ABATE
#3
editorial
Segundo uma tradição medieval, os poetas irlandeses
protegiam as plantações recitando versos nos lugares infestados por roedores: esses poetas “rimavam os ratos até a morte”. Vivemos hoje uma proliferação de ratos mutantes, trans
-específicos, que abandonaram a condição de animais que
subtraem pequenos nacos dos nossos celeiros, às escondidas,
para se metamorfosearem em megaburocratas, políticos empreendedores, que abocanham toda a colheita e já nem naco
querem nos deixar. A arte e a cultura são sempre os primeiros
a sentirem os efeitos desses roedores, o que tem sido visto
pelas tentativas de censura e pelo desmonte dos programas de
fomento e das leis de incentivo direto.
Enquanto esta revista foi editada, as populações de diversos países do mundo voltam, com maior intensidade, a
flertar com o fascismo e com a vida fascista. No Brasil, da
mesma forma isso parece saltar aos olhos. A seleção dos textos e imagens que compõem esta edição foi feita, como um
revide simbólico, numa tentativa de rimar os ratos até a morte, sejam os ratos que cultivamos no peito ou esses, tão numerosos, que infestam tudo o que floresce a nossa volta.
3
sumário
Parque Santos Dumont (SJC) ou
onde os fracos não têm vez
Pedro Machado
Edital de Tretas
Boi
6
30
Excertos-Cidade
15
38
O Olhar Fora do Eixo de Célia Barros:
curadoria + artistas + contexto artístico
no Vale do Paraíba
Federica Giovanna Fochesato
Carolina Bonfim
Glossário Chinês
(ou MAMÉM ou MAMU-TE)
Boi, Juniokio, Marucs e Pedrito
Abate entrevista
Edgard de Assis Carvalho
Marco Antônio Machado,
Marcus Groza e Pedro Machado
16
24
52
Terra de Siena e Verde Cacto
60
Gentrificação rural, o êxodo urbano e
a valorização dos modos de vida do
mantiqueirense: algumas reflexões
a partir do MuMan - Museu da
Mantiqueira
Marcus Groza
Diana Poepcke
O Choro do Gigante
Mario Nunes
4
29
68
Pirlimpimpim
Cristiane Credidio
Expediente
REVISTA ABATE #3
Da impossibilidade da
arte de protesto
76
Bruno Ishisaki
A Gravidade é o
Mistério do Corpo
82
90
Yuri Moraes
Cultura: posologia
e modo de usar
92
Bruno Ishisaki
[Terreiro de Umbanda]
Melissa Rahal
Bruno Ishisaki
brunoyukio@gmail.com
Marco Antônio Machado
m.a.crispim.machado@gmail.com
Marcus Groza
DESIGNER
REVISORES
Mariana Rosa
AUTORES
98
Marco Antônio Machado
isentão, isentão
EDITORES
Rodolfo Angeli
Oswaldo Almeida
Geografia do Pensamento Musical
e Estética da Fosforescência
COORDENADOR EDITORIAL
Marco Antônio Machado
Leticia Kamada
Evaristo Costa salva
o dia novamente
ProacSP - Incentivo à Cultura
do Estado de São Paulo 2017
108
112
Bruno Ishisaki
Carolina Bonfim
Cristiane Credidio
Diana Poepcke
Federica Giovanna Fochesato
Leticia Kamada
Marco Antônio Machado
Marcus Groza
Mario Nunes
Melissa Rahal
Oswaldo Almeida
Pedro Machado
Yuri Moraes
ISSN 2447-5521
1000 exemplares.
Distribuição gratuita.
abate.contato@gmail.com
5
Parque
Santos-Dumont (SJC)
ou onde os fracos
não têm vez
Pedro Machado
6
A história se repete, a primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa.
MARX, K. - Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, 1852.
As Bandeiras foram expedições particulares criadas a partir do século XVI, partindo do
que hoje conhecemos pelo estado São Paulo com destino a diversas regiões do Brasil; apaixonados pelo poder, atrás de minerais preciosos (prospectoras) e índios - os negros da terra - para
escravizá-los (apressadoras) ou simplesmente exterminá-los (de sertanismo de contrato).
Já no final do século XIX, foram miticizados de tal maneira a representar uma suposta
força e bravura do povo paulista, criando heróis que teriam promovido a integração nacional.
Durante a revolução de 1932, o mito já estava consolidado.
É possível conhecer um povo pelos seus heróis.
xxx
Teria Adão inventado o nome de cada criatura da Terra ou se tratava apenas de uma
questão de pronuncia?
Um olhar de rabo de olho para os logradouros, principalmente os do estado de São Paulo, e se pode perceber a importância dada aos Bandeirantes.
São José dos Campos os homenageia em seu Brasão.
Para a canalha do bairro Esplanada, em São José dos Campos¹, há lei específica para que
se explicite nas placas de identificação das ruas, dentre a canalha, alguns daqueles que eram
“Bandeirantes” ou “desbravadores do sertão”.
Por bipolaridade ou síndrome de Estocolmo, homenageia-se a Domingos Jorge Velho,
a quem se atribui a derrocada de Palmares, da mesma maneira que se homenageia, com um dia
específico, Zumbi, líder de Palmares morto um ano depois de empreender fuga do Bandeirante.
xxx
Zumbi, do Quimbundo, pode ser entendido como espírito, alma de pessoa morta. Assim
como uma profecia, mais de mil famílias que foram violentamente expulsas de uma ocupação
urbana no ano de 2012, em São José dos Campos, após intensas disputas, hoje vivem no bairro
chamado Pinheirinho dos Palmares.
Estratégia parecida com a de Domingos Jorge Velho, cercando Palmares para isolá-la e
enfraquecê-la; no ano de 2004, um vereador (que possui 17 projetos que alteram logradouros e
outros 24 destinados à companhia de energia elétrica EDP Bandeirante), na tentativa de enfraquecer a ocupação Pinheirinho, tem projeto de lei que visa privar os direitos sociais de quem
participasse de ocupações aprovado².
1. No brasão da cidade, criado em 1926, recorda-se dos “desbravadores em terras de São José no século XVI” com “uma
panóplia bandeirante, arcabuz, espada, machado e bandeira, tudo de sua cor”.
2. A lei Municipal Nº 6.539, de 26/03/2004, icou popularmente conhecida como “Lei da Fome”. Não entrou em vigor pelo seu
caráter inconstitucional.
7
xxx
A Operação Bandeirante (OBAN) foi criada em São Paulo no ano de 1969, sem institucionalização formal ou jurídica – clandestina –, como plano de combate ao que convenia aos
simpáticos do regime militar vigente, denominar terrorismo. Criou as bases para os futuros
Centros de Operações de Defesa Interna e os Destacamentos de Operações de Informações
(DOI-CODIs). Patrocinado pelo setor privado, dentre eles a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), contou com brutais torturadores: “quando venho para a OBAN,
deixo o coração em casa”, e teve como suas vítimas Wanda, integrante da Vanguarda Armada
Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e futura presidente do Brasil – que acabou sofrendo processo de impeachment apoiado por parte do empresariado, inclusive a Fiesp: “As marcas da tortura sou eu” (2011).
Frei Tito de Alencar Lima foi outra vítima da “sucursal do inferno”. Debilitado pelas
constantes torturas, ainda nas dependências da OBAN tenta suicídio altruísta, de maneira que
seu corpo, marca da tortura, evitasse outras mais. Logrou atenção dos direitos humanos ao
escrever as práticas que presenciara. Deportou-se em 1971 para Roma. Seguiu tendo alucinações com seus torturadores até, ao que se suspeita, enforcar-se em 1974, na França. Com
vestimentas vermelhas, Dom Paulo Evaristo Arns celebrou, no Brasil, missa de corpo presente
ao mártir Frei Tito.
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No ano de 1965, o chamado “primeiro presidente” da mesma ditadura militar que viria
a legitimar a OBAN autorizou o desenvolvimento de um avião brasileiro pelo Centro Técnico
Aeroespacial (CTA), localizado em São José dos Campos.
O projeto arquitetônico do ITA/CTA, por sinal, é de Oscar Niemeyer – apesar de este não
poder estar à frente do projeto, já que era sabidamente comunista e não queriam associar seu
nome à Aeronáutica. Curiosamente, o mesmo Niemeyer projetou diversos edifícios de Brasília3,
cidade que vista de cima tem o formato de um avião – apesar de Lucio Costa, responsável pelo
plano piloto da cidade, dizer que se trata de uma cruz4.
Quatro anos após o início do desenvolvimento do avião brasileiro, criou-se na mesma
cidade a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) para a produção em série deste modelo,
batizado de Bandeirante.
3. Brasília também se torna o nome de um avião fabricado pela Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) na década
de 1980.
4. Lucio Costa preferia dizer que a cidade se assemelhava a uma libélula. Também é curioso que o modelo Demoiselle, sabidamente o melhor avião criado por Alberto Santos Dumont, também era conhecido como Libelulle.
8
Placa com os dizeres “Aqui será fabricado o BANDEIRANTE”, alterada para “Aqui é fabricado o BANDEIRANTE”.
Logo atrás, a torre com o logotipo da Embraer. Fonte: www.defesanet..com.br
xxx
Certos grupos de joseenses acreditam que Alberto Santos Dumont (ASD), um dos pioneiros da aviação, teria profetizado a criação do ITA/CTA em São José dos Campos:
É tempo, talvez, de se instalar uma escola [voltada à aviação] de verdade em
um campo adequado. Não é difícil encontrá-lo no Brasil. Nós possuímos, para
isso, excelentes regiões, planas e extensas, favorecidas por ótimas condições
atmosféricas. [...] Margeando a linha da Central do Brasil, especialmente nas
imediações de Mogi das Cruzes, avistam-se campos que me parecem bons.
(SANTOS DUMONT, 1918)
Não passa, porém, de artifício vulgar e desonesto com vistas a legitimar uma vocação para
a cidade, já que é ocultada da reflexão de ASD passagens como “[...] o nosso governo possui, a
duas horas do Rio de Janeiro, o esplêndido e vasto campo de Santa Cruz, perto de duas léguas
quadradas, absolutamente planas. [...]” ou “o campo de remonta do exército, no Rio Grande do
Sul, deve ser ideal [para a construção da escola de aviação]” (SANTOS DUMONT, 1918).
9
No mesmo livro em que encontramos as citações acima, ASD comenta que, dentre as
diversas felicitações que recebera acerca de seus feitos, uma em particular considerava mais preciosa. Trata-se de uma foto com os cumprimentos de Thomas Edison: “To Santos-Dumont, pioneer of aerial navigation, Thomas Edison”, traduzida como: “A Santos Dumont, o bandeirante
dos ares, homenagem de Thomas Edison”. Custa acreditar que ASD tenha traduzido “pioneiro”
como “Bandeirante”5. Poderia ele estar sob influência do mito Bandeirante em construção, mas
é mais provável que seja uma simples distorção de edição/tradução para fortalecer o mito do
Bandeirante, como mencionado anteriormente.
Nesse sentido, no hino do aviador, que pode ser ouvido no dia do aviador, celebrado anualmente na mesma data em que ASD voou com seu 14 Bis – 23 de outubro, vemos como a ideia
do Bandeirante associou-se à aeronáutica brasileira, com versos que se exalta os “Bandeirantes
audazes do azul”.
xxx
Santos Dumont teve a mesma morte de Frei Tito, não na França, país que sediou as invenções mais significativas do aviador, mas pendurado no chuveiro de um hotel em Guarujá.
Sua certidão de óbito permanece desaparecida por 23 anos, com vistas a criar um herói
sem fraquezas, ao ocultar seu suicídio. Assim consta no laudo necrológico: “Veste terno de casimira preta, gravata preta e calça botinas pretas. Não encontramos pelo corpo vestígio de lesão
traumática. A morte se deu por colapso cardíaco” – uma morte elegante.
Além de ter sua certidão de óbito ocultada, roubaram-lhe o coração na autópsia, sendo
entregue 12 anos depois ao Ministério da Aeronáutica. Hoje, um Ícaro em bronze (logo um Ícaro, que buscava sua liberdade do labirinto que o aprisionava) sustenta, no museu da aeronáutica,
uma esfera com perfurações, simbolizando as estrelas do universo e dentro desta esfera, uma
outra, agora de cristal, conservando em formol o coração de Alberto Santos Dumont. Seria uma
espécie de troféu/recompensa bandeirante ou uma tradição de “deixar o coração em casa”?
xxx
Conforme citado no artigo publicado na segunda edição da revista ABATE, São José dos
Campos criou suas bases (infraestrutura, economia, mão de obra etc.) na fragilidade da doença
do peito. Em 1924, é inaugurado o sanatório Vicentina Aranha, projetado pelo escritório de
Francisco de Paula Ramos de Azevedo6 e de execução sob supervisão do engenheiro Augusto
de Toledo, que se torna o maior da América Latina para o tratamento da tuberculose e se faz
símbolo da fase sanatorial da cidade.
A partir da década de 1940, a penicilina faz o tratamento da tuberculose passar a ser
ambulatorial. Dessa maneira, os estabelecidos da cidade precisam encontrar alternativas para a
sua economia.
5. Até a publicação desse texto, não tive acesso às primeiras edições do livro para veriicar essa suspeita. Não viso, dessa maneira, ocultar qualquer fraqueza ou vulnerabilidade de Santos-Dumont. Apenas evidenciar o que parece mais obvio.
6. Não encontramos, porém, o sanatório no portfólio de Ramos de Azevedo, talvez por não querer associar seu nome à doença.
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xxx
Alberto Santos Dumont é a segunda personalidade que mais dá nome a logradouros no
Brasil, ficando atrás apenas de Tiradentes (aquele retratado com semelhança física à retratação
de Jesus Cristo).
Em São José dos Campos, além de avenidas, viadutos, centro acadêmico (ITA), hospitais, escolas, estabelecimentos comerciais etc., Santos Dumont também é nome de um belo
parque localizado em área nobre da cidade.
Construído em 1971 sobre as ruínas do sanatório Ezra (voltado ao tratamento da tuberculose), o parque é mais um esforço para consolidar a cidade como polo tecnológico aeroespacial ao mesmo tempo em que apaga as fraquezas da doença que um dia abrigou:
Os joseenses desejam “esquecer” de modo definitivo esse período (sanatorial), orgulham-se de ter conseguido expulsar do centro as casas que recebiam
doentes, apreciam afirmar que a cidade se transformou de maneira radical e
que nada mais conserva das características anteriores.
(PMSJC, 1961 apud ALMEIDA, 2008, p. 178)
Apesar de esse parque servir a uma afirmação de força, é uma das últimas construções
onde se percebe o olhar conjunto da Politécnica e das Belas-Artes na cidade – encontramos, por
exemplo, projetos da década de 1950, com a arquitetura de Rino Levi, e projeto paisagístico
de Roberto Burle Marx na fazenda da Tecelagem Parahyba, hoje Parque da Cidade. Antes de
virar ruína, o mesmo sanatório Ezra, já desativado, abrigou em 1969 o Ateliê Livre de Pintura
do Conselho Municipal de Cultura. Este conselho, juntamente com a Escola de Belas Artes do
Vale do Paraíba (Instituto das Artes) são extintos por lei municipal no ano de 1970.
xxx
No parque Santos Dumont, uma réplica do 14-Bis repousa ao lado de um avião Bandeirante . À primeira vista, podem parecer apenas dois importantes aviões para a história brasileira, mas se tratam de objetos completamente diferentes: um vigia, o outro é vigiado. Em comum,
apenas a falta de coração. Um por tradição, outro por terem-no roubado.
7
7. Chamado de EMB-110 para que a fonética facilite sua divulgação e comercialização nos EUA.
11
12
jogo aqui não é uma picuinha de nomenclaturas. Mas um dos pilares de sustentação de nossa
mentalidade e, em virtude disso, do capitalismo mesmo.
O que vem a ser um trabalho não qualificado? Ora, exatamente um trabalho quantificado
– ou seja, primeiro unificado, depois igualizado e totalizado. E então dizemos: uma hora-aula
paga R$ 22,50. Mas aula de quem? Em que circunstâncias? Quais alunos? Qual equipamento
de apoio? Qual conteúdo? Matam-se as qualidades, as minúcias, os coloridos… é assim com a
hora-aula, como o piso e o teto salarial, com o salário mínimo, com o tempo mínimo de contribuição, com o acordo de classe, plano de carreira, participação nos lucros… tudo em um
processo de quantificação do trabalho não qualificado.
Bom, e o que seria a riqueza não qualificada? Justamente, a riqueza quantificada, primeiro unificada, depois igualizada e totalizada. Aí teremos uma manga por R$ 4,00. As riquezas
qualificadas de uma manga são seu cheiro, suas cores, seu sabor, suas potências nutritivas…
Mas para quantificar é necessário desqualificar: então ela passa a ter o mesmo valor que uma
passagem de ônibus, uma meia entrada num show no Sesc, ou dois dias de internet 4G no celular.
E o mais absurdo é que as grandes empresas, para serem convincentes na cobrança
homogênea de valores, criaram mecanismos internos para que a oferta dos produtos seja cada
vez mais homogênea também – se eu vou pagar R$ 10,00 num saco de cinco quilos de arroz, é
preciso que todos os sacos com cinco quilos de arroz do supermercado sejam quase iguais, já
que os R$ 10,00 são exatamente iguais – esse conjunto de mecanismos internos é chamado de
‘controle de qualidade’!!!
Temos na mentalidade o abandono e a subserviência da qualidade. E temos no uso da
linguagem um exercício político de esvaziamento de sentido do termo.
‘qualidade é melhor que quantidade’
‘controle de qualidade’
‘qualidade de vida’
‘pague mais caro para obter qualidade’
‘exame de qualificação’
Eu escrevi esse texto porque eu tô cansado de ficar escrevendo projeto para concorrer a
editais e ficar calculando quanto vale a hora do músico, do ator, do performer… tô um pouco
cansado de ver a arte subjugada por tantas quantificações e totalizações… tô um pouco cansado
de ver ‘artistas’ defenderem que temos que ser mais empreendedores, levantar dados, índices,
estatísticas… tô um pouco cansado.
13
dezoito quilos, metros, horas, hertz, volts, cavalos, graus,
plantações, cooperativas, sindicatos, trabalhadores, coletivos artísticos…
•
No âmbito da qualidade, o que há é diferença. Não existe
qualidade melhor ou pior, maior ou menor… o que existem
são qualidades diferentes: numa padaria há todo tipo de qualidades de pães, numa farmácia de drogas, numa orquestra
de timbres, numa corporação de falcatruas. Ainda que não
seja correto dizer que tal qualidade é melhor do que outra,
sim, é possível dizer que determinada qualidade me agrada
mais do que outra – mesmo assim é interessante observar
como nós sentimos dificuldades em dizer ‘gosto disso assim’
e, preferimos dizer ‘isso é melhor’2.
Na conjugação comparativa entre quantidade e qualidade o
que se estabelece em termos de senso comum é que a qualidade
seja melhor do que a quantidade (ouvimos isso o tempo todo). Mas
isso não passa de uma falácia: para estabelecer uma comparação e
determinar o que é melhor e o que é pior se faz necessário produzir
uma escala de valoração. Uma escala de valoração nada mais é do
que a consequência de processos de produção de unidades e igualdades que compõem a base do pensamento quantitativo. E claro,
em adição a isso, será feita a escolha parcial que determinará quais
elementos terão maior peso na avaliação. Para determinar que país
é melhor e que país é pior, eu posso escolher os índices do PIB, ou o
IDH, ou índices climáticos, de criminalidade… são escolhas sobre
um plano totalizador e igualizador.
O que estou afirmando é que quem diz ‘eu acho melhor
qualidade do que quantidade’ está dizendo em subtexto que ama a
quantidade, que apenas pensa em termos de totalização, unificação
e igualização, que nem sequer entende o sentido que se estabelece
aqui de qualidade/diferença. Ou, como já dissemos na edição de
número um da ABATE: “Se gostasse mesmo de qualidade iria gostar dos dois (qualidade e quantidade), já que qualidade é diferença.
Não sei se está ficando claro onde eu quero chegar, mas peço
ax leitxr que releia a citação de cabeçalho desse pequeno texto.
.
Leu?
Imagino que agora vocês possam entender que o que está em
2. Podemos estender também para a diiculdade de se dizer ‘eu concordo com isso’ em vez de ‘isso é verdade’.
14
O capitalismo se forma quando o fluxo de riqueza não qualificado encontra o fluxo de trabalho não qualificado e se conjuga
com ele (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 168).
Tipo assim, a nossa percepção e o nosso contato com o mundo natural não se dão diretamente com as coisas em si. Existe um afastamento da coisa, e esse afastamento se dá por
meio da produção da imagem da coisa; depois, há um segundo afastamento, que, por sua vez,
consuma-se na nomeação da coisa. Ou seja, o primeiro afastamento é da ordem da percepção,
e o segundo da conceitualização.
•
Ora, o mundo me impressiona por meio de um aroma – de fato, são infinitos os impulsos,
os detalhes e as minuciosas características moleculares envolvidas. Só que eu produzo
uma imagem, que é a da coisa, a coisa menos o que não me interessa1. Essa imagem
aromática passa por um novo afastamento que vem a ser o enquadramento dela em um
nome (conceito): cheiro de café. Esse segundo afastamento é fruto de uma grande empresa de igualização na qual está inserida toda a galera (nós).
Agora, sobre essas coisas falaram de maneira magistral Nietzsche, Bergson, Bataille…
é só dar uma olhada. Para nós, o que interessa aqui é olharmos com atenção para o fato de que
tal empresa de igualização é possivelmente a base de toda experiência humana, da linguagem,
das ditas ciências humanas e do grande Cthulhu de tentáculos descodificadores e axiomáticos:
o capitalismo.
Vou retomar um ponto de que já falamos antes (BOI, JUNIOKIO e MARUCS, 2015, p.
82), mas que se faz necessário aqui. Trata-se da primazia da quantidade sobre a qualidade e do
posterior desentendimento e esvaziamento do conceito de qualidade. Quantidade e qualidade
são dois conceitos de ordem e categorias distintas e compõem, cada qual, uma série de relações
particular. Comparar, relacionar, valorar um em função do outro torna-se aquilo que podemos
chamar de conjugação de séries heterogêneas [O que é mais importante, o crescimento econômico da China ou a dor de barriga da Joana?]. Não que a conjugação de séries heterogêneas
seja uma novidade ou algo que o intelecto não faça de jeito nenhum… pelo contrário: é bom
comer banana antes de correr; mulheres não devem elevar a voz ao senhor; o trabalho dignifica
o homem… Fazemos isso o tempo todo – Mas o que chama a atenção para o estabelecimento de
um parentesco entre quantidade e qualidade está no fato de que no bojo dos dois conceitos estão
pontos de partidas diametralmente opostos. Quantidade parte de uma noção e igual; enquanto
qualidade parte de uma noção de diferente.
•
Para estabelecer uma relação de quantidade, é necessário que primeiro se identifique
uma unidade (e aqui passamos pelos dois afastamentos que comentamos anteriormente). Em sequência, é preciso estabelecer uma igualdade entre as unidades. E aí sim dizer
1. Interessar aqui no sentido da utilidade prática e, por im, da sobrevivência.
15
Edital
de Tretas
aos amigos Chuck e Juniokio
Boi
Ilustração: Daniel Rocha
Glossário Chinês
[ou MA-MÉM, ou, ainda, MAMU-TE]
boi, juniokio, marucs e pedrito
16
“Por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder
fazer de nós mesmos um tal fenômeno. Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e também o tolo que há em nossa paixão do
conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para poder
continuar nos alegrando com a nossa sabedoria! E justamente por sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens, nada nos faz tão bem como o chapéu
de bobo: necessitamos dele diante de nós mesmos – necessitamos de toda arte exuberante,
flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de
pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós.” (Nietzsche - A Gaia Ciência)
[Ars Nova]
Caso típico de redundância útil. Toda arte
é nova e carrega em seu bojo o dínamo da
movimentação, a linha da diferença. Todo
artista é inquieto e insatisfeito: é isso o que
Schoenberg quis dizer quando enunciou que
o ‘verdadeiro crítico musical é o compositor’, pois, se um artista está insatisfeito e não
encontra no mundo obra que lhe traga paz,
este não dirá como deveria ter sido feita tal
ou qual peça, ele fará as dele, a partir de seus
próprios dínamos. Toda Ars Nova é também
fundadora de uma Ars Antiqua, como, em semelhança, o fez a Seconda Pratica em relação
à Prima Pratica (outrora Ars Nova, agora já
envelhecida), ou a Segunda Escola de Viena
em relação à Primeira, o Movimento Música
Nova para o nacionalismo...
verbete: Alckmia), e devem, em vez de imitar o miado do gato ao serem tocados, dizer a
frase “o governo trabalhou” durante a partida.
2. Processo de transdução de energias ou de
transformação da matéria. Sobre a transdução
de energias, ver o tópico 11 do verbete Platonismo. 3. Na alquimia, nos é sugerido que
a transformação de metais de baixo valor em
metais nobres é possível – daí, inúmeras interpretações das práticas alquímicas se fizeram
conhecer, desde as doutrinas gnósticas de preservação do esperma durante o ato sexual até
as pesquisas recentes no campo da ciência, nas
quais a transmutação se dá pela manipulação
da matéria em níveis sub-atômicos. Tais campos de pesquisa pecam por considerar as práticas alquímicas sob algum viés de literalidade.
4. Metáfora do processo criativo.
[Ameaça]
[Alquimia]
1. Variação da brincadeira conhecida como
“gato mia”, na qual os integrantes praticam
toques, bolinagens, erotismos leves e afins
em um quarto desprovido de iluminação;
nesta variante, os membros participam utilizando máscaras do governador do Estado de
São Paulo (daí vem uma escrita alternativa do
1. Ato de fala de tipo ilocutório, relativo a
futurologias raivosas, à semelhança das promessas, que são geralmente vinculadas a
futurologias mendicantes ou a histórias de
pescador. Ameaças vociferadas tendem a
descarregar a raiva no próprio ato de enunciação, como chuvas com trovoadas que
ameaçam cair, mas são levadas pelo vento;
17
ameaças sussurradas têm mais probabilidade de se efetivar; quando escritas podem
ser facilmente descontextualizadas e transformadas em scriptum delittus; as não pronunciadas certamente são as mais perigosas.
