Academia.eduAcademia.edu
ABATE #3 editorial Segundo uma tradição medieval, os poetas irlandeses protegiam as plantações recitando versos nos lugares infestados por roedores: esses poetas “rimavam os ratos até a morte”. Vivemos hoje uma proliferação de ratos mutantes, trans -específicos, que abandonaram a condição de animais que subtraem pequenos nacos dos nossos celeiros, às escondidas, para se metamorfosearem em megaburocratas, políticos empreendedores, que abocanham toda a colheita e já nem naco querem nos deixar. A arte e a cultura são sempre os primeiros a sentirem os efeitos desses roedores, o que tem sido visto pelas tentativas de censura e pelo desmonte dos programas de fomento e das leis de incentivo direto. Enquanto esta revista foi editada, as populações de diversos países do mundo voltam, com maior intensidade, a flertar com o fascismo e com a vida fascista. No Brasil, da mesma forma isso parece saltar aos olhos. A seleção dos textos e imagens que compõem esta edição foi feita, como um revide simbólico, numa tentativa de rimar os ratos até a morte, sejam os ratos que cultivamos no peito ou esses, tão numerosos, que infestam tudo o que floresce a nossa volta. 3 sumário Parque Santos Dumont (SJC) ou onde os fracos não têm vez Pedro Machado Edital de Tretas Boi 6 30 Excertos-Cidade 15 38 O Olhar Fora do Eixo de Célia Barros: curadoria + artistas + contexto artístico no Vale do Paraíba Federica Giovanna Fochesato Carolina Bonfim Glossário Chinês (ou MAMÉM ou MAMU-TE) Boi, Juniokio, Marucs e Pedrito Abate entrevista Edgard de Assis Carvalho Marco Antônio Machado, Marcus Groza e Pedro Machado 16 24 52 Terra de Siena e Verde Cacto 60 Gentrificação rural, o êxodo urbano e a valorização dos modos de vida do mantiqueirense: algumas reflexões a partir do MuMan - Museu da Mantiqueira Marcus Groza Diana Poepcke O Choro do Gigante Mario Nunes 4 29 68 Pirlimpimpim Cristiane Credidio Expediente REVISTA ABATE #3 Da impossibilidade da arte de protesto 76 Bruno Ishisaki A Gravidade é o Mistério do Corpo 82 90 Yuri Moraes Cultura: posologia e modo de usar 92 Bruno Ishisaki [Terreiro de Umbanda] Melissa Rahal Bruno Ishisaki brunoyukio@gmail.com Marco Antônio Machado m.a.crispim.machado@gmail.com Marcus Groza DESIGNER REVISORES Mariana Rosa AUTORES 98 Marco Antônio Machado isentão, isentão EDITORES Rodolfo Angeli Oswaldo Almeida Geografia do Pensamento Musical e Estética da Fosforescência COORDENADOR EDITORIAL Marco Antônio Machado Leticia Kamada Evaristo Costa salva o dia novamente ProacSP - Incentivo à Cultura do Estado de São Paulo 2017 108 112 Bruno Ishisaki Carolina Bonfim Cristiane Credidio Diana Poepcke Federica Giovanna Fochesato Leticia Kamada Marco Antônio Machado Marcus Groza Mario Nunes Melissa Rahal Oswaldo Almeida Pedro Machado Yuri Moraes ISSN 2447-5521 1000 exemplares. Distribuição gratuita. abate.contato@gmail.com 5 Parque Santos-Dumont (SJC) ou onde os fracos não têm vez Pedro Machado 6 A história se repete, a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa. MARX, K. - Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, 1852. As Bandeiras foram expedições particulares criadas a partir do século XVI, partindo do que hoje conhecemos pelo estado São Paulo com destino a diversas regiões do Brasil; apaixonados pelo poder, atrás de minerais preciosos (prospectoras) e índios - os negros da terra - para escravizá-los (apressadoras) ou simplesmente exterminá-los (de sertanismo de contrato). Já no final do século XIX, foram miticizados de tal maneira a representar uma suposta força e bravura do povo paulista, criando heróis que teriam promovido a integração nacional. Durante a revolução de 1932, o mito já estava consolidado. É possível conhecer um povo pelos seus heróis. xxx Teria Adão inventado o nome de cada criatura da Terra ou se tratava apenas de uma questão de pronuncia? Um olhar de rabo de olho para os logradouros, principalmente os do estado de São Paulo, e se pode perceber a importância dada aos Bandeirantes. São José dos Campos os homenageia em seu Brasão. Para a canalha do bairro Esplanada, em São José dos Campos¹, há lei específica para que se explicite nas placas de identificação das ruas, dentre a canalha, alguns daqueles que eram “Bandeirantes” ou “desbravadores do sertão”. Por bipolaridade ou síndrome de Estocolmo, homenageia-se a Domingos Jorge Velho, a quem se atribui a derrocada de Palmares, da mesma maneira que se homenageia, com um dia específico, Zumbi, líder de Palmares morto um ano depois de empreender fuga do Bandeirante. xxx Zumbi, do Quimbundo, pode ser entendido como espírito, alma de pessoa morta. Assim como uma profecia, mais de mil famílias que foram violentamente expulsas de uma ocupação urbana no ano de 2012, em São José dos Campos, após intensas disputas, hoje vivem no bairro chamado Pinheirinho dos Palmares. Estratégia parecida com a de Domingos Jorge Velho, cercando Palmares para isolá-la e enfraquecê-la; no ano de 2004, um vereador (que possui 17 projetos que alteram logradouros e outros 24 destinados à companhia de energia elétrica EDP Bandeirante), na tentativa de enfraquecer a ocupação Pinheirinho, tem projeto de lei que visa privar os direitos sociais de quem participasse de ocupações aprovado². 1. No brasão da cidade, criado em 1926, recorda-se dos “desbravadores em terras de São José no século XVI” com “uma panóplia bandeirante, arcabuz, espada, machado e bandeira, tudo de sua cor”. 2. A lei Municipal Nº 6.539, de 26/03/2004, icou popularmente conhecida como “Lei da Fome”. Não entrou em vigor pelo seu caráter inconstitucional. 7 xxx A Operação Bandeirante (OBAN) foi criada em São Paulo no ano de 1969, sem institucionalização formal ou jurídica – clandestina –, como plano de combate ao que convenia aos simpáticos do regime militar vigente, denominar terrorismo. Criou as bases para os futuros Centros de Operações de Defesa Interna e os Destacamentos de Operações de Informações (DOI-CODIs). Patrocinado pelo setor privado, dentre eles a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), contou com brutais torturadores: “quando venho para a OBAN, deixo o coração em casa”, e teve como suas vítimas Wanda, integrante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e futura presidente do Brasil – que acabou sofrendo processo de impeachment apoiado por parte do empresariado, inclusive a Fiesp: “As marcas da tortura sou eu” (2011). Frei Tito de Alencar Lima foi outra vítima da “sucursal do inferno”. Debilitado pelas constantes torturas, ainda nas dependências da OBAN tenta suicídio altruísta, de maneira que seu corpo, marca da tortura, evitasse outras mais. Logrou atenção dos direitos humanos ao escrever as práticas que presenciara. Deportou-se em 1971 para Roma. Seguiu tendo alucinações com seus torturadores até, ao que se suspeita, enforcar-se em 1974, na França. Com vestimentas vermelhas, Dom Paulo Evaristo Arns celebrou, no Brasil, missa de corpo presente ao mártir Frei Tito. xxx No ano de 1965, o chamado “primeiro presidente” da mesma ditadura militar que viria a legitimar a OBAN autorizou o desenvolvimento de um avião brasileiro pelo Centro Técnico Aeroespacial (CTA), localizado em São José dos Campos. O projeto arquitetônico do ITA/CTA, por sinal, é de Oscar Niemeyer – apesar de este não poder estar à frente do projeto, já que era sabidamente comunista e não queriam associar seu nome à Aeronáutica. Curiosamente, o mesmo Niemeyer projetou diversos edifícios de Brasília3, cidade que vista de cima tem o formato de um avião – apesar de Lucio Costa, responsável pelo plano piloto da cidade, dizer que se trata de uma cruz4. Quatro anos após o início do desenvolvimento do avião brasileiro, criou-se na mesma cidade a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) para a produção em série deste modelo, batizado de Bandeirante. 3. Brasília também se torna o nome de um avião fabricado pela Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) na década de 1980. 4. Lucio Costa preferia dizer que a cidade se assemelhava a uma libélula. Também é curioso que o modelo Demoiselle, sabidamente o melhor avião criado por Alberto Santos Dumont, também era conhecido como Libelulle. 8 Placa com os dizeres “Aqui será fabricado o BANDEIRANTE”, alterada para “Aqui é fabricado o BANDEIRANTE”. Logo atrás, a torre com o logotipo da Embraer. Fonte: www.defesanet..com.br xxx Certos grupos de joseenses acreditam que Alberto Santos Dumont (ASD), um dos pioneiros da aviação, teria profetizado a criação do ITA/CTA em São José dos Campos: É tempo, talvez, de se instalar uma escola [voltada à aviação] de verdade em um campo adequado. Não é difícil encontrá-lo no Brasil. Nós possuímos, para isso, excelentes regiões, planas e extensas, favorecidas por ótimas condições atmosféricas. [...] Margeando a linha da Central do Brasil, especialmente nas imediações de Mogi das Cruzes, avistam-se campos que me parecem bons. (SANTOS DUMONT, 1918) Não passa, porém, de artifício vulgar e desonesto com vistas a legitimar uma vocação para a cidade, já que é ocultada da reflexão de ASD passagens como “[...] o nosso governo possui, a duas horas do Rio de Janeiro, o esplêndido e vasto campo de Santa Cruz, perto de duas léguas quadradas, absolutamente planas. [...]” ou “o campo de remonta do exército, no Rio Grande do Sul, deve ser ideal [para a construção da escola de aviação]” (SANTOS DUMONT, 1918). 9 No mesmo livro em que encontramos as citações acima, ASD comenta que, dentre as diversas felicitações que recebera acerca de seus feitos, uma em particular considerava mais preciosa. Trata-se de uma foto com os cumprimentos de Thomas Edison: “To Santos-Dumont, pioneer of aerial navigation, Thomas Edison”, traduzida como: “A Santos Dumont, o bandeirante dos ares, homenagem de Thomas Edison”. Custa acreditar que ASD tenha traduzido “pioneiro” como “Bandeirante”5. Poderia ele estar sob influência do mito Bandeirante em construção, mas é mais provável que seja uma simples distorção de edição/tradução para fortalecer o mito do Bandeirante, como mencionado anteriormente. Nesse sentido, no hino do aviador, que pode ser ouvido no dia do aviador, celebrado anualmente na mesma data em que ASD voou com seu 14 Bis – 23 de outubro, vemos como a ideia do Bandeirante associou-se à aeronáutica brasileira, com versos que se exalta os “Bandeirantes audazes do azul”. xxx Santos Dumont teve a mesma morte de Frei Tito, não na França, país que sediou as invenções mais significativas do aviador, mas pendurado no chuveiro de um hotel em Guarujá. Sua certidão de óbito permanece desaparecida por 23 anos, com vistas a criar um herói sem fraquezas, ao ocultar seu suicídio. Assim consta no laudo necrológico: “Veste terno de casimira preta, gravata preta e calça botinas pretas. Não encontramos pelo corpo vestígio de lesão traumática. A morte se deu por colapso cardíaco” – uma morte elegante. Além de ter sua certidão de óbito ocultada, roubaram-lhe o coração na autópsia, sendo entregue 12 anos depois ao Ministério da Aeronáutica. Hoje, um Ícaro em bronze (logo um Ícaro, que buscava sua liberdade do labirinto que o aprisionava) sustenta, no museu da aeronáutica, uma esfera com perfurações, simbolizando as estrelas do universo e dentro desta esfera, uma outra, agora de cristal, conservando em formol o coração de Alberto Santos Dumont. Seria uma espécie de troféu/recompensa bandeirante ou uma tradição de “deixar o coração em casa”? xxx Conforme citado no artigo publicado na segunda edição da revista ABATE, São José dos Campos criou suas bases (infraestrutura, economia, mão de obra etc.) na fragilidade da doença do peito. Em 1924, é inaugurado o sanatório Vicentina Aranha, projetado pelo escritório de Francisco de Paula Ramos de Azevedo6 e de execução sob supervisão do engenheiro Augusto de Toledo, que se torna o maior da América Latina para o tratamento da tuberculose e se faz símbolo da fase sanatorial da cidade. A partir da década de 1940, a penicilina faz o tratamento da tuberculose passar a ser ambulatorial. Dessa maneira, os estabelecidos da cidade precisam encontrar alternativas para a sua economia. 5. Até a publicação desse texto, não tive acesso às primeiras edições do livro para veriicar essa suspeita. Não viso, dessa maneira, ocultar qualquer fraqueza ou vulnerabilidade de Santos-Dumont. Apenas evidenciar o que parece mais obvio. 6. Não encontramos, porém, o sanatório no portfólio de Ramos de Azevedo, talvez por não querer associar seu nome à doença. 10 xxx Alberto Santos Dumont é a segunda personalidade que mais dá nome a logradouros no Brasil, ficando atrás apenas de Tiradentes (aquele retratado com semelhança física à retratação de Jesus Cristo). Em São José dos Campos, além de avenidas, viadutos, centro acadêmico (ITA), hospitais, escolas, estabelecimentos comerciais etc., Santos Dumont também é nome de um belo parque localizado em área nobre da cidade. Construído em 1971 sobre as ruínas do sanatório Ezra (voltado ao tratamento da tuberculose), o parque é mais um esforço para consolidar a cidade como polo tecnológico aeroespacial ao mesmo tempo em que apaga as fraquezas da doença que um dia abrigou: Os joseenses desejam “esquecer” de modo definitivo esse período (sanatorial), orgulham-se de ter conseguido expulsar do centro as casas que recebiam doentes, apreciam afirmar que a cidade se transformou de maneira radical e que nada mais conserva das características anteriores. (PMSJC, 1961 apud ALMEIDA, 2008, p. 178) Apesar de esse parque servir a uma afirmação de força, é uma das últimas construções onde se percebe o olhar conjunto da Politécnica e das Belas-Artes na cidade – encontramos, por exemplo, projetos da década de 1950, com a arquitetura de Rino Levi, e projeto paisagístico de Roberto Burle Marx na fazenda da Tecelagem Parahyba, hoje Parque da Cidade. Antes de virar ruína, o mesmo sanatório Ezra, já desativado, abrigou em 1969 o Ateliê Livre de Pintura do Conselho Municipal de Cultura. Este conselho, juntamente com a Escola de Belas Artes do Vale do Paraíba (Instituto das Artes) são extintos por lei municipal no ano de 1970. xxx No parque Santos Dumont, uma réplica do 14-Bis repousa ao lado de um avião Bandeirante . À primeira vista, podem parecer apenas dois importantes aviões para a história brasileira, mas se tratam de objetos completamente diferentes: um vigia, o outro é vigiado. Em comum, apenas a falta de coração. Um por tradição, outro por terem-no roubado. 7 7. Chamado de EMB-110 para que a fonética facilite sua divulgação e comercialização nos EUA. 11 12 jogo aqui não é uma picuinha de nomenclaturas. Mas um dos pilares de sustentação de nossa mentalidade e, em virtude disso, do capitalismo mesmo. O que vem a ser um trabalho não qualificado? Ora, exatamente um trabalho quantificado – ou seja, primeiro unificado, depois igualizado e totalizado. E então dizemos: uma hora-aula paga R$ 22,50. Mas aula de quem? Em que circunstâncias? Quais alunos? Qual equipamento de apoio? Qual conteúdo? Matam-se as qualidades, as minúcias, os coloridos… é assim com a hora-aula, como o piso e o teto salarial, com o salário mínimo, com o tempo mínimo de contribuição, com o acordo de classe, plano de carreira, participação nos lucros… tudo em um processo de quantificação do trabalho não qualificado. Bom, e o que seria a riqueza não qualificada? Justamente, a riqueza quantificada, primeiro unificada, depois igualizada e totalizada. Aí teremos uma manga por R$ 4,00. As riquezas qualificadas de uma manga são seu cheiro, suas cores, seu sabor, suas potências nutritivas… Mas para quantificar é necessário desqualificar: então ela passa a ter o mesmo valor que uma passagem de ônibus, uma meia entrada num show no Sesc, ou dois dias de internet 4G no celular. E o mais absurdo é que as grandes empresas, para serem convincentes na cobrança homogênea de valores, criaram mecanismos internos para que a oferta dos produtos seja cada vez mais homogênea também – se eu vou pagar R$ 10,00 num saco de cinco quilos de arroz, é preciso que todos os sacos com cinco quilos de arroz do supermercado sejam quase iguais, já que os R$ 10,00 são exatamente iguais – esse conjunto de mecanismos internos é chamado de ‘controle de qualidade’!!! Temos na mentalidade o abandono e a subserviência da qualidade. E temos no uso da linguagem um exercício político de esvaziamento de sentido do termo. ‘qualidade é melhor que quantidade’ ‘controle de qualidade’ ‘qualidade de vida’ ‘pague mais caro para obter qualidade’ ‘exame de qualificação’ Eu escrevi esse texto porque eu tô cansado de ficar escrevendo projeto para concorrer a editais e ficar calculando quanto vale a hora do músico, do ator, do performer… tô um pouco cansado de ver a arte subjugada por tantas quantificações e totalizações… tô um pouco cansado de ver ‘artistas’ defenderem que temos que ser mais empreendedores, levantar dados, índices, estatísticas… tô um pouco cansado. 13 dezoito quilos, metros, horas, hertz, volts, cavalos, graus, plantações, cooperativas, sindicatos, trabalhadores, coletivos artísticos… • No âmbito da qualidade, o que há é diferença. Não existe qualidade melhor ou pior, maior ou menor… o que existem são qualidades diferentes: numa padaria há todo tipo de qualidades de pães, numa farmácia de drogas, numa orquestra de timbres, numa corporação de falcatruas. Ainda que não seja correto dizer que tal qualidade é melhor do que outra, sim, é possível dizer que determinada qualidade me agrada mais do que outra – mesmo assim é interessante observar como nós sentimos dificuldades em dizer ‘gosto disso assim’ e, preferimos dizer ‘isso é melhor’2. Na conjugação comparativa entre quantidade e qualidade o que se estabelece em termos de senso comum é que a qualidade seja melhor do que a quantidade (ouvimos isso o tempo todo). Mas isso não passa de uma falácia: para estabelecer uma comparação e determinar o que é melhor e o que é pior se faz necessário produzir uma escala de valoração. Uma escala de valoração nada mais é do que a consequência de processos de produção de unidades e igualdades que compõem a base do pensamento quantitativo. E claro, em adição a isso, será feita a escolha parcial que determinará quais elementos terão maior peso na avaliação. Para determinar que país é melhor e que país é pior, eu posso escolher os índices do PIB, ou o IDH, ou índices climáticos, de criminalidade… são escolhas sobre um plano totalizador e igualizador. O que estou afirmando é que quem diz ‘eu acho melhor qualidade do que quantidade’ está dizendo em subtexto que ama a quantidade, que apenas pensa em termos de totalização, unificação e igualização, que nem sequer entende o sentido que se estabelece aqui de qualidade/diferença. Ou, como já dissemos na edição de número um da ABATE: “Se gostasse mesmo de qualidade iria gostar dos dois (qualidade e quantidade), já que qualidade é diferença. Não sei se está ficando claro onde eu quero chegar, mas peço ax leitxr que releia a citação de cabeçalho desse pequeno texto. . Leu? Imagino que agora vocês possam entender que o que está em 2. Podemos estender também para a diiculdade de se dizer ‘eu concordo com isso’ em vez de ‘isso é verdade’. 14 O capitalismo se forma quando o fluxo de riqueza não qualificado encontra o fluxo de trabalho não qualificado e se conjuga com ele (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 168). Tipo assim, a nossa percepção e o nosso contato com o mundo natural não se dão diretamente com as coisas em si. Existe um afastamento da coisa, e esse afastamento se dá por meio da produção da imagem da coisa; depois, há um segundo afastamento, que, por sua vez, consuma-se na nomeação da coisa. Ou seja, o primeiro afastamento é da ordem da percepção, e o segundo da conceitualização. • Ora, o mundo me impressiona por meio de um aroma – de fato, são infinitos os impulsos, os detalhes e as minuciosas características moleculares envolvidas. Só que eu produzo uma imagem, que é a da coisa, a coisa menos o que não me interessa1. Essa imagem aromática passa por um novo afastamento que vem a ser o enquadramento dela em um nome (conceito): cheiro de café. Esse segundo afastamento é fruto de uma grande empresa de igualização na qual está inserida toda a galera (nós). Agora, sobre essas coisas falaram de maneira magistral Nietzsche, Bergson, Bataille… é só dar uma olhada. Para nós, o que interessa aqui é olharmos com atenção para o fato de que tal empresa de igualização é possivelmente a base de toda experiência humana, da linguagem, das ditas ciências humanas e do grande Cthulhu de tentáculos descodificadores e axiomáticos: o capitalismo. Vou retomar um ponto de que já falamos antes (BOI, JUNIOKIO e MARUCS, 2015, p. 82), mas que se faz necessário aqui. Trata-se da primazia da quantidade sobre a qualidade e do posterior desentendimento e esvaziamento do conceito de qualidade. Quantidade e qualidade são dois conceitos de ordem e categorias distintas e compõem, cada qual, uma série de relações particular. Comparar, relacionar, valorar um em função do outro torna-se aquilo que podemos chamar de conjugação de séries heterogêneas [O que é mais importante, o crescimento econômico da China ou a dor de barriga da Joana?]. Não que a conjugação de séries heterogêneas seja uma novidade ou algo que o intelecto não faça de jeito nenhum… pelo contrário: é bom comer banana antes de correr; mulheres não devem elevar a voz ao senhor; o trabalho dignifica o homem… Fazemos isso o tempo todo – Mas o que chama a atenção para o estabelecimento de um parentesco entre quantidade e qualidade está no fato de que no bojo dos dois conceitos estão pontos de partidas diametralmente opostos. Quantidade parte de uma noção e igual; enquanto qualidade parte de uma noção de diferente. • Para estabelecer uma relação de quantidade, é necessário que primeiro se identifique uma unidade (e aqui passamos pelos dois afastamentos que comentamos anteriormente). Em sequência, é preciso estabelecer uma igualdade entre as unidades. E aí sim dizer 1. Interessar aqui no sentido da utilidade prática e, por im, da sobrevivência. 15 Edital de Tretas aos amigos Chuck e Juniokio Boi Ilustração: Daniel Rocha Glossário Chinês [ou MA-MÉM, ou, ainda, MAMU-TE] boi, juniokio, marucs e pedrito 16 “Por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno. Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para poder continuar nos alegrando com a nossa sabedoria! E justamente por sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens, nada nos faz tão bem como o chapéu de bobo: necessitamos dele diante de nós mesmos – necessitamos de toda arte exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós.” (Nietzsche - A Gaia Ciência) [Ars Nova] Caso típico de redundância útil. Toda arte é nova e carrega em seu bojo o dínamo da movimentação, a linha da diferença. Todo artista é inquieto e insatisfeito: é isso o que Schoenberg quis dizer quando enunciou que o ‘verdadeiro crítico musical é o compositor’, pois, se um artista está insatisfeito e não encontra no mundo obra que lhe traga paz, este não dirá como deveria ter sido feita tal ou qual peça, ele fará as dele, a partir de seus próprios dínamos. Toda Ars Nova é também fundadora de uma Ars Antiqua, como, em semelhança, o fez a Seconda Pratica em relação à Prima Pratica (outrora Ars Nova, agora já envelhecida), ou a Segunda Escola de Viena em relação à Primeira, o Movimento Música Nova para o nacionalismo... verbete: Alckmia), e devem, em vez de imitar o miado do gato ao serem tocados, dizer a frase “o governo trabalhou” durante a partida. 2. Processo de transdução de energias ou de transformação da matéria. Sobre a transdução de energias, ver o tópico 11 do verbete Platonismo. 3. Na alquimia, nos é sugerido que a transformação de metais de baixo valor em metais nobres é possível – daí, inúmeras interpretações das práticas alquímicas se fizeram conhecer, desde as doutrinas gnósticas de preservação do esperma durante o ato sexual até as pesquisas recentes no campo da ciência, nas quais a transmutação se dá pela manipulação da matéria em níveis sub-atômicos. Tais campos de pesquisa pecam por considerar as práticas alquímicas sob algum viés de literalidade. 4. Metáfora do processo criativo. [Ameaça] [Alquimia] 1. Variação da brincadeira conhecida como “gato mia”, na qual os integrantes praticam toques, bolinagens, erotismos leves e afins em um quarto desprovido de iluminação; nesta variante, os membros participam utilizando máscaras do governador do Estado de São Paulo (daí vem uma escrita alternativa do 1. Ato de fala de tipo ilocutório, relativo a futurologias raivosas, à semelhança das promessas, que são geralmente vinculadas a futurologias mendicantes ou a histórias de pescador. Ameaças vociferadas tendem a descarregar a raiva no próprio ato de enunciação, como chuvas com trovoadas que ameaçam cair, mas são levadas pelo vento; 17 ameaças sussurradas têm mais probabilidade de se efetivar; quando escritas podem ser facilmente descontextualizadas e transformadas em scriptum delittus; as não pronunciadas certamente são as mais perigosas. 1.1 Ameaças podem ser caracterizadas contendo maior ou menor teor de ato ilocutório compromissivo ou de ato ilocutório expressivo: o primeiro tipo – motivado por uma intenção efetiva de se comprometer a realizar uma ação no futuro, exemplifica-se na frase: “Passo na sua casa amanhã pra tirarmos o atraso!”; já os atos ilocutórios expressivos – entendidos como um gasto emocional e simbólico no presente sem uma projeção para ações futuras – exemplifica-se em uma expressão como: “Meus Pêsames!”. 2. Por meio da noção de “jogos de linguagem”, uma vez um filósofo contradizendo tudo o que tinha dito antes enfatizou que os enunciados não devem ser compreendidos como algo fixo e determinado, como se das palavras cristalizadas emanasse o sacrossanto sentido; esse filósofo nos faz entender que o sentido é sempre uma porta profanamente entreaberta, algo que se faz na travessia, à luz do contexto e do uso hábito-performativo que se faz do enunciado. No caso da ameaça como jogo de linguagem, é comum virem à tona as relações de poder envolvidas no contexto de enunciação da ameaça, principalmente em contextos em que as “regras” não podem nem devem ser precisamente determinadas. 