade ou com a habilidade privada de seus membros isolados e, portanto, com o que distingue o homem do homem; somente a bela comunicação unifica a sociedade. (SCHILLER, 2011, p.134) Schiller (ibidem) estava convencido de que somente uma classe livre das imposições do trabalho – que fragmentava não somente os processos de produção, mas também o ser humano – seria capaz de exercer um julgamento estético e de manter, dessa forma, sua integridade. Com essas ideias, o próprio filósofo teve dificuldades em se sustentar no sistema de mercado, tendo, por isso, aceitado a proteção do Duque de Augustenburg, para quem dedicou as Cartas sobre a Educação Estética do Homem (SHINER, 2001). Paradoxalmente, foram justamente propostas como as suas – ao lado das bases lançadas por Baumgarten, Kant e outros pensadores da época – que permearam o campo artístico desde então. Para Jacques Rancière (2012), quando Schiller sugeria o "jogo estético", ele suspendia o "enraizamento" social da arte e o substituía por "uma indiferença radical", "uma ausência de preocupação, vontade e finalidade". Quando uma estátua grega, por exemplo, é vista em um museu, ela já não se refere mais a uma fé, tampouco a uma hierarquia social. A eficácia da arte provém dessa desconexão, quando, por exemplo, as obras expostas não manifestam a dominação monárquica ou religiosa, mas participam de um espaço comum. Por outro lado, foi esse mesmo sistema que levou à imagem do gênio marginalizado e incompreendido, do artista boêmio, que, sendo inapto às regras estabelecidas, ao jogo político ou aos interesses financeiros, abre mão do conforto material para dedicar-se à sua vocação. As histórias de Beethoven, Van Gogh, entre outros, são bem conhecidas, e essa ideia espalhou-se para diversas linguagens. Em uma série de cartas escritas a um jovem aspirante a poeta, chamado Franz Kappuss, Rainer Maria Rilke (2006, p. 24;25), por exemplo, diz: O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo de seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isso: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples "Preciso", então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso. Os resultados dos esforços de artistas que levaram seu talento ao limite são inegáveis, basta ver a quantidade e a qualidade das obras que a tradição estética 56 legou, principalmente porque ela primou em explorar, por um lado, as questões inerentes às próprias linguagens e, por outro, as emoções e os sentimentos. Mas será que a arte, como produto do gênio e como objeto de desinteresse, realmente se opõe ao trabalho produtivo e cria um espaço comum capaz de reintegrar o ser humano? Será que a liberdade a que tantos artistas e filósofos aspiraram (e a que muitos ainda aspiram) é possível de ser alcançada? Será que ela é válida para todos? 3.2 A autonomia da arte é possível? Apesar de o regime estético ter predominado no Ocidente, ele já foi contestado em diversos períodos. William Morris (1997 [1884]), fundador do movimento Arts and Craft, que começou na Inglaterra, na segunda metade do século XIX, criticava a separação entre arte e artesanato como algo extremante nocivo à sociedade. Em consonância com as ideias marxistas que também emergiam nessa época, ele condenava a divisão do trabalho e propunha restaurar a arte, unindo novamente a utilidade e a beleza. Bakhtin (2010), por sua vez, já no século XX, atacou o próprio conceito de criação espontânea, mostrando como as linguagens se formam a partir de uma confluência de vozes muitas vezes contraditórias. O autor, no entanto, enfatizava a criação como algo que exprime a singularidade dos artistas e abre a possibilidade do novo, porque permite que novos sentidos sejam atribuídos aos objetos estéticos. Por outro lado, ele também ressaltava as maneiras pelas quais essa polifonia, ou multiplicidade, poderia ser conduzida à unificação e à centralização de ideologias por um sistema dominante e repressivo. No entanto, foi Pierre Bourdieu (1986), na segunda metade do século XX, que contestou, de maneira mais incisiva, a liberdade e a universalidade das Belas Artes, assim como a existência do gênio como algo que transformasse o circuito artístico em um ambiente de exceção. Para ele, este não é um espaço realmente "autônomo", e sim constituído por relações de poder; a contemplação estética tampouco é um acordo universal, mas uma maneira de distinção simbólica. Segundo o autor, o "capital" é trabalho acumulado, é a potência (ou a energia) apropriada pelas instituições capitalistas. As teorias econômicas clássicas reduziram o universo 57 da troca às mercadorias, aos bens tangíveis, orientados para o lucro, ao passo que as trocas não econômicas passaram a ser vistas como "desinteressadas". No entanto, para o sociólogo, outros tipos de capital eram negligenciados: o cultural e o social. Essas três formas são diretamente relacionadas e convertem-se umas nas outras. Por isso, o "desinteresse" da contemplação estética é, de fato, apenas aparente. O capital cultural se apresenta em três estados: o primeiro, incorporado, revela-se no próprio corpo, em conhecimentos, hábitos e gestos adquiridos ao longo da vida; o segundo, objetivado, apresenta-se na forma de bens materiais, como obras de arte, por exemplo; e o último, institucionalizado, dá-se pelo reconhecimento de títulos escolares. Portanto, os bens culturais podem ser apropriados material ou simbolicamente, e, para que se tenha acesso a eles, o capital econômico é suficiente, mas, para se apropriar deles de acordo com propósitos específicos, o capital cultural é imprescindível. O tempo e o dinheiro necessários para que as pessoas adquiram o capital cultural, seja no ambiente familiar, seja em instituições como a escola, é o que estabelece a relação com o capital econômico. Como o capital – em qualquer uma de suas formas – tende a persistir, esse sistema contribui, não para a universalidade, e sim para a distinção entre as classes sociais. O alvo declarado dessa crítica é a visão kantiana da "autonomia da arte", que se expandiu por todo o período romântico. Longe de ser desinteressada, na verdade, ela legitimaria certa estrutura de interesses. Sem ser reducionista, contudo, o autor não relaciona a estética à ideologia burguesa atrelada ao individualismo, mas estuda a arte como um meio de violência simbólica sobre aqueles que são excluídos de seus circuitos. Dessa maneira, Bourdieu faz do campo artístico, pretensamente fora da sociedade e da economia, justamente uma área de estudo sociológico – e esta é sua grande contribuição (OSBORNE, 1998). Além disso, ao tratar a cultura como um capital, ele já mostrava ser possível fazer das relações interpessoais uma fonte de valor – essa ideia, por sua vez, levaria diretamente ao conceito de trabalho imaterial. Contudo, aferrando-se à distinção social, o sociólogo deixava escapar outros aspectos que talvez fossem mais importantes para a compreensão dos circuitos artísticos e de sua relação com a época em que se constituíram. Afinal, além da independência da religião, do estado ou da própria sociedade, os artistas buscavam por "verdades internas", retomando as falas de Kandinsky, Schoenberg ou 58 Schopenhauer, que, por sua vez, emergem somente em um ambiente de liberdade, aproximando-se agora de Kant e Schiller. Mas quais sentidos tem a "liberdade", que atravessa tantas gerações de filósofos e artistas? Será que ela se restringe à arte, em sua relação com a estética e o mercado, ou abrange todo um modo de pensamento? 3.3 A construção da liberdade Em uma ressalva à obra de Bourdieu, o pesquisador inglês Thomas Osborne (ibidem) ressalta que a arte autônoma não é, necessariamente, aquela que nega os aspectos sociais – senão, como explicar artistas que são também ativistas em prol de alguma causa, além de obras que relatem as lutas políticas ou que sejam construídas a partir de assuntos religiosos? Todos esses fatores podem ser incluídos nas obras, na forma de "seleções", "apropriações" e "combinações” (SALLES, 2011). O que ocorre é que, apesar de a arte ter elementos do mundo material, ela procura uma organização intrínseca, orgânica, que não quer se deixar determinar por nenhum objeto externo. Remetendo a Deleuze e Guattari, Osborne (1998) sugere, então, que a obra deve "manter-se de pé sozinha", ou seja, "o composto de sensações criado" deve "conservar-se em si mesmo": O jovem sorri na tela enquanto ela dura. O sangue lateja sob a pele deste rosto de mulher, e o vento agita um ramo, um grupo de homens se apressa em partir. Num romance ou num filme, o jovem deixa de sorrir, mas começará outra vez, se voltarmos a tal página ou tal momento. A arte conserva – e é a única coisa no mundo que se conserva. Conserva e se conserva em si (quid júris), embora, de fato, não dure mais que seu suporte e seus materiais (quidfact), pedra, tela, cor química, etc. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.213) Talvez sejam raras as obras que realmente alcançam esse objetivo, aquelas que são capazes de resistir à ação do tempo ou ultrapassar barreiras espaciais (DELEUZE, 1999), porém é justamente esta busca – não tanto o resultado em si – que assinala a produção artística. Mas há uma especificidade: mesmo que as artes do Egito Antigo ou de outras civilizações permaneçam até os dias atuais, elas foram criadas como um subproduto de outras funções. Portanto, mesmo que a proposta de Deleuze e Guattari possa ter como exemplo obras de diferentes épocas, a preocupação em criar algo que resista por si só à ação do tempo tornou-se mais clara apenas a partir do século XVIII. 59 Mais do que comparar as ideias de Deleuze e Guattari às de Bourdieu, Osborne (1998) propõe-se, então, a discutir essa tendência à luz do pensamento iluminista, aquele que se esforça por compreender a própria época, em uma incessante busca por "verdades", não necessariamente as "absolutas", mas as que são constantemente revistas ou criticadas, sempre com certo ceticismo, seja na ciência, na economia ou nas linguagens. A partir dessa abertura, o autor analisa diferentes aspectos: a emergência da razão e da crítica, o desenvolvimento da ciência, a medicina, a estética, a ética e os intelectuais. Mas surge outro problema, que perpassa todos esses domínios: no século XVIII, já não era suficiente conhecer os processos de que emergem as verdades, era preciso criar um espaço para que elas pudessem se manifestar: um campo de "liberdades". Nesse ponto, o texto de Osborne, que certamente remete a Kant (e à crítica de Bourdieu), também se refere, explicitamente, à obra de Foucault, não somente no método genealógico, mas especialmente no tema abordado. O assunto em comum, a "liberdade", é uma palavra fundamental tanto para o regime estético quanto para a economia de mercado. No entanto, aqui, ela aparece revestida de um sentido que complementa os anteriores. Além de remeter à libertação de amarras religiosas e de hierarquias sociais, relacionando-se com a razão e a moral, ela se torna um atributo de cidadãos "livres", que já não são submetidos a um poder soberano, mas que devem saber conduzir suas próprias vidas conforme certo grau de "normalidade", definido em cada época pelo conjunto de instituições em vigor (ROSE, 1999). Ocorre que a liberdade também não é uma situação natural, é preciso produzi--la. E, para isso, seria necessária uma forma de governo que não interferisse diretamente na vida dos indivíduos, como faziam os reis absolutistas, por exemplo, mas que refletisse sobre os interesses vindos de diversas partes da sociedade (ibidem). Assim emergia o liberalismo econômico, ambiente em que tanto o regime de produção quanto o mercado de artes se desenvolveram no século XVIII e que, como a vida e as linguagens, ocupava políticos e pensadores da época. 3.4 Arte e subjetividade: o governo do público e dos artistas Foucault (2008; 2010), no final da década de 1970, estudou o liberalismo a partir de um conceito novo, criado por ele: o de "governamentalidade". O filósofo 60 percebeu uma relação direta entre as técnicas de governo dos Estados, que se renovavam com o pensamento liberal, e as condutas individuais de cidadãos que deveriam seguir o caminho da liberdade, mas sempre prestando atenção ao próprio comportamento. O liberalismo, no sentido que eu o entendo, esse liberalismo que podemos caracterizar como a nova arte de governar formada no século XVIII, implica em seu cerne uma relação de produção/destruição com a liberdade. É necessário, de um lado, produzir a liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc. (FOUCAULT, 2008, p.87) Em seus primeiros textos, Foucault dava ênfase ao poder exercido por instituições como escolas, prisões, hospitais – e por que não expandir também para os teatros, os museus e as academias de arte? Mas foi somente no final de sua vida, já na década de 1970, que ele uniu essa perspectiva aos processos de formação de subjetividade. Dessa maneira, ele se propôs a estudar o conjunto de ações que buscam "conduzir" as "condutas" dos indivíduos. Foi essa noção que permitiu ao filósofo explicar como, na formação dos Estados liberais, no século XVIII, as técnicas de poder e as formas de conhecimento, as racionalidades e os regimes de representação passaram a afetar o modo como as pessoas conduzem suas vidas: o "governo de si" (LEMKE, 2011). Como visto, nessa época, os grandes Estados Nacionais estavam se consolidando e as monarquias absolutistas finalmente entravam em declínio. O ato de "governar" deixava de ter como objetivo expandir o próprio território ou exercer o poder diretamente sobre os súditos e, com isso, emergia uma pergunta inédita para aqueles que estavam no comando: "por que, então, é preciso governar?". A resposta vinha de um problema que também era novo para a época: a "sociedade". O desenvolvimento da estatística (ciência do Estado) mostrava, aos poucos, que a população tem regularidades próprias, como o número de nascimentos e de mortes, de doenças e acidentes. E, nesse contexto, "governar" passava a ser uma maneira de agenciar interesses vindos de diversas partes da sociedade, entendida agora como um conjunto de relações sociais, jurídicas, econômicas e culturais, tecidas por sujeitos "livres" e heterogêneos. (LAZZARATO, 2005) Mas como organizar um espaço para que a liberdade pudesse ser exercida? As fábricas, as prisões e os asilos para loucos eram instituições que buscavam remodelar o caráter de cidadãos que transgrediam a conduta considerada civilizada. Entretanto, a civilidade também era instituída por meio de estratégias que buscavam 61 "construir" uma forma de liberdade regulada por práticas de "normalidade" e de "racionalidade". Ser livre, a partir do liberalismo, significava comportar-se de acordo com certos códigos de conduta, ser governável como um "sujeito normal". Para Nikolas Rose (1999, p.76, tradução nossa): Ser livre, no sentido moderno, é ser associado a um governo em que certos modos de conduta da existência de uma pessoa são identificados como normais e, simultaneamente, ser vinculado àqueles "engenheiros da alma humana" que irão definir as normas e disciplinar indivíduos aos modos de viver que irão efetuar a normalidade.15 Com essa premissa, foram inventadas técnicas que envolviam a vigilância de indivíduos em espaços abertos, além da patrulha e do mapeamento realizados pela polícia, que não atuava tanto pelo terror ou pela violência, mas que buscava assegurar o bom comportamento no espaço urbano (ibidem). Ora, a arte, como foi entendida desde o século XVIII, também pressupõe uma determinada conduta tanto dos artistas, que se voltam para si mesmos, quanto do público, que adota a perspectiva da "contemplação desinteressada". Por isso, nos anos 1980, a tese de Foucault foi rapidamente apropriada por pesquisadores da cultura. A corrente de estudos culturais, que se desenvolvia na Inglaterra, é um exemplo. Porém, divergências teóricas logo separaram novamente seus modos de pensamento, e foi Tony Bennett que deu continuidade ao assunto, associando-se ao grupo de Nikolas Rose sobre os Estudos do Presente. De acordo com Bennett et al. (2007), quando induz o livre acordo entre a imaginação e o entendimento – e esse acordo não é ditado por nenhuma regra ou conceito determinante –, a Estética, como proposta por Kant e levada adiante por outros teóricos e artistas, simboliza um campo de produção de subjetividade: Não é nenhuma surpresa, portanto, que a visão de Kant da estética deva ter tido um papel central no que se refere à relação entre cultura e governo liberal, uma vez que o encontro estético entre o indivíduo e a obra de arte é o local de produção de uma interioridade na qual uma relação reguladora do self é livremente introduzida. (ibidem, p.10)16 Foi com base nesse raciocínio que Bennett (1998) estudou a crescente instrumentalização da cultura no interior do governo, tendo como objeto principal os To be free, in the modern sense, is to be attached to a polity where certain civilized modes of conducting one’s existence are identified as normal, and simultaneously to be bound to those ‘engineers of the human soul’ who will define the norm and tutor individuals as to the ways of living that will accomplish normality. 15 16 It is small wonder, then, that Kant’s account of the aesthetic should have played so pivotal a role in accounts of the relations between culture and liberal government since the aesthetic encounter between the individual and the work of art is the site for the production of an interiority in which a regulative relationship to the self is freely entered into. 62 museus. Em comentário a essas pesquisas, Rose (1999) descreve que os visitantes dessas instituições, já no século XIX, eram instruídos por escrito sobre as maneiras como deveriam se vestir e se portar, além de passarem pela vistoria de guardas, de funcionários e do próprio público. Dessa maneira, criava-se uma rede de visibilidades e de códigos de conduta que fazia com que as pessoas prestassem cada vez mais atenção a seus próprios atos, educando a si mesmas. Além dessas estratégias, que permanecem até hoje (basta observar como museus, teatros e galerias são organizados), há outras mais elaboradas, que afetam indiretamente a população. Pode-se pesquisar o comportamento em relação ao consumo e, em seguida, aumentar ou diminuir os impostos, incentivando ou não a compra de determinados bens; ou realizar campanhas em veículos de comunicação de massa, visando a obter ações esperadas nos campos da saúde ou da educação. Na área cultural, especificamente, pode-se oferecer descontos na compra de ingressos para museus e teatros; criar campanhas de incentivo à leitura; realizar projetos em comunidades, entre outros exemplos. Todas as técnicas de governo citadas até aqui – e exploradas à exaustão por diversos pesquisadores – referem-se principalmente ao público, embora remetam sempre à subjetividade dos artistas. Mas será que o tema da governamentalidade não pode ser aplicado também ao fazer artístico propriamente dito? Na passagem do século XVIII para o XIX, o impacto das artes para a economia crescia consideravelmente. A cultura ainda demoraria mais de um século para ser realmente considerada como um recurso econômico, mas sua visibilidade fazia com que os artistas emergissem como uma das partes em uma vasta rede de interesses. Portanto, mesmo com toda a fundamentação romântica, de Kant a Schiller e Schopenhauer, o cotidiano dos criadores era muito mais prosaico. Beethoven, Van Gogh, Rilke, Wagner, dentre tantos outros, foram, em algum momento, vistos como gênios, durante a vida ou após a morte, mas talvez não fosse exatamente o dom natural que, no livre mercado, fizesse de suas obras uma fonte de valor. Talvez fosse o contrário: apesar de terem suas atividades entendidas como algo à margem do regime produtivo desenvolvido nas fábricas, os artistas precisavam se relacionar com diversos profissionais, curadores, galeristas, publicitários, e com o próprio Estado, que, por sua vez, podia encontrar nas artes uma riqueza ou um modo de subversão ou de resistência. Era esse movimento – que se prendia à figura dos 63 gênios e à busca iluminista pelas verdades, mas que emergia somente nas relações interpessoais – que começava a chamar a atenção. Em meio à rede que girava em torno do mercado e da produção das artes, surgia, então, outro problema: como governar os artistas, que ocupavam a ambígua posição de estar fora das relações formais de trabalho e, ao mesmo tempo, tomar parte na geração de riquezas de seus países? Como extrair deles valores econômicos ou sociais sem influenciar diretamente suas obras? Como inseri-los nos processos capitalistas sem cercear por completo sua liberdade? Como fazer com que gênios, "às margens da economia", produzissem obras que fossem "saudáveis" para os gostos do público e ajudassem a compor a imagem de suas nações? 3.5 A economia política da arte O inglês John Ruskin (2004), embora ainda estivesse preso a uma visão familiar da economia e a uma ideia paternalista do Estado, foi um dos primeiros a escrever, de forma sistemática, sobre as relações entre arte, política e economia. Ele foi um crítico que viveu na Inglaterra durante a segunda metade do século XIX, e ficou conhecido por apoiar a carreira do pintor William Turner. Ao curso de sua vida, mudou o centro de seu interesse para as questões sociais, pesquisando as relações de trabalho de artistas e de arquitetos e o papel do Estado no fomento às artes. Em uma série de palestras proferidas na década de 1850, o autor falou sobre economia política, definida por ele como o "sábio gerenciamento do trabalho", em três sentidos: "a aplicação racional do trabalho", "a preservação cuidadosa de seus frutos" e "a distribuição oportuna" desses frutos. Em seguida, ele se propôs a aplicar essa fórmula ao circuito artístico, levantando mais uma questão: se, de acordo com o preceito romântico, os artistas são aqueles que apresentam uma "genialidade especial" para o "negócio" que praticam, nesse caso, como seria possível "gerar o trabalhador"? Essa pergunta desdobrava-se ainda em quatro aspectos: "como obter o homem genial?"; "como empregar o homem genial?"; "como acumular e preservar a maior quantidade possível de seu trabalho?"; e, por último, "como distribuir o seu trabalho de maneira vantajosa para a nação?". Nesse esquema, os artistas eram considerados como uma espécie de "domínio público" e os gênios constituíam um "recurso da nação", assim como o ouro. (RUSKIN, 2004, p. 28;39) 64 Contudo, Ruskin também via os excessos nas artes como "perversão e luxúria" e era contrário aos gostos "frívolos e efêmeros" do público. Para ele, assim como para Kant, a estética era relacionada à moral e, por isso, a ênfase de sua análise recaía sobre a necessidade de controle do Estado para proteger a produção e o consumo das obras da vulnerabilidade do livre comércio, que poderia corromper os artistas e os cidadãos (THROSBY, 2011, p.285; CODELL, 2010). Para atingir seus objetivos, Ruskin pensou em uma estratégia engenhosa: não abastecer o mercado com "arte barata", mas fazer com que as obras fossem tão caras que as pessoas tivessem poucos objetos para olhar. Os problemas de distribuição dos bens culturais seriam, no entanto, corrigidos, dando à população mais pobre o acesso gratuito ou barato aos trabalhos artísticos. Ou seja, o autor já notava que, para muitos consumidores, o preço de um produto é sinônimo de qualidade, e que muitos bens culturais são comprados com o objetivo de ostentação ou, nas palavras de Bourdieu (1986), de "distinção simbólica" (THROSBY, 2011, p.286) Com essa visão, a proposta de Ruskin ia um passo além do simples jogo de mercado e envolvia também o governo: para equilibrar a demanda e a produção, as "melhores obras de arte" deveriam ser mantidas nas galerias públicas, com acesso a toda a população, enquanto a arte contemporânea deveria ser comprada pelas pessoas comuns para que "adornassem as paredes de sua casa". Nesse último caso, os preços deveriam ser mais baixos para que todos pudessem ter acesso. Além disso, os investidores privados deveriam gastar mais dinheiro com uma obra cara do que com várias obras baratas, dar preferência aos originais e não às copias e comprar mais trabalhos dos artistas vivos do que dos mortos, como forma de incentivar a produção (THROSBY, 2011, p.287). A análise de Ruskin é significativa por reunir, mesmo que de forma incipiente, os problemas do governo, a questão moral e a visão romântica que predominava em seu tempo. Suas palestras também remetiam ao livre comércio de obras de arte, o que instigava um caloroso debate na Inglaterra Vitoriana. Alguns jornais condenavam o Estado por não adquirir peças que "honrassem a nação". Mas, apesar das críticas aos que trabalhavam "por dinheiro", na década de 1880, houve um grande aumento no número de artistas, incentivados pelo sucesso de pintores que "recebiam mais por uma pintura" do que "um ministro ganhava em um ano" (CODELL, 2010, p.27). Além disso, discursos populares criticavam a Academia Real 65 por agir contra o "livre mercado". E, em 1863, uma comissão chegou a investigá-la pelas práticas "restritas" de seus membros. A propósito, no mesmo ano, os artistas passaram a fazer parte do censo, embora a remuneração fosse vista, não como pagamento ao "trabalho", mas como "recompensa" por uma "contribuição geral à sociedade" (SHINER, 2001, p.201). E a arte tornava-se um elemento importante também no mercado internacional: o valor da exportação de bens relacionados à produção artística ultrapassou seis milhões de libras em 1871. O sucesso na área era semelhante àquele em qualquer empreendimento capitalista e dependia da especulação, do risco e do investimento (CODELL, 2010). Eram esses "excessos" que Ruskin não cessava de criticar, no entanto, havia uma dimensão que sua obra talvez não pudesse atingir ainda. O sistema público nem sempre era capaz de abranger a pluralidade de linguagens que emergiam e a quantidade de profissionais que se lançavam todos os anos em atividades como pintura, escultura, música, dança e teatro. O problema da autonomia da arte e as questões da liberdade persistiam (assim como as inúmeras tentativas de governo das condutas dos próprios artistas e do público), mas seus domínios expandiam-se para a fotografia, o design e a publicidade. Para dar sentido a essa multiplicidade, a comunicação se tornaria um mecanismo importante: ela ajudaria a compor os imaginários e as identificações em torno das diversas correntes estéticas, dos artistas e de suas obras. Com sua "economia política", Ruskin já previa que a arte poderia unir-se novamente ao trabalho produtivo. Muito além do que ele pôde imaginar, o resultado não seria somente a educação estética e a preservação das obras do gênio. O elemento imaterial, o dom, que até então havia pautado as discussões sobre os circuitos artísticos, assim como a conduta "desinteressada" do público, tão importante para os processos de subjetivação, realmente seriam fatores essenciais para a consolidação do mercado de artes. Poucos anos mais tarde, a liberdade seria, ainda, associada a certo ato de resistência ou de transgressão aos valores estabelecidos. Contudo, o processo de mudança, que englobava todos esses fatores, era muito mais amplo: no interior do jogo de livre comércio, de autonomia e de governo das condutas, era uma economia dos signos e dos afetos que estava sendo gerada. 66 CAPÍTULO 4 – DO MERCADO DE ARTES À ECONOMIA IMATERIAL 4.1 A consolidação do mercado de artes You are an artist and that means: you don’t do it for the money. That is what some people think. It is a great excuse not to pay you for all the things you do. So what happens is that you, as an artist, put money into projects that others will show in their museum, in their Kunsthalle, in their exhibition space, in their gallery. So you are an investor. You give loans nobody will repay you. You take financial risks. You speculate on yourself as an artistic asset. You are a trader. (Dieter Lesage) No livro Isso é Arte?, o editor da BBC, Will Gompertz (2012), narra uma série de episódios que tiveram início no século XIX e que, segundo ele, conduziram ao cenário da arte contemporânea. Apesar dos debates sobre o livre comércio de obras, que ocorriam na Inglaterra nessa época, e das pinturas de Turner, que já se aproximavam da linguagem moderna, seria Paris que ficaria conhecida como o berço das vanguardas europeias. A cidade condensava as mudanças que estavam em curso na sociedade: alterações violentas na política, rápidos avanços tecnológicos, a emergência da fotografia. A Academia de Arte, entretanto, ainda era estruturada como no século anterior até que, em 1848, seu Salão anual foi declarado "aberto a todos" e acabou recebendo 5.180 telas, em vez das 2.536 que haviam sido apresentadas um ano antes. A partir de 1850, cerca de duzentas mil obras seriam pintadas todos os anos em Paris por um conjunto de aproximadamente três mil pintores. O sistema acadêmico, no entanto, oferecia somente uma escola, a Belas-Artes, e um Salão. Certamente, não seria possível atender a todos os artistas (CAUQUELIN, 2010). Anualmente, a Academia realizava mostras organizadas por um júri oficial, que escolhia algumas peças para a exposição e rejeitava as demais, que podiam ser vistas no Salon des Refusés. Em 1874, os impressionistas, que tiveram suas obras rejeitadas, reuniram-se para criar seu próprio salão. O grupo formado por Renoir, Pissarro, Sisley, Morisot, Cézanne, Degas e Monet estabeleceu suas próprias regras: não haveria nenhum júri, todos os artistas seriam tratados da mesma maneira e qualquer um poderia expor, desde que pagasse a inscrição. O mesmo 67 modelo seria adotado por Duchamp quase cinquenta anos depois (GOMPERTZ, 2012). O Salon des Refusés deu lugar a uma sociedade anônima de artistas que faziam exposições em ateliês, como o de Paul Durant-Ruel. O marchand havia percebido que o mercado de artes estava mudando: a nova classe burguesa queria comprar obras que refletissem sobre seu próprio mundo, o que envolvia o lazer e a tecnologia, os prazeres da vida urbana. O auge de seu negócio ocorreu em 1886, quando promoveu uma exposição dos impressionistas nos Estados Unidos. Ao contrário das críticas negativas que os artistas recebiam na Europa, a mostra foi um sucesso, resumido em sua frase: "o público norte-americano não ri. Ele compra" (ibidem, p.69). É significativo que essa história tenha sido narrada por uma figura como Gompertz, ligada à produção televisiva. Seu livro mostra como se formou o imaginário sobre as vanguardas europeias, que ainda assombra ao revelar um movimento de independência quanto às Academias e uma intensa experimentação estética. Ainda há mais um problema implícito nesse episódio: a relação crescente entre as artes e os meios de comunicação. Durant-Ruel foi um dos primeiros a aproveitar essa oportunidade de maneira sistemática, criando um jornal especializado (e independente): Revue internacionale de l'art et de la curiosité. Outro exemplo, mais ousado, veio de Marinetti (GOMPERTZ, 2012). Em 20 de fevereiro de 1909, o poeta italiano apresentou ao mundo seu “Manifesto Futurista”, publicado na primeira página do jornal francês Le Fígaro: Nós cantaremos as grandes multidões excitadas pelo trabalho, pelo prazer, e pelo tumulto; nós cantaremos a canção das marés de revolução, multicoloridas e polifônicas nas modernas capitais; nós cantaremos o vibrante fervor noturno de arsenais e estaleiros em chamas com violentas luas elétricas; estações de trem cobiçosas que devoram serpentes emplumadas de fumaça; fábricas pendem em nuvens por linhas tortas de suas fumaças; pontes que transpõem rios, como ginastas gigantes, lampejando no sol com um brilho de facas; navios a vapor aventureiros que fungam o horizonte; locomotivas de peito largo cujas rodas atravessam os trilhos como o casco de enormes cavalos de aço freados por tubulações; e o voo macio de aviões cujos propulsores tagarelam no vento como faixas e parecem aplaudir como um público entusiasmado. (MARINETTI, 1909) O texto era uma apologia ao progresso, mas talvez sua maior contribuição tenha sido quanto às técnicas de comunicação utilizadas. Embora não fosse muito conhecido fora da vanguarda italiana, Marinetti alcançou notoriedade por influenciar a crítica e o público com estratégias "profissionais" (GOMPERTZ, 2012). O escritor francês Roger Allard escreveu em 1913: 68 Com a ajuda de artigos na imprensa, exposições sagazmente organizadas, conferências provocativas, controvérsias, manifestos, proclamações, prospectos e outras formas de publicidade futurista, é lançado um pintor ou um grupo de pintores. De Boston a Kiev e Copenhague, esse estardalhaço cria uma ilusão e o outsider dá algumas ordens. (apud GOMPERTZ, 2012, p.158-59) Seria também como Marinetti que, mais tarde, Marcel Duchamp, Salvador Dalí, Andy Warhol e Damien Hirst, entre outros, iriam usar a publicidade em benefício próprio (GOMPERTZ, 2012, p.158-59). O manifesto dadaísta, por exemplo, lido em 1916 por Hugo Ball, afirmava: Dadá é uma nova tendência da arte. Percebe-se que o é porque, sendo até agora desconhecido, amanhã toda a Zurique vai falar dele [...]. Uma palavra internacional. Apenas uma palavra e uma palavra como movimento. É simplesmente bestial. Ao fazer dela uma tendência da arte, é claro que vamos arranjar complicações. Psicologia Dadá, literatura Dadá, burguesia Dadá e vós, excelentíssimo poeta, que sempre poetastes com palavras, mas nunca a palavra propriamente dita [...]. Como conquistar a eterna bem-aventurança? Dizendo Dadá. Como ser célebre? Dizendo Dadá. (BALL, 1916) Além de ironizar as relações entre a arte e os veículos de comunicação, esse episódio explorava o conceito de "autonomia da arte", tal como emergiu no século XVIII. Quebrar paradigmas tornou-se um dos objetivos, o que culminou nas diversas correntes do mercado moderno, mas o fato é que elas nem sempre se sucediam, pelo contrário, em grande parte das vezes, ocorriam de forma paralela. Para sustentar essa produção, a importância dos críticos também aumentava. Assim como acontece ainda hoje, esses profissionais atuam como mediadores que fomentam opiniões e contribuem para a criação de uma imagem dos artistas e das obras, ligando-os a grupos específicos: impressionistas, fauvistas, expressionistas, cubistas, entre outras. Segundo Cauquelin (2010, p.25): Formam-se pares, ou melhor, trios: negociantes de arte e os seus críticos, artistas e os seus negociantes de artes e os críticos que os apoiam. Já não é uma questão de apoiar um grupo que está em conflito com as autoridades oficiais, como se de um sistema simples de oposição se tratasse, mas de jogar com firmeza num mercado aberto, e de encontrar o "seu" artista ou o "seu" grupo em que apostar a sua reputação de crítico. Porque são esses críticos que vão dar nome aos movimentos e que, sobretudo, os identificarão como tal. Nesse contexto, a discussão sobre a universalidade estética já se mostrava insuficiente. Em grande medida, o imaginário de um circuito artístico autorreferente persistia, mas a quantidade de correntes que eram criadas diluía a possibilidade de uma história linear (que, na realidade, nunca existiu). A noção de "campo", formulada por Bourdieu (apud CANCLINI, 2012), aplicava-se à dinâmica dos movimentos modernos, uma vez que saber quando há arte implica, segundo o autor, 69 em entender o contexto de sua produção, circulação e apropriação. Mas a polissemia da estética tornava-se também mais visível. Com quais critérios pode-se dizer que uma corrente artística é melhor ou pior que as outras? Quais as bases para que uma interpretação de determinada obra venha a prevalecer? Além disso, na passagem para o século XX, as obras também se integravam com mais força às mídias e à cultura comercial. Assim, a própria busca por autonomia mudava aos poucos de sentido. Afinal, em uma economia de mercado, ser "livre" significava libertar-se dos padrões ditados pelo que ainda restava das academias ou livrar-se das críticas e das teorias conservadoras? Seria possível ser autônomo também em relação ao próprio mercado? Ou a "autonomia" aproximavase, nesse contexto, da atividade de um empresário, um empreendedor? 4.2 Arte e economia imaterial no século XX No início do século XX, Magritte, que trabalhou também como publicitário, usava em suas obras referências do cinema, dos cartazes, das revistas e das ficções sensacionalistas da época. Andy Warhol, por sua vez, parodiava a publicidade com imagens uniformes e repetitivas de marcas comerciais. Com isso, ele não só questionava a ideia de que a arte tem que ser original, como também eliminava das obras sua presença, seu estilo – e esta se tornou sua própria marca. Esses exemplos acompanhavam a ascendência da cultura de consumo, e também uma mudança no eixo da economia, da Europa para os Estados Unidos (GOMPERTZ, 2012). Esta era uma mudança importante. Afinal, o "novo mundo" representava um ambiente de liberdade e de renovação dos valores morais a que tanto se aspirava na Europa. Por isso, desde o início das vanguardas, vários artistas europeus foram buscar novas oportunidades neste país. As diferenças não estavam somente nas relações sociais, elas se estendiam até as questões políticas e econômicas. Foucault (2013, p.301) ressalta, por exemplo, que o liberalismo norte-americano não foi uma decisão posterior à criação do Estado, algo que de fato o limitava, como havia ocorrido nos países da Europa. Pelo contrário, nos Estados Unidos, o liberalismo era, ele próprio, o princípio fundador do Estado. Também por isso, esse formato de governo envolvia "todo um modo de ser e de pensar", "uma espécie de 70 reivindicação global, multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à esquerda", um "foco utópico sempre reativado", nas palavras do filósofo. A iniciativa individual destacava-se nesse ambiente, e o problema das liberdades ganhava outra relevância. A noção da sociedade como uma rede de interesses era ainda mais clara e, desse ponto de vista, o trabalho era reinserido na economia, mas com uma diferença. Se, desde a obra de Smith, essa atividade era algo que roubava o tempo dos empregados, transformando sua força física em uma fonte de valor; agora, ela passava a ser um investimento, um capital. Essas questões que remetem sempre ao problema do "trabalho imaterial", como visto no primeiro capítulo, serão aprofundadas mais adiante. Por ora, é suficiente dizer que o perfil empreendedor ganhava bastante visibilidade nas primeiras décadas do século XX, também no campo cultural, o que só viria a se intensificar. De fato, nos anos 1950, surgia em Nova York a estrutura do mercado de artes que permanece até hoje. A promoção das vanguardas ficava a cargo das galerias privadas e da imprensa, e os principais colecionadores da época eram pessoas que construíam seus negócios após a guerra em setores quase sempre ligados à publicidade, aos meios de transporte e às comunicações. Uma das figuras emblemáticas do período foi o galerista Leo Castelli. Entre os artistas que ele promoveu, estavam Rauschenberg, Jaspers Johns, Stella e Warhol. Seu êxito, segundo Cauquelin (2010), estava na exploração de alguns princípios que seriam vigentes nas décadas seguintes: (1) a "informação" que ele obtinha na América e na Europa, visitando os artistas, documentando as obras, lendo catálogos e textos publicados em jornais; (2) o "consenso" entre críticos de arte, curadores de grandes museus e a imprensa; (3) o "loop", ou seja, o aumento de sua credibilidade a partir do êxito em uma exposição e, assim, sucessivamente; e, por fim, (4) a "internacionalização". A propósito, no final dos anos 1980, predominou a ideia de que os Estados Unidos e seu estilo de "modernização" capitalista tornariam o planeta homogêneo. Os anos 2000 revelaram, pelo contrário, a multiplicidade de culturas interdependentes, o choque entre civilizações, o poder compartilhado do inglês com outras línguas (CANCLINI, 2012, p.26). Embora os bens de consumo continuassem a ter importância, o desenvolvimento das tecnologias de produção, transporte e comunicação transfeririam para o plano das imagens grande parte do valor econômico de produtos e serviços. Talvez por isso, o mercado de artes tenha se 71 expandido de forma tão intensa. Nunca se comprou tantas obras por valores tão elevados, e a arte passou a ser considerada até mesmo um investimento financeiro seguro. Para Canclini (ibidem, p.18), isso ocorreu porque o modelo neoliberal norteamericano, que agora se espalhava pelo mundo, acabou subordinando até mesmo a "economia dura", que produz bens tangíveis, a especulações financeiras, já que, em vez de organizar a sociedade com regras científicas, os economistas passaram a nomear desordens com metáforas, como "bolhas", por exemplo. As tendências artísticas também são fugazes, mas, segundo o autor, um grande setor do público já se acostumou a essa característica como "parte do jogo": Podemos encontrar prazer na inovação, ou aderir a distintas correntes e sentir compatíveis as preferências por Picasso, Bacon ou Bill Viola. Situarse na última onda, na penúltima ou em algumas anteriores, que às vezes se reciclam, não apresenta tantos riscos de exclusão social ou desmoronamentos pessoais como investir na moeda do próprio país, em dólares ou em ações de uma empresa transnacional. (ibidem, p.19) Um grande exemplo desse cenário ocorreu em 2008: ao mesmo tempo em que o governo dos Estados Unidos permitia a quebra do banco Lehman Brothers, o que poderia dar início a uma crise global, a casa de leilões Sotheby’s, em Londres, vendia mais de duzentas obras de Damien Hirst (entre elas, animais conservados em salmoura e pinturas coloridas), pelo preço total de R$ 374,8 milhões (CYPRIANO, 2008). Além de parecer não se dar conta da crise financeira, Hirst quebrava uma longa tradição do mercado de arte: em vez de vender suas novas obras por meio de marchands (mercado primário), a compradores que, mais tarde, poderão recorrer a casas de leilões (mercado secundário), o artista partiu diretamente para a segunda etapa. Por atitudes como essa, Gompertz (2012, p.391) classifica os artistas que se estabeleceram principalmente a partir dos anos 1990 de "empreendedores": "eles estavam imbuídos de um espírito empresarial que era parte da arte que produziam e logo passou a ser parte do mundo em que vivemos". Canclini (2012, p.22;27) também lê a atitude de Hirst como um gesto de autonomia do artista em relação ao mercado, mas ele acredita que esse gesto só possa ser praticado por poucos: "essa pretensão não pode ser estendida às instituições artísticas e aos projetos coletivos que viram cair seus financiamentos". Além disso, quedas e elevações nos preços das artes revelam "intersecções mais complexas entre arte e sociedade, entre criatividade, indústria e finanças, do que as que alimentaram os dilemas entre valor econômico e valor simbólico nas estratégias clássicas". 72 Por outro lado, apesar de muitas obras serem exibidas em galerias, museus e teatros, as artes se misturam aos meios de comunicação, circulam pela internet, assumem papéis sociais. Performances e instalações levam a novas maneiras de registro das obras; coletivos artísticos dissolvem ou ressignificam a função do autor. Ao mesmo tempo, a produção de artistas emergentes vem à tona e o grande público, que por vezes se afasta das linguagens mais experimentais, faz filas em exposições de artistas renascentistas ou românticos e toma contato com as obras pelos meios de comunicação de massa e pela internet. Percebe-se assim, duas dimensões da produção artística que coexistem na atualidade: o mercado global de obras de alto valor financeiro e o trabalho de artistas e produtores culturais emergentes, em grande parte pouco conhecidos, que diariamente resistem ou se adaptam às forças do mercado, da economia. Por sua vez, o público também oscila entre as especificidades das linguagens experimentais, as redes de artistas contemporâneos e a arte apropriada pelos meios de comunicação de massa, que se integra à publicidade, aos filmes comerciais, às telenovelas. 4.3 A estética da iminência As múltiplas possibilidades abertas pelo contato entre as artes e as mídias fazem com que o conceito de "autonomia", apesar de persistir tanto na prática artística quanto nos debates acadêmicos, já não tenha o sentido de um recorte específico para a apreciação da arte, com uma economia própria e o suporte das teorias estéticas. Para Canclini (2012), nem mesmo a noção de "campo", sugerida por Bourdieu, é suficiente para se compreender a situação das artes atualmente. Apesar das desigualdades que persistem entre os países e mesmo entre as pessoas que habitam uma mesma região geográfica, a ideia de distinção simbólica que a arte promove também não seria totalmente adequada quando há tantos outros recursos utilizados com essa finalidade: desde a roupa ou de adereços até comunidades presenciais ou virtuais. Além disso, o aumento do público dos museus e a difusão das artes pelos meios de comunicação de massa ou pela internet acabam por fazer duvidar da distinção cultural como exclusividade das elites. 