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HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos Camila Hamdan* camilahamdan@gmail.com Universidade de Brasília/UnB Resumo As coisas nos apresentam como real, através de fenômenos perceptivos naturais e/ou artificiais que informam ao nosso cérebro dados que apreendem o nosso corpo num ambiente. Nos valemos do pensamento sistêmico prático-teórico dos conceitos da arte, ciência e tecnologia, que fundamentam as relações experienciais dos seres vivos com elementos reais e virtuais, a natureza em simbiose com as tecnologias em espaços artísticos no contexto que denominamos ser arte cíbrida. Propomos a construção de ambientes artísticos a partir do jogo das sensações criadas por sistemas simbióticos onde orgânico e inorgânico são inoperantes um sem o outro e mutuamente dependentes. Palavras-chave: ecologia cíbrida, arte, percepção, tecnologia, sistemas vivos. Abstract Things appear to us as real, through natural and artificial perceptive phenomena, wich informs our brains data that binds our bodies in an environment. Using systemic teoretical/practical thinking and concepts from art, science and technology as a basis to understand the living beings relations with real and virtual elements, nature in simbiosis with artistic spaces and technologies in a context we consider as cybrid. Our proposition is to build artistic environments using the play of sensations created by simbiotic systems where organic and inorganic are self dependent. Keywords: cybrid ecology, art, preception, technology, living systems. Introdução À medida em que nos envolvemos cotidianamente com as tecnologias ampliamos o leque de interpretações mentais do mundo. Tais interpretações da realidade moldam o comportamento das pessoas em qualquer ambiente de forma diferente para cada um, conforme as significações essenciais 1 que damos para nós. Em geral, a sobrevivência é uma compreensão instintiva e inata da percepção da realidade. Nosso objetivo no presente artigo é descrever algumas recentes pesquisas artísticas e cientificas que abordam uma realidade conectada pelo uso das tecnologias como forma de comunicação e potencialização dos seres vivos, assim HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 como, propor uma experimentação artística que venha a possibilitar uma rede simbiótica2 entre fenômenos reais/digitais, em tempo real. A combinação da percepção de elementos orgânicos e artificiais produzidos e interpretados pela inter-relação entre máquina e seres vivos num ambiente sistêmico ecológico mutuamente dependente. Para tanto, buscamos estudar conceitos da filosofia, biologia, física, arte e computação como partes do conhecimento que contribuem para a produção, consciência e interação das sensações naturais e artificiais como um todo integrado. São pelos nossos cinco sentidos que as formas de descrever, compreender, interpretar, manipular, apreender e trocar os fenômenos 3, que compreendemos a realidade. Em geral, os sentidos são exclusividades dos seres humanos, no entanto, estamos cada vez mais transferindo para a máquina informações sobre a essência de nossos sentidos, como também de qualquer organismo vivo 4. No estudo da tecnologia da visão computacional, por exemplo, podemos construir sistemas que permitem à máquina, enxergar a detecção de eventos, informações, objetos ou ambientes constituídos na interação humano-computador (IHC). As percepções visuais dos seres vivos resultam como modelos para os sistemas computacionais operarem sob os termos dos processos fisiológicos. Portanto, os sentidos como meios através dos quais os seres vivos percebem e reconhecem outros organismos, também possibilitam a descrição de informações que permitem a máquina criar e/ou interpretar fenômenos. Nesse contexto, a percepção artificial e natural está diretamente relacionada às características do espaço em que os fenômenos se encontram, já que este necessariamente se dá pela nossa relação com o mundo. Assim, nossas interações com as tecnologias da comunicação permitem a construção de espaços dinâmicos a partir das inter-relações entre a percepção orgânica/digital e o meio ambiente. São combinações sistêmicas, interligadas e interdependentes de uma realidade conectada. A percepção de um espaço misto em que