1.1 Ameaças podem ser caracterizadas contendo maior ou menor teor de ato ilocutório
compromissivo ou de ato ilocutório expressivo: o primeiro tipo – motivado por uma intenção efetiva de se comprometer a realizar
uma ação no futuro, exemplifica-se na frase:
“Passo na sua casa amanhã pra tirarmos o
atraso!”; já os atos ilocutórios expressivos
– entendidos como um gasto emocional e
simbólico no presente sem uma projeção
para ações futuras – exemplifica-se em uma
expressão como: “Meus Pêsames!”. 2. Por
meio da noção de “jogos de linguagem”,
uma vez um filósofo contradizendo tudo o
que tinha dito antes enfatizou que os enunciados não devem ser compreendidos como
algo fixo e determinado, como se das palavras cristalizadas emanasse o sacrossanto
sentido; esse filósofo nos faz entender que
o sentido é sempre uma porta profanamente
entreaberta, algo que se faz na travessia, à
luz do contexto e do uso hábito-performativo que se faz do enunciado. No caso da
ameaça como jogo de linguagem, é comum
virem à tona as relações de poder envolvidas
no contexto de enunciação da ameaça, principalmente em contextos em que as “regras”
não podem nem devem ser precisamente
determinadas. 3. (vulg.) Truuuuuuuuuco!!!,
gritado por um delinquente jogador de carteado, embora os seus companheiros talvez
estejam jogando Canastra.
[Fronteira]
1. Construções; ocorrem nas vontades de espoliação das possibilidades, ao condenar algo a
não ser tudo aquilo que poderia (centro – por-
18
ta). 2. Sítio de desestabilização de categorias;
centro desestabilizado. 3. Lugar das quebradas.
4. Zona cinzenta; lugar de subversão, interpolação, multiplicidade, coexistência, experiência,
diferença; ponte. 5. Início e fim e eterno.
[Tarot]
1. Projeto arcaico de explicação do mundo por
meio de uma estrutura complexa: segundo o
axioma da inter-complexidade de Ishisaki-Machado, qualquer estrutura complexa pode ser
explicada por outra estrutura complexa, contanto que os interlocutores dominem ao menos
uma delas (estrutura explicativa ou estrutura
explicada) em seus repertórios. 2. Por meio
do Tarot, em suas mais diversas aparições e
simbioses (Egípcio, Marselha, Rider Waite
etc.), se busca demonstrar o caminho iniciático, desde os primeiros passos até a mais elevada assumpção. Normalmente é composto de
22 Arcanos maiores e 56 menores: os maiores
correspondem a etapas do caminho iniciático,
e os menores a intempéries e peculiaridades da
vida – aqui podemos notar que o estruturalismo
já assolava a humanidade desde os primeiros
tempos. 3. Arcanos Maiores: [1] O Mago – o
começo de tudo e o controle sobre os elementos da natureza (ver também Jorge Valdivia);
[2] A Sacerdotisa – princípio feminino, devir
mulher, deleite e desejo (“eu sou a última sacerdotisa do templo de Tetistã”); [3] A Imperatriz – mãe natureza, princípio de fecundidade e
maturação, Mulaprakriti, sem a qual o ‘nada’
engoliria todo o mundo (ver História sem
Fim); [4] O Imperador – senhor das codificações e sobre-codificações, escravagista, rei das
formas e formatos (“pensar verdadeiro e fundador mágico”); [5] O Hierarca – sacerdotejuiz que procede por pactos e contratos, culpa e
compensação, mais valia; [6] A Indecisão – eis
o arcano do devir, a face se volta para a virtuosa, o corpo quer a pecadora, os céus elegem a
pura, o subterrâneo anseia pela sanguínea; [7]
O Triunfo – aqui temos o carro, o ferramentário, as técnicas, savoir faire etc. (ver também
carrinho como ente da caixa de ferramentas
e carrinho de mão); [8] A Justiça – grandiloquente argumento do discurso de dominação,
nada mais; [9] O Eremita – solitário viajante,
nômade, a busca constante de percorrer fronteiras e se afastar de centros; [10] A Retribuição – ou a roda da fortuna, o parcialismo da
natureza, o baú da felicidade, a porta dos desesperados; [11] A Persuasão – a força em um
devir molecular, minoritário: sempre pequena
e intensiva, agrupando-se e se compondo no
campo de imanência; [12] O Apostolado – a
abusiva ideia de se negar a vida em troca de
quadraturas sem fim; [13] A Imortalidade – característica peremptória da natureza naturante
dentro da qual tudo morre; [14] A Temperança
– “O mal é preciso temperar” (ver Apocalipse
de São João, capítulo 14); [15] A Paixão – puro
afã, místico clã de sereia, castelo de areia, ira
de tubarão…; [16] A Torre Fulminada – 2016,
foi golpe; [17] A Esperança – a estrela solitária,
um facho de luz, a estrada de louros; [18] O
Crepúsculo – também conhecido como o Arcano dos inimigos ocultos, ou da traição (ver
Tradição), 6+6+6 o número da besta; [19] O
Sol – brilha por si; [20] A Ressurreição – grande obsessão da humanidade, alimentada pelo
assustador sentimento de finitude, pequenez e
efemeridade da vida; [21] A Transmutação –
única lei da natureza, esse Arcano também é
conhecido como o louco, é o princípio do caos,
o saci fundamental; [22] O Regresso – maior
e derradeira fantasia iniciática, equidna mãe
de todas as religiões e doutrinas. 4. Tarot em
retrogradação é o mesmo que Torat (aproxime
também os 22 Arcanos com as 22 letras do alfabeto hebraico, ou, ainda, com os 22 capítulos
do Apocalipse de São João): o Tarot é a grande
ferramenta de doutrinação policêntrica, e o Torat máquina de controle monocêntrico.
[Liquidez]
1. Um dos quatro estados da matéria, no
qual a distância entre as moléculas é suficiente para que a matéria tome a forma de
qualquer recipiente, sem que perca seu volume. 2. Metáfora utilizada por Zygmunt
Bauman para evitar o termo “pós-modernidade”. 3. Atributo das energias psíquicas
puras dos processos criativos. A energia líquida presente em um processo toma a forma de seu recipiente. O recipiente é o limite
e o continente; diferentes recipientes podem
ser utilizados para conter a energia líquida,
que é em si indiferenciada. É o recipiente
que dá a esta energia sua forma e aspecto
final. Exemplo: a música “pura” ou “absoluta” é um engodo, considerando-se que ela
perde sua pureza quando preenche um recipiente, adequando-se à forma de algo não
sonoro. Uma música dita “pura” escrita para
um quarteto de cordas tem o quarteto de
cordas (objetos materiais construídos com
madeira, envernizados, equipados com cordas de metal ou de tripas) como continente
e recipiente. A matéria articulada por esse
mecanismo (atrito de crina sobre cordas,
ressonância das madeiras, moléculas de ar
vibrando, tímpanos afetados pela vibração)
constitui a forma final desta música: a música é o imaginário, a abstração e a codificação, mas também é a matéria, o tempo, a
interação de corpos. A única música “pura”
é a energia líquida da música enquanto coisa
não sonora. Eis aí a contradição: a música
pura só se mantém pura enquanto força não
sonora que ainda não foi contida por recipientes não sonoros. A música pura não nos
interessa. Vamos celebrar a liquidez dos fluxos musicais; vamos contaminá-los e poluí
-los em grandes variedades de recipientes.
O compositor faz com a música pura o que
19
São Paulo faz com o rio Tietê. 4. Na tecnocracia, corresponde à quantidade de tempo e
nível de dificuldade que um ativo tem para
se converter em caixa. (Ver Uma Pipa no
Céu e O Governo Trabalhou).
[Lugar de fala]
1. Visão de mundo; ponto de vista ético,
constituído, não inato (ver Etopoética). 2.
No contexto de luta contra o silenciamento
de grupos socialmente oprimidos, a noção de
lugar de fala surgiu como importante busca
por autorrepresentação discursiva, pelo fim
da mediação. O ganho que o conceito traz
é que a fala daqueles que sofrem a opressão
passam a se tornar o locus privilegiado para
falar e refletir a respeito daquela condição.
Por meio de negativas, traduz-se assim: o
homem não deve falar no lugar da mulher;
nem o branco no lugar do negro; nem o hétero no lugar do homo; nem o cis no lugar do
trans. Não falar pelo outro, no lugar do outro, em nome do outro e tentar excluir a sua
voz ou tratá-lo como incapaz. Uma pessoa
não deve querer representar o outro, constituindo um preconceito comum achar que
o desfavorecido deva ser representado por
aquele que é privilegiado na estrutura social.
No entanto, é um equívoco identificar lugar
de fala e representação bem como parece ser
uma deturpação dizer que há uma “contradição performativa” no fato de um homem
branco falar contra o racismo ou o machismo. Contanto que denunciar não seja falar
no lugar de outro ou tentar representá-lo ilegitimamente, qualquer pessoa numa democracia pode, a partir do seu próprio lugar de
fala, posicionar-se e lutar contra opressões
que ela mesma não sofra na pele (ver Teoria
da Interseccionalidade, segundo a qual as
múltiplas discriminações e intolerâncias estão fortemente inter-relacionadas, em vista
20
do fortalecimento de ideologias preconceituosas e segregacionistas). Positivamente, o
lugar de fala é algo a ser construído, é um trabalho – não individual nem solipsista – que
se faz sobre si mesmo. Lugar de fala não é
um dado biofísico e fenotípico com que uma
pessoa nasce, localizando-se propriamente
num campo de formação ética do cidadão.
Donde se pode dizer que o lugar de fala de
um Fernando Holiday, por exemplo, é a de
um branco, embora ele seja fenotipicamente
negro. “Não se nasce negro... como não se
nasce mulher...” 3. A luta por protagonismo
e reconhecimento que está por trás da ênfase no lugar de fala é algo socialmente muito
necessário. Porém, a deturpação do protagonismo em exercício de poder é algo oportuno a ser colocado na pauta de autocrítica nos
movimentos que lutam por políticas de identidades. Empoderamento, por exemplo, é um
termo que nos parece sugerir apenas uma re
-hierarquização ou revezamento dos atores
no desfrute de privilégios e não a construção
de uma política da diferença e igualdade de
direitos. (ver Distinção entre poder e potência). 4. Quando políticas de identidades
se inscrevem no mero exercício de poder,
tornam-se políticas identitário-individualizantes e o campo da política que hoje tem
urgência de ser construído, sabemos, é antes de tudo o da desindividuação. “Não exija
da política o restabelecimento dos direitos
do indivíduo. O indivíduo é produto do poder. O necessário é se desindividualizar por
meio da multiplicação, do deslocamento,
do ordenamento em combinações diferentes. O grupo não há de ser um laço orgânico que una indivíduos hierarquizados, mas
um constante gerador de desindividuação.”
(M. Foucault - Introdução à O Anti-Édipo).
Como indivíduo branco, posso não me considerar culpado pela escravidão do passado
(como reza o argumento ‘coxinha’), mas
de um ponto de vista ético, a partir do meu
próprio lugar de fala – mesmo sendo branco
–, posso advogar em prol das cotas raciais
como necessárias na tentativa de atenuar as
consequências ainda muito presentes do regime escravocrata que grassou no meu país.
5. (ant.) Em regimes de clausura ou encarceramento, dizia-se parlatório ou locutório.
[Civilização]
1. Humanidade à la carte; ilusão do fruto proibido; culpa sem arrependimento, pecado sem
salvação; consciência limpa de si e dos seus:
tinha que ser o Chaves. 2. Ouro dos tolos,
mito do progresso, ruína sobre ruína. 3. Para
franceses e ingleses, enfatiza o que é comum
à nação. Relacionada a fatos políticos, econômicos, religiosos, técnicos, morais ou sociais,
realizações de fato ficam em segundo plano.
Legítima tendência expansionista por meio da
importância de sua nação para o progresso do
ocidente e da humanidade. Para os alemães,
Zivilisation é valor de segunda classe, ligada à
superfície da existência humana. Prefere-se o
termo Kultur para identificar suas realizações,
pois enfatiza as diferenças nacionais, valoriza
as realizações intelectuais, artísticas e científicas. Dá valor ao que foi realizado, distanciando-se de valores intrínsecos do ser humano. 4.
Quando os bárbaros são eleitos para a eles se
opor; Luftal.
sários para a prática da Ikebana. Os arranjos
seguem normas e regras rigorosas. A função
da Ikebana não é a de decorar um espaço
com elementos da natureza, e sim a de estabelecer uma ligação entre a natureza e os espaços fechados. 3. Distingue-se o natural do
que é feito pelo homem, baseando-se na dicotomia natureza x técnica. Aristóteles define o natural como um princípio de mudança
interno, pertencente intrinsecamente àquilo
que muda, enquanto a técnica seria um princípio de mudança externo à mesma coisa. Se
pensarmos nas colocações de Bergson, de
que o mundo é um conjunto de imagens sobrepostas e que não há separação real entre
as imagens, tal noção de interno e externo
cai por terra. Nesse ponto, a técnica estaria
presente em todas as interações materiais, e
tudo seria natureza. Partindo-se desse ponto, a Ikebana é a arte de trabalhar com ilhas
de indeterminação. A impermanência e o
caos são temporariamente contidos num arranjo e sustentam a ilusão de unidade em um
dado intervalo de tempo. Tal ilusão só nos é
possível em razão de uma cognição limitada
aos eventos macro do mundo. Os sentidos
não percebem o decaimento atômico em um
pequeno intervalo de tempo; porém, após
um mês, a impermanência do arranjo de flor
é evidente ao olhar, ao tato, ao olfato… 4.
Ilhas de indeterminação, colonização temporária do caos e artesanato da autoilusão.
5. Atributo de efemeridade da obra de arte.
[Ikebana]
[Aliteração]
1. Do japonês, ikeru (生ける):”manter” e
hana (花):”flor”. Ikebana (生花) significa,
literalmente, “arranjo de flores”. Mas essas
são informações triviais, de cunho formal.
Estão aqui apenas para dar vazão ao fluxo.
O movimento, apesar de indivisível, necessita de um começo qualquer. 2. Conexão e
harmonia com a natureza são traços neces-
1. Aliteração alicerça algum alinhamento
a-linguístico que alumbra e alimenta a Lógica alucinante da Língua. 2. Única possibilidade de existência: Alí – único local no
espaço onde se dá a experiência; Ter – único
atributo do eu (ver coleção de teres); Ação –
única possibilidade de modificar a natureza,
21
sempre se dá por linhas e composições do desejo. 3. Antônimo de Aquiserreação.
[Compostagem]
1. Agenciamento molecular produzido com
matéria degradada, um tipo de baixa alquimia.
Utiliza materiais indignos, de baixo calão, rejeitos, detritos, sujidades. 2. Milagre sem transcendência: compostagem é a alquimia dos anjos decaídos, a montagem do céu com cacos de
trevas, religião sem relíquias. 3. Procedimento
de composição artística com tralhas, velharias
e um mundo de coisas imprestáveis: sem redundar em acúmulo ou profusão, produzindo
espécies de abismos maciços, vazios pregnantes e eruptivos. Parece incontornável, nesse
sentido, a obra do encenador e artista visual
Tadeusz Kantor, que operava a partir da noção
de “realidade degradada” (Bruno Schulz). 3.1.
Nessa acepção, costuma se diferenciar da Colagem, na medida em que, numa arte-compostagem, os materiais originais se emulsionam e
apresentam a tendência de não serem mais distinguíveis entre si – ao menos a olho nu. (ver
Emulsão) 4. Tipo de reciclagem que você pode
fazer com despojos orgânicos, como cascas de
legumes e frutas (exceto limão), hortaliças,
troncos, tubérculos, alimentos apodrecidos e
outros descartes orgânicos que fogem ao paladar médio ou ao padrão de qualidade mercadológica. Resulta num poderoso composto
fertilizante. Receita: cavar um buraco, enterrar
por três ou quatro meses restos orgânicos em
camadas que você deve intercalar com terra e
folhas secas coletadas em longas caminhadas
pelos bosques. A melhor maneira de pensar é
caminhando (ver Permacultura).
[Tradição]
Semelhante à TRADUÇÃO, que, por sua vez,
é semelhante à TRAIÇÃO. A origem etimo-
22
lógica do termo TRADIÇÃO vem do latim
traditio, que vem a ser a ação de entregar ou
transmitir algo a alguém. Já TRADUZIR vem
do latim traducere que significa ‘converter’,
‘mudar’: seu antecessor seria trans + ducere,
ou seja, dizer através. Enquanto que TRAIR
vem de tradere, que seria o ato de ‘entregar’
ou ‘passar adiante’. Todos os três conceitos
incomplexos trazem em seus bojos o radical
trans (transcender, transpassar) e o fazem por
operarem na esfera da sinonímia. No caso da
TRADUÇÃO temos a sinonímia entre linguagens naturais; no campo de TRAIÇÃO, uma
sinonímia de sujeitos; e, no plano da TRADIÇÃO, uma sinonímia de tempos (instantes).
Assim como um tradutor busca no idioma
inglês uma palavra semelhante para operar
seu ofício, um tradicionalista busca operar
fazeres semelhantes em tempos diferentes
com o intuito de igualizar os próprios tempos – enquanto dura uma tradição, dura um
tempo. Ora, entretanto, a sinonímia não é materialmente possível no plano de imanência.
De modo que toda tradução é uma aproximação grosseira entre sentidos sempre distintos
e heterogêneos. Assim também a tradição se
torna um mecanismo falsificado de sustentar
o igual. Todo tradutor é um traidor do sentido,
e todo tradicionalista é um traidor do instante.
E, em outras palavras, não há nenhuma traição que não seja do sentido ou do instante. –
Ver também ‘contrair’, ‘traíra’ e ‘trairagem’.
[Platonismo]
1. Modalidade de negação da experiência. 2.
Pilar dos cristianismos e outros cancros do
intelecto. 3. Ferramenta discursiva de viés
totalitário, engendrada na subordinação do
pensamento à linguagem. 4. Antiarte. 5. Mecanismo retórico de enunciação de verdades,
utilizado em última instância para subjugar
jovens mancebos, independentemente de
suas inclinações sexuais, à prática do coito
anal, frequentemente como sujeitos passivos. Neste mecanismo, a verdade e o sêmen
são equivalentes, e o gozo está reservado
somente aos sábios. 6. Filtro cognitivo que
coloca o axioma no lugar da experiência. 7.
Conjunto de enunciados falaciosos utilizados
na fundamentação de diretrizes políticas totalitárias/totalizantes. 8. Modo de opressão
normalizante, que opera por meio da sacralização e da falta. 9. Antilucifer. 10. Forma
barata de elitismo. 11. Aparato transmutador
que, ao operar na escrita, inverte o Edugair
em Papai-Piru. Platão, ao escrever as falas
de Sócrates, converte o Sócrates Edugair –
sujo, caótico, louco, imprevisível, incômodo,
invasor (ver As Nuvens de Aristófanes) – em
Sócrates Papai-Piru: sábio, etimológico, racional, injustiçado. Do mesmo modo, Paulo,
em sua escrita, converte o Yeshua Edugair
– mal falado, amigo das putas, bêbado, andarilho, mago negro, lunático, mitomaníaco,
miguelento, contraditório – em Jesus Cristo
Papai-Piru: filho do Pai, hipster, redentor, misógino, virgem, a Verdade e a Vida.
[Artífice]
1. Ablativo de artĭfex, composto de ars (arte)
e facěre (fazer). Aquele que constrói artifícios (artefato, astúcia, disfarce, fraude), enquanto o sofista é aquele que mercadeja artifícios ou que os constrói segundo as regras da
mercadejação. 2. “As prisões se constroem
com as pedras da lei. Os bordéis com tijolos
da religião” W. Blake. 3. “O rigor com que os
dominadores impediram no curso dos séculos a seus próprios descendentes, bem como
às massas dominadas, a recaída em modos
de vida miméticos – começando pela proibição de imagens na religião, passando pela
proscrição social dos atores e dos ciganos e
chegando, enfim, a uma pedagogia que desacostuma as crianças de serem infantis – é a
própria condição da civilização. A educação
social e individual reforça nas pessoas seu
comportamento objetivamente enquanto trabalhadores e os impede de se perderem nas
flutuações da natureza ambiente.” Adorno e
Horkheimer. 4. “Todo trabalhador é escravo.
Toda autoridade é cômica.” Roberto Piva.
23
Entrevista com
Edgard de Assis
Carvalho
Abate
24
Pedro H. F. Machado – Alberto Manguel, em A cidade das palavras, nos lembra um
caso em que Alfred Döblin responde ao poeta italiano T. F. Marinetti quando esse sugere um
‘método futurista’ (no ofício poético): “Em arte de nada serve o método, mais vale a loucura”.
Recordo-me que quando tive a oportunidade de fazer seu seminário de pesquisa, ao ver tatuado
no braço de um aluno a palavra ‘inadequado’, o senhor cogitou utilizá-la como parte do título
de uma autobiografia em fase de finalização. Em que medida a loucura ou a inadequação podem
dizer a verdade ao poder ou, nas palavras de Edward Said, ‘subverter o poder da autoridade’?
Edgard – Concordo integralmente
com Alberto Manguel, ensaísta que integra
minha ‘biblioteca ideal’. Amplio essa ideia
da arte para a ciência. Método não é camisa
de força, conjunto de regras a serem mecanicamente aplicadas a objetos inertes. É caminho incessantemente refeito a cada passo que
a pulsão do conhecimento invade o sujeito
que busca conexões complexas para o entendimento. Em tempos líquidos, os verdadeiros
intelectuais devem se empenhar em dizer a
verdade ao poder e não se submeter impu-
ne e acriticamente a ele. Foi Edward Saïd
quem formulou essa ideia num fascinante
livro intitulado Representações do Intelectual, traduzido no Brasil por Milton Hatoum.
Foi com essas ideias na cabeça que consegui
terminar meu livro e intitulá-lo Conexões da
vida, uma antropologia da experiência, que
será publicado pela editora Una, de Natal. De
certa forma, é uma maneira de externar minha inadequação com os padrões que regem
a fragmentação dos saberes disciplinares que
tomaram conta dos dispositivos acadêmicos.
P. H. F. M. – No livro das passagens de Walter Benjamin (Paris, a capital do século
XIX), o autor cita e complementa Jules Michelet: “Cada época sonha não apenas a próxima,
mas ao sonhar, esforça-se em despertar”. Nesse sentido, e fazendo um recorte que caiba em uma
entrevista, o que estaríamos sonhando para a época seguinte com relação à arte?
Edgard – Em Passagens, Walter Benjamin destaca a energia do flâneur, sempre
aberto a novas experiências, interações, reorganizações. A modernidade líquida tem
de encarar a opção que resta aos sujeitos; a
solidão ou o estar-junto. Esse é o sentido do
futuro que, como sabemos, nunca poderá ser
diagnosticado antecipadamente. A arte sempre sonhou com o devir, e isso vale para a literatura, a poesia, a pintura, o cinema, o teatro.
Em um de seus últimos ensaios, Claude Lévi
-Strauss afirmou que cinco séculos de histó-
ria não conseguiram reabilitar plenamente o
sujeito, que permanece dilacerado, dividido,
recalcado. A única reserva de memória que
expressaria o sentido da impermanência e da
provisoriedade seria fornecida pelas artes.
Para isso, porém, seria necessário reaprender
a olhar, escutar, ler, título que ele sabiamente
deu ao livro publicado em 1993. As artes nos
ensinam a ver o mundo de outra perspectiva,
repõem o estoque onírico de um mundo marcado pelo desencanto das tragédias do poder
em âmbito planetário.
25
Marcus Groza – A partir de uma ideia de Bauman, você afirma que a cultura é “fábrica de
ordem” e que não consegue assimilar as desordens, lançando mão de dualismos classificatórios
redutores. Você também aponta que os primatas não humanos criam e transmitem cultura, o que
seria a possível “quarta ferida narcísica” (depois de Copérnico, Darwin e Freud). Poderia falar
mais a respeito? Para você, alguns setores da cultura guardam mais potência de abertura para as
desordens?
Edgard – Quem afirma isso é o próprio Zygmunt Bauman em O mal-estar da
pós-modernidade. Conceito-armadilha, a cultura foi inundada por dualismos relativistas:
cultura erudita, cultura popular, cultura de
massa, cultura científica, cultura humanista.
Com isso, perdeu-se o sentido universal do
termo. Cultura é práxis cognitiva gerada por
humanos de todos os tempos e lugares. Existem realidades locais, claro, mas estas devem
ser necessariamente articuladas a uma visão
totalizadora. Primatas não humanos exibem
formas socioculturais que exaltam o altruísmo, a cooperação, a tolerância. As ideias de
Frans de Waal são exemplares a esse respeito.
Se Freud já havia se referido às três feridas
narcísicas, cabe especular sobre essa quarta
a que você se refere. No domínio dos primatas, não somos mais os únicos portadores de
cultura. Fomos destronados uma quarta vez.
Um fato como esse poderia produzir uma
cosmovisão destituída de qualquer forma de
antropocentrismo, capaz de instaurar uma
verdadeira política de civilização.
M. G. – Em um artigo, você escreve que “a complexidade pensa com a contradição e
também contra ela. Por isso, a incerteza da contradição e a contradição da incerteza são vitais
para a criatividade e a invenção”. Poderia esmiuçar um pouco sobre qual seria o papel da contradição no pensamento complexo e na transdisciplinaridade? Em que medida essa contradição
pode ser relevante para criarmos pontos de oposição em relação à racionalidade instrumental e
para discutirmos a relação entre arte e ciência?
Edgard – Existe muita incompreensão
com a complexidade. Etimologicamente, a
palavra vem do latim complexus, cujo significado é tecer em conjunto, religar o disperso,
rearticular o fragmentado. Mesmo em sociedades menos desiguais, as contradições existem. Elas não esperaram o capitalismo para se
instalar sobre a face da Terra. As sociedades
sem classes, porém, souberam resolver suas
contradições com mais sabedoria e criatividade, como bem expressou Claude Lévi-Strauss
em seu ensaio A Antropologia diante dos pro-
26
blemas do mundo contemporâneo. Resta saber como identificá-las aqui e agora, perceber
que o mundo não pode ser mais regido pela
hegemonia do quadrimotor formado pela técnica, indústria, ciência, Estado, e, assim, criar
formas de entendimento da vida nas quais a
razão, a emoção, a arte e a ciência caminhem
juntas. Oposições existem, claro, mas complementaridades também. Para o pensamento
complexo que se funda na dialogia, na recursividade, no holograma esse é um pressuposto inegociável.
M. G. – Sabemos que o conceito tradicional de identidade se encontra filosoficamente desgastado. Num texto seu encontramos a sugestiva ideia de uma “identidade arlequinada”. Poderia
falar mais a respeito dessa “identidade arlequinada” e do contexto em que localiza essa ideia?