3. (vulg.) Truuuuuuuuuco!!!, gritado por um delinquente jogador de carteado, embora os seus companheiros talvez estejam jogando Canastra. [Fronteira] 1. Construções; ocorrem nas vontades de espoliação das possibilidades, ao condenar algo a não ser tudo aquilo que poderia (centro – por- 18 ta). 2. Sítio de desestabilização de categorias; centro desestabilizado. 3. Lugar das quebradas. 4. Zona cinzenta; lugar de subversão, interpolação, multiplicidade, coexistência, experiência, diferença; ponte. 5. Início e fim e eterno. [Tarot] 1. Projeto arcaico de explicação do mundo por meio de uma estrutura complexa: segundo o axioma da inter-complexidade de Ishisaki-Machado, qualquer estrutura complexa pode ser explicada por outra estrutura complexa, contanto que os interlocutores dominem ao menos uma delas (estrutura explicativa ou estrutura explicada) em seus repertórios. 2. Por meio do Tarot, em suas mais diversas aparições e simbioses (Egípcio, Marselha, Rider Waite etc.), se busca demonstrar o caminho iniciático, desde os primeiros passos até a mais elevada assumpção. Normalmente é composto de 22 Arcanos maiores e 56 menores: os maiores correspondem a etapas do caminho iniciático, e os menores a intempéries e peculiaridades da vida – aqui podemos notar que o estruturalismo já assolava a humanidade desde os primeiros tempos. 3. Arcanos Maiores: [1] O Mago – o começo de tudo e o controle sobre os elementos da natureza (ver também Jorge Valdivia); [2] A Sacerdotisa – princípio feminino, devir mulher, deleite e desejo (“eu sou a última sacerdotisa do templo de Tetistã”); [3] A Imperatriz – mãe natureza, princípio de fecundidade e maturação, Mulaprakriti, sem a qual o ‘nada’ engoliria todo o mundo (ver História sem Fim); [4] O Imperador – senhor das codificações e sobre-codificações, escravagista, rei das formas e formatos (“pensar verdadeiro e fundador mágico”); [5] O Hierarca – sacerdotejuiz que procede por pactos e contratos, culpa e compensação, mais valia; [6] A Indecisão – eis o arcano do devir, a face se volta para a virtuosa, o corpo quer a pecadora, os céus elegem a pura, o subterrâneo anseia pela sanguínea; [7] O Triunfo – aqui temos o carro, o ferramentário, as técnicas, savoir faire etc. (ver também carrinho como ente da caixa de ferramentas e carrinho de mão); [8] A Justiça – grandiloquente argumento do discurso de dominação, nada mais; [9] O Eremita – solitário viajante, nômade, a busca constante de percorrer fronteiras e se afastar de centros; [10] A Retribuição – ou a roda da fortuna, o parcialismo da natureza, o baú da felicidade, a porta dos desesperados; [11] A Persuasão – a força em um devir molecular, minoritário: sempre pequena e intensiva, agrupando-se e se compondo no campo de imanência; [12] O Apostolado – a abusiva ideia de se negar a vida em troca de quadraturas sem fim; [13] A Imortalidade – característica peremptória da natureza naturante dentro da qual tudo morre; [14] A Temperança – “O mal é preciso temperar” (ver Apocalipse de São João, capítulo 14); [15] A Paixão – puro afã, místico clã de sereia, castelo de areia, ira de tubarão…; [16] A Torre Fulminada – 2016, foi golpe; [17] A Esperança – a estrela solitária, um facho de luz, a estrada de louros; [18] O Crepúsculo – também conhecido como o Arcano dos inimigos ocultos, ou da traição (ver Tradição), 6+6+6 o número da besta; [19] O Sol – brilha por si; [20] A Ressurreição – grande obsessão da humanidade, alimentada pelo assustador sentimento de finitude, pequenez e efemeridade da vida; [21] A Transmutação – única lei da natureza, esse Arcano também é conhecido como o louco, é o princípio do caos, o saci fundamental; [22] O Regresso – maior e derradeira fantasia iniciática, equidna mãe de todas as religiões e doutrinas. 4. Tarot em retrogradação é o mesmo que Torat (aproxime também os 22 Arcanos com as 22 letras do alfabeto hebraico, ou, ainda, com os 22 capítulos do Apocalipse de São João): o Tarot é a grande ferramenta de doutrinação policêntrica, e o Torat máquina de controle monocêntrico. [Liquidez] 1. Um dos quatro estados da matéria, no qual a distância entre as moléculas é suficiente para que a matéria tome a forma de qualquer recipiente, sem que perca seu volume. 2. Metáfora utilizada por Zygmunt Bauman para evitar o termo “pós-modernidade”. 3. Atributo das energias psíquicas puras dos processos criativos. A energia líquida presente em um processo toma a forma de seu recipiente. O recipiente é o limite e o continente; diferentes recipientes podem ser utilizados para conter a energia líquida, que é em si indiferenciada. É o recipiente que dá a esta energia sua forma e aspecto final. Exemplo: a música “pura” ou “absoluta” é um engodo, considerando-se que ela perde sua pureza quando preenche um recipiente, adequando-se à forma de algo não sonoro. Uma música dita “pura” escrita para um quarteto de cordas tem o quarteto de cordas (objetos materiais construídos com madeira, envernizados, equipados com cordas de metal ou de tripas) como continente e recipiente. A matéria articulada por esse mecanismo (atrito de crina sobre cordas, ressonância das madeiras, moléculas de ar vibrando, tímpanos afetados pela vibração) constitui a forma final desta música: a música é o imaginário, a abstração e a codificação, mas também é a matéria, o tempo, a interação de corpos. A única música “pura” é a energia líquida da música enquanto coisa não sonora. Eis aí a contradição: a música pura só se mantém pura enquanto força não sonora que ainda não foi contida por recipientes não sonoros. A música pura não nos interessa. Vamos celebrar a liquidez dos fluxos musicais; vamos contaminá-los e poluí -los em grandes variedades de recipientes. O compositor faz com a música pura o que 19 São Paulo faz com o rio Tietê. 4. Na tecnocracia, corresponde à quantidade de tempo e nível de dificuldade que um ativo tem para se converter em caixa. (Ver Uma Pipa no Céu e O Governo Trabalhou). [Lugar de fala] 1. Visão de mundo; ponto de vista ético, constituído, não inato (ver Etopoética). 2. No contexto de luta contra o silenciamento de grupos socialmente oprimidos, a noção de lugar de fala surgiu como importante busca por autorrepresentação discursiva, pelo fim da mediação. O ganho que o conceito traz é que a fala daqueles que sofrem a opressão passam a se tornar o locus privilegiado para falar e refletir a respeito daquela condição. Por meio de negativas, traduz-se assim: o homem não deve falar no lugar da mulher; nem o branco no lugar do negro; nem o hétero no lugar do homo; nem o cis no lugar do trans. Não falar pelo outro, no lugar do outro, em nome do outro e tentar excluir a sua voz ou tratá-lo como incapaz. Uma pessoa não deve querer representar o outro, constituindo um preconceito comum achar que o desfavorecido deva ser representado por aquele que é privilegiado na estrutura social. No entanto, é um equívoco identificar lugar de fala e representação bem como parece ser uma deturpação dizer que há uma “contradição performativa” no fato de um homem branco falar contra o racismo ou o machismo. Contanto que denunciar não seja falar no lugar de outro ou tentar representá-lo ilegitimamente, qualquer pessoa numa democracia pode, a partir do seu próprio lugar de fala, posicionar-se e lutar contra opressões que ela mesma não sofra na pele (ver Teoria da Interseccionalidade, segundo a qual as múltiplas discriminações e intolerâncias estão fortemente inter-relacionadas, em vista 20 do fortalecimento de ideologias preconceituosas e segregacionistas). Positivamente, o lugar de fala é algo a ser construído, é um trabalho – não individual nem solipsista – que se faz sobre si mesmo. Lugar de fala não é um dado biofísico e fenotípico com que uma pessoa nasce, localizando-se propriamente num campo de formação ética do cidadão. Donde se pode dizer que o lugar de fala de um Fernando Holiday, por exemplo, é a de um branco, embora ele seja fenotipicamente negro. “Não se nasce negro... como não se nasce mulher...” 3. A luta por protagonismo e reconhecimento que está por trás da ênfase no lugar de fala é algo socialmente muito necessário. Porém, a deturpação do protagonismo em exercício de poder é algo oportuno a ser colocado na pauta de autocrítica nos movimentos que lutam por políticas de identidades. Empoderamento, por exemplo, é um termo que nos parece sugerir apenas uma re -hierarquização ou revezamento dos atores no desfrute de privilégios e não a construção de uma política da diferença e igualdade de direitos. (ver Distinção entre poder e potência). 4. Quando políticas de identidades se inscrevem no mero exercício de poder, tornam-se políticas identitário-individualizantes e o campo da política que hoje tem urgência de ser construído, sabemos, é antes de tudo o da desindividuação. “Não exija da política o restabelecimento dos direitos do indivíduo. O indivíduo é produto do poder. O necessário é se desindividualizar por meio da multiplicação, do deslocamento, do ordenamento em combinações diferentes. O grupo não há de ser um laço orgânico que una indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de desindividuação.” (M. Foucault - Introdução à O Anti-Édipo). Como indivíduo branco, posso não me considerar culpado pela escravidão do passado (como reza o argumento ‘coxinha’), mas de um ponto de vista ético, a partir do meu próprio lugar de fala – mesmo sendo branco –, posso advogar em prol das cotas raciais como necessárias na tentativa de atenuar as consequências ainda muito presentes do regime escravocrata que grassou no meu país. 5. (ant.) Em regimes de clausura ou encarceramento, dizia-se parlatório ou locutório. [Civilização] 1. Humanidade à la carte; ilusão do fruto proibido; culpa sem arrependimento, pecado sem salvação; consciência limpa de si e dos seus: tinha que ser o Chaves. 2. Ouro dos tolos, mito do progresso, ruína sobre ruína. 3. Para franceses e ingleses, enfatiza o que é comum à nação. Relacionada a fatos políticos, econômicos, religiosos, técnicos, morais ou sociais, realizações de fato ficam em segundo plano. Legítima tendência expansionista por meio da importância de sua nação para o progresso do ocidente e da humanidade. Para os alemães, Zivilisation é valor de segunda classe, ligada à superfície da existência humana. Prefere-se o termo Kultur para identificar suas realizações, pois enfatiza as diferenças nacionais, valoriza as realizações intelectuais, artísticas e científicas. Dá valor ao que foi realizado, distanciando-se de valores intrínsecos do ser humano. 4. Quando os bárbaros são eleitos para a eles se opor; Luftal. sários para a prática da Ikebana. Os arranjos seguem normas e regras rigorosas. A função da Ikebana não é a de decorar um espaço com elementos da natureza, e sim a de estabelecer uma ligação entre a natureza e os espaços fechados. 3. Distingue-se o natural do que é feito pelo homem, baseando-se na dicotomia natureza x técnica. Aristóteles define o natural como um princípio de mudança interno, pertencente intrinsecamente àquilo que muda, enquanto a técnica seria um princípio de mudança externo à mesma coisa. Se pensarmos nas colocações de Bergson, de que o mundo é um conjunto de imagens sobrepostas e que não há separação real entre as imagens, tal noção de interno e externo cai por terra. Nesse ponto, a técnica estaria presente em todas as interações materiais, e tudo seria natureza. Partindo-se desse ponto, a Ikebana é a arte de trabalhar com ilhas de indeterminação. A impermanência e o caos são temporariamente contidos num arranjo e sustentam a ilusão de unidade em um dado intervalo de tempo. Tal ilusão só nos é possível em razão de uma cognição limitada aos eventos macro do mundo. Os sentidos não percebem o decaimento atômico em um pequeno intervalo de tempo; porém, após um mês, a impermanência do arranjo de flor é evidente ao olhar, ao tato, ao olfato… 4. Ilhas de indeterminação, colonização temporária do caos e artesanato da autoilusão. 5. Atributo de efemeridade da obra de arte. [Ikebana] [Aliteração] 1. Do japonês, ikeru (生ける):”manter” e hana (花):”flor”. Ikebana (生花) significa, literalmente, “arranjo de flores”. Mas essas são informações triviais, de cunho formal. Estão aqui apenas para dar vazão ao fluxo. O movimento, apesar de indivisível, necessita de um começo qualquer. 2. Conexão e harmonia com a natureza são traços neces- 1. Aliteração alicerça algum alinhamento a-linguístico que alumbra e alimenta a Lógica alucinante da Língua. 2. Única possibilidade de existência: Alí – único local no espaço onde se dá a experiência; Ter – único atributo do eu (ver coleção de teres); Ação – única possibilidade de modificar a natureza, 21 sempre se dá por linhas e composições do desejo. 3. Antônimo de Aquiserreação. [Compostagem] 1. Agenciamento molecular produzido com matéria degradada, um tipo de baixa alquimia. Utiliza materiais indignos, de baixo calão, rejeitos, detritos, sujidades. 2. Milagre sem transcendência: compostagem é a alquimia dos anjos decaídos, a montagem do céu com cacos de trevas, religião sem relíquias. 3. Procedimento de composição artística com tralhas, velharias e um mundo de coisas imprestáveis: sem redundar em acúmulo ou profusão, produzindo espécies de abismos maciços, vazios pregnantes e eruptivos. Parece incontornável, nesse sentido, a obra do encenador e artista visual Tadeusz Kantor, que operava a partir da noção de “realidade degradada” (Bruno Schulz). 3.1. Nessa acepção, costuma se diferenciar da Colagem, na medida em que, numa arte-compostagem, os materiais originais se emulsionam e apresentam a tendência de não serem mais distinguíveis entre si – ao menos a olho nu. (ver Emulsão) 4. Tipo de reciclagem que você pode fazer com despojos orgânicos, como cascas de legumes e frutas (exceto limão), hortaliças, troncos, tubérculos, alimentos apodrecidos e outros descartes orgânicos que fogem ao paladar médio ou ao padrão de qualidade mercadológica. Resulta num poderoso composto fertilizante. Receita: cavar um buraco, enterrar por três ou quatro meses restos orgânicos em camadas que você deve intercalar com terra e folhas secas coletadas em longas caminhadas pelos bosques. A melhor maneira de pensar é caminhando (ver Permacultura). [Tradição] Semelhante à TRADUÇÃO, que, por sua vez, é semelhante à TRAIÇÃO. A origem etimo- 22 lógica do termo TRADIÇÃO vem do latim traditio, que vem a ser a ação de entregar ou transmitir algo a alguém. Já TRADUZIR vem do latim traducere que significa ‘converter’, ‘mudar’: seu antecessor seria trans + ducere, ou seja, dizer através. Enquanto que TRAIR vem de tradere, que seria o ato de ‘entregar’ ou ‘passar adiante’. Todos os três conceitos incomplexos trazem em seus bojos o radical trans (transcender, transpassar) e o fazem por operarem na esfera da sinonímia. No caso da TRADUÇÃO temos a sinonímia entre linguagens naturais; no campo de TRAIÇÃO, uma sinonímia de sujeitos; e, no plano da TRADIÇÃO, uma sinonímia de tempos (instantes). Assim como um tradutor busca no idioma inglês uma palavra semelhante para operar seu ofício, um tradicionalista busca operar fazeres semelhantes em tempos diferentes com o intuito de igualizar os próprios tempos – enquanto dura uma tradição, dura um tempo. Ora, entretanto, a sinonímia não é materialmente possível no plano de imanência. De modo que toda tradução é uma aproximação grosseira entre sentidos sempre distintos e heterogêneos. Assim também a tradição se torna um mecanismo falsificado de sustentar o igual. Todo tradutor é um traidor do sentido, e todo tradicionalista é um traidor do instante. E, em outras palavras, não há nenhuma traição que não seja do sentido ou do instante. – Ver também ‘contrair’, ‘traíra’ e ‘trairagem’. [Platonismo] 1. Modalidade de negação da experiência. 2. Pilar dos cristianismos e outros cancros do intelecto. 3. Ferramenta discursiva de viés totalitário, engendrada na subordinação do pensamento à linguagem. 4. Antiarte. 5. Mecanismo retórico de enunciação de verdades, utilizado em última instância para subjugar jovens mancebos, independentemente de suas inclinações sexuais, à prática do coito anal, frequentemente como sujeitos passivos. Neste mecanismo, a verdade e o sêmen são equivalentes, e o gozo está reservado somente aos sábios. 6. Filtro cognitivo que coloca o axioma no lugar da experiência. 7. Conjunto de enunciados falaciosos utilizados na fundamentação de diretrizes políticas totalitárias/totalizantes. 8. Modo de opressão normalizante, que opera por meio da sacralização e da falta. 9. Antilucifer. 10. Forma barata de elitismo. 11. Aparato transmutador que, ao operar na escrita, inverte o Edugair em Papai-Piru. Platão, ao escrever as falas de Sócrates, converte o Sócrates Edugair – sujo, caótico, louco, imprevisível, incômodo, invasor (ver As Nuvens de Aristófanes) – em Sócrates Papai-Piru: sábio, etimológico, racional, injustiçado. Do mesmo modo, Paulo, em sua escrita, converte o Yeshua Edugair – mal falado, amigo das putas, bêbado, andarilho, mago negro, lunático, mitomaníaco, miguelento, contraditório – em Jesus Cristo Papai-Piru: filho do Pai, hipster, redentor, misógino, virgem, a Verdade e a Vida. [Artífice] 1. Ablativo de artĭfex, composto de ars (arte) e facěre (fazer). Aquele que constrói artifícios (artefato, astúcia, disfarce, fraude), enquanto o sofista é aquele que mercadeja artifícios ou que os constrói segundo as regras da mercadejação. 2. “As prisões se constroem com as pedras da lei. Os bordéis com tijolos da religião” W. Blake. 3. “O rigor com que os dominadores impediram no curso dos séculos a seus próprios descendentes, bem como às massas dominadas, a recaída em modos de vida miméticos – começando pela proibição de imagens na religião, passando pela proscrição social dos atores e dos ciganos e chegando, enfim, a uma pedagogia que desacostuma as crianças de serem infantis – é a própria condição da civilização. A educação social e individual reforça nas pessoas seu comportamento objetivamente enquanto trabalhadores e os impede de se perderem nas flutuações da natureza ambiente.” Adorno e Horkheimer. 4. “Todo trabalhador é escravo. Toda autoridade é cômica.” Roberto Piva. 23 Entrevista com Edgard de Assis Carvalho Abate 24 Pedro H. F. Machado – Alberto Manguel, em A cidade das palavras, nos lembra um caso em que Alfred Döblin responde ao poeta italiano T. F. Marinetti quando esse sugere um ‘método futurista’ (no ofício poético): “Em arte de nada serve o método, mais vale a loucura”. Recordo-me que quando tive a oportunidade de fazer seu seminário de pesquisa, ao ver tatuado no braço de um aluno a palavra ‘inadequado’, o senhor cogitou utilizá-la como parte do título de uma autobiografia em fase de finalização. Em que medida a loucura ou a inadequação podem dizer a verdade ao poder ou, nas palavras de Edward Said, ‘subverter o poder da autoridade’? Edgard – Concordo integralmente com Alberto Manguel, ensaísta que integra minha ‘biblioteca ideal’. Amplio essa ideia da arte para a ciência. Método não é camisa de força, conjunto de regras a serem mecanicamente aplicadas a objetos inertes. É caminho incessantemente refeito a cada passo que a pulsão do conhecimento invade o sujeito que busca conexões complexas para o entendimento. Em tempos líquidos, os verdadeiros intelectuais devem se empenhar em dizer a verdade ao poder e não se submeter impu- ne e acriticamente a ele. Foi Edward Saïd quem formulou essa ideia num fascinante livro intitulado Representações do Intelectual, traduzido no Brasil por Milton Hatoum. Foi com essas ideias na cabeça que consegui terminar meu livro e intitulá-lo Conexões da vida, uma antropologia da experiência, que será publicado pela editora Una, de Natal. De certa forma, é uma maneira de externar minha inadequação com os padrões que regem a fragmentação dos saberes disciplinares que tomaram conta dos dispositivos acadêmicos. P. H. F. M. – No livro das passagens de Walter Benjamin (Paris, a capital do século XIX), o autor cita e complementa Jules Michelet: “Cada época sonha não apenas a próxima, mas ao sonhar, esforça-se em despertar”. Nesse sentido, e fazendo um recorte que caiba em uma entrevista, o que estaríamos sonhando para a época seguinte com relação à arte? Edgard – Em Passagens, Walter Benjamin destaca a energia do flâneur, sempre aberto a novas experiências, interações, reorganizações. A modernidade líquida tem de encarar a opção que resta aos sujeitos; a solidão ou o estar-junto. Esse é o sentido do futuro que, como sabemos, nunca poderá ser diagnosticado antecipadamente. A arte sempre sonhou com o devir, e isso vale para a literatura, a poesia, a pintura, o cinema, o teatro. Em um de seus últimos ensaios, Claude Lévi -Strauss afirmou que cinco séculos de histó- ria não conseguiram reabilitar plenamente o sujeito, que permanece dilacerado, dividido, recalcado. A única reserva de memória que expressaria o sentido da impermanência e da provisoriedade seria fornecida pelas artes. Para isso, porém, seria necessário reaprender a olhar, escutar, ler, título que ele sabiamente deu ao livro publicado em 1993. As artes nos ensinam a ver o mundo de outra perspectiva, repõem o estoque onírico de um mundo marcado pelo desencanto das tragédias do poder em âmbito planetário. 25 Marcus Groza – A partir de uma ideia de Bauman, você afirma que a cultura é “fábrica de ordem” e que não consegue assimilar as desordens, lançando mão de dualismos classificatórios redutores. Você também aponta que os primatas não humanos criam e transmitem cultura, o que seria a possível “quarta ferida narcísica” (depois de Copérnico, Darwin e Freud). Poderia falar mais a respeito? Para você, alguns setores da cultura guardam mais potência de abertura para as desordens? Edgard – Quem afirma isso é o próprio Zygmunt Bauman em O mal-estar da pós-modernidade. Conceito-armadilha, a cultura foi inundada por dualismos relativistas: cultura erudita, cultura popular, cultura de massa, cultura científica, cultura humanista. Com isso, perdeu-se o sentido universal do termo. Cultura é práxis cognitiva gerada por humanos de todos os tempos e lugares. Existem realidades locais, claro, mas estas devem ser necessariamente articuladas a uma visão totalizadora. Primatas não humanos exibem formas socioculturais que exaltam o altruísmo, a cooperação, a tolerância. As ideias de Frans de Waal são exemplares a esse respeito. Se Freud já havia se referido às três feridas narcísicas, cabe especular sobre essa quarta a que você se refere. No domínio dos primatas, não somos mais os únicos portadores de cultura. Fomos destronados uma quarta vez. Um fato como esse poderia produzir uma cosmovisão destituída de qualquer forma de antropocentrismo, capaz de instaurar uma verdadeira política de civilização. M. G. – Em um artigo, você escreve que “a complexidade pensa com a contradição e também contra ela. Por isso, a incerteza da contradição e a contradição da incerteza são vitais para a criatividade e a invenção”. Poderia esmiuçar um pouco sobre qual seria o papel da contradição no pensamento complexo e na transdisciplinaridade? Em que medida essa contradição pode ser relevante para criarmos pontos de oposição em relação à racionalidade instrumental e para discutirmos a relação entre arte e ciência? Edgard – Existe muita incompreensão com a complexidade. Etimologicamente, a palavra vem do latim complexus, cujo significado é tecer em conjunto, religar o disperso, rearticular o fragmentado. Mesmo em sociedades menos desiguais, as contradições existem. Elas não esperaram o capitalismo para se instalar sobre a face da Terra. As sociedades sem classes, porém, souberam resolver suas contradições com mais sabedoria e criatividade, como bem expressou Claude Lévi-Strauss em seu ensaio A Antropologia diante dos pro- 26 blemas do mundo contemporâneo. Resta saber como identificá-las aqui e agora, perceber que o mundo não pode ser mais regido pela hegemonia do quadrimotor formado pela técnica, indústria, ciência, Estado, e, assim, criar formas de entendimento da vida nas quais a razão, a emoção, a arte e a ciência caminhem juntas. Oposições existem, claro, mas complementaridades também. Para o pensamento complexo que se funda na dialogia, na recursividade, no holograma esse é um pressuposto inegociável. M. G. – Sabemos que o conceito tradicional de identidade se encontra filosoficamente desgastado. Num texto seu encontramos a sugestiva ideia de uma “identidade arlequinada”. Poderia falar mais a respeito dessa “identidade arlequinada” e do contexto em que localiza essa ideia? Edgard – O desgaste do conceito não é apenas filosófico, mas político-cultural. Claude Lévi-Strauss já havia percebido isso em um famoso encontro interdisciplinar realizado em 1977. Identificar-se implica sair do fluxo da universalidade e, de modo intolerante, pregar a uniformidade de padrões e normas de determinado grupo, etnia, classe, deixar de privilegiar o caráter da vida em comum. Somos os mesmos e, simultaneamente, outros. Unos e, terrivelmente, múltiplos. A ideia de uma identidade arlequinada é oriunda do pensamento de Michel Serres e se encontra sistematizada em O Terceiro Instruído, traduzido no Brasil como Filosofia Mestiça. Para Serres, a educação é indissociável da mestiçagem das culturas. Como sabemos, o arlequim é uma marchetaria de cores, texturas, formas. Somos assim também. Marco Antônio Machado – Em uma entrevista sua a Edgar Morin, o filósofo apresenta uma imagem em que temos o ‘norte’ como agente das quantificações e o ‘sul’ (ou melhor, os suls) como operador das qualidades. Ele exemplifica isso no campo das medicinas, das culturas, sobretudo, nos modos de viver. De certo modo, a axiomatização básica do capitalismo é a desqualificação dos fluxos de riqueza e de trabalho (trabalhos e riquezas de qualidades diferentes recebem uma remuneração quantitativa igual), e isso termina por operar todo sistema de captura e apropriação no qual se insere nossa mundialização. No campo do fomento artístico temos, nos dias de hoje, o modelo de mecenato do capital privado (norte-americano) e o de mecenato do estado (europeu): ambos quantitativos e do norte. Como seria possível pensar em um fomento sulista para as artes? Edgard – Essa longa entrevista organizada pelo Sesc Nacional ocorreu no âmbito de um encontro internacional sobre o pensamento do Sul em 2011. Havia um texto-base escrito por Edgar Morin discutido em três comissões: cultura, economia, educação. Daí surgiu uma declaração que foi divulgada por instituições, grupos de pesquisa, organizações da sociedade civil. Não foi nada fácil desconstruir a ideia de que o Sul não era uma noção geográfica, mas uma forma de sociabilidade que busca preservar as tradições simbólicas e, com isso, vislumbrar que a mundialização da economia não é a única saída que resta e que o Estado não é o único baliza- dor para o conjunto dos saberes. Não se trata de diabolizar o Norte e divinizar o Sul, mas reconhecer limites, aporias, distopias presentes em ambos. O caso do fomento artístico é um sintoma de que o Estado não consegue elaborar uma política comum, pluralista, inovadora, que supere querelas partidárias e intolerâncias ideológicas. Instituições fora do Estado – museus, instituições, ongs, oscips – conseguem ampliar a criatividade e democratizar o acesso. A questão crucial não é, portanto, pensar um ‘fomento sulista para as artes’, mas ampliar a percepção de gestores e, até mesmo, de mecenas sobre as conexões arte-ciência-filosofia. 