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Gabriela Semensato Ferreira Marta Ramos Oliveira Rita Lenira de Freitas Bittencourt Vanessa Hack Gatteli(Orgs.) ESPAÇO / ESPAÇOS VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada ARTIGOS Porto Alegre Instituto de Letras UFRGS 2015 Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Letras Jane Tutikian Diretora Maria Lúcia Machado de Lorenci Vice-diretora ESPAÇO / ESPAÇOS VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada ISBN 978-85-64522-20-6 Gabriela Semensato Ferreira Marta Ramos Oliveira Rita Lenira de Freitas Bittencourt Vanessa Hack Gatteli Organizadoras Andrei Cunha Ilustrador Leandro Bierhals Bezerra - Núcleo de Editoração Eletrônica do I. L. Diagramação e editoração eletrônica Instituto de Letras - UFRGS Av. Bento Gonçalves, 9500, Edifício 43221 - 91540-000 - Porto Alegre, RS Fone (51) 3308-6711, Fax (51) 3308-7303 - iletras@ufrgs.br - www.ufrgs.br/iletras SUMÁRIO 7 Apresentação 9 A (des)constituição do feminino em O remorso de baltazarserapião, de Valter Hugo Mãe Ana Lúcia Montano Boessio 21 No princípio era o verbo Ana Lúcia Beck 35 Autoria e memória em Sei Shônagon Andrei dos Santos Cunha 51 Literatura e espaço: um estudo sobre a representação da paisagem na poesia do Rio Grande do Sul Antônio Carlos Mousquer 63 A ação literária na construção do corpo identitário teatral Bia Isabel Noy 77 Hilda Hilst: um salto do objeto literário à teatralidade das palavras Camila Alexandrini 91 Marcas subalternas: corpo e subjetividade em Carolina Maria de Jesus Carla Lavorati 101 As ressigniicações do humano no mundo distópico Caroline Valada Becker 115 Passado e presente (e futuro), locais da memória em Traço de União, de João Maimona Cláudia Mentz Martins 125 Elena: notas sobre a representação fílmica Gabriela Semensato Ferreira 139 O espaço e a memória: a ressigniicação da subjetividade Giele Rocha Dorneles AUTORIA E MEMÓRIA EM SEI SHÔNAGON MEMORY AND AUTHORSHIP IN THE PILLOW BOOK Andrei dos Santos Cunha1 A única coisa que ainda tinha valor para mim, que ainda era repleta de signiicado, eram diários e ensaios. A literatura não dizia respeito à narrativa, não versava sobre nada, mas consistia apenas em uma voz, uma voz única e pessoal, uma vida, um rosto, um olhar que se podia encontrar. O que é uma obra de arte, senão o olhar de outra pessoa? Não um olhar acima de nós, tampouco um olhar abaixo de nós, mas um olhar exatamente na mesma altura do nosso. A arte não pode ser experimentada na coletividade, ninguém é capaz de uma coisa dessas, a arte é aquilo com que você ica sozinho. Encontramos esse outro olhar sozinhos. Karl Ove Knausgård, Um Outro Amor — Minha Luta, vol.2 (2014) [2010]. ABSTRACT: he Pillow Book of Sei Shônagon (Japan, X–XI centuries) can be categorized as a memoir, an elegy and a tribute to an era that had already ended at the time of its writing. It is a hybrid text that sits uneasily with depersonalized notions of authorship. Miner (1990) proposes to take into account Japanese poetics as the basis for an interpretation of authorial voice within that context. Japanese poetics is based on the lyric genre, and could be described as closer to Derrida’s “il n’y a pas de hors-texte” (1967) than to Barthes’s (1968) and Foucault’s (1969) “mort de l’auteur”. his paper seeks to discuss the assumptions that allow reading he Pillow Book as on the one hand, self-iction, and on the other hand, as testimonial literature, and how the diferences between the uses of reading in Japan and in the West have important consequences for our conception of authorship and truth in the literary text. KEYWORDS: Sei Shônagon, he Pillow Book, authorship. RESUMO: O Livro de Travesseiro, de Sei Shônagon (Japão, séculos X–XI), 1 Doutorando em Literatura Comparada pelo PPG/Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — Orientadora: Rita Terezinha Schmidt. Tradutor Público e Intérprete Comercial de Japonês pela Junta Comercial do Estado do Rio Grande do Sul. Professor de Literatura Japonesa e Tradução do Curso de Bacharelado em Letras — Tradutor Japonês/Português da UFRGS, Instituto de Letras, Departamento de Línguas Modernas, Setor de Japonês, Núcleo de Estudos Japoneses (NEJa). Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Hitotsubashi, Tóquio, Japão. Bolsista do Ministério da Educação do Japão de 1994 a 2001. E-mail: <andrei.cunha@ufrgs.br>. Espaço / Espaços 35 é um texto de caráter memorial, autobiográico e elegíaco, uma homenagem e testemunho de uma época que já se encerrara no momento da escritura. É um texto híbrido, que se encaixa com diiculdade em noções despersonalizadas de autor. Miner (1990) propõe que se leve em conta a poética japonesa como base para uma interpretação da voz autoral dessa época e lugar. A poética japonesa, baseada na lírica, estaria mais próxima do “il n’y a pas de hors-texte” de Derrida (1967) do que da “mort de l’auteur” de Barthes (1968) e Foucault (1969). O presente trabalho busca discutir os pressupostos que permitem ler O Livro de Travesseiro como, por um lado, autoicção, e, por outro, como escrita de testemunho, e como as diferenças entre a maneira de ler no Japão e no Ocidente têm consequências importantes para a nossa concepção de autoria e verdade no texto literário. PALAVRAS-CHAVE: Sei Shônagon, O Livro de Travesseiro, autoria. Silêncio e fragmentação O caráter fragmentário deO Livro de Travesseiro [枕草子, Makura no Sôshi], de Sei Shônagon [清少納言] (Japão, séculos X–XI) tem diversas origens. Se formos recapitulá-las em ordem cronológica reversa, podemos começar lembrando que seus tradutores muitas vezes optaram por traduzir apenas trechos da obra, deixando de lado aquelas partes que consideravam como menos interessantes para o leitor. No Japão, o estudo de literatura clássica, tanto no ensino fundamental como no médio, é baseado em páginas escolhidas. Assim, para a maioria dos leitores contemporâneos, o livro é uma coleção de greatest hits, uma obra condensada, reduzida àquelas passagens que os compiladores consideram como as mais típicas ou mais de acordo com certa concepção do que deveria ser a literatura dos antigos. No entanto, educadores e tradutores talvez possam ser absolvidos da acusação de radicalidade editorial se pensarmos que a recepção do texto é também um histórico de fragmentação. A Idade Média demorou a dar a O Livro de Travesseiro o status de obra canônica e, quando o fez, foi por meio de antologias com pesada interferência do compilador. Esses editores deram início a práticas que se estabeleceriam depois, na modernidade, como corriqueiras no manuseio desse livro: quebra arbitrária dos trechos em parágrafos; acréscimo de pontuação, intertítulos, glosas e comentários; mudança na ordem dos fragmentos; e valorização, no momento da edição, deste ou daquele aspecto que o editor considerava mais interessante (ou imaginava que seus leitores considerariam interessante). Sob esse ponto de vista, o estudo do destino de O Livro de Travesseiro pode ser um case interessante, extremo, e em muitos sentidos, paradigmático, dos mecanismos de recepção de um texto muito antigo (cf. Ivanova, 2012; Lesigne-Audoly, 2010; Kornicki, 1998). Mas tampouco os glosadores medievais são exatamente “culpados” por 36 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada todas essas distorções (e talvez minha metáfora de acusados, culpados e absolvidos seja totalmente inapropriada para descrever o fenômeno a que estou me referindo). A cultura do livro impresso no Japão só se consolidou no século XVII. Antes disso, ainda que já houvesse impressões de textos religiosos, a literatura era disseminada exclusivamente por via da cópia manuscrita. Longe de ser um detalhe ou contingência, a cultura do manuscrito deixou marcas indeléveis na cultura japonesa e nos usos que essa cultura faz do literário. O conhecimento de literatura tem um forte componente hermético, de transmissão de mestre a discípulo, e a inescapável materialidade do texto resultou em uma valorização extrema do papel, da caligraia e da posse de textos exclusivos. Uma abordagem possível, portanto, seria a de que não há um O Livro de Travesseiro deinitivo (há vários). Da autora, quase nada se pode dizer que não seja o que consta desse livro mutante (a teoria da literatura — uma teoria da literatura — poderia dizer: “os dois são a mesma coisa”). O problema surge desde logo: as apresentações desses textos são produto de diversos tipos de suposições e de leituras de cópias de fragmentos. O Livro de Travesseiro tem muitos trechos com um formato e temática normalmente associados à literatura de testemunho. Alguns autores chegam ao extremo de airmar que “se trata de um livro no qual Sei Shônagon abandona por completo sua posição e individualidade frente à obra, e a escreve baseada na determinação e elevada consciência proissional de uma dama de honra” (Shimono, 2002, p.15). Esse caráter de documento público e de obra encomiástica se deveria às circunstâncias em que o texto foi escrito: Enquanto escrevia sua obra, dia a dia seu mundo ia se desmoronando, entre ardis e estratagemas, e, ao terminar de escrevê-la, a realidade que seus olhos encontraram foi a morte da Imperatriz Teishi [...], um clã destruído, a ascensão da [rival e] prima Shôshi à dignidade de Imperatriz, e o triste e patético destino de todo aquele que é vencido no mundo da política e desaparece. (Shimono, 2002, p.15; minha tradução) Nesse aspecto, O Livro de Travesseiro dialoga intertextualmente com as crônicas históricas da China, de caráter público e laudatório. A atitude shonagônica, “quase patológica”, de veneração de sua senhora — uma acusação de seu tradutor Ivan Morris (1971, p.10) — teria, portanto, uma explicação: era uma exigência do próprio gênero textual. Sei Shônagon seria a testemunha do outro lado da história oicial (ou da história dos perdedores), deixando