73 Por isso, Canclini (ibidem) defende que a arte atual seja "pós-autônoma", uma vez que faz parte de um mundo em que já não há (será que houve alguma vez?) uma orientação única, um modelo único de desenvolvimento para a sociedade, um mundo que combina uma diversidade de relatos muitas vezes discordantes: A tarefa da arte não é dar um relato à sociedade para organizar sua diversidade, mas valorizar o iminente onde o dissenso é possível. Além de oferecer iconografias para a convivência ou manifestos para a ruptura, os artistas podem participar simbolizando e reimaginando os desacordos. (ibidem, p. 246) Para Canclini (ibidem, p.61), "a literatura e a arte dão ressonância a vozes que procedem de diversos lugares da sociedade". De acordo com o autor, essas vozes são ouvidas de modos diferentes, as artes "fazem com elas algo distinto dos discursos políticos, sociológicos ou religiosos". Ocorre que ninguém sabe de antemão o que fazer para transformá-las em arte. Ricardo Píglia (apud CANCLINI, 2012, p.61), por exemplo, diz que "um escritor escreve para saber o que é literatura". Por isso, Canclini (2012, p.20) afirma que "a arte se situa na iminência", que ela apresenta "uma relação possível com o 'real'". As obras "tratam os fatos como acontecimentos que estão a ponto de ser". O autor cita um trecho do conto A muralha e os livros, de Jorge Luis Borges: A música, os estados de felicidade, a mitologia, as caras trabalhadas pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares, querem nos dizer alguma coisa, ou disseram algo que não deveríamos ter perdido, ou estão por dizer alguma coisa; esta iminência de uma revelação que não se produz talvez seja o fato estético. (BORGES, 2007, p.12) A especificidade do fazer artístico talvez resida, de acordo com Canclini (2012, p.61-62), justamente "nesse modo de dizer que não chega a se pronunciar plenamente, nessa iminência de uma revelação". O autor cita Walter Benjamin, que já havia definido a "aura" da obra de arte como "a manifestação irrepetível de uma distância". Entretanto, para Canclini, falar em "iminência" não faz do artista uma "exceção", tampouco atribui um caráter único à obra de arte. Ao usar a palavra "irrepetível", Benjamin aludia à fotografia e ao cinema, que reproduzem as obras mecanicamente e, por isso, fariam "evaporar" seu sentido singular. Canclini percebe a persistência, mesmo na arte contemporânea, de uma busca pelo que chama de "resplendor" ou "mistério aurático". De acordo com Canclini (ibidem, p.23), a "estética da iminência" não é uma estética do efêmero, a não ser em "face de afirmação da vida", "como disposição ao que pode chegar, como atenção e espera". É preciso buscar a "iminência" não apenas nos museus, teatros ou galerias, como também na "expansão" do campo 74 das artes, quando elas se misturam ao desenvolvimento urbano, ao design, ao turismo, aos bens de consumo, à política. Vale lembrar que o que se entende por fronteira também muda ao longo do tempo e nas diversas sociedades. No século XX, o que é especialmente visível no trabalho de Duchamp, transgredir tornou-se parte da própria arte. Ora como anseio dos próprios artistas, ora como tentativas de apropriação pelo capitalismo, a arte movimenta-se, por vezes, no sentido da emancipação e, por vezes, busca romper limites, fundir-se às demais atividades sociais, fazer parte da vida das pessoas, de seu dia a dia. 4.4 As artes como trabalho imaterial Canclini (ibidem) fala do trabalho artístico, mas se situa principalmente do ponto de vista do público. No entanto, desde que Kant reforçou o "desinteresse" da contemplação estética e Ruskin propôs a economia política da arte, muitas mudanças ocorreram também para a atividade dos artistas. Se eles eram vistos como jovens, quase sempre do sexo masculino, que aprendiam seu ofício nas escolas de arte ou em academias e que não praticavam nenhuma outra profissão, atualmente eles se envolvem em múltiplos projetos ao mesmo tempo, e têm seu trabalho marcado por carreiras não lineares (THROSBY, 2011, p.282). O economista David Throsby (2012) também lista alguns elementos que resistem a essas mudanças, entre eles: o conceito de "capital cultural", que relaciona as artes a um tipo de valor diferente do financeiro, que é adquirido por meio da educação, por exemplo, e que se transfere de geração para geração; as discussões entre o valor puramente estético da arte, seu valor financeiro e sua função social; e a motivação não econômica dos artistas. Há ainda um quarto aspecto: a ideia de que a atividade artística não é uma forma de trabalho e, por isso, não se sustenta economicamente, persiste em análises que favorecem as políticas públicas para a cultura. Nesse ponto, entretanto, é valido retomar as questões discutidas ao longo da primeira parte desta tese. As artes emergiram como oposição ao trabalho produtivo, criando a ideia de um campo autônomo justamente porque envolviam elementos imateriais, como a criatividade. E os "gênios", que fundavam o "mundo da arte" com sua lógica econômica interna, eram passíveis de governo na medida em que podiam 75 afetar os "gostos" da população, agora formada por pessoas "livres" que deveriam conduzir a si mesmas. Contudo, à medida que o mercado se tornava mais complexo, ele passava a se organizar em torno de diversas correntes artísticas, cada uma com suas próprias estéticas, e as questões financeiras exerciam cada vez mais influência sobre a produção e a circulação da arte. Com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, os domínios das atividades artísticas se expandiram a ponto de Canclini (2012) afirmar que a arte se tornou em certa medida pós-autônoma, não por perder por completo sua "aura", mas por se fundir ao dia a dia das pessoas, dando ressonância às mais diversas vozes, em uma sociedade em que predomina a economia dos signos e dos afetos. Mas será que, nesse contexto, a arte realmente se afasta do conceito de autonomia ou este apenas muda de sentido? Se a arte se destacava por suas características intangíveis (a personalidade dos artistas, o talento, as imagens), o que acontece quando há um enunciado que diz que é o próprio trabalho que se "desmaterializa"? Se, como propõe Negri, na economia atual, o valor de um produto é dissociado do trabalho, assim como aconteceu com a arte há duzentos anos, a relação entre a atividade artística e a produção econômica também se inverte. O ideal iluminista não desaparece por completo. Basta percorrer as bienais e os teatros – com suas produções muitas vezes herméticas – para verificar que ele continua presente na obra de muitos artistas, como um "resplendor", nas palavras de Canclini (ibidem). Mas as características mais marcantes da atividade artística – a criatividade, a liberdade e a autonomia, agora convertidas em atitudes neoliberais – passam a ser valorizadas em vários outros segmentos, da direção de empresas multinacionais ao trabalho nas fábricas. Assim, o que era entendido como exceção – aquilo que, para Ruskin (2004), deveria ser guardado como o ouro – torna-se um elemento comum, mais do que o resultado do gênio, o produto da cooperação e das redes. É também por esse motivo que a arte se dilui na política, nos meios de comunicação, nas questões econômicas e sociais. De que maneiras a criatividade, principalmente na forma do trabalho artístico, é inserida nos processos produtivos do capitalismo? E de que forma essa apropriação afeta o dia a dia dos artistas? Por atuarem entre a produção em massa e a criação artística, as indústrias culturais são uma porta de entrada (não a única, mas talvez a mais visível) para estudar essas questões e, por isso, vêm chamando a atenção de diversos pesquisadores em áreas tanto voltadas à cultura quanto à 76 economia. A partir desse primeiro contato entre as artes e as mídias, é possível compreender como o interesse de governos, capitalistas e acadêmicos expandiu-se para outras atividades criativas, e como o problema deixou de ser as relações econômicas intrínsecas ao campo cultural para revelar-se o contrário: como o setor cultural (ampliado para o setor criativo) pode contribuir para melhorar a economia e as condições sociais em geral. 77 PARTE 2 – O ARTISTA EMPREENDEDOR Santa clara, padroeira da televisão Que a televisão não seja o inferno, interno, ermo Um ver no excesso o eterno quase nada (quase nada) Que a televisão não seja sempre vista Como a montra condenada, a fenestra sinistra Mas tomada pelo que ela é De poesia (Caetano Veloso) Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos fortaleceram a exportação de seus produtos culturais. Aproveitando o mercado que já havia sido criado pelos filmes de Hollywood, a indústria de conteúdos televisivos alcançou sucesso em diversos países. O governo teve papel fundamental na promoção da cultura norte-americana – e de seu modo de vida –, fazendo alianças com grandes corporações e associações comerciais. Além disso, o desenvolvimento tecnológico contribuiu para a infraestrutura comunicacional que permitiria o fluxo de informações entre os diversos locais do mundo. Nesse contexto, a produção de signos passava a ser considerada de forma mais sistemática pelo capitalismo, como riquezas efetivamente econômicas. Um dos recursos para a criação de imagens e de sons vinha do trabalho artístico que, de certa forma, se tornava acessível à grande parte da população (HESMONDHALGH, 2013). Certamente, nos séculos XVIII e XIX, já havia um intenso movimento no mercado de artes, o que atingiu até mesmo o comércio internacional. Nessa época, no entanto, a economia do setor era pautada principalmente pelo imaginário que girava em torno da raridade da obra e do talento artístico. Foi no século XX que o olhar sobre as artes voltou-se de fato para a linha de produção: discos, programas de TV, gravações de rádio, filmes distribuídos por salas de cinema de todo o mundo tomavam cada vez mais o formato de produtos fabricados em série, embora a comunicação de massas seja um dos últimos redutos da figura do "gênio", com sua tendência ao culto de personalidades. Os pesquisadores da Escola de Frankfurt foram uns dos primeiros a perceber essas relações, ainda do ponto de vista da produção industrial. Na década de 1940, Adorno e Horkheimer (1985; McGUIGAN, 1996, p.76-78) discorreram sobre a maneira como as artes estavam se reduzindo à "cultura de massa". Posteriormente, eles substituíram esse termo por "indústria cultural", deixando claro que não era o 78 "povo" que criava os bens culturais, o que teria certa "autenticidade" na visão dos críticos, mas que sons, imagens e textos eram produzidos (e reproduzidos) por uma indústria nos moldes fordistas, controlada por grandes corporações. Segundo os autores, o "entretenimento" já existia há muito tempo, mas as tecnologias de reprodução em série tiveram o efeito de reduzir a própria arte à esfera do consumo e da padronização: A indústria cultural pode se ufanar de ter levado a cabo com energia e de ter erigido em princípio a transferência muitas vezes desajeitada da arte para a esfera do consumo, de ter despido a diversão de suas ingenuidades inoportunas e de ter aperfeiçoado o feitio das mercadorias (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.111) Menos fatalista em sua visão, Walter Benjamin (2008) publicava, pela primeira vez em 1935, e posteriormente em 1955, seu conhecido texto sobre "a reprodutibilidade técnica da obra de arte". A segunda versão do texto começa com uma citação de Paul Valéry, que teve uma compreensão bastante sensível das artes na Idade Moderna. Para o poeta, em todas as linguagens há um elemento material que não poderia mais ser entendido como nos séculos anteriores, uma vez que a tecnologia alterou profundamente as percepções sobre a matéria, o tempo e o espaço: As nossas belas-artes foram instituídas e os seus tipos e usos fixados numa época que se diferencia decisivamente da nossa, por homens cujo poder de ação sobre as coisas era insignificante quando comparado com o nosso. Mas o extraordinário crescimento dos nossos meios, a capacidade de adaptação e exatidão que atingiram, as ideias e os hábitos que introduzem anunciam-nos mudanças próximas e muito profundas na antiga indústria do Belo. Em todas as artes existe uma parte física que não pode continuar a ser olhada nem tratada como outrora, que já não pode subtrair-se ao conhecimento e potência modernos. Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são desde há vinte anos o que foram até então. É de esperar que tão grandes inovações modifiquem toda a técnica das artes, agindo, desse modo, sobre a própria invenção, chegando talvez mesmo a modificar a própria noção de arte em termos mágicos. (VALÉRY; apud BENJAMIN, 1955) O ponto principal do texto de Benjamin (2008, p.166-67) era a possibilidade de reproduzir a arte por meio de tecnologias novas para a época, como o cinema, o rádio e a televisão. Para o autor, a arte sempre foi "reprodutível", uma vez que a obra feita por uma pessoa pode ser "imitada" por outra. Na Idade Média e no Renascimento, por exemplo, era comum que os alunos copiassem seus mestres como forma de treinamento. Além disso, diversos processos, como a xilogravura e a litografia, foram usados ao longo da história para multiplicar imagens. No entanto, a reprodução técnica apresenta uma singularidade: no século XX, esse processo teria atingido um nível tão elevado de sofisticação que começava não somente a tomar 79 como seu objeto as obras de épocas anteriores, submetendo-as a seus efeitos, como também a "conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos". Com isso, o autor previa trabalhos realizados para rádio e televisão, as inúmeras possibilidades da videoarte, entre outros gêneros correntes na atualidade. Essa imbricação entre a arte e os meios de comunicação de massa tem como decorrência a perda da aura da obra: "sua existência única, no lugar em que ela se encontra". Mas, se o "autêntico mantém sua autoridade" sobre os exemplares reproduzidos manualmente, isso não acontece com relação à reprodução técnica, por dois motivos: o primeiro é que ela tem mais autonomia do que o original; o segundo, que pode alcançar outros públicos, distantes no tempo e no espaço: "a catedral abandona o seu lugar para instalar-se no estúdio de um amador; o coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto". (ibidem, p.167168) Assim como para Adorno e Horkheimer (1985), quando se multiplica uma obra dessa maneira, a ocorrência de massa é colocada no lugar de seu evento único. Contudo, para Benjamin (1955, p.168-69), há nessa característica um lado positivo que seus contemporâneos não perceberam: a reprodução permite à arte "ir ao encontro do espectador", de forma a atualizar o objeto "em todas as situações". Por isso, o alcance cada vez mais amplo também afeta o comportamento do público, pois, em vez do "recolhimento" que a contemplação estética exige, "a massa distraída faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo" (ibidem, p.193). O modelo dessa forma de percepção é a arquitetura, cuja recepção é "distraída" e "coletiva". Outro exemplo, para Benjamin, é o cinema, que "rejeita o valor de culto" e, por isso, provoca no público uma atitude crítica. Há mais um aspecto da reprodutibilidade técnica: como expande o alcance das obras, ela transmite a sensação de que qualquer pessoa pode ser artista. O modelo vem da literatura, mas se estende ao cinema e a outras atividades: "a cada instante, o leitor está sempre pronto a converter-se num escritor". Para Benjamin (ibidem, p.184), essa expansão da atividade criativa seria o resultado de uma "crescente especialização do trabalho". Talvez esse fosse um pressentimento do capitalismo imaterial, uma vez que o autor argumenta que todos os indivíduos acabaram se tornando "especialistas numa dada área", tendo acesso, assim, à "condição de autor". 80 Em um livro bem mais recente, Paolo Virno (2003) aborda a mesma questão de outro ponto de vista. Segundo ele, o espaço aberto para a informalidade nas indústrias culturais, que Adorno e Horkheimer viram como exceção ao modelo fordista e, portanto, não consideraram relevante para suas análises, era justamente o elemento que seria, anos mais tarde, o traço principal da produção capitalista. De fato, na segunda metade do século XX, o trabalho artístico passou a ser estudado de forma mais sistemática por alguns economistas e a ser considerado pelas políticas públicas. Além disso, algumas décadas mais tarde, com mais intensidade a partir dos anos 1980, o movimento contrário também se afirmava: o modelo de autonomia da arte transferia-se para outras categorias profissionais, sempre levando em conta todos os diferentes sentidos associados a esse termo desde o século XVIII. A partir do debate aberto por Adorno, Horkheimer e Benjamin, a segunda parte desta tese irá verificar como as artes, aos poucos, se inseriram no sistema de produção capitalista, principalmente por meio do trabalho nas indústrias culturais. Em seguida, a proposta é investigar como esses acontecimentos afetaram também as políticas públicas. A ideia é mostrar que o trabalho artístico tornou-se, ele próprio, um modelo profissional na economia dos bens imateriais, o que, por sua vez, transformou as artes em uma fonte potencial de riquezas para o desenvolvimento social e econômico, como pregam os discursos sobre a economia criativa ou a economia da cultura, por exemplo. Por fim, serão investigados os modos como os artistas lidam com essas novas demandas, resistindo às questões puramente mercadológicas e perpetuando suas atividades principalmente por meio das redes sociais. 81 CAPÍTULO 5 – AS ARTES NAS INDÚSTRIAS E NAS POLÍTICAS CULTURAIS 5.1 O problema econômico Se ela um dia despencar do céu E se os pagantes exigirem bis E se o arcanjo passar o chapéu (Edu Lobo/Chico Buarque – 1982) Baumol e Bowen (1965) foram dois dos primeiros economistas a tratar especificamente das artes e de sua relação com o emprego nas indústrias culturais, ainda na década de 1960. No artigo On the performing arts: the anatomy of their economic problems (Sobre as artes performáticas: a anatomia de seus problemas econômicos), os autores partiam da premissa de que, na visão romântica, o trabalho artístico é associado à pobreza: O Romantismo há muito tempo fixou em nossas mentes a ideia de que há algo inevitável na associação entre realização artística e pobreza. O artista que passa fome tornou-se um estereótipo, e entre suas conotações está a noção de que sordidez e miséria são nobres e inspiradoras. (ibidem, p.495, tradução nossa)17 Contudo, segundo eles, um atributo positivo da época em que viviam era justamente a negação deste "absurdo", uma vez que, longe de inspirar, a falta de recursos materiais privaria os artistas de "energia", "tempo" e "equipamentos" para criar suas obras. Além disso, para aqueles que diziam que os artistas não tinham uma fonte de renda, os dados sobre os salários dos trabalhadores, publicados pelo censo norte-americano em 1960, revelavam uma surpresa: Pode-se, ou não, ver algo de chocante no fato de que o rendimento médio total, em 1959, de homens classificados pelo censo como atores foi de $ 5,640; que o de músicos e de professores de música foi de $ 4,757; e que o de dançarinos e professores de dança foi de $ 3,483. (ibidem, p. 495, tradução nossa)18 Mas havia um problema: nem todos esses valores vinham diretamente do trabalho artístico. Pelo contrário, os músicos, dançarinos e atores que responderam Romanticism long ago fixed in our minds the idea that there is something inevitable about the association between artistic achievement and poverty. The starving artist has become a stereotype among whose overtones is the notion that squalor and misery are noble and inspiring. 17 One may or may not see something shocking in the fact that the median total income in 1959 of males classified by the census as actors was $5,640; that for musicians and music teachers the comparable figure was $4,757; and that for dancers and dancing teachers, $3,483. 18 82 a pesquisa exerciam também outras funções, como pescadores ou motoristas de caminhão. Além disso, enquanto o governo dos Estados Unidos, na época, anunciava uma grande expansão da cultura, as casas de espetáculos, os grupos de teatro e as companhias de dança viviam em permanente crise financeira, apesar do mercado crescente para os filmes de Hollywood (ibidem). Para explicar essas contradições, Baumol e Bowen (ibidem) compararam a produção artística às empresas sem fins lucrativos. De acordo com os economistas, se o objetivo de uma fábrica de automóveis é gerar lucro a partir da venda dos produtos, para uma empresa sem fins lucrativos, a qualidade dos serviços prestados é um fim em si mesmo, o que é motivo para uma verdadeira "catástrofe financeira", uma vez que sempre que essas instituições recebem uma verba, elas descobrem outra necessidade para aplicar o dinheiro e, assim, nunca estão com o balanço positivo. A propósito, o público de uma organização sem fins lucrativos é sempre maior do que uma empresa voltada para o lucro tentaria alcançar, e os preços são sempre mais baixos, já que os produtos e serviços que ela distribui são desejados pela parcela da população mais desprovida de recursos: Uma vez que esses grupos normalmente consideram a si mesmos como uma fonte de virtudes, é natural que eles busquem distribuir sua recompensa o mais ampla e equitativamente possível. O grupo normalmente é determinado a evitar rendas e riquezas em si mesmas ao decidir quem terá prioridade no consumo de seus serviços. Ele deseja oferecer seus produtos aos necessitados e aos estudantes merecedores, aos que estão sem dinheiro, aos que inicialmente não estão interessados em consumi-los, e a uma variedade de outras pessoas para quem os altos preços serviriam como um impedimento efetivo ao consumo. (ibidem, p.498, tradução nossa)19 Segundo os autores, esses problemas enfrentados pelas organizações sem fins lucrativos também estão presentes no dia a dia das instituições voltadas para as artes e a cultura. Além disso, o capitalismo em geral avança a partir do desenvolvimento da tecnologia, que diminui os custos dos produtos e aumenta o consumo. Só que, com as artes, esse raciocínio não é verdadeiro: é pouco provável que um maestro diminua o número de músicos em uma orquestra para reduzir os custos dos ensaios, ou que compre instrumentos mais baratos e de qualidade Since such a group normally considers itself to be a supplier of virtue, it is natural that it should seek to distribute its bounty as widely and as equitably as possible. The group is usually determined to prevent income and wealth alone from deciding who is to have priority in the consumption of its services. It wishes to offer its products to the needy and the deserving-to students, to the impecunious, to those initially not interested in consuming them, and to a variety of others to whom high prices would serve as an effective deterrent to consumption. (Traduzido pela autora). 19 83 inferior para que a gravação de uma sinfonia não fique muito cara. Com isso, os economistas davam visibilidade ao trabalho artístico, mas concluíam o artigo sendo favoráveis ao financiamento público ou ao patrocínio privado para que as artes pudessem florescer. A ideia da arte como um "problema econômico", uma atividade que não se sustenta financeiramente, iria persistir por algum tempo. E, de fato, apesar do crescimento das indústrias culturais, a década de 1960 foi marcada pelo desenvolvimento dos Ministérios da Cultura, em diversos países, sendo que o modelo francês foi um dos que mais se destacaram. É importante ressaltar que, apesar de um primeiro esforço no sentido da "preservação" do patrimônio artístico e das diversas tentativas de "democratização da cultura", as artes continuavam a se expandir pelos meios de comunicação e pela produção em série de bens culturais, o que, poucos anos mais tarde, seria incluído nas próprias políticas de governo. 5.2 Os primeiros ministérios da cultura Para Bell e Oakley (2014, p.47), tudo o que um governo decide fazer em relação à cultura pode ser classificado como política cultural. Há duas possibilidades: a "regulamentação da cultura", o que inclui a censura, a proteção e os direitos à propriedade intelectual; e a "promoção da cultura", da qual fazem parte o "patrocínio e o financiamento público" ou o incentivo ao apoio privado. Nesse sentido, as políticas culturais estiveram presentes ao longo da história, seja na encomenda de obras por parte de aristocratas, da Idade Média ao Renascimento, seja no incentivo ao livre comércio, como ocorreu com a abertura das academias no século XIX, ou na proibição de atividades artísticas ou culturais, como no período da Ditadura Militar no Brasil. As políticas culturais também podem ser entendidas como um discurso. Nesse caso, governantes e pesquisadores se perguntam: para que serve a cultura, como ela é organizada e como produz efeitos particulares, quem propaga seus diversos sentidos e com que finalidade? (ibidem). Essa última abordagem tornou-se mais estruturada a partir da segunda metade do século XX, quando os primeiros ministérios dedicados à cultura e às artes começavam a ser criados na Europa. Era o contexto da Guerra Fria e, segundo Miller e Rose (2012), as três décadas 84 posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial foram marcadas pela tentativa de fundir diversos programas sociais em um sistema coerente, dirigido a partir do centro: As formas de racionalidade política que tomaram forma na primeira metade do século XX estabeleceram o cidadão como ser social cujos poderes e obrigações eram formulados na linguagem de responsabilidades sociais e de solidariedades coletivas. O indivíduo devia ser integrado na sociedade na forma de um cidadão com necessidades sociais, em um contrato no qual indivíduo e sociedade tinham mútuas reivindicações e obrigações. Uma diversidade de programas para previdência social, bem-estar da criança, higiene física e mental, educação universal e até mesmo a forma e o conteúdo da diversão popular, administrada dentro desse arrazoado, e numerosas tecnologias eram inventadas – da segurança social à clínica de orientação infantil – para buscar pô-la em prática. (ibidem, p.64) A cultura fazia parte desse sistema, e o exemplo mais evidente vinha da França. Em 1956, foi publicado nos Cahiers de la République (Cadernos da República) o texto Pour um Ministère des Arts (Por um Ministério das Artes), escrito por Robert Brichet (2012), um alto funcionário da Secretaria de Estado para as Artes e as Letras, na IV República. A função do órgão seria "ensinar o público a apreciar a arte, e incentivá-lo a desenvolver sua sensibilidade artística através de uma educação que iria mais sugerir do que impor": Ora, nos dias de hoje, apenas uma minoria participa dos benefícios das Artes. Uma aristocracia sempre pode comprar pinturas, móveis de estilo, ouvir grandes concertistas, aplaudir um balé no teatro de Ópera ou alguma reprise no Théâtre-Français, pagar o preço da entrada para ridicularizar Picasso no museu de Antibes ou admirar o espetáculo "Som e Luz" de Versalhes [...]. Os outros só podem escutar rádio ou assistir ao desfile de 14 de julho. Não se deveria frustrar o povo por mais tempo. (ibidem, p.47) Apesar do alto apelo social, em sua proposta já se percebia também uma dimensão econômica: O Ministério das Artes irá surgir como um ministério cultural e social defendendo a arte sob todas as formas, dando aos franceses o exercício de seu direito à cultura. Além disso, esse ministério será um ministério que tem contato com a economia nacional em mais de um ponto quando se considera o número de pessoas que se dedicam à criação artística ou gravitam em torno dela: fornecedores de matéria-prima, comerciantes de quadros, antiquários, restauradores de obras de arte, pintores, escultores, atores de teatro, bailarinos, decoradores, maquinistas, eletricistas, músicos, fabricantes de material ou de instrumentos musicais, de aparelhos para cinema, editores, livreiros, atores de cinema, arquitetos, conservadores, desenhistas, controladores, jardineiros, vigias etc. (ibidem, p. 50). Em 1959, o Ministère d'État chargé des Affaires culturelles foi, de fato, criado pelo general De Gaulle e entregue a André Malraux. Inserido em um "Estado de bem-estar social", sua proposta continuava sendo a "democratização” da cultura. As duas políticas principais eram: "fazer que todos os cidadãos pudessem chegar às 85 obras da cultura" e "estender aos artistas os benefícios da proteção social" (POIRRIER, 2012, p.20). A ideia de intervenção do estado era predominante: Em suma, nosso dever é acabar com a alienação do indivíduo em relação à cultura do presente e do passado. Transformar em um bem comum um privilégio é o objetivo das casas de cultura; é o objetivo da grande exposição das reservas do Louvre que será vista em maio de 1960; é o objetivo das grandes manifestações teatrais de massa que serão desenvolvidas a partir desse ano. É o objetivo do programa de publicação que está sendo estudado pela Caixa Nacional das Letras e que irá permitir, fora de qualquer subordinação comercial, a reconstituição do patrimônio literário francês. (PICON, 2012, p.53) Esse modelo espalhou-se pelo mundo. No Brasil, por exemplo, nesta mesma década, o Ministério da Educação e Saúde desmembrava-se em Ministério da Saúde (MS) e em Ministério da Educação e Cultura (MEC), que, mais tarde, se separaria ainda em Ministério da Cultura (MinC) e Ministério da Educação (MEC). Nessa mesma época, a televisão chegava ao país e novas linguagens artísticas começavam a ser elaboradas. Surgiam, entre outros, "o Cinema Novo, a Bossa Nova, o Violão de Rua, o Grupo Oficina, os trabalhos de Lígia Clarck e Hélio Oiticica" (CALABRE, 2007). Enquanto isso, na França, uma "revolução cultural" também estava em curso: professores, intelectuais, estudantes, mulheres e minorias protestavam nas ruas, realçando novos comportamentos em relação à sexualidade, à moral, às tradições e às hierarquias. 5.3 Por uma cultura plural Os acontecimentos de maio de 1968 desestabilizaram o Ministério de Assuntos Culturais na França e a proposta de André Malraux passou a ser vista como "elitista" pela oposição. Houve crítica tanto da camada mais conservadora da sociedade, que denunciava o apoio público a "artistas suspeitos de subversão", quanto da "esquerda", que discordava da concepção de democratização cultural adotada (POIRRIER, 2012, p.21). Em um panfleto escrito por Jean Dubuffet em 1968, por exemplo, a noção de diversidade opunha-se à centralização exercida pelo Estado no campo da Cultura: Nesse campo, é nocivo tudo o que tende para a hierarquização, para a seleção, para a concentração, porque o resultado é esterilizar o vasto, o incontável e abundante terreno fértil das multidões. A propaganda cultural age propriamente na forma de um antibiótico. Se existe um campo que, ao contrário da hierarquização e da concentração, exige a proliferação igualitária e anárquica, é seguramente esse. (DUBUFFET, 2012, p.69) 86 Ao longo dos anos 1970, alteraram-se períodos em que se ressaltava ora o papel do Estado na promoção da cultura e nos processos de democratização, ora a diversidade e o caráter de resistência das artes frente à indústria cultural que se desenvolvia. Nessa época, destacaram-se também as análises de Michel de Certeau, que voltava sua atenção para uma "cultura no plural": A cultura, no singular, sempre impõe a lei de um poder. Contra a expansão de uma força que unifica colonizando e que não reconhece, ao mesmo tempo, seu limite e os outros, deve opor-se uma resistência. Existe uma ligação necessária de cada produto cultural com a morte, que o limita, e com a luta, que o defende. A cultura, no plural, convoca sem cessar um combate (CERTEAU, 2012, p.79). A discussão sobre a diversidade cultural também despontava nas políticas brasileiras. Na gestão do ministro Jarbas Passarinho, durante o governo do presidente Médici (1969–1974), foi lançado o Plano de Ação Cultural. Sua meta era implementar um "calendário de eventos", "com espetáculos nas áreas de música, teatro, circo, folclore e cinema" (CALABRE, 2007). Segundo notícia publicada pela Revista Veja (1973, p.66), na época do lançamento do Plano: Foi um fim de semana extraordinário nos aeroportos. No último sábado, lotando aviões, um elenco de músicos e dançarinos de treze conjuntos clássicos voou entre treze capitais para apresentações que desta vez nada tinham de rotineiras. Embora quase todos fossem desconhecidos além das fronteiras de suas cidades, esses artistas estavam inaugurando o Plano de Ação Cultural do governo e participando do "dia da semeadura", na expressão orgulhosa do seu grande mentor, o ministro Jarbas Passarinho, ao revelá-lo aos curiosos secretários da Educação dos Estados, reunidos em Brasília no dia 31 de julho. [...] Quando os aviões subiam, levantavam voo junto com eles os sonhos do ministro, que programou para 1973 e 1974 um maciço calendário de acontecimentos culturais com 118 espetáculos (incluindo 46 atrações circenses), 99 apresentações folclóricas, 266 recitais de música, 22 projetos de preservação de monumentos históricos, 45 obras de apoio [...], trinta filmes e um número ainda incerto de encenações teatrais. A revista ainda ressaltava a crescente importância atribuída à cultura no interior dos projetos de governo, embora a verba continuasse pequena, segundo o jornalista que escreveu a matéria: Em 1971, uma publicação do MEC distribuía trezentas páginas de informações sobre educação e cinco para a cultura. Em 1972, as verbas para cultura subiram 150%, pulando de 12 para 30 milhões de cruzeiros, mas a quantia continuava sendo irrisória (ibidem, p. 66). Em 1975, foi criada a Fundação Nacional de Artes – Funarte, que tinha suas atividades voltadas para a música (popular e erudita) e as artes visuais. A fundação dividia a tarefa de apoio à cultura com o Instituto Nacional de Folclore – INF, a Fundação Nacional de Artes Cênicas – Fundacen e a Fundação do Cinema Brasileiro – FCB (BRASIL, 2010). Mais tarde, o INF seria extinto, a FCB daria lugar à 87 Ancine (Agência Nacional de Cinema) e a Fundacen seria integrada à Funarte. De qualquer maneira, ainda no contexto da Ditadura Militar, em meio a questões como a censura, a criação de órgãos como estes era uma clara tentativa de colocar em pauta a cultura nacional. Não se pode esquecer, no entanto, dos fatores econômicos que gravitavam em torno das artes, principalmente nas relações com a comunicação de massa. Essa situação era visível na fala do escritor Eduardo Portela, transcrita também pela reportagem da revista Veja: No fundo, a política cultural de hoje só sobreviverá se utilizar o esquema de marketing, se for lançada como um produto de consumo. Temos de topar a parada e viver na sociedade industrial. O resto é art-noveau. (Revista Veja, 1973, p.72). Este era um prenúncio das políticas públicas que seriam adotadas nas décadas seguintes, já se apropriando de ideias neoliberais. Em 1986, seria criada a "Lei Sarney"20, que, mais tarde, em 1991, seria modificada para o que ficou conhecido como "Lei Rouanet"21. A última, ainda em vigor, apesar das diversas propostas de revisão, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), com a finalidade de captar e canalizar recursos para o setor por meio de mecanismos baseados na renúncia fiscal, o que acaba por transferir para os departamentos de marketing de grandes empresas as decisões sobre os projetos a serem financiados. Dessa maneira, mesmo quando a arte não é diretamente inserida nos processos de produção em massa (como uma peça de teatro, uma exposição, uma apresentação musical ou um espetáculo de dança produzidos sem fins predominantemente lucrativos), ela se aproxima de interesses comerciais nem sempre relacionados à cultura. Outro paradoxo dessa forma de financiamento é que as artes passam a ser usadas como publicidade pelas empresas que as patrocinam, sendo que a verba, na verdade, é pública, uma vez que é descontada de impostos que seriam devidos ao governo. Mas, antes de continuar o debate sobre as questões de fomento artístico, é importante notar que o termo "indústria cultural", ao longo desta tese, ora aparece no singular, ora no plural, "indústrias culturais" – este é um detalhe importante. Quando Adorno e Horkheimer cunharam o termo, eles tinham em mente um sistema único de produção em massa. No entanto, outros autores, como Bernard Miège e Nicholas Lei no 7.505, de 2 de julho de 1986. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7505.htm>. Acesso em: 05 nov. 2014. 21 Lei no 8.313, de 23 de dezembro de 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8313compilada.htm>. Acesso em: 13 jan. 2015. 20 88 Garnham, além do próprio Walter Benjamin, perceberam que não há somente um modelo de criação e distribuição de bens culturais. Pelo contrário, cada setor – livros, discos, filmes, programas de rádio ou televisão – possui uma dinâmica própria. Em vez de negar essa "indústria" e clamar pela autonomia das artes, no sentido kantiano, a proposta, nos anos 1970, passava a ser a de entender as maneiras pelas quais a atividade artística se desenvolve no interior do sistema capitalista e é apropriada por seus processos produtivos. 5.4 As indústrias culturais Em um artigo escrito no final da década 1970, Bernard Miège (1979) apontava para a falha nas análises de economistas neoclássicos com relação à produção cultural e dava ênfase a um elemento fundamental para seus estudos: as indústrias culturais, agora no plural, que, nessa época, já absorviam grande parte do trabalho artístico. Segundo o autor, pesquisadores como Baumol e Bowen (1965) tendiam a reduzir o problema dos bens culturais à "criação e satisfação de novos desejos e necessidades". De acordo com essa explicação, o governo teria o dever de garantir bens "desejáveis", como a cultura e as artes, e não somente "desejados", como o entretenimento, o que justificaria sua intervenção. Como consequência, os economistas seriam levados a admitir que há uma preferência "coletiva" ou, talvez, um "gosto universal" por determinadas linguagens artísticas. Por outro lado, se as necessidades da população fossem satisfeitas tanto por bens públicos quanto por privados, quais seriam os critérios para o financiamento da cultura? O segundo tipo de explicação que Miège (1979) rejeitava vinha da tradição marxista, que assumia que o capitalismo não era capaz de satisfazer completamente as necessidades de cultura da população, ou das "massas", e, por isso, como na proposta neoclássica, o Estado deveria suprir essa lacuna. Outra explicação da qual o autor discordava era a dos pesquisadores preocupados com o problema do excedente da produção, pois, segundo eles, a falta de investimentos e as dificuldades de valorização do capital obrigariam os produtores a criar sempre novas "necessidades" por meio de técnicas de propaganda e de marketing, por exemplo. O fato é que essas três diferentes correntes não respondiam a dois problemas fundamentais: (1) o processo de formação da cultura em um campo de 89 forças políticas e sociais; e (2) a produção da cultura como um aspecto específico da valorização do capital. Miège (ibidem) ia além e dizia que as explicações acima assumiam que há um anseio autônomo, preexistente, pela cultura, quando, na verdade, as indústrias culturais também criam novas demandas e dão a elas consistência. Uma análise mais cuidadosa do setor cultural, contudo, mostra que o capital só pode operar em seu interior quando são respeitadas condições específicas relacionadas às práticas artísticas e sígnicas em geral. Seguindo seu raciocínio, Miège (ibidem) observava, ainda, as diferenças entre as indústrias de produtos e de serviços e apontava para a passagem progressiva da economia de bens materiais para a de bens imateriais (abundantes), em que estaria situada a produção cultural. Mas, para ele, essa distinção seria útil somente para "classificar os produtos de acordo com sua forma externa". Ela não permitiria explicar a emergência da cultura na sociedade capitalista nem o lugar privilegiado que ela ocupa no ciclo do capital. Para tentar aprofundar sua busca, o autor propunha, então, distinguir o trabalho "produtivo" do "improdutivo": os produtos culturais seriam uma mescla dos dois. Sendo assim, Miège (ibidem) verificava três modos de inserção do trabalho cultural nos processos do capitalismo: a produção não capitalista, artesanal ou financiada pelo setor público; a produção capitalista, especificamente voltada para gerar lucro para empresas privadas, como galerias de artes, gravadoras de música, distribuidoras, editoras, emissoras de rádio e de televisão, entre outras; e a integração de produtos culturais em atividades comerciais, como performances apresentadas em shoppings como parte de uma campanha promocional. Nesse último caso, o trabalho cultural seria "indiretamente produtivo". Com isso, o autor procurava mostrar que os bens culturais resultam do trabalho artístico, da criação e da difusão de signos, o que não pode ser diretamente controlado pelos capitalistas, mas também se apresentam como "commodities", como produtos de consumo. A pergunta que ele formulava, então, era a seguinte: de que maneiras a criação artística pode ser integrada ao processo coletivo ou à especialização do trabalho, uma vez que, mesmo multiplicados em milhões de cópias, os bens culturais mantêm um traço da criação, uma singularidade do artista, ou da rede de artistas, que o concebeu? (ibidem) A resposta vinha justamente da relação ambígua que se estabelecia entre certo grau de "autonomia" do trabalho artístico, no sentido de que ele não é 90 totalmente dominado pelo capital, e sua integração ao processo de criação de valor econômico, o que gera as seguintes especificidades do setor: (1) o caráter incerto de sua demanda – por mais que sigam determinados padrões, os produtores não conseguem ter certeza do sucesso de uma música ou da quantidade de pessoas que irá visitar uma exposição; e (2) os limites da reprodutibilidade – Miège (ibidem) fala em barreiras linguísticas e em edições limitadas de discos ou livros, por exemplo, mas pode-se notar também que, mesmo com o desenvolvimento das mídias, há certas atividades artísticas, entre elas as performances e instalações, que, por trabalharem com outros traços de permanência, não cessam de demandar novos meios de registro e novas técnicas de reprodução. De qualquer forma, o importante é perceber que, com essa análise, o autor chamava a atenção para o modo como o desenvolvimento das indústrias culturais afetou o campo das artes, abrindo não só a possibilidade para novas linguagens e estéticas, mas também colocando uma nova luz sobre o trabalho dos artistas. Era esse raciocínio que começava a influenciar as políticas culturais. 5.5 Um apelo à cultura comercial Augustin Girard, diretor do Serviço de Estudos e Pesquisas do Ministério da Cultura da França, publicou, em 1978, na revista Futuribles, e, em 1981, no Journal of Cultural Economics, um artigo em que reconhecia que a "democratização cultural" passava mais pela ação das indústrias culturais do que pelas propostas do Estado. Para ele, o acesso à cultura pelos meios de comunicação, como jornais, revistas, rádio e televisão, assim como os processos industriais de produção e de distribuição de discos e filmes deveriam ser considerados de forma mais séria pelas políticas públicas: Hoje, o debate sobre o assunto (indústrias culturais) não é somente inevitável, ele é também bastante desejável e deveria ser realizado em todos os níveis: dos domicílios modestos aos escritórios dos executivos culturais, passando pelo conjunto total dos intelectuais. Novas tendências de pensamento são necessárias para articular as políticas culturais com as indústrias culturais, particularmente porque as últimas ainda estão em seu estágio inicial. (GIRARD, 1981, p.62, tradução nossa)22 Today, not only is a debate on the subject (cultural industries) inevitable, it is highly desirable and should be carried out at all levels: from modest dwellings to cultural executive offices and passing through the whole range of intellectuals. New trends of thought are required to articulate cultural policies with cultural industries, particularly as the latter are still in their initial stages. 22 91 Acompanhando essa tendência, em 1981, o Ministério da Cultura da França passou a se chamar Ministère de la Culture et de la Communication e teve sua missão modificada. Segundo o decreto de 10 de maio de 1982 (apud POIRRIER, 2012, p.25): O Ministério da Cultura tem por missão: permitir que todos os franceses cultivem sua capacidade de inventar e criar, que expressem livremente seus talentos e recebam a formação artística que escolherem; preservar o patrimônio cultural nacional, regional ou dos diversos grupos sociais para proveito comum da coletividade inteira; favorecer a criação de obras de arte e do pensamento e dar a elas o mais vasto público; contribuir para a difusão da cultura e da arte francesas no livre diálogo com as culturas do mundo. Apesar da clara herança de Malraux, o texto acima propunha uma mudança significativa nos objetivos do Ministério da Cultura: a criatividade individual tomava o lugar da democratização da arte e o respeito pelas culturas regionais e internacionais era enfatizado (POIRRIER, 2012). De fato, nos anos 1980, houve uma ênfase crescente no "multiculturalismo", e o então ministro da Cultura da França, Jack Lang, tornou-se internacionalmente conhecido por tentar estender as políticas a gêneros que antes eram "excluídos", como o rock e o hip-hop (figura 2). Também na Inglaterra, surgiam novidades quanto às políticas culturais. Em 1983, foi criado o Grande Conselho de Londres (Greater London Council – GLC), abolido apenas três anos depois. Seu pensamento político, diretamente contrário às noções "idealistas" e "elitistas" da arte, tinha como pressuposto o fato de que os gostos e as práticas culturais da população são, em grande medida, "moldados" por formas "comerciais" de cultura (HESMONDHALGH, 2013). Segundo texto escrito por Garnham (2006, p.22, tradução nossa), um dos entusiastas da nova proposta: Este artigo chama a atenção, portanto, para a elaboração de uma economia política da cultura com uma economia política da comunicação de massa, tomando seu lugar subsidiário no interior de um campo de trabalho mais amplo, como a análise de um modo importante, mas historicamente específico, do processo de produção e reprodução cultural. A necessidade de elaborar essa política econômica é bastante prática. Ela se origina nas mudanças atuais da estrutura do capitalismo contemporâneo, uma vez que elas afetam o que foi apelidado de "as indústrias culturais", assim como a relação dessa indústria com o Estado. 23 What this article calls for, therefore, is the elaboration of a political economy of culture with a political economy of mass-communication taking its subsidiary place within that wider framework as the analysis of an important, but historically specific mode of the wider process of cultural production and reproduction. The need to elaborate such a political economy is intensely practical. It stems from actual changes in the structure of contemporary capitalism as they effect what has been dubbed ’The Culture Industry’ and the relationship of that industry to the State. (Traduzido pela autora). 23 92 Figura 2: Decreto no 82.394 de 1 de maio de 1982. Fonte: <http://legifrance.gouv.fr/>. Acesso em: 11 jun. 2006 93 A ideia principal era que os debates e as estratégias de governo se voltassem, entre outros assuntos, para a difusão da cultura pelos meios de comunicação, mas também para as pequenas e médias empresas culturais, que deveriam adotar técnicas de marketing para disseminar seus produtos (HESMONDHALGH, 2013). O projeto do GLC nunca foi posto em prática, mas suas propostas foram suficientes para influenciar grande parte das práticas e dos discursos que seriam adotados nas décadas seguintes, pois as questões abordadas faziam parte das mudanças sociais e econômicas que se apresentavam nos anos 1980, época em que o neoliberalismo também se afirmava como doutrina política. Será que, nessa nova onda de atenção à cultura popular e à diversidade, ainda restaria algo da tradição estética, como foi estruturada no século XVIII? Ou será que, acompanhando a integração das artes aos processos de produção midiáticos, seus modos de criação e de difusão mudariam definitivamente de sentido? 