Academia.eduAcademia.edu
Universidade do Rio de Janeiro (UniRio) Programa de Pós-Graduação em Teatro Inter-relações entre Teatro e Educação Jogos Dramáticos na formação do homem André Luiz Porfiro Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Teatro como requisito parcial para a obtenção do título Mestre em Teatro, sob a orientação da professora doutora Sueli Barbosa Thomaz. Rio de Janeiro 2004 Universidade do Rio de Janeiro (UniRio) Programa de Pós-Graduação em Teatro Inter-relações entre Teatro e Educação Jogos Dramáticos na formação do homem André Luiz Porfiro Rio de Janeiro 2004 Universidade do Rio de Janeiro (UniRio) Programa de Pós-Graduação em Teatro Inter-relações entre Teatro e Educação Jogos Dramáticos na formação do homem Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Teatro e submetida à aprovação da banca examinadora Mestre em Teatro, sob a orientação composta pelos seguintes membros: ______________________________ Profª doutora Sueli Barbosa Thomaz UniRio (orientadora) ______________________________ Profº doutor Renan Tavares - UniRio ______________________________ Profª doutora Iduína Mont’Alverne Chaves - UFF À Aldeia e Camila. A elas, dedico este trabalho. Agradecimentos Em primeiro lugar, gostaria de agradecer aos adolescentes que participaram da pesquisa, os alunos: Adalberto Costa de Oliveira, Alexandre César A. da Silva, Aline da Silva, Aline Vieira da Rocha, Camila Pereira de Vasconcelos, Cássio Escarabel, Daniel do Nascimento Félix, Deivid de Souza Braga, Diogo Leandro, Ellen Cristina de Almeida, Fernanda da Silva Abraão, Glauber Silva Neves, Gleidson dos S. Carvalho, Jéssica Trajano de O. de Novaes, Marlon Oton da Silva, Rosane Mota Marques, Rozineide Gonçalves de Lima, Suelen de Aquino Moreira, Thiago Arruda da Silva Couto e William dos Santos. Também agradeço, a Sônia Máximo Moreira, diretora da Escola Municipal Gandhi, pela sua disponibilidade, compreensão e confiança, o que possibilitou o aprofundamento de todas as questões da pesquisa. À professora Maria das Graças, coordenadora da 10ª CRE, pela atenção e dedicação à Educação. E, especialmente, à professora Sueli Barbosa Thomaz, orientadora desta investida, que esteve sempre ao meu lado apontando os caminhos para vencer as dificuldades. Sumário RESUMO................................................................................................................................................................................ 6 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................................................7 I - TEATRO E EDUCAÇÃO: A FORMAÇÃO DO HOMEM....................................................................................12 1- Educação e Teatro na Educação....................................................................................................................12 2- Abordagens metodológicas............................................................................................................................. 16 2.1- A abordagem anglo-saxônica.........................................................................................................................17 2.2- A abordagem do Movimento Escolinhas de Arte.................................................................................. ........18 2.3- A abordagem pedagógica do Teatro do Oprimido.........................................................................................20 2.4- O sistema de Viola Spolin..............................................................................................................................22 2.5- A abordagem de Ryngaert 2.5.1- A metodologia do jogo e da experimentação: o conceito de jogo dramático nas práticas de Ryngaert.....28 2.5.2- O jogo dramático e a construção do conhecimento.................................................................................... 30 2.5.3- O jogo dramático como campo de experimentação criativa.......................................................................33 3- A Educação para o século XXI.......................................................................................................................35 3.1- O Relatório Jacques Delors.................................................................................................. ..........................35 3.1.1- Os quatro pilares da Educação................................................................................................ ....................36 3.2- Os saberes fundamentais à Educação do século XXI, segundo Edgar Morin................................................40 II- A ALFABETIZAÇÃO CÊNICA..................................................................................................................................50 1- A Alfabetização Cênica...................................................................................................................................51 1.1- O contato inicial............................................................................................................ .................................51 1.2- O corpo e a criação de imagens............................................................................................... ......................60 1.3- O relacionamento com os objetos.................................................................................................................82 1.4- Superando obstáculos......................................................................................................... ...........................91 2- A construção da dramaturgia e o processo de formação do produto criativo.....................................100 2.1- A construção da dramaturgia.................................................................................................. ......................101 2.1.1-Um guia para o roteiro de ações: os elementos arquetípicos na construção dos desenhos e das histórias102 2.1.2- A elaboração do roteiro de ações............................................................................................. .................109 2.1.3- A transformação do espaço....................................................................................................... ................114 2.1.4- A afirmação das descobertas espaciais......................................................................................................118 3- A formação do produto criativo...................................................................................................................120 3.1- A definição da cena um................................................................................................................................120 3.2- Ensaio e novas descobertas................................................................................................... .......................125 3.2.1- A cena um.................................................................................................................... ..............................125 3.2.2- A cena dois................................................................................................................................................126 3.2.3- Colagem das cenas um e dois.................................................................................................. ..................129 3.3- As escolhas.............................................................................................................................. .....................129 4- A preparação para a apresentação do produto criativo............................................................................133 4.1- A apresentação para um público externo ..................................................................................................133 4.2- Improvisações e repetições..........................................................................................................................133 4.3- A circularidade de papéis.................................................................................................... ........................136 III- OS SOBREVIVENTES EM CENA: A APRESENTAÇÃO DO PRODUTO CRIATIVO...................................138 1- A apresentação pública............................................................................................................................139 1.1- Os elementos estruturadores da apresentação pública................................................................................140 1.1.1Os roteiros de ações......................................................................................................... ...................142 1.1.2O espaço da representação.................................................................................................... ..............145 1.1.3Os espectadores..................................................................................................................................146 1.2- Os elementos da cena – cenários e figurinos..............................................................................................147 1.2.1- As personagens e os atuantes...................................................................................................................149 1.3- As cenas de Os Sobreviventes.....................................................................................................................150 2- O produto criativo........................................................................................................................................162 3- As simbolizações que emergiram a partir de Os Sobreviventes................................................................163 CONCLUSÃO.....................................................................................................................................................................168 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................................................183 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA......................................................................................................................................186 Resumo A presente pesquisa investigou as linhas de contato existentes entre o Teatro na Educação, a partir dos jogos dramáticos, na formulação desenvolvida por Ryngaert e a Educação contemporânea, entendida a partir do Relatório para UNESCO1 da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI - o Relatório Jacques Delors - e do pensamento de Morin sobre a Educação do futuro, numa prática em sala de aula da rede pública. Realizou-se durante o período de agosto a novembro de 2002 e em novembro de 2003, na Escola Municipal Gandhi. Favoreceu a construção de um conhecimento pertinente a nossa época, apontando para a importância da prática do Teatro na Educação preocupado com a cultura da comunidade e a formação do homem. 1 Organização das Nações Unidas para a Educação, pra a Ciência e para a Cultura. Introdução Esta pesquisa teve como objetivo investigar as inter-relações entre o Teatro na Educação, tomando como referencial de base os jogos dramáticos estabelecidos por JeanPierre Ryngaert e a proposta de Educação pensada para o século XXI pela UNESCO. Ao inter-relacionar estes dois campos teóricos, colocando o ensino do Teatro em diálogo com as propostas de Educação para o século XXI, pretendi compreender como este ensino favorece a construção de um conhecimento pertinente a nossa época. Esta é uma pesquisa de abordagem qualitativa, com objetivo exploratório. Para tanto, foi necessário a escolha de uma escola capaz de permitir a investigação do problema: Como podem os jogos dramáticos, nas aulas de Teatro, favorecer o desenvolvimento da pessoa humana e sua integração no meio cultural e social, diante das necessidades impostas pelo século XXI? Neste sentido, este trabalho de pesquisa está assim organizado: o capítulo um – Teatro na Educação: Jogos dramáticos na formação do homem – trata dos conceitos que balizaram a pesquisa enfatizando as inter-relações entre Teatro e Educação; o capítulo dois A alfabetização cênica – trata da descrição do processo iniciatório à utilização da linguagem teatral; o capítulo três – A construção da dramaturgia e o processo de formação do produto criativo - descreve a maneira como foi construída uma dramaturgia, a partir dos jogos dramáticos e que resultou no produto criativo Os Sobreviventes e o capítulo quatro Os Sobreviventes em cena: a apresentação do produto criativo - descreve os elementos estruturadores da apresentação pública de Os Sobreviventes. Partindo do senso comum, as escolas da rede pública municipal da Cidade do Rio de Janeiro não apresentam condições favoráveis à prática do Teatro na Educação. Embora esta área do conhecimento venha sendo trabalhada, o que se observa é que não existem salas específicas e com material adequado para o desenvolvimento das práticas teatrais, exigindo do docente a criação do espaço cênico, nos estreitos limites da sala de aula, no qual as mesas e as cadeiras são retiradas e recolocadas todos os dias, após término das aulas. Este é o caso da Escola Municipal Gandhi, da Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro, localizada em Manguariba, Santa Cruz, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, objeto da presente pesquisa. A escolha se deu em função da minha atuação, na época, como docente e por considerar que teria a permissão e a liberdade necessária para desenvolver a proposta de trabalho baseada na prática dos jogos dramáticos. O universo da pesquisa contou, inicialmente, com um grupo de 20 alunos, entre 13 e 16 anos, matriculados na sexta série do Ensino Fundamental. Com o transcorrer dos trabalhos, a que denominei de Oficina de Teatro, foi possível a realização de práticas teatrais a partir de jogos dramáticos. Enfatizando uma metodologia diferenciada, não utilizada na escola, com a capacidade de favorecer o ensino do Teatro numa abordagem que privilegia além da criatividade, da inventividade, da sensibilidade, o simbolismo presente na vida do grupo. A Oficina de Teatro ocorreu no período de agosto a novembro de 2002, num total de dezesseis encontros, que culminou com a apresentação do produto criativo Os Sobreviventes, criação coletiva extraída a partir da cultura do grupo. Uma escola que pretende ser renovadora, hoje debate e persegue novas formas de atuação. Saindo de métodos que preconizam, prioritariamente, a aquisição do conhecimento instrumental, experimenta possibilidades onde o conhecimento é construído através de atividades cotidianas relacionadas às atividades escolares, valorizando os hábitos, as atitudes, a poesia, a ética, a sensibilidade, a estética e a criatividade. Com o jogo dramático o aluno apreende as convenções e no próprio momento do jogo as modifica, recriando-as. O pessoal, o imaginário, o relacional fundamentam a experimentação. Mais do que concluir algum resultado ou produto é a possibilidade de criar e inventar códigos que suscita o jogo. Códigos pessoais, que no atrito com o código do outro, tornam-se coletivos, assimilando, assim, a interferência do outro e ultrapassando as suas próprias idiossincrasias, uma vez que no jogo o sujeito é uma junção de vários outros sujeitos. O binômio Teatro-Educação exige do educador um compromisso com essas duas áreas de conhecimento. Para tanto, parti das orientações do Relatório da UNESCO, organizado por Jacques Delors, que estabeleceu as quatro aprendizagens necessárias à Educação no século XXI e das orientações sócio-antropológicas de Edgar Morin sobre a Educação para o futuro, centradas no gênero humano, de modo a compreender como os jogos dramáticos podem contribuir para que essas propostas possam ser atingidas. Para a efetuar a tessitura entre esses campos do saber foi utilizado o jogo dramático, em função de que a sistematização aberta, formulada por Ryngaert, permitiu, na minha ótica, a realização de atividades tendo em vista uma coerência paradigmática entre Teatro e Educação. Com o objetivo inicial de vivenciar os jogos dramáticos no tempo-espaço da Oficina de Teatro, a pesquisa teve um outro desdobramento: a apresentação do produto criativo coletivo denominado Os Sobreviventes. Para a sua construção foram utilizados exercícios teatrais adaptados do livro El Teatro Ambientalista de Richard Schechner, fundamentando o sentido da realização de uma expressão cênica fora dos moldes tradicionais, de modo a manter o paradigma escolhido: um teatro que não exige cenário, figurino ou outros meios para a sua realização; mas que utiliza o jogo simbólico – o jogo da ficção, sem a preocupação de formar o artista, mas formar um ser em crescimento, capaz de repensar a sua vida e a própria sociedade em que vive. Esta abordagem teatral incorporou relações cênicas com o espaço, com o corpo, com os objetos, as relações entre idéias, o imaginário do grupo. Nela fez-se necessário, também, a inclusão do Outro, o que vê. Um “espectador” que tem o espaço de criador da obra pela polissemia que o produto criativo coletivo traz consigo: pela diferença de pontos de vista em relação ao espaço de representação, pela contemplação do sentido a partir de suas vivências pessoais. Diante da complexidade contemporânea, que cria um universo paradoxal nas comunidades periféricas dos grandes centros, onde existe lado a lado miséria e tecnologia, acredita-se que um grupo de alunos de uma escola da rede pública da cidade do Rio de Janeiro possa desenvolver e ser estimulado a criar interferências nas suas comunidades. Posso afirmar que a pesquisa obteve as seguintes conclusões com relação ao objetivo traçado: que esse grupo passou a criar uma autonomia de pensamento, a ver com olhos diferentes do establishment, no momento em que vivenciou relações sociais voltadas para um trabalho coletivo de criação, que foi capaz de religar a cultura de sua comunidade aos processos criativos vivenciados no espaço cênico, que se tornou a sala de aula. Os jogos dramáticos permitiram que a vida da comunidade fosse desvendada na escola. Os desafios, medos, vitórias e as histórias da localidade fizeram do espaço cênico o espaço do sagrado, no qual os sentimentos, as emoções emergiram, permitindo, assim, um novo olhar perante o mundo. Como enfatiza Ryngaert: “faz-se um ensaio sem risco” para as interferências no social, no imaginário e no afetivo dos alunos. Com isso, o mundo fica mais amplo e a concretização dos sonhos recolhidos no interior de cada um, esmagados pela dureza do dia-a-dia, torna-se, por instantes, possível. E a cada repetição, mais possível ainda. I- Teatro e Educação: a formação do homem Este capítulo tem como objetivo fazer uma tessitura entre os campos teóricos que balizaram a pesquisa. Deste modo, considerei importante rever algumas definições de Educação, bem como algumas das diferentes abordagens do Teatro na Educação, a partir do jogo dramático, fazendo um aprofundamento nas orientações de Ryngaert sobre este tema. Tendo em vista que Teatro e Educação são partes de uma mesma moeda, cujo objetivo principal é a formação da pessoa humana, optei por apresentar as propostas para a educação no século XXI, por considerá-las de fundamental importância no ensino de Teatro. Tais propostas fazem parte dos denominados “pilares da educação”, proposto pela UNESCO e dos Sete Saberes necessários à Educação do Futuro, pensados por Edgar Morin, que orientam as propostas político-pedagógicas para a Educação Brasileira. 1- Educação e Teatro na Educação O percurso para a implementação do Teatro na Educação no Brasil foi marcado por diversas etapas, indo ao encontro das mudanças gerais ocorridas na Educação. No início do século XX as atividades de teatro estavam ligadas essencialmente às festividades escolares. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN – Arte, (1997:26), “o teatro era tratado com uma única finalidade: a da apresentação. As crianças decoravam os textos e os movimentos cênicos eram marcados com rigor”. Entre os anos 20 e 70 com a influência da Escola Nova o ensino de arte aponta para um caminho diferenciado, absorvendo a estética modernista da Semana de Arte Moderna de 1922. Esse movimento defendia os processos de desenvolvimento e criação dos alunos, em detrimento das práticas diretivas que centralizavam o saber no professor e na repetição de modelos. Esta preocupação não conferiu de imediato a institucionalização do ensino das artes. Esse só foi introduzido no currículo da Educação Básica, de forma não obrigatória, com o advento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN de 1961 (Lei 4.024/61). Como uma das linguagens da arte, a Arte-Dramática foi também instituída em algumas escolas, com o objetivo único de ministrar a linguagem teatral. Nos anos setenta, com a Reforma do Ensino de 1º e 2º graus, lei 5692/71, a arte foi incluída no currículo escolar. Atendendo ao artigo 7º da referida Lei, o ensino de arte, denominado Educação Artística, ficou atrelado à área de conhecimento Comunicação e Expressão. A partir de então, foi considerada uma atividade educativa e não uma disciplina. No conjunto das atividades educativas foram incluídas as Artes Plásticas, a Educação Musical e as Artes Cênicas, termo que denominava o Teatro na Educação. A obrigatoriedade da Educação Artística nas escolas de 1º e 2º graus exigiu que os primeiros profissionais recebessem uma qualificação necessária, uma vez que alguns professores eram de outras especialidades e optaram por trabalhar com as Artes Cênicas. Esses profissionais foram treinados para o exercício da função em oficinas de teatro, ministradas por atores e diretores de Teatro, documentos oficiais (guias curriculares) e livros didáticos em geral, que, por falta de uma pesquisa aprofundada da área, não abrangiam as questões teórico-metodológicas. Passado o momento emergencial, houve a obrigatoriedade que os profissionais que pretendessem ingressar na rede pública para lecionar Educação Artística, teriam que ter cursado licenciatura plena, com habilitação em Artes Cênicas, em unidades de Ensino Superior. A obrigatoriedade de formação superior em Educação Artística almejava a melhor qualificação dos profissionais, porém tal objetivo não foi alcançado. Os professores, por atuarem como polivalentes, tinham que se desdobrar nas diversas áreas de arte, entretanto a duração do curso não atendia às necessidades impostas pelas diferentes linguagens artísticas. Segundo os PCN-Arte (1997:29): “A tendência passou a ser a diminuição qualitativa dos saberes referentes às especificidades de cada uma das formas de arte e, no lugar destas, desenvolveu-se a crença de que bastavam propostas de atividades expressivas espontâneas para que os alunos conhecessem muito bem música, artes plásticas e cênicas, dança, etc”. Com o processo de redemocratização do país e, principalmente, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, a trajetória do Teatro na Educação e das Artes em geral, tomou grandes proporções. Através dos movimentos de Arte-Educação os princípios norteadores dessa área começaram a ser repensados. A conscientização do professor, a busca do aprimoramento e a sua valorização balizaram as iniciativas. Com o movimento e a organização os Arte-Educadores conseguiram influenciar a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394/96. A nova LDBEN expressou os anseios do movimento de Arte-Educadores. No artigo 26 §2º assinala que: “O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. Com a lei 9.394/96, o Ensino de Arte tornou-se obrigatório, sendo considerado uma área de conhecimento. O termo teatro volta a ser utilizado, substituindo o termo artes cênicas. O Teatro na Educação ganhou novos eixos norteadores: a pluralidade cultural integrada ao fazer artístico, a apreciação da obra de arte, como também, a sua contextualização histórica. Pensar em Teatro na Educação requer uma retomada do papel da educação. Sabe-se que a escola, do modo como está organizada, tem favorecido a transmissão do saber acumulado, através de práticas pedagógicas que não levam em consideração o lado afetivo, a sensibilidade e a maneira como o aluno pensa, sente e age no ambiente escolar. Deste modo, os conceitos que pertencem ao mundo do não-racional, e da subjetividade são desprezados em função de uma possível aquisição de saberes que nem sempre podem contribuir para a formação do homem e para a transformação da sociedade. Sabe-se que o homem, sujeito desse processo, é um ser por inteiro que, ao mesmo tempo em que necessita de instrumentos, de ferramentas do mundo da cognição, precisa também ter satisfeito o seu lado da sensibilidade, das aspirações, dos sonhos, mitos, ideologias e valores. Porém, a escola voltada para a “cultura instrumental” não abre espaço para que esse outro lado da educação do homem aconteça. Segundo Bernstein (1971: 277), a escola, enquanto sistema sócio-cultural, transmite dois tipos de cultura: uma “cultura instrumental” e uma “cultura de expressão”. A primeira refere-se à aquisição de competências específicas, principalmente as referentes à profissionalização. O que se observa é que, na medida em que a escola favorece a “cultura instrumental”, ela não abre espaço para os sentimentos e emoções do aluno. Deste modo, acredito que com o desenvolvimento da prática dos jogos dramáticos na escola, será possível alcançar esse ideal de educação: favorecer a “cultura de expressão”. Na tentativa de fornecer ao leitor uma visão panorâmica dos jogos nas aulas de Teatro, apresento os diferentes caminhos que tem sido trilhado pelas práticas dos jogos dramáticos. 2-Abordagens metodológicas O jogo dramático permite um fazer material na realidade teatral. É possível perceber, na sua prática, a união de diversas habilidades em um fazer criativo, desenvolvendo coletivamente, habilidades associativas (conectar idéias remotas), habilidades analógicas (uso de analogias para comparar, elaborar e mesmo transformar informações) e habilidades metafóricas (que consistem em se referir a um objeto em termos de outros, implicando em mudar mentalmente um objeto em outro completamente diferente, fazendo surgir novas formas de representação mental) provocando um comportamento simbólico que faz emergir e evocar situações que não estão imediatamente presentes. Os jogos dramáticos, tendo como característica a efemeridade, ao ser jogado vai se tornando passado e lembrança, porém desenvolve variadas habilidades cognitivas relacionadas ao pensamento criativo. De acordo com Guioford (apud ALENCAR, 2002:30) são as seguintes às habilidades: a) A fluência - Especialmente fluência ideacional, que denota habilidade de gerar quantidades de idéias e respostas a situações problemas e a fluência associativa, que é a habilidade de produzir muitas relações ou associações a uma dada idéia; b) A flexibilidade - Que implica na produção de mudanças na direção do pensamento para resolver problemas; c) A originalidade – Que vem a ser a apresentação de respostas raras ou incomuns; d) A elaboração - Que consiste na facilidade em acrescentar uma variedade de detalhes a uma informação, produto ou esquema, tendo o seu papel nas produções criativas que progridem de um tema ou esboço vago até uma estrutura ou sistema organizado. Considera-se que as habilidades do pensamento criativo desenvolvidas através dos jogos dramáticos fazem parte do que se convencionou chamar de pensamento divergente. “O pensamento divergente é, na verdade, resultante da interação de todas as habilidades pertencentes à estrutura do intelecto (as de operações, produtos e conteúdos), visto que gera informações a partir de uma informação conhecida e enfatiza a variedade e quantidade de respostas obtidas” (SCHLEDER, 1999). Sendo assim, pode-se afirmar que a prática do jogo dramático relaciona-se com vários segmentos do conhecimento humano. Para a pesquisa nos deteremos no campo da educação, porém é necessário evidenciar que o conceito de jogo dramático apresenta várias abordagens dependendo do ponto de vista a que esteja relacionado. Abaixo relaciono as principais abordagens do jogo dramático que fazem parte do cotidiano do ensino do teatro na Educação. 2.1- A abordagem anglo-saxônica Para Slade (1978:17) o jogo dramático infantil é um comportamento real dos seres humanos. A raiz do jogo dramático é a brincadeira de representar o jogo: “é com o “jogo” que devemos nos preocupar primordial e primeiramente”. Representante da abordagem pedagógica anglo-saxônica do drama, segue uma tradição de educação através da arte inaugurada por Herbert Read. Essa abordagem pedagógica coloca o jogo dramático infantil como o ponto de principal articulação entre as várias disciplinas a serem trabalhadas com os alunos. Sobre o jogo dramático Slade (1978: 19-20) faz uma distinção dividindo-o em duas possibilidades de caracterização: 1) O jogo projetado – É o drama no qual é usado a mente toda, mas o corpo não é usado tão totalmente. Usam-se tesouros (bonecas, tijolos, papéis velhos, etc.) que ou assumem caracteres da mente ou se tornam parte do local onde o drama acontece. No jogo projetado típico não vemos o corpo inteiro sendo usado. (...) A ação principal tem lugar fora do corpo e o todo se caracteriza por uma extrema absorção mental. (...) O jogo projetado é mais evidente nos estágios mais precoces da criança pequena, que ainda não está pronta para usar o seu corpo totalmente. 2) O jogo pessoal - É o drama óbvio: a pessoa inteira, o eu total é usado. Ele se caracteriza por movimento e caracterização, e notamos a dança entrando e a experiência de ser coisas ou pessoas. No drama pessoal, a criança perambula pelo local e toma sobre si a responsabilidade de representar um papel. De acordo com Japiassu (2001) a metodologia do jogo dramático desenvolvida por Slade foi direcionada para o alcance de objetivos pedagógicos muito amplos, como a criatividade, o desenvolvimento moral e a livre expressão do aluno, sendo a sua base construída a partir de uma visão instrumental da educação. 2.2- A abordagem do Movimento Escolinhas de Arte Araújo (1974) foi o pioneiro na sistematização de um método de ensino destinado à implementação do teatro como atividade nas escolas brasileiras. Essa abordagem estava ancorada na determinação instituída na lei 5692/71. Enfatizava uma maior importância do processo, do que do produto em relação ao ensino-aprendizagem. Essa visão caracteriza a influência de uma concepção modernista de Educação, ligado a Escola Nova. Integrante do MEA – Movimento Escolinhas de Arte, cujos pilares estavam embasados na concepção escolanovista, Araújo (1974) estabelece como objetivo, a serem alcançados nas atividades, a livre expressão e a criatividade. Para esse autor (1974:23) há uma divisão entre as partes constitutivas do processo de jogos dramáticos, uma divisão entre os jogos iniciais e os jogos de aprofundamento na prática da linguagem teatral na sala de aula. Essa divisão é constituída de: 1) Jogos Preparatórios - São jogos muito comuns, em que o aluno participa sem encarnar personagens, sem estar numa situação imaginária; 2) Jogos Dramáticos - São exatamente o contrário. Aqui o aluno, já encarnando um personagem, numa situação imaginária, expressa idéias, sentimentos ou emoções, através de uma ação. A afirmação da concepção oficial de Teatro na escola, como atividade ligada à disciplina de Educação Artística, por sua vez no âmbito da área de Comunicação e Expressão, abre um paradoxo nas propostas de Araújo. Segundo Pupo (2001): 2 3 “Considerando que o MEA em sua origem - EAB - surgiu como crítica ao modelo tradicional de ensino, forjando o método de livre expressão como uma possibilidade de romper com o padrão de cópia imposto à criança: através da proposta de Araújo o ensino do teatro perde o sentido libertário e passa a ser mera concessão oficial. Desta forma, todo o caráter transgressor que fez do MEA uma 4 referência (revolucionária) em ensino de arte assume a partir do livro em debate o ideário da oficialização da arte na escola, legitimando a Lei 5692/71”. As propostas de Araújo (1974) apontam para uma transição no modo de articulação entre Teatro e Educação e significou, em sua época, um referencial importante para os MEA – Movimento Escolinhas de Arte Escolinha de Arte do Brasil 4 “Educação através do Teatro” livro que expressa as idéias de Araújo sobre teatro na educação 2 3 professores de outras áreas que, em virtude da lei 5692/71, optaram por lecionar Artes Cênicas. 