27 M. A. M. – Considerando que o Cristo disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14); “Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem” (João 4); “Eu sou a ressurreição e a vida, quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá” (João 11), entre outras vontades de verdade. O Papa Francisco é o anticristo? Edgard – O Antigo e o Novo testamentos não podem ser compreendidos de modo literal, metonímico, e sim metafórico. Elementos de meditação e reflexão constantes são imagens e parábolas que nos ajudam a compreender o mundo e a nós mesmos de outra maneira. As epístolas de São João às quais você se refere, os livros históricos, proféticos, poéticos e sapienciais, as epístolas de São Paulo e até mesmo o Apocalipse devem ser entendidos dessa maneira. Por isso mesmo, jamais consideraria o Papa Francisco como o anticristo. Muito pelo contrário. Suas ideias acerca da espiritualidade cristã expressas na encíclica Laudato Sie nas conversações com Andrea Tornielli estão na vanguarda do pensamento. Misericórdia é a palavra-chave para o contemporâneo. Preservar a casa comum – a Terra-Pátria – é a única saída possível para combater e superar o mal-estar na civilização, que já havia sido diagnosticado por Freud em 1930. O maior pecado de todos é, porém, a corrupção. Corrupto, ele afirmou enfaticamente, é aquele que peca e não se arrepende, fingindo ser cristão. A autoestima do corrupto baseia-se na fraude, no oportunismo, na indignidade, na ausência total de compaixão. Sábias reflexões sobre os tempos sombrios que vivemos no Brasil. Edgard de Assis Carvalho, professor titular de Antropologia, coordenador do núcleo de estudos da complexidade, da PUC/SP, correpresentante brasileiro da CIUEM, cátedra itinerante Unesco Edgar Morin. 28 O CHORO DO GIGANTE Não se ouvia outro assunto na cidade de Cruzeiro. Em todas as rodas de conversa, pipocavam teorias sobre o fenômeno ocorrido. Para entender o motivo de tanto murmurinho, era só olhar para a serra. O Gigante Adormecido, Pico do Itaguaré, estava chorando. E chorava mesmo, copiosamente.Um choro incontrolável, de lamento. Choro que só se vê em velórios, lápides e outras despedidas eternas. No segundo dia seguido de choro, mais uma tragédia. O Rio Verde, que tem sua nascente na Serra Fina, havia amanhecido vermelho. Assim, de uma hora pra outra, as águas ganharam um tom rubro e jorravam como o sangue de uma apunhalada. As Agulhas Negras se vestiram de luto. O Morro do Careca se encrespou, ninguém subia o Pico dos Marins. E o Gigante continuava a chorar. Cientistas, estudiosos, profetas, montanhistas e autoridades se uniram. Mas o fenômeno continuava sem solução. Até que Acir¹, descendente legítimo da tribo Tupi da Serra da Mantiqueira, decidiu se manifestar. Mario Nunes – Meu povo nasceu nessas montanhas. Meu povo viveu nessas montanhas. Meu povo morreu nessas montanhas. Hoje, eu vejo destruição, vejo descaso, vejo extinção. Eu entendo a sua tristeza, Amantikir², a serra que chora. 1. Acir: nome próprio indígena que signiica “dolorido, magoado”, “o que vem da dor” ou “o que faz doer”. 2. Amantikir: nome indígena da Serra da Mantiqueira que signiica a “serra que chora”. 29 Excertos-Cidade Texto escrito para ser uma “cartografia afetiva” da Plataforma Arquipélagos: www.arquipelagos.com Federica Giovanna Fochesato (Kika) 30 Texto em prosa ou em verso? Assim como a cidade... em absoluto, nem um, nem outro. Texto MISTO, sem deixar de ser crítico. Tão MISTO quanto eu gostaria que fosse a CIDADE... e, por isso, eu critico. Mas, em meio à crítica, ora verso, ora prosa... também há de flanar imensa afetividade, afinal, tantos excertos da cidade atiçam nossa memória fazendo ruas exalarem perfumes. E isso, por si só, é motivo suficiente para que se queira retirar da prateleira a urbe “plástica” que foi colocada à venda. E aí? Quem vai pagar?... Mas, antes dos excertos-cidade-pensamentos, algumas palavrinhas introdutórias: não esperem textos específicos sobre o deslocar-se de bicicleta, muito menos sobre mobilidade urbana e sustentabilidade. Vou soltar um pouco do que sinto (e reflito) a partir do que vivo, olho e troco com a CIDADE. Logicamente, sendo a bicicleta meu principal meio de transporte, desde que me tornei “adulta”, aos 18 anos, é inegável sua influência para a construção de algumas das ideias. E, pedalando, tornando-me autora e responsável pela minha própria geração de energia (bastante atenção a isso!), parece não ter fim a oxigenação das sensações desse tal de VIVER A CIDADE, em vez de apenas VIVER NA CIDADE. Ressalto também que sou mera pessoa – antes de qualquer título. Logo, sem academicismos, tudo aqui, da prosa ao verso, é empírico e livre. Isso não significa – obviamente – que eu não me apoie em alguns nomes das áreas de arquitetura e urbanismo, história ou geografia, por exemplo. Porém, não quis me ater à organização ou à citação de suas teorias. Ao final, lançados os excertos, deixarei alguns nomes para aqueles que pretendem dar uma “fuçada” no que escreveram, contribuindo imensamente para o “cutucão” naquilo que são as lógicas inversas – algo que, aliás, mais e mais vem colaborando para que as prestações dessa CIDADE À VENDA custem caro. Muito caro. Um caro não somente para aqueles que “pagaram” por um pedaço da urbe, mas também para aqueles que sequer puseram seu nome na fila das inscrições. Definitivamente, a CIDADE DE TODOS É APENAS PARA ALGUNS (aqui, parênteses: atenção aos discursos da CIDADE HUMANIZADA, facilmente incorporado pelo planejamento urbano mercadológico ditado, claro, por investidores). Abrindo, agora sim, os livres excertos-cidade-pensamentos... O MEIO Para mim, numa cidade – seja ela qual for – entre o ponto de saída e o de chegada, há sempre um caminho a ser percorrido. Tecnologias traçam rotas. E eu, com meu MEIO no MEIO... traço novos caminhos dentro daqueles que, aparentemente, são sempre os mesmos. Às vezes sou surpresa, outras vezes sou surpreendida neste espaço sempre vivo e mutante chamado CIDADE. Todo dia, através do mesmo MEIO, um outro MEIO. 31 E POR FALAR EM MEIOS... RECORDO-ME DO “EU, MOTOR DE MIM” Não. Bilhetes ainda não são coisas do passado. Um dia, caída já a noite, sobre minha bicicleta estacionada pela região central de São José, havia um pedaço de papel no qual, com caneta azul, estava escrito: “que belo é ser motor de si mesmo / vim te ver mas não te vi / paz kika” Dia seguinte, entendi de quem era o bilhete. E é claro que, pelas palavras, a chance de ser de alguém que também percorre as ruas da cidade pedalando era imensa. Foi um querido amigo, morador da zona sul, que o deixou. Teve, uma vez, uma bicicleta chamada Gina e, com ela, era ele MOTOR DE SI. Ser MOTOR DE SI tem uma grandeza de significados literais e não literais. Para mim, tal frase soa como um poema carregado de um sublime toque de subversão pessoal e social. Um poema que me move. GLAMOUROSO APOCALIPSE JOSEENSE MOTORIZADO Para abrir esse excerto, faço exceção e cito, portanto, Ivan Ilich que, em seu texto “Energia e Qualidade” (presente no livro Apocalipse Motorizado – a tirania do automóvel em um planeta poluído), lançou a seguinte frase: “A bicicleta permite a cada um controlar o gasto da sua própria energia. O veículo a motor, inevitavelmente torna os usuários rivais entre si, pela energia, pelo espaço e pelo tempo.” São José, aquela que já foi uma pacata cidade sanatorial marcada por bons ares, veio acumulando muitos rivais motorizados ao longo de suas ruas e não sou eu que invento isso. Sabemos, pois as pesquisas revelam e vivencia-se isso: não é preciso ir até a nossa capital para mergulhar em frenéticos “touch” durante o “rush”. Hoje, por aqui, o automóvel (um bem privado – que fique claro!) é o modo predominante de deslocamento na cidade: 44 % das viagens são realizadas por esse meio; um percentual de 12 pontos acima da média encontrada para os municípios de porte semelhante, segundo a ANTP (2011) – Associação Nacional de Trans- 32 portes Públicos (Atlas da Pesquisa Origem e Destino, desenvolvida pelo IPPLAN, Instituto de Pesquisa, Administração e Planejamento, São José dos Campos, 2014). Se para uns o dado colabora para ostentar a “São José empreendedora e tecnológica”, para mim isso é o verdadeiro alarme da urgência em se frear, desde já, qualquer medida que incentive o uso do automóvel. Depois de um século de sua tirania que veio privatizando incansavelmente áreas públicas e onerando ainda mais as classes pobres, agora basta. (É claro que alguns, alheios a sua cidade, em tom de glamour, dirão: “mas não há pobres em São José”, e reproduzirão esse discurso...) Definitivamente, não há sistema de transporte público – muito menos cicloviário – que avance, com sucesso, sem que se mexa nos privilégios que até então, na totalidade, foram concedidos aos automóveis. E atenção: eu disse PRIVILÉGIOS. Algo que não deve ser confundido com direitos. MEU CARRO, MINHA RUA, MEU UMBIGO No meio do TEU caminho, agora tem uma faixa exclusiva de ônibus... No meio do TEU caminho, agora tem uma ciclovia... No meio do TEU caminho, agora tem uma calçada mais larga... Pelo TEU caminho, você pode continuar indo com a bunda sentada em sua lataria fechada e adornada com vidro insufilmado, oras. Ninguém te impedirá! Cadê, então, o direito que você perdeu? Me diz. Lamento, senhor, em NOSSO caminho, agora tem que caber de tudo e todos. Menos privilégios... Por mais amor coletivo e menos motor individual. INJUSTIÇA SOCIAL REFLETIDA NA MOBILIDADE Sendo breve, pois isso é assunto sem fim, principalmente dentro do cenário da “CIDADE À VENDA” inicialmente citado: a falta de efetivas políticas públicas voltadas à habitação popular vai enxotando cada vez mais gente para as periferias sob os sórdidos aplausos daqueles a favor da segregação, da hierarquização e da homogeneização. Já penalizada por viver em locais em quais muito pouco (ou nada mesmo) há em termos de infraestrutura urbana (da rede de esgoto ao transporte público), uma imensa massa populacional, todos os dias, precisa percorrer longas distâncias para acessar a própria fonte de trabalho e diversos outros equipamentos públicos. E, assim, o “ser periférico”, à margem de tudo aquilo que lhe é de direito, mas que dele dista, será penalizado – de novo – ao ter que usar um transporte coletivo caro e pouco efetivo ao deslocar-se pela cidade. Poderia pensar na bicicleta, mas a distância é longa e não há sistemas de integração deste modal junto aos ônibus ou, ainda, não verá segurança em seu caminho, visto que falta uma malha cicloviária que interligue todas as macrozonas ao centro e entre si. Nesse contexto, é natural, nas periferias, que se queira escapar de tamanho engodo e, assim, lá vem mais penalização. Afinal, pessoas se abstêm de uma série de outras necessidades e se esforçam ainda mais para juntar as poucas economias que têm e, assim, comprar (e depois manter) um carro como forma de solucionar seu ir e vir. Portanto, ao serem criados planejamentos urbanos que priorizam e privilegiam o transporte individual motorizado, estimulando cegamente a sociedade a optar por ele, não se está promovendo a justa mobilidade social, aquela que é capaz de gerar oportunidades a todos. (aqui, nem me alongarei com os rombos negativos que, do solo ao ar, atingem a todos nós – ricos ou pobres, e tendo ou não um carro. Rombos causados pelo automóvel durante sua produção, uso e posterior descarte) 33 DE VIAS EM VÁRZEAS Via Norte, Via Oeste... Não seriam Várzea Norte, Várzea Oeste? Sem disfarces, prefiro autênticos nomes. Pedalando em tais baixadas... vejo bois e vacas pastando ao longo das vias, aquelas que são suas várzeas – um cenário pitoresco da “tecnológica” São José. Garanto que por ali... o doce perfume dos lírios do brejo exalando durante a noite... tocam somente quem percorre o caminho nu, sem invólucros. E POR FALAR DA VÁRZEA... MAIS VIAS E MENOS VIDAS Como pode uma favela bem na várzea? É preciso cuidar das suas pessoas, é preciso cuidar da flora e fauna da várzea! Urgentemente, é preciso cuidar! Cuidar para embelezar, plastificar e depois vender. Talvez, mais uma via na várzea – reflexo de um tratamento estético radical. Profundo corte de nome que, fatalmente, fará jus a sua naturalidade: via BANHADO. E as vias... aceleradas, longas e monótonas... em sua concretude, vão expulsando tudo – gente, flora, fauna e o escambau –, ligando apenas lugares, e não pessoas. POR ISSO É PRECISO RESISTIR PARA EXISTIR (A) CIDADE E (NA) CIDADE Negras margens marginalizadas Aqui perto da gente tem um rio, e as pessoas ocupam suas negras margens, de lá e de cá, sem ver suas águas. As pessoas correm... enfurecidas... bem mais rápido que o rio... aceleram ao longo dele, sem se importar de onde ele veio ou aonde ele vai. Saíram de um ponto de partida e querem, logo, alcançar o da chegada. Não importa o que há no MEIO. Querem, com seu MEIO MOTORI- 34 ZADO, que rasguem a cidade com mais negras margens. E assim seguem as margens dos rios... marginalizadas e vestidas de negro asfalto. Utopistas x autopistas Pelo meu caminho, utopistas e autopistas. Utopistas me acariciam, me abraçam e, afetivamente, me dão bom dia, boa tarde. Autopistas me repelem. São vazias mesmo quando cheias por evidenciarem quilômetros de tédio encarcerados. Nota: não querem utópicos bicicleteiros ou pedestres nas autopistas. Logo, quando ali estou, de corpo fechado, sigo. Anel viário que tudo encapa Tá no anúncio da campanha eleitoral e no folheto que convida para a plataforma virtual. Tá no painel da padaria e nos pontos de ônibus (logo ali?). Tá em toda parte, encapando tudo com aquela paisagem na qual se veem carros passando pelas pistas de lá e de cá. Se for imagem de paisagem noturna, são luzinhas dos faróis que evidenciam os carros. GENTE não se vê. Às vezes, dependendo da perspectiva, torres e mais torres que parecem competir pelo céu... também despontam. O anel viário se tornou símbolo imortalizado de São José sem que possamos fazer escolhas. Não se trata de querer desdenhar dessa obra projetada ainda nos tempos do prefeito Sobral (inclusive o complexo viário em questão leva seu nome, Sérgio Sobral de Oliveira). No entanto, ter que aceitá-la, ainda hoje, como representação máxima da cidade, como simulacro sagrado, é uma afronta. O que foi uma solução urbana num passado nos deixa, hoje, um legado de vazios urbanos depois de feito o enorme estupro em cada fundo de vale. Mais do que o cartão-postal, é preciso reinventar as próprias soluções da cidade, e lembremo-nos: são as pessoas que precisam se deslocar, percorrer caminhos... e não os automóveis. OSTENTAÇÃO Acho curiosamente simbólico: na negra margem direita do rio Vidoca, quando ele está já perto de encontrar o Paraíba do Sul, há uma concessionária de veículos chamada OSTEN. E por falar em concessionárias, ao mudar a rota de oeste para leste, é também bastante instigante se deparar com uma que ocupa simplesmente uma rotatória inteira, cerceando o ir e o vir seguro de quem é MOTOR DE SI. Seria a São José dos CAMPOS a São José dos CARROS? OSTENtar é preciso… DOS PLATÔS PERIFÉRICOS, AVISTA-SE A MAJESTOSA MANTIQUEIRA Quando se adentra as zonas sul e leste subindo... vamos ganhando as partes da SERRA DO MAR. Fragmentos riquíssimos de Cerrado surgem. E é um rompante, em dias secos, nessas partes altas da cidade – periféricas – observar claramente os contornos da SERRA DA MANTIQUEIRA. 35 UMA PIPA NO CÉU, UMA CRIANÇA NA RUA. DUAS PIPAS NO CÉU, DUAS CRIANÇAS NA RUA. CENTRO X PERIFERIA A cidade segregada em espaço, consequentemente, segrega nosso olhar. Não brincam mais na rua, as crianças do centro e de seus nobres arredores. Já nos céus das periferias se veem as pipas... e nas ruas de terra, tocos improvisam traves que caem cada vez que a bola bate – tendo ou não sido gritado o gol! Muitos dirão: “mas hoje, lugar de criança, seja lá onde for, não é mais na rua”. Será mesmo? Desconfio. Não foi somente a violência social – essa também como fruto da cidade segregada – que arrancou e continua arrancando as crianças das ruas. O apocalipse motorizado, sem pedir licença, foi deixando claro que as máquinas precisam passar e em alta velocidade. E elas passam... PASSAGENS GERANDO PAISAGENS FICTÍCIAS Azimute: Zona Oeste de São José dos Campos, a que concentra a maior renda média do município (R$ 8.938,13, segundo a Pesquisa Origem e Destino do Município. Para ter uma ideia dos tamanhos contrastes, a média do município é de R$ 3.669,52, mas em locais como o extremo norte do município é de R$ 1.910,23). Eu não vejo, no caminho, o gigantesco descampado árido cada vez que passo pela avenida Cassiano Ricardo. Vejo sim muitas pipas no céu que não esbarram nas torres típicas dos investidores de um World Trade Center. As pipas, pois bem, são dos filhos de gente que integra um belo e oficial conjunto habitacional – com direito a muito verde e demais equipamentos públicos – ali instalado. E digno é ver que pais e mães podem atravessar a grande avenida caminhando para ir trabalhar nas casas e comércios do lado de “lá”. Miragem? A lógica do planejamento mercadológico, que ergue a São José dos Campos da SEGREGAÇÃO, censura a minha utópica cidade. ABERRAÇÕES DENTRO DO JÁ SEGREGADO Sinto angústia cada vez que vejo, dentro dos condomínios horizontais, casas com cercas elétricas. Que choque! LUCRATIVA CULTURA DO MEDO Essa gente que anda armada com uma tal de liberdade é perigosa para a cidade. Gente que não se fecha em feudos contemporâneos – os condomínios – ou que se mistu- 36 ra com gente feia e que não sobe muros e pouco ostenta não engrandece a cidade. Não colabora em nada para a fake propaganda dos investidores; estes que mandam e desmandam, ditando, portanto, a segregação urbana. Ricos de um lado e pobres do outro, bem oposto, bem longe. Ao segregar e hierarquizar o espaço urbano, brota a cultura do medo que, por sua vez, gera medonhos lucros, fomentando um ciclo vicioso, que torna as pessoas cada vez mais alheias à sua cidade. Sobem os muros e, junto, crescem as doses de drogas calmantes ou contra o pânico. Ao nos cercarmos, cerceamos a nós mesmos. LIVRES FLORES DE SETEMBRO Ultrapassando os muros e cercas, atravessando avenidas e caindo também sobre os carros... lá estão elas, as flores de setembro. Em meio ao barulho da cidade segregada, ver – nessa época – os ipês brancos me faz suspirar. Já tivemos os rosas, os roxos e os amarelos compondo o passeio das floradas, porém, os brancos... nem consigo descrever. Talvez, me toquem mais porque anunciam o fechamento de um ciclo que anuncia a chegada da primavera. Pedalando junto a eles, suspiro. MEIO SEM FIM O inverno vai se indo e, aqui, meus excertos-cidade-pensamento também. Todavia, essa é uma despedida apenas gráfica, pois a cidade e toda sua gente não param. Embalo junto. Os pensamentos e sensações estão aflorados e nesse exato instante (é manhã) ouço vindo lá da várzea (e não da via) o canto instigante de uma ave que nem sempre canta. Ou seria eu que nem sempre ouço seu canto? (DA) cidade e (NA) cidade, há uma infinidade de sons para serem ouvidos dentro de paisagens que mudam a todo instante. O MEIO NÃO TEM FIM Colaboraram (e continuam colaborando) para essa profusão de sensações, @s seguintes autores e autoras: Christian Dunker, David Harvey, Ermínia Maricato, Henri Lefebvre, Ivan Illich, Jan Gehl, Jane Jacobs, Mike Davis, Ned Ludd e Raquel Rolnik. 37 O olhar fora do eixo de Célia Barros: curadoria + artistas + contexto artístico no Vale do Paraíba Carolina Bonfim 38 o homem [...] é por assim dizer um animal que, tendo esfregado os olhos, olha espantado à sua volta, porque se apercebe do outro, porque tem diante de si um mundo que lhe foi dado como dádiva inexplicável. É esta descoberta da existência do mundo que permite a entrada em cena daquilo que é propriamente humano: língua, cultura, técnica, arte, ciência, religião, mas também alegria e dor, amor e ódio. F. J. J. Buytendijk O olhar estrangeiro. Ao se estabelecer em um novo país, aquele que vem de fora passa a formar parte de dois mundos: ser do seu país de origem e ser do novo lugar onde se encontra. No início, o olhar estrangeiro enxerga a nova paisagem de maneira renovada e sem vícios, tudo o que é observado é apreendido sem filtros. Afinal, o estranhamento é próprio daquele que se desloca. Interessada pela singularidade desse ponto de vista, convidei a Célia Barros para contar o que se descortinou aos seus olhos ao chegar ao Brasil e como se deu a sua inserção no contexto artístico do Vale do Paraíba. Portuguesa, artista visual, curadora e educadora, Célia imigrou para o Brasil em 2005 após concluir a graduação em Artes Visuais na Universidade de Barcelona, Espanha. Vive no Vale do Paraíba desde que chegou, primeiro em São Luiz do Paraitinga e logo em São José dos Campos, cidade onde mora atualmente. É co-fundadora da Homens de Saia, produtora que realiza projetos curatoriais no Vale do Paraíba e no interior paulista, e nos últimos anos integrou a equipe do educativo da Fundação Bienal de São Paulo. Carolina: Como é o contexto artístico fora das grandes cidades? Como atuam e se articulam os profissionais das artes visuais para tornarem possíveis seus projetos e suas criações nesse contexto? São as perguntas que permearão a nossa conversa que tem como objetivo entender uma realidade que eu não vivo e não conheço e que me interessa especialmente: aquilo que ocorre na margem, que não ganha destaque nos meios de comunicação especializados e que não chega ao centro, mas que está lá e existe. O que foi que o teu olhar identificou e compreendeu ao chegar ao Vale do Paraíba? Célia: Lembro-me que, nos primeiros meses, o que mais me impressionava era uma sensação de utopia, de sentir que as pessoas ainda acreditavam na possibilidade de transformar a existência. Os ambientes que frequentava, tanto em Portugal quanto na Espanha, eram desacreditados de um modo geral. Ao chegar aqui, sentia-se uma vontade, uma força e um acreditar que acontecia em vários aspectos da vida, do pessoal ao pro- fissional, passando pelo político. Isso é uma coisa que até hoje me inspira. Eu que sempre me vi como uma pessoa de classe média baixa, uma batalhadora, ao chegar aqui me senti uma menina mimada, sem ideia do que era “a vida real”. (pausa)A gravura brasileira me apaixonou e também aprendi a vê-la com outros olhos. Na Europa, existe uma resistência à xilogravura, como se fosse uma técnica mais precária, limitadora. Os gravadores 39 brasileiros têm a capacidade de criar imagens partindo de gestos simples. Não poderia citar apenas um artista porque foram muitos; eu diria a gravura brasileira como um todo, sobretudo em São Paulo. Esse imaginário. Certamente me reconectei com artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica. Suas propostas se reativaram e, estando aqui e conhecendo a realidade do Brasil, ganharam outros sentidos. Mas isso aconteceu em várias esferas, o fato de estar aqui modificou o que pensava sobre cultura brasileira. Não que eu tenha conhecido uma realidade oposta ao que eu pensava, mas o sentido da coisa se alterou. Um exemplo disso é a questão colonial. Eu sempre soube que Portugal colonizou o Brasil e que os efeitos dessa invasão ainda repercutiam na cultura e na economia. Mas ao chegar aqui e ver que todos falam a mesma língua que eu – tendo um oceano inteiro de distância – dá uma nova perspectiva a isso. Conhecer os redutos de Mata Atlântica contrastando com os vastos campos de pasto ou plantações de cana-de-açúcar é muito diferente de apenas “saber” disso. Encontrar os “típicos” casarões antigos e não ver “ocas” ou outro tipo de habitação, tudo isso me fez perceber as questões coloniais de outro jeito. Finalmente, me percebi, eu colonizadora, como colonizada. Isso me fez perceber que em Portugal já somos colonizados, eu saí de lá colonizada. Somos colonizados pelo pensamento eurocêntrico, queremos ser centro e, nesse movimento, nos colonizamos a nós mesmos. Isso me angustia porque não vejo movimentos de saída tal como vejo aqui, e isso tem sido um aprendizado fantástico. Portugal e Espanha continuam a desejar atravessar os Pireneus, ser finalmente Europa. Paralelamente, mas de alguma forma conectado com o anterior, tive contato com a questão indígena. Eu acreditava que já não existia índio no Brasil e o que existia eram populações pobres de origem indígena. Tomar contato com a problemática indígena atual me abriu os olhos para uma dimensão da vida totalmente desconhecida: a possibilidade de se criar e se entender enquanto sujeito, que normalmente acontece em processos de resistência. Enfim, ao chegar aqui eu senti que se levantava um espelho enorme na minha frente. Pela primeira vez me senti portuguesa, me percebi colonizadora e colonizada. Acho que até hoje continuo tentando atravessar esse espelho. Carolina: Ainda dentro da tua percepção de recém-chegada, como você descreveria o panorama artístico-cultural do Vale do Paraíba? Célia: Em 2006, eu fui viver em São Luiz do Paraitinga, onde conheci a cultura popular da região que, segundo o antropólogo Carlos Brandão, seria o “último reduto caipira1”. A questão do “caipira” é até hoje forte em todo o Vale do Paraíba, estigmatizando esse personagem em todas as festas juninas e outros eventos similares. Acontece que essa figura já quase não existe e, se existe hoje, é uma pessoa totalmente diferente. Por outro 1. A expressão faz referência à pesquisa de campo intitulada “A lógica da terra: a percepção da natureza e apropriação do meio ambiente entre camponeses tradicionais da Serra do Mar e da Serra da Mantiqueira”, de Carlos Brandão, realizada nos municípios de São Luiz do Paraitinga e Joanópolis entre 1991 e 1994. 