94 CAPÍTULO 6 – A DINÂMICA CULTURAL NO NEOLIBERALISMO 6.1 Diversidade e expansão cultural Em 1983, Pierre Boulez concedeu uma entrevista a Foucault. Na conversa, o filósofo discorreu sobre certo afastamento do público em relação à música contemporânea, apesar de seu vínculo com questões atuais e com as outras linguagens. Boulez, no entanto, contestou a afirmação, dizendo que "circuitos" de diferentes estilos se formaram em todas as épocas: óperas, músicas sacras, sinfônicas e de câmara sempre envolveram especializações tanto dos artistas quanto dos públicos. Com a música contemporânea não seria diferente, uma vez que ela implica em novas técnicas, novos sistemas de notação, outros modos de interpretar. Foucault, então, afirmou que, em épocas anteriores, a música era parte de ritos religiosos ou compunha-se com outras artes, como o teatro. Atualmente, as linguagens mais experimentais se "isolam", enquanto formas mais populares fazem parte do cotidiano das pessoas (FOUCAULT; BOULEZ, 1985). A partir daí, Foucault (ibidem) ressaltou que, já na década de 1980, não se podia falar em uma cultura musical contemporânea como algo geral, mas de uma "tolerância", "mais ou menos benevolente", com relação à pluralidade de músicas, cada uma com seu próprio "direito à existência". Boulez, entretanto, afirmou que esse discurso sobre a diversidade acaba por reforçar os guetos e inseriu uma nova questão à conversa: a distinção entre as músicas dos circuitos comerciais, que geram lucro; e as experimentações artísticas. A conversa seguiu a respeito das formas de gravação, distribuição e venda que eram disponíveis na época (rádios, fitas e discos) e a influência das estratégias comerciais sobre os hábitos musicais dos públicos. De fato, nos anos 1980, o avanço das tecnologias midiáticas aumentava a circulação de linguagens. Como o período de descanso dos trabalhadores também se estendia, mais gastos eram realizados com o lazer, sendo que as principais atividades eram aquelas relacionadas aos meios de comunicação. De 1970 a 1995, por exemplo, o número de horas que um norte-americano ficava, por ano, assistindo à televisão passou de 1.226 a 1.575 (aproximadamente 4,3 horas por dia) 95 (HESMONDHALGH, 2013). Contudo, nessa mesma época, a "hegemonia da cultura de massas" começava a ser "minada", de acordo com Lucia Santaella (2009), pela "cultura das mídias". O desenvolvimento tecnológico tornava mais fácil o acesso a equipamentos como o vídeo – o que, além de reproduzir os conteúdos a qualquer momento, permitia que os programas televisivos fossem gravados de forma doméstica – e também ampliava a oferta e a variedade de jornais e revistas, agora voltados para públicos e interesses cada vez mais específicos (ibidem). Nesse cenário, a economia se desenvolvia em torno da propriedade intelectual, composta por patentes, marcas comerciais (trademark) e direitos autorais (copyright). Acompanhando o discurso político sobre a importância das indústrias culturais, principalmente na França e na Inglaterra, essas questões envolviam a privatização de empresas de comunicação, antes administradas pelos governos, o aumento das emissoras de rádio e televisão comerciais e o crescimento da competitividade do setor, marcado muitas vezes por oligopólios. Especificamente quanto às artes, surgiam experimentações que mesclavam as linguagens do vídeo, do cinema e da fotografia a gêneros mais tradicionais como a pintura e a escultura, por exemplo. As artes cênicas, a dança e a música também buscavam inspiração na televisão e no rádio, entre outros meios de comunicação. Esses movimentos, que haviam sido inaugurados com a pop art, expandiam-se em uma variedade de estilos, entre eles, a performance e a body art, o neorrealismo francês, o minimalismo, a arte concreta, a neoconcreta, a arte povera, as instalações e os ambientes interativos (ibidem). Esse conjunto de mudanças, já percebido por Foucault e Boulez, confirmava o papel cada vez mais amplo e pervasivo da cultura na vida social. Mas, ao mesmo tempo, a dificuldade de sistematizá-las fazia com que o conceito de História da Arte, que já havia sido solapado pelos meios de comunicação de massa, chegasse aos seus últimos desdobramentos. Não era uma simples coincidência que diversos relatos sobre o tema tratassem da morte ou do fim da arte (ibidem). É claro que as previsões mais pessimistas não se confirmaram: as artes permanecem, assim como certo imaginário romântico ainda resiste. Mas quais as novas leituras que se destacam de seus processos de produção e difusão? 96 6.2 Transformações no mundo da arte Segundo Marcel Duchamp, durante muito tempo, a arte deu prioridade ao prazer visual (no caso das pinturas, esculturas, instalações, performances, entre outros): Desde Coubert, acredita-se que a pintura se dirige à retina; isso havia sido um erro cometido em todo o mundo. O calafrio retiniano! Antes, a pintura tinha outras funções, podia ser religiosa, filosófica, moral... Se teve a sorte de poder tomar uma atitude antirretiniana, infelizmente ela não mudou muito; todo o século é completamente retiniano, salvo os surrealistas, que tentaram sair um pouco disso. E, de todo modo, não o fizeram completamente! Breton crê julgar de um ponto de vista surrealista, mas no fundo o que interessa é a pintura no sentido retiniano. É algo totalmente ridículo. É algo que deveria mudar, não deveria ser sempre assim. (DUCHAMP; CABANNE, 1967, p.36, tradução nossa)24 Sua proposta, pelo contrário, era que a função da arte devesse ser semelhante à da filosofia: pensar sobre o tempo e o espaço em que se vive. Para isso, a ideia seria mais importante do que a técnica utilizada ou o material. Uma decorrência dessa lógica era que qualquer objeto poderia ser considerado uma obra, de forma que não houvesse mais diferença entre os elementos da "arte" e do "mundo real" (DANTO, 2013). Seguindo esse raciocínio, Arthur Danto (ibidem) anunciou, em 1984, o "fim da arte". No entanto, em um livro publicado em 2013, o autor reviu sua conclusão, afirmando que não há diferenças visíveis, mas há as "invisíveis": a arte é arte porque incorpora sentidos. Além disso, para o autor, desde meados dos anos 1980, o universo artístico consiste em uma pluralidade de talentos individuais, agenciados por curadores que promovem seus trabalhos. Muitas vezes, em vez de movimentos artísticos, são as questões políticas e sociais, como o feminismo, por exemplo, que demandam lugar em teatros, museus e galerias. Algum tempo depois de Danto, já em 1997, Michaud (2011) publicou a primeira edição do livro La crise de l'art contemporain (A crise da arte contemporânea) para responder a uma polêmica semelhante. Ele falava Desde Courbet se cree que la pintura se dirige a la retina; eso ha sido un error que ha cometido todo el mundo. ¡El escalofrío retiniano! Antes la pintura tenía otras funciones, podía ser religiosa, filosófica, moral... Si bien tuve la suerte de poder tomar una actitud antirretiniana, desgraciadamente eso no cambió mucho; todo el siglo es completamente retiniano, salvo los surrealistas que intentaron salirse de ello un poco. ¡Y de todos modos no lo hicieron del todo! Breton cree juzgar desde un punto de vista surrealista, pero en el fondo lo que le interesa es la pintura en el sentido retiniano. Es algo totalmente ridículo. Es algo que debería cambiar, no debería ser siempre así. 24 97 especificamente da França, mas lembrava aos leitores que a "crise" já se apresentava nos Estados Unidos e na Inglaterra desde os anos 1970. No entanto, o autor entendia que a dificuldade estava apenas em determinada forma de representar a arte e sua função e também ponderava que o que houve foi principalmente uma crise do mercado – do sistema que engloba a produção de artistas consagrados, a crítica especializada em veículos de comunicação, a venda de obras de alto valor econômico e a exposição em museus ou galerias, no caso das artes visuais. A produção artística, por sua vez, já no momento da primeira edição do livro, demonstrava enorme vitalidade, que atualmente se expande ainda mais. Contudo, essa produção não é mais composta como na primeira metade do século XX. Além de uma tendência à descentralização, uma das principais mudanças é que a pluralidade em si mesma vem sendo valorizada como elemento de riqueza e dinamismo, uma vez que já não se trata somente de respeitar as diferenças, mas de incentivar a concorrência entre elas. Michaud (ibidem) distingue alguns aspectos: (1) a coexistência pacífica ou indiferente de diversas escolhas, por exemplo, ouvintes de rap e pessoas que gostam de quadros de pintores modernos; (2) a confrontação de ideias sobre um mesmo objeto, como a arte contemporânea; e, por fim, (3) divergências internas sobre uma mesma linguagem. Como Boulez já havia previsto, Michaud (ibidem) ressalta, por fim, o risco de que esses grupos se fechem em guetos, em suas próprias convicções estéticas, e afirma que as diferenças entre "alta" e "baixa" cultura vêm sendo substituídas por separações entre a "nossa cultura" e a "cultura do outro". Certamente, pode-se apostar, como Amálio Pinheiro (2009), nas hibridizações que ocorrem o tempo todo na construção coletiva – e, em grande parte das vezes, anônima – da cultura e das artes. Ou ainda, pode-se perceber as redes de criação, que são fundamentais para a propagação de novas ideias (SALLES, 2011). Mas o que os textos de Michaud e Danto revelam é que, desde o final do século XX, para além da reprodutibilidade técnica e da cultura "de massas" ou "das mídias", as artes são também atravessadas por elementos como: a busca por identidades (ou comunidades) a partir de projetos ou de estéticas que reúnam pessoas com interesses semelhantes; a mobilidade dessas identificações, já que é possível participar de diversos grupos ao mesmo tempo, que, por sua vez, se sobrepõem ou se intercalam de acordo com o momento, as intenções e as afinidades em voga; a capacidade de "escolha" e de "decisão"; e certa linguagem empresarial – não no 98 sentido estrito do lucro ou do comércio, mas principalmente do empreendimento e da iniciativa. Mesmo que essas não sejam as preocupações primárias de muitos artistas que buscam apenas realizar suas obras, um imaginário "neoliberal" vem se consolidando. Com isso, conceitos como os de "genialidade" ou de "obra-prima", tão caros à Estética, de fato perdem lugar, embora resistam em certo apelo romântico que atinge os meios de comunicação de massa e as grandes produções artísticas. As noções de "autonomia" e "liberdade", por sua vez, voltam a ressoar, mas com uma série de diferenças em relação às suas propostas originais. 6.3 A retórica da liberdade Como visto, ao mesmo tempo em que a noção de Estética tornava-se corrente no final do século XVIII, as técnicas de governo passavam a incidir sobre sujeitos "heterogêneos", que deveriam saber conduzir suas próprias vidas, articulando interesses de diversas partes da sociedade. Nessa época, segundo Foucault (2008), o problema era "recortar" um "espaço livre", e um dos principais exemplos era o mercado. Entretanto, de acordo com Rose (1999), no final do século XIX, críticos e sociólogos afirmavam que a normalização e a racionalização da vida, que buscavam constituir uma esfera de liberdade, não eram suficientes em face da individualização e da fragmentação da sociedade moderna. Cresciam os crimes, os comportamentos inadequados da juventude, os índices de suicídio. Além disso, os efeitos negativos dos trabalhos nas fábricas tornavam-se mais visíveis, o que encorajava a formação de sindicatos e a atividade de militantes políticos. As respostas a essas questões passavam pela organização de uma sociedade com base em direitos e deveres coletivos. Mais controverso, no entanto, era o debate de socialistas que sugeriam a estatização das empresas, e de economistas liberais, como Keynes, que defendiam que era possível intervir na economia para produzir o bem-estar social, porém sem destruir o livre mercado: De propostas de permutas de emprego aos trabalhos públicos anticíclicos, e da administração de taxas de câmbio a tentativas de alterar o nível agregado da demanda, os economistas tentaram desenvolver programas e políticas que poderiam criar as condições sob as quais o mercado pudesse prosperar, mas sem destruir a liberdade essencial dos agentes econômicos – empregadores, investidores – de conduzir negócios financeiros de acordo 99 com suas próprias escolhas e em busca de seus lucros privados. (ibidem, p.80, tradução nossa)25 Nesse ambiente, o emprego era visto como uma solução para a fragmentação e o isolamento social. Da mesma maneira, a previdência era pensada no formato de benefícios cuidadosamente distribuídos como resultado da contribuição individual. A liberdade era, assim, definida a partir das responsabilidades que cada pessoa tinha em relação à sociedade (ibidem). No entanto, nos últimos sessenta anos, essa forma de governo tem sido desafiada e descrita, muitas vezes, como perversa, por produzir exatamente o contrário do que ela tenta obter: comunidades destruídas, falhas na distribuição das riquezas, paternalismo e interferências de autoridades e especialistas, resultados que colocariam em xeque os valores de liberdade, democracia e progresso. (ibidem) Nos anos 1980, figuras como Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, tomavam medidas como a desregulamentação financeira e as privatizações (HESMONDHALGH, 2013). Mas, para Rose (1999), seria reducionista ver nesse movimento uma simples volta às ideias de livre mercado. Segundo o autor, esta era, na verdade, a emergência de uma nova forma de compreender os seres humanos como "sujeitos livres". Só que "liberdade" deixava de ser apenas um modo de "governar a si mesmo" dentro dos padrões da moral e da "normalidade" e passava a ser sinônimo de "autonomia", compreendida agora como a capacidade de uma pessoa determinar os rumos de sua própria vida: De modos diferentes, o problema da liberdade agora passava a ser entendido em termos da capacidade de um indivíduo autônomo estabelecer uma identidade mediante a organização de uma vida cotidiana significativa. Liberdade é vista como autonomia, a capacidade de uma pessoa de realizar seus desejos na vida secular, preencher seu potencial por meio de seus próprios esforços, determinar o curso de sua própria existência através de ações de escolha. (ibidem, p.84, tradução nossa)26 25 From proposals for labour exchanges to those for countercyclical public works, and from management of exchange rates to attempts to alter the aggregate level of demand, economists tried to develop political programmes and policies that would create the conditions under which the market would prosper, yet without destroying the essential freedom of economic agents - bosses, investors to conduct their financial affairs according to their own choices and in pursuit of their private profits. In different ways, the problem of freedom now comes to be understood in terms of the capacity of an autonomous individual to estabilish an identity through shaping a meaningful everyday life. Freedom is seen as autonomy, the capacity to realize one’s desires in one’s secular life, to fulfil one’s potential through one’s own endeavours, to determine the course of one’s own existence through acts of choice. 26 100 Esse modelo se estende aos mais diversos grupos sociais, uma vez que as pessoas agora devem ser ativas, não mais dependentes; e as coletividades, por sua vez, passam a ser múltiplas e fluidas: […] pensa-se que uma diversidade de comunidades comanda nossa fidelidade efetiva ou potencialmente: comunidades morais (religiosas, ecológicas, feministas, etc.), comunidades de estilo de vida (definida em relação a gostos, modos de vestir e estilos de vida), comunidades de compromisso (com a invalidez, com os problemas de saúde, com o ativismo local), e assim por diante. (MILLER; ROSE, 2012, p.112) Ao mesmo tempo, a imagem do emprego como algo contínuo, regular e durável é substituída por laços mais precários, por diversos trabalhos em períodos parciais, e pela administração de risco por parte de patrões e funcionários. No lado positivo, a integração entre a vida e o trabalho se torna novamente possível pelos meios de comunicação. Mas, no viés negativo, estão a insegurança e a informalidade. De uma forma ou de outra, os colaboradores também assumem um grau mais elevado de "autonomia", transformando-se em profissionais que, para vencer a concorrência, precisam investir em sua formação e em sua carreira, "vender" suas habilidades e ter a capacidade de inovar. Nas análises neoliberais, esse perfil ficaria conhecido como o "empreendedor" (ROSE, 1999). 6.4 Empreendedorismo e capital humano No final dos anos 1940, o economista Joseph Schumpeter (1947) já definia a riqueza em função "da ruptura inovadora das rotinas econômicas". Para ele, a invenção vem "da potência de criação da sociedade", e o empreendedor é aquele se apropria dessa força para "inseri-la no processo econômico como uma inovação". (LAZZARATO, 2006, p.256-57). No curso O Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008) analisou essa teoria à luz de sua genealogia do neoliberalismo e do capital humano. Segundo o filósofo, os neoliberais procuram reintroduzir o trabalho na análise econômica, mas não do ponto de vista do capitalista, que se pergunta quanto o empregado produz ou por qual valor ele pode ser comprado. Pelo contrário, o problema fundamental é situar-se do ponto de vista do trabalhador para saber como ele "utiliza os recursos de que dispõe", que são constituídos, entre outros, pelo tempo e pelo dinheiro investidos em sua educação. Além disso, os neoliberais 101 procuram saber por que as pessoas trabalham. A resposta é que trabalham para receber uma renda, que, na linguagem econômica, significa o "rendimento de um capital". Assim, o trabalho se situa entre o "capital" e a "produção", pois comporta uma aptidão, uma competência e, ao mesmo tempo, é um fluxo de salários. Toda a sociedade, e não somente a economia, passa a ser composta, dessa forma, por "unidades-empresas" (ibidem, p.302-08). É também nesse ponto que os conceitos de capital humano e de empreendedorismo se encontram. Schumpeter (1947) observou que a baixa na taxa de lucro das empresas é corrigida permanentemente pelo fenômeno da inovação, ou seja, pela descoberta não somente de novas técnicas e de novas formas de produtividade, mas também de novos mercados ou de novas fontes de mão de obra. Contudo, de acordo com Foucault (2008, p.317-18), os neoliberais afirmam que a ousadia do capitalismo ou a situação permanente da concorrência não são suficientes para explicar esse fenômeno. Se ele existe, ou seja, se as pessoas descobrem novas formas de produtividade, ou se fazem invenções tecnológicas, é em função da renda do capital humano ou do "conjunto dos investimentos que foram feitos no nível do próprio homem". Para Foucault, esta é uma diferença fundamental entre as ideias liberais do século XVIII e as contemporâneas. Se, no primeiro momento, o mercado era apenas um princípio moderador em relação a uma razão de Estado já estabelecida, no neoliberalismo, que surge a partir da segunda metade do século XX, a lógica se inverte: é a própria economia de mercado que se transforma no princípio regulador e organizador do Estado. Há, ainda, outra diferença: se, na época do mercantilismo, o valor de troca era o mais importante, a partir do século XX, os neoliberais procuram obter uma sociedade "indexada, não na mercadoria e na uniformidade da mercadoria, mas na multiplicidade e na diferenciação das empresas " (ibidem, p.203204). Na lógica empresarial, o mais importante é assegurar a concorrência, daí a definição de economia da escola neoliberal: "alocação de recursos raros para fins alternativos" (ibidem, p.366). Embora o filósofo ressalte que as pessoas não se reduzem a uma lógica econômica, a economia se transforma em uma nova forma de inteligibilidade para diversos aspectos da vida, do casamento e da educação dos filhos ao combate ao crime. Com essa análise, Foucault tinha uma primeira percepção do que ficaria conhecido como "capitalismo imaterial" (SANTOS, 2008). Nos textos do filósofo, 102 havia uma ênfase sobre o investimento das pessoas em si mesmas, como um capital, e era sobre essa vida – moldada pela biopolítica, pelas formas de governo liberal e, mais tarde, neoliberal – que se exercia o poder. Contudo, o grupo de teóricos formado por Negri, Hardt, Lazzarato, entre outros, propôs uma inversão: em vez da perspectiva de uma força exercida sobre corpos passivos, eles ressaltaram a potência da própria vida. Conforme Peter Pelbart, (2002): [...] a vida ao mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, se dissemina e se alastra, se moleculariza e se totaliza, se descola de sua acepção biológica para ganhar uma amplitude inesperada e ser, portanto, redefinida como poder de afetar e ser afetado, na mais pura herança espinosana. Como visto na primeira parte desta tese, Negri e Hardt (2012) ressaltam que essas características mudaram o centro de gravidade do sistema produtivo, que ultrapassa as paredes das fábricas. Para esses autores, o trabalho espalhou-se por toda a sociedade, explorando as mentes e os corpos, a inteligência, a criatividade e a relação afetiva com os outros. Ou seja, a própria vida é posta a trabalhar. Ora, aquele que tradicionalmente usa a própria subjetividade como recurso é o artista. Por isso, todas as questões discutidas até aqui (dos elementos intangíveis da arte, que no século XVIII faziam dela algo escasso, à sua inserção nos processos produtivos dos meios de comunicação, passando pela redescoberta da diversidade) levam, direta ou indiretamente, não só à compreensão dos artistas como trabalhadores, mas principalmente como uma espécie de modelo para outros profissionais, o que, de certa forma, funda os debates atuais sobre a economia criativa, a economia da cultura, ou qualquer outro nome que esse conjunto de enunciados possa receber. Por outro lado, é também o trabalho que muda de sentido, pois é justamente aquilo que escapava aos processos de produção que agora está no cerne do capitalismo. 103 CAPÍTULO 7 – A CRIATIVIDADE NO CENTRO DO CAPITALISMO? Acordes em oferta, cordel em promoção A Prosa presa em papel de bala Música rara em liquidação (O Teatro Mágico) 7.1 Arte e trabalho na economia imaterial Uma busca simples no sistema ProQuest, realizada no dia 16 de dezembro de 2014, apontou que o número de livros, artigos acadêmicos, teses e dissertações com as palavras em inglês “artists” (artistas), “culture” (cultura), “economy” (economia) e “labour” (trabalho) saltou de 336 registros na década de 1940 para 1.205, na década de 1950, 5.912, na década de 1970, 20.661, na década de 1990, e 41.305, nos anos 2000. Entre 2010 e 2014, foram registrados 21.081 textos que evolvem esses conceitos (gráfico 1). Gráfico 1: Número de referências às palavras “artists”, “culture”, “economy” e “labour”, no mesmo artigo científico, livro, tese ou dissertação, no período de 1890 a 2014. 41.305 20.661 21.112 6.551 5.912 9 19 25 63 264 336 1.205 2.555 Fonte: <http://www.proquest.com>. Pesquisa realizada no banco de dados, no dia 16 de dezembro de 2014. Nos jornais e revistas de notícias, a diferença também é considerável. De apenas 14 registros na década de 1940, em revistas como Vogue, as referências 104 aos termos "cultura", "artistas", "trabalho" e "economia" passaram a 353 nos anos 2000, principalmente em periódicos especializados em política e economia, como o Wall Street Journal, o Financial Times e o The Economist (gráficos 2 e 3). Gráfico 2: Número de referências às palavras "artists", "culture", "economy" e "labour", no mesmo jornal ou na mesma revista de notícias, no período de 1890 a 2014. 353 243 204 1 1 25 13 30 51 14 12 17 12 Fonte: <http://www.proquest.com>. Pesquisa realizada no banco de dados, no dia 16 de dezembro de 2014. Gráfico 3: Principais jornais e revistas de notícias com referências às palavras "artists", "culture", "economy" e "labour", no período de 1890 a 2014 35 30 25 20 Wall Street Journal Financial Times 15 10 5 0 The Economist Vogue Fonte: <http://www.proquest.com>. Pesquisa realizada no banco de dados, no dia 16 de dezembro de 2014. Da mesma forma, o termo "cognitive economy" (economia cognitiva) foi registrado apenas nove vezes entre 1960 e 1969, tendo aparecido em livros, teses, 105 dissertações e artigos acadêmicos 336 vezes nos anos 1990 e 445 vezes nos anos 2000. Por sua vez, as palavras "immaterial labour" (trabalho imaterial) foram citadas apenas sete vezes na década de 1970, de acordo com o banco de dados, mas 529 vezes entre 2010 e 2014 (gráfico 4). Gráfico 4: Número de referências às palavras "immaterial labour" e "cognitive economy", no mesmo artigo científico, livro, tese ou dissertação, no período de 1950 a 2014. Trabalho imaterial 445 336 318 120 Economia cognitiva 0 9 0 48 1 2 7 1950-1960 1960-1969 1970-1979 1980-1989 1990-1999 2000-2009 2010-2014 Fonte: <http://www.proquest.com>. Pesquisa realizada no banco de dados, no dia 16 de dezembro de 2014. Por fim, o termo "neoliberalismo", com somente 23 registros na década de 1960, apareceu 20.163 vezes em trabalhos acadêmicos entre 2010 e 2014 (gráfico 5). Gráfico 5: Número de referências às palavras "neoliberalism", no mesmo artigo científico, livro, tese ou dissertação, no período de 1950 a 2014. 20.163 2.982 23 13 17 123 1950-1960 1960-1969 1970-1979 1980-1989 1990-1999 2000-2009 2010-2014 Fonte: <http://www.proquest.com>. Pesquisa realizada no banco de dados, no dia 16 de dezembro de 2014. 106 Esses gráficos ilustram bem como as atividades criativas e a noção de "trabalho imaterial" associam-se com clareza no neoliberalismo. Esta não é uma mudança apenas teórica, ela incide sobre o modo como os artistas são vistos na sociedade e afeta as próprias relações empregatícias. 7.2 Os artistas como modelo profissional Pierre-Michel Menger (2002) é um dos principais autores a se dedicar às artes nos domínios da produção capitalista. O título de um de seus livros é sugestivo, Portrait de l’artiste en travailleur (Retrato do artista como trabalhador), em uma referência irônica à obra de Joyce. Embora se prenda a uma crítica tradicional e não analise o trabalho "imaterial" nem as redes, o autor discorre sobre valores como a "imaginação", o "jogo" a "improvisação" e o "comportamento atípico", que são transportados para diversas profissões: Sua hipótese de partida é que não somente as atividades de criação artística não são, mais ou menos, o inverso do trabalho, mas que elas são, pelo contrário, cada vez mais reivindicadas como a expressão mais avançada dos novos modos de produção e das novas relações de emprego engendradas pelas mutações recentes do capitalismo. Longe das representações românticas contestatórias ou subversivas do artista, deve-se agora ver o criador como uma figura exemplar do novo trabalhador, figura por meio da qual se tornam visíveis transformações tão decisivas quanto a fragmentação do salário, o aumento dos profissionais autônomos, a amplitude e as competências, ou ainda, a individualização das relações de emprego. (MENGER, 2002, p.8, tradução nossa)27 Para Oakley e O’Connor (2015), um dos acontecimentos que contribuiu para dar visibilidade a essas mudanças foi a "revolução digital", que decorreu da expansão da internet e da computação, reconfigurando as conexões entre a produção cultural, a difusão de signos e a audiência. Essa explosão transformou os modelos de negócios e impulsionou novas iniciativas "empreendedoras": Parecia incontroverso que a "revolução digital" estava transformando a paisagem daquilo (que foram) as indústrias culturais, desconectando seus Son hypothèse de départ est que, non seulement les activites de création artistique ne sont pas ou plus l’envers du travail, mais qu’elles sont au contraire de plus en plus revendiquées comme l’expression la plus avancée des nouvaux modes de production et des nouvelles relations d’emploi engendres par les mutations récentes du capitalism. Loin des représentations romantiques, contestataires ou subversives de l’artiste, il faudrait désormais regarder lê créateur comme une figure exemplaire du nouveau travailleur, figure a travers laquelle se lisent des transformations aussi décisives que la fragmentation du continent salarial, la pousse des professionnels autonomes, l’amplitude et des compétences ou encore l’individualisation des relations d’emploi. 27 107 modelos de negócios, trazendo novos participantes, transformando os modos como as audiências interagiam, compravam e adaptavam textos culturais. Desse ponto de vista, as indústrias criativas, com suas redes horizontais, práticas cocriativas, e textos abertos promovendo acesso digital para os consumidores-cidadãos criativos, pareciam encarnar (e tornar redundantes) muitas das aspirações transformativas das indústrias culturais. (OAKLEY; O'CONNOR, 2015, tradução nossa)28 De qualquer maneira, diversos autores, no final da década de 1990, passaram a estudar mais atentamente a geração de trabalho e renda por meio de atividades criativas, propondo novos métodos ou fazendo leituras críticas. Compartilhando as ideias que regem o "capitalismo imaterial", Charles Leadbeater (1999), por exemplo, diz que grande parte dos profissionais contemporâneos gera riquezas a partir do "ar", já que não produz nada que possa ser "pesado", "tocado" ou facilmente "mensurado". Para o autor, esse fato deveria tornar a economia mais "humana", mas o que se vê com mais frequência são funcionários tomados por insegurança e estresse. Segundo ele, isso ocorre porque as instituições estão "paralisadas" frente às mudanças econômicas e sociais. Em uma sociedade guiada pelo conhecimento, afirma Leadbeater, o talento e a criatividade devem ser incentivados, além disso, deve-se investir em educação e cultura: A nova economia é compatível com muitas variedades de culturas e comunidades, que valorizam diferentes tipos de conhecimento. O ideal seria uma cultura híbrida, que misturasse essas duas perspectivas: uma sociedade inclusiva, na qual as massas fossem bem-educadas e capazes de inovações radicais e periódicas. Tal sociedade precisaria de instituições públicas efetivas para investir nas bases de conhecimento da sociedade a fim de fornecer a infraestrutura de educação, telecomunicações e cultura, com uma dinâmica de que a sociedade do aprendizado precisa. Isso deveria ser combinado com uma cultura que encoraja o empreendedorismo, a experimentação, a tomada de risco e a diversidade. As sociedades do conhecimento devem ser cosmopolitas, comunidades liberais. (ibidem, p.223, tradução nossa)29 It seemed incontrovertible that the ‘digital revolution’ was transforming the landscape of (what had been) the cultural industries, pulling the plug on their business models, bringing in new entrants, transforming the way audiences interacted, purchased and adapted cultural texts. In this light the creative industries, with their horizontal networks, co-creative practices, and open-ended texts providing digital affordances for the creative citizen-consumer, could be seen to incarnate (and make redundant) many of the transformative aspirations of the cultural industries. 28 The new economy is compatible with many varieties of cultures and communities, which value different kinds of knowledge. The ideal would be a hybrid culture that mixed these two approaches: an inclusive society in which the mass of people were well educated which was also capable of radical and incremental innovation. Such a society would need effective public institutions to invest in the knowledge foundations of society, to provide the infrastructure of education, telecommunications and culture, with a dynamic learning society needs. That would have to be combined with a culture that encouraged entrepreneurship, experimentation, risk-taking and diversity. Knowledge societies must be cosmopolitan, liberal communities. 29 108 O autor indica então o crescente uso da criatividade e do empreendedorismo nas organizações contemporâneas e compara a atividade profissional à indústria cinematográfica, o que envolve "diversão" e "reconhecimento", mas também a "incerteza" e o "risco": O trabalho provavelmente será mais criativo e autogovernado. Haverá grande escopo para o empreendedorismo. Muitas das novas organizações fornecerão empregados com opções de ação que poderão deixá-los ricos. Mas essas novas organizações também criarão pressões psicológicas. Essa nova economia não é para os avessos ao risco. As organizações só se tornarão fluidas de deixarem para trás velhas rotinas e colegas. Imagine trabalhar em um negócio de cinema, movendo de filme a filme, equipe a equipe, set a set, um sucesso em um mês e um fracasso no próximo, um progresso no qual você é tão bom quanto seu último projeto. O trabalho deverá ser assim para muitos de nós na próxima década, algumas vezes divertido e recompensador, mas itinerante e pontuado por períodos de insegurança. (ibidem, p.63-64, tradução nossa)30 Mas, se as empresas estão adotando cada vez mais componentes do trabalho artístico e as indústrias culturais estão oferecendo mais oportunidades de emprego, a produção artística também vem se aproximando da linguagem empresarial. Por isso, para Chris Bilton (2010), a criatividade e a administração, disciplinas historicamente consideradas opostas, estão convergindo em novos modelos de políticas culturais e de negócios: Nos negócios, a criatividade emergiu como um ativo chave, com administradores desesperadamente tentando demonstrar suas credenciais "criativas" para os colegas. Sem surpresas, a política cultural se tornou cada vez mais "administrativa", refletindo uma mudança geral no sentido de uma crescente orientação de mercado do setor público e de uma mudança específica para o engajamento nessas indústrias culturais em sua recente importância comercial. A "criatividade" foi realocada na interseção entre os pontos de vista da administração comercial e da estética cultural. A convergência desses dois mundos é baseada parcialmente na redefinição em termos administrativos, como uma commodity de negócios e como uma competência administrativa, dentro de uma economia criativa global. (ibidem, p.257, tradução nossa)31 Work probably will be more creative and self-governing. There will be greater scope for entrepreneurship. Many of the new organizations will provide staff with stock options, which could make them rich. Yet these new organizations will create psychic pressures as well. This new economy is not for the risk-averse. Organizations only become fluid if people can easily leave behind old routines and colleagues. Imagine working in the film business, moving from film to film, crew to crew, set to set, a success one month and flop the next, a progress in which you are only as good as your last project. Work may be like that for many more of us in the next decade, at times fun and rewarding, but itinerant and punctuated by bouts of insecurity. 30 In business, creativity had emerged as a key business asset, with managers desperately attempting to demonstrate their ‘creative’ credentials to colleagues, customers and shareholders. Not surprisingly, cultural policy has become increasingly ‘managerial’, reflecting a general shift towards an increasingly market driven public sector and a specific shift to engage with the newly significant commercial cultural industries. ‘Creativity’ was relocated at the intersection between these commercial-managerial and cultural-aesthetic worldviews. The convergence of these two worlds is based partly on a redefinition of creativity in managerial terms, as a business commodity and as a management competence, within a global creative economy. 31 109 Todas essas formulações, de Leadbeater a Bilton, que buscavam mostrar que cultura e economia tendem a se encontrar, seriam reunidas na noção de "economia criativa", que já se esboçava, mas que ganhou visibilidade com a obra de Richard Florida, no início dos anos 2000. 7.3 Entre classes e cidades criativas No livro The rise of creative class (O crescimento da classe criativa), Florida (2012) afirmava que, pela primeira vez na história, a economia era movida pela "criatividade": Em virtualmente todas as indústrias, das de automóveis às de moda, produtos alimentícios e à da própria tecnologia da informação, os vencedores de longo prazo são aqueles que podem criar e continuar criando. Isso sempre foi verdade, dos dias da Revolução na Agricultura à Revolução Industrial. Mas, nas últimas décadas, nós reconhecemos claramente e agimos sobre esse fato sistematicamente. (ibidem, tradução nossa)32 A propósito, para Florida (ibidem), o processo criativo não é individualista, mas envolve a habilidade de síntese. É uma forma de filtrar dados, percepções e materiais para criar novas combinações. Com essa noção, ele refuta o conceito de gênio romântico, que prevaleceu por tanto tempo no Ocidente, e expande a capacidade de criação para a maior parte das pessoas, confirmando também as ideias fundamentais do "capitalismo imaterial": a diversidade deve ser inserida nos processos de inovação e de crescimento econômico. Conforme o autor: O capitalismo expandiu seu alcance para capturar os talentos até aqui excluídos, grupos de excêntricos e inconformistas. Fazendo isso, ele gerou outra mutação surpreendente: tomando pessoas que já foram vistas como rebeldes bizarros e inserindo-as no coração do processo de inovação e de crescimento econômico. (ibidem, tradução nossa)33 No centro dessa nova economia, está, para Florida (ibidem), a "classe criativa", que engloba pessoas que trabalham com ciência, engenharia, arquitetura, 32 In virtually every industry, from automobiles to fashion, food products, and information technology itself, the long-run winners are those who can create and keep creating. This has always been true, from the days of the Agricultural Revolution to the Industrial Revolution. But in the past few decades we’ve come to recognize it clearly and act upon it systematically. Capitalism has expanded its reach to capture the talents of heretofore excluded groups of eccentrics and nonconformists. In doing so, it has pulled off another astonishing mutation: taking people who would once have been viewed as bizarre mavericks operating at the bohemian fringe and placing them at the very heart of the process of innovation and economic growth. 33 110 design, educação, artes, música e entretenimento. Em torno desses profissionais, fica outro grupo, formado por aqueles que se dedicam aos negócios e às finanças, à lei, aos cuidados com a saúde, entre outros campos relacionados. O que diferencia esses trabalhadores é a natureza das atividades exercidas: eles são pagos para usar suas mentes, suas habilidades cognitivas e sociais. No Brasil, a primeira pesquisadora a percorrer um caminho parecido ao de Florida foi Ana Carla Fonseca Reis (2012). Graduada em Economia e mestre em Administração de Empresas, ela defendeu, em 2011, sua tese de doutorado em Arquitetura e Urbanismo, discorrendo sobre o tema das "cidades criativas". Para ela: [...] o surgimento de novos instrumentos de criação e produção, bem como de modelos micro e macroeconômicos, exige uma adaptação do perfil de capacitação das profissões tradicionais (pensamento flexível, familiaridade com as novas tecnologias, valorização do intangível e, fundamentalmente, raciocínio crítico que habilite a tomada de decisões conscientes) e originam novas profissões. (REIS, 2012, p.48) Essa formulação se aproxima tanto das análises de Foucault sobre o empreendedorismo quanto das leituras sobre o capitalismo imaterial. Já não há mais exceção ao regime produtivo, e há pouco espaço para as discussões sobre a "escassez" e a "raridade" de algumas obras. Pelo contrário, há um interesse constante em fazer emergir toda a potência de criação e em capturar suas riquezas. Mas se os setores criativos englobam atividades tão diferentes quanto artes cênicas e biotecnologia, por exemplo, ou ocupações tão distintas como um coralista amador, que ensaia aos finais de semana, e um maestro profissional, que recebe um salário para reger uma orquestra reconhecida, como classificar ou organizar essa produção? E como as atividades artísticas se inserem nesse contexto, uma vez que elas se tornam somente algumas dentre tantas outras possibilidades de aplicar o pensamento criativo? 7.4 O trabalho artístico na economia criativa John Howkins (2007) afirma que as artes são muitas vezes vistas como a fonte para o desenvolvimento de produtos criativos, mas elas não detêm o monopólio sobre a criatividade, que também floresce nas ciências e nos negócios. Os artistas apenas lidam com um conjunto específico de ideias estéticas. O que caracteriza a economia criativa, na visão do autor, é sua capacidade de gerar 111 propriedade intelectual, em quatro formatos: direitos autorais, patentes, marcas comerciais e design. Já na abordagem adotada pela Unesco (figura 3), as artes visuais e as performáticas (teatro, dança, música) aparecem ao lado de outras atividades criativas. Todas elas são agrupadas em quatro grandes categorias: (1) Patrimônio – subdivide-se em expressões culturais tradicionais (artesanato, festivais e celebrações) e em locais culturais (sítios arqueológicos, museus, livrarias, entre outros); (2) Artes – dividem-se em artes visuais (pintura, escultura, fotografia e antiguidades) e artes performáticas (música ao vivo, teatro, dança, ópera, entre outros); (3) Mídia – engloba veículos impressos e audiovisuais; (4) Criação funcional – composta por design, novas mídias (videogame e conteúdos digitalizados) e serviços criativos (arquitetura, publicidade, pesquisa e desenvolvimento, entre outros). Figura 3: Classificação das indústrias criativas segundo a UNCTAD. Fonte: adaptado de United Nations UNCTAD, 2008 Esse modelo da Unesco também foi usado no Brasil como base para classificação das atividades da economia criativa, apesar de algumas adaptações e uma ênfase maior na diversidade de expressões culturais. A adoção do termo 112 "setores criativos", em vez de "indústrias criativas" também foi estratégico. De acordo com o Plano da Secretaria de Economia Criativa, publicado em 2012, pelo Ministério da Cultura, e em vigor de 2011 a 2014, a palavra "industry", em inglês, significa "o conjunto de empresas que realizam uma atividade produtiva comum" (BRASIL, 2012, p.21). Já no Brasil, o termo "indústria" remete à produção em larga escala, massiva, o que não seria apropriado, segundo o documento, uma vez que a economia criativa é "a economia do intangível, do simbólico", e não segue modelos econômicos tradicionais: Ela se alimenta dos talentos criativos, que se organizam individual ou coletivamente para produzir bens e serviços criativos. Por se caracterizar pela abundância e não pela escassez, a nova economia possui dinâmica própria e, por isso, desconcerta os modelos econômicos tradicionais, pois seus novos modelos de negócio ainda se encontram em construção, carecendo de marcos legais e de bases conceituais consentâneas com os novos tempos. (ibidem, p.24) Os setores criativos foram então divididos em cinco categorias: (1) no campo do patrimônio – patrimônio material, patrimônio imaterial, arquivos e museus; (2) no campo das expressões culturais – artesanato, culturas populares, culturas indígenas, culturas afro-brasileiras, artes visuais, arte digital; (3) no campo das artes de espetáculo – dança, música, circo, teatro; (4) no campo do audiovisual, do livro, da leitura e da literatura – cinema e vídeo, publicações e mídias e mídias impressas; (5) no campo das criações culturais e funcionais – moda, design e arquitetura (ibidem, p.30). Além dos modelos que representam as artes como um dentre tantos setores criativos, há algumas propostas de voltar a pensar nas indústrias culturais de forma mais específica. Para Oakley e O’Connor (2015), a separação entre a difusão em série da cultura e as demais atividades criativas (como a patente farmacêutica) retoma a tradição dos estudos culturais, iniciada por Raymond Williams, assim como a abordagem sobre a economia política da cultura, como proposta por Bernard Miège. Essa distinção permite pensar nos paradoxos e nas justaposições entre cultura e economia, o que não ocorre no discurso da economia criativa, que, segundo a autora, neutraliza o potencial de resistência ou de ruptura das artes, sob o único propósito de inovação e de crescimento econômico. David Throsby (2008), por sua vez, apresenta motivações de cunho econômico em sua preferência pelo termo "indústrias culturais". O economista criou seu modelo de "Círculos concêntricos" (figura 4) em 2001 e desenvolveu o assunto 113 em outros textos mais recentes, como os estudos encomendados pela Comissão Europeia (KEA European Affairs) e pela The Work Foundation, no Reino Unido. O autor parte da proposição de que os bens e serviços culturais oferecem dois tipos de valor, o econômico e o cultural, sendo que é o último que distingue as indústrias culturais das outras áreas de produção. Assim, quanto maior o "conteúdo cultural" de um bem de consumo, mais próximo ele está do centro das indústrias culturais. Há diferentes interpretações para o que seriam esses "conteúdos culturais", mas Throsby assume que eles florescem a partir da incorporação de ideias criativas na produção e na apresentação de sons, textos e imagens. Essas ideias, segundo o autor, são geradas pelas atividades artísticas – música, artes cênicas, dança, artes visuais e literatura. Figura 4: Modelo dos círculos concêntricos, elaborado por Throsby. Fonte: adaptado de THROSBY, 2008 Assim como Throsby, David Hesmondhalgh (2013) também propõe um modelo circular, mas seus argumentos diferem quanto ao centro das indústrias culturais. Para Hesmondhalgh, as artes são apenas uma fonte de ideias criativas, ao lado de diversas outras. As indústrias culturais difundem signos (ou textos, como prefere o autor), porém, em grande parte das vezes, a motivação não vem da 114 autonomia dos artistas, mas da estrutura das indústrias de comunicação de massa e digitais, com fins claramente comerciais. De qualquer forma, em meio a esses diversos modelos, que ora tendem para a economia criativa, ora voltam às indústrias culturais, já nos anos 1990, o debate deixava de confinar-se ao ambiente de mercado para fazer parte dos planos de governo de diversos países, entre eles, o Brasil. 115 CAPÍTULO 8 – SERÁ APENAS UMA RETÓRICA NEOLIBERAL? 