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ENTRE ÁGUAS BRAVAS E MANSAS ÍNDIOS & QUILOMBOLAS EM ORIXIMINÁ ENTRE ÁGUAS BRAVAS E MANSAS ÍNDIOS & QUILOMBOLAS EM ORIXIMINÁ © Comissão Pró-Índio de São Paulo & Iepé - Instituto de Pesquisa e Formação Indígena São Paulo, setembro de 2015 ORGANIZAÇÃO Denise Fajardo Grupioni Lúcia M. M. de Andrade PROJETO GRÁFICO E CAPA Irmãs de Criação FOTOGRAFIA DA CAPA Carlos Penteado FOTOS Carlos Penteado Lúcia M. M. de Andrade Luisa G. Girardi Maria Luísa Lucas Rogério Assis Ruben Caixeta de Queiroz Victor Alcantara e Silva APOIO À PUBLICAÇÃO Os editores não se responsabilizam pelas opiniões, ideias e conceitos emitidos nos artigos que são de inteira responsabilidade de seus autores. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Entre Águas Bravas e Mansas, índios & quilombolas em Oriximiná / organização Denise Fajardo Grupioni, Lúcia M.M. de Andrade. -- São Paulo : Comissão Pró-Índio de São Paulo : Iepé, 2015. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-98046-18-1 (Iepé) 1. Comunidades quilombolas - Oriximiná (PA) História 2. Comunidades quilombolas - Oriximiná (PA) - Território 3. Povos indígenas - Oriximiná (PA) - História 4. Povos indígenas - Oriximiná (PA) - Território 5. Relações étnicas I. Grupioni, Denise Fajardo. II. Andrade, Lúcia M.M. de. 15-06683 CDD-305.800981 Índices para catálogo sistemático: 1. Oriximiná : Pará : Estado : Relações entre índios e quilombolas : História social 305.800981 ORGANIZAÇÃO DENISE FAJARDO GRUPIONI LÚCIA M. M. DE ANDRADE ENTRE ÁGUAS BRAVAS E MANSAS ÍNDIOS & QUILOMBOLAS EM ORIXIMINÁ ÍNDICE 8 ApresentAção Denise Fajardo Grupioni e Lúcia M. M. de Andrade 16 ComunidAdes moCAmbeirAs 62 HistóriAs, memóriAs e representAções QuilombolA do ArirAmbA do trombetAs Eurípedes A. Funes dA esCrAvidão nA ComunidAde Luciana Gonçalves de Carvalho 84 relAções em movimento: inimizAde e os meKoro (QuilombolAs) e pArentesCo entre os KAtxuyAnA Luisa G. Girardi 104 CosmologiA e HistóriA WAiWAi e KAtxuyAnA: sobre de Fusão e dispersão dos povos (yAnA). os movimentos Ruben Caixeta de Queiroz 134 os yAnA CAribe-guiAnenses dA região Que ColetividAdes são essAs? de oriximiná. Denise Fajardo Grupioni 148 vestígios do rio turuni: sobre memóriA, migrAções e lugAres Victor Alcantara e Silva 164 os zo’é e As metAmorFoses do FundAmentAlismo evAngéliCo Fabio Augusto Nogueira Ribeiro 178 polítiCAs do isolAmento voluntário nos interFlúvios do Fabio Augusto Nogueira Ribeiro e Ruben Caixeta de Queiroz rio trombetAs 194 210 QuilombolAs em oriximiná: desAFios dA propriedAde ColetivA Lúcia Mendonça Morato de Andrade entre urbAnizAção e regulArizAção FundiáriA: de vidA QuilombolAs de oriximiná umA geogrAFiA dos novos modos Stéphanie Nasuti, Ludivine Eloy, François-Michel Le Tourneau e Isabelle Tritsch 224 empoderAmento dAs ComunidAdes no ACesso A reCurso genétiCo trAdiCionAl: CAso dAs ComunidAdes QuilombolAs de oriximiná e ConHeCimento Roberta Peixoto Ramos 234 Consenso unânime: movimentos pelA trAnQuilidAde entre os Coletivos QuilombolAs de oriximiná e A sobreposição de pensAmentos Julia Frajtag Sauma 252 o extrAtivismo 272 miCropeçAs sobre gênero 284 Alguns modos zo´é 298 A “voltA” 316 dA CAstAnHA entre QuilombolAs do Alto trombetAs Igor Scaramuzzi e CAçAdA Junto Aos zo’é Leonardo Viana Braga de FAzer Coletivos e liderAnçAs Dominique Tilkin Gallois dos rAWAnA: notAs sobre Maria Luísa Lucas os Autores As FestAs regionAis entre os HixKAryAnA carlos penteado APRESENTAÇÃO Denise Fajardo Grupioni e Lúcia M. M. de Andrade Este livro, que o Iepé e a Comissão Pró-Índio de São Paulo ora trazem a público, trata dos povos indígenas e quilombolas que vivem no interflúvio formado pelos rios Nhamundá, Trombetas e Erepecuru, ligados principalmente ao município de Oriximiná, mas também a Óbidos, Faro e Nhamundá, na divisa entre os estados do Pará com Amazonas. Que povos são esses, que relações permeiam sua história, como vivem, são informações que não se encontram com facilidade. Contribuir para preencher tal lacuna é o propósito deste livro que reúne artigos de 18 autores que aceitaram o convite para disponibilizar ao público os conhecimentos gerados em recentes estudos sobre tais povos. A ideia deste livro nasceu no contexto da “articulação indígenaquilombola” que se iniciou em setembro de 2012, quando o Quilombo Abuí recebeu mais de 170 convidados para um reencontro histórico: o “1º Encontro Índios e Quilombolas de Oriximiná”, que representou um marco nas atuais e resignificadas relações entre índios e quilombolas nessa região. O evento promovido pela Comissão Pró-Índio e Iepé buscou incentivar a parceria entre índios e quilombolas frente a novos desafios comuns, como as regularizações fundiárias pendentes e a proteção dos territórios ameaçados pelo avanço dos empreendimentos de mineração, madeireiros e de geração de energia. Desde aquele primeiro encontro, a “articulação indígena-quilombola” vem se consolidando com a realização de atividades em Belém, Brasília, Santarém e Oriximiná1. Neste ano de 2015 a articulação alcançou um resultado de especial significado: a reaproximação entre os índios da TI Katxuyana-Tunayana e os quilombolas da TQ Cachoeira Porteira, cujas relações, no processo de regularização de suas terras, haviam assumido ares de conflito. A necessidade de se estabelecer limites rígidos em um espaço historicamente compartilhado acabou por gerar tensão e desentendimentos. 1. 10 Mais uma vez reunidos no Quilombo Abuí, escolhido como “local neutro” e livre de influências externas, em 30 de maio de 2015, lideranças indígenas e quilombolas de ambas as terras, com a mediação de lideranças quilombolas de outras comunidades, selaram sua aliança em torno da necessária “des-sobreposição” de limites territoriais para fins de regularização fundiária. O acordo firmado no Abuí estabeleceu os limites físicos dos dois territórios e foi oficializado junto ao Ministério Público Federal e Ministério Público Estadual em 30 de julho de 2015. E, assim, se espera que os processos de regularização dessas terras possam avançar, e que as históricas relações de troca e compartilhamento de recursos sejam retomadas e fortalecidas. HISTÓRIAS E VIDAS EM COMUM Índios e quilombolas nessa região conhecem-se há 200 anos, desde quando escravos fugidos de fazendas e cidades do Baixo Amazonas (Pará) subiram as águas mansas do Rio Trombetas em busca de refúgio, alcançando as águas bravas e os territórios indígenas e ali fundando seus mocambos, como eram denominados regionalmente os quilombos. Avizinhando-se, mantiveram uma convivência, ora de troca, ora conflituosa, que trouxe aprendizados mútuos, influenciando profundamente tanto o modo de vida indígena quanto o das comunidades afro-amazônicas que ali se constituíram. A história de constituição dos quilombos nessa região é relatada no presente livro nos artigos de Eurípedes Funes “Comunidades mocambeiras do Trombetas”, e de Luciana Carvalho “Histórias, memórias e representações da escravidão na comunidade quilombola do Ariramba”. Já as históricas e complexas relações entre índios e quilombolas – ou mekoro, como estes são chamados localmente pelos índios – são analisadas por Luiza Girardi em “Relações em movimento: inimizade e parentesco entre os Katxuyana e os mekoro (quilombolas)”. História é tema também do artigo de Ruben Caixeta de Queiroz “Cosmologia e história Waiwai e Katxuyana: sobre os As atividades da articulação “indígena-quilombola” contam com o apoio financeiro de Christian Aid, ICCO, Fundação Moore, Embaixada da Noruega e Rainforest Foundation Noruega. movimentos de fusão e dispersão dos povos (yana)”, que busca compreender o fundo histórico-cosmológico da ocupação do vale do rio Trombetas pelos povos indígenas. POVOS INDÍGENAS, EM SEUS MOVIMENTOS CONSTANTES DE FUSÃO E FISSÃO Os povos indígenas que vivem ao longo dos rios Trombetas, Mapuera, Cachorro e Nhamundá, são conhecidos pelas denominações genéricas Waiwai e Katxuyana. No entanto, como observam diversos autores neste livro, tais denominações abrangem uma diversidade maior de povos, em sua maioria, falantes de línguas Caribe, que se autorreconhecem, para além de simplesmente Waiwai e Katxuyana, como Hixkariyana, Inkarïnyana, Kahyana, Tunayana, Txikiyana, Kamarayana, Karafawyana, Mawayana, Okomoyana, Pirixiyana, Txarumayana, Xerewyana, Xowyana, Katwuena, Farukoto, dentre outros. Os processos de “fusão étnica” – que, em dado momento da história, levaram esses diversos grupos indígenas a se relacionarem com o Estado e a sociedade nacional como uma unidade social e política, e sob uma única denominação – são discutidos no artigo de Denise Fajardo Grupioni “Os yana caribe-guianenses na região de Oriximiná: que coletividades são essas?”, que analisa o constante movimento de fusão e fissão desses povos. A questão é abordada também por Victor Alcantara e Silva em “Vestígios do rio Turuni: sobre memória, migrações e lugares”, a partir da história de uma família indígena que planeja reocupar o lugar onde viveu às margens do Turuni. Atualmente, tais povos indígenas contam com uma população em torno de 4 mil pessoas distribuídas em 35 aldeias, situadas em três terras indígenas: Nhamundá-Mapuera, Trombetas-Mapuera (ambas demarcadas) e Katxuyana-Tunayana (em processo de regularização fundiária). Uma quarta terra indígena, a TI Zo’é, localiza-se no rio Erepecuru, onde vivem os índios de mesmo nome, falantes de uma língua tupi, que somam aproximadamente 280 pessoas organizadas em onze grupos locais. Os Zo’é entraram para a história como um dos últimos povos “intactos” na Amazônia. Sua história de contato com não índios é descrita no artigo de Fabio Augusto Nogueira Ribeiro “Os Zo’é e as metamorfoses do fundamentalismo evangélico”, que analisa também as várias estratégias adotadas pelos missionários da Missão Novas Tribos do Brasil para tentar levar a “palavra de Deus” a esse povo indígena. Existem ainda fortes evidências da presença de povos isolados nessa região, conforme discutido no artigo de Ruben Caixeta e Fábio Augusto N. Ribeiro “Políticas do isolamento voluntário nos interflúvios do rio Trombetas”. Segundo os autores, os povos contatados ocupam as calhas dos rios enquanto aqueles que optaram pelo isolamento voluntário circulam pelos interiores dos interflúvios da bacia do rio Trombetas. Terras Indígenas em Oriximiná Terra Situação Fundiária Nhamundá-Mapuera Homologada em 1989 Dimensão (ha) 1.049.520 Trombetas-Mapuera Homologada em 2009 3.970.898 Zo’é Homologada em 2009 668.565 Katxuyana-Tunayana Em processo de identificação Fonte: Iepé QUILOMBOLAS, PIONEIROS NA LUTA PELA TITULAÇÃO Os quilombolas atualmente estão organizados em 36 comunidades rurais distribuídas em oito territórios coletivos às margens dos rios Erepecuru, Cuminã, Acapu e Trombetas. Estima-se que somem 8 mil pessoas (mil famílias), mas não existe um censo ou levantamento oficial de sua população. Os quilombolas de Oriximiná são conhecidos por terem sido os primeiros no Brasil a conquistar a titulação coletiva de suas terras. Trajetória que é relembrada no artigo de Lúcia M. M. de Andrade “Quilombolas em Oriximiná: desafios da propriedade coletiva”. Uma luta que ainda não foi concluída, uma vez que 15 comunidades 11 ainda aguardam pela titulação de quatro terras (Alto Trombetas, Alto Trombetas 2, Ariramba e Cachoeira Porteira). A titulação de cinco territórios garantiu direitos, mas também trouxe novos desafios para os quilombolas. As mudanças nas relações de apropriação do espaço e novos acordos internos para gerir a propriedade coletiva também são analisados no artigo de Lúcia Andrade. Terras Quilombolas em Oriximiná Terra Situação Fundiária Dimensão (ha) Boa Vista Titulada - Incra em 1995 1.125,0341 Água Fria Titulada - Incra em 1996 557,1355 Trombetas Titulada - Incra e Iterpa em 1997 80.887,0941 218.044,2577 Erepecuru Titulada - Incra e Iterpa em 2000 Alto Trombetas Parcialmente titulada - Iterpa em 2003 Em processo de titulação no Incra Alto Trombetas 2 Em processo de titulação no Incra Ariramba Em processo de titulação no Incra e no Iterpa 79.095,5912 Cachoeira Em processo de titulação no Incra e no Iterpa Porteira Fonte: CPI-SP www.quilombo.org.br As inovações nas práticas territoriais por parte dos quilombolas são discutidas também no artigo “Entre urbanização e regularização fundiária: uma geografia dos novos modos de vida quilombolas de Oriximiná”, por Stéphanie Nasuti, Ludivine Eloy, François-Michel Le Tourneau e Isabelle Tritsch. Como apontam os autores, hoje, as territorialidades tradicionais se reconfiguram, já que, cada vez mais, os sistemas de atividades e os espaços de vida se distribuem entre áreas urbanas e rurais, graças a uma crescente circulação entre a cidade e a floresta. Os pesquisadores procuram compreender como essas populações enfrentam o desafio da conservação dos seus territórios em um contexto onde a pressão sobre os recursos aumenta cada vez mais. 2. 12 OS NOVOS DESAFIOS Dentre os novos temas postos aos povos quilombolas e indígenas na gestão de seus territórios e saberes está o acesso por terceiros aos seus recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado. Em 2007, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético autorizou a Universidade Federal do Rio de Janeiro a acessar o patrimônio genético e o conhecimento tradicional associado aos quilombolas de Oriximiná para a pesquisa de substâncias bioativas de plantas medicinais. É desse caso que trata o artigo “Empoderamento das comunidades no acesso a recurso genético e conhecimento tradicional associado: caso das comunidades quilombolas de Oriximiná”, em que Roberta Peixoto Ramos analisa as dificuldades enfrentadas para um diálogo em igualdade de condições com atores externos, e aponta a elaboração de protocolos comunitários como um dos caminhos possíveis para se alcançar o empoderamento necessário nessas situações. Os novos desafios incluem também lidar com a crescente ocupação da região, com o avanço da mineração e os projetos de hidrelétricas. E ainda com a transformação de suas florestas em unidades de conservação que vem impondo aos índios da TI Katxuyana-Tunayana e quilombolas das terras Alto Trombetas, Alto Trombetas 2, Ariramba e Cachoeira Porteira restrições na gestão e uso dos recursos de seus territórios2. Como aponta Igor Scaramuzzi em seu artigo “Extrativismo da castanha do Alto Trombetas”, as unidades de conservação afetam a realização de importante atividade econômica dos quilombolas: a extração da castanha-do-pará. Mas as unidades de conservação não têm representado obstáculo para a expansão da Mineração Rio do Norte, maior produtora de bauxita do Brasil. Instalada na região desde o final dos anos 1970, a mineradora extrai minério no interior da Flona Saracá-Taquera e começa a expandir sua área de extração na porção da Flona incidente nas Terras Quilombolas Alto Trombetas e Alto Trombetas 2. As UCs sobrepostas aos territórios quilombolas e indígenas são: Reserva Biológica do Rio Trombetas, a Floresta Nacional Saracá-Taquera (incidentes nas terras quilombolas Alto Trombetas e Alto Trombetas 2); a Floresta Estadual Trombetas (incidente nas TQs Ariramba e Cachoeira Porteira e TI Kaxuyana-Tunayana) e a Floresta Estadual Faro (incidente na TQ Cachoeira Porteira e TI Kaxuyana-Tunayana). TERRAS INDÍGENAS E QUILOMBOLAS EM ORIXIMINÁ LEGENDA Terra Quilombola Titulada Terra Quilombola em Processo de Regularização Terra Indígena Demarcada Terras Indígena em Processo de Regularização Comunidade Quilombola Aldeias Indígenas 0 30 60 120 km Fontes: Acordo índios & quilombolas (julho, 2015); CPI-SP; Funai; Iepé. 13 carlos penteado Outro fator de preocupação é a retomada, desde 2014, dos estudos do governo federal para a construção de hidrelétricas no rio Trombetas que podem impactar diretamente terras indígenas e quilombolas e unidades de conservação. Um instrumento importante na defesa de seus territórios frente a tais empreendimentos pode ser o direito ao consentimento livre, prévio e informado assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para povos indígenas e quilombolas e previsto também na Constituição Federal no caso dos povos indígenas. Mas a consulta ali preconizada precisa levar em conta os modos e ritmos de decidir próprios desses povos. O artigo de Julia Frajtag Sauma, “Consenso unânime: movimentos pela tranquilidade e a sobreposição de pensamentos entre os coletivos quilombolas de Oriximiná”, descreve e analisa os mecanismos conceptuais e relacionais – intra e intercomunitários –, que possibilitam alcançar o ideal do “consenso unânime” que garante o bem-estar coletivo e a tranquilidade desejada pelas comunidades. UM MODO DE VIDA COMUM: CAÇA, PESCA E SOSSEGO “Índios e quilombolas se organizam em torno de um modo de vida comum: caça, pesca, sossego”, foi assim que um grupo de participantes de um dos encontros de índios e quilombolas em Oriximiná definiu a forma como vivem e exploram seus territórios3. Um conjunto de artigos no presente livro ilustra tal modo de vida. Igor Scaramuzzi no artigo “Extrativismo da castanha entre quilombolas do Alto Trombetas” nos conta sobre essa atividade econômica tão característica dos quilombolas em Oriximiná e que requer um “entender” a mata, os castanhais e as castanheiras. Conforme explica o autor, os conhecimentos relacionados ao extrativismo, além de configurar um modo específico e peculiar de 3. relação com o ambiente, acabam por constituir também o modo de vida dessa população e suas formas particulares de uso e ocupação territorial de modo geral. Leonardo Viana Braga, em seu artigo “Micropeças sobre gênero e caçada entre os Zo’é”, trata do tema da caça a partir da descrição minuciosa de ações e acontecimentos que nos permitem entrever, para além da caça em si, também um modus vivendi próprio aos Zo’é. Outra faceta dos Zo’é é iluminada pelo artigo de Dominique Tilkin Gallois “Alguns modos zo’é de fazer coletivos e lideranças”, em que a autora analisa, de uma perspectiva histórica, os desencontros entre as expectativas de jornalistas e indigenistas em torno de uma suposta ausência de hierarquias e chefias entre os Zo’é, e os modos propriamente zo’é de qualificar “poder” e de caracterizar seus chefes, mostrando que não apenas existe chefia, como é por meio da ação política de seus chefes que se dá a formação de coletivos. A temática das redes de relações que conectam os coletivos indígenas dessa região é tratada no artigo de Maria Luisa Lucas, “A ‘volta’ dos rawana: notas sobre as festas regionais entre os Hixkaryana”, em que analisa a importância e as transformações contemporâneas das festas regionais como veículos de intercâmbio de pessoas, bens, conhecimentos e, sobretudo, de relações. Assim percorrendo diferentes aspectos da história e modos de vida dos índios e quilombolas que vivem na região de Oriximiná, quisemos, juntamente com os autores dos artigos que compõem esta coletânea - a quem agradecemos pelo esforço conjunto prestar nossa homenagem a esses povos, divulgando informações que contribuam para a defesa de seus direitos constitucionais, principalmente à terra e à autodeterminação, e para que se fortaleçam face aos desafios que enfrentam atualmente para manter o “sossego” em seus territórios. Encontro “Índios e quilombolas em Oriximiná: trocas em gestão territorial” promovido pela CPI-SP, Iepé, CEQMO e Associação Mãe Domingas, em novembro de 2014 na cidade de Oriximiná. 15 carlos penteado COMUNIDADES MOCAMBEIRAS DO TROMBETAS Eurípedes A. Funes INTRODUÇÃO Quando decidi estudar comunidades mocambeiras na Amazônia brasileira alguns questionamentos se colocaram, entre eles, se ali houve um regime escravista nos moldes de outras regiões brasileiras, em especial, quanto ao contingente de população cativa. Essa questão associava-se, por um lado, à representação da Amazônia como um território indígena, e, por outro, à natureza amazônica – um ambiente pouco propício às atividades agropastoris – floresta úmida fechada, insalubre, um inferno verde. Ali seria impossível a presença de relações de trabalho escravista para além daquela em que o nativo constituíra a força de trabalho, associada ao extrativismo. No Pará, a população cativa, negra, não ultrapassou em nenhum momento a taxa de 20% da população total da província. Todavia, as relações de produção escravista ali se faziam presentes, fossem na ilha de Marajó, na região do Salgado, no baixo Tocantins, ou no oeste do estado, onde concentrei os meus estudos sobre as sociedades mocambeiras, ali constituídas no século XIX – nos rios Trombetas, Erepecuru/Cuminá, Curuá e nos lagos de Óbidos e Santarém –, hoje materializadas nas comunidades quilombolas descendentes dos mocambos existentes naquela região, então conhecida por Baixo Amazonas (Funes, 1995). Falar em remanescentes de quilombos, no Baixo Amazonas, é remeter a uma história marcada por conflitos, resistências de cativos que romperam com a sua condição social ao fugirem dos cacoais, das fazendas de criar, das propriedades dos senhores de Óbidos, Santarém e Alenquer. É navegar nas reminiscências vivas, que marcam as experiências sociais e vivências de afro-amazônicas que constituíram seus espaços no alto dos rios Curuá, Erepecuru e, em especial, no Trombetas, onde ser livre era possível. O Trombetas, assim como outros rios daquela região, se constitui de duas partes. A primeira denominada de “águas bravas”, marcada pela presença de cachoeiras, mais próxima das nascentes, de difícil navegabilidade, até mesmo para uma simples canoa. Territórios de várias nações indígenas, outrora também de refúgio de vários 18 quilombolas. A segunda, chamada de “águas mansas”, por ser de fácil navegabilidade, tem uma extensão de aproximadamente 200 quilômetros até a sua foz. Trata-se de uma região com terra preta (denunciando a presença de antigas povoações indígenas), hoje pontilhada por comunidades quilombolas, que ali se constituíram ao longo do século XIX. É área de disputa entre essas comunidades, as empresas mineradoras e órgãos federais de preservação ambiental – Reserva Biológica do Trombetas e Floresta Nacional Saracá-Taquera. Foi nesse rio de águas negras, emolduradas por castanhais, que se constituiu no século XIX uma fronteira quilombola. Ali, firmaram-se os mais importantes mocambos do oeste paraense, configurando-se uma Amazônia negra. Uma fronteira é sempre final e princípio; ponto de chegada e de partida, âmbito do cotidiano e do desconhecido, geradora de medos e desconfianças; espelho e escudo, eterna contradição de um ser que requer o outro, ao mesmo tempo que necessita diferenciar-se para seguir sendo essencialmente humano. Rio que se constituiu caminho natural para aqueles que, em processo de fuga, buscavam as águas bravas, onde ser livre era possível. Mocambos que necessitavam, na opinião do governo provincial do Pará, ser destruídos, “em razão dos graves prejuízos que sofrem os lavradores daqueles distritos com a fuga de seus escravos” (Governo do Pará, 1847). Terras de negros sobrepondo territórios indígenas. Momentos de tensões e alianças entre dois segmentos sociais distintos, onde as sociedades nativas tornam-se o Outro frente ao quilombola, sendo forçadas a se deslocar mais rumo ao Tumucumaque, um divisor de águas entre aquelas que deságuam no Atlântico Caribenho e aquelas que descem para o “Mar Dulce”. Ali se encontram com outros negros fugidos da escravidão – os bush negroes, configurando-se um elo entre as sociedades quilombolas dessa região amazônica. Uma convivência, ora conflituosa, ora de tolerância, que possibilitou trocas culturais perceptíveis nos modus vivendi, em particular no cotidiano das comunidades afroamazônicas. Houve ali uma troca de saberes. As marcas desse processo histórico são visíveis na documentação gerada pelo governo paraense: correspondências, relatórios e autos cíveis; nos jornais da época, nas narrativas produzidas por viajantes, em sua maioria cientistas, que visitaram esses rios na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX. Esse processo está visível, e permanente, sobretudo na memória daqueles que são os continuadores dessa luta. Se, num primeiro momento, o enfrentamento visava construir a liberdade rompendo com a escravidão, hoje a luta se coloca no sentido de libertar a terra para continuarem a ser livres e assegurarem o direito à cidadania. No diálogo com os narradores, a língua vai se soltando, as palavras vão saindo, configurando elos entre o presente e o passado. “Vou contá o que me contaram, o que avô contou pro meu pai, o que minha mãe contava... Isso se passou assim num sabe? Não conto o que não sei, é assim a história.” Ali não há uma história avulsa. Mesmo quando “se lembra de mim” é um lembrar de uma história comunitária; do eu, mas também dos outros. São narrativas carregadas de experiências vividas, ou assimiladas, colando à sua história as histórias de seus anteriores. São expressões que marcam as falas e nos fazem lembrar ensinamentos do malinês Hampâté Bâ. Diz ele: “Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele mesmo os narra” Hamatê Bá, 1982: 181-2. Desde o início da pesquisa, percebi o necessário diálogo com diferentes campos do conhecimento, em especial com a antropologia, a geografia, a história social e a história ambiental cujas fronteiras tornam-se tênues, permitindo aos estudiosos circular por territórios vizinhos, sem comprometer o olhar, a perspectiva de análise e construção de sua narrativa historiográfica. Há aí um elemento comum, marco de interlocução possível: a noção de cultura. Cultura que abarca as práticas de resistência diante do poder, resistência que se manifesta tanto na ação política quanto nas formas ocultas e práticas culturais que têm também um forte viés identitário. Cabe-nos buscar e analisar as formas simbólicas – palavras, imagens, instituições, modos de comportamentos – com cuja ajuda os homens de qualquer lugar se representam, perante si mesmos e perante aos demais (IGGS, 1998). A memória, mesmo sujeita a influências e novos valores – parte natural do processo evolutivo do grupo que a preserva, enquanto elemento que dá sustentação à identidade e ao sentido de origem – mantém um vínculo entre o presente e o passado. Referências repetitivas de fatos, nomes, lugares e atitudes são marcadores significativos, e ao mesmo tempo reveladores, que permitem traçar a trajetória histórica do grupo. Exemplo: vieram da África, fugiram, mocambeiros, remanescentes. É quando a memória vira fonte para a história. Uma memória que é dinâmica, assim como a história. Segundo Alistair Thonson, A memória gira em torno da relação passado-presente, e envolve um processo contínuo de reconstrução e transformação das experiências lembradas, em função das mudanças nos relatos públicos sobre o passado. Que memórias escolhem para recordar e relatar (e, portanto, relembrar), e como damos sentidos a elas são coisas que mudam com o passar do tempo. [...] Esse sentido supõe uma relação dialética entre memória e identidade. Nossa identidade (ou “identidades”, termo mais apropriado para indicar a natureza multifacetada e contraditória da subjetividade) é a consciência do eu que, com o passar do tempo, construímos através da interação com outras pessoas e com nossas próprias vivências. Construímos nossa identidade através do processo de contar história, para nós mesmos – como histórias secretas ou fantasias – ou para outras pessoas, no convívio social Thonson, 1997: 57. 19 Através do diálogo com os mais velhos e lideranças comunitárias, adentrei pouco a pouco o passado dessas sociedades e percebi como este é apropriado, e (re)significado. Constatei que os interlocutores possuem uma percepção viva de um passado que não é apenas conhecido, mas vivido e sentido pessoalmente, lembrado de forma coletiva. Uma memória que remete aos tempos da escravidão; dos quilombos e dos conflitos sociais que marcaram as histórias dos negros, cativos e libertos, e constituíram um corolário de referências para a compreensão do surgimento dessas comunidades negras. Conforme Bonnemaison deve-se considerar que: [...] entre a construção social, a função simbólica e a organização do território de um grupo humano, existe uma inter-relação constante e uma espécie de lei de simetria. A paisagem é um primeiro reflexo visual disso, mas toda uma parte permanece invisível porque é ligada ao mundo subjacente da afetividade, das atitudes mentais e das representações culturais [...] O território toma aí todo o sentido que lhe foi atribuído por séculos de civilização campesina: ele é, ao mesmo tempo, raiz e cultura. Não é fortuito o fato de essas duas palavras terem um mesmo campo semântico e uma referência comum à terra nutridora Bonnemaison, 2002: 106-7. Interagindo com os moradores das comunidades negras, às margens do rio Trombetas – Abuí, Paraná do Abuí, Tapagem, Sagrado Coração, Mãe Cué, Jamari, Juquiri Grande (Juquiriaçu), Erepecu (Aripecu) e Moura –, foi possível encontrar, nos labirintos das memórias, os varadouros que nos levam à história desses mocambeiros e de seus ancestrais, hoje estabelecidos numa área ocupada por aproximadamente 500 famílias, cujos “ramos” estão entrelaçados por relações de parentesco, compadrio e outras afinidades. Sobretudo, entrelaçados por uma mesma história, partilhando experiências comuns e a constituição de uma identidade marcada pelo sentido de pertença e construção de um espaço único – terras de mocambeiros. 