40 lado, essas cidades se sentem constantemente numa pressão de se equiparar a São Paulo. Os bons profissionais de qualquer área evadem em direção a São Paulo, e as cidades ficam aquém de bons projetos. Nesse movimento, quem fica ou quem retorna acaba se colocando num lugar de resistência. Ficar é resistir a ser capital, é ser caipira sim, com sua cultura regional, seu “erre” enrolado. O mercado cultural do Vale do Paraíba se alimenta desta eterna “caipiralidade”. Desde vertentes mais pitorescas às mais sofisticadas, estilo “gourmet caipira” sem agrotóxicos, quase toda a produção converge de alguma forma para essa ideia. Nas artes visuais os artistas dificilmente dialogam com essa questão, o que dificulta o encontro com o público e o mercado. Taubaté e São José dos Campos têm alguns espaços culturais e museus. Nem são tão poucos assim para o tamanho das cidades, mas a questão é que são espaços extremamente precários. Era assim em 2006 e hoje continua igual. Em Jacareí, existe o Museu de Antropologia, cuja programação oscila muito. De tempos em tempos tem um projeto de programação, mas geralmente cai na dinâmica de ir recebendo artistas que se oferecem para expor ou receber exposições de outras instituições. Em São José dos Campos, existe o Museu do Folclore, gerido pelo Centro de Estudos da Cultura Popular, que é um espaço pequeno, mas com uma curadoria cuidadosa. A exposição é permanente, entretanto o museu promove o projeto Museu Vivo que, a cada quinze dias, propõe uma vivência. É um espaço que se destaca da situação cultural e que, em 2014, com o apoio da Petrobrás, deu início ao projeto Ecomuseu. Nesta mesma cidade, existe o Sesc e o Sesi, (que também existem em Taubaté) com toda a infraestrutura que conhecemos. A minha avaliação é que a gestão tem uma enorme dificuldade de compreender e propor uma programação para o público dessa região. Como propostas mais “contemporâneas” não atraem, a programação tende a cair na tal “caipiralidade”. No geral, a programação fica num “bom tom” geral, coisas de média expressão, que não chocam os tradicionais olhos caipiras e agradam um pouco a quem tem uma expectativa diferente. Eu, por exemplo, eventualmente me considero público dessas instituições. Existiu também a galeria de arte Miriam Badaró em Taubaté, que comercializava obras de gravura e pintura de artistas daqui e de São Paulo. Alguns artistas conseguiram formar circuitos internos de venda de obra com arquitetos ou círculos de amigos com situação financeira compatível. Mas no geral ninguém sobrevive apenas do seu trabalho artístico, tem sempre outro suporte financeiro. Carolina: Além dos espaços que você acaba de citar, quais outras alternativas existem para que o profissional que se dedica à prática curatorial ou artística desenvolva seu trabalho? Célia: A educação é sempre uma opção. O artista opta por dar aulas, seja na universidade (Univap, Unitau), seja nas escolas públicas ou no seu ateliê. Aconteceram alguns projetos visando conquistar o espaço público, mas São José dos Campos é uma cidade de tradição militar, então essa negociação é sempre dura. Alguns espaços co- 41 merciais propõem uma programação cultural de tempos em tempos. Isso acontece no shopping, em escolas de idiomas – como Yázigi, Cultura Inglesa ou Aliança Francesa – e em laboratórios de análises clínicas, como o Oswaldo Cruz ou o Instituto de Oncologia do Vale. A Homens de Saia começou assim, quando em 2008 o Yázigi nos convidou para montar uma programação. E aí surgiu o Y-artproject. A partir desse trabalho o Shopping Colinas nos chamou para fazê-lo ao longo de um ano. O desafio era montar um projeto que dialogasse com a instituição, com os artistas, agentes culturais da cidade e possíveis públicos. Esse diálogo não era pacífico. Os interesses são distintos e, às vezes, excludentes. Figura 1 - Exposição Seres - Projeto Terra Viva, 2010, Shopping Colinas, São José dos Campos/SP Fotograia Paulo Pacini. 42 Carolina: Laboratórios de análises clínicas, shoppings e escolas de idiomas são lugares com arquiteturas, públicos e propósitos – supostamente – adversos à arte. Quando artistas e curadores optam por realizar projetos em espaços não convencionais, geralmente são motivados por razões estéticas e/ou conceituais. Agora, quando não existe alternativa e os “lugares adversos” são a única opção, uma nova carga de sentidos é dada ao projeto. Em quais aspectos você teve que se reestruturar, se reinventar e rever preconceitos? Célia: Precisamente no uso desses espaços como espaços culturais. Eu já tinha um interesse pelos “espaços com vida” e buscava lugares com características diferentes do cubo branco. No ambiente da escola de idiomas, começamos promovendo o encontro com a arte no ambiente cotidiano. Logo isso se revelou contraproducente com o dia a dia da escola, já que as propostas artísticas vinham a incomodar, deslocar ou provocar alterações que, por mais mínimas que fossem, causavam transtorno. Era preciso movimentar toda a escola nesse sentido. Toda a equipe tinha que fazer parte do que estava acontecendo, caso contrário encontrávamos obras fora de lugar, por exemplo. Figura 2 - Exposição Zonas - Projeto Terra Viva, 2010, Shopping Colinas, São José dos Campos/SP Fotograia Paulo Pacini. 43 O shopping foi outro momento de se rever. Quando apareceu o convite não ficamos nada motivados. Colaborar para a imagem do shopping e competir com a visibilidade do consumo era algo que não compartilhávamos, além da pouca infraestrutura que nos ofereciam. Tentamos recusar, mas acabamos percebendo que o shopping se transformou na praça contemporânea. É para lá que as pessoas vão passear. A nossa pesquisa partiu dessa ideia e foi por aí que desenvolvemos o projeto. No final ficamos extenuados, porque é difícil negociar com um shopping. Os horários e os procedimentos são rígidos, sem contar os “rituais” de segurança. Se no Yázigi era fundamental ter como parceiro o pessoal de limpeza e de manutenção, no shopping era com os bombeiros. Carolina: Nessa via de mão dupla, em que a proposta curatorial ia alinhavando novos discursos à medida que se adaptava às negociações e às particularidades do espaço, como se dava o diálogo com o artista? E de que modo esses projetos possibilitavam mapear a cena artística da região? Célia: No geral, a conversa com os artistas sempre era no sentido de fazer o trabalho acontecer com a realidade que tínhamos. Nosso esforço ia no sentido de conseguir que a exposição estivesse viva, mesmo com poucos recursos. São menos fotos, mas no formato ideal? Uma projeção pode funcionar melhor? Tínhamos intermináveis conversas e muitas vezes acabávamos por interferir bastante na obra. O importante era que essas interferências fizessem sentido para o artista e para o projeto em si. Houve a preocupação de incluir artistas de outras cidades que também estivessem fora dos centros Rio e São Paulo, mas não conseguimos ir muito longe. Apenas nos mantivemos no Vale do Paraíba. A ideia era ir ampliando a rede, mas foi um projeto que durou apenas três anos. Até aquele momento era difícil sair da cidade pois não tínhamos dinheiro para bancar o transporte do artista. Éramos nós que íamos até o ateliê deles. Tínhamos uma moto e muita energia. Chegamos a fazer várias reuniões em Taubaté, Pindamonhangaba e em Lorena. O mapeamento dos artistas também 44 se dava por meio de conversas, pesquisa no acervo do Yázigi e encontros fortuitos. Em 2008, acontecia em São José dos Campos uma reunião de artistas chamada Encontrão. Aí fui mapeando o que ocorria na região, pois as pessoas comentavam acontecimentos passados, épocas, movimentos artísticos e alternâncias de política cultural. Na coleção de arte do Yázigi tem vários artistas da região. Aqueles que eu não conhecia pessoalmente, eu contatava para conhecer a produção atual e tentar montar algum projeto. Lembro-me do Luiz Tejuh que tinha uma pequena obra na coleção que eu adorava, mas a produção dele tinha mudado completamente e tive dificuldade de dialogar com esse novo formato. A Maté morava em Lorena e fomos até lá. O seu trabalho estava mais centrado na ilustração, na época conversamos bastante e cheguei a fazer um convite, mas na época ela não pôde aceitar. A Tamara Andrade e o Egídio Rocci eram frequentemente citados nas reuniões. Na época, marcamos um encontro e eles fizeram questão de ir até São Luiz do Paraitinga. Mais tarde eles colaboraram em vários projetos. Cheguei a encontrar a Mônica Nador, que trabalha em São Paulo mas que é de São José. Começamos a montar um projeto, mas no meio vi que não ia ter força para dar conta de alguém que por pouco que necessitasse sempre ia precisar de mais do que eu podia oferecer. Optei por deixar esse projeto na gaveta, a minha ideia era conquistar mais apoio e negociar melhor a estrutura do projeto com o Yázigi, mas isso não acabou acontecendo. Então, elaboramos uma outra proposta que fizesse sentido para o Yázigi e o seu público, que me fosse instigante e que valesse a pena para os artistas. Como não podíamos oferecer muita coisa, nem cachê nem ajuda de custo para a produção da obra, elaboramos um projeto gráfico de divulgação que valorizasse o trabalho do artista. Resolvemos juntar pelo menos dois artistas em cada exposição, provocando algum debate entre as obras. Nesse percurso, aconteceram vários projetos que até hoje são significativos para mim, como a exposição Cidade Refugo, com o Giancarlo Ragonese e o Thiago Mild. O primeiro é gravador, e o segundo é grafiteiro. Ambos percursos artísticos passavam pelo contato com a rua. Os dois fizeram várias obras para a exposição motivados pelas conversas que aconteceram na preparação da mesma. Depois teve a Cidade Memória, em que juntamos o George Gutlich e o Akira Umeda. O George é gravador, geralmente trabalha com gravura em metal, e pintor. Uma das suas principais referências é Rembrandt. É um artista que se preocupa com o primor técnico, com a erudição teórica e é um questionador da produção artística contemporânea. Ele formou grande parte dos artistas da região. Já o Akira é formado em história e trabalha com grande variedade de meios como desenho, cerâmica, som, vídeo e performance. Eles têm aproximadamente a mesma idade, vivem e trabalham na mesma cidade, mas a maneira como a olham é totalmente diferente. Foi interessante para mim expor os dois lado a lado. Figura 3 - Exposição “Cidade Memória” - Projeto INSUSTENTÁVEIS, 2008, Yázigi São José dos Campos/SP Fotografia: Célia Barros. 45 Outra experiência que me marcou foi a exposição Cidade Futuro, quando juntamos o César Baio e a Pitiu Bonfim. O César desenvolve pesquisas que envolvem novas tecnologias, arte e cultura. A Pitiu é artista visual e arte educadora. Trabalha em ONG’s, ateliês públicos e escolas particulares. Convidamos os dois e juntos pensamos a exposição que foi quase toda inédita. Nesse caso, o César conseguiu apoio de uma produtora da cidade e pôde montar duas instalações. A Pitiu desenvolveu dois trabalhos com alunos da escola particular Esfera e da ONG Recriar. Para a escola Esfera ela pediu que eles desenhassem um postal com a cidade do futuro. A maioria dos alunos desenhou mundos inóspitos, devastados ou dentro de uma redoma. Um deles desenhou um sapo que era engolido por um inseto, com a inscrição “No futuro a mosca engole o sapo!”. Figura 4 – Exposição “Cidade Futuro” - Projeto INSUSTENTÁVEIS, 2008, Yázigi São José dos Campos/SP Fotograia: Célia Barros. 46 Carolina: Segundo Lisette Lagnado, a curadoria pode ser entendida tanto como a elaboração e a composição de uma amostra de um acervo artístico ou cultural, como também ser uma proposta que pode ir além do mencionado anteriormente. É nessa perspectiva de “ir além”, apontada por Lagnado, que eu localizo muitos dos teus projetos. Gostaria que você falasse do Projeto Curadoria Coletiva. Célia: O Projeto Curadoria Coletiva foi uma proposta que partiu do SISEM (Sistema Estadual de Museus de São Paulo) com o objetivo de repensar sua atuação na rede estadual de museus. Até então o SISEM oferecia exposições e formações gratuitas para os museus públicos do Estado e possibilitava que os museus da mesma região aproveitassem as oportunidades que eles ofereciam de forma articulada. No entanto, essa articulação acontecia com dificuldade, pois os gestores precisam acompanhar as reuniões sem qualquer apoio financeiro por parte do SISEM ou da prefeitura. O projeto Curadoria Coletiva visava três tópicos a serem explorados: programação, formação e articulação. Através da nossa intervenção, o SISEM desejava que nesse curso os gestores aprendessem sobre curadoria e montagem de exposições para, futuramente, desenvolverem projetos próprios. Curadoria Coletiva aconteceu com os museus da região de Sorocaba com um grupo de gestores que já estavam articulados, inclusive começando a formular projetos en- tre si. Foram dez museus de diferentes perfis, desde os tradicionais museus da cidade a museus histórico-pedagógicos ou de arte contemporânea. Propusemos uma formação estruturada em nove encontros, sendo que no primeiro discutiríamos o tema a ser desenvolvido e no nono teríamos que inaugurar uma exposição. As pessoas deveriam aprender a pensar sobre exposições fazendo uma. Foi um desafio encontrar um assunto que fosse relevante para todos os espaços, bem como a forma de abordá-lo. Como principal fruto desse processo, eu apontaria o fortalecimento do grupo, o amadurecimento do trabalho e um avanço significativo nos debates e discussões. A exposição em si também foi um grande resultado, além de ter sido pensada para os públicos das cidades (esse foi um tema ao qual voltamos diversas vezes ao longo do projeto) também conseguiu se destacar na proposta visual. A exposição itinerou por 7 dos 10 museus participantes e em todos eles foi um marco na programação. Carolina: Ao mesmo tempo que você desenvolve diferentes projetos no Vale do Paraíba e interior paulista, você também trabalhou como articuladora nas Ações de Difusão das últimas duas edições da Bienal de São Paulo. Realidades praticamente opostas. No vai e vem dessas experiências, o que era levado da Bienal para a tua realidade na Homens de Saia e vice-versa? Célia: No início, esse contraste foi uma experiência marcante. Desde 2008 vivíamos praticamente de produção cultural com projetos pequenos que foram crescendo pouco a pouco. Experimentamos aquela sensação de ter um orçamento de R$ 20.000,00 47 e acharmos que seria suficiente para realizar uma exposição incrível, mas logo descobrimos que não seria bem assim. Quando começamos a lidar com orçamentos de R$ 50.000,00, fizemos um trato: não dava pra continuar reclamando que a grana era pouca, a gente tinha que se adaptar e aproveitar o dinheiro ao máximo. Quando entrei na Bienal, esse tipo de questão ganhou uma proporção descomunal, eu ouvia as pessoas reclamarem que R$ 80.000,00 era pouco para uma publicação! Esse tipo de contraste acontece o tempo todo, a Bienal tem orçamento para fazer uma exposição muito maior do que a maioria dos municípios destinam para a secretaria da cultura anualmente. Outro contraste é a visibilidade de qualquer coisa que acontece na Bienal. Trabalhar ali é se expor a um vendaval constante onde você precisa estar consciente daquilo que pensa e pronto a se repensar a todo o instante. Logo no início me senti uma mosquinha com a minha Homens de Saia, e essa foi uma ótima sensação. Eu descobri que era pequena, leve e livre. Eu gosto demais da experiência desse contraste. Hoje as coisas já passam mais desapercebidas, me acostumei com as diferenças, mas continuo a sentir prazer em trabalhar nas duas escalas. Foi logo após entrar na Bienal que chegou o convite para fazermos a Curadoria Coletiva. Os dois projetos conversavam o tempo inteiro, eu transitava entre um e outro, me alimentando reciprocamente. Agora, quando você me pergunta se o que acontece no interior chega à Bienal e vice-versa, eu diria que a Bienal chega a quem está interessado nela. Se a pessoa não tem interesse no que está sendo produzido ali, então é como se a Bienal nem existisse. Por vezes, se reduz simplesmente a uma marca que dita modas e influi no modo de produção contemporâneo. A instituição e as equipes de 48 curadoria têm se preocupado em abrir espaço para novos tipos de produção e artistas jovens de todo o Brasil. Mas convenhamos que o Brasil é um país continental com bastante gente fazendo e propondo coisas, e uma Bie- nal com 80 projetos não consegue nem de longe dar conta disso. Desde 2009, deu-se início à itinerância da Bienal em diversas cidades do interior de São Paulo, e com ela a formação dos me- diadores e encontros com educadores. Nesses encontros, dependendo da cidade, nos deparamos com educadores em situação laboral precária em que a reflexão sobre educação em museus mal começou. Figura 5 - Exposição “SINAIS, heranças e andanças” – Projeto Curadoria Coletiva, 2015 Galeria Fórum das Artes, Botucatu/SP 49 Carolina: Qual é a distância entre São Paulo e o interior paulista? Célia: Acho que a distância é o nosso olhar e aquilo que conseguimos enxergar com as lentes que temos, tanto num lugar como no outro. Existem alguns projetos que tentam promover o intercâmbio entre estas realidades tão diversas, o ProAC e o Rumos são exemplos disso. Penso que esses projetos procuram encontrar no interior algo que possa equivaler ao que se encontra no centro. E aqueles que estão no interior procuram vestir uma imagem que se identifique com a contemporaneidade dos grandes centros. Repetimos nomes de autores e frases antenadas. Eu mesma procuro me desvencilhar disso e estar atenta a uma “autenticidade” que não precisa ser original, mas quando me olho ao espelho percebo o quanto sou influenciada pelas esferas que produzem discursos e os reproduzo. Precisamos estar continuamente atentos a perceber se os dis- cursos e as imagens que vão sendo produzidos nos interessam de verdade. Nesse sentido, um projeto com o qual estou animada é a exposição Pedras são preciosas, de Elisete Alvarenga, selecionado pelo ProAC 2016 – Edital Obras e exposições. Já conheço o trabalho da Elisete faz tempo e sempre me tocaram aquelas imagens tão singelas e ao mesmo tempo densas. A Elisete é de Botucatu, tem 63 anos e começou sua atividade artística tardiamente. Tem um jeito tímido e muitas dúvidas sobre o seu trabalho. Eu via a força daquelas imagens e fiquei com vontade de montar uma exposição para podermos enxergar a potência daquela produção. É um trabalho que me devolve uma imagem do mundo. Quero trabalhar isso sem que haja a necessidade de elaborarmos conceitos e justificativas que estão para além do trabalho. Carolina: Se passaram doze anos desde a tua chegada. O que é que o teu olhar avista nessa paisagem? Célia: Quando olho para o momento que estamos atravessando, lembro de todos esses acontecimentos e sinto que o momento é de grande transição. Nada será como antes e precisamos nos reinventar de novo. Respondendo às tuas perguntas, vejo que artistas e agentes culturais nos transformam em seres híbridos confundindo conceitos e 50 categorias. Talvez agora já não haja mais o que fundir ou questionar e precisemos apenas ser. O Paulo, meu companheiro e sócio de todas essas invenções da Homens de Saia, morreu faz um ano e há seis meses o Brasil viveu um golpe de estado. Pareceme que só podemos renascer das cinzas. 51 Terra de Siena e Verde Cacto Para Francisco Goya Marcus Groza 52 O canto era desolador. Das casas do vilarejo ali perto não se ouvia nada. Mas de onde eu estava ouvi tudo perfeitamente. Desde o princípio. A fumaça é uma canção que desaninha os pássaros. Foi só questão de tempo, a claridade do fogo atraiu algumas pessoas. Diziam os sertanejos de um fenômeno macabro chamado fogo-emboscada. É quando o incêndio na mata rodeia a pessoa, feito tentáculos em torno de um pescoço frágil. Sempre falavam desse tal fogo-emboscada. Eu tinha medo disso quando era pequeno. Agora uma mulher sentada num tronco tombado, à beira da mata. Linda. De vestido branco e o fogo iluminando. Ela tirava da garganta uma entoação medonha. Uma tristeza desgraçada. Enquanto tive olhos, chorei. Mas, na severidade da água, a lua não é um tambor... Eu fiquei fascinado por esse canto que começou junto com o fogo. A mata verde queimando era um concerto de chicotes e estalos. Um velho que entende a língua das ciladas me disse que, antes de bombardear os grandes castelos, é preciso mandar pedidos de vassalagem. E condição é ser aceito! Pois do contrário dirão que foi ressentimento, má consciência. As piores ciladas preparamos a nós mesmos. Alguns já descartavam a hipótese de um incêndio acidental. É um fogo-emboscada! Quem se atraiu pelo clarão chegou a tempo de testemunhar o fogo em todo seu balé. Desde a primeira fagulha, farto pelas bordas. Os bichos começaram a sair, um preá do mato, uma cobra e muitos roedores. O estardalhaço dos pássaros fugindo do fogo. Como um corpo pesado e sensual, o incêndio demorou sete horas para concretizar o seu domínio e cercar a construção que ficava ao lado da mata. Uma construção. Não vou chamar aquilo de casa. Ao longo de sete horas, a mulher continuou cantando, cantando. Depois da terceira hora, algumas pessoas começaram a ficar com a cara torta, ao olhar para o fogo. Algumas fugiram, desfiguradas. Outras, com medo. A mulher belíssima sobre o tronco, seu canto, o incêndio. Alguns permaneceram e insistiam em olhar. Apesar de fascinado, cochilei duas vezes em cima da pedra onde estava. A voz da mulher, a um só tempo, me amedrontava e acalentava o sono. Quando acordei pela segunda vez, já estava muito quente. Cantando, a mulher consagrava os elementais. Com esse canto, ela alimenta a língua de escombros em que seus filhos um dia vão chorar as primeiras dores. Quando o fogo chegou mais perto, no entanto, a mulher que cantava deu três gritos lancinantes, longos, e desapareceu dentro da mata, murmúrio-cantando. Não havia mais ninguém ali com olhares gulosos: 53 os poucos que permaneceram estavam saciados. A voz, já distante, foi se convertendo em transe: o silêncio dos olhos vidrados diziam sobre um orvalho que não alivia as queimaduras. Esse cantar fantasmagórico e aconchegante teve para mim um tom de perdição. Até hoje não entendo exatamente o que significou aquilo. Mas aceito que a morte também é uma cura. E isso não cabe só na boca de um padre. Que não haja relutância na morte, o pior é ficar morrido. Foi de adolescente que entendi. Não estar morto não é o mesmo que estar vivo. São muitos os que não estão mortos, mas andam por aí morridos. Transformados em cupinzeiro no meio do percurso. Virar cupinzeiro ninguém quer. Ou ao menos não quer ser percebido como tal. Mas a olhos treinados é possível distingui-los facilmente, e são cada vez mais numerosos. (E saibam que hoje existe até cupinzeiro apreciador de arte. E estes inclusive a custeiam, graças a Deus! O que seria de nos sem o mecenato?) Há alguns anos, o cupinzeiro-mor me nomeou Primeiro Pintor da Câmara e me pediu que fizesse seu retrato. Dois na verdade. Um primeiro com ele sozinho, cupinzeiro majestoso. Outro o retratando com a bunda na cadeira, ao lado de sua senhora em pé. Como não teve filhos, acho que deseja ao menos perpetuar uma boa imagem para o futuro. Fungos proliferam enquanto o pintor prepara os pigmentos. Depois na tela, fungos, a imagem, traças, baratas, intempéries, possíveis incêndios. Usar feito pincéis a língua desses insetos que, atraídos pelo cheiro, virão de madrugada lamber a pintura. Pintar com a tinta bruta que é a ação do tempo. Quando aquela mulher desapareceu, o fogo logo arrodeou a mata e abraçou também a construção. Eu assisti a tudo até o fim. A construção tinha sido casa de campo dos meus pais e vínhamos para cá na minha infância. Mas já não tinha telhado nem nada. O incêndio, antes lento ao queimar as árvores verdes, consumiu a construção rapidamente. E o que estranhei é que nenhum dos que permaneceram até o fim ficaram com a cara torta. Ou talvez nós já trouxéssemos de antes o rosto transfigurado, só as pessoas olhando não conseguiam perceber. Naquela noite de incêndio, começou a manifestação do que só compreendo plenamente agora. Logo que acabou o fogo, fui para sede da propriedade. No sótão, achei uma têmpera que tinha misturado na semana anterior. Estava embolorada, fedendo. Pintei um autorretrato. Quem olha de relance vê um cupinzeiro. Às vezes, olho no fundo do copo e a borra de café não me diz nada. Mas no primeiro olhar é assim mesmo. Então fecho os olhos, forte. Pálpebra contra pálpebra. Nem que precise apertar os dedos até ver o céu estrelado. Um céu estrelado