2.3- A abordagem pedagógica do Teatro do Oprimido Desenvolvido por Boal (1979), a Poética do Oprimido tem como seu principal objetivo transformar o povo “espectador”, ser passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator, em transformador da ação dramática. Consiste na mudança de atitude em relação às tradicionais formas de produção material nas sociedades capitalistas. A Poética do Oprimido (1979:126) propõe a própria ação. “O espectador não delega poderes ao personagem para que atue nem para que pense em seu lugar: ao contrário, ele mesmo assume um papel protagônico, transforma a ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia, preparando-se para a ação real”. A pedagogia teatral desenvolvida por Boal, a partir da Poética do Oprimido ficou denominada como Teatro do Oprimido. Tomando emprestada a expressão – “oprimido” utilizada por Paulo Freire, o Teatro do Oprimido tornou-se uma referência em Educação Teatral. Apoiada numa prática desenvolvida no Peru com trabalhadores, sua iniciação tem como ponto de partida um contato político teatral pelo corpo. É no corpo que se evidencia as condições sociais imposta pelo regime capitalista. Para a efetivação da proposta de Boal (1979) a primeira palavra do vocabulário teatral deve ser o corpo humano. É o corpo humano a principal fonte de som e movimentos. Para dominar os meios de produção teatral se faz necessário em primeiro lugar a conscientização do corpo, uma tomada de consciência da alienação muscular. “Só depois de conhecer o próprio corpo e ser capaz de torná-lo mais expressivo, o “espectador” estará habilitado a praticar formas teatrais que, por etapas, ajudem- no a liberar-se de sua condição de “espectador” e assumir a de “ator”, deixando de ser objeto e passando a ser sujeito, convertendo-se de testemunha em protagonista” (BOAL, 1979: 131). Um ponto vital da pedagogia do Teatro do Oprimido é que todo o exercício proposto deve suscitar a invenção de outros exercícios pelos participantes, numa continuidade que favorece a criatividade permanentemente. Para atingir seus objetivos a pedagogia do Teatro do Oprimido sistematizou um esquema geral de quatro etapas, a saber: Primeira Etapa: Conhecimento do Corpo – Seqüência de exercícios em que se começa a conhecer o próprio corpo, suas limitações e suas possibilidades, suas deformações sociais e suas possibilidades de recuperação; Segunda Etapa: Tornar o Corpo Expressivo – Seqüência de jogos em que cada pessoa começa a se expressar unicamente através de seu corpo, abandonando outras formas de expressão mais usuais e cotidianas; Terceira Etapa: O Teatro como Linguagem – Aqui se começa a praticar o teatro como linguagem viva e presente, e não como produto acabado que mostra imagens do passado; Quarta Etapa: Teatro como Discurso – Formas simples em que o espectador-ator apresenta o espetáculo segundo suas necessidades de discutir certos temas ou de ensaiar certas ações. Para Boal (1979:153), as quatro etapas do esquema geral apresentado acima “são formas de teatro-ensaio e não teatro-espetáculo, são experiências que se sabem como começam mas não como terminam”. O ápice da pedagogia do Teatro do Oprimido é a conversão do espectador em ator. De acordo com Boal (1979), o espectador livre de suas correntes converte-se em espectATOR, por já não delegar poderes aos personagens. O espectador, nessa conversão, passa a pensar e atuar como protagonista do processo teatral. Tornar-se espectATOR significa a liberação e a libertação do espectador da opressão instituída pelo teatro tradicional. 2.4- O sistema de Viola Spolin Difundido a partir dos anos 60, o trabalho de Spolin (1987) sempre foi comprometido com uma proposta educacional. Suas experiências tiveram início com crianças em comunidades de bairro em Chicago. O desdobramento de sua proposta, no decorrer de variadas experiências com grupos diferenciados, ampliou a possibilidade de aplicação do sistema para outros meios. O sistema já foi aplicado por atores profissionais, estudantes de teatro, alunos do ensino fundamental e médio, atores amadores e crianças. Tornou-se também uma ferramenta valiosa para o trabalho de Teatro em centros comunitários e em escolas por oferecer um detalhado programa para uma oficina de trabalho. Para Spolin (1987:20) o Teatro é uma arte complexa, porém através do sistema de jogos teatrais “pode ser ensinado ao jovem, ao iniciante, aos velhos, aos encanadores, professores, médicos e donas de casa. Ele os libera para entrar numa excitante aventura criativa, e assim dá significado para o teatro na comunidade, na vizinhança, no lar”. Vinculada ao movimento de renovação do teatro americano, Spolin desenvolveu um sistema de jogos teatrais estruturados em jogos de regras que tem a tríade: lugar, personagens e situação como o guia de seu desenvolvimento. Estabeleceu um sistema experimental baseado em improvisações que abarca noções fundamentais para a prática cênica. Através de um manual, o livro Improvisação para o Teatro, Spolin (1987) introduz um esquema para operacionalização das suas idéias. Fazem parte desse esquema de operacionalização os seguintes termos e procedimentos: 1- O foco: É o ponto de concentração para o sistema de Spolin. Segundo a autora (1987:22) “é o foco mágico que preocupa e clareia a mente (o conhecido), limpa o quadro, e age como o propulsor em direção aos nossos próprios centros (o intuitivo), quebrando as paredes que nos separam do desconhecido, de nós mesmos e dos outros”. O foco deve ser específico e apresentado aos jogadores com clareza e objetividade pelo professor; 2- A instrução: É o método usado pelo professor para que o aluno-ator relembre e mantenha o foco. Segundo a autora (1987:26), “a instrução mantém a realidade do palco viva para o aluno-ator. É a voz do diretor que vê as necessidades da apresentação como um todo, e ao mesmo tempo é a voz do professor que vê o jogador e suas necessidades individuais dentro do grupo e do palco. É o professordiretor trabalhando com o problema junto com o aluno, tomando parte no esforço grupal.” Os jogadores devem manter o jogo sem interrupção durante a instrução procurando desenvolvê-la atendendo as observações formuladas. 3- A platéia – É o conjunto de observadores do jogo teatral. Composto pelo grupo de alunos que não está jogando no momento, tem a função de observar o jogo para futura análise na avaliação. No sistema de Spolin os alunos se revezam como platéia e jogadores. Esse revezamento estabelece uma relação de confiança entre quem joga e quem vê, pois existe uma troca constante de papéis. 4- A avaliação – É realizada após a apresentação do jogo pela equipe. Todos os integrantes do grupo participam da avaliação, inclusive o professor. Segundo a autora (1987:24), a avaliação “é o momento para estabelecer um vocabulário objetivo e comunicação direta, tornada possível através de atitudes de nãojulgamento, auxílio grupal na solução de um problema e esclarecimento do Ponto de Concentração (foco).” A clareza da avaliação é fundamental para que o jogo torne-se significativo para o jogador atuante que terá nos comentários os sinais para sua progressão na prática dos jogos teatrais. O sistema de Spolin conseguiu uma grande aceitação no Brasil tornando-se uma referência para o trabalho em Teatro na Educação. Na rede pública municipal do Rio de Janeiro foi o sistema de práticas teatrais mais citado entre os professores licenciados em Artes Cênicas, segundo uma pesquisa realizada pelo setor de desenvolvimento curricular em teatro da Secretaria Municipal de Educação5. 2.5- A abordagem de Ryngaert Pouco difundida no Brasil, a abordagem de Ryngaert (1985: 4) sobre a prática do jogo dramático no Teatro na Educação tem características peculiares e enfatizam “a questão do prazer de inventar, da conscientização da densidade sensual de um instante de fuga, da criatividade e da sensibilidade influenciando a formação”. Professor de Estudos Teatrais, Ryngaert (1985) estuda as diversas possibilidades de aplicação do jogo dramático na Educação e na formação do homem. Considera as salas de aula como centros de criação e que os jogos dramáticos estariam intrinsecamente ligados à 5 Pesquisa realizada no ano de 2003 no âmbito da Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro com vistas a descobrir as principais tendências metodológicas do ensino de teatro na rede escolar pública municipal. presença dos jogadores. Presença, entendida como “uma disponibilidade sensorial e motora que libera um potencial de experimentação” (RYNGAERT, 1985: 16). Este autor defende a relação entre o jogo dramático e o jogador no momento próprio do jogo, na relação com o fazer teatral, na ficção. “Desejo que o surgimento de ficções suscite uma reflexão sobre o interior do sujeito e sua expressão, sobre as manifestações de emoções e sensações dentro das convenções” (RYNGAERT, 1985: 4). É no aqui e agora do trabalho com o jogo dramático que se estabelece o conhecimento e a conscientização das formas de produção artísticas individuais e coletivas. Nessa perspectiva inexiste a oposição entre processo e produto. Ryngaert (1981:73) propõe uma classificação das experiências em função de três critérios de variada importância. 1) O ponto de partida do jogo (texto, inquérito, narrativa, imagens, fotografia...); 2) O emissor do discurso (o grupo e o animador cujos lugares respectivos mudam; por necessidade falar-se-á de um emissor-codificador que fixa regras do jogo); 3) O receptor do discurso (os membros do grupo e o animador). Deste modo, Ryngaert (1981:73) não estabelece uma progressão ideal para as práticas com jogos dramáticos descritas no quadro de tipologia dos jogos dramáticos. Enfatiza que essa classificação é apenas um guia, não devendo ser tomada como um manual a ser seguido em cada passo. Esclarece que “cabe a cada um definir as suas práticas de acordo com cada situação” (RYNGAERT, 1985: 5). Sugere que a prática descrita no número 9, do quadro de tipologia dos jogos dramáticos (1981: 74), apresentado abaixo, atinge o essencial dos objetivos por ele propostos: tomando um ponto de partida qualquer, um grupo improvisa numa linguagem artística original e dominada para comunicar um discurso consciente a espectadores. O jogo dramático, da forma na qual foi delimitado abaixo, está inserido no que se convencionou chamar de metodologia do jogo e da experimentação. Tipologia dos jogos dramáticos Pontos de Partida da sessão de trabalho Exercícios técnicos provenientes da formação de actor Reconstituição de um lugar imaginário Emissor (Destinador) Animador e membros do grupo Todos Receptor (Destinatário) Membros do grupo (retorno) (retorno) 3- O corpo, o objecto e a fabricação de imagens. Imagens e objectos (Publicidade, fotografias, quadros, textos, ícones) Animador (codificador) e membros do grupo O grupo 4- A improvisação de situações a partir de propostas modificáveis 5- Dizer um texto não dramático Situações constrangedoras modificáveis. Animador (codificador) e membros do grupo O grupo Texto não dramático e/ ou poético. Animador (codificador) e membros do grupo O grupo 6- Jogar um texto não dramático Texto não dramático O grupo 7- À volta ao texto dramático Texto dramático Animador (codificador) e membros do grupo Animador (codificador) e membros do grupo 8- O jogo transgressão ou a improvisaçãodescompressão 9- A improvisação colectiva para outros: uma situação de comunicação Todos os pontos de partida. Um indivíduo Um grupo O grupo Todos os pontos de partida (tema livre, texto, narrativa, guião, argumento, espectáculo, imagem, etc...) Um grupo O grupo 1- Exercícios técnicos 2- A improvisação colectiva sem olhar externo O grupo Objectivo Desbloqueamento Iniciação às técnicas do jogo Desbloqueamento da imaginação, procura de situações que podem ser utilizadas posteriormente. Aprendizagem da linguagem do jogo. Incitação à invenção. Reflexão sobre os signos. Aprendizagem da linguagem do jogo. Incitação à invenção. Reflexão sobre os signos. Desbloqueamento da imaginação. Tomada de consciência da própria voz. Dizer, recitar. Análise crítica do texto. Transposição de uma linguagem para outra. Análise crítica do texto. Reflexão sobre as relações textos/escrita teatral. Diálogo com o texto a partir de uma escrita pessoal. Defesa, libertação, provocação, descompressão. Psicodrama selvagem Comunicação de uma mensagem no discurso dominado de uma linguagem específica. 2.5.1- A metodologia do jogo e da experimentação: o conceito de jogo dramático nas práticas de Ryngaert A presente pesquisa denomina as práticas realizadas na sala de aula da Oficina de Teatro, como jogo dramático, e a prática do jogo dramático de “metodologia do jogo da experimentação”. A escolha da concepção desenvolvida por Ryngaert deu-se pela inter-relação que seu pensamento sobre o jogo dramático estabelece com as necessidades contemporâneas da Educação. Ryngaert (1981:34-35) define sete características para o jogo dramático que se complementam e ajudam a delimitar a abrangência dada ao termo. 1- O jogo dramático não visa uma reprodução fiel da realidade, mas sim a sua análise a partir dum discurso produzido numa linguagem artística original que se afasta do naturalismo. 2- O jogo dramático é uma atividade coletiva. O grupo é o lugar onde o indivíduo se elabora ‘para si’ e com os outros. Mas não poderia manter-se fechado sem cair no narcisismo e na ilusão do grupo. 3- O jogo dramático não está subordinado ao texto. Este é um substituído pela palavra improvisada ou estabelecida a partir dum guião. Em alguns casos, o jogo toca tanto os momentos contingentes que acompanham o texto, a produção de sinais visuais e sonoros inscritos num espaço determinado, como a elaboração deste A determinação do sentido é um processo coletivo que se insere numa linguagem global. 4- O jogo dramático não tem em vista a representação oficial rodeada de um importante aparato. Utiliza a apresentação dentro do atelier como meio para interrogar e para verificar a comunicabilidade do discurso sustentado. O vaivém entre o jogo e o pôr em questão o jogo por observadores ativos é um dado essencial ao trabalho. 5- O jogo dramático não reclama atores virtuosos, competentes em todas as técnicas de expressão. Destina-se a formar ‘jogadores’, mais preocupados em dominar o seu discurso do que em criar ilusão. Estes nem procuram ‘ser’ (como a criança que brinca) nem ‘parecer’ (como certos atores), mas ‘mostrar’. Não é a perfeição do gesto, ou da imitação que se procura, mas sim um comportamento lucidamente elaborado dentro de uma situação de comunicação. O que não quer dizer que se negue toda e qualquer técnica ou se sonhe com uma expressão espontaneamente correta. A procura da expressão está estreitamente ligada às exigências do discurso, o trabalho sobre a forma a uma crítica do conteúdo. 6-O jogo dramático não necessita de cenários, trajes ou adereços no sentido tradicional. A construção do espaço de jogo faz-se a partir do espaço escolar e do mobiliário corrente chamados a novas funções. Uma ‘caixa de ferramentas’ composta por objetos quotidianos e materiais brutos pode ser utilizada em função das necessidades. 7- Os objetivos educativos visados a longo prazo não devem prejudicar o prazer do jogo ‘aqui e agora’. Se este desaparece, o conceito jogo desaparece também. Ora ele é um dos elementos indispensáveis à existência do jogo dramático propriamente dito. A prática do jogo dramático, desenvolvida durante a pesquisa em sala de aula, foi caracterizada pelo amadurecimento dos alunos, com o estabelecimento de convenções e com o aprender a estabelecer um convívio pacífico e solidário. O trabalho em grupo permeou todas as iniciativas. Segundo Ryngaert (1981:86), “o grupo é o lugar onde o indivíduo se elabora ‘para si’ e com os outros”. Ainda pode-se definir jogo dramático como não subordinado ao texto escrito, e, sim, “ser substituído pela palavra improvisada ou por um guia” que, no caso específico da pesquisa, foi o roteiro de ações. Conclui sua definição, ampliando as possibilidades de abordagem do termo jogo dramático, porque, em alguns casos, o jogo toca tanto os momentos contingentes que acompanham o texto, a produção de sinais visuais e sonoros inscritos num espaço determinado, como a elaboração deste. A determinação do sentido é um processo coletivo que se insere numa linguagem global. Enfim, todo o processo de elaboração da cena, desde as primeiras improvisações, seguidas da sugestão de um guia até o fechamento no produto criativo. Para Ryngaert (1985), o jogo dramático ocorre numa zona intermediária entre o sonho e a realidade, e invoca implicitamente inúmeros fantasmas. Neste aspecto, a carga emocional é indispensável, para que a imaginação transcenda os caminhos comuns e conduza a discursos pessoais mais simbolizados. Aponta para um engajamento sensível no trabalho artístico e na materialização dos produtos da imaginação. A afetividade é também importante, não deve ser temida, uma vez que o jogo dramático facilita um tipo de experimentação sem os riscos da vida real. O aluno na ficção cria novas formas de vida, aproximando-se do mundo exterior, é uma experiência subjetiva criadora do desenvolvimento do indivíduo na sua relação com o mundo. 2.5.2- O jogo dramático e a construção do conhecimento O jogo é uma atividade própria do ser humano. Nos intervalos das aulas, nos parques e praças vemos pessoas envolvidas profundamente nas atividades do jogo, estabelecendo a construção de um mundo paralelo onde, dentro das regras estabelecidas, tudo é possível. O prazer do jogo não está dissociado da construção de regras claras para o seu funcionamento, convivem de maneira simultânea no ato de jogar. É estabelecida uma união entre opostos por meio da complementaridade. Ao mesmo tempo em que o prazer é liberado, também é colocado nos limites definidos pelas regras. O jogo dramático se estabelece por essa concepção de dupla natureza constante no jogo. O prazer está intrinsecamente ligado à construção de regras, havendo um desenvolvimento simultâneo entre ambos. É essa exigência que dá ao jogo dramático suas qualidades de instrumento de investigação e construção do conhecimento. Partindo dessa perspectiva o jogo dramático se constitui, de acordo com Lotman (apud. RYNGAERT, 1981:38) “um ensaio sem riscos porque visa à substituição duma situação não-convencional (real) por uma situação convencional (lúdica)”. Nesta medida, o jogo dramático permite recriar, através das improvisações, no aqui e agora, uma situação de ficção que reproduz partes da realidade evidenciando suas semelhanças com o jogo como definido acima. É no estabelecimento das convenções e na relação com o real, que o jogo dramático afirma seu caráter lúdico. O vai-e-vem entre o real e o lúdico torna-se um meio de experimentação. A realidade é inexorável, independe do sujeito e está circunscrita num tempo. Na construção do conhecimento, o jogo dramático atua em um outro nível de percepção, um nível intermediário entre a realidade e o sonho, num entre-lugar. Utiliza-se da situação de ficção, do jogo, permitindo o “recomeçar, o interromper, o fazer outra vez e o passar a frente” (LOTMAN, apud. RYNGAERT, 1981:38). O aluno adquire o prazer e a responsabilidade sobre as interferências suscitadas na ficção. Domina o tempo, pode parar uma situação que não se sente capaz de prosseguir. Pode voltar atrás, sem arrependimentos e conseqüências, caso necessite de mais tempo para a assimilação do que foi trabalhado.No jogo dramático existe essa permissão de repetições e regressos, unindo cada passo dado a sua matriz geradora numa relação dialética. Outra característica da dupla natureza do jogo dramático é que o “aluno aprende a moldar esta situação na sua consciência porque, sob o aspecto do jogo, ele representa um sistema amorfo da realidade cujas regras podem e devem ser formuladas” (LOTMAN, apud. RYNGAERT, 1981:39). Na formulação das regras está um ponto básico para uma terceira característica do jogo, a sua significação mágica. Permite ao aluno enfrentar situações que à priori não estaria apto. É um ensaio sem riscos pra o real. No jogo dramático as situações e emoções do jogar são estabelecidas pelos jogadores, e a cada progresso vai estruturando o emocional para o enfrentamento, no campo simbólico, de outros desafios. Segundo Lotman (apud. RYNGAERt, 1981:40), o jogo “reproduz este ou aquele aspecto da realidade traduzindo-o na linguagem das suas regras.” Em face dessas características o jogo dramático afirma-se como um meio de conhecimento que funciona como um modelo particularizado da realidade. O jogo dramático exige do aluno um comportamento num plano virtual, que una o lúdico e o real nas regras estabelecidas. É preciso acreditar que um objeto real possa se transformar, no instante do jogo, em um objeto de cena tendo a sua função ou característica mudada em face da necessidade do jogo. Há a materialização dos produtos da imaginação, criando um equilíbrio frágil necessário de ser mantido para que o caráter lúdico da improvisação permaneça. No caso específico dessa pesquisa, o jogo tem, como lembra Ryngaert (1985), o sentido de criação, da carga emocional indispensável para que a imaginação transcenda os caminhos comuns, favoreça a sensibilidade conduzindo a discursos mais simbolizados, uma vez que ele é um vasto campo de experimentação do real. O jogo dramático se situa entre o subjetivo e o objetivo, o fantasma e a realidade, o interior e o exterior, a expressão e a comunicação. A atividade dramática permite jogar num espaço determinado, com personagens vivos, com sentimentos que nascem e que acabam por se tornarem verdadeiros, mantendo o caráter lúdico indispensável aos jogos. 2.5.3-O jogo dramático como campo de experimentação criativa A prática do teatro na sala de aula, através do jogo dramático, impõe uma escolha pela incerteza. Seguindo o pressuposto da metodologia do jogo e da experimentação de Ryngaert, inexiste uma forma teatral definida a ser reproduzida e adotada. Não é uma aprendizagem do simulacro. Diferente das áreas de conhecimento baseadas num conceito lógico-científico, a formulação da prática do teatro na sala de aula apresenta-se como um guia que nos desdobramentos da atividade vão chegando a portos seguros. As fricções e experimentações do grupo é que formatam a produção criativa coletiva. Numa improvisação em grupo ocorre a criação conjunta de um mundo. Esse mundo, que é ficcional, partido do imaginário coletivo, fornece soluções provisórias. “É do interior do jogo que o indivíduo se conscientiza de suas dificuldades” (RYNGAERT, 1985:14). É no conflito entre a descoberta de um novo saber, efêmero e instantâneo, com os saberes já adquiridos que ocorre a conscientização do conhecimento. Uma interseção entre o conhecimento cultural da humanidade e a construção sígnico-imagética do adolescente. Na abordagem contemporânea do jogo dramático, conceituada por Ryngaert (1985), a prática do teatro na sala de aula constitui um aprendizado por uma leitura transversal que eleva o aluno ao ato de fazer, criar seus signos e possibilitar a leitura dos mesmos. O teatro, como arte simbólica, em sala de aula, através dos jogos dramáticos, suscita uma releitura do imaginário coletivo do grupo como um campo de experimentação criativa que favorece uma maior inserção dos alunos com o seu subjetivo e na sua relação com outro e com o mundo. Uma releitura imagética e transversal inclusiva que acarreta a ressignificação dos valores, emoções e sensações. Uma sala de aula inclusiva onde o conhecimento é autoconhecimento. Ao vivenciar o jogo dramático, acredita-se que a escola poderá favorecer a “cultura de expressão”. O aluno poderá ir além de uma reprodução fiel da realidade, passando a interrogar o mundo à sua volta, analisando e revivendo as suas ações e relações e, conseqüentemente, refletindo sobre elas. Através de improvisações, com a experimentação de gestos, de atitudes e de sensações, os jogos dramáticos suscitam no aluno a descoberta da complexidade do real, numa linguagem tanto concreta quanto simbólica, transformando a realidade sem banalizála. Preenchendo as lacunas que a escola, organizada sob a ótica do racionalismo, do funcionalismo, do positivismo, da “cultura instrumental”, tem desprezado. O jogo dramático deve permitir às crianças o uso do corpo, das sensações e sentimentos. É uma oportunidade de exercitar suas capacidades criativas, estruturar a sua personalidade numa emoção estética compartilhada. O lugar do jogo dramático é o próprio espaço escolar, organizado em função das necessidades e do momento. Não exige cenário, figurino ou outros meios para a sua realização. Necessita da presença dos alunos-jogadores, que no atrito do jogo estabelecem uma relação a partir da ficção. É no jogo da ficção que vai se formando um ser em crescimento, capaz de repensar a sua vida e a própria sociedade em que vive. Neste aspecto, a escola não valorizaria apenas a formação do homo sapiens, mas também a formação do homo ludens (Huizanga, 2000), do homo estheticus e do homo symbolicus - aquele que sente. Para compreender esta dimensão na formação do homem, torna-se necessário rever as propostas pensadas para a Educação do século XXI, é o que apresentarei a seguir. Para isso irei me valer do Relatório da UNESCO e das idéias de Edgar Morin sobre educação. 3-A Educação para o século XXI 3.1- O Relatório Jacques Delors O repensar a Educação para que possa dar conta das mudanças ocorridas no mundo no último quarto do século XX e prepará-lo para o século XXI, foi o desafio que moveu a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, composta de especialistas do mundo inteiro, vindos dos mais variados horizontes culturais e profissionais, designados pela UNESCO. O objetivo era fazer um amplo quadro da Educação no planeta. Iniciado em março de 1993 e concluído em setembro de 1996, o Relatório Educação – Um tesouro a descobrir ou Relatório Jacques Delors, como ficou conhecido, aponta para os pressupostos que devem orientar a Educação em todas as partes do mundo no século XXI. Entende o Relatório que a Educação é parte essencial do desenvolvimento humano e designa quatro pilares de sustentação para a Educação no século XXI. Pilares estes fundamentais para a construção de um novo paradigma capaz de valorizar a vida e as pessoas. 3.1.1- Os quatro pilares da Educação O século XXI está sendo marcado pelo aumento vertiginoso da circulação e do armazenamento de informações e da comunicação. Esse fato gera a necessidade de uma nova forma de olhar os diferentes pontos de vista, para que de dentro dessas múltiplas interpretações possa se apontar para uma escolha a ser definida. Os meios para decidir essa escolha são as “quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão de algum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento”(DELORS, 2000:89-90). 1- Aprender a conhecer Consiste em adquirir os instrumentos da compreensão. É um processo de aprendizagem do conhecimento, considerando-o ao longo da existência. É fundamental tanto para aprender a “compreender o mundo que o rodeia, pelo menos na medida em que isso lhe é necessário para viver dignamente, para desenvolver as suas capacidades profissionais, para comunicar” (DELORS, 2000:91), quanto para aprender o prazer compreendido nas descobertas individuais. É um processo constante e inacabado que pode ser ampliado a cada nova experiência. “O aumento dos saberes, que permite compreender melhor o ambiente sob os seus diversos aspectos, favorece o despertar da curiosidade intelectual, estimula o sentido crítico e permite compreender o real, mediante a aquisição de autonomia na capacidade de discernir” (DELORS, 2000:91). ‘Aprender a conhecer’, em síntese, é a combinação da aquisição de uma cultura geral ampla com a possibilidade de aprofundamento de um pequeno número de matérias. 2- Aprender a fazer O segundo pilar da Educação para o futuro “está mais estreitamente ligada à questão da formação profissional” (DELORS, 2000:93). O fazer é entendido como o pôr em prática os conhecimentos adquiridos e, também, como adaptá-los as novas realidades impostas pelo mercado de trabalho. Esse novo entendimento do fazer transfere a forma de ensinar, que não pode mais ser limitada à transmissão de práticas mais ou menos rotineiras, ou a “uma tarefa material bem determinada, para fazê-lo participar do fabrico de alguma coisa”(DELORS, 2000:93). A noção de qualificação profissional, tão admirada na modernidade, é substituída pela noção de competência pessoal. As competências exigidas ao profissional vão sendo diferenciadas e há o aumento da importância dada a fatores intelectuais e mentais. Faz-se necessário uma boa formação técnica e profissional, num sentido amplo, que abriga além do ‘saber-fazer’ outros atributos, ligados à socialidade, tais como: capacidade de comunicar, de trabalhar com os outros, de gerir e de resolver conflitos, somando-se ainda a capacidade de iniciativa e o gosto pelo risco. 3- Aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros De acordo com o Relatório Jacques Delors, é a aprendizagem mais difícil de ser implementada nos dias de hoje. É um dos maiores desafios que se apresenta a Educação. É uma aprendizagem que se coloca como uma novidade no sistema educativo. Segue, também, no sentido inverso das atividades econômicas, que exige um espírito de competição exacerbado apontando para o sucesso individual como meta. O estabelecer uma relação de compreensão com o outro, “o diferente” num contexto igualitário, buscando objetivos e projetos comuns é um dos princípios norteadores dessa aprendizagem. De acordo com o Relatório Jacque Delors (2000:97): “A educação tem por missão, por um lado, transmitir conhecimentos sobre a diversidade da espécie humana e, por outro, levar as pessoas a tomar consciência das semelhanças e da interdependência entre todos os seres humanos do planeta”. O aceitar o outro está intrinsecamente ligado ao conhecer a si próprio. Esse princípio de abertura à alteridade leva a atitudes de compreensão da diversidade. O pôr-se no lugar do outro suscita formas diferenciadas de compreensão e estruturação de pensamentos. Esse esforço subjetivo deve ser apoiado pela escola em ações e iniciativas objetivas de “cooperação com grupos sociais mais desfavorecidos, ações humanitárias, serviços de solidariedade entre gerações...”(DELORS, 2000:99). 4- Aprender a ser A aprendizagem do ‘aprender a ser’, há trinta anos atrás, já estava entre os apontamentos necessários a uma formação integral do homem, segundo a UNESCO. “O relatório Aprender a Ser (1972) exprimia, no preâmbulo, o temor da desumanização do mundo relacionada com a evolução técnica” (DELORS, 2000:99). No Relatório Jacques Delors, a Comissão, desde a sua primeira reunião, reafirmou o princípio fundamental de que: “a educação deve contribuir para o desenvolvimento total da pessoa – espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade. Todo ser humano deve ser preparado, especialmente graças à educação que recebe na juventude, para elaborar pensamentos autônomos e críticos e para formular os seus próprios juízos de valor, de modo a poder decidir, por si mesmo, como agir nas diferentes circunstâncias da vida” (DELORS, 2000: 99). Consiste em buscar desenvolver os talentos, a capacidade de inovação, a imaginação e a criatividade no homem como um instrumento capaz de estruturar um pensamento autônomo e próprio para que faça oposição à “meios mediáticos da comunicação social e a processos de estandardização dos comportamentos individuais” (DELORS, 2000:100). Visa a busca da diversidade de comportamentos e atitudes como afirmação da liberdade humana. Para a implementação do ‘Aprender a Ser’ o Relatório Jacques Delors (2000:100) sugere um aumento no espaço escolar dedicado à arte e a poesia, estabelecendo como orientação na escola uma visão cultural, em detrimento de um ensino baseado numa visão utilitarista do mundo. O movimento por uma escola mais cultural e orientada para o desenvolvimento da imaginação e da criatividade trouxe no seu bojo, a revalorização da cultura oral e dos conhecimentos retirados da experiência. Sendo assim, o Relatório Jacques Delors reafirma todos os postulados do Relatório Aprender a Ser, também da UNESCO (FAURE, apud DELORS, 2000:101): “O desenvolvimento tem por objeto a realização completa do homem, em toda a sua riqueza e na complexidade das suas expressões e dos seus compromissos: indivíduo, membro de uma família e de uma coletividade, cidadão e produtor, inventor de técnicas e criador de sonhos”. Os quatro pilares da Educação para o século XXI se apóiam na idéia de uma Educação em constante ampliação e ao longo da vida. Partem da releitura de uma prática educativa estabelecida no último quarto do século anterior, buscando sua ampliação e a reorganização das suas dimensões no ensino formal. Não cabe mais a escolha de uma ou outra aprendizagem em detrimento das demais, mas a estruturação de um sistema que estabeleça uma igual atenção para as quatro formas de aprendizagem, “a fim de que a educação apareça como uma experiência global a levar a cabo durante toda a vida, no plano cognitivo como no prático, para o indivíduo enquanto pessoa e membro da sociedade”(DELORS, 2000:90). Esta é a perspectiva, de acordo com o Relatório, que deve ser levada em conta na elaboração de programas e na definição de novas políticas pedagógicas. 