Edgard – O desgaste do conceito não é
apenas filosófico, mas político-cultural. Claude Lévi-Strauss já havia percebido isso em um
famoso encontro interdisciplinar realizado em
1977. Identificar-se implica sair do fluxo da
universalidade e, de modo intolerante, pregar
a uniformidade de padrões e normas de determinado grupo, etnia, classe, deixar de privilegiar o caráter da vida em comum. Somos
os mesmos e, simultaneamente, outros. Unos
e, terrivelmente, múltiplos. A ideia de uma
identidade arlequinada é oriunda do pensamento de Michel Serres e se encontra sistematizada em O Terceiro Instruído, traduzido
no Brasil como Filosofia Mestiça. Para Serres, a educação é indissociável da mestiçagem das culturas. Como sabemos, o arlequim
é uma marchetaria de cores, texturas, formas.
Somos assim também.
Marco Antônio Machado – Em uma entrevista sua a Edgar Morin, o filósofo apresenta
uma imagem em que temos o ‘norte’ como agente das quantificações e o ‘sul’ (ou melhor, os
suls) como operador das qualidades. Ele exemplifica isso no campo das medicinas, das culturas,
sobretudo, nos modos de viver. De certo modo, a axiomatização básica do capitalismo é a desqualificação dos fluxos de riqueza e de trabalho (trabalhos e riquezas de qualidades diferentes
recebem uma remuneração quantitativa igual), e isso termina por operar todo sistema de captura
e apropriação no qual se insere nossa mundialização. No campo do fomento artístico temos, nos
dias de hoje, o modelo de mecenato do capital privado (norte-americano) e o de mecenato do
estado (europeu): ambos quantitativos e do norte. Como seria possível pensar em um fomento
sulista para as artes?
Edgard – Essa longa entrevista organizada pelo Sesc Nacional ocorreu no âmbito
de um encontro internacional sobre o pensamento do Sul em 2011. Havia um texto-base
escrito por Edgar Morin discutido em três
comissões: cultura, economia, educação. Daí
surgiu uma declaração que foi divulgada por
instituições, grupos de pesquisa, organizações da sociedade civil. Não foi nada fácil
desconstruir a ideia de que o Sul não era uma
noção geográfica, mas uma forma de sociabilidade que busca preservar as tradições simbólicas e, com isso, vislumbrar que a mundialização da economia não é a única saída
que resta e que o Estado não é o único baliza-
dor para o conjunto dos saberes. Não se trata
de diabolizar o Norte e divinizar o Sul, mas
reconhecer limites, aporias, distopias presentes em ambos. O caso do fomento artístico é
um sintoma de que o Estado não consegue
elaborar uma política comum, pluralista, inovadora, que supere querelas partidárias e intolerâncias ideológicas. Instituições fora do
Estado – museus, instituições, ongs, oscips
– conseguem ampliar a criatividade e democratizar o acesso. A questão crucial não é,
portanto, pensar um ‘fomento sulista para as
artes’, mas ampliar a percepção de gestores
e, até mesmo, de mecenas sobre as conexões
arte-ciência-filosofia.
27
M. A. M. – Considerando que o Cristo disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14); “Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o
adorem” (João 4); “Eu sou a ressurreição e a vida, quem crê em mim, ainda que esteja morto,
viverá” (João 11), entre outras vontades de verdade. O Papa Francisco é o anticristo?
Edgard – O Antigo e o Novo testamentos não podem ser compreendidos de
modo literal, metonímico, e sim metafórico.
Elementos de meditação e reflexão constantes são imagens e parábolas que nos ajudam a
compreender o mundo e a nós mesmos de outra maneira. As epístolas de São João às quais
você se refere, os livros históricos, proféticos,
poéticos e sapienciais, as epístolas de São
Paulo e até mesmo o Apocalipse devem ser
entendidos dessa maneira. Por isso mesmo,
jamais consideraria o Papa Francisco como o
anticristo. Muito pelo contrário. Suas ideias
acerca da espiritualidade cristã expressas na
encíclica Laudato Sie nas conversações com
Andrea Tornielli estão na vanguarda do pensamento. Misericórdia é a palavra-chave para
o contemporâneo. Preservar a casa comum –
a Terra-Pátria – é a única saída possível para
combater e superar o mal-estar na civilização,
que já havia sido diagnosticado por Freud em
1930. O maior pecado de todos é, porém, a
corrupção. Corrupto, ele afirmou enfaticamente, é aquele que peca e não se arrepende,
fingindo ser cristão. A autoestima do corrupto
baseia-se na fraude, no oportunismo, na indignidade, na ausência total de compaixão.
Sábias reflexões sobre os tempos sombrios
que vivemos no Brasil.
Edgard de Assis Carvalho, professor titular de
Antropologia, coordenador do núcleo de estudos da
complexidade, da PUC/SP, correpresentante brasileiro da
CIUEM, cátedra itinerante Unesco Edgar Morin.
28
O CHORO
DO GIGANTE
Não se ouvia outro assunto na cidade de
Cruzeiro.
Em todas as rodas de conversa, pipocavam
teorias sobre o fenômeno ocorrido. Para entender
o motivo de tanto murmurinho, era só olhar
para a serra. O Gigante Adormecido, Pico do
Itaguaré, estava chorando. E chorava mesmo,
copiosamente.Um choro incontrolável, de
lamento. Choro que só se vê em velórios, lápides
e outras despedidas eternas.
No segundo dia seguido de choro, mais uma
tragédia. O Rio Verde, que tem sua nascente na
Serra Fina, havia amanhecido vermelho. Assim,
de uma hora pra outra, as águas ganharam um
tom rubro e jorravam como o sangue de uma
apunhalada.
As Agulhas Negras se vestiram de luto. O Morro
do Careca se encrespou, ninguém subia o Pico
dos Marins. E o Gigante continuava a chorar.
Cientistas, estudiosos, profetas, montanhistas
e autoridades se uniram. Mas o fenômeno
continuava sem solução. Até que Acir¹,
descendente legítimo da tribo Tupi da Serra da
Mantiqueira, decidiu se manifestar.
Mario Nunes
– Meu povo nasceu nessas montanhas. Meu
povo viveu nessas montanhas. Meu povo morreu
nessas montanhas. Hoje, eu vejo destruição, vejo
descaso, vejo extinção. Eu entendo a sua tristeza,
Amantikir², a serra que chora.
1. Acir: nome próprio indígena que signiica “dolorido, magoado”,
“o que vem da dor” ou “o que faz doer”.
2. Amantikir: nome indígena da Serra da Mantiqueira que signiica a “serra que chora”.
29
Excertos-Cidade
Texto escrito para ser uma
“cartografia afetiva” da Plataforma
Arquipélagos: www.arquipelagos.com
Federica Giovanna Fochesato (Kika)
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Texto em prosa ou em verso?
Assim como a cidade... em absoluto,
nem um, nem outro.
Texto MISTO, sem deixar de ser crítico.
Tão MISTO quanto eu gostaria que
fosse a CIDADE... e, por isso, eu critico. Mas,
em meio à crítica, ora verso, ora prosa... também há de flanar imensa afetividade, afinal,
tantos excertos da cidade atiçam nossa memória fazendo ruas exalarem perfumes. E isso,
por si só, é motivo suficiente para que se queira retirar da prateleira a urbe “plástica” que foi
colocada à venda.
E aí? Quem vai pagar?...
Mas, antes dos excertos-cidade-pensamentos, algumas palavrinhas introdutórias: não esperem textos específicos sobre o
deslocar-se de bicicleta, muito menos sobre
mobilidade urbana e sustentabilidade. Vou
soltar um pouco do que sinto (e reflito) a
partir do que vivo, olho e troco com a CIDADE. Logicamente, sendo a bicicleta meu
principal meio de transporte, desde que me
tornei “adulta”, aos 18 anos, é inegável sua
influência para a construção de algumas das
ideias. E, pedalando, tornando-me autora e
responsável pela minha própria geração de
energia (bastante atenção a isso!), parece não
ter fim a oxigenação das sensações desse tal
de VIVER A CIDADE, em vez de apenas
VIVER NA CIDADE. Ressalto também que
sou mera pessoa – antes de qualquer título.
Logo, sem academicismos, tudo aqui, da prosa ao verso, é empírico e livre. Isso não significa – obviamente – que eu não me apoie em
alguns nomes das áreas de arquitetura e urbanismo, história ou geografia, por exemplo.
Porém, não quis me ater à organização ou à
citação de suas teorias. Ao final, lançados os
excertos, deixarei alguns nomes para aqueles
que pretendem dar uma “fuçada” no que escreveram, contribuindo imensamente para o
“cutucão” naquilo que são as lógicas inversas
– algo que, aliás, mais e mais vem colaborando para que as prestações dessa CIDADE À
VENDA custem caro. Muito caro. Um caro
não somente para aqueles que “pagaram” por
um pedaço da urbe, mas também para aqueles que sequer puseram seu nome na fila das
inscrições.
Definitivamente, a CIDADE DE TODOS É APENAS PARA ALGUNS (aqui, parênteses: atenção aos discursos da CIDADE
HUMANIZADA, facilmente incorporado
pelo planejamento urbano mercadológico ditado, claro, por investidores).
Abrindo, agora sim, os livres excertos-cidade-pensamentos...
O MEIO
Para mim, numa cidade – seja ela qual for – entre o ponto de saída e o de chegada,
há sempre um caminho a ser percorrido. Tecnologias traçam rotas. E eu, com meu MEIO no
MEIO... traço novos caminhos dentro daqueles que, aparentemente, são sempre os mesmos. Às
vezes sou surpresa, outras vezes sou surpreendida neste espaço sempre vivo e mutante chamado
CIDADE. Todo dia, através do mesmo MEIO, um outro MEIO.
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E POR FALAR EM MEIOS... RECORDO-ME DO “EU, MOTOR DE MIM”
Não. Bilhetes ainda não são coisas
do passado.
Um dia, caída já a noite, sobre minha
bicicleta estacionada pela região central de
São José, havia um pedaço de papel no qual,
com caneta azul, estava escrito:
“que belo é ser motor de si mesmo / vim te
ver mas não te vi / paz kika”
Dia seguinte, entendi de quem era o
bilhete. E é claro que, pelas palavras, a chance de ser de alguém que também percorre as
ruas da cidade pedalando era imensa. Foi um
querido amigo, morador da zona sul, que o
deixou. Teve, uma vez, uma bicicleta chamada Gina e, com ela, era ele MOTOR DE SI.
Ser MOTOR DE SI tem uma grandeza de significados literais e não literais. Para
mim, tal frase soa como um poema carregado
de um sublime toque de subversão pessoal e
social. Um poema que me move.
GLAMOUROSO APOCALIPSE JOSEENSE MOTORIZADO
Para abrir esse excerto, faço exceção
e cito, portanto, Ivan Ilich que, em seu texto “Energia e Qualidade” (presente no livro
Apocalipse Motorizado – a tirania do automóvel em um planeta poluído), lançou a seguinte frase:
“A bicicleta permite a cada um controlar
o gasto da sua própria energia. O veículo a motor, inevitavelmente torna os usuários rivais entre si, pela energia, pelo espaço e pelo tempo.”
São José, aquela que já foi uma pacata
cidade sanatorial marcada por bons ares, veio
acumulando muitos rivais motorizados ao longo de suas ruas e não sou eu que invento isso.
Sabemos, pois as pesquisas revelam e vivencia-se isso: não é preciso ir até a nossa capital
para mergulhar em frenéticos “touch” durante
o “rush”. Hoje, por aqui, o automóvel (um bem
privado – que fique claro!) é o modo predominante de deslocamento na cidade: 44 % das viagens são realizadas por esse meio; um percentual de 12 pontos acima da média encontrada para
os municípios de porte semelhante, segundo a
ANTP (2011) – Associação Nacional de Trans-
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portes Públicos (Atlas da Pesquisa Origem e
Destino, desenvolvida pelo IPPLAN, Instituto
de Pesquisa, Administração e Planejamento,
São José dos Campos, 2014).
Se para uns o dado colabora para ostentar a “São José empreendedora e tecnológica”, para mim isso é o verdadeiro alarme
da urgência em se frear, desde já, qualquer
medida que incentive o uso do automóvel.
Depois de um século de sua tirania que veio
privatizando incansavelmente áreas públicas
e onerando ainda mais as classes pobres, agora basta.
(É claro que alguns, alheios a sua cidade, em tom de glamour, dirão: “mas não
há pobres em São José”, e reproduzirão esse
discurso...)
Definitivamente, não há sistema de
transporte público – muito menos cicloviário –
que avance, com sucesso, sem que se mexa nos
privilégios que até então, na totalidade, foram
concedidos aos automóveis. E atenção: eu disse
PRIVILÉGIOS. Algo que não deve ser confundido com direitos.
MEU CARRO, MINHA RUA, MEU UMBIGO
No meio do TEU caminho, agora tem uma faixa exclusiva de ônibus...
No meio do TEU caminho, agora tem uma ciclovia...
No meio do TEU caminho, agora tem uma calçada mais larga...
Pelo TEU caminho, você pode continuar indo com a bunda sentada em sua lataria fechada e adornada com vidro insufilmado, oras. Ninguém te impedirá!
Cadê, então, o direito que você perdeu? Me diz.
Lamento, senhor, em NOSSO caminho, agora tem que caber de tudo e todos. Menos
privilégios...
Por mais amor coletivo e menos motor individual.
INJUSTIÇA SOCIAL REFLETIDA NA MOBILIDADE
Sendo breve, pois isso é assunto sem
fim, principalmente dentro do cenário da
“CIDADE À VENDA” inicialmente citado:
a falta de efetivas políticas públicas voltadas
à habitação popular vai enxotando cada vez
mais gente para as periferias sob os sórdidos
aplausos daqueles a favor da segregação, da
hierarquização e da homogeneização.
Já penalizada por viver em locais em
quais muito pouco (ou nada mesmo) há em
termos de infraestrutura urbana (da rede de
esgoto ao transporte público), uma imensa
massa populacional, todos os dias, precisa
percorrer longas distâncias para acessar a
própria fonte de trabalho e diversos outros
equipamentos públicos. E, assim, o “ser
periférico”, à margem de tudo aquilo que
lhe é de direito, mas que dele dista, será
penalizado – de novo – ao ter que usar um
transporte coletivo caro e pouco efetivo ao
deslocar-se pela cidade. Poderia pensar na
bicicleta, mas a distância é longa e não há
sistemas de integração deste modal junto
aos ônibus ou, ainda, não verá segurança
em seu caminho, visto que falta uma malha
cicloviária que interligue todas as macrozonas ao centro e entre si. Nesse contexto,
é natural, nas periferias, que se queira escapar de tamanho engodo e, assim, lá vem
mais penalização. Afinal, pessoas se abstêm de uma série de outras necessidades e
se esforçam ainda mais para juntar as poucas economias que têm e, assim, comprar
(e depois manter) um carro como forma de
solucionar seu ir e vir.
Portanto, ao serem criados planejamentos urbanos que priorizam e privilegiam
o transporte individual motorizado, estimulando cegamente a sociedade a optar por ele,
não se está promovendo a justa mobilidade
social, aquela que é capaz de gerar oportunidades a todos.
(aqui, nem me alongarei com os
rombos negativos que, do solo ao ar, atingem a todos nós – ricos ou pobres, e tendo
ou não um carro. Rombos causados pelo
automóvel durante sua produção, uso e
posterior descarte)
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DE VIAS EM VÁRZEAS
Via Norte, Via Oeste...
Não seriam Várzea Norte, Várzea Oeste?
Sem disfarces, prefiro autênticos nomes.
Pedalando em tais baixadas... vejo bois e vacas pastando ao longo das vias, aquelas que
são suas várzeas – um cenário pitoresco da “tecnológica” São José.
Garanto que por ali... o doce perfume dos lírios do brejo exalando durante a noite... tocam somente quem percorre o caminho nu, sem invólucros.
E POR FALAR DA VÁRZEA... MAIS VIAS E MENOS VIDAS
Como pode uma favela bem na várzea?
É preciso cuidar das suas pessoas, é preciso cuidar da flora e fauna da várzea!
Urgentemente, é preciso cuidar!
Cuidar para embelezar, plastificar e depois vender.
Talvez, mais uma via na várzea – reflexo de um tratamento estético radical.
Profundo corte de nome que, fatalmente, fará jus a sua naturalidade: via BANHADO.
E as vias... aceleradas, longas e monótonas... em sua concretude, vão expulsando tudo –
gente, flora, fauna e o escambau –, ligando apenas lugares, e não pessoas.
POR ISSO É PRECISO RESISTIR PARA EXISTIR (A) CIDADE E (NA) CIDADE
Negras margens marginalizadas
Aqui perto da gente tem um rio, e as
pessoas ocupam suas negras margens, de lá
e de cá, sem ver suas águas. As pessoas correm... enfurecidas... bem mais rápido que o
rio... aceleram ao longo dele, sem se importar
de onde ele veio ou aonde ele vai. Saíram de
um ponto de partida e querem, logo, alcançar o da chegada. Não importa o que há no
MEIO. Querem, com seu MEIO MOTORI-
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ZADO, que rasguem a cidade com mais negras margens.
E assim seguem as margens dos rios...
marginalizadas e vestidas de negro asfalto.
Utopistas x autopistas
Pelo meu caminho, utopistas e autopistas.
Utopistas me acariciam, me abraçam
e, afetivamente, me dão bom dia, boa tarde.
Autopistas me repelem.
São vazias mesmo quando cheias
por evidenciarem quilômetros de tédio encarcerados.
Nota: não querem utópicos bicicleteiros ou pedestres nas autopistas. Logo, quando ali estou, de corpo fechado, sigo.
Anel viário que tudo encapa
Tá no anúncio da campanha eleitoral
e no folheto que convida para a plataforma
virtual. Tá no painel da padaria e nos pontos
de ônibus (logo ali?). Tá em toda parte, encapando tudo com aquela paisagem na qual se
veem carros passando pelas pistas de lá e de
cá. Se for imagem de paisagem noturna, são
luzinhas dos faróis que evidenciam os carros.
GENTE não se vê. Às vezes, dependendo da
perspectiva, torres e mais torres que parecem
competir pelo céu... também despontam.
O anel viário se tornou símbolo
imortalizado de São José sem que possamos
fazer escolhas.
Não se trata de querer desdenhar dessa obra projetada ainda nos tempos do prefeito Sobral (inclusive o complexo viário
em questão leva seu nome, Sérgio Sobral de
Oliveira). No entanto, ter que aceitá-la, ainda
hoje, como representação máxima da cidade,
como simulacro sagrado, é uma afronta.
O que foi uma solução urbana num
passado nos deixa, hoje, um legado de vazios
urbanos depois de feito o enorme estupro em
cada fundo de vale.
Mais do que o cartão-postal, é preciso reinventar as próprias soluções da cidade,
e lembremo-nos: são as pessoas que precisam se deslocar, percorrer caminhos... e não
os automóveis.
OSTENTAÇÃO
Acho curiosamente simbólico: na negra margem direita do rio Vidoca, quando ele está já
perto de encontrar o Paraíba do Sul, há uma concessionária de veículos chamada OSTEN.
E por falar em concessionárias, ao mudar a rota de oeste para leste, é também bastante
instigante se deparar com uma que ocupa simplesmente uma rotatória inteira, cerceando o ir e
o vir seguro de quem é MOTOR DE SI.
Seria a São José dos CAMPOS a São José dos CARROS? OSTENtar é preciso…
DOS PLATÔS PERIFÉRICOS, AVISTA-SE A MAJESTOSA MANTIQUEIRA
Quando se adentra as zonas sul e leste subindo... vamos ganhando as partes da SERRA DO
MAR. Fragmentos riquíssimos de Cerrado surgem. E é um rompante, em dias secos, nessas partes altas
da cidade – periféricas – observar claramente os contornos da SERRA DA MANTIQUEIRA.
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UMA PIPA NO CÉU, UMA CRIANÇA NA RUA. DUAS PIPAS NO CÉU, DUAS
CRIANÇAS NA RUA.
CENTRO X PERIFERIA
A cidade segregada em espaço, consequentemente, segrega nosso olhar.
Não brincam mais na rua, as crianças
do centro e de seus nobres arredores. Já nos
céus das periferias se veem as pipas... e nas
ruas de terra, tocos improvisam traves que
caem cada vez que a bola bate – tendo ou não
sido gritado o gol!
Muitos dirão: “mas hoje, lugar de
criança, seja lá onde for, não é mais na rua”.
Será mesmo? Desconfio.
Não foi somente a violência social –
essa também como fruto da cidade segregada – que arrancou e continua arrancando as
crianças das ruas. O apocalipse motorizado,
sem pedir licença, foi deixando claro que as
máquinas precisam passar e em alta velocidade. E elas passam...
PASSAGENS GERANDO PAISAGENS FICTÍCIAS
Azimute: Zona Oeste de São José
dos Campos, a que concentra a maior renda
média do município (R$ 8.938,13, segundo
a Pesquisa Origem e Destino do Município.
Para ter uma ideia dos tamanhos contrastes,
a média do município é de R$ 3.669,52, mas
em locais como o extremo norte do município é de R$ 1.910,23).
Eu não vejo, no caminho, o gigantesco descampado árido cada vez que passo pela
avenida Cassiano Ricardo. Vejo sim muitas pipas no céu que não esbarram nas torres típicas
dos investidores de um World Trade Center.
As pipas, pois bem, são dos filhos de gente
que integra um belo e oficial conjunto habitacional – com direito a muito verde e demais
equipamentos públicos – ali instalado. E digno é ver que pais e mães podem atravessar a
grande avenida caminhando para ir trabalhar
nas casas e comércios do lado de “lá”.
Miragem?
A lógica do planejamento mercadológico, que ergue a São José dos Campos da SEGREGAÇÃO, censura a minha utópica cidade.
ABERRAÇÕES DENTRO DO JÁ SEGREGADO
Sinto angústia cada vez que vejo, dentro dos condomínios horizontais, casas com cercas
elétricas. Que choque!
LUCRATIVA CULTURA DO MEDO
Essa gente que anda armada com uma tal de liberdade é perigosa para a cidade.
Gente que não se fecha em feudos contemporâneos – os condomínios – ou que se mistu-
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ra com gente feia e que não sobe muros e pouco ostenta não engrandece a cidade. Não colabora
em nada para a fake propaganda dos investidores; estes que mandam e desmandam, ditando,
portanto, a segregação urbana. Ricos de um lado e pobres do outro, bem oposto, bem longe.
Ao segregar e hierarquizar o espaço urbano, brota a cultura do medo que, por sua vez,
gera medonhos lucros, fomentando um ciclo vicioso, que torna as pessoas cada vez mais alheias
à sua cidade.
Sobem os muros e, junto, crescem as doses de drogas calmantes ou contra o pânico.
Ao nos cercarmos, cerceamos a nós mesmos.
LIVRES FLORES DE SETEMBRO
Ultrapassando os muros e cercas, atravessando avenidas e caindo também sobre os carros... lá estão elas, as flores de setembro. Em meio ao barulho da cidade segregada, ver – nessa
época – os ipês brancos me faz suspirar. Já tivemos os rosas, os roxos e os amarelos compondo
o passeio das floradas, porém, os brancos... nem consigo descrever.
Talvez, me toquem mais porque anunciam o fechamento de um ciclo que anuncia a chegada da primavera.
Pedalando junto a eles, suspiro.
MEIO SEM FIM
O inverno vai se indo e, aqui, meus excertos-cidade-pensamento também. Todavia, essa
é uma despedida apenas gráfica, pois a cidade e toda sua gente não param. Embalo junto. Os
pensamentos e sensações estão aflorados e nesse exato instante (é manhã) ouço vindo lá da
várzea (e não da via) o canto instigante de uma ave que nem sempre canta. Ou seria eu que nem
sempre ouço seu canto?
(DA) cidade e (NA) cidade, há uma infinidade de sons para serem ouvidos dentro de
paisagens que mudam a todo instante.
O MEIO NÃO TEM FIM
Colaboraram (e continuam colaborando) para essa profusão de sensações, @s seguintes
autores e autoras: Christian Dunker, David Harvey, Ermínia Maricato, Henri Lefebvre, Ivan
Illich, Jan Gehl, Jane Jacobs, Mike Davis, Ned Ludd e Raquel Rolnik.
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O olhar fora do eixo
de Célia Barros:
curadoria + artistas +
contexto artístico no
Vale do Paraíba
Carolina Bonfim
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o homem [...] é por assim dizer um animal que, tendo esfregado os
olhos, olha espantado à sua volta, porque se apercebe do outro, porque
tem diante de si um mundo que lhe foi dado como dádiva inexplicável.
É esta descoberta da existência do mundo que permite a entrada em
cena daquilo que é propriamente humano: língua, cultura, técnica,
arte, ciência, religião, mas também alegria e dor, amor e ódio.
F. J. J. Buytendijk
O olhar estrangeiro. Ao se estabelecer em um novo país, aquele que vem de fora passa
a formar parte de dois mundos: ser do seu país de origem e ser do novo lugar onde se encontra. No início, o olhar estrangeiro enxerga a nova paisagem de maneira renovada e sem vícios,
tudo o que é observado é apreendido sem filtros. Afinal, o estranhamento é próprio daquele que
se desloca. Interessada pela singularidade desse ponto de vista, convidei a Célia Barros para
contar o que se descortinou aos seus olhos ao chegar ao Brasil e como se deu a sua inserção no
contexto artístico do Vale do Paraíba.
Portuguesa, artista visual, curadora e educadora, Célia imigrou para o Brasil em 2005
após concluir a graduação em Artes Visuais na Universidade de Barcelona, Espanha. Vive no
Vale do Paraíba desde que chegou, primeiro em São Luiz do Paraitinga e logo em São José dos
Campos, cidade onde mora atualmente. É co-fundadora da Homens de Saia, produtora que realiza projetos curatoriais no Vale do Paraíba e no interior paulista, e nos últimos anos integrou a
equipe do educativo da Fundação Bienal de São Paulo.
Carolina: Como é o contexto artístico fora das grandes cidades? Como atuam e se
articulam os profissionais das artes visuais para tornarem possíveis seus projetos e suas
criações nesse contexto? São as perguntas que permearão a nossa conversa que tem como
objetivo entender uma realidade que eu não vivo e não conheço e que me interessa especialmente: aquilo que ocorre na margem, que não ganha destaque nos meios de comunicação especializados e que não chega ao centro, mas que está lá e existe. O que foi que o
teu olhar identificou e compreendeu ao chegar ao Vale do Paraíba?