sempre à mão, como o autoritarismo do espelho. Aperto de novo. As estrelas são búzios lançados. O espaço 54 sideral parece feito d’água, as luzes são bolhas de ar subindo, muitas. A água, borra escura. Até que tudo isso começa a ganhar um tom avermelhado. A água da privada vai ficando vermelha, desde o primeiro jato. O vermelho escuro surge vagarosamente, porque o jorro não é tão intenso. Gota por gota. É assim que um pintor descobre que está morrendo. Foi assim que descobri. Ou, ao menos, é assim que quero lembrar. Urinar uma infestação de vermelho. Depois, quando surgir o pus, vai clarear um pouco e prevalecer tons de terra de Siena. Passei aquela madrugada pintando, à luz de velas. Internamente, continuava a ver aquela mulher, a ouvir seu canto. Dormi pouco e sonhei com uma voz que falava comigo. No sonho, a voz muito próxima. Eu podia sentir o seu calor. Mas não podia ver seu rosto. Até que a voz e o calor me foram tirados. Me acordavam. O cupinzeiro-mor – que também responde pela alcunha de Ferdinando VII – te convoca com urgência! Numa monarquia, quem ministra o belo é requisitado às pressas como não o são os médicos. Morrer não é tanto o problema. A questão crucial para o rei é a imagem que ele deixará para a posteridade. O rei tem uma gripezinha e já acha que vai morrer. Convoca toda a corte e os cargos mais altos não podem recusar o convite. Voltei para a capital imediatamente. Mas dessa vez não era gripe. Uma excursão. Vossa Majestade quer um afresco? Em San Hernandez? Vamos eu, você e esse séquito de péla-sacos!, ele disse. Quase um mês. A missão era transformar as ruínas de um templo mouro em igreja cristã. (Uma reconquista fora de época) San Hernandez fica a umas oito horas da capital. Saímos cedo. Oito carruagens e uma pequena tropa seguimos para sul. Embarquei num carro com um padre e um cardeal. Era uma cabine espaçosa e pude dormir bem as primeiras horas. O cardeal era uma velha raposa conhecida. O padre, um sujeito careca com ares de quem acabou de ser vestido pela mamãe. Há anos nos conhecíamos de vista. Falava pouco e sorria. Um bom companheiro de viagem, pensei, antes de adormecer. O sono foi se agastando, ficou tão leve que não resistiu mais aos solavancos. Sentei e vi que o cardeal dormia pesado, babando. O padre entre cochilava e olhava pela janela. Conversamos um pouco. Era inteligente e afável. Quando dei mais trela, disse ser amante da filosofia. Com olhos vivazes, gostava de enfatizar – como depois o vi fazendo publicamente – o primor da cultura árabe que havia mantido os escritos e a sabedoria dos antigos. À cultura árabe devemos não sei quantas proezas e descobertas... destrinchava a sua ladainha erudita. Quando 55 perguntei o que pensava dos tempos sombrios em que vivemos, fez uma pausa e uma cara de criança desiludida. Quando ia abrir a boca, foi interrompido por uma abrupta parada. Descemos. Havia um pequeno lago à beira da estrada. Eu precisava mijar e havia decidido não ficar mais analisando a cor da urina. Seja azul, violeta, âmbar! Que me importa?! Urinando no lago, contemplava as nuvens. Mas, ao ouvir o barulho da urina na água, imaginava o branco das nuvens se avermelhando cada vez mais. Antes que terminasse, ouvi alguém vomitando. O rei. Ele vomitava e praguejava contra os serviçais a sua volta, que o assistiam cheios de dedos e mil toalhas ao redor. A culpa por ele passar mal evidentemente é deles. Mas, se o seu vômito não formasse uma bela imagem na terra, a culpa então evidentemente seria minha. Quando cheguei perto da comitiva para beber água, ouvi sua voz pedindo que eu passasse para o seu carro. Incrivelmente, tinha um tom de pedido na sua voz. Acho que passar mal trazia algo de ternura e delicadeza para o temperamento real. Seguimos viagem. Somente nós dois na sua cabine. – Acho que tenho exagerado nos vinhos. – O mal é preciso temperar, já dizia Paracelso. – Sim. Mas depois de velho, tudo é ruína e destempero. – Então, Vossa Majestade deveria maneirar um pouco nos vinhos. – E como suportar essa vida? Ele estava suando frio. Os solavancos pareciam golpes de açoite no seu cangote. Olhava para mim, afligido. Quase tive pena. Depois de um tempo, ele começou a ficar meio verde. Até que não aguentou e deu com a bengala na janela da cabine à frente, onde estavam dois guardas e o cocheiro. Com o golpe, o carro logo estacou. Um dos homens desceu, demorou um instante e voltou com um recipiente. Depois de sorver com afinco, o rei encostou a cabeça pra trás e assim se abandonou por alguns minutos. Depois deu nova bengalada e seguimos. O rei buscou curativos no silêncio por um tempo. Continuava meio verde, agora com um sorriso flácido e olhar morteiro. Logo percebi que havia alguma droga no que ele tomara. Depois me falou: – Isso que me deram bem podia ser um veneno letal?! – Podia, sim. Mas acho que não seriam tão bondosos para com Vossa Majestade! – Imagina uma morte dolorosa pra mim? – Imagino. – Como? A guilhotina? – Não, isso é coisa de francês. 56 – Ah, já sei. A fogueira! – Faria mais jus à nossa história obscurantista! Sorriu. Parecia um pouco melhor. – Então, além do afresco, quero aproveitar esta viagem para que você pinte outro retrato meu! – Podemos começar assim que chegarmos. Respondi, olhando para sua cara verdolenga e lembrando da minha própria figura no autorretrato pintado com a têmpera podre. A primeira intuição surgiu ali. Pintar com a tinta bruta que é a ação do tempo. Mas a confirmação e o aprimoramento da técnica vieram pouco a pouco. Passamos um mês ameno em San Hernandez. Quando cheguei às ruínas, as paredes se escondiam atrás de uma crosta manchada, formando uma coloração sombria. Meu olho ao ver aquilo de imediato fantasiou pintar ali um Sabá de Noivas Carecas, mantendo aquelas manchas de fundo. O que esperavam que eu pintasse, entretanto, era mais uma Anunciação. Pintei. Os construtores da comitiva trabalharam duro. A ruína moura rapidamente se converteu numa suntuosa capela cristã, que foi mantida sem teto. Um templo ao ar livre. Nesse mês em que lá ficamos, rabisquei alguns esboços para o novo retrato do rei. Mas, como o afresco tomou bastante tempo, o retrato ficou em segundo plano. Depois da missa rezada pelo cardeal e pelo padre elogiador da cultura árabe, a comitiva pode finalmente voltar para a corte. Todo o tempo de estadia em San Hernandez, abelha atarefada, me abstive de olhar para a cor da urina. Como não doía tanto, fui me esquecendo a terra de Siena e o vermelho sangue. Ao chegarmos, o rei voltou a falar do retrato. Combinamos que eu descansaria duas semanas e retornaria para pintá-lo. De volta à casa de campo, logo observei que o autorretrato que havia feito estava ficando verde. Quando o pintei, tinha concebido um rosto em tons escuros, meio esverdeados. Entretanto, o quadro estava bem mais verde do que antes. Nos dias seguintes, passei diante dele sem olhá-lo, como quem convive com uma caixa repleta de prodígios e epidemias e não ousa tocá-la. Era inegável que a minha feição no quadro estava mudando de cor e contornos. Preparei nova têmpera. Com parte da tinta, pintei outro autorretrato. O que sobrou deixei velhando, para pasto de fungos e bactérias. Antes do que eu esperava, a tinta já tinha um cheiro ruim e uma camada de bolor. Então pintei um pequeno Cortejo de Alienados. Nem essa pintura nem o autorretrato tinha qualquer tom de verde. Passado algum tempo, minhas suspeitas se confirmaram. O primeiro autorretrato estava ileso. Já o quadro que pintei com a tinta em- 57 bolorada já dava sinais. Algumas pequenas manchas verdes. Deixar no sol. E as manchas se revelam mais rápido. Virou um Cortejo de Alienados Verdolengas. Ainda mais ao meu gosto. Aquela noite, não consegui dormir. Se juntasse as pálpebras e apertasse os dedos, o céu estrelado seria uma catástrofe interestelar ou alguma outra coisa medonha. Não dormi e foi melhor assim. Tomei uma garrafa de vinho. Estava meio atormentado, só preguei os olhos quando o sol já se levantava. Sonhei com uma mulher que trabalhava para os latifúndios da noite. Ela descia as ladeiras, escorrendo os pés pela crosta fina e transparente, quase invisível, de meteoros acesos com que as ruas tinham sido pavimentadas. Então, essa mulher chegou a um pequeno palco e, deixando a nu suas escoriações, foi agarrada e erguida por uma cerca elétrica de espinhos e breu. O começo de uma sessão de sadismo para bêbados e desocupados, pensei. Mas junto aos primeiros gritos de dor-prazer dessa mulher, ouvi ao fundo a voz daquela outra cujo canto tinha me enfeitiçado no dia do incêndio. Sentei na calçada e fiquei assistindo. Acho que, no sonho, também adormeci, mas estava entre sonhando e acordando com sussurros de alguém que eu não via, mas podia sentir o calor: Já é dia claro. Levanta. Já é dia. O sol alto. Obsceno como um rosto. Acordei, sobressaltado. Uma empregada tentava me acordar. Já era meio-dia e meia. Havia relatado a ela o desejo de pintar a procissão de Sant’Ângelo. Uma tradição do povo da região, repetida sempre na quaresma. Eu corria por entre essa procissão quando era menino. Levantei, me vesti. Preparei uma grande quantia de tintas. Nenhum tom de verde. Saí para ver a procissão. Aquele ano havia uma peculiaridade. A procissão passaria em torno de toda a mata incendiada. O fogo-emboscada é um sortilégio dos demônios! Não contive o riso, quando a empregada me contou. Era realmente imperdível. O padre foi todo o caminho benzendo a terra queimada e também o mato, desmemoriado e taludo, já crescendo de novo. Quando estava voltando pra casa, o velho que conhece a língua das ciladas se aproximou de mim: com um sorriso grotesco, repetiu pausadamente, antes de sair pulando e gargalhando, como era de praxe: – Antes de bombardear os grandes castelos, é preciso mandar pedidos de vassalagem... Como vassalo, já fui aceito, pensei. 58 Finalmente, pintei aquele retrato que o rei tinha me pedido. E outros e outros, de duquesas, condes, barões e de toda a gente da corte. Minha fama de retratista correu rapidamente por todo o reino. Nos meses seguintes, estudei minuciosamente os fungos, as bactérias que surgiam nas têmperas. O tempo que precisavam, a mistura de diferentes quantidades e elementos. Fiz inúmeras pinturas como teste. Há alguns dias, por causa da dor violenta que me acometeu, voltei a examinar a cor da urina. Uma mistura cor de sangue e pus. Hoje o rei me chamou novamente e encomendou novo retrato. Ele também deve estar morrendo. Saí exultante desse encontro, por poder realizar um novo retrato dele: agora com minha técnica plenamente desenvolvida. Vou eternizar seu rosto. Daqui um século, multidões visitarão museus para ver os retratos do rei-sapo e sua corte de bizarros seres verdes. A gentrificação rural, o êxodo urbano e a valorização dos modos de vida do mantiqueirense: algumas reflexões a partir do MuMan – Museu da Mantiqueira Diana Poepcke 60 O TERRITÓRIO MANTIQUEIRA Apresento-lhes brevemente a Serra da Mantiqueira: uma formação geológica com mais de 500 quilômetros de extensão que costura três estados do sudeste brasileiro: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Berço de nascentes que abastecem inúmeras regiões, bem como detentora (ainda) de uma generosa porção de Mata Atlântica, é formada por infinitos cumes e mares de morros entre as cidades de Bragança Paulista, em São Paulo e Barbacena, em Minas Gerais. A Mantiqueira tem sua origem datada do período Cenozoico, há 40 milhões de anos, quando grandes movimentos tectônicos verticais dividiram, em duas partes, uma grande cadeia montanhosa do litoral brasileiro – originando, assim, a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira. Entre essas duas “novas” formações, surgiram um graben, denominação dada a uma depressão de origem tectônica: o Vale do Paraíba. Com uma das biodiversidade mais importantes do Sudeste brasileiro, muito se tem falado da importância da preservação ambiental da Mantiqueira. Palco de diversas militâncias ambientais, os novos olhares e reflexões sobre a Mantiqueira abordam as suas paisagens culturais e a sua transitoriedade. Os discursos atuais evidenciam que a preservação ambiental está intimamente atrelada ao papel que o sujeito exerce em seu território, ou seja, estamos falando sobre a conexão entre um território, um povo e seus modos de vida. A paisagem cultural é composta da relação vital entre o território e a comunidade, é a partir do estudo das diversas paisagens culturais da Mantiqueira que poderemos entender as heranças culturais desta Serra, identificando as diversas linhas que tecem a trama do patrimônio cultural dos sujeitos que aqui habitam. Essas linhas não estão estanques no tempo-espaço, mas tecem seu fino bordado na relação de cada sujeito e comunidade com seu território. Ainda são escassos os estudos culturais que protagonizam o mantiqueirense, seus modos de vida e seu patrimônio cultural, sobretudo pelo foco na proteção da biodiversidade local. Alguns desses trabalhos buscam uma unidade nos aspectos identitários da Mantiqueira, todavia acreditamos que, por se tratar de um território com mais de 500 quilômetros de extensão, não podemos buscar uma homogeneidade ao abordar a identidade cultural da Serra, pois assim ignoramos toda a riqueza cultural existente. Todavia, também é interessante observar que essa heterogeneidade apresentará paralelos e similaridades, pois se trata de comunidades em contato com um mesmo tipo de bioma. 61 O MUSEU DA MANTIQUEIRA O Museu da Mantiqueira é um museu virtual que surge em 2013 com o objetivo de estudar, salvaguardar e difundir os modos de vida do mantiqueirense. Nós, do MuMan, acreditamos no poder de militância, persuasão e transformação social da arte, história, tecnologia e dos projetos culturais; além disso, acreditamos no poder (e dever) ativista da instituição museológica. Assim sendo, o MuMan foi pensado a partir da necessidade de ações em meio a um quadro problemático que estamos vivenciando na região da Mantiqueira: o turismo predatório, a gentrificação rural e o êxodo urbano. Esse quadro ameaça não só a comunidade, mas todo o território. São processos que estão modificando a paisagem cultural, o cotidiano local, o ritmo de vida e o modo desses sujeitos se relacionarem com o seu território. Tornou-se uma questão delicada em que, de um lado, temos um quadro de crescimento da densidade demográfica e da prática da atividade turística de forma desordenada e sem planejamento adequado, que poderá agravar problemas sociais, ambientais e econômicos; de outro lado, queremos propor a valorização dos modos de vida do mantiqueirense sem que se confunda com um “resgate” de costumes, tradições congeladas no tempo e esvaziadas de significado para novas conjunturas sociais. É nesse sentido que discorreremos a reflexão neste texto e propomos conhecer um 62 pouco sobre o conceito e a atuação do MuMan. O MuMan teve seus primeiros conceitos formatados e publicados em 2013, desde então o projeto criou percursos de amadurecimento conceitual. Atualmente, podemos defini-lo em poucas palavras: o Museu da Mantiqueira é um museu virtual que pensa o território como um museu a céu aberto e utiliza dispositivos digitais para musealizar o patrimônio cultural do mantiqueirense, ou seja, criar narrativas, percursos expográficos e experiências pela cidade, com o intuito de difundir e salvaguardar os modos de vida deste sujeito. Nesse sentido, são nossos objetos museológicos os seus costumes, as suas tradições, os seus anseios, as suas religiosidades, os seus hábitos alimentares, os seus ofícios, as suas expressões artísticas, os seus causos, as suas festas, as suas diversões, as suas práticas econômicas, as suas políticas e as suas maneiras de relacionar com a terra, os animais e as pessoas. Ou seja, seu patrimônio cultural. Como todo museu, o MuMan possui um acervo, porém digital, que está dividido em três eixos: Acervo Audiovisual, composto de entrevistas de história oral, realizadas com a comunidade local; Acervo Iconográfico, formado com fotos digitalizadas de acervos públicos ou privados; e Acervo Documental, constituído de documentos e jornais digitalizados de diferentes acervos da cidade. Como já falamos anteriormente, a Mantiqueira é um território extenso, dotado de uma rica diversidade cultural. Partindo desse princípio, o MuMan atua a partir de recortes geográficos que dividem a Serra da Mantiqueira em microrregiões, ou seja: para a pesquisa, o território Mantiqueira foi dividido em vários grupos de cidades que possuem ligações e paralelos históricos, econômicos, culturais, políticos e geográficos. Dessa forma, cada pesquisa do MuMan acontece dentro de uma microrregião. Todavia, essas microrregiões não são estáticas, elas poderão se modificar conforme os diagnósticos de ação e de suas relações sociais e históricas. Como exemplo, temos a primeira microrregião traçada para execução da fase piloto do projeto que abarca as cidades: São Bento do Sapucaí – SP, Sapucaí Mirim – MG, Campos do Jordão – SP, Santo Antônio do Pinhal – SP, Monteiro Lobato – SP, Gonçalves – MG, Paraisópolis – MG, São Francisco Xavier – SP (distrito de São José dos Campos – SP), Luminosa – MG (distrito de Brazópolis – MG). Para trabalhar os objetivos do museu, foi desenvolvida uma metodologia baseada em 5 linhas de ação: Diagnóstico, Evento Mantiqueira Cultural, Projetos para Pesquisa de Acervo, Ações Socioeducativas e Programa Mantiqueira Viva. Cada linha de ação abriga uma série de projetos que possuem sincronicidade com as linhas. Dessa forma, desenvolvemos uma metodologia aplicável em toda a Mantiqueira, exigindo algumas adaptações inerentes a cada região. A primeira aplicação de todas as linhas de ação do MuMan foi chamada de fase piloto e aconteceu em São Bento do Sapucaí entre 2014 e 2016. Tivemos dois períodos importantes dentro da fase piloto. O primeiro se desenvolveu entre 2014 e 2015, marcado pela pesquisa prévia, pelo levantamento de acervo e pelo lançamento oficial do projeto com a execução do evento Mantiqueira Cultural. Assim sendo, em 2014, iniciamos com o Diagnóstico dos patrimônios históricos, culturais, ambientais, bem como com as potencialidades turísticas e economicamente criativas. É um documento importante que embasa o desenvolvimento das demais pesquisas. Logo em seguida, iniciamos os Projetos para Pesquisa de Acervo, no qual foram digitalizados documentos, fotos e jornais de diversas instituições públicas, como a Câmara Municipal e a Prefeitura Municipal, e instituições privadas, como a Casa da Cultura Miguel Reale e os acervos pessoais de famílias. As atividades para compor o principal acervo do MuMan, o Acervo Audiovisual, também se iniciaram em 2014 com uma coleta de depoimentos dos moradores locais utilizando a metodologia da história oral. Todavia, as gravações continuaram por toda a fase piloto para que se recolhesse o maior número possível de depoimentos: ao todo são 25 entrevistas, com 30 horas de gravação feitas em áudio e vídeo. As entrevistas são pautadas em um roteiro de história de vida que foi sendo aprimorado até chegar em sua versão final. Em junho de 2015, aconteceu o evento Mantiqueira Cultural na Casa da Cultura Miguel Reale. Reunimos 10 iniciativas culturais da cidade, das mais diversas linguagens, que apresentaram seus projetos, suas dificuldades e suas perspectivas. Foi o momento em que apresentamos o MuMan para a comunidade e lançamos dois documentários1 baseados nas entrevistas realizadas. Dentro da nossa me- 1. Canal do Youtube: Museu da Mantiqueira <https://www.youtube.com/channel/UCb-_kyBTwYZdiwRKWR9PK7w>. 63 todologia, esse evento se mostrou promissor para estreitar laços e criar uma rede entre integrantes do setor cultural, representantes políticos e comunidade em geral. O segundo período da fase piloto se estendeu por todo o ano de 2016 e é marcado pela execução de projetos baseados no acervo do museu, que, então, já estava coletado e organizado. Em junho de 2016, pertencendo à linha de ação Ações Socioeducativas, foi realizada a oficina “Postal da Memória” na qual os participantes escolheram elementos da sua região que os representavam culturalmente para, assim, retratá-los em cartões postais utilizando técnicas de xilogravura, ensinada pela Artista Plástica Mariana Ardito, com o suporte dos artistas Samuel Ornelas e Rafael Kenji. Ao longo de 2016, também estava em desenvolvimento o projeto protagonista do MuMan, que materializa o objetivo do museu por ser um dispositivo digital que explora um percurso expográfico pela cidade, aproximando o ouvinte ao modo de vida local – é o “Audioguia Caminhos da Memória: a cidade como museu, o sujeito como patrimônio”. Contemplado pelo ProAc de Economia Criativa de 2015, o audioguia consiste da elaboração de uma cartografia afetiva e de um percurso expográfico dentro da cidade, no qual os próprios moradores relatam sobre cada lugar. São 18 pontos de parada, três quilômetros e duas horas de áudio que podem ser baixados gratuitamente no celular ou acessado por aplicativos de streaming, como SoundClound2. Os pontos escolhidos são fruto do levantamento e do cruzamento dos lugares de memória identificado nas 25 entrevistas que compõem o Acervo Audiovisual. Dentro dos princípios do MuMan, não faria sentido que esses pontos de paradas fossem uma imposição, pois a proposta é conhecer a cidade pela ótica da comunidade e se aproximar do cotidiano e do modo de vida local. É uma proposta para intensificar o contato do visitante com outras perspectivas identitárias, outros sabores, outros paradigmas e – o mais importante diante de todo o nosso debate aqui – outros estilos de vida. O audioguia acompanha um mapa impresso, uma cartografia afetiva da cidade, um mapeamento que opera na multiplicidade de sentidos atribuídos pelos moradores a essa paisagem, sua topografia e seus patrimônios materiais. Grosso modo, podemos chamar tais interpretações e sentidos de cultura imaterial, de patrimônio cultural. É um caleidoscópio de territorialidades, no qual o ouvinte é convidado a experienciar o território por meio das memórias e dos sentidos atribuídos pelos moradores locais. Não existe sujeito sem memória, não existe território/paisagem sem sujeitos que o habitam. Dessa forma, é possível proporcionar para a comunidade a redescoberta do seu território, reforçando os laços de pertencimento cultural, fortalecendo a identidade afirmativa do espaço, o sentimento de autoestima, valorizando os seus modos de vida. Quando uma comunidade conhece sua história, entende-se e se valoriza enquanto patrimônio cultural, para que elas se assumam como protagonistas desse território e criem meios para a promoção da autogestão dos seus recursos culturais, naturais e econômicos. 2. SoundClound: Museu da Mantiqueira <https://soundcloud.com/museudamantiqueira>. 64 SOBRE OS MODOS DE SER E ESTAR NA MANTIQUEIRA Entendemos que o foco do museu é trabalhar os modos de vida do mantiqueirense e destacamos o valor da paisagem cultural da Serra da Mantiqueira e como ela se torna um elemento importante no estudo das heranças culturais destas comunidades. Nota-se que essas paisagens estão se modificando ao longo do tempo. Uma prova dessa constatação é observar a noite em São Bento do Sapucaí, em Gonçalves e em diversos lugares da Serra: em um passado recente, os mares de morros se transformavam em grandes blocos negros na paisagem, atualmente já podemos observar vários pontos de luz nessas montanhas, ou seja, são várias casas, pousadas, resorts ou mansões particulares que, durante o dia, estão camufladas pela mata. Até certo ponto, é natural que aconteçam essas mudanças, tendo em vista que são elementos mutáveis e que não estamos congelados no tempo. Entretanto, precisamos observar como essas mudanças estão acontecendo e problematizar o porquê. A gentrificação é um termo que surgiu no Reino Unido, com Ruth Glass, em meados de 1960, para descrever o processo das famílias de classe média que saíram dos subúrbios de Londres e foram morar nos bairros centrais, ocupando zonas antigas e desvalorizadas, o que proporcionou modificações na sua composição social. Foi um processo frequentemente visível nas cidades anglo-saxônicas, oriundo de uma crise de suburbanização e da vontade das popula- ções, que detinham algum poder econômico, de voltar para o centro das cidades. No decorrer dos anos, os estudos criaram consistência e classificaram, de um modo geral, a gentrificação como um fenômeno que implica em modificações materiais e imateriais de um determinado território que, por consequência, eleva seu status. Mais especificamente, para Chris Hamnet, a gentrificação é um fenômeno social, físico, econômico e cultural que envolve a invasão da classe média ou de grupos de alto poder aquisitivo, em áreas previamente ocupadas pelas classes trabalhadoras, envolvendo a renovação ou, então, a reabilitação física do espaço para atender as demandas dos novos proprietários. Essas mudanças estabelecem um novo cenário de reorganização socioeconômico, ocasionando um novo modo de vida urbano e novos tipos de consumo. Por consequência, com esses novos padrões, transformar-se o perfil dos moradores locais, tendo em vista que os antigos moradores, muitas vezes, não conseguem sustentar esse novo modelo de consumo imposto e irão se deslocar para regiões periféricas. Como podemos perceber, a gentrificação é um processo que surge sob a ótica urbana, contudo ele vem se transformando e abarcando novas perspectivas. Dessa forma, o conceito pode vir acompanhado de especificações que se adequam mais ao tema em 65 questão, como no caso que aqui propomos: a ruralidade. O termo gentrificação rural tem sido usado para abordar um movimento que promove a diversificação da composição social das zonas rurais, alterando a centralidade desse território, que poderão ser focos de novos centros urbanos (mesmo que pequenos). Um fenômeno que, por sua vez, é oriundo de um grupo seleto de pessoas em estafa urbana que decidem mudar de vida. As atividades no campo, sobretudo aquelas realizadas por comunidades tradicionais, vão perdendo espaço, apoio e reconhecimento social, por consequência, começam a ser substituídas por outras. É difícil competir com investimentos privados, com a alta procura por imóveis, com a baixa valorização da atividade no campo e com a especulação imobiliária, o que torna economicamente vantajoso para os pequenos produtores vender o seu terreno. São problemas também agravados por um novo fenômeno, movimento característico da contemporaneidade: o êxodo urbano. Antes de entendermos o êxodo urbano, vamos contextualizar historicamente o que foi o êxodo rural do século XIX. O êxodo rural é um conceito utilizado para caracterizar o processo de deslocamento dos habitantes do meio rural para o urbano, em busca de estruturação de vida diante de novos padrões mercantis vigentes, sobretudo nos séculos XIX e XX. Dentre suas causas, temos inúmeros acontecimentos e descobertas que se iniciaram no século XVI, nos campo cultural, filosófico, científico, político e social, provocando profundas transformações na conjuntura da época. Também é considerado um resultado indireto da Revolução Industrial, na qual substituiu-se o trabalho braçal pela força das máquinas, causando alto índice de desemprego no campo. 