“NÃO TEM ESSA
LEI NO MUNDO,
RAPAZ!”
A Estação Ecológica da Terra do Meio e a resistência
dos beiradeiros do alto rio Iriri
Daniela Fernandes Alarcon e Mauricio Torres
Daniela Fernandes Alarcon e Mauricio Torres
“NÃO TEM ESSA
LEI NO MUNDO,
RAPAZ!”
A Estação Ecológica da Terra do Meio e a
resistência dos beiradeiros do alto rio Iriri
AMORA – Associação dos Moradores da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio
ISA – Instituto Socioambiental
Altamira/São Paulo, 2014
ExpEdiEntE
Pesquisa e texto:
Daniela Fernandes Alarcon
Mauricio Torres
Fotograias:
Daniela Fernandes Alarcon
Mauricio Torres
Diagramação e arte:
Vitor Flynn Paciornik
Revisão:
Natalia Ribas Guerrero
Mapas:
Mauricio Torres
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Alarcon, Daniela Fernandes
“Não tem essa lei no mundo, rapaz!” [livro
eletrônico] : a Estação Ecológica da Terra do Meio e
a resistência dos beiradeiros do alto Rio Iriri /
Daniela Fernandes Alarcon, Mauricio Torres. -São Paulo : ISA - Instituto Socioambiental ; Altamira : Amora Associação dos Moradores da Reserva Extrativista
Riozinho do Anfrísio, 2014.
18.081 Kb ; PDF.
Bibliograia
ISBN 978-85-8226-024-1
1. Áreas protegidas 2. Biodiversidade - Conservação
3. Biodiversidade - Estação Ecológica da Terra do Meio
(PA) 4. Biodiversidade - Manejo e conservação Biodiversidade - Estação Ecológica da Terra do Meio (PA)
5. Conservação da natureza 6. Ecologia 7. Educação
ambiental 8. Proteção ambiental 9. Rio Iriri (PA) Aspectos sociais I. Torres, Mauricio. II. Título.
14-12537
CDD-304.27098162
Índices para catálogo sistemático:
1. Estação Ecológica da Terra do Meio : Pará : Estado :
Biodiversidade : Ecologia 304.27098162
AMORA – ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA RESERVA EXTRATIVISTA RIOZINHO DO ANFRÍSIO
ISA – INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL
AMORERI – ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA RESERVA EXTRATIVISTA RIO IRIRI
Sumário
4
Índice de imagens
6
Índice de mapas
6
Siglas e abreviações
9
Introdução
15
1. Histórico de ocupação da área
20
1.1. O surgimento de um campesinato lorestal no Iriri
27
1.1.1. Algumas trajetórias familiares
34
1.2. As agruras dos beiradeiros
34
1.2.1. As mortes dos ilhos
36
1.2.2. Os “índios bravos”
39
1.3. O esvaziamento do beiradão
43
2. O mosaico de áreas protegidas da Terra do Meio
45
2.1. A criação do mosaico
47
2.2. De como uma futura Reserva Extrativista tornou-se Estação Ecológica
53
3. A vida dos beiradeiros na Estação Ecológica
55
3.1. As relações com o órgão gestor – Ibama e ICMBio
55
3.1.1. Uma história de violência
57
3.1.2. Restrições às atividades econômicas
61
3.2. Direitos historicamente violados
62
3.2.1. Educação
66
3.2.2. Saúde
71
3.2.3. Transporte e acesso a mercadorias
72
3.3. A saída do beiradão
74
3.4. Termo de compromisso
77
4. Perspectivas para os beiradeiros
79
4.1. Pesquisa e atuação estatal
81
4.2. Encaminhamentos para a situação territorial dos beiradeiros
83
5. Referências bibliográicas
91
6. Anexos
ÍndicE dE imagEnS
11 Imagem 1. Valdete Jerônima da Silva (Dete)
brinca com a ilha, diante de sua casa, à beira do Iriri | 2013 | Por Daniela Alarcon.
gezeichnet von Dr. Max Mayr-München
1911”) (Snethlage, 2002 [1910]).
21 Imagem 9. Gravura retratando Ernesto
12 Imagem 2. Seu José Rodrigues, conhecido
Accioly de Sousa (Coudreau, 1977 [1896]: 35).
como Doval, colono nascido no Maranhão,
22 Imagem 10. Fotograia reproduzida no re-
que vive junto ao rio Iriri | 2013 | Por Daniela
lato de viagem de Snethlage; legenda ori-
Alarcon.
ginal (português atualizado): “Manoelzinho
13 Imagem 3. Seu Pedro Araújo de Almeida,
conhecido como Pedro Brejeira, colono
e os seus companheiros, à boca do Curuá”
(Snethlage, 2002 [1910]).
nascido em Grajaú, Maranhão, que vive à
22 Imagem 11. Fotograia retratando grupo de
beira do rio Iriri | 2013 | Por Daniela Alarcon.
índios Xipaya e Kuruaya (Snethlage, 2002
14 Imagem 4. Da esq. para a dir., as irmãs Priscila da Silva Gomes e Francisca Martins da
Silva, junto a seus respectivos ilhos, no beiradão | 2013 | Por Daniela Alarcon.
17 Imagem 5. A barra do Iriri, em gravura reproduzida no relato da expedição realizada
por Henri Coudreau em 1896 (Coudreau,
1977 [1896]: 101).
18 Imagem 6. Mapa (detalhe) indicando o
percurso da expedição realizada por Karl
von den Steinen em 1884 (“Mapa especial
do rio Xingu de acordo com o levantamento e coordenadas locais do Dr. O. Clauss”);
note-se a indicação do rio Guiriri (Iriri) no
canto inferior esquerdo (Steinen, 1942,
encarte).
19 Imagem 7. Vista do Iriri, à boca do Curuá
(rio acima), em gravura reproduzida no
relato da expedição realizada por Emília
Snethlage em 1909 (Snethlage, 2002 [1910]).
20 Imagem 8. Mapa (detalhe) reproduzido no
relato de viagem de Emília Snethlage (“Iriri-Curuá-Jamanchim (Xingú-and Tapajozgebiet) nach der Routenaufnahme 1909 von
Fräulein Dr. E. Snethlage, bearbeitet und
[1910]).
23 Imagem 12. Retrato de um grupo de índias
Xipaya e Kuruaya (Snethlage, 2002 [1910]).
23 Imagem 13. Fotograia retratando casal de
índios Xipaya (Snethlage, 2002 [1910]).
24 Imagem 14. Retrato de José Porphírio de
Miranda Junior (Umbuzeiro; Umbuzeiro,
2012: 113).
27 Imagem 15. Castanhas armazenadas na
casa de seu Manoel Messias Pereira da Silva, conhecido como Manoel da Cachoeirinha, que atua como regatão no rio Iriri |
2013 | Por Daniela Alarcon.
27 Imagem 16. Abrigo temporário construído
pela família de seu José Alves Gomes da Silva (Zé Boi) e dona Cleonice Neves da Silva
próximo a seu castanhal, para uso durante
a coleta da castanha | 2013 | Por Daniela
Alarcon.
27 Imagem 17. Cujuba (em primeiro plano) e
pacu, espécies pescadas pelos beiradeiros
do rio Iriri | 2013 | Por Daniela Alarcon.
27 Imagem 18. Capivaras à beira do rio Iriri |
2013 | Por Daniela Alarcon.
27 Imagem 19. Dona Maria Raimunda Gomes
da Silva lava louça diante de casa, observada pela neta | 2013 | Por Daniela Alarcon.
59 Imagem 30. Balança outrora utilizada no
garimpo | 2013 | Por Daniela Alarcon.
62 Imagem 31. Porta de madeira fora de uso,
27 Imagem 20. Temperos cultivados no ter-
no terreiro de Benedito Silva de Castro
reiro de dona Maria das Neves Oliveira dos
(Bené), exibindo palavras escritas por sua
Santos | 2013 | Por Daniela Alarcon.
irmã Graça | 2013 | Por Daniela Alarcon.
27 Imagem 21. Fogão preparado junto ao
63 Imagens 32 a 34. Filhos de Benedito Silva
abrigo temporário construído pela família
de Castro (Bené) e Luzia Cardoso de Souza:
de seu José Alves Gomes da Silva (Zé Boi)
nunca frequentaram escola | 2013 | Por Da-
e dona Cleonice Neves da Silva próximo a
niela Alarcon.
seu castanhal | 2013 | Por Daniela Alarcon.
28 Imagem 22. Dona Maria Raimunda Gomes
da Silva | 2013 | Por Daniela Alarcon.
64 Imagem 35. Cleomar da Silva Gomes, ilha
de seu José Alves Gomes da Silva (Zé Boi)
e dona Cleonice Neves da Silva, diante da
29 Imagem 23. Seu Nazário Fernandes Castro,
casa onde vive, em Altamira; ela deixou o
na casa onde vive desde que deixou o bei-
beiradão para estudar | 2013 | Por Daniela
radão, localizada na periferia de Altamira |
Alarcon.
2013 | Por Daniela Alarcon.
64 Imagem 36. Da esq. para a dir., Joana Go-
30 Imagem 24. Luzia Cardoso de Lima, junto a
mes da Silva e Francisca Graça Gomes da
quatro de seus ilhos, no beiradão | 2013 |
Silva, ilhas de dona Maria Raimunda Go-
Por Daniela Alarcon.
mes da Silva, em Altamira, para onde se
31 Imagem 25. Família de seu José Alves Gomes da Silva (Zé Boi) e dona Cleonice Ne-
mudaram, para que seus ilhos pudessem
estudar | 2013 | Por Daniela Alarcon.
ves da Silva, em retrato tomado em 2008,
66 Imagem 37. À esq. da imagem, vê-se seu
quando ainda tinham os ilhos junto de si,
Francisco Pereira de Souza, conhecido
no beiradão | 2008 | Por Mauricio Torres.
como Chico Preto, beiradeiro que morreu
33 Imagem 26. Lourival Santos, junto a sua
casa, em meio à loresta | 2013 | Por Mauricio Torres.
36 Imagem 27. Reprodução da capa do romance O tuxaua branco: um drama na selva
amazônica, de Agenor de Oliveira Freitas;
note-se a ilustração, que representa o rapto
de uma criança branca por um indígena.
41 Imagem 28. Pôr-do-sol no alto Iriri | 2013 |
Por Daniela Alarcon.
45 Imagem 29. Castanheiras mortas, em área
grilada, à beira do rio Iriri | 2013 | Por Daniela
Alarcon.
em 2010, após passar mal e não receber
assistência médica | 2008 | Por Mauricio
Torres.
67 Imagem 38. Reprodução do abaixo-assinado entregue pelos beiradeiros do Iriri à
procuradora federal Thais Santi, em março
de 2013.
71 Imagem 39. Casa de seu Manoel Messias
Pereira da Silva, conhecido como Manoel
da Cachoeirinha, que atua como regatão
no rio Iriri | 2013 | Por Daniela Alarcon.
73 Imagem 40. Priscila da Silva Gomes, com
seu ilho; ela retornou recentemente ao
beiradão, após um período em Altamira,
51 Mapa 3. Registro toponímico de ilhas e ca-
aonde se mudou para estudar | 2013 | Por
choeiras em porção do rio Iriri na Estação
Daniela Alarcon.
Ecológica da Terra do Meio.
79 Imagem 41. Canto da cozinha de dona Ma-
52 Mapa 4. Registro toponímico de pontos de
ria Raimunda Gomes da Silva | 2013 | Por Da-
ocupação em porção do rio Iriri na Estação
niela Alarcon.
Ecológica da Terra do Meio.
79 Imagem 42. Fogão de barro na cozinha
de seu José Alves Gomes da Silva (Zé Boi)
e dona Cleonice Neves da Silva | 2013 | Por
Daniela Alarcon.
79 Imagem 43. Paneiro de cipó, na casa de seu
Pedro Araújo de Almeida, conhecido como
Pedro Brejeira | 2013 | Por Daniela Alarcon.
79 Imagem 44. Prateleiras na cozinha de dona
SiglaS E abrEviaçõES
Amora: Associação dos Moradores da Reserva
Extrativista Riozinho do Anfrísio
Maria Raimunda Gomes da Silva | 2013 | Por
APA: Área de Proteção Ambiental
Daniela Alarcon.
EsecTM: Estação Ecológica da Terra do Meio
79 Imagem 45. Detalhe da cobertura da casa
de dona Maria Raimunda Gomes da Silva,
em palha de babaçu | 2013 | Por Daniela
Alarcon.
81 Imagem 46. Dona Maria Raimunda Gomes
da Silva, em canoa no rio Iriri, à beira do
qual nasceu e onde sempre viveu | 2007 |
Por Mauricio Torres.
Flota: Floresta Estadual
Ibama: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis
ICMBio: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
IN: Instrução normativa
MMA: Ministério do Meio Ambiente
MPF: Ministério Público Federal
Parna: Parque Nacional
PL: Projeto de lei
ÍndicE dE mapaS
49 Mapa 1. Polos de ocupação ribeirinha em
Resex: Reserva Extrativista
Snuc: Sistema Nacional de Unidades de
Conservação
porção do rio Iriri na Estação Ecológica da
TC: Termo de compromisso
Terra do Meio.
TI: Terra indígena
50 Mapa 2. Moradas abandonadas na Estação
Ecológica da Terra do Meio.
UC: Unidade de conservação
UHE: Usina hidrelétrica
Introdução
O
presente livro é fruto de uma pesquisa em torno da situação fundiária dos
“beiradeiros” que vivem junto ao rio Iriri,
no interior da Estação Ecológica da Terra
do Meio (EsecTM), no Pará, realizada por
solicitação da Associação dos Moradores da
Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio
(Amora)1. A partir de diálogos com as famílias de ribeirinhos, buscou-se: 1. delinear
um histórico de ocupação da área; 2. produzir um diagnóstico da situação contemporânea do grupo, no marco do processo
de implantação da unidade de conservação
(UC), destacando as principais demandas
apresentadas pelo grupo em face do Estado; e 3. apresentar as perspectivas de futuro
engendradas por essa população. Quando
da realização da investigação, estavam em
curso negociações para a construção de um
termo de compromisso (TC) entre os ribeirinhos e o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Situada no sudoeste do estado do Pará,
na região conhecida como Terra do Meio
– assim chamada por se situar entre os rios
Xingu e Iriri –, a EsecTM foi criada pelo
Decreto s/n de 17 de fevereiro de 2005,
apresentando 3.373.133,89 ha de extensão
e abrangendo porções dos municípios de
Altamira e São Félix do Xingu. Estende-se
ao longo do rio Iriri, o maior aluente do
Xingu, no qual o primeiro deságua após percorrer cerca de 900 km, desde sua nascente,
na Serra do Cachimbo. Segundo Fávaro e
Flores, a área compreendida pela UC apresenta signiicativa diversidade de ambientes,
“a maior parte deles íntegros e bem preservados” (2009: 130). Recobrem-na, predominantemente, a Floresta Ombróila Aberta
Mista (na região norte) e a Floresta Ombróila Aberta Latifoliada (nas porções central e
sul), assim como, de forma dispersa, a Floresta Ombróila Densa (Ibid.: 115). Atualmente,
a EsecTM é habitada por um conjunto de
famílias de beiradeiros e “colonos”2, que ali
viviam antes do estabelecimento da UC.
Este livro lastreia-se em pesquisa de
campo que vem sendo desenvolvida na
região da Terra do Meio desde 2007, de
modo descontínuo e sem foco etnográi-
1. “Beiradeiro” é uma categoria
de autodeinição amplamente
empregada pelo grupo de
ribeirinhos que vive junto ao
rio Iriri.
2. Sobre o pertencimento
às categorias “colono” e
“beiradeiro” no Iriri, ver Torres,
(2008b).
Imagem 1. Valdete Jerônima da
Silva (Dete) brinca com a ilha,
diante de sua casa, à beira
do Iriri | 2013 | Por Daniela
Alarcon.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
11
3. Somos gratos ao ICMBio,
que contribuiu com parte
das despesas de transporte
e alimentação da pesquisa
de campo realizada em
março de 2013. Em especial,
agradecemos à gestora da
EsecTM, Tathiana Chaves
de Souza, que ofereceu
condições para a realização
desta invesigação. Somos
muito gratos, ainda, aos
beiradeiros e colonos que
vivem na EsecTM, que nos
acompanharam durante a
pesquisa e nos receberam em
suas casas, dividindo conosco
suas memórias, inquietações e
expectaivas.
Imagem 2. Seu José Rodrigues,
conhecido como Doval, colono
nascido no Maranhão, que vive
junto ao rio Iriri | 2013 | Por
Daniela Alarcon.
12
INTRODUçÃO
co. Referencia-se, principalmente, em dados coletados em março de 2013, durante
uma incursão pela EsecTM com aproximadamente duas semanas de duração, bem
como em fontes secundárias, coligidas e
analisadas entre março e maio do mesmo
ano. Durante este último período em campo, os pesquisadores realizaram entrevistas
(semiestruturadas e livres) com beiradeiros e colonos que vivem no interior da
EsecTM e, como se detalhará no capítulo
3, tomaram parte em reuniões envolvendo
esses grupos, representantes governamentais e outros sujeitos que participavam da
construção de um TC entre o ICMBio e as
famílias ribeirinhas3.
As informações reunidas em campo
permitem-nos compor um quadro empiricamente respaldado. No marco da pesquisa
desenvolvida desde 2007 – motivada, principalmente, por solicitações do Instituto
Socioambiental (ISA) –, foram várias as situações em que apoiamos o grupo em suas
demandas, construindo, com isso, uma rela-
ção de coniabilidade, fundamental para a
efetivação do presente trabalho. Apesar disso, deve-se atentar para as limitações desta
investigação, decorrentes das condições de
obtenção dos dados, notadamente, a breve duração do último período em campo.
Os distintos horizontes em que se situam,
de um lado, os beiradeiros, e, de outro, os
pesquisadores inviabilizam de antemão expectativas de encontrar nas falas sentidos
autoevidentes, partilhados pelos sujeitos em
interação. A interpretação dos discursos, referidos ao quadro cultural em que foram
engendrados, é fundamental e tende a se
tornar mais acurada quanto maior a permanência em campo.
Além disso, a violência a que foram submetidos os beiradeiros do Iriri no contexto
de implementação da EsecTM – mesmo que
o cenário tenha se alterado substancialmente na última gestão da UC, como se indicará ao longo deste relatório – torna ainda
mais complexas as tentativas de perscrutar
suas interpretações da realidade, de conhe-
cer suas decisões e posições no marco do
conlito territorial. Adotar um silêncio prudente ou responder conforme o que imaginam ser as expectativas de quem pergunta
são ambas estratégias de defesa que, ao que
parece, vêm sendo adotadas pelo grupo, em
um contexto em que a correlação de forças
lhe é amplamente desfavorável.
É muito recomendável, portanto, que
pesquisas etnográicas sejam levadas a cabo
junto a essa população, contemplando a
realização de entrevistas em profundidade
e observação participante. Tais pesquisas,
escusado dizer, devem prever estadas em
campo de maior duração e ser informadas
pela teoria social, sobretudo pelos desenvolvimentos recentes nos campos da antropologia, sociologia, história, geograia e
direito em torno das situações de conlito
envolvendo os assim chamados “povos e
comunidades tradicionais” ou “populações
tradicionais”.
Em relação à dupla terminologia que
pontilha este texto, é importante dizer
que nos alinhamos à crítica de autores
que apontam a inadequação da expressão
“populações tradicionais” para signiicar a
realidade dos grupos em questão (Almeida,
2008 e Barretto Filho, 2006). Em sua análise,
Almeida destaca o processo de mobilização
social que emergiu na década de 1980 e
que conigurou a ação dos povos da loresta, bem como a atuação das entidades confessionais, que terminariam por consolidar
a reivindicação do termo “comunidades”.
Ambos – “povos” e “comunidades” – seriam revestidos de uma conotação política,
ligada a um princípio de autodeinição, ausente no termo “populações”, que acabou
sendo abandonado em certos contextos. Ou,
como descreve Almeida, estaríamos diante
de um deslocamento, em que a noção de
populações tradicionais é
Imagem 3. Seu Pedro Araújo
de Almeida, conhecido como
Pedro Brejeira, colono nascido
em Grajaú, Maranhão, que
vive à beira do rio Iriri | 2013 |
Por Daniela Alarcon.
afastada mais e mais do quadro natural e
do domínio dos “sujeitos biologizados” e
acionada para designar agentes sociais, que
assim se autodeinem, isto é, que manifes-
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
13
tam consciência de sua própria condição
(2008: 38).
Quando da conclusão deste livro, a situação dos beiradeiros que habitam o interior da EsecTM encontrava-se, ainda, indeinida. Como se indicará mais adiante, em
março de 2013, reunidos com o ICMBio, os
beiradeiros aprovaram uma minuta de TC,
que seria então submetida à análise técnica
e jurídica do órgão, para aprovação. Em 4
Imagem 4. Da esq. para a
dir., as irmãs Priscila da Silva
Gomes e Francisca Marins da
Silva, junto a seus respecivos
ilhos, no beiradão | 2013 | Por
Daniela Alarcon.
14
INTRODUçÃO
de abril do mesmo ano, foi instalada, no
âmbito do Conselho Consultivo da Estação
Ecológica da Terra do Meio, a Câmara Temática de Acompanhamento dos Termos de
Compromisso e Regularização Fundiária.
Entretanto, transcorridos mais de dezoito
meses desde esses acontecimentos, não se
tem notícia de quaisquer avanços no sentido da aprovação do TC, instrumento fundamental para a garantia dos direitos dos
beiradeiros.
1. Histórico de
ocupação da área
A
partir de meados do século xix, estabeleceram-se na região banhada pelo rio
Iriri as primeiras levas de ocupantes não-índígenas, acarretando profundos impactos na
vida dos grupos indígenas que ali habitavam.
Até então, o vale do Xingu apresentava um
padrão histórico-demográico caracterizado,
muito provavelmente, pela intensa circulação de diferentes povos indígenas, dentre os
quais os Arara, que se moviam em busca de
novos locais para morada e desenvolvimento de suas atividades produtivas, bem como
para se proteger das incursões de outros povos (Teixeira-Pinto, s.d.). A existência, na
região, de prováveis lorestas antropogênicas – a ocorrência da terra-preta-de-índio
associada a babaçuais e de grandes concentrações de inajás e castanheiras – é sinal de
ocupação muito antiga, e demanda pesquisa
(Villas-Bôas et al., 2003: 47). Cacos de cerâmica também são muito abundantes na área.
Talvez o primeiro não-índio a penetrar
no Iriri tenha sido o padre Johannes Roque de Hundertpfund, que em 1750 fundou
a missão jesuítica de Tavaquara, onde hoje
se localiza a cidade de Altamira, e subiu
o Iriri, com o intento de buscar indígenas
para serem aldeados (Umbuzeiro; Umbuzeiro, 2012: 52). Já as descrições mais antigas do Iriri de que dispomos foram produzidas por viajantes que ali estiveram a
partir de meados do século xix. A 10 de
dezembro de 1842, o príncipe Adalberto da
Prússia (1811-1873), viajando pelo rio Xingu, chegou à foz do rio Iriri, a que ele se
refere também como Guiriri (2002 [1847]:
313). Originalmente, ele pretendia percorrer um trecho desse rio, para visitar
uma grande colônia de índios […], da qual
já ouvíramos falar em Sousel e que, como
tínhamos assentado, seria o destino inal
de nossa viagem (Idem)4.
Contudo, ao ser informado por um indígena de nome Carlos, que habitava na conluência dos dois rios, que aqueles índios não
mais viveriam no local imaginado, o explo-
4. Sousel é o atual município
de Senador José Porírio.
Imagem 5. A barra do Iriri,
em gravura reproduzida no
relato da expedição realizada
por Henri Coudreau em 1896
(Coudreau, 1977 [1896]: 101).
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
17
À esquerda, mostra-se o desaguamento do
Iriri; não é possível, da distância em que
estamos dele, avaliar a largura do mesmo
(1942: 322).
Baseando-se nas informações cartográicas produzidas por Von den Steinen, o francês Henri Coudreau (1859-1899) explorou
os rios Xingu e Tocantins-Araguaia, entre
30 de maio e 28 de outubro de 1896, a pedido do então governador do estado do
Pará, Lauro Sodré. Seu relato de viagem –
concluído ainda naquele ano, em Belém, e
publicado no ano seguinte, em Paris – apresenta algumas informações sobre a região,
incluindo uma breve descrição do rio Iriri.
Por trás de ilhas e pedrais, em uma foz de
difícil reconhecimento, escreveu Coudreau,
escondia-se um rio extenso e de débito
considerável, que ostentava “compridas
praias de quilômetros de extensão” (1977
[1896]: 34-35).
Imagem 6. Mapa (detalhe)
indicando o percurso da
expedição realizada por Karl
von den Steinen em 1884
(“Mapa especial do rio Xingu
de acordo com o levantamento
e coordenadas locais do Dr. O.
Clauss”); note-se a indicação
do rio Guiriri (Iriri) no canto
inferior esquerdo (Steinen,
1942, encarte).
rador alterou seus planos, seguindo viagem
pelo Xingu, sem nos legar mais informações
sobre o Iriri (Ibid.: 314-315). Acrescentou,
apenas, que se tratava de uma região envolta
“numa misteriosa escuridão” (Ibid.: 327).
Na expedição, Coudreau travou contaSó poucas expedições, visando trazer ín- to com indígenas do povo Xipaya, que se
dios para as colônias na parte inferior do distribuíam pelo Iriri e por seu principal
rio, foram até acima do Iriri; também não aluente, o Curuá, e foi informado da prese tem conhecimento de nenhuma viagem sença de índios Kuruaya, que viviam na
no Xingu desde sua nascente até sua em- margem esquerda deste último rio, e teriam
bocadura, com a única exceção da viagem sido avistados também no Iriri (Ibid.: 38de um tenente de milícias, que no ano de 39). Conheceu, ainda, José Porphírio de Mi1819 desceu este rio desde Cuiabá até Por- randa Junior, chefe político local, e Ernesto
to de Moz (Ibid.: 327-328).
Accioly de Sousa, o principal seringalista
Em outubro de 1884, o antropólogo alemão Karl von den Steinen (1855-1929), em
expedição entre Cuiabá e Belém, passou
pela boca do Iriri, o que é referido, muito
brevemente, no relato da viagem:
18
O Iriri apresenta as mesmas características
hidrológicas que o Xingu: trata-se de uma
torrente que, na estiagem, seca a ponto de
não se poder prosseguir além da primeira cachoeira senão em montarias ou ubás
grandes, e que nas cheias [,] em contrapartida, transforma-se numa considerável
massa d’água que extravasa de seu leito,
invadindo a loresta que o margeia (Ibid.:
35-36).
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
do Iriri à época, dos quais se falará mais
adiante. Note-se que, tal como Adalberto
da Prússia, Coudreau foi enfático ao indicar
o desconhecimento que pairava sobre o rio
Xingu, “cuja primeira carta cientíica não
data senão de dez anos!” (Ibid.: 136).
Entre os grandes rios que são seus aluenNas linhas que dedicou ao curso inferior
tes – o Iriri, o Bacajá Grande, o Rio Fresco do Iriri, Snethlage descreveu um rio largo,
– nenhum sequer teve a honra do mais in- repleto de ilhas e pedrais, apresentando aqui
signiicante levantamento expedito (Ibid.: e ali extensas praias, “onde agora mesmo as
136).
tracajás começavam a pôr os ovos” (Ibid.: 56).
Mencionou algumas cachoeiras fortes encontradas neste trecho, como a do Iriri Velho
e a Cachoeira Seca, assim como a do Julião,
“menos forte”, e a da Soledade, “pouco perceptível no verão” (Ibid.: 56-57). No médio
curso, até a boca do Curuá, o Iriri
Um signiicativo avanço nos conhecimentos sobre a região deve-se à naturalista
alemã Emília Snethlage (1868-1929), que,
entre junho e outubro de 1909, acompanhada de sete indígenas Kuruaya, percorreu a
pé o interlúvio Xingu-Tapajós, transpondo
de canoa trechos dos rios Iriri e Curuá5. Da
não se assemelha mais a um arquipélago,
pesquisa resultou, entre outras publicações,
mas corre num canal largo entre margens
um vocabulário comparativo dos idiomas
bem distintas e quase sempre visíveis ao
Xipaya e Kuruaya. Além disso, ela implicou
mesmo tempo (Ibid.: 57).
alterações no mapa da região, com a retiicação dos traçados dos rios Iriri, Curuá e
Já em relação ao curso superior, Snethlage
Jamanxim. Antes de sua expedição, as cartas oferece apenas informações de segunda
traziam apenas os “cursos hipotéticos” do mão, segundo as quais “até 8 dias acima da
Iriri e do Jamanxim,
boca do Curuá ainda se encontram seringais explorados” (Idem). Em seu relato, ascujas bocas foram ixadas por Coudreau sim como no de Coudreau, encontramos
e sobre as quais o mesmo autor colheu ainda informações relevantes, mesmo que
algumas informações escassas e não sem- breves, em torno do quadro socioeconômipre exatas (2002: 49, português atualizado co vislumbrado no Iriri, e que se comentará
por nós).
na próxima seção.
5. Em 1914, também em
pesquisa de campo, Snethlage
viajou novamente pelos rios
Iriri e Curuá. Entre aquele
ano e 1921, ela dirigiu o atual
Museu Paraense Emílio Goeldi;
em 1922, transferiu-se para
o Museu Nacional, no Rio de
Janeiro, ocupando a posição
de naturalista viajante. Para
informações bibliográicas
detalhadas, ver Junghans
(2009).
Imagem 7. Vista do Iriri, à
boca do Curuá (rio acima),
em gravura reproduzida no
relato da expedição realizada
por Emília Snethlage em 1909
(Snethlage, 2002 [1910]).
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
19
1.1. o SurgimEnto dE um campESinato
florEStal no iriri
A exploração da seringa nos altos cursos do
Xingu e do Tapajós, indica Weinstein, não
teve lugar nos primeiros anos da expansão
da economia da borracha.
Estes dois rios corriam através de lorestas
ricas em héveas, mas eram semeados de
corredeiras e quedas d’água que os tornavam praticamente intransitáveis (1993: 71).
Mesmo no baixo Xingu, observara Coudreau, as cachoeiras que se sucediam até a
boca do Iriri também constituíam
um sério empecilho quanto à exploração
dos produtos naturais, muito abundantes
e diversiicados, que a região apresenta
(1977 [1896]: 33).
Durante a estiagem, o baixo nível das
águas diicultava sobremaneira a navegação;
na cheia, a torrente, em certos locais, tornava-se violenta.