elementos orgânicos e inorgânicos coexistem e podem interagir, pode ser tanto, aquilo que é percebido HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 através de estímulos sensoriais naturais, quanto, informações digitais interpretadas pelo nosso cérebro e/ou máquina. A conexão entre a realidade que contém os objetos concretos e a virtualidade, que contém os objetos simulados, permite o surgimento segundo Peter Anders do espaço cíbrido ou, do que denominamos constituir de realidade cíbrida 5. Segundo o autor (apud KINSLEY, 2003), cíbrido é a fusão da atualidade e da virtualidade, a conexão entre a realidade que contém os objetos concretos e a virtualidade, que contém os objetos simulados. Os objetos concretos são os objetos reais, atualidade do espaço físico que habitamos, entendido como tendo três dimensões (x, y, z), constituídas por unidades básicas de existência, os átomos. Já o virtual, é relacionado ao espaço computacional e suas unidades que o compõem, os bits. Nesse caminho, partimos para a tentativa de compreender essas novas percepções da realidade experienciadas em algumas pesquisas artísticas e científicas que propõem a reflexão enquanto arte cíbrida. Arte Cíbrida A realidade em conexão com as tecnologias tem como característica, como vimos, uma nova percepção do ambiente, pelo diálogo do nosso corpo sobre o espaço, pela possibilidade de interpretar informações geradas a partir de fenômenos naturais e/ou artificiais na interação humano-computador. Assim, dados eletrônicos como essência estimulante ao nosso cérebro, pelo simples fato de existirem enquanto fenômenos perceptivos interpretados sensivelmente produz o que denominamos realidade cíbrida. Assim, os sentidos como meios através dos quais os seres vivos percebem e reconhecem outros organismos, também possibilitam a descrição de informações que permitem a máquina criar e/ou interpretar fenômenos. Essa percepção da realidade, contextualiza uma nova compreensão científica da vida em todos os níveis dos sistemas vivos tais como os organismos, sistemas sociais e ecossistemas quando associada à tentativa de recriar os fenômenos HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 biológicos em computadores em obras artísticas conduz para a formulação de uma categoria artística originária da ciberarte. A denominação ciber+arte refere-se ao uso do ciberespaço. A Ciberarte insere-se no contexto artístico o uso de tecnologias computadorizadas, resultantes das descobertas científicas da microinformática e da telemática, gerando ambientes interativos que usam a expressividade do ciberespaço, espaço de computadores pessoais ou conectados em redes (DOMINGUES, 2002, p. 59). De forma semelhante a esse conceito, a arte cíbrida, propõe a conexão da essência dos objetos concretos, do orgânico, da atualidade, dos átomos, com a essência dos objetos simulados, do inorgânico, da virtualidade, dos bits, numa realidade conectada ampliada em que se predomina o espaço físico que habitamos somada a um território cibernético de informação. Esse território pode ser entendido como um sistema informacional cibernético que compreende na comunicação entre as máquinas e os sistemas vivos, ou seja, nas informações que permitem a interação entre os elementos reais e virtuais em um espaço em que os objetos coexistem e podem interagir conectados enquanto sistema ou pela Internet. O uso das tecnologias para ampliar, simular ou criar artificialmente os sentidos vivos estabelece inter-relações sistêmicas entre o ser vivo e a máquina como práticas simbióticas que produzem novos fenômenos perceptivos interligados e interdependentes. Essa prática, sempre esteve presente na relação do ser humano e da artificialização da natureza pela técnica . Esse processo chamado de cyborgização segundo André Lemos (2009), constrói uma segunda ordem artificial, onde o ser humano não é dependente apenas do orgânico ou do instintivo. Nesse sentido, devemos compreender que o artificial sempre esteve presente por ser profundamente humano. “A formação do homem e da técnica se estabelece num processo simbiótico, onde não se sabe ao certo se o homem produz ou é produzido por ela”. Desta forma, o autor relaciona a gênese da técnica à gênese do Homem Sapiens, como uma tendência e solução universal hegemônica do processo evolutivo