66 Correlacionando com os dias de hoje, os grandes centros urbanos sofrem com um fenômeno chamado de mal-estar urbano: é um descontentamento generalizado com o modo de vida nesses lugares, sobretudo no que é relativo à falta de emprego, ao congestionamento, ao aproveitamento do tempo e à qualidade de vida. Essa insatisfação constitui, em grande parte, a mola propulsora que estimula a saída das pessoas desses grandes centros em busca de novos lugares com melhores condições de vida. Esse novo movimento contemporâneo tem recebido o nome de êxodo urbano, representado, de uma maneira geral, pela saída, numa escala considerável, de uma população residente nas cidades a caminho do meio rural. Não podemos considerar o êxodo urbano como o movimento inverso ao êxodo rural, por não ter sido tão linear e tão bem definido, até mesmo por ser um fenômeno ainda em voga. O êxodo rural foi um movimento com vários pontos de origem, ou seja, população de diversos núcleos rurais convergiram para um mesmo ponto: o núcleo urbano. Já no êxodo urbano o movimento é mais divergente, no qual a saída é de um único ponto: a cidade, e o destino são núcleos variados como os subúrbios, cidades com menor densidade populacional ou o meio rural mais remoto. Agora, veja que curiosa contradição entre esses dois fenômenos: o êxodo urbano é motivado, basicamente, pelo mal-estar urbano em busca de um novo estilo de vida, diferente; a gentrificação rural é caracterizada pela alteração dos modos de vida na zona rural, ocasionando transformaçõesna zona rural, criando pequenos núcleos urbanos. Os modos de vida do meio rural, que também têm atraído as pessoas desmotivadas com o modo de vida urbano, estão ameaçados pela sua desvalorização e dificuldade de competir com altos investimentos privados. É curioso como uma população está deslocando-se em busca de novas perspectivas e novos estilos de vida, mas não consegue abandonar velhos padrões e paradigmas. Transpondo essa discussão para a realidade da Serra da Mantiqueira, constata-se o movimento de êxodo urbano se intensificando a cada dia, aliado ao processo de gentrificação rural se alastrando. Os estudos e os dados quantitativos que poderiam confirmar academicamente a constatação ainda são poucos, todavia fazer parte da realidade local e observar as falas dos moradores evidenciam esse processo. A fala dos moradores entrevistados pelo MuMan exemplifica os dois processos. Segundo a conhecida Dona Fia do Ivo: “Tem muita gente se mudando para cá”; já Dona Fihinha: “De uns tempos para cá, as pessoas vindas de fora estão ocupando cargos, sobretudo políticos, que acredito que deveriam ser de sambentistas”. Dentre muitas outras falas, percebemos o quanto a questão tornou-se delicada na região e necessita atenção.3 Por considerações finais, questiono: qual o sentido de mudar-se para a Mantiqueira, buscando viver aquele modo de vida que o seduziu em um primeiro momento, sendo que, ao mudar-se, notamos a tentativa de impor novos padrões sem promover o diálogo entre ambas as partes? Dessa forma, é necessário entender, estudar, salvaguardar, difundir e valorizar os modos de vida do mantiqueirense, os modos de ser e estar nessa Serra. São esses modos de vida que fizeram (e fazem) a Mantiqueira ser o que ela é hoje. Importante destacar um cuidado teórico e epistemológico em que a intenção não é resgatar modos de vida, ou seja, não é uma ode para que voltemos a morar em casa de taipa, cozinhar em fogão a lenha e passar roupa com ferro à brasa, pois a cultura, as tradições, os modos de vida são elementos mutantes e mutáveis, que se moldam a partir das gerações que dependem diretamente da existência dos atores sociais. Tais atores não são congelados no tempo, assim sendo, por consequência, os seus modos de vida e suas tradições serão ressignificados de acordo com a conjuntura histórica em que ele está inserido. Bem como esses questionamentos feitos a partir da imposição de novos padrões não podem ser visto como um xenofobismo. A questão primordial, aqui, é entender o modo de vida e o ritmo local, inclusive o tempo que a comunidade leva para absorver as modificações geracionais. As mudanças são parte do nosso cotidiano e inerentes ao aspecto mutante da cultura. 3. Para consultar o acervo do Museu da Mantiqueira, acesse o site www.museudamantiqueira.com.br ou entre em contato museudamantiqueira@gmail.com. 67 “Pirlimpimpim” O pó e a cidade que podia ser, mas não é. Cristiane Credidio 68 Escrever sobre a arte e a cultura na cidade de Taubaté não só me faz repensar toda essa estrutura (ou a falta dela), mas me faz pensar sobre minhas próprias escolhas de vida. Isso porque tendo nascido e vivido nesta cidade boa parte de minha vida, aparte as expedições de exploração de novas terras que fiz, volto nesse momento a não morar nela. Resido atualmente na cidade de São Paulo, mas gostaria de poder morar em Taubaté, um lugar bonito, ainda carrega certa tranquilidade no viver diário, bem localizada geograficamente, bem posicionada nos índices de cidades com melhor qualidade de vida. Minha família, amigos e os artistas: quantos deles! Em todos os segmentos artísticos. E o que eles fazem? Muitos vão embora, quase que num processo cíclico, vão embora pelo menos uma vez, outros ficam e lutam e de tanta luta não conseguem desenvolver sua arte na plenitude, outros ficam sem lutar e tentam, assim, se entenderem num sistema social de baixíssima valorização de seu trabalho e sem conseguir praticamente nenhum tipo de diálogo com o poder público. No entanto, eis o que encontramos sobre a cultura na cidade de Taubaté na Wikipédia, e citamos isso aqui apenas em caráter de demonstrar o que se pensa no âmbito do senso comum: “Taubaté é uma das cidades mais tradicionais do interior de São Paulo, e, por ter sido durante muito tempo um centro de referência na região do Vale do Paraíba, sempre foi considerada a cidade que mais investiu em cultura na região. O fato de atualmente o município ser conhecido como a Capital Universitária do Vale é relevante para que a cidade continue tendo uma considerável produção cultural. Sendo a terra natal do escritor Monteiro Lobato recebeu, em 3 de março de 2011, o título de “Capital Nacional da Literatura Infantil” (Lei nº 12.388 do Congresso Nacional).” Sim, vocês leram certo: “continue tendo uma considerável produção cultural”. Mas antes que isso virasse um texto político, pessimista e com visão unilateral, tendenciosa ou mesmo injusta daquela que vos fala, decidi conversar com artistas profissionais e agentes de cultura da cidade, a fim de entender melhor os processos do fazer artístico e seu gerenciamento, na minha área, o teatro, e em outras áreas de expressão cultural e artística, para que concordassem comigo ou me confrontassem o pensar para uma visão mais otimista da produção cultural na cidade. Felizmente as duas coisas aconteceram. Gostaria de dar voz, portanto, aos seguintes profissionais, trazendo para esse espaço suas ideias sobre toda a questão: Jefferson Alves, nasceu em Pindamonhangaba, passou toda sua vida em Santo André, no ABC, e três anos atrás assumiu o cargo de animador cultural do Sesc Taubaté, é também professor de filosofia e sociologia do ensino médio, nosso olho estrangeiro aqui nesse debate; Jefferson Machado, é taubateano, ator, dramaturgo, diretor de teatro e atual coordenador do curso de Arte Dramática da Escola Municipal de Artes Maestro Fêgo Camargo; Gustavo Lessa, também de Taubaté, músico, compositor e intérprete; e Mateus Vasconcellos, igualmente conterrâneo, bailarino, coreógrafo, participa do Balé da Cidade de Taubaté e é atual diretor e coreógrafo da Companhia Dançando sobre rodas, artista premiado internacionalmente com o American Dance Competition 2012 e 2013, nos EUA, e no Grand Prix de Barcelona. Enviei a todos as mesmas perguntas para que respondessem sobre sua área específica de atuação. A primeira é sobre a trajetória desses profissionais na sua área de atu- 69 ação artística, a segunda pretende descobrir como anda a produção atual e quais artistas ou trabalhos têm tido algum expoente, a terceira lança um olhar para o passado com as influências de artistas locais, e a quarta e última discute questões de políticas públicas destinadas ao incentivo do fazer cultural e artístico. O que segue são as respostas na íntegra. Jefferson Machado em busca de novas possibilidades, envolvendo todas as áreas artísticas; quem sabe através desse grupo de pessoas essa situação mude. Taubaté é uma cidade do interior de São Paulo e com uma característica muito coronelista e conservadora, e podemos perceber isso principalmente no movimento cultural e político da cidade. Nossos Secretários ou Diretores de Cultura são escolhidos não por sua história com a Cultura, e sim por outras questões. Assim, me aproximo de artistas que vão contra essa corrente, contra esse fluxo. Gosto da transgressão, gosto de gerar a dúvida, gosto de cutucar e gerar incômodo, buscando em meu trabalho o “essencial”. Também gosto do risco e da pesquisa. Que eu saiba, não existe política nenhuma, e a luta está exatamente para isso acontecer. Comecei como ator em 1990 e me profissionalizei em São Paulo muito tempo depois, porém descobri que, para fazer arte no Vale e sobreviver, teria que ser muito mais do que simplesmente ator e assim me tornei diretor de teatro, dramaturgo e professor. Especializei-me em todas essas áreas sempre buscando através de cursos me aperfeiçoar, pois percebia que na região faltava técnica. A produção teatral em Taubaté é muito pequena. Os grupos que existem vivem do chamado Teatro Empresa, e quem vive de Teatro Empresa só faz Teatro Empresa porque esse consome demais o tempo de qualquer grupo. Assim sendo, muitos grupos acabam apenas desenvolvendo alguns trabalhos específicos somente para se apresentar na Mostra Teatral que acontece uma vez por ano na cidade. Isso quer dizer: produção para apenas uma apresentação. Atualmente, existe um projeto no Centro Cultural, mas que já soube estar em seu término apesar de seu êxito. Lá os grupos se apresentavam aos finais de semana e ficavam com a renda dos ingressos. Mas por motivos políticos esse projeto terá o seu fim. Na cidade ainda há uma Escola Técnica onde constantemente existem apresentações, porém isso é apenas permitido aos alunos que depois de três anos são obrigados a encarar a real situação da cidade, onde não existe um local para apresentações, pois o único local é caro demais: Teatro Metrópole. Existe um movimento acontecendo 70 Mateus Vasconcellos Meu nome é Mateus Vasconcellos, tenho 26 anos, moro na cidade de Taubaté, danço desde os meus 15 anos, e profissionalmente desde os 19. Sou formado em Arte Dramática e Dança, graduado em Pedagogia e Artes Visuais. Sou bailarino, atualmente do Balé da Cidade de Taubaté, ministrei vários workshops pelo Brasil, Europa e Espanha aplicando a técnica Thanztheater, participei do TUDANZAS-Espanha e 21ª. Quinzena de Dança de Almada-Portugal. Na minha experiência como bailarino e coreografo, fui premiado com o American Dance Competicion 2012 e 2013, Orlando EUA, e o Grand Prix de Barcelona, em 2013. Atualmente, sou diretor e coreografo da Cia Dançando Sobre Rodas, trabalho desenvolvido para deficientes físicos; através do trabalho e das apresentações, a Cia foi convidada para dançar na Espanha e desenvolver o trabalho social lá. A produção artística na área de dança tem certo déficit, não temos nenhum respaldo através das entidades públicas, pouco se vê produtores que são voltados a essa área. A área da dança, ao meu ver, é ainda esquecida e pouco respeitada; acredito que um olhar mais específico a essa área traria um crescimento bem significativo aos profissionais da dança. A única referência que temos é o Balé da Cidade de Taubaté, que também é esquecido e tem pouca visibilidade. A política cultural em Taubaté é precária; nesse momento, acredito que os artistas da cidade estão lutando pela sua melhoria, por meio do Conselho Municipal, e isso será proveitoso à classe artística, que, até então, pouco se vê acontecer, o incentivo aos artistas em geral é uma calamidade. Mateus Vasconcellos 71 JeffersonAlves Embora eu tenha nascido em Pindamonhangaba, passei toda minha vida em Santo André, no ABC, e sempre fui um consumidor de arte. Vivia na periferia da cidade onde as ofertas de cultura são muito limitadas, mas eu vivi um período lá em Santo André em que o poder público, a prefeitura, tinha o entendimento da cultura como um direito, havia pessoas trabalhando na secretaria de cultura que tentavam democratizar o acesso à cultura. Talvez eu tenha pegado o fim desse período quando havia muitas atividades formativas para jovens, o que desde cedo despertou minha atenção. Isso certamente contribuiu muito pra minha formação, para minha forte ligação com a literatura, expandindo meus horizontes. Graduei-me em Filosofia e fui ser professor no ensino médio. Hoje sou animador cultural no Sesc, uma instituição democrática que se dedica ao fomento à cultura, ao esporte, à arte, à educação. Com relação aos movimentos da cidade de Taubaté, eu acho que eles estão muito dispersos, não dialogam uns com os outros, mas eu moro aqui faz três anos, um pouco menos, e o que eu percebo na verdade são esses movimentos de juventude tentando ocupar o espaço público para realização de atividades culturais. Uma coisa que me chamou muito a atenção foi o grupo do Itajubá, que já não de hoje sempre movimenta a cidade culturalmente, o pessoal do maracatu com seus encontros, suas oficinas gratuitas, tentando ocupar praças públicas e sempre no embate com a prefeitura para conseguir ocupar essas praças. Eu tenho percebido agora outro grupo que talvez seja até oriundo dessa leva do Itajubá, um pessoal um pouco mais jovem tentando criar um movimento de saraus aqui na cidade, que começou a ocupar as terças-feiras 72 com hip hop, o Terça Sintonia, e desse grupo alguns começaram a pensar nos saraus. Hoje, esses dois movimentos vêm crescendo e ocupando a Praça da Eletro. Há também muitos músicos na cidade, muita gente tocando e com trabalho autoral interessante. Mas eu vejo que faltam coletivos mais estruturados com trabalho de pesquisa, com espaços próprios para efetuar suas pesquisas e desenvolver seus trabalhos. Aqui em Taubaté isso não existe, eu vejo todo mundo muito disperso, cada um fazendo suas coisas aqui e ali, mas não há uma rede, uma rede de diálogo entre esse pessoal envolvido com a arte. Precisaria amadurecer mais com apoio e incentivo do poder público para as atividades artísticas se consolidarem aqui na cidade. Eu vejo tudo muito disperso, e isso acaba fazendo com que esses movimentos acabem perdendo força por não dialogarem entre si. Eu desconheço ação pública de incentivo por parte da prefeitura. Nesses três anos que estou aqui, quatro ou cinco secretários de cultura se revezaram no poder, e a cada mudança de secretário o foco muda, o diálogo com a sociedade civil é praticamente inexistente, há ainda um não pensar a cultura como um direito cultural, mas puro e simplesmente como entretenimento: já tivemos uma secretária que era gerente de um shopping com um discurso “cultural” de grandes festas (que acabaram nem acontecendo), não tinha preocupação, uma visão mais ampla de cultura, um pensamento de articular a cultura com outras políticas, com outras áreas aqui, com educação, com o turismo na cidade. Há uma luta aqui de um grupo, o CCIN (Coletivo Cultural Independente), para tentar criar o Sistema Municipal de Cultura. São uns abnegados que já há muito tempo estão buscando esse fortalecimento na área de cultura. Eu acho que o Sistema Municipal, a adesão ao Sistema Nacional, que não se sabe como vai ficar com todas essas mudanças, todo esse retrocesso, não sei como isso vai continuar, mas acho importante pelo menos estruturar uma política cultural. Não só para repassar verba para artistas e produtores, mas para compartilhar informação também, porque eu acho que aqui na cidade falta muito isso. Faltam oportunidades de formação para os jovens que estão se envolvendo com cultura e de aperfeiçoamento para os artistas que já trabalham com cultura aqui. Isso não existe. Não existe essa oferta formativa que é muito importante em qualquer cidade. Não é sustentável trabalhar com cultura em Taubaté, não há incentivo de parte nenhuma, e eu acho que deveria haver o básico do básico. Acredito que primeiro deveria haver a instituição de uma política pública que dialogasse diretamente com a sociedade, que houvesse uma aproximação da prefeitura, um mapeamento da produção cultural, caso contrário fica muito difícil você falar de uma realidade que você nem conhece, que parece que é invisível aqui aos olhos do poder público. Também os espaços e equipamentos culturais que eu vejo abandonados aqui na cidade, os poucos que tem, completamente abandonados, subutilizados. Portanto, eu penso que deveria começar pelo básico, fazer um mapeamento dos grupos e artistas, entender as reais demandas, entender a cultura como um direito, tentar articular com Secretaria de Educação, Turismo, Esporte políticas em conjunto para fortalecer a cultura, deixar de entender a cultura como mero entretenimento. Acho que tudo aqui está num estágio bem inicial, o que tem que ser feito está num nível bem básico para se começar a pensar em estruturar uma política pública que fomente a ação e tudo mais. Essa própria discussão desse grupo, o CCIN, que está batalhando pela imple- mentação do Sistema Municipal de Cultura, está sozinho, é um grupo pequeno, há um desinteresse dos próprios agentes culturais de se envolverem nessas questões, que são burocráticas, mas são fundamentais para você conseguir efetivar realmente os direitos culturais do povo da cidade. Então acho que falta também por parte dos artistas da cidade um maior envolvimento com essas questões que são mais burocráticas mesmo, mas que são fundamentais. Gustavo Lessa O violão chegou ao meu colo aos oito anos e veio pra harmonizar as canções que eu já cantava. O processo de “pôr o pé na profissão” foi bem natural. Cheguei aos bares com um repertório numeroso e eclético – não vivo sem a diversidade. E esse caminho boêmio-artístico me levou pro universo da composição de canções e de música de cena. A poesia, a música e as artes dramáticas sempre andam juntas na minha cabeça. A trilha sonora chegou por um convite da companhia Teatro Humanoide, encabeçada por Cristiane Credidio, que realiza um trabalho cênico de ponta na cidade. Fiz três espetáculos com eles: É o que Tem pra Hoje (2010), A Revolução da Carne (2014) e Yayá (2016). Na canção, eu tive a sorte de chegar ao início de uma ascensão produtiva dos compositores da cidade. Taubaté nunca viu tantos discos serem lançados como nos últimos dez anos. Teteco dos Anjos, João Oliveira, Bernoldi, Toninho Mattos, Pedro Freire, Diego Luz, MC Rato, MC Ralph, etc. Nessa prateleira está o meu Transmulato (2015). Mas muitos desses artistas, ao invés de terem uma sequência plena com seus trabalhos autorais, ainda dependem do “circuito do barzinho” como há dez anos. O mercado 73 74 não acompanhou a “primavera”, e as políticas culturais da cidade são bem precárias. Toda a grana da produção do disco sai do nosso bolso e não temos condições de arcar com o preço altíssimo do aluguel do “teatro da cidade”, que está lá muito mais pros globais e pras atrações que promovem a prefeitura. É notório que esse descaso dificulta tanto o trabalho artístico quanto o amadurecimento do público. Com isso, algumas casas estão surgindo pra afirmar essa primavera musical e poética autoral da gente. O Bangue Estúdio se destaca nessa resistência. Essas e outras iniciativas individuais e coletivas mostram que podemos fazer um saneamento artístico nesse rio inerte, pragmático e conservador. É difícil, mas Taubaté tem potencial econômico e geográfico pra isso. Depois de “ouvir” meus caríssimos supracitados, como havia dito no início, mantenho minha visão que tende ao pessimismo diante do quadro atual, mas algo parecido com esperança também acontece. Não temos nenhum tipo de incentivo por parte do poder público através de leis de fomento. O que existe é a luta pra que isso aconteça, batalhada pelo CCIN (Coletivo Cultural Independente) nas figuras de Fernanda Vasconcelos, Jenifer Botossi, Nara Alencar, Solange Barbosa, Ângelo Rubim, Ana Carolina Pisciotta, os abnegados citados por Jefferson Alves, que num revezamento de pessoal (também outras pessoas já participaram dessa luta) mantêm essa tentativa de ter minimamente um Sistema Municipal de Cultura em Taubaté há não menos que oito anos, sem prazo para efetivação do processo. Não há política pública formativa nem de artista nem de público. Não há um mapeamento adequado dos artistas locais, tampouco uma melhor política de acesso dos grupos aos equipamentos públicos. Os artistas, por sua vez, pouco se articulam em uma frente única de artes, envolvendo todas as expressões para um bem comum: tentam o que podem; fazem o que conseguem. Portanto, falar em excelência nos trabalhos é quase uma covardia, uma vez que não conseguem dar conti- nuidade às suas pesquisas, aos seus trabalhos, companhias sem sede, atores e dançarinos sem palco, artistas plásticos sem exposição, escritores sem publicação, carecemos de tudo. Os artistas da cidade podem e merecem fazer uso dos títulos que a cidade carrega e da qual adora se gabar: cidade industrial e universitária! Ora! Temos tudo, empresas para patrocinar, valorizar o artista e universitários para público! Embora, naturalmente, a cultura seja um direito de todos, não querendo elitizar a cultura para universitários, mas é notório o histórico de estudantes em contato com a arte especialmente para resistência em períodos de retrocesso político e social. Mas não é o que acontece. Não há articulação, não há vontade política, não há visão de cultura como direito. Sem ação, isso é só escárnio, tanto com o artista taubateano quanto com toda a população da cidade. Não temos “uma considerável produção cultural” como o senso comum aponta de maneira quase infantil; nossa produção cultural é inócua, insuficiente, inoperante. Uma pena, porque tem gente doida pra produzir, pra fazer, pra criar, pra ir à luta, pra dar a cara a tapa e se expor artisticamente. Se os apáticos soubessem do que a arte é capaz, parariam suas tristes máquinas: isso evidentemente seria uma afronta a certos interesses. Mas eu disse que havia esperança, e digo aqui a minha. A minha esperança está precisamente na resistência dos coletivos e em suas ocupações de espaços públicos. Bem como na possibilidade de articulação de artistas na batalha pelas tão esperadas políticas públicas em adição a uma organização em empreitadas privadas. São tempos estra- nhos, de retrocesso político e social em tantas áreas, e aqui não é privilégio do taubateano, esse processo é nacional, é internacional. Há muita luta pra ser re-lutada! Muita! Recorro a Gonzaguinha pra dizer, por fim, que “eu acredito é na rapaziada”! Esse texto com questionamentos, críticas e aflições é dedicado a toda a minha rapaziada que conhece o chão do qual falei e batalha nele! Cristiane Credidio é taubateana, graduada em Direito, Artes Cênicas pela CAL no Rio de Janeiro, pós-graduada em Linguística. Atriz, dramaturga, diretora, produtora e fundadora do Teatro Humanoide. Mora atualmente em São Paulo, onde tem desenvolvido trabalhos com o Teatro Commune. 75 Da impossibilidade da arte de protesto Bruno Ishisaki 76 1 A militância das minorias é a luta do bicho. O bicho está sempre à espreita; seus instintos o direcionam para a alimentação e para a sobrevivência. O olhar do bicho é seccionado em duas instâncias: comer e vencer. O bicho, para sobreviver, organiza-se em grupos; os grupos conquistam territórios; ambas as ações projetam-se no caos indiferenciado do ambiente, e são os dois modos de o bicho garantir sua sobrevivência. A militância-bicho busca modos de ordenar o caos, de onde vêm os perigos que a ameaçam e a comida que a alimenta. 