20 Ao se referir aos antepassados, eles se voltam menos para o tempo da escravidão, e mais para o dos mocambos, que eles têm como uma espécie de utopia, por representar o tempo da liberdade, da fartura, do respeito aos mais velhos. Assim, “transformam em geral o passado (tudo o que aconteceu) num passado significante, a história deles” (Price, 1983: 191). Nas comunidades estudadas, não há guardiões das tradições nem um ritual de transmissão de conhecimentos. Aqueles que detêm a memória histórica, coletiva, são os mais velhos que ouviram as narrativas dos avós, dos pais ou que, movidos pela curiosidade, indagavam sobre o tempo dos mocambos, do cativeiro, de suas origens. Um dos critérios adotados para escolher os interlocutores foi o de terem origens comuns e serem depositários de uma memória que, mesmo narrada de forma individual, expressas lembranças coletivas; partilhando experiências e a constituição de uma identidade marcada pelo sentido de pertença e construção de uma territorialidade. Um pertencimento que engendra uma rede de parentesco, que remete aos “ramos” e a um tronco comum de ancestralidade. Os de agora fazem das histórias daqueles suas histórias. Na origem, estão as raízes da identidade. As narrativas das experiências vão interligando as comunidades negras da bacia do Trombetas, suas histórias se fundem e as memórias se entrelaçam. Ao falar de sua história, do eu, de sua vivência em sua comunidade, o sujeito navega pelas reminiscências de outras comunidades, porque estas fazem parte de sua memória, de sua ancestralidade. Há neste sentido uma rede de parentesco que vincula as comunidades, fortalecendo o sentimento de pertença e de territorialidade; espaços sociais conhecidos e sentidos como seus (Rio, 1998: 23). As falas vão dando conta de vários lugares de refúgio, nascimentos e encontros. São lugares que constituem um cenário de memórias, configurado num território de negros, conferindo significação e valor à existência. Uma origem comum, percepção viva do passado, que não é apenas conhecido, mas vivido e sentido pessoalmente, lembrado de forma coletiva, fortalecendo a legitimidade do direito a terra. No diálogo com os narradores, fui encontrando explicações para o entendimento das estratégias de fuga e de sobrevida traçadas por aqueles ex-cativos que construíram nos altos dos rios, lagos e matas territórios hoje percebidos como terras de negros. Discutir a interação homem-natureza, mais precisamente, as relações das comunidades negras amazônicas com a floresta em que se inserem e com a qual estabelecem dupla relação de liberdade e de vida; entender como os quilombolas tecem uma cumplicidade com a mata, os rios, as cachoeiras, no processo de fuga e de reprodução dessas sociedades mocambeiras; que leituras fazem da natureza e como a cumplicidade negros/ floresta foi quebrada pela chegada violenta de práticas capitalistas – representadas pela mineração, construção de barragem e implementação de políticas preservacionistas, a partir da década de 1970, e hoje com o agronegócio –, são pontos abordados neste texto. Na análise, onde além da documentação e dos relatos de viajantes, recorremos às narrativas dos moradores do Alto Trombetas. Alguns ouvidos por ocasião do IV Encontro Raízes Negras, realizado na Tapagem, em julho de 1992, numa atividade chamada “Mesa com os Mais Velhos”; outros em julho de 2000, o Sr. Raimundo da Silva Cardoso (Sr. Donga), em julho de 1992, em Oriximiná, e o Sr. José Santa Rita em julho de 1993, no Pacoval – Rio Curuá. TEMPO DE FESTA, TEMPO DE CHEIAS, TEMPO DA CASTANHA – TEMPO DA FUGA A estratégia de defesa dos cativos em processo de fuga, para se embrenhar nas matas – após atravessarem pelos furos de um lago ao outro ou alcançarem os vários braços dos rios através dos paranãs – implicava ser bons conhecedores daqueles espaços, mestres dos rios e das florestas, para chegar acima das primeiras cachoeiras – nas águas bravas –, onde se formaram os mais importantes mocambos daquela região. Um aprendizado adquirido, em grande parte, com os nativos, os indígenas, senhores daqueles territórios; ali, os quilombolas se tornaram senhores dos rios. Conhecer o meio ambiente era fundamental para o sucesso das fugas, tendo a natureza como cúmplice. No tempo das cheias, capinzais crescem às margens dos lagos, formando tapagens, obstruindo os igarapés que os interligam entre si e aos rios, dificultando a passagem e camuflando os “caminhos”. Segundo o mocambeiro Benedito, que tentou levar consigo alguns companheiros, para chegar ao mocambo “tinha que atravessar um tabocal, passando por um igarapé e depois de atravessar gasta-se andando três dias para lá chegar” (Governo do Estado do Pará, 1811). O processo de fuga, individual ou coletivo, geralmente ocorria em épocas de festas e, no caso da Amazônia, no período de cheias: dezembro a maio. Nessa região, as festas, em especial as dos ciclos natalino e junino, coincidem com o tempo de inverno e da castanha. O editorial do jornal “Baixo Amazonas”, Santarém, do dia 8 de janeiro de 1876, afirmava ser: Aflitivo e verdadeiramente ameaçador em que [condições] vemos o direito de propriedade neste município, relativamente aos escravos, [...] levas abandonão seus senhores para se refugiarem nos soberbos quilombos que nos cercam. Todos os dias registram-se muitas fugas de escravos e de vez enquanto uma leva de 10, 12, 20 e até 30 escravos [...] como as que se deram nas noites de 28 de dezembro do ano findo e 3 deste mês [...]. De janeiro a maio [período] em que enche o Amazonas é tempo que os escravos julgão mais apropriado para fugirem. Neste tempo o trânsito, que é todo fluvial, facilita-lhes poderem navegar por atalhos que conhecem ou por onde são conduzidos, sem receio de serem agarrados; por este tempo que é o em que se faz a colheita das castanhas Uma fuga continuada, e às vezes reincidente, como o caso do carafuz Gregório, conhecido no rio Trombetas por Raymundo, que fugiu no dia 16 de dezembro de um sítio do rio Aritapera: 21 carlos penteado [...] Levando em sua companhia a tapuia de nome Maria, juntamente a escrava Sabina com 2 filhos menores pertencentes a D. Maria Martins. Estes escravos foram capturados em março pelo capitão do matto o Sr. cândido Manoel do Espirito Santo e entregues ao Sr. Antônio Joaquim Vianna. É de Supor que os ditos escravos fossem para o mesmo Trombetas e por isso peço as autoridade de Óbidos e mesmo capitão do mato que haja de captural-os Baixo Amazonas, 1882. Esses registros tornam-se interessantes pelo fato de apontarem para o processo de aliciamento procedido pelos quilombolas, uma forma de reprodução dessas sociedades. Veja-se, nesse sentido, o ofício do subdelegado de polícia de Óbidos, sobre fugas ocorridas quando da vinda de quilombolas à cidade: Ocazião em que eles cruzão os districtos desta villa, consta que elles fazem esses descimentos por ser o tempo mais oportuno pella facilidade, que dá as enchentes dos rios para se proverem de pólvora, armas e do mais que lhes é necessário. É nesta época justamente que se multiplicão as fugas de nossos escravos por observações que se tem feito, se tem conhecido que elles tem proteção estabelecida dentro desta villa Governo do Estado do Pará, 1854. Em alguns casos, essas tentativas acabavam em confronto aberto entre senhores e quilombolas, como o ocorrido em 18-05-1860, quando mocambeiros do Trombetas atacaram a propriedade de Maria Macambira para ver “se conseguiam levar consigo alguns escravos [...] mas não lograrão seu intento, por que foram acossados por um filho da senhora que os dispersou, prendendo um dos seus agressores o qual fez revelações relativas aos quilombos que ali existem” (Reis, 1860). Todavia, muitos chegaram ao Alto Trombetas, como: José Cândido, 50 anos, pescador; Pedro, 55 anos, lavrador; Francisco, 54 anos, lavrador; Antônia Maria, 60 anos, lavradora, todos africanos, e Samaria, 46 anos, natural de Santarém, filha de Antônia Maria, lavradora. Todos pertenciam a João Antônio Nunes, proprietário em Óbidos (Governo do Estado do Pará, 1878). Nesse processo de resistência escrava, os altos dos Rios Erepecuru, Curuá e Trombetas, este em especial, configuraram-se como espaço das sociedades quilombolas, onde as autoridades governamentais tiveram pouco sucesso em suas expedições punitivas, empreendidas desde o início do século XIX. Assim, na margem esquerda do Amazonas, “desde Almerim até Óbidos”, havia mocambos que necessitavam, na opinião do governo provincial do Pará, serem destruídos, “em razão dos graves prejuízos que sofrem os lavradores daqueles distritos com a fuga de seus escravos” (Governo do Estado do Pará, 1847). Ao longo desse século, essas comunidades continuaram a crescer, conforme bem registra o “Baixo Amazonas”, de 22 de fevereiro de 1873: Apesar da grande falta de braços no que lutam os agricultores do Amazonas, aumentado este mal em que a avultada emigração para os seringais do Alto Amazonas, ainda temos a lamentar as continuas fugas de escravos que diariamente, abandonam seus senhores para se homisearem nos quilombos do Trombetas, em Óbidos, e Curuá, em Alenquer. O número crescido de escravos que contem estes dois mocambos eleva-se, segundo bons cálculos, a mais de mil. Não encontramos outro meio de extinguir os quilombos, já que tem sido improficuo os meios empregados pelo governo, em suas expedições com o fim de bater os mocambeiro Em 17 de dezembro de 1870, o fazendeiro José Joaquim Pereira Macambira enviou uma carta ao chefe de polícia, da Província do Pará, Hermogenes Socrates Tavares Vasconcellos, afirmando que: 23 A muitos anos que minha mãe a Sra. D. Maria Margarida Pereira Macambira se ve privada do serviço de avultado número de escravos seus e do seu casal que se achão pio indivisos por terem elles se homeziados nos quilombos dos rios Curuá e Trombetas, sem que os meios empregados e a acção do governo tenhão podido tiralos de uma vida selvatica e restituidos ao animo de seus legítimos senhores Governo do Estado do Pará, 1870. O lamento do Sr. Pereira Macambira não era solitário. Todos os anos se repetem estas cenas e não vemos remédio para isso, ou meio para que possa impedir, sem que a ação da autoridade se pronuncie. Se continuar a fuga de escravos em tão larga escala e com tanto desembaraço em pouco tempo os rios Trombetas e Curuá, terão concentrado em si todo o pessoal escravo do Amazonas e lugares adjacentes Baixo Amazonas, Editorial, 1876. Tempo de festa, tempo de cheias, tempo da castanha – era esse o tempo da fuga. Estabelecidos acima das corredeiras e cachoeiras, os quilombolas interpunham obstáculos naturais entre eles e seus perseguidores. Ultrapassá-los implicava ser bom de remo e hábil em desviar de pedras. Por sua vez, os caminhos pelas matas encurtavam as distâncias em relação aos rios cheios de meandros, mas, para conhecê-los era necessário ser mestre. Veja-se, nesse sentido, a narrativa do Sr. José Santa Rita, morador do Pacoval – rio Curuá —, ao fazer considerações sobre a fuga dos escravos que saíram de Santarém e foram em busca de seus parentes refugiados no rio Trombetas. Eles queriam ir atrás do pessoal deles, que já tinham regressado um pouco para o Trombetas fugidos. 1. 2. 24 Entrevista realizada em fevereiro de 1992. Entrevista com Raimundo da Silva Cardoso, Donga. Oriximiná, julho de 1993. Então, eles fizeram essa mente de que se fosse subir, ela, Maria Macambira, já tava mais ou menos cismada de procurar os outros. Então eles resolveram baixar de Amazonas abaixo no intuito de procurar um lugar onde eles não fossem perseguidos, que ela ia perseguir. Aí, eles foram pra Monte Alegre, porque iam caçando meio de se esconder mesmo, mas como não havia abrigo pra eles aí, por que era muito pertinho da perseguição, arresorveram sartar de Monte Alegre por terra e procurar os destinos deles, pra onde desse pra eles pegarem o rumo dos parceiros que havia ido pro Trombetas. Eles contavam isso assim. Aí saíram atravessaram o Maicuru, mas ainda era perto da perseguição; aí atravessaram o Curuá, mas como é um rio muito seco, era verão, e de pouco alimento pra eles, atravessaram pra vê se pegavam mesmo onde os outros parceiros tavam. Aí foram, não alcançaram. Aí atravessaram o Curuá até que chegaram no Cuminá. Subiram rio acima, procurando lugar pra eles se acamparem melhó, onde podiam fazê as moradas deles.1 Alcançar os parceiros e buscar um lugar seguro, fora do alcance da perseguição, onde fosse fácil encontrar alimentos na natureza, eram elementos presentes nos planos dos escravos que foram para o rio Trombetas. Segundo Sr. Raimundo da Silva Cardoso (Donga), da comunidade Tapagem, no Trombetas: “foi depois que eles fugiram dos senhores, que eles foram fazê a aldeia deles lá muito dentro das cachoeiras do Turuna e Ipoana. A primeira foi Maravilha, a segunda, quando foram atacados, foi no Turuna, daí foram pro Ipoana, lá os homens não chegaram mais”.2 Padre Nicolino em sua primeira viagem ao Erepecuru, em 1876, encontrou uma “capoeira dos mocambeiros denominada Sant’Ana”, que ficava no estirão Livramento, o primeiro, acima da ilha do Breu. Na arte de se tornar quilombola, o ex-escravo vai moldando sua vida à nova realidade, e as pegadas do rio são marcas do tempo. Sua alma torna-se tão profunda quanto os rios: vivazes, agitados, inquietantes como as águas das superfícies, onde as imagens do macrocosmo refletem no microcosmo das águas, constituindo uma imagem indivisível, um todo único (Oliver, 2001). Mas, silenciosos, taciturnos, contidos em seus sofrimentos como a profundeza dos rios de águas negras do Trombetas. Calados quando necessário. Um silêncio que não é a ausência da fala. No interior da selva constroem seus diálogos e a hora de soltar os gritos. Mocambos que estão vivos no imaginário dos descendentes, como tempo de liberdade, de fartura, diante de uma atualidade marcada por dificuldades sociais vivenciadas pelas comunidades negras ribeirinhas: o não respeito aos mais velhos e, mais do que a discriminação racial e o preconceito, a luta pela terra. VIVER EM MOCAMBOS A opção pelos mocambos, em especial para aqueles das primeiras levas, significava adentrar o desconhecido, sem a certeza do que encontrar pela frente. Era um recomeçar. Havia o gosto da liberdade, mas também enormes desafios, a começar pelo relacionamento com um novo espaço, a aprendizagem de novos caminhos e a sobrevivência nas matas com o que a natureza lhes dava. Aprendizado feito em grande parte com o nativo, mestre conhecedor do meio ambiente, que tinha o controle sobre aquele território que era seu. Na escolha do lugar, além do ponto de vista estratégico, os mocambeiros priorizavam áreas onde fosse possível plantar e a natureza fosse pródiga. “Palmeiras e urucurys ahi estão comprovando-lhe a excelência das terras e mostrando que o preto teve dedo na escolha do local para o seu tugúrio” (Cruls, 1945: 42), diz Gastão Cruls, referindo-se ao antigo sítio 3. 4. do mocambeiro Lauthério no Erepecuru, o mesmo sítio que fora visitado pelo Padre Nicolino em 1876. “Chegaram lá foram fazê o acampamento deles”; “Fizeram as aldeias”, “Construíram as casas e foram buscá a família” são frases repetidas pelos narradores ao se referir ao momento em que os quilombolas encontraram espaço ideal para se estabelecer, apontando para o modus vivendi dos mocambos do Baixo Amazonas. Nesse novo momento de sua história, o escravo – agora quilombola até então ocupado basicamente em atividades agropastoris e domésticas – estava diante de uma nova realidade: além do cultivo, deveria caçar, pescar e praticar o extrativismo para garantir a sua sobrevivência. Conforme Santa Rita, os mocambeiros que se estabeleceram nos altos do Curuá, “lá estiveram um bocado de tempo comendo massa de babaçu feito farinha e umas massas de uricuri, que eles chamavam de nhamundá. Eles sustentavam como bicho do mato”.3 Depreende-se dessa fala a alteração na alimentação, com a inclusão de novos gêneros até então ausentes em seu padrão alimentar. Extrair da floresta seus alimentos tornava-os usualmente próximos aos índios – na perspectiva de construção de uma outra identidade –, com os quais dividiam o mesmo espaço. A expressão “bicho do mato” é bem simbólica, podendo ter cunho pejorativo referindo-se ao nativo, mas pode significar também aquele que pertence à mata, filho da floresta. Essa “relação maternal” é sentida até hoje na fala dos mais velhos, como na de Rafael Printes Viana, morador da comunidade do Abuí, no Alto Trombetas, para quem: “a floresta é como nós chamamo essa música – nossa mãe cachoeira – assim nós chamamo, também, nossa mãe floresta, nossa mãe porque dela tiramos pode-se dizer de um tudo, desde a saúde [...] Então quer dizer nossa mãe floresta é vida”.4 Entrevista com José Santa Rita, fevereiro 1992. Entrevista com Rafael Viana Printes, junho 1992. 25 Remédios para diarreia e dor de cabeça; fórmulas infalíveis contra veneno de cobra e outros bichos peçonhentos, e cura para outros males eram, e são, extraídos das matas, um grande laboratório farmacêutico, sempre bem utilizado por essas comunidades. A natureza é parte essencial de seu cotidiano. O extrativismo vegetal, pouco comum no mundo do escravo, por ser uma prática de trabalhadores livres em decorrência de sua especificidade, no quilombo tornou-se tarefa diária e base da economia mocambeira. Um cuidado a mais, na hora de escolher o lugar do acampamento, onde a natureza lhes fosse pródiga, em especial na produção de castanhas. A área em que essas sociedades quilombolas se constituíram era, e ainda é, um castanhal único que vai desde a bacia do Paru do Leste, em Almerim, até a do Trombetas, em Oriximiná, sendo que as melhores “pontas de castanha” estão no alto dos rios, local onde os mocambeiros se estabeleceram. Além da castanha extraíam: salsaparrilha, cumaru, óleo de copaíba, de andiroba, do pequiá e outros produtos naturais, necessários ao dia a dia dos quilombos. O excedente tinha venda garantida no mercado da região. Entretanto, nem só do pão da natureza viviam os mocambeiros. Eles faziam seus roçados e hortas, onde, além de árvores frutíferas, plantavam leguminosas e outras espécies alimentares. Maximiano de Souza, capitão que comandou uma a expedição punitiva ao quilombo Maravilha em 1855, diz: Vê-se a serra Icamiaba revestida de relva, que disse o preto Benedito [quilombola que servia de guia] ser essa relva batata doce, que ali cresce espontaneamente e de que se alimentam os mocambeiros e os gentios, disse mais ainda que nessa serra em certo tempo do ano, fazem grande caçada de porco montez que charqueiam para o abastecimento do mocambo Souza, 1875.5 5. 26 Soma-se à culinária dos mocambeiros a paca, a anta, o macacoguariba e outras espécies animais comestíveis, típicas da região. Ainda segundo Sr. Donga, sua avó lhe contou que, quando os cativos fugiam, Eles não levavam feixe de maniva não, meu filho, aquelas caboca, molatas grande, que tinham os cabelos grandes, quando elas tavam iniciando pra fugi, eles iam na roça tiravam a semente da maniva, porque maniva dá semente, semente de tudo quanto é planta e iam metendo na volta do cabelo pra prendê tudo quanto era semente, quiabo, melancia, maxixe, quando eles fugiam, aqueles que tinham cabelo grande desembrolhava ali dava com a trocha da produção e assim foram levando, que quando os outros chegavam já tinham para o sustento. Chama a atenção na fala de Donga, mais do que a representação das negras com seus cabelos enfeitados de sementes, o fato de a maniva ser a primeira planta mencionada. Sem ela, ou a macaxeira, não há farinha, produto básico na alimentação da população ribeirinha, até hoje. Mistura-se com feijão, comese com peixe, com açaí, e na falta de qualquer produto para misturar, faz-se o chibé – farinha, água e açúcar. Outro ponto interessante é a preocupação em garantir o sustento para os que chegassem depois. Sem dúvida os roçados eram pequenos e o trabalho se baseava na unidade familiar. Nesse processo, na medida em que os quilombolas buscavam garantir a sua autonomia e reprodução, constituíram um campesinato centrado em pequenas roças e nas relações de produção baseadas na unidade familiar e no trabalho coletivo representado pelos puxiruns; em especial no momento de fazerem o roçado e construírem casas. Práticas de solidariedade e de confraternização. Os homens assumiam as tarefas externas, em especial nos roçados, as mulheres cuidavam da alimentação Com o referido texto, João Maximiano de Souza pretendia corrigir algumas “inverdades, sobre o Trombetas, colocadas por F. Bernardino de Souza no seu livro Lembranças e curiosidades do Valle do Amazonas. e à noite, geralmente, era momento da dança. Aspectos como esses – do “puxirum”, da facilidade de conseguir alimentos junto à natureza, permitindo uma “vida tranquila” –fazem com que, no imaginário dos descendentes, o mocambo pareça uma “terra sem males”, a “cidade Maravilha”. Em 1866, Frei Carmello Mazzarino esteve por dez dias entre os quilombolas do Alto Trombetas. Considerando a data e a descrição feita por ele, visitou os mocambos de Colônia e do Campiche, para onde aqueles se transferiram após o ataque da expedição comandada por Maximiano de Souza, em 1855. Ali, esse franciscano encontrou “cerca de 130 pessoas, além de índios que estão no meio dos pretos, os quais estão divididos por muitos lugares e em cada um achei uma linda capelinha onde praticão atos religiosos” (Cartório do 2º Ofício de Óbidos, 1868). As habitações localizavam-se nas partes altas das margens, em terra firme, fora do alcance das enchentes e, evidentemente, em lugares estratégicos; muitas vezes ocultas à visão de quem passasse pelo rio, em posição cômoda e bem escolhida, como as 36 casas “construídas de taipa, cobertas de palha e porta de japá”, encontradas por João Maximiano de Souza no Mocambo Maravilha, em 1855, dando a ideia de um aglomerado de moradias formando uma pequena vila, tendo os roçados mais para o centro (Souza, 1875). Esse aspecto revela a existência de dois espaços: o de morar e o de trabalhar. Até hoje, nas comunidades negras o local onde se faz o roçado chama-se centro em relação à margem do rio, espaço de moradia e de sociabilidade. As casas construídas pelos mocambeiros eram “pequenas palhoças feitas de quatro esteios, cobertas de palha, abertas, com um girao, uma espécie de tecto feito de achas do stipo das palmeiras, sobre o qual dormem em redes, presas aos caibros da coberta. Prevenidos dormem assim ocultos” (Rodrigues, 1875: 27). O mesmo modelo de habitação vista por O. Coudreau, no final do século XIX: uma casa com divisão bastante simples, composta por “duas peças, uma para conversar, por que tem alguém mais conversador que um negro mocambeiro? E outra para dormir”. Para ela, um tipo de moradia condizente com o modo de viver dos negros aquilombados, “uma promiscuidade repugnante” (Coudreau, 1901: 178). O tipo de habitação descrita por Barbosa Rodrigues, em 1875, e por Coudreau, em 1899, era semelhante ao do velho Ricardo e sua “consorte”, moradores da cachoeira Porteira, que pode ser visto em foto de 1934, feita pelo fotógrafo da 1a Comissão Demarcadora de Limites de Fronteiras (Aguiar, 1942). Uma construção de madeira, coberta de palha, tipo paliçada amarrada com cipó, que deve ser o timbó-titica, o mais usado e tido como resistente na região. Vê-se, nesse caso, a área que corresponde à cozinha, o espaço mais público da casa. Ali recebem as visitas, tomase café e, como não pode deixar de ser, conversa-se. Pode-se observar o fogão construído com lascas, colocadas no sentido horizontal e recheado com terra compactada. Compõe o conjunto dos elementos indispensáveis o pilão, nesse caso construído de forma horizontal e com duas bocas, empregado para beneficiar o mantimento, pilar arroz e milho. Chamam a atenção, ainda, nessa foto, alguns objetos de uso cotidiano, como o jamaxi, a peneira, ambos feitos de fibras, sinais evidentes de influência indígena; o casco de uma tartaruga – cuja carne, provavelmente, garantiu as refeições daquela família por alguns dias – transformado em utensílio doméstico. Nas matas, os mocambeiros encontravam sementes oleaginosas como o “uixi-pacu” e “piquiá”, com as quais fabricavam óleos empregados na iluminação. Segundo Barbosa Rodrigues: Das frutas maduras tiravam o epicarpio e mesocarpio, aquecia-os um pouco em umavasilha e mettia essa massa dentro de um Tipity expremendo-a, corria então um lindo óleo amarello, muito transparente, porém de um cheiro um pouco nauseante, que se concentrou logo que a temperatura baixou, tornando-se esbranquiçado. Alguns derretem a massa ao fogo e apuram o óleo. Empregam-o geralmente só para luz Rodrigues, 1875: 19 27 Nos rios e lagos buscavam, e buscam até hoje, o peixe, alimento diário. Faziam grandes salgas para se alimentarem nos períodos em que o pescado escasseava. Incorporavam à culinária a carne e ovos de tracajá e tartaruga, quelônios altamente apreciados pelas populações ribeirinhas. Esses elementos remetem à relação mocambos-meio ambiente. Na Amazônia uma relação significativa para o sucesso das fugas, da resistência e, sobretudo, para a sobrevivência e reprodução dessas comunidades enquanto organizações sociais diferenciadas da sociedade escravista. MARAVILHA: SOBREVIVENDO ÀS EXPEDIÇÕES PUNITIVAS As comunidades quilombolas que se constituíram nos altos rios da Guiana Brasileira foram por diversas vezes atacadas por expedições punitivas, mas também visitadas por religiosos, cientistas, comerciantes e pessoas comuns da região. Se, por um lado, isso significou a inserção daquelas comunidades no contexto local, por outro, representou a sua legitimidade e a concretude de um espaço de liberdade que sobreviveu à sociedade escravista. A existência desses quilombos por tão longo tempo, com um contingente populacional significativo, implicava a presença de uma estrutura de poder e liderança capaz de manter a unidade, coordenar a resistência, e garantir a reprodução dessas sociedades. Frei Carmello Mazzarino, quando de sua subida pelo Trombetas, em 1866, ao se encontrar com os mocambeiros, manifestara o desejo de ir até o local onde viviam. Teve que esperar 15 dias pela resposta. Enviaram alguns quilombolas para consultar as lideranças do quilombo, e somente então foi autorizada a entrada daquele religioso no mocambo; antes, ainda, mandaram “adiante uma canoa para avisar aos outros e evitar alguns insultos, por que entre elles tinhão resolvido matar a qualquer um que introduzisse um branco na morada deles” (Cartório do 2º Ofício de Óbidos, 1868). 28 Os quilombolas do Curuá que conseguiram escapar do ataque, “foragidos pelas matas, vieram se estabelecer no Trombetas”, aos quais se juntara Athanázio, um carafuz escravo do Major Martinho da Fonseca Seixas, morador de Óbidos, que fugira em 1821, com mais 40 companheiros, estabelecendo-se num lugar que ficou conhecido por lago do Mocambo. “Ahi chegando soube granjear a amizade e tornar-se respeitado, de maneira que fez-se eleger governador ou maioral e estabeleceu um governo despótico electivo, sendo elle senhor de baraço e cutello, a exemplo do que praticavam no Curuá. [...] Em 1823, uma expedição bateu o dito mocambo aprisionando todos, até o rei Athanázio, que mais tarde tornou a fugir e fundou um novo mocambo” (Rodrigues, 1875: 25). Tavares Bastos, bem antes de Barbosa Rodrigues, em 1866, afirmou que os negros do Trombetas viviam “debaixo de um governo despótico e eletivo [provavelmente o dito Athanázio] com efeito eles nomeiam o seu governador, e diz-se que os delegados e sub-delegados são também electivos. Imitam nas designações de suas autoridades os nomes que conheceram nas povoações” (Bastos, 1866: 201). Procurando confirmar as informações de Bastos, Barbosa Rodrigues, em sua viagem pelo Trombetas, indagou a alguns quilombolas – “muitos dos quais vivendo ali há mais de 30 annos” – se existia entre eles esse tipo de governo, ao que responderam, “que procurando eles a liberdade, não se sujeitavam a poder algum, que cada um governa a sua família, e que como o proveito era comum viviam na maior união sem que até o presente tivesse havido um só caso de homicídio (Rodrigues, 1875: 26). Se Bastos não confirma, também não nega que, assim como Barbosa, teve como referência, para as suas conclusões, a história de Athanázio, a quem chama de “governador”, “maioral” e “rei” que se fizera “eleger”. O fato de existir a “maior união”, impedindo que houvesse “um só caso de homicídio”, significava a presença de uma estrutura de poder que, mesmo diluída, administrava os conflitos internos, garantindo o “proveito comum” e a “união”, elementos indispensáveis à segurança e reprodução dessas sociedades. carlos penteado Há de se considerar que talvez os quilombolas não vissem entre eles esse poder despótico a que se referem Bastos e Rodrigues, o que não significava, por sua vez, a ausência de uma estrutura de poder e autoridade. Mesmo que na segunda metade do século XIX tenha desaparecido a figura da corte, sua representação continua até os dias atuais nas manifestações culturais como o Aiuê e o Cordão do Marambiré, com os Reis de Congo, Rainhas Auxiliares, Valsares e Contramestre, onde a autoridade máxima está na figura do Rei de Congo. Um poder que poderia estar diluído entre os mais velhos, o que hoje é lembrado pelos remanescentes, que já não sentem o “respeito dos jovens”. A autoridade de um idoso representava a de um pai: “cada um manda em sua família”. Não era rara a presença de índios vivendo nos quilombos, como constatara Frei Carmello de Mazzarino, em 1866. Desse convívio marcado por momentos de conflitos e de solidariedade, resultaram marcas significativas, expressas nos tipos comuns naquela região: o cafuzo e o tapuio. Marcas visíveis tanto nas comunidades negras como entre os grupos indígenas. Em 1934, a Comissão Demarcadora de Fronteiras encontrou, no Trombetas, um núcleo de índios Katxuyana, composto por 13 indivíduos, “mantendo estreita ligação com os pretos do mesmo rio que os empregam na colheita da castanha e balata, além de servirem de suas mulheres. Muitos desses índios apresentam caracteres afro-mesclados com o mongólico característico das raças indígenas brasileiras” (Aguiar, 1942: 312). Ao que tudo indica, pouco ou quase nada havia mudado em relação à descrição feita por Barbosa Rodrigues em 1875. Convém mencionar a leitura feita, por essa comissão, das comunidades negras que se encontravam “em estado semibárbaro, por haverem assimilado totalmente os usos e costumes dos índios com os quais estiveram em contato. Vivem da caça, pesca e extração de produtos naturais” (Idem, ib.: 284) Por muito tempo, os regatões, esses “mascates fluviais”, eram os únicos que se atreviam a subir os rios e adentrar os espaços dos quilombos. O rio Trombetas “temido pelo grande mocambo [...] 