e zoológico da espécie humana. HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 O fenômeno técnico é a primeira característica do fenômeno humano, já que a antropogênese coincide (de forma simbiótica) com a tecnogênese. O homem não pode ser definido, antropológica e socialmente, sem a dimensão da técnica. Técnica é arte (tekhnè) de construção da vida. A técnica é então um caso específico e particular da zoologia, na medida em que o fenômeno técnico aparece como uma solução para a relação entre a matéria viva (orgânica) e a matéria inerte (inorgânica), constituindo-se como "matéria inorgânica organizada” (LEMOS, 2009). As relações entre o fenômeno técnico e o fenômeno humano possibilitam cruzamentos entre arte, ciência e tecnologia, experienciados num contexto sistêmico simbiótico de arte cíbrida. O mundo digital seco do computador mistura-se ao mundo biológico molhado dos sistemas vivos, produzindo o que Roy Ascott (2003) denomina como “mídias úmidas”. A ligação do artificial e do natural permite uma transformação na relação entre a consciência e o mundo material, relacionando pensamentos científicos transduzidos para poética e estética da arte. No estudo sobre as teorias da matéria, por exemplo, “novas concepções da física têm gerado uma profunda mudança em nossas visões de mundo; da visão de mundo mecanicista de Descartes e de Newton para uma visão holística, ecológica” (CAPRA, 2006: 24). Na holística, o mundo é concebido como um todo integrado, não como uma coleção de partes dissociadas. Já o termo ecológico é associado a uma escola filosófica fundada pelo norueguês Arne Naess em meados da década de 70, que distingue “ecologia rasa” e “ecologia profunda”: A ecologia rasa é antropocêntrica, ou centralizada no ser humano. Ela vê os seres humanos como situados acima ou fora da natureza, como a fonte de todos os valores, e atribui apenas um valor instrumental, ou de ‘uso’, à natureza. A ecologia profunda não separa os seres humanos – ou qualquer outra coisa – do meio ambiente natural. Ela vê o mundo não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes. A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como fio particular na teia da vida (CAPRA, 2006, p. 25-26). É sobre as percepções agenciadas pelos fundamentos da ecologia profunda que a arte cíbrida se insere ao reconhecer a interdependência de fenômenos naturais e artificiais encaixados em processos cíclicos numa composição ecológica. HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 A reflexão e o questionamento sobre esse paradigma com base numa perspectiva “ecocybrid”, ou seja, a partir da experiência perceptiva dos seres vivos com o uso das tecnologias, num ambiente cíbrido composto pelo misto entre real e virtual, orgânico e inorgânico de forma conectada. A conexão ao qual propomos refletir, na arte cíbrida não é somente associada a rede mundial de computadores, mas pode estar associada também a algum sistema que estipula um espaço de troca de informações. Nesse sistema, os corpos orgânico/inorgânico potencializados fundamentam o conceito denominado por Lúcia Santaella (2003) de corpo pós-biológico ou biocibernetico. O espaço artístico tornase dinâmico oferecendo novas estruturas sociais pela colaboração entre pesquisas transdisciplinares de artistas e cientistas, em contribuição à prática de uma arte planetária. Assim, percebemos que o papel da arte com as mídias úmidas contribui à criação de práticas artísticas, sobre a vida e a realidade na cultura pós-biológica, estabelecendo formas criativas de conectividade social, a serem observadas e experiênciadas a partir dos conceitos e definições da prática em ecologia cíbrida. <Body>: arte cíbrida Diante das experiências perceptivas ampliadas pela fusão entre arte e tecnologia e a partir de alguns conceitos desencadeados pela temática da arte cíbrida, desenvolvemos a instalação performática interativa denominada <Body> 6, que associa o corpo carnal e corpo de silício em tempo real. O corpo conectado a um sistema simbiótico enfatiza a experiência perceptiva a partir do conceito de computação ubíqua proposto por Mark Weiser e reafirma a biologia corpo/mente proposta por Maturana e Varela no que seria um quinto bios ou bios cíbrido (DOMINGUES; VENTURELLI, 2008), conceito ampliado de Bios Midiático de Muniz