2 A criação de obras de arte é caos contido. O artista cultiva ilhas de indeterminação; como tal, é um colonizador. Em vez de ordenar o caos, o criador o contém e extrai dele sua potência. O cultivo de ilhas de indeterminação só pode ser feito por aqueles que não militam mais: para cultivar uma ilha, não se pode estar preocupado com a sobrevivência ou com a alimentação; tais pontos não podem mais ser motivo de atenção. Assim, a criação de arte está inevitavelmente atrelada ao privilégio (ou fardo) de não militar; de tal privilégio, vem também a possibilidade de aceitação do mundo, tal como ele é. 3 A militância e a arte são inconciliáveis em um mesmo nível de existência. Porém, é curioso observar que, logo após a conquista de um território por uma coletividade – e consequentemente, a suspensão momentânea dos dois atributos da militância: a sobrevivência e a alimentação – observa-se manifestações de criação de objetos estéticos, que emergem para preencher as demandas de uma cultura em formação. Cultura esta que irá apontar para traços de identificação que estarão associados ao grupo. Só seria possível estabelecer condições para a criação em um ambiente ordenado, um território: há uma diferença em extrair potência de uma ilha de indeterminação ou daquilo que é totalmente indiferenciado. A existência de um território parece ser uma condição para a atividade criativa; configuramos, assim, dois níveis de existência distintos: o da militância, em um primeiro momento, relacionado à sobrevivência; e o da criação, como consequência da conquista e fruição dos recursos de um território. 4 Os objetos estéticos podem existir de três modos distintos: produtos, artesanatos ou obras de arte. Tais modos não são necessariamente excludentes, tampouco estanques: há um continuum entre o produto e o artesanato e entre o artesanato e a arte; um objeto de arte pode ter facetas artesanais em sua feitura e pode ser posteriormente comercializado como um produto; porém, ainda temos dúvidas se um produto pode ser revertido em objeto de arte. Inclinamo-nos a pensar que não, mas não refletimos suficientemente a respeito, então deixaremos essa vetorização em aberto. 5 Os produtos são objetos forjados a partir do mecanismo da cópia e são sempre aparatos úteis. Um produto é mais ou menos perfeito na medida em que pode ser produzido e reproduzido com maior ou menor nível de precisão em relação ao seu modelo. Daí vem a íntima relação entre o platonismo vulgar e a Indústria. 77 6 O artesanato, por sua vez, segue também a lógica da cópia; contudo, ele é mais aberto às corrupções do trabalho manual, além de apresentar uma relação mais flexível com os aspectos deformantes da techné. Além disso, é um objeto mais estético e menos útil do que o produto. Produto e artesanato são modos de criação subservientes à cultura; seus objetos tendem a funcionar como poderosos aparatos de linguagem e carregam consigo uma carga semiótica que reforça o valor de certos atributos culturais, normalmente em posição de conflito com outros. 7 Enquanto isso, a arte produz objetos inúteis. A obra de arte vem muitas vezes travestida de artesanato. No olhar do diletante, os dois modos se assemelham. No olhar do pequeno burguês médio, até mesmo o produto parece se confundir com o artesanato e com a arte. Mas a arte é bélica, maliciosa e virulenta: seus objetos estéticos são Caixas de Pandora e Cavalos de Troia; em tempos pós-golpe, podemos metaforizá-la como links de aumento peniano, anúncios online que roubam dados bancários ou SMS com prêmios falsos. Pois a arte faz uso da linguagem estratificada pelos produtos e artesanatos, mas insere nesta linguagem mecanismos corruptivos de teor destrutivo, que em última instância desestabilizam e obrigam esta mesma linguagem a se reconfigurar em novos erotismos. 8 Entendemos arte, portanto, como um mecanismo bélico de infiltração, indissociável de uma potência destrutiva, maliciosamente plantado dentro de um campo da cultura para fazê-la implodir. Se a militância atua tendo como tendência o estabelecimento de um território, automaticamente a arte se apresenta como atuação antagônica, movente, deformante e desestabilizante. 9 Os objetos estéticos que cabem à militância estão mais próximos dos produtos e artesanatos. A militância alimenta a egrégora de Parmênides e não cultiva ilhas de indeterminação; na militância organizada e fortificada, Heráclito não possui local de fala. Não acreditamos na existência de artistas militantes, pois a militância é una, identitária. Quando o artista milita, deixa de fazer arte. Quando o militante produz arte, deixa de militar. 10 Não que o artista não participe da luta. Lembremo-nos: a arte é belicosa. A luta do artista não se refere às jurisprudências, aos juízos de existência, às relações identitárias ou às disputas no campo do discurso. O artista luta no campo da própria linguagem. Seus Cavalos de Troia precisam ser cuidadosamente planejados na esfera dos conceitos; sua luta é pela deformação da cultura e pela destruição dos cancros culturais que fomentam Poderes e opressões. 78 11 Quando o militante se coloca como um criador de obras de arte e faz de sua produção o rosto de uma luta, o que temos? Duas possibilidades: 1) ingenuidade. Aqui, o militante confunde produto, artesanato e arte, e toma sua produção de reforço cultural como um Cavalo de Troia. Mas sua produção enseja a construção do território, ela não possui potência de destruição. A ingenuidade é um caso ameno, pois a possibilidade seguinte é 2) oportunismo. Artesãos medíocres frequentemente fazem uso das mobilizações da militância para promover uma produção esteticamente insignificante, que, ao se transformar no rosto de uma luta, pode adquirir um aspecto de densidade, lirismo e profundidade em proveito das novas relações simbólicas e afetivas advindas da oportunidade de fundir seu artesanato com os anseios, diretrizes e discursos da militância. 12 Daí vem a impossibilidade de uma arte de protesto. O protesto, modalidade amena de luta da militância, comporta em si somente objetos estéticos de reforço cultural. Marchinhas, jingles, cançonetas, palavras de ordem, gritos musicais, batuques, slogans, camisetas, cartazes. Tais objetos não podem ser sutis, sinuosos, delicados, maliciosos; precisam ser diretos, fazer uso efetivo da linguagem, precisam expressar, mobilizar. Os objetos de arte pertencem a outro campo de batalha, são coisas para espiões, infiltrados, agentes duplos, personalidades dúbias, duas caras, personagens com talento para a dissimulação e para a ausência de caráter. O artista, produzindo em territórios colonizados, bem estabelecidos, sendo bem nutrido, usufruindo de abrigo e segurança, está inevitavelmente atrelado à condição de privilegiado. Por mais que o artista possua uma história de enfrentamentos, sofrimentos, superação de obstáculos sociais e econômicos, marcas e cicatrizes, quando cria uma obra de arte, o faz usufruindo de algum tipo de privilégio. Quartour Pour La Fin Du Temps, Also Sprach Zarathustra, os madrigais de Gesualdo, a Roda Viva, Sargent Peppers... são todos frutos de privilégios. 13 Escolher entre a arte e a militância tem menos a ver com engajamento e alienação e mais a ver com o tipo de luta que se quer lutar. Certos corpos podem ser melhor talhados para uma forma de luta do que para outra, bem como certas posições podem favorecer táticas num campo ou noutro. Se militância e arte possuírem um inimigo comum, e se entrarem em ressonância, mudanças poderão ser realizadas, e feitos notáveis poderão ser conquistados. Mas acreditamos que tais ressonâncias só poderão ser viáveis quando a militância se livrar de seus vícios identitários e os artistas aproveitarem as vantagens de suas posições privilegiadas para plantar bombas-relógio. A militância tem que desapegar da cultura, e o artista precisa jogar fora o portfólio. Aí será o momento das táticas devastadoras, das explosões estratégicas, dos planos coordenados e das grandes vitórias. Até lá, ficamos à espera de um apocalipse qualquer, com os olhos voltados para o céu sujo de uma cidade feita apenas para carros trafegarem, esperando que os meteoros venham logo... 79 #A arte é inconjugável com o profissionalismo [Poema panfleto] Marcus Groza 80 O profissional trabalha com compromisso o artista trabalha com obsessão O bom profissional é um empreendedor o bom artista é um aprendiz de feiticeiro O músico profissional é um metrônomo dócil o músico-artista habita um devir-mus’go O ator profissional é um clown emocionado o ator-artista é um demônio emocionante O artista visual é um mestre retiniano dos tubos de tinta o artista do invisível faz o mundo nos lançar um olhar de volta O escritor profissional é um jornalista de pensamento obeso “o poeta é aquele que escova os dentes de alho” (Leo Mandi) O profissional cronometra e é cronometrado o artista manipula o acaso e o cálculo (tempo-Aión) O profissional é fluente no burocratês o artista aprende a soletrar por resiliência O profissional forma trustes de cães pacificados o artista é animal inespecífico devastador de bordas 81 82 A Gravidade é o Mistério do Corpo Leticia Kamada 83 84 85 86 87 88 89 90 90 91 91 Cultura: posologia e modo de usar Oswaldo Almeida 92 Cultura e poder público têm sido amigos íntimos. Entendida em seu sentido amplo, para além do campo artístico, a cultura garante aos poderes constituídos o controle das pulsões individuais e a adoção de consensos. Como já nos ensinava Freud, é a cultura que nos permite regulamentar as relações sociais: “A convivência humana só se torna possível quando se reúne uma maioria que é mais forte do que cada indivíduo1”. Nesse sentido, abordar a relação entre cultura e Estado requer a compreensão de que estes são indissociáveis, pois somos regulados por nossas convenções, nossos aprendizados e nossas concessões ao outro. Em outros termos, por nossa cultura. Assim, cada sociedade e, consequentemente, cada modo de viver em sociedade são derivados da maneira como um dado grupo social se desenvolveu ao longo do tempo. Essa concepção de cultura coloca-a como um fator de integração social a priori. Mas também é próprio da cultura o conflito, sem o qual não se desenvolve uma comunidade. É do questionamento de antigos modelos que surgem as novas ideias. Assim, a cultura é, segundo um dos significados apresentados por Terry Eagleton2, a “lâmina do arado”, aquilo que revolve o solo, podendo daí fazer surgir tanto a conciliação quanto o confronto. Essas duas interpretações do fato cultural, a que o apresenta como fator de coesão social e a que o entende como algo que não se pode controlar totalmente, convivem muito proximamente quando se tenta entender as relações entre poder público, cultura e desenvolvimento econômico. Apesar de sua pouca relevância nos discursos oficiais, a área cultural encontra-se entre aquelas de que se lança mão quando a tentativa é soar politicamente correto. Poucas áreas e poucos termos apresentam essa garantia de acerto, e sob esse ponto de vista o termo “cultura” caminha ao lado dos infalíveis “sustentabilidade”, “meio ambiente”, “cidadania” etc., todos eles ligados a escassos recursos nos orçamentos municipais, mas eficientes quando necessários para justificar algumas ações pontuais das administrações públicas. Inclusive na área de economia. Poucas iniciativas públicas traduzem tão perfeitamente essa relação quanto os projetos de requalificação urbana, integrados às políticas de preservação do patrimônio histórico. Vários exemplos no Brasil e no exterior demonstram a vitalidade dos novos centros de cultura e de negócios que foram gerados a partir de processos de recuperação do patrimônio e de estímulo ao turismo, realizados de forma integrada. A Estação das Docas de Belém do Pará, criada a partir do restauro do antigo porto de Belém, é uma referência turística no Amazonas, recebendo cerca de seis mil visitantes por dia. A cidade de Barcelona experimentou mudanças radicais a partir dos anos 80, culminando com as grandes obras que terminaram por alterar o perfil internacional da cidade na preparação para os Jogos Olímpicos de 1992. O Bairro do Recife, na capital pernambucana, também experimentou processo semelhante a partir de 1998, após o tombamento de seu principal núcleo histórico. Quase como regra, atingem-se nestes processos os esperados resultados de requalificação urbana e desenvolvimento econômico, porque, paralelamente ao restauro do patrimônio edificado, promove-se a nova imagem desses centros como polos de gastronomia, de diversão noturna, de lazer e de 1. Freud, Sigmund. O mal-estar na cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: LPM Editora, 2010. 2. Eagleton, Terry. A ideia de cultura. Trad. Sandra Castello Branco. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. 93 fruição cultural, com a instalação de museus ou a realização de grandes festivais, com o devido investimento em segurança pública para garantir o trânsito dos novos frequentadores desse espaço urbano. Estes são exemplos típicos do uso das expressões culturais – a arquitetura, a arte, a história de cada lugar – como motivos de impulso para o desenvolvimento econômico. De uma forma geral, a percepção dos executores dessas ações é a de que houve melhorias na utilização desses espaços públicos. Como dito anteriormente, entretanto, essa percepção extremamente positiva do processo é apenas um dos pontos de vista do fato cultural. O que não raras vezes ocorre nesses processos, em que a cultura e suas manifestações são envolvidas diretamente, é que se costuma desconsiderar que qualquer intervenção carrega consigo determinadas interpretações da realidade, adequadas às condições históricas em que foram gestadas. Pode ocorrer, por exemplo, de esses processos proporem modelos de ocupação urbana que já não fazem sentido para a população do local, ou mesmo que desconsiderem as dinâmicas já existentes de ocupação que fazem os moradores da área envolvida. Eventualmente, inclusive, os antigos moradores podem vir a ser totalmente desconsiderados nesses processos, como alerta Rogério Proença Leite3 ao referir-se à Rua do Bom Jesus, que integrava, como um novo polo comercial, o projeto de requalificação do centro histórico de Recife: O tratamento especial e diferenciado na limpeza pública, na iluminação e no próprio montante de investimentos efetuados no polo – enquanto outras áreas não receberam nenhuma melhoria nas edificações, infraestrutura ou mobiliário urbanos – é um indicador de uma tomada de posição clara quanto aos “sujeitos” que seriam beneficiados com a “revitalização”. Da mesma forma, as ações proibitivas em relação aos ambulantes e aos meninos em situação de rua, através do mecanismo jurídico do Projeto Hora de Acolher, demonstram as condições desiguais com que eram travadas as disputas simbólicas pelo Bom Jesus. Nesse polo, restou aos excluídos do enobrecimento ocupar, durante o dia, a calçada-sombra: aquela cujos usos diurnos ainda anunciavam resíduos de um tempo em que o bairro era feito pelos próprios moradores, gente “simples” que se sentava no banco para conversas à toa, à sombra das árvores que a acolhia. Esses processos de revitalização ou requalificação urbana, mais frequentes a partir do final dos anos 60, têm sido estudados sob o nome de gentrification (enobrecimento). A cultura está mais presente nesses processos do que pode supor o aporte público na realização de atividades artísticas nos locais revitalizados. Antes mesmo de esses projetos estarem prontos, estão de tal forma imbuídos de posicionamentos ideológicos que se torna difícil até para seus fomentadores compreenderem a qual projeto de cidade estão servindo. Mesmo projetos internacionalmente reconhecidos, como os de Barcelona, na Espanha, e da Trafalgar Square, em Londres, carregam juntamente com seus méritos o antagonismo sutil entre positivo e negativo próprio das re- 3. Leite, Rogerio Proença. Contra-Usos da Cidade: Lugares e Espaço Público na Experiência Urbana Contemporânea. Campinas, Ed. Unicamp, 2007. 2ª edição. Sergipe: Ed. UFS, 2007. 94 lações culturais. Como nos mostra Richard Williams4 em relação ao caso londrino, projeto do arquiteto Richard Rogers: Em sua conhecida imagem, um esboço em preto e branco em perspectiva, o projeto parece tão inócuo que é difícil perceber sua importância. Mas ele reimaginou a praça num momento em que ela não era apenas o centro vital de tráfego da Londres central, mas o principal local de concentração pública da cidade. Os protestos contínuos durante os anos 80 contra o regime de apartheid na África do Sul (a embaixada ocupa o lado leste da praça) foram um dos fatores principais para a dissolução final daquele regime. A imagem de Roger, porém, a imagina como tudo menos uma praça de protestos. Não – a praça foi tomada por museus. Talvez ela tenha se tornado um museu. [...] as centenas de figuras que agora habitam a praça são – apesar de representadas em forma de silhueta – inquestionavelmente visitantes de galerias que acabam de ser expelidos para a praça. Eles não constituem uma multidão, andam polida e lentamente, mantêm uma distância respeitosa uns dos outros, estão eretos. [...] Trata-se de uma imagem crucial de cultura pública – mas é vital para se compreender também a maneira altamente restrita e controlada com que a cultura é imaginada. Os exemplos supracitados demonstram que, mesmo que inconscientemente, a cultura está na origem e no destino de várias das intervenções públicas, sendo estas direta ou indiretamente direcionadas ao desenvolvimento econômico. De modo mais direto, o poder público também é responsável por ações pontuais que evidenciam a força da cultura e da arte quando propõe, como no caso de São Paulo, eventos como a Virada Cultural, que atrai cerca de quatro milhões de pessoas à cidade, grande parte turistas. Também – ou principalmente – em outros países ocorre tal investimento na arte como propulsora de negócios. O Festival de Edimburgo, na Escócia, reúne público similar e gera, segundo pesquisa encomendada pelos realizadores, mais de 260 milhões de libras e cinco mil empregos diretos. Essas atividades estão relacionadas ao campo de estudos a que se convencionou denominar Economia da Cultura. Estão ligadas também ao conceito de Indústria Criativa, que reúne as produções ligadas à criação simbólica, entre as quais podem ser citadas a criação cinematográfica, o setor de espetáculos, o mercado editorial, os segmentos de criação de softwares, o design, a moda, o artesanato, entre outras áreas do conhecimento. A força desse mercado que envolve a criação simbólica5, contudo, pode dar a entender que as relações entre cultura e poder público são sempre sinérgicas. Mas basta uma passada de olhos pelos jornais diários para perceber que as coisas não se dão exatamente dessa forma. São constantes as notícias de investimento do poder público na criação de parques tecnológicos, em que se investem milhões na busca por novas indús- 4. Williams, Richard J. Espaço Público e Cultura Pública: Teoria, Prática e Problemas. In: Coelho, Teixeira (org.). A Cultura Pela Cidade. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.33-47. 5. O PIB da indústria criativa paulista atingiu R$ 48 bilhões em 2011, respondendo por 44% do total do PIB do país nessa área. Folha de S. Paulo, Mercado B-3, 16 nov. 2012. 95 trias. Com o mesmo objetivo, reduzem-se frequentemente os tributos, diminuindo as arrecadações municipais com o propósito de gerar novos empregos. Do lado oposto, dando mostras de como geralmente se pensa a cultura no poder público, veem-se associações que lutam pela preservação do patrimônio histórico convivendo com o argumento, geralmente utilizado pelo poder executivo, de que o recurso para o restauro das edificações deve ser buscado junto à iniciativa privada. O MASP, museu que é referência no hemisfério sul, recebe do poder municipal apenas o suficiente para sua manutenção durante quatro meses do ano e é praticamente ignorado pela política cultural do Ministério da Cultura, mesmo recebendo cerca de 800 mil visitantes por ano. Novamente, o argumento é de que se devem buscar doações e patrocínios junto às empresas. Nada de errado em se contar com recursos privados para o desenvolvimento de ações culturais públicas. Tem sido assim em boa parte das instituições culturais no mundo todo. O relevante nessa situação é perceber que o patinho feio dos orçamentos municipais nem sempre é tão compreendido quanto parece. Geralmente, entende-se que investir recursos públicos na área cultural (equívoco semelhante ocorre com a educação, apesar de esta receber formalmente mais recursos) significa colocar dinheiro onde não se verão resultados práticos. Afinal, os grandes avanços da cultura se dão no campo simbólico, no desenvolvimento humano, mais subjetivo e difícil de mensurar. Como se medem o grau de felicidade e a qualidade das expressões humanas, entre as quais se encontra a arte? Talvez por isso o poder público prefira investir em eventos pontuais, cujo resultado numérico é imediato e pode ser utilizado como argumento. Quanto mais subjetiva uma atividade cultural, menos chances ela terá de ser compreendida como importante pelas políticas públicas. Por isso, apesar de justificável como fator de desenvolvimento econômico, não se pode desconsiderar que a cultura deve servir a seus próprios valores. A transformação pessoal, a ampliação de nossa percepção do mundo, o conhecimento e o respeito à cultura do outro, a tolerância, e mesmo o poder renovador das transgressões, dificilmente serão defendidos em discursos da área econômica. Tratemos, pois, de defendê-los nós mesmos, os trabalhadores da área cultural. Escrito em agosto de 2013 para debate no XXVII Simpósio do IEV – Instituto de Estudos Valeparaibanos. Mesa: Poder Público: agente de desenvolvimento econômico por meio da cultura. 96 97 Geografia do pensamento musical e estética da fosforescência Marco Antônio Machado 98 À guisa de introduzir o assunto, não posso deixar de falar sobre a condição de estagnação de pensamento na qual nos encontramos e de como os campos tradicionais, consagrados e conservadores fortalecem suas amarrações com êxito assombroso. Para tanto, partirei de uma anedota que proporá uma dicotomia que, para mim, parece preponderante: No município de São José dos Campos-SP, onde nasci e vivi a maior parte de minha vida até agora, há um coletivo de artistas que se reúne desde 2009 para reivindicar as demandas do movimento cultural. Tal coletivo ficou conhecido como Fundão, pois nossa demanda era a implementação da lei que instituiria o Fundo Municipal para Arte e Cultura1. Depois de muito trabalho, grupos de estudo e discussões, escrevemos em coletivo o texto da lei e demos início à luta por levar à câmara de vereadores para ser votada. Com algumas perdas, a lei foi aprovada no dia 13 de dezembro de 2013. Uma das perdas a que me referi foi a da palavra Arte, pois o texto final ficou com o título de Fundo Municipal de Cultura2. Em face disso, eu, como delegado de cultura do município na ocasião, indaguei o presidente da fundação cultural da cidade o porquê de tal transformação. No primeiro momento, ele pormenorizou a questão e disse que era apenas uma palavra, que ficaria mais sonoro e mais simples somente Fundo Municipal de Cultura, FMC. “Precisamente porque tudo passa pela linguagem e se passa na linguagem...” (DELEUZE, 2009, p. 36) que para mim nada é só uma questão de palavra. Então eu insisti na demanda, argumentando que o texto foi escrito em colegiado, com a sociedade civil, com os artistas do município, e que tal mudança foi autoritária e não levou em consideração o trabalho e a dedicação de todos. Foi nesse momento que o presidente retrucou dizendo que arte e cultura são a mesma coisa, tratavam da mesma coisa, e que, portanto, juntos estariam redundantes no título da peça jurídica. E aqui entramos no ponto da discussão que me interessava, pois pra mim não só não são (arte e cultura) a mesma coisa, como são antagônicas do ponto de vista da orientação do pensamento. Voltando ao debate, eu disse que era preciso a palavra arte no título da peça jurídica para que garantisse que projetos de cunho artísticos fossem contemplados nos editais e não só os de cunho cultural e, disse ainda, que correríamos o risco de acontecer o mesmo que acontece no âmbito da fundação cultural da cidade – que tem apenas a palavra cultural no seu título e, em consonância com isso, apenas promove e patrocina projetos culturais. Então o presidente respondeu: – discordo Marco, a fundação tem projetos culturais e artísticos. Então eu retruquei: – liste-me, presidente, quais são os culturais e quais são os artísticos? Eis a lista que ele elencou: Culturais – jongo, capoeira, viola caipira, folia de reis...; Artísticos – orquestra sinfônica, balé clássico, sapateado, teatro... Então, eu comentei dizendo que era interessante observar que para ele cultura era o que era feito por pobres e pretos, e arte era o que era feito por ricos e brancos. Pra mim, a diferença não é racial, de classe social ou de origem continental (África X Europa), mas sim se o intuito do 1. Lei em consonância com o Plano Nacional de Cultura que conigura um fundo com dotação orçamentária municipal para premiar projetos enviados e contemplados em editais públicos nas mais diversas áreas culturais e artísticas. 