3.2 – Os Saberes fundamentais à Educação do século XXI, segundo Edgar Morin Diante do quadro de mudança planetária que está ocorrendo na contemporaneidade existe um grande esforço mundial para a reformulação da Educação. A UNESCO, com o Relatório Jacques Delors, apontou para as aprendizagens indispensáveis a uma Educação que tem o ser humano e as suas relações com o conhecimento, com o trabalho, com o outro e consigo mesmo, como fatores de desenvolvimento planetário. Entre as quatro aprendizagens necessárias para focalizar a totalidade do ser humano ocorre uma transdisciplinaridade. Morin, um dos principais expoentes do pensamento complexo, a convite da UNESCO, aprofundou a visão transdiscplinar dos quatro pilares da Educação do Relatório Jacques Delors, apontando para os eixos necessários à Educação do futuro. No seu livro, Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro (2001-1), fundamenta os novos paradigmas para Educação, são eles: 1- As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão Morin (2001-1) estabelece a incerteza do conhecimento como um meio de desenvolvimento do próprio conhecimento. A partir da compreensão de que o conhecimento está ligado a variadas estruturas de pensamento pré-condicionantes (subjetividade, visão de mundo, crenças, paradigmas) entende-se que “o conhecimento, sob forma de palavra, de idéia, de teoria, é o fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento” (Morin, 2001-1:20). A elaboração e a estruturação do conhecimento inclui a interpretação, que afirma um caráter subjetivo (que traz consigo a visão de mundo, as crenças e os paradigmas aceitos), e induz a percepções e concepções que estão passíveis de erro e de ilusão. Segundo este autor (2001-1:20): “o desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade, isto é da curiosidade, da paixão, que, por sua vez, são a mola da pesquisa filosófica ou científica”. Aceitar a característica de incerteza do conhecimento implica na inclusão da afetividade e da emoção no sistema de elaboração e estruturação do conhecimento, sem uma pré-determinação hierárquica ou separação entre razão e emoção. Faz-se necessário à reformulação do pensamento, buscando desenvolver uma “nova geração de teorias abertas, racionais, críticas, reflexivas, autocríticas, aptas a se auto-reformar” (MORIN, 2001-1:32). Cabe, então, à Educação, incluir o princípio da incerteza como motriz e “armar cada um para o combate vital para a lucidez” (MORIN, 2001-1: 33), identificando o conhecimento como um sistema estabelecido sob aspectos racionais e subjetivos que se configuram numa estrutura, passível de erro, ilusão e cegueira e, não, numa verdade absoluta. 2- Ensinar os princípios do pensamento pertinente É considerado por Morin (2001-1:35) a questão fundamental da Educação para o século XXI. Neste princípio está inserido a forma de organização do conhecimento que deverá ser ensinado às crianças e jovens. Na dependência de como o conhecimento adquirido pela humanidade for organizado se desdobrará a sua eficácia. Atualmente ocorre a fragmentação dos saberes em disciplinas ou especializações bem delimitadas, estabelecendo uma inadequação com a realidade que necessita de respostas a problemas globais, multidisciplinares e transversais. Para Morin (2001-1:14): “A supremacia do conhecimento fragmentado de acordo com as disciplinas impede freqüentemente de operar o vínculo entre as partes e a totalidade, e deve ser substituída por um modo de conhecimento capaz de apreender os objetos em seu contexto, sua complexidade, seu conjunto”. A Educação deve favorecer o conhecimento do contexto, do global e do complexo, devendo mobilizar o que o conhecedor sabe do mundo. Partindo deste princípio, exercita-se uma aptidão natural da mente que é o formular e resolver problemas. A escola deve ser o local para que haja a apreensão dessa forma de construção do conhecimento, devendo promover, estimular e despertar o livre exercício da curiosidade e da criatividade, elementos capazes de influir nos destinos do planeta. 3- Ensinar a condição humana A separação do ensino em disciplinas carece de pontos de convergência que possam reconhecer a unidade e a complexidade humanas. A desintegração do conhecimento em áreas específicas tem tornado impossível aprender o que significa ser humano. Para Morin (2001-1: 47), “a educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal, centrado na condição humana. (...) Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele”. Ensinar a condição humana busca o religamento do ser humano na simultaneidade, do dentro e do fora, com a natureza. Marca o fim da oposição cultura e natureza estabelecendo o princípio da unidualidade, “um ser a um só tempo plenamente biológico e plenamente cultural” (Morin, 2001:52). Cabe, também, à Educação do futuro, ao estabelecer novos paradigmas, adicionar na visão utilitarista do conhecimento as atividades de jogo, de festas, de ritos, pois, de acordo com Morin (2001-1:58-59): “o ser humano não só vive de racionalidade e de técnica; ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, transes, mitos, magias, ritos. (...) Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre o Homo faber, Homo ludens, Homo sapiens e Homo demens. E, no ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional- empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético”. Compreender a condição humana impõe um esforço de religamento entre a unidade e a diversidade do ser humano. Existe um elo indissolúvel entre unidade e a diversidade de tudo o que é humano e que a visão unilateral do conhecimento separou. Fazer o seu religamento é, também, um dos princípios para ensinar a condição humana. 4- Ensinar a identidade terrena Ensinar a identidade terrena é compreender, na perspectiva do ser humano, em sua unidade e em sua diversidade, a condição do planeta Terra como local de vivências múltiplas e mútuas. De acordo com (Morin 2001-1:76): “é necessário aprender a “estar aqui” no planeta. Aprender a estar aqui significa: aprender a viver, a dividir, a comunicar, a comungar; (...) Precisamos doravante aprender a ser, viver, dividir e comunicar como humanos do planeta Terra, não mais somente pertencer a uma cultura, mas também ser terrenos. Devemo-nos dedicar não só a dominar, mas a condicionar, melhorar, compreender”. Fazem parte do material a ser trabalhado na educação para uma identidade terrena as seguintes proposições: a consciência antropológica, entendida como o reconhecimento da unidade na diversidade; a consciência ecológica, que é a compreensão de que partilhamos com todos os seres mortais a mesma biosfera. A consciência ecológica aspira uma convivência comum e respeitosa entre todos o seres da Terra; a consciência cívica terrena, entendida como uma responsabilidade mútua entre os habitantes da Terra no que se refere uma melhoria da condição de vida de todos; a consciência espiritual da condição humana, que é a busca, sem perder a possibilidade de crítica e autocrítica, de uma compreensão mútua entre os seres da Terra. O objetivo central da Educação para uma identidade terrena está na capacidade de manter a vida, com toda a sua diversidade, no planeta Terra. 5- Ensinar a enfrentar as incertezas O século XX deixou como um de seus maiores legados o conhecimento dos limites do conhecimento. O fim da idéia inabalável de que o futuro poderia ser planejado e estruturado levou a humanidade à era atual onde a “maior certeza é a da indestrutibilidade das incertezas” (MORIN 2001-2:55). A incerteza é um fator que está estreitamente ligada à história do homem. Mudanças históricas, culturais, científicas, sociais têm o fator aleatório como uma de suas forças motrizes. Porém, a tentativa de manutenção de estruturas estabelecidas faz com que sejam criados os mais diversos meios para imprimir certezas e estabelecer verdades. “As civilizações tradicionais viviam na certeza de um tempo cíclico cujo funcionamento devia ser assegurado por sacrifícios às vezes humanos. A civilização moderna viveu com a certeza do progresso histórico. A tomada de consciência da incerteza histórica acontece hoje com a destruição do mito do progresso. O progresso é certamente possível, mas é incerto. A isso acrescentamse todas as incertezas devido à aceleração dos processos complexos e aleatórios de nossa era planetária, de que nem a mente humana, nem um supercomputador, nem um demônio de Laplace poderiam abarcar” (MORIN 2001-1: 80). Uma Educação para o futuro deve apontar para o enfrentamento das incertezas do conhecimento e estabelecer formas de atuação que possam preparar as crianças e jovens para um mundo incerto. Para Morin (2001-2: 59) “conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza” e uma Educação para o futuro deve se pautar em três princípios de incerteza que existem no conhecimento, que são os seguintes: O primeiro é cerebral – o conhecimento nunca é um reflexo do real, mas sempre tradução e construção, isto é, comporta risco e erro; O segundo é físico – o conhecimento dos fatos é sempre tributário da interpretação; O terceiro é epistemológico – decorre da crise dos fundamentos da certeza, em filosofia (a partir de Nietzsche), depois em ciência (a partir de Bachelard e Popper). Para atuar no mundo incerto da contemporaneidade faz-se necessário (MORIN, 2001: 2), o estabelecimento de princípios de imprevisibilidade. A Educação atual tem seus pilares fincados em certezas duradouras, ligadas a uma visão positivista de progressão pelo conhecimento. De uma forma diferente, a atuação para o enfrentamento das incertezas, mesmo estabelecendo um objetivo, tem a clareza de admitir que uma vez iniciada, uma ação “entra num jogo de interações e retroações no meio em que é efetuada, que podem desviá-la de seus fins e até levar a um resultado contrário ao esperado” (MORIN, 2001: 61). Uma Educação para o futuro deve ter a consciência da imprevisibilidade, constituindo-se de estratégias que possam ser modificadas durante o percurso, em função de imprevistos, informações e mudanças de contextos para poder navegar, segundo Morin (2001: 91) em “um oceano de incertezas, entre mares de certeza”. 6- Ensinar a compreensão Para o entendimento da proposta de Educação para a compreensão, de Morin (2001:94), faz-se necessário inicialmente distinguir a compreensão objetiva ou intelectual e a compreensão humana intersubjetiva. A primeira, compreensão objetiva ou intelectual, está ligado ao conhecimento como objeto e estabelece a junção de todos os meios objetivos disponíveis do conhecimento para o seu entendimento. Segundo Morin (2001:94), “compreender significa intelectualmente apreender em conjunto, comprehendere, abraçar junto (o texto e seu contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno)”. Têm em seus fatores de apreensão a inteligibilidade e a explicação. A compreensão humana intersubjetiva está ligada a um conhecimento do homem enquanto sujeito, na sua relação com outro homem, também considerado como sujeito. Comporta elementos diferenciados de uma compreensão objetiva. Por ser intersubjetiva, inclui necessariamente processos de abertura, generosidade, simpatia e tolerância. O outro deve ser percebido através de identificações e projeções que fazemos conosco, sendo essas as formas de contato que se estabelecem no processo da compreensão. As duas formas de compreensão, formuladas por Morin, devem ser entendidas e aplicadas na Educação sem reduções e separações, são processos complementares e estão intrinsecamente ligados. Ensinar a compreensão constitui-se uma das formas mais adequadas para a Educação para a paz. Traz consigo a idéia de uma ética da compreensão. “A ética da compreensão pede que se argumente, que se refute em vez de excomungar e anatematizar. (...) A compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmos nunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas” (MORIN, 2001-1: 100). O ensino da compreensão favorece ao “bem pensar”, que é igualmente compreender as condições objetivas e subjetivas do comportamento humano. Ao colocarmos a introspecção, entendida como uma prática mental do auto-exame permanente, como um ponto de referência, amplia-se a perspectiva de análise, incluindo não só o pensamento objetivo e intelectual, mas também, o caráter subjetivo e as nossas formas de identificação com o outro. A compreensão do outro passa pelo reconhecimento de nossas fraquezas ou faltas, da conscientização de que somos seres frágeis, insuficientes e carentes. Neste procedimento, descobrimos que ensinar a compreender é um processo mútuo de compreensão, não só compreender o outro, mas também, compreender a si próprio. 7- Ensinar a ética do gênero humano Segundo Morin (2001-1), a condição humana comporta a tríade indivíduo/sociedade/espécie. Através das interações entre indivíduos são produzidas as sociedades, que num movimento dialético retroage sobre os indivíduos. Indivíduo/sociedade/espécie são inseparáveis e co-produtores um do outro. Este movimento é a base da antropo-ética, considerada como “a ética da cadeia de três termos indivíduo/sociedade/espécie, de onde emerge nossa consciência e nosso espírito propriamente humano” (MORIN, 2001:106). Ensinar a ética do gênero humano comporta as seguintes questões: Ensinar a democracia – A democracia entendida como o controle da máquina do poder pelos controlados. Na democracia, o indivíduo é um cidadão que, por um lado, exprime seus desejos e interesses, sendo também, responsável solidariamente pela sua cidade. Ensinar a cidadania terrestre – Todos os seres viventes deste mundo tem em comum o planeta Terra. A cidadania terrestre nos une, necessariamente numa comunidade. Estabelecer os marcos dessa união é o objetivo de uma Educação voltada para a cidadania planetária que impõe-se através da solidariedade. Ensinar a humanidade como destino planetário – É a busca democrática do desenvolvimento humano tendo por base a consciência comum e a solidariedade planetária do gênero humano. Educar para a humanidade como destino planetário visa a dar entendimento que a espécie humana corre o risco de se autodestruir. A noção de humanidade comporta, nesse sentido, uma comunidade de destino mútua e somente a consciência dessa comunidade pode conduzir a uma comunidade de vida. Os Saberes necessários de Morin (2001:114) restabelecem a ponte da Educação com o sonho. O sonho como força motriz para alcançar uma sociedade baseada nos imperativos do gênero humano, apontando para a expansão e a livre expressão dos indivíduos como propósito ético e político para o planeta. Na tentativa de fazer a tessitura entre os ideais propostos para a Educação do século XXI e o jogo dramático, como uma prática do Teatro na Educação capaz de permitir a consolidação desses ideais, posso afirmar que: o aprender a conhecer, a fazer, a conviver com o outro e a ser, foram vivenciados durante as práticas dos jogos dramáticos. A ordenação de maneiras diferenciadas de pensar, que levavam em conta o ser humano integral, sem divisões entre o racional e o natural, enfatizou as descobertas. Na prática com o jogo dramático os alunos se mostravam como seres inteiros. Tal como num processo de individuação enfrentaram seus medos e, acredito, deverão seguir os seus percursos de vida de modo mais preparado para o enfrentamento da era de incertezas que convivemos. A alegria da superação de obstáculos, do descobrir e do inventar, agora já pertencem ao grupo, contribuindo para uma nova visão de vida, colocando a possibilidade de que a prática do sonho pode modificar a realidade. No intuito de refletir as inter-relações entre as proposições de Morin, somados com os quatro pilares estabelecidos pelo Relatório Jacques Delors e, tendo como metodologia os jogos dramáticos na concepção desenvolvida por Ryngaert, apresento, a seguir, a experiência em sala de aula da Oficina de Teatro. II- A Alfabetização Cênica A pesquisa em sala de aula desenvolveu-se em três fases. Essas fases foram divididas dentro dos dezesseis encontros realizados para a elaboração deste trabalho. O espaço utilizado para a pesquisa foi uma sala de aula convencional, com uma média de quarenta cadeiras e carteiras, uma mesa, um armário de aço, um quadro-de-giz e um ventilador. Procurei transformar a sala de aula em um espaço cênico, um espaço propicio para o jogo. Lembrando que segundo Ryngaert (1981: 35): “O jogo dramático não necessita de cenários, trajes ou endereços no sentido tradicional. A construção do espaço de jogo faz-se a partir do espaço escolar e do mobiliário corrente chamados a novas funções (...)” A cada encontro, a primeira atividade realizada era a colocação das cadeiras ao redor da sala num formato de arena. As mesas eram colocadas na parte de fora da sala de aula. Dessa forma tínhamos um espaço amplo para o jogo. 1- A alfabetização cênica A fase inicial, que englobou os quatro primeiros encontros, considero como o período de alfabetização cênica. Entendo alfabetização cênica como um processo iniciatório à utilização da linguagem teatral, devendo propiciar um maior domínio do corpo, tornando-o expressivo, um melhor desempenho na verbalização, uma melhor capacidade de organização e domínio do tempo e do espaço. Os encontros, da fase de alfabetização cênica, tiveram uma média de cento e vinte minutos de duração e serviram para a integração do grupo e a conscientização da proposta a ser trabalhada, contextualizando-as dentro da perspectiva da prática teatral dentro da sala de aula elaborada por Jean-Pierre Ryngaert. A prática teatral desenvolvida dentro da sala de aula denominei de Oficina de Teatro. O termo –oficina - é utilizado para designar as atividades que são realizadas na escola de forma livre, sem a necessidade de avaliação através de conceitos. O termo – oficina - é, também, entendido como “um lugar onde se verificam grandes transformações” (FERREIRA, 1986: 1216). A junção das definições estabelece o sentido para a pesquisa de Oficina de Teatro. 1.1 – O contato inicial Os alunos chegaram à Oficina de Teatro a partir de um convite feito em sala de aula na semana anterior. Ministrei aula de Artes Cênicas para este grupo de alunos no primeiro semestre de 2002, ano de realização da pesquisa. Deste modo, os alunos já tinham experienciado as etapas de integração e de iniciação ao jogo dramático, em um contexto diferente da pesquisa. Tal vivência facilitou o contato inicial para o trabalho, além de favorecer a comunicação em função de terem trabalhado alguns conceitos da linguagem teatral. Deste modo, procurei desenvolver junto aos alunos, no primeiro encontro, as seguintes etapas de trabalho: Etapa 1 1- Arrumação do ambiente para o trabalho. Retirada das mesas e colocação das cadeiras ao redor da sala. O ambiente fica num formato de arena; Etapa 2 Conversa sobre objetivos da oficina e regras de participação; Etapa 3 Conversa objetivando o conhecimento da cultura do grupo. Iniciando a conversa com a apresentação de cada um dos alunos, foi lançado um questionamento sobre o que significa o nome do bairro. O grupo, nas suas interferências, destacou que o bairro é longe do centro urbano, e que o nome deve significar algo que tenha a ver com essa distância. Contaram algumas histórias que ouviram falar, e que presenciaram. São alguns exemplos: O homem do sino que foi assassinado por andar no bairro tocando sino à meia-noite. Seu espírito aparece, e o som do sino é escutado à meia-noite pelo bairro. A noiva abandonada que, depois de morrer, surge pelo bairro vestida de branco. A areia movediça da fazenda. A terra que cospe fogo na fazenda. Os mortos que surgem, pois o conjunto foi edificado sobre um cemitério clandestino. Etapa 4 Exercício: Andar pela sala Exercício que tem por finalidade ambientar os alunos com o espaço em que irão trabalhar. A cada avanço nesse relacionamento espacial uma nova dificuldade vai sendo proposta. Orientação: “Andar pela sala observando o outro e o ambiente. Parar na forma como o corpo estiver, numa imagem fixa, ao escutar uma palma.” Nesse contato inicial as teias de relacionamento ainda estavam tênues, num processo de formação. De acordo com Ryngaert (1985: 13). “Cabe ao professor propor caminhos que enfoquem o engajamento individual, o risco pessoal e a concentração. Trata-se também, de tomar consciência dos objetivos e de partilhar a idéia de que uma aula de teatro não se limita a aprendizagem de alguns truques.” Orientação: “Andar pela sala observando a si próprio, a o outro, ao ambiente, e fechar os buracos (conceituação de equilíbrio do espaço da sala).” O exercício passou a ser coletivo, todos os alunos eram os responsáveis pelo equilíbrio do espaço. O exercício aconteceu pela atuação do grupo. Ao final dessa etapa explanei a necessidade da intenção e da vontade de se deslocar constantemente para a manutenção do equilíbrio espacial da sala (fechar o buraco), agora objetivo central do exercício. Orientação: “Andar pela sala fechando o buraco no ritmo das minas palmas.” O exercício manteve o caráter coletivo, sobressaindo a intenção individual na forma de interação com o ritmo externo. As interações foram diversificadas e mostraram a individualidade num trabalho coletivo. Etapa 5 Exercício: História em quadrinhos corporal. História em quadrinhos corporal é uma releitura de um exercício proposto por Ryngaert (1981: 94) para uma fase inicial de trabalho com jogo dramático. “(...) numa fase de iniciação, utilizamos o seguinte esquema: a turma divide-se em vários grupos que se põem de acordo sobre uma história oral ou escrita de poucas linhas. Cada um põe-se de acordo entre si e traduz a história através dum número limitado de imagens à sua escolha, segundo um código e uma sintaxe que inventam, utilizando para isso, se necessário, uma “caixa de ferramenta”. Estas bandas desenhadas no espaço são apresentadas a fim de que todos verifiquem se o sentido é claramente entendido. Por vezes, prefere-se pensar diretamente por imagens do que passar por uma tradução árdua; neste caso, a história inicial limita-se a um tema comum ou a uma curta sugestão que todos os grupos desenvolvem como entendem.” Adaptei e fiz uma aproximação para o momento em que estava trabalhando. É o próprio Ryngaert que estimula essas possibilidades. “Cabe a cada um definir as suas práticas de acordo com cada situação” (1985: 5) e vai além no incentivo “Tem agora a palavra a vossa prática” (1981: 224). Orientação: “São quatro cenas estáticas, onde o grupo terá que mostrar uma história com continuidade, isto é, com começo, meio e fim”. A criação do formato, os objetos e o espaço a serem utilizados eram livres. Podiam juntar as histórias contadas sobre o bairro, mostrá-las em parte ou recriá-las sob nova ótica. Tinham a liberdade para trabalhar com as histórias contadas da forma que melhor pudessem transpô-las para o exercício. Determinei que o tempo para o planejamento e execução do exercício seria de cinco minutos. No decorrer desse tempo eu dirimia as dúvidas e as questões levantadas. Pedia para ver como foi elaborado na prática, e emitia opiniões sobre como “limpar” a cena. Conceitos e termos da linguagem teatral foram ditos, para serem incorporados ao discurso dos alunos. O alfabeto teatral coletivo começava a ser construído. Antes de mostrarem como trabalharam o exercício expliquei sobre as possibilidades de ocupação espacial para a apresentação da cena, tendo em vista o espectador. Orientação: “A palavra teatro vem do grego, “teatron”, que significa “ lugar de onde se vê”. Ao mostrarem o exercício vocês podem determinar onde querem que o público fique para que vejam as cenas.” Essa observação foi logo assimilada, sendo que um dos grupos resolveu mudar algumas posições de seus integrantes, ampliando o campo de visão dos espectadores para a cena. Deste modo, os alunos criaram as seguintes cenas: Grupo 1- Adalberto, Democréia, Marlon e William. O assassinato da menina.  Cena 1- Um homem aparece apontando um revólver para um grupo que se esconde junto.  Cena 2 - O homem com o revólver pega a mulher pelo pescoço e aponta a arma para sua cabeça, os dois homens que estavam com ela tentam reagir.  Cena 3 – O homem executa a menina/mulher que cai. Os outros homens fazem gestos, tentando evitar a execução.  Cena 4 - O assassino foge. Os outros homens olham a mulher/menina assassinada. Grupo 2- Jéssica, Camila, Diogo, Suelen e Alexandre. O exterminador da noite. O grupo criou duas versões da cena. Primeira versão:  Cena 1- Um quarto com quatro camas, quatro pessoas dormem. O exterminador executa a primeira vítima. Primeira cama do lado direito (ponto de vista de quem vê).  Cena 2- O exterminador executa a segunda vítima. Cama do meio pra direita de quem vê.  Cena 3- O exterminador executa a terceira vítima cama do meio pra esquerda. A pessoa da quarta cama se levanta e tenta escapar.  Cena 4 – O exterminador atira pelas costas e vitima a quarta pessoa. Segunda versão:  Na cena 4, quando o exterminador vai fugir, os mortos levantam-se, para pegá-lo. Grupo 3 –Daniel, Glauber, Gleidson e Cássio. A Morte do Sineiro.  Cena 1 - Três homens dormem, ao fundo, o sineiro faz seu sino tocar.  Cena 2 - Os homens acordam e agridem o sineiro.  Cena 3 – Os homens matam o sineiro. O sineiro cai.  Cena 4 - Os homens levam o corpo do sineiro. A dinâmica de elaboração deste exercício englobava características complexas. No primeiro momento era necessário definir coletivamente a história a ser contada. O momento seguinte era o da tradução desta história para a linguagem corporal através de imagens fixas, isto é, os corpos parados, tal qual estátuas. Eram quatro imagens fixas coletivas diferentes, quatro “quadrinhos” realizados com os corpos dos integrantes do grupo. Cada “quadrinho” corporal significava uma parte da história que se pretendia contar. A preparação dos quatro “quadrinhos” realizada em continuidade, isto é, um de cada vez, estabelecia o significado da história. A última etapa do exercício, a apresentação da história em quadrinhos corporal, exigiu do grupo agilidade e concentração. O grupo ocupava o centro da sala de trabalho e ao escutar a minha voz dizendo: “-cena um”, rapidamente montavam o primeiro “quadrinho”. Logo após, pedia a cena dois e assim sucessivamente. O intervalo entre a apresentação das cenas era muito pequeno o que exigia que o grupo tivesse clareza das posturas corporais e dos elementos de todas as quatro cenas. Etapa 6 Avaliação e tarefas para o próximo encontro. No final das apresentações propus uma avaliação das cenas. Junto com os alunos apontamos os pontos positivos e que poderiam ser retomados em outros contextos e as dificuldades de realização do exercício. Sobre o primeiro grupo ressaltamos as seguintes questões: a boa ocupação do espaço; a maneira de utilizarem as cadeiras como barricada no esconderijo e no local em que a assassinada caiu; o estojo de óculos que teve sua função transformada e virou a arma do assassino; conseguiram relativa precisão na primeira vez que apresentaram, melhorando nas apresentações seguintes, tanto na intenção quanto na concentração e precisão. Sobre o segundo grupo destacamos: a forma como utilizaram uma caixa de papelão como arma de execução; as camas montadas com as cadeiras; conseguiram bastante precisão nas cenas e criaram uma imagem interessante no deslocamento entre as cenas. No terceiro grupo destacamos as cenas que tinham o corpo como principal elemento; as cadeiras que serviram como cama; a imagem do sineiro, ao fundo na cena um, que foi bastante expressiva; foram precisos nos movimentos e nos deslocamentos. Percebe-se que os jogos dramáticos num tipo de abordagem, que exclui o texto, desloca o principal da cena para outros elementos. Ryngaert enfatiza (1981: 95): “Este tipo de trabalho limpa utilmente os nossos hábitos, obriga a pensar de outro modo que não apenas segundo a relação texto escrito/texto dito, enriquece a linguagem do jogo dramático, ajuda a perceber melhor a linguagem teatral. Finalmente, forja um instrumento de expressão suplementar, uma arma mais apropriada em face das linguagens agressivas do nosso tempo.” Percebe-se que as cenas criadas e mostradas pelos alunos estão impregnadas de violência, como a morte, o extermínio, o assassinato e o uso de armas. Importa lembra que tais imagens emergiram das histórias contadas pelos alunos, e dos movimentos do corpo por eles criados. Deste modo, pode-se observar a cultura que rodeia a vida destes alunos, uma vida de medo, terror e violência. Após, revisei com o grupo o encontro do dia. Cada momento trabalhado foi relembrado buscando fixar seus conceitos e conteúdos. Falamos das histórias do bairro, dos exercícios e das cenas realizadas. Para o próximo encontro propus três tarefas para cada aluno. A primeira, um relato das sensações acontecidas nesse encontro. Poderiam ser expressas de variadas formas: texto escrito, criação de histórias, desenhos, etc. A segunda tarefa consistia em trazer materiais diversos, a escolha de cada um, para serem utilizados nas atividades. E a terceira tarefa seria, cada aluno, criar duas imagens fixas sobre as histórias do bairro, contadas na primeira fase do encontro. 1.2 - O corpo e a criação de imagens No segundo encontro mantive o processo de “alfabetização cênica”. As práticas teatrais fizeram emergir um enxame de imagens, foram essas imagens que constituíram as cenas que terei a oportunidade de referenciar nesse espaço da vivência dos jogos dramáticos. Portanto, como no encontro inicial, organizei a prática tendo por base o que denominei de etapas. Etapa 1 Arrumação da sala. Retirada das mesas e colocação das cadeiras ao redor da sala num formato arena. Orientação do trabalho a ser feito. Através das orientações dadas em sala de aula eu apontava o encaminhamento do trabalho a ser desenvolvido neste encontro. Orientação: “Vamos fazer o mesmo esquema de trabalho da semana passada. Começaremos com as histórias que vocês contaram. Iremos acumulando histórias, colocando no baú. Dessas histórias e de outras histórias que se tem, poderemos lançar mão, para no momento de fazer a cena utilizar. Em vez de, ao preparar a cena, ter que inventar uma nova história poderemos emendar uma história na outra, recriando as histórias. Começaremos da seguinte maneira: quem trouxe as histórias contadas pelo avô, pelo pai, pelo tio, poderá contar. No segundo momento voltaremos para o exercício da caminhada, que é um exercício que, com o tempo, vai dar uma segurança maior para vocês. A partir do momento que vocês vão andando tranqüilos, vão começar a esbarrar menos, vão perceber melhor o espaço. Isso vai dar segurança na hora de começar a fazer as cenas. E aí poderemos desdobrar os exercícios com uma improvisação. Vamos começar? Quem começa a contar as histórias?” Ryngaert (1985:12) considera a necessidade da aula de teatro “começar sem brutalidade, o mais próximo da situação real, utilizá-la como trampolim”, e complementa afirmando que: “os objetivos claros devem ser definidos para que a abertura para o mundo exterior faça sentido para os alunos”. Ao esclarecer os caminhos que serão percorridos durante a aula, a sensação de segurança aumenta e a disponibilidade para a atuação se manifesta de maneira mais fácil. Etapa 2 A cultura do grupo através das histórias Dando continuidade ao trabalho realizado anteriormente, os alunos trouxeram novas histórias, pesquisadas junto aos seus familiares. Algumas já mencionadas e outras que fizeram menção à senzala de cima e a senzala de baixo; os dois túneis que auxiliavam a fuga dos escravos, ligando Manguariba a bairros vizinhos: um para o bairro Palmares e outro para bairro Jesuítas; barulhos de corrente no coqueiral: os escravos eram chicoteados e presos às correntes que faziam barulho durante a madrugada; vultos que eram vistos durante a noite; pactos feitos com o diabo na 6ª feira à meia noite – uma pessoa era levada para se unir ao diabo; búfalos selvagens que atacam as pessoas na fazenda; lagoa com redemoinho – a água que puxa, que puxou um dos filhos de uma família que foi banhar-se; areia movediça; casa que tem um buraco aonde as pessoas se escondem etc. Com o relato dessas histórias da comunidade contada pelos familiares dos alunos foi possível adentrar na cultura do grupo, entendida como uma “teia de significado construída pelo homem” (CLIFFORDS, 1989). Os relatos fizeram emergir imagens que deram subsídios para a construção das cenas. Etapa 3 Aquecimento. Nessa etapa propus, e realizei, junto com os alunos, movimentos aleatórios e não convencionais. A disposição do grupo no espaço formava uma roda. Para que houvesse a desinibição do grupo iniciei o exercício: eu fazia um movimento e todos os alunos, ao mesmo tempo, o repetiam. Logo após, fiz a seguinte orientação para uma aluna: “Jéssica comece a fazer um movimento para “soltar o corpo”. A aluna fez o movimento e todos, inclusive eu, repetimos. Ao trocar o aluno que está com no foco da ação, os movimentos mudam de intensidade, de planos e outras partes do corpo são utilizadas. Segundo Ryngaert (1985: 11) “uma das funções das aulas de teatro é derrubar uma parte das defesas que provocam a inibição”. Com a desinibição do grupo, a capacidade de jogo é ampliada começam a surgir saltos, movimentos de capoeira, pulos, polichinelos, movimento de brincadeiras de rua, pulo de pé ante pé, corrida no mesmo lugar, flexões, passos de dança, movimentos já conhecidos dos alunos que, descontraidamente, colocam seus corpos em movimento na roda. Etapa 4 Exercício: Caminhar pela sala No intuito de manter o ritmo e o prazer corporal demonstrado no aquecimento propus, sem interrupção, um outro exercício: caminhar pela sala. De acordo com Ryngaert (1985:24), “o aquecimento deve encontrar uma relação com o que será proposto em seguida e não pode ficar suspenso no ar, sem função aparente para esse gasto de energia”. O exercício já era de conhecimento dos alunos e não houve a necessidade de uma orientação mais detalhada. No decorrer da atividade novas dificuldades foram apresentadas, exigindo dos alunos um reforço na concentração. O exercício assume características diferentes do realizado no encontro anterior. Ocorre que ao mesmo tempo em que estão realizando o exercício, estão assimilando uma nova orientação. Assim que a orientação anterior começa a ser apreendida, uma nova orientação é dada. Os obstáculos são permanentes, e permanentemente são ultrapassados. Orientação: “Fechar o buraco... No andar pode mexer com os braços, fazer movimentos diferentes... Mais precisão... Ao parar, olhar o espaço, ver onde estão as pessoas... Andando sem esbarrar.... Estão mexendo muito o corpo e estão deixando de fechar o buraco... Parou!!! Vamos olhar só mexendo o pescoço.... Concentração... Sem parar, sem parar. É olhar andando.... Vamos olhar a Jéssica. Todos olhando a Jéssica, só virando o pescoço”. A aluna Jéssica está parada com os braços abertos e, com as mãos num sentido de garra, desenvolve os exercícios do modo que foi solicitado: tem precisão, gestual identificável, conota uma intencionalidade, está parada, ocupando um espaço. Logo após, escolhi uma outra aluna (Fernanda) que parou em frente a anterior (Jéssica). Pedi aos outros alunos que se sentassem para observar a relação estabelecida entre as duas naquele espaço, naquela situação e com aqueles gestos. Os alunos fizeram várias sugestões de encaminhamento para aquela cena surgida do aleatório. “Parecem quererem se abraça... Uma quer abraçar e a outra está com medo... Uma quer matar a outra... É um jogo de videogame...”