Mas os seringueiros, que parecem não poder recuar ante qualquer diiculdade, já se
instalaram bem acima deste péssimo trecho (Idem).
Isso porque, ainda segundo o viajante, o
Iriri apresentaria,
por detrás das margens recobertas de altas
lorestas, vastos seringais que estariam entre
os mais ricos que se conhecem (Ibid.: 35).
Foi então, na virada do século xix, que
a construção de estradas de varação, permitindo que se evitassem os trechos mais
encachoeirados dos rios, tornou os cursos
superiores do Xingu e do Tapajós “completamente integrados no negócio da borracha”
(Weinstein, 1993: 209).
À época da viagem de Coudreau, um
dia acima da cachoeira da Boca do Iriri,
situava-se a “mais importante propriedade”
daquele rio, reivindicada por Ernesto Accioly de Sousa, seringalista nascido no Ceará (1977 [1896]: 36). Conforme o viajante,
Calcula-se que seja de 70 o número total dos trabalhadores e membros de suas
famílias que vivem com Ernesto ou trabalham para ele nos seringais ou como
canoeiros (Idem).
A casa de Accioly, ainda de acordo com
Coudreau, seria “a mais importante de todo
o Xingu das cachoeiras”. Já Snethlage encontrou um rio muito mais populoso:
Imagem 8. Mapa (detalhe)
reproduzido no relato de
viagem de Emília Snethlage
(“Iriri-Curuá-Jamanchim
(Xingú-and Tapajozgebiet) nach
der Routenaufnahme 1909
von Fräulein Dr. E. Snethlage,
bearbeitet und gezeichnet von
Dr. Max Mayr-München 1911”)
(Snethlage, 2002 [1910]).
20
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
O Iriri inferior e médio hoje já estão bem
povoados. Coudreau em 1896 ouviu falar
de mais ou menos 70 habitantes civilizados
neste rio. Hoje estima-se em mais de mil
o número das pessoas ocupadas nos seringais e em casas de comércio do Iriri, e
esta comparação mostra mais que nenhum
outro fato o progresso que o desenvol-
vimento do rio fez em menos de quinze
anos. Abundam as barracas de seringueiros
nas margens e nas ilhas e a borracha que
se produz aqui tem a reputação de ser a
melhor do estado do Pará (2002: 57).
Na descrição da naturalista, Accioly
aparece como “o melhor conhecedor” do
Iriri (Ibid.: 53). O seringal Santa Julia, sob
seu domínio e situado “na margem direita
de uma ilha não muito grande, coberta de
mata quase contínua, mas pouco espessa”,
era “a mais velha e mais importante colônia
do Iriri” (Ibid.: 55)6.
A povoação consiste de algumas casas
maiores e um número de barracas cuidadosamente feitas e bem mantidas e dá uma
impressão de prosperidade e progresso,
como aliás a inteira parte colonizada dos
rios Iriri e Curuá. Acha-se aqui [,] além de
uma importante sucursal da casa Porfírio
Miranda Junior, um estaleiro pertencente
à mesma irma. Nas colinas da terra irme vizinha, acha-se ainda bastante cedro
(madeira tão necessária para a fabricação
de canoas) mas os principais seringais, a
verdadeira riqueza do Iriri-Curuá, se encontram mais acima (Idem)7.
O relato de Snethlage oferece ainda informações sobre as relações mantidas entre
os seringalistas e os indígenas que habitavam
o Iriri e o Curuá. Accioly, “usando de sua
inluência com os índios Kuruaya e Xipaya”,
recrutou entre eles guias para a expedição
da naturalista (Ibid.: 53). Ainda que os Xipaya vivessem recuados em relação à “parte
civilizada” do Iriri, havendo se estabelecido
nos altos cursos desse rio e do Curuá, alguns
atuavam como tripulantes de canoas para os
seringais. “Eles são estimados antes de tudo
como pilotos perfeitos” (Ibid.: 59). Manoelzinho, um Xipaya que vivia no Curuá e falava
bem o português, seria, segundo ela, “grande amigo dos brancos e especialmente do
coronel Ernesto e mediador dos negócios
entre os seus patrícios e esse último” (Ibid.:
59). As relações entre Manoelzinho, os demais Xipaya e os Kuruaya são descritas com
algum detalhe pela naturalista (Ibid.: 59-62).
Em sua passagem pelo Curuá, ela encontrou
alguns Xipaya e Kuruaya que haviam descido até ali para encontrar Accioly,
que costuma visitar anualmente a primeira
maloca do Curuá, a do Xipaya Manoelzinho, para trocar pérolas (miçanga), machados, facas, etc., contra as ubás que estes índios sabem fazer à perfeição e que servem
6. Baseando-se no censo de
1920, Umbuzeiro e Umbuzeiro
(2012) informam que Accioly
reivindicava as seguintes
propriedades: Santa Júlia,
Curambê, Boa Esperança,
Jaboi, Cachoeira Seca, São
Francisco, Chaú, Baú, Bomim
e Porto Alegre. Tanto o seringal
Santa Júlia, quanto o São
Francisco, situavam-se no Iriri;
a localização das demais áreas
não é mencionada (Ibid.: 107).
Note-se que o autor refere-se
a Accioly como “coronel” e
“pioneiro” do Iriri
(Ibid.: 94).
7. Tanto no relato de Snethlage,
como em outros documentos,
o nome do coronel aparece
grafado ora como Porphírio,
ora como Porírio.
Imagem 9. Gravura retratando
Ernesto Accioly de Sousa
(Coudreau, 1977 [1896]: 35).
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
21
Imagem 10. Fotograia
reproduzida no relato
de viagem de Snethlage;
legenda original (português
atualizado): “Manoelzinho e
os seus companheiros, à boca
do Curuá” (Snethlage, 2002
[1910]).
Imagem 11. Fotograia
retratando grupo de índios
Xipaya e Kuruaya (Snethlage,
2002 [1910]).
como meios de comunicação em todo o
Iriri e Curuá (Ibid.: 58).
8. Para informações
pormenorizadas sobre a
trajetória de Porphírio, ver
Weinstein (1993: 209-218) e
Cunha (2008).
22
“Até 8 dias acima da boca do Curuá ainda se encontram seringais explorados”, registrou (Ibid.: 57). Subindo o rio, vislumbrou
a “última barraca de seringueiro”, penetrando então “na região desabitada que separa
o território do senador Porphírio das terras dos índios” (Ibid.: 68). Nascido na Bahia, José Porphírio de Miranda Junior (18631932) estabeleceu-se no Xingu no início da
década de 18908. Engenheiro, seringalista e,
entre outros cargos públicos, deputado fede-
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
ral e senador pelo estado do Pará, iliado ao
Partido Republicano Paraense (PRP), foi o
principal chefe político local durante o período do carrancismo. Mudou-se para o estado a pedido de um tio, Agrário Cavalcante,
seringalista conhecido como “rei do Xingu”,
que ali se estabelecera por volta de 1880.
No relato de viagem de Coudreau, encontramos algumas alusões ao coronel, que
recebeu o explorador no início da viagem,
em sua passagem por Vitória do Xingu – à
época, Porphírio estava a cargo da construção de uma estrada interligando o médio e
o baixo curso do Xingu, volteando o gran-
Imagem 12. Retrato de um
grupo de índias Xipaya e
Kuruaya (Snethlage, 2002
[1910]).
de obstáculo representado pela cachoeira
de Vitória do Xingu (1977 [1896]: 13-14).
Como indica Weinstein, dada a importância
da estrada de varação, o controle de Porphírio sobre ela fez com que passasse a dominar a região (1993: 212).
Em um jornal de 1904, Porphírio é descrito como “dominador e imperial senhor”,
como “feudatário da região” (Folha do Norte,
16 abr. 1904, p. 1, apud Silva; Cunha, 2011: 3).
Referindo-se à década de 1910, Figueiredo
descreve as
Imagem 13. Fotograia
retratando casal de índios
Xipaya (Snethlage, 2002
[1910]).
festas elegantes no Clube José Porfírio,
onde as moças usavam como distintivo um
camafeu de ouro com a efígie do Senador
[Porphírio] (1976: 76).
Sua ascendência política na região teria
se estendido de ins do século xix à década de 1930, quando, na esteira da crise da
borracha, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde morreu. Quando de sua expedição,
localizadas no seringal Santa Júlia, como já
comenta Snethlage, Porphírio era
se indicou, no seringal São Francisco e na
intendente de Souzel e proprietário de Boca do Curuá. Conforme Figueiredo,
importantes territórios no Xingu assim
Não era apenas o comércio, porém, que
como de todos os seringais até agora exlhe sustentava a fortuna. Possuía vastas
plorados nos rios Iriri e Curuá (2002: 51)9.
áreas de castanhal e seringueiras, roças e
lavouras. Sempre ativo, multiplicava [a] viFiliais de sua casa comercial espalhavamgilância sobre seus bens, iscalizando pesse pelo beiradão – Snethlage menciona três,
9. Frise-se que, apesar da
hegemonia de Porphírio,
outros seringalistas atuavam
na área – como a própria
Snethlage registra, ao se referir
a Accioly.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
23
E se um [remador] dissesse que não ia, ele
atirava naquele e dizia: “não vai com 30,
vai com 29”. Isso é história que os velhos
contam12.
De acordo com Torres,
Os seringais, comumente, eram em terras
não reclamadas e a economia extrativista
dependeu muito mais do controle da mãode-obra que da terra (2011: 115).
Imagem 14. Retrato de José
Porphírio de Miranda Junior
(Umbuzeiro; Umbuzeiro,
2012: 113).
10. Na imprensa da época, é
possível encontrar menções
à violência praicada nos
domínios de Porphírio.
Certa ocasião, por exemplo,
o guarda-livros da casa
comercial do seringalista
teria determinado que um
seringueiro fosse amarrado
e surrado com umbigo de
boi; durante o casigo, “o
desventurado exalou o úlimo
suspiro” (Folha do Norte, 10
maio 1904, p. 1, apud Silva;
Cunha, 2011: 9). O mesmo
veículo noicia, ainda, fugas de
trabalhadores dos seringais de
Porphírio.
11. Note-se que todos os
depoimentos foram transcritos
conforme os padrões da
chamada norma culta.
12. “Não se conhece
barqueiros que tenham
envelhecido” (Umbuzeiro;
Umbuzeiro,
2012: 362).
24
Nesse quadro, a principal forma de controle – exercida por patrões locais e irmas
aviadoras, que forneciam mercadorias a crédito – não se baseava na limitação do acesso
dos seringueiros à terra, mas em mecanismos de endividamento, que derivavam em
escravidão por dívidas. Baseando-se em depoimento de Anfrísio Nunes Filho, ilho do
seringalista que deu nome ao Riozinho do
Anfrísio, sobre o qual se falará mais adiante, Weinstein menciona a existência de um
ponto na descida do Iriri conhecido como
“Paga-Contas”:
soalmente os trabalhadores de suas propriedades, tanto no Xingu como no Iriri
Esse ponto, fortemente guarnecido, repre(1976: 79).
sentava a única passagem segura para fora
da área e, como o nome indica, qualquer
Rememorando as histórias contadas por
seringueiro detido ali, em seu caminho rio
seus antepassados, alguns beiradeiros do
abaixo, que não pudesse provar que estava
Iriri caracterizam Porphírio como uma icom todas as suas contas em ordem, seria
gura autoritária e perversa10. “Diz que ele
sumariamente embarcado de volta para o
gritava, dizendo que, no Iriri, até os macaseringal – ou mandado para um destino
cos eram dele”, lembra seu Manoel Messias
ainda pior (1993: 215).
Pereira da Silva (Manoel da Cachoeirinha),
a partir dos relatos de seu avô, antigo paAliás, até hoje, a localidade na margem
trão da borracha, contemporâneo de Porphírio11. “Ele mandava dentro de Altamira. esquerda do rio Iriri, pouco a jusante da foz
Os policiais, os delegados faziam tudo que do Riozinho do Anfrísio, mantém o mesmo
ele queria, tudo era dele”, comenta seu nome e invoca dos moradores da região a
José Rodrigues, conhecido como Doval. mesma narrativa.
Admite-se comumente que, na década
“Se um trabalhasse para ele e ele não quisesse que fosse embora, nunca ia, morria de 1910, a economia da borracha entrou em
aqui.” Em certa altura do Iriri, comenta-se, decadência. Contudo, para regiões de exploainda podem ser encontradas as correntes ração relativamente tardia, como o Iriri, essa
utilizadas pelo coronel para castigar isica- explicação não se aplica de todo. Ao que
mente os trabalhadores. “Nesse tempo não parece, a chegada de trabalhadores nordestinha motor, não, era remo, barco maior tinos no alto Iriri não ocorreu no inal do
que esse aqui, de Altamira para cá”, obser- século xix e, tampouco, no assim chamado
“segundo ciclo da borracha”, já no início da
va seu Doval.
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
década de 1940. Os depoimentos registrados
em campo situam as chegadas na década de
1910, sugerindo que, conforme sustenta Weinstein (1993), os seringais ainda cresceram
depois da quebra dos grandes patrões.
Além disso, parece que os beiradeiros do
alto Iriri não realizaram “correrias”, principalmente no que diz respeito ao rapto de
mulheres indígenas – o que talvez também
se explique pelo caráter tardio da ocupação.
Teriam chegado ali, principalmente, famílias, e não homens solteiros, como se deu
em outras áreas. Note-se, contudo, que são
necessários estudos aprofundados para que
se possa eventualmente conirmar essa hipótese. Na região do Xingu, portanto, assim
como no Tapajós, a década de 1910 marca o
declínio apenas dos grandes patrões:
Os seringalistas de maior porte com grandes empreendimentos comerciais faliram e
abandonaram a terra – antigos livros do
cartório de Itaituba, onde tivemos oportunidade de realizar um amplo levantamento, enchem páginas com escrituras
de dissolução de irmas comerciais nessa
época. Mas com seringueiros e, até, com
alguns pequenos patrões e comerciantes
não foi exatamente assim. No[s] seringais
mais distantes [,] como os do Alto Xingu,
Iriri e Alto Tapajós, alguns ramos empobrecidos das famílias de pequenos donos
de seringais acabaram por icar na terra e,
até hoje, encontramos seus descendentes
(Torres, 2008c: 27).
Desenvolveu-se, assim, um tipo especíico de ocupação do beiradão, que está na
raiz do quadro observado no Iriri contemporaneamente. Após o período caracterizado pela hegemonia de Accioly e Porphírio,
o Iriri passou a ser controlado, simultaneamente, por diferentes patrões, cada qual
estendendo seu domínio por determinado
trecho do rio, mantendo-se os seringueiros
em colocações ou nas proximidades dos
barracões. Os patrões mais referidos pelos
beiradeiros do Iriri são Tiago Pereira do
Carmo, que detinha os seringais Boa Esperança (diante da vila Maribel), São Francis-
co e Yucatan; Benedito Gama, do seringal
São Jorge, localizado entre o São Francisco
e o Yucatan; e Manoel Menezes13. Geralmente inanciados por instituições como o
Banco da Amazônia, esses patrões aviavam
os seringueiros que habitavam em seu raio
de domínio14. Tiago Pereira, por exemplo,
“entre tudo, duzentos e poucos clientes ele
tinha”, lembra um beiradeiro15. Além da seringa, exploravam também a castanha-dopará. Conforme observa Weinstein,
Como a colheita de castanha-do-pará
coincidia com a estação “morta” da economia da borracha, muitas das mesmas
irmas que se especializavam na exportação da borracha, entre outubro e março,
concentravam-se no comércio da castanha,
entre março e maio (1993: 75).
A partir de certo momento, entre as
décadas de 1950 e 1960, os patrões voltaram-se também para a comercialização da
pele de animais silvestres, como maracajá,
onça-pintada, ariranha e lontra. A atividade
tornou-se conhecida como “caça ao gato” e
aqueles que a praticavam, como “gateiros”.
“Eu cacei muita onça, e ela me caça até hoje”,
conta um beiradeiro, sorrindo. Conforme o
depoimento de um ribeirinho, em uma só
noite e na mesma armadilha, chegavam a
ser capturados até cinco animais; além disso, a atividade podia ser realizada em qualquer época do ano e as peles lhes rendiam
mais que outros produtos (Villas-Bôas et al.,
2003: 95). Apesar de a caça e comercialização de animais silvestres haverem sido proibidas pelo novo Código Florestal, em 1965,
as atividades não cessaram de imediato; a
gradativa redução de compradores é que se
encarregou de pôr im às mesmas.
Já na década de 1970, o garimpo tornou-se importante fonte de renda, tanto para
os beiradeiros que atuavam diretamente
na exploração dos minérios, quanto para
aqueles envolvidos indiretamente com a
atividade, como as mulheres que atuavam
como cozinheiras no garimpo ou as famílias que vendiam farinha e outros produtos
aos garimpeiros.
13. Tiago Pereira (como é
referido pelos beiradeiros)
é vivo. Tem cerca de 80
anos de idade e mora na
sede de Altamira. Não nos
foi possível entrevistá-lo,
contudo, pois no período
da pesquisa em campo ele
estava hospitalizado. Assim,
conversamos apenas com
um de seus ilhos, Antônio. O
seringal Yucatan protagonizou
uma das maiores fraudes
fundiárias da Amazônia,
quando, após ser vendido por
Tiago Pereira à Agropecuária
Fazenda Urubu Ltda. e Kramm
Assessoria e Engenharia Ltda,
sua área (que legalmente não
poderia ultrapassar 4.356 ha)
transformou-se em 1,6 milhões
de ha. Cf. Brasil, Congresso
Nacional (2002).
14. O anigo Banco de Crédito
da Borracha, atual Banco da
Amazônia, foi criado em 1942.
15. O sistema em vigor na
exploração da borracha fazia
com que o seringueiro fosse
“cliente” de seu patrão.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
25
Os moradores do beiradão, assim, engendraram suas vidas no marco de sucessivos momentos econômicos e dos diferentes
arranjos concretos por meio dos quais estes se expressavam. Como observou Torres,
a respeito dos beiradeiros de Montanha e
Mangabal, no Tapajós:
A localização cronológica dos fatos lembrados referencia-se sempre em períodos
divididos por atividades marcantes: “no
tempo do carrancismo”, “no tempo da seringa”, “depois que os patrões foram embora”, “na época da mariscagem”, “quando começou o garimpo aqui no Tapajós”,
“depois que acabou o ouro” etc. (2014: 17).
A partir de meados da década de 1980,
os patrões do Iriri partiram em deinitivo.
Como indica Torres, a partir de diálogos
com beiradeiros do Iriri,
As atividades variam ao longo do ano de
acordo com a disponibilidade dos recursos e a sazonalidade climática. A coleta de
castanha em geral acontece de janeiro a
abril. Quando as chuvas começam a estiar,
os ribeirinhos se mudam para seus ranchos nas ilhas do rio Iriri [,] onde passam
dois meses se dedicando à pesca. Em setembro, quando os rios estão no seu limite
de seca, esses moradores voltam para a
terra irme a im de começar o preparo
de sua roça. Em geral, a queimada é feita
no inal de outubro ou início de novembro, sendo realizado o plantio logo em
seguida. No início do período chuvoso,
voltam a se dedicar mais intensamente a
[à] pesca até começar o período de coleta
da castanha. A diversiicação de sua base
de subsistência tem permitido aos ribeirinhos permanecer em sua terra numa situação de relativa autossuiciência (2003:
101-102).
Dos mais velhos, apuramos, hoje, os relaDessa maneira, a partir do empreenditos ouvidos de seus pais, de como muitos
mento
capitalista da borracha, chegou-se
patrões simplesmente desapareceram de
uma hora para a outra. Não era a terra à condição de “terra livre”, em que desque tinha valor, era a estrada de seringa pontavam as condições materiais necessáe o contingente de trabalhadores para ex- rias para a reprodução de um campesinato
liberto. Dramaticamente, com a criação da
plorá-las (2008c: 26).
16. Para uma discussão a esse
respeito, ver Torres (2011:
115-117).
17. Para informações
detalhadas sobre as espécies
vegetais culivadas e coletadas
pelos beiradeiros do Iriri, assim
como acerca das principais
espécies caçadas e pescadas,
ver Villas-Bôas et al. (2003).
26
Com a desagregação do comércio da
borracha, os seringueiros do Iriri e seus descendentes, em um processo análogo àqueles ocorridos em muitas áreas da Amazônia,
passaram a compor um segmento camponês
lorestal, cujo modo de vida ancora-se em
um conhecimento profundo da loresta e no
desenvolvimento de atividades produtivas
de impacto muito reduzido16. Com a prática
da agricultura em pequena escala (destacando-se o cultivo de mandioca), em consórcio
com a caça e a pesca (as principais fontes de
proteína) e a coleta (de frutos, como patauá,
bacaba, açaí e uxi; cipós, ervas medicinais
e palhas, como a de babaçu), os beiradeiros garantem sua subsistência, ao tempo em
que comercializam os excedentes (principalmente, castanhas e óleos de andiroba e
copaíba)17. Como explicam Villas-Bôas et al.,
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
EsecTM, como se verá, a terra que os beiradeiros haviam conquistado, enfrentando
muitas agruras, segue o caminho inverso.
Em lugar de terem seus direitos territoriais
reconhecidos pelo Estado, os beiradeiros
deixam de ser donos da terra onde vivem.
Em alguma medida, o ICMBio reassume o
papel de Porphírio: até os macacos são do
órgão. Não constitui exagero airmar que o
ICMBio é visto pelos beiradeiros – ao menos por alguns deles – como o novo patrão.
Assim, as demandas em face do órgão são
frequentemente apresentadas como pedidos
de “ajuda”, remetendo à relação com os
antigos patrões da borracha, no marco do
sistema de aviamento. As palavras com que
uma beiradeira, dona Maria Raimunda Gomes da Silva, introduziu uma demanda ao
órgão, durante uma reunião para elaboração
do TC realizada em março de 2013, servem
como exemplo: “Agora nós vivemos na
Em senido horário,
começando do canto superior
esquerdo:
Imagem 15. Castanhas
armazenadas na casa de seu
Manoel Messias Pereira da
Silva, conhecido como Manoel
da Cachoeirinha, que atua
como regatão no rio Iriri | 2013
| Por Daniela Alarcon.
Imagem 16. Abrigo temporário
construído pela família de seu
José Alves Gomes da Silva (Zé
Boi) e dona Cleonice Neves da
Silva, próximo a seu castanhal,
para uso durante a coleta da
castanha | 2013 | Por Daniela
Alarcon.
Imagem 17. Cujuba (em
primeiro plano) e pacu,
espécies pescadas pelos
beiradeiros do rio Iriri | 2013 |
Por Daniela Alarcon.
Imagem 18. Capivaras à beira
do rio Iriri | 2013 | Por Daniela
Alarcon.
Imagem 19. Dona Maria
Raimunda Gomes da Silva
lava louça diante de casa,
observada pela neta | 2013 |
Por Daniela Alarcon.
Imagem 20. Temperos
culivados no terreiro de dona
Maria das Neves Oliveira dos
Santos | 2013 | Por Daniela
Alarcon.
Imagem 21. Fogão preparado
junto ao abrigo temporário
construído pela família de seu
José Alves Gomes da Silva (Zé
Boi) e dona Cleonice Neves da
Silva, próximo a seu castanhal
| 2013 | Por Daniela Alarcon.
mão de vocês [ICMBio], é de vocês que
vamos depender para nos ajudar…”.
1.1.1. AlgumAs trAjetóriAs fAmiliAres18
Boa parte das narrativas que registramos em
campo gira em torno da ocupação contínua
das margens do rio Iriri e de seus aluentes
por gerações de beiradeiros, evidenciando
as relações entre memória, história, identidade e território, sustentados na oralidade e nos valores ligados à práxis coletiva,
como as relações de vizinhança, parentesco
e compadrio. Da análise da memória pessoal dos beiradeiros, emerge uma memória
18. Cabe registrar uma
importante ausência nas
trajetórias familiares indicadas
a seguir: a da família da viúva
Josefa Jerônimo da Silva,
conhecida como dona Zefa,
que em março de 2013 inha
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
27
60 anos de idade. Ela vive
no beiradão com seus ilhos
Aldair José da Silva (conhecido
como Ica), Valquíria Jerônimo
da Silva (Lili) e Valdete
Jerônimo da Silva (Dete); as
netas Patrícia Jerônimo da
Silva, Cauane Jerônimo da
Silva, Juliana Lopes da Silva
e Bruna Jerônimo da Silva; e
seu Evaristo Soares da Costa,
agregado, de que se falará
ainda nesta seção. Quando da
pesquisa de campo, dona Zefa
estava na cidade de Altamira,
acompanhando sua ilha Lili,
que estava prestes a ganhar
nenê. Embora tenhamos
conversado com Ica, Dete
e Patricia, não reunimos
elementos suicientes
para a elaboração de um
peril nos moldes daqueles
apresentados para os demais
núcleos familiares. Seja por
sua personalidade expansiva
e a forma desinibida como
sempre enfrentou as violências
do órgão gestor em defesa do
grupo, seja pelas tradicionais
festas (com média de três
dias de duração), ou, ainda,
por sua famosa hospitalidade,
dona Zefa é uma importante
liderança e representação
daqueles beiradeiros. Inclusive
fora da EsecTM,
em pontos longínquos do Iriri
ou no Riozinho do Anfrísio,
dona Zefa é conhecida e,
não raro, referida como
“da família”, não obstante a
inexistência de laços familiares.
Desde antes da criação da
EsecTM, ela já se marcava por
sua resistência a grileiros.
social, que compreendemos como “resistência vernacular”, isto é, como uma resistência operada por palavras, como airmação
por parte do grupo de sua pertença a uma
história, um modo de vida e um território
comuns, em um contexto de invisibilização
e expropriação (Torres, 2009: 5; Alarcon,
2013: 147-149).
Pesquisas etnográicas junto aos beiradeiros que habitam a Estação Ecológica poderiam dar a conhecer, em profundidade, o
modo como a identidade e a memória do
grupo atualizam-se no cotidiano do beiradão (na coleta de castanha, na pesca, nos roçados, em mutirões, nas visitas aos vizinhos,
em viagens ao longo do Iriri, nos namoros,
nas festas…), entrelaçando-se ao espaço social e aos tempos da loresta e do rio. Por
ora, apresentaremos sínteses das trajetórias
de algumas famílias ribeirinhas, fundamentadas nos relatos dos descendentes que seguem habitando o beiradão. Cabe notar que,
à medida que vizinhos se tornam parentes
– “andando em festa”, jovens de diferentes
pontos do rio se conhecem, se enamoram
e se casam –, as histórias dos diferentes núcleos familiares do beiradão terminam por
se entrelaçar.
Imagem 22. Dona Maria
Raimunda Gomes da Silva |
2013 | Por Daniela Alarcon.
28
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
Durante o período em campo, visitamos todas as moradas de beiradeiros localizadas no interior da EsecTM (ver mapa
1). Na ocasião, identiicamos doze núcleos
familiares, cuja composição variava de um
a nove membros, totalizando 63 moradores.
Na maioria das situações, as casas constituíam-se cada qual em torno de um casal
(ou de um cônjuge viúvo) e seus ilhos solteiros. Em dois casos apenas, encontramos
três gerações vivendo na mesma morada;
havia um único casal sem ilhos e dois beiradeiros que moravam sozinhos (um era
solteiro e outro mantinha uma casa na cidade de Altamira, onde viviam sua esposa
e ilhos); inalmente, uma casa era habitada
por dois irmãos (uma senhora viúva e seu
irmão caçula, solteiro). É comum que o
mesmo terreiro abrigue duas ou mais casas,
habitadas por diferentes núcleos familiares pertencentes à mesma família extensa
– predominava muito ligeiramente o padrão de moradia virilocal, isto é, o estabelecimento dos novos núcleos familiares na
proximidade da casa da família do cônjuge
masculino.
É importante ressaltar, contudo, que os
dados populacionais aqui apresentados estão atrelados, necessariamente, ao momento de sua coleta, demandando atualizações
constantes. O beiradão do rio Iriri caracteriza-se por frequentes deslocamentos: é
comum que indivíduos ou núcleos familiares mudem-se, temporariamente, para
diferentes pontos no interior da EsecTM
ou mesmo para outras partes, à margem
dos igarapés vizinhos ou em zonas urbanas
próximas, em razão da sazonalidade de suas
atividades produtivas ou de outras razões.
Também ocorrem seguidamente rearranjos
domésticos, associados a nascimentos, mortes, casamentos e separações, entre outros
eventos. Consequentemente, sistemas de
cadastro a serem eventualmente empregados pelo órgão gestor para registrar a
ocupação do beiradão devem ser, necessariamente, dinâmicos. A seguir, buscaremos
sintetizar algumas trajetórias familiares, baseando-nos nos relatos apresentados pelos
beiradeiros.
fAmíliA de donA mAriA rAimundA gomes
dA silvA
Dona Maria Raimunda Gomes da Silva
nasceu em setembro de 1939, na localidade conhecida como Triunfo (onde vive até
hoje), na margem direita do Iriri, ilha de
Maria do Carmo Pereira de Souza e Pedro
Damacena de Souza, mais conhecido como
Pedro Sem Rumo (“mas ele era de rumo
certo, né, porque ele me fez”). Nos “tempos muito antigos” – quando, diz-se, em Altamira só havia duas ou três casas de palha –,
a avó materna de dona Raimunda, Antonia
Cordeira de Souza, chegou à região, oriunda do Ceará. Acompanhada de um primo
de nome Raimundo, vinha “sozinha”, isto é,
sem cônjuge, e trazia consigo a ilha Maria,
“miudinha”. “Não vinha naqueles tempos
um bocado de arigó, para trabalhar para cá?
Ela veio”19.
Por im, Raimundo voltou ao Ceará,
mas Antonia permaneceu na região, sustentando-se com a venda de rendas de bilro,
ofício que aprendera em seu estado de origem. Estabeleceu-se no Entre Rios, localidade então populosa, onde o Curuá e o Iriri
encontram-se, e se casou com um homem
chamado José Furtado.
Por sua vez, o pai de dona Raimunda,
nascido em Altamira, morreu precocemente,
e sua mãe então se uniu a um homem vindo de Goiás, que viveu no Iriri até a morte.
Em um festejo de São Sebastião, dona
Raimunda começou a namorar Raimundo
Gomes da Silva, um rapaz que viera do Tapajós ainda pequeno, “dentro de um paneiro,
carregado pela Estrada do Boi, do Riozinho
[do Anfrísio], do Frizan [Nunes]”20.
Naqueles tempos, muita gente varava do
Tapajós. Os pais dele trabalhavam na Praia
[isto é, no seringal Praia de São José], para
o Frizan Nunes. Ele icou rapaz lá para
baixo [no médio curso do Iriri], aí veio
por aqui, foi passando, eu já era moça, nós
fomos crescendo...