8.1 A economia criativa como discurso político Em 1994, a noção de que é possível gerar recursos sociais ou financeiros a partir das atividades criativas alcançou uma nova dimensão política. Nesse ano, em um ato talvez mais retórico do que efetivo, o primeiro-ministro da Austrália, Paul Keating, cunhou o termo Creative Nation. O relatório oficial enfatizava claramente a proposta de tratar a cultura pelo viés econômico: Esta política cultural também é uma política econômica. A cultura cria riqueza. Definida em seu sentido mais amplo, nossas indústrias culturais geram 13 bilhões de dólares por ano. A cultura emprega. Cerca de 336.000 australianos são empregados em indústrias relacionadas à cultura. A cultura agrega valor, ela traz uma contribuição essencial à inovação, ao marketing e ao design. É um distintivo da nossa indústria. O nível de nossa criatividade substancialmente determina nossa habilidade de adaptação aos imperativos da nova economia. (GOVERNO DA AUSTRÁLIA, 1994, tradução nossa)34 Três anos depois, o primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair, criou o Department for Culture, Media and Sport (DCMS).35 Uma de suas primeiras ações foi estabelecer o Creative Industries Task Force, responsável por apresentar o Creative Industries Mapping Document, em 1998. O documento foi a primeira tentativa sistemática de mapear, definir e avaliar as indústrias criativas no país (BOP CONSULTING, 2010). A partir desse esforço, a definição adotada para o setor foi o seguinte: [...] aquelas atividades que têm sua origem na criatividade individual, habilidade ou talento e que têm o potencial para a criação de riqueza e empregos por meio da geração e exploração da propriedade intelectual. (ibidem, p.16, tradução nossa)36 Segundo o relatório do governo britânico, as indústrias criativas englobam as artes visuais (pintura, escultura, desenho), as artes de espetáculos (teatro, dança, This cultural policy is also an economic policy. Culture creates wealth. Broadly defined, our cultural industries generate 13 billion dollars a year. Culture employs. Around 336,000 Australians are employed in culture-related industries. Culture adds value; it makes an essential contribution to innovation, marketing and design. It is a badge of our industry. The level of our creativity substantially determines our ability to adapt to new economic imperatives. 34 35 Hoje, chama-se Department for Culture, Olympics, Media and Sport (DCOMS). […] those activities which have their origin in individual creativity, skill and talent and which have a potential for wealth and job creation through the generation and exploitation of intellectual property. 36 116 circo) e a música, além de atividades como propaganda, arquitetura, antiguidades, artesanato, design, filme e cinema, softwares, publicações de livros, rádio e televisão. Mas tanto a definição quanto a lista de setores geraram polêmica pela arbitrariedade e pelo próprio conceito de criatividade adotado: afinal, o mercado de obras de arte antigas envolve criação? A indústria de software realmente inova ou, na maior parte das vezes, limita-se a vender programas de computadores desenvolvidos por grandes corporações e a oferecer assistência técnica aos usuários? (ibidem) Apesar das críticas, o governo do Reino Unido persistiu em sua retórica, mas, em 2006, mudou a ênfase das indústrias criativas, como um campo isolado, para a "economia criativa", em uma tentativa de capturar "a ampla contribuição do setor para a economia e a sociedade". De fato, em um período de crescimento econômico, os setores criativos geraram empregos e renda no país, e o financiamento público às artes também aumentou aproximadamente 35% no período de 1997 a 2011, como mostra a tabela 1. Tabela 1: Subsídio do governo para a Arts Council England. Ano Financiamento (milhões de libras) 1997-1998 186,6 1998-1999 189,95 1999-2000 228,25 2000-2001 237,155 2001-2002 251,455 2002-2003 289,405 2003-2004 324,955 2004-2005 368,859 2005-2006 408,678 2006-2007 426,531 2007-2008 423,601 2008-2009 437,631 2009-2010 452,964 2010-2011 438,523 Fonte: adaptado de HESMONDHALGH et al., 2015 No novo conceito de "economia criativa", havia várias dimensões, entre elas: agregar valor a outras indústrias, fazer parte da economia do conhecimento, 117 contribuir para a regeneração de cidades e permitir que as pessoas compartilhassem experiências (ibidem). A mudança era significativa: em vez da produção de patentes por organizações estabelecidas, o novo termo ressaltava a ocupação profissional. Desse ponto de vista, a economia criativa se tornava o resultado da atividade de milhões de indivíduos, que atuam dentro ou fora das indústrias (OAKLEY; O'CONNOR, 2015): em uma gravadora de música, em uma emissora de rádio ou televisão, mas também em um pequeno teatro sem fins lucrativos, em um coral de estudantes, em uma feira de artesanatos, em um ateliê de artes visuais. Essa tendência espalhava-se para o mundo e, com isso, mais uma transformação importante se insinuava: a "economia criativa" deixava de ser um tema de países desenvolvidos para transformar-se em uma estratégia relativamente "barata", uma vez que não exige grandes investimentos em matéria-prima e maquinário, para melhorar também as condições econômicas e sociais de países emergentes. Conforme relatório publicado pela UNCTAD (2010, p.253, tradução nossa): Gradualmente, essas tendências estão sendo refletidas na experiência de países em desenvolvimento. Algumas partes do mundo em desenvolvimento, notavelmente a Ásia, estão experimentando forte crescimento em suas indústrias criativas. No entanto, em outras regiões em desenvolvimento, a situação apresenta mais nuances. Este relatório mostra o rápido crescimento nas exportações de bens e serviços criativos, como indicadores da força das indústrias criativas na sociedade contemporânea. No período de 2002 a 2008, as exportações mundiais de bens e serviços criativos cresceram em níveis sem precedentes, em 11 e 17 por cento, respectivamente. As taxas de crescimento nos países em desenvolvimento, como um todo, excedem as dos países desenvolvidos, graças à excepcional performance da China. O comércio de bens criativos entre os países do Sul foi responsável por 15 por cento das exportações mundiais em 2008, um sinal da crescente penetração dos países em desenvolvimento nos mercados globais. Esses resultados promovem uma forte indicação do potencial que ainda espera os países em desenvolvimento, o de tirar vantagem de suas economias criativas para ganhos em seus desenvolvimentos.37 Um dos países com potencial para este discurso era o Brasil. 37 Gradually these trends are being reflected in the experience of developing countries. Some parts of the developing world, notably Asia, are enjoying strong growth in their creative industries. However, in other developing regions the situation is more nuanced. This report shows the rapid growth in the exports of creative goods and services as indicators of the strength of the creative industries in contemporary society. In the period 2002-2008, world exports of creative goods and services grew at unprecedented levels by 11 and 17 per cent, respectively. Growth rates in developing countries as a whole exceeded those in developed countries, thanks to the exceptional performance of China. SouthSouth trade of creative goods accounted for 15 per cent of world exports in 2008, a sign of the growing penetration of developing countries in global markets. These results provide a strong hint of the potential that still awaits developing countries to take better advantage of their creative economy for development gains. 118 8.2 A economia criativa no Brasil Em 2004, durante a gestão de Gilberto Gil como ministro da Cultura, a XI Conferência da UNCTAD foi realizada em São Paulo. Esta foi a primeira vez que as indústrias criativas foram tratadas em um painel específico para países emergentes (MELLO; ZARDO, 2015). No mesmo ano, uma parceria do Ministério da Cultura com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) integrava indicadores econômicos e sociais (DURAND, 2007). Em 2012, foi criada a Secretaria da Economia Criativa, vinculada ao Ministério da Cultura. A premissa era que "a diversidade cultural passa a ser o recurso fundamental para o desenvolvimento das nações [...]" (BRASIL, 2012, p.19). No plano oficial, a definição adotada é semelhante à inglesa: [...] os setores criativos são todos aqueles cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de valor simbólico, elemento central da formação do preço, e que resulta em produção de riqueza cultural e econômica. (ibidem, p. 22) Contudo, a Secretaria não se concentra tanto na produção em massa, como ocorre no Reino Unido, mas tem como princípios norteadores: a "diversidade cultural", a "sustentabilidade", a "inovação" e a "inclusão social" (ibidem, p.34-35, grifo nosso): A Economia Criativa Brasileira deve então se constituir numa dinâmica de valorização, proteção e promoção da diversidade das expressões culturais nacionais como forma de garantir a sua originalidade, a sua força e seu potencial de crescimento. [...] é importante definir qual tipo de desenvolvimento se deseja, quais as bases desse desenvolvimento e como ele pode ser construído de modo a garantir uma sustentabilidade social, cultural, ambiental e econômica em condições semelhantes de escolha para as gerações futuras. [...] Assumir a economia criativa como vetor de desenvolvimento, como processo cultural gerador de inovação, é assumi-la em sua dimensão dialógica, ou seja, de um lado, como resposta a demandas de mercado, de outro, como rompimento às mesmas. [...] No Brasil, onde a desigualdade de oportunidades educacionais e de trabalho ainda é evidente, onde o analfabetismo funcional atinge um percentual considerável da população, onde a violência é uma realidade cotidiana, onde o acesso à cultura ainda é bastante precário (quando comparado com o de países desenvolvidos), não se pode deixar de assumir a inclusão social como princípio fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas culturais na área da economia criativa. Na prática, a Secretaria de Economia Criativa foi responsável por quatro setores: artesanato, arquitetura, design e moda (BRASIL, 2013). Sua proposta, atualmente, está sendo reformulada e talvez ela não exista por muito tempo. Mas, como discurso político, a ideia de gerar valores sociais e econômicos por meio de 119 atividades criativas se espalha por iniciativas privadas e por todo o Ministério, como deixa visível o Plano Nacional da Cultura, lançado em 2011, e em vigor por dez anos. Ele se estrutura em três dimensões: "a cultura como expressão Simbólica"; como "direito de cidadania"; e como "campo potencial para o desenvolvimento econômico com sustentabilidade". Algumas metas ressaltam a importância de políticas públicas, como a 24: "60% dos municípios de cada macrorregião do país com produção e circulação de espetáculos e atividades artísticas e culturais fomentados com recursos públicos federais" (BRASIL, 2011, p.9-12). Realmente, o Ministério da Cultura conta com órgãos como a Funarte, a Cinemateca e a Biblioteca Nacional, que promovem o financiamento público para artistas, cineastas e escritores. Apesar das flutuações, os gastos do Ministério da Cultura passaram de, aproximadamente, R$ 226 milhões em 2004 para R$ 1,2 bilhão em 2014. Já as despesas da Funarte passaram de, aproximadamente, R$ 38 milhões em 2004 para R$ 131 milhões em 2014, conforme a tabela a seguir. Tabela 2: Despesas do Governo Federal com o Ministério da Cultura, a Funarte e as premiações culturais. Ano Ministério da Cultura (milhões de reais) 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 266 324 407 470 599 786 749 946 1.093 1.275 1.247 Funarte (milhões de reais) 38 32 56 60 69 90 118 104 211 156 131 Premiações culturais, artísticas, científicas, desportivas e outras (milhões de reais) 7 0,8 2 15 6 17 36 23 101 32 24 Fonte: <http://transparencia.gov.br/>. Acesso em: 28 jan. 2015. Além disso, há os editais do Fundo Nacional da Cultura, que preveem o financiamento direto de até 80% do custo de projetos culturais (sem passar pela escolha de departamentos de marketing, como no caso da Lei Rouanet). Nos níveis estaduais e municipais, a situação é semelhante. A Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, por exemplo, também apresenta iniciativas como os editais do Proac 120 (Programa de Ação Cultural), que oferecem recursos públicos para que os candidatos selecionados desenvolvam seus projetos (BRASIL, 2013; SÃO PAULO, 2006-2014). Mas as metas de 7 a 10 do Plano Nacional de Cultura refletem uma importância econômica: "100% dos segmentos culturais com cadeias produtivas da economia criativa mapeadas"; "110 territórios criativos reconhecidos"; "300 projetos de apoio à sustentabilidade econômica da produção cultural local"; "aumento em 15% do impacto dos aspectos culturais na média nacional de competitividade dos destinos turísticos brasileiros"; e "aumento em 95% no emprego formal do setor cultural". A meta 53 reforça: "4,5% de participação do setor cultural brasileiro no Produto Interno Bruto (PIB)". (BRASIL, 2011, p.11). Mesmo em editais para ocupação de espaços públicos, os artistas devem ser aptos a usar a linguagem empresarial, apresentando orçamentos, cumprindo prazos e sugerindo contrapartidas. O exemplo a seguir foi retirado do Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2014, e apresenta os critérios de seleção de projetos de artes visuais para exposições nas galerias da Fundação. Pode-se observar que a "linguagem artística", embora seja o primeiro parâmetro, aparece ao lado de outros, como a adequação ao cronograma, as ações sociais e educativas, as estratégias de comunicação e o público-alvo: a) excelência do projeto quanto à qualidade, aos objetivos, à inovação, à linguagem artística e conteúdo; b) capacidade de execução do projeto de acordo com o cronograma apresentado; c) ações socioeducativas que visem à democratização do acesso aos resultados finais do projeto, como por exemplo: debates, palestras, encontros, visitas guiadas com monitoria entre outras; d) qualificação dos profissionais envolvidos no projeto; e) estratégias de comunicação e divulgação do projeto; f) público-alvo do projeto, considerando a importância da renovação e qualificação de público para as artes visuais; (BRASIL, 2014) Será que, apesar dos investimentos públicos, esse momento revela, portanto, a convergência entre as atividades artísticas, a economia e o trabalho, como vem se anunciando desde meados do século XX? Ou ainda, será que este é o resultado do pensamento neoliberal, como emergiu nos anos 1980? 121 8.3 A economia criativa e o neoliberalismo No artigo Were New Labour’s cultural policies neoliberal? (As políticas culturais do New Labour eram neoliberais?), em referência ao período em que Toni Blair foi primeiro ministro do Reino Unido, Hesmondhalgh et al. (2015) perguntam se é válido interpretar a ênfase sobre a economia criativa como uma política neoliberal. Os autores argumentam que, em certo sentido, a resposta é positiva. Nesse período, houve um aumento dos investimentos públicos em cultura, mas, ao mesmo tempo, cresceram os patrocínios privados, houve ênfase na gestão pública como se fosse um "negócio particular", e uma passagem de objetivos culturais, artísticos ou estéticos para ganhos sociais e econômicos. Esses fatos revelam os artistas e cidadãos como sujeitos empreendedores, confiantes e criativos. No Brasil, a situação atual é semelhante. Além disso, há um destaque para a profissionalização do setor, uma vez que, para que sejam sustentáveis, os artistas devem seguir a lógica das empresas, tornando-se capazes de gerar recursos para manter suas próprias atividades. As metas de 15 a 19 do Plano Nacional de Cultura reforçam: "aumento em 150% de cursos técnicos, habilitados pelo Ministério da Educação (MEC), no campo da Arte e Cultura com proporcional aumento de vagas"; "aumento em 200% de vagas de graduação e pós-graduação nas áreas do conhecimento relacionadas às linguagens artísticas, patrimônio cultural e demais áreas da cultura, com aumento proporcional do número de bolsas"; "20 mil trabalhadores da cultura com saberes reconhecidos e certificados pelo Ministério da Educação (MEC)"; "aumento em 100% no total de pessoas qualificadas anualmente em cursos, oficinas, fóruns e seminários com conteúdo de gestão cultural, linguagens artísticas, patrimônio cultural e demais áreas da cultura"; e "aumento em 100% no total de pessoas beneficiadas anualmente por ações de fomento à pesquisa, formação, produção e difusão do conhecimento" (BRASIL, 2011, p.11). A propósito, a pesquisa Panorama Setorial Brasileiro, realizada em 2012, revelou que o nível de escolaridade é alto entre os produtores culturais do país: 77% têm formação superior (apenas 7% da população brasileira tem esse grau de escolaridade), embora somente 17% dos cursos sejam diretamente relacionados às artes. Mesmo assim, 50% dos produtores consideram que a maior dificuldade de seu trabalho é a falta de "profissionalismo das equipes envolvidas em um projeto 122 cultural". 95% dos produtores se preparam para a profissão pela experiência adquirida com o próprio trabalho e 45% se preparam por meio do convívio com os artistas. Apenas 46% procuram cursos de especialização ou cursos livres. Outro dado interessante é que 63% dos produtores dependem de remuneração advinda de outras atividades. Além disso, as atividades de criação ou performance artística somam-se às de produção cultural: 47% dos produtores disseram que são artistas e, por isso, tornaram-se produtores; 31% responderam que ser produtor é um meio para atingirem sua vocação (ator, músico, cantor, entre outras); e 25% pertencem a um grupo artístico que precisava de um produtor (JORDÃO; ALLUCCI, 2012, p.51;63;74). Ora, esses enunciados relevam valores como "iniciativa" e "autonomia", justamente como são propagados pelo neoliberalismo, assim como a fluidez das identidades e dos pertencimentos, o multiculturalismo e as possibilidades de escolha e decisão. Há ainda outra questão que colabora para que a economia criativa possa ser vista como neoliberal: a crescente tentativa de mapear o setor. O Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), por exemplo, tem os objetivos de "coletar, sistematizar e interpretar dados; fornecer metodologias e estabelecer parâmetros à mensuração da atividade do campo cultural e das necessidades sociais por cultura". A proposta é que 100% das Unidades da Federação (UF) e 60% dos municípios estejam com o SNIIC atualizado até 2020, e que a "cartografia da diversidade das expressões culturais" esteja realizada em todo o território brasileiro no mesmo prazo (BRASIL, 2011, p.11). De fato, para Miller e Rose (2012), pelo menos desde o século XVIII, os governos preocupam-se em acumular e catalogar informações sobre as áreas a serem governadas, de forma a transformar a realidade em algo "calculável", que pode ser debatido e diagnosticado. Dessa maneira, a informação não tem um papel neutro, apenas de registro, mas é uma forma de influenciar o real, de torná-lo suscetível de "avaliação, cálculo e intervenção". No neoliberalismo, esses objetivos expandem-se, uma vez que, em um mundo globalizado, as economias nacionais se fragmentam e formam-se novos campos de visibilidade, novas concepções de espaços econômicos. Assim, é possível governar cidades, zonas, regiões geográficas. Também se pode adentrar escolas, fábricas, hospitais ou museus. Cada um desses espaços abre-se como um campo a ser cartografado e administrado (ROSE, 1999). 123 Embora não use os mesmos termos de Rose e dos estudos sobre a governamentalidade em geral, Oakley (2009a) acredita que a cartografia do trabalho criativo e sua inserção nos processos de geração de valor social e econômico tornaram a arte visível no campo político, o que é um traço positivo. No entanto, corre-se o risco de que as atividades artísticas sejam valorizadas apenas em relação a questões como desenvolvimento social ou econômico e não mais em seus próprios termos. Esse preço, segundo a autora, é "caro demais". Contudo, em meio à crescente importância econômica atribuída à cultura, o Panorama Setorial da Cultura Brasileira revela também que, para os produtores culturais, as questões econômicas, embora importantes, são secundárias: 95% afirmam que "investir em cultura é transformar a sociedade" (JORDÃO; ALLUCCI, 2012, p.101). Mas será que todo este debate – em suas diversas formas – é algo permanente ou foi apenas uma ideia passageira, uma onda de entusiasmo? 8.4 O fim ou o começo da economia criativa? E o que vem depois? Embora seja recente no Brasil, o debate político sobre a economia criativa completa 18 anos no Reino Unido, e 21 anos na Austrália. Isso faz com que os pesquisadores britânicos e australianos possam olhar para o fenômeno de forma retrospectiva, avaliando seus legados. No artigo Re-thinking Creative Economy as Radical Social Enterprise (Repensando a economia criativa como um empreendimento social radical), McRobbie (2011) afirma que o discurso será visto como uma característica específica da gestão de Toni Blair e que seus efeitos não irão durar mais do que dez anos. De fato, a recessão econômica que teve início na primeira década dos anos 2000 fez com que os investimentos em cultura caíssem na Europa, o que afetou os setores criativos como um todo. Por sua vez, Banks e O’Connor (2009) afirmam que a crise é uma oportunidade para repensar as relações entre arte, cultura e economia, de forma que o mercado seja subordinado ao bem-estar de indivíduos e comunidades – e não o contrário. Mas, nesse ponto, o debate está, de fato, se esgotando? Verificando a quantidade de livros, artigos acadêmicos, teses e dissertações que continua a ser escrita sobre o tema, a resposta parece ser negativa (gráfico 6). 124 Gráfico 6: Número de teses e dissertações, no período de 1997 a 2014, com os termos "creative economy" e "creative industries". 226 229 225 223 190 145 Creative economy 107 103 79 6 0 8 3 10 0 17 2 25 3 26 2 17 3 6 80 13 24 41 15 39 50 62 44 74 Creative industries Fonte: <http://www.proquest.com>. Pesquisa realizada no banco de dados, no dia 16 de dezembro de 2014. No banco de dados da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior), órgão vinculado ao Ministério da Educação brasileiro, há, no período de janeiro de 2010 a junho de 2015, registros de 217 teses que citam o termo "indústria cultural", e 18 que falam sobre "economia criativa", sendo que dez delas foram desenvolvidas na área de administração. Além disso, novos documentos são publicados a cada ano. O British Council (2014), por exemplo, lançou, em parceria com especialistas brasileiros, três publicações da série Diálogos de Economia Criativa entre o Brasil e o Reino Unido, com os seguintes títulos: Novas direções na formulação de políticas para a economia criativa; Qual o papel do design na política de inovação?; e Regeneração urbana através da cultura funciona? O plano da Política Nacional das Artes, lançada pelo Ministério da Cultura em junho de 2015, com o objetivo de reformular as políticas públicas para o setor, também ressalta a "economia" e a "sustentabilidade" (BRASIL, 2015). E, de fato, o mercado brasileiro de bens e serviços culturais continua crescendo, apesar da recessão econômica mundial (tabelas 3 e 4). 125 Tabela 3: Exportação de bens culturais no período de 2003 a 2012, no Brasil (milhões de dólares). Filmes Instrumentos musicais Livros Artes visuais 2003 0,25 13,49 53,13 26,41 2004 0,32 24,19 49,94 43,54 2005 0,25 33,09 70,58 33,24 2006 0,32 40,68 88,00 49,10 2007 0,88 48,15 116,18 52,01 Filmes Instrumentos musicais Livros Artes visuais 2008 0,26 70,69 130,27 86,89 2009 0,59 61,76 107,78 65,42 2010 0,33 103,21 131,32 139,86 2011 1,30 123,46 168,77 166,95 2012 0,08 108,90 148,66 366,27 Fonte: <http://unctadstat.unctad.org/EN/Index.html>. Acesso em: 07 jan. 2015. Tabela 4: Exportação de artes visuais no período de 2003 a 2012, no Brasil (valores em milhões de dólares). Artes visuais Antiguidades Pintura Fotografia Escultura 2003 5,35 4,67 3,18 13,21 2004 3,58 13,92 4,11 21,93 2005 3,01 4,98 2,79 22,45 2006 6,89 8,18 3,69 30,34 2007 2,98 17,78 2,51 28,73 Artes visuais Antiguidades Pintura Fotografia Escultura 2008 4,19 40,86 3,46 38,38 2009 4,53 22,05 2,69 36,15 2010 14,56 58,65 2,95 63,70 2011 4,46 52,20 4,68 105,61 2012 8,37 89,88 3,68 264,34 Fonte: <http://unctadstat.unctad.org/EN/Index.html>. Acesso em: 07 jan. 2015. Conforme relatório da FIRJAN (2014), o setor da economia criativa foi responsável por 2,6% do PIB brasileiro em 2013. Esse valor era de 2,09% em 2004. As categorias específicas de "expressões culturais", "patrimônio e artes", "música" e "artes cênicas" também apresentaram crescimento significativo. O número de empregos formais nessas áreas aumentou 43,6% entre 2004 e 2013. São os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro que concentram a maior parte da produção cultural do país. 126 Tabela 5: Número de empregados das indústrias criativas no Brasil, por áreas criativas e segmentos, em 2004 e 2013. Segmentos Consumo Publicidade Arquitetura Design Moda Cultura Expressões Culturais Patrimônio e Artes Música Artes Cênicas Mídias Editorial Audiovisual Tecnologia Pesquisa e Desenvolvimento Tecnologias de Informação e Comunicação Biotecnologia Indústria Criativa 2004 211,5 45,7 62,7 42,6 60,5 43,3 18,3 10,2 7,5 7,2 64,2 27,8 36,3 150,9 82,2 55,5 13,2 469,8 2013 422,9 154,8 124,5 87 56,7 62,1 22,5 16,4 12 11,2 101,4 50,8 50,6 306,1 166,3 112,9 26,9 892,5 Crescimento 100,0% 235,5% 98,5% 104,3% -6,3% 43,6% 22,7% 60,9% 60,4% 54,9% 58,0% 82,5% 39,1% 102,8% 102,3% 103,60% 102,80% 90% Fonte: adaptado de FIRJAN, 2014 Nesse cenário, talvez o debate sobre a economia criativa deixe de ter a dimensão de uma política pública estruturada e ganhe o caráter mais difuso; talvez apenas mude o eixo dos países europeus e norte-americanos para os latinoamericanos, africanos ou asiáticos, e seja usado como estratégia de desenvolvimento social e econômico, como propõe a Unesco. Contudo, mais do que eleger um modelo a ser seguido ou não, o importante (para a proposta desta tese) é reter o que esse conjunto de enunciados sobre as artes, a cultura e o trabalho criativo revela sobre a sociedade atual, e como se projeta para o futuro. Afinal, quando o modelo de atividade artística deixa de ser exceção ao regime produtivo e passa a ser debatido (a partir do conceito de criatividade) por políticos, economistas e acadêmicos como um dos modos de gerar riquezas, o problema já não se restringe ao circuito econômico de teatros, galerias e museus (ou das agências de design e publicidade). Pelo contrário, ele se expande para o modo como se entende a própria época. O que está em jogo, portanto, é mais do que o simples debate sobre o valor estético, cultural ou financeiro das obras. Na realidade, é a forma como o trabalho se organiza na sociedade atual que está nas entrelinhas dos enunciados sobre a economia criativa. 127 Embora os debates sobre o assunto levem quase sempre à inserção da arte nos meios de comunicação de massa, também não se trata somente da transformação da cultura em commodities, em bens de consumo, por mais complexas que sejam essas relações e suas análises. Ao refletir sobre a arte no "tempo das multidões", Negri afirma que a crítica lançada por Adorno e Horkheimer esgotou a si mesma, tornando-se repetitiva e estabelecendo um novo terreno, o da multiplicidade: Em seu interior e contra esta máquina infernal, que globaliza a cultura ao mesmo tempo em que a devasta e perverte seus valores, há sempre um fantasma, um espírito insurgente. Mas, enquanto o circuito da comunicação cultural é perfeito e autossuficiente, este espírito só pode agir alimentando a si mesmo de coisas exteriores e dos outros: desejo do corpo, a liberdade das multidões, o poder das linguagens. [...] A produção tornou-se linguística; consequentemente, a subjetividade agora se apresenta por meio da própria linguagem. A abstração da comunicação torna-se um corpo de singularidades... Então, nasce a multidão. (NEGRI, 2007, p.49, tradução nossa)38 A multidão, para Negri, é um conjunto de singularidades que se proliferam. Cada singularidade, no entanto, também é composta por multiplicidades, no sentido de que cada pessoa está sempre em relação com outras, em diferentes situações. Não há mais, para o autor, uma dialética possível entre a alta e a baixa cultura, entre o poder dominante e os dominados. Há, apenas, um trânsito livre e antagônico entre a biopotência (aquela que emerge da própria vida) e a biopolítica (que busca controlar essa potência). Nesse ambiente de "caos", a cultura nasce como acontecimentos também singulares, e não como síntese. Não há como mensurar a potência da multidão, mas há, como na economia criativa, inúmeras propostas de mapear e de capturar essa produção biopolítica. Nesse sentido, o debate provavelmente não se esgota na decisão de um partido político, mas permanece enquanto os elementos imateriais e a vida em si mesma forem fontes de valor social e econômico. Resta saber como os próprios artistas se inserem nesse contexto. Within and against this infernal machine, which globalizes culture at the very same time that it ravages and perverts its values, there is always a ghost, an insurgent spirit. Yet while the circuit of cultural communication is perfect and self-sufficient, this spirit can only proceed by nourishing itself on things extraneous and other: bodily desire, the freedom of the multitudes, the power of languages. In the horrible abstraction of telematic communication, something subjectivates itself: the spirit of the multitude. [...] Production has become linguistic; consequently, subjectivity now presents itself through language itself. The abstraction of communication becomes the body of singularities...Thus the multitude is born. 38 128 8.5 O papel das redes Há pelo menos dois séculos, as artes se afirmaram como produto da geração espontânea. Embora essa ideia ainda seja muito forte na figura dos gênios artísticos ou dos grandes talentos midiáticos, uma série de enunciados parece apontar hoje para um caminho diferente. É claro que a singularidade dos artistas permanece. Segundo Bakhtin (2010), é na arte que ela encontra uma forma específica, compõe uma obra, adquire um sentido. Mas essa singularidade só é possível porque há uma multiplicidade de vozes que confluem ou dispersam-se, sobrepõem-se ou afastamse. É dessa polifonia que emerge algo novo, singular. O mito romântico de uma inspiração natural ou divina parece se diluir no uso cada vez mais acentuado das redes, não somente as proporcionadas pelos ambientes digitais, mas também as do mundo físico, do dia a dia, dos encontros. Não há nenhuma novidade nisso. Certamente, além de talentos consagrados pelas tradições estéticas, inúmeros artistas sempre trabalharam de forma anônima e coletiva para compor a cultura de uma determinada época ou de um determinado local (PINHEIRO, 2009). Quando o capitalismo busca capturar a criação que se espalha pela sociedade, essas características aparecem com mais nitidez, em vários níveis. De acordo com Negri (2007, p.55, tradução nossa), quando o poder sobre a vida se exerce, abre-se também a possibilidade para que sua potência se manifeste: O mundo global, como nós conhecemos, como o Império nos apresenta na ordem política, é um mundo fechado, sujeito à entropia que resulta quando o espaço e o tempo exaurem-se. Mas as multidões que agem dentro deste mundo fechado aprenderam a transformá-lo, passando por meio dos objetos e de cada singularidade, recriando o mundo. Foucault certa vez disse que, quando pensamos que a história terminou, percebemos que ela se renova nos eixos verticais que somos nós. É isso que está acontecendo conosco, como multidão e como um corpo múltiplo. 39 A prática artística, para Negri, consiste justamente em fazer emergir essas potencialidades em obras singulares: Quando a única possibilidade de ação, artística ou ética, consiste em mover-se para fora a partir de seu ser, por meio da prática biopolítica, todo ato é uma transformação de uma essência física e espiritual do corpo The global world as we know it, as Empire presents it to us in the political order, is a closed world, subject to the entropy that results when space and time have been exhausted. But the multitude that acts within this closed world has learned to transform it, by passing through each subject and towards each singularity making up the world. Foucault once said that when we thought history was over, we find that it renews itself on the vertical axis that we are. That is what's happening to us, as multitude and multitudinous body. 39 129 humano; quando a estrutura do social torna-se tão central e o mundo tão pequeno e restrito que não exista mais nenhuma possibilidade de deixar para trás este habitat, quando as ilusões utópicas (ilusões de outros lugares) não mais se apresentam; o que significa, então, agir artisticamente? Significa construir um novo ser; significa fazer o espaço global refletir novamente sobre si mesmo, redirecioná-lo no sentido da existência de singularidades. (ibidem, p. 55, tradução nossa)40 Em termos mais práticos, e a partir de outras premissas teóricas, Howard Becker (2008) fala em mundos da arte, que, como deixa explícito, não se confundem com a noção de "campo" proposta por Bourdieu. Segundo o autor, ao contrário de um espaço delimitado (como o campo artístico ou universitário), em que há um jogo de forças sociais em grande parte predeterminadas, os mundos são abertos a diversas possibilidades, que, por sua vez, são moldadas pelas convenções e realizadas a partir da cooperação e da ação coletiva. Essa abordagem, entretanto, não ignora o conflito de interesses, tampouco as relações de poder, mas engloba todas as formas de interação social. É desse conjunto de atividades que nascem as obras de arte. Uma apresentação de jazz ilustra bem essas ideias: Descrevemos como os músicos, quando tocam juntos sem ensaio e sem partituras, não se apoiam exclusivamente em um estoque de standards que todos os envolvidos já aprenderam. De forma nenhuma. Pelo contrário, eles usam uma variedade de habilidades que constituem recursos para criar, no palco e em um momento específico, um programa (um set list, como eles dizem). Por vezes, eles montam a apresentação de uma música a partir de suas lembranças de um disco que ouviram em algum lugar. Ou, pode ocorrer, desconhecem completamente o trecho de música proposto, mas podem tocá-lo quando ouvem o outro tocar, porque as fórmulas em que aquela peça se baseia lhes são familiares. Um grupo pode, então, tocar uma música que apenas um dos integrantes conhece, porque os outros são capazes de seguir suas indicações. E, então, servindo-se desses artifícios, eles montam um programa completo, peça por peça, no momento oportuno. Não se trata de uma simples reprodução de algo que todo mundo traz consigo, mas uma verdadeira construção improvisada (idem, 2010, p.11). Os mundos da arte, como explorados por Becker, são um exemplo de rede, que Salles (2006, p.18) define como "o ambiente das interações, dos laços, da interconectividade, dos nexos e das relações, que se opõe claramente àquele apoiado em segmentações e disjunções". Os elementos de interação são picos ou nós, ligados entre si. Quando as redes são sociais, formadas por pessoas, há, de acordo com Granovetter (1973), laços fracos e fortes, que variam conforme a When the only possibility for action, artistic and ethical, consists in moving out from within being, through biopolitical practice, such that every making is a transformation of the very physical and spiritual essence of the human body; when the structure of the social has become so central and the world so small and restricted that there is no longer any possibility of leaving this habitat behind, when utopian illusions (illusions of other topoi) no longer present themselves; what, then, does it mean to act artistically? It means constructing new being; it means making global space reflect back on itself, redirecting it towards the existence of singularities. 40 130 intensidade das relações afetivas, do tempo dedicado e da intimidade entre os participantes. São os laços fortes que colaboram para a coesão do grupo, mas são os fracos que permitem o livre fluxo entre uma rede e outra, fazendo com que se propaguem novas ideias. Um exemplo bastante claro do uso das redes nas artes começou em meados dos anos 1950, nos Estados Unidos. O artista Ray Johnson costumava postar pequenas colagens, pinturas abstratas e poemas para outros artistas. Esse hábito ficou conhecido como a New York Correspondence School, uma rede livre, paralela ao mercado oficial, que reunia artistas das mais diversas nacionalidades e "inclinações ideológicas" em torno de um objetivo comum: experimentar novas formas de compartilhar seus trabalhos por meio da troca de correspondências. Para Gilbertto Prado (2003, p.40), este foi o primeiro movimento da história da arte "verdadeiramente transnacional", "uma das primeiras manifestações artísticas a tratar com a comunicação em rede, em grande escala". No Brasil, essa tendência ficou conhecida como arte postal. Mais tarde, ela iria se expandir para o uso da internet. O site www.e-flux.com foi um dos primeiros a ser criado com essa premissa: Estabelecido em janeiro de 1999, em Nova York, e-flux é uma rede internacional que alcança mais de noventa mil profissionais de artes visuais em uma base diária, por meio de seu website, da lista de e-mails e de projetos especiais. (E-FLUX, tradução nossa).41 Outra proposta atual é o site brasileiro Artéria, idealizado, em 2013, pelo artista Bruno Vilela e pela curadora Kamilla Nunes: A ideia é conectar e tornar visíveis os projetos que estejam comprometidos com o universo criativo, promovendo assim um intercâmbio de experiências que ajudem na expansão e no fortalecimento dos diversos espaços autônomos do país, muitos dos quais estruturados, até agora, de maneira isolada e periférica. [...] O mapeamento destes espaços foi realizado concomitante à pesquisa de Kamilla, intitulada "Espaços Autônomos de Arte Contemporânea", resultado da Bolsa Funarte de Produção Crítica em Artes Visuais, 2012. Ao todo, foram mapeados cerca de 140 espaços em todo o território nacional, via pesquisa de campo, sites, blogs, entrevistas por email, formulários, redes sociais e publicações. (VILELA; NUNES, 2013) O uso das redes nas artes expandiu-se, ainda, para experiências mais complexas, como as pesquisas de Eduardo Kac, que envolvem interações entre pessoas e robôs (BEIGUELMAN, 2005) ou as de Stelarc, que desenvolve algumas Established in January 1999 in New York, e-flux is an international network, which reaches more than 90,000 visual art professionals on a daily basis through its website, e-mail list and special projects. 41 131 obras em que uma audiência remota pode acessar o sistema por meio da internet e influenciar os movimentos do corpo do artista. Segundo ele: Nós certamente precisamos minar as ideias simplistas de agência e do indivíduo. Este projeto relaciona-se, de certo modo, com meu trabalho anterior. Na performance Fractal Flesh, meu corpo foi involuntariamente movido por pessoas que estavam em outros lugares, usando um sistema de interface sensível ao toque para estimulação muscular do equipamento conectado ao corpo. Pessoas no Centro Georges Pompidou, em Paris, no Media Lab, em Helsinki, e na conferência Doors of Perception, em Amsterdam, coreografaram remotamente o corpo localizado em Luxemburgo. Metade do corpo era controlado por pessoas que estavam em outros lugares, a outra metade podia colaborar com agência local. É uma experiência de um corpo dividido. (STELARC, 2008, tradução nossa)42 Tomás Saraceno (2015) é outro artista que trabalha com a metáfora das redes, mas de uma perspectiva distinta: construindo grandes instalações com espaços interligados pelos quais o público pode circular. Os exemplos são inúmeros. Além das questões estéticas, a capacidade de formar redes é fundamental para a criação e a difusão das obras, o que pode ocorrer da seguinte maneira. Cada artista ou produtor envolve-se em projetos de seu interesse e pode participar de diversos trabalhos ao mesmo tempo. Assim, são formadas as redes: de teatro autoral ou de grupo, de dança popular, contemporânea ou clássica, de música de concerto, jazz, hip-hop, de artes visuais, performances, entre outros exemplos. Ou, muitas vezes, de artistas visuais que trabalham com determinada técnica de desenho ou pintura, de músicos especializados em certo período histórico, de grupos de teatro que trabalham com um autor específico, e assim por diante. O público também procura se aproximar, por meio da programação dos centros culturais, museus e teatros, das linguagens que mais lhe interessam e acompanha as atividades dos artistas a partir da comunicação em veículos de massa, mas também por ferramentas como sites, blogs, ou redes sociais, como Facebook ou Twitter. As pessoas costumam compartilhar dicas de atividades culturais entre amigos, parentes ou conhecidos. Dessa maneira, as redes se expandem para além dos limites dos grupos de artistas e de produtores e as informações transitam entre o presencial e o digital. Artistas e produtores também podem obter recursos financeiros ou patrocínio para desenvolver ou divulgar seus We certainly need to undermine the simplistic idea of agency and the individual. This project links up in certain ways to my past work. In the performance Fractal Flesh my body was involuntarily moved by people in other places using a touch screen interface system to muscle stimulation equipment connected to the body. People in the Centre Georges Pompidou in Paris, the Media Lab in Helsinki and the Doors of Perception conference in Amsterdam remotely choreographed the body located in Luxembourg. Half of this body was controlled by people in other places, the other half could collaborate with local agency. It was a split body experience. 42 132 projetos, o que pode ser revertido em mais trabalhos e em renda – e este é o caráter econômico do setor. Dada a multiplicidade de tendências artísticas, essas redes disputam a atenção do público, dos governos e da iniciativa privada. Algumas delas acabam se fechando em questões específicas de sua linguagem, restringindo, dessa maneira, seu alcance. Mas, como cada invenção tende a expandir-se, compondo com outras ou causando rupturas, formam-se pontes entre os grupos e eles passam a compartilhar experiências e interesses. Ou, na linguagem de Boaventura de Sousa Santos (2010), há linhas abissais (físicas ou imaginárias) que separam os conhecimentos conforme seu local de origem, sua visibilidade ou as forças políticas e econômicas que incidem sobre eles. Mas a leitura da criação a partir da multiplicidade e da potência da vida permite propor, por outro lado, uma “ecologia”: é possível que os múltiplos saberes existam simultaneamente, compondo-se, ou mesmo, contradizendo-se, oferecendo novos elementos para o debate e a formulação de novas práticas e teorias. As diversas vozes, que, incansavelmente, trabalham para compor as artes e a cultura, atravessam o tempo e o espaço lançando novas leituras do mundo a sua volta e propondo novas realidades. Elas também são atravessadas por questões políticas e econômicas específicas de cada época e de cada lugar. Assim, sucedemse diferentes enunciados sobre o papel que o ato de criar ocupa na sociedade. Atualmente, a criação ganha visibilidade nos territórios do trabalho, da economia, da vida e dos afetos e, por isso, alcança uma dimensão fundamental para a compreensão do presente. Ela ilumina a tendência à captura das riquezas que emergem não só da atividade física dos corpos, mas também do que há de mais intangível, daquilo que sempre escapa aos processos capitalistas e que, talvez por isso, seja o traço mais demandado: o pensamento, a potência de imaginar. 133 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em uma entrevista concedida no final de sua vida, Jorge Luis Borges (2010) disse que o "poeta nunca descansa, nem mesmo quando está sonhando". Isso ocorre porque o trabalho dos artistas, segundo o escritor, consiste em transformar em signos (palavras, cores, sons, formas, movimentos de corpos) todos os acontecimentos a sua volta. Esta é uma tarefa constante, que não tem a ver com o horário das fábricas ou dos escritórios. Artistas estão sempre criando, compondo, imaginando… Justamente por estar constantemente atenta às coisas do mundo, lançando a elas novos olhares e atribuindo-lhes novos sentidos, é que a criação recai sobre uma rede de signos que se entrelaçam. Por mais solitários que os artistas, por vezes, possam parecer, eles se relacionam com uma corrente ou uma tradição estética, um conjunto de códigos compartilhados por outros artistas e pelo público. Isso não quer dizer que não exista espaço para algo novo. Como afirmava Tarde (1976), a criação (ou invenção, nas palavras do autor), mesmo quando anônima, sempre traz uma novidade que se propaga. Para além das discussões sobre a universalidade da estética tradicional (jamais alcançada), sobre a quebra de paradigmas da arte moderna, a crítica aos meios de comunicação ou o retorno à diversidade cultural, há uma potência de vida e de criação que se expande através das épocas e dos lugares. A disposição humana para disseminar signos e propor novos sentidos revela-se em artefatos, textos, imagens e sons, tendo eles propósitos políticos e religiosos ou buscando explorar as linguagens em si mesmas, seja como manifestação artística ou como produto de entretenimento, como artesanato ou como bem de consumo de massa. Essa tendência se apresenta como um atributo intangível, que engloba o pensamento e o sentimento, o afeto e o relacionamento com os outros, e é capaz de expandir o conhecimento – como ciência ou como arte. Mas o componente imaterial não se separa de uma dimensão física (dos próprios corpos, da forma, do material e da técnica empregados na execução da obra). Afinal, aquele que cria não somente imagina, mas também atualiza mundos possíveis – e essas duas atividades estão relacionadas. Basta ver as invenções tecnológicas, os novos modos de viver e de se comportar em sociedade. Basta percorrer os museus e teatros para perceber que as obras não são completamente 134 intangíveis, resultado de um dom divino de gênios solitários, mas que elas também afetam as pessoas e o mundo. Se, como ensina Spinoza (2009), as pessoas se constituem por meio da composição com os outros e com os objetos que as rodeiam, a visita a uma exposição, a leitura de uma poesia ou a frequência a uma sala de concerto certamente são ações que ampliam a percepção e transformam aqueles que as experimentam. Essa potência da criação já é bem conhecida desde a antiguidade. Não sem propósito, as atividades artesanais ou artísticas foram apropriadas para fins políticos ou religiosos, sofreram censuras ou foram incentivadas pelo mecenato. Ocorre que o desenvolvimento do capitalismo deu novo rumo à tendência, atuando em uma dupla direção. Por um lado, o elemento intangível, que antes se diluía nas técnicas artesanais, destacou-se das obras, em um movimento que vinha se esboçando desde o Renascimento e que ganhou mais força a partir do final do século XVIII. Para as teorias estéticas, era o dom divino ou natural dos gênios que gerava o valor da arte. Visivelmente no século XIX, a subjetividade dos artistas passou a ser diretamente explorada nas composições, assumindo o lugar de temas préconcebidos, como os motivos religiosos, por exemplo. Por outro lado, essa dinâmica contrastava-se com a linha de produção em série adotada pelas fábricas desde a Revolução Industrial, o que fragmentava o trabalho, baseado essencialmente no uso da força física como unidade de medida. A arte aparecia, então, como uma atividade “economicamente desinteressada”, sem fins “materiais”, uma exceção ao regime produtivo. Ora, foi justamente essa dinâmica que aproximou os artistas do mercado, dando a ilusão de um espaço autônomo, que movimentava uma economia interna, formada por galerias, museus, público, artistas, investidores, críticos e outros profissionais. Neste ambiente, que em grande medida persiste, as obras geram valor pela reputação do artista e pelo desejo do comprador. Em grande parte das vezes, o processo é baseado na especulação e no risco, componentes que se aproximam da lógica do mercado financeiro. Mas não é somente a atribuição de valor monetário às obras que movimenta a economia das artes, são também – e principalmente – as relações interpessoais. Os artistas emergem como uma das partes em uma vasta rede de interesses – de galeristas a representantes do Estado. E era este capital social que, ao lado da própria criação, já figurava como um fator que mais tarde seria indispensável nos enunciados sobre a “economia imaterial”. 