ao mundo o legado de esplendor que era o ideal de sua facção. Por outro lado, O Livro de Travesseiro é um livro íntimo, com muitos trechos que tratam de acontecimentos insigniicantes, domésticos e privados. Espaço / Espaços 37 A essa acepção, estaria ligada a igura do makura, que nós traduzimos como “travesseiro”, mas que, na verdade,era uma peça de madeira, para apoiar a nuca, à noite (vide figura 1). Muitos desses makura possuíam um compartimento ou gaveta, onde se podiam guardar objetos privados, como um caderno ou diário. A posteridade se encarregou de ampliar o sentido do “travesseiro”, e a Era Pré-Moderna está cheia de “livros de travesseiro” satíricos ou eróticos, mas isso só ocorreu quatro ou cinco séculos depois da morte da autora.Além disso, O Livro de Travesseiro é (desde o im da Antiguidade) usado como livro de consulta sobre tópicos de poesia. A poesia tradicional japonesa faz extenso uso de tópicos ixos, como palavras associadas a lugares e às quatro estações. Essa seria também uma explicação para as muitas enumerações encontradas no livro, as famosas “listas de Sei Shônagon”, que alguns defendem ter origem na catalogação de ferramentas a serem utilizadas em poesia. Prosa poética, diário íntimo, registro público de eventos, testemunho da história, obra encomiástica, tratado de poesia: o travesseiro parece ser muitas coisas ao mesmo tempo, e, de fato, é um pouco fútil tentar estabelecer um gênero textual a que todos os fragmentos pertençam igualmente. Tudo leva a crer que as páginas avulsas que, posteriormente, se tornaram o que hoje chamamos de O Livro de Travesseiro eram um work in progress, um exemplo bastante típico de escrita processual, que foi se modiicando e ampliando com o tempo (e cujas transformações não se interromperam com a morte da autora). Figura1 — makura / pillow / travesseiro. 38 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada O travesseiro (makura) tradicional japonês é muito diferente do nossoe servia apenas para apoiar a nuca. Algumas vezes, possuía um compartimento onde se guardavam objetos pessoais. A igura do século XIX mostra a escritora (do século IX) Ono no Komachi, junto à sua roupa de cama. O makura se encontra à sua frente (ampliado no detalhe). À esquerda e à direita (acima, detalhe): Utagawa Kunisada I (Toyokuni III) (1786–1864). Pedindo por Chuva (Amagoi, 1823). À direita (abaixo): Gardiner, R. Japan as we saw it (1892). Vide referências ao inal do texto para fonte detalhada. A palavra brota do coração humano Tendo sido escrito na virada do século X para o XI d.C., no Japão, O Livro de Travesseiro tem traços de uma poética que não é a nossa em muitos sentidos — não é a nossa cronologicamente, nem geograicamente, e não pertence à tradição que estamos acostumados a ter designada como sendo a nossa. A ideia de autoria era outra; além disso, outro também era o modo de produção textual e o uso social da literatura. A visão que temos hoje de autor em literatura é um amálgama de duas ideologias. Ela tem elementos do culto ao gênio do romantismo do século XIX; ao mesmo tempo, o autor é foco de expectativas ligadas à divisão do trabalho na sociedade capitalista e à proissionalização e segmentação das artes. Para a nossa argumentação aqui, podemos ainda acrescentar à equação o fato de que o sistema literário e o cânone japoneses, desde a segunda metade do século XIX, são resultado de um raro exemplo de sincretismo entre concepções de literatura tradicionais do leste asiático e uma extensa e (às vezes, por fases) entusiasmada adoção de categorias da literatura europeia. Além disso, a recepção dessa literatura fora do Japão, já bastante complexa devido a esses fatores, é tingida por questões orientalistas; pelo fato de que a noção de autoria em tradução, historicamente, não é a mesma coisa que a ideia de autoria em literatura vernácula; e, no caso de Sei Shônagon, vem a isso se somar a hostilidade ao não europeu e ao feminino do momento histórico em que sua obra entrou para o sistema literário dito “universal” ou “mundial” (im do século XIX). Podemos tentar descrever algumas características do sistema literário doméstico da época em que O Livro de Travesseiro foi escrito e, a partir da ideia de “autor como produtor”, destacar os pontos de contraste com outras culturas. Assim, Miner airma que, para os gregos, “a tragédia era escrita por cidadãos de Atenas do sexo masculino, no contexto de uma competição patrocinada pelo governo” (1990, p.18). Na Renascença, na Europa, o grupo autorizado era de homens da aristocracia ou homens patrocinados por membros da aristocracia ou do clero No mundo contemporâneo, há a “visão predominante Espaço / Espaços 39 de que qualquer pessoa (homem ou mulher) pode tentar, mas apenas os que se proissionalizam obtêm sucesso” (id.). No caso do Japão do século X, “todos (homens e mulheres), mesmo os iletrados” podiam ser autores de poesia (id.); e, de fato, o