Após dois anos de namoro, casaram-se,
na boca do Curuá, na igreja de São Sebastião.
Ele começou a cortar seringa com dez
anos, meu marido. Cortou até quando não
aguentou mais. Ele era seringueiro mesmo,
seringueiro de tirar [seringa] seis dias da
semana, e não parava. Ele cortava seringa meio verão, e meio verão era para caçar couro de gato. A gente cortava para o
Manoel Menezes e cortamos para o Jorge
Miranda, do Entre Rios.
Dona Raimunda, por sua vez, “mariscava” (pescava), extraía diversos óleos vegetais (de coco, babaçu e castanha, entre outros) e animais (de ovos de tracajá), além de
desenvolver outras atividades de produção
e cuidado. “Só não sei tirar o óleo sabe do
quê? De mamona. Porque aqui não existe.
Não vou mentir pra você.”
O casal teve 14 ilhos – dos quais, apenas
sete “se criaram”. Há cerca de dez anos, ela
icou viúva (“deu taquicardia nele”). Em
março de 2013, abrigava em sua casa o irmão caçula, solteiro. Um dos ilhos de dona
Raimunda vivia no mesmo terreiro, junto à
esposa e aos dois ilhos. Outro ilho morava
a jusante, com a esposa e três ilhos, tomando conta da Pousada Iriri, hoje desativada,
em que outrora se hospedavam turistas ai-
19. “Arigó” designa os
camponeses do Nordeste que
migraram à Amazônia para
trabalhar como seringueiros.
20. Esta estrada, até hoje,
serve aos beiradeiros do
Riozinho do Anfrísio. A
omissão do Estado permiiu
que madeireiros da região de
Trairão passassem a controlála, operando um verdadeiro
saque na UC. Para mais
informações a esse respeito,
ver Guerrero; Doblas; Torres
(2011).
Imagem 23. Seu Nazário
Fernandes Castro, na casa
onde vive desde que deixou
o beiradão, localizada na
periferia de Altamira | 2013 |
Por Daniela Alarcon.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
29
Imagem 24. Luzia Cardoso de
Lima, junto a quatro de seus
ilhos, no beiradão | 2013 | Por
Daniela Alarcon.
cionados por pesca esportiva. Um terceiro
vivia em uma aldeia próxima, casado com
uma indígena. Na sede de Altamira, viviam
duas ilhas; uma terceira está desaparecida
há alguns anos; e uma última morreu em
decorrência de complicações pós-parto. Ao
tempo em que rememora seus sofrimentos
no beiradão, dona Raimunda enfatiza:
Nunca abandonei aqui. Eu, pelo menos, não
quero sair daqui, não, só se me mandarem
embora. Se mandarem, eu vou chorando.
famÍlia dE SEu nazário fErnandES
caStro E dona dEuSarina lobato da
Silva
construíram “a casa mais bonita do Iriri”,
tão ampla, que tiveram de apanhar 1750
olhos de babaçu para cobri-la. A cada 14 de
outubro, festejavam Nossa Senhora de Nazaré. Nesse lugar, nasceriam todos os ilhos
do casal, e morreriam cinco deles.
Em meados da década de 1990, seu Nazário e dona Deusarina deixaram o beiradão.
Aguentaram aproximadamente uma década
após a saída do patrão daquele trecho do
rio, em razão da queda do preço da borracha. Viviam principalmente da castanha e
da farinha, que vendiam para garimpeiros, e
sofriam com a falta de mercadorias e com
as desvantagens das trocas com os regatões, que por ali passavam muito raramente.
Dona Deusarina lembra:
“No tempo da caçada de gato e da cortação
de seringa”, seu Nazário Fernandes Castro
Eu cansei de carregar castanha, e fui me
– nascido em Santarém em 1925, ilho de pai
desgostando. Toda melada, carregando caicearense e mãe paraense – chegou ao Iriri.
xa de castanha, para dar, a bem dizer, de
Tinha aproximadamente 15 anos de idade
graça. Quando a gente ia fazer um rancho
e se instalou no seringal Praia, trabalhan[comprar mercadorias], pronto, acabou-se
do para Anfrísio Nunes. Em 1967, casou-se
tudo. E eu tinha que mandar educar pelo
com dona Deusarina Lobato da Silva – nasmenos uma pessoa da minha família.
cida em Breves, em 1951, ela então vivia
em Altamira. Os dois subiram juntos o Iriri,
Seu Nazário, dona Deusarina e todos os
até um ponto onde não havia moradores
e “abriram” um lugar; à época, seu Nazá- ilhos eram analfabetos. Em Altamira, gario cortava seringa para Tiago Pereira. Ali, rantiram que uma ilha estudasse.
30
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
Quando da pesquisa em campo, dois ilhos do casal moravam com suas respectivas
famílias no lugar aberto pelos pais. O mais
velho, Raimundo Silva de Castro, morava
com a esposa, Adriana Andrade da Silva; o
casal não tinha ilhos. O mais novo, Benedito Silva de Castro (Bené), então com 43
anos de idade, vivia com Luzia Cardoso de
Souza, de 38 anos, natural do Tocantins, e
com os ilhos. Bené conta que, ainda menino, saía para cortar seringa, “para cima e
para baixo, sozinho e deus”, além de acompanhar o pai em caçadas. Com oito ou nove
anos de idade, “já andava caçando gato”.
O patrão daqui era o Tiago Pereira e ele
mesmo comprava a pele de gato. Dava
mais dinheiro que a seringa. O patrão
aviava o pessoal, vendia o rancho para o
pessoal caçar o gato, a ariranha, todo bicho de pele. Às vezes, nós icávamos cinco,
seis dias nesses igarapés, nos rios, caçando
gato.
Aos 13 anos, Bené começou a trabalhar
no garimpo, durante o inverno, ao passo que
cortava seringa no verão. Aos 18, deixou a
borracha, quando o patrão saiu do beiradão.
Em 2013, sua família mantinha uma linha
de roça, apenas para consumo doméstico e
para alimentar os animais de criação; além
disso, coletavam castanha, que trocavam por
víveres, junto ao regatão21. Bené sentia-se
doente, com muita dor nas pernas e nas
costas. Assim como ocorria com as demais
famílias de beiradeiros, vários de seus ilhos
mudaram-se para a cidade, para estudar.
“Antigamente, estudo de ilho aqui era na
juquira. Eu me criei burro, a mãe [Luzia],
burra... Vamos criar os ilhos burros?”22.
Em 2013, seu Nazário e dona Deusarina viviam na periferia de Altamira, na casa
que pertencera à mãe dela, tendo por renda
um salário mínimo. Haviam recebido informações desencontradas acerca da EsecTM –
pensavam, inclusive, que a área estava sendo
reconhecida como TI. Havia anos não iam
ao beiradão, mantendo com os ilhos que
lá permaneceram contatos muito esparsos.
Seu Nazário ressentia-se: “Quem abriu
aquele lugar fui eu, e agora eu não tenho
direito de entrar lá, tem que tirar licença”.
famÍlia dE SEu JoSé alvES gomES da Silva
(zé boi) E dona clEonicE nEvES da Silva
Seu José Alves Gomes da Silva, conhecido
como Zé Boi, e sua esposa, dona Cleonice
Neves da Silva (que, em 2013, tinham, respectivamente, 59 e 48 anos de idade), nasceram à beira do Iriri, ilhos de seringueiros
também naturais dali. Vivem da extração
da castanha (são conhecidos pelos vizinhos
pelo zelo com seus castanhais), para consumo da família e comercialização, bem como
da colocação de pequenas roças e da pesca,
para autoconsumo. No passado, seu Zé foi
seringueiro e gateiro. Os dois não sabem ao
certo as origens de seus avós, à exceção do
avô materno de seu Zé, que teria nascido na
Bahia. Sua avó paterna e uma tia, como se
observará em detalhes mais adiante, foram
mortas por índios Kayapó, em um ataque
ocorrido no beiradão; na mesma ocasião,
outra tia foi raptada.
Dona Cleonice nasceu alguns quilômetros abaixo de sua atual morada, em um
lugar hoje abandonado, na localidade conhecida como Ideinha. Seu Zé, por sua vez,
nasceu ainda mais a jusante. Porém, criança,
mudou-se com os pais para onde vive até
hoje. Depois que icaram viúvos, o pai de
dona Cleonice e a mãe de seu Zé casaram-se;
mais tarde, seu Zé e dona Cleonice izeram o mesmo. Tiveram quinze ilhos, todos
Imagem 25. Família de seu
José Alves Gomes da Silva (Zé
Boi) e dona Cleonice Neves da
Silva, em retrato tomado em
2008, quando ainda inham os
ilhos junto de si, no beiradão
| 2008 | Por Mauricio Torres.
21. “Linha” é uma medida
agrária não decimal de ampla
uilização na região, que
equivale a aproximadamente
0,25 ha.
22. O termo “juquira” é
empregado para designar
a vegetação que compõe
o primeiro estágio da
regeneração da loresta
em pastagens. Ela deve ser
reirada para a manutenção
dos pastos; note-se que
se trata de uma aividade
extremamente penosa.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
31
nascidos e criados no beiradão. Em 2013, o
casal tinha junto de si apenas os ilhos menores e duas ilhas casadas, que viviam com
as respectivas famílias no mesmo terreiro.
Como se verá com mais vagar no capítulo
3, o fato de o casal haver enviado diversos
ilhos à cidade, para que pudessem frequentar a escola, provocava à família intenso
sofrimento. “Esses dias, nós vínhamos pela
mata, andando e chorando, porque, como
não tem a escola, nós nos apartamos tudo”,
disse seu Zé. Muito comovida, dona Cleonice completou:
Do ano passado para cá [desde a última
safra de castanha], foi tudo embora... Hoje
em dia estamos sozinhos, foram tudo para
a rua estudar. Foi preciso a gente se separar dos ilhos, pequenos ainda. [Chorando] A gente passa [por isso], porque passa
mesmo, mas é difícil icar longe dos ilhos.
famÍlia dE dona maria daS nEvES
olivEira doS SantoS
Há mais de três décadas, dona Maria das
Neves Oliveira dos Santos, que em 2013 tinha 57 anos de idade, vive à beira do Iriri, no lugar conhecido como Limeira. “Eu
nasci lá para o rumo do Piauí.” Seus pais
trabalhavam na roça, em terras dos outros.
Com três meses, fui para o Maranhão; com
13 anos, para o rumo do Goiás [para uma
localidade no atual estado do Tocantins];
com uns 17, vim para cá.
Dona Neves chegou a Altamira junto ao
esposo, Francisco Pereira de Souza (conhecido como Chico Preto), nascido em Valença do Piauí. “Ele veio para cortar seringa”,
contou uma ilha do casal, “ele mexia com
seringa, castanha e gato”.
dos os ilhos do casal, à exceção dos dois
mais velhos, nasceram no beiradão. “Foram
criados todos aqui, nessa casinha, comendo
piranha”, lembra dona Neves, sorrindo.
A partir da década de 1980, com os patrões da seringa já bastante enfraquecidos, a
família de seu Chico Preto passou a viver
apenas das roças (de milho, arroz, mandioca, feijão); por vezes, vendiam farinha para
os vizinhos ou nos garimpos da região. Em
2002, começaram a constituir um pequeno
rebanho bovino. Devido às pressões decorrentes da implementação da EsecTM, as
poucas cabeças de gado foram inteiramente
vendidas em 2012, às pressas, em condições
bastante desfavoráveis, e a família sequer
conseguiu receber integralmente o valor
acordado na negociação.
Seu Chico Preto morreu em 2010, aos
66 anos de idade. Passando mal, foi levado de barco até o local conhecido como
Rochinha, um garimpo abandonado onde
restou uma pista de pouso em péssimas
condições; antes, contudo, que se realizasse
o resgate aéreo, faleceu. “Aí voltaram com
ele para trás, izeram o caixão e enterraram
lá na casa dele”, contou uma vizinha. “Ele
pediu: no dia em que ele morresse, era para
fazer a sepultura bem perto do curral. Aí os
ilhos izeram o gosto dele.” Em 2013, dona
Neves vivia na mesma casa, com os dois
ilhos caçulas; uma de suas ilhas, nora de
dona Raimunda, vivia junto ao esposo na
pousada desativada. Dona Neves mostrava-se, como se verá no capítulo 3, desamparada e impotente em face das transformações
impostas com a criação da EsecTM.
manoEl mESSiaS pErEira da Silva
(manoEl da cachoEirinha)
Seu Manoel da Cachoeirinha (como é mais
conhecido Manoel Messias Pereira da Silva,
por viver no lugar Cachoeirinha) nasceu
Ele veio para cá com 27 anos; veio sozi- no Ideinha, também à beira do Iriri, ilho
nho e depois foi buscar mãe. No começo, de Manoel Menezes Filho e Maria Pereira
icaram uns três anos na rua [na sede de Sérgio. Seu avô paterno, Raimundo de OliAltamira], depois vieram para cá.
veira, nasceu em Belém, na virada do século,
e se transferiu ao Xingu para “mexer com
Seu Chico trabalhou “um bocado de borracha, que dava muito dinheiro na époanos” para o seringalista Tiago Pereira. To- ca”. “Ele era um velhão baixo, forte, branco,
32
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
do cabelo afogueado. Tinha barracão e duas
lanchas grandes para levar muita carga.”
As atividades de Oliveira como patrão
de seringa foram continuadas por Manoel
Menezes Filho, seu ilho de criação e pai
de seu Manoel da Cachoeirinha. Menezes
“mexia com seringal no tempo em que tinha inanciamento do banco”, lembra seu
Manoel. “Era no tempo da castanha, seringa,
do gato – os três trabalhos que existiam
aqui eram esses.”
Dali de onde a gente morava para cá, era
dele [de Menezes]: até a extrema do Mané
Jorge, comandava ele. Se existiam 50 moradores aqui na época, esses 50 eram todos
aviados por ele, todo mundo trabalhava
para ele. Dos Araras para riba, [o patrão]
era o Tiago Pereira. Dele para ali, o Benedito Gama. Dessa área pra baixo, era
o Lourenço, ali no Entre Rios. Lá para a
boca do Riozinho, era o Frizan. Cada patrão tinha seu pessoal de mexer, trabalhar.
Hoje, apesar de muito doente, seu Evaristo
ainda trabalha na roça; seu estado demanda
cuidados, a que se dedicam as ilhas de dona
Zefa. Ele tem um ilho apenas, que não vê
há aproximadamente seis anos (“ele é jogado aí no trecho”). “Família é só eu e deus.”
“Meu torrão é uma ilha. Nasci no Xingu,
na boca do Itatá. Eu sou paraense legítimo,
Como dispunha de posses para tanto, do pé rachado”, conta. “Agora, minha mãe
Menezes desejava enviar seu Manoel para era do Maranhão e meu pai era da Paraíba.
Belém, para que estudasse. Ele, contudo, Eles vieram para cá casados já.” Quando o
não aceitou, pois não queria abandonar a pai morreu, seu Evaristo tinha três anos de
mãe, com quem vivia no beiradão (o pai idade, “era o mais caçula”. Aos doze, comemorava com outra mulher). “Tenho 54 anos çou a trabalhar. Cortando seringa aqui e ali,
e nunca saí da região”, diz, enumerando em chegou ao Iriri.
seguida os ilhos, sobrinhos e tios que foram sepultados nos cemitérios à beira do
Trabalhando, cortando seringa, passava de
Iriri. No início de 2013, era praticamente
um patrão para o outro – entendeu como
o único regatão em atividade no interior
é? Naquela época de gato – não tinha? –,
da EsecTM, já que um homem conhecido
cacei muito, no tempo em que não era
como Zeca Costa, que antes também coproibido.
merciava na área, passou a circular por ali
apenas circunstancialmente.
Para caçar, “tocava no mundo, correndo,
com uma farinhazinha, um sal”. Estradas de
seu evAristo soAres dA CostA
seringa, colocou muitas.
Há cerca de doze anos, seu Evaristo, que
em 2013 tinha 72 anos de idade, vive junE estou velhinho, que nem eu, mas se me
to à família de dona Zefa, à beira do Iriri.
disser: “bote uma estrada para mim bem
Ele chegou ao local para botar roça, com o
ali”, pode me dar um facão que eu boto
sogro de dona Zefa, e acabou icando. Dizdo jeito que quiser.
-se que era excelente rezador, pelo que é
lembrado não apenas entre os beiradeiros lourival SantoS
do Iriri, mas também entre os moradores de Junto ao furo do Limoeiro, aluente do Irioutras partes, como o Riozinho do Anfrísio. ri, vive Lourival Santos, um homem com
Imagem 26. Lourival Santos,
junto a sua casa, em meio à
loresta | 2013 | Por Mauricio
Torres.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
33
cerca de 40 anos de idade. Para chegar a
sua casa, localizada em uma área “bosqueada” (em que foram retirados apenas os cipós e alguns troncos inos, para constituir
um pequeno terreiro no meio da loresta),
é preciso transpor um largo igapó. Seu rancho, todo em palha de babaçu, tem duas
portas. Quando os seres perturbados que
o perseguem espreitam-no em uma porta,
ele sai pela outra, explica-nos. Se o acossam postando-se nas duas portas ao mesmo
tempo, ele permanece no interior da casa,
rezando. Lourival vive sozinho. Pesca, coleta e troca dias de trabalho por farinha. Às
vezes, vai às casas de seus vizinhos, remando.
“Pense num louco trabalhador. É aquele. É
um doido bom de lutar, ele”, diz um dos
beiradeiros, referindo-se à capacidade de
trabalho de Lourival e ao ainco com que
desenvolve suas atividades.
Conforme as informações apresentadas
por alguns beiradeiros, Lourival nasceu no
Iriri, mais precisamente na ilha do Limoeiro,
ilho de Luís e Josefa. Há aproximadamente
25 anos, deixou o Iriri, junto a seus familiares, mas terminou retornando, sozinho, ao
beiradão. “Quando ainda era são”, desempenhou-se como garimpeiro. Diz-se que
também passou algum tempo trabalhando
na reforma de telhados de palha – ofício
em que é muito talentoso – na vila Maribel,
antes de se estabelecer em sua atual morada,
atrás da ilha do Limoeiro.
Cumpre notar que, ainda que já vivesse ali quando da criação da EsecTM, nunca havia sido contatado pelo ICMBio. Sua
presença no beiradão foi-nos apontada incidentalmente por um morador; após visitá-lo,
reportamo-nos ao órgão gestor para chamar
a atenção para sua existência. Convidado a
participar da reunião que seria realizada no
dia seguinte para discutir o estabelecimento
do TC entre os beiradeiros que vivem no
interior da EsecTM e o órgão gestor, ele
tomou parte.
a usura dos regatões, as onças, o perigo das
cachoeiras, o pium, os “ataques” de índios.
“Sofri demais na seringa”, dizem. “Muita
tristeza passei neste beiradão.” O trabalho
exaustivo exigia “coragem” e a reiterada escassez de produtos do cotidiano, criatividade. As dores nas costas hoje lembram dona
Raimunda dos tempos em que ajudava o
esposo na lida com a borracha:
O defumador lá não tinha um bago de
coco [de ouricuri, utilizado na defumação
da borracha]. Eu subia nesse morro aqui,
com os cachorros, um facão, e o milagre
de deus. Naquele tempo, era saco de serrapilheira, de estopa. “Vamos embora, meninada, vocês vão juntando coco e eu vou
enchendo o saco.” Despejava na boca do
defumador, fazia uns três caminhos, porque eu não podia com o saco pesado. Para
comprar [isto é, para ter dinheiro], eu tirava oito, nove litros de óleo de coco babaçu.
Quebrava o coco, botava no sal, pisava de
madrugada, apurava. O que a gente ganha muito nesse beiradão é icar doendo
a coluna.
Sob o sol quente de agosto, enquanto
o esposo trabalhava nas estradas de seringa,
dona Maria pilava ovos de tracajá no terreiro (“quando era liberado”), para preparar
óleo, destinado ao consumo da família. Na
safra, quebrava quilos de castanha e despendia horas no ralo, para extrair leite e óleo.
“Ralei muita castanha. Isso rala os dedos da
gente – os meus dedos aqui eram comidos,
chegavam a ser esiapados.”
Quando demonstram seu arraigo ao beiradão, como se verá no capítulo 3, os ribeirinhos enfatizam que, resistindo às agruras,
sobrevivendo e trabalhando duramente, ali
se enraizaram. Do conjunto das falas sobre
as diiculdades no beiradão, emergem dois
temas recorrentes, de que se tratará a seguir.
1.2.1. aS mortES doS filhoS
1.2. aS agruraS doS bEiradEiroS
São recorrentes as narrativas dos beiradeiUma ieira de agruras desenrola-se nos re- ros e, sobretudo, das beiradeiras em torno
latos dos beiradeiros: o paludismo, a carên- dos esforços despendidos para que os ilhos
cia de mercadorias, as trapaças dos patrões, “se criassem”: levar a gravidez adiante, pa-
34
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
rir (com auxílio de parteira ou “sozinha e
deus”), fazer frente às muitas enfermidades
que acometiam as crianças e nutri-las. Nesse
conjunto de falas, a morte/vida dos ilhos
pode ser compreendida como epítome das
diiculdades várias de subsistir no beiradão,
bem como da tenacidade necessária para
tanto. Como exemplo, vejamos o caso de
dona Raimunda. Em três de seus 14 partos,
dona Raimunda teve o auxílio de sua avó.
Agora, os outros, fui eu e deus. Eu não
tinha parteira, que minha avó tinha morrido. Minhas ilhas eram mocinhas, não iam
pegar nenê, que eu tinha vergonha.
Em alguns partos, ela se viu absolutamente
sozinha – o esposo estava no mato e os ilhos, também. “Aí eu botava um banco, bem
embaixo de mim, botava uma esteira, quando dava as dores e...” Para ajudá-la a ter força, o esposo mandava buscar “injeções de
óleo” em Altamira, e aplicava em seu braço.
Findo o parto, ela mesma cortava o cordão
umbilical. “Eu me ajeitava devagarzinho –
já me desocupei mesmo –, aí botava o nenê
aqui do lado e cortava.” Iniciava-se, então, o
resguardo pós-parto, em que intrincadas regras deveriam ser observadas rigorosamente, pois a mulher e o bebê encontravam-se
muito vulneráveis.
tomar banho no rio. Só que nós tínhamos
resguardo de tudo. Não comíamos nada
reimoso (peixe de couro, caititu, fava, azulona, curimatá, castanha)23. Carne de gado
pode comer, que não faz mal; galinha, pacu-branco, caratingazinha, tucunaré… Nós
não varríamos a casa, não pegávamos peso,
icávamos dentro de casa fazendo assim
uma comidazinha – de longe do fogo.
23. Neste e em outros
contextos etnográicos,
alimentos considerados
“reimosos” costumam ser tabu
para mulheres paridas. Sobre a
reima, ver Peirano (1975).
O medo, mencionado no relato, devia-se ao fato de muitas beiradeiras perecerem
de complicações na gestação e no pós-parto.
Uma ilha de dona Raimunda, Maria Gomes da Silva, morreu nessas circunstâncias.
Francisca Graça Gomes da Silva, ilha de
dona Raimunda, conta:
Minha irmã saiu gestante, ela era casada,
e a criança dela morreu dentro da barriga. Ela teve a criança, mas… deu infecção
e ela morreu. Não tinha posto de saúde.
Nesse tempo, meu pai cortava [seringa]
para o senhor Jorge Miranda, mas eles lá
não deram recurso. Porque se tivesse recurso… Se tivesse um avião ou mesmo um
barco… Porque ela passou 22 dias… Dia 23
de janeiro, ela faleceu. Ela ganhou neném
e passou esse tempo todinho…
Mesmo quando afastadas as ameaças sobre a vida da mãe, restavam os riscos para a
Quando eu tinha [ilhos], de primeiro, eu e criança. “Quando inteira um mês em diante,
meu marido criávamos muita galinha, para o resguardo é só do nenê, porque ele mama,
quando do resguardo. Nós não tínhamos né? O que você comer, sai no leite.” Dos
negócio de panozinho comprado. Nós 14 ilhos de dona Raimunda, “um bocado
fazíamos de saia velha, rasgávamos, cozi- morreu” – seis, ainda pequenos.
nhávamos, engomávamos... mosquiteiro
Passei muita tristeza mais meus ilhos aqui
velho... que, naquele tempo, a gente não
neste lugar, muita tristeza. Todos os ilhos
tinha essas coisas. A gente pedia para as
meus
morriam. Quando nascia, com um
amigas roupa velha rasgada, pano. Aí era
mês, dois meses… Eu icava naquele sofriassim: a gente passava três dias sem levanmento. Teve um tempo em que morreram
tar da cama, só sentadinha assim de banda,
dois [ilhos] num dia. Morreu um e eu
com medo – nós tínhamos medo. Com
de resguardo do outro. Aquela tosse brava
oito dias, fazia aquele banho de asseio, de
pegou a meninazinha, desse tamanho, e o
[entrecasca de] cajueiro, tomava aquele banenezinho, desse tamanho. Eu não sabia
nho, meio quebrada a frieza. Com dez dias,
se acudia um ou se acudia outro. Aquela
de manhã, uma hora dessas cedo, a gente
tosse – sabe? – tosse de guariba. Aquela
amarrava um pano na cabeça, para protetosse que tosse até quando morre. O Mager do sol forte – eu era desse jeito – e ia
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
35
noelzinho morreu à 1h da madrugada e
a Alice, a meninazinha, às 5h30 da tarde.
São enterrados nos Taperas. Morria assim.
Ninguém tinha condição de baixar para
Altamira; ninguém tinha condição de saber
remédio, remédio era do mato.
Imagem 27. Reprodução da
capa do romance O tuxaua
branco: um drama na selva
amazônica, de Agenor de
Oliveira Freitas; note-se a
ilustração, que representa o
rapto de uma criança branca
por um indígena.
Benedito, ajude a sair homem, e ajude que
eu crie, que o nome dele vai ser Benedito
e o senhor vai ser padrinho de crisma do
meu ilho”. Aí deu certo que ele nasceu,
mas eu sofri muito, assim mesmo, para
criá-lo. Era doentinho, o bichinho... Eu
só vivia rezando, para cima e para baixo,
atrás de rezador. Ele andava morrendo e
vivendo.
Nos arredores das casas dos beiradeiros,
muitos “anjos” foram sepultados. “Eu tenho
ilho enterrado em todo canto”, diz dona
Não dispomos de dados quantitativos
Raimunda. Fazer com que os ilhos vingassem parecia-lhe tão difícil que, a certa altu- acerca da mortalidade infantil entre os beiradeiros do Iriri. Pode-se imaginar, contudo,
ra, ela solicitou intervenção divina.
que sejam índices semelhantes àqueles reEu saí buchuda e pensava que era mulher. gistrados no vizinho Riozinho do Anfrísio,
Aí eu me peguei com São Benedito: “São onde, no inal de 2010, foram identiicadas
“taxas alarmantes de mortalidade infantil” (Guerrero; Doblas; Torres, 2011: 43-45).
Caso a criança vingasse, enfrentaria outros
riscos e diiculdades ao longo de sua vida
no beiradão. Na percepção dos beiradeiros,
o maior deles, até alguns anos atrás, eram
os “índios bravos”, de que se falará a seguir.
1.2.2. os “índios brAvos”
Quando, em 1937, os missionários Eurico
Kräutler (posteriormente, bispo de Altamira)
e Otto Jutz visitaram os Mebêngôkre
(Kayapó) do rio Fresco, nas imediações
do povoado de Nova Olinda, ao sul de
São Félix do Xingu, encontraram entre
os indígenas uma não-índia, que “chorava
copiosamente” (Kräutler, 1979: 42).
Chamava-se Madalena. Estava contando
que há [havia] onze anos fora sequestrada
no Iriri pelos índios caiapós, que mataram
seu marido com uma borduna (Idem).
Em 1940, informa o padre, os Kuben-Kran-Krên (um subgrupo Kayapó), que
viviam no Riozinho, aluente do Fresco,
também mantinham “prisioneiros do Iriri”
(Ibid.: 159). Índios e seringueiros travavam,
aos olhos do religioso, uma “guerra-mirim”,
que, espraiando-se pelo Xingu, “já chegava às povoações do Iriri” (Ibid.: 180). Nesse
contexto, uma expedição punitiva contra os
Kayapó, levada a cabo por um grupo de 18
seringueiros, sob o comando de um índio
36
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
Xipaya, empreendeu a libertação de uma
não-índia tornada cativa (Ibid.: 181).
Entre os beiradeiros do Iriri, persistem
narrativas carregadas de dramaticidade sobre a “ameaça” dos índios, os recados sinistros deixados nas estradas de seringa, os
“ataques”, o assassinato de seringueiros, o
rapto de crianças e mulheres e, de modo
mais circunscrito, sobre as expedições punitivas organizadas por não-índios.
Quando da passagem de Coudreau, os
seringueiros do Xingu, “por receio aos índios ‘bravos’”, erguiam suas choças em ilhas
(1977 [1896]: 29). O “medo” dos índios pairava também sobre a expedição. “E é em
razão de todas essas histórias tranquilizadoras”, ironizou Coudreau, “que vim para
esta viagem no Xingu munido de uma formidável ‘artilharia’: nove riles e dois fuzis
de caça” (Ibid.: 37)24.
Note-se que as “imagens de violência e
terror” associadas aos indígenas habitantes
do vale do Xingu não se encontram apenas nos relatos de viajantes, mas também
em documentos produzidos pelo poder público e mesmo na literatura antropológica
(Teixeira-Pinto, s.d.). Nas memórias de seringueiros dos rios Xingu e Iriri reunidas
por Emerique, as menções aos ataques dos
índios e a sua índole “traiçoeira” são recorrentes (2009: passim). Entrevistada pela
pesquisadora, dona Antônia Macieira Soares,
ilha e esposa de seringueiros nascida em
1939 na ilha do Coco, no rio Iriri, descreveu o estado de alerta em que viviam os
beiradeiros:
va seringa, quando ela, em casa, percebeu
a presença dos indígenas (“estou sentindo
que tem três caboclos bem perto de nós”,
pensou)26. Transcorridas décadas, dona Raimunda apresenta uma descrição vívida: era
uma madrugada de agosto, no ápice do verão, e ela vestia uma saia listrada que comprara “de uns italianos que andavam pelo
rio”, quando ouviu os cachorros latindo
no terreiro. Os índios aproximavam-se, pela
mata, e ela se pôs a rezar (“deus pode mais
que o demônio”, disse). As crianças choravam e ela mandou se calarem. A espingarda
não funcionou. Então, dona Raimunda blefou: chamou o marido ausente, em voz alta,
pedindo que fosse ao terreiro ver o que se
passava. Nisso, os índios fugiram. “Eu estava
me tremendo as carnes, que nem quando
salga peixe. Que eu estava buchuda [grávida]. Eu não estava tanto com medo por
mim [mas pelo ilho].”