30 conservava-se sempre mysterioso, guardando os regatões a chave deste mystério, que por conveniência exageravam os perigos que ahi corria o indivíduo que tentasse exploral-o”. Que o diga Frei Mazzarino, que ao chegar a cachoeira Porteira soube, com extremo desprazer, que um comerciante de Óbidos e acostumado a negociar, “ou, antes furtar aqueles pobres pretos fugidos do Trombetas, lhes disse que escondessem para o interior das terras e não apparecessem ao padre que chegava para levar a força do governo, debaixo do pretexto de religião, vinha atraiçoal-os, o que foi o bastante para que muitos adentrassem pelas matas outros mais intrépidos e resolutos esconderão pelos arredores para ver o fim” (Cartório do 2º Ofício de Óbidos, 1868). Esses fatos demonstram não apenas os “desembaraços com que os mesmos escravos fugidos transitão por toda parte bem protegidos”, como sua inserção na sociedade escravista, tornando pública e notória sua presença nas cidades (Baixo Amazonas, 1876). Tais narrativas mais do que nunca evidenciam a legitimidade dessas sociedades quilombolas e a importância que ocupam no cenário socioeconômico da região, a ponto de os “negociantes abandonarem o comércio dos povoados para se embrenharem nas mattas onde estabelecem casas de negócio para só traficarem com os escravos, que seduziram da companhia de seus senhores” (Idem). Dados estatísticos, referentes à produção de Óbidos, em 1867, revelam o seguinte: Tabaco – era cultivado em menor escala que o café. A maior quantidade e a melhor qualidade que apparece no mercado de Óbidos é proveniente dos mocambos do rio Trombetas (Penna, 1869: 19).“Quando procurase por tabaco: pergunta-se logo quer o do mocambo? É o melhor” (Rodrigues, 1875: 27). Castanha – abunda em vários lugares da terra firme e nos valles de montanhas. É o Trombetas que fornece a maior parte do que chega ao porto de Óbidos. Óleo de cupahyba – em 1867 foram exportados 160 canadas (419520 litros). Este produto se encontra em numerosos lugares de município, mas a maior quantidade é procedente do Trombetas.6 Salsa – A exportação no mesmo ano foi de 154 arrobas e 16 libras. Provém, também, pela maior parte, das terras do Alto Trombetas já serem bem antigos. Só em 1827 teve lugar algua destruição no rio Trombetas por uma expedição desta villa capturando muitos escravos, sempre escaparão alguns que para ali continuarão a persistir nas mattas Penna, 1869: 19-27 Governo do Pará, 1854. Pergunta de resposta simples e rápida: Quem habitava o rio Trombetas e os vales das montanhas? Permanecer nas matas era o desafio que os mocambeiros impunham às autoridades que reconheciam a duração dessas sociedades. Uma resistência que incomodava os governos, gerando desabafos como este de Rego Barros, presidente da Província: “procurando tanto quanto permittem minhas forças curar algumas chagas de longa data, e que muito fataes poderião tornar-se no futuro. Refiro-me aos quilombos que estão espalhados em diferentes pontos da Província”.7 São esses fatos que nos levam a perceber uma legitimidade conseguida por esses mocambeiros que, mesmo tendo afetado o sistema escravista, não comprometeram a economia local. Ao contrário, dedicando-se ao extrativismo e à agricultura, apesar de incipiente, garantiam um excedente de farinha, fumo e produtos naturais, em especial a castanha, fortalecendo, pois, o mercado regional. Aliás, como produtores, os mocambeiros ocupavam boa fatia do mercado local. Se destruir os mocambos restituía os escravos a seus senhores, por outro lado, como se vê, contrariava os interesses de um segmento considerável da sociedade local – os comerciantes, muitos dos quais ocupavam cargos públicos e, por conseguinte, gozavam de prestígio político. Havia, portanto, um forte jogo de interesses entre o poder local e o Estado, no tocante à destruição das comunidades quilombolas. Os quilombos integravam-se ao contexto, ocupavam espaços na economia extrativista, resistiam e sobreviviam às ações repressivas, como fica claro no ofício do delegado de polícia de Óbidos: [...] neste districto existem já de muitos anos os quilombos do Alto Trombetas, além das suas cachoeiras, assim como o do Mamiá, braço do lago Curuá Grande, para os quais todos os annos se tem evadido não pequeno número de escravos calculando-se o número delle, desde o anno de 1840, contar parte para mais de 150 de ambos os sexos, fora o que antigamente existião nos mesmos quilombos, cujo mesmo não nos he dado acertar hum calculo por 6. 7. Inexpugnáveis, persistências, chaga de longa data, são expressões que simbolizam a duração e a legitimidade dessas comunidades quilombolas. Uma legitimidade expressa na sua inserção na sociedade local, pelo fato de serem visitadas por religiosos, cientistas, viajantes, negociantes e pessoas comuns, e, sobretudo, pelo fato de as expedições punitivas deixarem de ocorrer no Trombetas ainda na década de 1860. No Cuminá/Erepecuru nunca chegaram a ser efetuadas e no Curuá, foram mais efetivas até o final da década de 1870, quando, em 1876, foram presos e levados para o presídio São José em Belém 150 quilombolas do mocambo do Inferno. Práticas repressivas que não foram suficientes para destruir os quilombos ali constituídos. Nos mocambos do Trombetas, as ações repressivas foram sustadas após a década de 1860. Observando-se as expedições enviadas a esse rio, percebe-se a periodicidade com que foram realizadas e o inexpressivo sucesso obtido, no tocante à prisão de quilombolas. Apesar de considerados antigos, só em 1827 teve lugar “algua destruição no rio Trombetas por uma expedição dessa villa, que capturando muitos escravos, [entre eles o rei Canada: antiga medida – 1 canada igual a 2622 l. Fala do Presidente da Província, Rego Barros, à Assembleia Provincial 26-10-1855. 31 Atanásio] sempre escaparão alguns que para ali continuarão a persistir nas mattas” (Governo do Pará, 1854). Nos fins de 1852, portanto 25 anos depois, seguiu para o Trombetas uma expedição enviada pelo delegado de polícia de Santarém, auxiliada pela vila de Óbidos, tendo por guia, hum escravo de D. Maria Macambira, que se havia apresentado, cuja diligência teve de retroceder já das praias daquele rio, por infelizmente haver adoecido das sezoens quaze todos os praças de que se compunha a diligência e alguns remeiros, depois do que nenhuma outra diligência se tem posto em prática pela absoluta falta de meios que estejão a disposição das authoridades policiaes para ocorrerem às despezas que urgem diligências desta natureza. Posso certificar a V. Sa que nestes últimos anos de 1851 a esta parte tem sido neste districto mais freqüentes as fugas de escravos podendo atribuir-se a tal ou qual certeza que elles tem de não serem perseguidos nos seus quilombos Governo Do Pará, 1854. Segundo o delegado de Óbidos à época, o fracasso das expedições se dava não em razão da falta de energia das autoridades locais, mas especificamente em razão da falta de meios necessários para pôr em “prática” convenientes diligências. Os relatos de João Maximiano de Souza sobre a expedição que comandou, em 1855, contra os quilombolas do Trombetas dão uma ideia da dimensão e das dificuldades dos combates a essas “chagas” tão temidas pelas autoridades governamentais (Souza, 1875). No mês de outubro de 1855, coube àquele capitão o “árduo encargo de comandar uma expedição ao rio Trombetas, composta de 190 praças”, a fim de bater os negros que se “achavão aquilombados nos famosos mocambos desse rio, d’onde annualmente sahião para, em suas excursões pelos districtos de Óbidos e Santarém, praticarem roubos e quantas depredações lhes parecia”. É bom lembrar que esse texto foi escrito depois da publicação das obras de Tavares Bastos, em 1866, e ao 32 mesmo tempo que João Barbosa Rodrigues, em 1875, falava da tranquilidade com que os mocambeiros vinham a Óbidos, transitavam publicamente, tomavam a bênção de seus antigos senhores, e compravam o que era necessário. Após essas rápidas observações, é interessante voltar à expedição que estava sob o comando de Maximiano de Souza, que “não surtiu o effeito desejado pelas eventualidades e obstáculos naturaes que a cada passo burlavão o meu intento, sem contudo desanimar-me de prosseguir na diligência até o ponto que era destinada”. Se por um lado não consegui surpreender e aprisionar os quilombolas, por outro conseguiu destruir suas habitações, “verdadeira cidadella ou praça de guerra e pol-os em debandada, conseguindo mais evitar que d’ahi por diante elles continuassem em liberdade a fazer novas e funestas execuções”. Maximiano procurava valorizar, de forma equivocada, o resultado de sua expedição. Os quilombolas não foram presos, eles se retiraram e se estabeleceram na cachoeira Campiche, acima do local em que estavam, onde, provavelmente, Mazzarino os encontrara em 1867, chegando a se estabelecerem no Turuna, conforme fala de Sr. Donga, de onde saíra o mocambeiro Antônio Basílio, preso em 1876, no distrito de Alenquer no rio Curuá. Em liberdade, aqueles quilombolas continuaram a fazer suas excursões e incursões pelas vilas, circulando por lagos e rios da região. Além de obstáculos naturais, Maximiano, entre outras dificuldades, teve que: luctar com a moléstia que se desenvolveo na tropa expedicionária e a insobordinação de parte della como se tudo se comprasia em nulificar a minha marcha. Resta-me a consciência de ter cumprido o meu dever, embora sinto até hoje os terriveis effeitos da moléstia que adquiri nos insalubres lugares que percorri [...] Para transpor as cachoeiras exige-se canoa adaptada para este mister, tripolada com piloto especial e equipagem adestrada neste modo de viajar todo escepecional. Até chegar ao mocambo Maravilha, a expedição atravessou aproximadamente 15 cachoeiras, entre elas a do Caldeirão do Inferno, acima da qual o rio perde a sua “forma ordinária e confundese n’uma infinidade de ilhas superpostas uma as outras tantos canaes difficilmente navegaveis, até rumo N.O.” (Souza, 1875). Cachoeiras “medonhas” que constituíram obstáculos naturais a ser transpostos por aqueles que pretendiam chegar aos mocambos. Elas retardavam as expedições, dando oportunidade aos mocambeiros, que, avisados das diligências, se deslocavam para outros lugares. Uma aliada natural, hoje cantada em versos pelos remanescentes: “Mãe Cachoeira se não fosse você eu não estaria aqui”8. Quando Maximiano se encontrava na cachoeira Quebra-Pote, ou Engolideira, para seu desconforto, o capitão do mato, que era o guia da expedição, veio dizer-lhe que não podia mais conduzir a tropa “d’ahi por diante pelo motivo de não saber dos caminhos. Este inesperado incidente longe de me causar desânimo acorçoou mais meu desejo de bem despenhar a minha ardua Missão”. O capitão deve ter se perguntado: E agora? Sem guia, e sem um rumo certo a seguir, a única saída encontrada foi confiar no “instinto dos gentios” que o acompanhavam, depositando “neles inteira confiança”. Mais uma vez faz sentido a fala de Manuel da Costa Vidal, em 1813, sobre a importância de se ter os índios como aliados por serem excelentes guias. Mas nem todos os momentos foram de desencantos e desenganos para esse comandante. À frente da expedição seguiam alguns negros em fuga, após terem visto a tropa. Eram mocambeiros do Maravilha que baixavam o rio para negociar e, ao terem deparado com a diligência, procuravam voltar ao mocambo e avisar os demais companheiros, conforme narração seguinte: [Na] marcha preciptada em que ião quiz a fatalidade que elles perdessem, ao transpor uma cachoeira, a pequena canoa em que navegavão, e sem outro recurso 8. mais do que prosseguirem na viagem por terra, foi fácil agarrar-se um dos fugitivos, preto escravo de nome Benedicto, que d’ahi por diante foi nosso guia; que com certeza deve ter esticado o caminho para dar tempo aos seus companheiros não serem apanhados, já que forão elles os que levarão a notícia ao quilombo da ida da tropa, e, por conseguinte, os que malograram a expedição. Ao ser interrogado, Benedito informou que descia o rio com seus companheiros para se “refaserem do que lhes era preciso no mocambo [...] que comportava pessoal de ambos os sexos, superior a 70 negros; que estavão em contacto com os gentios, menos alguns que são antropophagos”. Quando tudo parecia resolvido, já que conseguira um guia, peçachave para o sucesso de uma diligência, Maximiano deparou com um novo problema: a deserção de parte de sua tropa. Pelo seu desabafo, dá para perceber a angústia por que passara. Diz ele: “Empenhado nesta viagem fui superando difficuldades, que a cada passo surgião para embargar-me o passo; via-me já a braços com a fome e com a peste, restava-me a traição enfrentar-se para me desanimar”. Fato que não o deixou a esperar. Numa das paradas para pernoite, foi notificado por um soldado, encarregado da ronda, que “muito praças formavão o projecto de abandonar-me e retrocederem para se recolherem a seus domicilíos, distinguindo-se entre os sediosos os praças do batalhão de Obidos”. Ciente de tal ocorrência, mandou formar a tropa e intimou “aos cobardes que desejão voltar que dessem um passo a frente”. Se o capitão esperava que fossem poucos os “sediosos”, teve uma surpresa: 47 praças deram um passo à frente, sendo 32 de Óbidos, 6 de Santarém, 9 de Vila Franca e ainda 1 de seus homens de confiança e de comando, o alferes Alvarenga, que deu “parte de doente”. A expedição sofreu uma baixa razoável de 48 praças. Tal episódio ocorrera antes da foz do rio Cachorro. Verso de “Mãe Cachoeira”, de Mimi Viana, morador da comunidade negra da Boa Vista, Trombetas. 33 carlos penteado Adoentados, Maximiano, o tenente Gentil, e o que restou de sua tropa, chegaram ao Mocambo Maravilha, que ficava numa ilha com este nome, dado pelos negros. Todavia, ali não existia mais mocambeiros. Avisados por seus companheiros, haviam fugidos, mas, antes, tiveram a “preocupação de incendiarem as casas e destruirão o que não puderam conduzir. Fugiram em 18 canoas, que tantas eram as que ali existirão em termos de navegar, como informou o prisioneiro Benedito”. Embora os Mundurucu tenham perseguido aqueles quilombolas, não conseguiram alcançá-los, encontrando, no entanto, com gentios, “uns de cor alva e barbados e outros de cor abronzado e cabellos crespos”. Segundo o mocambeiro Benedito, esses índios estavam sempre em contato com os negros quilombolas e negociavam com os “comerciantes ou mascates de Demerara”, e com certeza devem tê-los auxiliado na fuga. Os negros se estabelecerem acima do Maravilha, na cachoeira Campiche. Sem êxito e com o restante da tropa atacado “de febres de mao caracter”, acabaram por perder o guia Benedito, que, se aproveitando “de uma noite de temporal, da confusão em que estavão os guardas evadio-se”. Assim, doentes, enfrentando temporal, por ser tempo de inverno, regressaram e, na descida, ao passar uma das cachoeiras ficaram sem “três canoas, que se quebrarão, perdendo-se correames, armamentos e munição que ellas trazião”. São significativos os últimos parágrafos do relatório de João Maximiano de Souza que nos dá uma dimensão do significado da derrota sofrida, das perspectivas de luta contra os mocambeiros e das saídas possíveis de enfrentamento de forma mais eficaz. Diz ele: É minha opinião, que os negros quilombolas hão de sempre zombar da força pública que alli for para batel-os, pelos muitos recursos naturaes que lhes presta o terreno, quasi inacessivel e pestilento, concorrendo também efficazmente a alliança em que estão com os gentios, sendo-lhes, por isso facillimo transportaremse guiados por aquelles centros. Operada a catechese dos gentios ficarão então os negros isolados e desprotegidos desse auxilio vantajoso. Assim terminou aquela diligência vindo a morrer de molestia alli adquirida um terço da tropa que seguio a bater o quilombo do Trombetas. Depois dessa expedição, não se tem conhecimento de outras ao rio Trombetas, onde, em 1867, frei Carmello Mazzarino esteve, mas não com o objetivo explícito de combater os mocambeiros. Procurava desenvolver uma ação catequética junto aos índios e os negros daquele rio. Esse religioso fala em 30 mortos na última expedição realizada ao Trombetas, provavelmente a de Maximiano. “Os mocambeiros poderiam ter massacrado toda a força, se tivessem querido.” É o que afirmaram alguns quilombolas que ali viveram, em depoimento a O. Derby, em 1876 (Derby, 1897-98). No entanto, preferiram a tática da fuga, levando tudo o que podiam, em alguns casos destruindo o que restava. Tática esta que parece ter dado resultado, já que outras diligências não se atreveram a superar as cachoeiras do Trombetas para alcançar os mocambos que estavam além delas. E acrescenta Derby: [muitos] pretos têm-se mudado para um pouco mais rio abaixo, e alguns mesmos descartando-se a proteção das cachoeiras e estabelecendo nas margens dos lagos abaixo destas, com o fim de obter maior facilidade para o commércio clandestino, que mantém com Obidos, e talvez também para dar aviso em caso de perigo. Aquelles que vem até a parte inferior do rio tem quasi segura a sua liberdade e alguns entretem relações mesmo com seus antigos senhores (Idem: 369-370). A expedição fracassou. Foi a primeira e a última que atacou os mocambeiros do Trombetas, como pode ser visto na fala de seu comandante. No entanto, a partir dela, pode se desenhar o mapa dos mocambos no rio Trombetas, somado a outras narrativas. Os quilombos podiam ser destruídos, os quilombolas não. Assim como as árvores que têm seus troncos decepados, mas mantendo 35 as raízes, brotam novamente; ou como as sementes, que levadas pelos pássaros e rios nascem em outras paragens, com a mesma qualidade, os mocambos nasciam e renasciam com o mesmo ideal de liberdade em outros cantos das matas, lagos e rios. No verão de 1876, alarmados pela destruição do quilombo do Inferno, no rio Curuá, os do Trombetas retiraram-se temporariamente para uma posição mais segura, “numa restinga que fica entre o rio Trombetas e o rio Faro que deságua na primeira cachoeira chamada Porteira, restinga esta situada de tal modo que d’ela ninguém se pode aproximar sem atravessar uma cachoeira muito perigosa, que dá muito tempo para eles fugirem. Na realidade sem o auxílio de um quilombola para guiar, poucos ousariam tentar atravessar a cachoeira” (Idem, ibidem). No seu cotidiano, os mocambeiros construíram resistência, inserindo-se no meio ambiente, tirando dali não apenas o seu sustento, mas também algumas estratégias de lutas. Acionando sua rede de relacionamentos, integraram-se ao mercado local, ocupando um espaço significativo na produção extrativista, sobretudo na de castanha e óleos vegetais, o que lhes garantia uma relativa autonomia. Autonomia que contribuiu, em especial nas últimas décadas da escravidão, para uma afluência maior de escravos aos quilombos, acentuando a crise de um sistema combalido e uma agricultura que nunca chegou a ser autossuficiente. Uma situação que já vinha de algum tempo. Conforme registros da época: Fazendeiros teem-me comunicado o estado anormal, em que a existência conhecida de taes quilombos os tem collocado, impossibilitando a disciplina pelo fundado receio da fuga e acoutamento certo nesses lugares, onde os fugitivos encontrão segurança contra qualquer tentativa de apprehensão. No estado de penúria de braços em que se acha a agricultura, esta causa aggrava profundamente o mal não só pela privação dos 9. 36 que se evadem, como pela falta de disciplina dos que conservão, sempre indolentes e ameaçadores.9 Eram os mocambos afetando o sistema escravista. Não só pelo fato de serem lugares de refúgio, mas porque davam ao escravo mecanismos de pressão e influência na sua relação com o senhor. A ameaça de fuga significava para o cativo uma estratégia para ampliar o seu espaço de negociações e garantia de conquistas. Mesmo não estando no mocambo, o cativo sabia se valer deste, na sua luta cotidiana para conseguir e manter alguns direitos conquistados. “Não se pode precisar”, “não se sabe o lugar certo”, “foram batidos mas mudarão para outros lugares”, são frases comuns aos relatórios e ofícios trocados entre as diversas autoridades do Baixo Amazonas e o Governo Provincial, o que aponta para a incapacidade das autoridades governamentais de pôr fim a essas sociedades quilombolas. Convictos de não serem mais perseguidos, iniciaram a descida para as “águas mansas” dos rios. Era o início do retorno. AS MARCAS DOS CAMINHOS Nos caminhos para as águas bravas as marcas dos mocambeiros foram ficando ao longo das margens do rio Trombetas, nos nomes dados às cachoeiras, ilhas, lagos e igarapés. Localidades onde se constituíram pequenos mocambos que serviam de apoio e alerta para as comunidades quilombolas maiores estabelecidas próximo à cachoeira Porteira e acima desta. “Infelizmente, Coudreau em seu livro trocou os nomes de algumas cachoeiras dados pelos mocambeiros e únicos conhecidos no município” (Ducke, 1909: 59). Com base na documentação consultada, nos relatos de viajantes e em depoimentos dos remanescentes, foi possível pontilhar o trajeto dos quilombolas durante a fuga, que chegaram ao máximo no Trombetas, na cachoeira Campiche e igarapé Poana. João da Silva Cerrão. Discurso de abertura da Sessão Extraordinária da Assembleia Legislativa Provincial: 7-04-1858. É verdade que os principais mocambos estavam no alto dos rios, em trechos navegáveis, acima das cachoeiras. No entanto, abaixo destas, nos igarapés e nos lagos como Mocambo, Conceição, Macaxeira, Abuí, Jacaré, Tapagem, Erepecú (Arepecu) e Moura, havia quilombos menores, antigos locais de reunião de mocambeiros, que poderiam servir de apoio, tanto para fuga e comércio com os regatões, quanto para a resistência, sobrevivência e reprodução daqueles sociedades situadas nas águas bravas, haja visto que muitos destes lagos são interligados e os “caminhos”, só podem ser percorridos por aqueles que são “mestres” como é o caso dos “mocambistas”. Segundo Derby, “o lago de Arapicú diz-se que comunica no inverno (tempo da cheia) pelo lado de cima com um braço do lago Jacaré, parecendo que os dois juntos formam um antigo canal do rio separado atualmente por uma zona importante de terras elevadas, nas quais existem diversos lagos. Refere-se também que ele recebe um igarapé de tamanho considerável” (Derby, 1897-1898: 373). Por onde provavelmente se comunica com o rio Erepecuru. Significativo é o nome da primeira cachoeira do Trombetas, batizada pelos missionários franciscanos como São Miguel Arcanjo (Rodrigues, 1875: 22). Anjo guerreiro anunciador que simbolizava a luta daqueles religiosos contra o paganismo, a selvageria e a barbárie dos nativos. Ao atravessá-la, os negros rebatizaram-na com o nome de Porteira. Um marco de resistência, um divisor de dois tempos e lugares: o tempo das águas bravas, dos mocambos, e o tempo das águas mansas, o das comunidades remanescentes. Tempos que se juntam nas histórias de luta e liberdade. Um lugar de memória daqueles que buscaram ser livres. Ali, na margem direita está o lago do Mocambo, primeiro refúgio dos pretos do Trombetas. Cachoeira por onde desciam os mocambeiros do Trombetas, “senhores do rio”. Marca do início de um espaço em que apenas seus donos podiam entrar: mocambeiros e nativos da região. 10. Segundo Barbosa Rodrigues, quando ele saiu na mata acima daquela cachoeira, “por ella descia uma canoa tripolada por mocambistas, que ouvindo alguns tiros, que davam meus companheiros na cachoeira, vinham saber o que significava, como senhores do rio vinham ver quem ousava transpor os seus domínios” (Rodrigues, 1875: 23-24). Atravessando a Porteira e, com Paciência e muita briga, o Inferno, chegava-se ao lugar onde ser livre era possível – Maravilha. Este era o nome do local em que os mocambeiros se estabeleceram no Trombetas, uma ilha acima da cachoeira Mina. Um lugar cuja posição “não podia ser mais bem escolhida e o ponto mais estratégico”, diz João Maximiano de Souza (1875). Maravilha que Coudreau não conseguiu ver: “o mocambo era situado na margem esquerda perto de um igarapé [...] no pé de uma cachoeira de mais ou menos dois metros de nivelamento, atrás de uma pequena ilha, num baixio, na base de uma região montanhosa. Se isso se considera do ponto de vista da insalubridade o local é bem escolhido” (Coudreau, 1900: 67). Conforme o Sr. Donga, Lá eles viviam felizes, não tinha quase maldade nenhuma, senão era festa que eles faziam, aquelas festas de bandeiras, de caixa, de santos [...]. Faziam aquelas festas por lá. Era uma cidade que não era lumiada com luz elétrica [...] era fogo de candeia, fogo de fogueira, pelos dias dos santos faziam aquelas fogueiras grandes, alumiavam o terreiro. Faziam aquelas luminárias de paus aí eles colocavam as candeias de barro, com 4 bicos, naquele mourão, com banha de pirarucu, óleo de castanha, com esses óleos assim. Aquilo lumiava a noite inteira as festas deles e aquilo era uma maravilha lá.10 Aspectos como esses – propiciadores a “vida tranquila” – fazem com que, no imaginário dos descendentes, o mocambo pareça uma “terra sem males”. A “cidade Maravilha”. Entrevista de julho de 1993. 37 No início de 1867, foi preso Basílio Antônio, mocambeiro do Turuna, que se encontrava no Curuá “districto de Allenquer, para onde havia descido com seu companheiro Feliciano, que já tinha retornado para o mocambo”. No ato do interrogatório Basílio deu referências de seus companheiros do quilombo Maravilha, que depois do ataque das tropas do governo refugiaram-se no Turuna (Cartório do 2º Ofício de Santarém, 1867). Um momento que está nas falas dos narradores, entre eles Rafael Printes e Donga. Segundo eles, os mocambeiros chegaram até o Campiche e o Turuna, dali, teriam se deslocado posteriormente para Poana, “onde os homens não chegaram mais”.11 No Campiche nasceram pais, avós e viveram os bisavós de muitos dos depoentes. Como diz D. Rosa — moradora do Sagrado, nascida no lugar Coroá –, em frente à boca do rio Cachorro, e a bisavó chamava-se “Maria Dominga ela foi ter minha avó no tal Turuna. A minha bisavó veio corrida da escravidão, e teve a minha avó para lá. Depois eles vieram baixando”. No Campiche nasceu a “avó do meu pai”, diz Dona Luzia Clemente dos Santos, moradora do Juquiri Grande. Daí começou a volta, para a área localizada abaixo da cachoeira Porteira. Uma baixada mesmo antes do fim da escravidão. “Quando eles vieram, descendo, então eles vieram começando explorar a margem baixa do rio, como bem, explorando a castanha, explorando o cacau, todo o negro vieram fazendo isso aí, explorando castanha”, afirma o Sr. Rafael, do Abuí, com 80 anos de idade. Barbosa Rodrigues, por ocasião de sua estadia em Óbidos, em 1875, também registrou esse movimento dos mocambeiros. [...] depois da subida do missionário e vendo que impunes aportavam às povoações começaram a vir, até de dia, em face das autoridades às povoações, onde não só compram e vendem, como trazem seus filhos ao baptismo na freguesia ousadamente declarando que são mocambistas. Diversas canoas delles vi de dia 11. 