Man’yôshû2 inclui, dentre outras modalidades bastante heterogêneas, waka anônimos de soldados da fronteira; lamentos de mendigos; canções folclóricas; reinadas chôka argumentativas, da autoria de importantes intelectuais; epigramas budistas escritos por monges; poemas ritualísticos escritos por sacerdotisas-xamãs; e mensagens poéticas erótico-amorosas trocadas por jovens apaixonados. Ainda que o Japão moderno tenha absorvido a ética da proissionalização associada ao capitalismo, a ideia de que a literatura, como o esporte, não é necessariamente uma atividade de recepção passiva, e pode envolver tudo e todos, sobrevive de diversas maneiras. O número de japoneses que pratica, na qualidade de amadores, uma arte, como a música, a dança tradicional, a poesia, a caligraia, etc. é muito maior do que o nosso. Alguém dizer numa roda de conhecidos no Brasil que “escreve poesia, sem compromisso, como passatempo”, é um convite ao escárnio, à incredulidade e ao riso; no Japão, é uma ocorrência comum e estimulada desde a escola. No Brasil, onde houver uma comunidade de imigrantes japoneses, há sempre um jornalzinho em japonês dirigido aos leitores locais, e quase todas essas publicações promovem alguma modalidade de concurso de poesia, ou ao menos mantêm uma página dedicada às composições dos leitores. O que pode não icar claro nessa nossa atitude ocidental moderna de repulsa ao poeta amador, no entanto, é que ela é uma decorrência lógica justamente do culto romântico ao gênio e da especialização dos fazeres no capitalismo, aos quais vêm se somar, ao longo do século XX, um gradual distanciamento dos sistemas educacionais com relação ao ideal humanístico e beletrista, e o crescente utilitarismo subjacente às ideologias por trás da formação de jovens e adultos. O conceito romântico de autor é importante para nossa discussão, porque dois dos atributos mais destacados por inúmeros paratextos de O Livro de Travesseiro — seu estilo e sua personalidade — podem ser (e são) frequentemente analisados a partir de uma perspectiva essencialista e moderna — isto é, moderna, no sentido empregado nesta airmação: O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida em que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo 2 Man’yôshû [万葉集], “Coletânea da Miríade de Folhas”. Antologia poética (vários autores), com 4.516 poemas organizados em vinte livros. Compilada por Ootomo no Yakamochi e outros. Compilação terminada em 785 (Era Nara). 40 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz mais nobremente, da “pessoa humana”. (Barthes, 1988, p.66) A polêmica levantada por Barthes nesse texto de 1968 é legítima — trata-se de uma reação a certo tipo de trabalho acadêmico sobre a literatura (a explication de texte), da maneira como isso era feito na França, desde a segunda metade do século XIX até, digamos, os anos 1960 (mas essa modalidade de análise existe até hoje, ainda que modiicada). No entanto, o “autor” que ele descreve aqui, longe de se referir ao fenômeno de maneira abrangente, é o princípio conceitual de um tipo de texto francês, algo que Marcel Proust, desde 1908, já denunciava sob a rubrica de méthode Sainte-Beuve (Proust, 1994). Charles-Augustin Sainte-Beuve (1804–1869), o crítico literário que Proust escolheu para opositor, procurava entender a obra por meio da biograia, informando-se sobre os hábitos de quem a escreveu, lendo sua correspondência e diários, interrogando parentes e conhecidos, estabelecendo conexões entre os grandes eventos da vida do autor e seus textos, entre pessoas com quem ele conviveu e suas personagens, entre seu estilo e sua personalidade, e assim por diante. Ora, o tipo de crítica que Proust previa e Barthes estabeleceu só é aplicável a textos nos quais a divisão escritor/livro/sociedade seja clara (ou tratada como clara). O gênero ideal é a narrativa de icção. No caso da poesia, é necessário fazer uso de conceitos como “eu lírico”, “gênio”ou “inconsciente”, para separar de alguma forma o autor de seu texto — ainal, o papel da crítica seria estabelecer uma conexão entre coisas diferentes e, se as coisas já estão interligadas a priori de maneira mais ou menos óbvia, a crítica não teria papel nenhum. A presunção é sempre da reprodução mecânica da escrita: da mesma maneira que os versos de Alberto Caeiro, depois de compostos, não lhe pertencem mais, é como se o texto saísse porta afora, em direção a um mundo desconhecido do autor, que, a partir da publicação, ica à janela abanando adeus. Essa concepção de autor nunca funcionou muito bem para textos autobiográicos. No entanto, na Europa, o problema não estava no centro da discussão, porque as memórias, a correspondência, o ensaio e o diário eram considerados como gêneros menores (isso quando eram admitidos como sendo literatura). A autobiograia, como gênero, na verdade — como “gênero autônomo”, aquela categoria indispensável a certo tipo de estudo literário — “não existiu