135 Acompanhando o desenvolvimento do capitalismo e, em seu interior, do mercado de artes, também cresceu a preocupação sobre a conduta dos artistas e do público. Discutia-se a melhor forma de governá-los, não mais como pessoas submissas à Igreja ou ao Estado, mas dotadas de autonomia, em uma sociedade que tinha como mote a construção de um ambiente propício para o pleno funcionamento do liberalismo econômico. Com isso, estabeleceram-se regimes de visibilidade e códigos de conduta que até hoje são observados em museus, teatros e galerias. Aos poucos, os artistas começaram a ser vistos como profissionais. Entretanto, as atividades do gênio ainda não eram consideradas propriamente um trabalho, ou algo que gera valor a partir do esforço físico. A ideia de que a arte era economicamente desinteressada dominou até a criação das primeiras políticas públicas voltadas para a área. Até o início do século XX, a discussão, que teve Ruskin (2004) como um de seus precursores, girava em torno da democratização cultural e do acesso universal às obras. Com o maior alcance dos meios de comunicação de massa, essa situação começou a se inverter. As indústrias culturais passaram a demandar o trabalho dos artistas e, com isso, lançaram uma nova luz sobre suas atividades profissionais. Os primeiros ministérios da cultura surgiam na Europa e, logo, a perspectiva econômica seria adotada também pelas políticas públicas. A partir dos anos 1980, houve nova mudança. Como Foucault (2008) percebeu, o pensamento neoliberal invadia os domínios da vida e do trabalho, não mais baseado apenas no consumo e na livre circulação de mercadorias, mas operando dentro de uma lógica empresarial: cada pessoa iria se tornar uma pequena unidade-empresa, investindo em conhecimentos para receber em troca uma renda ou salário. Essa configuração social afetou o modo como se entende o trabalho. Se, no regime industrial, ele era fracionado a partir do esforço físico dos empregados; atualmente, é a vida toda que é demandada, como um investimento. Por isso, diluem-se os limites entre as horas de lazer e a atividade profissional. Assim como o poeta, na fala de Jorge Luis Borges (2010), "não descansa nem mesmo quando está sonhando", os trabalhadores passam grande parte do tempo pensando, criando, relacionando-se com os outros. Nesse contexto, os artistas já não são mais uma exceção, mas passam a ser um modelo para as atividades nas fábricas e nos escritórios, nas mais diversas categorias profissionais. 136 Este não é um caminho de via única. As linguagens da administração de empresas e da economia também passam a ser aplicadas ao fazer artístico e cultural. Há, contudo, uma diferença em relação ao liberalismo do século XIX: a criatividade deixa de ser um dom quase exclusivo dos gênios para integrar-se aos processos produtivos em geral, como foi visto ao longo desta tese. Para além das questões político-partidárias ou ideológicas, conceitos como "economia criativa" ou "economia da cultura" nada mais fazem do que tentar capturar essa potência criativa para extrair riquezas que podem ser obtidas na forma de melhorias sociais ou econômicas para cidades, países ou regiões específicas. Mas essa leitura não se dá sem conflitos. A ideia de que a arte é uma atividade economicamente desinteressada persiste em muitas análises que retomam o debate sobre as indústrias culturais e a cultura de massas, o que pode se estender também para os meios de comunicação digitais. Nesse embate, há o receio de que as questões propriamente estéticas ou a resistência política se percam em meio às preocupações financeiras ou à obrigação com os resultados sociais. Por outro lado, cresce a discussão sobre a exploração do trabalho imaterial a que são expostos os artistas quando eles prestam serviços para grandes corporações midiáticas ou têm suas obras usadas por departamentos de marketing que investem em atividades culturais para gerar publicidade para suas marcas. Mesmo quando a alternativa a esse cenário passa pela elaboração de políticas públicas, a tendência pelo "empreendedorismo" é visível em prêmios, editais e mecanismos de financiamento, como os propostos no Brasil pelos órgãos vinculados ao Ministério da Cultura ou às Secretarias Estaduais e Municipais. Também há metas do governo para aumentar o número de pessoas qualificadas em áreas como gestão e produção cultural. É verdade que alguns termos, como aconteceu com a "economia criativa", são muito usados em momentos de entusiasmo para, em seguida, decaírem em meio a recessões econômicas, problemas políticos e críticas acadêmicas. Mas, em si mesma, a escolha por esses debates revela mais sobre a época atual do que a simples discussão sobre a autonomia artística e a exploração dos trabalhadores. Ela reflete essa fase do capitalismo que, sem cessar de explorar os recursos naturais e finitos, se volta também para o pensamento, a imaginação e o afeto. Por isso, a discussão não se esgota em um plano de governo ou em uma estratégica política, mas tende a persistir enquanto os elementos imateriais forem tomados como fontes de riquezas. Também por este motivo, é preciso aprofundar as pesquisas sobre o 137 assunto. A tradição dos Estudos Culturais abriu o caminho para que os pesquisadores se voltassem para a cultura em seu sentido mais amplo, presente no dia a dia, iluminando as obras nos teatros e museus e também a produção midiática, o fazer artístico dos centros e das periferias das pequenas e das grandes cidades, com suas lutas sociais e políticas. Esta área de conhecimento, com toda a sua experiência, migrou em grande parte para as análises sobre a economia criativa e as indústrias culturais. Mas há outras direções que podem ser percorridas, e as pesquisas sobre a biopolítica e o biopoder certamente contribuem para o estudo deste tema. Como mostram Negri, Hardt e Lazzarato, cada um com suas especificidades, há uma potência da vida e da criação, que pode escapar, de alguma forma, às tentativas de apropriação e expandir a si mesma por meio da cooperação entre as pessoas. Porém, não é possível ignorar os avanços do capitalismo em seu formato neoliberal, que não cessa de lançar enunciados que valorizam noções como fluidez nas identificações e flexibilidade nas relações empregatícias, mas também ressaltam a aptidão para assumir riscos, a autonomia e a iniciativa. É neste limiar entre a necessidade de tornar-se um empresário de si mesmo e a vontade de desenvolver suas obras que os artistas trabalham atualmente. É um equilíbrio muitas vezes delicado, que altera a dinâmica do ambiente cultural. Na tentativa de atingi-lo, os eles lançam mão dos recursos econômicos, do engajamento político e das redes. Quando se busca capturar a energia da criação, a multiplicidade também emerge com toda a sua força. E, de fato, como aponta Canclini (2012), diversas vozes se elevam no terreno artístico, com acordos e desacordos, o que gera relações complexas entre as propostas estéticas, as questões políticas e a economia, levando a discussões que vão do mercado de obras de alto valor ao subsídio para artistas emergentes. Na prática, há o risco das correntes artísticas se fecharem em seus próprios circuitos de produção, deixando de lado partes importantes dessa cadeia, como a formação de público e a educação. Também é necessário evitar que, em meio às inúmeras correntes artísticas e à diversidade de interesses, a disputa por atenção leve os grupos de artistas a girarem em torno do próprio ciclo de financiamentos públicos ou privados, sem pensar efetivamente em um modelo que se sustente por um período mais longo. Mas não há um modelo, tampouco um caminho já traçado. Às vezes, é preciso desviar o olhar dos grandes eventos midiáticos e ver o que se passa nas 138 brechas: em uma peça encenada em um pequeno teatro, uma apresentação musical realizada na rua, uma exposição em uma galeria menos conhecida… As linguagens podem se renovar nesses pequenos acontecimentos. Voltando às redes, quando isso ocorre, os laços ou nós se encarregam de transmitir a novidade, gerar novos signos e expandir a criação. Então, também é preciso garantir que as diversas vozes convivam, o que nem sempre ocorre em harmonia, de forma a contribuir para o pleno desenvolvimento dessa potência humana que é a capacidade de criar. 139 ADENDO – PESQUISA DE CAMPO As artes deixaram de ser vistas como uma atividade marginal para a política e a economia, e a cultura passou a ser um campo de interesses na atualidade, o que é visível nas discussões sobre a economia criativa ou a economia da cultura. Os artistas passaram a ser vistos como profissionais ou empreendedores, embora as condições de trabalho sejam muitas vezes precárias ou as exigências da linguagem empresarial não sejam acessíveis a todos. Mas como os próprios artistas veem seu trabalho neste contexto? Qual seu papel na sociedade? Como eles se relacionam com a economia e a política? Como eles usam as redes sociais como estratégia para divulgar suas obras e obter recursos humanos e financeiros? Para sondar essas questões, foram realizadas duas pesquisas. A primeira, quantitativa, foi lançada pela rede social Facebook, no período de 15 a 26 de novembro de 2013 e 134 pessoas responderam ao questionário. Elas tinham idades variadas (Gráfico 7), sendo que a maior parte (37%) tinha entre 25 e 35 anos. Gráfico 7: Idade das pessoas que responderam a pesquisa pelo Facebook. 32% 23% 20% 14% 11% Até 25 anos De 25 a 35 anos De 35 a 45 anos De 45 a 55 anos Mais de 55 anos Das pessoas que responderam a pesquisa, 33% (44 pessoas) disseram ser artistas ou produtores culturais. As outras foram consideradas público em geral. O questionário era composto por 18 perguntas, das quais seis eram direcionadas a todos. As demais, no entanto, eram voltadas somente aos artistas e produtores culturais. Os profissionais que responderam a pesquisa trabalham com gêneros variados, como mostra o gráfico 8. 140 Gráfico 8: Linguagens artísticas com que trabalham as pessoas que responderam a pesquisa pelo Facebook. 45% 43% 36% 34% 18% 11% 5% 5% 2% 2% 2% 2% 2% A segunda pesquisa, qualitativa, foi realizada com sete artistas, que trabalham em diferentes linguagens: artes visuais, música, dança e teatro. Eles foram convidados a falar livremente sobre os seguintes temas: o papel da arte na sociedade atual, seu trabalho cotidiano como artista, a relação entre arte e economia e o uso das redes sociais na produção e na difusão das obras. Os entrevistados foram: Ângelo Fernandes – é Professor-Doutor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Também é regente do Madrigal Musicanto de Itajubá (MG) e do Coro Contemporâneo de Campinas (SP). Elias Zeminoi – é bacharel em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo (1989). Trabalha como artista visual, restaurador e professor de pintura e desenho. Esther Góes – é atriz e diretora de teatro, formada em 1969 pela Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo – USP. Atualmente, trabalha em televisão, mas também dirige e atua no teatro com sua Companhia Ensaio Geral. Lenita Ponce – é atriz e produtora cultural. Trabalha com a Companhia Teatro Cru, formada no curso de Artes do Corpo, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. 141 Luís Arrieta – é coreógrafo e bailarino argentino. Chegou ao Brasil em 1974 para integrar o Ballet Stagium. Ocupou o posto de diretor artístico do Balé da Cidade de São Paulo e foi um dos fundadores do Elo Ballet de Câmara Contemporâneo, de Belo Horizonte. Mauro Martorelli – é cenógrafo, designer e iluminador. Foi o responsável técnico da Funarte SP, mas também atua em companhias de teatro e realiza trabalhos como profissional autônomo. Umberto Magnani – é ator, formado pela Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo – USP, em 1967. Trabalha no teatro e na televisão. Foi funcionário da Representação Regional da Funarte em São Paulo. Os principais resultados das duas pesquisas serão apresentados a seguir. 43 Uma primeira análise das redes buscará traçar um cenário para o circuito artístico emergente. Em seguida, a proposta é mostrar como os artistas entendem sua atividade e qual seu trabalho no dia a dia, como eles se relacionam com a política e a economia, como divulgam suas obras e qual o papel das redes sociais. A pesquisa apresenta uma margem de erro, principalmente por ter sido realizada a partir da rede de contatos da própria autora, expandida para a rede social da Representação Regional da Funarte Sul/Sudeste, localizada em São Paulo. Assim, os dados apresentam apenas uma primeira leitura do cenário e não podem ser generalizados. 43 142 O DIA A DIA DO TRABALHO ARTÍSTICO Um cenário múltiplo para as artes Uma análise das redes a partir dos dados da pesquisa quantitativa revelou três grupos que convivem no cenário artístico atual (Gráfico 9). Gráfico 9: Redes formadas pelos artistas que responderam a pesquisa pelo Facebook. Os artistas do primeiro grupo (azul escuro) são a maioria (52%). Eles têm entre 25 e 45 anos e trabalham com música, fotografia, produção cultural, cinema e vídeo arte. Normalmente, eles participam de coletivos e trabalham em mais de um projeto ao mesmo tempo. Eles também usam redes sociais, como Facebook, Twitter e MySpace, para trocar informações sobre suas obras. Esses sites são vistos, portanto, como ferramenta de trabalho. Por meio deles, artistas e produtores 143 convidam e são convidados a integrar novos projetos. Além disso, as redes são usadas como forma de arrecadar verba, por meio da captação de recursos ou de financiamentos coletivos. Para as pessoas que compõem esse grupo, as artes são essencialmente um trabalho em rede, e os meios de comunicação digitais são usados como suporte para sua prática profissional. O segundo grupo (azul claro) é composto tanto por pessoas com menos de 25 anos quanto com mais de 55. Elas representam aproximadamente 25% do total. Os artistas trabalham principalmente com artes visuais e literatura e preferem ser informados sobre atividades artísticas por anúncios de televisão, rádio, jornais e revistas. Eles também consultam guias culturais e visitam sites de museus, teatros e galerias para obter informações sobre espetáculos, shows, exposições de arte, entre outros. Para decidir sobre as atividades que irão frequentar, eles consideram críticas e publicidades veiculadas pelos meios de comunicação de massa e também levam em conta o artista ou grupo, assim como a linguagem que será apresentada. Normalmente, eles assistem a trabalhos de artistas que já conhecem e preferem comparecer a atividades habituais. As opiniões de seus amigos e de sua família também são consultadas com frequência. No terceiro grupo (verde), os artistas (23% dos que responderam a pesquisa) têm idade entre 45 e 55 anos e trabalham com teatro, dança, audiovisual, circo, televisão e artes digitais. Eles frequentam diferentes linguagens artísticas. Para decidir entre as diversas opções, consideram sugestões de amigos e também informações difundidas em redes sociais. Eles ainda levam em conta o lugar em que as atividades irão ocorrer, ou seja, preferem os espaços culturais mais conhecidos ou aqueles que já costumam frequentar. Esses três grupos se misturam no dia a dia (gráfico 10). Em alguns domínios, a imagem romântica de algo sem finalidade prática persiste. Somam-se a ela propostas de revelar a beleza em atividades cotidianas ou de criar novas realidades, contribuindo para a resistência às diversas formas de dominação. Além disso, a figura do gênio individual cede lugar à criação coletiva. Embora o principal objetivo das artes não seja o retorno financeiro, as questões econômicas e políticas fazem parte do trabalho dos artistas, uma vez que eles devem se envolver na captação de recursos públicos ou privados. As redes sociais são muito usadas para difundir as obras e para articular os profissionais, mas os entrevistados têm uma visão crítica 144 sobre essas ferramentas, que, para eles, não substituem o contato pessoal. Esses resultados serão apresentados detalhadamente a seguir. Gráfico 10: Redes formadas pelos artistas que responderam a pesquisa pelo Facebook. Um trabalho especial Apesar das pressões políticas e econômicas e da existência de obras de arte predominantemente comerciais, a imagem que se afirmou no século XVIII – um dom ou uma missão – resiste. Os artistas entrevistados se veem como alguém que possui um trabalho "especial", de alguma maneira diferente das outras atividades profissionais: Eu sou aquele rapaz que tocou na igreja. Então, as pessoas sabem: “ele fez a diferença porque ele tocava na missa”, e muita gente foi assistir, ou “ele toca nos casamentos” (...). É quando eu me sinto mais diferente. (...). Eu não sei 145 se é porque é cidade do interior ou porque eu conheço muita gente, eu me sinto especial, não melhor ou pior, mas alguém que faz algo especial, que não é uma profissão tão comum quanto a profissão de um monte de gente. (Ângelo Fernandes, professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp) (O artista) é o que já falava Shakespeare, é o espelho da sociedade. E a gente tem que ser mesmo. É um dom que a gente tem, que se torna uma espécie até de missão, mas sem aquele tipo claro de missão de fanatismo, mas de estar atento sempre, porque muitos de nós somos conhecidos, e às vezes uma entrevista da gente, uma coisa que se fala ganha outro tipo de dimensão. (Umberto Magnani, ator) A ideia kantiana de que a arte não tem utilidade prática também persiste para alguns profissionais. Nesses casos, seu papel é estimular a "sensibilidade". Mas o fato de a arte não "servir" necessariamente a algo externo ou a outras áreas do conhecimento (política, economia, filosofia etc.) não diminui sua importância, tampouco faz dela um campo de "desinteresse". Pelo contrário, há uma dimensão criadora que é vista como fundamental. Eu não sei se a arte tem um papel, uma função. Se você me perguntasse, por exemplo, para que serve a arte, usando a palavra servir, eu diria que ela não serve, ela não serve a nada, para nada e a ninguém. E eu acho que um pouco a função dela é isso, é não servir. Eu sinto como uma possibilidade de estimularmos outros meios de percepção da vida, da realidade, que não aqueles que usamos o tempo inteiro, principalmente que não aqueles do intelecto. (Luis Arrieta, bailarino) (...) Penso que é muito importante exercermos e praticarmos e desenvolvermos as outras maneiras de percepção para termos uma vida mais completa. Os trabalhos artísticos, de teatro, de dança, de música, de tudo isso, parece que eles conseguem furar esses bloqueios, essas muralhas do intelecto, para estimular esses outros centros (…). Muitas vezes, tenho me questionado se comer, dormir ou ter coisas é um fim. Existe uma vida mais plena dentro de nós (...). Pode ser que aqui já seja o paraíso, e pode ser que aqui já seja o inferno, aqui já é o infinito. E, então, com as atividades chamadas de artísticas, de alguma maneira, nós estamos mexendo com isso. (Luis Arrieta, bailarino) A propósito, a imaterialidade da arte aparece justamente como uma característica capaz de ultrapassar as barreiras conceituais entre os planos sensível e intelectual. É principalmente essa tendência, e não tanto os ganhos materiais, que alimenta a vontade de trabalhar dos artistas: 146 Ela (a arte) anda por outros lados, incalculáveis, inimagináveis e religiosos. Religiosos, não no sentido de dogma, de igreja. Religiosa no sentido de religar, religar algo que está desligado (...). Ela é de alguma maneira uma ponte entre planos diferentes. Tudo isso que estou dizendo poderia fazer com que a arte pareça algo tão impalpável (...). Possivelmente a palavra seja nada, só que com outra percepção da palavra nada. E então ela é de uma importância primeira, eu acho. Eu acho que é a primeira função da vida... (Luís Arrieta, bailarino) Por exemplo, no teatro, você vai fazer o Otelo, de Shakespeare, você fica ali uma hora e meia ou duas horas com aquele ciúme doentio, entende? Por quê? (...) O Shakespeare não escreveu sobre um homem ciumento, ele escreveu sobre o ciúme, que todo mundo sente (...). Então, esse ponto de vista eu não deixo nunca e já está automático, aquelas perguntas sempre: o que eu vou fazer, por que eu vou fazer, para quem eu vou fazer (...). O que eu estou fazendo aqui? Por que eu estou ciumento, morrendo de ciúmes durante duas horas? Eu não tenho nada com isso... Vou carregar o peso nas costas, é uma coisa meio cristã até, meio Cristo: morre no palco para salvar as almas, aquela meia dúzia ou cem ou duzentas que estão assistindo (...). Tem que ser bem entendido isso, compreendido. Mas é meio por aí. Tem uma coisa meio religiosa no trabalho do artista. Religiosa no sentido da religiosidade interior, não necessariamente de uma ou outra religião. (Umberto Magnani, ator) As noções da vanguarda, de enxergar além dos fatos do cotidiano, também estão presentes. Além disso, os entrevistados ressaltam sua função comunicativa: Eu acho que eu tenho esse papel de levar o bem também para as pessoas, de levar o belo, porque essa é uma das funções da arte, a função de comunicar, a função da comunicação. Nem sempre a gente mostra só o belo, a gente mostra coisas feias também através da arte, para que as pessoas possam ter as suas formas de questionar. Existem inúmeras obras corais, por exemplo, que foram compostas no período entreguerras e são poesias muito fortes, nem sempre elas são bonitas, mas elas de alguma forma mexem com a emoção das pessoas. Justamente a arte do século XX, a arte de vanguarda levanta questionamentos. (Ângelo Fernandes, professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp) Eu acho que não muda muito o papel de hoje e de alguns anos atrás, algumas décadas. (...) Tentar sentir ou tentar ver algo além do que os fatos do dia a dia mostram, através do papel sensível do artista. Eu acho que ele ainda tem aquela função de captar, de sentir melhor o mundo ao redor, tanto o mundo pequeno, micro, quanto o macro, desde as questões normais, comuns, do dia a dia do ser humano, até questões mais amplas, sociais, políticas. (…) Então, de captar o que está no ar e que, por razões diversas, as pessoas no geral não captam, não por serem menos ou mais, mas por terem outras funções. (Elias Zeminoi, artista visual) 147 A arte tem, portanto, um papel social, não no sentido de resolver problemas de ordem política ou econômica, mas de proporcionar novas visões de mundo, instigar o questionamento, o debate, criar brechas e apontar para novas realidades possíveis: (...) Há um segmento que eu acho que para mim é o mais importante, que é o "cara" que procura aprofundar as questões da humanidade através da arte. Para mim, esse cara é o artista por excelência, esse cara tem uma noção da dimensão da arte, esse cara, para mim, representa alguma coisa. Ele permanece, ele é o que sedimenta, o que faz acontecer, de fato, a arte e o que eu chamo de artista, para quem o exibicionismo não preenche, nem mesmo o virtuosismo preenche, saber fazer bem não é o suficiente. Ser aceito fazendo bem também não é o suficiente. (Esther Góes, atriz) (...) Como sempre, o artista deve refletir realidades e criar novas realidades, propor a criação de novas realidades, e o mundo é movido assim. Lá atrás, já tinha sido criada a viagem interplanetária, submarino, um monte de coisas, através da literatura, depois do cinema. Então, já acontece. Então, não é totalmente loucura do artista isso. Mas ele vive do sonho, ele vive pensando em modificações, propostas de modificações. (Umberto Magnani, ator) Na verdade, o papel do artista sempre foi de instigar, de provocar, não é nunca de tentar dar uma resposta, isso existe, mas não é uma obrigação da arte, mas sim a de instigar, de quebrar paradigmas, de quebrar fronteiras, de avançar, de dar um passo à frente. É mais a questão de oferecer ar para quem está afogado dentro da pressão do cotidiano. A minha resposta como artista é essa frente à sociedade. É de procurar achar caminhos para a poesia, para o sonho, tentar dar alguma resposta com relação a isso. Achar que ainda é possível mudar. (Mauro Martorelli, cenógrafo) Se eu consigo colocar pelo menos um espectador por sessão para pensar, para mim é uma vitória. Nós não temos nenhum direito a nenhum tipo de alienação, de preconceito, de nada. Estou sempre aberto ao diálogo no palco ou fora dele. (Umberto Magnani, ator) O cotidiano dos artistas Embora tenham um trabalho "especial", os artistas não se veem como pessoas à margem da sociedade. É tão natural que as pessoas precisem de arte (...) que eu me sinto totalmente integrado e não me sinto uma pessoa à parte (...). Eu convivo com muitos músicos e muitos outros artistas. A gente (Unicamp) tem um instituto de artes 148 onde tem gente da dança, do teatro. Eu me sinto bem (...), um trabalhador comum, do dia a dia, que tem o seu fazer (...). Eu me sinto muito integrado, como uma pessoa que não está à margem, como tantos artistas já se sentiram. (Ângelo Fernandes, professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp). Deixou de ser só – não sei se algum dia já foi – uma coisa de ter um grande romantismo por trás para ser uma coisa mesmo de quase guerrilha, uma coisa de ação mesmo, entre o que você vislumbra e o que você de fato consegue fazer. (Lenita Ponce, atriz). Acho que, não só hoje, mas em todo momento, em toda a história, você ter a opção de seguir uma carreira artística, você trabalhar com arte, sempre foi difícil. Nunca é fácil. Primeiro porque parte de uma necessidade (…) de se expressar na sociedade, de se comunicar com o tempo que você está vivendo, você se tornar pertinente a esta sociedade, a este tempo em que você está trabalhando. (Mauro Martorelli, cenógrafo). Na maior parte das vezes, as obras são criadas a partir das relações com outras pessoas. As novas ideias em arte nascem principalmente da escuta e das conversas: Eu encaro que (o trabalho artístico) é uma coisa quase que sagrada mesmo. O que não quer dizer que sejamos excepcionais e fora, pelo contrário, quanto mais a gente estiver atento e convivendo com qualquer tipo de pessoa, desde o vizinho até onde você estiver, numa rodoviária, num aeroporto, ter essa antena ligada. E não é assim: “vou ter essa antena ligada”. Ela é ligada naturalmente. (...) Tem até uma brincadeira que o ator é especializado em assuntos gerais, porque, no meu caso, por exemplo, mais de 100 papéis que eu já fiz. Então, são 100 realidades que a gente vai pesquisar, estudar. E mesmo assim, um pouquinho e a gente acha que já conhece tudo. Mas também passa a não ser um ignorante naquilo. E no que aquilo tem relação com outras coisas. (Umberto Magnani, ator) No tempo do boteco sadio, de uma boêmia sadia, de que o Plínio Marcos falava, a gente usava para criar, para produzir. Claro que nem 1% desses projetos, de jogar conversa fora, deu certo, continuou. Mas, de repente, um, dois, três, quatro ou cinco anos depois, aconteceu com alguém, que nem estava lá. Então, era um processo criativo, que não significava sair e produzir e tal. (Umberto Magnani, ator) A imagem da criação como um dom natural também é substituída por aquela que emerge do trabalho diário: Tem uma coisa que eu sempre coloco nas minhas aulas e que é o seguinte: aquela visão romântica do artista, boêmia, que a gente tem do século XIX, do 149 Romantismo, ou seja, aquela história do pintor que passa a noite bebendo, em farras, jogando, festa (…), isso é uma coisa que não bate com o real de forma alguma. Isso é bom para fazer filme, é bacana. Se a pessoa quer ser profissional nas artes, como eu sou ou tento ser, este tipo de postura é totalmente fora de questão (…). Eu sou muito calvinista em relação ao meu dia a dia. Eu tenho que ter hora certa para começar, terminar, um período certo, uma carga horária. Eu sou muito metódico para isso. (Elias Zeminoi, artista visual) Todo dia, eu venho aqui para o ateliê, trabalhar até na criação da ideia. Eu acho que é bom o trabalho de esforço mental. Tem momentos em que eu tenho isso, em várias obras minhas, na parte da criação (...). Eu fiquei dias com problema conceitual para resolver e, num final de semana, num bar, veio essa ideia, só que veio porque eu já tinha ficado três, quatro dias pensando. Não veio do nada. Foi fruto de um trabalho que houve antes (...). Às vezes eu tenho gente que faz aula comigo, que pretende seguir carreira, fazer faculdade, eu sempre coloco isso: disciplina. Se você quiser tentar trabalhar com arte de maneira profissional, disciplina, eu creio nisso. (Elias Zeminoi, artista visual) Há sempre uma troca de ideias e de interesses, tanto estéticos quanto financeiros ou mercadológicos. No teatro, uma arte coletiva por natureza, essas questões são mais evidentes: Dentro do aspecto da criação, a gente tem a liberdade, a gente tem o desejo, só que a gente fica atrelado a servir o artista, a servir aquela companhia, a servir ao dramaturgo, a servir ao texto, a servir à palavra, a servir ao ator. Isso não é ruim. (…) É um parâmetro para nortear o teu trabalho. Porque você trabalha com uma arte que é um trabalho de apoio, de base, de estrutura para aquele espetáculo, para aquela companhia de teatro, para aquele ator, para aquele bailarino, para que todo esse trabalho possa ser realizado. Esse eu acho que é o meu papel no dia a dia: minha arte (cenografia) é servir a outros artistas, é servir a uma exposição, a uma linguagem, servir à construção de outro ser, outro possível, outra poesia. (Mauro Martorelli, cenógrafo). Principalmente em teatro, a gente é mesmo agente de nós mesmos. Claro que tem uma direção, tem tudo, mas é uma visão das coisas não fechada. Você sabe que tal peça trata de tal coisa e, mesmo com a direção e mesmo dentro do que o diretor quer, que o autor escreveu e tal, a partir de um determinado momento (que eu não saberia dizer qual é), depois de um entendimento, a gente é dono da interpretação da gente. (...) O Paulo Autran falava que teatro é do ator, cinema é do diretor e televisão é do patrocinador. Mas mesmo dentro disso, sempre que a gente pode, eu, pelo menos, procuro passar alguma coisa assim humanista, social. (Umberto Magnani, ator). Apesar do trabalho coletivo, a imagem de uma indústria, em que cada empregado exerce uma função, também não é verdadeira. Em geral, os artistas se 150 envolvem em todo o processo da obra, da criação à produção ou divulgação, seja por necessidade profissional, seja como forma de garantir a coerência do resultado: As pessoas são muito visuais hoje. Então, para elas escutarem música, parece que elas têm que ver alguma coisa. E, através da ópera, eu consigo trabalhar isso. É um conhecimento a mais que eu tive que adquirir porque eu tenho que trabalhar o corpo do meu aluno, eu tenho que trabalhar a cena, eu tenho que entregar alguma coisa alinhavada para o diretor cênico, eu não posso entregar tudo cru, mesmo que ele mude tudo depois (...). Então eu preciso ter essa visão, esse olhar (...). (Ângelo Fernandes, professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp). Você começa interpretando, daqui a pouco você também está produzindo e depois que você produz, você começa a traduzir, você começa a dirigir, você começa a escrever, você começa a trabalhar tudo. Daqui a pouco você está tendo um curso, aí você começa a imaginar uma cenografia e depois você começa a partilhar coisas... (…) O seu trabalho vai se completando porque, às vezes, você está com toda uma lógica de um personagem, mas você pode chegar a um lugar e ver que o cenário está errado. Ou você pode chegar lá e ver que o figurino é muito artificial, que ele não pega fundo, que não vai onde deveria ir. Então, você tem toda uma coisa aí que está toda interligada que nem o corpo humano. Uma obra tem uma lógica, uma organicidade "filha da mãe". (Esther Góes, atriz). Redes e laços: entre muitos projetos e diversas linguagens A pesquisa quantitativa confirma as falas dos artistas entrevistados: 89% dos que responderam disseram trabalhar em mais de um projeto ao mesmo tempo (gráfico 11) e 75% afirmaram participar de projetos coletivos de artes (gráfico 12): Gráfico 11: Porcentagem de artistas que trabalham em mais de um projeto ao mesmo tempo. 7% 4% Trabalham em mais de um projeto ao mesmo tempo Trabalham em apenas um projeto por vez Não responderam 89% 151 Gráfico 12: Porcentagem de artistas que participam de projetos coletivos. 25% Participam de projetos coletivos Não participam de projetos coletivos 75% No entanto, 77% desses projetos coletivos costumam contar quase sempre com as mesmas pessoas (gráfico 13), o que configura os laços fortes: há relações afetivas intensas e um grande investimento de tempo entre os integrantes. Por isso, os grupos são bastante coesos e, algumas vezes, centrados em seus próprios interesses estéticos. Também há pontes entre os diversos grupos (laços fracos) e elas são feitas, em grande medida, pelas misturas entre os diferentes gêneros artísticos: 45% dos artistas responderam que trabalham com mais de uma linguagem, e 93% disseram que costumam frequentar atividades culturais que apresentam linguagens diferentes daquelas com que trabalham (gráficos 14 e 15). Gráfico 13: Quantidade de artistas que trabalham em projetos distintos, mas com pessoas em comum. 7% Trabalhos contam com pessoas em comum 16% Trabalhos não contam com pessoas em comum Não responderam 77% 152 Gráfico 14: Quantidade de artistas que trabalham com mais de uma linguagem. 45% Trabalham com mais de uma linguagem Trabalham com apenas uma linguagem 55% Gráfico 15: Quantidade de artistas que costumam frequentar atividades com linguagens diferentes daquelas com que trabalham. 7% Costumam frequentar atividades com linguagens diferentes daquelas com que trabalham Não costumam frequentar atividades com linguagens diferentes daquelas com que trabalham 93% Além disso, muitos projetos envolvem diferentes gêneros artísticos: 70% dos artistas que responderam a pesquisa costumam fazer parte de trabalhos multidisciplinares, apresentando, por exemplo, atividades de teatro em um grupo de dança (gráfico 16). 153 Gráfico 16: Quantidade de artistas que costumam participar de projetos com diferentes linguagens. Costumam participar de projetos com linguagens diferentes entre si 30% 70% Não costumam participar de projetos com linguagens diferentes entre si O gráfico 17 ilustra, por fim, como os artistas transitam entre as diferentes linguagens, formando redes também entre elas. Gráfico 17: Rede das diferentes linguagens com as quais os artistas trabalham. 154 A TAL ECONOMIA Política e economia na visão artística Como visto, os artistas entrevistados ressaltam o valor estético e social como propósito de seu trabalho. Os ganhos financeiros estão, para eles, em segundo plano, e ainda há, em sua na visão, certa incompatibilidade entre os objetivos estéticos e econômicos. Por outro lado, quando a cultura é mais valorizada pelo discurso político e passa a ser vista como fonte de empregos e de renda, eles admitem que suas atividades também têm um valor financeiro. Além disso, no dia a dia, eles se deparam com questões profissionais, como a remuneração ou a contratação de outros artistas, a busca de patrocínio, a escolha de locais para exposição ou apresentação e os pagamentos de direitos autorais. São essas atividades que movimentam a economia das artes. Por isso, os artistas procuram se aproximar do assunto, embora ainda falte conhecimento: Às vezes é até um palavrão falar sobre economia, falar sobre dinheiro com relação às artes. (...) A arte está muito além dessa questão de economia (...). Tem trabalhos que a gente faz pela paixão e "dane-se" o dinheiro. Porque você tem essa necessidade, que é a necessidade de servir a uma expressão, servir a uma linguagem. Como artista, eu não me vejo atrelado a uma questão propriamente econômica. Mas claro que tem o valor do meu trabalho, tem o valor do meu serviço, você tem toda essa relação (...). Tem pessoas que veem a questão econômica como pecado dentro da arte (…) e eu acho que não. Todo trabalho tem seu valor, seja ele financeiro, seja ele de aprimoramento, de conhecimento. (Mauro Martorelli, cenógrafo) Para mim, a prioridade atual é entender da tal da economia porque eu acho que a gente, eu, pelo menos, ainda fico muito na mão de gente que "manja" muito mais disso do que eu. E talvez só por desconhecimento mesmo, ignorância no sentido de desconhecer algumas coisas. Eu acho que a gente acaba ficando muito alheia, muito na nossa coisa de "fazer arte é outra coisa" e aí você se perde nisso. Se perde para fazer essa ponte, porque eu acho que uma coisa precisa da outra, que precisa da outra. Então, o social precisa do artístico, o artístico precisa do econômico e as coisas estão misturadas, não adianta mais a gente querer que seja cindido, é tudo meio líquido, meio bagunçado... (Lenita Ponce, atriz) 155 Os entrevistados também percebem que a prática artística tem se disseminado por grande parte da população. E, em geral, eles estão otimistas quanto à situação, uma vez que há mais visibilidade profissional e um maior interesse do governo sobre as questões artísticas e culturais. Mas ainda não é ideal. É preciso articular a política pública à vontade e à iniciativa dos artistas para que as atividades possam se realizar. Eu vivo isso desde (19)87, que eu trabalho com arte. (…) Eu percebi que houve uma mudança no sentido até de respeito profissional (...). Existe mais respeito ou mais consideração pelo papel nosso, do artista, nessa nossa sociedade brasileira. (Elias Zeminoi, artista visual). Acho que a gente está num momento em que o Estado está... Tenho até medo de falar isso, mas acho que é verdade (…). A gente está em um momento em que os horizontes estão se abrindo mais para as artes e para a cultura. Eu acho que a gente de fato tem um momento privilegiado no Brasil, talvez em comparação com outros momentos. (Lenita Ponce, atriz) Hoje tem o caso de São Paulo, a lei de fomento, que tem colaborado e muito para a qualidade, porque aumentou a quantidade e isso é motivo de qualidade (...). Esses outros projetos da Funarte, que, através de editais, cede espaço, cede patrocínio, da Secretaria de Cultura do Estado e de outros estados também são a mesma coisa, existem leis locais... Então está havendo uma procura por uma preocupação maior do poder público com a arte, mas chega uma hora que esbarra numa falta de verba. Até que aumentou bastante, percentualmente, o orçamento. Mas está muito longe do perto do ideal. Eu sou muito otimista com relação a isso. Às vezes tenho meus momentos de pessimismo, mas lidamos com seres humanos, somos seres humanos e não lidamos com ciência exata (…). A gente também não desiste não, a gente é "chato". (Umberto Magnani, ator). Apesar das dificuldades, segundo eles, o momento atual favorece aqueles que desejam ser artistas profissionais, ou seja, garantir seus ganhos financeiros por meio da prática artística. Isso ocorre porque a arte passa a ser considerada também do ponto de vista econômico. Eu sou aquele tipo que conseguiu viver de arte (...). Meu pai precisou me ajudar muito, minha mãe precisou me ajudar muito, no começo, mas eu consegui, me encontrando nesta coisa de dar aulas e regendo coros (...). (Ângelo Fernandes, professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp) 156 (...) O Brasil tem alguns lugares muito bons (...). Só na cidade de São Paulo, você tem o Coral Paulistano, com quarenta vagas, o Coral Lírico do Teatro Municipal, com cem vagas, e o Coro da Osesp com oitenta vagas. No Paulistano e no Lírico, um cantor ganha quase R$ 7 mil por mês. Na Osesp, ele ganha um pouco menos, mas ele tem benefícios muito grandes (...).Você tem as bandas sinfônicas, que empregam também muitos músicos. Você tem os corpos de dança, que são vários (...). No Rio, tem quase tanto quanto em São Paulo. Belo Horizonte tem o Coro do Palácio das Artes, hoje com sessenta ou setenta vagas. (...). Brasília tem muitas possibilidades; o Teatro Amazonas de Manaus também oferece emprego. (Ângelo Fernandes, professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp) Eu sou um caso talvez raro porque tudo que eu faço está ligado com a arte: a minha produção, as aulas, a parte de restauração. Então, eu posso dizer que eu vivo da arte, eu vivo da minha obra ligada à arte. Não é fácil... Mas dá para ser feito assim. (Elias Zeminoi, artista visual) No geral, hoje você tem um custo menor do que tinha antes e uma maior variedade. Isso que eu falo é pincel, tinta. Eu lembro muito bem, nos anos (19)80, (...) uma tela de 1m por 1m era uma fábula, tanto é que, nessa época, eu comecei a fazê-las em casa (…). Hoje não, hoje você tem preços mais acessíveis e uma boa variedade em vários níveis (...). A questão de valores de obras também. Você vê qualquer site de artes ou revistas, aquela parte de mercado, bolsa de artes, como muitos nomes alcançam cifras fantásticas, em termos de leilão e venda de obras. Isso também puxa o resto do mercado, ou seja, tornou-se mais possível você conseguir viver através da venda das obras porque o mercado ficou maior. Isso tem a ver com a questão financeira do país (…). Então, deu uma chance para as pessoas terem contato com arte, não só produzirem, como consumirem também (...). Não ficou mais fácil, mas ficou melhor do que era antes, porque tem mais espaços para você mostrar suas obras. Além dos salões, vários espaços próprios, galerias de arte, espaços culturais, que bem ou mal dão um pouco mais de chance de mostrar as obras. (Elias Zeminoi, artista visual) Não é somente o mercado que movimenta a economia das artes, há também os mecanismos de financiamento público e privado. Os artistas distinguem essas duas instâncias. Segundo eles, as obras mais experimentais devem ser financiadas diretamente pelo Estado. Já aquelas com propósito comercial podem ser patrocinadas pelas empresas, casos em que a escolha é feita pelos departamentos de marketing. Também é papel do Estado difundir as artes para uma parcela maior da população. (...) existem duas formas de economia do teatro hoje em dia. Uma atrelada às leis, outra não. (...). É um duplo papel. No que concerne às leis de incentivo, o Estado tem procurado cumprir isso. Mas há outra parte que não se refere a 157 isso, que se refere ao trabalho dos artistas que preferiram não vincular (a marcas comerciais), até porque muitas obras não terão a proteção de nenhum departamento de marketing, ou dificilmente terão (...). E essa proteção, ela é importantíssima. Essas são obras que estarão no mercado de outra maneira (...). Eu acho que o Estado ainda não enxergou direito a importância disso, de proteger esta necessidade daquilo que está sendo criado sem o objetivo direto do sucesso que cabe numa lógica mais mercantil (...) e que pode então disputar o seu espaço nas leis de incentivo... Aquelas que têm outra qualidade, elas têm que ter outra maneira de proteção. Isso eu acho que está faltando muito para nós. (Esther Góes, atriz) Eu não sou uma pessoa que acredita muito nessa coisa de usar a "grana" privada. (…) Posso ser romântica, mas eu acho que a saída está mais no público do que no privado. Porque eu acho que ainda tem a possibilidade da gente dizer que é nosso, que é do coletivo. Quando é privado, não tem mais essa possibilidade. Só é de quem pagou para ver. Eu acabei de voltar de fora do país e uma das sensações mais incríveis que eu tive... (…) A gente tentou entrar no Musée d’Orsay, em Paris, estava de graça e tinha uma fila gigantesca e eu perguntei para o guardinha "mas por que está esta fila?". E ele falou assim: "esta fila é porque é de graça e, quando é de graça, eu não sei quantas vezes os parisienses resolvem vir de novo". E me "deu uma coisa". (…) Não é só turista. Tem um monte de turista, lógico. Mas a própria cidade consome o seu museu. Isso é sonho aqui. Isso é um negócio para construir. Então, por isso que eu acho que está no público. (…) Eu quero ver a Funarte ou o Masp oferecendo coisas de graça e as pessoas indo. Tem às vezes, mas as pessoas não vão. Elas só vão começar a ir se a gente começar a trabalhar para que elas venham para dentro desses lugares. (Lenita Ponce, atriz) De uma forma ou de outra, os artistas precisam aprender a gerenciar seu trabalho. A propósito, há, segundo eles, uma lacuna na área administrativa, o que seria o papel do produtor ou agente cultural. Por isso, os próprios artistas precisam saber lidar com investidores e com as fontes de financiamento. Na área pública, eles devem entender a linguagem dos editais de ocupação de espaços culturais, os prêmios e as bolsas de pesquisa. É nesse sentido que eles passam a ser vistos em grande parte como "empreendedores". Nem sempre, no entanto, essas atividades são confortáveis. Eu acho assim: tem o espaço e tem o dinheiro... Fica uma lacuna entre o trabalho artístico e o administrativo em si da coisa. Muita gente fala: "Ah, tem os produtores". É supercomplexo ficar na mão de produtor. Aí você fala: "eu vou produzir". Daí você entra nesta lacuna que é exatamente a lacuna entre o artístico e o administrativo. (Lenita Ponce, atriz) 158 Eu acho que a gente de fato tem um momento privilegiado no Brasil, talvez em comparação com outros momentos. E acho que a gente usa muito pouco. Usa e ousa muito pouco. É lógico que a gente precisa aprender a produzir, aprender a administrar e a gente acha que não é o papel do artista. Mas eu acho que talvez seja porque o mundo está pedindo isso para todo mundo, por que o artista iria ficar de fora dessa? (...). Eu tento aprender como eu uso o subsídio, como eu uso o que eu tenho de ferramenta minha e do Estado para fazer acontecer. (Lenita Ponce, atriz) Para mim, hoje em dia, por exemplo, para fazer o teatro que eu quero fazer, eu não posso deixar de produzir. Para produzir, eu tenho que participar de um monte de coisas. Eu tenho que participar de uma política cultural, tenho que ir procurar condições, recursos. Então, a gente passa também a ser o que procura recursos para fazer aquilo. A gente vai cada vez ampliando mais o nosso espectro. (Esther Góes, atriz) Isso falta, produtor, agente, a pessoa que fala a linguagem do empresário e que fala a linguagem do artista. Ele transita bem por esses dois ambientes e ele sabe que aquele artista vai ser o ideal para aquele empresário que está procurando patrocinar alguma coisa daquele tipo (...). Ele (o artista) não sabe ser produtor, porque ele, às vezes, se coloca muito menor do que o outro. Na verdade, é uma troca. Ele (o patrocinador) vai descontar do imposto de renda dele. Para ele, também é vantajoso. E ele ainda vai investir na imagem institucional dele. Então ele também precisa do artista. (...) O que o artista muitas vezes não sabe é ser produtor. E ele tenta ser produtor porque não tem. E quando aparece um que se dá bem, rapidamente ele vai trabalhar para os grandes artistas. Então, aquele artista médio, aquele que está começando, às vezes, ele não tem acesso aos bons produtores. E o dinheiro acaba ficando concentrado em algumas companhias, em alguns lugares. (Ângelo Fernandes, professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp) Há, por fim, uma questão fundamental para que os artistas consigam produzir suas obras e se inserir no mercado de trabalho: os contatos pessoais. Sem eles, a economia das artes não se movimenta. Fazer a ponte entre os artistas e os patrocinadores, críticos, galeristas ou outros profissionais normalmente é função de agentes e de produtores culturais. Mas os próprios artistas também precisam se envolver diretamente nesse convívio social: Redes sociais? (…) Fundamental. (...). Não só na rede virtual, mas na parte física. Ou seja, participar de vernissages, exposições de arte, é por aí que vai. Você conhecer pessoas, ser conhecido, é fundamental. É lógico que não é só nessa área, em todas as áreas isso acontece, mas na área de artes, eu acho que é vida ou morte (...). Se você encarar a arte como uma paixão, um hobby (...), maravilha, espetacular, dar as obras para tios, tias, parentes. Agora, se a 159 pessoa escolhe o lado profissional, é morte certa. É necessário estabelecer contatos sociais (...). Criam-se panelas, é um termo que eu não gosto, e você só consegue penetrar se você conhecer alguém que lhe indique para um galerista ou para um crítico que o conhece, que foi seu amigo. (Elias Zeminoi, artista visual) Para o cantor de ópera que quer ser solista (é a minha realidade de formar os meus alunos), é mais difícil, primeiro porque é uma máfia, uma máfia de produtores. Então, se você não tem o seu agente, dificilmente você vai entrar no meio (...). Solistas, sejam instrumentistas ou cantores, precisam ter agentes, porque, senão, eles não ficam sabendo quando são as audições, eles nunca conseguem ter acesso, chegar aos diretores, aos grandes regentes, que vão escolher, por melhor que eles sejam (...). (Ângelo Fernandes, professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp) Os meios digitais como um recurso profissional A pesquisa quantitativa reforça a visão dos artistas entrevistados e acrescenta que as redes digitais também são usadas para convidar outros artistas e produtores para participar dos projetos: 64% dos que responderam a pesquisa já convidaram profissionais para trabalhar por meio de sites como Facebook, Twitter e MySpace. Entre as pessoas de 25 a 45 anos, a porcentagem chega a 89% (gráficos 18 e 19). Gráfico 18: Porcentagem de artistas que já convidaram, por meio de redes sociais, artistas ou outros profissionais para atuarem em projetos. Já convidaram, por meio de redes sociais, artistas ou outros profissionais para atuarem em projetos 36% 64% Nunca convidaram, por meio de redes sociais, artistas ou outros profissionais para atuarem em projetos 160 Gráfico 19: Porcentagem de artistas que já convidaram, por meio de redes sociais, artistas ou outros profissionais para atuarem em projetos, distribuídos por idade. 