Sodré. Com o objetivo de tornar a interação humano-máquina invisível, a computação ubíqua torna imperceptível e onipresente a informática no cotidiano das HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 pessoas ao fazer uso do virtual em um ambiente físico como forma expandida, complementa a noção de Maturana e Varela, cuja a mente é situado no comportamento. Assim, o Bios cíbrido, parte do comportamento de interagir, corpo, mente e tecnologia conectados, numa performance ampliada e invisível (HAMDAN, 2009). Para a criação do trabalho, partimos do pressuposto de que a realidade é constituída a partir da fusão do mundo real com mundos virtuais, produzindo um novo ambiente em que objetos físicos e digitais coexistem e podem interagir. Na obra, o interator tem a impressão de estar vivendo num espaço onde não existe mais fronteiras entre o real e o virtual, ambos em constante continnum, pois o corpo é a interface. Com nossa pele podemos receber e transmitir informações de um ambiente, real/virtual e de certa forma, transformar parte de nosso corpo em um hardware biológico, pela interação e mistura direta e em tempo real, entre a pele digitalizada por uma webcam e imagens tridimensionais criadas no computador (HAMDAN, 2009). Figura 1: HAMDAN, Camila. <Body>, 2008. Desenho do marcador de realidade aumentada, sistema de visão computacional e projeção em tempo real na exposição. Tatuagem virtual animada sobre a superfície da pele. O público participante é simbolicamente tatuado com um marcador gráfico de realidade aumentada contendo um desenho, mapeado através do sistema de visão computacional do programa por uma webcam e projetado no espaço da instalação. HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 O sistema, ao reconhecer o marcador na pele insere sobre ele um objeto 3D que se comporta no espaço como visões animadas de tatuagens computacionais. Desta forma, como tatuagens de síntese animadas vivendo sobre a superfície da pele, <Body> relaciona-se a uma das formas de modificação do corpo mais conhecidas e cultuadas no mundo, a tatuagem. Nesse sentido, a fenomenologia da percepção estabelecida pela função cerebral do corpo em atribuir significados a partir dos estímulos sensoriais, ampliase à capacidade do reconhecimento da localização corporal espacial de qualquer parte do corpo pela conexão à tecnologia computacional em um ambiente artístico misto de instalação pela estimulação proprioceptiva. O nosso corpo orgânico em diálogo com elementos virtuais promove o sistema de biofeedback numa percepção ecocíbrida em simular o comportamento de vida, numa inter-relação simbiótica entre os fenômenos, em tempo real, que contribui para a reflexão do conceito de bios cíbrido. Nesse conceito, as partes não são apenas coisas, dados, informações reais/virtuais, orgânico/inorgânico como elementos distintos, mas interconexões entre estes, entre outras coisas e assim por diante. Trata-se, portanto, de uma complexa teia de relações e inter-relações, entre várias partes de um todo unificado que o constituem. Partimos das partes para o todo relacionando os termos ‘ecológico’ e ‘sistêmico’ como sinônimos compreendendo a forma biológica como um fluxo contínuo de matéria do organismo vivo em desenvolvimento e evolução. O pensamento sistêmico artístico A idéia do ‘pensamento sistêmico’, propõe a compreensão de um fenômeno dentro do contexto de um todo maior, e difere-se de um ‘sistema’ que significa um todo integrado cujas propriedades essenciais surgem das relações entre suas partes (CAPRA, 2006). De forma análoga, o pensamento da ‘ecologia cíbrida’, propõe a compreensão dos fenômenos produzidos nas experimentações artísticas cujas HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 propriedades essenciais do sistema entre o orgânico e o inorgânico, imagens reais e virtuais, são propriedades do todo, do ambiente, que nenhuma das partes possui isoladamente, elas surgem das interações e das relações entre as partes. Entender as coisas sistematicamente, requer contextualizá-las, assim como, estabelecer a natureza, a essência de suas relações. A produção de trabalhos sistêmicos, contextualizados no espaço artístico de interação como galerias, museus, performances urbanas em conexão com as tecnologias da rede contribui para a compreensão de um