sempre, nem existe em toda parte” (Gusdorf apud Ramirez-Christensen, 2001, p.49). Supostamente, ela seria fruto de “uma preocupação peculiar do homem ocidental [... isto é, a de] se voltar em direção ao próprio passado, recordar a própria vida, e narrá-la”, o que exigiria uma consciência da “singularidade de cada indivíduo”, sendo um produto tardio de “uma civilização especíica”: “a autobiograia pertenceria, portanto, à história pós-copernicana Espaço / Espaços 41 do humanismo no Ocidente” (id.). A narrativa de Gusdorf é muito semelhante à de Barthes, quando este diz que o autor surgiu após o inal da Idade Média, na Europa, graças ao empirismo, ao racionalismo e à fé individual. Isto signiicaria que tanto a ideia de autor de icção como a de texto autorreferencial podem ser fruto de uma mesma evolução histórica e corresponderiam a especializações da função “sujeito que escreve”. É claro que o “autor” a que se refere Barthes não é apenas um nome — trata-se de uma maneira de entender o texto. Ora, muitos dos poemas “assinados” das antologias poéticas imperiais do período clássico japonêsvêm equipados com os elementos da parafernália autoral. Muitos possuem paratextos que estabelecem anedotas biográicas, descrevem eventos que determinaram a composição dos poemas, vêm acompanhados de narrativas, apócrifas ou não, sobre a personalidade e o status social do autor, e tudo isso é considerado como parte integrante e indispensável da obra, ainda mais do que para Sainte-Beuve — que, ainal de contas, provavelmente admitiria como possível uma leitura dos autores sobre os quais escrevia sem a ajuda de textos explicativos. Quando Foucault, em 1969 (1983, p.10), propõe diferenciar o nome do autor de outros nomes próprios, ele está pensando primariamente em literatura de icção, obras cientíicas e ilosóicas da modernidade europeia — obras, por assim dizer, “foucaultianas” (no sentido de que são o tipo de obra que ele normalmente descreve nas suas), nas quais o sujeito do discurso e os objetos da linguagem são claramente distintos e separados: “o nome do autor não se situa no estado civil dos homens, e tampouco na icção da obra; ele se situa na ruptura que instaura certo grupo de discursos e seu modo singular de ser” (id., p.12). Nessa divisão entre autor e pessoa física, “o elo entre o nome próprio e o indivíduo nomeado, e o elo entre o nome do autor e aquilo que ele nomeia, não são isomóricos e não funcionam da mesma maneira” (id., p.10). Assim, Foucault pode fazer uma distinção entre uma hipotética descoberta de que Shakespeare não viveu na casa que se acredita ter sido sua residência (o que não alteraria a ideia que se tem dele como autor) e outra, de que não teria sido ele quem escreveu os Sonetos (neste caso, seria a própria ideia da obra do autor Shakespeare que estaria alterada estruturalmente). Ele está constatando o fato, tido por óbvio para a sua geração, de que a maioria das contingências biográicas não modiica o “funcionamento do nome do autor” (id., p.10). O texto autobiográico ou testemunhal, por sua vez, guarda essa diferença: a vida que é implicada no texto faz parte dele e altera signiicativamente aquilo que Foucault chama de funcionamento do nome do autor. Assim, se amanhã descobrirmos que Sei Shônagon não trabalhou para a Imperatriz Teishi, ou que ela não estava na Corte Imperial na primavera de 998, sua obra e a ideia que temos dela como autora passarão necessariamente por alterações. Mais ainda: se o epílogo do livro, única menção de um travesseiro, não for de 42 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada sua autoria, e sim — como muitos acreditam ser — apócrifo, o título do livro precisa ser ressigniicado. No Japão, mesmo a narrativa tem um status ambíguo devido a essa diferença em ênfase: ainda hoje, é considerada como uma tarefa legítima do crítico ir buscar pedaços da vida do autor em seus romances. Assim, por exemplo, o naturalismo japonês tem muitas obras tidas como romances autobiográicos (pois a observação mais verdadeira da realidade seria aquela obtida por meio do registro e do exame, imparciais e sem sentimentalidade, do eu); por outro lado, poderíamos imaginar que, se Raul Pompeia fosse japonês, O Ateneu (1888) também seria considerado autobiograia, uma vez que o que determina essa ênfase na icção ou no referencial é a maneira como o texto é lido, e não necessariamente como foi escrito. (Uma conclusão lógica para esse argumento seria a previsão de que certamente uma tradução japonesa de O Ateneu seria comercializada como based on a true story.) A construção do cânone japonês inclui necessariamente a igura do autor. Isso talvez se deva ao fato de que — paradoxalmente para nós, acostumados com as exigências de despersonalização que os poetas modernistas se impunham — a poética do Japão tenha se fundado na lírica, e não no drama (Miner, 1990). Miner propõe uma comparação entre a Poética de Aristóteles (séc. IV