86% 89% 50% 40% 20% Até 25 anos De 25 a 35 anos De 35 a 45 anos De 45 a 55 anos Mais de 55 anos Os artistas também são convidados pelas redes digitais a participar de projetos: 70% já conseguiram algum trabalho por esse meio (gráficos 20 e 21). Vale ressaltar que, entre as pessoas de 25 a 35 anos, o valor é de 93%. Gráfico 20: Porcentagem de artistas que já foram convidados, por meio de redes sociais, para atuarem em projetos. Já foram convidados, por meio de redes sociais, a participar de projetos artísticos 30% 70% Nunca foram convidados, por meio de redes sociais, a participar de projetos artísticos 161 Gráfico 21: Porcentagem de artistas que já foram convidados, por meio de redes sociais, para atuarem em projetos, distribuídos por idade. 93% 78% 67% 50% 40% Até 25 anos De 25 a 35 anos De 35 a 45 anos De 45 a 55 anos Mais de 55 anos Apesar do fluxo de trabalho nas redes digitais ser alto, somente 14% dos artistas já obtiveram recursos financeiros por meio delas. Mas esse número é maior, e mais relevante, entre as pessoas de 25 a 45 anos – 22% (gráfico 22). Gráfico 22: Porcentagem de artistas que já obtiveram recursos financeiros por meio de redes sociais. 20% Até 25 anos 21% De 25 a 35 anos 22% De 35 a 45 anos 0% 0% De 45 a 55 anos Mais de 55 anos 162 A importância das conversas A divulgação das artes foi, por muito tempo, vinculada aos meios de comunicação de massa, principalmente à crítica especializada em jornais e revistas, mas este cenário está mudando, e um dos entrevistados aponta para a diminuição dos espaços destinados à arte nos jornais e ressalta o papel das "conversas" na divulgação. O grande problema é difundir artes, a não ser em conversas, porque os espaços de jornais estão cada vez menores para isso. A própria crítica, em todas as artes, ela continua existindo, graças a Deus, mas o espaço que eles dão no jornal é cada vez menor. E, de repente, ele tem que se virar em dez, doze laudas, para uma coisa que se levou três, quatro meses para ensaiar e que é apresentado em duas horas, em média. Então, é muito pouco, no sentido da orientação ao espectador leitor, mas é assim que é, até porque tem uma presença cada vez mais forte da televisão e eu tenho impressão (...) que as ideias contidas são as que menos influem para chamar o público para assistir. (Umberto Magnani, ator) As entrevistas também reforçam a importância das redes, presenciais e virtuais, para produção e divulgação das obras: Como se formam as redes entre as pessoas para elas produzirem arte? Primeiro, por afinidade, você tem que conhecer a pessoa, aí você se liga em determinada coisa escrita que tem muito a ver com o que você pensa, não só em arte (...). Hoje mesmo eu li uns quatro ou cinco (e-mails) falando de peças, de estreias, de um monte de coisas, convocando para reuniões, para debater tal assunto, sobre política cultural, isso eu recebo muito. Aí sim. Ela vai se tornar quase que um rádio, imbatível. (Umberto Magnani, ator) (...) Facebook, Twitter, eu faço uso, eu tenho uma página do meu estúdio no Facebook e uma página pessoal (…). Você põe obras, põe alguns textos, mostra, então, é outra maneira de você expor, de eu expor o que eu faço (...). No geral, é uma ferramenta que é útil, sim. Agora tem aquela questão, você pode fazer um mau uso ou um bom uso, como toda ferramenta. (Elias Zeminoi, artista visual) Apesar de usarem as redes digitais no dia a dia, os artistas entrevistados apresentam uma visão crítica sobre elas. Seu caráter "efêmero" é ressaltado. Segundo eles, as publicações alcançam grande número de pessoas, mas, ao mesmo tempo, os assuntos se dispersam rapidamente. Por um lado, essa agilidade 163 privilegia obras de caráter mais comercial. Por outro, gera uma "pressão" nos artistas por respostas cada vez mais rápidas. Eles também citam que há excesso de informações nas redes, o que dificulta a escolha e a decisão. Eu sei que cada um usa para uma coisa, mas normalmente é isso, uma autodivulgação ou uma divulgação de alguma coisa em que se acredita. Então, ela funciona como mídia, mas é muito efêmero, muito rápido. Hoje foi uma coisa, amanhã eu já esqueci o que foi no Facebook de ontem ou no Instagram de ontem. (Lenita Ponce, atriz) A rede é só papel de divulgação. Você pode divulgar na rede uma coisa lá, que dá o maior "pedal" porque as pessoas já estão recebendo aquilo, já estão vivendo aquilo, já gostam daquilo, é o que o mercado já está vendendo, "vai que vai". Então, é muito mais fácil vender a comédia, a coisa muito mais fácil, em qualquer lugar. (Esther Góes, atriz) A diferença que eu vejo entre o início da minha carreira e o que a gente vive hoje é o acesso à informação, o acesso à comunicação, (...) você ter respostas ao teu trabalho. Às vezes, levava meses, anos (...). E hoje a resposta é quase imediata, você produz aqui, pelos meios de comunicação, via rede social, via Facebook, você tem uma resposta ao seu trabalho quase que em tempo real. Se agradou, se não agradou, se tem alguma pertinência, se é bom para o que a sociedade está pedindo (…). Ao mesmo tempo, isso cria uma pressão de imediatismo do artista de querer dar respostas. Chega um momento em que você já não quer mais, você já não tem mais essa preocupação. (Mauro Martorelli, cenógrafo) Para articular (os artistas) é ótimo, é fantástico, funciona que é uma loucura. Você divulga coisas muito rápido. Por exemplo, a gente usa muito essa coisa de grupo. Então, faz um grupo no Facebook, que é o meu núcleo artístico, e aí eu mando minha pesquisa para todo mundo e todo mundo tem acesso rápido a isso. Tem uma coisa extremamente positiva. Mas tem essa coisa da grande quantidade que vira lixo. Então, eu tenho uma pesquisa incrível do espetáculo que a gente está montando. Aí eu mando a minha pesquisa e eu tenho dez atores e cada um manda a sua. Na sétima que eu receber, eu já vou falar assim: “ah, não! De novo? Eu não vou ler!” (…). Acaba sendo um volume de informação impossível. (Lenita Ponce, atriz) Além disso, as redes virtuais não substituem o contato pessoal, que, segundo os entrevistados, é o mais importante nas artes. Esse contato pode vir por meio da educação, dos outros profissionais – diretores, críticos, cenógrafos, produtores – ou do próprio público: 164 As redes sociais podem promover um monte de coisas (...), mas eu encontro muito mais a verdade, parceria e receptividade ainda nas velhas parcerias com os professores, na educação (...). O educador é que vai compreender um trabalho que tem um refinamento, que tem outra qualidade, que é um trabalho de pesquisa maior, que é um trabalho que está indo mais fundo, o que não quer dizer, por incrível que pareça, que, uma vez que você consiga ir mais longe, os outros todos não consigam entender também. Pode chegar a tocar todo mundo, sim. Mas é um caminho muito mais difícil e muito mais delicado, muito mais perigoso, muito vulnerável, muito mais difícil de fazer. (Esther Góes, atriz) Só acho ruim que o contato humano é substituído por ela (redes virtuais) e esse contato humano, desde que o mundo é mundo, é necessário, olho no olho, essas coisas que eu temo, que isso avance de uma maneira que as pessoas nem saiam mais na rua. (...) Claro que é um exagero, que é uma espécie de caricatura. Mas não pode acontecer (...). Enfim, criar um tipo de alienação, isso é gravíssimo. Porque dali pode sair alguma coisa boa, mas podem sair monstros, um cara que não sabe papear, prosear. Agora, como uma coisa que veio para ficar, até para avançar, precisava botar um pouco de ética nisso tudo, não sei como. Não sei se vou estar aí para conferir, mas tem que ter (...). O que você não pode é tirar, despersonalizar, desindividualizar as pessoas, o ser humano. (Umberto Magnani, ator) As relações interpessoais, as diretas, aquelas em que você tem que ouvir, essas ainda são muito mais marcantes e muito mais rentáveis e muito mais reais do que qualquer outro contato que você possa ter por qualquer coisa. Essa coisa de redes sociais e internet é boa para vender móvel, é boa para vender sapato (...). Na arte, o contato é outro, (...) a relação é de muito mais proximidade. Por mais que você tenha um resultado (...), você tem a questão do convívio, você tem a questão do dia a dia. Se você não tem um convívio saudável com direção ao diretor, seu figurinista, seu iluminador, seu cenógrafo, um ator da companhia, pode ser o cenário mais lindo que for que você tenha no projeto, às vezes, as coisas não dão certo. (…). (Mauro Martorelli, cenógrafo) Entre mídias de massa e redes sociais Apesar da relevância das redes sociais, segundo a pesquisa realizada pelo Facebook, entre o público em geral, a linguagem artística e as informações divulgadas pelos meios de comunicação de massa ainda são os fatores que mais influenciam as decisões sobre uma atividade cultural (gráfico 23). O grupo ou artista que está se apresentando também é levado em conta (47%), assim como as indicações de amigos ou conhecidos. 165 Gráfico 23: Fatores que mais influenciam as decisões sobre uma atividade cultural, entre o público. 59% 52% 47% 42% 29% 2% A linguagem artística Informações O grupo ou Indicações de artista que amigos ou sobre a está conhecidos atividade, divulgadas em apresentando veículos de seu trabalho comunicação O local em que será realizada Outros Porém, entre os artistas, os meios de comunicação de massa são bem menos influentes: 80%, ao escolher uma atividade cultural (assistir a shows ou espetáculo, visitar museus ou exposições, por exemplo), levam mais em consideração a linguagem artística (82%) e o grupo que está apresentando seu trabalho (80%) do que informações divulgadas em veículos de comunicação (48%) ou o local em que a atividade será realizada (27%). Ou seja, artistas e produtores escolhem as atividades a que irão assistir a partir de sua rede de contatos e não tanto dos anúncios em rádio, televisão, jornais ou revistas (gráfico 24). Gráfico 24: Fatores que mais influenciam as decisões sobre uma atividade cultural, entre os artistas e produtores culturais. 82% 80% 64% 48% 27% 2% A linguagem artística O grupo ou Indicações de Informações O local em que será amigos ou sobre a artista que realizada conhecidos atividade, está divulgadas em apresentando veículos de seu trabalho comunicação Outros 166 Os artistas também participam de redes sociais na internet: 84% costumam trocar informações sobre seus projetos nesses ambientes. Entre os artistas de 35 a 45 anos, esse número é de 100% (gráfico 25). Além disso, eles participam de páginas ou grupos específicos de discussões (gráfico 26). Gráfico 25: Porcentagem de artistas que trocam informações sobre projetos em redes sociais, distribuídos por idade. 100% 90% 86% 67% 60% Até 25 anos De 25 a 35 anos De 35 a 45 anos De 45 a 55 anos Mais de 55 anos Gráfico 26: Quantidade de artistas que costumam participar de discussões em páginas ou grupos específicos na internet. Em redes sociais, costumam participar de discussões em páginas ou grupos específicos 45% 55% Em redes sociais, não costumam participar de discussões em páginas ou grupos específicos Já entre o público, o número de pessoas que participam de discussões ou grupos sobre artes na internet é bem menor: apenas 17% (gráfico 27). 167 Gráfico 27: Quantidade de artistas que trocam informações sobre projetos em redes sociais 17% Em redes sociais, costumam participar de discussões em páginas ou grupos específicos Em redes sociais, não costumam participar de discussões em páginas ou grupos específicos 83% Além de Facebook, Twitter e MySpace, 39% dos artistas que responderam a pesquisa quantitativa visitam sites de redes sociais específicas sobre artes. Eles também participam de blogs, sites de divulgação cultural e grupos de discussão por e-mail (figura 5). Figura 5: Nuvem de tags dos sites frequentados pelos artistas. 168 As redes sociais também são fontes de informações importantes para os artistas quando eles desejam saber mais sobre atividades culturais, como exposições, shows musicais ou espetáculos: 70% utilizam este recurso (gráfico 28). Esse número é menor entre o público em geral (57%), que busca mais informações sobre as atividades em meios de comunicação de massa – 68% (gráfico 29). Gráfico 28: Principais fontes de informação sobre atividades culturais, segundo os artistas. 70% 64% 61% 55% 43% 2% Indicações em Anúncios em redes sociais TV, rádio, jornais, revistas Sites de guias Indicações de culturais familiares, amigos ou de conhecidos Sites dos teatros, museus, galerias ou outros equipamentos culturais Outros Gráfico 29: Principais fontes de informação sobre atividades culturais, segundo o público. 68% 57% 42% 26% 17% 1% Anúncios em Indicações em Indicações de Sites de guias TV, rádio, redes sociais familiares, culturais jornais, revistas amigos ou de conhecidos Não Sites dos responderam teatros, museus, galerias ou outros equipamentos culturais Vale ressaltar que a opinião de amigos e familiares também é considerada por 55% dos artistas e produtores (gráfico 28) e por 42% do público em geral (gráfico 29). Além disso, 100% dos artistas e 97% do público em geral costumam indicar a amigos e familiares atividades artísticas de que tenham gostado. 169 AS ARTES NO REINO UNIDO Além das pesquisas feitas no Brasil, foram realizadas mais duas entrevistas com os ingleses Steven Ansell (diretor artístico e administrativo do stage@leeds, teatro vinculado à University of Leeds) e Alison Andrews (diretora artística do grupo teatral A quiet Word, com sede também na cidade de Leeds). As questões foram semelhantes: o papel das artes na sociedade, as atividades de artistas e produtores no dia a dia, as relações entre arte e economia e o papel das redes sociais nesse contexto. Os entrevistados ressaltam o lado prático do fazer artístico, aquele que se integra aos processos econômicos: Eu diria que as pessoas de fato entendem que a arte é sobre prazer, sobre entretenimento. Algumas pessoas a entenderiam como commodity, algo que se pode comprar e vender, particularmente obras ou objetos. Mas eu acho que há outro lado, que é sobre... A arte deveria poder competir no mercado com tudo o mais que é comodificado (...). (Alison Andrews, diretora artística) Não há nenhuma relação entre arte, criatividade e economia em sua construção mais pura. No entanto, em termos da necessidade de existir na economia, você precisa fazer um trabalho. Se você quer um trabalho realmente muito bom, você precisa pagar seus artistas, eles precisam ser financiados. E eu acho que a melhor opção é uma economia mista. (Steven Ansell, diretor artístico) Mas, apesar das necessidades materiais, Steven Ansell enfatiza principalmente a função social da arte: Qual o papel da arte na sociedade atual? Eu suponho que há um grande número de papéis, não há? É um emprego para as pessoas, gera dinheiro e cria uma economia própria. Mas não é isso que guia a arte. Eu penso que a arte tem sido guiada por seu próprio senso das necessidades humanas. Uma necessidade de explicar nosso mundo, uma necessidade de discutir nosso mundo. (...) A arte articula nossos sentimentos, eu acho. É importante por isso. Ela desafia autoridades, ela realça, ela documenta... Eu acho que ela realiza nossas emoções como seres humanos (...). Eu acho que a arte deveria fazer você rir, deveria fazer você chorar e deveria fazer você pensar. Quando eu faço uma peça de teatro, esta é minha linha mestra (...). (Steven Ansell, diretor artístico) 170 Para ele, as humanidades em geral não devem se pautar exclusivamente pela questão econômica: Eu fico triste que a educação que temos visto seja aquela da vocação, qualificação, como se fazer filosofia fosse de alguma forma o mesmo que simplesmente fazer algo bem-feito, pensar como se estivéssemos fazendo um bom treinamento. Eu não acho que esta deva ser a condição humana, eu acho que podemos ser melhores (...) e eu acho que nós precisamos de arte. A arte nos mostra isso (...). (Steven Ansell, diretor artístico) A arte sempre será feita, quer permaneça ou não. Se eu encontro alguém que não pode sustentar seu fazer artístico, eu desconfio dessa pessoa. Um artista sempre fará um trabalho. Se você é um escritor, você irá escrever em sua cabeça. Se você não tiver uma caneta e um papel, você simplesmente pensará na história e se tornará um contador de histórias, você encontrará uma forma de fazer sua arte. Se você for um escultor e não tiver uma pedra, você encontrará algo diferente (...). (Steven Ansell, diretor artístico) Então, esta sempre foi uma conexão difícil (...). Nós gostamos da ideia dos artistas que passam fome. Eu não estou particularmente convencido, como um artista, de que desejo passar fome. Eu não estou particularmente certo de que quero criar um trabalho que outra pessoa faça... Após trezentos anos da minha morte (...). Então, eu penso que é difícil equilibrar interesses comerciais, dinheiro e arte... (Steven Ansell, diretor artístico) Andrews concorda que a arte deva refletir sobre os problemas atuais, mas ela não vê tanto conflito na relação entre arte e economia, ressaltando outras relações de troca, além da financeira, e a importância da colaboração: No momento, a sociedade atual é muito engajada com o discurso sobre terrorismo, sobre o Islã, sobre o fundamentalismo, sobre a questão "deveríamos deixar a Europa?", todo esse tipo de coisas, e eu acho que a arte, em certo sentido, tem o papel de refletir sobre esses problemas, tem o papel de dar suporte ao debate, e algumas vezes deve desafiar o discurso dominante. O que eu diria muito claramente, e que as pessoas poderiam discordar, é que o papel da arte nunca é o de mudar ou transformar as coisas (...). Eu acho que o papel da arte na sociedade é o de suportar e refletir mudanças... (Alison Andrews, diretora artística) Eu acho que a arte é, em si mesma, uma economia, é um ambiente, em que há um número de transações diferentes, algumas delas são transações financeiras, algumas são sobre confiança criativa, troca de ideias. Eu sou, nominalmente, a diretora artística... Eu nunca faço nada sozinha. O único modo como trabalho é colaborando com as pessoas, trocando o que sei com 171 o que elas sabem e tentando criar algo absolutamente novo. (Alison Andrews, diretora artística) (Economia criativa) é um termo que usamos e ele tem nomeado muitas coisas, não tem? É um conceito inventado... Sempre houve uma economia criativa, e ela tem diferentes modelos, desde a Renascença e assim por diante... E agora nós temos um modelo de investimento nesse país, e o reconhecimento disso... (Alison Andrews, diretora artística) Ansell, por sua vez, aposta em uma economia mista, e discorre longamente sobre as políticas culturais no Reino Unido: Se você procura por organizações financiadoras, isso significa que você deve ser uma companhia limitada (sem fins lucrativos – limited by garante) (...). Como companhia limitada, você pode ser um empresário individual (sole trader), o que significa que você é um artista; ou, como sempre ouvimos o Arts Council dizer, pode ser uma associação sem personalidade jurídica (unincorporated body), pessoas que se reúnem para fazer um trabalho, o que significa que os indivíduos são responsáveis por seus próprios impostos e seguros nacionais. Ou você pode ser uma casa de caridade. (Steven Ansell, diretor artístico) O Arts Council também é nosso principal órgão financiador, particularmente para o teatro, e como ele funciona? Há dois grandes sistemas de financiamento, o que eles chamam NPOs (National Portfolio of Arts Organizations)... E RFO (Regularly Funded Organizations) (...). A cada três anos você tem que se inscrever se quiser ser um NPO. É normalmente o dinheiro com que você paga seus funcionários e financia o projeto. Para qualquer coisa aquém ou além disso, você deve procurar outros financiamentos, e eles não podem ser, tecnicamente, do Arts Council. (...) Quando você é um RFO, você também pode se inscrever para financiamento extra do Arts Council, para projetos extras. (Steven Ansell, diretor artístico) Por outro lado, temos o Grants to the Arts, que chamamos de G for A. (...) Mas agora, para receber o G for A, você não pode ser um NPO (...). Isso significa que uma parte da verba deve vir de fontes próprias. Além destes, há um grande número de organizações, instituições e mesmo de sociedades, algo como a Fundação Welcome Trust, em que você pode se inscrever, dependendo do seu estado. (...) (Steven Ansell, diretor artístico) O governo britânico não arca com quase toda a verba destinada aos projetos culturais, como ocorre com a Lei de Incentivo Fiscal no Brasil ou com o Fundo Nacional de Cultura. Pelo contrário, o país conta com diversos mecanismos de financiamento, e as iniciativas recebem recursos públicos e privados. Ansell também 172 vê problemas nesse mecanismo, que privilegia os artistas já conhecidos ou as grandes casas de espetáculos. É basicamente assim: se você tem trabalhos, se você é um teatro comercial, você não pode se inscrever para receber recursos do Arts Council (...). Mesmo no Arts Council (...), eles esperam que você consiga cerca de 20% do seu próprio financiamento, mas só pode ser em dinheiro. (...) Isso é bom se você for patrocinado, é bom se você tiver algum dinheiro investido por uma organização conhecida, que lhe ofereça um teatro ou uma casa de espetáculos, que lhe dê mil libras para que você possa se inscrever para receber mais nove mil. Se você é como o nosso teatro (stage@leeds), você perde, porque você não tem nada a oferecer, como uma casa de espetáculos tem. (Steven Ansell, diretor artístico) O entrevistado também ressalta que a verba pública vem sofrendo cortes e migrando para as linguagens menos experimentais, o que, de certa forma, é um reflexo do conceito expandido de "economia criativa". Eles (os artistas) acham difícil ter acesso a alguns dos financiamentos atuais do Arts Council (...), porque ele realmente perdeu muito dinheiro. Seu financiamento foi fortemente cortado, mas o governo atual quer cortar novamente... (Steven Ansell, diretor artístico) Para mim, por causa do mercado em que trabalho, o risco é a coisa mais perigosa. Nós fazemos um número limitado de ingressos (...). Eu, definitivamente, não posso sustentar a perda de uma grande quantidade. O lucro potencial vem com o mais alto risco, então eu prefiro uma estratégia de baixo risco... (Steven Ansell, diretor artístico) Se você colocar uma peça experimental desafiadora, você não consegue o trabalho (...). Se você agenda algo como um show de variedades, algo muito comercial, você tem muito mais certeza de conseguir o dinheiro (...), particularmente se você não for comissionado pelo Arts Council. (Steven Ansell, diretor artístico) Por fim, as redes são apontadas como algo fundamental para a produção e a difusão das artes: para os entrevistados, quem não participa das redes sociais praticamente não existe. Mas também há um senso crítico sobre os meios digitais, sua capacidade de articular os profissionais e de atingir o público. Assim, as relações interpessoais ainda são as mais importantes para o dia a dia do trabalho artístico. 173 Eu tenho sido um pouco cético sobre a habilidade do Facebook de vender uma obra (...). Eu acho que o melhor mecanismo é: “Oi, você pode entrar? É um teatro; é fantástico! (...) Você já viu esta galeria? É ótima”. Esta é a melhor maneira: o boca a boca (...). E as formas antigas... Editorial é sempre melhor que propaganda (...). Mas tem se tornado impossível não usar as redes sociais. Para mim, não significa que elas irão vender os ingressos, significa que, se você não se envolver em redes sociais, você não existe. (Steven Ansell, diretor artístico) Eu não descarto a visão da assessoria de imprensa sobre um show, que foi cuidadosamente planejada e mandada para mim (...). Mas agora eu tenho a oportunidade de compartilhar amplamente minha rede. Antigamente, o teatro financiava as pessoas, financiava todos os espaços que conhecíamos (...). “Oi, como é trabalhar com ele?”. Hoje, raramente você precisará disso, porque está tudo lá... no Youtube. (Steven Ansell, diretor artístico) Eu acho que as redes são incrivelmente importantes. Há diversas teorias sobre como elas operam. No meu ponto de vista, eu diria que a primeira coisa que você deve fazer é conversar. Conversar é o que produz rede. A rede não produz nada por si mesma (...). O trabalho que faço coloca-me necessariamente em contato com artistas e pessoas com um tipo de sensibilidade e de experiência (...). Na maior parte das vezes, quanto mais pessoas você conhece, mais elas fornecem material para reflexão e para criação, para todo esse tipo de coisas. (Alison Andrews, diretora artística) Uma rede muito importante é a IETM (International Network for Contemporary Performing Arts) (...) e ela é diferente de um mercado, aonde você vai para comprar e vender. É um lugar aonde você vai para pensar, para ter suporte ao seu desenvolvimento profissional, para tomar um café e esse tipo de coisas. A discussão é muito concentrada em política, em produção cultural, em economia criativa e em como dar suporte aos artistas emergentes. (Alison Andrews, diretora artística) As redes de criação envolvem, portanto, uma economia, modos de transação, mas não se reduzem a isso. As artes são, segundo Andrews, muito mais "sólidas", um processo que tende a persistir. Eu penso que, em termos de economia criativa, em uma nova economia, nós estamos falando sobre transações... Se pegarmos tudo isso e falarmos sobre outros aspectos de uma economia... Nós nunca iremos parar de chamar as coisas como elas são chamadas... Há também algo que se dobra sobre isso. De qualquer modo, quando falamos sobre dinheiro, é um conceito muito escorregadio. É uma filosofia, é uma ilusão, e é uma quimera, porque não é real (...). A arte é muito mais sólida, está lá, e é um processo. Uma vez que 174 ela esteja lá, você não pode destruí-la. Alguém irá ver... Mesmo que seja um objeto sólido, a memória dele existe. (Alison Andrews, diretora artística) A pesquisa mostra, portanto, que os artistas dedicam suas vidas à criação, o que está perfeitamente inserido nos processos capitalistas atuais. Eles também usam todas as ferramentas disponíveis para difundir suas obras: dos meios de comunicação de massa tradicionais às redes digitais, sem, contudo, perder certo olhar crítico. Mesmo em meio às questões políticas e econômicas, eles sempre abrem brechas para fazerem aquilo que define seu trabalho: a pesquisa das linguagens, a visão acurada sobre o mundo e as relações humanas, a resistência e a busca por novas realidades e por novos sonhos possíveis. 175 REFERÊNCIAS ADDISON, J. (21 de Junho de 1945 [1712]). The spectator, 410. Londres: Everyman's, p. 276-79. ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. (1985). Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. (G. Almeida, Trad.) São Paulo: Zahar. ALPERS, S. (2010). O projeto de Rembrandt: o ateliê e o mercado. (V. Pereira, Trad.) São Paulo: Companhia das letras. BAKHTIN, M. (2010). Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). Tradução A. F. Bernardini; J. P. Júnior; A. G. Júnior; H. S. Nazário; H. F. Andrade. 6. ed. 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Londres: Chatto & Windus. 188 APÊNDICE Apêndice A – Formulário da pesquisa realizada pelo Facebook Qual a sua idade?      Até 25 anos De 25 a 35 anos De 35 a 45 anos De 45 a 55 anos Mais de 55 anos Você é artista ou produtor cultural?   Sim Não Você trabalha com quais linguagens?       Artes visuais Circo Dança Música Teatro Outro: Você costuma participar de projetos coletivos de artes?   Sim Não Você costuma trabalhar em mais de um projeto ao mesmo tempo?     Sim Não Se você trabalha em mais de um projeto ao mesmo tempo, eles costumam contar com pessoas em comum? Sim Não 189      Você costuma frequentar atividades culturais de linguagens diferentes daquelas com que trabalha? Sim Não Você já participou ou costuma participar de projetos com linguagens diferentes entre si? Ex. dança em um grupo e teatro em outro grupo? Sim Não Além de redes sociais como o Facebook, você costuma participar de sites específicos de projetos e/ou atividades artísticas? Sim  Não Se sim, quais?       Em redes sociais, você costuma trocar informações sobre os projetos em que está trabalhando ou sobre assuntos relacionados a eles? Sim Não Você já obteve recursos financeiros para realizar seus projetos a partir de conversas em redes sociais? Sim Não Você já convidou, por meio de redes sociais, artistas, produtores ou outros profissionais das artes para atuarem em projetos dos quais participa? Sim Não Você já foi convidado, por meio de redes sociais, a participar de projetos artísticos?         Sim Não Como você obtém informações sobre espetáculos, shows, exposições e outras atividades artísticas? Anúncios em TV, rádio, jornais, revistas ou outros veículos de comunicação Sites de guias culturais Sites dos teatros, museus, galerias ou outros equipamentos culturais Indicações de familiares, amigos ou de conhecidos Indicações em redes sociais Outro: 190           Você costuma indicar, a amigos, familiares ou conhecidos, atividades culturais das quais tenha gostado? Sim Não Ao escolher uma atividade cultural (assistir a shows ou espetáculo, visitar museus ou exposições, por exemplo), você leva em consideração: A linguagem artística. Ex. teatro, dança, circo, música ou artes visuais. Informações sobre a atividade, divulgadas em veículos de comunicação. Ex. sinopses, resenhas e críticas em jornais, revistas, TV ou sites na internet O local em que será realizada. Ex. centro cultural, teatro, galeria, museu. O grupo ou artista que está apresentando seu trabalho Indicações de amigos ou conhecidos Outro: Em sites de redes sociais, como o Facebook, por exemplo, você costuma participar de discussões sobre artes em páginas ou grupos específicos? Sim Não 191 Apêndice B – Transcrição das entrevistas Ângelo Fernandes Entrevista concedida em 27/12/2013, em Itajubá - MG Eu sempre me sinto como artista de duas formas diferentes. É tão natural que as pessoas precisem de arte (...) que eu me sinto totalmente integrado e não me sinto uma pessoa à parte (...). Eu convivo com muitos músicos e muitos outros artistas. A gente (Unicamp) tem um instituto de artes onde tem gente da dança, do teatro. Eu me sinto bem (...), um trabalhador comum, do dia a dia, que tem o seu fazer (...). Eu me sinto muito integrado, como uma pessoa que não está à margem, como tantos artistas já se sentiram. Mas quando eu me volto para alguns ambientes, mesmo em Itajubá (MG), eu me sinto um pouco diferente (...). Eu sou aquele rapaz que tocou na igreja. Então, as pessoas sabem: “ele fez a diferença porque ele tocava na missa”, e muita gente foi assistir, ou “ele toca nos casamentos” (...). É quando eu me sinto mais diferente (...), por mais que eu seja itajubense, amigo de todo mundo (...). Eu não sei se é porque é cidade do interior ou porque eu conheço muita gente, eu me sinto especial, não melhor ou pior, mas alguém que faz algo especial, que não é uma profissão tão comum quanto a profissão de um monte de gente. Na Unicamp, eu sou muito mais Professor Doutor (...), e o meu fazer artístico está muito voltado para isso, então, parece que eu estou mais integrado (...). Em Itajubá, por outro lado, existe isso (...), também entre as pessoas que cantam comigo, porque eu sou aquele que ensaia, o que estudou muito para orientar aqueles que não estudaram e que vão cantar, que vão ensaiar. Então, existe até uma hierarquia dentro do trabalho coral (...). O regente coral tem uma especialidade diferente porque 95% do canto coral no mundo é amador, é formado por pessoas que têm outras profissões, mas que cantam em coros, porque elas têm um bom ouvido, porque o conhecimento musical que elas adquiriram não as ajudou a serem musicistas até porque muitas vezes elas não queriam, mas elas têm aquela experiência estética, aquela experiência musical através do canto coral. Mas o profissional do grupo é sempre o regente (...). Na Unicamp, eu tenho um coro, mas todos os meus cantores são alunos, estão pelo menos se tornando profissionais como eu, é um tratamento diferente, uma realidade diferente. Aqui (em Itajubá) não, aqui você não tem profissional, vem a médica, vem a faxineira, vem o estudante, aquele que se prepara para o vestibular, aquele que está se formando em engenharia, aquele que está se formando em medicina. Tem de tudo, tem o bancário. E você é o músico, você é o artista, você é o vilão enquanto ensaiador, mas você é aquele que inspira as pessoas musicalmente. (...) É difícil falar o que é ser artista hoje... Ficou uma coisa muito natural, mas existe em alguns ambientes uma sensação de “sou alguém especial”, não melhor, mas (...) um especialista, aquele que faz uma coisa diferente de outras pessoas. Eu não sou muito comum, a não ser no meu meio em Campinas (...). (...) São muitos (os meus papeis como artista), até porque tem papéis que a gente assume. Eu posso dizer que depois de 40 anos estudando piano, estudando canto, regência, eu descobri que eu sou professor mesmo. A docência é uma missão, uma função (...). Eu não consigo me desligar disso. (...) Eu tive muita crise (...). Eu sempre fui meio curinga com essa coisa de tocar piano e saber cantar e reger coro. E também reger orquestra às vezes. Isso me deu inúmeras possibilidades. Por outro lado, algumas pessoas acham que eu posso não ter me aprofundado totalmente em uma dessas áreas por causa disso. Eu acho que elas se somaram, elas fizeram o professor de canto que eu sou hoje, porque eu sou o pianista dos meus alunos de canto (...). O que eu sei de canto me permitiu ensinar o coro a cantar, não só a juntar vozes, mas a trabalhar tecnicamente as vozes (...). O músico que eu me tornei sendo pianista me permitiu ser um regente muito mais detalhista, um cantor mais detalhista. Uma coisa ajudou muito na outra. Mas quando eu escrevi meu memorial para fazer o concurso da Unicamp, é que a minha ficha caiu, o quanto muito mais do que isso tudo, eu sou professor. E esse papel é um papel que eu exerço, é uma bandeira que eu levanto. Eu tenho uma necessidade de estar atualizado, de trabalhar com esse tripé que a universidade trabalha que é o ensino, a extensão e a pesquisa. Eu sinto essa necessidade de estar atualizado, de continuar estudando, de continuar tocando e cantando bem para que os meus alunos possam usufruir disso também, das minhas habilidades (...). Então, socialmente falando, eu acho que essa é a minha função primeira. (...) É minha grande missão. É claro que, no ensino de música, o professor de instrumento, de canto tem uma ligação muito individual com o aluno (...). Você não forma só músicos, você forma cabeças também. E você tem acesso a essas cabeças porque você tem que fazer um 192 trabalho individualizado. Então, nesse sentido, também eu acho que eu tenho outras funções. Eu sou uma pessoa de muita fé. Então, eu acho que a minha profissão me permite, de diversas formas, divulgar minha fé, ajudar outras pessoas, não querendo fazer com que as pessoas se tornem católicas, praticantes, ou que elas sejam cristãs. Mas os fundamentos do cristianismo, esse respeito, esse fazer o bem, o amor de Cristo, é uma coisa que, de uma forma muito sutil, eu mantenho no meu fazer artístico, na minha prática. (...). Na música, na arte em geral, as duas coisas estão muito juntas. Eu acho que eu tenho esse papel de levar o bem também para as pessoas, de levar o belo, porque essa é uma das funções da arte, a função de comunicar, a função da comunicação. Nem sempre a gente mostra só o belo, a gente mostra coisas feias também através da arte para que as pessoas possam ter as suas formas de questionar. Existem inúmeras obras corais, por exemplo, que foram compostas no período entre guerras e são poesias muito fortes, nem sempre elas são bonitas, mas elas de alguma forma mexem com a emoção das pessoas, justamente a arte do século XX, a arte de vanguarda levanta questionamentos. Essa é minha função, a de levar essa comunicação através da arte, de levar o belo, mas também de levar esse bem que eu tenho (...) através da minha fé católica. (...). Meu papel é esse mesmo, (...) o de docente, de professor, e de praticar o bem através da arte, de propagar isso, coisas boas e bonitas, sem ser piegas. Eu acho que eu consigo isso muitas vezes. Meu maior trabalho é dar aula. Na Unicamp, eu tenho uma cadeira pesada, eu tenho 19 alunos de canto, uma de doutorado, três de mestrado e 15 de graduação. Eles têm um horário individual comigo. Além disso, eu tenho outras disciplinas: técnica vocal, a de dicção, em que a gente estuda o alfabeto fonético (...), fisiologia da voz, mas eu tenho as disciplinas práticas: música de câmara e ópera estúdio. E eu descobri no ópera estúdio que a grande paixão da minha vida é a ópera. Sempre gostei muito de ópera, mas eu nunca tinha trabalhado diretamente. (...). Mas você dirigir os seus alunos, porque que frequenta aula de ópera estúdio são os alunos de canto. Eu tenho todos os alunos de canto da Unicamp. Então todos os alunos do ópera estúdio são meus alunos de canto também, e eles que fazem dicção comigo também. São eles que fazem fisiologia da voz, tirando um ou outro aluno de regência que se interessa, quer participar... Eu já tenho uma intimidade grande com eles, então, você poder trabalhar um espetáculo, a formação de um personagem, toda essa questão de qual vai ser o figurino mais interessante, mesmo eu tendo os meus parceiros. A gente sempre tem um diretor cênico, (...), a gente sempre tem um preparador do corpo, alguém da dança que faz um preparo corporal nos meninos, eu faço mais o preparo musical. Isso tem sido muito gratificante. Colocar isso no teatro, ainda que seja uma maneira universitária de se fazer a obra, são profissionais em formação, não é o Teatro Municipal. Mas nos pequenos teatros, ou mesmo dentro da Universidade, isso é uma coisa muito gratificante, porque hoje o mundo é muito visual, os espetáculos visuais chamam mais a atenção do que os espetáculos de sala de concerto. Eu vivi, na minha adolescência aqui em Itajubá mesmo, existiam séries de concertos no AARO (Auditório da Universidade Federal de Itajubá), a gente podia assistir (...) o Clube Concerto, o Cultura Artística. Depois acabaram essas sociedades, mas existiam concertos de música de câmara. Hoje em dia é tão fácil você ter acesso, no YouTube, aos melhores músicos do mundo tocando música de câmara, aos CDs, aos DVDs que eles gravam que dificilmente as pessoas pagam hoje um ingresso para ir, mesmo que seja na Sala São Paulo. Se não são os grandes músicos mesmo, o Antônio Menezes, que é um dos maiores violoncelistas do mundo, que é brasileiro, e toda vez que ele vai tocar em São Paulo, enche. Mas um outro violoncelista de quem ninguém nunca ouviu falar, não vai encher mais a Sala São Paulo. Por outro lado, qualquer ópera que você for no Teatro Municipal é lotação garantida. Os teatros de teatro musical, esses estão bombando, com preços altos, e as pessoas vão e eles fazem temporada porque as pessoas são muito visuais hoje. Então, para elas escutarem música, parece que elas têm que ver alguma coisa. E através da ópera, eu consigo trabalhar isso. É um conhecimento a mais que eu tive que adquirir porque eu tenho que trabalhar o corpo do meu aluno, eu tenho que trabalhar a cena, eu tenho que entregar alguma coisa alinhavada para o diretor cênico, eu não posso entregar tudo cru, mesmo que ele mude tudo depois (...). Então eu preciso ter essa visão, esse olhar (...). Mantenho um trabalho de música de câmara, principalmente porque, se por um lado, as pessoas buscam menos música de câmara, a música de câmara é o que forma os músicos... Quando você faz piano a quatro mãos ou piano e canto ou piano e violino, essa percepção do outro, fazer música com o outro (...). Para o cantor, principalmente, a música de câmara educa, forma bem musicalmente. Eu uso muito no ópera estúdio da minha classe de música de câmara, um monte de gente que faz concerto na escola, dentro do Instituto de Artes da Unicamp, em outros institutos dentro da Unicamp, ou na Igreja de Santa Isabel (Campinas - SP) (...), ou que seja no Teatro Cássio Mendes, a gente tem usado muito a Orquestra Sinfônica de Limeira para fazer essas óperas. Então eu levo essas óperas para o Teatro de Limeira. Com a orquestra da Unicamp eu consigo também ter algumas récitas, duas ou três récitas de ópera por ano (...). 