2. http://www.sjc.sp.gov.br/legislacao/Leis/2013/9069.pdf 99 fazer é preservar uma prática, repetir um processo, reutilizar um modo de vida consagrado e sabido, ou se o intuito é se arriscar, experimentar por caminhos desconhecidos, promover novos encontros e novos modos de vida. A cultura é cultivo, é identidade, é repetição – a arte é nomadismo, alteridade, diferença. É nesse âmbito que tanto a orquestra sinfônica como os grupos de jongo, as classes de balé, jazz e sapateado, o circo, a capoeira, os festivais de rock, tudo isso compõe um rico trabalho, porém exclusivo no campo da cultura. O fundo municipal continua se chamando apenas de cultura. A ideia de geografia do pensamento passa pela noção de desterritorialização elaborada por Deleuze e Guattari e tem como alicerce o nomadismo na intelecção. Dizendo de outro modo: tudo pode ser um território (HAESBAERT e BRUCE, 2012, p. 6-7), os fluxos e movimentos sobre esses territórios promovem desterritorializações e reterritorializações. No mundo do pensamento (ente do intelecto), não é diferente e, portanto, ao estudo dos territórios do intelecto denominamos aqui: geografia do pensamento (MACHADO, 2009, p. 11-15). Nos campos de consistência do ente da razão há um emaranhado de planos ou territórios. Tais planos foram desbravados quando, de suas inaugurações, em seguida, seus limites, foram estabelecidos, suas características climáticas, seus percursos, seus centros e códigos normativos. Assim, podemos pensar o território da ciência natural como um grande continente dentro do qual outros territórios se posicionam. A física, a química e a biologia seriam exemplos de países dentro desse continente. Dentro da biologia, teríamos o estado da anatomia, de- 100 pois, o município da fisiologia, o bairro da endocrinologia, e assim por diante. Entretanto, diferentemente dos mapas cartográficos onde os territórios se posicionam sempre lado a lado, os territórios no ente da razão ficam entrelaçados, em uma composição intrincada e complexa. Desse modo, o território da endocrinologia pode se relacionar com o da química orgânica ou até mesmo o da psicologia comportamental – essa sobreposição de planos ou platôs vem a ser denominada planitude (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 59). A partir disso, alguém poderia dizer que a metáfora por meio do território e da geografia é ineficaz, já que o posicionamento dos territórios no mundo do pensamento não segue a lógica de uma cartografia planisférica. Mas, se observarmos em uma análise detida, poderemos constatar que também na geografia os territórios não se posicionam lado a lado exclusivamente. O mapa cartográfico é apenas um meio de estruturação do estudo da geografia. Em adição, a geografia estuda os recursos naturais, a orientação política, a cultura, a inclinação religiosa etc. A Caxemira é um território dentro da Índia, porém em interlocução direta com o oriente-médio e as tradições islâmicas; a Itália penetra o Brasil por meio de suas colônias nas regiões sul e sudeste; o Panamá está mais próximo dos Estados Unidos do que Cuba, quando o assunto é orientação política e mercantil. E o mesmo ocorre em nível pessoal: eu posso estar no meio do estado de São Paulo, mas contaminado por um modo de viver, por uma afetividade, por um olhar de uma localidade longínqua em termos de cartografia. Nietzsche em sua Segunda Consideração Intempestiva apresenta uma reflexão que pode nos auxiliar neste ponto. O filósofo denuncia certos vícios do historicismo e aponta três modos de se fazer história: 1) monumental – tende a ver o passado como um conto de grandes heróis da virtude e da sabedoria, colocando-os em patamares inalcançáveis: esse modo acabaria apenas por produzir frustração e descontentamento por nunca, no presente, reconhecermos o mesmo heroísmo; 2) historicismo-antiquário – olha para o passado como um construtor de valores e padrões a serem respeitados, portanto, um passado que produz tradição e cultura, ou seja, um passado engessador, duro, que não permite o devir; e 3) modo crítico – esse é o modo proposto por Nietzsche, que deveria agenciar arte e ciência em uma produção estética da história. Para Nietzsche toda história é uma ficção: já que não é possível se debruçar objetivamente sobre o passado, qualquer narrativa sobre ele é uma construção, um produto da mentalidade. De modo que não é o presente consequência do passado, senão o contrário, o passado consequência do presente. É o nosso entendimento paradigmático sobre o passado que o define – desse modo, a história deveria assumir seu posicionamento estético, como campo do saber em conjugação com o da criação. Para o filósofo, isso seria fundamental na instauração do estado dionisíaco (NIETZSCHE, 2003, p. 6-13). De certo modo, a história estética de Nietzsche se agencia com a geografia do pensamento, integram o ente da razão: a primeira como um projeto de revolvimento que envolve imersão criativa e emersão narrativa, e a segunda como uma rede de contaminação por lateralidade e vizinhança em uma superfície. No território de saber da música, essas relações ocorrem de maneira análoga. Temos também uma geografia de planitude onde ter- ritórios se intercomunicam a todo momento. Os territórios musicais podem ser categorizados quanto ao estilo ou gênero: barroco tardio, free jazz, maxixe; ou por disciplinas do saber: harmonia, regência, arranjo; há territórios-instrumentos: viola caipira, oboé do amor, bateria; há territórios-pessoas: Beethoven, Miles Davis, Chiquinha Gonzaga; territórios de pesquisa: sonologia, musicologia, etnomusicologia. E ainda outros em sucessão. E é claro que todos esses territórios terão subdivisões em primeira, segunda e terceira ordem – harmonia, harmonia tradicional, baixo de Alberti. O campo do saber musical já é notoriamente reconhecido como um campo estético, portanto um campo de criação e transformação. Consideremos, com isso, preponderante refletirmos sobre nosso comportamento diante das territorialidades, sobre como nos posicionamos, se estamos em movimento e em que velocidade, se traçamos pontes para a intercomunicação de territórios, se percorremos linhas de fuga. Para tanto, é importante estabelecer três principais posições dentro de um território: 1) centro; 2) periferia; e 3) fronteira. Em uma concepção rizomática de planitude não existe de fato um centro absoluto nos territórios, não existe um centro real de identidade, mas existe um posicionar-se ao centro, um fazer ressoar com o centro, ou em função de um centro (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 194). No centro se encontram reunidas as principais categorias ou características que compõem o território, ou seja, o território paradigmático, ou o lugar comum – o território do rock tem como características centrais os pulsos quaternários, as guitarras elétricas, a bateria com alternância entre bumbo e caixa, o vocalista masculino com voz levemente rasgada e uma temática de rebeldia. As diversas periferias que qualquer território terá são localidades com desvios do centro, isso 101 ocorrerá tanto por apresentar características não convencionais, como por não apresentar as características convencionais – uma banda de rock com uma cantora lírica, ou com flautas e violino, ou um rock ternário. Estar na fronteira, por sua vez, não consiste de fato em estar em um determinado território, a posição de fronteira é uma posição limítrofe, onde se conjugam dois ou mais territórios. Nessas condições será difícil estabelecer um consenso sobre qual é o território: uns dirão jazz, outros rock progressivo, outros fusion. A fronteira é a morada do mago: “ Os feiticeiros sempre tiveram a posição anômala, na fronteira dos campos e dos bosques. Eles assombram as fronteiras. Eles se encontram na borda do vilarejo, ou entre dois vilarejos. O importante é sua afinidade com a aliança, com o pacto, que lhes é um estatuto oposto ao da filiação. Com o anômalo, a relação é de aliança (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 28). O anômalo busca as fronteiras e seu estatuto é o da aliança. Um estatuto que visa passar linhas de fuga e, como em uma espiraloide, mover-se de maneira centrífuga, afastando-se do centro. O estatuto da filiação é centralizador, círculo fechado, centrípeto: ele conduz seus adeptos para o padrão majoritário e vazio que é o lugar comum. É o estatuto da filiação o responsável por uma sociedade patriarcal, falicista, por uma cultura de tradição, família e propriedade, por um mundo que cultua livros sagrados e tecnocracia. Em face disso, diferenciamos aqui o papel do agente da cultura e o agente da arte. O primeiro é filiado a uma tradição, a um território, procura sem descanso seu centro, 102 sua mais pura maneira de se expressar. O segundo é aliado dos ventos e das correntezas, não reconhece centros nem certos, estabelece moradas temporárias na fronteira de reinos e, em momentos de genialidade, cria territórios completamente novos. Messiaen habitou em momentos a tríplice fronteira entre as ragas, o canto dos pássaros e o cristianismo. “ A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso já diz o suficiente para o materialista histórico. Todos os que até agora venceram participam do cortejo triunfal, que os dominadores de hoje conduzem por sobre os corpos dos que hoje estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo triunfal, como de praxe. Eles são chamados de bens culturais (BENJAMIN, 2014, p. 244). O conceito de fosforescência nos conduz a uma espécie de geologia do pensamento. Aqui já não abordaremos o conceito de território no ente da razão como produto da mentalidade humana para fora dela, mas buscaremos por uma ontologia do pensamento criativo, na confecção do próprio ser. Por definição, fosforescência é a propriedade de brilhar na obscuridade. A emissão luminosa nessas condições se deve produzir sem calor sensível e, para se caracterizar como tal, a luminescência deve persistir por um tempo superior a 10-8 segundos após a remoção da fonte de excitação. Portanto, é uma energia que permanece, é um brilho de resistência. Para empreender essa abordagem no sentido de estabelecer uma estética da fosforescência, iremos nos valer da reflexão de três pensadores: Bergson, Benjamin e Deleuze. É importante deixar claro, entretanto, que o conceito como entendemos aqui somente aparece de forma clara e definida na obra de Gilles Deleuze. As ideias exploradas em Matéria e Memória, de Bergson (1896), e em Sobre o Conceito de História, de Benjamin (1940), apresentam embriões ou brotamentos do que vem a ser a estética da fosforescência. Essa abordagem que partirá de Bergson e de Benjamin para depois alcançar Deleuze acaba sendo uma espécie de genealogia do entendimento sobre a fosforescência no campo da ontologia. Henri Bergson faz uso dessa terminologia em Matéria e Memória, basicamente, como o próprio subtítulo diz, um Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Ao longo de todo o texto, o autor estabelece comparativos entre duas correntes de orientação do pensamento: o idealismo e o realismo. O foco do texto é uma discussão sobre o funcionamento da percepção, portanto, nesse campo3, a diferença entre idealismo e realismo se dá pelo fato de que, no primeiro, a verdade existe no mundo das ideias e o corpo e a matéria apresentariam indícios, muitas vezes vacilantes, que devem ser utilizados com cuidado e sob o crivo da correção intelectual; já no segundo, as ideias, pensamentos, seres são apenas produtos da materialidade e criados a partir dela. Imbuído nessa dicotomia, ele insere o conceito de fosforescência: “ Uns veem em nossa percepção consciente uma fosforescência que segue esses movimentos e lhes ilumina o traçado; outros desenvolvem nossas percepções numa consciência que exprime sem cessar, à sua maneira, os estímulos moleculares da substância cortical (BERGSON, 1999, p. 22). É como se os estímulos da matéria na sensibilidade pudessem produzir tamanha impressão que os rastros luminescentes não se apagassem instantaneamente como a sucessão ininterrupta da natureza opera. O que pretendemos afirmar é que cada evento na vida ocorre em um momento único e efêmero, não chega a durar nem mesmo uma fração de segundo, mas não vivemos os eventos em si, e, sim, experimentamos sua fosforescência, o presente enquanto duração (primeira síntese do tempo). Bergson continua nos seguintes termos: “ É verdade que se fingirá não dar nenhuma importância a essa representação, vendo nela uma fosforescência que as vibrações cerebrais deixaram atrás de si: como se a substância cerebral, as vibrações cerebrais, inseridas nas imagens que compõem essa representação, pudessem ser de natureza diferente delas! Todo realismo fará portanto da percepção um acidente, e por isso mesmo um mistério (Ibid., p. 23). É como se o cérebro funcionasse de modo semelhante ao fundo do oceano onde uma coletividade de lulas, águas-vivas e outros seres bioluminescentes, ao se reunirem, provocassem o aparecimento de ritmos de brilhos com durações diversas. Nessa pers- 3. E nessa literatura a questão é mais um confronto entre empiristas e racionalistas, até porque Bergson parte da visão de Berkeley acerca do idealismo. 103 pectiva bergsoniana, produz-se o entendimento de que a natureza afetaria a todos os seres vivos e os mecanismos de percepção seriam, assim, como que mecanismos de duração. Se algo muda ao nosso redor, a percepção vai valorar o peso dessa mudança e reagir por fosforescência: quanto mais importante o evento, no sentido da ação e da afecção, maior a duração (Ibid., p. 29). Na percepção-memória de um peixe ou de um réptil haverá uma gama de imagens de curta duração que vão sempre demandar rotas de fuga, planos de caça, busca de abrigo etc. Mas na percepção-memória humana haverá um rico campo de sobreposições, durações das mais ligeiras até as milenares, uma sobreposição de agoras, uma crise de velocidades. Para Bergson, as sensações seriam como fosforescências deixadas pelas modificações provocadas pelo mundo, e caberia a nós produzir meios de tradução da linguagem da matéria para a linguagem da alma, ou do entendimento (Ibid., p. 250). Em continuação, para dar outra dimensão nessa genealogia, trazemos para a discussão o texto intitulado Sobre o Conceito de História (2014), de Walter Benjamin. Esse pequeno texto, com dezoito aforismos e dois apêndices, foi escrito no ano da morte de Benjamin (1940) e causa polêmicas até os dias de hoje. Alguns críticos consideram como o texto mais revolucionário desde os escritos de Marx, e outros apontam um retrocesso no próprio pensamento benjaminiano. As polêmicas se dão pelo fato de o autor propor um jeito de se pensar história completamente inédito, talvez uma história fosforescente. Na verdade, o autor usa a palavra reminiscência, que aqui tratarei como semelhante. Para Benjamin, o tempo não é vazio e 4. Tempo de agora. 104 homogêneo como concebido por Kant no fim do século XVIII. Em face disso, estabelece uma argumentação contra a ideia de linha do tempo ou de história teleológica que acaba por condenar todos os discursos de progresso e desenvolvimento: “A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de seu andamento no interior de um tempo vazio e homogêneo” (BENJAMIN, 2014, p. 249). O autor fala de Jetztzeit4, um tempo preenchido de agora, cheio e heterogêneo. Como em uma superposição de durações: “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de tempo de agora (Ibid., p. 249)”. Somente existe o agora (ou agoras), que é preenchido de muitos tempos que duram, formando um rizoma de durações. Alguns eventos duram dez, outros cem, outros mil anos. E vivemos, no dia a dia, uma porção de agoras diferentes. Eu posso dizer: agora estou divorciado – esse é uma agora que dura cinco anos; ou, agora pratico esportes – esse é um agora de cinco meses; ou ainda, agora estou com fome – um agora de cinco minutos. O mesmo ocorre em nível de história: agora vivemos uma crise no presidencialismo brasileiro (agora de poucos meses); agora o Brasil é uma república (agora desde 1889); agora o Brasil é uma nação independente (agora desde 1822); agora esse lugar se chama Brasil (agora desde 1507). Como aponta Benjamin, os agoras duram conforme dita a classe dominante. É muito importante para os dominadores terem o controle sobre a narrativa histórica para posicionarem seus triunfos sobre as mazelas dos outros. Estudar história de maneira crítica exige dar um “salto de tigre” sobre essa planitude de durações, porém quem comanda essa arena é a classe dominante: “ Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma ideia de como o tempo passado é vivido na reminiscência (Ibid., p. 252). Semelhante à percepção de Bergson, que se dá pela sobreposição de planos de duração que se estabelecem conforme seus graus de importância, a história de um tempo heterogêneo de Benjamin se dá pela sobreposição de tempos de agora que tem suas durações também marcadas pelos graus de importância. A fosforescência da sensibilidade de Bergson opera no microcosmo da percepção, nas relações corticais, na memória pessoal. A reminiscência na história de jetztzeit de Benjamin opera no macrocosmo das memórias sociais. Ora, até aqui apresentamos uma fosforescência da percepção (Bergson) e uma fosforescência histórica (Benjamin), mas é por meio de apontamentos de Gilles Deleuze que alcançaremos uma ontologia fosforescente. No apêndice publicado junto à Lógica do Sentido (1969) intitulado Michel Tournier e o Mundo sem Outrem, o filósofo estabelece uma reflexão crítica acerca da produção literária do contista e romancista francês. Em especial, a análise se dedica ao romance chamado Sexta-feira ou os limbos do Pacífico5 (1967) e em como se dá a relação de alteridade na obra. Para Deleuze, não se trata de uma tese sobre a perversão, mas de um romance que desenvolve a tese de seu personagem central “Robinson: o homem sem outrem em sua ilha” (DELEUZE, 2009, p. 314). No desenvolvimento de suas argumentações, o filósofo estabelece uma dicotomia entre o outrem e o eu que alcança o seguinte enunciado: “ Se outrem é o mundo possível, eu sou o mundo passado. E todo o erro das teorias do conhecimento é o de postular a contemporaneidade do sujeito e do objeto, enquanto que um não se constitui a não ser pelo aniquilamento do outro. Ora, o sujeito e o objeto não podem coexistir, uma vez que são a mesma coisa, primeiro integrado ao mundo real, depois jogado fora como rebotalho (Ibid., p. 320). Aqui notamos uma contundente denúncia a respeito de grande parte da epistemologia na tradição do pensamento ocidental. Tanto a teoria do entendimento em Kant como a fenomenologia de Husserl, dois dos mais influentes projetos epistemológicos, apresentam a relação do sujeito com o objeto em contemporaneidade, ou seja, em um só momento o sujeito experimenta o objeto por meio da manifestação fenomênica. Em outras palavras, João, o sujeito, experimenta o sabor do sorvete, o objeto: e em nossa mentalidade sempre ambos coexistem. O senso comum do entendimento sobre o que é a vida nos diz que se trata do desenvolvimento de um sujeito diante de uma série de fenômenos que vão coexistindo com ele em justaposição: num primeiro momento um sujeito experimenta o sorvete; num segundo momento o mesmo sujeito experimenta uma aula de literatura; num terceiro momento, uma viagem em um 5. Tradução livre do original em francês: Vendredi ou leslimbesdu Paciique. 105 ônibus super lotado... Porém, Deleuze nos diz que um só existe quando da aniquilação do outro, ou seja, que o sujeito somente existe a partir da aniquilação do objeto. De modo que os objetos, o outrem, compõem a coletividade de forças que integram o mundo real – no presente somente existe objeto. Quando determinada força é aniquilada, ou seja, deixa de existir, torna-se passado; a intensidade da impressão que ela produziu será determinante na escolha do uso de seu rebotalho para a confecção do ser – “eu sou o mundo passado” (Ibid., p. 320). Então, no presente, apenas existe objeto, enquanto que, no passado, apenas existe sujeito. Assim, a vida passa a ser uma fenda de atravessamentos, alguns desses atravessamentos são tão pregnantes que acabam por se colarem nas bordas da fenda. A costura que se realiza com esses vetores que deixaram rastros compõe aqui o que chamamos ser ou eu. Com essa mudança na orientação do pensamento, o ser deixa de se apresentar como uma figura de luz que projeta seu entendimento sobre as coisas. Agora ele é consequência da força das coisas em si, ou como diz o próprio Deleuze: “A consciência deixa de ser uma luz sobre os objetos para se tornar uma fosforescência das coisas em si” (Ibid., p. 321). Desse modo, aquilo que chamamos ‘nossa natureza’, ‘personalidade’, ‘ego’, ‘meu jeito de ser’, é, afinal, um brilho que resiste, uma luminescência que sobra, melhor dizendo: vários brilhos e luminescências de intensidades e durações diferentes. Somos a fosforescência das coisas que eram, que nos atravessaram. Em uma concepção ontológica, a fosforescência não é o inconsciente, não é a memória pessoal, não são os traumas de infância. A fosforescência são os acontecimentos que nos atravessaram, ou seja, o brilho das coisas em si, já aniquiladas e 106 presentes como rebotalho. O ser vem a ser a fosforescência das coisas. Ora, se existe uma fosforescência na percepção que se dá pelo grau de importância que determinado acontecimento recebe, e, do mesmo modo, na história e na composição do ser, é urgente que reflitamos sobre o que determina as importâncias e os graus de importância. Na percepção, Bergson nos fala do estado de preservação: o medo de ser aniquilado ou ferido pela natureza faz com que todos os seres providos de sistema sensório-motor desenvolvam sua percepção em função da sobrevivência. Na história, Benjamin nos fala que o controle sobre a narrativa dos planos de agoras é exercido pela classe dominante, que, evidentemente, é conservadora e busca a preservação do status quo. No campo ontológico ocorre de forma análoga: os acontecimentos de maior importância são aqueles que são poderosos na construção do sujeito, da sua identidade, da sua afirmação e do seu discurso. E isso se dá também no sentido da preservação, aqui no campo psicossocial, pois o sujeito sem identidade e narrativas bem costuradas teme o esquizo. Entretanto, é possível pensar uma fosforescência pró-esquizoide, ou esquizosintética. Costurar com os brilhos da fosforescência não em função do medo, da preservação e da estagnação, mas, de outro modo, em função do novo, do arriscado, do inédito. Uma percepção-história-ser cunhada a partir do medo vive em função do utilitarismo, no nível mais baixo de humanidade, aquele que Espinoza chamou de ‘consciência’. Mas uma percepção-história-ser construída a partir do desejo abandona o mundo do útil e vai para o mundo da arte e da contemplação, o mundo onde a dicotomia universal-individual é de- finitivamente ampliada pelas pré-individualidades, as mônadas, os átomos. Desse modo, temos uma patente oposição nos modos de orientação do pensamento quando focamos o campo da estética. Uma é a lógica da interpretação, que parte de um sujeito que existe em contemporaneidade aos objetos e, como ser de luz e claridade, julga as obras, peças, canções, textos a partir de sua de mármore identidade consciente. A outra é a lógica da experimentação, operada por sujeitos que sabem não passar de fantasmas, ecos de reminiscências passadas e que buscam na realidade agoral dos objetos novos encontros, novas imersões e emersões: suas identidades são como a murta, esquizosintéticas, mutantes. “ ...a experimentação substitui a interpretação; o inconsciente tornado molecular, não figurativo e não simbólico, é dado enquanto tal às micropercepções; o desejo investe diretamente o campo perceptível onde o imperceptível aparece como o objeto do próprio desejo, ‘o não figurativo do desejo’ ... o inconsciente está para ser feito e não para ser reencontrado (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 78-79). Assim, podemos alcançar o enunciado de que a forma de operação dos agentes da cultura tem por orientação a lógica da interpretação; enquanto que a forma de operação dos agentes da arte é orientada pela lógica da experimentação. A luta dos primeiros é a da resistência, e a dos segundos a da insistência. Permanência X movimento; duração X mutação… A estética da fosforescência consiste de nunca apreciar uma obra de arte sob a lógica da interpretação – para interpretar é necessário que exista um sujeito contemporâneo ao objeto observado. O que se propõe aqui é a lógica da experimentação: viva apenas o atravessamento do objeto; experimente suas intensidades e velocidades, suas afecções. Quando o objeto se aniquilar, tornar-se passado, faça uso de suas potências fosforescentes na confecção do seu ser metamorfo. Tudo isso motivado pelo fluxo dos desejos que se agenciam em suas composições sempre intensivas e ampliativas. “ O espírito não é sujeito, ele está sujeito (DELEUZE, 2012, p. 22). 107 Isentão, isentão Bruno Ishisaki 108 109 110 111 112 [Terreiro de Umbanda] Ensaio Fotográfico Melissa Rahal Agradeço a todos os membros do Terreiro de Umbanda “Pai João das Almas e Cacique Pena Dourada”, em especial ao Pai Cristiano e à Mãe Dayse, pela acolhida em sua casa. Axé! Sempre quis fotografar terreiros. As religiões de matriz africana por diversos momentos me fascinaram pelos seus ritos, seu tempo e também pela marginalização que lhes é imposta. A fé intriga. –Você tem que fotografar cachorro, Dona Moça! – Cachorro? – É, Exu está mandando você fotografar cachorro. O jogo foi encerrado. E lá fui eu, não muito animada confesso, em busca de peludos fotogênicos para serem meus modelos. Mapeei cães em potencial e comecei a abordagem de seus proprietários. Assim se seguiram algumas tentativas frustradas, até que me lembrei de um amigo adestrador. Bingo! Ele se prontificou a me ajudar na hora. – Obrigada pela ajuda! O que você tem no pescoço? É uma guia? – É sim. Agora também sou pai de santo. – Ah, será que eu poderia fotografar seu terreiro? – Claro, você é minha convidada! Fascínio e curiosidade me acompanharam em todas as fotos. Por vários dias, fui ao terreiro. Conversei com todos trabalhadores da casa que me contaram sobre suas experiências, a forma como incorporam, a força da religião em suas vidas. Foi a mim permitido vivenciar de forma muito íntima a Gira: a entrega dos cavalos às entidades, o respeito aos preceitos e tabus, o carinho dos pretos e das pretas velhas, ceras de vela que não queimam a pele, cachaça que não embebeda, a resistência de uma religião que sobrevive por meio da oralidade ao longo de anos. O grande desafio, quando se fotografa a espiritualidade, a fé, é que se trata de algo imaterial, uma sensação, que somente pode ser atingida de forma indireta nas fotos, e a sua leitura é necessariamente acompanhada de todo o arcabouço histórico e social daqueles que as leem. A produção do olhar, nesse caso, extrapola ao controle e à intencionalidade do fotógrafo. Muitas vezes, aquilo que de início se persegue como projeto escapa e se modifica, cresce e se envereda por outros caminhos. O jogo começou. – Você tem que fotografar teatro, Dona Moça! – Teatro? – Isso, teatro. Há tempos, já tinha esquecido os cães. 1 113 13 114 114 1 115 15 116 116 1 117 17 118 119