Seu Nazário lembra-se que os índios faziam tocaias atrás de tocos de árvores, tapavam estradas de seringa ou deixavam ali
recados sinistros.
Quando eu cheguei, de bravo, os índios
mexiam com todos os companheiros meus.
Se eles botassem uma cruz na estrada
de um hoje, amanhã ele podia ir que ia
morrer27.
“Se derrubasse a cruz, eles matavam”,
diz28. Seu Nazário nunca encontrou, em
suas estradas de seringa, as tais cruzes.
Porque eles diziam que eu era feiticeiro.
Quando moravam muitas famílias num só
Eles diziam: ‘Cubenete feiticeiro’. Cubelugar, nunca deixavam as famílias sozinhas
nete era eu.
em casa ou seus barracos sozinhos, geralmente icava um homem denominado
Ele diz não saber por que os índios tide barraqueiro para vigiar as famílias e a nham medo dele. Segundo os beiradeiros,
casa do seringueiro. Se os índios atacassem, isso ocorria com alguns não-índios. “A vovó,
morria todo mundo (Ibid.: 51).
mãe da mamãe, era boa para índio – índio
tinha medo dela, né?”, conta seu Zé Boi.
“Aqui andava muito índio do [rio] Baú,
Gaiapozão, do beição aqui, da gamelona, da
orelhona furada”, contou-nos dona Raimunda25. “Rapaz, eu briguei com índio, só
eu e deus.” Certa feita, seu marido corta-
Eu não sei se era reza... Ela tinha um [revólver] 44: quando ela lavava roupa, ela
botava lá na tábua, encostado.
24. Em outra passagem,
referindo-se a alguns Juruna
que estariam perambulando
pela região, “pilhando e
matando para se vingarem de
injusiças imaginadas ou reais
que os civilizados lhes teriam
feito”, Coudreau foi igualmente
belicoso: “Não lhes quero mal
algum, mas seria bom que
evitassem enviar-nos suas
lechas, porque neste caso,
como diria o outro, os riles
vão começar a airar sozinhos”
(1977 [1896]: 51).
25. “Gaiapó” é o termo
empregado pelos beiradeiros
para se referir ao povo Kayapó.
Na citação, dona Raimunda
alude a um conjunto de
caracterísicas diacríicas, isto
é, marcadoras da idenidade
étnica dos indígenas, como,
por exemplo, os botoques
labiais.
26. “Caboclo” é um termo com
várias acepções, geralmente
pejoraivas, empregado por
não-índios de diferentes
regiões do Brasil para se referir
aos indígenas; trata-se de uma
categoria social engendrada
pelo contato interétnico
(Cardoso de Oliveira, 1976a: 9).
Em Nunes Neto, um diálogo
imaginado entre Anfrísio
Nunes e um primo recémchegado do Sergipe alude
aos “cabocos”: “Essas balas
vão durar muito. É arma de
guerra, não serve para caça,
só para caboco, e ninguém
anda matando caboco todo
dia. Aliás, se depender de
mim, nunca”, diz Anfrísio.
“Caboco?”, indaga o primo.
“É como chamamos por aqui
índio brabo” (2003: 53).Em
oposição aos “índios bravos”,
iguram os “mansos” – de um
lado, os temidos Kayapó, e,
de outro, os Xipaya e Kuruaya
(para um exemplo dessa
dicotomia, ver Kräutler, 1979:
180). Sabe-se que, a
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
37
parir da década de 1950,
ocorreram encontros entre
gateiros e seringueiros do Iriri
e indígenas Arara (TeixeiraPinto, 1998); contudo, eles não
foram mencionados por nossos
interlocutores em campo.
27. O termo “bravo” é
empregado pelos beiradeiros,
em oposição a “manso”, para
designar o seringueiro vindo
de fora, recém-chegado, ainda
pouco acostumado com a vida
no novo contexto.
28. Um seringueiro do Xingu
ouvido por Emerique, seu
Lucimar Alves dos Santos, fez
um relato muito semelhante:
“Achei muito vesígio de
índio, mas nunca topei com
eles. Mesmo com medo eu ia
para a estrada [de seringa].
O índio fazia tapagem na
minha estrada [,] que era
como se fosse uma trança.
Meu pai dizia que quando
eu encontrasse vesígio, não
era para desfazer a trança,
então eu passava por baixo
dela e quando eu voltava no
outro dia, já não havia mais a
tapagem” (2009: 54).
29. A análise de Marins sobre
os raptos perpetrados por
indígenas em fronteiras étnicas
corrobora a predominância de
mulheres e crianças dentre as
víimas
(2009: 48).
30. Não ideniicamos o
informante, pois, ainda que
não esivesse diretamente
implicado nas narraivas e que
tampouco indicasse os nomes
de sujeitos que houvessem
praicado violência contra
indígenas, ele manifestou-nos
receio de contar essas histórias
diante de um gravador.
38
Ainda assim, o medo prevalecia, como
indica seu Nazário:
Naquela época, sabe como era? Eu estou
com essa mulherzinha aqui, né? Para eu
sair de casa, tinha que dar um cheiro nela,
abraçar, se despedir. Porque sabia que ia,
mas não sabia se voltava. Se ela estava lá
no jirau, eu estava sentado ali com o rile
com bala na agulha.
Em suas incursões na região, os índios
buscariam tomar para si “roças, armas, mulheres e curumins, que os caiapós chamam
de meprires” (Nunes Netto, 2003: 123)29.
Conforme o relato de alguns ribeirinhos,
a esposa de uma das lideranças da TI Baú,
Ana Lúcia, foi “roubada” no Iriri. O mesmo
ocorreu com a tia paterna de seu Zé Boi,
Isaura – na ocasião, a mãe de Isaura e sua
irmã mais nova foram mortas. Como observou Martins, “não raro, o raptado é o que
não foi morto num ataque em que outras
pessoas o foram, frequentemente membros
de sua família” (2009: 31). Baseando-se em
relatos de seu pai, seu Zé Boi reconstituiu
os acontecimentos em detalhes (vale transcrever toda a sequência):
ilho, quem tem de vocês coragem para arrancar essa lança para eu não morrer com
essa lança atravessada?”. Diz que o papai
falou assim: “Ô, mãe, agora sim... que eu
não tenho coragem”. O outro também falou: “Eu não tenho”. Aí o outro chegou:
“Eu tenho, mãe, para a senhora não morrer
com essa lança dentro, eu vou tirar”. Diz
que arrancou... papai diz que veio tudo de
dentro. Aí ela morreu. A menina maiorzinha tinha caído dentro do buraco da fornalha, eles pegaram e levaram. O nome
dela é Isaura. Quando passou um bocado
de ano, [os índios] desceram para a cidade.
Eram o Domin e o Dominó, os ilhos da
Isaura. Quando chegou em Altamira, ela
falou que era parente de João Martins, Ingrácio – eram os irmãos dela –, que ela
caiu no buraco da fornalha, que furaram a
mãe dela… Eu ia dar benção para ela em
Altamira, agora ela morreu.
Bené Castro tinha aproximadamente
seis anos de idade quando um conhecido,
chamado Atanásio, encontrou-se com os índios. Era 1976 e, a essa altura, os Kayapó
“ainda eram bravos”. “Eles tinham raiva de
quem caçava gato; se eles pegassem, não
escapava, não”, comentou. Atanásio subia o
Papai e dois irmãos dele saíram para tirar rio, que não conhecia bem, caçando ariraaçaí. Ela [a avó] disse que tudo bem, que nhas e onças.
ela icava sozinha, e eles acharam bom ir
Quando chegou bem um dia, tarde da noios três, porque já estavam com medo dos
te, ele chegou a uma ilha e não sabia que
índios mesmo. [O pai de seu Zé havia sido
a aldeia era bem de frente. De manhã, maperseguido por um Kayapó e escapou por
taram ele, de pau.
pouco.] Um debulhava [o açaí], outro icava com o rile na mão. Papai era o mais
Dona Raimunda recorda dois não-ínvelho, aí, quando foi de longe, ele escutou
ela gemendo. E pensou: “Mamãe já está dios assassinados a bala, por indígenas: Macom dor de cabeça, mamãe não para a dor noel Pereira foi morto no local conhecido
de cabeça, já está gemendo”. Quando che- como Trempe, enquanto cortava seringa, e
garam, que olharam, estava ela na beira do Vilanova, na boca do igarapé do Bala, enrio, em cima da tábua, com a lança atra- quanto caçava. Episódios como esses, obvessada, saída do outro lado. A mãe dele. servam os beiradeiros, podiam desencadear
Estava atravessada com a lança. E a meni- vendetas. “Os índios matavam muito crisnazinha na mão, a meninazinha dela morta, tão [não-índio], aí os cristãos se reuniam,
que eles mataram, a mesma meninazinha no seringal e…”, disse-nos um morador do
dela. Diz que ela olhou para um e olhou Iriri, sem concluir a frase30. Alguns homens,
para o outro – ela ainda estava viva, tre- segundo ele, eram conhecidos por sua habimendo. Aí diz que ela gritou assim: “Meu lidade na identiicação de “rastros de índio”,
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
orientando os não-índios que saíam em seu
encalço.
Era índio demais aqui. Só que depois que
o Antônio Meirelles domou eles, amansou eles – domou, né? –, deus parece que
é meio justo, deu uma malária neles tão
grande, com catapora e sarampo. Aí o
índio ia para a beira do fogo, tremendo
de frio e, quando saía, caía dentro d’água.
Quando saía, aquele ali já era, estava estuporado. Aí morreu quase tudo31.
Recentemente, esse beiradeiro conversava com um indígena da TI Baú, com aproximadamente a mesma idade que ele. Na
ocasião, o indígena teria lhe contado dos
conlitos entre índios e não-índios, conforme narrados por seu pai – eram os mesmos que o beiradeiro ouvira de seu próprio
pai, mas da perspectiva contrária. Descrever
e analisar o complexo sistema interétnico
(Cardoso de Oliveira, 1976b) que se desenvolveu no alto Iriri extrapola o escopo deste texto. Cabe apenas enfatizar, com Martins,
que o “desencontro étnico” que caracteriza
a frente de expansão excede a situação de
contato propriamente dita, reverberando
por gerações e estabelecendo marcas profundas na “cultura peculiar” engendrada
nesses contextos (2009: 25-26). Contemporaneamente, de um lado, os ribeirinhos
que habitam a Estação Ecológica recorrem
às narrativas em torno dos “índios bravos”
para caracterizar sua resistência no beiradão – marcada, em sua perspectiva, por sofrimentos de toda ordem –, assim como seu
direito de ali permanecer. De outro, como
se verá no capítulo 3, a iniquidade na garantia de direitos de índios e não-índios que
vivem na região tem originado, em ambos
os grupos, novas conjecturas sobre a alteridade e os limites do humano (Ibid.: 32).
tinha rezador; hoje, só seu Evaristo, e ele
está muito doente”. As festas, outrora numerosas e animadas, realizadas em dias santos e aniversários, praticamente cessaram, e
são apresentadas como contundente sinal do
ocaso do beiradão. “Lá perto da Zefa tinha
muita festa, morava muita gente ali. [Com
a voz sumindo] Agora não, foi todo mundo
embora”, observa Marlene dos Santos Souza, ilha de dona das Neves. No barracão
de Manoel Menezes, pai de seu Manoel da
Cachoeirinha, “festa boa era a de são Domingos”, comemorada em 4 de agosto. Seu
Manoel lembra:
Ave Maria, quando tinha festa no barracão, vinha todo mundo.Vinha até padre de
Altamira, fazer casamento, fazer batizado,
tirar aquele terço. Matava boi, matava porco, galinha. Fazia aquele almocinho, aquela
festa.
O Entre Rios, como é conhecida a foz
do rio Curuá no Iriri, lembra dona Raimunda, era animado.
Tinha festa, nós dançava era demais ali.
Agora não tem mais nada. Acabou o pessoal – como é que vai ter festa mais, meu
querido?
A não ser por ocasionais comemorações
de aniversário, o único festejo de que os
beiradeiros do Iriri participam hoje é a festa
de São Sebastião realizada anualmente, em
janeiro, na aldeia Tucayá, localizada na TI
Xipaya. São nove noites de terço, o mastro
é levantado e a bandeira do santo, carregada em uma pequena procissão; há comida,
bebida e o “capitão” (o festeiro de turno)
se encarrega dos preparativos. É provável
que lertes e namoros ainda surjam na festa. “Mas”, conclui dona Raimunda, “não é
como era de primeiro”.
1.3. o esvAziAmento do beirAdão
Filho e neto de patrões da borracha do
O beiradão está se esvaziando, enfatizaram Iriri, seu Manoel da Cachoeirinha recorre à
todos os ribeirinhos entrevistados, sem ex- igura do barracão para contrapor os velhos
ceção. “Aqui não tem mais ninguém, não.” e os novos tempos. E lamenta não dispo“Aqui tinha muita parteira; hoje só existe rem, na época em que a seringa lorescia, de
uma e nem sei se ela pega menino.” “Antes meios para tirar fotograias.
31. Antônio Accioly Meirelles
foi um dos principais patrões
da borracha do Iriri, sobrinho
e herdeiro de Ernesto Accioly.
Ainda que um dos seringais
de Antônio Meirelles se
localizasse no território dos
Mekragnoire, o beiradeiro
entrevistado provavelmente
referia-se, no trecho citado, ao
sertanista Francisco Meirelles
(1908-1973), do Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), que
atuou na “paciicação” dos
Kayapó, entre outros grupos.
Para um peril biográico
romanceado de Antônio
Meirelles, ver Nunes Neto
(2003: 121-130); sobre
Francisco Meirelles, ver Freire
(2008). “Foi deus que mandou
esse homem para amansar
os índios”, comentou dona
Raimunda. “Se não fosse ele,
não inha mais ninguém nesse
rio, não – como é que ia ter?”
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
39
Ave Maria, dona menina, isso aí era movimentado que… Só nós que vimos! Os
comércios aqui, do Entre Rios, Benedito
Gama, Tiago Pereira, eram comércios sortidos, igualmente aqueles supermercados,
aqueles armazéns em Altamira, empilhados de caixas. De tudo, tinha. Tudo, tudo,
tudo. Quer dizer que não era mercadoriazinha pouca, não. Era fartura mesmo.
Gente! Em todo barracão tinha um colegiozinho. Tinha igreja, toda arrumadinha,
toda na tábua, na telha, assoalhadinho no
jeito. O barracão era todo na tábua, todo
bem feitinho. Em volta do barracão tinha
as casas dos moradores, às vezes tinha cinco, seis. Aqui, praticamente, hoje está tudo
acabado. Esse rio, só nós que vimos, para
contar a história dele.
Quando se procede a um levantamento
das moradas antigas, hoje abandonadas (ver
mapa 2), é possível perceber que não estamos em face de distorções operadas pela
nostalgia: de fato, o beiradão vem se esvaziando, em ritmo acelerado. Das entrevistas
com os ribeirinhos, emergem o que seriam
as principais razões da saída dos moradores,
que poderíamos reunir, grosso modo, em
três grandes grupos: as decorrentes do declínio da borracha, as associadas às pressões
da grilagem de terras e aquelas decorrentes da criação da EsecTM. Em relação ao
primeiro elenco de causas, dona Raimunda
sintetiza:
Uns diziam que estavam saindo porque
não tinham condições de viver, porque a
borracha acabou. Hoje, não tem a seringa;
daqui que chegue a castanha para você
quebrar... Aí foram desistindo. Uns foram
morrendo, outros foram embora... Regatão acabou, porque acabou a borracha.
Ficou muito difícil, aqui passavam muita
diiculdade, e foram se desgostando.
A saída dos patrões não apenas deixou
os beiradeiros com possibilidades muito reduzidas para geração de renda e obtenção
de mercadorias: eles icaram ainda mais desassistidos que antes, pois, como já se indi-
40
HISTóRIcO DE OcUPAçÃO DA áREA
cou, diante da histórica omissão do Estado
em relação aos direitos dos ribeirinhos, estes dependiam sobremaneira da “ajuda” dos
patrões. A chegada dos grileiros, no início
da década de 2000, sobre o que se falará
no capítulo 2, foi a causa de muitas outras
saídas, em decorrência da violência que se
instaurou na região. A criação da EsecTM,
por sua vez, forçou famílias e indivíduos a
deixarem o beiradão, como se detalhará no
capítulo 3. As ações violentas praticadas por
agentes do órgão gestor e outros representantes do Estado, a imposição de um conjunto de restrições ao modo de vida tradicionalmente engendrado pelos beiradeiros
e a perpetuação das violações aos direitos
básicos dos ribeirinhos (como educação e
saúde) no marco da UC foram todos fatores de expulsão.
Momentos de crise tornavam – ou melhor, ainda tornam – os beiradeiros especialmente vulneráveis, minando sua capacidade
de resistir às pressões e permanecer em suas
moradas. Os relatos registrados em campo
indicam que muitas partidas têm ocorrido
na velhice, quando a ausência de atenção à
saúde no beiradão torna-se especialmente
preocupante. Por vezes, ilhos e netos permanecem no Iriri, mudando-se para a cidade apenas os idosos; em outros casos, toda a
família se vai. A morte da principal referência do núcleo familiar (geralmente, “o pai”)
também é frequentemente referida como
causa de saídas do beiradão. A esse respeito,
um beiradeiro comentou: “Quando o esteio
se vai, a casa cai”.
Uma fala de dona Das Neves ilustra de
que maneira o sustento dos núcleos familiares é prejudicado pela saída de membros
do beiradão. Seu esposo, como já se indicou,
morreu em 2010; dos ilhos do casal, vários
se mudaram para Altamira e São Félix do
Xingu. Em um lugar onde antes viviam dez
pessoas, hoje só restam três (dona Das Neves e dois ilhos). Ela nos explicava por que,
antes, plantavam diversos cultivos e hoje,
apenas mandioca e milho:
Arroz, aqui, não é nem bom plantar, porque aqui tem bicho. Esse pássaro preto, na
hora em que você planta, se você não estiver lá, você não colhe um caroço. Quando
eles [o esposo e os ilhos homens] estavam
plantando, nós [ela e as ilhas mulheres] já
estávamos espiando. Quando eu tinha as
meninas – as meninas todas grande –, elas
icavam lá tangendo os passarinhos e eu icava dentro de casa. Enquanto o arroz não
está assim, deste tamanho, os bichos estão
arrancando, arrancando tudo. Aí, quando
vai enchendo, tem um tal de senhor chupa.
Aí, quando está amarelando, tem um senhor chico-preto: ele cai em cima, se você
não estiver lá até as seis horas da tarde,
você não colhe um caroço. E o milho, eles
arrancam também.
Quando se toma em consideração a
centralidade das relações de vicinalidade
para o modo de vida dos ribeirinhos – que,
organizados em núcleos familiares, estabeleceram e vêm atualizando historicamente
circuitos de reciprocidade com parentes e
vizinhos, cruciais para sua reprodução social –, é possível compreender que o esvaziamento do beiradão impõe perdas não
apenas para aqueles diretamente implicados
nesta ou naquela saída: tal processo impacta, profundamente, o grupo como um todo.
Nesse sentido, a fala de dona Das Neves
pode ser lida também como metonímia do
atual estado do beiradão.
Imagem 28.
Pôr-do-sol no alto Iriri | 2013 |
Por Daniela Alarcon.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
41
2. O mosaico de
áreas protegidas da
Terra do Meio
Imagem 29. Castanheiras
mortas, em área grilada, à
beira do rio Iriri | 2013 | Por
Daniela Alarcon.
2.1. a criação do moSaico
A
partir da década de 1970, na esteira da
construção da BR-230 (Transamazônica)
e da BR-163 (Cuiabá-Santarém), a região da
Terra do Meio constituiu-se como fronteira
de expansão. O crescimento das cidades do
entorno intensiicou as pressões sobre a área,
engendrando um complexo quadro de disputas fundiárias. Atividades econômicas profundamente predatórias, como mineração
(cassiterita e ouro), exploração madeireira
para ins comerciais (mogno e cedro, entre
outras) e pecuária, difundiram-se ali.
Já na década de 2000, a Terra do Meio
passou a abrigar um grande rebanho bovino e apresentava um dos piores índices
nacionais de desmatamento do país32. Imensas extensões de terra foram griladas; ocorrências de trabalho escravo, denunciadas; e
a região tornou-se uma das mais violentas
do país. Além disso, a perspectiva de construção da usina hidrelétrica (UHE) de Belo
Monte, no rio Xingu, desencadeou um processo de especulação imobiliária, acirrando
ainda mais os conlitos.
Especiicamente na região que atualmente corresponde à EsecTM, o eixo de
penetração que permitiu o desenvolvimento dessas atividades econômicas é a vicinal
conhecida como estrada da Canopus ou
Transiriri, que dá acesso a São Félix do
Xingu. Ela foi aberta na década de 1980,
pela Paranapanema, empresa detentora da
Mineração Canopus, que explorava uma
mina de cassiterita localizada a 40 km do
Iriri. Na década de 1990, com a queda nos
preços da cassiterita, a mineradora encerrou suas atividades no local. Posteriormente,
camponeses autoidentiicados como colonos instalaram-se ali, originando algumas
vilas ao longo da estrada. Torres, baseandose em depoimentos de indivíduos que participaram do processo, observa que “o ato
de ocupação da terra se deu em um típico
movimento de luta pela terra” (2008b).
Ao passo que grileiros e fazendeiros
apropriaram-se de enormes extensões de
terras públicas com interesse especulativo
ou de crescimento patrimonial, a ocupação camponesa guiou-se por outros valores,
sendo o principal deles a reprodução da família. Essas áreas de ocupação camponesa
caracterizam-se pela existência de morada
habitual, cultura efetiva, exploração direta
do posseiro e sua família e limite de área
proporcional à capacidade de trabalho do
núcleo familiar – características que cor-
32. Para mais informações
a esse respeito, ver Castro;
Monteiro; Castro (2002).
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
45
33. Para informações
detalhadas sobre a situação
dos colonos no marco da
consituição da EsecTM, ver
Torres (2008b).
34. Como sói acontecer, não
há registros de denúncia e
consequente invesigação dos
crimes, que, por outro lado,
são de amplo conhecimento
na região.
35. A Lei nº 8.629/93, a
chamada Lei Agrária, no arigo
4º, regulamentou o disposiivo
consitucional e deiniu a
pequena propriedade como
sendo a área compreendida
entre um e quatro módulos
iscais (inciso I), e como média
propriedade, o imóvel rural
de área entre quatro e 15
módulos iscais (inciso III).Com
isso, o módulo iscal – que
varia regionalmente – passou
a ser o fator para o cálculo da
pequena e média propriedades.
Para uma descrição detalhada
do processo de grilagem e
consituição de fazendas nessa
área, ver Torres (2008b e
2008c).
36. O Snuc (Lei nº 9.985,
de 18 de julho de 2000)
prevê, em seu arigo 26, que
as áreas protegidas de um
mosaico devem ser geridas
de forma comparilhada,
com paricipação do órgão
público responsável e de
representantes da sociedade
civil organizada e de
comunidades locais.
37. “Os rios Xingu e Iriri, pela
quanidade de corredeiras
e pedrais ao longo de seus
cursos, apresentam habitats
muito diferentes dos
ambientes das calhas dos
grandes rios de planície da
Amazônia. Isto, em parte,
explica a existência do notável
número de casos de espécies
46
respondem a posses legitimáveis segundo o
Estatuto da Terra33. Por sua vez, as grilagens,
situações em que o interesse econômico reside na comercialização da terra e não em
sua exploração, intensiicaram-se a partir da
década de 1990. Nesse período, sob ameaça, uma beiradeira que vive no interior da
EsecTM vendeu seu lugar:
Nós vendemos a terra – a terra não, porque
a terra é do governo –, nós vendemos lá,
porque o rapaz chegou aí comprando e falou que se nós não vendêssemos, nós íamos
icar sem as terras “porque vem muita gente aí atrás tomando terra”. [...] Nós vendemos porque nós estávamos com medo.
Com medo de ser agredido lá por esse pessoal que vinha de fora. [...] Lutaram mais
de 2 anos comigo pra eu vender e eu não
queria vender, nós não vendemos por causa
de fome de dinheiro. [...] Eles que deram
o preço deles, não deixaram a gente nem
dar o preço, porque eu não ia mesmo saber
quanto ia valer, porque a gente nunca vendeu terra mesmo (Torres, 2008c: 107-108).
Conforme depoimento de dona Raimunda Gomes,
os grileiros varavam pela Canopus e vinham descendo pelo beiradão nas voadeiras, nas rabetas [pequenas embarcações
com motor de popa], pra tomar os lugares
(Ibid.: 107).
As grilagens interromperam a ocupação
contínua do beiradão, “ilhando” famílias, ao
afastá-las dos vizinhos – hoje, o caso mais
contundente é o dos ilhos de seu Nazário
e dona Deusarina, e suas respectivas famílias.
Conta-se que alguns ribeirinhos que se recusaram a sair de suas terras foram assassinados34. Já a partir da década de 2000, fazendas
de gado foram estabelecidas na área – por
fazenda, compreende-se apropriação de terra de áreas mais extensas que 15 módulos
iscais, ou seja, 1.125 ha e, mesmo, superiores ao limite constitucional de 2.500 ha35.
Nesse quadro, ganhou fôlego a movimentação para exigir do Estado brasileiro a
criação de um mosaico de áreas protegidas,
igura jurídica prevista pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc)36. A
proposta – impulsionada por mais de uma
centena de entidades, reunidas no Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu – tinha entre seus objetivos
fazer frente ao desmatamento e às grilagens
de terras registrados na região, preservando uma área considerada de alta prioridade
para a conservação da sociobiodiversidade
(com presença de endemismos e grande diversidade de paisagens) e que fora objeto
de escassos estudos cientíicos37. Além disso,
visava garantir o direito à terra dos povos
indígenas e comunidades tradicionais que
viviam na região. Em 2002, a Secretaria
de Coordenação da Amazônia (SCA) e a
Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio
Ambiente do Pará (Sectam) solicitaram ao
Instituto Socioambiental (ISA) a realização
de estudos preliminares, para subsidiar a
criação do mosaico; no ano seguinte, eles
foram concluídos (Villas-Bôas et al., 2003).
Presente na pauta dos movimentos sociais da região já desde a década de 1970,
a demanda por medidas de proteção da
Terra do Meio ganhou visibilidade após o
assassinato da irmã Dorothy Stang, ocorrido em 2005 (Torres; Figueiredo, 2005: 321;
Sauer, 2005: 110-111; Velásquez, 2006: 7). As
informações sobre o quadro de violência
no oeste do Pará propagaram-se e o governo federal foi pressionado a agir. Em 17
de fevereiro daquele ano, cinco dias após o
assassinato da religiosa, o governo brasileiro
decretou o Parque Nacional (Parna) da Serra do Pardo, com 445.407,99 ha de extensão,
e a EsecTM, com área total de 3.373.133,89
ha, que se somaram à Resex Riozinho do
Anfrísio (decretada em 2004, com área de
736.135,28 ha) como as primeiras UCs do
mosaico38. Nos anos subsequentes, seriam
estabelecidas as demais UCs previstas.
Ainda que a criação do mosaico tenha incidido no quadro de violência que
se observava na Terra do Meio e reduzido as atividades predatórias levadas a cabo
na área, estas não foram eliminadas de
todo (Velásquez; Villas-Bôas; Schwartzman,
O MOSAIcO DE áREAS PROTEgIDAS DA TERRA DO MEIO
2006). Além disso, desencadeou-se intensa movimentação para reverter o processo
de criação do mosaico. Está em tramitação
um Projeto de Lei (o PL nº 6.479/2006)
visando a desafetação de seus limites, tendo como foco, segundo seu autor, os povos
e comunidades tradicionais afetados pela
criação das UCs. Segundo nota técnica do
ICMBio, contudo,
a análise das áreas com previsão de desafetação pelo presente Projeto de Lei permite
airmar que, na grande maioria dos casos,
o público verdadeiramente beneiciado
pela proposta são grandes latifundiários,
cuja origem legal das terras é duvidosa.
Diversos desses atores foram autuados por
desmatamento ilegal e até mesmo envolvimento com trabalho escravo. Dois deles coniguram [iguram] na lista dos 100
maiores desmatadores de lorestas em nosso país. Ironicamente, o PL em questão
vem em socorro de pequenos agricultores
e ribeirinhos quando, na realidade, a proposta de redução das unidades de conservação não beneicia verdadeiramente esses
moradores. Ao contrário, vai ao encontro
apenas de latifundiários, grileiros e criminosos ambientais (apud Brasil, Câmara dos
Deputados, 2008: 8)39.
Como se verá, foram também movimentações dos latifundiários com interesses na
Terra do Meio – e, é claro, o fato de o poder
público haver cedido às pressões – que provocaram a imposição de uma UC de proteção integral sobre os beiradeiros do alto Iriri.
2.2. dE como uma futura rESErva
ExtrativiSta tornou-SE EStação
Ecológica
No levantamento em campo levado a cabo
em 2002, no marco dos estudos preliminares para a criação do mosaico de áreas protegidas na Terra do Meio, foi identiicada
uma população de 739 ribeirinhos na Terra
do Meio, dos quais 350 habitavam o rio Iriri
(Villas-Bôas et al., 2003: 90). Segundo a pesquisa, a densidade populacional registrada
no Iriri (considerando apenas beiradeiros)
no trecho entre a TI Menkragnoti e a conluência com o Curuá era de 0,56 hab/km,
ao passo que deste último ponto à foz do
Iriri era de 0,83 hab/km (Ibid.: 91)40. Tais
números, contudo, deveriam ser considerados com cuidado, alertava o estudo, dada
a mobilidade dos ribeirinhos e o fato de,
muitas vezes, famílias e indivíduos manterem-se vinculados ao beiradão mesmo depois de haverem se mudado para as cidades
vizinhas, inclusive retornando sazonalmente.
De toda forma, as informações indicavam
a presença de beiradeiros ao longo do Iriri,
dado que deveria ser necessariamente considerado na decisão acerca de que categoria
de UC criar em cada área da Terra do Meio.