193 Para mim, as três coisas (arte, trabalho e economia) estão muito relacionadas. Eu sou aquele tipo que conseguiu viver de arte. (...) Meu pai precisou me ajudar muito, minha mãe precisou me ajudar muito, no começo, mas eu consegui, encontrando nesta coisa de dar aulas e regendo coros (...). A minha atividade profissional que me fez crescer e me tornar o músico que eu me tornei foi o Madrigal (Musicanto, Itajubá - MG), sem sombra de dúvida. Nunca foi a minha atividade mais rendosa, pelo contrário, é a atividade na qual eu gastei muito dinheiro. (...) Eu pude viajar muito, pude criar uma credibilidade profissional em todo o país porque o Madrigal viajou muito, regentes de várias partes do país e de vários países viram o coro cantando, e o coro fez muito sucesso ao longo de seus 22 anos de existência. Então, essa visibilidade eu ganhei através do Madrigal. Mas essa não foi minha maior fonte de renda. Minha maior fonte de renda foi dando aula e trabalhando em instituições que queriam manter um coro (...). Quando eu resolvi que eu ia fazer mestrado, eu tinha claro isso, sempre gostei de ensinar e eu queria ensinar em um nível superior (...). Hoje eu sou um funcionário público do Estado de SP, isso é bacana. Nem todos os meus amigos músicos que se formaram comigo tiveram isso. Por outro lado, eu tenho amigos que foram embora para a Alemanha e se deram muito bem lá, tocando, e vivem de tocar piano e vivem bem (...). Na Itália já não seria tão fácil, na França, mais ou menos, na Alemanha e na Áustria, isso é possível, na Inglaterra, na Suécia, na Noruega, isso é possível. (...) O Brasil tem alguns lugares muito bons. São Paulo, por exemplo, oferece um bom número de empregos para músicos. Só na cidade de São Paulo, você tem o Coral Paulistano, com 40 vagas, o Coral Lírico do Teatro Municipal, com 100 vagas, e o Coro da OSESP com 80 vagas. No Paulistano e no Lírico, um cantor ganha quase R$ 7 mil por mês. Na OSESP, ele ganha um pouco menos, mas ele tem benefícios muito grandes (...). Isso só para cantores, fora as orquestras (...). O Município mantém a Orquestra Municipal e a Orquestra Experimental de Repertório. Mas você tem também a OSESP, que é estadual (...). Você tem as bandas sinfônicas, que empregam também muitos músicos. Você tem os corpos de dança, que são vários... São Paulo é onde mais tem, mas Campinas também tem a Orquestra da Unicamp e a Orquestra Municipal. No Rio, tem quase tanto quanto São Paulo. Belo Horizonte tem o Coro do Palácio das Artes, hoje com 60 ou 70 vagas. Eles ganham muito menos, o que eles ganham, com vale refeição e alimentação, chega a uns R$ 4,8 mil. Mas R$ 4,8 mil para você trabalhar das 9h às 12h, e quando tem concerto no fim de semana. À tarde não tem ensaio. Você pode ter outra atividade, você pode fazer um mestrado e ter uma bolsa por um tempo... Existem possibilidades para muita gente. Para o cantor de ópera que quer ser solista (é a minha realidade de formar os meus alunos), isso é mais difícil, primeiro porque é uma máfia, uma máfia de produtores. Então, se você não tem o seu agente, dificilmente você vai entrar no meio (...). Solistas, sejam instrumentistas ou cantores, precisa ter agentes, porque senão, eles não ficam sabendo quando são as audições, eles nunca conseguem ter acesso, chegar aos diretores, aos grandes regentes, que vão escolher, por melhor que eles sejam (...). Para ser solista no Brasil é complicado, mas para viver de música, ainda que seja só da prática musical, não é não. Em Florianópolis, Curitiba, Porto Alegre tem muitas possibilidades; Brasília tem muitas possibilidades; o Teatro Amazonas de Manaus também oferece emprego (...). A gente fica pensando: “nossa, mas tem 100 lugares só no Coral Lírico”, mas também não tem tanto cantor lírico assim. Até tem muita gente estudando canto, mas também não tem tanta gente desempregada assim. (...) Dos que têm vocação para dar aulas, muitos viram professores, a maioria. E é um campo maior do que é em Portugal, do que é na Grécia, do que é talvez até na Espanha (...). Na Alemanha é muito diferente. Lá, ópera é quase igual cinema. É tão barato quanto para assistir, e muitas cidade têm sua casa de ópera, com temporada acontecendo o tempo todo. Em Berlim, você pode assistir ópera todos os dias do ano. (...) Tem muito mais patrocínio para ópera e para música em geral na Alemanha. Lá chega a faltar (músicos). Tem emprego para os coros, porque cada teatro tem seu próprio coro, tem emprego para as orquestras e tem emprego para os solistas. Eles vão revezando essas solistas, eles têm os solistas também fixos. Entra nos contratos, você é um soprano ligeiro, então, você pode cantar esses e esses papéis, você faz essas e essas óperas, eles não vão chamar uma grande cantora, como é o Metropolitan e como é o Scala. (...). Em Berlim, qualquer bom cantor vai cantar, é uma realidade muito diferente. (...). Mas, no Brasil, atualmente, você não pode dizer que não tenha (emprego). Tem e está muito bem ocupado. Tem gente esperando, mas também tem gente aposentando. Há uma rotatividade. (...) Economicamente falando, é muito difícil viver de arte, mas há trabalho, há muito trabalho se você souber explorar. O que eu sinto que falta, no interior, não estou falando só de Itajubá, é a qualidade. (...) Quem está no interior acomodado, nem sempre sai para se atualizar. Os que saem não voltam. Isso eu acho que faz diferença, no que diz respeito a trabalho e economia. Isso diminui a profissão muitas vezes. Você vai lá em São Paulo e assiste a Noviça Rebelde no Teatro Alfa (...). Aí você volta para Itajubá e você vê uma coisa muito menor. É como se o artista não tivesse valor. Na verdade, ele não tem estudo, porque não teve oportunidade, mas porque muitas vezes ele 194 não foi atrás. E os que foram não voltaram. (...) Mas tem trabalho, falta dinheiro... Isso é muito relativo. Não falta (dinheiro) para o Teatro Municipal, não falta para a OSESP. E mesmo dentro da (BOTELHO, 2000)Universidade, se você alia a prática musical à pesquisa, você tem recursos. Tem que provar que a arte é pesquisa também, que o ensaio é um campo de pesquisa (...). É a melhor situação do mundo? Não, não é. Mas também não é a pior. Não sou eu que tenho uma visão muito alegre das coisas, muito positiva. Eu tenho essa tendência de achar que tudo é possível, e acho que isso me ajuda muito a batalhar. Eu vejo que a gente podia ter muito mais recursos, mas a gente não deixa de fazer porque eles não existem. A gente, de repente, faz em menor escala. E existe aquilo que está na moda, em termos de boa arte, como, por exemplo, o teatro musical. É onde há muito investimento. O que eu acho que ainda falta é que o artista precisa estudar mais, se aprimorar mais e aprender a pedir ou contratar as pessoas certas... Isso falta, produtor, agente, a pessoa que fala a linguagem do empresário e que fala a linguagem do artista. Ele transita bem por esses dois ambientes e ele sabe que aquele artista vai ser o ideal para aquele empresário que está procurando patrocinar alguma coisa daquele tipo. Existem inúmeros. A CPFL de Campinas, por exemplo, gosta de patrocinar a arte, gosta de patrocinar música em geral. Então, ela não vai patrocinar futebol. (…) Ela tem o teatro dela (…) Mas é preciso o produtor, o agente que sabe onde ele vai buscar aquele artista que é o produto para aquele mecenas. Ele (o artista) não sabe ser produtor, porque ele às vezes se coloca muito menor do que o outro. Na verdade, é uma troca. Ele (o patrocinador) vai descontar do imposto de renda dele. Para ele também é vantajoso. E ele ainda vai investir na imagem institucional dele. Então ele também precisa do artista. (…). Por outro lado, as pessoas precisam de arte. O patrocinador também gosta de arte. Eu conheço inúmeros patrocinadores que gostam, que conhecem música... O que o artista muitas vezes não sabe é ser produtor. E ele tenta ser produtor porque não tem. E quando aparece um que se dá bem, rapidamente ele vai trabalhar para os grandes artistas. Então aquele artista médio, aquele que está começando, às vezes ele não tem acesso aos bons produtores. E o dinheiro acaba ficando concentrado em algumas companhias, em alguns lugares. Mas existe o dinheiro. Pode ser maior? Pode. Porque a lei ajuda muito o empresário (…). E se existe o bom artista e existe o dinheiro, existe o trabalho. (…) A gente tem o que fazer, a gente inventa. As pessoas vão (aos concertos), as pessoas gostam (…). E aí vem a questão da divulgação também. Tem que saber divulgar. A impressão que eu tenho é que tem de tudo. O que não tem é uma organização, uma distribuição melhor dessa renda, uma distribuição melhor do trabalho. Às vezes os grandes trabalhos ficam sempre das mãos das mesmas pessoas. Isso podia ser mais distribuído, porque existe muita gente boa no Brasil, muito artista bom em todas as áreas. Mas eu não sinto que a coisa é organizada e eu não sei se um dia vai ser. Quem está em São Paulo, por exemplo, tem as maiores chances, tem muita coisa acontecendo. Mas isso pode se espalhar. Eu vejo que em Campinas acontece muito pouco. No Rio acontece mais, em Belo Horizonte (acontece) mais. Até em algumas cidades do interior, acontece muito mais, em cidades pequenas do interior acontece mais do que em cidades grandes. A gente vê no interior de São Paulo, que há um investimento em algumas cidades. Em Sorocaba sempre tem alguma coisa. Salto, que é uma cidade pequenininha, tem um teatro municipal e tem uma atividade (…). Pelo menos uma vez por mês tem alguma coisa no teatro. Indaiatuba tem uma atividade cultural intensa. Valinhos, Vinhedo, (…) Itu (…). Tatuí tem uma atividade musical grande por causa do conservatório. Eu vejo Rio Claro, Pirassununga, Piracicaba. Por ali você vê que está acontecendo muita coisa, às vezes mais do que em Campinas. (…) Mas o que você vê em Ribeirão, Araraquara, Jundiaí, só cresce. E São Paulo, que é onde as coisas acontecem. (…) No meu caso, eu tenho uma situação boa, eu quero fazer e eu consigo fazer arte dentro da Universidade, tem gente que não quer fazer e fica na área só acadêmica, dando aulas, escrevendo artigos, não faz muito pela área artística em si. Elias Zeminoi Entrevista concedida em 11/01/2014, em São Paulo - SP Eu acho que não muda muito o papel de hoje e de alguns anos atrás, algumas décadas. Eu acho que ainda é o mesmo, quer dizer, tentar sentir ou tentar ver algo além do que os fatos do dia a dia mostram, através do papel sensível do artista, eu acho que ele ainda tem aquela função de captar, de sentir melhor o mundo ao redor, tanto o mundo pequeno, micro, quanto o macro, desde as questões normais, comuns, do dia a dia do ser humano, até questões mais amplas, sociais, políticas. Eu acho que esse papel mesmo nessa época de pós-modernismo e tal ainda prevalece, de maneira bem variada porque são técnicas, a questão de linguagens diversas, mas eu acho que no cerne ainda 195 é o mesmo papel. Eu acho que esse papel, na sociedade, embora não pareça, pelo menos não aqui no Brasil ainda, é um papel importante que nós temos como artistas. Acho até essa questão que eu citei antes, de nós podermos ter essa capacidade de sentir melhor, de pressentir também e de expor isso para as pessoas de diversas maneiras, através das obras. Então, de captar o que está no ar e que, por razões diversas, as pessoas no geral não captam, não por serem menos ou mais, mas por terem outras funções. Então, eu acho que cabe também a nós essa função, de pressentir e de sentir e de expor tudo que esse mundo, o nosso, o micro e o macro, mostram, mas não de forma tão clara. É coisa de você captar, (…) das anteninhas, da raça, essas coisas assim. Nós, aqui no Brasil, embora a situação tenha ficado muito melhor, eu sinto isso. Eu vivi isso desde 87, que eu eu trabalho com arte, (…) eu percebi que houve uma mudança no sentido até de respeito profissional, nessas três décadas que eu estou na área, não é muito, mas eu já percebi isso. Há um maior respeito, ainda não como deveria, talvez. Não sei se tem um nível perfeito para isso. Mas eu acho que já mudou. Existe mais respeito ou mais consideração pelo papel nosso, do artista, nessa nossa sociedade brasileira. Eu acho que a parte de dificuldade permanece ainda em termos de você se estabelecer, em termos profissionais, ou seja, viver da arte. Eu sou um caso talvez raro porque tudo que eu faço está ligado com a arte: a minha produção, as aulas, a parte de restauração. Então, eu posso dizer que eu vivo da arte, eu vivo da minha obra ligada à arte. Não é fácil... Mas dá para ser feito assim. (…) Tem uma coisa que eu sempre coloco nas minhas aulas e que é o seguinte: aquela visão romântica do artista, boêmia, que a gente vem do século XIX, do romantismo, ou seja, aquela história do pintor que passa a noite bebendo, em farras, jogando, festa (…), isso é uma coisa que não bate com o real de forma alguma. Isso é bom para fazer filme, é bacana. Se a pessoa quer ser profissional nas artes, como eu sou ou tento ser, este tipo de postura é totalmente fora de questão porque a disciplina, uma palavra meio chata, mas ela é fundamental. (…) Eu sou muito calvinista em relação ao meu dia a dia. Eu tenho que ter hora certa para começar, terminar, um período certo, uma carga horária. Eu sou muito metódico para isso. É lógico que tem outros pintores que pensam diferente, mas eu acho que se você tem, como eu tenho, faço o que? Produzo as obras, trabalho por encomenda, tenho as aulas, trabalho nos restauros. Então, eu tenho que fazer com que o meu dia fique bem definido, em termos de carga de horas mesmo, para poder dividir e conseguir fazer isso. Se eu tiver um ritmo doido, um ritmo boêmio, não dá, não tem como. Em termos físicos, não tem como. Eu passo uma noite bebendo, como você vai estar bem no outro dia? Não dá, é uma questão também física. Isso e o fato de eu ser muito metódico. Então: horários definidos no dia a dia, tentar ao máximo cumprir essa carga de horas. Eu falo que eu tenho uma visão calvinista, bem trabalho duro (…) Na parte criativa, por exemplo, eu não creio, de novo, naquela visão romântica da musa inspiradora, que você está lá e descem essas musas (…) Eu não creio nisso. Repetindo, eu acho que é trabalho duro. Todo dia, eu venho aqui para o ateliê, trabalhar até na criação da ideia. Eu acho que é bom o trabalho de esforço mental. É lógico, tem momentos em que eu tenho isso, em várias obras minhas, na parte da criação, não de fazer a obra em si, da parte prática, da parte da criação, em que eu fiquei dias com problema conceitual para resolver e fiquei dias, dias, e num final de semana, num bar, veio essa ideia, só que veio porque eu já tinha ficado três, quatro dias pensando. Não veio do nada. Foi fruto de um trabalho que houve antes. Resumindo, eu até prego para, às vezes eu tenho gente que faz aula comigo, que pretende seguir depois carreira, fazer faculdade, eu sempre coloco isso: disciplina. Se você quiser tentar trabalhar com arte de maneira profissional, disciplina, eu creio nisso. (…) Eu comecei a trabalhar como profissional em artes em 1987, faz alguns anos. Eu vi, percebi, senti e sinto como o cenário das artes plásticas no Brasil e como, conjuntamente, o mercado de artes, mudaram para melhor. Começa pelos custos do material. No geral, hoje você tem um custo menor do que tinha antes e uma maior variedade. Isso que eu falo é pincel, tinta. Eu lembro muito bem, nos anos 80, 86, 87, vou citar um caso a parte, uma tela de 1m por 1m era uma fábula, tanto é que nessa época, (…) eu comecei a fazê-las em casa (…) porque era um custo muito alto. (…) Comprava chassi, tecido, fazia mesmo em casa. (…) Hoje não, hoje você tem preços mais acessíveis e uma boa variedade em vários níveis, desde o nível amador até o nível mais profissional. Isso mudou muito. A questão de valores de obras também. Você vê qualquer site de artes ou revistas, aquela parte de mercado, bolsa de artes, como muitos nomes alcançam cifras fantásticas, em termos de leilão e venda de obras. Isso também puxa o resto do mercado, ou seja, tornou-se mais possível você conseguir viver através da venda das obras porque o mercado ficou maior. Isso tem a ver com a questão financeira do país (…). Então deu uma chance para as pessoas terem contato com arte, não só produzirem, como consumirem também. Eu sinto isso de forma bem direta. Dentro disso, a própria questão do espaço ficou maior. Não ficou mais fácil, mas ficou melhor do que era antes, porque tem mais espaços para você mostrar suas obras. Além dos salões, vários espaços próprios, galerias de 196 arte, espaços culturais, que bem ou mal dão um pouco mais de chance de se mostrar as obras. Repito, não ficou facinho, não, mas você tem mais chances, você tem mais possibilidades do que tinha a uns 30 anos atrás, mais ou menos. Redes sociais? (…) Fundamental. Isso eu também coloco nas minhas aulas. Você, como profissional da área de artes, precisa, necessita, ter contatos pessoais. Não só na rede virtual, mas na parte física. Ou seja, participar de vernissages, exposições de arte, é por aí que vai. Você conhecer pessoas, ser conhecido, é fundamental. É lógico que não é só nessa área, em todas as áreas isso acontece, mas na área de artes, eu acho que é vida ou morte. Por que? Eu conheço, sei de pessoas assim. Se você encarar a arte como uma paixão, um hobby, repito, conheço pessoas assim, que têm um talento enorme, mas que fizeram uma escolha: não participar de fazer... Tanto por gosto, por amor, maravilha, espetacular, dar as obras para tios, tias, parentes. Agora, se a pessoa escolhe o lado profissional, é morte certa. É necessário estabelecer contatos sociais, via pessoal ou via virtual, isso é fundamental, porque, vou usar um termo chulo, isso é uma panelinha. Queira ou não, concorde ou não, é um fato, e isso, quem está neste mundo sabe. Criam-se panelas, é um termo que eu não gosto, e você só consegue penetrar se você conhecer alguém que te indique, que te indique para um galerista ou para um crítico que te conhece, que foi seu amigo. Repito, goste ou não, critique ou não, é assim. E não é só aqui também. Eu vou falar porque é onde eu vivo, São Paulo. E, quando eu comecei a entrar neste mundo, eu tinha uma ideia de como era, era teórica, mas tinha. Quando eu vi na prática, confesso que eu fiquei um pouco espantado. Sabia o que ia ver, mas não tinha sentido, e, realmente, tudo o que eu sabia na teoria constatou na prática. Realmente é assim. Isso em todos os níveis, desde (…) um nível médio de mercado até o top, aquele nível alto, (…) funciona da mesma forma, os contatos sociais são fundamentais. Como eu falei, você pode ser um grande artista, um gênio, se você pintar na sua casa e ninguém conhecer, não adiante. Aí cai naquela questão, se você faz por amor, beleza, por hobby, mas se você quiser ou pretender entrar nesta questão profissional, precisa ter contatos. A parte virtual, eu acho que é uma outra ferramenta que veio nesse sentido, Facebook, Twitter, eu faço uso, eu tenho uma página do meu estúdio no Facebook e uma página pessoal (…) Você põe obras, põe alguns textos, mostra, então, é uma outra maneira de você expor, de eu expor o que eu faço, divulgação bem ou mal está ali. No geral, é uma ferramenta que é útil, sim. Agora tem aquela questão, você pode fazer um mal-uso ou um bom uso, como toda ferramenta. Esther Góes Entrevista concedida em 27/03/2014, em São Paulo - SP Há controvérsias sobre o que é ser artista hoje. Algumas pessoas se dedicam à arte de um jeito e outras de outros. Parece a mesma profissão, mas nem sempre eu diria que é exatamente a mesma profissão. A prática artística ela se disseminou muito, principalmente aqui no Brasil. Todo mundo gosta muito da prática artística, de dançar, de representar, de se aproximar do teatro, da representação, do exercício, da arte, do exercício da arte, isso é uma coisa muito bacana. Agora, quando se trata do papel do artista e do que ele faz mesmo, isso eu acho que são coisas muito diferentes o que os artistas realmente fazem. Alguns se dedicam a um tipo de coisa mais ligadaao entretenimento, ao exibir destreza, treinamento, humor, todo um trabalho de saber fazer, de ser virtuoso, de uma comunicação com a plateia, e tudo isso tem valor, isso tudo é uma coisa bacana... Mas, para mim, há um segmento que eu acho que para mim é o mais importante que é o cara que ele procura aprofundar as questões da humanidade através da arte. Para mim, esse cara é o artista por excelência, esse cara tem uma noção da dimensão da arte, esse cara, para mim, representa alguma coisa. Ele permanece, ele é o que sedimenta, o que faz acontecer, de fato, a arte e o que eu chamo de artista, para quem o exibicionismo não preenche, nem mesmo o virtuosismo não preenche, saber fazer bem não é o suficiente. Ser aceito fazendo bem também não é o suficiente. Esse cara desafia o utras questões, vai mais fundo e se arrisca mesmo que ele não seja amparado pela aprovação geral, pela conquista de glórias, que ele às vezes até tenha que encarar dificuldades, esse cara quer ir longe, vai mais longe porque essa é compreensão, a lógica que ele entende desse artista que pretende sondar mais fundo, saber mais, procurar mais com mais sensibilidade as questões que estão ali, latentes, as nossas questões humanas através da arte. Para mim, o artista é esse. Quando a gente fala do papel, também fala assim que manter essa postura é uma coisa muito complicada e trabalhosa. E eu acho que também parte dessa questão do que é ser artista hoje 197 manter determinadas posturas. Há artistas e artistas e alguns, digamos, esses que eu reconheço como artistas, eles preferem manter essa lógica, eles mantêm uma postura, eles não se abandonam à primeira moda, nem à segunda, nem à terceira. Tem alguma coisa que eles querem verificar e al manter isto, eles mantêm isso para todos. Então, isso também faz parte, é fundamental. É um papel, né. O trabalho do ator, para mim é assim, a gente começa trabalhando uma determinada coisa e depois começa a trabalhar aquilo que envolve esta coisa e depois começa a ampliar e a dimensionar e a redimensionar e quando você vê, você está fazendo tudo. Então, você começa interpretando, daqui a pouco você também está produzindo e depois que você produz, você começa a traduzir, você começa a dirigir, você começa a escrever, você começa a trabalhar tudo. Daqui a pouco você está tendo um curso, aí você começa a imaginar uma cenografia e depois você começa a partilhar coisas... Então, você vai atingindo outras lógicas e isso tudo começa a fazer parte de um todão, que, com o passar do tempo, não é o suficiente uma parte, você precisa partilhar mais coisas. O seu trabalho vai se completando porque às vezes você está com toda uma lógica de um personagem, mas se você pode chegar para dentro de um lugar e ver que o cenário está errado. Ou você pode chegar lá e ver que o figurino é muito artificial, que ele não pega fundo, que não vai onde deveria ir. Então, você tem toda uma coisa aí que está toda interligada que nem o corpo humano. Uma obra tem uma lógica, uma organicidade “filha da mãe'. Tem lá, entendeu? Então, uma coisa leva à outra, que leva à outra e leva à outra e não dá. Por que a gente de repente fala: “então, mas isso tem que ser assim”? A gente até briga, parece absurda aquela briga porque você quer aquilo, não pode ser outra coisa. Porque é orgânico e porque uma coisa contamina a outra. Então, não é uma coisa que você tem uma obra que quer dizer uma coisa e um cartaz que quer dizer o inverso. Não dá. (…) Então, de alguma forma, você acaba participando de todas as partes dessa criação. Então, para mim, hoje em dia, por exemplo, para fazer o teatro que eu quero fazer, eu não posso deixar de produzir. Para produzir, eu tenho que participar de um monte de coisas. Eu tenho que participar de uma política cultural, tenho que ir procurar condições, recursos. Então, a gente passa também o que procura recursos para fazer aquilo. A gente vai cada vez ampliando mais o nosso espectro. Para fazer a obra que eu quero, não basta eu interpretar porque então vem diretor que não é bem aquilo, que vai fazer daquilo que eu estou querendo um outro trabalho. Então, para manter este trabalho que eu quero, eu prefiro dirigir e às vezes desdobro isso em dirigir e interpretar. Faz parte da mesma, digamos, proteção a uma criação que tem autenticidade, que tem uma lógica e que a gente quer preservar isso. Por exemplo, existem duas formas de economia do teatro hoje em dia. Uma atrelada às leis, outra não. As duas coisas. Por exemplo, trabalhar aqui na Funarte neste momento é uma forma de conseguir recursos que não atrelados à lei. É um duplo papel. No que concerne às leis, às leis de incentivo, o Estado tem procurado cumprir isso. Mas a outra parte que não se refere a isso, que se refere ao trabalho dos artistas que preferiram não vincular, até porque muitas obras não terão a proteção de nenhum departamento de marketing, ou dificilmente terão. A gente já sabe a dificuldade de uma captação. Como você vai convencer alguém a fazer uma coisa? Então, determinado tipo de trabalho não consegue não. Não é para ele estar lá, é para ele estar aqui. E essa proteção, ela é importantíssima. Essas são obras que estarão no mercado de uma outra maneira. Esse lado da coisa que eu acho que ainda o estado não enxergou direito a importância disso, de como proteger esta necessidade daquilo que está sendo criado e sem o objetivo direto do sucesso que cabe numa lógica mais mercantil, mais de mercado mesmo e que pode então disputar o seu espaço nas leis de incentivo, aquelas que não, que têm uma outra qualidade, elas têm que ter uma outra maneira de proteção. Isso eu acho que está faltando muito para nós. E o papel das redes sociais, vou te dizer, é muito bom as redes sociais para disseminar e para divulgar obra artística. Por exemplo, a minha participação em redes sociais é só para divulgar obras artísticas, discussão artística, tudo que interessa à arte. (…) as redes sociais podem promover um monte de coisas, mas em termos de arte mesmo, eu me encontro muitas vezes, quer dizer, é um segmento, você vai usar e tal, mas eu encontro muito mais a verdade e parceria e receptividade ainda nas velhas parcerias com os professores, na educação. Eu acho que o verdadeiro parceiro da obra é o educador. A rede é só papel de divulgação. Você pode divulgar na rede de uma coisa lá, que dá o maior “pedal” porque as pessoas já estão recebendo aquilo, já estão vivendo aquilo, já gostam dauilo, é o que o mercado já está vendendo, “vai que vai”. Então, é muito mais fácil vender a comédia, a coisa, muito mais fácil, em qualquer lugar. Agora, o educador é que vai compreender um trabalho que tem um refinamento, que tem uma outra qualidade, que é um trabalho de pesquisa maior, que é um trabalho que está indo mais fundo, o que não quer dizer, por invrível que pareça, que uma vez que você consiga ir mais longe, os outros todos não consigam entender também. Pode 198 chegar a tocar todo mundo, sim. Mas é um caminho muito mais difícil e muito mais delicado, muito mais perigoso, muito vulnerável, muito mais difícil de fazer. Lenita Ponce Entrevista concedida em 06/01/2014, em São Paulo - SP Eu acho que ser artista hoje é um grande desafio. Hoje e sempre. (…) Vou falar um pouco como atriz, que é a área que eu sei melhor. Mas eu acho que o grande desafio mesmo é você saber como o que você está falando vai de fato rebater em algum sentido (…), se vai ser efetivo de alguma forma no outro (…) O grande desafio de ser artista hoje é você conseguir manter a realidade de seu pensamento junto com a realidade de executar o que você tem para executar (…) Deixou de ser só – não sei se algum dia já foi – uma coisa de ter um grande romantismo por trás para ser uma coisa mesmo de quase guerrilha, uma coisa de ação mesmo, entre o que você vislumbra e o que você de fato consegue fazer. Como artista, é o mesmo de todo profissional, de todo, que é fazer bem o que você tem para fazer, é ser fiel ao que você acredita, como intenção na ação. De novo a mesma coisa: meu papel na sociedade é fazer e ser o que eu acho que tenho que mudar e manter o que eu acho que não tem que mudar. É um desafio imenso. Sou parte de um grupo e sou líder de outro. O que eu tento fazer: ver o que de projetos e de ideias minhas cabem dentro do que a sociedade me proporciona. Acho que a gente está num momento em que o Estado está... Tenho até medo de falar isso, mas acho que é verdade (…) A gente está em um momento em que os horizontes estão se abrindo mais para as artes e para a cultura. Eu acho que a gente de fato tem um momento privilegiado no Brasil, talvez em comparação com outros momentos. E acho que a gente usa muito pouco. Usa e ousa muito pouco. É lógico que a gente precisa aprender a produzir, aprender a administrar e a gente acha que não é o papel do artista. Mas eu acho que talvez seja porque o mundo está pedindo isso para todo mundo, por que o artista iria ficar de fora dessa? Eu acho que não, acho que todo mundo tem que aprender, então o artista também tem que aprender. Então, eu faço isso. Eu tento aprender como eu uso o subsídio, como eu uso o que eu tenho de ferramenta minha e do Estado para fazer acontecer. Eu acredito muito nisso. Eu não sou uma pessoa que acredita muito nessa coisa de usar a “grana” privada. (…) Posso ser romântica, mas eu acho que a saída está mais no público do que no privado. Porque eu acho que ainda tem a possibilidade da gente dizer que é nosso, que é do coletivo. Quando é privado, não tem mais essa possibilidade. Só é de quem pagou para ver. Eu acabei de voltar de fora do país e uma das sensações mais incríveis que eu tive... (…) A gente tentou entrar no Musée d’Orsay, em Paris, estava de graça e tinha uma fila gigantesca e eu perguntei para o guardinha “mas por que está esta fila?”. E ele falou assim: “esta fila é porque é de graça e, quando é de graça, eu não sei quantas vezes os parisienses resolvem vir de novo.” E me “deu uma coisa”. (…) Não é só turista. Tem um monte de turista, lógico. Mas a própria cidade consome o seu museu. Isso é sonho aqui. Isso é um negócio para construir. Então, por isso que eu acho que está no público. (…) Eu quero ver a Funarte ou o MASP oferecendo coisas de graça e as pessoas indo. Tem às vezes, mas as pessoas não vão. Elas só vão começar a ir se a gente começar a trabalhar para que elas venham para dentro desses lugares. Pra mim, a prioridade atual é entender da tal da economia porque eu acho que a gente, eu pelo menos, eu ainda fico muito na mão de gente que “manja” muito mais disso do que eu. E talvez só por desconhecimento mesmo, ignorância no sentido de desconhecer algumas coisas, eu acho que a gente acaba ficando muito alheia, muito na nossa coisa de “fazer arte é outra coisa” e aí você se perde nisso. Se perde para fazer essa ponte, porque eu acho que uma coisa precisa da outra, que precisa da outra. Então, o social precisa do artístico, o artístico precisa do econômico e as coisas estão misturadas, não adianta mais a gente querer que seja cindido, é tudo meio líquido, meio bagunçado... Eu acho que o papel das redes sociais hoje é um pouco permitir que eu mostre que eu sou alguma coisa que não necessariamente (…) ou um desejo do querer ser. Eu uso o Facebook, o Instagran para divulgar o meu trabalho (…) Eu sei que cada um usa para uma coisa, mas normalmente é isso, uma auto divulgação ou uma divulgação de alguma coisa em que se acredita. Então, ela funciona como mídia, mas é muito efêmero, muito rápido. Hoje foi uma coisa, amanhã eu já esqueci o que foi no Facebook de ontem ou no Instagran de ontem. Então eu acho que ela funciona, sim, como mídia, mas ao mesmo tempo, é uma mídia muito instantânea. Eu não sei ainda. 199 E acho que a gente ainda vai ver no que vai dar. Para articular (os artistas) é ótimo, é fantástico, funciona que é uma loucura. Você divulga coisas muito rápido. Por exemplo, a gente usa muito essa coisa de grupo. Então, faz um grupo no Facebook, que é o meu núcleo artístico e aí eu mando minha pesquisa para todo mundo e todo mundo tem acesso rápido a isso. Tem uma coisa extremamente positiva. Mas tem essa coisa da grande quantidade que vira lixo. Então assim, eu tenho uma pesquisa incrível do espetáculo que a gente está montando. Aí eu mando a minha pesquisa e eu tenho dez atores e cada um manda a sua. Eu, na sétima que eu receber, eu já vou falar assim: “ah, não! De novo? Eu não vou ler!” (…) Acaba sendo um volume de informação impossível. Então, acho que tem esses dois momentos: tem um momento muito bom, de muito acesso à informação, e um complicado, porque é tanta informação que eu não consigo ver nenhuma. Eu acho assim: tem o espaço e tem o dinheiro... Fica uma lacuna entre o trabalho artístico e o administrativo em si da coisa. Muita gente fala: “Ah, tem os produtores”. É super complexo ficar na mão de produtor. Aí você fala: “eu vou produzir”. Daí você entra nesta lacuna que é exatamente a lacuna entre o artístico e o administrativo. O que eu sinto falta... Isso talvez – eu ainda estou formulando isso na minha cabeça, não posso dizer com certeza - , mas a sensação que eu tenho é que o que falta é, por exemplo assim: “ganhou o edital”. É uma chance, então, vamos trabalhar juntos? Estado e artista. (…) E vez de ter um que administra todo mundo, como seria você conseguir ter, para cada artista, um “cara”, que é um “cara” do Estado mesmo que está me assessorando e trabalhando junto (…). É dinheiro público, né? E é dinheiro público em tudo, até em uma Rouanet. Por mais que a “galera” diga que: “ah, ao, veio da empresa”, é dinheiro público, é imposto (…). “Neguinho” vem dizer “é da Porto Seguro, ou é do Bradesco”. Não é do Bradesco, é do Estado. Não é do banco. E tem um equívoco aí. E o que eu sinto falta é isso mesmo, é você ter (…) um administrador estatal da coisa. (…) Vamos dar o exemplo da Rouanet: fui contemplada pela Rouanet e aí a Porto Seguro resolveu me patrocinar. Beleza, eu recebi essa grana, quem tem que administrar essa grana, não sou eu e não é a Porto Seguro (…) Por mais que isso tire a “autonomia” dos artistas, eu acho que, por outro lado, não tira, faz ele trabalhar com o público de verdade. Ele perceber que ele está fazendo um negócio que não é com o dinheiro dele, é dinheiro de todo mundo. É dinheiro de imposto da sociedade. Então, ele tem que devolver. Não devolver o dinheiro, mas tem que devolver em produto. Eu sinto falta disso, eu acho que talvez seja uma coisa ilusória e romântica minha. Mas eu acho que cada projeto contemplado tinha que ter um “cara”do Estado que está lá junto, que está dando essa assessoria, que está falando “vai por aqui, vai por alí, isso funciona no estado, isso não funciona”. Quando você está dentro do órgão público, você consegue ver um pouco mais como é que o entorno desse órgão específico funciona, o entorno social mesmo da coisa. O artista que chega aqui, ele não sabe, ele pode fazer a pesquisa dele, mas não é a mesma coisa do cara que está alí todo dia. Eu trabalhei lá na Assembleia e o que eu olhava era que todo o impulso artístico de fazer coisas lá dentro tinha a vontade política. Tudo tinha que juntar: a vontade política mais a “grana” que você tinha que conseguir de patrocínio externo. Não tem verba lá para isso. E mais o entorno receber isso. Então, se você pensar no Palácio Nove de Julho. Ele está ali na frente do Parque do Ibirapuera e ninguém entra. Ninguém ousa entrar naquele palácio, que é da sociedade. Se você faz uma sessão de cinema, se você faz no estacionamento... Ali tem um espaço fantástico, outro em que ninguém entra. Faz uma sessão de cinema... Se você tem uma vontade... Mas aí tem que ser o artista trabalhando junto com o cara público. Ai você consegue fazer uma coisa interessante socialmente. Se você cinde, simplesmente dá a grana na mão do artista, o cara vai fazer a vontade dele. E não necessariamente a vontade dele tem um impulso público, porque está bem em falta ter o impulso público. Isso é uma verdade. (…) Porque você tem muitas vontades suas e ai você quer realizar (…). Eu acho que é isso. Eu acho que se tivesse esse cara que te lembra, que te faz voltar um pouco para o real, que te faz voltar um pouco para o como uma sociedade funciona (…) Aí eu acho que começa a andar um pouco mais junto. Mesmo aqui, na ocupação, tinha lá o grupo de dança fazendo a vontade do grupo de dança, o grupo de teatro fazendo a vontade do grupo de teatro, o grupo de música fazendo a vontade do grupo de música... Legal, e o cara que frequenta a Funarte? Como ele vincula isso tudo? E se fosse vinculado? E se a gente tivesse conseguido, de verdade, fazer uma coisa vinculada um com o outro? Eu sei que é super difícil, mas não e impossível (…) Vontade é uma palavra que todo mundo tem. Se você tem o cara que fiscaliza isso, que te obriga a entrar dentro do eixo, pelo menos no início, aí você entra (…) Aí você começa a falar assim “isso aqui é minha vontade, isso aqui é vontade do outro, mas se eu chegar ao meio termo, talvez eu consiga mais público, ou talvez eu consiga fazer com que o negócio floresça e dure mais tempo e que vire um projeto que tenha continuidade, um projeto conjunto, que não seja “tem um edital agora e o próximo edital X é outra coisa”. E eu acho que isso revitalizaria os lugares públicos e as pessoas voltariam a frequentar. Isso aconteceu lá na Monteiro Lobato, mas ficou na mão de um grupo. Aí dá! É do Truks, 200 está lá, é deles, em aspas... Mas eles já estão lá há um tempão, aí funciona. Eles têm o público deles, que já vai sempre, que frequenta a biblioteca. Mas é minúsculo. Você fazer isso num órgão como a Funarte! Ia ser lindo! O espaço é incrível, a intenção, pelo menos que eu vejo, de todo mundo que eu conheci aqui, é a melhor. A disposição para trabalhar é total. Falta mesmo esse fio condutor de fazer todo mundo olhar para o mesmo lugar. Luís Arrieta Entrevista concedida em 16/01/2014, em São Paulo - SP Eu, cada vez que falo a palavra arte ou artista, fico com um pouco de dedos, acho muito grandiosa essa palavra. Não sei se estou fazendo isso, mas gostaria possivelmente de ser um artista. Eu não sei se a arte tem um papel, uma função. Se você me perguntasse, por exemplo, para que serve a arte, usando a palavra servir, eu diria que ela não serve, ela não serve a nada, para nada e a ninguém. E eu acho que um pouco a função dela é isso, é não servir. Eu sinto ela como uma possibilidade de estimularmos outros meios de percepção da vida, da realidade, que não aqueles que usamos o tempo inteiro, principalmente que não aqueles do intelecto. Há milênios, acho que vivemos muito fascinados pelo intelecto e os espetáculos, ou uma pintura, ou qualquer coisa que tenha esse caminho, eles funcionam um pouco para acordar esses outros centros de percepção. Esses outros centros de percepção, eles ficaram um pouco desacreditados, ficaram um pouco adormecidos, latentes porque meio que todos os outros centros de percepção tiveram que se ajoelhar perante o intelecto. Hoje queremos entender intelectualmente tudo e, muitas vezes, vou tentar falar isso de uma maneira mais simples, para que não pareça uma coisa complicada, muitas vezes eu vejo pessoas que assistem alguma apresentação ou têm uma emoção profunda por alguma situação que estão percebendo, e queremos o tempo inteiro entender intelectualmente porque isso acontece, o que significa isso, e como que tudo tem que ter o aval do intelecto. Não estou achando que o intelecto não seja necessário, aliás, estou me valendo dele neste momento para tentar me explicar. Mas o que eu acho que é a arte ou artista, possivelmente a função dele seja de não servir para nada realmente, de não servir a nada. Isso pode parecer que, então, a função dele não é importante, ao contrário, acho extremamente importante, penso que é muito importante exercermos e praticarmos e desenvolvermos as outras maneiras de percepção que temos para ter uma vida mais completa. Os trabalhos artísticos, sejam de teatro, de dança, de música, de tudo isso, eles parecem que conseguem furar esses bloqueios, essas muralhas do intelecto, para estimular esses outros centros. Isso não é pouca coisa não, eu acho que praticamente seria o único motivo que temos para estar aqui. Não sei se digo isso muito influenciado, porque é a atividade que eu exerço. Mas acho que não, não é só puxar sardinha (…). Muitas vezes tenho me questionado se comer, dormir ou ter coisas é um fim. Existe uma vida mais plena dentro de nós porque o tempo em que estamos aqui, independente de acreditar ou não em outros planos de vida, eu acho que é uma coisa que temos que treinar. Pode ser que aqui já seja o paraíso, e pode ser que aqui já seja o inferno, aqui já é o infinito. E, então, as atividades chamadas de artísticas, de alguma maneira nós estamos mexendo com isso. Então, quando penso assim a arte como trabalho, economia e tudo isso, depende de que economia estejamos falando. Se falamos da economia de uma sustentabilidade, para usar a palavra da moda, mas uma sustentabilidade energética dos seres humanos, é de primeira grandeza econômica (…) Tudo que estou falando pode parecer super utópico, mas já não fico mais com medo de dizer. Acho que sim, que a gente está vendo a toda hora o mundo ao nosso redor e a necessidade desses outros elementos, que nos toquem de alguma maneira. Aquela poça d`água com o sol brilhando ou uma brisa tocando em nossa pele, uma flor, essas coisas estão ai, estão para todos os seres. Então, possivelmente o artista se encarrega de estar colhendo essas coisas e botá-las um pouco à tona para que não esqueçamos que existe algo muito mais... Não quero usar a palavra nem melhor nem pior, não é melhor, é mais completo. (…) Elas se difundem, num plano mais material, através, digamos assim, da publicidade, da matéria, até nas próprias redes sociais. Mas ela anda por outros lados, incalculáveis, inimagináveis e religiosos. Religiosos, não no sentido de dogma, de igreja. Religiosa no sentido de religar, religar algo que está desligado e que ela de alguma maneira faz esse trabalho. Ela está fazendo limíte ou se penetrando com a bruxaria, com as religiões, com tudo. Mas é certamente isso, ela é de alguma maneira uma ponte entre planos diferentes. E tudo isso que estou dizendo e que poderia fazer com que a arte pareça algo tão impalpável, aliás, impalpável é, mas digamos que poderia parecer que ela seja tão nada, possivelmente a palavra seja nada, só que com outra percepção da palavra nada. E 201 então ela é de uma importância primeira, eu acho. Eu acho que a primeira função da vida... Às vezes quando vejo, por exemplo (…) que a pessoa tem que ter primeiro a moradia ou o alimento e o transporte e também o lazer. Como também? Eu acho que é principalmente isso. Aliás, a arte deveria estar impregnando qualquer uma das coisas que estejamos fazendo a toda hora. Meu pai era confeiteiro, fazia bolo, aquelas coisas, e ele trabalhava em uma confeitaria e ele fazia aquelas coisas. E era um operário e ganharia, como todo operário, bastante mal, seguramente. E teve que trabalhar muito a vida inteira braçalmente. Mas não deixou de ser um grande artista, dava para ver que ele, no seu dia a dia, na maneira com que ele lidava com aquilo. Outra vez também, eu, por exemplo, fui ver... A um tempo atrás tinha que fazer um trabalho, uma coreografia sobre vidro, um trabalho chamado Ponto Vitral e fomos visitar umas fábricas artesanais de vidros e fiquei deslumbrado com homens, primeiro muito suados, porque o calor dos fornos é imenso e gente aparentemente tão matéria, tão tosca, e ao mesmo tempo saía do sopro deles expressões de uma beleza quase divina. Então, eu acho que, se tem uma função, essa função realmente visa essa transformação. Insisto, não é pouco, sabe? Porque não seja palpável, que o intelecto não possa apreendê-la, porque o intelecto não possa segurá-la, não é menos, ao contrário, ela escapa às mãos do intelecto. Nesse sentido, eu acho que ela é a economia que se deveria olhar com mais cuidado. Hoje em dia tem uns índices de felicidade em alguns países, mas eu escuto jornalista quando fala disso, meio com um sorrisinho sarcástico, como se dizendo “olha que besteira”. E mesmo que esses índices ainda sejam feitos através de posse, porque feliz é se tem dinheiro para comer. Então, também. Não estou tirando essas importâncias Então, depois de tudo isso, se você me diz o que ser um artista hoje: primeiro, tomara eu pudesse ser um artista! E sou muito grato e feliz de ter a sorte de poder estar... Eu tenho esse espaço aí, por exemplo, feito para que possa deixar um corpo se expressar. O que é ser um artista hoje? É ser um colaborador do todo. Mauro Martorelli Entrevista concedida em 08/01/2014, em São Paulo - SP Acho que, não só hoje, mas em todo momento, em toda a história, você ter a opção de seguir uma carreira artística, você trabalhar com arte, sempre foi difícil. Nunca é fácil. Primeiro porque parte de uma necessidade (…) de se expressar na sociedade, de se comunicar com o tempo que você está vivendo, você se tornar pertinente a esta sociedade, a este tempo que você está trabalhando. A forma de se expressar e a forma de objeto, independente da linguagem e do objeto em que você vai se expressar, a dificuldade de ser artista é a mesma, acredito que, do que eu leio, do que eu vejo, do que eu conheço da história dos outros artistas, a dificuldade sempre é a mesma. A diferença que eu vejo do início da minha carreira, com o que a gente convive, vive hoje, é o acesso à informação, o acesso à comunicação, o acesso a você conseguir desenvolver uma técnica, conseguir desenvolver um trabalho, ter respostas ao teu trabalho, às vezes levava meses, anos, porque um espetáculo de teatro que você fazia hoje, você tinha uma resposta que era através dos amigos, ou às vezes de uma gravação, de um registro, quando você retornava a ver esse espetáculo é que você tinha essa resposta e hoje a resposta é quase imediata, você produz aqui, já, pelos meios de comunicação, via rede social, via Facebook, você tem uma resposta do teu trabalho quase que em tempo real. Se agradou, se não agradou, se tem alguma pertinência, o que é bom para a sociedade está pedindo, o que a sociedade está gritando ou se não (…). Ao mesmo tempo, isso cria uma pressão de imediatismo do artista de querer dar respostas. Chega num momento em que você já não quer mais, você já não tem mais essa preocupação. Antigamente, essa preocupação de ter que dar uma resposta à sociedade era uma pressão, para mim pelo menos, era quase que uma pressão cotidiana. Hoje em dia há também essa questão da resposta imediata, das redes sociais, da mídia, do Facebook, dessa coisa de ter contato de quem vê a sua obra também te desobriga até uma certa indiferença com relação ao objeto ou resultado. Então, ao mesmo tempo aproxima de uma resposta, mas ao mesmo tempo também te distancia de uma realidade de convívio, de resposta mais direta, de resposta mais dinâmica dentro da proposta de qualquer atividade artística. Tem essas duas questões. (…) Quando a gente trata de cenografia, quando trata de expressão de artes plásticas, a gente vive em sociedade, a gente convive com a sociedade, a gente tem que dar certas respostas, a gente se sente obrigado a dar certas respostas às questões que estão sendo colocadas, não só as questões artísticas, mas a questão das angústias pessoais, interpessoais, preocupações dentro do contexto histórico do presente, tem um caráter de urgência em relação à resposta. A gente sente essa necessidade, mas na verdade, o papel do artista sempre foi de instigar, de provocar, não é 202 nunca de tentar dar uma resposta, isso existe, mas não é uma obrigação da arte, mas sim de instigar, de quebrar paradigmas, de quebrar fronteiras, de avançar, de dar um passo à frente. É mais na questão de oferecer ar para quem está afogado dentro da pressão do cotidiano. A minha resposta como artista é essa frente a sociedade. É de procurar achar caminhos para a poesia, para o sonho, tentar dar alguma resposta com relação a isso. Achar que ainda é possível mudar. Meu dia a dia é bem corrido. Além de ter um trabalho que garante meu sustento, que garante minha sobrevivência, eu tento achar brechas nesse meu dia a dia para a poesia, para o sonho (…) Eu digo até que meu ponto de vista, na Funarte eu estou para fornecer a possibilidade do artista se expressar. Aqui eu tenho um trabalho que é do meu dia a dia, que me sustenta, que é oferecer condições, que é um trabalho técnico, de que aquele artista possa realizar o trabalho dele. Tenho essa preocupação. Mas além disso, eu penso como eu posso colaborar para que eu tenha um espaço melhor, eu tenha um lugar melhor, não só para mim, mas para quem for vir daqui por diante, tenha espaço para poder ter condições de desenvolver seu trabalho artístico. Isso está relacionado com meu trabalho de cenografia, isso está relacionado com meu trabalho de iluminador, porque a gente trabalha na retaguarda. Nosso trabalho artístico, nosso trabalho de criação é de suporte, de apoio às obras, de espetáculos de artes cênicas. Então, a gente fica entre o limiar entre a arte e a técnica. A gente trabalha entre esses dois limiares. Dentro do aspecto da criação, a gente tem a liberdade, a gente tem o desejo, só que a gente fica atrelado a servir o artista, a servir aquela companhia, a servir ao dramaturgo, a servir ao texto, a servir à palavra, a servir ao ator. Isso não é ruim. (…) É um parâmetro para nortear o teu trabalho. Porque você trabalha com uma arte que é um trabalho de apoio, de base, de estrutura para aquele espetáculo, para aquela companhia de teatro, para aquele ator, para aquele bailarino, para que todo esse trabalho possa ser realizado. Esse eu acho que o papel meu no dia a dia: minha arte servir a outros artistas e servir a uma exposição, a uma linguagem, servir à construção de um outro ser, um outro possível, uma outra poesia. É difícil falar em economia e arte. (…) Às vezes é até um palavrão falar sobre economia, falar sobre dinheiro , com relação às artes. É um preconceito enorme com