38 Entrevista com Donga em julho de 1993. estacionadas no porto de Óbidos; vi alguns levarem os filhos ao baptismo, assim como em minha casa alguns estiveram de dia. Já não admira vel-os desembarcar de dia, o que mais admira é ver elles encontrarem-se com os senhores, pedir-lhes a bênção e retirarem-se tranqüillos, sientes os senhores do dia e hora da partida Rodrigues, 1875: 27. Por sua vez, Maximiano de Souza afirma: “os quilombolas em certa quadra do anno veem estacionar no lago, formado pelo Cuminá, para pescar pirayba e fazerem grande salga, para a alimentação no tempo em que escasseia o pescado miúdo e caça” (Souza, 1875). Tempo de salga é tempo de festa. Era também a foz do “Erepecu”, o ponto de reunião dos regatões “que ahi vão annualmente nos meses de fevereiro e abril comprarem o produto do trabalho dos mocambistas” (Rodrigues, 1875: 16). Um retrato dessa ocupação é feito por O. Derby, segundo o qual, Actualmente a população do Trombetas está muito espalhada. Até ao logo Arapicú há alguns sítios dispersos de brancos e tapuios, sendo aquelles principalmente negociantes que commerciam em castanhas. Entre este ponto e as cachoeiras vivem alguns negros em diversos pontos ao longo do rio até o aldeamento principal que está situado a uma distância de alguns dias de viagem acima da primeira cachoeira. Nos mezes de outubro e novembro muita gente da parte baixa do rio e mesmo do Amazonas, dirige-se as praias de arêa, que ficam immediatamente abaixo das cachoeiras com o fim de apanhar tartarugas e ovos de tartarugas, ao passo que pouco tempo depois, esta mesma região fica cheia de colledores de castanhas. O castanheiro brasileiro é excessivamente abundante no rio e nos lagos desde as cahoeiras rio abaixo até o lago Arapicú, e exporta-se todos os annos grande quantidade de castanhas Derby, 1897-1898. Sem dúvida, essa ocupação gerou um desconforto para as autoridades locais, em particular de Óbidos, em razão da presença e significado dos mocambos, embora depois de 1855 nunca mais tenham sido atacados, e o comércio “clandestino” praticado pelos regatões. Tais práticas, provavelmente, exigiram providências no sentido de se intensificar a fiscalização nessa área. Em 1871, por exemplo, a Câmara de Óbidos “Oficiou os fiscais nomeados André Avelino do Amaral para o rio Trombetas e Lago do Arapecú; Ângelo José Valle para o rio Trombetas e lago Carimã; Thomas Benedito Nunes para o rio Trombetas e lago Urapicu e Martinho de Azevedo para o Paranamiry de Baixo” (Associação Cultural Obidense, 1871: 124). Em 1873, diante da persistência da situação, a Câmara envia um ofício ao Governo da Província, propondo a criação de novos distritos: A grande estenção que tem o districto desta cidade no rio Trombetas e lago Sapuacá faz-se necessário ali a divisão da districto com subdelegacia especialmente no Trombetas onde o districto se estende a mais de 30 léguas ficando por essa forma fora do alcance das authoridades; criminozos que por lá se vão horrorizar, nem só desse districto, como de outros, convindo serem as divisões do districto. Convindo sobre todo fundar uma fregesia no lugar denominado Urua = Tapera com invocação de Santa Philomena, na divisão do districto acima mencionado. Ato que foi concretizado Prefeitura Municipal de Óbidos, 1873: 96-97. Em 28 de setembro de 1890, chegou a Uruá-Tapera Gonçalves Tocantins, que afirmou ser essa vila uma: Florescente povoação à margem esquerda do Trombetas, que poucos annos antes havia sido fundada pelo Padre Nicolino (dez. 1877) (...) alma verdadeiramente christã, se havia feito espontaneamente um missionário, um apostolo daquella pobre gente. Imagine-se com quanto alvoroço aquelles infelizes recebiam o ministro Redemptor, que ia procural-os nos desertos, baptisar-lhes os filhos, celebrar missa, casamento, e levar-lhes palavras de conforto e consolação Tocantins, s.d.: 402. Dois ideais empolgaram a vida do Pe. Nicolino: “A pacificação e cristianização dos pretos mocambeiros dos rios Trombetas e Erepecuru e a catequese entre os índios”. Para alcançar esses fins, empreendeu várias viagens por estes rios. Assim o vemos em 1876 em Porteira, no Alto Trombetas, catequizando e batizando grande número de negros daquela região. Faleceu em 1882, no rio Erepecuru, quando fazia sua terceira viagem a essa região. “Pode-se dizer que dos seus dois ideais, somente conseguiu realizar um – a catequese entre os mocambeiros daqueles rios.” Parece que o referido padre seguiu, e concretizou as orientações do franciscano Mazzarino (Cúria Prelatícia, 1953). Se num primeiro momento o espaço de liberdade estava acima das primeiras cachoeiras, posteriormente, a concretude dessa liberdade se dá abaixo. Antes do fim da escravidão, mesmo durante a guerra contra os quilombos, comunidades mocambeiras já faziam parte do cenário do rio manso. Tapagem, Abuí, Jacaré, Mãe Cué, Juquiri, Erepecu e Moura já estavam ali desde meados do século XIX, e ali se encontram até os dias atuais, vivenciando, todavia, fortes momentos de tensão com a chegada do grande capital na forma de exploração mineradora e políticas preservacionistas imputadas pelo governo militar a partir da década de 1970. Esses mocambos, ao longo de sua existência, foram visitados por religiosos, viajantes e pesquisadores, o que demonstra, muito claramente, que mesmo considerados uma “praga” a ser combatida, gozavam de uma legitimidade, inseridos no contexto local e tão “industriosos como o resto da gente do Amazonas”(Derby, 18971898: 370), com cultura própria e uma organização socioeconômica como qualquer sociedade “civilizada”. 39 Tomamos, aqui, a lição de Alfredo Bosi segundo o qual: O que há de inexaurível no espírito de um grande historiador vem de sua capacidade de pôr-se à escuta das águas que jorram do passado e que a memória faz irromper no presente. Essas águas podem crescer ou minguarem, depende dos climas instáveis da cultura, mas no coração de quem se dispõem a ouvi-las, não secam jamais Bosi, 2003: 255. Assim, seguindo o caminho, e o barulho das águas, torna-se salutar ouvir um pouco mais as histórias das, e sobre as, comunidades negras, secularmente constituídas no Alto Trombetas. AS COMUNIDADES Nas várias narrativas encontram-se a descrição e a constituição dessas comunidades, como forma de resistência ao processo de exclusão, dando um sentido de continuidade à luta pela liberdade empreendida pelos ancestrais. Se os olhares dos visitantes – documentados nos registros de suas viagens –, chegaram através da oralidade aos nossos narradores, como a viagem dos Coudreau, a passagem da Comissão Demarcadora de Fronteiras (1934) foi vivenciada pelos depoentes mais idosos, que juntamente com seus filhos e netos, participaram dos momentos de enfrentamentos; quando da chegada da mineração e da política ambientalista, representada pela floresta nacional e pela reserva biológica, implementadas pelo então IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal). Conheceram ações repressivas e expulsão de suas terras. Uma expulsão que incomodou os moradores daquelas comunidades, onde muitas famílias teimaram em ficar. Carlos Printes, 37 anos, morador do Abuí diz: 12. 40 Quando os meus antepassados, os meus avós, eles contavam que o quilombo antes era até chamado de mocambo. Então era um lugar onde o povo vivia junto reunido. E lá eles viviam em comum, onde só viviam mesmo só os remanescentes, aquele povo sofrido. Viviam morando lá. Então, diz que significava Quilombo. Aí teve a história de que teve vários quilombo aí pro Alto Trombetas, aí pelas cachoeiras. Aí depois que eles já estavam libertos, foram descendo o rio e foram morando nesses lugares, onde nós estamos morando agora. É no Abuí, é na Tapagem, no Paraná, essas comunidades que hoje em dia temos. Então foi assim, segundo eles falou pra gente, que começou essa história.12 Vejamos um pouco mais das histórias dessas comunidades. MOURA Antes da viagem de Barbosa Rodrigues ao Trombetas, duas outras expedições haviam adentrado esse rio. Uma delas chegou até o lago Mura. Segundo este, “a duas milhas da foz do Paraucú, seguindo sempre pela mesma margem, chegamos ao lago Caypurú, que não é mais do que uma profunda enseada, que ahi faz o rio para o leste, habitada por três famílias de mocambistas. Na margem opposta, a 16 milhas do lago Batata, fica o ponto deste rio, até onde chegou, há annos o vapor Monarcha commandado pelo capitão tenente Parahybuna dos Reis, único que o explorou até ahi” (Rodrigues, 1875: 11). É denominado “lago Mura, ou dos Muras, por ter ali, em tempos idos, havido uma maloca dos mesmos gentios. D’ahi para cima, só o aventureiro regatão se animava a subir, não levando, contudo, longe o seu itinerário depois que o frei Mazarino foi levar a religião ao mucambo” (Idem: 16). As entrevistas com Carlos Printes e os demais narradores cujas falas são recorrentes na seção Comunidades foram realizadas em junho de 2000, por ocasião de um trabalho de campo junto às comunidades quilombolas do alto Trombetas para a Comissão Pró-Índio de São Paulo. carlos penteado No Moura, conversamos com o Sr. Alberto Rogério Constantino, de agrado Lúcio Macaxeira, 81 anos, nascido ali mesmo, filho de Nicolina Pereira de Jesus e Maciel Constantino Pereira de Jesus. Neto de Margarida Pereira de Jesus e João Paulo Pereira de Jesus. Foi casado com Maria Nicolina de Souza, já falecida, natural do Erepecu. Aí se percebe outro elemento significativo que envolve essas comunidades: o laço de parentesco, constituindo um ramo só, fortalecido pelo deslocamento populacional por entre as diversas comunidades negras do rio Trombetas, pelo compadrio e por outras formas de solidariedades e sociabilidades. De acordo com Lúcio: Eles eram daí de fora. Vinheram prá cá corridos no tempo da cabanagem. Tudo isso por aqui era índio que vivia e a prova é que em toda essa terra preta por aí você encontrava figura de índio, daí eles pegaram de veras e vieram entrando, aí os índios também foram se afastando, foram carregando aí pra cima e eles vieram entrando e ficando. [Além de Margarida] tinha a velha Emília, velha Brígida, velha Liôncia, velha Tomázia, isso tudo era dos tempos antigos, a velha Cirila também era desse tempo da Cabanagem. E ali tinha festas? Tinha sim senhô. Está aqui eu tenho a santa, olhe essa santa era da minha vó veio para a Senhora de Nazaré. Que os índios afastaram daqui, eles jogavam veneno na água que a febre dava numa hora dessa, quando era de manhã entrava de pé pra frente caia todos os cabelos, ela fez uma promessa, essa minha avó, com essa santa que está aqui até hoje.(...) Eu era ainda pixotinho mais ainda mim lembro bem, ela começou a manter, mandou buscar essa santa, também graças a Deus paralisou a família e todo o povo em gerá aí ela mandou fazer essa festa. Nas festas vamos encontrando outros elos entre o presente e o passado. São lugares de memórias; continuadas pelos 42 descendentes que assumem o cargo de protetor do Santo, uma prática iniciada por seus avós ou bisavós. O Sr. Lúcio não se limita a falar das festas no Moura; remete a outros festejos como no Abuí, cujo o padroeiro é São Benedito, “o mais velho era aí na Tapagem, são Sebastião. E santo Antônio festejado por Sr. Antônio Macaxeira no Jamari”. Conversando com Mário Santos de Jesus – 48 anos, natural do Moura, assim como seus pais, Josino Pereira de Jesus e Inês Valéria dos Santos –, outras famílias antigas são referenciadas, como as de: Lúcio Macaxeira, Didio Macaxeira, Persivaldo Santana. “Somos parentes do Antônio Macaxeira lá do Jamari.” E ainda, velha Nilda, Esperança, Roxinha, Lídia Siqueira, Duruca Régis, Armerindo Pereira de Jesus. Nas palavras de Mário: O mais velho que eu conheci aqui foi o velho Conceição, que morreu com 80 anos, há uns dois anos. Festa? A de Senhora de Nazaré. Os protetores da santa eram: o finado meu pai, Jozino, era Lúcio Macaxeira, era Didio Macaxeira, era os donos da festa. A santa era da minha avó Maria Caetana Pereira de Jesus, que nasceu aqui no Moura. Na narrativa desse depoente encontramos os fios de uma luta constante que marcou as comunidades remanescentes do Alto Trombetas: a ameaça de tomar suas terras. Prática dos “coroné”, em especial, “Raimundo Costa Lima, um português”. Sua fala remete a enfrentamentos ocorridos com esse senhor, e outros semelhantes, não só em relação ao Moura, mas, também, a outras comunidades como o Abuí. No Moura, vive Maria do Carmo Colé Viana, 40 anos, filha de Rafael Printes e Rosa Colé, que encontramos no Abuí. Ela chegou ali por ter se casado com José Lopes dos Santos, natural dessa comunidade. Vivem da pesca e da roça e, também, do trabalho na mineração. Segundo ela os moradores mais antigos dali são: “seu Osvaldo Santana, a mãe dele (Marcelina Santana) que era uma negra e exerceu assim muitos anos nessa comunidade, a Dona Nilda e tem a Dona Esperança, também, que é a senhora mais antiga”. Observa-se que a Santa já estava com a terceira geração de protetores (Leite, 2002). Dona Maria Nicolina, a Dona Esperença, mãe de Dona Roxinha (74 ano) cujo nome é Herminia Nicolino de Souza, está hoje com 95 anos. Filha de Moacir Nicolino de Sousa e Jenoveva Nicolina de Souza, nascida “pro Mucura”. Veio há muitos anos para o Moura onde os mais velhos que conheceu foram: “Marculino, Caetana, Margarida mãe do Jozino, pai do Mário, era uma porção de gente.” “Eu não tinha marido, eu tinha uma costela comigo, ele chamava Vito Ramos e era daqui mesmo do Moura. Tirei muita castanha no Erepecu.” EREPECU OU ARIPECU De acordo com os registros de Barbosa Rodrigues, três milhas acima do Mura: Apresenta-se na margem esquerda a pittoresca foz do lago Aripecú, (Erepecu) com meia milha de largura ornada a ponta leste com um lindo jauarisal, no meio da qual um banco de areia, impede a entrada do lago a grandes vapores, sem prático, que não conheça o canal. A estratégia ao escolher o local, defesa, proteção, ser bom prático, conhecer os caminhos. Tem de largura este lago 2 milhas pouco mais ou menos...É este muito abundante de castanhas que cresce não só nas terras firmas como nas ilhas. É o ponto de reunião dos regatões, que ahi vão annualmente nos mezes de fevereiro a abril, comprarem o producto do trabalho dos mocambistas, que nesse tempo descem das cachoeiras, como trabalharem no apanho das mesmas castanhas para elles, pagam com ninharias os gêneros por preços fabulosos as mais antiga, de que tem informação são as de: Juca e Ventuinha e as senhoras mães deles, “aquelas que tinha mais de um século, elas chamavam Brígida, Tomázia e Emília, eram negras... Era um lugar pouco habitado, mas em tempo de safra entrava para tirar safra de castanha, e entrava muita gente. Quando terminava a safra saíam todos. Eram poucos os moradores que ficavam”. Ali, além da castanha, extraem o breu e o leite de copirana. As festas era de pau e corda, nós que fazíamos os nosso instrumentos, e a festa era animada, a luz era iluminada com uma candeia feita de umas panelinhas de barro, eles tirava banha de castanha, de andiroba, propriamente praquilo. Festa de ramada – era muita festa, Deus me livre. Dança – mazuca, landú, quadrilha, marcha, samba. [A padroeira é] santa Maria Aparecida. Uma das queixas do Sr. Germano, como também da maioria dos depoentes, refere-se às ações do, então, IBDF que, segundo ele: “Trouxe uma formalidade mais comprimida pra nós, comprimida mesmo, que nós andamos correndo, se escondendo, pois o negócio tava feio. Agora tá mais moderado. Mas logo que chegou, não chegou fácil, não podia nem mais usar uma rede pra pega a boia, porque se encontrasse a gente tomava tudo”. Sua irmã Tereza Fernandes Régis, de 71 anos, que também nasceu no Erepecu, neta de Maria Santana Fernandes, trabalha com a castanha. Com o Ibama, Rodrigues, 1875: 16. A gente passou meio ruim, que em casa até cansei de esconder a panela com comida. A gente tava cozinhano né e aí a gente se escondia, umas diversas veiz, porque muitas veiz era carne de caça, e não queria que a gente matasse. Mas a gente tinha que cumê, eu ficava sempre escondendo lá em casa. Mas graças a Deus, como o irmão falou, melhorou mais prá nós e agora estamos mais tranquilo. Aí vive Germano Régis, 71 anos. Nasceu nesse lago, filho de Manuel Régis e Cecília Fernandes da Costa. As primeiras famílias, Mais uma vez, aparece a figura dos “Patrões”: Manuel Costa Lima; Machado e Sr. Guimarães, antes do IBDF: 43 Se diziam proprietários, teve muita gente presa. Por isso não podíamos nem tirar uma castanha enquanto não falasse com cada um, cada um de nós tinha uma colocação, uns lá no Belo ou na Santa Rosa, depois foram tomando conta de tudo, aí ficou comum, e pode entra, tira e mete a mão aonde a gente quiser, não tem mais dono acabou-se as casas que representava. Por sua vez, Manoel Fernandes Régis, 56 anos, irmão de Tereza e Germano, casado com Francisca dos Santos Régis, lá do Bacabal, afirma: Muitos vieram esconder pra cá do nosso lado, por esse lago ou pro rio. São as pessoas que deixou essas galhos que nós também participamo ... Que nós tâmo passando, que antes quando tinha os proprietários, que era os donos dos castanhais, e era sempre a mesma humilhação. Daí pra nós até vende uma caixa de castanha se quisesse para outro, tinha que vende bem com cuidado por que se o patrão soubesse ainda era o xadrez. Da minha época pra cá, tinha uns morador aí que quando o IBDF chegou, trouxe a onça pra eles saí. Tinha o Aguinaldo, o Pinto e mais outros aí, saíram com medo do IBDF. Quando veio aqui, veio humilhando todo mundo dizendo que vinha até a federal pra mata, faze isso, e todo mundo correu. Só quem não correu mesmo foi esses que estão aqui que é o Germano, eu, minha mãe, que faleceu, minhas irmãs e alguns moradores e o Raimundinho, também, que ainda está. Na fala de Ibenor Ferreira Pimentel, 59 anos, nascido no Erepecu, no barracão chamado Fartura, filho de Moacir Pimentel e Amélia Guerreira, vamos encontrar um “ramo”que remete às terras do Curuá de Alenquer de onde era o seu pai. Seus avós chamavamse: Viturino Pimentel e Clotilde Guerreira. O meu avô e minha bisavó eles vinheram até fugidos da escravidão. De lá eles vinheram fugido com aqueles senhores que os humilhavam e vieram prum barraco 44 bem aqui, que chamava Barrero, bem aqui. Aliás não, eu sei que eles foram localizados aqui numa parada chamada Primor e foi lá no Primor que eles baixaram e aí foram o final deles e aí eles se acabaram. O Primor fica no Aripecú. No Erepecu, encontramos João Souza Figueredo, o Pinduca, 59 anos. O seu referencial dos mocambos não é o Trombetas e sim o rio Erepecurú; onde nasceu num lugar chamado Porteira. Filho de Leonor Souza Santos e Manuel Figueredo e neto de Maria do Rosário Conceição e Bazílio. João diz: [...] vieram, bem dizer de encomenda, no tempo da escravidão. Eles andavam corrido e então se socaram dentro do Erepecurú e fazia plantio. Hoje em dia ainda tem muito plantio, pelo menos cacau, que eles faziam cacual, alambique, ainda cansei de ver, tudo isso, era feito pro lá, que eles faziam roça. Tudo isso minha avó cansou de contá. Era ela, Candeia, Micaela, Sofia, Figêna, tudo isso era nome dos antigos né, que moravam lá, mas eu só conheci minha vó. Conheci também o finado Anjo (Ângelo) com a Mafalda, era a mulher dele. Agora esses outros já era a minha avó que me dizia o nome deles. Raimundo Lotério era o irmão que morreu com 125 anos, ela morreu com 100 anos. Aquele Raimundo Lotério, eles me contavam muitas coisas do rio Erepecurú, quando eles andavam tudo corrido, tudo arribado, assim como hoje em dia nós vive tudo corrido por aqui do Ibama, aqui nós temo medo que quando a gente é pego aqui, no meio do rio, é aquela confusão doida, tomam tudo, e a gente fica voando. O pobre já não tem nada, e quem tem fica tomâno. Uma coisa, também, acho esquisito por aqui, que o Ibama entrou piorou muitas cosias. Judiaram muito dos parceiros, coitados. Tinha deles que tirava até a comida das panelas, jogava fora, ficava criança chorano aí com fome. Era um sentimento prá todos nós. Eu peço a Deus que ajude a ARQMO pra nós consegui o documento dessas terra aqui, por que lá onde eu nasci, parece que já conseguiram. Depois que nós tiver o documento, pode ser que as coisa melhorem de vez pra nós. Ao que tudo indica, o Erepecú continua a ser o lugar onde os parceiros se encontram. “O rio do Aripecú para cima, começa a ser habitado pelos que ali têm suas palhoças, para passarem o tempo da colheita da castanha dali para cima torna-se mais animado pela constante presença de montarias dos mesmos, cruzando o rio, saindo dos lagos ou neles entrando (Rodrigues, 1875: 121). É bom lembrar que os mocambeiros baixavam para trabalhar para os “patrões” certos no tempo da castanha. JUQUIRI GRANDE (YUKIRY-UAÇU) Depois de deixar o Aripecú, mais conhecido hoje como Erepecú, Barbosa Rodrigues entrou, pela foz do lago Yukiry-uaçu que dista 26 milhas do Aripecú, desembocando na mesma margem. Um canal de 30 metros pouco mais ou menos, muito tortuoso, leva o explorador, por entre uma fechada mata, que borda as margens, ao lago. O Lago sem ser muito extenso, é contudo salpicado de ilhas das quaes a principal é a do Diamante ...Três sítios alhi encontrei, habitados por pretos fugidos, mocambistas e por uma família de tapuya desgraçada pela elephantiasi dos gregos. [...]Ainda sendo dia, desembarquei, encontrando só a família, e abandonadas as casas dos mocambistas, que com nossa chegada fugiram, observando contudo nossos movimentos. [...] Estes depois, que nenhum mal lhe faríamos começaram a apparecer. Barbosa continua sua narrativa no contato com os moradores do Juquiri Grande. Quando desembarquei, preparava uma das mulheres doentes, o óleo de piquiá. Empregam-o geralmente só para luz. Pelo mesmo processo vi ahi exthair-se também o do uixi-pocu. Com alguns mocambistas, que poucos dias antes haviam descido das cachoeiras, conversei e deram-me informações dessa região. Percorrendo no dia as suas roças, encontrei signaes de extinta maloca, nos numerosos fragmentos de loca que haviam espalhados. Entre esses fragmentos, encontrei alguns com formas de animaes, entre elles um representando bem a cabeça de um jacaré Rodrigues, 1875: 18-19 Acima do Jukiry-uaçu fica o lago Palhal e na margem opostas o lago Mãe Cué. Bem, quanto a nós, no Juquiri Grande, conversamos primeiramente com D. Ana, 88 anos, filha de Maria Joana dos Santos e Manoel Régis. Irmã, por parte de pai, de Germano, Tereza e Manoel Fernandes, lá do Erepecú. Nasceu nas várzeas perto, abaixo da Macaxeira. Neta de Martinha Maria dos Santos e Clemente Antônio dos Santos. A mãe era “aqui mesmo do Trombetas, só pode ser no lugar de frente ao lago Matapi onde nasceu diversos deles”. Vieram para o Juquiri, “porque nós saimo de lá. A companhia jogou nós de lá daquele lago chamado Matapi. Lá era nossos terreno, mas ela indenizou e nós saimo. Viver só na vargem todo o ano a coisa vai pro fundo, num interessou nós ficá lá, né? As famílias que já existiam aqui era: Azamor Gualberto, Manoel Gualberto, Cantidio Gualberto, Osmarino Gualberto, era essa família”. Sobre os mocambos: eles falavam que quando eles entraram aqui foram vivê nesse mocambo juntos. Agora o meu avô, pai da minha mãe, não senhor ele não chegou prá lá, ele ficou nesse lago aqui do Erepecu, quando ele veio da terra dele, que era Alenquer. A minha avó era de Santarém, entraram aqui e foram direitinho pra o Erepecu. Vieram para cá por causa dos brancos que vendiam eles, aí fizeram eles corre de lá prá cá. Foi prá tê esse mocambo. 45 carlos penteado Sobre o fato de se esconder no Erepecu. É, eles ficaram. Mais o negócio já estava mais liberto. Por que eles vieram e esse velho, vivia dentro do lago chamado Matapi, chamado Rafael era conhecido dele, viu que ele estava fazendo um lugar aí dentro e foi chamá ele pra vendê uma parte desse lugar no Matapi, e aí os outros todos já vinham atirando aí de cima do mocambo, já tavam ficano liberto né, e eles entrou nesse tempo fazendo também, como o velho, e ali levantaram e pronto. E criou os filhos todos e já os netos também se criaram aí nesse lugar. Essa fala torna-se bastante interessante em razão de confirmar a existência dessas “paragens menores”, que deram suporte aos mocambeiros que estavam acima das cachoeiras. Sem a necessidade de “comprovar” a sua fala, ela complementa as informações de Barbosa Rodrigues quanto aos quilombolas que ele encontrou nessa localidade. Aí vivem, também, descendentes daqueles das cachoeiras como Raimundo Alves dos Santos, 60 anos, filho de Raimundo Viera dos Santos e Maria Viera dos Santos, nascido na Porteira. A avó Maria Vieira, “era de lá da gema do Mocambo”. A fala de Dona Luzia Clemente dos Santos, 49 anos, é mais uma que remete ao Mocambo do “Yukiri-Uaçu”. Filha de Lucimara Clemente dos Santos e Antônio Andrade, nasceu no Jamari. Seus avós eram: Maria Joana dos Santos, “mãe da minha mãe”, e Eleonor Vicentino de Andrade e Matias Alves, por parte de pai. Veio para o Juquiri, em 1977, porque “a companhia do Jari achou que a gente não devia ficar do lado de lá, ai ela deu uma mixaria e a gente desocupemos as terras de lá e viemos pra várzea. Só que na várzea nós não podia ter uma moradia fixa, porque de verão ela tá em terra, de inverno ela vai pro fundo. A gente precisa de planta e achamos importante de vim fazer umas plantação foi aqui no Juquiri”. Dos antigos, os do mocambo, diz ela: A vó do meu pai nasceu nesse Campiche. Ela falava que quando eles vieram eles subiram aqui nesse rio e foram pras cachoeiras, se esconde dos brancos e de lá, a cidade que eles faziam as compras era Óbidos. Mas só viajavam a noite, porque só andavam escondidos por causa dos brancos. Mas eles iam de remo de cachoeira pra Óbidos e de Óbidos pras cachoeiras. Ainda me lembro que ela falava que lá eles faziam festa, uma festa de Nossa Senhora da Conceição. Ela cresceu nesse mocambo Campiche. Aí num ano que o pai dela trabalhou prá arrumá o dinheiro pra vi buscá a vó dela, pra pagá o senhor da vó. Já quando eles iam, aí gritaram a liberdade e liberto tado os escravos. Aí todo mundo ficou alegre, aí quando trouxeram a velha não foram mais pra lá, já vieram pra cá trabalhá e construí a família deles. Aí que até hoje mora esses galhos dessa turma, tudo veio dela. A mãe dela teve só ela de filha e ela aumentou uma família que até hoje ainda tem tudo essa turma lá do Jamari. JAMARI A comunidade do Jamari foi uma das mais atingidas pela política ambientalista aplicada naquela região. Todavia, ali se encontram pessoas cujas histórias estão entrelaçadas com as comunidades que estão mais acima, como a Tapagem, e como aquelas já referidas anteriormente. Ali vive Máximo, de 74 anos, e sua irmã Nazena Andrade da Conceição, de 77 anos. Ele nasceu no Jamari e ela em Mãe Cué. “Eu nasci ali dentro do lago do Mãe Cué, mais mim criei aqui nesse pedaço do Jamari.” São filhos de Donga e Leonor. A avó por parte de mãe era Maria Cirila da Conceição, e por parte de pai Sebastião Cordeiro. “Eram, os meus bisavós.” Diz o Sr. Máximo: eu ouvi contar, eles vinheram pra cá, fugidos da escravidão. Os meus bisavô vinheram tudo pra cá e nós se assentamos por aqui. Foi o nosso começo. 47 Não queriam mais ser escravos e vinheram morar pra cachoeira, tivemos que ficar lá, as escondidas pelas cabeceiras do rio pra se escondê do branco. Esses meus bisavô subiram aqui nesse rio e foram morá na cachoeira por que o branco não sabia ir pra cachoeira, era atrasado, iam pra cachoeira chegavam lá no pé da cachoeira e quem foi que disse pra subir na água forte e aí eles voltavam. Foi que quando abriu a liberdade, eles vinheram baixando, procurando lugar pra cá por baixo pra morar. A minha mãe nasceu aqui nesse lugar na baixa. As famílias mais antigas eram, “a minha vó, a vó da Zuila. Eram os donos desse terreno aqui, do meu bisavô que era dono desse lugar daí da vargem era Francisco Cirila, era pai da minha avó e a mulher dele era Maria Leonor, era mãe da minha avó esses dois, pai e mãe, mãe da minha vó, por que o pai da velha Joana era Clemente que morava aqui no Jamari”. Dona Zena por sua vez, ao ser indagada sobre os antigos, os do Mocambo, responde: Olha minha vó contava que a mãe dela foi escrava dos brancos. A minha vó contava que quando eles entraram nesse rio a mãe dela veio gestante dela, ela foi ter ela lá no tal de Mocambo. Era Maria Cirila da Conceição, ela nasceu lá na cachoeira no lugar chamado Campiche, lá ela nasceu. Olha aqui nós vivíamo, duma castanha, de um pirarucu, de uma tartaruga, de um couro de onça, de um couro de porco, de couro de maracajá, as vezes algum sabia caça, outro não dava pra isso, aí ia na roça, fazia a rocinha hoje em dia pra se manter e a gente vive assim. E sobre a forma de uso coletivo da mata. É. Pra cá não tinha esse negócio, “há não entra aqui no meu terreno”. Tinha os que compraram; um velho que tinha, era proprietário. A maioria a terra era do governo qualquer um podia fazê o seu lugar; tinha 48 direito no lugar dentro de uns 4 ou 5 anos que ele morasse o lugar já tava como dele, os branco mesmo diziam: é, rapaz esse é teu por que você já está aí tantos anos, não tem mais direito de te jogarem daí... Quanto à questão relacionada a tentativas de expulsá-los. Olhe só o Ibama queria jogá nós daqui de lado, queria jogá nós do nosso lugar. Aí na comunidade se levantaram. Eles ainda foram três vezes pra bandalhá o barracão que estavam fazendo pra escola, e ai perguntou com que ordem estavam fazendo a escola lá; disseram que era com ordem do prefeito. Eles perguntaram “quem é o prefeito desse lugar”. Aí disse: “olhe vocês deve sabe quem é, você mora lá, na cidade”. Aí disseram: “olhe se vocês continuarem com essa escola a gente vai jogá gasolina e tocá fogo”. Bem, aí continuaram com o serviço e eles [os fiscais] vinheram, viram que a escola ia pra frente eles pararam, nunca mais vinheram. Aí levantou a comunidade, pra cá tinha muito menino atrasado, não tinha escola, não tinha nada. Foi assim que foi começado a escola, a comunidade. Do outro lado. As ações do Ibama os conduziram para a região. Nosso lugar definitivo de nós morá era lá, lá nós fomos criado, e olhe meu senhô no tempo que nós se criemos pra nós tudo era fácil, era farto uma boia, era farto peixe, era farto tartaruga, era farto caça, não tinha falta de nada. De uns certos tempos pra cá escangalhou, hoje em dia tem dia que o pescador sai pra pescar não puxa um peixe, depois apareceu essas companhias, todo mundo já quer pegar peixe pra vender é que bandalhô, por que o Ibama lá veio zelá, diz que veio zelá, mais é que zela por uma parte e não zela por outra, por que quando tá zelando pra cá, pra cá estão invadindo, aqui não tem esse negócio de dizer ai é reserva, reserva era no tempo que nós moramos aqui, por que naquele tempo pra nós tudo era farto, hoje não tem mais fartura, acabou, por que o Ibama disse que veio zelá, eu acho que ela veio foi esbandalhá de uma vez, o tabuleiro onde tartaruga saltava nem lá mais salta, então ele não veio zelá, ela veio esbandalhá, é assim. O diálogo vai acontecendo e os personagens vão surgindo, delineando os fios da história. Assim aparece madame Coudreau: “O que eu ouvi falar dela, é que ela subiu prá cá (...) e foi cá, lá na Colônia, e lá o marido dela morreu e ela deixou enterrado ali no lugar do finado Chico Dantas e quando chegou uns tempos ela veio buscar o cadáver”. Assim, também, se lembram das histórias contadas sobre o e Basílio, e o seu tacho, onde conseguiu escapar das perseguições dos brancos. História que o pai, o Sr. Donga, gostava de contar. No outro lado do rio, em frente aos filhos do Sr. Donga, mora a família do Sr. Antônio Pereira de Jesus, 89 anos, conhecido por Antônio Macaxeira, parente de Mário e Lúcio Macaxeira, lá do Moura. Nasceu no Arrozal. Filho de Joaquim e Tomazia. Seus avós eram João Rocha e Joana Rocha. Veio pra o Jamari há mais de 30 anos. “As famílias que já estavam ali eram as de Maria Cirila, a casa dela era ali em baixo.” É o protetor do santo Antônio. “Aquele santo quem mim deu foi o meu avô Vitório na cachoeira. Era tio da minha mãe.” E para refazer o percurso do santo até chegar a Vitório. E, eu não sei. Ele trouxe de lá debaixo, o avô dele, que veio pra cá fugido, naquele tempo eles eram arribado. Eles moravam no Turuna, dentro da cachoeira. Lá eles faziam festa desse santo, eles baxavam, naquele tempo eles andavam só de noite. O pai da velha Cirila foi quem ajudou a limpá aquele lugá. Eles iam comprá a despesa do rancho tudo e subiam, saiam de lá de noite, andavam o dia e de subida quando anoitecia eles baixavam no remo, com carga