. As mãos de uma das jogadoras (Jéssica) apresentava-se sobre a forma de garras abertas, no alto, em direção à outra jogadora (Fernanda). A outra jogadora estava de pernas abertas e mãos ao longo do corpo. A observação dos alunos serviu para reforçar o conceito de que ao parar, no exercício de andar pela sala, é necessário um gesto preciso e, também, de criação de uma imagem significativa. Essa imagem poderá ser aproveitada mais tarde numa cena, fazer parte das histórias já contadas, além de reforçar a necessidade da observação, como requisito necessário, para encontrar imagens e gestuais capazes de serem acoplados às cenas a serem trabalhadas. Orientação: “Ao mesmo tempo, que estamos fazendo o movimento, temos que estar preocupados com os objetivos. Estamos em cena. Na cena estamos fazendo um movimento e olhando a outra pessoa. Temos que saber o que ela está fazendo. Temos que pensar no que estamos fazendo. Temos que pensar no espaço, ver o outro, tudo junto”. Nenhum exercício é realizado com fim em si mesmo. Todos estão interligados servindo para a apreensão das imagens, o aprendizado e a assimilação da linguagem teatral. Na progressão em que os alunos desenvolviam a capacidade de representação fui introduzindo novas dificuldades nos exercícios. Orientação: “Cada um vai criar o seu percurso”. Dou um exemplo de percurso. Orientação: ”Você vai pensando no que você está fazendo, não ande a toa... Ao mesmo tempo, que você vai andando, pense no que vai fazer para ocupar o espaço... Cada um vai criar o seu percurso, todos ao mesmo tempo”. Os alunos se movimentam em sala, agora experimentando movimentos diferentes do cotidiano. Andam para trás, de costas, balançam as mãos, os braços, os quadris, as pernas, tentando achar novos eixos e novos movimentos. Já têm segurança para experimentar o espaço. Trazem também, movimentos de brincadeiras como carros em alta velocidade, robôs e lutadores. Os esbarrões, as agressões deixam de existir. A concentração é total. Uma forma intensa de concentração e prazer, na qual as descobertas de possibilidades corporais diferenciadas juntam-se à capacidade de criação e à alegria. “A sala de aula é um lugar privilegiado, o que é proposto é incomum para os alunos (...) tudo é permitido, já que a aula de teatro é um lugar de invenção e imaginário” (RYNGAERT, 1985: 20). Nas aulas de teatro a corporeidade tem um papel fundamental. A atividade corporal é constante, tanto para quem experimenta (os alunos), quanto para quem orienta. O meu corpo servia como explicador da idéia dos exercícios. Orientação: “Agora um outro dado: utilizem na hora que começarem a experimentar a improvisação: os planos”. Mostro com o meu corpo nos diferentes planos, exemplificando. “Baixo, no chão”. Também exemplifico com o meu corpo o plano baixo. “São três planos que podemos trabalhar”. Aponto para um aluno que se deitou sobre as cadeiras e exemplifico o plano médio. Os alunos começam a experimentar corporalmente, no espaço da sala de aula, o conceito de planos. Orientação: “Numa cena pode-se trabalhar com os três. Vamos lembrar das cenas que trabalhamos na semana passada. Na cena do sineiro foram trabalhados os três planos. Na cena do assassinato (extermínio) trabalharam plano médio e plano alto. O plano alto pode ser em pé e também em cima da cadeira”. Subi na cadeira para dar visualidade à explicação. “Estou mostrando uma série de questões que na hora de montar a cena vocês podem utilizar, além da história. A história é importante, mas esses outros aspectos também são importantes. A partir das imagens, do corpo, de como está o corpo, podemos criar uma cena”. Nesse momento introduzo um dos pilares da proposta: trabalhar com a montagem da cena a partir das imagens. Etapa 5 Exercício: Criar com o seu corpo duas imagens significativas em continuidade. Nesse exercício os alunos apresentaram imagens criadas em casa sobre as histórias do encontro anterior. Cada aluno mostrou duas imagens em continuidade. É um trabalho individual que busca introduzir a linguagem cênica a partir de imagens. Orientação: “Quero que vocês façam duas imagens fixas, duas imagens paradas, as mais significativas, das histórias contadas. Se precisarem de objeto de cena, alguns materiais que se tem na sala podem utilizar”. Um aluno (Cássio) pergunta para dirimir suas dúvidas: “Por exemplo, eu faço a cena um. Para a cena dois eu posso acrescentar mais objetos?” Respondo ao aluno e relembro conceitos trabalhados na aula anterior. “É claro. Outra questão é a seguinte: eu quero que vocês definam onde o público vai ficar para assistir a cena”. Esclarecidos os detalhes do exercício os alunos iniciaram o jogo. (Glauber)  Cena 1 – A mão direita levantada com chaves na mão. Cena ocupando o plano alto. O aluno olhando para cima e com o braço esticado na posição vertical de posse de uma chave simbolizando um sino.  Cena 2 – Ocupando, ainda, o plano alto, o aluno em pé, de posse do objeto, inclina seu tórax e abraça seu corpo, com a cabeça para baixo. Cena 1 Cena 2 O aluno fez um recorte numa cena da aula anterior, utilizando apenas um dos personagens da cena, o sineiro morto por um grupo de extermínio. (Suelen)  Cena 1 – Ocupando o plano alto, e segurando, com uma das mãos, um telefone celular, a jogadora em pé, efetua uma ligação. Seu olhar está concentrado no aparelho.  Cena 2 – Ocupando o plano alto, a jogadora em pé, fala no telefone celular. Sorri, faz gestos com as mãos. Seus olhos, braços estão unidos nesta comunicação, que envolve toda a sua gestualidade. Cena 1 Cena 2 (Adalberto) * Cena 1- Ocupando o plano alto com o olhar fixo para frente, aponta para um alvo. _____________________________________________________________________ * Cena 2 – Ocupando o plano alto, briga. (Diogo) Com uma camisa manga comprida, gravata e luva plástica na mão.  Cena 1 – Ocupando o plano alto, o jogador em pé, de pernas abertas, sorrindo com um lápis na mão, como um dardo, em posição de ser jogado.  Cena 2 – Ocupando o plano alto, o jogador em pé, de pernas abertas, sorrindo, segura um objeto na mão, um boneco sobre a forma de tartaruga. O prêmio que ganhou no jogo. Cena 1 Cena 2 (Gleidson)  Cena 1 – Ocupando o plano alto, o jogador em pé, usou um lápis para pentear seu cabelo. Olhos para o Chão, uma das mãos no alto da cabeça, e outra na frente do corpo.  Cena 2 – Ocupando o plano alto, o jogador em pé, com as pernas abertas, olhos arregalados, mãos para o alto, segura uma tesoura e um lápis e corta seu próprio cabelo. Cena 1 Cena 2 (Jéssica) Utilizou uma mesa, uma cadeira, um celular, uma caneta e um saquinho de pó branco, como cocaína.  Cena 1- Ocupando o plano alto, a jogadora com a perna dobrada sobre a cadeira, usando gorro e chapéu atende ao telefone celular. Tem a sua frente uma mesa e sobre ela um saco de cocaína.  Cena 2 – Ocupando o plano médio, a jogadora sentada, coloca a cocaína na mão e cheira. Cena 1 Cena 2 (Fernanda) Utilizou uma mesa e uma caixa de papelão. Estava com um boné, luva e óculos escuros.  Cena 1 -Ocupando o plano baixo, a jogadora abaixada, usando óculos, luvas e boné, se esconde por detrás de uma mesa, com uma caixa na mão, simbolizando uma metralhadora.  Cena 2 – Ocupando o plano alto, a jogadora em pé, aponta a arma como se estivesse metralhando. Cena 1 Cena 2 (Cássio)  Cena 1 – Ocupando o plano alto, o jogador de pé, usando óculos e boné, observa o entorno portando uma arma na cintura, escondida pela camisa.  Cena 2 – Ocupando o plano alto, o jogador em pé, retira a arma da cintura e atira com um sorriso nos lábios. Cena 1 Cena 2 (Camila) * Cena 1- No plano médio, sentada em uma cadeira com uma caneta e com um gorro. Lendo as anotações do bloco. _____________________________________________________________________ * Cena 2 – Ocupando o plano médio, atende o celular. Etapa 6 Exercício: Duas Imagens fixas coletivas em continuidade. Nesta etapa as imagens são coletivas sendo necessária a participação de todos os integrantes dos grupos. Partindo das imagens criadas individualmente, os alunos realizaram em grupo duas imagens fixas. O exercício foi feito a partir das imagens criadas no exercício anterior. As imagens foram coladas e relidas sendo contextualizadas de forma coletiva. Os elementos cênicos disponíveis na sala foram utilizados para complementar a idéia das imagens. Estabeleceu-se, também, uma relação entre as duas imagens fixas criadas coletivamente. Esta seqüência de exercícios sobre imagens está calcada nas pesquisas de Ryngaert (1985: 53), na parte em que descreve a exploração das possibilidades pela construção de imagens: “Antes do início da representação pelas improvisações, suficientemente delicado para ser realizado, proponho por vezes que as explorações prévias sejam feitas por intermédio das imagens. Neste caso, os alunos (...) examinam um campo de relações possíveis entre seus personagens e traduzem-nas em imagens apresentadas ao grupo. Este processo rápido é uma forma de tentar se aproximar de um personagem e de familiarizar-se às ficções de uma maneira menos radical que na improvisação. Depois dessa discussão, os protagonistas mostram um caleidoscópio de imagens fixas que são um esboço de roteiros que poderiam ser desenvolvidos posteriormente. Esta etapa ajuda aos participantes a melhor compreender o “processo” de encontros e a orientar seu trabalho em conseqüência.” A turma foi dividida em dois grupos. Orientação: “Nós já temos aquelas histórias contadas na semana passada, mais as histórias que vocês contaram hoje. Das imagens feitas individualmente hoje, quero que vocês montem imagens em grupo: duas imagens fixas em continuidade. Se quiserem podem mudar um pouquinho. Uma pessoa pode fazer a imagem que a outra fez. Outra coisa: pensar as imagens nos planos - alto, médio e baixo.” Finalizada a orientação os grupos se reuniram para fazer as cenas. As cenas criadas pelos grupos foram as seguintes: Grupo 1 Utilizaram objetos de cena como cadeiras, celular, revólver de brinquedo e saquinho plástico transparente com farinha de trigo. Utilizaram, também, elementos da indumentária como: óculos escuros, gorro, boné. Definiram o espaço a ser utilizado na cena pelos atuantes e pelos espectadores. Cena 1- Garotos cheiram cocaína e uma garota está comprando pó de outra garota. _____________________________________________________________________ Cena 2- Flagrante. Chega um policial e pega todos em flagrante. Garotos tentam correr e garotas se assustam. Grupo 2 Utilizaram objetos de cena como cadeiras, mesas, um boneco de tartaruga -servindo como um bebê que irá nascer, um pano -servindo de toalha para a grávida, um lápis servindo de bisturi para a operação de cesariana, revólver de brinquedo, celular, saquinho plástico transparente com farinha de trigo. Como elemento da indumentária os jogadores utilizaram gorro, boné, óculos escuros, camisa manga comprida, gravata, luva descartável. O grupo definiu que espaço ocupar dentro da sala de trabalho, e onde deveriam ficar os espectadores. Cena 1- A cena está dividida em dois lugares. De um lado, uma mulher grávida está sofrendo uma operação de cesariana. Do outro, duas pessoas dividem um saquinho de cocaína. ________________________________________________________________________ Cena 2- De um lado nasce uma criança. Do outro lado as duas pessoas cheiram cocaína. Etapa 7 Exercício: Das imagens fixas à improvisação. A partir do exercício anterior os grupos combinaram uma improvisação com esboço. As duas cenas ganharam movimento, fala, jogo. A relação entre os componentes foram interligadas. Foi uma introdução à improvisação coletiva. Orientação: “Agora vocês têm 5 minutos para vocês darem movimento às cenas paradas. Vocês podem falar, se movimentarem...” As duas improvisações foram mostradas. Logo a seguir, analisei as cenas junto com os alunos, ressaltando os aspectos positivos e apontando para as mudanças necessárias a serem incluídas no momento da repetição. Na repetição foram acrescentados mais elementos, e ampliada a performance dos componentes. Cena 1- Venda de Tóxico Fernanda, Adalberto, Camila, Gleidson e Glauber Num ponto de droga o traficante usando óculos e gorro, encontra-se sentado (plano médio) vendendo cocaína. Chega um usuário da droga para efetuar a compra. O traficante não deseja vender e trava o seguinte diálogo com o traficante: Usuário: - Essa droga é da boa? Traficante: - De graça? Você não paga! O usuário oferece o telefone celular como depósito. Traficante: - Aí vou segurar. No momento em que o traficante entrega a droga ao usuário, chega a polícia atirando e mata as pessoas da “boca”. O traficante, com as mãos para o alto, implora para que a polícia não o mate. O traficante caminha com um revólver apontado para as suas costas pelo policial. O traficante consegue escapar, o policial corre atrás dele e acaba morto nas redondezas da boca. Cena 2 – O Nascimento Diogo, Jéssica, Suelen e Cássio. Uma mulher grávida usa droga rodeada de amigos e parentes. O médico está presente vestido com uma camisa preta e uma gravata vermelha, está de posse de um estilete, simbolizando um bisturi, usa luva descartável.A mulher está em trabalho de parto, mesmo assim faz uso da droga. Após usar a droga a mulher começa a gritar de dor, entra em desespero. O médico tenta acalmá-la. Pede ajuda aos parentes para que segurem a mulher, de modo que ele possa efetuar o parto. Como a mulher continua gritando, socando e sacudindo o médico pela camisa, pedindo que ele não deixe seu filho morrer, os parentes resolvem apontar armas para a cabeça do médico, que luta sozinho para acalmar a mulher de modo que possa efetuar o parto. O médico, sobre a mira das armas, abaixado, aplica injeções na barriga da mulher, fazendo uma cesariana com a mulher deitada no chão. A criança nasce, é um boneco sobre a forma de tartaruga, chora, a mãe segura a criança e cai desmaiada. O médico pede para que os amigos e parentes segurem a criança para que ele possa salvar a mulher. A mãe acaba morrendo. Os parentes e amigos gritam que a mulher está morta, mas a jogadora, desvirtuando o sentido da cena, levanta o dedo polegar da mão direita e faz um aceno de que não está morta. O médico é assassinado, seu corpo é deixado no chão junto com a da mulher morta e os parentes e amigos voltam a cheirar a cocaína. A realidade dentro da sala de aula do trabalho em teatro já está alterada pela imaginação e criatividade. Objetos têm suas funções reformuladas. Roupas são dispostas em outras situações. Sonoridades estabelecem estados emocionais. A comunicação se dá através de fatores variados. O conhecimento da linguagem teatral é construído dentro dessa heterogeneidade de situações. Etapa 8 Avaliação e apontamento para o próximo encontro Na avaliação ocorreu um certo entusiasmo pelo fato de ter acontecido a improvisação. O fazer teatro, o representar, o criar uma cena gera estímulos e prazer. Os comentários dos alunos apontavam para essa direção: “O que eu achei legal foi a cena que os dois foram lá pra fora, se escutou barulhos de tiro e só voltou um.” “Eu gostei das improvisações.” Diante das expectativas positivas, analisei aspectos das cenas e enfatizei as características da proposta de trabalho. Orientação: “Nós vamos improvisar mais vezes. Fazer mais cenas. Vocês vão perceber que com o tempo vai ficar mais fácil fazer as cenas. Um dado para vocês pensarem também, é que quem está olhando tem que entender o que está acontecendo. Um exemplo é a cena do filho, da Jéssica. Naquele primeiro momento foi rapidinho quase que ninguém viu. Na repetição, com ela gritando, mostrando mais a cena todos entenderam o que aconteceu. Se fossemos repetir mais uma vez outras coisas surgiriam. Então, as cenas que nós vamos montar vão ser por esse processo. Repetindo, repetindo, repetindo e sempre quando repetir colocar novas situações”. Entendo a repetição do exercício como uma maneira de intensificar as habilidades apreendidas, de acordo com Brook (1970:147-148): “(...) a repetição acaba causando mudança: sujeita a um objetivo, impulsionada por um desejo, a repetição é criativa (...) é a única maneira de tornar possível certas ações e qualquer pessoa que recusa o desafio da repetição sabe que certas áreas da expressão estão fechadas para ela (...)” 1.3- O relacionamento com os objetos O passado rememorado pelo grupo de alunos mostrava que a proposta de trabalho da pesquisa estava sendo alcançada. Ao se abrirem as portas da memória e do imaginário, longe de ser apenas um passado de percepção, foi criado, pelas imagens surgidas nos primeiros encontros da oficina de teatro, um turbilhão de lembranças, de afetividade existencial e de sensibilidade que, articuladas ao mundo em que vivem, puderam construir e reconstruir um novo e amplo campo de associações. Somando-se aos elementos anteriormente trabalhados (o espaço, a memória, a corporeidade e a criação de imagens), no terceiro encontro busquei introduzir um novo elo na cadeia de formação da experiência das práticas teatrais desenvolvidas na pesquisa: o relacionamento com os objetos. Os materiais trazidos pelos alunos têm grande importância na proposta de trabalho, pois clarificam suas idéias sobre objetos de cena em teatro. A forma de apreender a linguagem cênica e os objetivos da pesquisa levam sempre em conta o que o aluno já domina e seu universo circundante. Procurei sempre estabelecer conexões com aprendizados já adquiridos num respeito à cultura do grupo. Etapa 1 Arrumação da sala. Etapa 2 Colocar os objetos na mesa e as propostas de trabalho do dia Na aula anterior foi solicitado aos alunos que trouxessem objetos, acessórios, roupas, enfim, materiais que poderiam ser utilizados nas improvisações. Todos os materiais levados pelos alunos foram colocados sobre uma mesa. Orientação: “A cada encontro vamos estabelecendo novas regras. Aqueles são os objetos que nós iremos trabalhar hoje. São os objetos que todos trouxeram. Pode-se utilizar materiais que o outro trouxe, isto é, não precisa só utilizar o objeto que você trouxe.” Remeter ao já apreendido nos encontros anteriores reforça a segurança nos alunos que se sentem capazes de aumentar sua capacidade de jogo. Serve também para estabelecer a continuidade que o trabalho se reveste, um trabalho calcado na criação coletiva a partir de dados trazidos pelos alunos. Através da circularidade essas informações foram transpostas para a linguagem cênica apreendida. Orientação: “No encontro passado começamos pela “contação” de histórias. Hoje vamos começar a fazer o trabalho pelo aquecimento. Vamos começar pelo exercício do caminhar pela sala e depois em roda, como fizemos na semana passada, cada pessoa estabelece um movimento e os outros repetem. Como na semana passada, também, começaremos pelas imagens e depois passaremos para a cena. Vamos fazer e conversar. Sobre o que foi conversado, repetimos colocando mais situações. Com a repetição vamos melhorando. Depois paramos, conversamos e iremos refazer a cena novamente. Sempre todo mundo observando, escutando o que cada um observou e tentando melhorar. É esse o processo que vamos trabalhar a partir de agora.” A participação dos alunos teve um aumento gradativo também nas intervenções sobre os rumos do trabalho. Questões levantadas nessa etapa do terceiro encontro foram relevantes. Intervenções dos alunos: “Por que não fazer uma cena que tenha a turma toda?” “Podíamos fazer um ensaio na senzala...” “Vamos apresentar a peça para a escola toda?” As respostas dadas serviram como estímulo para um maior investimento e participação nos jogos. Apontava para a vontade de mostrar os lugares da comunidade que foram descritos nas histórias e apresentar o trabalho que estava sendo construído para um público externo. “Num primeiro momento faremos divididos porque vocês estão observando os espaços, a improvisação, aprendendo a escutar em cena. Depois, poderemos ter uma cena com todo mundo, vai depender da história que vamos criar.” Sobre o número de participantes em uma improvisação afirma Ryngaert (1985: 81) ser “um dado que influi consideravelmente ao longo da representação. (...) Maior o número de alunos, mais delicada se torna a invenção, com cada aluno tendo dificuldade de se encontrar.” Orientação: “Tem algumas questões que vocês estão levantando. Uma é ir lá conhecer a senzala. Na avaliação final, nós podemos combinar, marcar um ensaio lá. Outra é sobre apresentar a cena para a escola toda. Com o trabalho pronto a opção é de vocês. Eu acho que seria bem legal apresentar, mas é opção de vocês.” A ênfase no trabalho coletivo e solidário exige diálogo franco para estabelecer os vínculos de segurança e mantê-los até o final do trabalho. Caracterizar sempre a autoria coletiva do trabalho é árduo e repetitivo. Torna-se necessário mostrar ostensivamente o recorte diferente do trabalho. Só assim todos se tornam protagonistas da idéia. Etapa 3 Exercício: Caminhar pela sala Orientação: “É o mesmo exercício da semana passada, só que buscando também uma forma de andar diferenciada.” Exercício repetido a cada aula dando forma a ritualidade proposta no trabalho. Os alunos exploraram mais o ambiente, o espaço da sala em seus diversos planos. Subindo nas cadeiras e mesas, andando de variadas formas, dançando, pulando, enfim experimentando e colocando em xeque a liberdade e as possibilidades do exercício e do projeto. “Quando os alunos aumentam suas possibilidades de expressão e de comunicação, e multiplicam suas experiências em grupo, é porque eles sentiram vontade de se dar ao jogo” (RYNGAERT, 1985: 10). Caracterizou-se essa etapa do encontro pela melhoria de qualidade, atenção e disposição dos alunos, um aumento na capacidade de representação. Orientações: “Atenção, atenção!!! Façam um andar mais objetivo, está muito solto, sem concentração... Andando o mais lento possível.... Olha o buraco, olha o buraco!!!... Vamos tentar andar mais lento. Mais lento não quer dizer sem objetivo... Vamos olhar em volta... A questão é variar, estou aqui em cima (em cima de uma cadeira), vou para baixo... No lento é ir variando e ocupando o espaço... Olhando o colega. Se o colega está experimentando outros espaços e você viu o buraco, vem e fecha. É para experimentar o espaço também, mas fechar o buraco.” A escola, dentro da sala de aula de teatro, tornou-se naquele momento um espaço para a ousadia. Podiam manipular os objetos característicos de uma sala de aula (mesas, cadeiras e carteiras) e utilizá-los das formas mais inusitadas possíveis, criando novos conceitos e associações. Estabelecendo de maneira transparente a temporalidade das coisas e sua mutabilidade através das intenções. Etapa 4 Improvisação com objeto. Se relacionar com o objeto e o espaço de trabalho. Os alunos Alexandre, Suelen e Jéssica escolheram os grupos. Utilizaram a brincadeira de ‘zerinho ou um’ para definir a ordem da escolha. O aleatório está inserido também nas escolhas do grupo para que os alunos possam variar ao máximo os colegas de trabalho evitando assim a criação de subgrupos dentro do grupo. “O acaso pode escolher a formação dos grupos de improvisação reunindo imperativamente os alunos, que perdem a liberdade de se escolher e devem se adaptar aos parceiros. Esta situação se revela rica em surpresas” (RYNGAERT, 1985: 80). A forma de escolha do grupo gerou protestos e oposições. Alunos que nunca tinham trabalhado juntos, passaram a trabalhar. A aceitação da proposta não foi unânime, mas apesar das resistências, dei prosseguimento ao exercício conforme o sorteio que estabeleceu a escolha dos grupos. Orientação: “Durante a caminhada vocês ocuparam bastante espaço. (apontando) Aqui (sobre as cadeiras), ali (na estante), experimentaram subir, descer. Vários espaços aqui na sala. A improvisação é a seguinte: Vamos pegar quatro objetos. (Peguei um objeto e conforme ia fazendo a ação falava o que deveria ser feito na improvisação) Cada componente do grupo vai colocar o seu objeto escolhido num local na sala e manipulá-lo em planos diferentes”. O entusiasmo e a capacidade de jogo mostrados no exercício anterior não tiveram prosseguimento. Inicialmente pela resistência de alguns alunos fazerem o exercício, pois não estavam no grupo que queriam participar. Também, por se tratar de um exercício novo, calcado no aleatório, e sem grande definição na orientação. O grupo sofreu uma paralisia. Ryngaert (1985: 11) situa esse momento, quando ocorre nos grupos das oficinas teatro, da seguinte forma: “A paralisia é uma deficiência familiar aos alunos iniciantes, talvez até a mais freqüente. Comodamente definida como um bloqueio, ela é, sobretudo, uma impossibilidade de superar uma angústia causada pelo olhar alheio ou o sentimento de ser ridículo a seus próprios olhos (...). Podemos resumi-la como uma hipertrofia do interior e uma impossibilidade de se abrir para o exterior.” O exercício foi realizado, ficando aquém, tanto da minha expectativa, quanto da do grupo. Os alunos se relacionaram com os seguintes objetos: boné; bolsa de maquiagem; caixa de papelão, bolsinha, telefone celular, capuz de ninja, frasco de desodorante, chaveiro, caderno, óculos, notas de dinheiro de brinquedo, urso de pelúcia, canga de praia etc. Dando continuidade ao encontro e buscando caminhos para entender e superar a paralisia, passei para a avaliação. “Quais as dificuldades que vocês tiveram para fazer o exercício?” “Quando estamos improvisando não sabemos o que fazer.” “Eu não entendi o exercício.” Outros alunos disseram que ficaram com vergonha. De acordo com Ryngaert (1985: 19): “Cabe ao professor clarear os objetivos, de estar atento a qualquer possibilidade de manipulação ou crises que levem a artificialidade (...). Em função dos objetivos definidos e dos desejos individuais, cabe a cada um ousar ou não se engajar no jogo dramático. É o aluno, sozinho, que progressivamente vai reconhecendo o que ele quer jogar, as zonas em que ele deseja investir, as etapas que lhe são necessárias.” Os alunos tornaram-se receptivos para superar as dificuldades advindas do exercício e retomar a confiança em si próprio e no grupo. A orientação que se seguiu privilegiou essa retomada de confiança e a explicitação maior do exercício, a saber: Orientação: “O exercício é esse mesmo, se relacionar com o objeto de várias formas possíveis... Eu estou sozinho em cena não tenho o colega para falar nada... A partir do momento que vocês se envolvam mais com o objeto a vergonha vai passando, porque vão adquirir mais certeza e mais segurança no exercício... No primeiro exercício, o da caminhada, vocês ocuparam o espaço da sala, brincaram para valer. Nesse exercício pareciam que estavam com medo... Mais concentração. Brincar com o espaço, abrir para que vejam o que se está fazendo. A proposta é a seguinte: criar imagens com os objetos.” A atividade foi retomada. Na nova orientação enfatizei que a relação com o objeto pode ser da forma que melhor os convier. Eles deveriam estar sozinhos em cena, em estado de improvisação, tendo o objeto como suporte para sua performance. O exercício exigiu concentração e criatividade. Os alunos ficaram tensos pelo desnudamento provocado pela improvisação. O despojamento do exercício anterior, que já se tornara familiar, foi trocado pela tensão desse novo e exigente exercício. Mostrei as possibilidades de criação de histórias, a partir das imagens criadas individualmente e depois coladas. Nesse processo de construção de cena a significação se deu pela junção das informações contidas em cada uma das imagens, daí a denominação: cenas coladas. Todos os grupos realizaram suas improvisações una e múltipla no mesmo exercício, de forma individual e coletiva. Várias imagens interessantes foram criadas e “coladas” para formar novas significações e cenas. Etapa 5 Improvisação livre com objeto. Para desdobrar o exercício anterior e obter novas imagens, foi proposto realizá-lo com toda a turma de uma vez só. Orientação: “O exercício é o seguinte: cada um, um de cada vez, vai pegar um objeto e depois todo mundo, ao mesmo tempo, vai fazer o exercício. Outra coisa: tem que trocar o objeto, tem que ser um objeto diferente do primeiro. É manipular o objeto. Será que esse objeto te dá possibilidade de manipular, de ficar mexendo com ele, de se relacionar com ele? Exercício um: manipular o objeto. Dois: ocupar o espaço. Três: planos. Ao manipular os objetos vamos pensar nessas três coisas. Todos terão que manipular o objeto, ocupar o espaço e trocar de planos, passar pelos três planos, baixo, médio e alto. Sem se relacionar com outro, sem esbarrar no outro, sem falar com o outro.” Em alguns momentos eu pedia para que todos parassem e permanecessem com uma imagem fixa na relação com o objeto, para observar a performance do colega. Separei três alunos para colarem as suas imagens fixas e daí criarem uma cena. Os três foram para um outro local, enquanto o grupo permanecia na dinâmica do exercício criando imagens fixas e observando o que o outro estava fazendo. Etapa 6 Exercício: Improvisação com esboço A partir da manipulação de objetos e da colagem das imagens fixas, três alunos mostraram para o grupo o trabalho combinado num espaço em anexo. Feita a avaliação foi elaborado um roteiro de ações. A idéia inicial já estava modificada pelas sugestões do grupo que acrescentaram novos elementos para subsidiar o entendimento da improvisação. A cena foi repetida a partir deste roteiro de ações. Etapa 7 Avaliação e próximas tarefas. A avaliação girou em torno das oscilações de envolvimento que ocorreram no encontro e na especificação da forma de trabalho com a linguagem cênica que está sendo desenvolvida, o jogo dramático. Para o próximo encontro solicitei mais objetos e mais materiais. Também apontei a forma de recriar as cenas a partir de repetições criativas. 