Célia: Lembro-me que, nos primeiros meses, o que mais me impressionava era
uma sensação de utopia, de sentir que as pessoas ainda acreditavam na possibilidade de
transformar a existência. Os ambientes que
frequentava, tanto em Portugal quanto na
Espanha, eram desacreditados de um modo
geral. Ao chegar aqui, sentia-se uma vontade,
uma força e um acreditar que acontecia em
vários aspectos da vida, do pessoal ao pro-
fissional, passando pelo político. Isso é uma
coisa que até hoje me inspira. Eu que sempre me vi como uma pessoa de classe média
baixa, uma batalhadora, ao chegar aqui me
senti uma menina mimada, sem ideia do que
era “a vida real”. (pausa)A gravura brasileira
me apaixonou e também aprendi a vê-la com
outros olhos. Na Europa, existe uma resistência à xilogravura, como se fosse uma técnica mais precária, limitadora. Os gravadores
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brasileiros têm a capacidade de criar imagens
partindo de gestos simples. Não poderia citar
apenas um artista porque foram muitos; eu diria a gravura brasileira como um todo, sobretudo em São Paulo. Esse imaginário.
Certamente me reconectei com artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica. Suas
propostas se reativaram e, estando aqui e conhecendo a realidade do Brasil, ganharam outros sentidos. Mas isso aconteceu em várias
esferas, o fato de estar aqui modificou o que
pensava sobre cultura brasileira. Não que eu
tenha conhecido uma realidade oposta ao que
eu pensava, mas o sentido da coisa se alterou.
Um exemplo disso é a questão colonial. Eu
sempre soube que Portugal colonizou o Brasil e que os efeitos dessa invasão ainda repercutiam na cultura e na economia. Mas ao
chegar aqui e ver que todos falam a mesma
língua que eu – tendo um oceano inteiro de
distância – dá uma nova perspectiva a isso.
Conhecer os redutos de Mata Atlântica contrastando com os vastos campos de pasto ou
plantações de cana-de-açúcar é muito diferente de apenas “saber” disso. Encontrar os
“típicos” casarões antigos e não ver “ocas”
ou outro tipo de habitação, tudo isso me fez
perceber as questões coloniais de outro jeito.
Finalmente, me percebi, eu colonizadora, como colonizada. Isso me fez perceber que em Portugal já somos colonizados,
eu saí de lá colonizada. Somos colonizados
pelo pensamento eurocêntrico, queremos ser
centro e, nesse movimento, nos colonizamos
a nós mesmos. Isso me angustia porque não
vejo movimentos de saída tal como vejo aqui,
e isso tem sido um aprendizado fantástico.
Portugal e Espanha continuam a desejar atravessar os Pireneus, ser finalmente Europa.
Paralelamente, mas de alguma forma
conectado com o anterior, tive contato com
a questão indígena. Eu acreditava que já não
existia índio no Brasil e o que existia eram
populações pobres de origem indígena. Tomar contato com a problemática indígena
atual me abriu os olhos para uma dimensão
da vida totalmente desconhecida: a possibilidade de se criar e se entender enquanto sujeito, que normalmente acontece em processos
de resistência.
Enfim, ao chegar aqui eu senti que
se levantava um espelho enorme na minha
frente. Pela primeira vez me senti portuguesa, me percebi colonizadora e colonizada.
Acho que até hoje continuo tentando atravessar esse espelho.
Carolina: Ainda dentro da tua percepção de recém-chegada, como você descreveria
o panorama artístico-cultural do Vale do Paraíba?
Célia: Em 2006, eu fui viver em São
Luiz do Paraitinga, onde conheci a cultura
popular da região que, segundo o antropólogo
Carlos Brandão, seria o “último reduto caipira1”. A questão do “caipira” é até hoje forte
em todo o Vale do Paraíba, estigmatizando
esse personagem em todas as festas juninas
e outros eventos similares. Acontece que essa
figura já quase não existe e, se existe hoje,
é uma pessoa totalmente diferente. Por outro
1. A expressão faz referência à pesquisa de campo intitulada “A lógica da terra: a percepção da natureza e apropriação do meio
ambiente entre camponeses tradicionais da Serra do Mar e da Serra da Mantiqueira”, de Carlos Brandão, realizada nos municípios de São Luiz do Paraitinga e Joanópolis entre 1991 e 1994.
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lado, essas cidades se sentem constantemente
numa pressão de se equiparar a São Paulo. Os
bons profissionais de qualquer área evadem
em direção a São Paulo, e as cidades ficam
aquém de bons projetos. Nesse movimento,
quem fica ou quem retorna acaba se colocando num lugar de resistência. Ficar é resistir a
ser capital, é ser caipira sim, com sua cultura regional, seu “erre” enrolado. O mercado
cultural do Vale do Paraíba se alimenta desta
eterna “caipiralidade”. Desde vertentes mais
pitorescas às mais sofisticadas, estilo “gourmet caipira” sem agrotóxicos, quase toda a
produção converge de alguma forma para
essa ideia.
Nas artes visuais os artistas dificilmente dialogam com essa questão, o que dificulta o encontro com o público e o mercado.
Taubaté e São José dos Campos têm alguns
espaços culturais e museus. Nem são tão
poucos assim para o tamanho das cidades,
mas a questão é que são espaços extremamente precários. Era assim em 2006 e hoje
continua igual.
Em Jacareí, existe o Museu de Antropologia, cuja programação oscila muito. De
tempos em tempos tem um projeto de programação, mas geralmente cai na dinâmica de ir recebendo artistas que se oferecem
para expor ou receber exposições de outras
instituições.
Em São José dos Campos, existe o
Museu do Folclore, gerido pelo Centro de
Estudos da Cultura Popular, que é um espaço
pequeno, mas com uma curadoria cuidadosa.
A exposição é permanente, entretanto o museu promove o projeto Museu Vivo que, a
cada quinze dias, propõe uma vivência. É um
espaço que se destaca da situação cultural e
que, em 2014, com o apoio da Petrobrás, deu
início ao projeto Ecomuseu. Nesta mesma
cidade, existe o Sesc e o Sesi, (que também
existem em Taubaté) com toda a infraestrutura que conhecemos. A minha avaliação é
que a gestão tem uma enorme dificuldade de
compreender e propor uma programação para
o público dessa região. Como propostas mais
“contemporâneas” não atraem, a programação tende a cair na tal “caipiralidade”. No geral, a programação fica num “bom tom” geral,
coisas de média expressão, que não chocam
os tradicionais olhos caipiras e agradam um
pouco a quem tem uma expectativa diferente.
Eu, por exemplo, eventualmente me considero público dessas instituições.
Existiu também a galeria de arte Miriam Badaró em Taubaté, que comercializava
obras de gravura e pintura de artistas daqui
e de São Paulo. Alguns artistas conseguiram
formar circuitos internos de venda de obra
com arquitetos ou círculos de amigos com
situação financeira compatível. Mas no geral
ninguém sobrevive apenas do seu trabalho artístico, tem sempre outro suporte financeiro.
Carolina: Além dos espaços que você acaba de citar, quais outras alternativas existem para que o profissional que se dedica à prática curatorial ou artística desenvolva seu
trabalho?
Célia: A educação é sempre uma
opção. O artista opta por dar aulas, seja na
universidade (Univap, Unitau), seja nas escolas públicas ou no seu ateliê. Aconteceram
alguns projetos visando conquistar o espaço
público, mas São José dos Campos é uma
cidade de tradição militar, então essa negociação é sempre dura. Alguns espaços co-
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merciais propõem uma programação cultural
de tempos em tempos. Isso acontece no shopping, em escolas de idiomas – como Yázigi, Cultura Inglesa ou Aliança Francesa – e
em laboratórios de análises clínicas, como o
Oswaldo Cruz ou o Instituto de Oncologia do
Vale.
A Homens de Saia começou assim,
quando em 2008 o Yázigi nos convidou
para montar uma programação. E aí surgiu
o Y-artproject. A partir desse trabalho o
Shopping Colinas nos chamou para fazê-lo
ao longo de um ano. O desafio era montar
um projeto que dialogasse com a instituição,
com os artistas, agentes culturais da cidade e
possíveis públicos. Esse diálogo não era pacífico. Os interesses são distintos e, às vezes,
excludentes.
Figura 1 - Exposição Seres - Projeto Terra Viva, 2010, Shopping Colinas, São José dos Campos/SP
Fotograia Paulo Pacini.
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Carolina: Laboratórios de análises clínicas, shoppings e escolas de idiomas são
lugares com arquiteturas, públicos e propósitos – supostamente – adversos à arte. Quando artistas e curadores optam por realizar projetos em espaços não convencionais, geralmente são motivados por razões estéticas e/ou conceituais. Agora, quando não existe
alternativa e os “lugares adversos” são a única opção, uma nova carga de sentidos é
dada ao projeto. Em quais aspectos você teve que se reestruturar, se reinventar e rever
preconceitos?
Célia: Precisamente no uso desses
espaços como espaços culturais. Eu já tinha um interesse pelos “espaços com vida”
e buscava lugares com características diferentes do cubo branco. No ambiente da escola de idiomas, começamos promovendo o
encontro com a arte no ambiente cotidiano.
Logo isso se revelou contraproducente com
o dia a dia da escola, já que as propostas
artísticas vinham a incomodar, deslocar ou
provocar alterações que, por mais mínimas
que fossem, causavam transtorno. Era preciso movimentar toda a escola nesse sentido.
Toda a equipe tinha que fazer parte do que
estava acontecendo, caso contrário encontrávamos obras fora de lugar, por exemplo.
Figura 2 - Exposição Zonas - Projeto Terra Viva, 2010, Shopping Colinas, São José dos Campos/SP
Fotograia Paulo Pacini.
43
O shopping foi outro momento de se
rever. Quando apareceu o convite não ficamos
nada motivados. Colaborar para a imagem do
shopping e competir com a visibilidade do
consumo era algo que não compartilhávamos, além da pouca infraestrutura que nos
ofereciam. Tentamos recusar, mas acabamos
percebendo que o shopping se transformou
na praça contemporânea. É para lá que as
pessoas vão passear. A nossa pesquisa partiu
dessa ideia e foi por aí que desenvolvemos
o projeto. No final ficamos extenuados, porque é difícil negociar com um shopping. Os
horários e os procedimentos são rígidos, sem
contar os “rituais” de segurança. Se no Yázigi
era fundamental ter como parceiro o pessoal
de limpeza e de manutenção, no shopping era
com os bombeiros.
Carolina: Nessa via de mão dupla, em que a proposta curatorial ia alinhavando
novos discursos à medida que se adaptava às negociações e às particularidades do espaço,
como se dava o diálogo com o artista? E de que modo esses projetos possibilitavam mapear
a cena artística da região?
Célia: No geral, a conversa com os artistas sempre era no sentido de fazer o trabalho acontecer com a realidade que tínhamos.
Nosso esforço ia no sentido de conseguir que
a exposição estivesse viva, mesmo com poucos recursos. São menos fotos, mas no formato ideal? Uma projeção pode funcionar
melhor? Tínhamos intermináveis conversas e
muitas vezes acabávamos por interferir bastante na obra. O importante era que essas interferências fizessem sentido para o artista e
para o projeto em si.
Houve a preocupação de incluir artistas de outras cidades que também estivessem fora dos centros Rio e São Paulo, mas
não conseguimos ir muito longe. Apenas nos
mantivemos no Vale do Paraíba. A ideia era
ir ampliando a rede, mas foi um projeto que
durou apenas três anos. Até aquele momento
era difícil sair da cidade pois não tínhamos
dinheiro para bancar o transporte do artista.
Éramos nós que íamos até o ateliê deles. Tínhamos uma moto e muita energia. Chegamos a fazer várias reuniões em Taubaté, Pindamonhangaba e em Lorena.
O mapeamento dos artistas também
44
se dava por meio de conversas, pesquisa no
acervo do Yázigi e encontros fortuitos. Em
2008, acontecia em São José dos Campos
uma reunião de artistas chamada Encontrão.
Aí fui mapeando o que ocorria na região, pois
as pessoas comentavam acontecimentos passados, épocas, movimentos artísticos e alternâncias de política cultural. Na coleção de
arte do Yázigi tem vários artistas da região.
Aqueles que eu não conhecia pessoalmente,
eu contatava para conhecer a produção atual
e tentar montar algum projeto. Lembro-me do
Luiz Tejuh que tinha uma pequena obra na
coleção que eu adorava, mas a produção dele
tinha mudado completamente e tive dificuldade de dialogar com esse novo formato. A
Maté morava em Lorena e fomos até lá. O seu
trabalho estava mais centrado na ilustração,
na época conversamos bastante e cheguei a
fazer um convite, mas na época ela não pôde
aceitar. A Tamara Andrade e o Egídio Rocci
eram frequentemente citados nas reuniões.
Na época, marcamos um encontro e eles fizeram questão de ir até São Luiz do Paraitinga.
Mais tarde eles colaboraram em vários projetos. Cheguei a encontrar a Mônica Nador,
que trabalha em São Paulo mas que é de São
José. Começamos a montar um projeto, mas
no meio vi que não ia ter força para dar conta de alguém que por pouco que necessitasse
sempre ia precisar de mais do que eu podia
oferecer. Optei por deixar esse projeto na gaveta, a minha ideia era conquistar mais apoio
e negociar melhor a estrutura do projeto com
o Yázigi, mas isso não acabou acontecendo.
Então, elaboramos uma outra proposta que fizesse sentido para o Yázigi e o seu
público, que me fosse instigante e que valesse
a pena para os artistas. Como não podíamos
oferecer muita coisa, nem cachê nem ajuda
de custo para a produção da obra, elaboramos
um projeto gráfico de divulgação que valorizasse o trabalho do artista. Resolvemos juntar pelo menos dois artistas em cada exposição, provocando algum debate entre as obras.
Nesse percurso, aconteceram vários
projetos que até hoje são significativos para
mim, como a exposição Cidade Refugo,
com o Giancarlo Ragonese e o Thiago Mild.
O primeiro é gravador, e o segundo é grafiteiro. Ambos percursos artísticos passavam
pelo contato com a rua. Os dois fizeram várias obras para a exposição motivados pelas
conversas que aconteceram na preparação da
mesma.
Depois teve a Cidade Memória, em
que juntamos o George Gutlich e o Akira
Umeda. O George é gravador, geralmente trabalha com gravura em metal, e pintor.
Uma das suas principais referências é Rembrandt. É um artista que se preocupa com o
primor técnico, com a erudição teórica e é
um questionador da produção artística contemporânea. Ele formou grande parte dos
artistas da região. Já o Akira é formado em
história e trabalha com grande variedade de
meios como desenho, cerâmica, som, vídeo
e performance. Eles têm aproximadamente a
mesma idade, vivem e trabalham na mesma
cidade, mas a maneira como a olham é totalmente diferente. Foi interessante para mim
expor os dois lado a lado.
Figura 3 - Exposição “Cidade Memória” - Projeto INSUSTENTÁVEIS, 2008, Yázigi São José dos Campos/SP
Fotografia: Célia Barros.
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Outra experiência que me marcou foi
a exposição Cidade Futuro, quando juntamos
o César Baio e a Pitiu Bonfim. O César desenvolve pesquisas que envolvem novas tecnologias, arte e cultura. A Pitiu é artista visual
e arte educadora. Trabalha em ONG’s, ateliês
públicos e escolas particulares. Convidamos
os dois e juntos pensamos a exposição que foi
quase toda inédita. Nesse caso, o César conseguiu apoio de uma produtora da cidade e
pôde montar duas instalações. A Pitiu desenvolveu dois trabalhos com alunos da escola
particular Esfera e da ONG Recriar. Para a
escola Esfera ela pediu que eles desenhassem
um postal com a cidade do futuro. A maioria
dos alunos desenhou mundos inóspitos, devastados ou dentro de uma redoma. Um deles
desenhou um sapo que era engolido por um
inseto, com a inscrição “No futuro a mosca
engole o sapo!”.
Figura 4 – Exposição “Cidade Futuro” - Projeto INSUSTENTÁVEIS, 2008, Yázigi São José dos Campos/SP
Fotograia: Célia Barros.
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Carolina: Segundo Lisette Lagnado, a curadoria pode ser entendida tanto como
a elaboração e a composição de uma amostra de um acervo artístico ou cultural, como
também ser uma proposta que pode ir além do mencionado anteriormente. É nessa
perspectiva de “ir além”, apontada por Lagnado, que eu localizo muitos dos teus projetos. Gostaria que você falasse do Projeto Curadoria Coletiva.
Célia: O Projeto Curadoria Coletiva
foi uma proposta que partiu do SISEM (Sistema Estadual de Museus de São Paulo) com
o objetivo de repensar sua atuação na rede estadual de museus. Até então o SISEM oferecia exposições e formações gratuitas para os
museus públicos do Estado e possibilitava que
os museus da mesma região aproveitassem as
oportunidades que eles ofereciam de forma articulada. No entanto, essa articulação acontecia com dificuldade, pois os gestores precisam
acompanhar as reuniões sem qualquer apoio
financeiro por parte do SISEM ou da prefeitura. O projeto Curadoria Coletiva visava três
tópicos a serem explorados: programação,
formação e articulação. Através da nossa intervenção, o SISEM desejava que nesse curso os gestores aprendessem sobre curadoria e
montagem de exposições para, futuramente,
desenvolverem projetos próprios.
Curadoria Coletiva aconteceu com os
museus da região de Sorocaba com um grupo de gestores que já estavam articulados,
inclusive começando a formular projetos en-
tre si. Foram dez museus de diferentes perfis, desde os tradicionais museus da cidade
a museus histórico-pedagógicos ou de arte
contemporânea. Propusemos uma formação
estruturada em nove encontros, sendo que no
primeiro discutiríamos o tema a ser desenvolvido e no nono teríamos que inaugurar
uma exposição. As pessoas deveriam aprender a pensar sobre exposições fazendo uma.
Foi um desafio encontrar um assunto que
fosse relevante para todos os espaços, bem
como a forma de abordá-lo.
Como principal fruto desse processo, eu apontaria o fortalecimento do grupo,
o amadurecimento do trabalho e um avanço
significativo nos debates e discussões. A exposição em si também foi um grande resultado, além de ter sido pensada para os públicos
das cidades (esse foi um tema ao qual voltamos diversas vezes ao longo do projeto) também conseguiu se destacar na proposta visual. A exposição itinerou por 7 dos 10 museus
participantes e em todos eles foi um marco na
programação.
Carolina: Ao mesmo tempo que você desenvolve diferentes projetos no Vale do Paraíba e interior paulista, você também trabalhou como articuladora nas Ações de Difusão
das últimas duas edições da Bienal de São Paulo. Realidades praticamente opostas. No vai
e vem dessas experiências, o que era levado da Bienal para a tua realidade na Homens de
Saia e vice-versa?
Célia: No início, esse contraste foi
uma experiência marcante. Desde 2008 vivíamos praticamente de produção cultural
com projetos pequenos que foram crescendo
pouco a pouco. Experimentamos aquela sensação de ter um orçamento de R$ 20.000,00
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e acharmos que seria suficiente para realizar uma exposição incrível, mas logo descobrimos que não seria bem assim. Quando
começamos a lidar com orçamentos de R$
50.000,00, fizemos um trato: não dava pra
continuar reclamando que a grana era pouca,
a gente tinha que se adaptar e aproveitar o dinheiro ao máximo. Quando entrei na Bienal,
esse tipo de questão ganhou uma proporção
descomunal, eu ouvia as pessoas reclamarem
que R$ 80.000,00 era pouco para uma publicação! Esse tipo de contraste acontece o tempo todo, a Bienal tem orçamento para fazer
uma exposição muito maior do que a maioria
dos municípios destinam para a secretaria da
cultura anualmente.
Outro contraste é a visibilidade de
qualquer coisa que acontece na Bienal. Trabalhar ali é se expor a um vendaval constante
onde você precisa estar consciente daquilo
que pensa e pronto a se repensar a todo o instante. Logo no início me senti uma mosquinha com a minha Homens de Saia, e essa foi
uma ótima sensação. Eu descobri que era pequena, leve e livre.
Eu gosto demais da experiência desse
contraste. Hoje as coisas já passam mais desapercebidas, me acostumei com as diferenças, mas continuo a sentir prazer em trabalhar nas duas escalas. Foi logo após entrar na
Bienal que chegou o convite para fazermos a
Curadoria Coletiva. Os dois projetos conversavam o tempo inteiro, eu transitava entre um
e outro, me alimentando reciprocamente.
Agora, quando você me pergunta se o
que acontece no interior chega à Bienal e vice-versa, eu diria que a Bienal chega a quem
está interessado nela. Se a pessoa não tem
interesse no que está sendo produzido ali,
então é como se a Bienal nem existisse. Por
vezes, se reduz simplesmente a uma marca
que dita modas e influi no modo de produção
contemporâneo. A instituição e as equipes de
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curadoria têm se preocupado em abrir espaço
para novos tipos de produção e artistas jovens de todo o Brasil. Mas convenhamos que
o Brasil é um país continental com bastante
gente fazendo e propondo coisas, e uma Bie-
nal com 80 projetos não consegue nem de
longe dar conta disso.
Desde 2009, deu-se início à itinerância da Bienal em diversas cidades do interior
de São Paulo, e com ela a formação dos me-
diadores e encontros com educadores. Nesses encontros, dependendo da cidade, nos deparamos com educadores em situação laboral
precária em que a reflexão sobre educação
em museus mal começou.
Figura 5 - Exposição “SINAIS, heranças e andanças” – Projeto Curadoria Coletiva, 2015
Galeria Fórum das Artes, Botucatu/SP
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Carolina: Qual é a distância entre São Paulo e o interior paulista?
Célia: Acho que a distância é o nosso olhar e aquilo que conseguimos enxergar
com as lentes que temos, tanto num lugar
como no outro. Existem alguns projetos que
tentam promover o intercâmbio entre estas
realidades tão diversas, o ProAC e o Rumos
são exemplos disso. Penso que esses projetos procuram encontrar no interior algo que
possa equivaler ao que se encontra no centro. E aqueles que estão no interior procuram vestir uma imagem que se identifique
com a contemporaneidade dos grandes centros. Repetimos nomes de autores e frases
antenadas. Eu mesma procuro me desvencilhar disso e estar atenta a uma “autenticidade” que não precisa ser original, mas quando me olho ao espelho percebo o quanto sou
influenciada pelas esferas que produzem
discursos e os reproduzo. Precisamos estar
continuamente atentos a perceber se os dis-
cursos e as imagens que vão sendo produzidos nos interessam de verdade.
Nesse sentido, um projeto com o qual
estou animada é a exposição Pedras são preciosas, de Elisete Alvarenga, selecionado
pelo ProAC 2016 – Edital Obras e exposições. Já conheço o trabalho da Elisete faz
tempo e sempre me tocaram aquelas imagens tão singelas e ao mesmo tempo densas. A Elisete é de Botucatu, tem 63 anos e
começou sua atividade artística tardiamente.
Tem um jeito tímido e muitas dúvidas sobre
o seu trabalho. Eu via a força daquelas imagens e fiquei com vontade de montar uma
exposição para podermos enxergar a potência daquela produção. É um trabalho que me
devolve uma imagem do mundo. Quero trabalhar isso sem que haja a necessidade de
elaborarmos conceitos e justificativas que
estão para além do trabalho.
Carolina: Se passaram doze anos desde a tua chegada. O que é que o teu olhar
avista nessa paisagem?
Célia: Quando olho para o momento
que estamos atravessando, lembro de todos
esses acontecimentos e sinto que o momento é de grande transição. Nada será como
antes e precisamos nos reinventar de novo.
Respondendo às tuas perguntas, vejo que
artistas e agentes culturais nos transformam
em seres híbridos confundindo conceitos e
50
categorias. Talvez agora já não haja mais o
que fundir ou questionar e precisemos apenas ser. O Paulo, meu companheiro e sócio de todas essas invenções da Homens de
Saia, morreu faz um ano e há seis meses o
Brasil viveu um golpe de estado. Pareceme que só podemos renascer das cinzas.
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Terra de Siena
e Verde Cacto
Para Francisco Goya
Marcus Groza
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O canto era desolador. Das casas do vilarejo ali perto não se
ouvia nada. Mas de onde eu estava ouvi tudo perfeitamente. Desde o
princípio.
A fumaça é uma canção que desaninha os pássaros. Foi só questão de tempo, a claridade do fogo atraiu algumas pessoas. Diziam os
sertanejos de um fenômeno macabro chamado fogo-emboscada. É
quando o incêndio na mata rodeia a pessoa, feito tentáculos em torno de
um pescoço frágil. Sempre falavam desse tal fogo-emboscada. Eu tinha
medo disso quando era pequeno.
Agora uma mulher sentada num tronco tombado, à beira da
mata. Linda. De vestido branco e o fogo iluminando. Ela tirava da garganta uma entoação medonha. Uma tristeza desgraçada. Enquanto tive
olhos, chorei. Mas, na severidade da água, a lua não é um tambor...
Eu fiquei fascinado por esse canto que começou junto com o
fogo. A mata verde queimando era um concerto de chicotes e estalos.
Um velho que entende a língua das ciladas me disse que, antes de bombardear os grandes castelos, é preciso mandar pedidos de vassalagem.
E condição é ser aceito! Pois do contrário dirão que foi ressentimento,
má consciência.
As piores ciladas preparamos a nós mesmos.
Alguns já descartavam a hipótese de um incêndio acidental. É
um fogo-emboscada! Quem se atraiu pelo clarão chegou a tempo de
testemunhar o fogo em todo seu balé. Desde a primeira fagulha, farto
pelas bordas. Os bichos começaram a sair, um preá do mato, uma cobra
e muitos roedores. O estardalhaço dos pássaros fugindo do fogo. Como
um corpo pesado e sensual, o incêndio demorou sete horas para concretizar o seu domínio e cercar a construção que ficava ao lado da mata.
Uma construção. Não vou chamar aquilo de casa.
Ao longo de sete horas, a mulher continuou cantando, cantando.
Depois da terceira hora, algumas pessoas começaram a ficar com a cara
torta, ao olhar para o fogo. Algumas fugiram, desfiguradas. Outras, com
medo. A mulher belíssima sobre o tronco, seu canto, o incêndio. Alguns
permaneceram e insistiam em olhar.
Apesar de fascinado, cochilei duas vezes em cima da pedra onde
estava. A voz da mulher, a um só tempo, me amedrontava e acalentava o
sono.
Quando acordei pela segunda vez, já estava muito quente. Cantando, a mulher consagrava os elementais. Com esse canto, ela alimenta
a língua de escombros em que seus filhos um dia vão chorar as primeiras
dores.
Quando o fogo chegou mais perto, no entanto, a mulher que cantava deu três gritos lancinantes, longos, e desapareceu dentro da mata,
murmúrio-cantando. Não havia mais ninguém ali com olhares gulosos:
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os poucos que permaneceram estavam saciados. A voz, já distante, foi
se convertendo em transe: o silêncio dos olhos vidrados diziam sobre
um orvalho que não alivia as queimaduras.