grande que eles tinham iam cheios de mercadorias e iam embora, subiam cachoeira de certa parte pra lá eles já iam festejando davam tiro tinha muita gente lá, lá eles moravam. Festejavam muito esse santo. Esse santo ele fugiu. Diz ele que quando era de noite eles arribavam pra cá; queriam pegar eles. E eles se defendiam com esse santo e nunca eles foram pegos, assim esse santo veio pra cá. Aí depois foram morrendo, até por fim ficou o Vitório, ele é herdeiro desse santo, ficou já na mão do irmão dele, o irmão dele morreu. Na nossa conversa, outros velhos mocambeiros vão surgindo, o João Rocha, o velho Ricardo que: João morava no lago chamado Macaco, abaixo do Arrosal, no Mucambim. É abaixo da cachoeira. Ricardo Pereira, Cardão, era assim que chamavam ele. Ele e três mais velhos que tinha naquele meio. Tem também, Margarida era a minha vó, era a mãe do meu pai. Eu conheci muito. Ela morava no lago do Mura. Lá nós começamos, lá a minha vó fazia uma festa muito grande. O santo era Nossa Senhora de Nazaré. O Sr. Antônio vive com sua filha Antônia Pereira de Jesus, 52 anos, casada com José do Carmo. “É filho daqui do rio mesmo, do Jamari também.” Assim como ela. Segundo D. Antônia, quando chegou o IBDF, atrapalhou, quando nós sentemos nesse lugar não existia IBDF, já depois que nós já tava aqui morando já vários tempos, tava com uns 15 anos morando aqui já que apareceu o IBDF aqui pra querer jogar com nós daqui. Aí que foi que nós começamos a fazer essa escola eles botaram em cima, eles vinha aqui e queriam brigar com os homens que estavam trabalhando aqui. Aí quando foi um dia disseram que iam tacá fogo na escola, aí o meu irmão disse: “olha você vai tacá fogo mais fale lá com o prefeito que foi o prefeito que mandou nós fazê isso aqui, que a escola é do governo, não é nossa”. Mais o fiscal falô: “Aqui eu não quero 49 escola que isso aqui é reserva”. “Mais o que você está reservando aqui, que aqui não tem o que você reservar?” “Eu vou pra cima, amanhã quando eu passar eu venho tacá fogo aqui” (replica o fiscal). Pois é taque fogo em tudinho nas casas que tem aqui não taque só numa. Aí baixaram e falaram com o prefeito, era o Luiz Suza e ele disse olha: “volta e quando eles chegarem lá tu diz pra eles que eu vou assistir eles tocarem fogo na escola”. E quando foi um certo dia eles chegaram aqui, eles passaram bem por fora não encostaram mais. Aí teve uma prima minha que disse: “Olha tu qué sabê de uma coisa? Vamos levantar uma comunidade aqui ai foi que prá nós conseguir a comunidade ai eles vão se afugentar. Aí foi indo, aí foi dando gente, e o pessoal foram entendendo que era bom, aí foram se chegando e hoje é uma comunidade só quase de uma família. Acima do Jamari está Mãe Cué e logo após o Sagrado Coração. Essas comunidades estão praticamente no “quarteirão” da Tapagem, assim como o Abuí. SAGRADO CORAÇÃO O Sagrado surgiu como uma extensão da Tapagem, consequência natural do processo de deslocamento das pessoas, na busca de novos espaços para o trabalho. Ali encontramos moradores, descendentes dos mocambeiros, vindos das áreas da cachoeira Porteira, como Dona Rosa Vieira dos Santos, 74 anos. Nasceu no lugar chamado Curuá “lá frente a boca do Cachorro”; filha de Silvério dos Santos e Maria Vieira. Seus avós – Sebastião Vieira e Maria Pinheiro – eram do Mocambo. Dona Rosa fala dos deslocamentos de seus antepassados, e, também, seu. Sua bisavó chamava-se Maria Dominga Ela foi ter minha avó no tal Turuna. A minha bisavó veio corrida da escravidão, e teve a minha avó para lá. Depois eles vieram baxano. O meu pai, quando a 50 mamãe morreu, veio para cá, que a mãe dele morava aqui eu fiquei pra lá com minha avó materna. Me criei com ela, me criei na cachoeira Porteira. Quando foi em 1942, meu pai arrumou outra mulher, eu vim para cá com ele. E desde essa década, ele morreu, tem 42 anos de falecido, e eu estou aqui. Suas narrativas vão dando conta das famílias mais antigas que tinham no Sagrado; das festas e do tempo da chegada do Ibama: A Maria do Carmo, Bárbara, Joana Manso, tudo isso era só uma família. Aqui a gente vive da roça, da pesca, castanha. Agora a gente trabalhava na castanha lá no Jacaré. Hoje ainda algumas pessoas vão tirar de teimosos, mas é reserva biológica. Aí quando foi criada essas reservas, florestas, a gente já morava aqui. O assentamento do Ibama causou até morte, a de uma criança de três anos. Paravam nas casas e quando os donos das casas vinham já estavam por dentro. Aí na Tapagem bateram num rapaz. [...] Eu conheci muitos dos antigos. A mãe desse Xavier aí a Maria Sofia. A festa cultural que faziam, na Tapagem, era muito bonito. Agora já mudou muito. Tinha outra festa, de umas pretas velhas que moravam aqui pro lado da Água Fria. Eu não conheci as festas delas, mas, eu conheci as três, moravam numa casa ali onde era a Assembleia, era casa delas, Ana, Benedita, e Neta, eram três irmãs. Ao recordar dos embates com fazendeiros que queriam se apossar da área compreendida pela comunidade do Sagrado Dona Rosa enfatiza esse momento de enfrentamentos. Queria tomar tudo isso para fazer campo. O nome dele é Humberto Guimarães, é de Santarém. Ele botou um rapaz por aí mais a mulher. Já, nós tinham uma capelinha de palha, quando num domingo nós fomo no culto lá, era capim plantado desde o batente da capela, até na beira da ladeira assim e nós arrancando e jogando na água. Daí, a luta foi pra frente. Nós arrancamo o capim, só derramamo lá na casa, na porta da casa. Depois o fazendeiro tirou, levou ele embora, que daí eu nunca mais vi aquele homem. Não sei para onde ele foi. Na fala com Dona Rosa vamos encontrando um pouco da história de outras comunidades, mais acima, quando ela se refere às várias famílias que foram expulsas da reserva biológica, em particular do lago do Jacaré. “Uns estão atuando por aqui, dali abaixo, outros foram para o Abuí.” No Sagrado vive, também, Ornélio Correia da Natividade, conhecido por Nilo Colé. Nasceu no Mãe Cué. Filho de João Colé e Maria Correia da Natividade. Suas avós: Lorentina, por parte da mãe, e a outra Joanina, “da parte do meu pai. O meu avô por parte do papai era Zé Colé e da parte da mamãe eu não conheci. Eles nasceram aqui nesse lago de Tapagem”. É casado com Raquel Pires dos Santos, 57 anos, que ao responder sobre o lugar onde nasceu, dá a dimensão e o significado da Comunidade da Tapagem. “Olha, esse município aqui tudo, conhecem como Tapagem, quando eu nasci, já conhecendo com esse apelido Tapagem. E aqui nós trabalhamos, vivemos da castanha, muita castanha. Pra gente se mantê, faz uma rocinha.” Todavia, no Sagrado a história não é apenas desses descendentes de mocambeiros. As lembranças dos antigos estão ali. Nilo Colé também fala de seus conhecimentos sobre a história e pessoas do lugar: Eu conheço um bocado de preto velho, sabe? E aí pras cachoeiras, eu vi muitos locais que os pretos velhos andaram morando, cheguei até defronte da boca do Poana, isso é mais de semana viajando, remando. Eu ainda vi o Manoel José, Velho Bernardo, a velha Sofia, isso tudo eram velhos. Velha Maria Máxima, Chico Pedro, o velho Genuíno e finalmente tios meus; José Bernardino, velha Loiana, velha Inácia e Luiz Colé tudo isso eram velho. O meu avô contava isso, a mãe dele, a Joana Manso cansava de contar isso pra nós. Que ela ainda foi uma que se escondeu. Ela contava que veio o pega-pega e aí eles se arrumaram e entraram aí pro mato, pra atrás. Quando ela deixava anoitecer, ela fazia aqueles foguinhos pra fazerem o que eles comerem; aí eles comiam, apagavam o fogo e ficavam tudo quieto, não fazia zuada pra não escutarem. As crianças tudo, ficavam tudo caladinhas, que o pega-pega estavam andando. Pega-pega eram as pessoas, que andavam por aí querendo pegar o pessoal; às vezes pegavam né, davam pisa no rabo deles. Escutava eles contarem. No Sagrado os laços de parentesco vão além da Tapagem e de Mãe Cué, passam pelo o Abuí. Como diz o Sr. Nilo: “lá é que estão meus familiares. Olha esse moreno aí é meu parente chegado, filho de uma prima legítima minha”. Refere-se a Carlos Printes. É primo “legítimo” de Dona Rosa Colé. Dona Raquel, também, tem vários parentes no Abuí. “Tem uma irmã lá, duas irmãs, uma é mulher do Miro e outra é mulher do Leonel.” As narrativas desses depoentes evidenciam o quanto as histórias dessas comunidades estão entrelaçadas, em particular com a Tapagem. TAPAGEM Mais uma vez recorro aos viajantes do século XIX para chegar a Tapagem. Em 1875, João Barbosa Rodrigues chegou até as primeiras cachoeiras. Durante a subida do rio, esteve em casa de mocambeiros estabelecidos na Tapagem: Ahi fundeado ainda cedo, fui à terra à casa de uns mocambistas que ahi moravam; e que me confirmaram as informações que já tinha e deram-me outras, para as quaes sua longa prática e estada nesse rio, de 35 anos , os habilitava. [...] Personificado vi ahi o amor da liberdade. Dous pretos, dous irmãos, Antônio e Miguel, esqueletos ambulantes, com a neve de mais de 70 anos de existência sobre a cabeça, nús trabalhando sem poder, arrastando os perigos de travessias de cachoeiras, 51 sempre sobressaltados, preferindo a vida infeliz que passa, ao socego e descanço de que são merecedores, debaixo do poder de seu senhor. Aconselhando-os que voltassem ao seio da família que abandonaram, que garantia-lhes obter a sua liberdade, responderam-me antes a vida animal em liberdade, do que o bem estar no cativeiro. Descrentes, pela vida sempre de enganos que passam, no trato com os regatões, não acreditaram na promessa que lhes fiz Rodrigues, 1875: 20. A resposta dada por esses mocambeiros expressa o significado dos mocambos: a liberdade, contrapondo-se ao cativeiro que para Barbosa Rodrigues representava o bem-estar. Aqueles quilombolas sabiam o real sentido do que era ser cativo. Como qualquer “animal”, preferiam viver livres a voltar para a família que abandonaram, que os escravizava. Os registros de Barbosa revelam detalhes significativos quanto à antiguidade desses mocambos e à prática do comércio com os regatões, que possibilitava aos negros “ter tudo quanto precisa inclusive fazenda, sal, pólvora e armas”. E com certeza as informações de que necessitavam sobre a movimentação na cidade, no que se refere à organização das diligências. “Dizendo adeus aos velhos mocambistas, segui viagem”, concluindo assim a sua visita àquela comunidade quilombola. Outro visitante que esteve na Tapagem no século XIX e deixou preciosas informações foi O. Derby: Nós fomos bastante felizes em ter conseguido os serviços de um bom rapaz, chamado Rufino, que vivia no lago da Tapagem e não só serviu de guia mas também obteve em nosso favor a boa vontade de outros, ou antes impediu que fugissem de nós, pois não parecem dispostos a cometer violências, muito pelo contrário, ansiosos por conservar a boa reputação a este respeito. Durante a nossa estada entre eles mostravam-se ansiosos por que nos não acontecesse 52 qualquer acidente, do qual lhes pudesse provir censura. Menciono, de propósito, este fato , porque comumente representam-se os quilombolas como classe perigosa, de ladrões, violentos e preguiçosos, e nós achamos o contrário quietos, de bom coração e industriosos como o resto da gente do Amazonas. [...] O número de quilombolas está continuamente crescendo com os nascimentos e com a chegada de novos fugitivos, e atualmente devem contar muitas centenas d’eles no Trombetas e no Cuminá. Eles têm em Conceição uma capelinha e mostram com muito orgulho santos feitos do âmago dos troncos de palmeiras. Celebram os dias santificados com toda a pompa possível, e um padre, que penetrou no quilombo, há alguns anos passados, foi recebido com entusiasmo. Cultivam muito fumo, que d’antes era muito procurado passando ser o melhor do Amazonas, mas n’estes últimos anos tem decaído do conceito que era tido Derby, 1897-1898: 37. No final do século XIX passaram também por ali os Coudreau (Henry e sua mulher Octavie), que não guardaram uma boa impressão dos quilombolas que encontraram no rio Trombetas, assim como no Curuá, Erepecurú e mesmo na Guina Francesa e no atual Suriname. Seja entre os Bonis ou os Boches de Guiana Francesa e Holandesa, ou entre os mocambeiros de Chouna ou de Ouraraip na Guiana Inglesa, ou naqueles do Curuá [...] se via em toda parte escravos fugitivos apresentando as mesmas características: baixeza, mentira, traição com relação ao branco. Ele se apresentava insolente e tirânico em relação ao índio, enfim, entre eles a regressão rápida em direção aos costumes mais primitivos dos negros tais como aqueles das ilhas de Fidji, Daomé e de Uganda onde, também, se encontrava essa curiosa espécie Coudreau 1901, 130. carlos penteado Por fim, temos as informações de Adolpho Ducke, que em seu relatório: “Explorações Scientíficas no Estado do Pará”, afirma que no Trombetas: Os últimos moradores são os da “Colônia”, ao pé da cachoeira Porteira, lugar lindo como paisagem porém infeccionado por febres perigosíssimas; mais em baixo, no Arrozal e na Tapaginha, existem espalhados outros d’estes descendentes do antigo “mucambo” (colônia de escravos fugidos de Óbidos, Santarém, etc.) do Maravilha, que ficava um pouco ao norte do equador, entre as cachoeiras do Caspacouro e da Mina. Com a falta de higiene n’uma região insalubre, as moléstias dizimaram horrivelmente os mucambeiros, que de mais de mil estão reduzidos a poucas dúzias de indivíduos; da atual geração, muitos exercem o ofício de “cachoeirista”, sendo eles quase indispensáveis para uma viagem em qualquer um dos afluentes encachoeirados do Trombetas. Há entre eles homens fortes e sadios que gozam d’essa perfeita imunidade contra o paludismo, que às vezes se observa na raça africana Ducke, 1909: 159-160. Os “mocambistas”, conhecidos por Barbosa Rodrigues e Derby, hoje fazem parte das lembranças dos moradores da Tapagem, e do Abuí. Dona Maria Rosa Xavier Cardoso, natural da Tapagem, 76 anos, filha de Felipe Francisco Xavier e Maria Tereza Cordeiro diz: Eles nasceram aqui na Tapagem. A mamãe quando morreu ela já estava com uns 80 anos e o papai também já estava caminhando pros 90 anos. O pessoal daqui que eu conheci, olha justamente foi a minha vó, Maria Helena, a Jinfonsia, e o avô, Manoel Francisco. Ele era do Mocambo. Já o papai contando, conversando, ele foi pra lá pra cachoeira. Pra lá ele se acompanhou com o Vieira, eles eram tudo parente. Eles, iam pra lá com os índios , dizem que pra lá eles comiam aquelas comidas que aqueles índios preparavam. Depois ele baixou, veio embora, até 54 ele foi casado com a mãe do Antônio Gomes. Ela era do Mocambo também. Era de lá de cima. Nasceram acho que na Porteira, foi pra lá também, tudo pra lá. Da escravidão quem contava era a avó, chamada Maria Helena. Ela contava, do cativeiro, eles vieram da peleja da escravidão. O irmão dela, era Felipe. Eles mandavam eles remarem, “rema Felipe” aí ele dizia assim: “Tá seguro meu senhô”. Ele tinha cada custo de braço, aí metia o remo n’ água chega espocava lá atrás (risos). Dona Rosa e o Sr. Pedro não ouviram falar dos irmãos Antônio e Miguel, encontrados por Derby. Quanto a Rufino: “Eu ouvi falar sim, essa cabeceira que vai aí, até que se chama Rufino, por que esse Rufino ele morava pra’í”. Ali as festas de ramada eram as mais significativas. Diz Dona Rosa O protetor do santo era o papai. São Sebastião. Tinha uma festa ali das velhas que nós chamava a Jinfonsa. Ali de onde é a congregação, na Água Fria. Elas eram Mocambeiras também, elas festejavam lá a Santíssima Trindade, senhora da Conceição, eles festejavam, Divino Espírito Santo. Era muito linda a festa das velhas, preparavam tudo, um bocado de biscoito que dava gosto da gente comê. Era a Ana, tinha a Esméria, a Benedita, tinha a Luzia e a Inês. A fala de D. Rosa é interessante ao mostrar as imagens de são Sebastião que estão lá na capela. Há uma de gesso, grande, doada por Gabriel Guerreiro, político de Oriximiná, e outra pequena “mirradinha”, feita de madeira, esculpida pelos antigos. “Nós festejamos essa”, refere-se à imagem menor, “veio do tempo dos antigos.” É nessa imagem que está o sentido de ancestralidade. Ali, também, os moradores guardam na memória os impactos e os conflitos advindos com a chegada de “organismos” como IBDF (Ibama) e Eletronorte. O Sr. Pedro Viana da Cruz – Pedro Barulho, 60 anos, nascido no Arrozal –, em um depoimento, por ocasião do IV Encontro Raízes Negras realizado na Tapagem em julho de 1992, expressou bem o que se pode considerar sentimento de todas as comunidades do Alto Trombetas, que vivenciaram momentos desagradáveis por ocasião da chegada das políticas governamentais, no tocante ao desenvolvimento e preservação do meio ambiente, propugnada para aquela área. Diz ele: No tempo que me criei, a vida era tranquila, ninguém tinha perseguição, e vivia muito bem, sem companhia hidrelétrica, sem essas outras consequências que está acontecendo agora no meio de nós. Meus pais me contavam certos passados deles que eles viviam. Contavam também de nossos antepassados que eram escravos, isto já passou, ontem, já ficou. Só vou falar de hoje. Mas a gente vivia uma vida boa, ninguém tinha perseguição nenhuma. Eu estou com 59 anos, depois de eu estar com 40 anos, mais ou menos, começou a aparecer no nosso município, esse tipo de exploração, de coisas ruins pra nós. Primeiro chegou a onça que foi a mineração Rio do Norte; depois chegou o tigre, que foi a Cruz Alta [à época, estava para ser instalada a Alcoa]; finalmente chegou, tá quereno chegá o leão que é o mais brabo, que é a Eletronorte, quereno formar essa grande barragem. E ainda tem outro mais forte a cascavel, que foi o Ibama que chegou no nosso meio. Em razão do processo de desocupação da área da reserva biológica, houve um aumento populacional significativo da comunidade do Abuí, para onde havia muito tempo tinham deslocado antigos moradores da Tapagem, juntando-se a outros procedentes das cachoeiras e ainda aqueles que foram expulsos do Jacaré. ABUÍ Maximiano de Souza, em 1855, na expedição que comandou para destruir o Mocambo Maravilha, diz: “Da foz do rio Arepecú, segui em marcha forçada até o lago Jacaré, onde fiz acampar a força por me dizer o capitão-do-matto existir nos conturnos d’aquelle lago um mucambo. Sem perder tempo fis uma força de 40 praças de reforço dos índios mundurucu, voltando dessa exploração de 4 dias sem resultado satisfatório.” Evidentemente que os mocambeiros haviam fugido. É bom lembrar que Maximiano não conseguiu trazer preso nenhum quilombola do Trombetas (Souza, 1875). Conforme Derby: “No lago do Jacaré começa a parte do Trombetas, percorrida no tempo da safra da castanha por embarcações a vapor e visitada por comerciantes, sendo porém os moradores até Oriximiná muito escassos. Este lago consiste de dois braços unidos perto da embocadura, estendendo-se um d’eles rio acima até perto do lago de Abuí e outro para baixo em direção as cabeceiras do Arapicú” (Derby, 1897-1898: 373). Segundo Ducke, o lago do Jacaré: É o último dos grandes lagos do Trombetas, d’ali até a cachoeira Porteira há somente lagos menores, porém as margens do rio continuam baixas e com a mesma vegetação monótona. Os “taboleiros”, praias altas de areia grossa amarelada, são frequentados pelas tartarugas do Amazonas, mantendo a intendência municipal de Óbidos um “fiscal da praia” para obstar à demasiada matança destes animais utilíssimos e à destruição dos ovos. Os poucos moradores d’este trecho do rio são os restos dos mucambeiros e seus descendentes, hoje talvez umas trinta pessoas Ducke, 1909: 166-167. É imprescindível falar no Jacaré, para posteriormente chegar ao Abuí. Muitas famílias desse lago se juntaram às que estavam no Paraná e Lago do Abuí, como a de Argemiro Vieira dos Santos, 72 anos, neto de Conceição José e Maria do Espírito Santo. Todos nascidos nos altos Campiche e Turuna. Eram mocambeiros, cheguei a conhecê. Contavam do tempo que vieram corrido da escravidão por aí. Eles correram e foram se assituá aí pro rio. Eu nasci lá acima da cachoeira Porteira, num lugar pro nome Cachorro. A minha família 55 é só negro cruzado com índio. Porque meus tios não tinha mulhé negra pra eles cruzarem, eles cruzaram com índias. Eu tenho muito parente índio. Depois do Cachorro, meu pai veio embora aqui pra Tapagem, vim com oito anos. Ele acabou de criar nós aí e minha avó ficou lá na cachoeira Porteira, lá ela se acabou. Printes. Eu conheci o meu avô materno, era Felipe Xavier Felipe que contava que eles ficavam trabalhando, também, por essas cachoeiras, iam pra lá ficavam muitos tempos sem poder vir pra cá, pra onde eles começaram a vida deles, né. Por todos esses martírios eles passavam. Eles contavam essas história. Para informar quando veio para o Abuí, vira para Carlos Printes e pergunta: Os deslocamentos espaciais dos moradores dessa região, como se vê, ocorreram fundamentalmente por duas razões: a busca de melhor espaço para trabalhar e a expulsão, motivada por interesses externos e alheios às suas realidades. Nas falas do Sr. Rafael Printes, 81 anos, e de Dona Rosa Colé, 72 anos, encerramos nossa viagem por esses canteiros de memórias. Em suas narrativas encontramos os últimos, ou primeiros, ramos dessa grande árvore, formada pelas comunidades mocambeiras do Alto Trombetas. Parente, se não está lembrando de quando jogaram nós do Jacaré? Que ano foi? Foi em 80? Quem jogou nós foi um tal de Gringo. Nós morava lá então, a gente conhecia aquilo lá como terreno de um tal de Raimundo Costa Lima. Depois ele morreu aí ficou com a viúva dele, com a filha dele, e casou com um português de nome José Machado e esse Zé Machado vendeu essa terra para um gringo. Diz que o Ibama comprou essa terra e foram desapropriaram sem direito a nada. Eu recebi pelo menos a indenização que deram, foi de dois mil cruzeiro, naquele tempo, e hoje em dia num dá nem pra comprá uma caixa de fósforo. Tinha 25 famílias, que morava lá dentro. Essas 25 famílias forma expulsas de lá. Tem eu aqui, tem um senhor por nome Manduca, tem lá pro Oriximiná, pro Capintuba, no Cuminá, pelo Moura. Outra moradora do Paranã é Maria Cira Cordeiro, 57 anos, filha de Martinho Floriano Printes e Maria Rosa Cordeiro. O pai morreu com 88 anos e a mãe ainda vive, mora na Tapagem, onde ela também nasceu. Ela recorda passagens de narrativas que ouviu: Eu vim pra cá pra gente trabalhar. A gente trabalhava lá na comunidade da Tapagem, aí o meu marido resolveu que a gente viesse mora pra cá que tinha mais espaço, bom da gente trabalhar. É com a conclusão da escola foi que me nomearam para professora, e fiquemos trabalhando por aqui na lavoura, roça, castanha às vezes tirava madeira, mas isso não era todo o tempo. Olha tinha o meu pai, o meu avô chamado Martinho 56 Rafael é filho de José Viana e Sebastiana Printes do Carmo. Seus avós paternos eram Miguel Viana e Bibiana Viana; e maternos Francisca Maria do Carmo e Rafael Printes do Carmo. Todos eram “mocambeiros do Turuna; depois baixaram para o Arroizá (Arrozal) e Nova Amizade”. Segundo Rafael sua mãe morreu com 60 anos, na década de 1950. Dona Rosa Colé, nasceu em Mãe Cué, filha de Loriana e neta de Joana Joaquina do Livramento (Joaninha) que era do Mocambo do Turuna. Em seus depoimentos, o Sr. Rafael e Dona Rosa trazem à tona a saga dos mocambeiros que se estabeleceram no rio grande: Havia mocambeiros na Macaxeira, sob o nome Atanázio, do Atanázio foram pro Maravilha daí pro Turuna e deram com piché deles (dos brancos), de novo foram pra Poana, onde se aguentaram lá, por que o Poana fica numa parage que, numa ilha grande, não encosta nem pro lado nem pra outro e eles não podiam chegar lá. Ai foram indo até que chegou um tempo que eles vinheram descendo aos poucos. De lá eles vieram pararam no boca do Cachorro, por nome Croá, de lá vieram aí pro Boto, ai fizeram um acampamento grande aí no Boto, vieram já pra Colônia, outros já vieram pro Macaxeira que tinha ai um igarapé, onde o primeiro Atanásio fugiu. Ele voltou de novo pra’í e os outros vieram pra Tapagem, pra Colônia, eles foram se colocando já aí na margem do rio. Nesse processo de fuga, e deslocamentos constantes, é ressaltada a proeza de Basílio, também lembrada por narradores anteriores. “[Ele] andava dentro de um tacho, daí prá cima esse Basílio quando acabava o rancho dele, aí quem vai buscar o Basílio por que o Basílio era um negro forrado de muitas orações, uma oração bem maior é são João aí ele vinham embora. Era o meu bisavô, o Basílio”, diz D. Rosa. Outros atores sociais dessa história vão aparecendo como Rufino, que evidentemente não chegaram a conhecer, mas sabem que: “Rufino, também, um negro velho aí, que até tem ali um nome do lugar por nome Rufino ai ele morava lá esse Rufino, era um preto velho também”. O mesmo se refere ao mocambeiro Ambrózio, sobre o qual Dona Rosa Colé faz menções interessantes. Diz ela: Ambrózio era da família da velha Inês, que era irmã do Boaventura, era dessa família que o Ambrózio era. Depois que eles vieram, que subiro, a moradia deles era aí pro lago do Aripicu. Eles voltaram quando baixaram do Mocambo pro Erepecu. Sim foi, por que teve muito que subiro e foram embora, e outros entraro prá o Eripecuru, e outros subiro entraram aí pro lado da Tapagem. Esse Ambrózio com a turma dele entraro pra o Eripecu. Tem uma parage lá e fizeram o acampamento pra lá, fica longe. Lá tem um castanhalzinho. Já os galhos que já estavam por aqui era Miguel Nunes, pai do Didico. É dessa família que ele era o velho Ambrózio. Ao ver a foto do “velho Ricardo e sua consorte” o Sr. Rafael e Dona Rosa afirmaram quase que uníssonos: “Careira. Ele era também dos fugitivos também o pai dele também. O pai dele era Sebastião Carreira. A mulher dele chamava Tarcíla”. Interessante é o narrar destes sobre a história que ouviram sobre os Coudreau que passaram por ali na virada do século XIX para o XX. Dona Rosa diz: A minha mãe mi contava de quando eles vieram. Ela ainda era criança, mais já se lembrava de tudo mais ou menos do que acontecia. Quando ela veio, quando chegou ai foi no tempo que o marido dela adoeceu e morreu, ai enterraram lá em baixo da Tapagem; era um lugar grande e poucos anos vieram buscar o cadáver dele aí. Na hora da despedida que os antigos mais, o velho Chico Adão, Antônio e os outros velhos, Joana Amância, esses velhos, Sofia, o Manoel Francisco, são as pessoas que mais ou menos conversavam com eles. E até hoje ainda vem aqui e acolá ainda querem ver aí, ver aonde era a cova dele. Indagados sobre a Comissão de Demarcação de Limites, o Sr. Rafael todo animado, vai informando. Pois é, em 1934 entrou a comissão de limite aqui e ajuntando alguns moradores, rapazes, daqui pra trabalhá. Daqui trabalhou Antônio Cordeiro da Silva, Marcolino Lima dos Santos, Miguel Viana, Raimundo Carlos, o pai do Valério, né? Zé Marcelo, eles trabalharam na comissão de limites. Na época, eu estava com 14 anos, trabalhei, mas assim encostado, não me fichei porque eu estava de menor. Trabalhava assim, fazia viagem na cachoeira com eles, essas coisas assim lá. Dos maiorais, conheci primeiro o comandante Brás, segundo o comandante Prejocam, terceiro major Santana; aí Gil, Carlos, são esses cinco. O Sr. Rafael e Dona Rosa casaram-se em 1945. Nessa ocasião moravam na Tapagem e em 1965, se mudaram para o Abuí, onde já viviam as primeiras famílias que haviam se estabelecidas ali. “Eram: o tio dela, o Zé Bernardino, o Leocardio Xavier, Bijoga, Davi com a Inácia a minha tia, também já estavam”. Estabeleceram-se no Abuí, por quê: 57 Era uma terra boa de primeiro... Agora, a terra do Abuí tá ruim que não dá nada, e nós viemos pra cá se colocar aqui, se coloquemos ali no ramo, pra lá aonde está a Madalena; nós paremo, fundemos essa casa aqui. Eu trabalhava em lavoura; já tive muita roça, milho, bananal, essas coisas. Com castanha, naquele tempo até com cacau eu trabalhava. [Eram seus aviadores] Costa Lima, no começo, Manoel Costa. Costa Lima era um Português, o Suza, o Francisco Sousa, o Duca. Os Guerreiro. José Gabriel Guerreiro era o que trabalhava mais pra cá; Ele era patrão e era prefeito. Chegou também os regatão, chegou lá com alguma mercadoriazinha, já trocando com eles, a troca dessas benfeitorias deles e também da produção da castanha e outras coisas, mais cumaru, e outras coisas. Bem aí eles vieram e aí foram dizeno “vocês são meus freguês”. Aí eles começaram a comprar terra no nome dos pretos, que só quem compravam terra era os negros, eles compravam a terra e levava para Belém e chegava em Belém, trazia o documento de vocês, dizia: “Olha tá aqui o documento, agora eu quero pra passá em branco que vocês não sabe passá”. Ia embora, e ia colocá o lote da terra no nome dele. E assim foi crescendo, começando a tomá a terra dos negros. Engrupia o negro tudo, pra incentivá, pra explorá mais. Quando foi 60, 62, morreu Zé Machado. Era um português dono do Alto Trombetas. Todo o castanhal pertencia a ele, que foi tomando do meus avós, como até do meu pai. Tomou o castanhal por nome Arroizá [Arrozal], Tapaginha.13 Na fala do Sr. Rafael pode se perceber o sentimento, externado também por outros narradores, a respeito da ameaça constante ao legítimo direito de posse da terra onde secularmente se constituíram essas comunidades. Num primeiro momento a perseguição das expedições punitivas, posteriormente a 13. 