1.4 –Superando os obstáculos O grupo, no encontro anterior, não assimilou de modo satisfatório as práticas necessárias, em função disto, o início dos trabalhos mostrou-se difícil. A vontade e as certezas latentes transformaram-se em dúvidas, com os olhares representando um misto de ansiedade e insegurança. Busquei, através da orientação, uma análise do processo de trabalho realizado até o momento. Orientação: “O que é diferente, num primeiro momento rejeitamos, por ser diferente. Quando estamos nos relacionando com o objeto é um experimento. Da maneira que estamos trabalhando nada vem pronto, temos que através dos exercícios, experimentar as situações e daí construir as cenas.” A aula de teatro busca privilegiar a “cultura de expressão” ampliando o campo de percepção dos sentidos e a afetividade, diferente do processo tradicional de aprendizagem. Em face dessa peculiaridade torna indispensável o envolvimento do aluno como protagonista da construção do seu conhecimento. De acordo com Freire (2002: 77): “(...) somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de apreender. Por isso, somos os únicos em quem aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito”. O jogo dramático na perspectiva definida por Ryngaert (1985: 8) dá essência a estas questões: “ Ao longo da evolução das práticas, eu direcionei meu foco, (...) sobre a carga emocional indispensável para que a imaginação transcenda os caminhos comuns, vá francamente contra os clichês e encare os problemas de frente. O engajamento sensível no trabalho artístico conduz a discursos pessoais mais simbolizados. O reconhecimento da afetividade é também importante. (...) Observa-se em sala de aula traços das preocupações pessoais de cada aluno, símbolos de que cada vez mais se entra em terrenos mais íntimos.” Etapa 1 Arrumação da sala e avaliação do encontro anterior O quarto encontro teve início com os alunos colocando as mesas para o lado externo e as cadeiras ao redor da sala, formando um espaço num formato de arena. A seguir, iniciei uma avaliação ressaltando que os avanços adquiridos foram conseguidos a partir do envolvimento do grupo com o trabalho. Orientação: “Na semana passada o primeiro exercício foi muito bom. Vocês ocuparam e experimentaram o espaço de diversas maneiras. Alguns estavam em cima, alguns estavam em baixo. Todos os lugares da sala estavam ocupados. Vocês se lembram como foi aquela primeira caminhada no espaço, “fechar o buraco”? Ninguém se concentrava, um esbarrava no outro, um batia no outro, depois com o tempo, foram melhorando até ocuparem todo o espaço, como na semana passada. Com os objetos será assim também. Quando vocês começarem a se sentir seguros, quando começarem a brincar com o objeto no espaço vão descobrir novas possibilidades de relacionamento.” Uma aluna ainda não envolta na proposta sobre como trabalhar com os objetos solicitou mais explicações. “Esse objeto pode ser utilizado na sua forma convencional, como um batom, ou pode virar uma caneta, ou um charuto, ou o que vocês quiserem. Peguem os objetos e brinquem com os objetos. Descubram quais as possibilidades que os objetos proporcionam. Das imagens criadas na manipulação dos objetos vamos criar as cenas”. Os alunos têm sobre o teatro uma idéia não muito precisa. Confundem-no com produções cinematográficas e novelas televisivas. Colocam no mesmo patamar expressões artísticas diferentes. Crêem na possibilidade única do teatro como um texto a ser dito. “É preciso levá-los a admitir que o jogo dramático não parte necessariamente do texto, que não necessita de cenários ou de figurinos (...). É preciso fazê-los descobrir e partilhar um código praticando-o(...)” (RYNGAERT, 1981: 57). Orientação: “Podemos montar cenas de várias formas e uma das formas de montar cenas é colando as improvisações que vocês estão fazendo com os objetos. Uma pessoa está contando dinheiro lá e a outra está cozinhando aqui. Quem está vendo começa a perceber, começa a ligar uma cena com a outra. Quando juntamos uma cena com a outra, criamos um novo significado”. Etapa 2 Aquecimento A segunda etapa da aula teve início com um aquecimento livre. Cada aluno fez sozinho o seu aquecimento. Foram orientados para que movimentassem todas as partes do corpo, procurando posições diferentes. Soltando o braço, alternando os movimentos dos braços com os das pernas, mexendo os quadris, enfim, desconstruindo as atitudes convencionais do corpo. Orientei, em seguida, para o exercício de andar pela sala, ocupando espaços e “fechando o buraco”. É uma atividade que os alunos já estavam habituados a desenvolverem, em função de que envolve o ambiente, o equilíbrio corporal e espacial, as sonoridades, os lugares inusitados da sala. Nesta atividade os alunos experimentam ritmos e andamentos, intensificam e aprofundam o trabalho de atenção e concentração, utilizam os conceitos apreendidos nos encontros anteriores tais como os planos - alto, médio e baixo - e as atitudes corporais, além de criar trajetos e novos caminhos. Os alunos experimentaram, também, andar sobre as cadeiras e mesas. Andavam num plano diferente que o do chão, mantendo a visão sobre o chão - planos paralelos. Alguns andavam com desenvoltura, outros ainda com algum receio, pulavam, corriam, penduravam-se em lugares inusitados e, ficavam em posturas corporais estranhas. Possibilitavam seu corpo e suas idéias a uma pesquisa continuada, no sentido da busca pelo diferente. Ultrapassavam o cansaço, chegando aumentar sua resistência física. Brook (1999) ressalta que “sempre nos surpreendemos pela quantidade de formas inesperadas que podem surgir dos mesmos elementos”. O exercício passa a ser uma pesquisa, e pode sair dele uma cena, um movimento, uma atmosfera, algo para ser trabalhado posteriormente. Nesse dia, o aluno Glauber, em sua pesquisa, descobriu o espaço de uma estante com prateleiras de concreto. Ao subir na prateleira ele ficava escondido e acima da altura da porta. Ficou experimentando esse local. Encaixou essa pesquisa espacial em cenas posteriores que fizeram parte do produto criativo final Os Sobreviventes. Acrescentei um elemento novo ao trabalho: o lugar onde o aquecimento está acontecendo. O aquecimento passa a ser encarado como uma improvisação, um ambiente propício para emergir imagens e sua transformação num esboço de criação teatral. A sala de aula se transformou num baile funk, em um engarrafamento, num estádio de futebol e em diversos lugares sugeridos por mim e pelos alunos. Etapa 3 Exercício: Criar situações com um objeto É um exercício intermediário em função de conter elementos do aquecimento, como andar pela sala e fechar os buracos, e do exercício posterior, criação de cenas com o foco no objeto. Os alunos andam pela sala se relacionando com o objeto, tendo a atenção para a ocupação e o equilíbrio do espaço. O foco deve estar sempre no objeto. Já não existe resistência à realização do exercício. Assimilaram a proposta de ação e a realizam de forma criativa. O risco é interno, é motivar-se para ultrapassar suas incertezas, colocá-las em xeque e após reassumir novas certezas. Na prática do exercício, os objetos eram jogados para cima, para o lado, para o chão. Olhados pelo canto dos olhos, equilibrados sobre um dedo, passados no rosto, colocados na cabeça e em outras partes do corpo, trocavam de função rapidamente, um estojo de óculos transformava-se em revólver, logo depois em telefone celular, e mais tarde voltava a ser revólver, e logo após, novamente, um telefone celular. Um livro mantinha a sua função, estava sendo lido, num segundo momento passava para a cabeça da aluna, para que a mesma se equilibrasse ao andar, depois, dobrado, era incorporado ao seu rosto como uma tromba. Boné, caixa de papelão, óculos, caneta, toalha, telefone celular, e outros objetos tornaram-se elementos cênicos aptos às possibilidades transformadoras do jogo estabelecido. Etapa 4 Exercício: Improvisação individual com o objeto Um aluno sozinho no centro da sala mostra para os demais, que estão sentados num formato de arena, as imagens criadas no seu relacionamento com o objeto. Nesse momento, foi instituída a relação entre o jogador e os expectadores. Etapa 5 Exercício: Improvisação em grupo com o objeto A improvisação começou a partir de uma imagem fixa com o objeto definido por cada aluno. A cena acontece pelo contato, sem estabelecer nenhuma combinação prévia. A proposta foi colar as imagens para daí surgirem às possibilidades de cenas. Não se buscava um sentido lógico, racional, para a improvisação. Era um jogo com o acaso. Diante da insegurança relativa ao novo exercício foi feita uma demonstração orientada. As dúvidas e medos foram substituídos pela confiança no jogo e no grupo. Etapa 6 Exercício: Improvisação com esboço Esta etapa foi o desdobramento de todo o processo da aula. Das cenas surgidas na improvisação coletiva, criou-se um esboço para esta posterior apresentação. Grupo 1 - Camila, Diogo e Cássio. O dentista  Cena 1- A jogadora está sentada na cadeira do dentista com a boca aberta, gritando que vai doer. Tenta de todas as maneiras impedir o trabalho do dentista, colocando uma toalha na boca. O pai chega de óculos, ela levanta da cadeira, e promete deixar o dentista trabalhar caso o pai lhe dê R$ 100,00. O jogador dentista aplica-lhe uma injeção, a jogadora reclama que não sente a boca. O pai permanece ao lado, sorrindo e de óculos. O pai paga e sai com a filha. Grupo 2 - Suelen, Adalberto, Gleidson e Fernanda. A viagem de ônibus  Cena 2 - Os jogadores estão sentados num ônibus: um lê, outro fala no celular, outro aprecia a natureza, usando um boné. O ônibus vai parando e pegando outros passageiros. O motorista dirige de forma violenta, fazendo da caixa de papelão a alavanca de marcha. O ônibus fica sem freio, o motorista não consegue controlar o ônibus, os passageiros gritam e agridem o motorista com socos que acaba perdendo o controle do ônibus. O ônibus vira e o motorista morre. Grupo 3 - Jéssica, Glauber, Daniel e Elen. O seqüestro  Cena 3 – Uma jogadora canta num palco, usando o frasco de desodorante como microfone, em cima de uma mesa, alguns jogadores cantam com ela. Estão alegres. Chegam os bandidos e colocam a arma na cabeça da cantora, tirando-a do palco. A cantora grita, luta, mas é levada pelos bandidos. Os bandidos avisam que é um seqüestro. Um outro jogador usa o telefone para negociar o resgate. Não satisfeitos se apoderam da bolsa da cantora e roubam seu dinheiro. Há negociação, os seqüestradores recebem o dinheiro, mas mesmo assim matam a cantora e o negociador. Alguém grita da platéia: cruz credo. Etapa 7 Avaliação do encontro e informação sobre o que será realizado no encontro seguinte. Esse encontro estabeleceu discussões mais aprofundadas sobre as cenas e a forma de trabalho que está sendo desenvolvida. Destacaram entre os aspectos já trabalhados, principalmente a comunicação com o espectador. Os alunos criaram cenas a partir dos movimentos realizados com a manipulação dos objetos. Outra vez enfatizei a etapa do trabalho que já tínhamos alcançado, e apontei para a criação da escrita cênica narrativa e o processo de montagem do produto criativo, que começará a ser experienciada a partir do próximo encontro. O quarto encontro finaliza a primeira etapa da Oficina de Teatro. Os alunos já compreendiam o processo de trabalho com jogos dramáticos e estavam aptos para o próximo momento. Atingiram, numa abordagem que privilegia a criatividade, a inventividade e a sensibilidade, um estágio de alfabetização cênica. Os exercícios serviram para a integração do grupo e a definição da proposta a ser trabalhada, contextualizando-as dentro da perspectiva das práticas teatrais dentro da sala de aula elaborada por Ryngaert. A seguir descreverei o processo de construção da dramaturgia até a formação do produto criativo. 2- A construção da dramaturgia e o processo de formação do produto criativo Nesta etapa pretendo descrever a maneira como foi construída uma dramaturgia, a partir dos jogos dramáticos, revelando as ligações contemporâneas entre Teatro e Educação. Esse percurso foi sendo realizado no dia-a-dia dos encontros da oficina de teatro, servindo das orientações de Jean-Pierre Ryngaert sobre o jogo dramático, de exercícios do Teatro Ambientalista de Richard Schechner e do pensamento de Edgar Morin acerca da educação preocupada com a formação do homem para o século XXI. Em seu momento final, objeto do capítulo posterior, apresentou o produto criativo Os Sobreviventes, criação coletiva dos alunos, sob a minha orientação. Os Sobreviventes foi fruto do trabalho desenvolvido durante os dezesseis encontros de práticas teatrais, realizados na Oficina de Teatro e apresentado para um público externo. 2.1- A Construção da dramaturgia Conhecida, tradicionalmente, como a arte da composição de peças de teatro, a dramaturgia é entendida contemporaneamente, como sendo as opções exercidas pelos participantes do projeto teatral. Segundo Pavis (1999: 113): “Dramaturgia designa (...) o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de realização, desde o encenador até o ator, foi levada a fazer. Este trabalho abrange a elaboração e a representação da fábula, a escolha do espaço cênico, a montagem, a interpretação do ator, a representação ilusionista ou distanciada do espetáculo. Em resumo, a dramaturgia se pergunta como são dispostos os materiais da fábula no espaço textual e cênico e de acordo com qual temporalidade. A dramaturgia, no seu sentido mais recente, tende, portanto, a ultrapassar o âmbito de um estudo do texto dramático para englobar texto e realização cênica.” Estabelecendo uma relação entre as propostas e as orientações dadas e as escolhas exercidas pelo grupo fomos, passo a passo, criando um processo democrático de construção da dramaturgia. Abordamos todas as suas etapas constitutivas, através das improvisações, desde a construção do roteiro de ações, passando pelo processo de montagem, até a realização cênica, a apresentação do produto criativo. A primeira fase da pesquisa teve como uma das características básicas a criação através de imagens corporais. O mote para o jogo dramático sempre passou por uma construção imagética. Das imagens surgiam as improvisações, impregnadas das histórias trazidas pelos jogadores que representam o imaginário coletivo do grupo. Tais imagens, portanto, foram transpostas para as cenas, organizadas no espaço físico-espacial, tomando os gestos do corpo como construtor. Deste modo, a imagens revelaram traços simbólicos que emergiram dos jogos dramáticos: imagens de lutas, de vida, de morte e da sobrevivência. A complexidade estabelecida nas improvisações e atividades da primeira fase propulsionaram a construção da dramaturgia, dando os caminhos para o prosseguimento da pesquisa. Sobre o processo de construção da dramaturgia, apresentarei, a seguir, os encontros e as etapas do processo. 2.1.1- Um guia para o roteiro de ações: os elementos arquetípicos para a construção dos desenhos e das histórias Etapa 1 A construção das histórias e dos desenhos A escolha do guia para a preparação de um produto criativo pode ter diferentes características conforme a proposta de trabalho. Desde o início, a pesquisa estava calcada na transposição da cultura do grupo, através de imagens corporais, para a cena. A cada atividade jorravam cenas impregnadas de simbolismos e que no decorrer das repetições iam se organizando e tomando formas na linguagem cênica. A utilização dos nove arquétipos, como guia, veio ao encontro à tipologia número 9 das práticas teatrais de Ryngaert (1985: 74), que recomenda a improvisação coletiva, como uma situação de comunicação, a partir de um tema livre; uma narrativa; um mote; uma imagem, desenvolvida pelo grupo e que comunica uma mensagem. Esses nove elementos arquetípicos (personagem, espada, monstro, refúgio, elemento cíclico, água, fogo, queda e animal) fazem parte do teste AT-9 de autoria de Yves Durand. Trata-se da formulação experimental do imaginário que, a partir da arquitipologia de Gilbert Durand, se configura como a elaboração de universos míticos, respostas à angústia original oriunda das vivências do tempo e da Morte, que são modos de se dizer a existência. A escolha dos elementos, que compõem esse teste, se deu exclusivamente em função da tentativa de fazer emergir o simbolismo presente na vida do grupo, sem com isso desejar alcançar o objetivo maior do teste que é a apreensão do imaginário. Os arquétipos tiveram a função de provocar a vida afetiva e representacional do grupo, a intencionalidade cultural, uma vez que os símbolos são culturais, variando de grupo para grupo. A idéia de símbolo que perpassa esse trabalho está ligada, como lembra Durand (1993), a expressão utilizada na língua alemã: sinn (sentido) correspondendo às variações das configurações sócio-culturais e bild (forma) à variância arquetipal. Em outras palavras, temos o lado do sentido, as intimações objetivas e, o lado da forma, as invariâncias, os arquétipos, os gestos , os ritos, as pulsões subjetivas. O símbolo não é arbitrário, ele reconduz à significação, nunca podendo ser captado pelo pensamento direto e nunca é dado fora do processo simbólico. Ele tem um significante, o que está aparente, e um significado, o que está escondido. No caso desta pesquisa, a proposta foi tentar aprofundar a idéia de Ryngaert (1981: 44) de que: “Se o jogo é um instrumento de conhecimento do real, se deve manter um equilíbrio permanente entre o imaginário e o real, devemos ainda perguntar qual é esse real que o jogador se esforça por reproduzir e quais são as relações que o jogo tem com a arte, este outro instrumento que permite moldar o mundo.” Sem a pretensão de fazer um psicodrama, nos moldes apresentados por Moreno (Apud, RYNGAERT, 1981), a proposta foi permitir o emergir do modo de pensar, de sentir e de agir do grupo através das histórias vividas, dos gestos do corpo e das histórias e desenhos construídos tomando por base os nove arquétipos. Parto da concepção de Paula Carvalho (1990) de que a escola é um sistema sóciocultural, na medida em que ela dá conta das organizações sociais, ao recobrir, o estudo dos grupos mais ou menos estruturados, o estudo das relações sociais e o estudo das formas que a sociedade global apresenta. E ainda da visão de Bernstein (1971, p. 277) de que a escola transmite dois tipos de cultura: “uma cultura instrumental e uma cultura de expressão. A cultura instrumental refere-se à aquisição de competências específicas, principalmente as referentes à profissionalização; e a cultura de expressão diz respeito à transmissão de valores e normas socialmente aceitas.” Deste modo, a proposta foi, atendendo as orientações Ryngaert (1985), propiciar uma experiência subjetiva criadora do desenvolvimento do indivíduo na sua relação com o mundo, pertencente ao campo da cultura. Desenhos e histórias Thiago e Ellen Era uma vez um saci que morava na floresta alegremente. Depois, assim de repente, ele sai, olha para cima para ver se vai chover, mas estava um dia tranqüilo. De repente aparece um dos seus parentes, um monstro que gostava de fazer maldade. Ele atirou uma pedra em um pássaro e arrancou a roda de um carro, matou um frango e assou, fez uma fogueira. O Saci vivia com raiva e pegou um copo de água e bebeu. O Saci brigou com seu parente e querendo se vingar, o Saci de seu parente, ele não brigou por causa de uma promessa para seu pai que nunca ia ofender ninguém. Ele foi ao monstro e pediu desculpas e viveram felizes e em boa amizade. Diogo, Jéssica e Suelen Diogo, Jéssica e Suelen Senhores leitores vou lhes contar uma história do homem e o dragão. Em um dia ensolarado um homem aproveitou para passear com seu cavalo em um lindo campo aberto quando, de repente, surgiu um horripilante dragão com suas garras enormes e dentes afiados.Foi quando o dragão começou a persegui-lo, foi quando o monstro parou e bateu a pata no chão e soltou uma enorme chama e o homem tão assustado que ficou, caiu de seu cavalo e de repente as coisas começaram a se dificultar. Começou a cair um temporal a água descia tão forte e gelada que o homem não estava agüentando de tanto frio. Foi quando ele lembrou que tinha em seu refúgio árvore uma espada e um bumerangue. Foi quando ele correu atrás da árvore e pegou suas armas e enfrentou o monstro. Com receio de morrer até que ele atirou seu poderoso bumerangue e o monstro de tão assustado voltou para a sua toca e o homem voltou corajosamente e feliz para seu filho e netos. Fernanda, Adalberto e Glauber Um dia nós estávamos viajando de barco para a Austrália e o barco afundou e nós fomos levados pelas águas do mar e depois descobrimos que estávamos na ilha Sorna e por lá procurávamos algum alimento e não encontrávamos e estávamos com muito frio e a neblina cada vez mais tomava conta da ilha. E com o passar do tempo, já anoitecendo, nós escutamos mais ruídos pegamos a Camila, Daniel e Cássio espada e fomos ver o que estava acontecendo e apareceu um tiranossauro e corremos para um penhasco e pulamos nas águas do mar e a borboleta tão assustada voou tão alto que ficamos tão impressionados e olhamos para trás e o fogo continuava aceso e depois nadamos tanto que avistamos um barco para ajudar. Camila, Daniel e nos Cássio Há muito tempo atrás na cidade de Kakaricco, no meio do nada, surgiu um monstro no meio das águas aterrorizando a cidade e obrigando as pessoas a procurarem um refúgio nas montanhas. As pessoas começaram a gritar pedindo socorro ao Super Coragem. E ele ouviu um grito e veio de tornado para ajudar os necessitados. Ele e o monstro Zelda começaram a lutar e o monstro tentou se defender com sua espada de fogo que carregava na mão,mas o bem sempre vence. E o Super Coragem com seu simples arco-flecha mágico mandou o monstro para o seu lugar, o mar de onde nunca devia ter saído e os pássaros louvaram os céus. Esse encontro terminou com um material substancial para a preparação do guia condutor da construção dramatúrgica. As histórias e os desenhos, além das imagens corporais e improvisações realizadas na primeira fase da pesquisa, criaram um arsenal poderoso de imagens simbólicas que permitiram a transposição desses elementos para a linguagem cênica. 2.1.2- A elaboração do roteiro de ações Etapa 1 Arrumação da sala Etapa 2 Desenvolvimento das histórias Nesta etapa busquei um guia para as improvisações. Para tanto, utilizei a metáfora de um baú onde estariam depositados, à espera de um renascimento ou de uma libertação, todas as experiências vivenciadas pelos alunos. Um tesouro de imagens que emergiram desde os primeiros encontros, um arquivo de memória necessário à transformação das histórias criadas no desenvolvimento das atividades, somando-se com as imagens surgidas com os desenhos e as histórias criadas a partir dos nove arquétipos. Orientação: “Vamos relembrar as histórias que vocês contaram sobre o bairro, as improvisações e imagens que vocês realizaram nas atividades mais os desenhos e a história feitos na semana passada. Quero que vocês abram o baú e façam um resumo total de tudo que fizemos até agora na Oficina de Teatro. Disso tudo escrevam um texto”. Dessa atividade surgiram dois textos coletivos baseados nas histórias e desenhos com os nove arquétipos, misturados com cenas desenvolvidas nas improvisações, histórias do bairro e um vasto campo de influência desde a TV a jogos de videogame. História 1 - Suelen, Ellen, Jéssica, Diogo e Daniel. Em um mês de festa cinco estudantes foram para uma cidade chamada Kakarica, que ficava numa ilha chamada Sorna. Logo que chegaram lá, eles avistaram uma cachoeira, foi o tempo de ir ao hotel tomar um banho e fazer um miojo. Trocaram a roupa e correram para a cachoeira. Quando chegaram na cachoeira viram um cavalo morto, mas nem ligaram e foi um de cada vez pular. A primeira a pular na cachoeira foi a mais brincalhona, mas assim que pulou ela começou a gritar e a se debater, só que eles pensaram que era uma brincadeira, e nem ligaram, só quando ele saiu da água, eles viram um dragão horripilante, cada um pegou uma arma no hotel, um pegou uma espada, o outro um bumerangue, um pegou um cachorro e outro um isqueiro e atacaram o dragão, o dragão com medo voltou para sua toca e nunca mais perturbou ninguém. Na realidade todos correram de medo, pularam no mar e saíram nadando. História 2 - Thiago, Cássio, Adalberto Gleidson e Glauber. História 2 – Thiago, Cássio, Adalberto, Gleidson e Glauber Há muito tempo atrás, surgiram muitos monstros, brigando pelo seu lugar na terra, mas só um sobreviveu. Esse monstro era tão forte que teve que juntar heróis de todas as dimensões. Esses heróis eram: Saci, super-coragem etc. Eles conseguiram deixar o monstro fraco, mas o monstro não desistiu, o superdefensor, que era o super Gang-Dame, derrotou o monstro. E todos viveram felizes para sempre. De acordo com as indicações de Ryngaert (1981: 149): “O objetivo dessa primeira elaboração não é desembocar numa história organizada, mas ajudar a pôr em movimento a imaginação por outra forma que não a simples concertação oral. Todos estes materiais, de natureza muito diferentes, são reagrupados sem que se tenha que decidir se serão utilizados na sua forma primitiva no momento de passar ao jogo. Eles subsistirão talvez apenas a título de índices numa procura, marcas duma evolução, traços materializados dum caminhar.” Com a justaposição das histórias e daí a criação de duas outras histórias, partimos para a criação do roteiro de ações. Etapa 3 Criação do roteiro de ações. Designado também como guia coletivo, o roteiro de ações é um esquema para nutrir as improvisações, podendo ser construído a partir de vários elementos. No caso dessa pesquisa utilizamos a releitura das histórias criadas no desenrolar das atividades, somandose as histórias com os nove elementos arquetípicos. Ryngaert (1981: 151-152) a respeito de uma atividade, que guarda semelhanças com a que propomos, indica vantagens dessa forma de abordagem com o jogo dramático: “Em vez de abordar as improvisações de mãos vazias, dispúnhamos de um arsenal de idéias e propostas (...). Os seus autores abstraíram dos modelos literários que diariamente têm diante dos olhos, pois não tínhamos necessidades disso para o nosso projeto (...) Sem que tenham que se preocupar com um modelo, os alunos comunicam livremente as suas preocupações do momento, as considerações feitas a partir da observação do que existe a sua volta. A escrita é um instrumento de apreensão e de transmissão do vivido (...).” Das duas histórias criadas na etapa anterior, o grupo escolheu por votação a história 2 para que trabalhássemos. Roteiro de ações Cena 1- A Guerra dos Monstros. Cena 2- Comunidade invade o espaço vazio e constroem suas moradias. As moradias serão construídas com as mesas e cadeiras da sala de aula. A comunidade conversa feliz, cada um no seu espaço (improvisação já realizada). Monstro (um traficante), depois que a comunidade já construiu suas moradias, chega no local e monta sua banca. Começa a aterrorizar a comunidade junto com seus comparsas Saci e Urubu. (Cena já improvisada do traficante contando dinheiro e dos comparsas brincando de jogar um saquinho de droga para cima.). Morte do vendedor de bala (cena já improvisada). Monstro mata e Urubu recolhe os pertences e retira seu corpo. Morte do tocador de sinos (histórias da comunidade). Urubu repete o que fez com o vendedor de bala. Saci trás o frango.(parte da história com os nove arquétipos). Comunidade calada pelo medo. Monstro manda fechar o comércio (notícias da imprensa). Cena 3- Luta. Todos contra o Monstro e seus comparsas. Quebra do silêncio. Juntam-se através do fogo. Isqueiros acesos fazem com que a comunidade volte a falar e juntem-se para combater o traficante. Reação do Monstro. Quebra tudo (improvisação já realizada). Cidade arrasada. O monstro e os moradores saem feridos do combate. Cena 4- O super-herói. Um pouco de todos da comunidade formam o herói. Utiliza uma espada flamejante e destrói o monstro. A cidade ainda está arrasada. Cena 5-Reconstrução. Repetição da cena 2 quando os moradores ocupam o espaço, dessa vez para reconstruir o que foi arrasado pela briga. Etapa 4 Improvisações Essa etapa foi uma transição entre jogos livres e a construção de um processo de montagem, ambos a partir de jogos dramáticos. Propus inicialmente o exercício de caminhar pela sala. Esse exercício se estabeleceu como um ritual para a entrada e a disponibilidade no espaço de jogo. Tornou-se também, uma transição entre o jogo e o nãojogo. “O primeiro ponto de referência que me interessa é o que determina a oposição jogo/não-jogo. Os participantes aprendem as utilizações de regras simples que marcam os momentos de passagem de um estado de disponibilidade a um estado de jogo. Esta lei que parece ser autocriada, sair de si mesma é um aviso, levam a uma conscientização da passagem a um sistema de convenções (...)” (RYNGAERT, 1985: 35). Tendo como finalidade experimentar a primeira cena do roteiro de ações (A guerra dos Monstros) no espaço de trabalho, sugeri aos alunos: Orientação: “Andando pela sala, quando eu bater palma quero que comecem a “brigar” com o colega do lado. É a primeira cena do roteiro de ações, os monstros brigando entre si.” Todas as habilidades desenvolvidas nos encontros anteriores estavam presentes na atividade. Ocupavam o espaço com equilíbrio e desenvoltura, passavam pelos diversos planos e mantinham-se concentrados e alegres. O exercício foi repetido por vezes seguidas. A seguir, dividi a turma em grupos. Propus que os duelos fossem entre os participantes de cada grupo. Os vencedores de cada grupo fizeram o duelo final. Com a experimentação da cena alguns aspectos relevantes foram apontados. “Estes primeiros jatos, mesmo não sendo criativos em termos de novidade, dão uma abordagem subjetiva precisa das informações vivenciadas desconhecidas pelos outros membros do grupo” (RYNGAERT, 1985: 30). A cena ficava caracterizada, como uma briga entre monstros, no plano baixo, pois mostrava um maior envolvimento corporal. Esse aspecto foi debatido na avaliação e definido como caminho para a montagem dessa cena. Solicitei aos alunos que trouxessem no encontro seguinte materiais que pudessem servir para complementação da cena trabalhada. 2.1.3- A transformação do espaço Esse encontro serviu para experimentar as possibilidades espaciais da sala procurando estabelecer um formato provisório para a apresentação do produto criativo. A partir desse encontro, o espaço de trabalho começou a ser disposto estabelecendo locais de representação e locais para o público. Diferente da primeira fase da oficina de teatro, a disposição espacial e dos objetos da sala de aula (mesas e carteiras) ganharam exercícios próprios para a sua experimentação e possíveis transformações para a utilização na cena. Etapa 1 Desenvolvimento da cena 1 Essa etapa do encontro começou com um debate sobre o formato da primeira cena e sua temporalidade. Várias sugestões ocorreram sobre a maneira de fazer a sua transposição para a realidade cênica. Foram lembradas as improvisações do encontro anterior e suas descobertas. O foco do debate foram as possibilidades de ocupação do espaço propiciado pela cena. Após a realização de um aquecimento, os alunos começaram a andar pela sala, estabelecendo a relação com o jogo. Com o intuito de experimentar as propostas surgidas no debate inicial, encaminhei à divisão em grupos para fazer a improvisação da primeira cena do roteiro de ações. Improvisação 1- Glauber, Camila, Adalberto e Daniel Um camelô anda pela rua vendendo a sua mercadoria. Chega um ladrão e tenta roubá-lo. O camelô reage e consegue tomar a arma do ladrão. Com a arma começa a agredilo.Chegam mais duas pessoas, a primeira com um arco e flecha e a outra com socos e pontapés ajudam o camelô a agredir o ladrão. O ladrão cai na rua e continua sendo agredido, enquanto os três festejam. Improvisação 2 – Cássio, Suelen e Diego A cena começa com a briga entre dois monstros. O monstro maior bate no monstro menor que assustado se esconde. O monstro maior comemora. O menor volta com novas forças, encoberto com um blusão, e continua a luta. As novas forças não foram suficientes e ele continua a apanhar e foge. Entra um arqueiro pulando sobre os obstáculos e atira uma flecha no monstro maior que cai morto no chão. Os dois grupos experimentaram novas possibilidades de entrar no espaço cênico. No fazer, apreenderam aspectos necessários à linguagem cênica. As duas improvisações tiveram jogadores entrando pela porta da sala, dando a entender que existe um outro espaço, um outro lado de onde eles estão vindo. De acordo com Morin (2001: 24): “Todo conhecimento constitui, ao mesmo tempo, uma tradução e uma reconstrução, a partir de sinais, signos, símbolos, sob a forma de representação, idéias, teorias, discursos. A organização dos conhecimentos é realizada em função de princípios e regras ; comporta operações de ligação (conjunção, inclusão, implicação) e de separação (diferenciação, oposição, seleção, exclusão). O processo é circular, passando da separação à ligação, da ligação à separação, e, além disso, da análise à síntese, da síntese a análise. Ou seja: o conhecimento comporta, ao mesmo tempo, separação e ligação, análise e síntese.” Essa observação, surgida no debate, ampliou o campo de pesquisa espacial do grupo e se refletiu nas improvisações posteriores. Etapa 2 O segundo objetivo desse encontro foi testar as possibilidades dos materiais proporcionados por uma sala da rede pública de ensino para aula de teatro. Os materiais utilizados, as cadeiras e as mesas, tiveram suas funções transformadas, viraram objetos de cena e redefiniram os espaços ocupados, formando um esboço de cenário. Todos os materiais puderam ser utilizados exaustivamente e de maneiras não convencionais, criando os espaços sugeridos no roteiro de ação. Ryngaert (1981:142-143) sugere uma improvisação livre e experimental, diferente da prática dos jogos teatrais de Spolin (1987), baseados na tríade situação, lugar, personagens: “Não impomos previamente regras à improvisação. Estas são descobertas durante o jogo e enunciadas durante o debate pelos jogadores, pelos espectadores que criticam o jogo ou pelo adulto (...). O grau de complicação e de abstração das regras encontradas varia em função das idades das turmas e das improvisações ensaiadas”. Os alunos experimentaram na prática a liberdade de manipular o espaço na procura da melhor transposição das idéias para a cena. Alguns alunos ficaram em cima de mesas e cadeiras, procuraram espaços no plano alto para começar a cena. Fizeram com a mesas e cadeiras abrigos e barricadas. Uma construção coletiva realizada pelo encontro de propostas diversas que eram testadas a cada momento, criando e recriando suas regras, buscando a que melhor traduzisse a experiência na prática. Todos estavam se relacionando com algum objeto da sala. Colocavam pés ou mãos nas cadeiras e mesas dispostas de forma não usual na sala. Alguns se escondiam embaixo da mesa. Seguia, nessa improvisação, alguns princípios do Teatro Ambientalista, que defende: “El espacio ambientalista se desarrola junto com la obra que encarna(...). Se incluye al intérprete em todas las fases de la planeación y de la construcción” (SCHECHNER, 1988: 73). Foi um encontro caracterizado pela liberdade de experimentação apontando os caminhos para como trabalhar as cenas, além de tornar claro um projeto coletivo de encenação. 