A proposta de mosaico apresentada em
2003 – considerando as características da
Terra do Meio, incluindo os dados demográicos acima indicados – previa a implementação de algumas UCs de uso sustentável, entre as quais três Resex, “abrangendo
as duas margens dos rios Iriri, Curuá e
Riozinho do Anfrísio e a margem esquerda
do rio Xingu” (Ibid.: 176). A Resex que se
chamaria Curuá-Iriri teria 1.514.427,81 ha
de extensão. A EsecTM, por sua vez, teria
2.903.577,11 ha (Ibid.: 174). Note-se que a
Resex Curuá-Iriri estender-se-ia até o último ribeirinho morador do Iriri a montante.
Os limites das UCs propostos pelo estudo, contudo, foram modiicados em sua
criação, sem apresentação de quaisquer justiicativas. Com isso, conhecidos detentores
de grandes apropriações de terras públicas,
alguns dos quais autuados por desmatamento ilegal e emprego de trabalho escravo,
convenientemente tiveram suas pretensas
áreas excluídas da EsecTM e incorporadas à
Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo
do Xingu. Os fazendeiros, assim, beneiciaram-se do fato de a APA ser categorizada
pelo Snuc como UC de uso sustentável (Lei
nº 9.985, de 18 de julho de 2000, cap. III, art.
8º). Ao mesmo tempo, algumas das famílias
camponesas e ribeirinhas que habitavam a
região desde antes da criação do mosaico
foram incluídas na EsecTM – como se sabe,
uma UC de proteção integral, isto é, considerada não compatível com a ocupação hu-
não descritas e endemismos”
(Villas-Bôas et al, 2003: 40).
Note-se que, apesar da intensa
exploração dos recursos
naturais que se vinha levando
a cabo na Terra do Meio, a
região encontrava-se em bom
estado de conservação – em
grande medida, devido ao
cinturão de TIs existentes ao
seu redor.
38. Note-se que os decretos de
criação das UCs apresentam
áreas ligeiramente diferentes
daquelas referidas no site do
ICMBio – reproduzimos, aqui,
estas úlimas.
39. Quando da conclusão deste
livro,o PL aguardava votação
na Comissão de Consituição
e Jusiça e de Cidadania
(CCJ) da Câmara Federal,
após haver recebido parecer
favorável do relator. Em Torres
(2008b) pode ser encontrada
uma apreciação mais deida
das áreas propostas para
desafetação, com indicação
das pretensões de posse.
40. Para este cálculo, foram
consideradas distâncias em
km aproximadas, alertam os
autores.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
47
mana, destinada à preservação da natureza
e à realização de pesquisas cientíicas. Assim,
o estabelecimento da EsecTM desencadeou
um agudo conlito socioambiental e precipitou um debate sobre o destino desses
moradores.
41. Cf. a Coordenação
de Gestão de Conlitos
Territoriais do ICMBio, o
termo de compromisso é
um instrumento, de caráter
transitório, de gestão de UCs
e de mediação de conlitos
estabelecidos entre o ICMBio
e as populações moradoras de
UCs ou usuárias de recursos
naturais no interior das áreas
(Abirached, 2012).
42. Um importante aporte a
esse debate foi oferecido pela
6ª Câmara de Coordenação
e Revisão do Ministério
Público Federal (MPF) com
a publicação de Territórios
de povos e comunidades
tradicionais e as unidades
de conservação de proteção
integral: alternaivas para o
asseguramento de direitos
socioambientais, primeiro
número da série Manual
de atuação, disponível em:
<htp://6ccr.pgr.mpf.mp.br/
documentos-e-publicacoes/
manual-de-atuacao/manualde-atuacao-territoriosde-povos-e-comunidadestradicionais-e-as-unidadesde-conservacao-de-protecaointegral>. Quando o manual
veio à luz, porém, o presente
livro já estava em vias de
ser concluído; por isso, não
pudemos discui-lo aqui.
43. Esse conlito de posições
é paricularmente ilustrado
no recente desenrolar das
negociações referentes ao
Parna de Aparados da Serra.
Cf. Sanili (2013).
48
A interrupção da Resex [Curuá-Iriri] fracionou um agrupamento social historicamente constituído. Os moradores afortunados por terem icado dentro da Resex
– o que, nos parece, foi bastante ao acaso
– estão, ainda que precária e embrionariamente, tendo acesso a direitos civis como
documentos de identidade, educação, tratamento de saúde e outros. A parte do grupo
que está na área proposta pelo estudo para
ser Resex, mas onde foi criada a Esec, não
tem acesso a nenhum dos serviços sociais
de que desfruta o grupo à [a] jusante. E
não é só isso, direta ou indiretamente, os
habitantes tradicionais da Esec sofrem uma
cruel criminalização por parte do Ibama
[Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis]/ICMBio. O seu crime seria o de não terem tido
seus direitos ao território reconhecidos e a
área onde vivem ter-lhes sido negada com
a criação da Esec Terra do Meio (Torres,
2008b).
A adequação de limites da EsecTM, sua
recategorização, a desafetação, a proibição
de uso pelos moradores (mediante indenização) ou seu reassentamento eram as alternativas em discussão. Em agosto de 2008,
iniciou-se o processo de construção de dois
termos de compromisso, que devem ser celebrados entre o ICMBio e os moradores
da EsecTM (um destinado aos beiradeiros
e outro, aos colonos), detalhando as condições de sua permanência na área41. Ao contrário dos colonos, que desejam ser reassentados, os beiradeiros, como já se indicou,
não estão dispostos a sair da área. Posto
que mantêm profundos vínculos territoriais,
retirá-los implicaria a “expropriação de valores que não são passíveis de serem mensurados em moeda” (Torres, 2008b).
Analisando a situação de populações tra-
dicionais cujos territórios foram abrangidos
pela criação de UCs de proteção integral,
a Procuradoria Federal Especializada do
ICMBio observou, em parecer, que nesse
caso ocorre um choque entre direitos fundamentais. De um lado, “o direito fundamental à cultura – em sua compreensão
como ‘modos de criar, fazer e viver’ próprios do grupo (art. 216, II, da Constituição)” e os “direitos sociais à alimentação
e ao trabalho (art. 7º, caput), cuja essência
repousa na dignidade da pessoa humana”;
de outro, “o relevante direito fundamental à
higidez do meio ambiente”. Considerando
a “proeminência da dignidade da pessoa humana”, tomada como “postulado da ordem
jurídica”, o procurador Bernardo Monteiro
Ferraz enfatiza: negar aprioristicamente o
acesso dessas populações aos recursos das
UCs violaria a Constituição Federal42.
Seguindo o parecer do procurador, a
dignidade da pessoa humana é o cerne da
Instrução Normativa (IN) nº 26, aprovada
pelo ICMBio em 4 de julho de 2012, que
estabelece diretrizes e regulamenta a implementação de termos de compromisso entre
o órgão gestor e as populações tradicionais
residentes em UCs onde sua presença não
seja admitida ou esteja em desacordo com
os instrumentos de gestão. Conforme a deinição da IN, os termos de compromisso
são instrumentos de gestão e mediação de
conlitos, de caráter transitório, “visando
garantir a conservação da biodiversidade e
as características socioeconômicas e culturais dos grupos sociais envolvidos” (art. 2º).
Como se indicou, está em curso o processo de construção de um TC referente aos
beiradeiros que vivem na EsecTM. Na próxima seção, serão apresentadas informações
acerca dos impactos da criação da EsecTM
sobre o grupo, e acerca da elaboração do TC.
Entretanto, vale ressaltar que, para além
da questão meramente jurídica, a permanência ou não de comunidades tradicionais
em UCs de proteção integral é um polo
de profundas discordâncias no interior do
Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do
próprio ICMBio, e gera posturas bastante
contraditórias43.
O MOSAIcO DE áREAS PROTEgIDAS DA TERRA DO MEIO
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
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50
O MOSAIcO DE áREAS PROTEgIDAS DA TERRA DO MEIO
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
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O MOSAIcO DE áREAS PROTEgIDAS DA TERRA DO MEIO
3. A vida dos
beiradeiros
na Estação
Ecológica
“D
esde o tempo que morreu essa mulher
para lá, tudo mudou.” Referindo-se à
irmã Dorothy Stang, dona Das Neves caracterizava a criação da EsecTM – que, como
se indicou, teve por estopim o assassinato da
religiosa – como resultado de uma decisão
ocorrida longe, muito longe do alcance dos
beiradeiros do Iriri, que agora se viam impactados cotidianamente por ela. De um dia
para outro, suas vidas sofreram uma reviravolta: viram-se submetidos a um conjunto
de regras concebidas sem sua participação,
no marco de uma lógica que lhes era estranha. O Estado – até então completamente
ausente e, por isso, em grande medida por
eles desconhecido – fez-se presente de súbito, manifestando exclusivamente sua faceta
repressora, e não seu papel como garantidor
de direitos. Talvez a sensação de Dona Neves fosse semelhante à de um morador de
uma Resex vizinha, que conidenciou certa vez: “vivemos no nosso lugar dominados
por esse pessoal de fora” (Postigo, 2012: 5).
Nesta seção, buscar-se-á descrever a
vida dos beiradeiros no marco da EsecTM,
considerando as relações entre o grupo e o
ICMBio, órgão gestor da UC; enfatizando
a persistente violação, por parte do Estado brasileiro, dos direitos dessa população;
e apontando perspectivas de transformação
do atual cenário.
3.1. aS rElaçõES com o órgão gEStor –
ibama E icmbio
3.1.1. uma hiStória dE violência
É triste e corriqueiro o quadro em que se
encontram [encontra] a grande maioria de
unidades de conservação em que se repetiu a política do não reconhecimento das
terras tradicionalmente ocupadas. Usualmente, a população tradicional moradora
da área acaba por não ser realocada, nem
tampouco autorizada a icar. Um cenário
onde essas pessoas são levadas a uma situação kafkiana. Não são removidas mas
passam a sofrer sistematicamente repressões, comumente com muita violência, por
parte do órgão gestor (Torres, 2008b).
Um “quadro generalizado de desencontro” entre os beiradeiros que habitavam o
interior da EsecTM e os servidores do Ibama e do ICMBio responsáveis pela gestão da
área foi registrado por Torres (2008b). Naquela época, eram recorrentes os relatos a
respeito das violências cometidas por agentes dos órgãos – que manifestavam preconceito e absoluto desconhecimento em torno
da literatura e mesmo da legislação acerca
da presença de populações tradicionais em
UCs. Seu Zé Boi, por exemplo, “narrou da
violência e terror com que fora tratado pelas equipes de iscalização do Ibama/ICMBio”, manifestando “pânico” em relação a
elas. A um segundo morador, teriam dito
“que a gente ia ter que desocupar a área e
que não podia nem caçar e nem botar mais
roça, nem um palmo” – o que, como se sabe,
não encontra amparo legal. Dona Zefa, por
sua vez, sentia-se
ultrajada por ter hospedado a equipe do
Ibama/ICMBio e, na partida da equipe, ter
tido sua casa revistada (sem que poupassem sequer suas roupas íntimas) e as espingardas de caça de seus ilhos coniscadas
(Torres, 2008b).
As armas, explicou dona Zefa em reunião com o ICMBio em dezembro de 2011,
serviam para caçar e, sobretudo, para que
se defendessem das onças, que ameaçam
os beiradeiros e, frequentemente, atacam
animais domésticos. Em 2013, duas ilhas
de dona Zefa rememoraram as violências
sofridas pela família: além das espingardas,
tomaram-lhe algumas baterias automotivas,
utilizadas para gerar energia. Esses eventos,
informaram, ocorreram durante o período
em que Walber Feijó de Oliveira, veterinário, foi chefe-substituto do escritório regional do Ibama em Altamira (entre 2008 e
2009) e durante a gestão de Manoelle Reis
Paiva, bióloga, chefe da EsecTM entre 2009
e 2011. Nesse contexto, um ilho de dona
Zefa, Raimundo, que trabalhava como pescador, teria sido expulso da EsecTM, mudando-se para Minas Gerais. Uma das ilhas
de dona Zefa comentou-nos:
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
55
O Raimundo direto liga para a mãe. A mãe
diz: “Você pode vir, você é meu ilho, você
nasceu aqui e se criou no Iriri. Por que
você não pode vir aqui na minha casa?”.
Ele não quer vir mais, coitado. “Você pode
vir, sim, você tem direito de vir me ver.
Quem é que pode impedir?”
Em campo, ouvimos de vários beiradeiros relatos sobre um episódio gravíssimo,
protagonizado por Walber Feijó de Oliveira: um morador conhecido como Chico,
sua esposa e ilhas, que viviam na margem
esquerda do Iriri, tiveram sua casa incendiada por ordem do gestor, sendo, em seguida,
expulsos da área. Reproduzimos a seguir a
síntese dos acontecimentos apresentada por
Bené Castro quando passamos pelo local da
antiga morada de Chico:
2013. Segundo ele, na ocasião, Walber era
acompanhado por um sargento conhecido
como Viana. O bombeiro relatou, ainda, a
apreensão de “armas brancas” – isto é, facas
e terçados, utilizados na cozinha, na roça,
na coleta de produtos vegetais – realizada
sob o comando de Walber na casa de dona
Zefa e outros ribeirinhos. “Foi coisa pacíica, ela [dona Zefa] mostrou [as “armas”],
aí levaram tudo. [...] Com o Walber não
tinha negócio de insistir, não.” Segundo o
bombeiro, dona Zefa teria explicado que
utilizava as facas para determinados ins cotidianos, “mas a gente chegava a ver que
não era [verdade]”.
Foi em 2008 que o Walber tocou fogo aí.
O pessoal era metido a valente, ele [Walber] veio, botou fogo na casa e mandou
o cara [Chico] embora. Ele era gente boa,
mas a mulher dele era valente. Começou
porque a mulher dele pegou minha menina e deu uma pisa desgraçada nela. Porque
a menina dela era fofoqueira, fuxiqueira
demais e minha menina não gostava de
fuxico, aí ela zangou. Eu falei para o Walber falar para ele sair daí, senão ia dar problema depois. O Walber veio aí, a mulher
icou valente, aí o Walber foi e tocou fogo
na casa e mandou eles embora. Ele [Walber] andava com uns oito [homens] aí, andava ele e os seguranças dele. Aí vieram
lá na canoa, pegaram gasolina, jogaram na
casa e tocaram fogo. Ele tocou fogo com o
pessoal vendo, o pessoal não tirou nada da
casa. Aí botaram eles na canoa, deixaram
na boca da estrada e voltaram. Eles foram
para São Félix. Morava ele, a mulher e três
meninas, uma de 8 anos, outra de 9 e outra
de 11.
É diferente você estar com uma faca, um
facão e estar com dez facas, dez facões.
[...] Ela [dona Zefa] tinha bastante faca,
arma branca! Com ele [Walber], não tinha
coisa, não, ele mandava mesmo! Ele levou
facão de todo mundo.
É importante frisar que as relações entre o ICMBio e os beiradeiros alteraram-se
sensivelmente na última gestão da EsecTM,
iniciada em 2011, quando Tathiana Chaves
de Souza substituiu Manoelle Reis Paiva na
cheia da unidade. Conforme os beiradeiros, ações violentas como as descritas acima
e as pressões para que se retirem da área
cessaram, e teve início um diálogo com vistas a construir um TC estabelecendo regras
para sua permanência no território. A nova
gestão, contudo, claramente herda o passivo deixado por aquelas que a precederam.
Assim, as práticas de diálogo e participação
que a atual cheia tem buscado fortalecer encontram aí grandes barreiras, e não
considerá-las como parte do processo – soa
óbvio, mas cabe enfatizar – pode torná-las
praticamente intransponíveis.
Apenas tomando em conta que os ribeirinhos têm ainda muito presentes as violências de que foram vítimas em um passado
Não bastassem as falas dos beiradei- recente, desferidas por agentes do órgão
ros, o episódio foi-nos conirmado por um gestor, torna-se possível ouvir suas falas (e
bombeiro que estava em missão no Iriri em silêncios) em contexto. Falando mais clara2008 e, coincidentemente, acompanhou o mente: o que é tomado como concordância
ICMBio na agenda de que participamos em espontânea, muitas vezes, é na verdade uma
56
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
espécie de concordância coagida, fruto de
decisão tomada sob o espectro das violências passadas e com temor de que voltem
a ocorrer. Os ribeirinhos ainda se revelam
intranquilos acerca de seu futuro e sua interação com o órgão gestor ainda se dá no
marco de uma relação deveras assimétrica,
como se detalhará ao falar da construção
do TC. Como se verá, ainda que a atual gestão não dirija seus esforços para pressionar
os beiradeiros a sair de seu território – ao
contrário –, as atuais restrições às atividades econômicas tradicionalmente praticadas
pelo grupo e a continuada negação de seus
direitos básicos atua, na prática, como fator
de expulsão.
3.1.2. rEStriçõES àS atividadES
EconômicaS
As práticas econômicas dos beiradeiros que
vivem no interior da EsecTM são de baixíssimo impacto ambiental; como se lê nos
estudos para criação do mosaico de unidades protegidas da Terra do Meio, “um século de ocupação por parte desta população
extrativista não alterou signiicativamente
os ecossistemas da região” (Villas-Bôas et
al., 2003: 112). Imagens de satélite corroboram essas airmações. A agricultura praticada pelos beiradeiros desenvolve-se segundo
um intrincado sistema de corte e queima e
rotação de roçados, com o estabelecimento
de áreas de pousio, que “se adapta bem às
condições físicas locais e ao regime de chuvas bem deinido” (Ibid.: 97). Analisando as
complexas práticas agrícolas de um grupo
ribeirinho, Torres observou:
A dinâmica da domesticação de espécies
nativas e o remanejo de outras em diferentes estágios de domesticação evidenciam
a construção intelectual de agricultores
interagindo com o banco genético da loresta. São sistemas tradicionais de cultivo
e seleção germinados da observação e do
manejo cuidadoso da diversidade genética
(2011: 114).
Assim como a agricultura, também a coleta, a caça e a pesca – que, consorciadas, ga-
rantem a subsistência do grupo, prescindindo de grandes derrubadas – desenvolvem-se
no marco de uma relação especíica com a
loresta, conjugando-se aos valores sociais
do grupo. Note-se que, entre os beiradeiros
que vivem no interior da EsecTM, a caça
e a pesca destinam-se apenas ao consumo.
Os baixos preços pagos por compradores de
peixe da região, dizem os ribeirinhos, fazem
com que as famílias não se interessem por
exercer a atividade comercialmente; preferem, antes, ter peixe em abundância para o
próprio consumo. “Não vou passar o dia
todinho sentado num banco de canoa para
vender o peixe a 2 reais”, diz seu Zé Boi.
Comercializar peixe salgado compensa menos ainda, dizem. “E acaba com as mãos da
gente”, observa dona Cleonice.
Apesar disso, o ICMBio e o MMA demonstram entender as atividades tradicionalmente desenvolvidas pelos beiradeiros
como potencialmente nocivas ao ambiente – referimo-nos, sobretudo, às decisões
tomadas nas instâncias superiores dos órgãos, que muitas vezes vão na contramão
dos esforços despendidos por servidores
mais diretamente envolvidos na gestão da
UC. Ambos os órgãos parecem pressupor
que seria ideal extirpar essas atividades e
que, não sendo possível fazê-lo, é seu dever institucional forçar sua redução ao que
seria o “mínimo indispensável à sobrevivência” da população tradicional que ali habita,
espantosa noção que igura em documentos elaborados pelo ICMBio. Informalmente, “regras” começaram a ser apresentadas
aos beiradeiros – regras, frise-se, que não
se apoiam nas normas e legislação vigentes. Não nos referimos, é claro, a proibições
a atividades ilegais, como a caça comercial
(Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967), mas
a medidas como, por exemplo, o estabelecimento de limites à colocação de roças pelos beiradeiros – limites que, como se indicará a seguir, revelam-se arbitrários, mesmo
que não intencionalmente.
Nesse sentido, é importante reconhecer
que a gestão da UC esforçou-se para que
as regras a serem ixadas no TC com os
beiradeiros fossem coerentes com as ativi-
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
57
44. Como tais estudos não
foram publicados, ivemos
acesso aos seus resultados
apenas por meio das
informações aportadas para a
elaboração da minuta do TC.
Neste paricular, o ponto em
que os resultados pareceram
improcedentes foi em relação
ao tamanho dos roçados. O
que fora relatado durante
as entrevistas realizadas
nos estudos contrastava
diametralmente com o
que o grupo de beiradeiros
manifestava no momento da
discussão da minuta.
45. Entre muitos outros, vejase Diegues (2000), Diegues;
Moreira (2001) e Torres (2008a
e 2011).
46. Não sugerimos que não
houve esforços nesse senido
por parte da atual gestão;
ao contrário, há que se
reconhecer o empenho da
chefe da unidade, Tathiana
Chaves de Souza. Entretanto,
o manejo da loresta praicado
pelos beiradeiros é ainda algo
essencialmente desconhecido
para a gestão. Inclusive,
incluímos nossos próprios
trabalhos na região entre os
exemplos de estudos que
não dão conta de dar lume à
complexidade da relação dos
beiradeiros com a loresta.
47. A ata de uma reunião
realizada entre o ICMBio e os
beiradeiros em 9 de dezembro
de 2011 registra: “apenas
o Manoel da Cachoeirinha
comercializa na região, nem
sempre aparece e os preços
das mercadorias são muito
altos enquanto os preços
da compra de produtos da
sociobiodiversidade são
baixos, o que faz com que [,]
na troca, a maior parte dos
moradores ique sempre
58
dades tradicionalmente desenvolvidas pelo
grupo; para tanto, solicitou a um conjunto
de pesquisadores e técnicos a realização
de estudos para lastrear a elaboração do
documento. Porém, ao menos no tocante à parte dos estudos que dimensionou
o tamanho dos roçados, podemos inferir
que o fato de o protocolo para a coleta
das informações não ter considerado que
a fala dos beiradeiros é relacional – isto
é, que não deve ser tomada como autoevidente, como expressão imediata do que
pensam, conforme já discutimos na Introdução – resultou na produção de dados
que, apesar de interessantes, não são suicientes para engendrar parâmetros, sobretudo quantitativos44.
Ao fazer essas observações, não se desconhecem as especiicidades de uma UC
de proteção integral, onde de fato diversas
atividades econômicas não podem ser toleradas sob o risco de minar os objetivos da
UC. O que se quer enfatizar aqui é:
1. As atividades tradicionalmente desenvolvidas pelos beiradeiros não são incompatíveis com a conservação da natureza; ao
contrário: jogam um papel fundamental para
a manutenção da biodiversidade da área45.
2. O ICMBio não detém informações
suicientes acerca do complexo sistema
produtivo dos beiradeiros do alto Iriri, a
ponto de poder delinear, com alguma segurança, o que seria o “mínimo indispensável
à sobrevivência”, parâmetro que igurava na
minuta de termo de compromisso elaborada pelo órgão e apresentada aos beiradeiros
em reunião em abril deste ano46. E mais que
isso: quando se pensa na dignidade humana
e quando se sabe que as atividades econômicas tradicionalmente desenvolvidas pelos
beiradeiros não põem em risco o ambiente,
faz sentido se balizar pelo “mínimo indispensável à sobrevivência”?
3. Ao centrar sua interação com os ribeirinhos sobretudo na restrição e no controle, o órgão gestor impõe-lhes temor e
insegurança, a ponto de, temendo eventuais
penalidades, os primeiros haverem paralisado atividades econômicas que desenvolviam,
pondo em risco sua subsistência.
Assim, essas restrições vêm agravando as
condições econômicas do grupo, já bastante
fragilizadas em decorrência do término da
comercialização de seringa e, posteriormente, do fechamento dos garimpos da região e,
mesmo, da retirada das grilagens por ocasião
da Operação Boi Pirata, realizada em 2008.
Vários dos beiradeiros entrevistados garantiam sua monetarização prestando trabalhos
temporários em fazendas de gado (os homens, geralmente roçando juquira; as mulheres, como cozinheiras) e também na Pousada
Iriri. Com a implementação da EsecTM e a
consequente desativação desses negócios, os
beiradeiros passaram a dispor de pouquíssimas possibilidades de geração de renda. Por
óbvio, não se está aqui advogando em defesa
dessas atividades ilegais – ao contrário –, mas
é fundamental chamar a atenção para o fato
de sua extinção não ter sido acompanhada
de alternativas de renda para os beiradeiros.
Ao que tudo indica, a maioria dos ribeirinhos que vivem na EsecTM não recebe
salários nem benefícios de qualquer natureza, dependendo quase exclusivamente
da coleta de castanha, que costuma ser entregue para regatões em troca do “rancho”
(artigos como óleo, café, açúcar, sal e sabão,
também referidos como “estiva”). Depois
de obtidas as mercadorias “no troco”, como
dizem os beiradeiros, muitas vezes não lhes
resta qualquer “saldo” com o regatão; em
algumas ocasiões, chegam mesmo a icar
devendo47. Seu Zé Boi explica:
Nesses tempos, [a única fonte de renda] é
a castanha. Às vezes, o que a gente faz não
dá de tirar dinheiro, é só mesmo comprar
o rancho. Às vezes, não pega dinheiro; às
vezes, salda, um dinheirinho, alguma coisa,
negócio de 200, 100 reais só. Quando termina a safra da castanha, acabou-se.
Antes da criação da EsecTM, conta Bené
Castro, sua família costumava plantar de 5
a 8 tarefas de mandioca, para produção de
farinha para o autoconsumo e a venda48.
“Hoje em dia, ninguém pode mais fazer isso.
Só pode botar rocinha pequena”, diz, referindo-se a uma proibição que lhes teria sido
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
feita por representantes do ICMBio. É certo que houve pressão do órgão gestor para
a diminuição dos roçados, mas também há
que levarmos em consideração o fechamento dos garimpos da região, entre eles, o Garimpo Madalena, na TI Kuruaya, para onde
vendiam praticamente todo o excedente de
farinha produzida.
Do grupo de beiradeiros que vivem no
interior da EsecTM, as famílias de Bené e
de seu irmão Raimundo são as que moram mais a montante, a grande distância
dos vizinhos mais próximos, e as que se encontram possivelmente na situação socioeconômica mais vulnerável. Mudar-se para
um local a jusante facilitaria seu acesso a
bens e serviços e permitiria que participassem mais intensamente dos circuitos de reciprocidade do beiradão. Eles pensaram em
fazê-lo, mas logo se lembraram que, com a
criação da EsecTM, haviam sido lançados
em um universo de regras que não dominavam. Quando conversamos com eles, em
2013, achavam que, se se mudassem para
outro lugar na beira do rio, perderiam o
direito de coletar castanha nos piques junto
à morada antiga e não teriam direito de
coletar nos arredores da nova casa.
Além de Bené, vários outros beiradeiros mencionaram a proibição às roças. “Eles
[Ibama/ICMBio] falavam que não podia
botar roça, não podia derrubar um pau”,
comentou seu Zé Boi. Além disso, diz seu
Zé, em algum momento foram informados por representantes do órgão gestor que,
caso se ausentassem do beiradão, não poderiam retornar:
Diziam que o pessoal que icasse, não
adiantava mexer com nada, que de qualquer maneira ia sair, então foi assustando
o povo. Aí icou difícil.
Ele tinha intenção de arrumar suas roças,
no que despenderia tempo e dinheiro, mas,
dado o contexto, concluiu: “não ia fazer um
serviço desses, para depois deixar jogado”.
“Rapaz, diz que não é para a gente botar
mais roça aqui”, replicou dona Das Neves
quando perguntada sobre o número de tarefas de roça cultivadas por sua família.
Aí os meninos [seus ilhos] botam uma tarefa, duas e pronto. É assim: disseram que
não era para colocar. Ano passado, veio a
menina, Tathiana [Chaves de Souza], e falou assim: que nós podíamos botar roça,
mas em capoeira. Mas capoeira aqui nós
não temos. Tem um pedacinho ali, mas é
o local de a gente tirar as palhas para cobrir a casa, né? Aí se nós derrubarmos...
Na mata não pode botar, né? E aí? Então,
eu estava com vontade era de ir embora.
Ela [Tathiana] falou lá na Zefa [em uma
reunião] que podia botar roça assim na capoeira e, se fosse para pôr na mata, podia
ir lá para Altamira para falar com o pessoal [do ICMBio]. Mas a pessoa sair daqui,
para Altamira?
Para indicar o quão irreal seria uma regra dessa natureza, basta dizer que faz três
devendo”. Em outra reunião,
realizada na EsecTM dois
dias antes, uma beiradeira,
também comentando dos altos
preços do regatão, observou:
“Se comprar o arroz, não
compra o açúcar”. “Até sem
sabão eles icam”, anotou o
relator. A esse respeito, ver
também Villas-Bôas et al.
(2003: 92-93).
48. “Tarefa” é uma medida
agrária de larga uilização
na região. Segundo nossos
informantes, uma tarefa
equivale a uma área de 50 x 50
metros.
Imagem 30. Balança outrora
uilizada no garimpo | 2013 |
Por Daniela Alarcon.
Diziam que se você baixasse [para Altamira] e passasse um mês, com dois meses, que não viesse mais, porque não tinha
mais direito. Eu não vou perder o que é
meu, por causa de dois meses. E se eu tiver
uma doença, uma coisa? Vou morrer aqui
porque não vou me tratar? Quando chegar,
não sou mais dono? Não tem essa lei no
mundo, rapaz!
Rosinaldo Gomes da Silva (Branquinho),
ilho de dona Raimunda, observou:
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
59
ou quatros anos que dona Das Neves esteve
na sede de Altamira pela última vez; ela sequer sabe o tempo de deslocamento até lá.
A apreensão que se difundiu entre os beiradeiros, advinda da atuação dos representantes do ICMBio, levou dona Das Neves
a fechar um negócio às pressas, vendendo,
por preço desvantajoso, as cabeças de gado
que seu esposo levara anos para acumular.
“Meu marido começou a comprar esse gadinho em 2003. Ele comprava de dois, três
boinhos, e trazia nesse barquinho para cá”,
disse dona Das Neves. Com isso, chegaram
a 105 cabeças. “Mas aí não era para botar
roça, nem fazer nada, e então vendemos o
gado.” Marlene, ilha de dona Das Neves,
comentou:
perder”. Senhora, hoje os honestos vivem
porque deus quer. Mas vivem debaixo dos
pés dos sabidos. Não tem jeito.
Ele fez o negócio nos bois, mas aí foi lá
e ferrou tudo, as vacas de leite também!
Ele disse que ia trazer [para seu pasto] o
gado todo e depois levava as vacas de volta. Eu, quando vi aquilo, disse: “vocês vão
sob ameaça ou conlitos que ponham em
risco seus atributos naturais e a conservação ambiental, ou aquelas relacionadas
com grupos sociais em situação de vulnerabilidade socioambiental (art. 20).