58 sujeição, controle e arbitrariedades praticadas pelos regatões, aviadores, mesmo “quando patrões bons” e, finalmente, a ação violenta praticada pelos órgãos governamentais em particular nos anos 1970. Todo esse passado leva esses descendentes dos mocambeiros a terem no “tempo dos avós”, um tempo de fartura, de bondade e perceberem o quilombo como espaço de liberdade. Um sentimento bem vivo na fala de D. Maria Francisca dos Santos (Dona Popó), nascida no Alto Trombetas, e que por ocasião do IV Encontro Raízes Negras estava com 81 anos. Diz ela: O que eu lamento e fico sentida é de ver nossa mesa tomada pelos outros, e nós ficamos olhando com fome sem podê comê. Isso eu lamento muito. Que no tempo dos meus avós, que eu me criei, isso aqui tudo era liberto, nós não tinha preocupação: ah! Não tem comida, pega um peixe, pega uma tartaruga e nós vamos comê. Hoje em dia, nós temos saudade. Se nós pega uma tartaruga, nós temo que comê escondido, senão vamo preso, vamo surrado, aqui dentro de nossa terra, tenho bastante saudade do tempo de liberdade, tempo que passou. A fala de Dona Maria Francisca dá uma dimensão da permanência de uma luta pela liberdade que secularmente se coloca para aquelas comunidades negras do Trombetas. Uma situação que vem sendo revertida sem, contudo, arrefecer os ânimos da luta para libertar a terra e legitimar a sua posse definitiva. CONSIDERAÇÕES FINAIS. NOVAS LUTAS: NA TERRA LIBERTA, O DIREITO DE SER LIVRE No mundo da floresta os quilombolas do Trombetas praticam o extrativismo, tecem novas relações com o meio ambiente e constroem seus espaços, seus territórios e suas identidades de afro-amazônicas que juntos aos caboclos, com os quais se Entrevista com Rafael Printes, realizada durante o IV Encontro Raízes Negras, Tapagem. confundem e são confundidos, e os índios, outrora inimigos, tornam-se povos da floresta, frente ao sulista, também chamados de paulista, e em especial o capitalista. Este tem a terra e a natureza como mercadorias, beneficiado pela política desenvolvimentista dos anos 1970, na ditadura militar. Os dominantes impõem novas formas de luta e enfrentamentos para esses sujeitos, que mesmo de forma separada e estratégias distintas enfrentaram e enfrentam o mesmo inimigo – o Estado e o grande capital. As áreas das terras quilombolas foram atingidas diretamente pelas políticas governamentais implementadas pelo governo brasileiro, propugnando um desenvolvimento para a Amazônia, provocando fortes impactos ambientais e tensões sociais. A ideia de progresso difundida nos anos 1970 passa a ser contestada de forma incisiva, por setores da sociedade que procuram contribuir com o combate às imensas desigualdades sociais, e que se mostram comprometidos com interesses sociais, isto é, dos que trabalham na terra. A partir de determinados discursos, o inferno verde se transforma, agora, num paraíso que deve ser preservado. Ali, configurou-se uma frente capitalista, amparada por incentivos fiscais, financiamentos a baixos juros e um aparato policialesco, que garantiam a implantação de grandes projetos: agropastoris, madeireiro e, em especial, minerador, sobrepondo territórios indígenas e quilombolas. Povos que tinham, e tem, em comum, as atividades extrativistas, uma relação quase harmoniosa com a natureza – seus ganhos saem da pele e “sangue” que cobre a terra, a floresta e as águas dos rios e lagos. Nesse contexto, a expansão capitalista exige necessariamente que se liberem terras, de uso comum, ao mercado e à apropriação individual, provocando transformação radical das estruturas que condicionam a posse e uso. Assim, hoje recuperar o passado tem um duplo sentido: afirmação de uma identidade e legitimação de uma luta pela titulação da posse da terra. Nesse sentido, as práticas culturais, por serem lugares de memórias, constituem os pilares do ser remanescente, ser mocambeiro e o sentido de pertença. Na relação com a terra está outra marca da ancestralidade desses descendentes de quilombolas. Manter a terra liberta tornou-se a representação do direito de ser livre e de posse do espaço vivido. Na constituição dos mocambos estava a concretização da liberdade da escravidão e na terra liberta está a concretude das comunidades negras remanescentes dos mocambeiros. Esse movimento tem ganhado força consubstancial através da organização de associações dos quilombolas, que têm conseguido o título de posse das terras ocupadas há mais de um século por aqueles que forjaram na luta o direito à liberdade. O sentimento de pertença, de lutar pela posse e titulação definitiva de sua terra, amparado em dispositivos legais – como o artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal, de 1988, e o artigo 322, da Constituição do Estado do Pará – e, sobretudo, na ancestralidade dessas comunidades, na historicidade de suas lutas frente às diferentes formas de repressão, em particular aquelas praticadas pelo Estado nas décadas de 1980, levou essas comunidades a se organizar na luta por seus direitos como descendentes de quilombolas, de ex-escravos, e, em especial, com cidadãos. Como resultado dessa luta, em 1995 foi concedido o primeiro título de posse de terra a uma comunidade quilombola, no Brasil, a de Boa vista, no rio Trombetas. Em 1996 foi a vez das comunidades negras do Pacoval e Água Fria receberem os títulos. Hoje, naquela região somam-se dez títulos de posse coletiva da terra concedidos, atendendo as reivindicações de centenas de comunidades afro-amazônicas, descendentes dos quilombos que ali se formaram no século XIX. Todavia, outros desafios se colocam, há outros direitos a serem conquistados, e novos confrontos se delineiam com a chegada de novos sujeitos àqueles espaços: os capitalistas. Estes vivem da especulação fundiária e do uso desordenado das florestas. Está em curso um grande desmatamento para venda, às vezes ilegal, da madeira; implementação da pecuária em larga escala; 59 plantio da soja e, em menor escala, de arroz, principalmente na região de Santarém e Alenquer, cultivos que até então não faziam parte daquele cenário, hoje brutalmente transformado pelo uso indevido das áreas de várzeas, grandes danos ambientais, e o consequente encolhimento das terras dos mocambeiros que ali vivem há mais de um século. Um processo de ocupação desordenado e desastroso, tanto para as populações tradicionais quanto para a natureza, mas que retrata bem a lógica desses novos migrantes em relação ao meio ambiente, ao uso e valor da terra, amparados pelas políticas de incentivos governamentais, em todas as esferas. Qualquer medida de ordem administrativa que possa vir a incidir sobre as comunidades negras dos rios Trombetas, Erepecuru e Cuminá, por órgãos dos governos federais, estaduais e municipais; em particular por qualquer empresa mineradora, bem como por projetos hidroelétricos, deve ser precedida de consultas a suas associações representativas. Na atualidade, vivem-se momentos em que se confrontam duas concepções de valor da terra: terra de trabalho, sentimento de nosso, versus terra de negócio, especulação fundiária, implicando novas formas de organização e de enfrentamento por aqueles que se sentem ameaçados pelos “de fora”. Momentos em que se afirma a identidade negra, quilombola, afro-amazônica, frente ao outro, que os vê com olhares de estranhamentos. BIBLIOGRAFIA São essas lutas que nos levam a entender que a percepção identitária desses grupos se dá a partir dos próprios grupos, na busca de suas raízes, dos “troncos velhos”, dos quais são os galhos, os ramos. Ramos impregnados de historicidades, práticas e orientações culturais diversas, muitas vezes recriadas, e de sentimentos e uma relação com a terra, que lhes permitem se perceberem mocambeiros, camponês, indígenas, seringueiros, Povos da Floresta. Na busca das raízes está a afirmação de suas identidades e de pertenças ao território, no qual estão fincadas. Nesse sentido – do Mocambo “paragem deserdada, escondida”, às comunidades de hoje, “lugar de fartura e trabalho” –, o caminho percorrido pelos negros foi de criação de direitos. O direito sobre a terra, historicamente conquistado. O direito à sua especificidade negra, raiz profunda de sua cultura. O direito de reproduzir seu modo de vida agrícola e extrativo, sobre as bases de territorialidade conquistada; com manejo ecológico traduzido pela preservação atestado nos 200 anos de existência no lugar. 60 Todavia, para esses negros, a afirmação de suas fronteiras étnicas e territoriais passa por desafios novos e novos enfrentamentos se colocam. Pois assim, como o tempo não para, o circulo não se fecha, a história não tem fim. É assim a História. AGUIAR, Braz Dias de. Trabalhos da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites - Primeira Divisão - Nas Fronteiras da Venezuela e Guianas Britânica e Neerlandesa, de 1930 a 1940. In: Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia. Florianópolis, 1940. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1942. ASSOCIAÇÃO CULTURAL OBIDENSE – ACOB. Câmara. Livro de Acta da Sessão Ordinária de 17-17-1871. Óbidos, 1871. Baixo Amazonas, 08-01-1876. 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Nº 1014, 2-12-1894. 61 carlos penteado HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES DA ESCRAVIDÃO NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO ARIRAMBA Luciana Gonçalves de Carvalho INTRODUÇÃO A ariramba é uma ave de cerca de 20 cm de comprimento, que possui um bico longo e fino, com o qual faz ninhos, cavando buracos profundos nos barrancos das margens do igarapé que leva seu nome, e serve de principal via de acesso à comunidade remanescente de quilombo Ariramba. Tal como a ave, que protege os ovos e as crias nos buracos escondidos, os mocambeiros1 que deram origem à comunidade de Ariramba aprenderam a proteger a si e aos seus nas brenhas das florestas no entorno do rio Cuminá, que banha os municípios de Oriximiná e Óbidos.2 No Ariramba, atualmente, há cerca de 20 famílias,3 mas nem todas vivem ali permanentemente, por diferentes motivos, entre eles a necessidade de enviar os jovens para estudar e/ou buscar trabalho na cidade. Sua população total, portanto, é oscilante em torno de 60 a 100 habitantes. A maioria deles descende do casal Joaquim e Tereza dos Santos Oliveira ou com eles mantém parentesco por afinidade, ou relações estreitas de vizinhança e amizade. Da mesma forma, frequenta a Assembleia de Deus na localidade, como Joaquim. Joaquim e Tereza, por sua vez, são oriundos de famílias de mocambeiros que viviam no rio Cuminá e arredores, em áreas hoje pertencentes ao território quilombola do Erepecuru,4 que faz fronteira com o Ariramba. Com efeito, foi partindo daí que ambos se transferiram para as margens do igarapé Ariramba, 1. 2. 3. 4. 5. 64 dando origem à comunidade nos anos 1970. Muito antes disso, porém, o casal e seus ascendentes iam caçar, pescar, tirar castanha, capturar quelônios e catar ovos ao longo desse igarapé, que era tido como particularmente farto. Ou seja, mesmo antes do estabelecimento de moradias no lugar, os mocambeiros já o ocupavam, entendendo-se por ocupação a “efetiva utilização”, conforme ensinam Acevedo e Castro (1993: 119). As relações entre famílias do Ariramba e do Erepecuru ainda hoje são estreitas. Além da própria situação de fronteira física, moradores de ambos os territórios compartilham florestas, castanhais, rios e lagos de uso comum; casam-se entre si; as crianças estudam juntas na escola da comunidade Boa Vista, já que no Ariramba não há estabelecimento de ensino; frequentam os mesmos postos de saúde nas comunidades de Jauari e Boa Vista. No conjunto, trata-se efetivamente de uma grande extensão de terras ocupadas e trabalhadas por pessoas que mantêm laços consanguíneos, de compadrio, afinidade, sociabilidade e de natureza política, e que compartilham princípios, práticas, modos de vida, histórias e memórias. Apesar desses laços, os territórios trilharam caminhos opostos no que tange ao processo de regularização fundiária preconizado pela Constituição Federal de 1988, que criou direitos territoriais específicos para os remanescentes de quilombo.5 No Ariramba, os moradores rejeitaram inicialmente a proposta de criação da terra coletiva de quilombo, preferindo não participar do processo Eram referidos como mocambeiros os negros que viviam nos vários mocambos existentes no Baixo Amazonas, nos séculos XIX e XX. Pelo menos até a definição de “comunidades remanescentes de quilombos” a partir da Constituição Federal de 1988, os termos “mocambo” e “mocambeiros” tiveram uso mais frequente que “quilombo” e “quilombola” na região, e designavam não apenas os grupamentos de escravos negros fugidos, mas também os libertos e descendentes nascidos livres, estendendo-se até a brancos e caboclos igualmente “amocambados”. Em atenção à recorrência desses termos nos relatos dos remanescentes, mantêm-se os mesmos neste texto. Embora a comunidade do Ariramba pertença ao Município de Óbidos, conforme a divisão geopolítica do Estado do Pará, todos os serviços públicos lhe são prestados pela municipalidade de Oriximiná, localidade com a qual efetivamente a comunidade se identifica. Estudo da CPI-SP, de 2005, referencia 16 famílias quilombolas. Relatório de vistoria do Incra, de 2006, menciona 27 famílias quilombolas e 26 não quilombolas. O território Erepecuru compreende 11 comunidades: Pancada, Araçá, Espírito Santo, São Joaquim, Jauari, Boa Vista Cuminá, Santa Rita, Varre Vento, Jarauacá, Acapu e Poço Fundo. O Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) garantiu “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras” o direito de que lhes seja “reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Dispositivos posteriores, em especial o Decreto nº 4.887 de 2003, estabeleceram os procedimentos para regularização dessas terras. Não há condições para explorar o tema aqui, mas sobre ele há muitos trabalhos de vulto [O’Dwyer (2002), Almeida (2002), Arruti (2006), Treccani (2006), Leite (2012), Rios (2007)]. que conduziu à delimitação e à titulação do território quilombola do Erepecuru em 1998. Apenas em 2004 aderiram à proposta de regularização da terra coletiva e, desde então, aguardam a tramitação dos processos abertos junto ao Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra) e ao Instituto de Terras do Pará (Iterpa). Foi justamente nesse contexto que se procedeu à elaboração do Relatório Antropológico que propiciou o início das pesquisas nessa comunidade e no entorno.6 Este texto pretende oferecer uma contribuição aos estudos sobre a ocupação negra no rio Cuminá, do qual o igarapé Ariramba é tributário. Seu objetivo específico é mapear narrativas que esclareçam sobre formas de representação da escravidão nessa localidade, relacionando-as com a trajetória histórica da ocupação. Quiçá, este exercício poderá contribuir para compreender aspectos compartilhados por outras comunidades quilombolas de Oriximiná.7 Diante de parca documentação histórica8 e das possibilidades investigativas abertas pela memória coletiva como representação das relações dinâmicas e dos movimentos dos grupos,9 optou-se por valorizar relatos de vida e narrativas orais variadas como material de pesquisa. Assim, pretendeu-se acessar a memória cujos expedientes revelam as experiências sociais de produção simbólica da “presunção” ou “afirmação” da ancestralidade negra e do passado comum de resistência à escravidão.10 Como sugere Alencar, tal postura metodológica “significa enfrentar muitos desafios, e o principal deles é a profundidade da memória social e a dificuldade encontrada pelos narradores para lembrarem-se dos eventos passados e situá-los cronologicamente” (Alencar, 2009: 183). Ao contrário da história, que na maioria dos casos traz uma visão distante e cristalizada da realidade, a memória coletiva é tomada como “uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, pois não retém do passado senão o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém” (Halbwachs, 1990: 102). Assume-se que os processos coletivos de reconstituição da memória no âmbito das comunidades remanescentes de quilombos são essenciais para a própria criação dessas “comunidades” como algo que supera unidades territoriais, fazendo delas unidades sociopolíticas que se representam para si e para a sociedade abrangente a partir da assunção da identidade quilombola, num movimento de superação do histórico de preconceito e negação de direitos, e de valorização de tradições comuns. São, nesse sentido, processos que criam “comunidades imaginadas”, para usar o termo pelo qual Hall se referiu às nações: “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação” (Hall, 2002: 48). 6. O Relatório Antropológico é uma peça integrante do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) que constitui procedimento obrigatório para a titulação de terras quilombolas pelo Incra. Em suma, ele deve demonstrar como a comunidade se autodetermina e como fundamenta sua proposta de delimitação territorial, a partir de dados históricos, econômicos, sociais, culturais, religiosos, entre outros. O Relatório Antropológico da comunidade do Ariramba foi elaborado em 2012-2013, sob responsabilidade da Ecodimensão, no âmbito de contrato estabelecido com o Incra a partir de processo licitatório. Os dados e relatos ora apresentados foram registrados principalmente durante as pesquisas para esse relatório e complementados em levantamentos posteriores para finalidades diversas. 7. Pesquisas iniciadas em 2013 na Ufopa e no âmbito do Inventário Nacional de Referências Culturais dos Quilombos de Oriximiná, desenvolvido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), permitem vislumbrar semelhanças significativas nos processos vividos pelo conjunto de comunidades remanescentes de quilombos em Oriximiná, sugerindo uma base comum às mais diversas representações da escravidão. 8. O que foi encontrado em arquivos, bibliotecas e paróquias de Óbidos e Oriximiná resume-se a alguns livros de batistério, documentos públicos e registros de compra e venda de escravos, os quais não chegam a possibilitar esclarecimentos específicos sobre a região. 9. Halbwachs (1990) chama a atenção para as interdependências entre memórias individuais e memória coletiva, na medida em que elas se retroalimentam no curso de relações dialéticas, ora complementares ora divergentes, mas sempre implicando referência uma a outra. 10. Aqui se alude ao Artigo 12º do Decreto nº 4.887, que estabelece os critérios de identificação das comunidades remanescentes de quilombos, designando-os como “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. 65 A natureza da representação não elimina o fato de que a ancestralidade negra e o passado escravo estejam frequentemente associados à percepção (por parte dos próprios sujeitos) de uma “identidade imperativa”, ou seja, dotada de um status “superior em relação à maioria dos outros status”, e que “definirá a constelação permissível de status, ou personalidades sociais, que um indivíduo com uma dada identidade pode assumir” (Barth, 2000: 37). De todo modo, a assunção da identidade quilombola não é automaticamente derivada dessa percepção, mas se constrói no interior de embates políticos e, igualmente, nos planos simbólicos da cultura e da representação individual e coletiva. Logo, tal qual a nação, o quilombo não deve ser apenas uma terra ou uma entidade política, “mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural” (Hall, 2002: 49) capaz de unir diferenças. Esse sistema erige-se sobre sentimentos de pertencimento, participação e lealdade ao grupo, os quais contribuem decisivamente para a construção simbólica da comunidade, assim como para sua unificação política. Tratase, no entanto, de um sistema aberto a brechas, vulnerável a desavenças e cisões no interior do grupo, que se distingue internamente em múltiplas camadas de identificação. Porém, no plano da representação coletiva a continuidade e a coesão é que são valorizadas. Emergem das coletividades mitos fundacionais, narrativas sobre o passado e a origem comum situada num tempo ancestral, a ideia de uma essencialidade atemporal que forja tradições e engendra a identidade quilombola ao longo de uma trajetória histórica trilhada coletivamente. OS MOCAMBEIROS E A FORMAÇÃO DA COMUNIDADE DO ARIRAMBA O rio Trombetas e seus afluentes Erepecuru e Cuminá foram destinos privilegiados dos mocambeiros fugidos das senzalas de Santarém, Óbidos, Alenquer, imediações de Belém e até de Macapá, no estado do Amapá. Os mocambos formados em 66 áreas de floresta localizadas acima das cachoeiras no alto curso desses rios, sobretudo no século XIX, deram origem a mais de 30 comunidades autodeterminadas como remanescentes de quilombos existentes hoje no município de Oriximiná. Caracterizadas por imensa diversidade sociocultural e biológica, essas comunidades têm sido investigadas sob diferentes perspectivas por profissionais de áreas tão diversas como Antropologia, História, Geografia, Ecologia, Biologia e Direito, entre outras. Por questões de espaço e foco, ainda que isto contribuísse para melhor compreensão do contexto geral das comunidades e do tema proposto, não se fará aqui uma explanação da rica e complexa trajetória de ocupação dos quilombos de Oriximiná. Para tanto, há leituras obrigatórias de autores como Funes (2000), Acevedo e Castro (1993), Andrade (1995), O’Dwyer (2002) e Salles (2005), de modo que este trabalho se restringirá a uma breve revisão da ocupação negra no rio Cuminá e no seu afluente Ariramba. Muito pouco está sistematizado a respeito da história dos mocambos do Cuminá, devendo-se as notas disponíveis principalmente às viagens científicas e missionárias empreendidas entre fins do século XIX e princípios do seguinte. Menos ainda se encontra sobre a ocupação do igarapé Ariramba, fazendo-se necessário coligir referências e memórias fragmentadas. Um dos primeiros exploradores do rio Cuminá foi o padre Nicolino José Rodrigues de Souza, que registrou impressões de viagem em diários de três expedições realizadas em 1876, 1877 e 1882 com o intuito de alcançar os Campos Gerais e contatar os povos nativos da região. Sobre os negros, o missionário referiu-se à sua presença em fazendas de gado no trecho entre Óbidos e a primeira cachoeira do Cuminá, e revelou que acima dela eles eram os únicos ocupantes do rio. Gonçalves Tocantins, em 1893, seguiu os caminhos do padre a mando do governo do Pará com a missão de “ir aos campos ao sul do Tumucumaque e informar sua importância econômica”, com interesse especial em explorar criação de gado nesses campos. Em sua tarefa contou com ajuda dos “ex-mocambeiros habitantes do Erepecurú”, já estabelecidos como desbravadores da região. Um ano depois, Valente de Couto foi mais uma vez subir o rio Cuminá com o objetivo de abrir uma estrada ligando os campos a Óbidos, “de modo que se pudesse iniciar a criação de gado” conforme recomendação de seu predecessor (Sanchez, 1996: 4). Como os homens de Couto se perderam na mata na volta da expedição, Avelino Oliveira foi enviado pelo governo paraense numa expedição de resgate. Em suas anotações ele referiu o igarapé Ariramba como uma área de castanhais em exploração, ponto estratégico de sua viagem: Esta dirigiu-se primeiramente para o rio Ariramba, subafluente do Erepecurú, por lhe parecer mais razoável acharem-se na sua bacia Valente de Couto e a sua comitiva. De facto, teve a fortuna de recolher uma parte desta, que, reconhecendo o erro de direção de Valente de Couto, se desligara do itinerário seguido por elle, rumando intelligentemente para as zonas dos castanhaes em exploração, onde sabia encontrar recursos Oliveira, 1925: 10. Viajando pelo Cuminá em 1900, O. Coudreau também percorreu o igarapé Ariramba, em companhia de negros mocambeiros a quem imputava castigos e a pecha de preguiçosos, dissimulados, desobedientes e mentirosos. “Não podemos nos fiar aos ensinamentos desses mocambeiros, eles mentem por necessidade, por prazer” – ela escreveu, diante dos insucessos da viagem. O próprio igarapé recebeu comentários pouco elogiosos da viajante, que, acometida por febres, delírios e vômitos, lhe dedicou as piores lembranças: “Àqueles que 11. falarem do Ariramba do Cuminá, eu responderei: ‘o Ariramba! Um belo nome para um igarapé sujo e feio!’” (Coudreau, 1900: 135-136. Tradução da autora). Coudreau nada mencionou a respeito da ocupação desse igarapé, mas observou, referindo-se ao Cuminá, que índios e mocambeiros até então conviviam na área, mas nem sempre de forma pacífica. Ao atingir a Ilha do Garafon, por exemplo, registrou tratar-se do local “onde ocorreu o massacre dos índios Pianocótos11 do Poanna pelos mocambeiros” (Coudreau, 1900: 56). Os moradores atuais do Ariramba pressupõem a anterioridade indígena na área, à qual atribuem a descoberta relativamente frequente de vestígios cerâmicos em seus quintais e roçados: “muito caco de barro, orelha de tacho, de panela de barro. Sempre a gente tirava aquelas caretas”. Entretanto, a presença de povos ameríndios na área é remetida a tempos ancestrais, após os quais se segue um fosso na memória coletiva até os contatos estabelecidos com indígenas já no século XX, conforme lembranças de Tereza Oliveira. Eu conheci muito eles. Quando nós trabalhávamos aqui, eles gostavam muito de vir aqui. Quando Joaquim trabalhava aí para cima, ele se deu a conhecer, depois que eles baixaram aí para a cidade. Aí, quando foi um dia, chegou aquele bando de homem. Aí, aquele monte de índio, um barraco do tamanho quase desse aí ficava cheio deles lá, aí depois foram embora. Eles falavam a língua da gente já. É, mas eles falavam enrolado também, quando eles estavam todos só num grupo, eles falavam a língua deles Entrevista com Tereza Oliveira. Ariramba, 01/12/12. De todo modo, a convivência dos negros com os indígenas na área do Cuminá não perduraria além do século XX. De acordo Segundo Sanchez, os Pianocótos, Rangu-Piquis e Tiriyó (índios karib historicamente constituídos como grupos diversos, mas classificados atualmente como Tiriyó), assim como os Zo’é, teriam sido os ocupantes do interflúvio Erepecuru/Curuá até o século XIX, mas, a partir de então, os mocambeiros teriam adquirido domínio econômico sobre esses rios (Sanchez, 1996: 14). 67 carlos penteado com Joaquim Oliveira, “no Erepecuru eles vinham no barracão, mas de lá houve um desarruma com um pessoal lá, e eles ficaram desconfiados”. Ainda segundo ele, naqueles tempos tampouco havia brancos fixados na área. “Entrar branco para cá? Era só esses Pinheiros, esses pretos velhos aí”. O Ariramba foi sempre explorado pelos Pinheiro. Eles moravam aí fora, mas quando eles queriam pegar peixe com mais facilidade para o puxirum, era para o Ariramba que eles iam. E isso há décadas. Sempre eles iam. Depois, as terras em que eles moravam lá atrás tinham muita água e iam diminuindo [a terra útil]. Eles iam fazendo o roçado deles e a terra ia diminuindo. Aí eles passaram para o Ariramba. Mas o Ariramba já havia sido explorado por eles há muitos anos, nessa forma de buscar comida para fazer puxirum, buscar pescado para o final de semana, para trazerem comida para se alimentarem e faziam sempre isso, todos os irmãos Entrevista com Daniel de Souza. Santarém, 08/12/12. Nas memórias dos mais antigos, os primeiros negros a ocupar o território do Ariramba e arredores foram os Pinheiro, que estabeleceram moradia nas margens do igarapé Murta (um dos limites da área de pretensão da comunidade do Ariramba). O Murta, como chamavam a localidade, ora é lembrado como uma vila – “a vila dos Pinheirozada”, como diz Joaquim Oliveira –, ora como uma ilha, como diz uma descendente. Seja como for, o Murta é sempre representado como um lugar dos “pretos do mocambo”. Pretos do mocambos: essa identificação pejorativa, atribuída por sujeitos externos aos mocambos, perdurou muito além da abolição da escravidão. Em alguma medida, foi incorporada e positivada pelos próprios mocambeiros, que também a utilizaram para se autorrepresentar. Maria de Lourdes Pinheiro, que é conhecida como dona Zênia, nasceu em 1932, quase 50 anos após a Lei Áurea, e ainda ouviu muito essa expressão. Não precisava dificuldade para chamarem esse nome para a gente: preto do mocambo. Era preto, né!? Tudo negro, bem negro de brilhar a pele. Não eram desses que têm uma misturazinha, uns clarinhos que ficam fazendo filho com outros, com outros e outros. Eles eram só negros, não tinha um caboclo! A gente era maltratado. Passava a vida no credo Entrevista com Maria de Lourdes Pinheiro. Oriximiná, 01/03/13. De acordo com dona Zênia, os Pinheiro viveram em mocambos do Erepecuru no século XIX e de lá “foram se espalhando” até povoarem o Murta: “Eram os Pinheiro: Virgíneo Pinheiro da Silva, Maria Pinheiro, Maria Pinheiro de Braga, Filomena Pinheiro, Deunilo Pinheiro... Chegaram lá do Erepecuru! Chegaram, colocaram uma cerca em tudo no Murta, de lá foram se espalhando”. Os processos de migração eram frequentes nas áreas de ocupação negra. Em função da economia baseada no extrativismo, na pesca e na agricultura de subsistência, áreas extensas eram requeridas para a garantia de segurança alimentar das famílias e o não esgotamento dos recursos naturais, especialmente diante do crescimento dos mocambos. Ademais, as próprias condições de reprodução sociocultural dos mocambeiros pareceram estar atreladas à sua capacidade de organizar-se e gerenciar de forma integrada um amplo território. Eu morava lá fora, no Murta, na ilha do Murta. Quando meu pai casou, nós viemos aí pro lago que chamavam de Pai Domingos, logo de lá para cá do Murta. Lá que nós parávamos, mas a morada era lá mesmo na ilha do Murta. E era uma turma [de Pinheiro] que morava lá. Não todos, porque na ilha não deu para acomodar todos! Mas um bocado morava lá, eles eram oito irmãos, meu velho, minha velha, minha avó Braga e meu avô Silvestre Pinheiro. Aí tinha os oito filhos e três filhas, e era assim Entrevista com Maria de Lourdes Pinheiro. Oriximiná, 01/03/13. 