Esse cantar fantasmagórico e aconchegante teve para mim um
tom de perdição. Até hoje não entendo exatamente o que significou
aquilo. Mas aceito que a morte também é uma cura. E isso não cabe só
na boca de um padre. Que não haja relutância na morte, o pior é ficar
morrido. Foi de adolescente que entendi. Não estar morto não é o mesmo que estar vivo. São muitos os que não estão mortos, mas andam por
aí morridos. Transformados em cupinzeiro no meio do percurso.
Virar cupinzeiro ninguém quer. Ou ao menos não quer ser percebido como tal. Mas a olhos treinados é possível distingui-los facilmente, e são cada vez mais numerosos. (E saibam que hoje existe até
cupinzeiro apreciador de arte. E estes inclusive a custeiam, graças a
Deus! O que seria de nos sem o mecenato?) Há alguns anos, o cupinzeiro-mor me nomeou Primeiro Pintor da Câmara e me pediu que fizesse
seu retrato. Dois na verdade. Um primeiro com ele sozinho, cupinzeiro
majestoso. Outro o retratando com a bunda na cadeira, ao lado de sua
senhora em pé. Como não teve filhos, acho que deseja ao menos perpetuar uma boa imagem para o futuro.
Fungos proliferam enquanto o pintor prepara os pigmentos.
Depois na tela, fungos, a imagem, traças, baratas, intempéries,
possíveis incêndios. Usar feito pincéis a língua desses insetos que, atraídos pelo cheiro, virão de madrugada lamber a pintura.
Pintar com a tinta bruta que é a ação do tempo.
Quando aquela mulher desapareceu, o fogo logo arrodeou a
mata e abraçou também a construção. Eu assisti a tudo até o fim. A
construção tinha sido casa de campo dos meus pais e vínhamos para
cá na minha infância. Mas já não tinha telhado nem nada. O incêndio,
antes lento ao queimar as árvores verdes, consumiu a construção rapidamente. E o que estranhei é que nenhum dos que permaneceram até
o fim ficaram com a cara torta. Ou talvez nós já trouxéssemos de antes
o rosto transfigurado, só as pessoas olhando não conseguiam perceber.
Naquela noite de incêndio, começou a manifestação do que só
compreendo plenamente agora. Logo que acabou o fogo, fui para sede
da propriedade. No sótão, achei uma têmpera que tinha misturado na
semana anterior. Estava embolorada, fedendo. Pintei um autorretrato.
Quem olha de relance vê um cupinzeiro.
Às vezes, olho no fundo do copo e a borra de café não me diz
nada. Mas no primeiro olhar é assim mesmo. Então fecho os olhos, forte. Pálpebra contra pálpebra. Nem que precise apertar os dedos até ver
o céu estrelado. Um céu estrelado sempre à mão, como o autoritarismo
do espelho. Aperto de novo. As estrelas são búzios lançados. O espaço
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sideral parece feito d’água, as luzes são bolhas de ar subindo, muitas. A
água, borra escura. Até que tudo isso começa a ganhar um tom avermelhado. A água da privada vai ficando vermelha, desde o primeiro jato. O
vermelho escuro surge vagarosamente, porque o jorro não é tão intenso.
Gota por gota.
É assim que um pintor descobre que está morrendo.
Foi assim que descobri. Ou, ao menos, é assim que quero lembrar. Urinar uma infestação de vermelho. Depois, quando surgir o pus,
vai clarear um pouco e prevalecer tons de terra de Siena.
Passei aquela madrugada pintando, à luz de velas. Internamente,
continuava a ver aquela mulher, a ouvir seu canto.
Dormi pouco e sonhei com uma voz que falava comigo. No sonho, a voz muito próxima. Eu podia sentir o seu calor. Mas não podia ver
seu rosto. Até que a voz e o calor me foram tirados. Me acordavam.
O cupinzeiro-mor – que também responde pela alcunha de Ferdinando VII – te convoca com urgência!
Numa monarquia, quem ministra o belo é requisitado às pressas
como não o são os médicos. Morrer não é tanto o problema. A questão
crucial para o rei é a imagem que ele deixará para a posteridade. O rei
tem uma gripezinha e já acha que vai morrer. Convoca toda a corte e os
cargos mais altos não podem recusar o convite.
Voltei para a capital imediatamente. Mas dessa vez não era gripe.
Uma excursão.
Vossa Majestade quer um afresco? Em San Hernandez?
Vamos eu, você e esse séquito de péla-sacos!, ele disse.
Quase um mês. A missão era transformar as ruínas de um templo
mouro em igreja cristã. (Uma reconquista fora de época)
San Hernandez fica a umas oito horas da capital. Saímos cedo.
Oito carruagens e uma pequena tropa seguimos para sul.
Embarquei num carro com um padre e um cardeal. Era uma
cabine espaçosa e pude dormir bem as primeiras horas. O cardeal era
uma velha raposa conhecida. O padre, um sujeito careca com ares de
quem acabou de ser vestido pela mamãe. Há anos nos conhecíamos
de vista. Falava pouco e sorria. Um bom companheiro de viagem,
pensei, antes de adormecer.
O sono foi se agastando, ficou tão leve que não resistiu mais aos
solavancos. Sentei e vi que o cardeal dormia pesado, babando. O padre
entre cochilava e olhava pela janela. Conversamos um pouco. Era inteligente e afável. Quando dei mais trela, disse ser amante da filosofia.
Com olhos vivazes, gostava de enfatizar – como depois o vi fazendo
publicamente – o primor da cultura árabe que havia mantido os escritos
e a sabedoria dos antigos. À cultura árabe devemos não sei quantas
proezas e descobertas... destrinchava a sua ladainha erudita. Quando
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perguntei o que pensava dos tempos sombrios em que vivemos, fez
uma pausa e uma cara de criança desiludida. Quando ia abrir a boca, foi
interrompido por uma abrupta parada.
Descemos.
Havia um pequeno lago à beira da estrada. Eu precisava mijar
e havia decidido não ficar mais analisando a cor da urina. Seja azul,
violeta, âmbar! Que me importa?! Urinando no lago, contemplava as
nuvens. Mas, ao ouvir o barulho da urina na água, imaginava o branco
das nuvens se avermelhando cada vez mais.
Antes que terminasse, ouvi alguém vomitando.
O rei.
Ele vomitava e praguejava contra os serviçais a sua volta, que o
assistiam cheios de dedos e mil toalhas ao redor. A culpa por ele passar
mal evidentemente é deles. Mas, se o seu vômito não formasse uma
bela imagem na terra, a culpa então evidentemente seria minha.
Quando cheguei perto da comitiva para beber água, ouvi sua
voz pedindo que eu passasse para o seu carro. Incrivelmente, tinha um
tom de pedido na sua voz. Acho que passar mal trazia algo de ternura e
delicadeza para o temperamento real.
Seguimos viagem. Somente nós dois na sua cabine.
– Acho que tenho exagerado nos vinhos.
– O mal é preciso temperar, já dizia Paracelso.
– Sim. Mas depois de velho, tudo é ruína e destempero.
– Então, Vossa Majestade deveria maneirar um pouco nos vinhos.
– E como suportar essa vida?
Ele estava suando frio. Os solavancos pareciam golpes de açoite
no seu cangote. Olhava para mim, afligido. Quase tive pena. Depois de
um tempo, ele começou a ficar meio verde. Até que não aguentou e deu
com a bengala na janela da cabine à frente, onde estavam dois guardas e
o cocheiro. Com o golpe, o carro logo estacou. Um dos homens desceu,
demorou um instante e voltou com um recipiente. Depois de sorver com
afinco, o rei encostou a cabeça pra trás e assim se abandonou por alguns
minutos. Depois deu nova bengalada e seguimos.
O rei buscou curativos no silêncio por um tempo. Continuava
meio verde, agora com um sorriso flácido e olhar morteiro. Logo percebi que havia alguma droga no que ele tomara. Depois me falou:
– Isso que me deram bem podia ser um veneno letal?!
– Podia, sim. Mas acho que não seriam tão bondosos para com
Vossa Majestade!
– Imagina uma morte dolorosa pra mim?
– Imagino.
– Como? A guilhotina?
– Não, isso é coisa de francês.
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– Ah, já sei. A fogueira!
– Faria mais jus à nossa história obscurantista!
Sorriu. Parecia um pouco melhor.
– Então, além do afresco, quero aproveitar esta viagem para que
você pinte outro retrato meu!
– Podemos começar assim que chegarmos.
Respondi, olhando para sua cara verdolenga e lembrando da
minha própria figura no autorretrato pintado com a têmpera podre. A
primeira intuição surgiu ali. Pintar com a tinta bruta que é a ação do
tempo. Mas a confirmação e o aprimoramento da técnica vieram pouco
a pouco.
Passamos um mês ameno em San Hernandez. Quando cheguei às
ruínas, as paredes se escondiam atrás de uma crosta manchada, formando
uma coloração sombria. Meu olho ao ver aquilo de imediato fantasiou pintar ali um Sabá de Noivas Carecas, mantendo aquelas manchas de fundo.
O que esperavam que eu pintasse, entretanto, era mais uma Anunciação.
Pintei. Os construtores da comitiva trabalharam duro. A ruína
moura rapidamente se converteu numa suntuosa capela cristã, que foi
mantida sem teto. Um templo ao ar livre.
Nesse mês em que lá ficamos, rabisquei alguns esboços para o
novo retrato do rei. Mas, como o afresco tomou bastante tempo, o retrato ficou em segundo plano. Depois da missa rezada pelo cardeal e pelo
padre elogiador da cultura árabe, a comitiva pode finalmente voltar para
a corte.
Todo o tempo de estadia em San Hernandez, abelha atarefada,
me abstive de olhar para a cor da urina. Como não doía tanto, fui me
esquecendo a terra de Siena e o vermelho sangue.
Ao chegarmos, o rei voltou a falar do retrato. Combinamos que
eu descansaria duas semanas e retornaria para pintá-lo.
De volta à casa de campo, logo observei que o autorretrato que
havia feito estava ficando verde. Quando o pintei, tinha concebido um
rosto em tons escuros, meio esverdeados. Entretanto, o quadro estava
bem mais verde do que antes. Nos dias seguintes, passei diante dele sem
olhá-lo, como quem convive com uma caixa repleta de prodígios e epidemias e não ousa tocá-la. Era inegável que a minha feição no quadro
estava mudando de cor e contornos.
Preparei nova têmpera. Com parte da tinta, pintei outro autorretrato. O que sobrou deixei velhando, para pasto de fungos e bactérias.
Antes do que eu esperava, a tinta já tinha um cheiro ruim e uma camada
de bolor. Então pintei um pequeno Cortejo de Alienados. Nem essa pintura nem o autorretrato tinha qualquer tom de verde.
Passado algum tempo, minhas suspeitas se confirmaram. O primeiro autorretrato estava ileso. Já o quadro que pintei com a tinta em-
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bolorada já dava sinais.
Algumas pequenas manchas verdes.
Deixar no sol.
E as manchas se revelam mais rápido.
Virou um Cortejo de Alienados Verdolengas. Ainda mais ao
meu gosto.
Aquela noite, não consegui dormir. Se juntasse as pálpebras e
apertasse os dedos, o céu estrelado seria uma catástrofe interestelar ou
alguma outra coisa medonha. Não dormi e foi melhor assim. Tomei
uma garrafa de vinho. Estava meio atormentado, só preguei os olhos
quando o sol já se levantava.
Sonhei com uma mulher que trabalhava para os latifúndios da
noite. Ela descia as ladeiras, escorrendo os pés pela crosta fina e transparente, quase invisível, de meteoros acesos com que as ruas tinham
sido pavimentadas. Então, essa mulher chegou a um pequeno palco e,
deixando a nu suas escoriações, foi agarrada e erguida por uma cerca
elétrica de espinhos e breu. O começo de uma sessão de sadismo para
bêbados e desocupados, pensei. Mas junto aos primeiros gritos de dor-prazer dessa mulher, ouvi ao fundo a voz daquela outra cujo canto
tinha me enfeitiçado no dia do incêndio.
Sentei na calçada e fiquei assistindo. Acho que, no sonho, também adormeci, mas estava entre sonhando e acordando com sussurros
de alguém que eu não via, mas podia sentir o calor:
Já é dia claro.
Levanta. Já é dia. O sol alto. Obsceno como um rosto.
Acordei, sobressaltado. Uma empregada tentava me acordar. Já
era meio-dia e meia. Havia relatado a ela o desejo de pintar a procissão
de Sant’Ângelo. Uma tradição do povo da região, repetida sempre na
quaresma. Eu corria por entre essa procissão quando era menino.
Levantei, me vesti. Preparei uma grande quantia de tintas. Nenhum tom de verde. Saí para ver a procissão.
Aquele ano havia uma peculiaridade. A procissão passaria em
torno de toda a mata incendiada. O fogo-emboscada é um sortilégio
dos demônios! Não contive o riso, quando a empregada me contou. Era
realmente imperdível.
O padre foi todo o caminho benzendo a terra queimada e também o mato, desmemoriado e taludo, já crescendo de novo.
Quando estava voltando pra casa, o velho que conhece a língua
das ciladas se aproximou de mim: com um sorriso grotesco, repetiu
pausadamente, antes de sair pulando e gargalhando, como era de praxe:
– Antes de bombardear os grandes castelos, é preciso mandar
pedidos de vassalagem...
Como vassalo, já fui aceito, pensei.
58
Finalmente, pintei aquele retrato que o rei tinha me pedido. E
outros e outros, de duquesas, condes, barões e de toda a gente da corte.
Minha fama de retratista correu rapidamente por todo o reino.
Nos meses seguintes, estudei minuciosamente os fungos, as bactérias que surgiam nas têmperas. O tempo que precisavam, a mistura de
diferentes quantidades e elementos. Fiz inúmeras pinturas como teste.
Há alguns dias, por causa da dor violenta que me acometeu, voltei a examinar a cor da urina. Uma mistura cor de sangue e pus.
Hoje o rei me chamou novamente e encomendou novo retrato. Ele também deve estar morrendo. Saí exultante desse encontro,
por poder realizar um novo retrato dele: agora com minha técnica
plenamente desenvolvida.
Vou eternizar seu rosto. Daqui um século, multidões visitarão
museus para ver os retratos do rei-sapo e sua corte de bizarros seres
verdes.
A gentrificação rural,
o êxodo urbano e a
valorização dos modos de
vida do mantiqueirense:
algumas reflexões a partir do
MuMan – Museu da Mantiqueira
Diana Poepcke
60
O TERRITÓRIO MANTIQUEIRA
Apresento-lhes brevemente a Serra
da Mantiqueira: uma formação geológica
com mais de 500 quilômetros de extensão
que costura três estados do sudeste brasileiro: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Berço de nascentes que abastecem inúmeras
regiões, bem como detentora (ainda) de uma
generosa porção de Mata Atlântica, é formada por infinitos cumes e mares de morros entre as cidades de Bragança Paulista, em São
Paulo e Barbacena, em Minas Gerais.
A Mantiqueira tem sua origem datada
do período Cenozoico, há 40 milhões de anos,
quando grandes movimentos tectônicos verticais dividiram, em duas partes, uma grande
cadeia montanhosa do litoral brasileiro – originando, assim, a Serra do Mar e a Serra da
Mantiqueira. Entre essas duas “novas” formações, surgiram um graben, denominação
dada a uma depressão de origem tectônica: o
Vale do Paraíba.
Com uma das biodiversidade mais
importantes do Sudeste brasileiro, muito se
tem falado da importância da preservação
ambiental da Mantiqueira. Palco de diversas
militâncias ambientais, os novos olhares e reflexões sobre a Mantiqueira abordam as suas
paisagens culturais e a sua transitoriedade. Os
discursos atuais evidenciam que a preservação
ambiental está intimamente atrelada ao papel
que o sujeito exerce em seu território, ou seja,
estamos falando sobre a conexão entre um território, um povo e seus modos de vida.
A paisagem cultural é composta da relação vital entre o território e a comunidade,
é a partir do estudo das diversas paisagens
culturais da Mantiqueira que poderemos entender as heranças culturais desta Serra, identificando as diversas linhas que tecem a trama
do patrimônio cultural dos sujeitos que aqui
habitam. Essas linhas não estão estanques no
tempo-espaço, mas tecem seu fino bordado
na relação de cada sujeito e comunidade com
seu território.
Ainda são escassos os estudos culturais que protagonizam o mantiqueirense,
seus modos de vida e seu patrimônio cultural,
sobretudo pelo foco na proteção da biodiversidade local. Alguns desses trabalhos buscam
uma unidade nos aspectos identitários da
Mantiqueira, todavia acreditamos que, por se
tratar de um território com mais de 500 quilômetros de extensão, não podemos buscar
uma homogeneidade ao abordar a identidade
cultural da Serra, pois assim ignoramos toda
a riqueza cultural existente. Todavia, também
é interessante observar que essa heterogeneidade apresentará paralelos e similaridades,
pois se trata de comunidades em contato com
um mesmo tipo de bioma.
61
O MUSEU DA MANTIQUEIRA
O Museu da Mantiqueira é um museu
virtual que surge em 2013 com o objetivo de
estudar, salvaguardar e difundir os modos de
vida do mantiqueirense. Nós, do MuMan,
acreditamos no poder de militância, persuasão e transformação social da arte, história,
tecnologia e dos projetos culturais; além disso, acreditamos no poder (e dever) ativista da
instituição museológica.
Assim sendo, o MuMan foi pensado a
partir da necessidade de ações em meio a um
quadro problemático que estamos vivenciando na região da Mantiqueira: o turismo predatório, a gentrificação rural e o êxodo urbano.
Esse quadro ameaça não só a comunidade,
mas todo o território. São processos que estão
modificando a paisagem cultural, o cotidiano
local, o ritmo de vida e o modo desses sujeitos se relacionarem com o seu território.
Tornou-se uma questão delicada em
que, de um lado, temos um quadro de crescimento da densidade demográfica e da prática
da atividade turística de forma desordenada
e sem planejamento adequado, que poderá
agravar problemas sociais, ambientais e econômicos; de outro lado, queremos propor a
valorização dos modos de vida do mantiqueirense sem que se confunda com um “resgate”
de costumes, tradições congeladas no tempo e
esvaziadas de significado para novas conjunturas sociais. É nesse sentido que discorreremos
a reflexão neste texto e propomos conhecer um
62
pouco sobre o conceito e a atuação do MuMan.
O MuMan teve seus primeiros conceitos
formatados e publicados em 2013, desde então
o projeto criou percursos de amadurecimento
conceitual. Atualmente, podemos defini-lo em
poucas palavras: o Museu da Mantiqueira é um
museu virtual que pensa o território como um
museu a céu aberto e utiliza dispositivos digitais
para musealizar o patrimônio cultural do mantiqueirense, ou seja, criar narrativas, percursos
expográficos e experiências pela cidade, com o
intuito de difundir e salvaguardar os modos de
vida deste sujeito.
Nesse sentido, são nossos objetos museológicos os seus costumes, as suas tradições, os seus anseios, as suas religiosidades,
os seus hábitos alimentares, os seus ofícios, as
suas expressões artísticas, os seus causos, as
suas festas, as suas diversões, as suas práticas
econômicas, as suas políticas e as suas maneiras de relacionar com a terra, os animais e
as pessoas. Ou seja, seu patrimônio cultural.
Como todo museu, o MuMan possui
um acervo, porém digital, que está dividido
em três eixos: Acervo Audiovisual, composto
de entrevistas de história oral, realizadas com
a comunidade local; Acervo Iconográfico,
formado com fotos digitalizadas de acervos
públicos ou privados; e Acervo Documental,
constituído de documentos e jornais digitalizados de diferentes acervos da cidade.
Como já falamos anteriormente, a
Mantiqueira é um território extenso, dotado
de uma rica diversidade cultural. Partindo
desse princípio, o MuMan atua a partir de
recortes geográficos que dividem a Serra da
Mantiqueira em microrregiões, ou seja: para
a pesquisa, o território Mantiqueira foi dividido em vários grupos de cidades que possuem
ligações e paralelos históricos, econômicos,
culturais, políticos e geográficos. Dessa forma, cada pesquisa do MuMan acontece dentro de uma microrregião. Todavia, essas microrregiões não são estáticas, elas poderão se
modificar conforme os diagnósticos de ação
e de suas relações sociais e históricas.
Como exemplo, temos a primeira microrregião traçada para execução da fase piloto do projeto que abarca as cidades: São Bento
do Sapucaí – SP, Sapucaí Mirim – MG, Campos do Jordão – SP, Santo Antônio do Pinhal
– SP, Monteiro Lobato – SP, Gonçalves – MG,
Paraisópolis – MG, São Francisco Xavier – SP
(distrito de São José dos Campos – SP), Luminosa – MG (distrito de Brazópolis – MG).
Para trabalhar os objetivos do museu,
foi desenvolvida uma metodologia baseada
em 5 linhas de ação: Diagnóstico, Evento
Mantiqueira Cultural, Projetos para Pesquisa de Acervo, Ações Socioeducativas e
Programa Mantiqueira Viva. Cada linha de
ação abriga uma série de projetos que possuem sincronicidade com as linhas. Dessa
forma, desenvolvemos uma metodologia
aplicável em toda a Mantiqueira, exigindo
algumas adaptações inerentes a cada região.
A primeira aplicação de todas as linhas de
ação do MuMan foi chamada de fase piloto
e aconteceu em São Bento do Sapucaí entre
2014 e 2016.
Tivemos dois períodos importantes
dentro da fase piloto. O primeiro se desenvolveu entre 2014 e 2015, marcado pela pesquisa prévia, pelo levantamento de acervo e pelo
lançamento oficial do projeto com a execução do evento Mantiqueira Cultural. Assim
sendo, em 2014, iniciamos com o Diagnóstico dos patrimônios históricos, culturais, ambientais, bem como com as potencialidades
turísticas e economicamente criativas. É um
documento importante que embasa o desenvolvimento das demais pesquisas. Logo em
seguida, iniciamos os Projetos para Pesquisa
de Acervo, no qual foram digitalizados documentos, fotos e jornais de diversas instituições públicas, como a Câmara Municipal e a
Prefeitura Municipal, e instituições privadas,
como a Casa da Cultura Miguel Reale e os
acervos pessoais de famílias.
As atividades para compor o principal
acervo do MuMan, o Acervo Audiovisual,
também se iniciaram em 2014 com uma coleta de depoimentos dos moradores locais utilizando a metodologia da história oral. Todavia, as gravações continuaram por toda a fase
piloto para que se recolhesse o maior número
possível de depoimentos: ao todo são 25 entrevistas, com 30 horas de gravação feitas em
áudio e vídeo. As entrevistas são pautadas em
um roteiro de história de vida que foi sendo
aprimorado até chegar em sua versão final.
Em junho de 2015, aconteceu o evento
Mantiqueira Cultural na Casa da Cultura Miguel Reale. Reunimos 10 iniciativas culturais
da cidade, das mais diversas linguagens, que
apresentaram seus projetos, suas dificuldades
e suas perspectivas. Foi o momento em que
apresentamos o MuMan para a comunidade e
lançamos dois documentários1 baseados nas
entrevistas realizadas. Dentro da nossa me-
1. Canal do Youtube: Museu da Mantiqueira <https://www.youtube.com/channel/UCb-_kyBTwYZdiwRKWR9PK7w>.
63
todologia, esse evento se mostrou promissor
para estreitar laços e criar uma rede entre integrantes do setor cultural, representantes políticos e comunidade em geral.
O segundo período da fase piloto se
estendeu por todo o ano de 2016 e é marcado
pela execução de projetos baseados no acervo do museu, que, então, já estava coletado e
organizado. Em junho de 2016, pertencendo à
linha de ação Ações Socioeducativas, foi realizada a oficina “Postal da Memória” na qual
os participantes escolheram elementos da sua
região que os representavam culturalmente
para, assim, retratá-los em cartões postais
utilizando técnicas de xilogravura, ensinada
pela Artista Plástica Mariana Ardito, com o
suporte dos artistas Samuel Ornelas e Rafael
Kenji.
Ao longo de 2016, também estava em
desenvolvimento o projeto protagonista do
MuMan, que materializa o objetivo do museu por ser um dispositivo digital que explora um percurso expográfico pela cidade,
aproximando o ouvinte ao modo de vida local – é o “Audioguia Caminhos da Memória:
a cidade como museu, o sujeito como patrimônio”. Contemplado pelo ProAc de Economia Criativa de 2015, o audioguia consiste da elaboração de uma cartografia afetiva
e de um percurso expográfico dentro da cidade, no qual os próprios moradores relatam
sobre cada lugar. São 18 pontos de parada,
três quilômetros e duas horas de áudio que
podem ser baixados gratuitamente no celular ou acessado por aplicativos de streaming,
como SoundClound2.
Os pontos escolhidos são fruto do levantamento e do cruzamento dos lugares de
memória identificado nas 25 entrevistas que
compõem o Acervo Audiovisual. Dentro dos
princípios do MuMan, não faria sentido que
esses pontos de paradas fossem uma imposição, pois a proposta é conhecer a cidade pela
ótica da comunidade e se aproximar do cotidiano e do modo de vida local. É uma proposta para intensificar o contato do visitante com
outras perspectivas identitárias, outros sabores, outros paradigmas e – o mais importante
diante de todo o nosso debate aqui – outros
estilos de vida.
O audioguia acompanha um mapa impresso, uma cartografia afetiva da cidade, um
mapeamento que opera na multiplicidade de
sentidos atribuídos pelos moradores a essa
paisagem, sua topografia e seus patrimônios
materiais. Grosso modo, podemos chamar
tais interpretações e sentidos de cultura imaterial, de patrimônio cultural. É um caleidoscópio de territorialidades, no qual o ouvinte
é convidado a experienciar o território por
meio das memórias e dos sentidos atribuídos
pelos moradores locais.
Não existe sujeito sem memória, não
existe território/paisagem sem sujeitos que o
habitam. Dessa forma, é possível proporcionar
para a comunidade a redescoberta do seu território, reforçando os laços de pertencimento
cultural, fortalecendo a identidade afirmativa
do espaço, o sentimento de autoestima, valorizando os seus modos de vida. Quando uma
comunidade conhece sua história, entende-se
e se valoriza enquanto patrimônio cultural,
para que elas se assumam como protagonistas
desse território e criem meios para a promoção da autogestão dos seus recursos culturais,
naturais e econômicos.
2. SoundClound: Museu da Mantiqueira <https://soundcloud.com/museudamantiqueira>.
64
SOBRE OS MODOS DE SER
E ESTAR NA MANTIQUEIRA
Entendemos que o foco do museu é
trabalhar os modos de vida do mantiqueirense
e destacamos o valor da paisagem cultural da
Serra da Mantiqueira e como ela se torna um
elemento importante no estudo das heranças
culturais destas comunidades. Nota-se que
essas paisagens estão se modificando ao longo do tempo. Uma prova dessa constatação
é observar a noite em São Bento do Sapucaí,
em Gonçalves e em diversos lugares da Serra:
em um passado recente, os mares de morros
se transformavam em grandes blocos negros
na paisagem, atualmente já podemos observar vários pontos de luz nessas montanhas,
ou seja, são várias casas, pousadas, resorts ou
mansões particulares que, durante o dia, estão
camufladas pela mata. Até certo ponto, é natural que aconteçam essas mudanças, tendo
em vista que são elementos mutáveis e que
não estamos congelados no tempo. Entretanto, precisamos observar como essas mudanças
estão acontecendo e problematizar o porquê.