2.1.4- A afirmação das descobertas espaciais Esse encontro aconteceu em uma nova sala, a sala de vídeo, pois a sala até então utilizada entrou em obras. Busquei canalizar as expectativas do encontro anterior e o seu desenvolvimento na perspectiva de criar um esboço do espaço de representação. Nesse momento da pesquisa já havíamos definido esboços do roteiro de ações, do cenário e da primeira cena. Todas essas etapas haviam sido exaustivamente criadas e recriadas várias vezes a partir das improvisações. O foco que se apresentava no oitavo encontro então, era a afirmação das descobertas espaciais, cuja finalidade foi clarificar e conscientizar a divisão de quem faz e de quem vê e, também, estabelecer o local para um olhar externo, que não estivesse participando do processo. Até então, o olhar externo, que se configurava nas improvisações, era de participantes do grupo que não estavam fazendo aquela improvisação. Estes participantes comentavam durante os debates o trabalho do outro grupo e depois, este outro grupo comentava a improvisação dos primeiros. Havia uma circularidade das informações e o conhecimento ia sendo construído nessa prática de fazer e debater o jogo, caracterizando a metodologia do jogo e da experimentação. O objetivo era a preparação do espaço de trabalho para a participação, como espectadores, do conjunto da escola. De posse de um esboço do roteiro de ações e improvisações e fazendo a sua transposição para as cenas, passamos a experimentação do espaço. Segundo Ryngaert (1981: 158): “A primeira tomada de consciência é que toda a história exige seu espaço próprio e que se pode utilizar todas as disposições possíveis para mostrar precisamente o que se quer”. A ocupação da sala de maneira não convencional possibilitou diversas experimentações espaciais. A sala tinha a forma de um retângulo. O espaço de representação ficava no centro com as cadeiras ao seu redor. As cadeiras foram colocadas em três lados da sala. No outro lado, estavam três portas de ventilação, fixadas num eixo central. Os vértices da sala tornaram-se locais para algumas cenas e para o deslocamento do público. Esta disposição espacial surgiu nas improvisações e ampliou a possibilidade de utilização da sala. As portas de ventilação passaram a servir para entradas e saídas, surgiram esboços de cena aproveitando as movimentações que elas proporcionavam. Sobre o espaço de jogo, Ryngaert (1981: 160) enfatiza que: “As invenções de espaço nascidas da imaginação colectiva são muitas vezes convincentes (...). Se se joga mais largo, se se escolheu um espaço praticável, como se define esse espaço em relação aos espectadores? Quando estabelecemos uma relação frontal com o público, lembramos que o espaço é ilusório e mantemos presente a necessidade de teatralização. Nós preferimos diversificar esta relação em função daquilo que é apresentado: imagens espalmadas que exigem rigor, teatro em redondo ou teatro englobando os espectadores, todas as tentativas são possíveis desde que não arrastem a um formalismo excessivo”. A opção pela forma de utilização do espaço caracteriza o formato de teatro que se quer trabalhar. A funcionalidade e as possibilidades de transformação do espaço tiveram a primazia nas escolhas, aproximando as experiências da oficina de teatro com as características de um teatro não ilusionista. Schechner (1988: 64) comparando as opções espaciais entre formas teatrais, afirma que: “El diseñador ambientalista no trata de crear la ilusión de un lugar; quiere crear un espacio funcional. Este espacio será usado por muchos tipos distintos de gente, no nada más por los intérpretes. El escenógrafo se preocupa frecuentemente por el efecto: ¿como se vê desde la sala? El diseñador ambientalista se preocupa por la estructura y su utilización: ¿como funciona? A menudo la escenografia se utiliza a distancia – no toquen esto, no se paren sobre aquello -, pero todo lo que el diseñador ambientalista construye debe funcionar. El diseño escenográfico es bidimensional. El diseño ambientalista es estrictamente tridimensional. Si esta ahí, tiene que funcionar. Esto lleva a la parquedad”. As experiências realizadas até esse momento, pediam um desdobramento, uma tomada de posição em relação ao trabalho. Estando já esboçados os principais elementos da construção da dramaturgia, os próximos encontros serviram para o aprofundamento e definição dos detalhes de cada um deles: a formação do produto criativo. 3- A Formação do produto criativo 3.1- A definição da cena um Foi o primeiro encontro voltado totalmente para a definição de uma cena. O objetivo foi transpor a indicação da cena número um do roteiro de ações para a prática cênica. Utilizei para a transposição as improvisações formando, nesse encontro, um esboço bem acabado da cena um. O nono encontro teve a característica de um ensaio para a montagem, com todas as etapas de um “levantamento” de cena com repetição, definição de marcas e de entradas e saídas. Etapa 1 Arrumação da sala no formato definido no encontro anterior. Etapa 2 Aquecimento Para favorecer a motivação da cada um dos alunos e descontrair o grupo, propus inicialmente o jogo do bate-bate com as mãos. O objetivo foi criar um ambiente para a relação grupal de criatividade, que propiciasse a entrada no jogo. A brincadeira exigia um alto grau de concentração e movimentação corporal, com as variações de tempo definidas e contadas. A um sinal dado havia a troca de duplas. Para completar o número de participantes joguei junto com os alunos. Etapa 3 Improvisações sobre a 1ª cena do roteiro de ações: A Guerra dos Monstros. Comecei com um debate a partir da leitura da cena. Relembramos as improvisações já realizadas e quais aspectos poderiam ser úteis naquele momento. Ressaltei na orientação as diferenças que teriam que emergir de cada monstro, agora já tratado como personagens. Orientação: “O monstro anda diferente do homem. Cada um fará uma cena com seu monstro. Cada monstro terá que ter o seu ruído. Todos serão monstros nessas improvisações. Terão que utilizar o plano baixo e criar uma seqüência de ações”. Os alunos fizeram suas improvisações individuais tendo como suporte o seu corpo, experimentando um gestual estilizado e sons guturais. Recorreram a poucos objetos da sala e se mantiveram no plano baixo. A cada experimentação acoplavam uma nova característica aos seus monstros. O olhar, um gesto característico, uma variação sonora. Estavam bastante disponíveis para a experimentação. Buscando criar uma dificuldade para aumentar as possibilidades de experimentação, introduzi a proposta central da cena: a guerra entre os monstros. Orientação: “Agora dois a dois, os monstros se encontram e disputam seus espaços na Terra.” Ocupando basicamente o plano baixo, emitindo ruídos e com as características já definidas para a cena começaram os embates entre os monstros. Solicitei que duas duplas, ao mesmo tempo, ocupassem o espaço de jogo para a disputa. Defini, também, um código, para os que não conseguissem sobreviver ao embate saírem do jogo. A partir dessa improvisação livre, foi criado um esboço. Passamos, então, a improvisação com esboço que definimos como sendo a cena um. Nesse esboço, bem detalhado, constavam entradas e saídas de cena, a definição das personagens e algumas marcas. No aprofundamento das experiências dessa improvisação surgiram formas de resolução de alguns problemas da cena. Uma delas foi como retirar os corpos dos monstros mortos. O aluno Gleidson, jogando como um monstro, após o aniquilar um outro monstro, o aluno Daniel, puxou o seu corpo pelos braços, para fora do espaço de jogo, por uma das portas laterais. Estava resolvido um detalhe técnico da cena. A cena dois é marcada por uma passagem de tempo, os monstros pré-históricos viram personagens contemporâneos, e seus corpos teriam que sair de cena. Segundo Cabral (2000: 277): “Uma das aprendizagens necessárias é a de que o teatro não resulta apenas da intuição, mas principalmente de um processo de escolha baseado em uma prática disciplinada”. Começaram a experimentar como puxar o colega da cena sem machucá-lo. Experimentaram por um dos braços, pelos dois braços até escolherem, que a melhor forma cênica para aquele contexto, seriam os corpos serem puxados pelas pernas. Depois da definição da forma da retirada dos monstros mortos de cena, os alunos repetiram a improvisação com esboço, acrescentando os detalhes descobertos e experimentados e com a idéia que já estavam próximos a uma plena definição a cena um. Etapa 4 Definição das personagens monstros. Com o avanço conseguido nesse encontro sugeri que definíssemos os nomes e as características básicas de cada personagem monstro. Nas improvisações, que haviam acontecido, a ordem de entrada e a seqüência de organização da cena já estavam definidas. Os alunos já sabiam quem seria o primeiro monstro a entrar, com quem seria seu embate, de onde cada monstro surgiria e o vencedor final do duelo. Todas as escolhas foram feitas durante as improvisações e referendadas nos debates posteriores. Essa etapa foi uma parada para reflexão e relato da atividade de cada um na cena, nomeando sua personagem. Serviu, também, de descanso, pois os jogos exigiram um grande esforço corporal dos alunos. Nomes e características das personagens monstros Monstrengo (Suelen) – O monstro que vence o duelo. Vence Mistroly e Flayman, corre atrás de Lougan, mas não o alcança. Comemora a vitória no grande duelo. Cabaçandulo (Jéssica) – Duela com Mistroly no início da cena. É derrotado e depois seus pertences são roubados por Lougan, que chupa suas idéias e leva seu corpo. Mistroly (Camila)– Inicia a cena entrando pela porta principal da sala. Faz o primeiro duelo com Cabaçandulo. Sai vitorioso dessa peleja. Após duela com Sidro, e novamente sai vitorioso. Perde a briga contra Monstrengo. Seus pertences e suas idéias são levados por Lougan. Flayman tenta pegar seus pertences, sendo impedido por Monstrengo. Lougan (Gleidson) – É um monstro abutre, urubu, pega as sobras dos monstros mortos em combate. Chupa com um canudo colocado no ouvido as idéias dos mortos. Retira os pertences e leva os corpos de Cabaçandulo, Sidro e Mistroly para fora de cena. Briga com Flaymam pelos pertences de Mistroly. Pega Flayman pelo pescoço para que Monstrengo o mate. Consegue fugir de Monstrengo e comemora dando grandes gargalhadas. Flayman (Glauber) – Inicia a cena montado na estante de alvenaria que existe na parede da sala. Está no plano alto. Observa tudo soltando sons durante os duelos entre monstros. Quando vê o corpo de Mistroly tenta pegar seus pertences, porém nesse momento é atacado por Monstrengo que no duelo o mata. Sidro (Daniel) – Inicia a cena caminhando com os olhos esbugalhados amedrontando os espectadores. Duela com Mistroly e perde a briga. Tem seu corpo, idéias e pertences levados por Lougan. Para concluir, esse proveitoso encontro, propus a repetição inteira da cena número um, com as marcas, entradas e saídas e reforçando as características dos personagens, para fixação, sem interrupções. 3.2- Ensaios e novas descobertas Utilizando a mesma seqüência de trabalho do encontro anterior, o décimo e o décimo primeiro encontros se caracterizaram como ensaios a partir das improvisações. Foram introduzidos novos elementos e, a partir daí, surgiram descobertas que ampliaram as possibilidades da cena. Esses elementos, como em todo processo, foram exaustivamente testados e experimentados até atingirem uma dimensão coletiva. 3.2.1- A cena um A cena de número um foi retomada e novos elementos acrescentados, fazendo com que ficasse clara a opção por uma cena não ilusionista. Orientação: “Aqui nessa mala existem vários pedaços de tecido. A proposta é: criar com os tecidos e o corpo de vocês a figura de cada monstro.” Os alunos se colocaram a experimentar formas de se enrolar, cobrir, enfaixar com os tecidos. Chegaram a uma decisão coletiva de passar o tecido pelo rosto de forma que ele ficasse coberto. Essa opção, ao mesmo tempo, que deixava transparecer o rosto de cada aluno, para que ele enxergasse o espaço de jogo, suscitava uma deformação. Devido a maior parte da cena ser feita no plano baixo, buscava-se com isso, um certo estranhamento na relação com o expectador. Quebrava qualquer possibilidade de uma cena ilusionista. Foi uma descoberta que incentivou a busca de outras experimentações. Ao ser definido esse formato, para o esboço de caracterização dos monstros, sugeri a inserção de uma trilha sonora para o início da cena. Os alunos ficaram satisfeitos. Essa idéia foi experimentada no encontro seguinte, tornando-se parte integrante da cena. Com o acréscimo da caracterização e da trilha sonora, já tínhamos um esboço bem avançado da cena um. 2.2.2- A cena dois No décimo e no décimo primeiro encontros passamos, também, a improvisação da cena dois do roteiro de ações. Era a maior cena a ser trabalhada. Estava dividida em vários acontecimentos e marcava uma transição temporal. Ao contrário da cena um, que retratava um passado longínquo, a cena dois representava o cotidiano vivido pelo grupo na comunidade. Orientação: “Da cena dois, já temos vários esboços, improvisações que vocês já fizeram, que podemos colar na cena. Vamos dividir a turma em grupos e improvisar as partes que ainda não trabalhamos.” Os alunos releram a cena dois. Resolveram dividi-la em várias partes e cada grupo escolheu a parte que pretendia improvisar. Cena 2 Comunidade invade o espaço vazio e constrói as suas moradias. As moradias foram construídas com as mesas e cadeiras da sala de aula. A comunidade conversa feliz, cada um no seu espaço (improvisação já realizada). Monstro (um traficante), depois que a comunidade já construiu suas moradias, chega no local e monta sua banca. Começa a aterrorizar a comunidade junto com seus comparsas Saci e Urubu. (Cena já improvisada do traficante contando dinheiro e dos comparsas brincando de jogar um saquinho de droga para cima.). Morte do vendedor de bala (cena já improvisada). Monstro mata e Urubu recolhe os pertences e retira seu corpo. Morte do tocador de sinos (histórias da comunidade). Urubu repete o que fez com o vendedor de bala. Saci trás o frango.(parte da história com os nove arquétipos). Comunidade calada pelo medo. Monstro manda fechar o comércio (notícias da imprensa). Cena 2 dividida Parte 1 Comunidade invade o espaço vazio e constrói as suas moradias. As moradias foram construídas com as mesas e cadeiras da sala de aula. Parte 2 A comunidade conversa feliz, cada um no seu espaço (improvisação já realizada). Monstro,um traficante, chega no local e monta sua banca. Parte 3 Monstro começa a aterrorizar a comunidade junto com seus comparsas Saci e Urubu. (Cena já improvisada do traficante contando dinheiro e dos comparsas brincando de jogar um saquinho de droga para cima.). Morte do vendedor de bala (cena já improvisada). Monstro mata e Urubu recolhe os pertences e retira seu corpo. Morte do tocador de sinos (histórias da comunidade). Urubu repete o que fez com o vendedor de bala. Saci trás o frango.(parte da história com os nove arquétipos). Parte 4 Comunidade calada pelo medo. Monstro manda fechar o comércio (notícias da imprensa). Cada grupo improvisou a parte escolhida e, logo após, fizemos um debate. Ryngaert (1981: 202) salienta que: “Se considerarmos a improvisação como uma forma aberta que permite a mobilização imediata de elementos variados na construção narrativa, não devemos hesitar em propor uma reflexão sobre a organização do guião e sobre o que isto implica no domínio da produção de sentido”. Com as conclusões surgidas no debate, sugeri que os grupos trocassem suas partes da cena, um grupo fazendo a cena que o outro grupo acabara de fazer. Essa possibilidade de ver uma cena refeita por um outro grupo amplia e dá uma outra visão de como realizá-la. Afasta o conceito da cena como uma estrutura fechada, como tendo apenas um formato de realização. O encontro de várias visões da mesma cena define o seu caráter polissêmico. Liga sentidos, formatos e significações diversas caracterizando sua complexidade. De acordo com Ryngaert (1981: 206): “É característica da cultura contemporânea, onde se procura uma multiplicação dos pontos de vista, a abundância de imagens oferecidas ao olhar. Como se pretende apanhar em cada instante a diversidade do mundo, renuncia-se a inscrever tudo numa imagem única ou, então, justapõe-se todos os fragmentos percebidos na esperança de encontrar uma nova alquimia de percepção.” Logo após, os alunos improvisaram a entrada da cena dois, a construção da cidade e as instalações que ela abriga: o bar, a igreja e o bazar, definindo seus pontos de localização na cena e a disposição dos materiais e objetos. 3.2.3- Colagem das cenas um e dois Tendo trabalhado com afinco a cena dois, propus aos alunos passarem as duas primeiras cenas juntas e sem paralisação. Era um obstáculo a ser superado, pois haviam acabado de definir as marcas da cena dois. Relembrá-la numa seqüência com a cena um ainda não havia sido experimentado. Na passagem ocorreram paralisações. É um dado normal, pois os alunos estavam ainda percebendo, na prática, o desdobramento do produto criativo. A emoção e a concentração por vezes seguiam por caminhos distintos. Conseguir chegar ao final das duas cenas propiciou ao grupo um aumento de confiança e de prazer, sendo possível vislumbrar a seqüência que acabara de ser definida. 3.3- As escolhas Etapa 1 Arrumação da sala de aula Etapa 2 O Inesperado fez uma surpresa: I Mostra de Teatro Escolar Na semana anterior a diretora da escola tinha me entregado o regulamento da I Mostra de Teatro Escolar da Rede Municipal de Ensino, um evento organizado pelo Centro de Artes Calouste Gubelkian e pelo Teatro Gonzaguinha. A Mostra tinha como um dos objetivos, a identificação das experiências que estavam sendo realizadas dentro das escolas da rede municipal de ensino. Começamos esse encontro com um debate em torno da possibilidade ou não da participação do grupo nesse evento. O grupo de alunos já demonstrava uma autonomia de pensamento e decisões, arcando com a responsabilidade de suas escolhas. E, sobretudo, tinham a noção do trabalho que estavam realizando. Percebiam que não estavam apenas montando uma peça de teatro, estavam num processo educativo que conjugava as complexas relações que se estabelecem na sociedade contemporânea. Livres e conscientes podiam definir sua decisão. O regulamento foi lido e discutido minuciosamente. A primeira parte da Mostra seria a apresentação do trabalho na própria escola, sendo observado por um júri definido pelo evento. Definia o período em que essas apresentações teriam que ser realizadas, entre dez e trinta de novembro de 2002 e estabelecia a necessidade de duas apresentações abertas ao público em geral, mas com três assentos para o júri. O tempo mínimo da apresentação não poderia ser menor que trinta minutos, nem maior do que noventa minutos. A necessidade de finalização e apresentação de um produto criativo e a participação do grupo num evento, não estavam entre os objetivos iniciais da pesquisa. Percebendo a disponibilidade do grupo, devido a aceitação da participação na Mostra de Teatro, além das benéficas conclusões que tal participação poderia somar a pesquisa, resolvi finalizar e apresentar o trabalho que estava sendo gestado. Dessa escolha veio a necessidade de ampliar o número de encontros. Inicialmente definido em doze, esse seria o último encontro, propus a realização de mais quatro encontros para a finalização e apresentação do trabalho na Mostra. Expliquei ao grupo que algumas etapas ainda eram necessárias para a finalização do trabalho e da necessidade de aumentar em uma hora o horário de trabalho. Após a aceitação por parte do grupo, definimos a data de apresentação: dia 29 de novembro de 2002, sendo a primeira apresentação pela manhã e a segunda na parte da tarde. Etapa 3 Ensaio das cenas Fizemos a passagem das cenas já definidas, sempre através de improvisações e com a possibilidade de inclusão e exclusão de novos detalhes. As passagens em continuidade serviram para o aprofundamento do conhecimento da cena trabalhada, o que gerava uma maior confiança no que estava sendo realizado. Por outro lado, fazia-se necessário manter o prazer do jogo como um trabalho em progresso. Etapa 4 A escolha do título do trabalho. Em função da inscrição na Mostra de Teatro tivemos que escolher um título para o trabalho. De maneira democrática, encaminhei um processo de escolha por votação direta. Anotei as sugestões dadas e cada aluno fez a sua escolha. Sugestões e número de votos “A Vida sobre tudo” – 1 voto “Os Sobreviventes” – 3 votos “A Guerra dos Monstros” – 0 voto “O Dono do Pedaço” – 0 voto “O Dono do Mundo” – 0 voto “Viver e Morrer” – 4 votos “O Guerreiro Solitário” – 0 voto “Monstros S. A” - 0 voto “Vencer e Morrer” – 1 voto Por não ter existido um consenso pelo nome escolhido, encaminhei um segundo turno com os dois nomes mais votados. 2º turno “Os Sobreviventes” – 5 votos “Viver e Morrer” – 4 votos O título escolhido para o trabalho Os Sobreviventes, refletia o processo e todas as simbolizações que emergiram com ele. Sintetizava e problematizava uma situação que se mostrava maior que a capacidade de resolução dos alunos. O vivenciar estas experiências através dos jogos dramáticos, foi um ensaio sem risco para o real, um processo de passagem para maturidade. 4- A preparação para a apresentação do produto criativo Esses quatro últimos encontros se realizaram em função da aceitação da participação do grupo de alunos na I Mostra de Teatro Escolar e serviu como preparação para a apresentação do produto criativo para um público geral. Apesar desta necessidade, mantive a mesma formatação dos encontros dessa fase da pesquisa, partindo das improvisações e suas repetições, da circularidade dos papéis, todos os alunos experimentavam todas as cenas em todos os papéis e das resoluções advindas dos debates, enfatizando o caráter permanente de trabalho em progresso. 4.1- A apresentação para um público externo O trabalho até aqui realizado já se mostrava seguro para apresentá-lo a um público externo. Resolvi utilizar o início dos encontros quatorze e quinze para essa tarefa. Convidei professores, alunos, funcionários da secretaria escolar, da limpeza e da direção, enfim representantes de vários setores da escola, mas que compunham um pequeno grupo, em torno de quinze pessoas em cada vez, para assistirem aos ensaios abertos. Esse procedimento mostrou-se bastante eficaz, pois colocava as emoções e as certezas dos alunos em desafio por apresentar o trabalho ao público. Criava também, uma resposta externa possibilitando checar se a comunicação estava tendo êxito. 4.2- Improvisações e repetições Mantive o mesmo formato dos encontros anteriores nas descobertas necessárias para a estruturação do trabalho. O processo de improvisar e depois retomar a improvisação, por vezes com o mesmo grupo improvisador, outras vezes por outro grupo permaneceu como prática de construção das cenas. Assim aconteceu com as demais cenas do roteiro de ações. O roteiro de ações foi sendo modificado através das práticas realizadas. Como já havia acontecido com a cena dois, outras cenas tiveram suas indicações iniciais mudadas. A partir da construção geral de um sentido as cenas iam sendo adaptadas aos contextos que emergiam. De acordo com Ryngaert (1981: 188): “Uma vantagem segura: os jogadores tomam consciência ao longo do trabalho, da complexidade daquilo que querem representar e sentem-se na obrigação de completar sua informação.” As cenas três e quatro foram modificadas, em função das inserções de novos elementos ocorridos na cena dois. A cidade tinha quatro polarizações espaciais: a igreja, o bar, o bazar e a boca de fumo. Cena 3- Luta. Todos contra o Monstro e seus comparsas. Quebra do silêncio. Juntam-se através do fogo. Isqueiros acesos fazem com que a comunidade volte a falar e juntem-se para combater o traficante. Reação do Monstro. Quebra tudo (improvisação já realizada). Cidade arrasada. O monstro e os moradores saem feridos do combate. O fogo indicado, na cena três, no primeiro roteiro de ações passou a ser a igreja. De lá partiu o movimento para a união e combate ao tráfico Cena 4- O super-herói. Um pouco de todos da comunidade formam o herói. Utiliza uma espada flamejante e destrói o monstro. A cidade ainda está arrasada. Na cena quatro, o super-herói tomou feições terrenas, uma integrante da igreja, que em vez de uma espada flamejante, utilizava a força divina, através de um livro sagrado, a Bíblia. A união da comunidade, que já não tinha mais meios de enfrentamento com os monstros do tráfico, foi feita com uma citação do Apocalipse (capítulo 22, v. 1 a 5), enfatizando o caráter místico e eterno da guerra contra o monstro. A integrante da igreja foi para o enfrentamento com os traficantes com as mãos e a ajuda divina. Venceu o duelo do bem contra o mal. A união do grupo representa, simbolicamente, resgatar os sonhos de uma vida melhor, com a mediação e a minimização da violência em que viviam. Ryngaert (1981: 125) analisando a improvisação coletiva para outros como uma situação de comunicação afirma: “As qualidades deste trabalho consistem na aprendizagem da liberdade. Liberdade do tema, liberdade na organização do jogo, liberdade do debate. O discurso sustentado não tem nada de excepcional, a sua evolução interessa-nos na medida em que se realiza a partir das críticas do grupo.” As novas relações criadas no roteiro de ações, advindas das improvisações, dos debates e da repetição das improvisações, estabeleceram outras mudanças em contextos, antes definidos: o monstro vencedor da guerra, na cena um, será o Chefe do tráfico e o perdedor será a Integrante da Igreja. Criou-se um fio na história, que na dependência da leitura feita, estabelece que o duelo da cena quatro seria uma revanche do ocorrido na cena um. Em conseqüência disso, ficou alterado também a seqüência de entradas dos monstros, definida no nono encontro. Cena 5-Reconstrução. Repetição da cena 2 quando os moradores ocupam o espaço, dessa vez para reconstruir o que foi arrasado pela briga. A cena cinco se manteve como antes no roteiro de ações. Além das transformações ocorridas no roteiro de ações foram introduzidas músicas no início da cena dois e na chegada da igreja a comunidade, somando-se as que já havia no início da cena um. 4.3- A circularidade dos papéis A prática da circularidade dos papéis na improvisação foi introduzida com o intuito de fortalecer o processo coletivo de escolhas. As possibilidades diferenciadas do fazer foram experimentadas e as escolhas foram realizadas nas justaposições de vários olhares. Em cada cena, os alunos puderam ocupar, através das repetições, todos os papéis. Cada um mostrou a sua visão subjetiva colocando-a, no fazer a cena, objetivamente como alternativa na construção do sentido coletivo. Ryngaert (1981:194) apoiando a circularidade dos papéis enfatiza: “(...) quanto menos os jogadores se habituarem a apropriar-se duma só personagem, tanto menos serão tentados a identificar-se com ela. Guiar e dominar o sentido é da responsabilidade de todos, e é melhor evitar tudo o que volte a dar demasiada importância ao percurso do indivíduo: iria reintroduzir um neovedetismo ou congelaria as relações entre jogadores e personagens em estruturas demasiado rígidas que acabariam por fazer com que o jogo dramático se parecesse com um teatro profissional definhado.” Só no encontro dezesseis, o último antes da apresentação, foram definidos os papéis. Em função de um dos alunos ter faltado, com justificativa, abriu-se a possibilidade de alteração nessa distribuição. Os jogadores, apesar de ansiosos, tinham a clara consciência de que pela maneira como o processo aconteceu qualquer tipo de alteração que pudesse ocorrer no dia da apresentação seria bem assimilada pelo grupo. Ficaram aguardando o esperado dia de se apresentarem para o público geral da escola. O encontro dezesseis marca o fim da segunda fase da Oficina de Teatro. Os alunos, nesta fase, construíram a dramaturgia, partindo da elaboração de uma da escrita cênica narrativa até o processo de formação do produto criativo. Utilizaram para elaborar esse percurso os jogos dramáticos na perspectiva definida por Jean-Pierre Ryngaert, além de orientações do Teatro Ambientalista de Richard Schechner e do pensamento de Edgar Morin acerca da educação preocupada com a formação do homem para o século XXI. A seguir, descrevo a apresentação do produto criativo Os Sobreviventes, criação coletiva, elaborada a partir das atividades realizadas na segunda fase da Oficina de Teatro. III- Os Sobreviventes em cena: a apresentação do produto criativo Este capítulo descreve os elementos estruturadores da apresentação pública de Os Sobreviventes, delimita o termo produto criativo e aponta para as simbolizações que emergiram do trabalho realizado pelos alunos da Oficina de Teatro. A proposta foi estabelecer um diálogo com as formulações teóricas que balizaram a pesquisa, por considerar que na apresentação pública ficaram expostas todas as suas premissas e objetivos. Esse diálogo foi desenvolvido, principalmente, entre a descrição do fazer prático do produto criativo e as sete definições de jogo dramático elaboradas por Ryngaert (1981). Na ausência de um termo que denomine as complexas relações entre processo e produto nas práticas com o jogo dramático na sala de aula proponho a utilização do termo produto criativo. Na elaboração do produto criativo integraram-se a razão e a imaginação mostrando a potencia do imaginário coletivo, entendido por Durand (1997) como um sistema dinâmico organizador de imagens. Os elementos que instigaram a formação do produto criativo foram às improvisações, as imagens do corpo, as imagens surgidas através de histórias do bairro e as histórias e os desenhos propostos por nove elementos arquetípicos. Entrelaçadas as formas, ainda em sua dimensão bruta, foram organizadas e relacionadas numa estrutura de roteiro de ações. Os objetos de cena, cenários e figurinos foram compostos pelos materiais existentes na sala de aula, mesas e cadeiras, e por materiais trazidos pelos participantes. Tanto os objetos reais quanto idéias imaginadas foram colocados em prática. Das fissuras e fricções improvisadas, onde o racional deixou o imaginário transparecer, saíram às cenas. O produto criativo foi uma expressão vigorosa das interseções entre os estímulos do orientador, os elementos, o espaço, um trajeto entre as imagens, o imaginário e a imaginação dos estudantes. Experiência única e transformadora baseada em uma prática com jogos dramáticos. 