todo que não pode ser entendido pela análise de isolar alguma coisa a fim de entendê-la, pois ela sempre insere-se num contexto mais amplo, nesse caminho, nosso foco especial são as instalações interativas que requerem desenvolvimento de softwares e criam espaços físicos a serem habitados, oferecendo realidades cíbridas entre sistemas naturais e artificiais, determinando uma engenharia da condição humana para viver a expansão da vida na cibercultura (DOMINGUES, 2009, p. 275). Consideramos essas relações entre os sistemas naturais e artificiais como bases que contribuem para a compreensão de novas práticas artísticas e científicas. Assim, a simbiose dos fenômenos naturais e digitais não são práticas exclusivas dos seres humanos. Na natureza, por exemplo, os fenômenos são produzidos e interpretados especificamente conforme cada espécie e são diretamente relacionados com o processo do curso da vida do qual os seres vivos fazem parte. Esses fenômenos naturais conduzem informações como espaço, tempo e movimento entre a concepção, reprodução e morte de um organismo. Hoje, com o uso das tecnologias esses fenômenos podem ser transduzidos para os computadores no intuito de criar um sistema artificial de vida e/ou de novas formas de comunicação pela simbiose entre a natureza e a máquina. Diante disso, uma pesquisadora da Universidade de Nova York, Kate Harman, criou um sistema ecocíbrido composto por uma planta, Pothos, ligada a HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 sensores de umidade de terra conectados a uma placa de circuito. A obra, denominada Botanicalls (2008) transmite informações diretamente relacionadas com o ambiente onde está inserida. Sensores medem o nível de umidade e transmitem os dados a um microcontrolador que por sua vez, determina se os níveis de umidade são baixos demais ou altos demais e transmite um sinal à uma rede social da Internet, o Twitter7. Figura 2: HARMAN, Kate. Botanicalls,2009. Sistema composto por sensores de umidade conectados a uma placa de circuito que envia mensagens para o Twitter. Essa informação ao ser mapeada é interpretada como frases, mensagens simples como, “estou com sede”, “obrigado por me dar água” em um repertório limitado. Pothos já é acompanhada por mais de 3,3 mil usuários no Twitter8. Segundo a pesquisadora, o objetivo do trabalho é informar ao dono as situações da planta. O sistema é comercializado como kits Botanicalls ao preço de 100 dólares através de um site9 que indica as lojas virtuais que oferecem o produto. Outra pesquisa semelhante desenvolvida pela Universidade de Keio no Japão permite a planta Midori-san, escrever em um blog. Sinais elétricos são enviados a um computador para que um algoritmo os transforme automaticamente em frases inseridas a um blog escrito em japonês 10. Segundo Satoshi Kuribayashi, o objetivo do trabalho é compreender quais os sentimentos e as reações das plantas quando não estamos vendo. Dessa forma, sinais elétricos transmitidos pela HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 superfície da planta pelo ambiente como temperatura, luz e toque humano, atuam como fenômenos naturais, transduzidos em informações digitais que influenciam no conteúdo postado. Frases como “hoje está um dia ensolarado e tomei muito sol. Me diverti” e “o dia está cheio de nuvens e frio” são fenômenos naturais codificados e interpretados pela máquina a partir de uma ação humana. Essa inter-relação permite a produção de novas formas de comunicação simbiótica dos seres vivos, espécies e da máquina de forma conectada e em tempo real. Com base nos conceitos e práticas artísticas, científicas, biológicas e filosóficas apresentadas, propomos o desenvolvimento de uma obra artística que venha a contribuir para a compreensão da realidade cíbrida a partir da criação de uma instalação interativa de um sistema composto pela comunicação de fenômenos naturais, artificiais e simulados em um espaço misto conectado 11. Cybrid Cactus, busca proporcionar novas relações experienciais dos seres vivos com elementos reais e virtuais, a natureza em simbiose com as tecnologias. Convidado a interagir com a obra, o público aciona um sistema complexo composto por uma webcam, como sensor de presença que mapeia o movimento do interator no espaço através de um sistema de visão computacional