a.C.) e o “Prefácio”3 de Ki no Tsurayuki (séc. X d.C., mais ou menos duas gerações antes de Sei Shônagon), com o objetivo de destacar qual seria a hierarquia de gêneros nos dois tratados. Aristóteles teria feito a escolha consciente de privilegiar o drama ateniense em detrimento da épica (a Odisseia); Tsurayuki, por sua vez, estava criando uma programática da poesia nacional, em oposição à literatura de prestígio (a chinesa clássica), e alinhando-a com o poder simbólico e religioso da Corte Imperial de Yamato. Segundo Miner, com duas exceções (a europeia, que se funda no drama, na representação e na mimese; e a hindu, que é “complexa”), “todas as poéticas emergiram, em geral de forma implícita, por deinição, a partir da lírica” e são originalmente afetivo-expressivas (1990, p.24). “Apenas o eurocentrismo justiica que se nomeiem as poéticas dos outros — as poéticas do mundo fora a nossa — como não miméticas”; o contrário é verdadeiro, e a poética ocidental é que deveria ser deinida negativamente4 (id.). A essa centralidade do lírico no 3 O “Prefácio” aqui referido é o “Kanajo” [仮名序, “prefácio em letras japonesas”], de autoria de Ki no Tsurayuki [紀貫之] (872–945), da antologia poética Kokin’wakashû [古今和歌集, Antologia de Waka Antigos e Modernos] (compilação terminada em 913 ou 914). “O prefácio é composto basicamente de cinco partes: a essência do poema waka [poema japonês], sua origem, os estilos de poemas, a história do waka e o processo de organização da obra Kokin’wakashû” (Nakaema, 2012, p.64). A tradução integral do prefácio para o português do Brasil pode ser encontrada em Wakisaka (1997) e uma versão comentada dessa tradução está em Nakaema (op.cit.). 4 Miner está se referindo aqui ao que ele chama de “poéticas fundacionais” ou “poéticas originativas” (foundational, originative); além disso, dois tipos de poética estão sendo tratados juntos: a poética como Espaço / Espaços 43 caso japonês, vem-se somar uma concepção clássica daquilo que venha a ser literatura que é bastante distinta da ocidental. Uma importante consequência para a noção de autoria decorre da centralidade da lírica, uma herança da poética chinesa: as obras de não icção, os livros de História e tratados religiosos, assim como os textos de cunho confessional, as memórias e os diários, fazem parte incontestada e não marginal do cânone literário (o exato oposto de um equivalente europeu). Ao contrário da lírica ocidental moderna e contemporânea, que, por sua ainidade com o drama, às vezes se comporta como se a poesia fosse a fala de uma personagem, a poesia chinesa opera como se lidasse com fatos, e “a interpretação deriva de uma irme crença no intencionalismo” (Miner, 1990, p.112). A crítica literária chinesa parte do pressuposto de que a voz que fala no poema é sim a do autor, e de que a experiência relatada é algo que realmente aconteceu5. Em clara oposição à crítica ocidental contemporânea, “a compreensão literária na Ásia Oriental sustenta que o autor está falando diretamente ao leitor, como se não houvesse eu lírico, ou narrador de uma história”. Uma noção “de tal maneira contrária a ideias ocidentais modernas que, para alguns, ela parecerá simplesmente errada” (Miner, 1990, p.30). A menos que seja dito expressamente o contrário, “presume-se que os poetas falam in propria persona”, e os trechos de narrativas nos quais se encontram comentários ou intervenções daquele que um ocidental chamaria de narrador são denominados, “em uma tradição de séculos, como ‘palavras do autor’ [作者の言葉, sakusha no kotoba]” (id.). Para que a evolução dessa “presunção de intencionalidade” ique mais clara, vou discutir um exemplo do Kokin’wakashû, que é a antologia prefaciada por Tsurayuki e que teve maior impacto sobre as escolhas poéticas e discursivas da geração de Sei Shônagon. O Kokin’wakashû tem um total de 1.111 poemas, distribuídos em 20 volumes6, e é a primeira antologia poética em japonês integralmente compilada por ordem da Casa Imperial. Também é a primeira antologia poética escrita em caracteres japoneses (kana). Muitos poemas do Kokin’wakashû apresentam aquilo que eu chamei anteriormente de “parafernália autoral”. Uma antologia ambiciosa como essa necessita se basear em muitas fontes documentais. Dentre elas, encontravam-se relatos de eventos que envolviam a composição de poesia, arquivos de particulares, álbuns de poemas pertencentes a indivíduos ou a uma família, documento (como a de Aristóteles, a de Tsurayuki, e ainda a chinesa) e as que emergiram “de forma implícita” (ou seja, conjuntos de práticas e de valores não explicitados autonomamente, tais como no caso persa, árabe, egípcio, das civilizações pré-colombianas, etc.). 5 Encontramos a noção de intencionalidade, por exemplo, na página de abertura do “Grande Prefácio” do Shījīng [ 詩經 ], ou Clássicos da Poesia (China, séculos xi a vi a.C.). 6 A edição crítica da Shôgakukan tem aproximadamente 500 páginas com poemas e um total de 578 páginas (cf. Kokin’wakashû, 1995). 