A gentrificação é um termo que surgiu no Reino Unido, com Ruth Glass, em
meados de 1960, para descrever o processo das famílias de classe média que saíram
dos subúrbios de Londres e foram morar nos
bairros centrais, ocupando zonas antigas e
desvalorizadas, o que proporcionou modificações na sua composição social. Foi um
processo frequentemente visível nas cidades anglo-saxônicas, oriundo de uma crise
de suburbanização e da vontade das popula-
ções, que detinham algum poder econômico, de voltar para o centro das cidades.
No decorrer dos anos, os estudos
criaram consistência e classificaram, de um
modo geral, a gentrificação como um fenômeno que implica em modificações materiais e imateriais de um determinado território que, por consequência, eleva seu status.
Mais especificamente, para Chris Hamnet, a
gentrificação é um fenômeno social, físico,
econômico e cultural que envolve a invasão
da classe média ou de grupos de alto poder
aquisitivo, em áreas previamente ocupadas
pelas classes trabalhadoras, envolvendo a
renovação ou, então, a reabilitação física do
espaço para atender as demandas dos novos
proprietários.
Essas mudanças estabelecem um novo
cenário de reorganização socioeconômico,
ocasionando um novo modo de vida urbano
e novos tipos de consumo. Por consequência,
com esses novos padrões, transformar-se o
perfil dos moradores locais, tendo em vista
que os antigos moradores, muitas vezes, não
conseguem sustentar esse novo modelo de
consumo imposto e irão se deslocar para regiões periféricas.
Como podemos perceber, a gentrificação é um processo que surge sob a ótica
urbana, contudo ele vem se transformando e
abarcando novas perspectivas. Dessa forma,
o conceito pode vir acompanhado de especificações que se adequam mais ao tema em
65
questão, como no caso que aqui propomos: a
ruralidade.
O termo gentrificação rural tem sido
usado para abordar um movimento que promove a diversificação da composição social
das zonas rurais, alterando a centralidade desse território, que poderão ser focos de novos
centros urbanos (mesmo que pequenos). Um
fenômeno que, por sua vez, é oriundo de um
grupo seleto de pessoas em estafa urbana que
decidem mudar de vida.
As atividades no campo, sobretudo
aquelas realizadas por comunidades tradicionais, vão perdendo espaço, apoio e reconhecimento social, por consequência, começam a
ser substituídas por outras. É difícil competir
com investimentos privados, com a alta procura por imóveis, com a baixa valorização da
atividade no campo e com a especulação imobiliária, o que torna economicamente vantajoso para os pequenos produtores vender o
seu terreno. São problemas também agravados por um novo fenômeno, movimento característico da contemporaneidade: o êxodo
urbano.
Antes de entendermos o êxodo urbano, vamos contextualizar historicamente o
que foi o êxodo rural do século XIX. O êxodo
rural é um conceito utilizado para caracterizar o processo de deslocamento dos habitantes do meio rural para o urbano, em busca de
estruturação de vida diante de novos padrões
mercantis vigentes, sobretudo nos séculos
XIX e XX. Dentre suas causas, temos inúmeros acontecimentos e descobertas que se
iniciaram no século XVI, nos campo cultural,
filosófico, científico, político e social, provocando profundas transformações na conjuntura da época. Também é considerado um
resultado indireto da Revolução Industrial,
na qual substituiu-se o trabalho braçal pela
força das máquinas, causando alto índice de
desemprego no campo.
66
Correlacionando com os dias de hoje,
os grandes centros urbanos sofrem com um
fenômeno chamado de mal-estar urbano: é
um descontentamento generalizado com o
modo de vida nesses lugares, sobretudo no
que é relativo à falta de emprego, ao congestionamento, ao aproveitamento do tempo e à
qualidade de vida. Essa insatisfação constitui,
em grande parte, a mola propulsora que estimula a saída das pessoas desses grandes centros em busca de novos lugares com melhores condições de vida. Esse novo movimento
contemporâneo tem recebido o nome de êxodo urbano, representado, de uma maneira geral, pela saída, numa escala considerável, de
uma população residente nas cidades a caminho do meio rural.
Não podemos considerar o êxodo urbano como o movimento inverso ao êxodo
rural, por não ter sido tão linear e tão bem definido, até mesmo por ser um fenômeno ainda
em voga. O êxodo rural foi um movimento
com vários pontos de origem, ou seja, população de diversos núcleos rurais convergiram
para um mesmo ponto: o núcleo urbano. Já no
êxodo urbano o movimento é mais divergente, no qual a saída é de um único ponto: a cidade, e o destino são núcleos variados como
os subúrbios, cidades com menor densidade
populacional ou o meio rural mais remoto.
Agora, veja que curiosa contradição
entre esses dois fenômenos: o êxodo urbano é motivado, basicamente, pelo mal-estar
urbano em busca de um novo estilo de vida,
diferente; a gentrificação rural é caracterizada pela alteração dos modos de vida na zona
rural, ocasionando transformaçõesna zona
rural, criando pequenos núcleos urbanos. Os
modos de vida do meio rural, que também
têm atraído as pessoas desmotivadas com o
modo de vida urbano, estão ameaçados pela
sua desvalorização e dificuldade de competir
com altos investimentos privados. É curioso
como uma população está deslocando-se em
busca de novas perspectivas e novos estilos
de vida, mas não consegue abandonar velhos
padrões e paradigmas.
Transpondo essa discussão para a realidade da Serra da Mantiqueira, constata-se o
movimento de êxodo urbano se intensificando
a cada dia, aliado ao processo de gentrificação rural se alastrando. Os estudos e os dados
quantitativos que poderiam confirmar academicamente a constatação ainda são poucos,
todavia fazer parte da realidade local e observar as falas dos moradores evidenciam esse
processo. A fala dos moradores entrevistados
pelo MuMan exemplifica os dois processos.
Segundo a conhecida Dona Fia do Ivo: “Tem
muita gente se mudando para cá”; já Dona
Fihinha: “De uns tempos para cá, as pessoas
vindas de fora estão ocupando cargos, sobretudo políticos, que acredito que deveriam ser
de sambentistas”. Dentre muitas outras falas,
percebemos o quanto a questão tornou-se delicada na região e necessita atenção.3
Por considerações finais, questiono:
qual o sentido de mudar-se para a Mantiqueira, buscando viver aquele modo de vida que
o seduziu em um primeiro momento, sendo
que, ao mudar-se, notamos a tentativa de impor novos padrões sem promover o diálogo
entre ambas as partes? Dessa forma, é necessário entender, estudar, salvaguardar, difundir e valorizar os modos de vida do mantiqueirense, os modos de ser e estar nessa
Serra. São esses modos de vida que fizeram
(e fazem) a Mantiqueira ser o que ela é hoje.
Importante destacar um cuidado teórico e epistemológico em que a intenção não
é resgatar modos de vida, ou seja, não é uma
ode para que voltemos a morar em casa de taipa, cozinhar em fogão a lenha e passar roupa
com ferro à brasa, pois a cultura, as tradições,
os modos de vida são elementos mutantes e
mutáveis, que se moldam a partir das gerações
que dependem diretamente da existência dos
atores sociais. Tais atores não são congelados
no tempo, assim sendo, por consequência, os
seus modos de vida e suas tradições serão ressignificados de acordo com a conjuntura histórica em que ele está inserido. Bem como esses
questionamentos feitos a partir da imposição
de novos padrões não podem ser visto como
um xenofobismo. A questão primordial, aqui,
é entender o modo de vida e o ritmo local, inclusive o tempo que a comunidade leva para
absorver as modificações geracionais. As mudanças são parte do nosso cotidiano e inerentes ao aspecto mutante da cultura.
3. Para consultar o acervo do Museu da Mantiqueira, acesse o site www.museudamantiqueira.com.br ou entre em contato
museudamantiqueira@gmail.com.
67
“Pirlimpimpim”
O pó e a cidade
que podia ser,
mas não é.
Cristiane Credidio
68
Escrever sobre a arte e a cultura na
cidade de Taubaté não só me faz repensar
toda essa estrutura (ou a falta dela), mas me
faz pensar sobre minhas próprias escolhas de
vida. Isso porque tendo nascido e vivido nesta cidade boa parte de minha vida, aparte as
expedições de exploração de novas terras que
fiz, volto nesse momento a não morar nela.
Resido atualmente na cidade de São Paulo,
mas gostaria de poder morar em Taubaté, um
lugar bonito, ainda carrega certa tranquilidade no viver diário, bem localizada geograficamente, bem posicionada nos índices de cidades com melhor qualidade de vida. Minha
família, amigos e os artistas: quantos deles!
Em todos os segmentos artísticos. E o que
eles fazem? Muitos vão embora, quase que
num processo cíclico, vão embora pelo menos uma vez, outros ficam e lutam e de tanta
luta não conseguem desenvolver sua arte na
plenitude, outros ficam sem lutar e tentam,
assim, se entenderem num sistema social de
baixíssima valorização de seu trabalho e sem
conseguir praticamente nenhum tipo de diálogo com o poder público.
No entanto, eis o que encontramos sobre a cultura na cidade de Taubaté na Wikipédia, e citamos isso aqui apenas em caráter
de demonstrar o que se pensa no âmbito do
senso comum:
“Taubaté é uma das cidades mais tradicionais do interior de São Paulo, e,
por ter sido durante muito tempo um
centro de referência na região do Vale
do Paraíba, sempre foi considerada
a cidade que mais investiu em cultura na região. O fato de atualmente o
município ser conhecido como a Capital Universitária do Vale é relevante
para que a cidade continue tendo uma
considerável produção cultural. Sendo
a terra natal do escritor Monteiro
Lobato recebeu, em 3 de março de
2011, o título de “Capital Nacional da
Literatura Infantil” (Lei nº 12.388 do
Congresso Nacional).”
Sim, vocês leram certo: “continue
tendo uma considerável produção cultural”.
Mas antes que isso virasse um texto político,
pessimista e com visão unilateral, tendenciosa ou mesmo injusta daquela que vos fala,
decidi conversar com artistas profissionais e
agentes de cultura da cidade, a fim de entender melhor os processos do fazer artístico e
seu gerenciamento, na minha área, o teatro,
e em outras áreas de expressão cultural e artística, para que concordassem comigo ou me
confrontassem o pensar para uma visão mais
otimista da produção cultural na cidade. Felizmente as duas coisas aconteceram. Gostaria de dar voz, portanto, aos seguintes profissionais, trazendo para esse espaço suas ideias
sobre toda a questão: Jefferson Alves, nasceu
em Pindamonhangaba, passou toda sua vida
em Santo André, no ABC, e três anos atrás
assumiu o cargo de animador cultural do
Sesc Taubaté, é também professor de filosofia e sociologia do ensino médio, nosso olho
estrangeiro aqui nesse debate; Jefferson Machado, é taubateano, ator, dramaturgo, diretor
de teatro e atual coordenador do curso de Arte
Dramática da Escola Municipal de Artes Maestro Fêgo Camargo; Gustavo Lessa, também
de Taubaté, músico, compositor e intérprete;
e Mateus Vasconcellos, igualmente conterrâneo, bailarino, coreógrafo, participa do Balé
da Cidade de Taubaté e é atual diretor e coreógrafo da Companhia Dançando sobre rodas,
artista premiado internacionalmente com o
American Dance Competition 2012 e 2013,
nos EUA, e no Grand Prix de Barcelona.
Enviei a todos as mesmas perguntas
para que respondessem sobre sua área específica de atuação. A primeira é sobre a trajetória desses profissionais na sua área de atu-
69
ação artística, a segunda pretende descobrir
como anda a produção atual e quais artistas
ou trabalhos têm tido algum expoente, a terceira lança um olhar para o passado com as
influências de artistas locais, e a quarta e última discute questões de políticas públicas destinadas ao incentivo do fazer cultural e artístico. O que segue são as respostas na íntegra.
Jefferson Machado
em busca de novas possibilidades, envolvendo todas as áreas artísticas; quem sabe através
desse grupo de pessoas essa situação mude.
Taubaté é uma cidade do interior de
São Paulo e com uma característica muito coronelista e conservadora, e podemos perceber
isso principalmente no movimento cultural
e político da cidade. Nossos Secretários ou
Diretores de Cultura são escolhidos não por
sua história com a Cultura, e sim por outras
questões.
Assim, me aproximo de artistas que
vão contra essa corrente, contra esse fluxo.
Gosto da transgressão, gosto de gerar a dúvida, gosto de cutucar e gerar incômodo, buscando em meu trabalho o “essencial”. Também gosto do risco e da pesquisa.
Que eu saiba, não existe política nenhuma, e a luta está exatamente para isso
acontecer.
Comecei como ator em 1990 e me
profissionalizei em São Paulo muito tempo
depois, porém descobri que, para fazer arte
no Vale e sobreviver, teria que ser muito mais
do que simplesmente ator e assim me tornei
diretor de teatro, dramaturgo e professor. Especializei-me em todas essas áreas sempre
buscando através de cursos me aperfeiçoar,
pois percebia que na região faltava técnica.
A produção teatral em Taubaté é muito pequena. Os grupos que existem vivem do
chamado Teatro Empresa, e quem vive de Teatro Empresa só faz Teatro Empresa porque
esse consome demais o tempo de qualquer
grupo. Assim sendo, muitos grupos acabam
apenas desenvolvendo alguns trabalhos específicos somente para se apresentar na Mostra
Teatral que acontece uma vez por ano na cidade. Isso quer dizer: produção para apenas
uma apresentação.
Atualmente, existe um projeto no
Centro Cultural, mas que já soube estar em
seu término apesar de seu êxito. Lá os grupos se apresentavam aos finais de semana e
ficavam com a renda dos ingressos. Mas por
motivos políticos esse projeto terá o seu fim.
Na cidade ainda há uma Escola Técnica onde constantemente existem apresentações, porém isso é apenas permitido aos
alunos que depois de três anos são obrigados
a encarar a real situação da cidade, onde não
existe um local para apresentações, pois o
único local é caro demais: Teatro Metrópole.
Existe um movimento acontecendo
70
Mateus Vasconcellos
Meu nome é Mateus Vasconcellos,
tenho 26 anos, moro na cidade de Taubaté,
danço desde os meus 15 anos, e profissionalmente desde os 19. Sou formado em Arte
Dramática e Dança, graduado em Pedagogia
e Artes Visuais. Sou bailarino, atualmente do
Balé da Cidade de Taubaté, ministrei vários
workshops pelo Brasil, Europa e Espanha
aplicando a técnica Thanztheater, participei
do TUDANZAS-Espanha e 21ª. Quinzena de
Dança de Almada-Portugal. Na minha experiência como bailarino e coreografo, fui premiado com o American Dance Competicion
2012 e 2013, Orlando EUA, e o Grand Prix
de Barcelona, em 2013. Atualmente, sou diretor e coreografo da Cia Dançando Sobre
Rodas, trabalho desenvolvido para deficientes físicos; através do trabalho e das apresentações, a Cia foi convidada para dançar na
Espanha e desenvolver o trabalho social lá.
A produção artística na área de dança
tem certo déficit, não temos nenhum respaldo através das entidades públicas, pouco se
vê produtores que são voltados a essa área. A
área da dança, ao meu ver, é ainda esquecida e pouco respeitada; acredito que um olhar
mais específico a essa área traria um crescimento bem significativo aos profissionais da
dança. A única referência que temos é o Balé
da Cidade de Taubaté, que também é esquecido e tem pouca visibilidade.
A política cultural em Taubaté é precária; nesse momento, acredito que os artistas da cidade estão lutando pela sua melhoria,
por meio do Conselho Municipal, e isso será
proveitoso à classe artística, que, até então,
pouco se vê acontecer, o incentivo aos artistas em geral é uma calamidade.
Mateus Vasconcellos
71
JeffersonAlves
Embora eu tenha nascido em Pindamonhangaba, passei toda minha vida em
Santo André, no ABC, e sempre fui um consumidor de arte. Vivia na periferia da cidade
onde as ofertas de cultura são muito limitadas, mas eu vivi um período lá em Santo
André em que o poder público, a prefeitura,
tinha o entendimento da cultura como um
direito, havia pessoas trabalhando na secretaria de cultura que tentavam democratizar
o acesso à cultura. Talvez eu tenha pegado
o fim desse período quando havia muitas
atividades formativas para jovens, o que
desde cedo despertou minha atenção. Isso
certamente contribuiu muito pra minha formação, para minha forte ligação com a literatura, expandindo meus horizontes. Graduei-me em Filosofia e fui ser professor no
ensino médio. Hoje sou animador cultural
no Sesc, uma instituição democrática que se
dedica ao fomento à cultura, ao esporte, à
arte, à educação.
Com relação aos movimentos da cidade de Taubaté, eu acho que eles estão muito
dispersos, não dialogam uns com os outros,
mas eu moro aqui faz três anos, um pouco
menos, e o que eu percebo na verdade são esses movimentos de juventude tentando ocupar o espaço público para realização de atividades culturais. Uma coisa que me chamou
muito a atenção foi o grupo do Itajubá, que já
não de hoje sempre movimenta a cidade culturalmente, o pessoal do maracatu com seus
encontros, suas oficinas gratuitas, tentando
ocupar praças públicas e sempre no embate
com a prefeitura para conseguir ocupar essas
praças. Eu tenho percebido agora outro grupo
que talvez seja até oriundo dessa leva do Itajubá, um pessoal um pouco mais jovem tentando criar um movimento de saraus aqui na
cidade, que começou a ocupar as terças-feiras
72
com hip hop, o Terça Sintonia, e desse grupo
alguns começaram a pensar nos saraus. Hoje,
esses dois movimentos vêm crescendo e ocupando a Praça da Eletro.
Há também muitos músicos na cidade, muita gente tocando e com trabalho autoral interessante. Mas eu vejo que faltam
coletivos mais estruturados com trabalho de
pesquisa, com espaços próprios para efetuar
suas pesquisas e desenvolver seus trabalhos.
Aqui em Taubaté isso não existe, eu vejo
todo mundo muito disperso, cada um fazendo suas coisas aqui e ali, mas não há uma
rede, uma rede de diálogo entre esse pessoal
envolvido com a arte. Precisaria amadurecer
mais com apoio e incentivo do poder público para as atividades artísticas se consolidarem aqui na cidade. Eu vejo tudo muito
disperso, e isso acaba fazendo com que esses
movimentos acabem perdendo força por não
dialogarem entre si. Eu desconheço ação
pública de incentivo por parte da prefeitura.
Nesses três anos que estou aqui, quatro ou
cinco secretários de cultura se revezaram no
poder, e a cada mudança de secretário o foco
muda, o diálogo com a sociedade civil é praticamente inexistente, há ainda um não pensar a cultura como um direito cultural, mas
puro e simplesmente como entretenimento:
já tivemos uma secretária que era gerente de
um shopping com um discurso “cultural” de
grandes festas (que acabaram nem acontecendo), não tinha preocupação, uma visão
mais ampla de cultura, um pensamento de
articular a cultura com outras políticas, com
outras áreas aqui, com educação, com o turismo na cidade.
Há uma luta aqui de um grupo, o
CCIN (Coletivo Cultural Independente), para
tentar criar o Sistema Municipal de Cultura.
São uns abnegados que já há muito tempo estão buscando esse fortalecimento na área de
cultura. Eu acho que o Sistema Municipal, a
adesão ao Sistema Nacional, que não se sabe
como vai ficar com todas essas mudanças,
todo esse retrocesso, não sei como isso vai
continuar, mas acho importante pelo menos
estruturar uma política cultural. Não só para
repassar verba para artistas e produtores, mas
para compartilhar informação também, porque eu acho que aqui na cidade falta muito
isso. Faltam oportunidades de formação para
os jovens que estão se envolvendo com cultura e de aperfeiçoamento para os artistas
que já trabalham com cultura aqui. Isso não
existe. Não existe essa oferta formativa que é
muito importante em qualquer cidade. Não é
sustentável trabalhar com cultura em Taubaté, não há incentivo de parte nenhuma, e eu
acho que deveria haver o básico do básico.
Acredito que primeiro deveria haver
a instituição de uma política pública que
dialogasse diretamente com a sociedade,
que houvesse uma aproximação da prefeitura, um mapeamento da produção cultural,
caso contrário fica muito difícil você falar
de uma realidade que você nem conhece,
que parece que é invisível aqui aos olhos
do poder público. Também os espaços e
equipamentos culturais que eu vejo abandonados aqui na cidade, os poucos que tem,
completamente abandonados, subutilizados.
Portanto, eu penso que deveria começar pelo
básico, fazer um mapeamento dos grupos e
artistas, entender as reais demandas, entender a cultura como um direito, tentar articular com Secretaria de Educação, Turismo,
Esporte políticas em conjunto para fortalecer a cultura, deixar de entender a cultura
como mero entretenimento. Acho que tudo
aqui está num estágio bem inicial, o que
tem que ser feito está num nível bem básico
para se começar a pensar em estruturar uma
política pública que fomente a ação e tudo
mais. Essa própria discussão desse grupo,
o CCIN, que está batalhando pela imple-
mentação do Sistema Municipal de Cultura,
está sozinho, é um grupo pequeno, há um
desinteresse dos próprios agentes culturais
de se envolverem nessas questões, que são
burocráticas, mas são fundamentais para
você conseguir efetivar realmente os direitos culturais do povo da cidade. Então acho
que falta também por parte dos artistas da
cidade um maior envolvimento com essas
questões que são mais burocráticas mesmo,
mas que são fundamentais.
Gustavo Lessa
O violão chegou ao meu colo aos oito
anos e veio pra harmonizar as canções que eu
já cantava. O processo de “pôr o pé na profissão” foi bem natural. Cheguei aos bares
com um repertório numeroso e eclético – não
vivo sem a diversidade. E esse caminho boêmio-artístico me levou pro universo da composição de canções e de música de cena. A
poesia, a música e as artes dramáticas sempre
andam juntas na minha cabeça.
A trilha sonora chegou por um convite da companhia Teatro Humanoide, encabeçada por Cristiane Credidio, que realiza um
trabalho cênico de ponta na cidade. Fiz três
espetáculos com eles: É o que Tem pra Hoje
(2010), A Revolução da Carne (2014) e Yayá
(2016).
Na canção, eu tive a sorte de chegar
ao início de uma ascensão produtiva dos
compositores da cidade. Taubaté nunca viu
tantos discos serem lançados como nos últimos dez anos. Teteco dos Anjos, João Oliveira, Bernoldi, Toninho Mattos, Pedro Freire,
Diego Luz, MC Rato, MC Ralph, etc. Nessa
prateleira está o meu Transmulato (2015).
Mas muitos desses artistas, ao invés
de terem uma sequência plena com seus trabalhos autorais, ainda dependem do “circuito
do barzinho” como há dez anos. O mercado
73
74
não acompanhou a “primavera”, e as políticas
culturais da cidade são bem precárias. Toda a
grana da produção do disco sai do nosso bolso
e não temos condições de arcar com o preço
altíssimo do aluguel do “teatro da cidade”, que
está lá muito mais pros globais e pras atrações
que promovem a prefeitura. É notório que
esse descaso dificulta tanto o trabalho artístico
quanto o amadurecimento do público.
Com isso, algumas casas estão surgindo pra afirmar essa primavera musical e
poética autoral da gente. O Bangue Estúdio
se destaca nessa resistência. Essas e outras
iniciativas individuais e coletivas mostram
que podemos fazer um saneamento artístico
nesse rio inerte, pragmático e conservador. É
difícil, mas Taubaté tem potencial econômico
e geográfico pra isso.
Depois de “ouvir” meus caríssimos
supracitados, como havia dito no início, mantenho minha visão que tende ao pessimismo
diante do quadro atual, mas algo parecido
com esperança também acontece.
Não temos nenhum tipo de incentivo
por parte do poder público através de leis de
fomento. O que existe é a luta pra que isso
aconteça, batalhada pelo CCIN (Coletivo
Cultural Independente) nas figuras de Fernanda Vasconcelos, Jenifer Botossi, Nara
Alencar, Solange Barbosa, Ângelo Rubim,
Ana Carolina Pisciotta, os abnegados citados
por Jefferson Alves, que num revezamento
de pessoal (também outras pessoas já participaram dessa luta) mantêm essa tentativa de
ter minimamente um Sistema Municipal de
Cultura em Taubaté há não menos que oito
anos, sem prazo para efetivação do processo.
Não há política pública formativa nem de artista nem de público. Não há um mapeamento adequado dos artistas locais, tampouco
uma melhor política de acesso dos grupos aos
equipamentos públicos. Os artistas, por sua
vez, pouco se articulam em uma frente única de artes, envolvendo todas as expressões
para um bem comum: tentam o que podem;
fazem o que conseguem. Portanto, falar em
excelência nos trabalhos é quase uma covardia, uma vez que não conseguem dar conti-
nuidade às suas pesquisas, aos seus trabalhos,
companhias sem sede, atores e dançarinos
sem palco, artistas plásticos sem exposição,
escritores sem publicação, carecemos de
tudo. Os artistas da cidade podem e merecem
fazer uso dos títulos que a cidade carrega e da
qual adora se gabar: cidade industrial e universitária! Ora! Temos tudo, empresas para
patrocinar, valorizar o artista e universitários
para público! Embora, naturalmente, a cultura seja um direito de todos, não querendo
elitizar a cultura para universitários, mas é
notório o histórico de estudantes em contato
com a arte especialmente para resistência em
períodos de retrocesso político e social. Mas
não é o que acontece. Não há articulação, não
há vontade política, não há visão de cultura
como direito.
Sem ação, isso é só escárnio, tanto
com o artista taubateano quanto com toda
a população da cidade. Não temos “uma
considerável produção cultural” como o
senso comum aponta de maneira quase infantil; nossa produção cultural é inócua,
insuficiente, inoperante. Uma pena, porque
tem gente doida pra produzir, pra fazer, pra
criar, pra ir à luta, pra dar a cara a tapa e
se expor artisticamente. Se os apáticos soubessem do que a arte é capaz, parariam suas
tristes máquinas: isso evidentemente seria
uma afronta a certos interesses.
Mas eu disse que havia esperança, e
digo aqui a minha. A minha esperança está
precisamente na resistência dos coletivos
e em suas ocupações de espaços públicos.