1- A apresentação pública A apresentação pública ocorreu com o mote da participação do grupo de alunos na I Mostra de Teatro Escolar da Rede Municipal de Ensino. Foram três apresentações que aconteceram no dia 29 de novembro de 2002, sendo a primeira na parte da manhã e as outras duas no horário da tarde. Aconteceram na sala de vídeo da E.M. Gandhi, mesmo local que servia de espaço para a Oficina de Teatro. Nas duas primeiras apresentações o público foi constituído de alunos das turmas da escola, alguns professores, funcionários, direção, parentes e convidados dos alunos participantes. Na terceira apresentação, o público foi composto, também pelos integrantes na comissão julgadora da Mostra. Após a terceira apresentação ocorreu um debate entre os alunos participantes da apresentação com a comissão julgadora da mostra, sobre o processo de trabalho e o produto criativo apresentado. Ryngaert (1985) considera que, na dependência do contexto, a representação teatral sempre encontra um significado. A apresentação pública não estava entre os objetivos iniciais da pesquisa, porém, nesse caso, configurou-se como um ponto importante para a sua culminância. A apresentação pública de Os Sobreviventes se revelou uma experiência de grande valia tanto para os atuantes como para os espectadores. Os alunos conseguiram manter a alegria e o prazer do jogo, dando um significado para si e para a comunidade. O imaginário coletivo da comunidade emergia sob a forma de cenas criadas pelos alunos, moradores da comunidade. A história não era outra senão a própria história da comunidade contada por seus próprios protagonistas. Os alunos da Oficina de Teatro conseguiram desenvolver um trabalho que falava da própria comunidade, utilizando as convenções apreendidas durante a Oficina de Teatro com uma linguagem completamente identificável. Chegaram ao que Brook (1970, p.143) entende como um teatro necessário: “aquele no qual só existe uma diferença de ordem prática – e não fundamental – entre ator e público”. A separação era somente formal, todos estavam juntos na apresentação do produto criativo. A cada cena as descobertas e lembranças confundiam-se e estabeleciam um espaço virtualizado que não era nem realidade, nem um fenômeno artístico, era a vida da comunidade sendo mostrada. 1.1 -Os elementos estruturadores da apresentação pública Todos os aspectos compreendidos na elaboração do trabalho se deram por um processo de ensino-aprendizagem que valorizava a participação coletiva dentro de princípios de solidariedade e de experimentação. Elaborando uma praticidade do elemento estético no fazer e refazer das cenas, no aceitar ou rejeitar uma sugestão e acoplando elementos díspares no conjunto, criando mais possibilidades para realimentar as práticas. Para Brook (1970: 103), as escolhas refletem posições a se tomar. “O palco é um reflexo da vida, mas esta vida não pode ser revivida nem por um momento sem um sistema de trabalho baseado na observação de certos valores e na elaboração de um juízo de valor”. Em Os Sobreviventes, os alunos puderam envolver o corpo, a ação, o movimento, a relação com o outro, consigo mesmo, com os objetos e o domínio do espaço no seu desenvolvimento. Tomaram por base para a elaboração do produto criativo as improvisações, as imagens do corpo, as imagens surgidas através de histórias do bairro e as histórias e os desenhos propostos pelos nove elementos arquetípicos (personagem, espada, monstro, refúgio, elemento cíclico, água, fogo, queda e animal) entrelaçados num roteiro de ações. Em relação ao espaço de trabalho e de representação, desde o início da pesquisa desenvolveram um foco no acontecimento que surgia a cada improvisação incluindo o ponto de vista de quem vê, o espectador, que tanto pode ser do grupo quanto externo. O estabelecimento de uma relação de comunicação é uma das premissas do trabalho com o jogo dramático. Para um melhor entendimento, e lembrando que a proposta da pesquisa tinha como objetivo atender às orientações de Ryngaert sobre os jogos dramáticos, apresento a seguir os elementos estruturadores da apresentação. 1.1.1 -Os roteiros de ações O guia coletivo para as improvisações que deu origem ao produto criativo Os Sobreviventes foi o roteiro de ações. Sua elaboração, já descrita no capítulo anterior, partiu da releitura das histórias criadas no desenrolar das atividades, somando-se com as histórias e desenhos desenvolvidas com os nove elementos arquetípicos. O roteiro de ações serviu para nutrir as improvisações. As experimentações realizadas a partir dele foram sendo ampliadas por novos dados que, com a repetição das improvisações, foram incorporados ao primeiro guia básico. No percurso entre o início das improvisações com o roteiro de ações e a apresentação do produto criativo foram ocorrendo as modificações. A seguir, apresento as diferenças entre o roteiro de ações inicial e roteiro de ações utilizado na apresentação de Os Sobreviventes. Roteiro de ações inicial Cena 1- A Guerra dos Monstros. Cena 2- Comunidade invade o espaço vazio e constroi suas moradias. As moradias serão construídas com as mesas e cadeiras da sala de aula. A comunidade conversa feliz, cada um no seu espaço (improvisação já realizada). Monstro (um traficante), depois que a comunidade já construiu suas moradias, chega ao local e monta sua banca. Começa a aterrorizar a comunidade junto com seus comparsas Saci e Urubu. (Cena já improvisada do traficante contando dinheiro e dos comparsas brincando de jogar um saquinho de droga para cima.). Morte do vendedor de bala (cena já improvisada). Monstro mata e Urubu recolhe os pertences e retira seu corpo. Morte do tocador de sinos (histórias da comunidade). Urubu repete o que fez com o vendedor de bala. Saci traz o frango.(parte da história com os nove arquétipos). Comunidade calada pelo medo. Monstro manda fechar o comércio (notícias da imprensa). Cena 3- Luta. Todos contra o Monstro e seus comparsas. Quebra do silêncio. Juntam-se através do fogo. Isqueiros acesos fazem com que a comunidade volte a falar e junte-se para combater o traficante. Reação do Monstro. Quebra tudo (improvisação já realizada). Cidade arrasada. O monstro e os moradores saem feridos do combate. Cena 4- O super-herói. Um pouco de todos da comunidade formam o herói. Utiliza uma espada flamejante e destrói o monstro. A cidade ainda está arrasada. Cena 5-Reconstrução. Repetição da cena 2 quando os moradores ocupam o espaço, dessa vez para reconstruir o que foi arrasado pela briga. Roteiro de ações de Os Sobreviventes Cena 1 – Briga dos Monstros Cena 2 – A chegada, os novos moradores da comunidade. Cena 3 – Construção da Cidade – Igreja, Bar e Bazar Cena 4- Chegada do Tráfico Cena 5- O assassinato de Filho Cena 6- Precisamos acabar com o mal – Bar, bazar e igreja Cena 7 – Volta do tráfico. Assassinato do Pastor – Derrubada da cidade – Desafio Cena 8 – União contra o mal – Aparecem na cena os assassinados: Filho, Pastor e Jogador do Bar 2 Cena 9 – Nova volta do tráfico – Duelo com a morte do traficante Cena 10 – A reconstrução da cidade As mudanças ocorridas no roteiro de ações enfatizaram o caráter de um trabalho coletivo, aberto e em progresso, características que acentuam a prática do jogo dramático na Educação, numa relação com práticas contemporâneas de realização cênica. A cada nova descoberta, uma nova mudança poderia ocorrer no roteiro de ações marcando sua especificidade como elemento transitório. Serviu como suporte, como guia para experimentação de aventuras no seio do projeto definido. Caminhou de braços dados com a incerteza, valorizando o aqui e agora do jogo. As progressões ocorridas no processo de desenvolvimento do roteiro de ações foram definidas nas improvisações e nas repetições das improvisações. Cada cena foi experimentada por diversas vezes tendo como atuantes vários participantes da Oficina de Teatro. Todos os elementos estruturadores do produto criativo, que abaixo descreverei as particularidades, representam uma visão multifacetada dos acordos estabelecidos pelo grupo nas práticas com o jogo dramático. 1.1.2- O espaço de representação As três apresentações de Os Sobreviventes aconteceram na sala de vídeo da Escola Municipal Gandhi. O espaço servia para os encontros da Oficina de Teatro desde que ocorreu a troca de sala, já relatada em capítulo anterior, por motivo de obras. Os alunos já estavam habituados a trabalharem nesse espaço e um número expressivo de descobertas da pesquisa ocorreu nessa sala. A escolha de uma sala de aula convencional para a prática de jogos dramáticos e também para a apresentação do produto criativo refletia a orientação teórica definida na pesquisa. De acordo com Schechner (1988: 30 ): “La plenitud del espacio, las formas infinitas en que el espacio se puede transformar, articular, animar – esa es la base del diseño del teatro ambientalista. Tambiém es la fuente del entrenamiento del intérprete del teatro ambientalista. (...) El espacio vivo incluye a todo espacio del teatro, no sólo a lo que se llama escenario. Creo que existen relaciones reales entre el cuerpo y los espacios a través de los cuales se mueve el cuerpo. Gran parte del trabajo de taller y de los ensayos se dedica a descubrir estas relaciones, que son sutiles y siempre cambiante”. O espaço da sala de aula serviu como suporte de diversas improvisações. O jogo se estabelecia, para os alunos, tendo o espaço da sala de aula como mais um elemento de investigação. O espaço não servia apenas para que se desenrolassem as atividades, era um espaço vivo e suas partes estabeleciam significados que foram incluídos nas cenas. Partes da sala como as portas com eixo central e as estantes de concreto foram utilizadas. O formato diferente de abrir e fechar a porta fez parte de improvisações, estabeleceu espaços temporais e serviu como entrada e saída de diversas cenas. A prateleira da estante de concreto foi experimentada desde os primeiros exercícios de ocupação espacial que ocorreram na Oficina de Teatro. Na apresentação do produto criativo, um dos monstros tinha o seu abrigo, no plano alto, numa das prateleiras da estante de concreto. O espaço da sala de trabalho era um espaço já conhecido pelo grupo. Foi nessa sala que os alunos construíram uma relação de criação e experimentação com os jogos dramáticos. Na sala de vídeo construíram um espaço escolar-comunitário que proporcionou a segurança necessária para que os alunos mantivessem a característica de jogo na apresentação do produto criativo. 1.1.3 - Os espectadores A platéia que assistiu a Os Sobreviventes era formada por alunos e funcionários da Escola Municipal Gandhi e parentes e convidados dos alunos participantes da Oficina de Teatro. A terceira apresentação teve também, o corpo de jurados da Mostra de Teatro Escolar. Em cada uma das três apresentações, que aconteceram no dia 30 de novembro de 2002, na sala de vídeo da escola, a média de espectadores foi de setenta pessoas. No total foram mais de duzentas pessoas que assistiram ao produto criativo Os Sobreviventes. Os espectadores ficaram divididos em três conjuntos de cadeiras. O maior conjunto abrigava oito ou até nove cadeiras em cada uma das cinco filas. Ficava de frente para as portas de ventilação. Os outros dois conjuntos ficavam nas laterais da sala e possuíam cinco ou até seis cadeiras em cada fila. Esses dois últimos conjuntos ficavam um de frente para o outro. Sendo assim, os espectadores durante o desenrolar da cena podiam ver, ao mesmo tempo, o atuante e também, os outros espectadores. Essa disposição espacial dos espectadores explicita o contexto multidimensional da apresentação do produto criativo. Estabelecia intencionalmente a necessidade de um olhar com dupla visão. O espectador assistia ao produto criativo e, mesmo que, por vezes, involuntariamente, também enxergava um outro espectador, com quem mantinha uma troca das suas sensações e das suas manifestações. Alguns espectadores ficaram de pé no fundo da sala, procurando uma posição para melhor observar. Não havia um silêncio absoluto durante a apresentação, nem a sala estava escura. O espaço era outro, era um espaço escolar-comunitário que comportava as diversas manifestações dos espectadores. As cenas traduziam a cultura da comunidade em uma linguagem diferenciada. Simbolicamente, ao verem seus colegas em cena, estavam vendo a si próprios. Torciam, comentavam e por vezes, riam das situações apresentadas e das palavras pronunciadas pelos jogadores. Situações e palavras que qualquer um dos espectadores poderiam, naquele momento, estar realizando e pronunciando. 1.2- Os elementos da cena – cenários e figurinos A maneira de tratar os elementos da cena, fugindo da perspectiva tradicional da imitação, foi um processo desenvolvido durante a Oficina de Teatro. Exercícios e atividades visando à utilização dos objetos da sala de aula com novas funções ocuparam encontros inteiros. A disponibilidade, a persistência e a união do grupo provocaram a aceitação do diferente. Ultrapassaram seus limites passando a desenvolver uma linguagem própria, associando elementos do seu cotidiano com as idéias e situações surgidas das improvisações. De acordo com Ryngaert (1981: 35) : “O jogo dramático não necessita de cenários, trajes ou adereços no sentido tradicional. A construção do espaço de jogo faz-se a partir do espaço escolar e do mobiliário corrente chamado a novas funções. Uma “caixa de ferramentas” composta por objectos quotidianos e materiais brutos pode ser utilizada em função das necessidades”. Intersecionando as orientações de Ryngaert (1981) (a transformação de objetos reais em objetos cênicos) com as de Schechner (1988) (que considera o ambiente como elemento preponderante para a relação entre atuantes e espectadores) foi trabalhada a relação entre espaço e objetos no desenvolvimento das cenas. Essa relação ficou acentuada pela utilização dos próprios objetos da sala de aula como suporte das cenas. As carteiras e mesas foram transformadas em igreja, mesa de sinuca, balcão de um bazar, entre outros significados. Para os figurinos não foi definido nenhum traje especial. Foram utilizadas as roupas vestidas pelos alunos. Alguns elementos foram inseridos nessa composição, como tecidos que foram enrolados no rosto dos alunos para a criação dos monstros da cena um. Os adereços foram utilizados de acordo com as necessidades, servindo de suporte para a comunicação da cena. A Bíblia utilizada pela Integrante da Igreja era real e tinha a função real de ser o suporte para o texto a ser lido na cena. A jogadora, de posse da Bíblia, efetuava a leitura. Os tacos de sinuca eram cabos de vassoura. Os materiais a venda no bazar eram os tecidos usados para a composição dos monstros. Era a completa tradução de um teatro rústico, que na concepção de Brook (1999) “é a celebração de todos os tipos de “meios disponíveis” (...), pois não temos nada que não sejam nossos corpos, nossa imaginação e os meios que estão à nossa mão”. 1.2.1-As personagens e os atuantes No início, participaram das atividades da Oficina de Teatro vinte alunos da sexta série do ensino fundamental da Escola Municipal Gandhi. Desse total, a metade atuou na apresentação de Os Sobreviventes. O percurso da elaboração dos papéis até a escolha dos atuantes ou jogadores para cada personagem seguiu a premissa de fortalecer um trabalho coletivo e solidário. Não foi definido de antemão a quem caberia cada personagem. Desde o início das improvisações foi desenvolvido um esquema de circularidade dos papéis que teve sua culminância e a devida definição somente momentos antes da apresentação. Essa forma de agir cria a necessidade de todos estarem aptos a jogar independente da personagem definida. Sobre o atuante, ou jogador do jogo dramático, Ryngaert (1981: 34-35) esclarece que: “O jogo dramático não reclama actores virtuosos, competentes em todas as técnicas de expressão. Destina-se a formar “jogadores”, mais preocupados em dominar seu discurso do que criar a ilusão. Estes nem procuram “ser” (como a criança que brinca), nem “parecer” como certos (actores), mas “mostrar”. Não é a perfeição do gesto, ou da imitação que se procura, mas sim um comportamento lucidamente elaborado dentro de uma situação de comunicação(...). A procura da expressão está estreitamente ligada às exigências do discurso, o trabalho sobre a forma, a uma crítica de conteúdo”. A maneira como foi trabalhada a definição das personagens seguiu a prática desenvolvida durante as improvisações. Desenvolveu habilidades como o aumento da capacidade de jogo e a possibilidade de jogar de formas diferentes a mesma situação. Na apresentação do produto criativo foi deslocada a ansiedade natural da apresentação somente para o jogo. O fim da exclusividade da personagem por um atuante deu a possibilidade de uma troca mais constante e a ampliação dos pontos de vista em relação a função a ser desempenhada. Abaixo relaciono os atuantes com as personagens, conforme foi definido para a apresentação do produto criativo. Monstros Monstrengo - Jéssica Cabaçandulo - Suelen Mistroly – Camila Lougan - Diogo Flayman – Glauber Sidro – Daniel Kripton – Adalberto Igreja Pastor – Daniel Integrante da Igreja – Suelen Bar Jogador do Bar 1 – Diogo Jogador do Bar 2 – Adalberto Bazar Comerciante – Ellen Mãe – Rozineide Filho – Glauber Tráfico Chefe – Jéssica Vendedor - Camila Participou como contra-regra a aluna Rosane Mota Marques. 1.3-As cenas de Os Sobreviventes Nesta parte descreverei com detalhes as cenas de Os Sobreviventes. A partir do roteiro de ações as cenas foram desdobradas sendo acrescentadas várias situações, músicas, trechos bíblicos e marcas. Segundo Ryngaert (1981: 34): “O jogo dramático não visa uma reprodução fiel da realidade, mas sim a sua análise a partir dum discurso produzido numa linguagem artística original que se afasta do naturalismo”. Nas cenas haviam várias particularidades que estavam fixadas pelos atuantes. Essas particularidades foram desenvolvidas nos encontros da Oficina de Teatro, servindo como suporte para o estabelecimento do jogo e possíveis inclusões de novas situações. Para um melhor entendimento, do leitor, as personagens estão grafadas em negrito. Cena 1 – Briga dos Monstros Quando o público entrou na sala, os atuantes já estavam estáticos em suas posições. Essa disposição dos atuantes apontava desde o início a proposta de uma prática não ilusionista, seguindo as orientações de Ryngaert (1981). Sidro, em pé, fixava seu olhar nos olhos dos espectadores. Mistroly, no meio da sala, no plano baixo, em posição de combate, só esperava o momento do ataque. Flayman soltava gritos e urros, no plano alto, e, no canto da sala. Os outros monstros não estavam em cena. Os monstros se caracterizaram pela postura corporal, pelos sons emitidos e por um pano enrolado no rosto, criando um disfarce. Os jogadores escolheram seus próprios disfarces: véus coloridos enrolados no rosto, nas cores azul, rosa, azul-claro, branco e roxo. Ocupando diferentes lugares no espaço cênico, os monstros apresentaram seus corpos de maneiras diferenciadas: parados, abaixados, eretos, braços no chão. A movimentação se inicia quando entram a iluminação e, ao mesmo tempo, a música Fragrância - de Maurício Duboc, Paulo Silveira e Magno Dantas. Os monstros desenvolvem seus gestos no ritmo anunciado, caminhando, rastejando lentamente pelo espaço, olhando nos olhos das pessoas, andando de joelhos. Todos, público e atuantes, estavam num processo de reconhecimento dos espaços que ocupavam naquele momento. Com a mudança da música, entra a música Atabaques e Surdos de Luciano Perrone e Nilo Sérgio, os movimentos passaram a serem mais agressivos, mais rápidos e temerosos, com gritos, correrias, brigas, mãos sobre a forma de garras, braços abertos. Entra Kripton. Estava iniciada a briga dos monstros. Mistroly vencedora da primeira peleja tem agora a sua frente Cabaçandulo. Corpo contra corpo. Lougan suga, pelo ouvido, o sangue do monstro morto, emite gritos aterrorizadores, e depois retira o morto pelas pernas jogando-o na vala. Cabaçandulo vence. Cabaçandulo mal consegue se recuperar da briga e Sidro o ataca por trás. É um duelo desigual Cabaçandulo é bem maior do que Sidro. Sidro não consegue resistir sendo derrotado. Após algum tempo, quando muitos monstros já haviam sido mortos, Flayman, que observa tudo do alto, joga-se no chão provocando um susto nos espectadores. Com a emissão de fortes gritos, tenta espantar o Lougan, o monstro sugador. É atacado por Cabaçandulo, luta, tenta resistir, porém morre. Seus pertences são sugados por Lougan, o monstro sugador. Enquanto Lougan desenvolve a sua façanha – sugar as idéias dos mortos Cabaçandulo o ataca. Consegue fugir e fica no canto à espreita. As lutas se deram no chão, no mesmo plano baixo que Lougan, o monstro sugador se alimentava de suas presas mortas. Entra Monstrengo com uma ferocidade além dos limites. É o duelo final: Monstrengo contra Cabaçandulo. Na arena de guerra todos estão calados e observam detalhadamente a espera do vencedor daquela peleja. O vencedor da briga dos monstros. Monstrengo é o monstro vencedor. Tem uma imagem horripilante: dentes trancados, lábios afastados, deixando entrever os dentes serrados. O monstro uiva com as mãos para cima e os dedos sobre a forma de garra. Faz um sinal de quem venceu, matou todos os outros monstros, deixando vivo apenas o monstro sugador de idéias – o urubu Lougan, que fugiu para não lutar. Foi uma cena de grande expressividade do corpo: joelhos que dão movimento ao corpo, assim como as mãos e os gritos. Corpos caem sobre corpos, braços e mãos ficam atrelados no intuito de manter o domínio de um monstro sobre o outro. Só um monstro venceu Monstrengo, o outro, Lougan, o sugador, fugiu. Os espectadores respiram aliviados pelo fim da guerra. Cena 2 – A chegada, os novos moradores da comunidade. Começa uma música: A Chegada de Zé do Né na Lagoa de Dentro, de: Clayton Barros, Lirinha e Buguinha. O sino é badalado numa referência a uma das primeiras improvisações realizadas: o homem do sino. Os novos moradores estão a espreitar o local. Aparecem um de cada vez, saindo por detrás das portas, e depois em pequenos grupos. Aparecem e somem por trás das portas. A cena marcou uma transição temporal. Ao contrário da cena um, que se passa num passado remoto, a cena dois se passa no presente, na realidade cotidiana do grupo. Cena 3 – Construção da Cidade – Igreja, Bar e Bazar Os primeiros moradores da comunidade são evangélicos, entram cantando um hino religioso: “Vou seguir nos braços de Jesus, Vou levar comigo a minha cruz. Se espinhos ferem os meus pés, eu vou descansar nos braços de Jesus”. Constroem, com as mesas da sala de aula, a igreja. Começam um culto, Pastor pede que Integrante da Igreja leia uma passagem da bíblia: Apocalipse 6 versículos 13 a 17. - “13- E as estrelas do céu caíram sobre a terra, como quando a figueira lança de si os seus figos verdes, abalada por um vento forte. 14- E o céu retirou-se como um livro que se enrola; e todos os montes e ilhas foram removidos dos seus lugares. 15- E os reis da terra, e os grandes e os ricos, e os tribunos, e os poderosos e todo o servo, e todo o livre, se esconderam nas cavernas e nas rochas das montanhas; 16- E diziam aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós, e escondei-nos do rosto daquele que está assentado sobre o trono, e da ira do Cordeiro. 17-Porque é vindo o grande dia da sua ira; e quem poderá subsistir?” O bar se organiza com Jogador do Bar 1 e Jogador do Bar 2 jogando sinuca e bebendo cerveja. A mesa de sinuca é uma carteira da escola e os tacos são cabos de vassoura. Jogador do Bar 1 fala: -Eu estava em casa, a mulher começou a falar. Enfiei o cacete nela. As crianças ao mesmo tempo que choravam, brigavam. O pai dela se meteu. Se eu não tivesse respeito pelos mais velhos eu metia a porrada nele. Comigo só a polícia e Deus. Não vou dar um centavo para ela. Droga perdi a tacada! Tudo isso acontece num clima de normalidade, de vida cotidiana da comunidade. Uma conversa entre amigos, um jogo e uma bebida no bar. No bazar as máscaras usadas pelos monstros, na cena um, transformam-se em peças de fazenda, para serem comercializadas. Mãe acompanhada de Filho vai às compras. Filho insiste com Mãe que deseja dinheiro. Mãe se nega a dar o dinheiro. Comerciante cochicha no ouvido de Mãe, e dá uma nota de dez reais a Filho, dinheiro que Mãe nega. Cena 4- Chegada do Tráfico Enquanto a igreja reúne seus membros, o bar reúne os seus freqüentadores e o bazar reúne os seus fregueses, de súbito, o tráfico invade a cidade violentamente, obrigando que todos se calem e que fiquem quietos.Os moradores apenas olham assustados, ficam parados, estáticos. Os atuantes utilizaram as portas laterais batendo com força fazendo com que o ambiente cênico estremecesse com o terrível barulho. As pessoas se escondem na igreja, no bar e no bazar. Os traficantes têm gorros pretos e usam os braços como armas: o braço direito esticado e a mão esquerda sobre o pulso direito, imitando o gatilho de uma arma. Organizam o ponto de venda de drogas com duas carteiras juntas e duas cadeiras. Uma cadeira fica por cima das carteiras. É o local de onde o chefe do tráfico podia tudo observar e dominar toda a comunidade. Do alto, o grande chefe dá as ordens. Cena 5- O assassinato de Filho Filho se encaminha para o ponto de tóxico. Logo que chega, os ajudantes da boca, negam a droga. Filho está devendo muito e precisa pagar as suas dívidas. Filho pede fiado e promete que pagará depois. Pede uma droga de dez reais, o valor que havia ganho de Comerciante. Depois de usar a droga e bastante drogado, retorna para pedir mais uma quantidade, também para pagar depois. Vendedor fornece a droga e grita: - Capina cara! Apontando a arma para Filho. Chefe assiste a tudo sentado do alto de seu posto. Filho mais uma vez retorna, visivelmente drogado e pede mais droga. É recebido por Vendedor que, apontando a arma para sua cabeça, grita: - É perigoso cara, é perigoso! O braço com a forma uma arma, e com o dedo no gatilho, Vendedor pergunta: - Cadê o dinheiro rapaz? Filho responde: - Eu vou pagar, pô !!! Chefe desce do seu trono e começa a agredir o jovem. Ordena que Vendedor mate Filho. O corpo de Filho tomba no chão sendo puxado pelas pernas para fora por Chefe, da mesma forma que os monstros faziam na primeira cena. Chefe pede um frango assado para comer e festejando a morte do rapaz solta um alto grito. O tráfico resolve abandonar a comunidade, mas avisa que voltará. Olhos arregalados, mãos no rosto, nos olhos, corpos abaixados, mãos trêmulas, boca entreaberta fazem parte do modo como a comunidade recebe, em seu corpo, a violência do tráfico. Cena 6- Precisamos acabar com o mal – Bar, bazar e igreja A cena inicia com Jogador do Bar 1 e Jogador do Bar 2 jogando sinuca. A vida da comunidade voltou a normalidade. Desabafando Jogador do Bar 1 fala: - Minha mulher é uma cachorra, ordinária, muito feia, vou dar um tiro na cabeça dessa safada. O coroa é mais safado ainda. O coroa fala pra caramba. Caraca, errei a tacada!!! No bazar Comerciante consola Mãe, abalada pelo cruel assassinato de Filho. Os representantes da igreja saem em busca da união da comunidade para vencer o tráfico. Entram no bazar e recebem uma negativa. Entram no bar e tentam convencer Jogador do Bar 1 e Jogador do Bar 2 a acabar com o mal que ronda a comunidade. Jogador do Bar 2 responde: - Não quero acabar com mal nenhum. Tenho filhos para criar. Não dá para acabar com o mal, não. Pastor começa a discursar sobre as conseqüências que a permanência do tráfico pode causar na comunidade. Nesse momento Chefe e Vendedor entram e começam a agredir Pastor. Cena 7 – Volta do tráfico. Assassinato do Pastor – Derrubada da cidade – Desafio Quando o tráfico retorna à comunidade, destrói tudo o que encontra pela frente, com as armas apontadas e com a força bruta dos pés. A música também faz parte do processo de aterrorizar a comunidade. Chefe e Vendedor cantam: - E vai rolar matança, vai rolar. O povo do tráfico mandou avisar. Neste momento todos se escondem com medo, rezam e gritam por Jesus, pelo Senhor, em grande desespero. Chefe mata Pastor. Vendedor leva seu corpo para o valão. A comunidade está desesperada. O tráfico parece ir embora, porém no meio do caminho Vendedor retorna. Vai até o bar e retira Jogador do Bar 2, dá um tiro em sua cabeça e leva seu corpo. O medo dos moradores e a recusa da união proposta pelos religiosos fizeram com que a comunidade fosse novamente dominada pelo tráfico. A comunidade ainda não dispunha de força suficiente para o combate. Cena 8 – União contra o mal – Aparecem na cena os assassinados – Filho, Pastor e Jogador do Bar 2 O fogo indicado no primeiro roteiro de ações, como isqueiros acesos, que fazem com que a comunidade se una para combater o mal, passou a ser a igreja. De lá partiu o movimento para a união e combate ao tráfico. Solitária, Integrante da Igreja recita um trecho da Bíblia: Apocalipse, capítulo 13, versículos 7 a 10. - “7- E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los; e deu-se-lhe poder sobre toda tribo, e língua, e nação. 8- E adoraram-na todos os que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo. 9- Se alguém tem ouvidos, ouça. 10- Se alguém leva em cativeiro, em cativeiro irá; se alguém matar à espada, necessário é que à espada seja morto. Aqui está a paciência e a fé dos santos.” Depois parte para a sua missão, unir sua comunidade para expulsar o monstro do tráfico. Integrante da Igreja se reúne com Mãe, Comerciante e Jogador do Bar 1 em busca da união necessária para pôr fim aos desmandos causados pelos traficantes. Os mortos de cada um: Pastor, Filho e Jogador do Bar 2, vão surgindo, um a um, olhando para seus amigos e parentes, e rapidamente desaparecendo. Retornam do mundo dos mortos em busca de justiça. É a força que faltava para aceitarem a batalha. A comunidade de mãos dadas, unida, se fortalece para o enfrentamento com o tráfico. Cena 9- Nova volta do tráfico – Duelo com a morte do traficante De forma violenta os traficantes entram na comunidade. Todos vão para a igreja se esconder. Chefe grita em altos brados: - Quem vai me desafiar agora? Tem alguém? Integrante da Igreja aceitou o desafio, sem o uso das armas, apenas com as mãos e a ajuda divina, se aproxima de Chefe que está armado. Chefe abandona a arma e luta com as mãos vazias. Entra a música: Atabaques e Surdos de Luciano Perrone e Nilo Sérgio, a mesma que dá início à luta na cena 1. A entrada da música estabelece uma relação entre a luta de monstros da cena 1, com a luta dessa cena. Os atuantes da luta final da cena 1 são os mesmos de agora. Na dependência da leitura estabelecida do produto criativo, a atual luta pode ser considerada a revanche da luta da cena 1. Simbolicamente se estabelece a eterna luta entre o bem e o mal. Andando em círculos Chefe e Integrante da Igreja iniciam a luta. Depois de um duelo cansativo onde ambos já estavam no limite de suas forças, Chefe é morto. Vendedor que a tudo observava, vai ao encontro do corpo de Chefe, carrega-o e sai, jurando vingança. Uma vingança eterna, na eterna luta do bem contra o mal. A comunidade vai até Integrante da Igreja que está no chão exausta pela batalha. A comunidade unida levanta Integrante da Igreja e todos se abraçam. Simbolicamente conseguiram resgatar os sonhos de uma vida melhor, representada na união do grupo, o que permitiu a mediação e a minimização da violência em que viviam. Cena 10- A reconstrução da cidade Juntos reconstroem o bairro. A vida da comunidade volta à normalidade. O bazar abre as suas portas. Mãe vai às compras e já esboça os primeiros traços de alegria. O bar recebe seus freqüentadores. Jogador do Bar 1, voltando a jogar na mesa de sinuca diz: - Eu amo a minha mulher, sempre amei. Agora estou em paz ! Na igreja, Integrante da Igreja festeja solitariamente a vitória do bem contra o mal. Ainda recuperando as forças do duelo tão exaustivo abre seu livro sagrado, a Bíblia e recita Apocalipse, capítulo 22, versículos 1 a 5. - “E mostrou-me o rio puro da água da vida, claro como cristal, que procedia do trono de Deus e do Cordeiro. 2. No meio da sua praça, e de uma e de outra banda do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a saúde das nações. 3. E ali nunca mais haverá maldição contra alguém; e nela estará o trono de Deus e do Cordeiro, e os seus servos o servirão. 4- E verão o seu rosto, e nas suas testas estará o seu nome. 5- E ali não haverá mais noite, e não necessitarão de lâmpada nem de luz do sol, porque o Senhor Deus os alumia; e reinarão para todo o sempre.” As luzes se apagam. 