44 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada e compilações poéticas organizadas privadamente por poetas, servidores públicos ou intelectuais. De posse desses materiais, o editor precisava estabelecer critérios de seleção e, em seguida, de classiicação desses poemas. Muitos deles vêm acompanhados da descrição das circunstâncias em que foram compostos, seja no título, seja em um texto explicativo. Assim, por exemplo, o título do poema de número 745 é mais longo do que o próprio poema: Kokin’wakashû, v.14, “Amor”, n.745. O poeta estava de namoricos com uma dama cujos pais eram muito vigilantes, o que os obrigava a se encontrarem sempre em locais secretos. Certa feita, estavam os dois reunidos quando uma criada veio às pressas avisar que os pais da moça se aproximavam. Ela saiu correndo, deixando para trás a cauda de seu quimono. O galante lhe enviou a peça de roupa por um mensageiro, e junto ia este poema: (Autor: Fujiwara no Okikaze) até a próxima dizia o tecido deixado para trás de lembrança a ita de pano agora boia qual alga num mar de lágrimas7 (minha tradução) Okikaze era membro da Corte e é considerado como um dos “36 gênios poéticos”. Aqui, seria interessante traçar um paralelo entre a maneira como um “típico” “leitor barthesiano” e um “leitor japonês” fariam uso desse poema8. Não resta dúvida de que a situação descrita no título é uma “cena romântica”, estilizada ao máximo, recorrente na literatura japonesa de antes e de depois (cf. o Capítulo 3 de O Romance do Genji, em que o quimono que a dama deixa para trás é comparado à “casca da cigarra”). Além da peça de roupa deixada para trás, e da ideia do quimono como substituto ou memória do corpo da amante, há o lugar comum dos pais vigilantes e dos amantes secretos. Há ainda outros lugares comuns menos óbvios para um leitor ocidental, como a 7 “親の け 人の す 、い 忍 逢 の 言 け 間 、 親の い け ば、急 帰 、裳を 置 入 け 、そののち裳を返す 藤原興風 あ のかた こそ け 涙 うか け ”. 8 Em português, temos o exemplo de Gregório de Matos, cujos títulos muitas vezes são uma narrativa que contextualiza o poema. Por exemplo: “Continua em galantear aquella Mariquita ilha da Zabelona, que ja adiante dicemos” (p.1568); “Passando o poeta em certa occasião pela porta desta galharda dama reparou que a sua vista expusera no peyto hum ramilhete de lores, que tinha na mão” (p.1619); “Descreve a hum amigo desde aquelle degredo as alterações, e miserias daquelle reyno de Angolla, e o que juntamente lhe aconteceo com os soldados amotinados, que o levaram para o campo, e tiveram consigo para os aconselhar no motim” (p.1602), e muitos outros (Matos, 1968). Espaço / Espaços 45 comparação entre o sal das lágrimas e aquele que se extrai das algas marinhas, “a fogo lento”, o que seria uma metáfora para a agonia do amor. No entanto, o fato de que seja um clichê não impede que o poema seja lido como tendo realmente acontecido. De fato, para a literatura japonesa, talvez o que interesse ao leitor muitas vezes seja o reconhecimento (e o registro) de instantes em que a vida se parece com o clichê consagrado. (A bem da verdade, a satisfação estética de reconhecer no mundo real traços do elaborado no mundo da arte é comum à experiência humana de todas as culturas — os japoneses apenas dão maior ênfase a essa compreensão.) Estamos diante de um autor morto, irrelevante para a compreensão do poema, ou de um autor que ilumina o texto com sua existência? A resposta variará de acordo com os pressupostos culturais de cada leitor. Lido fora de seu contexto, o poema terá signiicados muito distintos. A autora e o livro A questão da autoria em O Livro de Travesseiro, portanto, tem muitas camadas e precisa ser tratada em sua complexidade. Hoje, Sei Shônagon é uma autora de um livro traduzido para mais de uma dúzia de línguas, e seu lugar no imaginário japonês, assim como no internacional, é sustentado por uma aparência de estabilidade. No entanto, conhece-se tão pouco da autora que o seu retrato é muitas vezes feito de hipóteses, à imagem do retratista, e não necessariamente da retratada. Não se conhece sequer seu verdadeiro nome; e mesmo os pesquisadores que lidam com fatos históricosnão resistem à tentação de supor. A outra tentação, em sentido contrário, seria de imaginar que a ideia de autor (criação moderna e ocidental) não se aplica a Sei Shônagon. Nem ela mesma se acreditava autora: o livro e sua materialidade instável, suas muitas versões, sua (des)organização em fragmentos, sua recusa de obedecer à cronologia, seus buracos na narrativa, tudo isso nos levaria a crer que se trata de um texto que não depende da ideia (fantasia romântica) de um indivíduo original, criador, ordenador9. Ele estaria mais próximo da ideia borgeana de anonimato do texto — daquilo que Efraín Kristal denomina uma “ênfase nos aspectos impessoais da literatura” (2002, p.xix) — da “diiculdade categórica de saber o que pertence ao poeta