Não se está colocando em questão a
saída dos bois em si, considerando que se
trata da UC mais restritiva, mas sim a forma
como ela se deu, em um ambiente de pressão, desinformação e temor. Não foram garantidas a dona Das Neves e seus familiares
condições para que dessem uma destinação
ao gado que não lhes lesasse tanto ou, ainda,
para que mantivessem os animais consigo
até que saíssem da área, devidamente indenizados e/ou realocados, se assim preferissem. É importante destacar que dona Das
Neves e os dois ilhos que vivem consigo
estão, no momento, inclinados a deixar a
Ela [Tathiana Chaves de Souza] disse que EsecTM, decisão diretamente relacionanão podia mais abrir [áreas] para botar da às pressões impostas pelo órgão gestor.
roça de mandioca, que era para arrancar o Quando foi informado pela atual chefe da
EsecTM, durante uma reunião, que não
capim, onde tinha, e plantar em cima.
poderiam ser abertas novas roças, um dos
“O gado já estava passando fome, porque ilhos de dona Das Neves, Dorivan, teria
não tinha mais pasto”, completou Branqui- respondido que, então, sairiam da área, porque “a gente icar aqui só pastorando terra
nho, esposo de Marlene.
Em agosto de 2012, quase dois anos após para o governo, não tem condição”.
A excessiva demora no estabelecimento
a morte de seu Chico Preto, pressionada pelas restrições à abertura de roças, e assom- do TC mantém os beiradeiros em angusbrada com a possibilidade de receber uma tiante espera. Branquinho observa:
multa ou punição ainda pior, dona Das NeO pessoal que queria fazer alguma coisa
ves aceitou a primeira proposta de compra
dentro da área icou esperando esse monte
de gado que lhe ofereceram. Segundo o rede tempo e nunca saiu nada. E hoje em dia,
lato de Marlene, Branquinho e de vizinhos,
estão o quê? Quase passando fome.
o comprador teria se aproveitado do contexto para pagar pouco, e fechou o negócio
“Estão tendo que comprar farinha, porrapidamente, antes que os ilhos mais velhos
de dona Das Neves ou os vizinhos icassem que não podia botar roça”, completa seu
sabendo e intercedessem. Além de pagar um Doval. “Eu não nasci aqui, mas o resto aí
preço injusto pelos bois, disseram os beira- tudo nasceu. Se eles não tiverem direito [ao
deiros, o comprador levou as vacas leiteiras território], quem é que tem?”
Note-se que a IN nº 26 estabelece como
sem que as houvesse comprado. Posteriormente, pressionado, pagou parte do valor das prioritárias para a elaboração de termos de
compromisso as UCs
vacas, mas nunca o total. Seu Doval conta:
60
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
Ainda que a EsecTM enquadre-se no segundo caso, os beiradeiros e colonos que ali
vivem esperam há anos pelo estabelecimento dos respectivos TCs. É inadmissível, portanto, que se tente “apaziguar” a demanda
dos ribeirinhos por celeridade, como se lê
no depoimento de dona Raimunda:
Eles [os representantes do ICMBio] sempre conversam aqui que nós temos que ter
paciência, lutar, lutar, fazer essas reuniões,
que nós ainda vamos icar felizes aqui
muito tempo nesse lugar aqui, que ainda
vai chegar alguma coisa boa para nós aqui.
Só que eles dizem que está devagar, que
tem que ir devagar, que devagar que vai
longe.
Ainda que os representantes locais do
ICMBio – em especial a chefe da EsecTM
– venham se esforçando para imprimir celeridade ao processo, não é possível observar
o mesmo ritmo na atuação das instâncias
superiores do órgão.
3.2. direitos historiCAmente violAdos
As condições de vida dos castanheiros e
seringueiros devem ser radicalmente melhoradas. Esses homens [...] merecem uma
vida mais digna. Nas condições atuais, eles
não possuem direito algum. Em caso de
acidentes, doenças ou ataques de índios,
eles não têm possibilidade de obter auxílio.
Não existe qualquer estação telegráica
num raio de muitas centenas de quilômetros (Kräutler, 1979: 183).
As palavras acima, escritas por Eurico Kräutler em referência ao cenário que
observou na região do Xingu no ano de
1940, poderiam ser transpostas ao presente,
com poucas modiicações, para caracterizar
a vida dos beiradeiros que moram no interior da EsecTM. Os “ataques de índios”
não mais ocorrem, mas a atenção básica à
saúde continua inexistente. Os radiocomunicadores, que cumprem hoje o papel das
estações telegráicas, são escassos. Os moradores possuem apenas, em alguns casos,
pequenas canoas com motor rabeta, para as
quais geralmente carecem de combustível;
não há barcos comunitários. Tampouco há
escolas. Quando da criação da EsecTM, a
maior parte dos beiradeiros não possuía documentação civil. Perguntada a respeito do
que mais faz falta aos beiradeiros, Valdete
Jerônimo da Silva, ilha de dona Zefa, responde: “De tudo um pouco”.
Como se viu, sem terem seus direitos
garantidos pelo Estado, os beiradeiros historicamente têm se amparado na concessão
de “favores”. Primeiro, foram os patrões da
borracha; depois, os grileiros. Foram esses
sujeitos que, no marco de uma complexa
relação de dominação, “ajudaram-nos”, sobretudo em situações de emergência. É nesse contexto que se explica a fala de uma
beiradeira para quem Jeová de Souza Pimentel – um dos maiores grileiros da Terra
do Meio, comprovadamente autor de crimes ambientais e explorador de mão-de-obra escrava – foi “mandado por deus”49.
Os grileiros, como se pode ver na passagem
a seguir, chegavam a intermediar a relação
dos ribeirinhos com o Estado:
49. Para informações
detalhadas sobre o grileiro, ver
Torres (2008b e 2008c).
Os serviços governamentais, quando existem, são precários. Por exemplo, os moradores da região do Iriri receberam, no
último mês de julho, pela primeira vez, a
visita de uma equipe médica, juiz, promotor, cartório, polícia civil e agente da Delegacia Regional do Trabalho. Desta vez, a
presença de serviços do Estado não foi a pedido
dos grileiros e sim do IBAMA/CNPT [Centro
Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais] que vem
estudando a criação de duas reservas extrativistas ao longo do Rio Xingu e Iriri
(Sauer, 2005: 112, ênfase nossa).
Nos últimos anos, para ter algum acesso à saúde (notadamente em situações de
emergência) e ao transporte, os ribeirinhos
têm contado com a solidariedade dos indígenas das TIs vizinhas, que, apesar de precariamente, têm sido assistidos de modo geral
em seus direitos. Como se detalhará nas seções a seguir, os beiradeiros por vezes pro-
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
61
curam atendimento nos postos de saúde das
TIs Xipaya e Kuruaya e, quando precisam
se dirigir à cidade, obtêm caronas nas voadeiras dos indígenas. “Se não fosse os índios
montarem esse posto aí”, comentou Branquinho, “já tinha morrido nego aqui sobre
o negócio de malária”. Ao tempo em que
manifestam gratidão aos indígenas, os beiradeiros, contudo, sentem-se desconfortáveis
com a situação. Dona Raimunda comenta:
tenho nem inveja, porque cada qual tem
o que deus quer, e eu não tenho nem inveja de mercadoria. Eu queria era ter um
barco aqui, uma voadeira, e um combustível qualquer, para nós termos uma reserva,
para qualquer coisa nós descermos [para a
cidade]. Nós não ganhamos dinheiro, não
ganhamos voadeira, não ganhamos nada,
nada. Os caboclos [ganham] só por que são
índios? Nós também somos carne humana.
Mais uma vez, a ausência do Estado desEu tenho vergonha de icar pedindo carona para os caboclos, de estar sempre aper- loca a discussão do direito para a “ajuda”,
reando. Quando eu adoeço, eu ico humi- como se percebe na fala de outro beiradeiro:
lhada aos outros.
Eles [os índios] têm posto de saúde, eles
têm enfermeiro, eles têm professor, eles têm
Além disso, difundiu-se entre os ribeiria Norte Energia, que está dando o maior apoio
nhos a percepção de que os índios, em razão
para eles – já deram voadeira, motor, rancho,
de sua identidade étnica, “têm mais direitos”
material para fazer casas. E nós – vocês
que eles. Nesse quadro, as compensações
estão vendo –, nós temos um barracozidos impactos da UHE Belo Monte sobre
nho caindo, de palha, se acabando. E nós
as populações indígenas do entorno da
lutando para ver se conseguimos alguma
EsecTM têm sido interpretadas pelos ribeicoisa, e nunca conseguimos nada.
rinhos como um injustiicado “privilégio”:
Note-se que, quando tratam de avaliar
O que eu ico triste, minha criança, é os
índios ganhando tanta coisa. Porque os ca- os efeitos das compensações de Belo Monboclos hoje têm mercadoria muita. Eu não te, os beiradeiros têm como referência, sobretudo, o caso de seus vizinhos Xipaya e
Kuruaya. Situações dramáticas, como a dos
Arara – povo de recente contato, para o
qual as compensações, ao que tudo indica, têm tido efeitos devastadores –, lhes são
menos familiares.
3.2.1. Educação
Imagem 31. Porta de madeira
fora de uso, no terreiro de
Benedito Silva de Castro
(Bené), exibindo palavras
escritas por sua irmã Graça |
2013 | Por Daniela Alarcon.
62
Diante da casa de Bené Castro, uma porta de madeira fora de uso exibe algumas
palavras pintadas em azul: “Santa Caza de
Mizericordia Martenidade”. “Isso aí foi minha irmã, a Graça. Cada pessoa que sabia ler
e passava no beiradão, ela ia e pedia lição
para ela”, disse Bené. Não havia – e não há
– escola no alto Iriri. Graça, explicou dona
Deusarina, “não sabe bem, mas destrincha
qualquer coisa para nós”. Quando seu Nazário e dona Deusarina mudaram-se para
Altamira, Graça inalmente frequentou a escola – para dona Deusarina, poder fazê-lo
foi, inclusive, uma das razões da mudança:
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
Eu tinha que mandar educar pelo menos Grávida, diz que deseja voltar ao beiradão,
uma pessoa da minha família. Fora a Graça, mas que só o fará caso haja escola para os
os meus ilhos icaram todos analfabetos. ilhos.
Eu só assino meu nome, e mal.
Se tivesse escola lá [no beiradão], aí era
Não tendo, ele próprio, estudado, Bené
bom. Nós antes éramos todos unidos, agoangustia-se com os ilhos fora da escola:
ra separou tudo. E aqui em Altamira, é difícil. Aqui na rua é muito perigoso, para
A pessoa tem que aprender. Eu mesmo,
os menores, de estar na rua, passa muito
quando chego na rua [na cidade], às vezes
ônibus dessa irma [Consórcio Construtor
eu entro numa rua e não é para eu ir nade Belo Monte] agora aqui. O pai e a mãe
quela. Eu vou procurar, e eu não sei qual
deixam os menores aqui e icam preocué a rua – toda rua tem o nome dela, mas
pados, eu ico responsável. E eu ico preoeu não sei qual é.
cupada com o pai e a mãe. Antes, os ilhos
todos ajudavam a quebrar castanha, agora
Apenas os ilhos mais novos permaneicam eles dois lá sozinhos.
cem no beiradão, com Bené e sua esposa,
Luzia – os mais velhos já se mudaram a São
Félix do Xingu, para estudar. “Para mim,
não compensa mais botar roça grande, não:
meu pessoal está diminuindo”, lamenta
Bené. Os ilhos mais novos de seu Zé Boi e
dona Cleonice estão sendo todos enviados
à cidade, para estudar, provocando à família,
como se indicou no capítulo 1, demasiado
sofrimento. Uma das ilhas do casal, Cleomar da Silva Gomes, de 24 anos de idade, deixou o beiradão aos 9 anos de idade,
mudando-se para junto de uma irmã mais
velha, em Altamira, para estudar. Trabalhou
como doméstica e, recentemente, casou-se.
Como comentam Torres e Nepomuceno,
referindo-se mais especiicamente à comunidade de Mangabal, no Tapajós, o envio de
crianças para estudarem na cidade impõe
às famílias de beiradeiros um conjunto de
diiculdades, como
a exposição a vários riscos que a cidade
oferece, a distância dos pais e de todo
um universo que compôs a mentalidade/
imaginário das crianças ribeirinhas, bem
como o “morar na casa de estranhos” [...]
(2011: 49)50.
Imagens 32 a 34. Filhos de
Benedito Silva de Castro (Bené)
e Luzia Cardoso de Souza:
nunca frequentaram escola |
2013 | Por Daniela Alarcon.
50. Para uma discussão sobre
a percepção dos beiradeiros
de Mangabal acerca dos
riscos que se apresentavam às
crianças na cidade, ver Torres;
Nepomuceno (2011: 54-58).
No caso dos beiradeiros
do alto Iriri, as veriginosas
transformações recentes de
Altamira, decorrentes da
construção de Belo Monte,
tornavam esses riscos ainda
maiores.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
63
Imagem 35. Cleomar da Silva
Gomes, ilha de seu José Alves
Gomes da Silva (Zé Boi) e
dona Cleonice Neves da Silva,
diante da casa onde vive, em
Altamira; ela deixou o beiradão
para estudar | 2013 | Por
Daniela Alarcon.
Imagem 36. Da esq. para a
dir., Joana Gomes da Silva e
Francisca Graça Gomes da
Silva, ilhas de dona Maria
Raimunda Gomes da Silva,
em Altamira, para onde se
mudaram, para que seus ilhos
pudessem estudar | 2013 | Por
Daniela Alarcon.
64
A separação de pais e ilhos, com a saída
destes últimos do beiradão, implica uma interrupção abrupta no processo de transmissão de conhecimentos operado no âmbito
da família, entrelaçado ao trabalho, e que só
pode se desenvolver no território, porque
a ele se vincula diretamente. Bené Castro
cogita mudar-se para a cidade, mas, como se
indicará em mais detalhes adiante, teme não
se adaptar a um mundo do trabalho completamente diverso do seu. A saída de uma das
ilhas de dona Raimunda do beiradão, para
garantir a educação dos ilhos, teve desdobramentos trágicos, que se indicará adiante.
Apesar de tudo que implica sair do beiradão, muitos, porém, acabam fazendo-o,
por causa dos ilhos. Cinco anos atrás, um
dos ilhos de seu Zé Boi e dona Cleonice,
Jovelino, foi embora do beiradão, “porque
os ilhos dele já estavam todos no ponto de
estudar”, comenta sua irmã Francisca. “Se
não tiver um colégio aqui, vamos ter que
abandonar tudo para trás”, diz Francisca,
pensando em seus ilhos, de 11, 6 e 4 anos
de idade. “Vamos ter que colocar os meninos para estudar de qualquer jeito, não
vamos deixar criar igual eu fui criada”.
Essa foi a razão de Francisca Graça e
Joana, ilhas de dona Raimunda, terem saído do beiradão. Quando Joana mudou-se
para Altamira, já tinha uma ilha; Francisca,
por sua vez, era mãe de quatro meninos.
“Nós não queríamos que nossos ilhos fossem criados do mesmo jeito que nós fomos”, disse Joana. “Até hoje meus irmãos
que estão lá não sabem de nada e os ilhos
deles estão criando [sendo criados] no mesmo caminho que eles.” Quando saiu do beiradão, Joana não se instalou de pronto na
cidade: antes, trabalhou em fazendas.
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
Quando eu vim para cá, eu passei mesmo
ruim. Porque eu não conhecia ninguém.
Eu comecei a trabalhar nas fazendas, mas
era um sofrimento demais: porque a gente,
acostumado lá na beira do rio, para ir para
o centro da mata, vendo só mato mesmo,
sem ter rio... Mas a gente foi aguentando.
Depois, eu vim para a beira do rio, para o
lado do rio Xingu aqui em baixo, trabalhando em fazenda. Aí começamos a abrir
um lugar para nós morarmos lá na beira.
Tinha colégio lá e eu coloquei os meninos para estudar; depois, não tinha mais
colégio, aí eu fui obrigada mesmo a vir
para a cidade. Agora, vir aqui para dentro
dessa cidade, para criar os ilhos aqui, é
muito problema. As crianças – não é uma
questão dos meus, os meus, graças a deus,
estão todos vivos e todos sabidos já. Mas
tem muitos aqui que chegam aqui e caem
na perdição.
Escusado dizer que a ausência da escoNa cidade, Francisca e seu esposo separaram-se; para sustentar os ilhos, ela come- la constitui uma violação do direito à eduçou a trabalhar como empregada doméstica cação, garantido pela Constituição Federal
(artigos 6º, 205, 206, 208). Além disso, como
e lavadeira.
se vê, a falta de escola tem atuado como
Se tivesse escola lá no beiradão, eu lhe um eiciente – e perverso – fator de exprojuro que eu tinha icado lá. Porque eu priação da população tradicional que habita
vim para essa Altamira, mas só deus sabe a EsecTM e, consequentemente, constitui
como é que eu vivo. Eu vim-me embora também uma violação aos direitos territode lá, perdi meus ilhos, mataram meus i- riais do grupo. Torres e Nepomuceno (2011)
lhos, não gosto nem de falar nesse assun- já alertaram para os efeitos expropriatórios
to... Foi um sofrimento para eu criar esses exercidos sobre um grupo ribeirinho pela
meus ilhos, trabalhando na cozinha dos omissão do Estado no campo da educação
outros. E hoje em dia não tem nenhum escolar. Conforme os autores, os beiradeiros
perto de mim, só tem um que está vivo e, que partiram compulsoriamente de Mangaassim mesmo, não sei nem onde é que ele bal para matricular os ilhos na escola relaanda. Mataram dois, que eu vi, e o outro taram experiências de “sofrida desterritosumiu – está com mais de cinco anos –, o rialização” (Ibid.: 72).
meu caçula. Dizem que mataram... acho
Em Mangabal, como no alto Iriri, os
que mataram, porque saiu de casa, nunca beiradeiros atribuíam muita importância à
mais voltou e não dá notícia. Acho que escola, associando-a à
mataram, né?, porque nunca mais apareceu.
superação dos problemas enfrentados,
principalmente, quando se faz necessária
O analfabetismo entre os beiradeiros
a relação com o mundo urbano e quando
que vivem na EsecTM é quase absoluto.
busca-se o acesso a direitos civis (Ibid.: 17).
Das crianças que vivem no beiradão, só
frequentaram a escola aquelas que moraEm março de 2013, aproveitando a preram algum período na cidade ou que foram mandadas a escolas indígenas dos ar- sença da procuradora federal Thais Santi,
redores. Um dos netos de dona Raimunda, os beiradeiros que vivem no interior da
por exemplo, estudou um ou dois meses na EsecTM entregaram-lhe um abaixo-assialdeia Tucayá. “Os índios queriam que ele nado, solicitando ao MPF que o direito à
icasse lá estudando, mas a mãe não quis, educação escolar lhes seja garantido51. Asporque icava muito preocupada de não es- sim como em Mangabal, no alto Iriri, gatar olhando ele”, explicou dona Raimunda. rantir o acesso à educação seria “relativaTrês outros netos seus chegaram a estudar mente simples, envolvendo poucos recursos
em Altamira, no período em que os pais dos e nada além do cumprimento da legislação
meninos viveram ali. Quando voltaram ao vigente” (Ibid.: 77). Vale transcrever o abaibeiradão, tiveram que interromper os estu- xo-assinado na íntegra:
dos. Ambos os casos são fonte de angústia
Alto Rio Iriri, Altamira, Pará, 27 mar. 2013.
para pais e ilhos.
Assim, a implementação de uma escola
Somos beiradeiros do alto rio Iriri, entre
no beiradão apresenta-se hoje como a deas localidades Triunfo e São Sebastião, no
manda principal dos moradores da EsecTM.
município de Altamira, Pará. Vivemos da
Dona Clarice oserva:
borracha; depois, da caça de gatos; e, hoje,
de nossas roças, do peixe e da castanha.
Eles [do ICMBio] disseram que iam ver
Aqui no beiradão, somos todos analfabese colocavam o colégio, porque não tinha
tos, por falta de escola. Nossos avós eram
direito de colocar colégio nessa reserva
analfabetos e nosso pais, também; nossos
onde nós vivemos.
51. Por solicitação dos
beiradeiros, auxiliamos na
redação do abaixo-assinado.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
65
Imagem 37. À esq. da imagem,
vê-se seu Francisco Pereira de
Souza, conhecido como Chico
Preto, beiradeiro que morreu
em 2010, após passar mal e
não receber assistência médica
| 2008 | Por Mauricio Torres.
ilhos e netos são analfabetos. Nós icamos
pensando: será que nossos ilhos nunca
vão para a escola? As crianças nos pedem
para estudar, assim como nós pedíamos
aos nossos pais – mas o que nossos pais e
avós poderiam fazer?
Para dar estudo aos seus ilhos, muitos dos
nossos vizinhos e parentes foram embora;
muitas famílias estão saindo do beiradão
para colocar os ilhos para estudar, em Altamira ou em São Félix do Xingu. Mas
nós não queremos sair do lugar onde nascemos e onde temos nossos mortos enterrados. Além disso, não temos casas na
cidade e não temos condições para viver
de aluguel. Aqui, nós temos terra, temos
o rio; na cidade, não temos nada. Na falta
de escola, alguns de nós mandaram alguns
dos ilhos para estudar na cidade. Para
mantê-los lá, temos que fazer muito sacrifício. Uma coisa que nos dói demais é ter
nossos ilhos pequenos separados de nós,
passando diiculdades na cidade.
Para quem não sabe nem assinar o nome,
tudo ica difícil. Quando vamos a um comércio grande, para saber os preços das
coisas, temos que perguntar para alguém.
Às vezes passamos vergonha, pois chegamos ao caixa sem saber a conta, o dinheiro
que levamos não é suiciente e temos que
devolver as coisas na prateleira. Quando
vamos visitar um doente nosso no hospital,
não conseguimos encontrar o quarto, porque não podemos ler as placas. Quando
nós chegamos a um lugar em que é preciso ler alguma coisa, icamos com vergonha, porque não estamos sabendo de nada.
Nada a gente sabe.
Sem estudo, nossos ilhos e netos vão icar
como nós, e nós não queremos que nossos
ilhos passem o que nós estamos passando.
Nós icamos tristes ao ver que os meninos
da idade dos nossos estão estudando, e os
nossos não. Nós ouvimos no rádio a presidenta Dilma falando que não quer uma
criança fora do colégio, mas nós perguntamos: como vamos colocar nossos ilhos
para estudar se não temos escola? Conhecemos nossos direito e reivindicamos uma
escola no beiradão.
3.2.2. SaúdE
Os beiradeiros que vivem no interior da
EsecTM, como se indicou, não têm absolutamente acesso à saúde básica: não há posto
de saúde na área, os moradores não têm
acesso regular a consultas, exames e medicamentos, e não dispõem de resgate emergencial. O estudo preliminar para criação
do mosaico de áreas protegidas na EsecTM
já apontava: os ribeirinhos dependiam completamente dos postos de saúde das TIs e
de eventuais caronas, concedidas, por exemplo, por regatões (Villas-Bôas et al., 2003:
100). As visitas de funcionários da Fundação
Nacional de Saúde (Funasa), voltadas principalmente aos casos de malária, tinham
frequência irregular e não percorriam toda
a extensão dos rios, deixando diversas famílias desassistidas.
Conforme dona Deusarina,
O médico lá do alto [do Iriri] é primeiramente deus, depois a gente, com os remedinhos do mato. Eu fazia muito remédio; aprendi com deus mesmo, deus me
ensinando.
Na mesma direção, seu Zé Boi comentou: “Problema de saúde, aqui mesmo é só
deus”. Quando um de seus ilhos sofreu
um acidente, denunciou dona Zefa em uma
reunião com o ICMBio, realizada em 2011,
demoraram 15 dias para conseguir socorro.
66
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
67
Imagem 38. Reprodução do
abaixo-assinado entregue
pelos beiradeiros do Iriri à
procuradora federal Thais
Sani, em março de 2013.
68
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
69
70
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
Em emergências, os beiradeiros que vivem
mais a montante costumam se deslocar até
São Félix do Xingu, utilizando a estrada da
Canopus; nesse sentido, a manutenção dessa
vicinal é crucial.
“Nós não temos voadeira, o que nós temos é rabetinha: no caso de urgência, isso
não socorre ninguém”, completa seu Zé
Boi. “Já aconteceu, em caso de emergência,
de nós irmos de rabeta, no barquinho do
pai, quatro, cinco dias, até Altamira, no inverno”, disse uma ilha de seu Zé, Francisca.
“Meu irmão chegou a falecer”, disse ela. O
menino, que hoje teria 20 anos de idade,
morreu aos oito meses.
Deu malária, não teve como. Nós levamos
para a dona Maria Pelucha, que era rezadora. Quando chegou, a febre não passava,
aí deu hepatite. Não deu tempo de chegar
à cidade.
Como já se indicou, seu Chico Preto,
marido de dona Das Neves, também morreu por falta de assistência, em 2010. Muitos
beiradeiros têm histórias semelhantes para
contar.
Quando, em uma conversa sobre saúde,
uma consultora do ICMBio comentou-lhe
que “hoje está tudo mais fácil”, dona Raimunda replicou:
Está fácil e não está. Nós aqui vivemos
assim: um dia, minha nora quase morre, e
eu também passei muito mal. Se aquele
pessoal da [aldeia] Tucamã ou da Tucayá
[ambas na TI Xipaya] estiver descendo
para a rua, eles levam a gente, mas tem
que a pessoa sair daqui e pegar passagem
lá. Só que não tem um transporte aqui! Se
for uma doença para morrer – que deus
defenda, minha querida –, morre na hora.
Porque cadê barco? Quando tem o motor, não vem o combustível. Aí nós morremos do mesmo jeito – não é, não, minha
patroa?
3.2.3. tranSportE E acESSo a
mErcadoriaS
Outra importante demanda dos beiradeiros
que vivem na EsecTM é ter meios de transporte regulares, hoje absolutamente inexistentes. Para acessar direitos sociais (emitir
documentação civil ou requerer benefícios
previdenciários, por exemplo), para ir ao
médico, comprar medicamentos, comprar
mantimentos, visitar parentes – enim, para
qualquer questão que demande sua ida a
Altamira ou São Félix do Xingu –, os beiradeiros têm de contar com caronas ou fretes.
No caso dos barcos que oferecem fretes, a
periodicidade com que partem é tão irregular quanto a das caronas e aos beiradeiros
costumam ser cobradas pela viagem cifras
altíssimas. No verão, quando as águas baixam, tornando a viagem mais perigosa e
demorada, o luxo de embarcações escasseia ainda mais. A estrada da Canopus, por
sua vez, encontra-se em péssimas condições
de manutenção, permitindo a passagem de
determinados veículos apenas52.
Há famílias que planejam um só deslocamento anual a Altamira ou a São Félix do
Xingu, ocasião em que procuram comprar
o rancho do ano todo. Outras aproveitam
embarcações que estejam descendo o rio e
mandam recados a familiares que vivem na
cidade, solicitando que enviem mercadorias
aos cuidados do piloto ou de algum passageiro. Há ainda os que dependem quase
inteiramente dos regatões, comprando “no
troco”, como já se indicou.
Com a queda do preço da seringa, a
quantidade de regatões no alto Iriri, bem
Imagem 39. Casa de seu
Manoel Messias Pereira da
Silva, conhecido como Manoel
da Cachoeirinha, que atua
como regatão no rio Iriri | 2013
| Por Daniela Alarcon.
52. Sobre a questão da
manutenção das estradas, ver
Escada et al., 2005: 21.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
71
como a frequência de sua circulação por
esse trecho do rio, diminuíram drasticamente – agora, os barcos só sobem no inverno, quando se dá a safra da castanha
e, além disso, a navegação é mais fácil. Se
tiverem de comprar a estiva no verão, os
beiradeiros têm de viajar a Altamira ou a
São Félix do Xingu – desde que é, claro,
tenham condições inanceiras para tanto.
Do contrário, passarão meses sem itens de
necessidade básica.
A criação da EsecTM e a consequente
proibição à circulação de estranhos no interior da mesma izeram com que o número
de regatões em atividade no alto Iriri caísse
ainda mais. “Aqui não pode entrar regatão,
não, é ordem desse pessoal, eu não posso
entender isso”, diz dona Raimunda. Apenas
Manoel da Cachoeirinha e, eventualmente, um comerciante conhecido como Zeca
Costa ainda negociam por ali.
constataram que quando os beiradeiros, por
alguma razão, tinham de sair de seus lugares, tendiam a descer o rio, permanecendo
junto às suas margens, resistindo a se mudar
para a cidade (Villas-Bôas et al., 2003: 107).
Ao descrever suas experiências na cidade –
mesmo quando se trata de estadas curtas
– os beiradeiros falam do que é estar “fora
de lugar”. Dona Raimunda é taxativa: “Para
Altamira, eu não quero ir, não. Eu já chorei
tanto um dia desses, mana, quando passei
presa lá” (ênfase nossa).
3.3. a SaÍda do bEiradão
Cumpre analisar detidamente quais as implicações, para os ribeirinhos, da saída do
beiradão, para que se possa dimensionar
de forma mais precisa os efeitos da pressão expropriatória protagonizada pelo Estado. Como já se indicou, a identidade dos
beiradeiros é intrinsecamente relacionada
ao território. “O ‘ser beiradeiro’, além do
local de origem, deine uma pertença e um
modo de vida”, que só pode ser reproduzido ali (Torres, 2009:11). “Nesse sentido, o
lugar de nascimento e de vida é constitutivo da identidade individual e social” (Idem).
A expropriação, assim, além de acarretar as
perdas mais óbvias, desencadeia um amplo
processo de desenraizamento e contribui
para a desarticulação de todo o grupo.
Porque a senhora sabe: a rua é só para a
senhora, que já mora lá há muitos anos.
Quem nasceu aqui no meio do beiradão
não acostuma lá, não. Aquela quentura
mata a gente, é uma quentura imensa nos
meses de agosto e setembro. Aquelas galinhas velhas, a gente come e adoece, não
tem um peixe fresquinho na hora, né? Não
é porque eu seja convencida, não, é porque eu amo esse nosso lugar. Aqui você
pega um peixe, um pacuzinho, come, pega
uma curimatazinha fresca e come, né? Ali
eu pego pacu brincando, e aquele peixe
é sadio. O de lá é no gelo – aquele peixe
no gelo não faz bem para ninguém, não. E
agora, caro como está? O aposentado ganha só um salário – eu, pelo menos. A rua
é só para a senhora, que mora lá já.
Na cidade, os beiradeiros geralmente
passam a viver em condições precárias, na
periferia, empregando-se como trabalhadores assalariados. Assim, a expropriação
acarreta ainda um processo de “invalidação
cultural”, já que
o amplo e rico rol de saberes, fruto de gerações de convivência com a loresta, pouco ou nada valem em um novo sistema de
trabalho (Torres, 2009: 11-12).