2- O produto criativo O termo produto criativo foi empregado no intuito de oferecer uma alternativa para denominar a apresentação do trabalho realizado pelo grupo de alunos da Oficina de Teatro. Preferi utilizar produto criativo e não denominar a apresentação do trabalho como ‘peça de teatro’ por não comportar, no meu entender, todos os elementos característicos de tal definição. Peça de teatro (Pavis, 1999) está ligada a uma idéia de texto dramático, a obra escrita para a cena. Tal definição fugia integralmente da proposta da pesquisa. A apresentação do trabalho, caso denominada como uma improvisação com esboço, não demonstraria a dimensão do que foi realizado. Improvisação com esboço é um termo utilizado por Ryngaert (1981) para definir a cena surgida através da repetição de uma improvisação somada com a definição de um guia. O trabalho desdobrou as improvisações com esboço e apresentou uma estrutura próxima a escrituras contemporâneas de montagem. Através de um roteiro de ações que ia sendo modificado a partir das experimentações práticas das improvisações, chegou-se a um ponto do processo que, de acordo com a escolha do grupo, poderia ser mostrado para o público externo. A opção pela apresentação a um público exterior não significava o esgotamento das experimentações, mas sim uma outra etapa do trabalho. De acordo com Ryngaert (1985: 6): “É melhor expor um exercício como tal e que esboça um espetáculo, do que uma peça demasiado ambiciosa que acaba se tornando ridícula ao endurecer suas regras. Do experimental puro a cópias do espetáculo obrigatório, existem várias formas de expor um trabalho. Consideremos a exposição a um público como uma possibilidade, não como um objetivo final a ser buscado a qualquer custo, o que por fim empobrece tanto o processo quanto o produto. O término de um trabalho é uma eventualidade, não uma exigência.” Diante da falta de um termo preciso para indicar o produto resultante do processo de trabalho realizado na Oficina de Teatro, recorri a produto criativo. O produto criativo, então, se configura como a convergência dos processos realizados com os jogos dramáticos em sala de aula. Partindo de variados elementos, é a organização axiomática das improvisações. O produto criativo não é um trabalho fechado, um produto acabado, tem como pressuposto a possibilidade de ser modificado a qualquer momento, inclusive, no aqui e agora da cena, no momento em que está acontecendo. Diferentemente de um espetáculo teatral que tem os focos definidos nos diversos componentes da linguagem cênica, o produto criativo tem um foco único: os participantes do jogo dramático. 3- As simbolizações que emergiram a partir de Os Sobreviventes O título do trabalho, Os Sobreviventes, escolhido por votação em um dos encontros da Oficina de Teatro, refletia o processo e todas as simbolizações que emergiram com ele. Sintetizava e problematizava uma situação que se mostrava maior que a capacidade de resolução dos alunos. Ryngaert (1981) defende o valor do imaginário e do simbolismo nos jogos, mas não apresenta o caminho para que isso aconteça. Ao ser apresentado a um público externo o produto criativo Os Sobreviventes revelou uma riqueza simbólica extraordinária permitindo vislumbrar um trajeto que possa englobar o valor do imaginário e do simbolismo na prática dos jogos dramáticos. Na pesquisa, utilizamos como um dos motes para a elaboração do roteiro de ações um desenho e uma história com nove elementos arquetípicos, a saber: o monstro, a personagem, a espada, o refúgio, um elemento cíclico, a água, o fogo, a queda e um animal. As cenas criadas em Os Sobreviventes foram organizadas tendo por base esses elementos essenciais. O monstro (do passado e do presente) é a grande ameaça existencial. Com a espada na mão, simbolizada pelos gritos e pelos gestos animalescos do passado, e pelas armas potentes do presente, intimida e destrói. Os monstros de hoje ressurgem dos monstros do passado. Os monstros do passado lutaram uns contra os outros, espécie contra espécie, em busca do domínio e do poder. Apenas dois monstros sobreviveram e desapareceram por um período. Quando a comunidade estava organizada, eles retornaram na figura de traficantes para resgatar o espaço perdido. São eles que aterrorizam a comunidade. A comunidade usa seus abrigos como proteção, um lugar seguro, um refúgio. Em Os Sobreviventes, os abrigos ficaram caracterizados pelos espaços construídos pelos personagens: a igreja, o bazar e o bar. Nesses locais se desenvolvia a vida comunitária. Os abrigos são destruídos pelos monstros e reconstruídos pelos personagens numa tentativa de fugir do perigo. O perigo não é ignorado, mas também não é enfrentado. É um processo cíclico e constante de construção-descontrução-construção dos abrigos. A queda representou a morte dos monstros e de alguns dos personagens. A espada flamejante, união da espada com o fogo, no roteiro de ações inicial, era a arma do super-herói para combater com o monstro. No roteiro de ações de Os Sobreviventes, é eufemizado, dando vez à Bíblia Sagrada, da Integrante da Igreja, como a única arma capaz de combater o monstro do tráfico de drogas. É a religião, o re-ligare, que consegue a libertação dos personagens frente aos monstros. A religião é o herói, no sentido de ser a salvadora. Salva a comunidade e seu povo, renovando o princípio da vida. A religião, como cita Eliade (1996), através das crenças e dos ritos nos conduzem ao campo da mentalidade mágica. Só a onipotência de Deus foi capaz de vencer os monstros. As cenas foram marcadas por fortes emoções. A briga dos monstros representou uma luta pela vida. Os jogadores negavam-se a morrer, tanto nas improvisações, quanto na apresentação do produto criativo. Simbolizavam para si e para quem assistia a representação teatral do título do trabalho. Eles são os verdadeiros sobreviventes. Pode-se afirmar que os alunos, ao vivenciarem a prática dos jogos dramáticos, deixaram emergir seus sentimentos e emoções relacionados à maneira como vivem e convivem com a violência. Perguntados de como se sentiram atuando em Os Sobreviventes, fizeram os seguintes depoimentos: Glauber - 13 anos Me senti alegre fazendo o papel do monstro. Eu sei que vou virar um deles um dia, porque às vezes fico nervoso. Achei legal, também, ser o viciado, as pessoas riram do que eu estava fazendo: cheirando pó. Fiz algumas cenas no plano alto. Ficar no alto é neurótico. A sensação é de voar. As cenas me ajudaram a pensar na violência em que eu vivo no dia a dia. É um mundo que me entristece, porque é errado. O mundo do tóxico atrapalha a vida, não deixando trabalhar, matando as pessoas inocentes. É uma praga. Vendo as cenas as crianças e os jovens vão refletir melhor sobre o mundo do tóxico. A cena mais forte dos Sobreviventes foi a invasão dos monstros. A cena mais bonita foi a final: as pessoas de mãos dadas simbolizando a paz. A única coisa que não gostei foi a cena em que cheirei o pó. Gostaria de fazer sempre teatro na escola. Daniel - 12 anos Durante a realização da cena em que os monstros invadem a cidade eu não me senti tranqüilo. Não gostei. Fiquei nervoso, por ter de olhar nos olhos dos outros, caminhar lentamente me deixou muito nervoso. A cena do pastor foi muito boa. Ele não resolve tudo. Ele só faz uma oração para melhorar. O traficante tem que aceitar Jesus para que a palavra do pastor tenha força e possa ajudá-lo. Nas cenas alguns morreram e outros sobreviveram. Aqui, em Manguariba, tem muitos traficantes. Gostei da cena em que tinha que morrer, foi engraçado, foi muito legal. Acho que fazer teatro na escola ajuda aos alunos a não mexerem com as drogas, a mostrar como as drogas são ruins. Onde há droga, há violência. Foi bom criar o texto porque nós fizemos do nosso jeito. Suelen - 13 anos Não gostei porque pisaram na Bíblia. Isso é desrespeito. Muita coisa do que aconteceu nas cenas é parecido com Manguariba. Morrer é muito chato, é uma palavra muito forte. Não se pode acabar a violência com a violência. Há muito pecado. Alguns colegas “entraram no personagem”, no dia-a-dia o bem nem sempre vence. Não gostei do nome Os Sobreviventes. Acredito que na medida em que esse trabalho foi desenvolvido, foi possível apreender as vivências do grupo através das imagens que emergiram. Imagens de luta pela vida, de eufemização da morte. Imagens afetivas guardadas na memória e que tendem a se repetir a cada ciclo, com riqueza de simbolismos. Tais imagens permitiram um vivenciar da vida, próximo ao processo de individuação pensado por Jung (1993) como um crescimento para dentro, um caminho que busca alcançar o universo simbólico e imagético do homem, tendo em vista que a riqueza da vida psíquica consiste numa abundância de imagens e a saúde mental depende da fruição delas. Isso coloca o universo das imagens mentais não mais como projeções de recalques e experiências a serem banidas da consciência, mas como uma forma primitiva, rica, regeneradora de manifestação de pulsão, de libido, de energia vital, que significam, antes de tudo, a vida na mais ampla e profunda significação. Conclusão Efetuar uma conclusão requer o repensar das práticas realizadas e da maneira como estas interferiram na vida das pessoas, sujeitos da pesquisa. De modo, a fazer falar os sujeitos participantes, optei por transcrever as falas obtidas em entrevista aberta com os alunos, um ano após o término da Oficina de Teatro. Acredito que os relatos darão a perfeita amplitude e magnitude do trabalho realizado. Não é o pesquisador quem fala e sim os alunos que vivenciaram cada um dos encontros. Para a obtenção desses relatos vali-me da técnica de entrevista oral, com perguntas abertas, ao mesmo tempo em que realizei a filmagem dos depoimentos de cada um dos alunos entrevistados. A entrevista teve como base as seguintes questões: Qual foi a sua personagem em Os Sobreviventes? O que você gostou de fazer em cena? Do que você não gostou? A personagem que você representou foi inspirado em alguém? Em quem? Os atos e as atitudes da sua personagem são comuns no meio em que você vive? Que sentimento despertou em você a sua personagem? Você passou a pensar de outro modo, após participar como personagem de Os Sobreviventes? Você acha que participar de Os Sobreviventes deixou você mais sensível ao problema da violência? Os Sobreviventes contribuiu para que você mudasse alguma conduta na sua vida? Você acredita que as pessoas que assistiram Os Sobreviventes compreenderam a mensagem? Que mensagem foi esta? Como você considera a importância de se fazer Teatro na escola? Este tipo de Teatro levou o grupo a repensar a violência, a vida, as relações entre os colegas? O que os seus gestos pretenderam dizer? Qual foi a sua vestimenta, o que ela tentou mostrar? Você fez algum ruído? O que você pretendeu representar com este ruído? Em quem você se inspirou para fazer a sua fala? O que ela tentou representar? Sua visão sobre violência mudou? De posse destes depoimentos é possível perceber a importância do Teatro na Educação e, especialmente, o valor teórico-metodológico dos jogos dramáticos proposto por Jean-Pierre Ryngaert. Vivenciando o jogo dramático, pode-se afirmar que os alunos passaram a interrogar o mundo a sua volta, analisando e revivendo as suas ações e relações e, conseqüentemente, refletindo sobre elas. Os jogos dramáticos permitiram a experimentação de uma variedade de caminhos individuais e coletivos mobilizadores de um conjunto de experiências sensíveis. É como nos diz Morin: “Não possuímos as chaves que abririam as portas de um futuro melhor. Não conhecemos o caminho traçado”, porém “El camino se hace al andar6” (Antonio Machado). É fazendo “falar” os relatos que pretendo concluir esta pesquisa. Glauber Meu personagem foi muito interessante. Eu pulava, eu dava susto nas pessoas, as pessoas riam, eu dava voltas, eu perdia a luta para um monstro que me atacava. O que mais gostei foi assustar as pessoas. Eu não gostaria de fazer o monstro vencedor, não gostaria de vencer todas as lutas. Eu me recordo bem da história: havia monstros irreconhecíveis, monstros não-qualificados. Monstros que não são conhecidos. Começou uma grande luta. Respeitamos as regras. Os monstros lutavam entre si, sugavam as idéias dos monstros mortos. Não houve cena de violência. Passei a ver a violência nos perigosos bandidos que atacavam as pessoas. Pessoas de mau caráter, comprando coisas que nunca deveriam ter existido (maconha, cocaína). Tudo isso foi bem retratado, foi uma fixação ótima. Para ver que neste mundo, a evolução criou vários tipos de violência que nunca deveriam ter existido. Essa peça foi como o retrato de um ensino para quem estava meio desligado. Na minha vida, eu não uso briga, a luta, eu uso a sinceridade, eu uso a companhia de bons colegas. Briga não resolve as coisas que queremos alcançar. Foi uma maneira, uma lembrança, para nós abrirmos os olhos, porque o mundo é cheio de barreiras que temos de ultrapassar por elas, para viver o que se tem de viver. 6 “Ao andar se faz o caminho” Com relação à platéia, eu acho que todos deveriam ter prestado a atenção. Quem prestou atenção, talvez tenha compreendido. Quem não prestou, deveria ter prestado, para saber como as coisas acontecem. Fiz meu personagem em cima da estante, porque meu corpo pediu para ficar mais alto, representando as cenas. Não sou ligado às alturas, mas gostei de ficar no alto, porque as pessoas prestaram mais atenção e ficaram rindo assustadas. Não sei se meus gestos convenceram as pessoas. O gesto é um meio de comunicação que pode ser passado. Pelo gesto, algumas pessoas se conscientizaram do problema. O que eu desejei retratar foi a violência, acho que todos precisavam tomar conhecimento. Usei máscara, porque o rosto do personagem precisa ter mais fantasia. Se não tiver fantasia, não pode fazer com que a peça fique viva, porque a fantasia é que traz mais disposição, ninguém sabe que é. Enfim a máscara era para dar mais vida à peça. Escolhi a máscara de uma onça pintada. Porque eu tenho mais afinidade com esse animal. Tem cor viva e equivale a chamar a atenção para os meus gestos. Como eu estava vestido como uma onça, fiz, também, o som que esse animal costuma fazer, é assustador! Os monstros morreram, mas o monstro chefe não, e depois de algum tempo ele retornou. Ele conseguiu sobreviver.Os Sobreviventes sobreviveram, mas entraram em extinção. Em relação a fazer teatro, eu aprendi, através dos vários exercícios, as técnicas teatrais: usar os gestos, o corpo. Eu gosto de fazer teatro, gosto de desenhar. Eu estou querendo fazer curso de artes. Eu posso trabalhar com isso, porque de um desenho, de uma coisa boba, eu posso crescer mais, amadurecer mais, trabalhar e sobreviver com isso, e eu sempre gostei de fazer teatro. Quando as oficinas acabaram, e vocês foram embora, eu fui fazer teatro lá embaixo na comunidade com um rapaz, mas parei, mas gostaria de voltar a fazer teatro com vocês. Eu gosto de fazer teatro com você. O teatro é uma coisa importante. Me sinto muito bem, fazendo teatro e desenhando. Para mim, é a mesma coisa. Eu gosto dos dois. Desenhar faz parte de falar do mundo. Uma criatividade, um desenho. Tudo fala sobre o mundo, o teatro fala desse mundo, faz parte desse mundo. Infelizmente as coisas erradas têm que ser faladas, mas é preciso falar desse mundo bonito, quando acabar a violência todos terão paz, alegria, conforme poucos são. Poucos são livres. Você nos ajudaram muito a evoluir mais na nossa mente, distraíram a nossa mente, a gente se sente mais dono, mais livre, com menos medo, dando toda a nossa energia, ficamos com mais disposição. Alguns alunos não têm disposição, para viver a nossa vida através do teatro. Cássio Foi muito bom participar das oficinas de teatro, gostei, se pudesse participaria novamente. Nós criamos, imaginamos toda essa história. Fiquei triste, porque acabei não participando da apresentação final. Na peça, eu vi a violência, os monstros daqui de Manguariba, que apareceram sob a forma de bandidos. Os monstros de hoje são os monstros do passado. O que eu mais gostei de fazer durante das oficinas foi o papel de monstro, e o que eu menos gostei de fazer foi ficar escondido atrás da mesa, para não ser atingido, eu não tinha como me defender, como fazer nada. Eu acho que as pessoas que assistiram à peça compreenderam, porque eles viram a própria realidade. Eu me lembro de todos os exercícios, foram ótimos. Precisei usar meu corpo, abaixar, correr. Eu passei a ver que pode ser mudada a violência, se a gente tentar, não sendo violento, não fazendo a violência. O gesto que mais gostei de desenvolver foi ficar andando pela sala, atirando, fazendo o personagem do monstro. O monstro não morreu, ele está por aí, são os traficantes. Adalberto Eu participei de Os Sobreviventes como monstro, é muito interessante. na hora, dá uma vergonha, mas depois a gente se solta, vai à luta e consegue. Eu gostei do meu personagem, jogando sinuca no bar. O monstro morreu, mas eu não. O monstro morreu, porque fazia parte da história. O monstro nasceu da combinação entre nós. Ele não tem história, nós que inventamos. Não tem nada a ver com o nosso dia-a-dia. Fazer as cenas de violência foi bom. Eu não gosto de fazer cenas de violência, mas fazia parte da história. Na medida em que as pessoas fizeram as cenas de violência, elas puderam refletir melhor. O teatro ajuda a refletir. É importante fazer teatro na escola. Aprendi que precisamos trabalhar em equipe, ajudando ao outro. Quando eu ensaiei, eu fiz um monstro muito forte. O monstro que eu representei não sobreviveu, com o passar do tempo, os monstros morreram, havia menos vida na terra. Eu fiz um monstro guerreiro. A minha visão sobre a violência não mudou muito, nós sabemos como acontece a violência na vida real, na peça, não é real. Dá para repetir o que vemos na vida e o que precisamos apresentar na cena. Só gosto de teatro na escola, fora da escola não. Nada mudou na minha vida, continuo vendo tudo do mesmo jeito. Diogo Foi muito bom fazer a peça. Eu compreendi que a violência não é de agora, que ela vem de muito tempo atrás. E que essa violência não é de briga ou de morte, é a violência da sobrevivência. Hoje em dia, cada um acha que é mais forte que o outro. A violência da peça corresponde a violência da nossa comunidade. Tudo foi baseado nos fatos reais, antigamente existiam os monstros, os monstros foram se transformando na bandidagem, tudo foi tirado do que acontece na vida real. O primeiro monstro que eu representei, eu retirei dos filmes, na pré-história. O segundo eu me inspirei em mim mesmo, o que retirava de mim, dos meus pensamentos. Os monstros estão todos vivos, dentro da nossa memória, todas as pessoas que lembram, lembram dos monstros vivos, não mortos. Na comunidade, só nós lembramos, ninguém mais se lembra. Adorei fazer os gestos, tive que me concentrar, tive de pensar, para fazer os movimentos mais lentos, mais depressa, mais devagar. Eu fui o monstro que sugava as idéias. Eu me alimentava disso. Ele morreu, porque não havia mais ninguém morto, para ele se alimentar. Essas cenas me deixaram mais sensível, fizeram com que eu refletisse mais, porque a vida real está no teatro. Abriu a minha mente. Eu passei a pensar mais no teatro e na vida. Jéssica Fazer Os Sobreviventes foi ótimo, foi bom , um pouco de cada lado, um lado humano, um lado violento. O meu personagem foi o mais violento, o pior de todos, o bandidão, o dono do pedaço.Antes, na época dos animais, o meu personagem já era poderoso, ele ganhou a briga dos monstros e passou a ser dono de tudo. Os tempos foram passando, houve uma mudança de corpo, eu passei a ser uma pessoa normal, só que também dona de tudo, mas, no final, como o bem sempre vence, eu perdi. Eu gostei de fazer as cenas, só não gostei de ser arrastada no chão. Eu não precisei me inspirar em ninguém, para fazer as cenas, basta olhar o mundo, está tudo aí, só pensar no que está acontecendo que a gente já tem uma noção do que fazer. Os atos e as atitudes do meu personagem são comuns nos dias de hoje. Os Sobreviventes têm tudo a ver com Manguariba: a violência, o jeito com que elas se tratam, como se comunicam. Na história inicial, os monstros de antigamente, não são iguais aos monstros de hoje, porque nós não temos quatro patas, mas são monstros que estão destruindo a própria vida. As oficinas me ajudaram a olhar a vida de outro jeito, de um jeito diferente. Passei a pensar de modo diferente. Parei mais, para pensar sobre a violência, eu não pensava sobre esse tipo de coisa, mas agora eu sinto a violência que existe a minha volta. Mudei condutas da minha vida. Quem prestou atenção na peça levou a mensagem que desejamos passar. Acho que deveria haver uma lei que obrigasse a ensinar teatro na escola. Teatro é uma coisa muito boa, a gente aprende muito com o teatro, é como se a gente aprendesse com a vida. Só que, ao invés de aprender com a vida, a gente aprende com o teatro. É uma coisa muito boa. Meus gestos foram como de um monstro de quatro patas, se arrastando no chão, rodopiando, olhando de um lado para o outro. Usei um pano ao redor do rosto, tentando representar que eu era um monstro terrível, abominante mesmo, que assustava todo mundo, que ninguém podia comigo, que eu era o maioral. O monstro não foi vencido, porque dentro de cada um existe um monstro, não despertado, mas existe.O monstro não morreu. Em Manguariba, os monstros existem um pouco dentro de cada um, principalmente nessas pessoas que pensam em dominar tudo. Nunca havia feito teatro, foi muito bom! A violência continua, para acabar com ela só a consciência de cada um. Cada um fazendo a sua parte, e nós fazendo teatro. Daniel Foi muito bom fazer Os Sobreviventes, eu me inspirei no que está acontecendo hoje em dia. Na cena do monstro, foi legal fazer, lembrar daquela era, no outro papel, as pessoas se lembraram do que está acontecendo nos dias de hoje. Eu gostei de fazer parte da igreja, de ser o pastor, de pregar. Eu gosto de ser uma pessoa muito boa, como eu sou uma pessoa muito boa, eu quis fazer o papel de pastor, que é uma pessoa muito boa. Como eu sou cristão, eu quis fazer o papel de pastor, ligado a Deus. Eu não gostei de morrer. Os monstros não morreram, eles continuam ainda hoje. Partimos da história que está acontecendo hoje em dia. Os traficantes batem e matam à vontade, e outras coisas que acontecem por aí. Fiquei muito triste, pois passei a observar a violência que anda por aí, na T.V., na rua. Usei uma roupa, um cachecol, para ficar parecido como pastor. O gesto mais importante que eu fiz foi ficar em pé com as mãos para o alto dizendo que o mundo precisava se converter. Quem assistiu compreendeu o que eu quis dizer. Durante a cena, eu falei uma frase muito importante: temos que tirar o mundo dessa maldade, foi, quando os traficantes apareceram e me mataram. Fazer teatro na escola é muito importante. Aprendi, também, que isto despertou o eu que eu tinha dentro de mim. Camila Eu era o monstro, eu brigava com o monstro vencedor. Eu fiquei encabulada no início, para fazer a cena, tinha hora que eu não conseguia nem me mover, de tão nervosa. Depois eu me acostumei. O meu personagem foi baseado na violência do dia-a-dia daqui da comunidade, do que a gente vê na T.V. Os Sobreviventes têm tudo a ver com os monstros de hoje em Manguariba. Os monstros de antigamente se tornaram os monstros de hoje em dia, que são os bandidos, as pessoas ricas que roubam o dinheiro dos pobres. Fazer esse personagem foi muito bom, eu pude dizer para as pessoas como os monstros estão dominando as pessoas. Eu me tornei mais sensível, fazendo teatro, as pessoas da sala dizem que eu mudei pra caramba, estou mais comunicativa, perdi a vergonha. Fiquei mais descontraída, graças ao teatro. Nem todos compreenderam Os Sobreviventes, alguns sim outro não. A cena que eu mais gostei foi a cena um, os monstros, invadindo a cidade. Suelen Meu personagem como monstro foi legal. Na cena do monstro o que eu não gostei foi ter sido carregada, puxada pelo chão. Eu não me inspirei em nenhuma pessoa. Eu gostei de fazer o papel de membro da igreja. Acho que não mudou, em nada, a minha visão sobre a violência. Durante a realização das cenas, eu senti muita dor no meu joelho, em função de ter que me arrastar no chão. Tentei esquecer, para não atrapalhar os outros personagens. É importante fazer teatro na escola, porque teatro é legal, e mente vazia é oficina do diabo, se você está fazendo teatro, a mente não está vazia e você não está fazendo besteira. É legal! Muita gente na platéia não entendeu a mensagem da peça. Alguns eu precisei explicar. Eu usei, na cena do monstro, uma vestimenta própria para o monstro e, na cena da igreja, uma roupa normal de gente da igreja. Como representante da igreja, eu tentei passar aquilo que me fortalece, chamei a comunidade, para lutar contra a violência. A comunidade perdia tudo, perdia filho, perdia a casa e não fazia nada, ia ficar de braços cruzados esperando a morte chegar? Mais cedo ou mais tarde, eles iriam fazer alguma coisa. O gesto que marcou foi andar de quatro no chão, rastejando na cena dos monstros. Na cena da igreja, o gesto foi o convencimento, para que todos lutassem pela paz, se unindo. A solução para a violência está nos homens, os policiais precisam agir mais, serem mais conscientes. Eu gostaria de fazer teatro, eu passei a me sentir mais descontraída, bem pouco, mais fiquei. Rosineide Adorei fazer parte de Os Sobreviventes. Gostei das carinhas. Mas eu não participei de todas as cenas. Há uma relação muito grande entre Os Sobreviventes e o dia de hoje. Na peça, eram os monstros, hoje são os bandidos envolvidos com drogas. Fazer teatro na escola é muito bom, aprendi a me comunicar melhor com as pessoas e a me soltar mais um pouco. Eu gostei da cena em que eu era uma perua, e não ligava para o meu filho, e eu só dei valor ao meu filho, quando ele morreu. Isso confirma aquela idéia que só damos valor às coisas, quando perdemos. Eu só perdi o meu filho, porque eu dei mais valor à minha vida. As oficinas poderiam voltar a acontecer aqui, em Manguariba, para que as pessoas possam botar mais coisas na cabeça e deixar de violência, droga. Passar a pensar nas coisas boas da vida e não nas ruins. As crianças e os adolescentes, ao fazerem teatro, podem deixar os pensamentos ruins de lado, como a droga e a violência. Gleidson Meu personagem foi um monstro que jogava os monstros mortos dentro de um valão. Eu puxava os monstros mortos para a vala e ficava com medo de morrer. Esse ato de violência é comum em Manguariba, eles matam as pessoas e jogam em qualquer lugar, na mata, no rio, no valão, não respeitam mais os moradores. Os Sobreviventes mostrou que todos devemos amar uns aos outros. Eu aprendi mais coisas. Quando eu fiz Os Sobreviventes eu me senti um artista como na televisão, sendo assistido por várias pessoas. Eu acho que os monstros não morreram, estão vivos ainda. Eu imitei o som de um macaco, quando aparece um urubu. Antes eu era muito envergonhado, não falava com ninguém na rua, agora eu falo com todos. Thiago Para mim Os Sobreviventes representa a realidade do mundo, do Brasil, do Rio de Janeiro e de Manguariba. Parei de freqüentar as oficinas de teatro, porque estavam acontecendo umas coisas muitos perigosas lá em casa, e eu precisava proteger a minha mãe. Eu me inspirei para desenhar a arma na cena da luta dos monstros. Eu conheço bem este tipo de arma, mas nunca segurei. Essa arma é comum de ser utilizada aqui em Manguariba. Aqui é praticamente uma favela, e existe muita violência. Eu vejo jornal todo dia, e sempre faço uma música e um poema por semana. Isso me ajuda a lamentar o Brasil. Às vezes, eu me sinto agressivo, tento não me incomodar, tenho que agüentar. O gesto que eu gostaria de fazer é de paz e amor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, Eunice M. L. Soriano de. Como desenvolver o potencial criador: um guia para a liberação da criatividade em sala de aula. Petrópolis: Vozes, 2002. ARAÚJO, Hilton Carlos de. Educação através do Teatro. Rio de Janeiro: Editex, 1974. BERNSTEIN, B.; ELVIN, H.L.; S. B. Les Rites dans léducation. In: HUXLEY, Julian (Org.). Le comportement rituel chez l’homme et l’animal. Paris: Gallimard, 1971. BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: C. Brasileira, 1979. BRASIL, Congresso. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1995. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: arte. Brasília: MEC/SEF, 1997. BROOK, Peter. O Teatro e seu Espaço. Petropólis: Vozes, 1970. _______. A Porta Aberta. Rio de Janeiro: C. Brasileira, 1999. CABRAL, Beatriz Ângela Vieira. Teatro e Pressupostos Curriculares. In PREFEITURA MUNICIPAL DE FLORIANÓPOLIS, Pressupostos Curriculares. Florianópolis: SME, 2000. DELORS, Jacques (Org.). Educação: Um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: MEC: UNESCO, 2000. DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993. ______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997. DURAND, Yves. A formulação experimental do imaginário e seus modelos. Revista da Faculdade de Educação. São Paulo: FEUSP, 13 (2): 133-154, 1987. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2002. CLIFFORDS, Geertz. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000. JAPIASSU, Rcardo. Metodologia do ensino do Teatro. Campinas: Papirus, 2001. JUNG, C. Símbolos e transformação. Petropólis: Vozes, 1993. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2001-1. _______. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001-2. PAULA CARVALHO, José Carlos. Antropologia das organizações em educação, um ensaio holonômico. Rio de Janeiro: Imago, 1990 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. PUPO, Maria Lúcia de S.B. Movimento Escolinhas de Arte: Da Educação Através do Teatro ao Teatro-Educação. São Paulo: USP, 2001 (sítio na Internet). RYNGAERT, Jean-Pierre. O Jogo Dramático no meio Escolar. Coimbra: Centelha, 1981. _______. Jouer, représenter. Paris: Cedic, 1985. SCHECHNER, Richard. El Teatro Ambientalista. México: Árbol, 1988. SCHLEDER, Tania Stoltz. Capacidade de Criação: introdução. Petrópolis: Vozes, 1999. SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Relatório tendências metodológicas do ensino de teatro na rede escolar pública municipal. Rio de Janeiro: SME, 2003. SLADE, Peter. O Jogo Dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978. SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. Trad. Ingrid Dormien Koudela, Eduardo José de Almeida Amos. São Paulo: Perspectiva, 1987. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no Ensino da Arte. São Paulo: Perspectiva, 1994. _______. Arte-Educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2002. BOAL, Augusto. Técnicas Latino-Americanas de Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 1979. _______.200 Exercícios e Jogos para o Ator e o não-ator com vontade de dizer algo através do Teatro. Rio de Janeiro: C. Brasileira, 1985. BORNHEIM, Gerd A. , O Sentido e a Máscara. São Paulo: Perspectiva, 1992. BRANDÃO, Zaia (Org.). A crise dos paradigmas e a Educação. São Paulo: Cortez, 2002. CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro: Estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo: Unesp, 1997. CHACRA, Sandra. Natureza e Sentido da Improvisação Teatral. São Paulo: Perspectiva, 1991. COHEN, Renato. Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo: Pespectiva, 1998. _______. Performance como Linguagem. São Paulo: Pespectiva, 2002. COSTA, Elisabete Pinheiro. O Teatro do Oprimido: Uma Experiência na Educação. Rio de Janeiro: UniRio, 1997 (dissertação). COURTNEY, Richard. Jogo, teatro e pensamento. São Paulo: Perspectiva, 2001. KOUDELA, Ingrid Dormien. Texto e Jogo: uma didática brechtiana. São Paulo: Perspectiva/ FAPESP, 1996. KUSNET, Eugênio. Ator e Método. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1997. MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis: Vozes, 2001. MARTINS, Mirian Celeste, PICOSQUE, Gisa, GUERRA, M. Terezinha Telles. A Língua do Mundo: poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998. MORIN, Edgar. A noção de sujeito. In. SCHNITMAN, Dora Fried (Org.). Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 1987. REVERBEL, Olga. Jogos Teatrais na Escola : atividades globais de expressão. São Paulo: Scipione, 1989. RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à Análise do Teatro. São Paulo: M. Fontes,1995. _______. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martin Fontes, 1998. SCHIFF, Michel. A Inteligência Desperdiçada: desigualdade social, injustiça escolar. Trad. Walkiria Settineri. Porto Alegre: A. Médicas, 1993. SPOLIN, Viola. O Jogo Teatral no livro do diretor. São Paulo: Perspectiva, 2001. VASCONCELOS, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro. Porto Alegre: L&PM, 1987. WEKWERTH, Manfred. Diálogo sobre Encenação: um manual de direção teatral. São Paulo: Hucitec, 1997.