utilizando a linguagem Phyton12. O ambiente será composto por um jardim de Cactos, planta típica da região do nordeste do Brasil, adicionado de marcadores de realidade aumentada em sua superfície. O interator acionará o programa de realidade aumentada a partir de sua presença no ambiente da obra que projetará sua imagem em uma parede. Imagens de plantas virtuais animadas assumirão comportamentos como forma viva sobre os marcadores em tempo real. A obra questiona a nossa visão do mundo moldada e reformulada pelas experiências perceptivas da natureza e do corpo humano ampliado pelas tecnologias. Cybrid Cactus contribui para a compreensão da realidade com base na teoria da evolução darwinista numa proposta de ecologia cíbrida, constituída pelo jogo dos sentidos, em que o orgânico e o inorgânico, os seres vivos e a máquina, são inoperantes um sem o outro e mutuamente HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 dependentes. O desenvolvimento deste trabalho é dividido em pequenos sistemas com níveis específicos de complexidade que constituirá um todo integrado. Essa metodologia ao qual propomos, embasa-se na perspectiva holística, ou pensamento sistêmico, que utiliza a maneira de pensar das partes para o todo. A organização desse processo criativo se desenvolve através do estudo dos elementos que o compõe, assim, para a obra, foram pesquisadas as tecnologias da realidade virtual, da realidade aumentada e das redes sociais na Internet. Para a concepção orgânica do ambiente, pesquisamos a classificação científica dos cactos da região subdividida em classes e espécies. Mandacaru, Palma, Coroa-de-frade são algumas das 300 espécies encontradas no Brasil das duas mil catalogadas no mundo. Algumas dessas espécies serão desterritorializadas de seu habitat natural e reterritorializadas no espaço do Museu para serem cobertas com marcadores adesivos, stickers13, que informarão ao programa, o local exato da sobreposição das plantas virtuais. Para a concepção virtual, estudamos a tecnologia da realidade virtual através da utilização de programas que possibilitam a criação tridimensional de imagens. Plantas, criaturas e organismos artificiais estão sendo modelados e animados 14. Na obra, os fenômenos serão experienciados nos níveis da realidade dos elementos reais e orgânicos, da virtualidade e da simulação em seu desdobramento para a Internet, de modo que a obra configura-se como um todo sistêmico. Dessa forma, todo o ambiente da instalação que inclui a interação do público, a disposição do jardim real com os marcadores e a sua projeção será exibida em uma rede social de compartilhamento de conteúdo ao vivo com vídeo-chat na Internet 15. Considerações finais A partir do que foi levantado nesse artigo, podemos dizer que hoje os trabalhos que recorrem as tecnologias da realidade aumentada em sistemas, HAMDAN, Camila. Ecologia Cíbrida: arte, tecnologia e sistemas vivos. In: Anais do II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, FAV/UFG, Goiânia, 2009. ISBN: 19831919 aproximam o ser vivo ao desejo de ubiqüidade e fortalecem a cultura cíbrida em práticas experimentais de comunicação. A realidade em conexão com as tecnologias tem como característica, como vimos, uma nova percepção do ambiente, pelo diálogo dos sistemas vivos sobre o espaço, pela possibilidade de interpretar informações geradas a partir de fenômenos naturais e/ou artificiais em uma interação de sistemas vivos e computador. A utilização do corpo orgânico como interface configura-se como uma possibilidade de experimentação artística. De forma a pigmentar tais reflexões abordadas, acreditamos, com bases nas experimentações artísticas e científicas descritas, que as interfaces acopladas aos seres vivos mesclarão de forma sutil, o orgânico em diálogo com o inorgânico através das estruturas sistêmicas, criando modelos criativos de espaço para a arte e para a vida. 1 Utilizamos esse conceito conforme Edmund Husserl em que a essência é captada por um ato ou intuição, análogo à percepção sensível (ABBAGNANO, Nicola, 2003). 2 Entendemos como simbiose as relações do ser humano com as tecnologias, neste caso, dos sistemas vivos, do computador e suas interfaces (ROSNAY, 1997). 