relação a isso. (...) A arte está muito além dessa questão de economia, está muito além da questão do dinheiro propriamente dito. Tem trabalhos que a gente faz pela paixão e “foda-se” o dinheiro. Porque você tem essa necessidade, que é a necessidade de servir a uma expressão, servir a uma linguagem. Como artista, eu não me vejo atrelado a uma questão propriamente econômica. Mas, claro, que tem o valor do meu trabalho, tem o valor do meu serviço, você tem toda essa relação. Mas a economia da arte... Existem lados e mais lados com relação a essa questão. Tem pessoas que vêm a questão econômica como pecado dentro da arte (…) e eu acho que não. Todo trabalho tem seu valor, seja ele financeiro, ou seja, ele de aprimoramento, de conhecimento. A economia com as redes sociais faz com que você tenha uma resposta , exatamente como a questão da resposta positiva, a resposta também financeira com relação às redes sociais se aproxima de outros trabalhos. A partir do momento que eu divulgo, tenho um trabalho que está sendo divulgado, que tem uma projeção ou no meu site ou no site de amigos (…) A partir do momento que você tem essa resposta da repercussão de um trabalho, chama a atenção de outras pessoas (…) Às vezes, realmente não rola. É uma fantasia achar que agradou um, agradou todo mundo. O Jeni Raskin falou assim: “você fez um trabalhinho que você achou bonito? Joga no lixo. O próximo, você joga no lixo. Acha que é uma merda. Não se ilude com isso, não, porque isso passa. Começa do zero, não pensa que você está com o jogo ganho não. “E eu acredito nisso, eu acredito muito nisso. Outra coisa que o Abujamra fala muito: “sucesso e fracasso, eu não acredito em nenhum dos dois, os dois são impostores. Então, você tem de ter uma dinâmica de aceleração de processos de trabalho. (…) De repente, você faz um objeto de cena que é bacana, que é lindo, as pessoas se encantam e só vão te procurar por causa daquele objeto, ou daquele cenário, ou daquela luz. Mas aquilo passa (…) Aparece um outro novo, melhor, mais bonito, mais chique, mais dinheiro, passa.... As relações interpessoais, as diretas, aquelas em que você tem que ouvir, essas ainda são muito mais marcantes e muito mais rentáveis e muito mais reais do que qualquer outro contato que você possa ter por qualquer coisa. Essa coisa de redes sociais e internet é bom para vender móvel, é bom para vender sapato, é bom para vender equipamento, ferramenta, essas coisas. Na arte, o contato é outro, a relação é outra, a relação é de muito mais proximidade. Por mais que você tenha um resultado, você tem, principalmente no meu trabalho, que é um trabalho coletivo, dentro de artes cênicas, você tem a questão do convívio, você tem a questão do dia a dia. Se você não tem um convívio saudável com direção ao diretor, teu figurinista, teu iluminador, teu cenógrafo, um ator da companhia, pode ser o cenário mais lindo que for que você tenha no projeto, às vezes as coisas não dão certo. A minha relação, que eu acho que às vezes facilita, é porque a gente reencontra pessoas que são queridas. (…) Vamos supor, há muito tempo que você não vê uma pessoa, que você está dentro do trabalho, que você vai lá, liga o seu Facebook, você fala: “olha só! 203 Podia ter chamado Fulano de Tal para estar junto. O que acontece é isso, aproxima nesse sentido, mas não muda a relação do olho no olho, cara a cara, isso, não muda. Pelo menos na área com a qual eu convivo, não muda e acho que talvez não vá mudar nuca. Umberto Magnani Entrevista concedida em 08/01/2014, em São Paulo – SP (O artista) é o que já falava o Shakespeare, que era o espelho da sociedade. E a gente tem que ser mesmo. É um dom que a gente tem, que se torna uma espécie até de missão, mas sem aquele tipo claro de missão fanatismo, de nada, mas de estar atento sempre, porque muitos de nós somos conhecidos e tal, e às vezes uma entrevista da gente, uma coisa que se fala ganha outro tipo de dimensão. Então, está ligado, como sempre, o artista, de refletir realidades e criar novas realidades, propor a criação de novas realidades e o mundo é movido assim. Lá atrás já tinha sido criada a viagem interplanetária, submarino, um monte de coisas, através da literatura, depois do cinema. Então já acontece. Então, não é totalmente loucura do artista isso. Mas ele vive do sonho, ele vive pensando em modificações, propostas de modificações. Eu encaro que é uma coisa quase que sagrada mesmo. O que não quer dizer que sejamos excepcionais e fora, pelo contrário, quanto mais a gente estiver atento e convivendo com qualquer tipo de pessoa, desde o vizinho até onde você estiver, numa rodoviária, num aeroporto, ter essa antena ligada. E não é assim: “vou ter essa antena ligada”. Ela é ligada naturalmente. No caso de ator, por exemplo, tem até uma brincadeira que o ator é especializado em assuntos gerais, porque, no meu caso, por exemplo, mais de 100 papéis que eu já fiz. Então, são 100 realidades que a gente vai pesquisar, estudar. E mesmo assim, um pouquinho e a gente acha que já conhece tudo. Mas também passa a não ser um ignorante naquilo. E no que aquilo tem relação com outras coisas. Eu vejo assim. Eu não digo a maioria, mas a maioria é assim sem saber que é a função dele. E outros não sabem. Não vou discutir o trabalho deles. Cada um é cada um. Então, esse é o nosso papel na sociedade. Eu, por exemplo, quando, principalmente em teatro, que agente é mesmo agente de nós mesmos. Claro que tem uma direção, tem tudo, mas é uma visão das coisas não fechada, mas você sabe que tal peça trata de tal coisa e mesmo com a direção e mesmo dentro do que o diretor quer, que o autor escreveu e tal, a partir de um determinado momento que eu não saberia dizer qual é, mas depois de um entendimento, a gente é dono da interpretação da gente. (…). Se eu consigo colocar pelo menos um espectador por sessão para pensar, para mim é uma vitória. Nós não temos nenhum direito a nenhum tipo de alienação, de preconceito, de nada. Está sempre aberto ao diálogo no palco ou fora dele. E eu falei teatro porque no teatro a gente é dono da gente, como eu já disse. Na televisão já é um outro esquema e cinema já é do diretor. O Paulo Autran que falava que teatro é do ator, cinema é do diretor e televisão é do patrocinador. Mas mesmo dentro disso, sempre que a gente pode, eu pelo menos, procuro passar alguma coisa assim humanista, social. (…) Como ser útil ali. E, a partir do momento, por exemplo, no teatro, vamos supor, você vai fazer o Otelo, do Shakespeare, você fica ali uma hora e meia ou duas horas com aquele ciúme doentio, entende? Por que? Não é verdade? Porque eu cito o Otelo, mas diria outros. O Shakespeare não escreveu sobre um homem ciumento, ele escreveu sobre o ciúme, que todo mundo sente, claro, ninguém diz “eu não sou ciumento”, mas todo mundo sabe que tem que administrar. Então, esse ponto de vista eu não deixo nunca e já está automático, aquelas perguntas sempre: o que eu vou fazer, por que eu vou fazer, pra quem eu vou fazer, perguntas que eu me faço e que muita gente se faz no começo de um trabalho. O que eu estou fazendo aqui? Por que eu estou ciumento, morrendo de ciúmes durante duas horas? Eu não tenho nada com isso... Vou carregar o peso nas costas, é uma coisa meio cristã até, meio Cristo: morre no palco para salvar as almas, aquela meia dúzia ou cem ou duzentas que estão assistindo. Claro que é um parâmetro assim, pelo amor de Deus, tem que ser bem entendido isso, compreendido. Mas é meio por aí. Tem uma coisa meio religiosa no trabalho do artista. Religiosa no sentido da religiosidade interior, não necessariamente de uma ou outra religião. Toda conversa que eu tenho, aquelas famosas de boteco. Eu vou envelhecendo e indo cada vez menos ao boteco e o boteco está acabando, está virando lanchonete e, às vezes, é até meio violento. Mas no tempo do boteco sadio, de uma boemia sadia, que o Plínio Marcos falava, a gente usava para criar, para produzir. Claro que nem 1% desses projetos, de jogar conversa fora, deram certo, continuaram. Mas, de repente, um, dois, três, quatro ou cinco anos depois, aconteceu com alguém, que nem estava lá. Então, era um processo criativo, que não significava sair e produzir e tal. E o grande problema é difundir artes, a não ser em conversas, porque os espaços de jornais estão 204 cada vez menores para isso, a própria crítica, em todas a artes, ela continua existindo, graças a Deus, mas o espaço que eles dão no jornal é cada vez menor. E, de repente, ele tem que se virar em dez, doze laudas, para uma coisa que se levou três, quatro meses para ensaiar e que é apresentado em duas horas, em média. Então, é muito pouco, no sentido da orientação ao espectador leitor, mas é assim que é, até porque tem uma presença cada vez mais forte da televisão e eu tenho impressão que cada vez as ideias contidas num espetáculo de teatro, falo teatro porque é minha área, e outras, dança também, talvez, mas é mais teatro, as ideias contidas são as que menos influem para chamar o público para assistir. Nós que fazemos é que temos que não desistir nunca de encontrar uma maneira de ser diferente. Hoje tem o caso de São Paulo, a lei de fomento, que tem colaborado e muito para a qualidade porque aumentou a quantidade e isso é motivo de qualidade. Se a quantidade é pequenininha, você vai exigir que tenha uma qualidade excepcional é muito. Mas através até de erros, aumentou e bastante. Esses outros projetos da Funarte, que através de editais, cede espaço, cede patrocínio, da Secretaria de Cultura do Estado e de outros estados também é a mesma coisa, existem leis locais. Então está havendo uma procura por uma preocupação maior do poder público com a arte, mas chega uma hora que esbarra numa falta de verba. Até que aumentou bastante, percentualmente, os orçamentos. Mas está muito longe do perto do ideal. Eu sou muito otimista com relação a isso. Às vezes tenho meus momentos de pessimismo, mas lidamos com seres humanos, somos seres humanos e não lidamos com ciência exata (…) A gente também não desiste não, a gente é chato. Não fossem as Ongs, as que fazem trabalho certo, honesto, que não desvie verba, sem corrupção, que são muitas, eu mesmo conheço várias, não fossem elas, eu não onde estariam nossos governos, todos, de qualquer partido, porque elas substituem muito o que o governo deveria estar fazendo. Talvez até faz através de verbas, mas, de qualquer maneira, elas estão sempre presentes, os governos mudam sempre, mas o Estado é único. Então, já existe orçamentariamente verbas para essas Ongs, no caso, essas redes sociais, que independem do governo, quer dizer, independem no sentido quantitativo, porque já está lá o que eles têm que receber como a Santa Casa de Misericórdia, por exemplo. (…) Como se formam as redes entre as pessoas para elas produzirem arte? Primeiro, por afinidade, você tem que conhecer a pessoa, aí você se liga em determinada coisa escrita que tem muito a ver com o que você pensa, não só em arte. Aliás, arte é menos, tenho visto. Coloca-se um milhão de pessoas nas ruas para protestar sem ter partido, sem partir de nenhum partido (...) Então, é muito forte e será cada vez mais, até porque, por enquanto, até onde eu sei, não existe acho que nenhum tipo de censura. Você bota o que você quiser lá e isso para a liberdade é muito bom. Só acho ruim que o contato humano é substituído por ela e, esse contato humano, desde que o mundo é mundo, é necessário, olho no olho, essas coisas que eu temo que isso avance de uma maneira que as pessoas nem saiam mais na rua e fica igual uma vez que instalaram telefone numa cidade do interior e as pessoas se encontraram assim na época era armazém , venda, não tinha supermercado ainda, e falaram; “ah, tenho uma novidade para te contar. Vou para casa e te telefono lá.”. Claro que é um exagero, que é uma espécie de caricatura. Mas não pode acontecer. “Puxa, eu te mandei um email. Vai lá e me responde”. Às vezes são só três linhas.... Não é assim: “que bom que eu te encontrei, mandei um e-mail dizendo isso, isso e isso”. Aí tem um papo ali, um maior ou menor tempo, mas tem. Mas eu estou falando tudo que eu já vi. Pessoas falando sozinhas na rua... Claro que estava com o aparelhinho... Enfim, criar um tipo de alienação, isso é gravíssimo. Porque dali pode sair alguma coisa boa, mas pode sair monstros, um cara que não sabe papear, prosear. Agora, como uma coisa que veio para ficar, até para avançar, precisava botar um pouco de ética nisso tudo, não sei como. Não sei se vou estar ai para conferir, mas tem que ter... Para divulgar a arte, claro... Hoje mesmo eu li uns quatro ou cinco falando de peças, de estreias, de um monte de coisas, convocando para reuniões, para debater tal assunto, sobre política cultural, isso eu recebo muito. Aí sim. Ela vai se tornar quase que um rádio, imbatível. Porque o rádio, até hoje, ainda é o melhor canal de comunicação porque ele é na hora. Você falou lá, o outro ouviu no rádio aqui (…) Como você precisa do olho na internet e no rádio é só o ouvido, então, você pode ouvir o rádio fazendo um outro tipo de coisa, principalmente guiando. Então, eu acho que, nesse sentido, ele continuará insubstituível porque você tem que ficar com o olho na direção. Mas tem um avanço e uma dinâmica que muda duas ou três vezes por ano, sem contar as coisas que já mudaram em outros países, que não chegaram aqui ainda, pr táticas econômicas, financeiras e tal, por quanto vai vender isso... Mas é um novo caminho. O que você não pode é tirar, despersonalizar, desindividualizar as pessoas, o ser humano. Ainda bem que um leão, um tubarão, nunca vai ver isso, uma formiga, imagina a quantidade de formigas no mundo, interligadas, nós estamos perdidos! 205 Alison Andrews Entrevista concedida em 06/02/2015, em Leeds – Reino Unido In terms of your first question, I think there are a range of opinions about what the role of art is. I mean, from my point of view, it is obviously the milieu in which I operate, so, obviously I know many other people I come across in daily life, in the normal course of my business, whether it is the bank manager or shopkeepers or teachers of my children in school, it's very hard to say, by looking at somebody, what they would understand about what I do. There is something I call the “hair dress” of the question. So, you are up in the hair dresser and you are having a cutting hair and they say “oh, you are not working today. I've got the day of”. And I say: “no, because this afternoon I'm doing such and such, and this evening, I'm running a workshop” or “yes, I'm taking some time out today because on the next five days I'm working pretty much 24 hours a day” or something... And you try to explain you work in theatre, and you hear: “oh, at the West Yorkshire Play House!”, and you say: “no”, and I try to describe the kind of work that I do. And you can sometimes make it a little bit clear if you say you are a community artist, you work in the community, because there is the idea there is the community and you can work in. But it is actually quite difficult to be accurate and to be understood because really the question is unanswerable... So, I would say that people do understand an art is being about pleasure, is being about entertainment. Some people would understand it is being a commodity, something you can buy and sell particularly piece of arts or objects. But I think there is another side to do it, that is about... It should be able to compete on the market with everything else which is commodified (...) You can get into a Oakley's conversation about subsidy (…) If someone has a fixed opinion about it, you are never going to win that argument, if you like. But you can address it in the terms which the question is couched... On economic level, you can say: “consider it not as a subsidy, but is an investment, and look at the return (…) Pound for pound, an investment in the Yorkshire Play House will return (...) they may be commercial transfers (…) This piece called War Horse, which started in the National Theatre... a piece of work which was subsidised for the treasure... and so on... and now it's transferred to Broadway... And the authors of that piece are reckon in (…). So you can turn the argument back (…). I mean, this is also a shifting... At the moment, current society is very engaged with the discourse around terrorism, the discourse around Islam, the discourse fundamentalism, the discourse around “should we leave Europe”, all of those kinds of things, and I think that the art in some senses, in that respect, has a role to reflect those concerns, it has a role to support debate, it has a role sometimes to challenge a prevailing discourse... What I would say very clearly and people would disagree with me on me, that it is never the role of art to change or transform things, it can never do that clearly, otherwise we would be in a constant state of reformation; I mean it just doesn’t do that. But I think the role of art within society is to support and reflect change... My daily activities, as artist or producer... I'm both as well, I'm both an artist and a producer and the kind of company I operate is very much small... It has 2 directors, it's a limited company. The one I'm running a project (…) it has a lot of people involved. So, 6 artists, 2 art producers, technical people, and we like to think of the participants and the audience also being part of it when we are working. So, the daily activities can be a lot about trying to frame the ideas of the projects. So, it can be something you can apply. There is funding for. There is a lot of administration in terms of writing to schools, and writing to potential participants setting a meeting and discussing projects (…) You have to connect their agenda, you have to make a common agenda. And there will be a lot of reporting previous project, doing the budget and looking at keeping books, a kind of financial management. There will also be managering and evaluation, going back to participants and reflecting with them on their experiences (…). And at the moment, I'm just about to go to the Arts Council to try to get some support for a piece of international networking project. So, it's trying to manage those things in only one day. Then, obviously in terms of the production of the work, then you are working with your artistic collaborators too to create the work. Sometimes it isn't about being in rehearsal, a lot of my work I do is outdoors, on the streets, or in the buildings... Some trying to work around the daily (…) and trying to rehearse, and so it's very different from being in a rehearsal room, when you got the script, you got the writers; you got the stage manager to take that in acts... You know, that is not really how I work. You can do, sometimes, but most of the time, it's very much how is on the people... You can do a little piece in the corner here, without mind, and you get the dancers, and the choreographers, looking how they can create the piece. Very often only one gets into the production where you are actually showing it to the audience... So, that’s part of the daily life... So, this relation between art and economy (...). I think art is in itself an economy, I mean, it’s an environment, which there are a number of different transaction, some of them are financial 206 transactions, some of them are about creative trust, exchanging ideas. I’m nominally the artistic director… I never do anything on my own. The only way I work is by collaborating with people, exchanging what I know with what they know and trying to create something new at that. (...) There is a very, in some ways, simple economic basis for arts (...). I mean obviously there is an art as a subset of culture. And you can look at analogies between art and sports as part of the cultural economy (…). If you are asking me what the relation between religion and economy is, and you still look at the Church of England… it owns a lot of properties and employs people… It’s part of the charitable side of life (...) and not clearly has an economic value, and in sense of the benefits in the health… and those that can’t be monetized and look at that further and that is helpful (...). I think networks are incredible important. There is a lot of theories about how networks operate. In my view I would say the first thing you do is the conversation. Conversation is what produces network. Networking doesn’t produce anything by itself (...) I belong to several networks, formal networks. I’m a fellow of the Society of Arts, the Arts Technology and Manufactures. I’m very much trying to promote the Arts Society, but it is sometimes a struggle. But it is interesting, because you got to meet people you would only come across (...). The work that I do brings me necessarily into contact with artists and people with that kind of sensibility and experience. But I like having to, not justify, but test what I’m doing within the framework of someone else’s (...) and seeing the points of intersections we have. And in many cases, the more people you know, in a way, the more they provide material for reflection and for creation, and all those kinds of things. There is also that old fashion idea of networking: if you are well networked you have some kind of influence. You can get people to do things for you. And I think it’s not true. However, what you are doing, how is it for me? It is not that I get to do things for people, which is great (...) I’m very often working for people for nothing, who are awesome, because they do perceive I can do something them, whether is just sitting down and reflecting or turning out to a meeting and speaking or providing a provocation in a meeting and all those things… And they say “thank you very much” (...). The other network that is very important is IETM, which is International European Network for the Performing Arts, contemporary performing arts in the Europe, and that is different from a market place, where you go for buy and sell, it’s a place where you go to think, to support the professional development, refreshment and all those things, and very much the discussion is about politics, about cultural production, about the creative economy and how to support emergent artists, about how to addresses the imbalance between countries that have a very low GDP and therefore have very little way to support the arts, since those countries are learning about different models of cultural production. So I think it is absolutely essential. Of course there are very practical network, which are about the diffusion and distribution of arts… There are the festival networks, producer’s networks (...). The business is about marketing, buying and selling, getting recommendations for work, exchange of information… To split out these worlds. Some are very practical, about marketing, and some of them are about professional engagement and exchange (Creative economy) is a word we apply to it and it has been called a lot of things, hasn’t it? (...) It’s an invented concept… It has always been a creative economy, and it has been different models, from the renaissance, and so on… And now we have a model in this country of an investment, and recognition of this… It’s an invention, so why economists understand what is going on (...) I’m very impressed by people who a sort of ignore it (...) That seems to me very odd. I think it is an opportunity to engage in that social discourse… I’m also starting a PhD. One of the reasons I want to do it is to explore the engage with this academic language and perhaps use maybe contributing and shifting it somehow. It’s a quite interesting thing to do. My interest in creative work is to do with working in sites, working with people where they live and work and exploring the relationship between the host and the cast in a unique place (...). We are inculcated from early childhood to know our places. The time I studied we were taught to know our place (...). And we learned at school, where we are the recipients of knowledge and there is an expert to teach us. It’s a very one way transaction. And our place is to listen and understand, apprehend and learn. We don’t really have any freedom or an ability to shift that. That relationship is something that continuous... And it goes to the theatre and what we are doing is sitting in the dark, listening to something they are telling us and what is going on? The price of the ticket you’ve bought to see, but what does that really mean? (...) So, I think when you work in this building (library) for example, you have the guests we. As the artists, we are the guests... So I think in terms of creative economy, in a new economy, what we are talking about is transaction... If we maybe take all that and talk about the other aspects of an economy... we are never going to stop things being called what they are called... There is also another thing that wraps around it. In any way, when we talk about money, that’s a very slippery concept. It’s a philosophy, it’s an illusion, and it’s a chimera, because it’s not real (...). The art is far more solid, it’s there, and it’s a process. Once it is there, you can’t destroy it. Somebody see... Even a solid object, the memory of it exists. 207 Steven Ansell Entrevista concedida em 13/01/2015, em Leeds – Reino Unido What is the role of art in the current society? I suppose it has a number of roles, hasn't it? There is a very pragmatic role. It is a job for people, it creates money, and it creates an economy in its own right. That is not what drives art. I think art has been driven by its own sense of humanistic needs, I think. A need to explain our world, a need to discuss our world (…). Art articulate our feelings, I think. It is important because of that. It challenges authority, it highlights, it documents... I guess it realizes our emotions as human beings, and I think it is really important because of that (…). I think art should make you laugh, should make you cry, and should make you think. When I make a piece of theatre, that is my baseline, I attempt a way to laugh, a way to cry, a way to walk away with some thought. And I think probably more than anything else the role of art in the current society, in one society, throughout the ages in humanity, is what separates us from all the other beings, it is our polities lives legacy, to state an opinion, to articulate that opinion and to give it life. That is probably my answer to that. I think that this makes it better than just the job. I get quite sad that the university education that we are seeing is the vocation, qualification, like somehow doing philosophy should be the same as being well done, to think as we are doing a well done training. I don't think that should be the human condition, I think we are going to be better (…) and I think we need art. Art shows us that. I think art gives us more joy from singing a song, more than anything else. (…) What are your daily activities as an artist or producer? I'm Steven Ansell. I'm artistic director and copy manager at Stage Leeds. When I took this job, stage Leeds, which is the University Public Licensed Theatre, was a building. It was a building with aspiration, with an idea, but it had no program, it had no systems, no infrastructure. And my background is as an artist and as a director. I worked at Harrogate Theater, as an associate director (...). And so my instinct, my wish was to make a work, to see a work been made, to help a work be made, and so, that was my artistic goal or wish, matched with an infrastructure that had no commissioning money (…). So, how to make a work commercially? Because the theater itself has to pay for its staff, basically. The University pays my wage and the wage of a full time staff, but all the theatre staff is due to managers, any work that we bring in, the tape we use, the paper we use (…), they have to be paid for the income of the theater. And, so I suppose, that become exactly the artistic activity within the making of my framework. And so I develop and I've been successful... Brochureing season allows us to make work, to produce work, to program work, but not to go fast, which I think is incredibility important in today's society. In fact, the programs we started… We have our own entrepreneurs program, and I encourage students to create their own work. I don't curate the work which is made as much as I don't tell then the kind of work to make, I don't ask them to change their works, and I help them make the work they want to make. Its artistic merit which is featured is its own merit. What I hope, we and students, is an understanding that if you can form the work you make and a solid commercial basis that makes sense, commercial can be getting funding, it hasn't going to be to get a huge amount of money, it's going to lose a huge amount of money, enough to make the next piece of work. So we try to work with students, companies and professional companies to help them finding a way to make art, so they can continue to make art. Because any one of us can spend a high amount of money making a piece of art, meeting for it at some place, but if it is going to be a job, a career, a life, it has to be sustainable. So, my daily activities are... I run a theatre in a very pragmatic way, I've just been checking a floor in a building, but I also run it artistically. I run the Stage Leeds Company, we produce two to three shows a year, that's a student based company, we started that last year, in large because of my creative need to create a work, we also have a number of programs which are designed to help young professionals at the start of their careers, undergraduates, post-graduates, and we also work with established theatre companies to support them with their work. Usually, small companies (…). I'm happy about that. (…). I feel we are doing a good job, in the ecology of the creative community, we are in the right place (…). We are helping these companies to get their point where they can take the next stage, because they do that, when I turn, when I find new companies, we have new people coming thought, so that is the logic of that. What is the relation between art and economy? Art will always be made, whether this remain or not. If you meet someone that can't afford to make their arts, I distrust that person. An artist will always make a work. If you're a writer, you will go to write in your head. If you'd not got a pen and a paper, you'd just think a history, and you become a history teller, you will find a way to make your art. If you're a sculptor, you got no stone, you will find something else. (...) There is no link between art, creativity and economy in its purest construction. However, in terms of the need to exist within the 208 economy, you need to make a work. If you want a really good work, then, you need to pay your artists, they need to be funded. Someone needs to pay them, this kind for profit, or this kind for a funded system. And I think a mixed economy is the best way to go. I think we complain about England a lot... The current government is pretty much irradiating subsidize... They don't need to mix, they own individually well, so it doesn't affect them. But I think we still have a very good system. We have a funded arts system, their money is not really what it was. But it is still there, you can apply for funding. Anyone can apply for funding (...). That is a very good thing. We have a vibrant commercial. I am talking predominantly about theatre, but it is expandable (...). All around the world, music, theatre, etc... There are problems. There really are. But there is still money to be made; there is still art to be made. Sometimes those two are connected, and sometimes they don't. I think there is a difficult relationship between art and economy. I think the classical one is... if you look over rock groups (...) The classic history is: a band of guys or girls or friends makes a music and intend to speak about their experience, probably struggling in some form, and their experience about being in the bottom. So they have done their fabulous albums, they worth millions and suddenly they can’t write the art anymore, because there is a very subjective matter that they are dealing with. They own personally economy has massively affected their ability to make their art. So this has always been a difficult connection (...). We like the idea about the artist to be starving. I'm not particularly sure, as an artist, if I want to starve. I'm not particularly sure if I want to create a work that someone else makes… since three hundred years from death. (...) So, I think it is difficult to balance between commercial interests and money and art... One of those conflicts is the wish about artists to follow the money. So, right now, there is less money in the economy in funding the arts. If you to go look at Leeds Inspired, Leeds, our local council, if you like funding part of money. Over the last three or four years, they have pretty much pinned the money they are prepared to spend, to make sports events. So, it is the Tour of France (…), the Olympics. So artists... if you got work, that somehow ties in these themes, it's great, that's fantastic, apply for funding. But I worry in many cases artists are creating work specifically trying to get funding money, in some cases, not because they really want it so, but because, to keep going, they felt that was the only way to get some of the money. And I have been once in the ITC – Independent Theatre Council, training on funding, and the most important thing that was told was: never follow the money, because you end up just bending and twisting your own (…) You need to find the money that wants to fund the art that you are making or as near as. What is the role of networks to produce and diffuse the arts? (...) I think I was being quite skeptical about the ability to Facebook (…) to sell work. (…) I think that all mechanisms... The best mechanism is: “Hi, can you step in? It's a theatre; it's fantastic! (…)”. Have you seen this art gallery? It's great! That's the best way of doing, a word of mouth (…). And the older forms of them... Editorial is always better than advert. You want a well known reviewer to say: “yes, the work by Steven Ansell, who is the current owner of Stage Leeds, it is well worth going to see”. Having said that, and working in a university environment, we know clearly that our demographic has lots of students, people talking, social network, or must be talking right now. And so, it's becoming impossible not to use social network. So, for me, it's not that that is going to sell us the ticket, as much as if you are not involving yourself in social networks, you slightly don't exist. So, even if it's not going to sell you a single extra ticket, it will certainly stop you selling tickets if you are not part of that world (…). For artists, it is really important on the spread their aim and spread their work, and spread understanding about who and what they are (…). One of our artists... he is very canny about his presence on social media and how must present it, its consistency, cross social network. And it's a very good example. Some people may not sell a single extra ticket because of it. But his profile, as an artists, is deadly increased, and his worth, because of his online presence. And that is why it is quite important. Will it change, probably, because we are becoming quite sophisticated, and quite quickly, networks that used to impress us, we are relatively quick start to understand them, and they are old, aren’t they? And then we are going to find the next way... But I think it is the easiest way to make our work available, and I think, internationally, that's probably the most important area... I'm on the jury for the Chinese government, Taiwan (…). They sent me an e-mail from Taiwan, straight way. I can see the work, I can go to these companies’ websites, I can, very quickly, understand, in a much wider way, that would be impossible ten years ago, when it had been sent some DVDs or videos, some sheets of paper. It's often quite hard if, what you have been sent in those ways, doesn't give you the full picture. This is true of companies in this country. I will often, when interested in those works, seek out those reviews, seek you, and not through something regarded in newspapers. But probably something new you see in the show, something beautiful or something horrible, you read about other shows. It gives you much wider what you are looking in a work (…). But, certainly, of the two, I've much rather have the situation. I don't discard the PR person's view of the show, which has been carefully planned out and sent to me. 209 You get that and you get now a video. But I now have the opportunity to cross my network widely. In the old days, theatre would fund people, would fund all the venues that we knew. (...) “Hi, what's it like working with them?” Now, you rarely will need to do it, because it's out there… on the YouTube. (...) If you look for funding organizations, that means it will going to be either a company limited by guarantee, which means that you have no share business, you make no profits. Any profit you make often pay for the people involved and it goes back into the company. As a limited company, allowed to apply for a funding, you can be a sole trader, just means you are an artist, or you always hear the arts council talking about an unincorporated body, and that just means that some people have come together to make some work, and that just states that individuals are responsible for their own taxes and national insurance, but they come together and call themselves, “we want to man a theatre, and we are applying for funding for project”. Or it can be a charity. A charity has a body of directors, who are not paid. A charity can sacks its artistic directors, which means that some people remain a company limited by guarantee, because if you own your passion about it, you may not want to play yourself the position, which can be ousted (…). So, once you're a charity, you can apply for certain funds that are only available to charitable organizations, legally charitable organizations. The Arts Council is also our main national funding body, particularly for theatre, and the way they work? They put sort of two major streams of funding, the one they now call NPOs (National Portfolio of Arts Organizations)... And RFO are Regularly Funded Organizations, now it's an organization that receives money every year to allow it to keep going. That changed (…) because the money got massively cut. The Arts Council needs to find a new way of working. We now have what we call NPO, National Portfolio Organizations, and every three years you have to apply if you want to be a NPO. What you do is you say: “I want to be a NPO, my company, and we are going to do this amount of work the next three years”. And that is what you seek your money for. It's usually the money to pay your baseline staff, and to bankroll the stated projects. Anything above or beyond that, you have to find other funding, and it can't be other funding, technically, from the Arts Council. When there are RFO, this is what I've mentioned, Regularly Funded Organizations, that is still true that it is only going, but you could also apply for extra funding from the Arts Council, for extra projects, which are cases that catch so much money around, but if there isn't, why should these companies, whose staff are already paid for, so that time has been paid for to write more funding pitch, to get more money? (…) On the one hand you have NPOs, three years funded organizations (…), you have applied to do that, and the Arts Council says “yes, we will give you that money to do that, to pay your staff”. On the other side, you have the grants to the Arts; the G for A is how we call it. And that's always been going on. But now, to get a G for A, you can't be an NPO. Sorry about the anachronisms. That means that other part of money is opened to come for its own. Across the art worlds is literally what we call Grants for Projects (…). Being a NPO, for our lovely project we want some money, we would apply for the Grants for the Arts for that. And you can apply for exactly 40 thousand pounds, 50 thousand pounds, and 10 thousand pouns and I will turn our application around in six weeks, and over that, it is twelve weeks, because if it is over 10 thousand pounds, you may recquire for an extra. So, that is how this works. Outside that, there are numbers of bodies, institutions, even societies, things like the Foundation, Welcome Trust. There are a high numbers of trusts you an apply to, depending on your states. I believe the Welcome Trust recently moved to a sort of charitie's only state. They change sometimes... But that's basically: if you have works, if you are a commercial theatre, you can not apply for money from the Arts Council. (...) Even the Arts Council, they would expect you to do the exchange. Grants to the Arts is usually the case... they expect you to kind of find 20 per cent of your funding, but that could be in kind funding. So, when we will be a professional company, it will be given the free space, we are allowed to use our technician, we are allowed to use our equipment, predominantly in some amount, because we have this space, and then we start to do that, and then they will come back and offer us a very good deal to do a show, which allows me to book actors, otherwise we could not afford. It also allows us to work with people, there will be relationships, to come help with our students, to our lectures, and it is a win. And usually is the case I can use that in kind on behalf these companies when they applied for funding to say: “yes, I have a thousand pounds of room miles for us, free of charge”. That is an admissible way to put on your application, but it doesn't count as funding, which is really annoying, it is fine if you are managed, it is fine if you've got some cash or you are in a well known organization, who can go to allow you a theater or a playhouse, who gives you a thousand pounds to allow you to apply for another nine thousands. If you are us, you lose out, because you can't offer, other way a playhouse can. So we couldn't notice our artists, and if you are an artist that isn't well known to be noticed by a playhouse… That loses out a lot, because they can't apply. So, it is a little bit about a lose-lose situation. I understand what they have done, because it is quite hard easy to solve lie about in kind funding every year. You can make other figures, can't you? But I think there is 210 probably a better way of doing it (…). I'm happy we are going to register this rules we have (…). If they said: “we can only accept 50 per cent of the room charge as an in kind, this is the allowed”. This becomes so much difficult for small companies. They find hard to access some of that funding now in the Arts Council, which possibly allows us to live our decisions, because the Arts Council does have a lot loss of money. Their funding has been heavily cut, but the current government wants to cut it again, you know (…). There are some politics involved in that as well. That is pretty much the British funding system. (…). That is everything commissioned (in the play houses). So, if you commission a piece of work, it is one thousand pounds, two thousand pounds, that is to make the work, and you have no expectation of what you are getting back of the work, my in kind funding... If you make a piece of work and you come back, you come back with the door split deal, which I mean, I won't pay them anything, I will split the ticket money. Now, for me, because of the market I work in, risk is the most dangerous thing. We do a limited amount of tickets every year... I don't need to make a huge amount; I definitely can't afford to lose a huge amount. So, with potential profits comes higher risk, so I go for a low risk strategy... So, you come, I give you the staff free, you come back, we do a door split, we will both thank a little bit. If you are a playhouse, you might decide I am going to pay you two thousand pounds, because there is funding, remember, to put on work. We are not to fund to put on work; it's part of the NPO agreement. There will be a little stock of money to put on there, whatever millions I've got, which says, over three years, you have a hundred thousand pounds a year to put on your work. That's a hundred thousand pounds a year that can effectively lose in some form, that could be in a program, to program that work, that can also be on known loses on the shows, because not everything is going to make money, it really isn't, and some of the smallest theatres in the country, some of the smallest theatres or houses, some places like Harrogate where I used to worked (…), they are bankrolled a year (…), where most people see their first theatre, and that will be their most expensive show. But it will also be their most lucrative show. We have a simple analogy... If you want to put a contemporary dance, you need sort... If you’re going to put a piece of challenging experimental, you won't got the work (…) You book something like the sort show, something very commercial, you are pretty much sure it is going to make the money, and you work at the balance and that says you make sure you don't lose money, particularly if you haven't got big Arts Council commissioning money. Some of the largest organization, as the Westfield Play House, they can afford to run things a loss, because we, as tax payers, (...) we question, too, the importance of art (…), it's important to have good art in our society for our community and that is whole thesis itself about worth (…) and sometimes that makes we pay for things without so much money... Or we pay to public performance art, where there is no ticket price. Someone is going to pay for that and that is coming largely at the public person, and I think it is OK, as long as distribution of that wealth is enriching our parties. 211 Apêndice C – Tabela de linguagens com as quais os artistas trabalham Linguagens Artes visuais Artes visuais Circo Dança Música Teatro Audiovisual TV Fotografia Artes digitais Literatura Desenho Produção Cinema e vídeo Linguagens Artes visuais Circo Dança Música Teatro Audiovisual TV Fotografia Artes digitais Literatura Desenho Produção Cinema e vídeo Circo Dança Música Teatro Audiovisual TV 20 7 9 9 7 0 1 1 7 9 9 7 0 1 1 1 8 8 7 6 0 1 1 0 8 13 9 9 0 1 1 1 7 9 18 8 1 1 2 0 6 9 8 14 0 1 0 0 0 0 1 0 1 0 1 0 1 1 1 1 0 1 0 0 1 1 2 0 1 0 2 0 2 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 58 40 53 57 46 3 6 9 Artes digitais 1 Literatura 2 Desenho 0 Produção 1 Cinema e vídeo 0 0 1 0 0 0 0 0 1 1 1 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 1 1 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 5 0 0 0 0 1 0 0 0 0 1 0 0 0 0 1 3 11 1 6 1 Fotografia 212 ANEXO Anexo A – Termos de consentimento das entrevistas realizadas 213 214 215 216 217 218 219 220 221