69 À medida que foram ocorrendo casamentos a dispersão dos Pinheiro no rio Cuminá e arredores se intensificou, e, nesse ínterim, alguns descendentes se deslocaram para as margens do igarapé Ariramba com o intuito de nelas estabeleceram moradia. Segundo Zênia, o lugar “era deserto” na primeira metade do século XX. Apesar das atividades produtivas regularmente desenvolvidas pelos mocambeiros, ainda não havia residências na área. O marco inicial do processo de ocupação permanente desse afluente do Cuminá foi a união de Geraldo dos Santos Oliveira (irmão de Joaquim Oliveira) com Maria de Lourdes da Cruz Pinheiro (Dona Zênia). Segundo a neta do casal, “eles foram se misturando! O vovô foi para lá e casou com a vovó. Casou com ela e foi aí que começou a mistura. Foi a mistura dos Santos com os Pinheiro”. No entanto, até a década de 1960 as famílias permaneceram no rio Cuminá, residindo nas imediações do igarapé das Cobras, que fica cerca de 500 metros acima da boca do igarapé Ariramba, onde trabalhavam. Tinha ovos que se estragavam! Mas, agora, a gente se quiser comer... Nós enchíamos! Ele [Gervásio, filho de Joaquim] na canoa, eu com a mãe dele, nós botávamos ele na canoa, todo dia, a gente subia da Boa Vista. Nós enchíamos, ele enchia uma caixa, nós enchíamos outra. De ovo! Com a mãe do Gervásio! Nós não morávamos juntos, mas era pertinho uma da outra. Juntas, só numa canoa, nós. Mas toda hora, nós tirávamos era muito! Ela trazia assim uma caixinha cheia, e eu trazia outra. Daí nós íamos tirar castanha, nós íamos lá para o Remédio, íamos lá no Boa Vista, nós ia encostar lá. Nós íamos encostar lá e descíamos para o castanhal, tirar castanha Entrevista com Maria de Lourdes Pinheiro. Oriximiná, 01/03/13). Com o crescimento da família, Joaquim e Tereza se mudaram definitivamente para o Ariramba no início da década de 1970, e ele passou a trabalhar como encarregado de uma fazenda. 70 Sua função era preparar o campo, tratar do gado, plantar roça na área que era do sócio; em troca, recebia metade das novilhas quando o gado procriava. Paralelamente, para o sustento da família, extraía castanha, roçava, pescava e caçava. Nesse tempo, os primeiros Pinheiro que haviam ocupado a área já estavam mortos. Os primeiros moradores daqui já tinham morrido. Moravam ali embaixo. Os primeiros moradores daqui eram: o Virgíneo Pinheiro; mais em cima de onde o meu genro estava, lá era um fulano de tal por nome Antônio Souza. Bom, de lá do Antônio Souza, aqui onde era o Ernandes, era o Manoel Pinheiro que morava aí Entrevista com Joaquim Oliveira. Ariramba, 29/11/12. Na visão de Joaquim e Tereza, foi só depois de sua efetiva instalação na área que a comunidade pôde se desenvolver, principalmente a partir da descendência do casal. Ao mesmo tempo que os Oliveira se espalhavam pelo igarapé Ariramba, as terras do igarapé Murta foram paulatinamente desmembradas e passaram a ser tratadas como “propriedades” de certas famílias – como aconteceu, a propósito, com vastas extensões de terras públicas em Oriximiná (Acevedo & Castro, 1993). Os Pinheiro, que na segunda década do século XX chegaram a ter o “Título Definitivo de Venda de Terras”, logo perderiam o domínio sobre o Murta. Registrado no Cartório Pedro Martins do Único Ofício de Oriximiná, seu título referia-se a terras situadas “à margem direita do rio Murta, tributário do rio Cuminá, com fundos à margem esquerda do rio Ariramba”. Atesta o documento que, “tendo sido aprovada por decisão de 28 de abril de 1926, a medição e discriminação de um lote de terras devolutas... foi o mesmo vendido a Pedro, Virgínio, Benedito, Paulino, Manoel, Francisca e Maria”. O referido lote é descrito como um “polígono irregular... apropriado à indústria extrativa da castanha”. De fato, os antigos lembram ricos castanhais que existiam na área, entre eles o Três Paiol, o Veado e o Bom Prazer, que mais tarde foram destruídos com o avanço da ocupação da área. Cansei de subir lá para pegar castanha. Na propriedade mesmo deles [dos Pinheiro] lá no Murta, o Igarapé do Murta. Trabalhava muita gente lá minha, muita gente de fora, muita gente desconhecida, que trabalhou com nós também. Mas, tirava muita castanha, comboiava aí para fora, botava tudo no paiol Entrevista com Duca Pinheiro. Oriximiná, 01/03/13. A área do Murta foi arrendada para uma rica família local. Mas, segundo Joaquim Oliveira, os arrendatários não teriam pago os devidos impostos, e as terras foram levadas a leilão em Belém. No leilão, foram arrematadas por um membro da mesma família dos arrendatários, garantindo-lhes a continuidade do domínio sobre o Murta. Assim, os novos “proprietários” passaram a controlar a exploração de castanha na área, imputando aos negros a experiência de novas formas de escravidão relacionadas ao sistema do aviamento. A área teve sucessivos “donos” até que, nas últimas décadas do século XX, transformou-se numa fazenda de gado e plantações. O mesmo aconteceu nas margens do igarapé Ariramba. A chegada de pessoas que se intitulavam donas de terras e as sucessivas vendas de benfeitorias se aceleraram nos anos 1980 e 1990, junto com a abertura de campos de pasto nas margens do igarapé. Segundo os antigos moradores, não havia lei ou regra explícita sobre a ocupação das terras: “Simplesmente chegava e: ‘Vou tirar aqui’. Não tinha ninguém! E tiravam!”. O comércio de terras, escamoteado pela venda de benfeitorias, abria cada vez mais o Ariramba para brancos, na maioria vindos de Oriximiná, e para “donos de terras” nas imediações (Trombetas, Salgado, Água Fria, Iripixi, Cuminá). Esses, em regra, não estabeleciam residência na localidade e vislumbravam apenas investimentos em terras para posterior comercialização. Com a crescente ocupação da comunidade por “gente de fora” e sem qualquer tipo de laço com os “pretos do mocambo”, os Oliveira também passaram a adquirir benfeitorias visando a alojar filhos e netos. Joaquim não mediu esforços e investiu economias na compra de lotes de terras ao longo do igarapé, dos quais guarda apenas um recibo. Quando a gente procurou família, o papai teve toda uma preocupação porque, na época... algumas pessoas tentaram vender os lotes para o fazendeiro. Aí o papai, como ele visionou que ia ficar sem terra, que ia ficar difícil se a fazenda estendesse para cá, papai andou comprando os lotes de algumas pessoas que queriam vender, aí onde colocando nós. Porque, se outras pessoas comprassem, por exemplo, se esse fazendeiro comprasse, nós não tínhamos essa ocupação hoje, né!? Entrevista com Gervásio Oliveira. Ariramba, 30/11/12. Os processos de segregação espacial e expulsão dos negros das terras que ocupavam foram particularmente acentuados nas décadas de 1970 e 1980, em todo o rio Trombetas e em seus afluentes Erepecuru e Cuminá. A pressão imposta por grileiros, grandes empresas, projetos desenvolvimentistas e unidades de conservação ameaçava-lhes não só a continuidade nos territórios, mas também o modo de vida tradicional, os princípios, as crenças e as práticas culturais. Nesse contexto, as comunidades remanescentes dos mocambos reagiram por meio da organização política. Apoiadas na Constituição Federal de 1988, 28 comunidades distribuídas numa área de cerca de 665 mil hectares fundaram, em 1989, a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO). Bom, a criação da Associação é que antes o sofrimento dos negros era mais do que existe hoje, né!? Em 1980, com a criação da Reserva Biológica (do Trombetas), expulsaram várias famílias do Lago do Jacaré... E te vira aí! Teve alguns que receberam algumas indenizaçãozinha que eles deram, e outras, segundo o pessoal, que não receberam nada. E aí foi que a gente começou a se organizar. Quando foi em 1988, que o tema da Campanha da Fraternidade falava sobre 71 o negro, aí foi que a gente teve o conhecimento da história do negro, como é que vieram para o Brasil, o sofrimento que eles tinham, tudo isso. A professora Idaliana [professora em Óbidos], junto com outros órgãos e a igreja daqui de Oriximiná e mais a prelazia de Óbidos mobilizaram e organizaram, e saiu o primeiro Encontro Raízes Negras, que aconteceu no Pacoval. Quando a gente veio de lá, veio com o compromisso de organizar o segundo encontro aqui já no Município de Oriximiná... E foi assim que a gente fez. Nisso tudo, quando a gente estava organizando, a gente já tinha o sonho de criar uma associação. Então, quando a gente foi lá pro Jauari, a gente já foi com aquele pensamento, se fosse possível criar uma associação para lutar e defender os negros. Lá no Jauari, lá teve um momento de reunir as comunidades todinhas e fundar... Quando foi no dia 25 a gente veio para cá para Oriximiná para escrever um projeto e escolher uma coordenação provisória, isso em julho de 1989 Entrevista com Carlos Printes. Oriximiná, 03/12/12. Com a organização os quilombolas puderam conhecer melhor e acessar direitos e políticas públicas visando à permanência nos territórios que ocupavam. Assim, a maioria das comunidades identificadas com os mocambos em Oriximiná alinhou-se à entidade, que nasceu com a demanda principal de obter a demarcação e a titulação das terras. Porém, algumas comunidades, igualmente identificadas com os mocambos, hesitaram em relação às propostas da ARQMO e postergaram durante anos a autodeterminação e a assunção da luta pela terra coletiva. Tal foi o caso do Ariramba, cujos moradores aderiram a propostas de titulação “individual” dos lotes, em grande medida influenciados por agentes externos que se opunham ao movimento quilombola. De início, quando a gente estava articulando as comunidades quilombolas pra titular e tal, eles não 72 se identificavam assim. Eles não quiseram, não aceitaram, acharam que não era bom, e ficaram de fora. Eles queriam ser individual. Foi feito um trabalho com eles, reuniões, tentamos explicar. Acontece que nesse tempo a Astro foi criada pra brigarem com nós... Ele falava um bocado de coisa, que isso não prestava, que a gente estava querendo a terra que era para vender para fora. Que se fosse uma área coletiva ninguém ia ser dono; que, se eu tinha uma coisa, todos iam tomar; enfim, ele falava um bocado de coisa que amedrontou muita gente. É! Até as mulheres das pessoas, tudo isso inventavam, que outro ia chegar lá e ia levar, enfim... Entrevista com Carlos Printes. Oriximiná, 03/12/12. A categoria “individual” foi analisada por Sauma a partir de sua pesquisa no território Erepecuru. De acordo com a autora, essa categoria era recorrentemente acionada por aqueles que recusavam a demarcação e titulação de territórios coletivos. A maioria dos “individuais”, segundo ela, vinha de outros municípios e até de outros estados, mas, mesmo entre os “filhos do rio” (autorrepresentação dos quilombolas nativos), também havia “individuais”, os quais eram considerados como “quilombolas que negam a sua coletividade” (Sauma, 2009: 3). Os “individuais” eram justamente o público alvo e apoiador da Associação dos Produtores e Criadores Rurais da Bacia do Rio Trombetas (Astro) que, nas palavras de seu fundador, chegou a ter 2800 sócios oriundos de 43 comunidades de Oriximiná. A associação representava as populações tradicionais ribeirinhas, porque existia um problema entre áreas quilombolas e populações tradicionais ribeirinhas que também viviam na área... Então, nosso objetivo era esse, representar os associados judicialmente e extrajudicialmente no problema fundiário. Na época houve uma disputa muito grande de terra, até pela forma com que foi conduzida a demarcação... Muita gente ficou incrédula e até com medo da situação, então por isso optaram... Esses eram individual Entrevista concedida em 03/12/12, na cidade de Oriximiná. Os argumentos da Astro encontraram eco e se tornaram predominantes no Ariramba, onde os moradores, acreditando que alcançariam os títulos “individuais” de seus terrenos, se recusaram a participar do processo de demarcação e titulação do território quilombola contíguo do Erepecuru. A titulação “individual” parecia-lhes a melhor opção, sobretudo tendo em vista a liberdade de dispor da terra, sem terem que “continuar presos”. Ademais, a própria identidade “quilombola”, remetida ao passado de escravidão, era negada, muito embora se reconhecessem descendentes de negros que haviam sido escravizados: “Mas antes a gente não se chamava quilombo. E até fazia caçoada do pessoal do Jauari” – disse um morador. O pleito de titulação “individual” nunca foi atendido no Ariramba, embora no Erepecuru alguns ocupantes tenham logrado êxito nesse sentido. Entre 2005 e 2006 a Astro foi desativada e os moradores do Ariramba arrependeram-se da decisão de não integrar o processo de titulação da terra coletiva que fora levado a cabo pelos parentes do Erepecuru. Como as pressões externas sobre as áreas de moradia e uso da comunidade aumentaram consideravelmente, passaram a rejeitar a ideia de “ser individual”, enquanto a ideia da coletividade se tornou mais forte. Assim, adquiriu nova dimensão a causa quilombola de defesa da terra e dos recursos a ela associados como um bem coletivo. Essa área que agora nós estamos lutando, tudo nesse mundo aqui era para ser coletivo, mas só que naquele tempo era uma coisa que muitos queriam e muitos não queriam. Muitos queriam que fosse individual, né? É! Isso aqui era para ser coletivo, mas não quiseram Entrevista com Antônio Melo. Ariramba, 29/11/12. O “tempo dos individuais” findou em 2004 com a criação da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo do Ariramba (ACORQA) e com a abertura de processos de regularização fundiária no Incra e no Iterpa. No entanto, o território pleiteado já estava profundamente afetado pelas ocupações abertas por colonos, fazendeiros e invasores. Ademais, em 2006, a criação da Floresta Estadual do Trombetas em sobreposição a áreas de moradia e uso agravaria a situação da comunidade, suscitando novas formas de pensar a experiência da escravidão, mesmo no século XXI. REPRESENTAÇÕES DA ESCRAVIDÃO As experiências da escravidão vividas pelos antepassados dos remanescentes de quilombos de Oriximiná persistem em gestos, memórias, pesadelos e histórias passadas de pais para filhos. Conformam um material simbólico denso para a elaboração de representações de um passado comum, as quais reforçam o sentimento de pertença étnica e alimentam a continuidade das comunidades. O meu pai contava que minha avó dizia que eles vieram do Curuá de Alenquer, eles vieram corrido do tempo da escravidão. Aí eles passaram direto para a cachoeira, o pai e a mãe da minha mãe avó, tudo se esconderam pra lá. Ainda vi minha avó contar que eles iam de lá dessa paragem, do [mocambo] Campiche, eles iam para Óbidos comprar. Eles iam de canoa e, quando escutavam zoada de motor, eles se escondiam. Andavam mais de noite do que de dia Entrevista com Antônia Santos. Jamari, 15/07/12. Confundem-se, nas memórias individuais e nas histórias narradas, marcos temporais que alternam referências ao passado mais distante, em que “os pretos velhos vinham corridos da escravidão”, até o presente de luta pela terra e por outros direitos, passando pelos períodos em que os castanhais eram comandados por supostos donos. As narrativas dos fatos também são marcadas por experiências mágicas da sobrevivência e da reprodução dos negros. 73 Olha, a vovó contava muita coisa. Ela contava para nós que eles andaram, eles andaram corridos um tempo. Aí chegaram, era ela, o marido e duas criancinhas. Quando eles entraram num buraco, chegaram atrás. Para matar. Para matar. Aí, mandado por Deus, fechou o buraco do pau grande, da castanheira, fechou de teia de aranha. Aí um disse: “Mas aqui tem gente”. E o outro disse: “Não, não tem gente aqui, rapaz. Aqui não tem gente, não”. E eles lá dentro escondidos. Foram embora; eles ficaram. No outro dia, eles saíram. Faziam fogo, cavavam buraco na terra, tampavam. Botavam assim para ferver a panela lá, pra não fumaçar longe. Era um tal do dono que vinha. Ele chegava e matava mesmo. Chegava numa maloca aí no Erepecuru, ele matava tudinho, deixava só um índio. Aí: “Vamos embora, onde é a tua maloca?”. Quando chegava perto: “É ali”. Aí ele matava e ia e matava o resto. Matava negro também. Era um perseguidor, matava, matava e matava mesmo. Ainda estava na escravidão Entrevista com Antônio Melo. Ariramba, 29/11/12. O terror imputado pela brutalidade das experiências e memórias do passado escravo é tão grande, que se reproduz nas faces e nos membros dos sujeitos sempre que contam as histórias dos “pretos velhos”, mesmo sem tê-las vivido pessoalmente. Como afirma Pollak, a memória coletiva incorpora os acontecimentos “vividos por tabela”, ou seja, não pelo indivíduo portador da memória, mas pelo grupo ou pela coletividade a que ele sente e julga pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaçotempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da 74 socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada. Pollak, 1992: 201. Os narradores de hoje recusam a possibilidade da experiência objetiva do sofrimento passado pelos antigos. Recusam não só as barbaridades dos castigos, mas também a condição subumana à qual os escravos eram reduzidos, “tipo animal”. Porém, no plano subjetivo da experiência, atravessado pela memória dos fatos “vividos por tabela”, os entrevistados presentificam a barbárie na ação de narrar: encarquilham as mãos, em formato de concha, quando falam do hábito de os senhores porem óleo e acenderem pavios na mão dos negros, para iluminarem seus jantares. “Eu ainda conheci uma senhora que tinha as mãos assim”, contou um senhor de meia idade, de olhos arregalados, enquanto retorcia as mãos para mostrar a degeneração provocada pelo calor das chamas com que a idosa alumiava a mesa de jantar. Eu ouvia, eu ouvia as pessoas, os mais velhos no caso, tio da gente, avô, contavam histórias, barbaridades que a gente achava que a pessoa não ia aguentar. Se fosse com a gente, mesmo a gente criança, se fosse agora a gente não ia suportar, não ia aceitar, ia se revoltar, não ia deixar acontecer aquilo. Por exemplo, a pessoa colocava óleo na mão [dos escravos] e acendia o fogo para ficar alumiando para as pessoas, esse tipo de coisa. Tinha coisas terríveis assim, a gente ficava pensando assim se realmente isso acontecia Entrevista com Domingos Xavier. Oriximiná, 04/12/12. A crueldade desse hábito, e de outros que caracterizam o tratamento dado aos negros escravizados, é resumida na expressão “tempo das candeias”, frequentemente usada pelos remanescentes de quilombos de Oriximiná. Com efeito, essa é uma representação eloquente do período da escravidão, cujos símbolos são lembrados para “reificar a revolta e o quilombo” (Acevedo & Castro, 1993: 2). carlos penteado Segundo Farias Júnior, o “tempo das candeias” opõe-se simbolicamente ao momento histórico mais recente de organização e politização dos “filhos do rio” em defesa de seus direitos: “o primeiro representa a opressão do sistema escravocrata, o segundo é a ruptura com esse sistema” (Farias Jr., 2008: 7). Desenvolvendo seu argumento, o autor reproduz depoimento de Como “o império prometia alforria para os que se apresentassem Era, na verdade, uma história muito engraçada. O pega-pega, para nós, era o capitão do mato que vinha de volta para buscar a gente! E quando a mamãe queria espantar a gente de alguma coisa... [a gente] estava tomando banho no rio e não queria sair para terra, aí a mamãe dizia: ‘Lá vem o pegapega’! Aí a gente corria e se escondia no mato. E isso estava muito presente na minha adolescência, de se esconder no mato. Qualquer coisa que ouvia, o barco vindo, que a gente não sabia o que era, a gente ia se esconder. Essa história, ela está presente e não dá para esquecer. Que eu tenho que repassar isso para o meu filho, do que eu vivi e meus irmãos viveram. Essa história do pega-pega que era exatamente o capitão do mato: “Vamos buscar esses pretos de volta”. E a mamãe ensina isso para a gente, para a gente se esconder, e a gente se escondia mesmo. Isso na década de 60! Na verdade, isso acontecia muito. A escravidão ainda não tinha nem 100 anos [de terminada] e o povo ainda continuava com medo. para a guerra, fazendo vista grossa para os fugidos” (Toral, 1995: Entrevista com Daniel de Souza. Santarém, 08/12/12. uma quilombola do Rio Trombetas que ilustra bem essa oposição: “tem pessoa que é revoltada, tem pessoa desses ribeirinho que num leva mais candeia na mão” (Idem, Ib.). O “tempo do pega-pega” é outra representação usual do período da escravidão. Ao que tudo indica, além de aludir às expedições de recaptura dos mocambeiros, está relacionado ao recrutamento forçado de escravos para servir ao Brasil na Guerra do Paraguai (1864-1870), tendo em vista a insuficiência de militares efetivos. Como o Exército brasileiro carecesse de combatentes, foram criados em 1865 os Corpos de Voluntários da Pátria. Segundo Toral (1995), as oligarquias não mandavam seus filhos para os Corpos de Voluntários, já que contribuíam para os esforços de guerra doando recursos, equipamentos e escravos. Famílias de menos posses alistavam sobrinhos, agregados, parentes mais jovens, e algumas também recorriam à compra de escravos para serem seus substitutos nas fileiras de guerra. O mesmo faziam sociedades patrióticas, conventos e o governo. 292), um contingente de escravos foi recrutado para os campos de batalha.12 Mas, para além da guerra, livres de amarras históricas, as representações do “tempo do pega-pega” escorregam para um passado bem mais recente, estendendo-se por quase cem anos após a libertação de 1888. Na verdade, a escravidão não se 12. 76 suspende com o ato formal; ao contrário, contamina múltiplas dimensões da vida dos negros libertos, condicionando objetiva e subjetivamente sua experiência de liberdade. Relembrando a infância vivida na década de 1960, Daniel Souza, do Erepecuru, resume a visão local do “tempo do pega-pega”. Na prática, mesmo após a libertação, não era prudente confiar em estranhos e principalmente em brancos, porque se acreditava que eles vinham para capturar os negros e escravizá-los novamente. Aproximações deviam ser evitadas, à exceção daquelas com sujeitos com que de praxe os negros comercializavam produtos dos mocambos. O efetivo contingente de negros escravos e libertos que participaram da guerra é tema de debate na historiografia, sofrendo variações na casa do milhar, de acordo com diferentes historiadores. Como afirma Félix Júnior, a esse respeito “a historiografia da guerra é plural” (2011: 398). A mamãe ainda foi desse tempo... Se ela te via, mas quando13 que ela vinha aqui!? Ela corria. Ela corria para o mato, ela pegava o terçadinho e a tabaqueira... e caminho da roça! E, agora, chamasse, mas quem!? Se tinha dois, três filhos, tudo era do mesmo jeito. Já tinham medo, porque faziam medo para gente também. Ficava cobrindo os filhos, eles corriam também, por causa da pega-pega. Da escravidão e da revolta, né?! Não teve uma revolta que entrou aí pegando gente?! É isso que chamam de pega-pega Entrevista com Maria da Cruz Pinheiro. Oriximiná, 02/12/12. pau dentro de um buraco grande, fizeram o fogo lá dentro, fizeram a comida. Nós comemos, terminamos de comer e ficamos lá. Aí a mãe: “Tomara que não chova”. Aí, quando foi de manhã cedo, mamãe jogou água naquele fogo, apagou tudinho. Quando foi de manhã, aí lá vem esse motor atravessando lá para casa. Bom, agora sim. Mamãe: “Lá vem o motor, lá vem o motor!”. E nós, para o mato! E para lá: “tii”, “tii”... Não demora, ela assobiou. E ela assobiava. O assobio que ela assobiava para um, aquele conhecia; quando fosse para outro, aquele dizia: “Olha, mamãe está te chamando” O cuidado que os descendentes de escravos tomavam para Entrevista com Antônio Melo. Ariramba, 29/11/12. proteger a família do “pega-pega” envolveu a criação de códigos para se comunicarem a salvo de eventuais perseguidores, assim como nos mocambos do passado havia sentinelas com olfato e audição aguçados para antecipar possíveis emboscadas, percebendo antes dos demais o cheiro de fumaça e o barulho de embarcações que se aproximassem. Antônio Melo, nascido em 1946, cresceu no Erepecuru fugindo de estranhos, principalmente brancos. Medo, silêncio e desconfiança, traduzidos em forte rejeição a relações com “gente de fora” marcaram as experiências dos remanescentes no século XX. Aprenderam-no com o “pessoal da antiguidade”, como muitas vezes são referidos aqueles que ainda conviveram com ex-escravos. Muitas pessoas idosas, até hoje, temem contatos e evitam ficar de frente ou dirigir o olhar para um interlocutor branco. “Ela não se senta de frente para você, ela vai virando assim, de costas, e conversa, mas não olha para você”, disse um quilombola de Cachoeira Porteira a respeito da avó. Tinha um branco aí para baixo, era fiscal dos menores, das crianças. Ele veio, chegou lá no outro lado da praia. Papai não estava, só estávamos eu, mamãe, nós, a família da mamãe e a família da tia Raimunda. Aí nos se soquemo para o mato tudinho. Fomos embora para o mato. Mamãe dizia: “Meus filhos, não choram, não choram, não choram, não choram”. E esse motor [embarcação] lá do outro lado. Aí tia Raimunda: “Como é que a gente vai passar aqui?”. Circulamos o dia todo, aí a mamãe disse: “Olha, tu fazes o fogo lá”. Mas como é que vai fazer o fogo, que vai fumaçar? “Traz para cá, traz para cá.” Aí mamãe agarrava um 13. Tinha muita gente aí que era complicada, o pessoal da antiguidade... eles eram um tipo de gente que eles eram tudo assim, meio selvagem. Se sentasse uma pessoa numa paragem, todo mundo ficava ali refugiado. Pra eles se chegarem, era preciso muita coisa. Uma criança? Mas quando?! Ele não se chegava. Era tudo refugiado, tudo por ali, escondido. Eles não gostavam de branco, não se davam com branco... Mas não se davam, não se davam mesmo! Eles tinham, não sei o que diacho que eles tinham de receio com branco. Se estávamos em Expressão regional que pode ser traduzida, no contexto, como: Imagine! Nunca! 77 casa, mamãe chegava assim: “Olha, Seu Fulano vai chegar em casa, cês tão ouvindo?”. Pronto, aí nós íamos tudo para o mato Entrevista com Antônio Melo. Ariramba, 29/11/12. O comportamento até pode parecer exagerado na contemporaneidade, mas as experiências vividas nas primeiras décadas de liberdade não permitiram às comunidades locais esquecer o passado de escravidão. Se as capturas não eram mais uma ameaça real, as formas de expressão do preconceito racial eram várias, machucavam física e emocionalmente, e foram eficazes para mostrar aos mais jovens que as prevenções dos antigos ainda se justificavam: “ainda era meio perigoso, não como era com eles [os antepassados], mas a gente andava com cuidado”. A situação demoraria muito a se alterar. Embora a aproximação entre mocambeiros e outros grupos étnicos, e mesmo com grupos urbanos, tenha se iniciado em fins do século XIX, intensificando-se consideravelmente no seguinte, esse movimento deve ser compreendido fundamentalmente a partir das relações de dependência que os mocambeiros estabeleceram com comerciantes locais. Mais que a superação de preconceitos raciais ou o esmaecimento de fronteiras étnicas, essas relações suscitariam novas formas de percepção da escravidão. Olhe, quando nós paramos de nos esconder, foi quando já entrou o garimpeiro, já entrou regatão no rio, comprando castanha, essas coisas. Aí o negócio foi, foi abrindo. Foi o tempo que veio uma prima nossa daí de Manaus, aí ela abriu uma escola lá no Puraqué, para a gente estudar. Aí já foi favorecendo mais. Mas, logo na idade de quatro anos, cinco anos, o negócio não era fácil não. Não era fácil não. Era duro Entrevista com Antônio Melo. Ariramba, 29/11/12. 14. 78 Segundo Acevedo e Castro, inicialmente essas relações basearam-se no monopólio da compra e do transporte de gêneros coletados ou produzidos pelos negros, mas não incidia diretamente na propriedade das terras, que permaneciam como devolutas. O modelo econômico que garantia esse monopólio operava por meio do aviamento14 e do endividamento dos extrativistas – um modelo tão comum e central na economia regional que Miyazaki e Ono registraram não haver “nenhuma produção no Amazonas que não tenha alguma relação com o sistema de aviamento” (1958: 269). Para Wagley (1977: 108), tratou-se mesmo de um padrão de “relações tradicionais entre comerciantes e fregueses, constituindo um forte elo social e econômico” baseado simultaneamente em dependência material e num senso de lealdade entre as partes. O grande enigma que a maioria dos autores encontrava no aviamento era a formação de uma moralidade especial, aquela que liga o patrão ao freguês mediante poderosos laços de fidelidade e deveres morais mútuos. A fidelidade comercial do freguês é um termo de uma relação cujo outro termo são as obrigações morais que os patrões têm para com seus clientes em casos de dificuldade. A relação entre o comerciante e o freguês é uma relação social central na vida do interior amazônico, pois não só possibilita a existência de produção mercantil mas constitui relação de poder sujeita a uma moralidade que dispõe prescrições morais de ajuda aos fregueses em casos de perigo (doenças, carestias etc.) em troca de uma relação comercial monopolista Aramburu, 1994: 2. O aviamento, com o consequente endividamento, passou a ser percebido pelos negros como uma nova forma de escravidão O aviamento, definido por Aramburu (1994) como um sistema de adiantamento de mercadorias a crédito, se desenvolveu na Amazônia desde a época colonial e se consolidou no chamado ciclo da borracha, tornando-se modelo estruturante das relações sociais, e não só de trabalho e comércio na região. quando, no decorrer do século XX, submeteu-os a um circuito de exploração desenfreada do ambiente e do trabalho humano, associada à expropriação das terras de onde tradicionalmente tiravam o sustento. As áreas ricas em castanhais – sendo a castanha o principal produto econômico dos remanescentes dos mocambos – foram especialmente visadas pelos novos proprietários brancos, os quais, segundo os quilombolas, não respeitavam necessariamente os limites dos terrenos que adquiriam e, frequentemente, exploravam muito mais áreas e recursos do que os títulos que lhes concediam direito sobre as terras previam. Era assim que eles vinham fazendo. Então o governo despachava aquele pedaço de terra para eles, e eles tinham aquela área lá e mandavam o engenheiro desmatar que tudo era deles. Aí o caboclo ia lá e tirava um bocado de castanha, pegavam o caboclo e davam uma pisa. E já metia na cadeia. Além de tomarem a castanha, ainda metiam na cadeia! Era, acontecia isso, eles vinham fazendo a escravidão nessa época com a gente aí. Eram só brancos. Nessa época eles eram os grandes de Oriximiná. Eles viviam na cidade. Eles eram prefeitos, eram vereadores. Eram eles que comandavam com isso Entrevista com Joaquim Oliveira. Ariramba, 29/11/12. O comerciante, metamorfoseado “em dono da terra e dos castanhais”, garantiu, por meio de mecanismos de arrendamento e de compra e venda de terras públicas, a privatização dos castanhais (Acevedo & Castro, 1993: 109). Em Oriximiná grupos da elite local enriqueceram com a concessão de autorizações para realização de trabalho extrativista nas terras (sobretudo de castanhais) privatizadas e mantidas sob controle de seus emissários, conhecidos popularmente como encarregados. Por fim, “os coronéis de barranco podiam assegurar esse sistema de exploração visível aos olhos dos castanheiros porque proibiram qualquer comercialização. O paiol do patrão era a obrigação do castanheiro”, concluem Acevedo e Castro (1993: 111). Hum, os patrões eram perigosos. O patrão enchia o barracão, comprava uma coisa de mercadoria. Se quisesse, eles levavam tudinho. Tudo. O seu Manoel levava roupa, eles levavam pano, a gente comprava pano aqui e fazia aquelas roupas para ir para o castanhal. Tudo eles levavam! O freguês ia fazer compra para ir para o castanhal, era tudo no paiol que eles compravam, naquele barracão. Quando terminava a última viagem da castanha, o que tomava conta da castanha (porque era só burro, não tinha ninguém sabido para tomar de conta, era tudo analfabeto), chegavam lá os patrões, ajuntavam todinhos, os bestas pagavam toda a despesa Entrevista com Maria de Lourdes Pinheiro. Oriximiná, 01/03/13. Quando era época da coleta, as embarcações dos patrões atracavam na localidade e se abasteciam fartamente dos frutos do trabalho dos negros, deixando-lhes em troca itens manufaturados, sal, cachaça, todos muito bem pagos pela safra de castanha entregue aos patrões por baixíssimos preços. E aí os castanheiros entregavam tudo em castanha, era assim que eles pagavam a mercadoria que o patrão aviava. Eles entregavam em mercadoria, as mercadorias tudo. Recebiam alguns que tiravam saldo, mas era aquela mixaria, que, olhe, castanha era dois reais, três. Senão entregava a castanha toda e não ficava com saldo nenhum. Com nadinha, ficavam só com as roupas velhas. O patrão levava pinga para vender? Mas se levavam! Dinheiro eles não levavam para pagar, mas pinga! Nessa uma eles iam. Os velhos tomavam a cachaça para ir trabalhar, eles tomavam no copo para ir para o mato, depois do café, para entrar na mata, tomavam outra para tomar banho quando chegavam. Eles não bebiam assim para se embriagar. A vida do pobre era difícil Entrevista com Maria de Lourdes Pinheiro. Oriximiná, 01/03/13. 