e o que pertence à linguagem” 9 A oposição binária a O Romance do Genji é frequente: a narrativa de Murasaki Shikibu seria um modelo de voz autoral homogênea, visão total e articulada de um mundo iccional, arquitetura narrativa a um tempo complexa e coerente, desenvolvimento aprofundado de personagens e psicologias, agenciamento de cenasclímax e crescendos de tensão e lirismo, etc. 46 VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada (Borges, 1974, p.240). Fruto de reescrituras e diferentes perspectivas sobre a autora (e sobre a ideia de autoria), perdas, alterações, adições, o texto shonagônico pode ser “uma empreitada coletiva que possui maior peso do que a colaboração individual de um autor em especíico, ou de um leitor, ou de um tradutor” (Kristal, 2002, p.xix). Essa oposição binária entre autoria e anonimato reduz Sei Shônagon ora a uma igura mítica, ora a uma função do texto. No entanto, O Livro de Travesseiro é, além disso, uma obra que se pretende autorreferencial — seja na leitura daqueles que a veem como uma peça de propaganda política, seja na visão dos que a consideram como uma espécie de diário íntimo, ou mesmo para aqueles que acreditam encontrar no texto aquilo que Jakobson chamava de “dominante poética”. A poesia, ainal, no contexto histórico em que Sei Shônagon se encontrava, era (dentre outras coisas) uma atividade social de comunicação, e a poética japonesa, tal como deinida por Ki no Tsurayuki, considera a literatura como a “palavra que brota do coração humano” — nada mais distante do impersonalismo borgeano, ou da morte francesa do autor. A ausência do autor, ainal, já foi deinida por Derrida (1995, p.272) como uma ausência do pai (do logos). Em geral discreta com relação a suas angústias, Sei Shônagon dedica grande parte do texto a expressar sua insegurança com relação à sua voz poética — uma voz que ela deveria ter, por hereditariedade, mas que ela sufoca em nome do pai. Associada a essa mudez, eu detecto algo que Susan Gubar (1981) chamou de “questão da criatividade feminina”. Quando alijada do centro da linguagem, a literatura de autoria feminina busca estratégias de posicionamento artístico; uma dessas estratégias seria recriar instâncias em que a mulher tem um papel permitido (por exemplo, o doméstico, a performatividade de gênero, o corpo como mídia, etc.) para lidar com a ansiedade de se pretender literatura. Isso ica claro no caso de Sei Shônagon, que se acredita incapaz de dizerum poema de circunstânciae, por outro lado, se atualiza como autora e personagem na narração de sua produção poética de caráter privado. Essa imagem dilacerada e incongruente daquilo que venha a ser ela mesma é um relexo de circunstâncias públicas e privadas. O papel da mulher na Corte era, ao mesmo tempo, crucial e inferiorizado — basta lembrar que, ainda que o conhecimento da língua escrita de prestígio, o chinês clássico, fosse amplamente disseminado entre as damas do Palácio, essa habilidade não podia ser posta em destaque, e a posteridade se encarregou de quase esquecer que ela era comum. Por outro lado, a linhagem a que pertencia Sei Shônagon — estirpe de poetas — serviu, ao mesmo tempo, para consolidar a coniança que ela tinha em sua escrita, e ampliicar a angústia que ela sentia também, ao escrever. É desse lugar, multifacetado como o Aleph de Borges, que emana o texto — o texto não, os textos — de travesseiro. Espaço / Espaços 47 BIBLIOGRAFIA Barthes, R. A morte do autor. In: O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.65–70. Borges, J.L. Obras Completas de Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Emecé Editores, 1974. Bressane, R. De quando a banalidade do “eu” soa épica. 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Espaço / Espaços 49 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL SUL DE LITERATURA COMPARADA: ESPAÇO / ESPAÇOS 8 a 10 de outubro de 2014 - Campus do Vale - Instituto de Letras UFRGS Reitor: Carlos Alexandre Neto Diretora do Instituto de Letras: Jane Fraga Tutikian Coordenadora do PPG Letras: Maria José Finatto Comissão Coordenadora: Gerson Roberto Neumann Rita Lenira de Freitas Bittencourt Cinara Ferreira Pavani Rafael Eisinger Guimarães Rita Terezinha Schmidt Comissão Cientíica: Andrei Cunha Anselmo Perez Alós Antonio Barros de Brito Jr. Carlos Garcia Rizzon Elaine Barros Indrusiak Elizamari Rodrigues Becker João Manuel dos Santos Cunha Marta Ramos Oliveira Ricardo Barberena Rosalia Neumann Garcia Pedro Mandagará Comissão de apoio: José Canísio Scher Márcia Ivana de Lima e Silva Alunos Pós-Graduandos: Camila Alexandrini Kauan Negri Gabriela Semensato Ferreira Helder John Kim Amaral Melissa Rubio dos Santos Espaço / Espaços 349 Monique Cunha Araújo Patrizia Cavallo Rosita M. Schmitz Vanessa Hack Gatelli Alunos Graduandos: Andrea Rehm Cláudia Pavan Eduardo Lara de Carvalho Marlova Mello Mirian Baptista Nathana Constantin Renata Martins da Silva Zuleica L. Kraemer