A expulsão da terra rompe o elo do grupo com suas origens e lembranças. Causa,
com isso, um abalo em sua identidade, pois,
Bené Castro comentou-nos que, por veo sentimento de identidade constitui-se,
também, da memória (Ibid.: 14).
zes, pensava em se mudar para São Félix do
Xingu, mas desistia quando se perguntava:
Durante os levantamentos preliminares no que trabalharia ali?
para a criação do mosaico de áreas proteMuitas são as falas em torno das diigidas da Terra do Meio, os pesquisadores culdades enfrentadas por aqueles que par-
72
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
tiram. Alguns casos são mesmo dramáticos – por exemplo, o de Francisca Graça,
ilha de dona Raimunda, que depois de se
mudar a Altamira, como já se indicou, perdeu seus quatro ilhos (dois assassinados e
dois desaparecidos). Uma irmã de Francisca, Maria das Chagas Gomes da Silva, também desapareceu “na rua”, depois de haver
se mudado para Itaituba (“ela nunca mais
deu notícias, ouviu dizer que a mataram”,
contou dona Raimunda). Mesmo quando
não chegam a esses extremos, as trajetórias
dos beiradeiros na rua sempre comportam
privações. Referindo-se a seus irmãos que
vivem na cidade, Francisca, ilha de seu Zé
Boi, comentou:
Tem um bocado das minhas irmãs que
pensa em voltar – assim, se tivesse um colégio por aqui, né? Sabe como é, ninguém
tem casa (não vou mentir), o aluguel você
sabe como está. Salário, às vezes nem tem.
Meus irmãos trabalham em tudo que aparecer: minhas irmãs trabalham de domés-
tica, meus irmãos de pedreiro, ajudante,
qualquer coisa que aparecer para eles.
Recentemente, uma irmã de Francisca,
Priscila, de 21 anos de idade, retornou ao
beiradão, junto ao esposo, Delcivaldo Neves da Silva, e ao ilho de 11 meses. “Em
Altamira é muito ruim. Se não tiver dinheiro, quase não tem nada”, diz Priscila, sobre
a razão do retorno. Muitos que vivem em
Altamira seguem identiicados com o beiradão; alguns periodicamente passam temporadas ali, por exemplo, durante a safra da
castanha, para ajudar os parentes na coleta. Geralmente sem casa própria nem laços
empregatícios na rua, seus vínculos continuam no beiradão.
Francisca Graça recorda as cartas que escrevia (ou melhor, ditava), depois de ter se
mudado para Altamira: enviava-as aos pais,
de barco, e então esperava longamente até
que a embarcação descesse com a resposta.
Hoje, comunicam-se mais facilmente, via
rádio. Mas, ainda assim, ela e as irmãs vi-
Imagem 40. Priscila da Silva
Gomes, com seu ilho; ela
retornou recentemente ao
beiradão, após um período
em Altamira, aonde se mudou
para estudar | 2013 | Por
Daniela Alarcon.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
73
vem preocupadas. Joana, irmã de Francisca
Graça, diz:
A mamãe tem problema de pressão, de coração, e ica lá porque não se dá aqui na
cidade. Aí a gente ica sofrendo, pensando:
“e se ela morrer lá em cima?”.
Também dona Raimunda preocupa-se com
os ilhos na cidade:
Eu tenho muito medo dos meus ilhos na
rua. Porque ali na rua é o seguinte: tem
muita gente bacana, muita gente amorosa a deus, mas tem muita gente que é da
parte do demônio. Porque lá em Altamira estão matando igualmente como mata
porcão dentro d’água – mata sem ter pena.
Se você sair na rua, eles matam para tomar
um relógio, para tomar um cordão, para
tomar uma bicicleta. É muito triste aquela
rua! Por isso eu não quero estar ali.
Dona Raimunda e outros beiradeiros
enfatizam, de forma recorrente, que nunca “abandonaram” o beiradão, expressando,
assim, seu arraigo. Quando percorremos o
território junto aos ribeirinhos, é possível
conhecer muitas marcas mnemônicas, que
indicam seus vínculos e de seus antepassados com lugares especíicos.
Em um cemitério no Laranjeira (onde há
um cruzeiro), em vários outros “cemiterinhos” (já que “ninguém viajava muito com
corpo dentro de canoa, convidava os que
estavam vivos e enterrava ali por perto”) e
nos arredores das casas, têm seus parentes
sepultados. Os nomes de igarapés, grotas,
ilhas, cachoeiras e outros marcos carregados de sentidos para cada núcleo familiar, e
para o grupo como um todo, põem em relevo as relações entre memória, identidade
e toponímia, bem como as concepções territoriais dos beiradeiros, demandando investigações detidas (ver mapas 3 e 4). Inclusive
os nomes pelos quais são conhecidos alguns
locais dão conta de sua associação a beiradeiros que neles habitaram – associação que
resiste mesmo décadas após a partida desses
indivíduos.
74
No marco do processo de estabelecimento do TC, estão em discussão as condições de permanência das famílias que lá
se encontram. Contudo, há que se lembrar
daquelas que saíram forçadamente. Quando
da criação da EsecTM, famílias que haviam
sido recentemente expulsas do beiradão
por grileiros encontravam-se nas periferias
de Altamira e São Félix do Xingu e manifestavam desejo de retornar a seus lugares
(Sauer, 2005: 112). O papel desempenhado
pelos representantes do Ibama e o do ICMBio na expulsão de outras famílias já icou
claro. Neste caso, a expropriação deu-se
tanto de forma direta (e mesmo criminosa, como no caso de quem teve sua casa
incendiada), quanto indireta, por meio da
imposição de restrições às atividades econômicas dos beiradeiros e da persistência às
violações a seus direitos básicos. Em uma
reunião com beiradeiros realizada em 27 de
março, a chefe da EsecTM, Tathiana Chaves
de Souza, admitiu o papel expropriatório
do órgão, mas não avançou para o que seria
a consequência lógica de sua airmação –
ao contrário, afastou a possibilidade de retorno das famílias:
A gente sabe que quem saiu foi estrangulado, que o ICMBio quebrou a perna de
quem saiu, mas o caminho não é retornar
à Estação Ecológica. Quem retorna está
agindo dentro da ilegalidade.
Com isso, vive-se um insólito cenário,
sintetizado com amargor por seu Nazário,
em sua casa na periferia de Altamira: “Eu
abri aquele lugar e hoje não tenho direito
de voltar”.
3.4. tErmo dE compromiSSo
Nos dias 26 e 27 de março de 2013, os beiradeiros que vivem no interior da EsecTM
reuniram-se com representantes do ICMBio
e outras instâncias para aprovar uma minuta
de TC, que seria então submetida à análise
e eventual aprovação pela procuradoria e
pela presidência do órgão gestor. A IN nº
26 tem como uma de suas diretrizes a
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
participação efetiva e qualiicada dos grupos sociais envolvidos em todas as etapas
de elaboração, implementação e monitoramento do termo de compromisso (art. 4º,
inciso V).
discussão aí travada pode ser extrapolada
para a análise das relações entre o órgão
gestor e os grupos ocupantes de outras categorias de UCs, inclusive de proteção integral. Nestas últimas, frise-se,
Daí, a realização da mencionada reunião,
que seria a culminância de um processo de
construção participativa em curso nos últimos anos.
Acompanhamos os debates transcorridos
nesses dias, bem como participamos, na véspera, de duas reuniões preparatórias: a primeira, com o ICMBio, seus colaboradores e
o MPF; a segunda, com os beiradeiros e colonos. Esta última reunião foi proposta por
um beiradeiro, a partir da constatação de
que o grupo, até então, não tivera oportunidade de conversar sobre o TC sem a presença do ICMBio, condição indispensável
para construírem seus consensos livremente.
Para esta reunião prévia fomos convidados
pelos beiradeiros, para que os assessorássemos, facilitando sua compreensão da proposta de TC que lhes seria apresentada nos
dois dias seguintes, pelo ICMBio.
Ao cabo desses três dias de atividade, foi
aprovada pelos beiradeiros e pela cheia da
EsecTM uma minuta de TC que diferia, em
pontos cruciais, da proposta inicialmente
apresentada pelo órgão gestor (ver anexos 1
e 2). Em nossa avaliação, a nova minuta (encaminhada para apreciação e aprovação em
Brasília) lastreia-se em uma compreensão
mais acurada do modo de vida dos beiradeiros e, consequentemente, prevê regras mais
pertinentes e factíveis, com condições de garantir efetivamente a conservação ambiental
e condições para a reprodução do modo de
vida das famílias que habitam a EsecTM.
Segundo o ICMBio a primeira minuta
era fruto de um longo processo de participação. Ao investigar os limites das possibilidades de participação de populações
tradicionais nas decisões sobre o território
no quadro do atual modelo de gestão das
UCs, Guerrero, Torres e Camargo (2011)
enfatizam, porém: “participação” é necessariamente uma noção em disputa. Embora o
artigo focalize especiicamente as Resex, a
as discussões sobre os limites da participação dessas populações nos fóruns de
decisão ocorrem na esteira de uma conquista anterior, que é o próprio reconhecimento de que, embora os princípios desse
tipo de UC coloquem em primeiro plano
a preservação ambiental e a considerem
incompatível com qualquer presença humana, era preciso levar em consideração a
ocupação que lá se encontrava (Ibid.).
Ao tempo em que reconhecem a preocupação autêntica manifestada pelo ICMBio
em relação à gestão participativa, os autores
alertam que o órgão não tem sido capaz
de efetivá-la. Sem dispor de metodologias
adequadas e de suiciente conhecimento
etnográico – que permitiria compreender
minimamente as peculiaridades dessas populações no que diz respeito à tomada de
decisões, à linguagem e à expressão política –, é comum que se tome por aprovação
e consenso o que são, na verdade, opiniões
contrárias ou resistências expressas “na forma de silêncios ou não-respostas” (Ibid.).
Quando dona Das Neves contava a respeito
de uma proibição que teria sido imposta aos
beiradeiros pelo ICMBio e lhe perguntamos
por que eles não haviam manifestado sua
discordância, como ela fazia agora, ela respondeu: “Aqui ninguém sabe falar, aí todo
mundo icou quieto”. Na mesma direção,
Em um mundo onde a sobrevivência material e social depende da solidez de laços
de vicinalidade, um posicionamento publicamente manifestado em contrário ao de
um parente, um vizinho ou um compadre
pode abalar e ameaçar a relação da qual,
não raro, ambos dependem (Ibid.).
Quando a condução dos processos de
participação não se lastreia em preocupações metodológicas dessa natureza, etno-
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
75
graicamente informadas, o risco de interpretações equivocadas é tremendo. Em um
texto também dedicado às Resex, mas, mais
uma vez, útil para compreender o caso sobre o qual nos debruçamos aqui, Postigo
chama a atenção para duas barreiras fundamentais à participação efetiva dos beiradeiros em espaços de gestão: a inexistência de
momentos prévios para discussão da pauta
entre os beiradeiros, ao contrário do que
costuma ocorrer com os representantes do
governo; e a “situação de reunião”, com a
qual os representantes do governo são amplamente familiarizados, sendo que o mesmo não ocorre com os ribeirinhos (2012:
37). Processos de participação que se desenvolvem em condições assim adversas terminam por redundar no que Guerrero, Torres
e Camargo (2011) chamaram de “exclusão
participativa”, em que
As restrições inligidas pelo ICMBio
revestem-se do selo da participação – e
muitas vezes esta é efetivamente almejada
– de modo que tais limitações ao grupo
apareçam como se por eles chanceladas
fossem.
76
A vIDA DOS bEIRADEIROS NA ESTAçÃO EcOLógIcA
Assim, escamoteando-se o conlito, a
despeito de este ser um elemento constitutivo da dinâmica social, o órgão gestor
tende a fazer prevalecer sua perspectiva,
em detrimento daquela do grupo envolvido na disputa. Apenas tendo isso em
vista é possível compreender as razões do
contraste entre as duas minutas de TC – e,
sobretudo, sentar as bases para que a implementação desse instrumento de gestão
transcorra no marco de processos participativos de fato.
Finalmente, é fundamental que a aprovação do TC ocorra com a maior celeridade possível, posto que, como já se indicou,
a minuta aprovada pelos beiradeiros encontra-se em Brasília há mais de um ano e
meio, sem que o ICMBio tenha, até o momento, dado notícia de encaminhamentos
relativos à mesma ou apresentado quaisquer justiicativas para sua inação. Já se vão
nove anos desde a criação da EsecTM e a
situação dos beiradeiros que vivem em seu
interior continua, até agora, incerta.
4. Perspectivas
para os
beiradeiros
4.1. pESquiSa E atuação EStatal
A
té o presente momento, não foram objeto de qualquer estudo etnográico, as
relações de parentesco, compadrio e vicinalidade estabelecidas pelos beiradeiros que
vivem no interior da EsecTM; os modos
como se relacionam com animais, vegetais e outras classes de seres que habitam
o território; os saberes por eles expressos
no vocabulário, na toponímia, nas atividades produtivas, no preparo de alimentos, na
elaboração de remédios, na construção de
canoas, casas e artefatos de uso cotidiano,
enim, nos diversos âmbitos de suas vidas.
Elencamos a seguir, brevemente, algumas informações coletadas em campo, em
que é possível entrever aspectos da cultura
dos beiradeiros que vivem na EsecTM. Tais
informações, frise-se, são fruto de coleta assistemática, desenvolvida no marco de uma
pesquisa não etnográica, de curta duração,
e que tinha por objeto principal a situação
fundiária dos beiradeiros, e não as representações engendradas pelo grupo em outros âmbitos de sua vida. Apresentamo-nas
com o intuito de enfatizar, mais uma vez, a
necessidade de investigações aprofundadas
junto ao grupo, focalizando a complexidade e a especiicidade de seu estar no mundo.
Apenas munidos de estudos dessa natureza
poderemos aspirar a uma compreensão mais
adequada do modo de vida e do universo
simbólico dos beiradeiros do Iriri, fundamental para subsidiar a atuação do Estado
em face dessa população.
Ainda que o esvaziamento do beiradão
tenha reduzido drasticamente o número de
rezadores e parteiras, ainda vivem ali indivíduos que dominam essas práticas. As falas
dos ribeirinhos dão conta da existência de
[em senido horário,
começando do canto superior
esquerdo]:
Imagem 41. Canto da cozinha
de dona Maria Raimunda
Gomes da Silva | 2013 | Por
Daniela Alarcon.
Imagem 42. Fogão de barro
na cozinha de seu José Alves
Gomes da Silva (Zé Boi) e dona
Cleonice Neves da Silva | 2013
| Por Daniela Alarcon.
Imagem 43. Paneiro de cipó,
na casa de seu Pedro Araújo
de Almeida, conhecido como
Pedro Brejeira | 2013 | Por
Daniela Alarcon.
Imagem 44. Prateleiras
na cozinha de dona Maria
Raimunda Gomes da Silva |
2013 | Por Daniela Alarcon.
Imagem 45. Detalhe da
cobertura da casa de dona
Maria Raimunda Gomes da
Silva, em palha de babaçu |
2013 | Por Daniela Alarcon.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
79
53. Note-se que, muitas
vezes, não há correlação
unívoca entre a classiicação
de enfermidades efetuada
pelos beiradeiros e aquela
considerada cieníica. Ao
passo que termos como
rendidura têm equivalente
razoavelmente preciso –
tratar-se-ia de um sinônimo
de hérnia –, outros podem
nomear mais de uma
enfermidade cieniicamente
reconhecida ou, mesmo,
referir-se a doenças sem
equivalência.
54. Sobre a “mãe do corpo” ou
“dona do corpo”, em outros
contextos etnográicos, ver
Víctora (1998) e Macedo
(2007). Para uma etnograia
focalizando a atuação de
parteiras em Melgaço, Pará,
ver Fleischer (2007).
55. Como demonstram estudos
recentes, a castanheira é uma
espécie antropoílica, cuja
distribuição é condicionada
e favorecida pela presença
humana: Scoles (2012) e
Scoles; Gribel (2011 e 2012).
80
rezas para uma ininidade de enfermidades,
como “vermelha”, “espinhela caída”, “rendidura” e “peito aberto”53. Apesar de termos
sido informados de que seu Evaristo era o
único rezador em atividade na EsecTM (na
aldeia Tucayá, vive um rezador conhecido
como seu Chico, a quem os beiradeiros
também recorrem), em uma conversa informal, dona Raimunda comentou que também a praticava. “Eu benzo, tanto faz ser
criança como gente grande.” Ao que parece,
rezava com menos frequência que seu Evaristo – no passado, bastante procurado para
esse im – e não se debruçava sobre determinadas enfermidades, como peito aberto.
Sabia rezas “para livrar do malfazejo” e preparava cordões com orações, para colocar
nos braços dos parentes, para proteção.
Com as avós, dona Raimunda aprendeu
a preparar remédios de mato. Para gripe,
por exemplo, elabora um “lambedor” (isto
é, um xarope) à base de casca de angico,
que pede a Bené, seu ilho, para buscar no
lugar conhecido como Tapera. Se o angico faltar, folhas de mangueira tornam-se o
ingrediente principal. Bené também sabe
remédios: quando alguém é mordido por
escorpião, o fato (as entranhas) do animal,
depositado sobre a ferida, suga o veneno;
o olho do oti também é um antídoto. Apesar de não ter atuado como parteira, dona
Raimunda explicou-nos em detalhes, baseando-se em seus partos, como atuavam as
mulheres que “pegavam criança”:
Elas faziam o serviço na barriga da gente,
com óleo doce, azeite doce, para ajudar,
né? Aí quando era para o nenê nascer, pegavam álcool ou cachaça, lavavam as mãos
com cachaça, aí pegavam um panozinho
limpinho, e iam pegar o nenê. Eram muito asseadas. De primeiro, o pessoal sabia
banhar nenê. Hoje, não, nos hospitais não
banha mais, não. Só passam um panozinho,
porque nasce quente. Aí os doutores não
querem banhar mais, não. Aqui banhava,
não sabiam [que supostamente não deveriam fazê-lo] – vai ver morriam [bebês]
por isso, né? Mas acho que não morria
[por isso], não. Era na água morninha. O
PERSPEcTIvA PARA OS bEIRADEIROS
umbigo, a pessoa guarda, porque diz que
se o rato roubar, ica ladrão. E se tiver
aquela doença que chama doença de ar,
doença que dá em criança, que ica todo
torto, aí a pessoa pega um pedacinho bem
pequeno, faz o chá e diz que nunca mais
dá. Quando dá febre alta, dá o chá.
Como já se indicou, diversos procedimentos eram adotados pelas beiradeiras nos
dias subsequentes ao parto, incluindo um
resguardo alimentar, observado também
durante o período menstrual. “Na menstruação, as carnes da gente estão abertas”,
explicou dona Raimunda. “Porque aquilo
ali é uma coisa, uma veia que vem, que
derrama a menstruação três dias, quatro
dias”, completou, aludindo também à “mãe
do corpo”, conceito de difícil deinição, espécie de entidade ou órgão que controla as
funções reprodutivas femininas54.
Além dos resguardos associados à reprodução, alguns tabus alimentares são observados pelos beiradeiros que vivem na EsecTM.
Eles não se alimentam, por exemplo, da
carne do tatu canastra. “Antigamente – eu
não sei –, diziam que, se alguém matasse o
tatu canastra, um da família morria. Então,
ninguém come ele”, explicou Branquinho.
Como se vê, as atividades cotidianas – neste
caso, a alimentação – são informadas por
concepções partilhadas pelo grupo e que
deinem a maneira como se situam no
mundo.
Isso ica evidente também quando seu
Zé Boi descreve o modo como lida com
seus castanhais. Se a castanheira não é “zelada”, explica, cobre-se de ramas e passa a
produzir poucos ouriços. “Meus piques são
assim, ó: eu chego no pé de árvore e zelo
ele todinho. Meu castanhal não perde a força.” Uma relação de reciprocidade estabelece-se entre a árvore e aquele que dela cuida:
Ela doma com a pessoa. Se você não passar lá, ela não joga uma fruta no chão. Depois que você começa a zelar, ela começa
a produzir. É por isso que eu digo que ela
doma55.
Ao falar das limeiras que dão nome ao
lugar onde vive, dona Das Neves vai na
mesma direção:
da implementação de programas e projetos comuns a ambos os grupos de famílias.
Com isso, talvez se atualizem os laços que
uniam os núcleos familiares de todo o beiQuando chegamos, os pés eram bem para radão – no limite, outrora pertencentes a
acolá. Mas eles vêm andando, para o rumo um só grupo, que terminou cindido quando,
da gente. Os velhos vão morrendo e os sobre ele, impuseram-se UCs de diferentes
novos vão vindo para perto da casa.
categorias.
Vale notar que as falas dos ribeirinhos
Como já se indicou, os beiradeiros es- vão na contramão do que se aiançava no
tão imersos em um horizonte de sentidos seminário “Perspectivas para a Terra do
diverso daquele dos pesquisadores e dos Meio”, realizado em 2006, com a participaagentes do Estado. Conhecê-lo com alguma ção de organizações não-governamentais e
profundidade é condição indispensável para representantes do poder público, isto é, de
a garantia de uma atuação estatal mais con- que o governo e os ribeirinhos moradores
sequente, que respeite de maneira irrestrita da EsecTM haviam estabelecido um acoros direitos dessa população.
do prevendo a mudança das famílias para a
Resex Rio Iriri. No relatório inal do semi4.2. EncaminhamEntoS para a Situação
nário, lê-se:
tErritorial doS bEiradEiroS
56. “Não existe conceito de
propriedade de terra para os
habitantes, mas o castanhal
pode ser designado como um
indicador de ocupação ou
‘territorialidade’. Segundo relato,
o primeiro a chegar ao castanhal
‘cru e botar ele em dia’ (fazer
as estradas e limpar o entorno
das árvores) era considerado o
‘proprietário’. Cada castanhal
tem, portanto, um ‘dono’ e pode
estar situado em uma localidade
diferente daquela onde se situa
a moradia”
(Villas-Bôas et al., 2003: 123).
Imagem 46. Dona Maria
Raimunda Gomes da Silva, em
canoa no rio Iriri, à beira do
qual nasceu e onde sempre
viveu | 2007 |
Por Mauricio Torres.
Os ribeirinhos entrevistados não querem
sair de sua terra. “Para ir para o que é dos
outros, é melhor ir embora de uma vez”,
observou seu Zé Boi, rechaçando a proposta
de, eventualmente, mudar-se para a vizinha
Resex Rio Iriri. Para ele, era moralmente
inconcebível violar os direitos territoriais
de outros beiradeiros, disputando poços de
pesca, castanhais e outros locais. Tanto que,
dizia, se viesse a ser pressionado a se mudar
para a Resex, deixaria o beiradão, estabelecendo-se em Altamira – para dimensionar a
gravidade de sua fala, é importante lembrar
o quão indesejável, para os beiradeiros, é
a perspectiva de viver na cidade, como se
indicou no capítulo anterior.
Preiro ir-me embora. Porque eu não vou
icar num lugar onde eu não conheço,
onde já tem os donos. O cara chegar assim
para não ter nada, ele vai icar sofrendo
pela mão dos outros. Deixar o que é meu
aqui para ir para o que é dos outros... eu
não faço isso, não56.
Nesse quadro, qualquer aproximação espacial do grupo que vive na EsecTM com
os moradores da Resex só pode ser contemplada como horizonte, como perspectiva a
ser fortalecida, eventualmente, por meio
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
81
Quanto a [à] população ribeirinha que
se encontra nestas áreas [EsecTM e Parna Serra do Pardo] é levantada a situação crítica de assistência a serviços básicos.
Esta população, [sic] encontra-se [,] após
a saída dos madeireiros ilegais da região,
sem auxílio, e está aguardando transporte
e indenização de suas benfeitorias para se
mudar para a Resex do Iriri, conforme
acordo realizado. Seria uma das primeiras
vezes que um processo de reassentamento de uma unidade de proteção integral
acontece de maneira relativamente simples, com a anuência dos moradores, por
isso, julgamos prioritária a ação do governo nesta direção (Velásquez, 2006: 32).
À época, os beiradeiros talvez não vissem problemas em morar mais a jusante,
independente de onde estariam seus castanhais e poços de pesca. Note-se que, então,
as duas UCs (EsecTM e Resex Rio Iriri)
apenas começavam a ser implementadas,
não havendo ainda cindido o território.
Hoje, o contexto é muito diferente: para
os beiradeiros da EsecTM, mudar para a
Resex signiicaria deixar seu lugar. Onde
estão os cemitérios velhos, os piques de
castanha “amansados”, onde se pega pacu
“brincando”, onde eles nasceram, de onde
82
PERSPEcTIvA PARA OS bEIRADEIROS
não saíram – é ali que querem icar. E icar,
evidentemente, em condições dignas, passando a ter o que nunca tiveram: acesso aos
direitos que lhes são constitucionalmente
garantidos, notadamente os direitos à educação e à saúde.
Nesse sentido, espera-se que a celebração de um TC entre o ICMBio e os beiradeiros que vivem no interior da EsecTM
ponha im, deinitivamente, às práticas de
violência institucional de que essas famílias
têm sido vítimas; que se passe a garantir a
participação efetiva dos beiradeiros nas decisões que os afetem, rompendo com mecanismos que se constituem antes como simulacro, que como participação de fato; e que
seus direitos sejam assegurados pelo Estado
brasileiro. Espera-se, ainda, que as violências cometidas contra os beiradeiros sejam
investigadas e aqueles que as cometeram,
responsabilizados administrativa e judicialmente. Finalmente, considerando-se que os
direitos dos beiradeiros têm sido historicamente violados e que a perpetuação da situação de indeinição em que vivem provoca-lhes apreensão e angústia, constituindo
também uma forma de violência, espera-se
que a aprovação do TC e a colocação em
prática das medidas daí decorrentes ocorram o mais rapidamente possível.
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“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
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90
REFERêNcIAS bIbLIOgRáFIcAS
6. Anexos
Anexo 1: Minuta do termo de compromisso
apresentada aos ribeirinhos pelo ICMBio
Anexo 2: Minuta do termo de compromisso
aprovada pelos ribeirinhos em reunião
com o ICMBio
anExo 1:
minuta do tErmo dE compromiSSo aprESEntada aoS ribEirinhoS pElo icmbio
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
93
94
ANExOS
TERMO DE COMPROMISSO Nº
/2013
Termo de Compromisso no
celebrado entre o
Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio) – Estação Ecológica da
Terra do Meio (EETM), os chefes das populações
tradicionais residentes às margens do Rio Iriri e
do Rio Xingu, no interior da EETM, e os chefes
de famílias das populações tradicionais usuárias
dos seus recursos naturais, com o objetivo de
compatibilizar a presença destas famílias com os
objetivos da Unidade de Conservação.
O
INSTITUTO
CHICO
MENDES
DE
CONSERVAÇÃO
DA
BIODIVERSIDADE, Autarquia Federal criada pela Lei no 11.516 de 28/08/07,
vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com sede e foro em Brasília/DF, e
jurisdição em todo Território Nacional, inscrito no CGC do Ministério da Fazenda sob
o no 08.829.974/0001-94, sediado no SCEN, Trecho 02, Bloco A, Asa Norte,
representada por seu Presidente Roberto Ricardo Vizentin, brasileiro, XXX, residente e
domiciliado XXX, portador de carteira de identidade no XXX, e inscrito no CPF/MF
no XXX, nomeado pela Portaria MMA no 304, de 28 de março de 2012, publicada no
Diário Oficial da União em 29 de março de 2012, no uso das atribuições que lhe são
conferidas pelo Decreto no 7.515, de 8 de julho de 2011, os chefes de famílias
residentes às margens do Rio Iriri e do Rio Xingu, no interior da EETM, e os chefes
de famílias das populações tradicionais usuárias dos recursos naturais da Unidade de
Conservação de Proteção Integral, e:
Considerando que, para a efetividade do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, incumbe ao Poder Público definir, em todas as Unidades
da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
95
protegidos, nos termos do Inciso III do § 1o do Art. 225 da Constituição Federal;
Considerando que o risco de insubsistência das famílias residentes no interior
da EETM previamente à sua criação envolve valores constitucionais sob o mesmo
patamar de proteção: “meio ambiente ecologicamente equilibrado” e “dignidade da
pessoa humana”;
Considerando que a Constituição Federal reconhece: o respeito ao princípio da
dignidade da pessoa humana e da cidadania, o respeito à pluralidade, e aos distintos
“modos de criar, fazer e viver” (Arts. 1° e 216, inciso II, CF/88);
Considerando, ainda, que a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo Decreto nº 6.040/07, tem por
objetivo “promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos seus
direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e
valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições.” e visa
“solucionar e/ou minimizar os conflitos gerados pela implantação de Unidades de
Conservação de Proteção Integral em territórios tradicionais”;
Considerando a existência da EETM, criada pelo Decreto s/no, de 17 de
fevereiro de 2005;
Considerando que, antes da criação desta Unidade de Conservação, existiam
no interior de sua área famílias residentes que mantém práticas de subsistência às
margens do Rio Iriri e do Rio Xingu, no Município de Altamira;
Considerando que dentre os objetivos do SNUC, inclui-se a proteção dos
recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, o respeito e a
valorização do seu conhecimento e de sua cultura, de modo a promovê-las social e
economicamente (Art. 4º, Inciso XIII);
Considerando que de acordo com a diretriz contida no Art. 5º, Inciso X, da Lei
do SNUC, devem ser garantidas às populações tradicionais, cuja subsistência dependa
da utilização de recursos naturais existentes no interior das Unidades de Conservação,
meios de subsistência alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos;
Considerando que antes da criação da EETM, a população tradicional da
96
ANExOS
região já desenvolvia o extrativismo de castanha na área que foi posteriormente
transformada em Unidade de Conservação;
Considerando o Parágrafo Único do Art. 28 da Lei do SNUC: “até que seja
elaborado o Plano de Manejo, todas as atividades e obras desenvolvidas nas Unidades
de Conservação de Proteção Integral devem se limitar àquelas destinadas a garantir a
integridade dos recursos que a unidade objetiva proteger, assegurando-se às
populações tradicionais porventura residentes na área as condições e os meios
necessários para a satisfação de suas necessidades materiais, sociais e culturais.”;
Considerando o Processo ICMBio n° XXX, que trata do processo de
elaboração do Termo de Compromisso;
Considerando a IN 26/2012, do Instituto Chico Mendes, resolvem celebrar
neste ato TERMO DE COMPROMISSO, mediante as seguintes cláusulas:
I - DO OBJETO
CLÁUSULA PRIMEIRA - Este Termo de Compromisso tem por objeto estabelecer
normas e ações específicas destinadas a compatibilizar a presença dos integrantes das
localidades: Rio Novo, Triunfo, Castanheira I, Castanheira II, Ideinha, Terra Preta,
Bom Destino, Pontão, Limeira, Rio Bonito, São Sebastião e São Lázaro, às margens
do Rio Iriri; e localidade Porto Alegre às margens do Rio Xingu, no interior da EETM,
bem como dos usuários dos recursos naturais (Anexo I), com os objetivos da Unidade
de Conservação, até a solução definitiva.