3 Entendemos por fenômenos os acontecimentos, as propriedades de uma coisa, que nós experimentamos pela nossa relação com o mundo (MERLEAU-PONTY, Maurice, 1999), assim, para Edmund Husserl o fenômeno “não é só o que aparece ou se manifesta ao ser humano em condições particulares, mas aquilo que aparece ou se manifesta em si mesmo, como é em si, na sua essência” (ABBAGNANO, Nicola, 2003, p. 437). 4 Processo chamado de transdução (PLAZA, Júlio; TAVARES, Mônica, 1998). 5 HAMDAN, Camila, 2009. 6 Trabalho apresentado durante o #7. ART – Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, na exposição EnMeio, no Museu Nacional da República em Brasília/DF de 01 à 06 de outubro de 2008. 7 http://twitter.com/pothos. Acessado em mai. de 2009. 8 Informação coletada em maio de 2009. 9 http:// www.botanicalls.com. Acessado em mai. de 2009. 10 http://plant.bowls-cafe.jp/index.php. Acessado em mai. de 2009. 11 Exposição Capital Digital: Arte, Ciência e Tecnologia a ser realizada entre os dias 12 de junho à 12 de agosto de 2009 na Estação Ciência, Arte Cultura, Cabo Branco na cidade de João Pessoa/PB. 12 Programa desenvolvido por Leandro Trindade, acadêmico do Curso de Ciências da Computação da Universidade de Brasília. Bolsista PIBIC/CNPq no Laboratório de Pesquisa em Arte e Realidade Virtual. 13 Adesivos recortados em vinil autoadesivo protegido por máscara transparente que o aplicador retira depois de fixá-lo no local de destino. Há, contudo, uma subcategoria artística popularizada na década de 90 pelos grupos urbanos ingleses, denominada Sticker Art que utiliza esta técnica para transmitir uma mensagem, sentido ou manifestação. 14 Utilizamos o software de modelagem tridimensional 3Ds Studio que permite a renderização de imagens e animação. Modelagens realizadas por Roni Ribeiro, acadêmico do Curso de Artes Visuais pela Universidade de Brasília. Bolsista pela Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos/FINATEC no Laboratório de Pesquisa em Arte e Realidade Virtual, UnB. 15 A rede social chama-se Ustream tv. Criamos um Canal chamado Cybrid Cactus: Exposição Capital Digital, João Pessoa/PB em Cybrid Reality com transmissão ao vivo pelo endereço: http://www.ustream.tv/channel/cybrid-cactus-exposi %C3%A7%C3%A3o-capital-digital-jo%C3%A3o-pessoa-pb, Referências Bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 1010p. ASCOTT, Roy. Quando a onça se deita com a ovelha: a arte com mídias úmidas e a cultura pós-biológica. In: DOMINGUES, Diana (Org). Arte e Vida no Século 21: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Unesp, 2003, p.273-284. CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2006. 256 p. DOMINGUES, Diana (org) Arte, Ciência e Tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 570p. _________. Criação e Interatividade na Ciberarte. São Paulo: Experimento, 2002. 252p. _________; VENTURELLI, Suzete. Cibercomunicação Cíbrida no Continuum Virtualidade Aumentada e Realidade Aumentada: era uma vez...a realidade. Revista Ars, São Paulo, v. 1, p. 108-121, 2008. HAMDAN, Camila. Realidade Cíbrida. 2009. 120f Dissertação (Mestrado em Arte e Tecnologia) – Programa de Pós-graduação em Arte, Universidade de Brasília, Brasília, 2009. KINSLEY, Sam. Smart Mobs & Cybrid Spaces. Undergradute dissertation, University of Plymouth, Digital Art & Technology, 2003. Disponível em: http://www.samkinsley.com/? page_id=8. Acessado em dez. 2008. LEMOS, André. Cyborgização da Cultura Contemporânea. Disponível em: http://www.andrelemos.info/artigos/cap1.html . Acessado em mai. De 2009. MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 662p. PLAZA, Júlio; TAVARES, Mônica. Processos Criativos com os Meios Eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hucitec, 1998. ROSNAY, Jöel. O Homem Simbiótico: perspectivas para o terceiro milênio. Guilherme João Freitas (Trad.). Petrópolis: Vozes, 1997. 445p. SANTAELLA, Lúcia. Culturas e Artes do Pós-humano: da cultura das mídias a cibercultura. São Paulo: Ed. Paulus, 2003. 357p. * Artista Multimídia, professora do Curso de Jogos Digitais pela Universidade do Distrito Federal (UDF), mestra em Arte e Tecnologia pelo Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília (UnB), bolsista de Apoio Técnico a Pesquisa do CNPq no Laboratório de Pesquisa em Arte e Realidade Virtual da UnB sob coordenação da professora Dra. Suzete Venturelli e colaboração da professora Dra. Diana Domingues.