Bem como na possibilidade de articulação de
artistas na batalha pelas tão esperadas políticas públicas em adição a uma organização
em empreitadas privadas. São tempos estra-
nhos, de retrocesso político e social em tantas
áreas, e aqui não é privilégio do taubateano,
esse processo é nacional, é internacional. Há
muita luta pra ser re-lutada! Muita!
Recorro a Gonzaguinha pra dizer, por
fim, que “eu acredito é na rapaziada”! Esse
texto com questionamentos, críticas e aflições é dedicado a toda a minha rapaziada que
conhece o chão do qual falei e batalha nele!
Cristiane Credidio é taubateana, graduada em Direito,
Artes Cênicas pela CAL no Rio de Janeiro, pós-graduada em
Linguística. Atriz, dramaturga, diretora, produtora e fundadora
do Teatro Humanoide. Mora atualmente em São Paulo, onde
tem desenvolvido trabalhos com o Teatro Commune.
75
Da impossibilidade
da arte de
protesto
Bruno Ishisaki
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1
A militância das minorias é a luta do bicho. O bicho está sempre à espreita; seus instintos o direcionam para a alimentação e para a sobrevivência. O olhar do bicho é
seccionado em duas instâncias: comer e vencer. O bicho, para sobreviver, organiza-se
em grupos; os grupos conquistam territórios; ambas as ações projetam-se no caos indiferenciado
do ambiente, e são os dois modos de o bicho garantir sua sobrevivência. A militância-bicho busca
modos de ordenar o caos, de onde vêm os perigos que a ameaçam e a comida que a alimenta.
2
A criação de obras de arte é caos contido. O artista cultiva ilhas de indeterminação;
como tal, é um colonizador. Em vez de ordenar o caos, o criador o contém e extrai
dele sua potência. O cultivo de ilhas de indeterminação só pode ser feito por aqueles
que não militam mais: para cultivar uma ilha, não se pode estar preocupado com a sobrevivência ou com a alimentação; tais pontos não podem mais ser motivo de atenção. Assim, a criação
de arte está inevitavelmente atrelada ao privilégio (ou fardo) de não militar; de tal privilégio,
vem também a possibilidade de aceitação do mundo, tal como ele é.
3
A militância e a arte são inconciliáveis em um mesmo nível de existência. Porém, é
curioso observar que, logo após a conquista de um território por uma coletividade
– e consequentemente, a suspensão momentânea dos dois atributos da militância: a
sobrevivência e a alimentação – observa-se manifestações de criação de objetos estéticos, que
emergem para preencher as demandas de uma cultura em formação. Cultura esta que irá apontar
para traços de identificação que estarão associados ao grupo. Só seria possível estabelecer condições para a criação em um ambiente ordenado, um território: há uma diferença em extrair potência de uma ilha de indeterminação ou daquilo que é totalmente indiferenciado. A existência
de um território parece ser uma condição para a atividade criativa; configuramos, assim, dois
níveis de existência distintos: o da militância, em um primeiro momento, relacionado à sobrevivência; e o da criação, como consequência da conquista e fruição dos recursos de um território.
4
Os objetos estéticos podem existir de três modos distintos: produtos, artesanatos ou
obras de arte. Tais modos não são necessariamente excludentes, tampouco estanques: há um continuum entre o produto e o artesanato e entre o artesanato e a arte;
um objeto de arte pode ter facetas artesanais em sua feitura e pode ser posteriormente comercializado como um produto; porém, ainda temos dúvidas se um produto pode ser revertido em
objeto de arte. Inclinamo-nos a pensar que não, mas não refletimos suficientemente a respeito,
então deixaremos essa vetorização em aberto.
5
Os produtos são objetos forjados a partir do mecanismo da cópia e são sempre aparatos úteis. Um produto é mais ou menos perfeito na medida em que pode ser produzido e reproduzido com maior ou menor nível de precisão em relação ao seu modelo.
Daí vem a íntima relação entre o platonismo vulgar e a Indústria.
77
6
O artesanato, por sua vez, segue também a lógica da cópia; contudo, ele é mais aberto
às corrupções do trabalho manual, além de apresentar uma relação mais flexível com
os aspectos deformantes da techné. Além disso, é um objeto mais estético e menos
útil do que o produto. Produto e artesanato são modos de criação subservientes à cultura; seus
objetos tendem a funcionar como poderosos aparatos de linguagem e carregam consigo uma
carga semiótica que reforça o valor de certos atributos culturais, normalmente em posição de
conflito com outros.
7
Enquanto isso, a arte produz objetos inúteis. A obra de arte vem muitas vezes travestida de artesanato. No olhar do diletante, os dois modos se assemelham. No olhar do
pequeno burguês médio, até mesmo o produto parece se confundir com o artesanato
e com a arte. Mas a arte é bélica, maliciosa e virulenta: seus objetos estéticos são Caixas de Pandora e Cavalos de Troia; em tempos pós-golpe, podemos metaforizá-la como links de aumento
peniano, anúncios online que roubam dados bancários ou SMS com prêmios falsos. Pois a arte
faz uso da linguagem estratificada pelos produtos e artesanatos, mas insere nesta linguagem mecanismos corruptivos de teor destrutivo, que em última instância desestabilizam e obrigam esta
mesma linguagem a se reconfigurar em novos erotismos.
8
Entendemos arte, portanto, como um mecanismo bélico de infiltração, indissociável
de uma potência destrutiva, maliciosamente plantado dentro de um campo da cultura
para fazê-la implodir. Se a militância atua tendo como tendência o estabelecimento
de um território, automaticamente a arte se apresenta como atuação antagônica, movente, deformante e desestabilizante.
9
Os objetos estéticos que cabem à militância estão mais próximos dos produtos e
artesanatos. A militância alimenta a egrégora de Parmênides e não cultiva ilhas de
indeterminação; na militância organizada e fortificada, Heráclito não possui local de
fala. Não acreditamos na existência de artistas militantes, pois a militância é una, identitária.
Quando o artista milita, deixa de fazer arte. Quando o militante produz arte, deixa de militar.
10
Não que o artista não participe da luta. Lembremo-nos: a arte é belicosa. A
luta do artista não se refere às jurisprudências, aos juízos de existência, às
relações identitárias ou às disputas no campo do discurso. O artista luta no
campo da própria linguagem. Seus Cavalos de Troia precisam ser cuidadosamente planejados
na esfera dos conceitos; sua luta é pela deformação da cultura e pela destruição dos cancros
culturais que fomentam Poderes e opressões.
78
11
Quando o militante se coloca como um criador de obras de arte e faz de sua
produção o rosto de uma luta, o que temos? Duas possibilidades: 1) ingenuidade. Aqui, o militante confunde produto, artesanato e arte, e toma sua
produção de reforço cultural como um Cavalo de Troia. Mas sua produção enseja a construção
do território, ela não possui potência de destruição. A ingenuidade é um caso ameno, pois a
possibilidade seguinte é 2) oportunismo. Artesãos medíocres frequentemente fazem uso das
mobilizações da militância para promover uma produção esteticamente insignificante, que, ao
se transformar no rosto de uma luta, pode adquirir um aspecto de densidade, lirismo e profundidade em proveito das novas relações simbólicas e afetivas advindas da oportunidade de fundir
seu artesanato com os anseios, diretrizes e discursos da militância.
12
Daí vem a impossibilidade de uma arte de protesto. O protesto, modalidade
amena de luta da militância, comporta em si somente objetos estéticos de
reforço cultural. Marchinhas, jingles, cançonetas, palavras de ordem, gritos
musicais, batuques, slogans, camisetas, cartazes. Tais objetos não podem ser sutis, sinuosos,
delicados, maliciosos; precisam ser diretos, fazer uso efetivo da linguagem, precisam expressar, mobilizar. Os objetos de arte pertencem a outro campo de batalha, são coisas para espiões,
infiltrados, agentes duplos, personalidades dúbias, duas caras, personagens com talento para a
dissimulação e para a ausência de caráter. O artista, produzindo em territórios colonizados, bem
estabelecidos, sendo bem nutrido, usufruindo de abrigo e segurança, está inevitavelmente atrelado à condição de privilegiado. Por mais que o artista possua uma história de enfrentamentos,
sofrimentos, superação de obstáculos sociais e econômicos, marcas e cicatrizes, quando cria
uma obra de arte, o faz usufruindo de algum tipo de privilégio. Quartour Pour La Fin Du Temps,
Also Sprach Zarathustra, os madrigais de Gesualdo, a Roda Viva, Sargent Peppers... são todos
frutos de privilégios.
13
Escolher entre a arte e a militância tem menos a ver com engajamento e alienação e mais a ver com o tipo de luta que se quer lutar. Certos corpos podem
ser melhor talhados para uma forma de luta do que para outra, bem como certas posições podem favorecer táticas num campo ou noutro. Se militância e arte possuírem um
inimigo comum, e se entrarem em ressonância, mudanças poderão ser realizadas, e feitos notáveis poderão ser conquistados. Mas acreditamos que tais ressonâncias só poderão ser viáveis
quando a militância se livrar de seus vícios identitários e os artistas aproveitarem as vantagens
de suas posições privilegiadas para plantar bombas-relógio. A militância tem que desapegar da
cultura, e o artista precisa jogar fora o portfólio. Aí será o momento das táticas devastadoras,
das explosões estratégicas, dos planos coordenados e das grandes vitórias. Até lá, ficamos à
espera de um apocalipse qualquer, com os olhos voltados para o céu sujo de uma cidade feita
apenas para carros trafegarem, esperando que os meteoros venham logo...
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#A arte é
inconjugável
com o profissionalismo
[Poema panfleto]
Marcus Groza
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O profissional trabalha com compromisso
o artista trabalha com obsessão
O bom profissional é um empreendedor
o bom artista é um aprendiz de feiticeiro
O músico profissional é um metrônomo dócil
o músico-artista habita um devir-mus’go
O ator profissional é um clown emocionado
o ator-artista é um demônio emocionante
O artista visual é um mestre retiniano dos tubos de tinta
o artista do invisível faz o mundo nos lançar um olhar de volta
O escritor profissional é um jornalista de pensamento obeso
“o poeta é aquele que escova os dentes de alho” (Leo Mandi)
O profissional cronometra e é cronometrado
o artista manipula o acaso e o cálculo (tempo-Aión)
O profissional é fluente no burocratês
o artista aprende a soletrar por resiliência
O profissional forma trustes de cães pacificados
o artista é animal inespecífico devastador de bordas
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A Gravidade é o
Mistério do Corpo
Leticia Kamada
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Cultura:
posologia e
modo de usar
Oswaldo Almeida
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Cultura e poder público têm sido amigos íntimos. Entendida em seu sentido amplo,
para além do campo artístico, a cultura garante aos poderes constituídos o controle das
pulsões individuais e a adoção de consensos.
Como já nos ensinava Freud, é a cultura que
nos permite regulamentar as relações sociais:
“A convivência humana só se torna possível
quando se reúne uma maioria que é mais forte
do que cada indivíduo1”. Nesse sentido, abordar a relação entre cultura e Estado requer a
compreensão de que estes são indissociáveis,
pois somos regulados por nossas convenções,
nossos aprendizados e nossas concessões ao
outro. Em outros termos, por nossa cultura.
Assim, cada sociedade e, consequentemente,
cada modo de viver em sociedade são derivados da maneira como um dado grupo social se desenvolveu ao longo do tempo. Essa
concepção de cultura coloca-a como um fator
de integração social a priori. Mas também é
próprio da cultura o conflito, sem o qual não
se desenvolve uma comunidade. É do questionamento de antigos modelos que surgem
as novas ideias. Assim, a cultura é, segundo
um dos significados apresentados por Terry
Eagleton2, a “lâmina do arado”, aquilo que
revolve o solo, podendo daí fazer surgir tanto
a conciliação quanto o confronto. Essas duas
interpretações do fato cultural, a que o apresenta como fator de coesão social e a que o
entende como algo que não se pode controlar
totalmente, convivem muito proximamente
quando se tenta entender as relações entre
poder público, cultura e desenvolvimento
econômico.
Apesar de sua pouca relevância nos
discursos oficiais, a área cultural encontra-se
entre aquelas de que se lança mão quando a
tentativa é soar politicamente correto. Poucas áreas e poucos termos apresentam essa
garantia de acerto, e sob esse ponto de vista
o termo “cultura” caminha ao lado dos infalíveis “sustentabilidade”, “meio ambiente”,
“cidadania” etc., todos eles ligados a escassos recursos nos orçamentos municipais, mas
eficientes quando necessários para justificar
algumas ações pontuais das administrações
públicas. Inclusive na área de economia.
Poucas iniciativas públicas traduzem tão perfeitamente essa relação quanto os projetos
de requalificação urbana, integrados às políticas de preservação do patrimônio histórico. Vários exemplos no Brasil e no exterior
demonstram a vitalidade dos novos centros
de cultura e de negócios que foram gerados
a partir de processos de recuperação do patrimônio e de estímulo ao turismo, realizados
de forma integrada. A Estação das Docas de
Belém do Pará, criada a partir do restauro do
antigo porto de Belém, é uma referência turística no Amazonas, recebendo cerca de seis
mil visitantes por dia. A cidade de Barcelona
experimentou mudanças radicais a partir dos
anos 80, culminando com as grandes obras
que terminaram por alterar o perfil internacional da cidade na preparação para os Jogos
Olímpicos de 1992. O Bairro do Recife, na
capital pernambucana, também experimentou processo semelhante a partir de 1998,
após o tombamento de seu principal núcleo
histórico. Quase como regra, atingem-se nestes processos os esperados resultados de requalificação urbana e desenvolvimento econômico, porque, paralelamente ao restauro
do patrimônio edificado, promove-se a nova
imagem desses centros como polos de gastronomia, de diversão noturna, de lazer e de
1. Freud, Sigmund. O mal-estar na cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: LPM Editora, 2010.
2. Eagleton, Terry. A ideia de cultura. Trad. Sandra Castello Branco. São Paulo: Ed. Unesp, 2003.
93
fruição cultural, com a instalação de museus
ou a realização de grandes festivais, com o
devido investimento em segurança pública
para garantir o trânsito dos novos frequentadores desse espaço urbano. Estes são exemplos típicos do uso das expressões culturais
– a arquitetura, a arte, a história de cada lugar
– como motivos de impulso para o desenvolvimento econômico. De uma forma geral, a
percepção dos executores dessas ações é a
de que houve melhorias na utilização desses
espaços públicos. Como dito anteriormente,
entretanto, essa percepção extremamente positiva do processo é apenas um dos pontos de
vista do fato cultural.
O que não raras vezes ocorre nesses
processos, em que a cultura e suas manifestações são envolvidas diretamente, é que se costuma desconsiderar que qualquer intervenção
carrega consigo determinadas interpretações
da realidade, adequadas às condições históricas em que foram gestadas. Pode ocorrer, por
exemplo, de esses processos proporem modelos de ocupação urbana que já não fazem
sentido para a população do local, ou mesmo
que desconsiderem as dinâmicas já existentes de ocupação que fazem os moradores da
área envolvida. Eventualmente, inclusive, os
antigos moradores podem vir a ser totalmente desconsiderados nesses processos, como
alerta Rogério Proença Leite3 ao referir-se à
Rua do Bom Jesus, que integrava, como um
novo polo comercial, o projeto de requalificação do centro histórico de Recife:
O tratamento especial e diferenciado
na limpeza pública, na iluminação e
no próprio montante de investimentos
efetuados no polo – enquanto outras
áreas não receberam nenhuma melhoria nas edificações, infraestrutura ou
mobiliário urbanos – é um indicador
de uma tomada de posição clara quanto aos “sujeitos” que seriam beneficiados com a “revitalização”. Da mesma
forma, as ações proibitivas em relação
aos ambulantes e aos meninos em situação de rua, através do mecanismo jurídico do Projeto Hora de Acolher, demonstram as condições desiguais com
que eram travadas as disputas simbólicas pelo Bom Jesus. Nesse polo, restou
aos excluídos do enobrecimento ocupar, durante o dia, a calçada-sombra:
aquela cujos usos diurnos ainda anunciavam resíduos de um tempo em que o
bairro era feito pelos próprios moradores, gente “simples” que se sentava
no banco para conversas à toa, à sombra das árvores que a acolhia.
Esses processos de revitalização ou
requalificação urbana, mais frequentes a partir do final dos anos 60, têm sido estudados
sob o nome de gentrification (enobrecimento). A cultura está mais presente nesses processos do que pode supor o aporte público na
realização de atividades artísticas nos locais
revitalizados. Antes mesmo de esses projetos
estarem prontos, estão de tal forma imbuídos
de posicionamentos ideológicos que se torna
difícil até para seus fomentadores compreenderem a qual projeto de cidade estão servindo. Mesmo projetos internacionalmente reconhecidos, como os de Barcelona, na Espanha,
e da Trafalgar Square, em Londres, carregam
juntamente com seus méritos o antagonismo
sutil entre positivo e negativo próprio das re-
3. Leite, Rogerio Proença. Contra-Usos da Cidade: Lugares e Espaço Público na Experiência Urbana Contemporânea. Campinas, Ed. Unicamp, 2007. 2ª edição. Sergipe: Ed. UFS, 2007.
94
lações culturais. Como nos mostra Richard
Williams4 em relação ao caso londrino, projeto do arquiteto Richard Rogers:
Em sua conhecida imagem, um esboço
em preto e branco em perspectiva, o
projeto parece tão inócuo que é difícil perceber sua importância. Mas ele
reimaginou a praça num momento em
que ela não era apenas o centro vital
de tráfego da Londres central, mas o
principal local de concentração pública da cidade. Os protestos contínuos
durante os anos 80 contra o regime de
apartheid na África do Sul (a embaixada ocupa o lado leste da praça) foram
um dos fatores principais para a dissolução final daquele regime. A imagem
de Roger, porém, a imagina como tudo
menos uma praça de protestos. Não –
a praça foi tomada por museus. Talvez
ela tenha se tornado um museu. [...] as
centenas de figuras que agora habitam
a praça são – apesar de representadas em forma de silhueta – inquestionavelmente visitantes de galerias que
acabam de ser expelidos para a praça.
Eles não constituem uma multidão, andam polida e lentamente, mantêm uma
distância respeitosa uns dos outros,
estão eretos. [...] Trata-se de uma imagem crucial de cultura pública – mas
é vital para se compreender também a
maneira altamente restrita e controlada com que a cultura é imaginada.
Os exemplos supracitados demonstram que, mesmo que inconscientemente, a
cultura está na origem e no destino de várias
das intervenções públicas, sendo estas direta
ou indiretamente direcionadas ao desenvolvimento econômico. De modo mais direto,
o poder público também é responsável por
ações pontuais que evidenciam a força da
cultura e da arte quando propõe, como no
caso de São Paulo, eventos como a Virada
Cultural, que atrai cerca de quatro milhões de
pessoas à cidade, grande parte turistas. Também – ou principalmente – em outros países
ocorre tal investimento na arte como propulsora de negócios. O Festival de Edimburgo,
na Escócia, reúne público similar e gera, segundo pesquisa encomendada pelos realizadores, mais de 260 milhões de libras e cinco
mil empregos diretos. Essas atividades estão
relacionadas ao campo de estudos a que se
convencionou denominar Economia da Cultura. Estão ligadas também ao conceito de
Indústria Criativa, que reúne as produções ligadas à criação simbólica, entre as quais podem ser citadas a criação cinematográfica, o
setor de espetáculos, o mercado editorial, os
segmentos de criação de softwares, o design,
a moda, o artesanato, entre outras áreas do
conhecimento.
A força desse mercado que envolve a
criação simbólica5, contudo, pode dar a entender que as relações entre cultura e poder
público são sempre sinérgicas. Mas basta
uma passada de olhos pelos jornais diários
para perceber que as coisas não se dão exatamente dessa forma. São constantes as notícias de investimento do poder público na
criação de parques tecnológicos, em que se
investem milhões na busca por novas indús-
4. Williams, Richard J. Espaço Público e Cultura Pública: Teoria, Prática e Problemas. In: Coelho, Teixeira (org.). A Cultura
Pela Cidade. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.33-47.
5. O PIB da indústria criativa paulista atingiu R$ 48 bilhões em 2011, respondendo por 44% do total do PIB do país nessa área.
Folha de S. Paulo, Mercado B-3, 16 nov. 2012.
95
trias. Com o mesmo objetivo, reduzem-se
frequentemente os tributos, diminuindo as
arrecadações municipais com o propósito de
gerar novos empregos. Do lado oposto, dando mostras de como geralmente se pensa a
cultura no poder público, veem-se associações que lutam pela preservação do patrimônio histórico convivendo com o argumento,
geralmente utilizado pelo poder executivo, de
que o recurso para o restauro das edificações
deve ser buscado junto à iniciativa privada. O
MASP, museu que é referência no hemisfério
sul, recebe do poder municipal apenas o suficiente para sua manutenção durante quatro
meses do ano e é praticamente ignorado pela
política cultural do Ministério da Cultura,
mesmo recebendo cerca de 800 mil visitantes
por ano. Novamente, o argumento é de que se
devem buscar doações e patrocínios junto às
empresas. Nada de errado em se contar com
recursos privados para o desenvolvimento de
ações culturais públicas. Tem sido assim em
boa parte das instituições culturais no mundo
todo. O relevante nessa situação é perceber
que o patinho feio dos orçamentos municipais nem sempre é tão compreendido quanto
parece. Geralmente, entende-se que investir
recursos públicos na área cultural (equívoco
semelhante ocorre com a educação, apesar
de esta receber formalmente mais recursos)
significa colocar dinheiro onde não se verão
resultados práticos. Afinal, os grandes avanços da cultura se dão no campo simbólico, no
desenvolvimento humano, mais subjetivo e
difícil de mensurar. Como se medem o grau
de felicidade e a qualidade das expressões humanas, entre as quais se encontra a arte? Talvez por isso o poder público prefira investir
em eventos pontuais, cujo resultado numérico é imediato e pode ser utilizado como argumento. Quanto mais subjetiva uma atividade
cultural, menos chances ela terá de ser compreendida como importante pelas políticas
públicas. Por isso, apesar de justificável como
fator de desenvolvimento econômico, não se
pode desconsiderar que a cultura deve servir a seus próprios valores. A transformação
pessoal, a ampliação de nossa percepção do
mundo, o conhecimento e o respeito à cultura
do outro, a tolerância, e mesmo o poder renovador das transgressões, dificilmente serão
defendidos em discursos da área econômica.
Tratemos, pois, de defendê-los nós mesmos,
os trabalhadores da área cultural.
Escrito em agosto de 2013 para debate no XXVII Simpósio do
IEV – Instituto de Estudos Valeparaibanos. Mesa: Poder Público:
agente de desenvolvimento econômico por meio da cultura.
96
97
Geografia do
pensamento musical
e estética da
fosforescência
Marco Antônio Machado
98
À guisa de introduzir o assunto,
não posso deixar de falar sobre a condição
de estagnação de pensamento na qual nos
encontramos e de como os campos tradicionais, consagrados e conservadores fortalecem suas amarrações com êxito assombroso. Para tanto, partirei de uma anedota
que proporá uma dicotomia que, para mim,
parece preponderante:
No município de São José dos Campos-SP, onde nasci e vivi a maior parte de
minha vida até agora, há um coletivo de
artistas que se reúne desde 2009 para reivindicar as demandas do movimento cultural. Tal coletivo ficou conhecido como
Fundão, pois nossa demanda era a implementação da lei que instituiria o Fundo
Municipal para Arte e Cultura1. Depois de
muito trabalho, grupos de estudo e discussões, escrevemos em coletivo o texto da lei
e demos início à luta por levar à câmara de
vereadores para ser votada. Com algumas
perdas, a lei foi aprovada no dia 13 de dezembro de 2013. Uma das perdas a que me
referi foi a da palavra Arte, pois o texto final ficou com o título de Fundo Municipal
de Cultura2. Em face disso, eu, como delegado de cultura do município na ocasião,
indaguei o presidente da fundação cultural
da cidade o porquê de tal transformação.
No primeiro momento, ele pormenorizou a
questão e disse que era apenas uma palavra,
que ficaria mais sonoro e mais simples somente Fundo Municipal de Cultura, FMC.
“Precisamente porque tudo passa pela linguagem e se passa na linguagem...” (DELEUZE, 2009, p. 36) que para mim nada é
só uma questão de palavra. Então eu insisti na demanda, argumentando que o texto
foi escrito em colegiado, com a sociedade
civil, com os artistas do município, e que
tal mudança foi autoritária e não levou em
consideração o trabalho e a dedicação de
todos. Foi nesse momento que o presidente
retrucou dizendo que arte e cultura são a
mesma coisa, tratavam da mesma coisa, e
que, portanto, juntos estariam redundantes
no título da peça jurídica. E aqui entramos
no ponto da discussão que me interessava,
pois pra mim não só não são (arte e cultura) a mesma coisa, como são antagônicas
do ponto de vista da orientação do pensamento. Voltando ao debate, eu disse que
era preciso a palavra arte no título da peça
jurídica para que garantisse que projetos
de cunho artísticos fossem contemplados
nos editais e não só os de cunho cultural
e, disse ainda, que correríamos o risco de
acontecer o mesmo que acontece no âmbito da fundação cultural da cidade – que
tem apenas a palavra cultural no seu título
e, em consonância com isso, apenas promove e patrocina projetos culturais. Então
o presidente respondeu: – discordo Marco,
a fundação tem projetos culturais e artísticos. Então eu retruquei: – liste-me, presidente, quais são os culturais e quais são os
artísticos? Eis a lista que ele elencou: Culturais – jongo, capoeira, viola caipira, folia
de reis...; Artísticos – orquestra sinfônica,
balé clássico, sapateado, teatro... Então, eu
comentei dizendo que era interessante observar que para ele cultura era o que era
feito por pobres e pretos, e arte era o que
era feito por ricos e brancos.
Pra mim, a diferença não é racial,
de classe social ou de origem continental
(África X Europa), mas sim se o intuito do
1. Lei em consonância com o Plano Nacional de Cultura que conigura um fundo com dotação orçamentária municipal
para premiar projetos enviados e contemplados em editais públicos nas mais diversas áreas culturais e artísticas.
2. http://www.sjc.sp.gov.br/legislacao/Leis/2013/9069.pdf
99
fazer é preservar uma prática, repetir um processo, reutilizar um modo de vida consagrado
e sabido, ou se o intuito é se arriscar, experimentar por caminhos desconhecidos, promover novos encontros e novos modos de vida.
A cultura é cultivo, é identidade, é repetição
– a arte é nomadismo, alteridade, diferença.