II - DAS ATIVIDADES PERMITIDAS
DA AGRICULTURA
CLÁUSULA SEGUNDA - O cultivo de alimentos (roças) deve ser realizado em áreas já
abertas de juquira ou capoeira, em sistema de rotação (pousio), e sistemas
agroflorestais, conforme autorização específica para cada família, de acordo com o
exposto no Anexo II.
PARÁGRAFO PRIMEIRO. É considerado juquira ou capoeira passível de uso, aquelas
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
97
que se apresentam com limite de crescimento de até 4 anos, sendo vedado o corte após
esse período.
PARÁGRAFO SEGUNDO. É vedado o desflorestamento, salvo em casos específicos,
mediante autorização prévia do ICMBio.
CLÁUSULA TERCEIRA - A prática de uso do fogo somente será autorizada pelo
ICMBio com a técnica de queimada controlada nas áreas autorizadas, destinadas aos
seguintes cultivos anuais: milho, mandioca, quiabo, abóbora, melancia, arroz e feijão,
durante os meses de setembro a dezembro.
DA COLETA DE CASTANHA
CLÁUSULA QUARTA - A coleta de castanha será autorizada somente para os castanhais
já utilizados pelos residentes e pelos usuários cadastrados, conforme Anexo II.
PARÁGRAFO ÚNICO. Outras áreas de coleta só poderão ser utilizadas mediante
autorização específica do ICMBio, observando os mapeamentos constantes no Anexo
II.
DA PRODUÇÃO AGROEXTRATIVISTA
CLÁUSULA XXX – Poderá ser utilizado, mediante autorização específica do ICMBio, o
uso de tecnologias alternativas de uso sustentável dos recursos naturais como atividade
alternativa de subsistência das famílias residentes.
DA GOVERNANÇA DE CADEIAS DE VALOR DOS PRODUTOS DA SOCIOBIODIVERSIDADE
CLÁUSULA XXX – Os mecanismos de condução e de articulação dos diferentes atores
envolvidos nos elos das cadeias de produtos da sociobiodiversidade devem ser
construídos em espaços participativos, devem ser definidas regras de convivência, e
devem ser criados mecanismos de transparência e accountability, mediante avaliação,
monitoria e autorização do ICMBio.
CLÁUSULA XXX – As organizações que compõem a cadeia produtiva e mercado devem
promover ações de cooperação, capacitação e desenvolvimento mútuo integrado.
CLÁUSULA XXX – Podem ser promovidos intercâmbios para troca de experiências,
mediante autorização prévia do ICMBio .
98
ANExOS
DA REFORMA, AMPLIAÇÃO E MANUTENÇÃO DAS BENFEITORIAS
CLÁUSULA SEXTA – Fica permitida a reforma das edificações e a manutenção das
benfeitorias existentes, mediante comunicação ao ICMBio.
PARÁGRAFO ÚNICO. A ampliação ou construção de novas estruturas só será permitida
mediante autorização do ICMBio, quando avaliadas como indispensáveis à
permanência digna, à reprodução e à subsistência das famílias.
DA PESCA E DA CAÇA DE SUBSISTÊNCIA
CLÁUSULA SÉTIMA - A caça e a pesca no interior da EETM só serão permitidas para
garantir a segurança alimentar dos integrantes das famílias residentes cadastradas.
PARÁGRAFO PRIMEIRO. A pesca só será permitida de forma não predatória com os
petrechos já utilizados de maneira tradicional: anzol ou tela, tarrafa e malhadeira com
malha a partir de 12 centímetros entre nós com no máximo 50 metros de comprimento.
CLÁUSULA OITAVA - A pesca dentro da EETM será permitida em qualquer área para as
famílias residentes cadastradas, excetuando-se aquelas identificadas pelo ICMBio
como áreas de fragilidade ambiental.
DO TRÁFEGO DE EMBARCAÇÕES E DO ACESSO DE TERCEIROS
CLÁUSULA NONA – Será autorizado apenas o tráfego de embarcações das famílias
residentes cadastradas neste Termo de Compromisso, salvo outros moradores da
EETM portadores de autorizações específicas emitidas pelo ICMBio.
PARÁGRAFO PRIMEIRO. No período de coleta de castanhas poderá ser autorizado o
tráfego de embarcações de usuários cadastrados (Anexo I).
PARÁGRAFO SEGUNDO. O trânsito de embarcações para viabilizar a prestação de
serviços ligados ao abastecimento das vilas do entorno da EETM necessitará de
autorização específica do ICMBio, que detalhará as condições de permanência no
interior da Unidade de Conservação.
PARÁGRAFO TERCEIRO. O ICMBio somente autorizará a entrada de embarcações de
comerciantes (regatões) cadastrados (Anexo III).
DA MANUTENÇÃO DO RAMAL
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
99
CLÁUSULA DÉCIMA – Mediante autorização específica do IBAMA, será permitida a
manutenção da estrada secundária Transiriri, situada no interior da EETM, que
interliga o Igarapé do Bala ao Porto da Canopus, na distância de 22Km, no período de
junho a novembro, durante a vigência deste Termo de Compromisso.
PARÁGRAFO PRIMEIRO. Para a manutenção de estradas, o ICMBio se compromete a
articular as autorizações específicas.
PARÁGRAFO SEGUNDO. A referida estrada só poderá ser utilizada para o deslocamento
dos moradores do rio Iriri no interior da EETM cadastrados.
III - DAS ÁREAS OCUPADAS
CLÁUSULA DÉCIMA PRIMEIRA – Os locais ocupados pelas famílias residentes, bem
como as áreas de uso agricultável e extrativista estão discriminadas no Anexo II.
IV- DAS ATIVIDADES PROIBIDAS
CLÁUSULA DÉCIMA SEGUNDA - Fica proibido o garimpo de quaisquer minerais no
interior da EETM.
CLÁUSULA DÉCIMA TERCEIRA - Fica proibida a utilização da estrada secundária
Transiriri para extração de recursos naturais bem como para atividades agropastoris.
V - DO ACESSO À CIDADANIA ÀS POPULAÇÕES RESIDENTES
CLÁUSULA DÉCIMA TERCEIRA - O ICMBio realizará articulações junto às instituições
competentes, com vistas a dar apoio aos pleitos dos integrantes das famílias residentes,
voltados à saúde, educação, saneamento, energia, lazer, transporte, entre outros,
relacionados à melhoria da qualidade de vida.
CLÁUSULA DÉCIMA QUARTA – Caberá ao ICMBio apoiar, articular com as prefeituras,
ou FUNASA, o saneamento ambiental das propriedades das populações residentes,
estimulando a substituição e/ou a adaptação das instalações sanitárias atuais por
100 ANExOS
alternativas que minimizem a poluição e a contaminação ambiental.
PARÁGRAFO PRIMEIRO. Recomenda-se a adoção de sanitários compostáveis (secos).
PARÁGRAFO SEGUNDO. Outras alternativas propostas pelas famílias residentes
poderão ser submetidas à aprovação do ICMBio.
PARÁGRAFO TERCEIRO. A destinação final dos resíduos sólidos gerados pelas
famílias residentes deverá obedecer aos princípios estabelecidos na Política Nacional
de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10).
PARÁGRAFO QUARTO. Para a efetiva implantação desta cláusula, o ICMBio se
compromete a buscar apoio junto a parceiros.
CLÁUSULA DÉCIMA QUINTA - O ICMBio buscará meios para instalar um sistema de
comunicação via rádio na EETM, de maneira a melhorar a comunicação com e entre
as famílias residentes.
CLÁUSULA DÉCIMA SÉTIMA - O ICMBio verificará a possibilidade de inclusão dos
moradores da EETM, constantes no cadastro (Anexo I), nos programas de renda
mínima do Governo Federal, junto aos Centros de Referência de Assistência Social
(CRAS).
VII - DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
CLÁUSULA VIGÉSIMA - O ICMBio buscará implementar atividades de educação
ambiental, como forma de a ampliar a sensibilização das famílias residentes acerca da
conservação e do uso adequado dos recursos naturais da EETM.
CLÁUSULA VIGÉSIMA PRIMEIRA - Configura descumprimento ou violação, total ou
parcial, de compromisso deste termo qualquer conduta em desacordo com as cláusulas
estabelecidas.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
101
PARÁGRAFO ÚNICO. Os descumprimentos das cláusulas deste acordo por parte dos
integrantes das famílias residentes e usuários cadastrados implicará na tomada de
medidas administrativas contra o infrator por parte do ICMBio.
CLÁUSULA VIGÉSIMA SEGUNDA - O processo de monitoria e avaliação do
cumprimento desse termo será desenvolvido no âmbito das atividades do Conselho
Consultivo da Unidade de Conservação.
CLÁUSULA VIGÉSIMA TERCEIRA - O presente Termo de Compromisso terá vigência
de três anos, prorrogável.
PARÁGRAFO ÚNICO. O presente Termo de Compromisso deverá ser revisto e
devidamente ajustado no âmbito do Conselho Consultivo da EETM ou, a qualquer
momento, diante de novas informações, ou se assim as circunstâncias exigirem.
CLÁUSULA VIGÉSIMA QUARTA - O ICMBio providenciará a publicação do presente
Termo de Compromisso no Diário Oficial da União.
PARÁGRAFO ÚNICO. Este Termo de Compromisso produzirá efeitos legais a partir da
data da publicação do seu extrato no Diário Oficial da União.
CLÁUSULA VIGÉSIMA QUINTA - As omissões deste Termo de Compromisso, bem
como eventuais divergências sobre o pactuado, serão discutidas em reunião do
Conselho Consultivo da Estação Ecológica.
CLÁUSULA VIGÉSIMA SEXTA -. As questões decorrentes deste Termo de Compromisso
serão dirimidas no foro da Justiça Federal de Altamira, Estado do Pará, em detrimento
de qualquer outro, por mais privilegiado que seja.
CLÁUSULA VIGÉSIMA SÉTIMA – E, por estarem assim combinados, firmam o presente
compromisso, em 04 (quatro) vias originais, uma que será juntada ao processo
formalizado pelo ICMBio, 01 (uma) que ficará com o chefe de família, 01 (uma) que
ficará com a chefia da EETM e 01 (uma) que ficará com a Presidência do ICMBio.
102 ANExOS
____________ , ____ de _____________ de 2012.
__________________
Chefe de família
__________________
Presidente do ICMBio
Nome: ...............................
Nome: ...............................
Identidade:.........................
Identidade:.........................
CPF:..................................
CPF:..................................
Testemunhas:
___________________
_________________________
Chefe da EETM
Nome: ...............................
Nome: ...............................
Identidade:.........................
Identidade:.........................
CPF:..................................
CPF:..................................
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!” 103
Anexo I – Cadastro de residentes e usuários
Anexo II – Áreas ocupadas
Anexo III – Regatões Cadastrados
104 ANExOS
anExo 2:
minuta do tErmo dE compromiSSo aprovada pEloS ribEirinhoS Em rEunião com o icmbio
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!” 105
106 ANExOS
MINUTA DE TERMO DE COMPROMISSO Nº xx/2013
Termo de Compromisso no xx/2013 celebrado
entre o Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio) – Estação Ecológica
da Terra do Meio (EETM), os chefes de família
da população tradicional ribeirinha residente no
interior da EETM, e os chefes de famílias das
populações
tradicionais
usuárias
dos
seus
recursos naturais, visando compatibilizar suas
formas próprias de ocupação do território e do
uso dos recursos naturais com os objetivos da
Unidade de Conservação, até que uma solução
definitiva seja adotada.
O
INSTITUTO
CHICO
MENDES
DE
CONSERVAÇÃO
BIODIVERSIDADE, Autarquia Federal criada pela Lei n
o
DA
11.516 de 28/08/07,
vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com sede e foro em Brasília/DF, e
jurisdição em todo o território nacional, inscrito no CGC do Ministério da Fazenda
sob o no 08.829.974/0001-94, sediado no SCEN, Trecho 02, Bloco A, Asa Norte,
representada por seu presidente Roberto Ricardo Vizentin, brasileiro, casado,
residente e domiciliado no SMLN Km 03, Trecho 01, Lote 68, casa 02, Brasília-DF,
portador da carteira de identidade nº 360.895 SSP/MT, CPF 571.436.681-68,
nomeado pela Portaria no 304, publicada no Diário Oficial da União de 29/03/2012,
no uso das atribuições que lhe confere o Decreto nº 7.515, de 8 de julho de 2011, os
chefes de famílias da população tradicional residente no interior da EETM, e os
chefes de famílias das populações tradicionais usuárias dos recursos naturais
da Unidade de Conservação de Proteção Integral:
Considerando que, para a efetividade do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, incumbe ao Poder Público definir, em todas as
Unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, nos termos do inciso III do § 1o do Art. 225 da
Constituição Federal;
Considerando que o risco de insubsistência das famílias residentes no
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!” 107
interior da EETM previamente à sua criação envolve valores constitucionais sob o
mesmo patamar de proteção: “meio ambiente ecologicamente equilibrado” e
“dignidade da pessoa humana”;
Considerando que a Constituição Federal reconhece o respeito ao princípio
da dignidade da pessoa humana e da cidadania, o respeito à pluralidade, e aos
distintos “modos de criar, fazer e viver” (Arts. 1o e 216, inciso II, CF/88);
Considerando que a Constituição Federal estabelece também, em seu Art.
o
6 , a Educação e a Saúde como um direito social comum a todos os brasileiros;
Considerando, ainda, que a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo Decreto nº
6.040/07, tem por objetivo “promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e
garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais,
com respeito e valorização a sua identidade, suas formas de organização e suas
instituições” e visa “solucionar e/ou minimizar os conflitos gerados pela implantação
de Unidades de Conservação de Proteção Integral em territórios tradicionais”;
Considerando a existência da EETM, criada pelo Decreto s/n o, de
17/02/2005;
Considerando a Lei nº 4.504 de 30/11/1964, que dispõe sobre o Estatuto da
Terra, o qual assegura a todos a oportunidade de acesso à terra condicionada pela
sua função social e que assegura o direito de uso e manejo do solo associado ao
manejo da floresta;
Considerando a Lei nº 11.326, de 24/07/2006 da Política Nacional da
Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, que assegura a
ocupação legítima de terras públicas;
Considerando que, antes da criação desta Unidade de Conservação,
existiam no interior de sua área famílias residentes que mantinham práticas de uso
do solo por meio da agricultura de subsistência assim como o extrativismo vegetal e
animal;
Considerando o Decreto no 5.051, de 19/04/2004 referente à Convenção nº
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e
Tribais;
Considerando que dentre os objetivos do SNUC, inclui-se a proteção dos
108 ANExOS
recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, o respeito
e a valorização do seu conhecimento e de sua cultura, de modo a promovê-las
social e economicamente (Art. 4o, Inciso XIII);
Considerando que de acordo com a diretriz contida no Art. 5o, Inciso X, da
Lei do SNUC, devem ser garantidos às populações tradicionais, cuja subsistência
dependa da utilização de recursos naturais existentes no interior das Unidades de
Conservação, meios de subsistência alternativos ou a justa indenização pelos
recursos perdidos;
Considerando o parágrafo único do Art. 28 da Lei do SNUC: “até que seja
elaborado o Plano de Manejo, todas as atividades e obras desenvolvidas nas
Unidades de Conservação de Proteção Integral devem se limitar àquelas destinadas
a garantir a integridade dos recursos que a unidade objetiva proteger, assegurandose às populações tradicionais porventura residentes na área as condições e os
meios necessários para a satisfação de suas necessidades materiais, sociais e
culturais”;
Considerando a IN nº 26, de 04/07/2012, do ICMBio, que trata dos
procedimentos para a construção de Termos de Compromisso;
Considerando o processo administrativo ICMBio n° 02070.003074/2012-41,
que trata da elaboração deste Termo de Compromisso;
Resolvem celebrar neste ato TERMO DE COMPROMISSO, mediante as
seguintes cláusulas:
CAPÍTULO I - DO OBJETO
CLÁUSULA PRIMEIRA - Este Termo de Compromisso tem por objeto o estabelecimento
de normas e ações específicas, destinadas a compatibilizar a presença dos
integrantes das famílias residentes no interior da EETM, bem como dos usuários dos
recursos naturais, constantes no Anexo I, com os objetivos da Unidade de
Conservação, até que uma solução definitiva seja adotada.
CAPÍTULO II - DAS ATIVIDADES PERMITIDAS
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!” 109
SEÇÃO I - DA PRODUÇÃO E DO BENEFICIAMENTO DOS PRODUTOS DA AGRICULTURA DE
SUBSISTÊNCIA
CLÁUSULA
SEGUNDA
– O uso e manejo do solo para cultivo agrícola será realizado
preferencialmente em áreas já abertas, as quais são denominadas capoeira ou
juquira. Nestas áreas, poderão ser realizadas atividades como: rotação de área,
rotação de cultivo, sistema agroflorestal e enriquecimento de capoeira.
PARÁGRAFO
PRIMEIRO
- Ficam permitidas a implantação de roça em até 5 hectares
(16,5 linhas) para lavoura branca, e mais 5 hectares em capoeira ou juquira (com até
13 anos de formação), os quais poderão ser utilizados para o mesmo fim.
PARÁGRAFO
SEGUNDO
- Para os sistemas agroflorestais e para o enriquecimento de
capoeira, fica permitido o uso de até mais 5 hectares, com o objetivo de conciliar a
produtividade com a recuperação da qualidade do solo e o enriquecimento da
cobertura vegetal.
PARÁGRAFO
TERCEIRO
- Ficam permitidos o beneficiamento, o processamento e a
comercialização de produtos agrícolas “in natura” pelas famílias residentes para
garantir sua reprodução social.
CLÁUSULA TERCEIRA – Fica permitido o uso do fogo para o preparo do solo no limite
dos 10 hectares acordados, somente com a técnica da queima controlada ou queima
fria (coivara).
SEÇÃO II - DA EXTRAÇÃO E BENEFICIAMENTO DE PRODUTOS FLORESTAIS
CLÁUSULA
QUARTA
- Ficam permitidos o beneficiamento e a comercialização de
produtos florestais não madeireiros de origem vegetal, tais como: castanha, babaçu,
açaí, patoá, copaíba, andiroba, látex, breu e cipós.
PARÁGRAFO
PRIMEIRO
- Ficam permitidas a coleta e a comercialização da castanha
nas áreas tradicionalmente utilizadas pelos residentes e usuários cadastrados,
conforme Anexo II.
PARÁGRAFO
SEGUNDO
- Outras áreas de coleta de castanha atualmente desativadas
só poderão ser utilizadas mediante autorização específica do ICMBio, desde que
não haja sobreposição com as áreas constantes no Anexo II.
CLÁUSULA QUINTA - Fica permitida a retirada de produtos florestais madeireiros para
110 ANExOS
manutenção, reforma e ampliação das benfeitorias, bem como para a produção de
utensílios, tais como: embarcações, remos, pilões, cabos de ferramentas e peças
artesanais, pelas famílias residentes.
SEÇÃO III - DA REFORMA, MANUTENÇÃO E AMPLIAÇÃO DAS BENFEITORIAS
CLÁUSULA SEXTA - Ficam permitidas a manutenção e a reforma ou substituição das
edificações já existentes e a construção de novas instalações nas áreas de uso já
ocupadas.
PARÁGRAFO
- A construção de novas instalações em outras áreas só será
ÚNICO
permitida mediante comunicação ao ICMBio.
SEÇÃO IV - DA PESCA E DA CAÇA
CLÁUSULA
SÉTIMA
- Ficam permitidas a pesca e a caça exclusivamente para a
alimentação dos integrantes das famílias residentes cadastradas, nas áreas
representadas no Anexo II, de maneira tradicional, conforme o Decreto nº 6.040/07.
SEÇÃO V - DO TRÁFEGO DE EMBARCAÇÕES E DO ACESSO DE TERCEIROS
CLÁUSULA
OITAVA
- Ficam permitidos o acesso e o tráfego de embarcações das
famílias residentes cadastradas neste Termo de Compromisso.
PARÁGRAFO
- Ficam permitidos o acesso e o tráfego de embarcações dos
PRIMEIRO
visitantes cadastrados constantes no Anexo III. Tal relação poderá ter membros
incluídos ou retirados a qualquer tempo, a partir de solicitação dos residentes.
PARÁGRAFO
SEGUNDO
- Fica permitido o tráfego de embarcações de usuários
cadastrados constantes no Anexo I, no período de coleta de castanhas.
PARÁGRAFO
TERCEIRO
- O trânsito de embarcações para viabilizar a prestação de
serviços ligados ao abastecimento das vilas do entorno da EETM necessitará de
autorização específica do ICMBio, que detalhará as condições de permanência no
interior da Unidade de Conservação.
PARÁGRAFO
QUARTO
- Fica permitida a entrada de embarcações de comerciantes
(regatões) autorizados pelo ICMBio, conforme Anexo IV.
PARÁGRAFO
QUINTO
- Fica permitida a entrada de embarcações necessárias para os
serviços públicos, tais como: educação, atendimento médico e odontológico,
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
111
emissão de documentos civis, desde que previamente comunicados ao ICMBio.
PARÁGRAFO
SEXTO
- Em casos de necessidades urgentes relacionadas à saúde, ou
em situações emergenciais, a associações de moradores ou de produtores, com
atuação local, poderão realizar a inclusão temporária de visitantes não listados.
SEÇÃO VI - DA MANUTENÇÃO E DO USO DA ESTRADA TRANSIRIRI
CLÁUSULA NONA - Fica permitida, em caráter experimental, a manutenção da estrada
Transiriri, situada no interior da EETM, no trecho de 22 km que interliga o Igarapé do
Bala ao Porto da Canopus, às margens do Rio Iriri, mediante autorização prévia do
ICMBio.
PARÁGRAFO
PRIMEIRO
- O acesso e o uso da estrada serão permitidos às famílias
residentes na EETM, seus visitantes e prestadores de serviços autorizados.
PARÁGRAFO SEGUNDO - Até que seja construída a guarita e efetuada a contratação de
vigilantes, a autorização para a manutenção da estrada poderá ser revogada, se
constatados casos de ilícitos.
CAPÍTULO III - DAS ÁREAS DE USO
CLÁUSULA DÉCIMA - Os locais ocupados pelas famílias residentes, bem como as
áreas agricultáveis e extrativistas, são aqueles tradicionalmente utilizados pelos
ribeirinhos e estão discriminados no Anexo II.
CAPÍTULO IV- DAS ATIVIDADES PROIBIDAS
CLÁUSULA
DÉCIMA PRIMEIRA
- Fica expressamente proibida a comercialização de
recursos florestais madeireiros brutos.
CLÁUSULA
DÉCIMA SEGUNDA
- É vedado o desflorestamento, salvo em casos
específicos, mediante autorização prévia do ICMBio.
CLÁUSULA DÉCIMA TERCEIRA - É vedado o garimpo de quaisquer minerais.
CLÁUSULA DÉCIMA QUARTA - É vedada a utilização da estrada Transiriri, no interior da
EETM, para exploração de recursos naturais.
CLÁUSULA
DÉCIMA QUINTA
- É vedada a realização de atividades agropastoris em
áreas não autorizadas, em especial na região da estrada Transiriri localizada no
interior da EETM.
CLÁUSULA DÉCIMA SEXTA - É vedada a formação de pastagens de qualquer natureza.
CLÁUSULA DÉCIMA SÉTIMA - É vedado aos parentes e visitantes dos residentes o porte
de petrechos de caça e de pesca.
CLÁUSULA
DÉCIMA OITAVA
- É vedada a pesca de espécies ameaçadas de extinção
constantes nas listas oficiais, a ser informada aos ribeirinhos pelo ICMBio.
CAPÍTULO V - DO ACESSO À CIDADANIA PARA AS POPULAÇÕES RESIDENTES
CLÁUSULA
DÉCIMA NONA
- O ICMBio realizará articulações junto às instituições
competentes, com vistas a dar apoio aos pleitos dos integrantes das famílias
residentes,
voltados
à
saúde,
educação,
previdência,
assistência
social,
saneamento, energia, lazer, transporte, geração de renda, fomento a cadeias de
produtos da sociobiodiversidade, entre outros, relacionados à melhoria da qualidade
de vida.
CLÁUSULA
VIGÉSIMA
- O ICMBio buscará meios para instalar um sistema de
comunicação via rádio na EETM, de maneira a melhorar a comunicação com e entre
as famílias residentes.
CLÁUSULA
VIGÉSIMA PRIMEIRA
- O ICMBio verificará a possibilidade e mediará a
inclusão dos moradores da EETM nos programas de renda mínima do Governo
Federal, junto aos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).
CLÁUSULA VIGÉSIMA SEGUNDA - O ICMBio buscará meios de apoiar o transporte das
famílias residentes para participação em atividades relacionadas à gestão
participativa da EETM.
CLÁUSULA VIGÉSIMA TERCEIRA - O ICMBio buscará meios de apoiar a implantação de
alternativas de trabalho e renda de baixo impacto ambiental para melhoria da
112 ANExOS
qualidade de vida, incentivando soluções sustentáveis e inovadoras, que respeitem
os modos de vida tradicionais das famílias.
CAPÍTULO VI - DAS CONDIÇÕES E DOS PRAZOS DE REASSENTAMENTO
CLÁUSULA VIGÉSIMA QUINTA - O ICMBio deverá proceder a assinatura deste Termo em
até três meses e acordar uma solução definitiva para cada família, em até mais
nove meses, a partir da assinatura deste Termo de Compromisso.
CLÁUSULA VIGÉSIMA SEXTA - AS Soluções definitivas apresentadas neste Termo de
Compromisso são:
I – Justa indenização pelos recursos perdidos, conforme Art. 5º, Inciso X da Lei do
SNUC, associada simultaneamente a:
a) Reassentamento em Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE/INCRA);
b) Garantia de acesso a crédito do Grupo A do Programa Nacional de
Agricultura Familiar (PRONAF/INCRA);
c) Programa Luz para Todos; e
d) Programa Minha Casa Minha Vida Rural.
II - Justa indenização pelos recursos perdidos, conforme Art. 5º, Inciso X da Lei do
SNUC, associada simultaneamente a:
a) Desafetação de uma área de xx% da EETM (conforme polígono apresentado
no Anexo V) para realocação dos ribeirinhos, a ser integrada à RESEX Rio
Iriri, associada à garantia da condição de usuário permanente dos castanhais
utilizados pelos mesmos, no interior da EETM;
b) Acesso a crédito do Grupo A do Programa Nacional de Agricultura Familiar
(PRONAF/INCRA);
c) Programa Luz para Todos;
d) Programa Minha Casa Minha Vida Rural; e
e) Programa Bolsa Verde.
CLÁUSULA
VIGÉSIMA SÉTIMA
– As famílias residentes na EETM que estiverem em
comum acordo com o ICMBio no tocante à indenização pelos recursos perdidos e
pelas benfeitorias existentes, bem como ao local e condições de reassentamento
deverão se manifestar, e solicitar celeridade em processo administrativo próprio.
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
113
CLÁUSULA
VIGÉSIMA OITAVA
- O ICMBio deverá solicitar aos órgãos competentes o
atendimento às demandas de reassentamento das famílias residentes, atendendo às
condições e prazos acordados neste Termo de Compromisso.
VII - DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
CLÁUSULA
VIGÉSIMA NONA
- Configura descumprimento ou violação, total ou parcial,
de compromisso deste Termo qualquer conduta em desacordo com as cláusulas
estabelecidas, por ambas as partes.
CLÁUSULA
TRIGÉSIMA
- O processo de monitoria e avaliação do cumprimento deste
Termo será desenvolvido no âmbito da Câmara Temática de Acompanhamento do
Termo de Compromisso e Regularização Fundiária (CT Compromisso) do Conselho
Consultivo da Unidade de Conservação.
PARÁGRAFO
PRIMEIRO.
O presente Termo de Compromisso deverá ser revisto e
devidamente ajustado no âmbito CT Compromisso, a qualquer momento, diante de
novas informações, ou se assim as circunstâncias exigirem.
CLÁUSULA TRIGÉSIMA PRIMEIRA - O presente Termo de Compromisso terá vigência de
três anos, podendo ser renovado automaticamente até que sejam efetivadas
integralmente as condições acordadas neste Termo.
CLÁUSULA
TRIGÉSIMA SEGUNDA
- O ICMBio providenciará a publicação do presente
Termo de Compromisso no Diário Oficial da União.
PARÁGRAFO ÚNICO. Este Termo de Compromisso produzirá efeitos legais a partir da
data da publicação do seu extrato no Diário Oficial da União.
CLÁUSULA
TRIGÉSIMA TERCEIRA
- As questões decorrentes deste Termo de
Compromisso serão dirimidas no foro da Justiça Federal de Altamira, Estado do
Pará, em detrimento de qualquer outro, por mais privilegiado que seja.
E, por estarem assim combinados, firmam o presente compromisso, em
quatro vias originais: uma, que será juntada ao processo formalizado pelo ICMBio;
114 ANExOS
uma, que ficará com o chefe de família; uma, que ficará com a chefia da EETM; e
uma, que ficará com a Presidência do ICMBio.
____________ , ____ de _____________ de 2013.
__________________
Chefe de família
__________________
Presidente do ICMBio
Nome: ...............................
Nome: ...............................
Identidade:.........................
Identidade:.........................
CPF:..................................
CPF:..................................
Testemunhas:
___________________
_________________________
Chefe da EETM
Nome: ...............................
Nome: ...............................
Identidade:.........................
Identidade:.........................
CPF:..................................
CPF:..................................
“NÃO TEM ESSA LEI NO MUNDO, RAPAZ!”
115
ANEXOS
Anexo I – Cadastro de residentes e usuários
Anexo II – Áreas de uso
Anexo III – Visitantes dos residentes cadastrados
Anexo IV – Regatões cadastrados
Anexo V – Polígono da área da EETM proposta para desafetação e reassentamento
dos ribeirinhos residentes.
116 ANExOS
AMORA – ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA RESERVA EXTRATIVISTA RIOZINHO DO ANFRÍSIO
ISA – INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL
AMORERI – ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA RESERVA EXTRATIVISTA RIO IRIRI