É nesse âmbito que tanto a orquestra sinfônica como os grupos de jongo, as classes de
balé, jazz e sapateado, o circo, a capoeira, os
festivais de rock, tudo isso compõe um rico
trabalho, porém exclusivo no campo da cultura. O fundo municipal continua se chamando
apenas de cultura.
A ideia de geografia do pensamento
passa pela noção de desterritorialização elaborada por Deleuze e Guattari e tem como
alicerce o nomadismo na intelecção. Dizendo
de outro modo: tudo pode ser um território
(HAESBAERT e BRUCE, 2012, p. 6-7), os
fluxos e movimentos sobre esses territórios
promovem desterritorializações e reterritorializações. No mundo do pensamento (ente do
intelecto), não é diferente e, portanto, ao estudo dos territórios do intelecto denominamos
aqui: geografia do pensamento (MACHADO,
2009, p. 11-15).
Nos campos de consistência do ente
da razão há um emaranhado de planos ou
territórios. Tais planos foram desbravados
quando, de suas inaugurações, em seguida, seus limites, foram estabelecidos, suas
características climáticas, seus percursos,
seus centros e códigos normativos. Assim,
podemos pensar o território da ciência natural como um grande continente dentro do
qual outros territórios se posicionam. A física, a química e a biologia seriam exemplos
de países dentro desse continente. Dentro da
biologia, teríamos o estado da anatomia, de-
100
pois, o município da fisiologia, o bairro da
endocrinologia, e assim por diante.
Entretanto, diferentemente dos mapas
cartográficos onde os territórios se posicionam sempre lado a lado, os territórios no ente
da razão ficam entrelaçados, em uma composição intrincada e complexa. Desse modo, o
território da endocrinologia pode se relacionar com o da química orgânica ou até mesmo
o da psicologia comportamental – essa sobreposição de planos ou platôs vem a ser denominada planitude (DELEUZE e GUATTARI,
2007, p. 59).
A partir disso, alguém poderia dizer
que a metáfora por meio do território e da
geografia é ineficaz, já que o posicionamento
dos territórios no mundo do pensamento não
segue a lógica de uma cartografia planisférica. Mas, se observarmos em uma análise
detida, poderemos constatar que também na
geografia os territórios não se posicionam lado
a lado exclusivamente. O mapa cartográfico
é apenas um meio de estruturação do estudo
da geografia. Em adição, a geografia estuda
os recursos naturais, a orientação política, a
cultura, a inclinação religiosa etc. A Caxemira é um território dentro da Índia, porém
em interlocução direta com o oriente-médio
e as tradições islâmicas; a Itália penetra o
Brasil por meio de suas colônias nas regiões
sul e sudeste; o Panamá está mais próximo
dos Estados Unidos do que Cuba, quando o
assunto é orientação política e mercantil. E
o mesmo ocorre em nível pessoal: eu posso
estar no meio do estado de São Paulo, mas
contaminado por um modo de viver, por uma
afetividade, por um olhar de uma localidade
longínqua em termos de cartografia.
Nietzsche em sua Segunda Consideração Intempestiva apresenta uma reflexão
que pode nos auxiliar neste ponto. O filósofo denuncia certos vícios do historicismo
e aponta três modos de se fazer história: 1)
monumental – tende a ver o passado como
um conto de grandes heróis da virtude e da
sabedoria, colocando-os em patamares inalcançáveis: esse modo acabaria apenas por
produzir frustração e descontentamento por
nunca, no presente, reconhecermos o mesmo
heroísmo; 2) historicismo-antiquário – olha
para o passado como um construtor de valores e padrões a serem respeitados, portanto,
um passado que produz tradição e cultura,
ou seja, um passado engessador, duro, que
não permite o devir; e 3) modo crítico – esse
é o modo proposto por Nietzsche, que deveria agenciar arte e ciência em uma produção estética da história. Para Nietzsche toda
história é uma ficção: já que não é possível
se debruçar objetivamente sobre o passado,
qualquer narrativa sobre ele é uma construção, um produto da mentalidade. De modo
que não é o presente consequência do passado, senão o contrário, o passado consequência do presente. É o nosso entendimento
paradigmático sobre o passado que o define
– desse modo, a história deveria assumir seu
posicionamento estético, como campo do
saber em conjugação com o da criação. Para
o filósofo, isso seria fundamental na instauração do estado dionisíaco (NIETZSCHE,
2003, p. 6-13).
De certo modo, a história estética de
Nietzsche se agencia com a geografia do
pensamento, integram o ente da razão: a primeira como um projeto de revolvimento que
envolve imersão criativa e emersão narrativa, e a segunda como uma rede de contaminação por lateralidade e vizinhança em uma
superfície.
No território de saber da música, essas
relações ocorrem de maneira análoga. Temos
também uma geografia de planitude onde ter-
ritórios se intercomunicam a todo momento.
Os territórios musicais podem ser categorizados quanto ao estilo ou gênero: barroco tardio,
free jazz, maxixe; ou por disciplinas do saber:
harmonia, regência, arranjo; há territórios-instrumentos: viola caipira, oboé do amor, bateria; há territórios-pessoas: Beethoven, Miles
Davis, Chiquinha Gonzaga; territórios de pesquisa: sonologia, musicologia, etnomusicologia. E ainda outros em sucessão. E é claro que
todos esses territórios terão subdivisões em
primeira, segunda e terceira ordem – harmonia, harmonia tradicional, baixo de Alberti.
O campo do saber musical já é notoriamente reconhecido como um campo
estético, portanto um campo de criação e
transformação. Consideremos, com isso,
preponderante refletirmos sobre nosso comportamento diante das territorialidades, sobre como nos posicionamos, se estamos em
movimento e em que velocidade, se traçamos pontes para a intercomunicação de territórios, se percorremos linhas de fuga. Para
tanto, é importante estabelecer três principais posições dentro de um território: 1)
centro; 2) periferia; e 3) fronteira. Em uma
concepção rizomática de planitude não existe de fato um centro absoluto nos territórios,
não existe um centro real de identidade, mas
existe um posicionar-se ao centro, um fazer
ressoar com o centro, ou em função de um
centro (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p.
194). No centro se encontram reunidas as
principais categorias ou características que
compõem o território, ou seja, o território paradigmático, ou o lugar comum – o território
do rock tem como características centrais os
pulsos quaternários, as guitarras elétricas, a
bateria com alternância entre bumbo e caixa, o vocalista masculino com voz levemente rasgada e uma temática de rebeldia. As diversas periferias que qualquer território terá
são localidades com desvios do centro, isso
101
ocorrerá tanto por apresentar características
não convencionais, como por não apresentar
as características convencionais – uma banda de rock com uma cantora lírica, ou com
flautas e violino, ou um rock ternário. Estar
na fronteira, por sua vez, não consiste de fato
em estar em um determinado território, a posição de fronteira é uma posição limítrofe,
onde se conjugam dois ou mais territórios.
Nessas condições será difícil estabelecer um
consenso sobre qual é o território: uns dirão
jazz, outros rock progressivo, outros fusion.
A fronteira é a morada do mago:
“
Os feiticeiros sempre tiveram a posição anômala, na fronteira dos campos
e dos bosques. Eles assombram as
fronteiras. Eles se encontram na borda
do vilarejo, ou entre dois vilarejos.
O importante é sua afinidade com a
aliança, com o pacto, que lhes é um
estatuto oposto ao da filiação. Com o
anômalo, a relação é de aliança (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 28).
O anômalo busca as fronteiras e seu
estatuto é o da aliança. Um estatuto que visa
passar linhas de fuga e, como em uma espiraloide, mover-se de maneira centrífuga, afastando-se do centro. O estatuto da filiação é
centralizador, círculo fechado, centrípeto: ele
conduz seus adeptos para o padrão majoritário e vazio que é o lugar comum. É o estatuto
da filiação o responsável por uma sociedade
patriarcal, falicista, por uma cultura de tradição, família e propriedade, por um mundo
que cultua livros sagrados e tecnocracia.
Em face disso, diferenciamos aqui o
papel do agente da cultura e o agente da arte.
O primeiro é filiado a uma tradição, a um
território, procura sem descanso seu centro,
102
sua mais pura maneira de se expressar. O segundo é aliado dos ventos e das correntezas,
não reconhece centros nem certos, estabelece
moradas temporárias na fronteira de reinos e,
em momentos de genialidade, cria territórios
completamente novos. Messiaen habitou em
momentos a tríplice fronteira entre as ragas, o
canto dos pássaros e o cristianismo.
“
A empatia com o vencedor beneficia
sempre, portanto, esses dominadores.
Isso já diz o suficiente para o materialista histórico. Todos os que até
agora venceram participam do cortejo
triunfal, que os dominadores de hoje
conduzem por sobre os corpos dos
que hoje estão prostrados no chão. Os
despojos são carregados no cortejo
triunfal, como de praxe. Eles são chamados de bens culturais (BENJAMIN,
2014, p. 244).
O conceito de fosforescência nos conduz a uma espécie de geologia do pensamento. Aqui já não abordaremos o conceito de
território no ente da razão como produto da
mentalidade humana para fora dela, mas buscaremos por uma ontologia do pensamento
criativo, na confecção do próprio ser.
Por definição, fosforescência é a propriedade de brilhar na obscuridade. A emissão
luminosa nessas condições se deve produzir
sem calor sensível e, para se caracterizar como
tal, a luminescência deve persistir por um tempo superior a 10-8 segundos após a remoção
da fonte de excitação. Portanto, é uma energia
que permanece, é um brilho de resistência.
Para empreender essa abordagem no
sentido de estabelecer uma estética da fosforescência, iremos nos valer da reflexão de
três pensadores: Bergson, Benjamin e Deleuze. É importante deixar claro, entretanto, que o conceito como entendemos aqui
somente aparece de forma clara e definida
na obra de Gilles Deleuze. As ideias exploradas em Matéria e Memória, de Bergson
(1896), e em Sobre o Conceito de História,
de Benjamin (1940), apresentam embriões
ou brotamentos do que vem a ser a estética
da fosforescência. Essa abordagem que partirá de Bergson e de Benjamin para depois
alcançar Deleuze acaba sendo uma espécie
de genealogia do entendimento sobre a fosforescência no campo da ontologia.
Henri Bergson faz uso dessa terminologia em Matéria e Memória, basicamente,
como o próprio subtítulo diz, um Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Ao longo de todo o texto, o autor estabelece comparativos entre duas correntes de orientação
do pensamento: o idealismo e o realismo. O
foco do texto é uma discussão sobre o funcionamento da percepção, portanto, nesse
campo3, a diferença entre idealismo e realismo se dá pelo fato de que, no primeiro, a verdade existe no mundo das ideias e o corpo e
a matéria apresentariam indícios, muitas vezes vacilantes, que devem ser utilizados com
cuidado e sob o crivo da correção intelectual;
já no segundo, as ideias, pensamentos, seres
são apenas produtos da materialidade e criados a partir dela. Imbuído nessa dicotomia,
ele insere o conceito de fosforescência:
“
Uns veem em nossa percepção consciente uma fosforescência que segue
esses movimentos e lhes ilumina o
traçado; outros desenvolvem nossas
percepções numa consciência que
exprime sem cessar, à sua maneira, os
estímulos moleculares da substância
cortical (BERGSON, 1999, p. 22).
É como se os estímulos da matéria na
sensibilidade pudessem produzir tamanha
impressão que os rastros luminescentes não
se apagassem instantaneamente como a sucessão ininterrupta da natureza opera. O que
pretendemos afirmar é que cada evento na
vida ocorre em um momento único e efêmero, não chega a durar nem mesmo uma fração
de segundo, mas não vivemos os eventos em
si, e, sim, experimentamos sua fosforescência, o presente enquanto duração (primeira
síntese do tempo). Bergson continua nos seguintes termos:
“
É verdade que se fingirá não dar
nenhuma importância a essa representação, vendo nela uma fosforescência
que as vibrações cerebrais deixaram
atrás de si: como se a substância cerebral, as vibrações cerebrais, inseridas
nas imagens que compõem essa representação, pudessem ser de natureza
diferente delas! Todo realismo fará
portanto da percepção um acidente, e
por isso mesmo um mistério
(Ibid., p. 23).
É como se o cérebro funcionasse de
modo semelhante ao fundo do oceano onde
uma coletividade de lulas, águas-vivas e outros seres bioluminescentes, ao se reunirem,
provocassem o aparecimento de ritmos de
brilhos com durações diversas. Nessa pers-
3. E nessa literatura a questão é mais um confronto entre empiristas e racionalistas, até porque Bergson parte da visão de
Berkeley acerca do idealismo.
103
pectiva bergsoniana, produz-se o entendimento de que a natureza afetaria a todos os
seres vivos e os mecanismos de percepção
seriam, assim, como que mecanismos de duração. Se algo muda ao nosso redor, a percepção vai valorar o peso dessa mudança e
reagir por fosforescência: quanto mais importante o evento, no sentido da ação e da
afecção, maior a duração (Ibid., p. 29). Na
percepção-memória de um peixe ou de um
réptil haverá uma gama de imagens de curta duração que vão sempre demandar rotas
de fuga, planos de caça, busca de abrigo etc.
Mas na percepção-memória humana haverá
um rico campo de sobreposições, durações
das mais ligeiras até as milenares, uma sobreposição de agoras, uma crise de velocidades. Para Bergson, as sensações seriam
como fosforescências deixadas pelas modificações provocadas pelo mundo, e caberia
a nós produzir meios de tradução da linguagem da matéria para a linguagem da alma,
ou do entendimento (Ibid., p. 250).
Em continuação, para dar outra dimensão nessa genealogia, trazemos para a
discussão o texto intitulado Sobre o Conceito
de História (2014), de Walter Benjamin. Esse
pequeno texto, com dezoito aforismos e dois
apêndices, foi escrito no ano da morte de Benjamin (1940) e causa polêmicas até os dias
de hoje. Alguns críticos consideram como o
texto mais revolucionário desde os escritos
de Marx, e outros apontam um retrocesso no
próprio pensamento benjaminiano. As polêmicas se dão pelo fato de o autor propor um
jeito de se pensar história completamente
inédito, talvez uma história fosforescente. Na
verdade, o autor usa a palavra reminiscência,
que aqui tratarei como semelhante.
Para Benjamin, o tempo não é vazio e
4. Tempo de agora.
104
homogêneo como concebido por Kant no fim
do século XVIII. Em face disso, estabelece uma
argumentação contra a ideia de linha do tempo
ou de história teleológica que acaba por condenar todos os discursos de progresso e desenvolvimento: “A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de
seu andamento no interior de um tempo vazio e
homogêneo” (BENJAMIN, 2014, p. 249).
O autor fala de Jetztzeit4, um tempo
preenchido de agora, cheio e heterogêneo.
Como em uma superposição de durações: “A
história é objeto de uma construção cujo lugar
não é o tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de tempo de agora (Ibid., p. 249)”. Somente existe o agora (ou agoras), que é preenchido de muitos tempos que duram, formando
um rizoma de durações. Alguns eventos duram
dez, outros cem, outros mil anos. E vivemos,
no dia a dia, uma porção de agoras diferentes.
Eu posso dizer: agora estou divorciado – esse
é uma agora que dura cinco anos; ou, agora
pratico esportes – esse é um agora de cinco
meses; ou ainda, agora estou com fome – um
agora de cinco minutos. O mesmo ocorre em
nível de história: agora vivemos uma crise no
presidencialismo brasileiro (agora de poucos
meses); agora o Brasil é uma república (agora
desde 1889); agora o Brasil é uma nação independente (agora desde 1822); agora esse lugar
se chama Brasil (agora desde 1507).
Como aponta Benjamin, os agoras
duram conforme dita a classe dominante. É
muito importante para os dominadores terem
o controle sobre a narrativa histórica para
posicionarem seus triunfos sobre as mazelas
dos outros. Estudar história de maneira crítica
exige dar um “salto de tigre” sobre essa planitude de durações, porém quem comanda essa
arena é a classe dominante:
“
Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele
ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como
homogêneo. Quem tem em mente esse
fato, poderá talvez ter uma ideia de
como o tempo passado é vivido na
reminiscência (Ibid., p. 252).
Semelhante à percepção de Bergson,
que se dá pela sobreposição de planos de duração que se estabelecem conforme seus graus
de importância, a história de um tempo heterogêneo de Benjamin se dá pela sobreposição
de tempos de agora que tem suas durações
também marcadas pelos graus de importância.
A fosforescência da sensibilidade de Bergson
opera no microcosmo da percepção, nas relações corticais, na memória pessoal. A reminiscência na história de jetztzeit de Benjamin
opera no macrocosmo das memórias sociais.
Ora, até aqui apresentamos uma fosforescência da percepção (Bergson) e uma
fosforescência histórica (Benjamin), mas é
por meio de apontamentos de Gilles Deleuze
que alcançaremos uma ontologia fosforescente. No apêndice publicado junto à Lógica
do Sentido (1969) intitulado Michel Tournier
e o Mundo sem Outrem, o filósofo estabelece uma reflexão crítica acerca da produção
literária do contista e romancista francês.
Em especial, a análise se dedica ao romance
chamado Sexta-feira ou os limbos do Pacífico5 (1967) e em como se dá a relação de alteridade na obra. Para Deleuze, não se trata
de uma tese sobre a perversão, mas de um
romance que desenvolve a tese de seu personagem central “Robinson: o homem sem
outrem em sua ilha” (DELEUZE, 2009, p.
314). No desenvolvimento de suas argumentações, o filósofo estabelece uma dicotomia
entre o outrem e o eu que alcança o seguinte
enunciado:
“
Se outrem é o mundo possível, eu sou
o mundo passado. E todo o erro das
teorias do conhecimento é o de postular a contemporaneidade do sujeito
e do objeto, enquanto que um não se
constitui a não ser pelo aniquilamento
do outro. Ora, o sujeito e o objeto não
podem coexistir, uma vez que são a
mesma coisa, primeiro integrado ao
mundo real, depois jogado fora como
rebotalho (Ibid., p. 320).
Aqui notamos uma contundente denúncia a respeito de grande parte da epistemologia na tradição do pensamento ocidental. Tanto a teoria do entendimento em Kant
como a fenomenologia de Husserl, dois dos
mais influentes projetos epistemológicos,
apresentam a relação do sujeito com o objeto em contemporaneidade, ou seja, em um só
momento o sujeito experimenta o objeto por
meio da manifestação fenomênica. Em outras
palavras, João, o sujeito, experimenta o sabor
do sorvete, o objeto: e em nossa mentalidade
sempre ambos coexistem. O senso comum do
entendimento sobre o que é a vida nos diz
que se trata do desenvolvimento de um sujeito diante de uma série de fenômenos que vão
coexistindo com ele em justaposição: num
primeiro momento um sujeito experimenta
o sorvete; num segundo momento o mesmo
sujeito experimenta uma aula de literatura;
num terceiro momento, uma viagem em um
5. Tradução livre do original em francês: Vendredi ou leslimbesdu Paciique.
105
ônibus super lotado... Porém, Deleuze nos diz
que um só existe quando da aniquilação do
outro, ou seja, que o sujeito somente existe
a partir da aniquilação do objeto. De modo
que os objetos, o outrem, compõem a coletividade de forças que integram o mundo real
– no presente somente existe objeto. Quando
determinada força é aniquilada, ou seja, deixa
de existir, torna-se passado; a intensidade da
impressão que ela produziu será determinante na escolha do uso de seu rebotalho para a
confecção do ser – “eu sou o mundo passado” (Ibid., p. 320). Então, no presente, apenas
existe objeto, enquanto que, no passado, apenas existe sujeito. Assim, a vida passa a ser
uma fenda de atravessamentos, alguns desses
atravessamentos são tão pregnantes que acabam por se colarem nas bordas da fenda. A
costura que se realiza com esses vetores que
deixaram rastros compõe aqui o que chamamos ser ou eu.
Com essa mudança na orientação
do pensamento, o ser deixa de se apresentar como uma figura de luz que projeta seu
entendimento sobre as coisas. Agora ele é
consequência da força das coisas em si, ou
como diz o próprio Deleuze: “A consciência
deixa de ser uma luz sobre os objetos para
se tornar uma fosforescência das coisas em
si” (Ibid., p. 321). Desse modo, aquilo que
chamamos ‘nossa natureza’, ‘personalidade’, ‘ego’, ‘meu jeito de ser’, é, afinal, um
brilho que resiste, uma luminescência que
sobra, melhor dizendo: vários brilhos e luminescências de intensidades e durações diferentes. Somos a fosforescência das coisas
que eram, que nos atravessaram.
Em uma concepção ontológica, a
fosforescência não é o inconsciente, não
é a memória pessoal, não são os traumas
de infância. A fosforescência são os acontecimentos que nos atravessaram, ou seja,
o brilho das coisas em si, já aniquiladas e
106
presentes como rebotalho. O ser vem a ser
a fosforescência das coisas.
Ora, se existe uma fosforescência na
percepção que se dá pelo grau de importância que determinado acontecimento recebe,
e, do mesmo modo, na história e na composição do ser, é urgente que reflitamos sobre
o que determina as importâncias e os graus
de importância. Na percepção, Bergson nos
fala do estado de preservação: o medo de ser
aniquilado ou ferido pela natureza faz com
que todos os seres providos de sistema sensório-motor desenvolvam sua percepção em
função da sobrevivência. Na história, Benjamin nos fala que o controle sobre a narrativa
dos planos de agoras é exercido pela classe
dominante, que, evidentemente, é conservadora e busca a preservação do status quo. No
campo ontológico ocorre de forma análoga:
os acontecimentos de maior importância são
aqueles que são poderosos na construção do
sujeito, da sua identidade, da sua afirmação
e do seu discurso. E isso se dá também no
sentido da preservação, aqui no campo psicossocial, pois o sujeito sem identidade e narrativas bem costuradas teme o esquizo.
Entretanto, é possível pensar uma
fosforescência pró-esquizoide, ou esquizosintética. Costurar com os brilhos da fosforescência não em função do medo, da preservação e da estagnação, mas, de outro modo,
em função do novo, do arriscado, do inédito.
Uma percepção-história-ser cunhada a partir
do medo vive em função do utilitarismo, no
nível mais baixo de humanidade, aquele que
Espinoza chamou de ‘consciência’. Mas uma
percepção-história-ser construída a partir do
desejo abandona o mundo do útil e vai para
o mundo da arte e da contemplação, o mundo
onde a dicotomia universal-individual é de-
finitivamente ampliada pelas pré-individualidades, as mônadas, os átomos.
Desse modo, temos uma patente oposição nos modos de orientação do pensamento
quando focamos o campo da estética. Uma é a
lógica da interpretação, que parte de um sujeito
que existe em contemporaneidade aos objetos e,
como ser de luz e claridade, julga as obras, peças, canções, textos a partir de sua de mármore
identidade consciente. A outra é a lógica da experimentação, operada por sujeitos que sabem
não passar de fantasmas, ecos de reminiscências passadas e que buscam na realidade agoral
dos objetos novos encontros, novas imersões e
emersões: suas identidades são como a murta,
esquizosintéticas, mutantes.
“
...a experimentação substitui a interpretação; o inconsciente tornado molecular, não figurativo e não simbólico, é
dado enquanto tal às micropercepções;
o desejo investe diretamente o campo perceptível onde o imperceptível
aparece como o objeto do próprio
desejo, ‘o não figurativo do desejo’ ...
o inconsciente está para ser feito e não
para ser reencontrado (DELEUZE e
GUATTARI, 2011, p. 78-79).
Assim, podemos alcançar o enunciado de que a forma de operação dos agentes da cultura tem por orientação a lógica
da interpretação; enquanto que a forma de
operação dos agentes da arte é orientada
pela lógica da experimentação. A luta dos
primeiros é a da resistência, e a dos segundos a da insistência. Permanência X movimento; duração X mutação…
A estética da fosforescência consiste de nunca apreciar uma obra de arte sob a
lógica da interpretação – para interpretar é
necessário que exista um sujeito contemporâneo ao objeto observado. O que se propõe
aqui é a lógica da experimentação: viva apenas o atravessamento do objeto; experimente
suas intensidades e velocidades, suas afecções. Quando o objeto se aniquilar, tornar-se
passado, faça uso de suas potências fosforescentes na confecção do seu ser metamorfo.
Tudo isso motivado pelo fluxo dos desejos
que se agenciam em suas composições sempre intensivas e ampliativas.
“
O espírito não é sujeito, ele está
sujeito (DELEUZE, 2012, p. 22).
107
Isentão, isentão
Bruno Ishisaki
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[Terreiro de
Umbanda]
Ensaio Fotográfico
Melissa Rahal
Agradeço a todos os membros do Terreiro de Umbanda “Pai João das Almas
e Cacique Pena Dourada”, em especial
ao Pai Cristiano e à Mãe Dayse, pela
acolhida em sua casa. Axé!
Sempre quis fotografar terreiros. As religiões de matriz africana por diversos
momentos me fascinaram pelos seus ritos, seu tempo e também pela marginalização
que lhes é imposta. A fé intriga.
–Você tem que fotografar cachorro, Dona Moça!
– Cachorro?
– É, Exu está mandando você fotografar cachorro.
O jogo foi encerrado. E lá fui eu, não muito animada confesso, em busca de
peludos fotogênicos para serem meus modelos. Mapeei cães em potencial e comecei
a abordagem de seus proprietários. Assim se seguiram algumas tentativas frustradas,
até que me lembrei de um amigo adestrador. Bingo! Ele se prontificou a me ajudar
na hora.
– Obrigada pela ajuda! O que você tem no pescoço? É uma guia?
– É sim. Agora também sou pai de santo.
– Ah, será que eu poderia fotografar seu terreiro?
– Claro, você é minha convidada!
Fascínio e curiosidade me acompanharam em todas as fotos. Por vários dias,
fui ao terreiro. Conversei com todos trabalhadores da casa que me contaram sobre
suas experiências, a forma como incorporam, a força da religião em suas vidas. Foi
a mim permitido vivenciar de forma muito íntima a Gira: a entrega dos cavalos às
entidades, o respeito aos preceitos e tabus, o carinho dos pretos e das pretas velhas,
ceras de vela que não queimam a pele, cachaça que não embebeda, a resistência de
uma religião que sobrevive por meio da oralidade ao longo de anos.
O grande desafio, quando se fotografa a espiritualidade, a fé, é que se trata de
algo imaterial, uma sensação, que somente pode ser atingida de forma indireta nas
fotos, e a sua leitura é necessariamente acompanhada de todo o arcabouço histórico e
social daqueles que as leem. A produção do olhar, nesse caso, extrapola ao controle e
à intencionalidade do fotógrafo. Muitas vezes, aquilo que de início se persegue como
projeto escapa e se modifica, cresce e se envereda por outros caminhos.
O jogo começou.
– Você tem que fotografar teatro, Dona Moça!
– Teatro?
– Isso, teatro.
Há tempos, já tinha esquecido os cães.
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