79 carlos penteado O endividamento e a dependência eram constantes, já que o fruto do trabalho dos extrativistas raramente saldava os débitos assumidos com a aquisição de mercadorias cuja disponibilidade e preço os patrões também controlavam. Conforme ressaltam Lima e Pozzobon (2005) em relação ao aviamento, por meio dessa forma de “escambo monetizado, era possível imobilizar a força de trabalho através de uma escravidão pela dívida, pois eram os patrões quem manipulavam as contas de seus fregueses” (2005: 56). O sistema obrigava os castanheiros a trabalhar a cada ano na esperança de quitar os débitos e “tirar um saldo”, e foi efetivamente percebido pelos negros como uma continuação da escravidão. Hoje, a gente já com entendimento, a gente já percebe hoje em dia o trabalho escravo. Até passar por aquilo, a gente não sabia que era escravidão, por exemplo, a pessoa trabalhar para outra pessoa, viver numa situação dentro do mato, uma situação praticamente para pagar o alimento, e a pessoa sair dali sem nada. A pessoa trabalhar por tanto tempo e chegar no fim não tirar saldo, então hoje a gente percebe que aquela situação era de escravidão Entrevista com Domingos Xavier. Ariramba, 29/11/12. O duplo movimento de expropriação das terras tradicionalmente usadas pelos negros e de concentração das mesmas nas mãos de supostos donos caracterizou “o tempo dos patrões”. No entendimento dos quilombolas, os mecanismos que indevidamente reconheceram a patrões, fazendeiros e membros da elite local a titularidade sobre áreas secularmente ocupadas e exploradas pelos negros, tornando-os “proprietários” de terras públicas em Oriximiná, foi a forma de escravização do século XX. Do controle dos castanhais pelos patrões à revenda de lotes e as sucessivas retransmissões de terras, inclusive áreas de florestas, o passo foi curto. A passagem para o século XXI trouxe a intensificação da ocupação desordenada por sucessivas levas de migrantes, fazendeiros, madeireiros, mineradores e agravou a expropriação das terras que os antepassados mocambeiros cuidaram, trabalharam e lhes deixaram. Olha, desse lado daqui, era dono daqui, outro dali. Mas naquele tempo era só nome, só quase nome! Eram donos, mas não tinha um documento certo, nada! Olha, hoje em dia, não tem mais nada de dono, é tudo do povo, o povo é que estão tomando conta de tudo. Olha o Salgado, agora está cheio de gente, tem três comunidades, tudo está cheio de gente. O Repartimento, o Capintuba... Tudo isso tomaram de conta dessas terras, mas, olha, foram se acabando, os outros vão entrando, vão levando, vão tomando de conta e pronto, e assim vai embora tudo. Lá no Lago do Rapé, hoje em dia já me disseram que é só campo, acabaram aquele castanhal em campo. Na Queimada é campo tudo aquele quadro lá Entrevista com Duca Pinheiro. Oriximiná, 01/03/13. Ao discorrer sobre as transformações ocorridas nas áreas tradicionalmente exploradas, os remanescentes de quilombos do Ariramba e do Cuminá relembram pessoas em sucessivas gerações e lugares. Suas referências espaciais integram mapas mentalizados por eles a partir dos caminhos trilhados e compartilhados, pouco acessíveis para alguém de fora do grupo. As fronteiras “de cima”, “de baixo”, das “bandas” de lá e de cá são dificilmente compreendidas quando não se tem a experiência vivida. As memórias desses sujeitos serpenteiam entre pontos geográficos e lugares simbolicamente povoados. A lembrança de um puxa a do outro, num exercício de concatenação de lembranças e sentimentos que afloram em reencontros com pessoas, tempos e lugares distantes, que nem sempre são agradáveis. A escravidão é frequentemente lembrada, em suas sucessivas representações: “tempo das candeias”, “tempo do pega-pega”, “tempo dos patrões”. 81 Nestas primeiras décadas do século XXI os remanescentes de quilombos protagonizam um tempo de luta por direitos territoriais, socioambientais, agrários, culturais, intelectuais. As relações com a sociedade abrangente mudaram, mas o sentimento de desconfiança em relação aos “de fora”, que foi estratégico para a permanência dos mocambos, não acabou. Como diz Daniel Souza, “hoje, se você vê no Trombetas um motor de fora, no Erepecuru, o pessoal fica de olho. Embora os quilombos têm razão, eles são sempre muito desconfiados das coisas, de alguém que chega. ‘De onde veio, quem é?’”. Os motivos para a desconfiança não são poucos, eles creem. As fronteiras étnicas e as relações interétnicas mudaram, e a ameaça não vem necessariamente dos brancos, mas não deixa de ter conteúdos racistas e representar formas contemporâneas de escravidão. Para os remanescentes de quilombo do Ariramba está personificada no Estado, em Unidades de Conservação, em projetos dos minerários, no esgotamento das florestas e dos recursos naturais, e, acima de tudo, na morosidade dos processos de regularização fundiária. Numa ocasião, quase dez anos após o início da luta pela regularização do território, um quilombola declarou durante uma reunião: Isso é um destino de ser negro? Os nossos antepassados já vieram para essas bandas fugidos. Durante muito tempo a gente se acostumava a fugir, desconfiado de tudo. Quando a gente começou a achar que estava no nosso lugar, para viver em paz, criar família, agora a gente tem que fugir de novo, ficar se escondendo, calado? A regularização da terra quilombola é vista como condição para a gestão autônoma “[d]as formas de ocupação e uso da terra e dos recursos naturais; [d]as culturas e valores vinculados a essa terra... [d]os recursos naturais existentes... e [do] uso, administração e conservação dos recursos mencionados” (Shiraishi Neto, 2007: 47). É para eles, portanto, condição para a superação da escravidão, em suas diferentes faces e roupagens, e para o exercício da liberdade constantemente restringida. 82 BIBLIOGRAFIA ACEVEDO, Rosa & CASTRO, Edna. Negros do Trombetas: guardiães de matas e rios. Belém: UFPA-NAEA, 1993. ALENCAR, Edna Ferreira. O tempo dos patrões “brabos”: fragmentos da história da ocupação humana da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, AM. 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Este artigo dedica-se às relações afroindígenas1 no vale do Trombetas, curso d’água situado na porção paraense do Planalto Guianense, na Amazônia Setentrional. Tomando a perspectiva ameríndia como ponto de partida, seu principal propósito é apresentar um panorama das relações com os mekoro, os “negros” que, no contexto histórico de resistência às tentativas de controle e domínio coloniais, constituíram sua singularidade na paisagem trombetana. Com atenção às práticas de sentido dos índios que se reconhecem mutuamente como pïrehno, “pessoas humanas” – e identificam-se, no contexto interétnico, como a “gente” (-yana) do “Cachorro” (Katxuru), doravante “Katxuyana” –, este artigo procura apresentar as relações afroindígenas em suas distintas modalidades, descrevendo-as segundo sua alternância ou ambivalência. Considerados “inimigos” (waha), “parceiros” (pawana) ou “parentes” (pïrehrï) nas exegeses e experiências katxuyana, os mekoro parecem situar-se num entrelugar entre a afinidade e a consanguinidade, a convivialidade e a predação. NA PAISAGEM TROMBETANA “Katxuyana” é o etnônimo que se consolidou como identificação dos ameríndios que se reconhecem mutuamente como pïrehno, “pessoas humanas”. Usualmente traduzido como “gente” ou 1. 2. 3. 4. 86 “povo” (-yana) do “Cachorro” (Katxuru), o substantivo remete às relações de afinidade e parentesco estabelecidas na região do curso d’água que o constitui, situada na área central da bacia do Trombetas (Kahu), no noroeste do estado do Pará. Embora utilizada como autodenominação no contexto interétnico, a alcunha, genérica e inclusiva, não demarca uma entidade cultural ou sociológica autônoma e isolada, à imagem de um sujeito jurídico com contornos delimitados2. Descrita pela metáfora nativa da “mistura” (toskema), a condição katxuyana é marcada por uma “alteridade constituinte” (Erikson, 1986), ilustrada pelas designações variáveis – Kahyana, “gente” do Kahu (Trombetas), Txuruwayana, “povo” do Txuruwahu (Cachorrinho), Yaskuryana, “gente” do Yaskuri (Jascuri) – com que pïrehno localizam suas distinções em termos de nascimento, filiação ou (co)residência3. “Katxuyana” é também o nome dado à pïrehno mïtanï, “fala” ou “palavra” pïrehno, que com as línguas hixkaryana e waiwai, conforma o ramo Parukoto da família Caribe (Gildea, 2012). Junto aos Hixkaryana e os Waiwai, aliás, os Katxuyana participam de um abrangente circuito de comunicações, circulações e trânsitos que delineia um sistema relacional compreensivo, do qual também tomam parte aqueles que se identificam, entre outros, pelos etnônimos Aparai, Tiriyó e Wayana. Articulado e sobreposto a outras redes de trocas que remontam ao período pré-colombiano,4 esse circuito envolve intercâmbios cerimoniais, econômicos, guerreiros e matrimoniais que se prolongam por A expressão é tomada de empréstimo de Márcio Goldman (2014). Privilegiando os dois vértices minoritários do “mito das três raças”, fundador da ideologia da “mestiçagem”, o autor convida-nos a libertar a relação afroindígena da dominação e do ofuscamento decorrentes de sua submissão ao pensamento europeu, que concebe o Estado – e, com ele, a construção de uma identidade nacional unificada, necessariamente branqueada – como seu principal problema. Este artigo considera o desafio lançado por Goldman, esforçando-se para demonstrar como as relações afroindígenas trombetanas, tecidas no coração da invasão colonial, em muito extrapolaram as tentativas de controle e domínio euro-americanas. Como a etnologia amazônica tem insistentemente ressaltado, as alcunhas indígenas que se consagraram como etnônimos usualmente não correspondem às autodesignações ameríndias – que, no mais das vezes, expressam-se por expressões que demarcam a posição de sujeito, e que poderiam ser traduzidas, simplesmente, como “gente”, “humanos” ou “pessoas” (Viveiros de Castro, 2002b). Para informações detalhadas a propósito dos –yana, ver os artigos de Denise Fajardo Grupioni e Ruben Caixeta de Queiroz, neste volume. Essas redes de trocas, juntas, conformam um circuito multicentrado que abarca todo o Planalto Guianense. Essas redes, de fronteiras fluidas e tênues, articulam-se e sobrepõem-se, envolvendo intercâmbios cerimoniais, econômicos, guerreiros e matrimoniais relacionados à dinâmica da concentração e dispersão da região em questão (Dreyfus, 1993; Barbosa, 2005). toda a extensão da paisagem trombetana, pela qual circulam adornos, agressões, canoas, cantos, contas, cônjuges, cativos, espingardas, mercadorias, nomes, padrões éticos e estéticos, xerimbabos, utensílios, saberes e técnicas imemorialmente. Os karaiwa, “brasileiros” ou “não indígenas”, compõem esse circuito comunicativo, transformado em extensão e sentido por sua crescente presença5. Sua existência, entretanto, é conhecida desde o “tempo dos antigos” (panano wetxit’pïrï), em que os demiurgos talharam a humanidade em madeiras variadas e, então, deixaram à história a tarefa de visibilizar suas diferenças. Os processos históricos relacionados à sua chegada na paisagem trombetana, amplamente documentados pela literatura (Frikel, 1970a), parecem não importar às exegeses indígenas: a memória nativa dedica-se a recontar a cadência, intensidade e qualidade dos reencontros que, seguindo o movimento de expansão e retração da invasão colonial, a princípio aconteceram de maneira intermitente e violenta. Conta-se que os agressivos karaiwa capturaram, escravizaram e exterminaram os “antigos” (panano), determinando seu desaparecimento ou deslocamento para as cabeceiras e interflúvios que ofereceram proteção e refúgio às investidas não indígenas6. Os encontros amistosos ou pacíficos com os karaiwa ocorreram somente com os mekoro7, os “negros”, descendentes de 5. 6. 7. ex-escravos fugidos de cidades e fazendas do baixo Amazonas que, no contexto histórico de resistência às tentativas de controle e domínio coloniais, constituíram sua singularidade na paisagem trombetana (Acevedo & Castro, 1993; Andrade, 1995; Funes, 1995; Sauma, 2013, 2014). Não tenho propriedade para detalhar a maneira como esses mekoro fizeram-se os contemporâneos “remanescentes quilombolas” ou, simplesmente, “Filhos do Erepecuru” ou “Filhos do Trombetas” (Sauma, 2013), cabendo somente ressaltar que experimentaram relações variantes e reversíveis com os Katxuyana. Como tampouco tenho intenção de realizar uma releitura da documentação historiográfica disponível neste momento, pareceme suficiente remontá-las ao período que procedeu à Revolta dos Cabanos (1835-1840), em que se constituíram os famosos “mocambos” ou “quilombos” trombetanos (Acevedo & Castro, 1993; Andrade, 1995; Funes, 1995). Com efeito, os primeiros registros do etnônimo “Katxuyana” – grafado como “Cachuana”, “Cachuianã”, “Cashuena” e “Caxorena” – mencionam, justamente, as relações com os “mocambeiros” ou “quilombolas”, que informavam os viajantes sobre esses índios então tidos como “arredios” ou “bravios” (Souza, 1873; Brown e Lidstone, 1873; Rodrigues, 1875; Derby, 1897-1898; O. Coudreau, 1900). Relatos historiográficos e nativos sugerem que a frequência dos vínculos regularizou-se na primeira metade do século passado, Os karaiwa alteraram esses circuitos comunicativos, integrando-os, redirecionando-os e, por vezes, suspendendo-os. Como ressalta Barbosa (2005: 60), “ao que parece as redes de relações contemporâneas têm uma amplitude bem menor do que aquelas descritas no passado, articulando-se de modo mais compartimentado e localizado, em áreas como a Grande Savana, a região dos rios Uaçá e Oiapoque, o litoral das Guianas e a Serra do Tumucumaque”. É importante ressaltar, entretanto, que os circuitos comunicativos contemporâneos não configuram-se como resquícios daqueles mencionados pelos primeiros viajantes. Os circuitos comunicativos contemporâneos mantêm operante a memória relacional, incorporando particularidades relacionadas à interferência de políticas assistenciais, bem como o “encapsulamento” das populações em torno de designações étnicas. Os Katxuyana afirmam que os karaiwa conduziram panano às cabeceiras e interflúvios, mencionando “antigos lugares” (patatpo) em toda calha do Amazonas (Warikuru) e do Trombetas (Kahu): Werekekepïrï, Pawisi e Parawapotpïri, por exemplo, são “antigos lugares” nomeados, situados, respectivamente, em Santarém, Óbidos e Oriximiná. O movimento de subida também foi relatado a Protásio Frikel (1970a: 20-21): “antes que ‘branco’ veio descobrir a terra, ‘panano’, mas os ‘bem antigos’, moravam no Arikuru [...], lá embaixo. [...] Panano tinha muitas casas ali, gente e maloca grande. Morava na boca de um grande rio que vem do outro lado do Arikuru. O lugar chamava Txurutahumu, ou também Arikamana; é o lugar onde depois português fez Santarém. Ali morava também o grande chefe que mandava em todos. Quando português descobriu a terra, [pïrehno] fugiu. Português vinha de Kampixi, no nascente [...]. Português perseguiu nossa gente, que fugiu” (Frikel, 1970a: 20-21). A palavra mekoro, difundida entre as línguas indígenas guianenses, é genérica, consagrada em referências às pessoas “negras” – de cuja cor de pele provém o termo (Carlin & Boven, 2002; Carlin, 2004) –, sejam elas brasileiras ou estrangeiras. Os Katxuyana, por vezes, referem-se aos mekoro brasileiros como karaiwa, “não -indígenas”, como ficará evidente no decorrer deste trabalho (ver, em especial, a narrativa transcrita no tópico “Sobre armas e contas”). Neste artigo, utilizome da expressão mekoro em referência aos “negros” brasileiros e estrangeiros, evitando, assim, confundi-los com os outros karaiwa com quem os Katxuyana relacionam-se. 87 em que balateiros, castanheiros e gateiros também avançaram, em fluxos e refluxos, sobre a paisagem trombetana. Trata-se do tempo do contágio pelas “doenças de branco” (karaiwa wïrho), ocorrido no contexto da exploração da borracha, da castanha e da caça ao couro de onça8. Os encontros com os karaiwa intensificaram-se com a chegada dos missionários católicos e protestantes, que instalaram diversas aldeias-missão nas fronteiras entre o Brasil, a Guiana e o Suriname na segunda metade do século passado9 (Caixeta de Queiroz, 2008). Os missionários valeram-se das estimadas mercadorias e medicamentos – além, é claro, da promessa de salvação prevista pelas narrativas bíblicas –, para a sedução da população ameríndia trombetana, concentrada em conglomerados multiétnicos fundados com o propósito de promover sua “integração à sociedade nacional”. As aldeiasmissão centralizaram os indígenas que, outrora, se distribuíam por comunidades dispersas, às vezes fazendo antigos “inimigos” (waha) corresidentes, isto é, “parentes” (pïrehrï) (Caixeta de Queiroz, 2008; Grupioni, 2011). Os Katxuyana foram transferidos pelos missionários no final da década de 1960: desolados pelo sarampo e pela tuberculose e somando menos de 70 pessoas (Frikel, 1970a), dividiram-se entre a Missão Tiriyó, estabelecida pelos franciscanos com o auxílio da Força Aérea Brasileira (FAB) junto aos Tiriyó no alto Paru d’Oeste, e a missão Kassawá, instalada pelos evangélicos do Summer Institute of Linguistics (SIL) entre os Hixkaryana no Nhamundá (Caixeta de Queiroz, 2008; Grupioni, 2010; Caixeta de Queiroz & Girardi, 2012). Nesses lugares, conheceram a 8. assistência médica, a escola primária e o serviço assalariado, bem como a inesgotável parafernália karaiwa. Ali, também conheceram o hábito não indígena da “demarcação” – da delimitação dum território que, noutros tempos, “ia até onde a sola dos pés queria ir” (Grupioni, 2011: 321) –, familiarizandose, pouco a pouco, com a vida na “terra fechada” (Idem: 322). E, ali, enfim, aparentaram-se com seus corresidentes, com quem conviveram nas Terras Indígenas (TI’s) Nhamundá-Mapuera e Parque do Tumucumaque durante as últimas cinco décadas (Grupioni, 2011; Caixeta de Queiroz & Girardi, 2012). Os Katxuyana decidiram regressar à sua área de origem no começo da década de 2000, delineando um movimento de retomada de seu território tradicional e, assim, reabrindo uma “aldeia velha” (patatpo), Santidade ou Warahaxta, às margens do médio Cachorro. Em 2003, reivindicaram à Fundação Nacional do Índio (Funai) a regularização de seu território, recebendo, em 2008 e 2010, os grupos de trabalho responsáveis pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID). Nesse ínterim, outra aldeia katxuyana, Chapéu, foi fundada à jusante de Santidade, e uma aldeia kahyana, Katxpakuru, foi reaberta na embocadura do curso d’água homônimo, no alto Trombetas. Hoje, as famílias katxuyana e kahyana aguardam – e lutam – com seus vizinhos Tunayana10 pela demarcação da TI Katxuyana-Tunayana, cujo RCID, aprovado e finalizado desde abril de 2013, encontra-se à espera de publicação. O movimento katxuyana de concentração e (re)dispersão modificou os circuitos de comunicação e intercâmbio em amplitude e direção, estimulando a constituição e extensão de Frikel (1970a: 44) estima que os indígenas somavam de 300 a 500 pessoas entre 1920 e 1925. Na primeira metade do século XX, a disseminação de epidemias teria contribuído para uma drástica redução do contingente populacional: o sarampo espalhou-se entre os índios que, sofrendo com febres altas, procuravam “refrescar o sangue” na água fria (Id., ibidem). Como ressalta o missionário, muitas dessas pessoas teriam falecido: “os índios mais velhos contaram que aqueles que ainda estavam bons não tinham mais tempo nem vontade de enterrar os mortos. [A]bandonando os cadáveres juntamente com os doentes, [eles] fugiam para a mata”. (Id., ibidem). 9. Cinco missões foram estabelecidas na região entre as décadas de 1950 e 1960: Kanashen, Araraparu e Paruma, fundadas por missionários protestantes norteamericanos na Guiana e no Suriname; Missão Tiriyó, instalada por missionários católicos e pela Força Aérea Brasileira (FAB) na porção brasileira da Serra do Tumucumaque; e Kassawá, estabelecida por missionários protestantes no médio curso do rio Nhamundá (Caixeta de Queiroz, 2008). 10. O movimento de descentralização – como o de concentração – aconteceu em escala regional (Grupioni, 2011; Caixeta de Queiroz & Girardi, 2012). A propósito do movimento de concentração e (re)dispersão experimentado pelos Tunayana, ver os artigos de Ruben Caixeta de Queiroz e Victor Alcântara e Silva, neste volume. 88 determinados vínculos às custas do resfriamento e suspensão de outros. Destacam-se, entre eles, as preciosas relações com os mekoro trombetanos – em especial, com aqueles estabelecidos na comunidade de remanescentes de quilombo de Cachoeira Porteira11 –, suspensas com a transferência katxuyana para as aldeias-missão e, anos mais tarde, reavivadas com seu regresso para sua área de origem. Na última década, à colaboração amistosa e à convivência pacífica entre os “parceiros” (pawana) ou “parentes” (pïrehrï) mekoro reencontrados, alternaram-se os conflitos declarados e as disputas violentas entre antigos “inimigos” (waha) revisitados – alimentados e aprofundados, é imprescindível ressaltar, pela morosidade do processo de regularização da TI Katxuyana-Tunayana, que, parcialmente sobreposta à TQ Cachoeira Porteira, têm instaurado a incerteza e a insegurança na região em questão12. É a uma história dessas relações, reversíveis e variantes, que dedica-se o experimento narrativo proposto por este trabalho. Vamos a ela. sozinhos, estabelecidos em uma maloca fundada nas proximidades de Yiremat’pïrï (Cachoeira do Paraíso), nas cabeceiras no Txuruwahu (Cachorrinho). Certa vez, os demiurgos sentiram vontade de conversar e, com madeiras variadas, fizeram os experimentos que originaram as matrizes das espécies que habitam o universo. Na primeira tentativa, Purá e Murá valeramse de uma madeira durável e resistente – pura’kma, o pau-d’arco ou, literalmente, “pau de Purá” – para confeccionar os modelos reduzidos dos primeiros humanos. Os demiurgos colocaram estes modelos em um pequeno vasilhame, no qual transformaram-se na (pré)humanidade que, à maneira da madeira, era marcada pela imortalidade. Purá e Murá, então, fabricaram canoas grandes e pediram aos seres imortais que partissem em viagem para povoar o mundo, ignorando que uma anaconda CORPOS CROMÁTICOS preparava-se para devorá-los no caminho. Depois de matar a cobra para vingar a morte dos seus, Purá Comecemos pelos eventos que marcam o início (e o fim) do mundo pïrehno: e Murá vestiram seu corpo pintado e, adornados, No mundo não havia nada, além de dois seres que não foram criados por ninguém. Purá e Murá existiam seus cestos, peneiras e tipitis, os demiurgos retornaram cantaram e dançaram. Depois de copiar os desenhos em à Yiremat’pïrï no intuito de refazer as criaturas. 11. Cachoeira Porteira é uma das 36 comunidades de remanescentes de quilombo existentes nos rios Erepecuru e Trombetas. Situada às margens da corredeira homônima, no médio Trombetas, a comunidade é a última localidade à qual pode-se alcançar por navegação. Trata-se da comunidade quilombola mais próxima, histórica e contemporaneamente, das aldeias indígenas estabelecidas nos rios Cachorro, Mapuera e Trombetas – e, portanto, também aquela à qual remete a maioria das narrativas katxuyana reunidas neste trabalho. Cabe ressaltar, entretanto, que os Katxuyana também relacionam-se com os mekoro de outras comunidades do Erepecuru e do Trombetas. Articulações entre a Associação Katxuyana, Tunayana e Kahyana (AIKATUK) e Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná (ARQMO) – apoiadas pela Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) e pelo Iepé-Instituto de Pesquisa e Formação Indígena – têm mobilizado e motivado indígenas e quilombolas recentemente, sinalizando para a potência dessas parcerias para a defesa conjunta de direitos. 12. A comunidade de remanescentes de quilombo de Cachoeira Porteira reivindicou a regularização fundiária do Território Quilombola (TQ) no ano de 2004, época em que o processo de titulação (Processo de 2004/125212) foi instaurado pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa). Não obstante, o processo foi protelado devido à instituição da Floresta Estadual do Trombetas, decretada numa área de 3.172.978 ha pelo Governo do Estado do Pará (Decreto 2607, de 04/12/2006). A regularização fundiária foi retomada em 2012, em razão dos conflitos entre indígenas e quilombolas que conduziram à intervenção do Ministério Público Federal (MPF). O resumo do relatório de identificação do território quilombola foi publicado nessa mesma época, incluindo cinco aldeias indígenas no interior do polígono proposto (Idesp, 2012). Cabe ressaltar que o contexto regional – que, é bom lembrar, é também o da ameaça aos direitos constitucionais indígenas e quilombolas, pressionados pelas iniciativas lideradas pela bancada evangélico-ruralista – vê-se agravado pela contratação dos estudos socioambientais para a implantação da Usina Hidrelétrica de Cachoeira Porteira, cujo primeiro projeto remonta ao período da ditadura militar. 89 luisa g. girardi Purá e Murá fizeram experimentos com diversas madeiras, uma vez que todo o pau-d’arco havia sido gasto nas primeiras tentativas. Os modelos confeccionados com o caranaí, o cipó e o miriti transformaram-se, respectivamente, nos caititus, nas cobras e nas queixadas. Outros seres também surgiram durante os experimentos, tomando de empréstimo a qualidade distintiva das madeiras que, por acidente, lhes servira de matéria-prima: da madeira do jenipapo surgiram os mekoro, “negros”; do marupá, os pananakïrï, “brancos”, “estrangeiros”; do taxizeiro, os Warahayana, que, confeccionados em madeira que apodrece, transformaram-se em seres mortais, os antigos Katxuyana. Esta história bastante conhecida (Kruse, 1955; Frikel, 1970a; Gongora, 2007; Grupioni, 2009, 2010; Girardi, 2011), apresentada nesta variante adaptada e resumida, ilumina o cenário de panano wetxit’pïrï, o “tempo dos antigos”. Correspondente ao que diríamos “mítico”, esse contexto é marcado pela capacidade de comunicação e metamorfose das distintas espécies que habitam o universo, perdida com a inscrição da existência na condição terrena, repartida entre a morte e a vida. Contemporâneo ao mundano13, o contexto mítico é, em poucas palavras, aquele em que “[...] animais e homens não [são] distintos” (Lévi-Strauss & Eribon, 1988: 193), ou, melhor dizendo, o horizonte em que suas diferenças estão pressupostas, embora não expostas14. Os acontecimentos transcorridos no “tempo dos antigos” relacionam-se, justamente, à inauguração de distâncias ou intervalos (espaciais, corporais e periódicas) entre o céu e a terra, o dia e a noite, os indígenas e os não indígenas15 – como a clássica tetralogia das Mitológicas (Lévi-Strauss, 1964, 1966, 1967, 1971) cuidou de mostrar. O “mito de origem” katxuyana põe em cena a passagem do contínuo para o descontínuo, isto é, da natureza para a cultura. A principal problemática dessa narrativa é a diferença, manifesta pelo afastamento entre a animalidade e a humanidade e entre as sociedades humanas. No mito acima, essa problemática é apresentada segundo a temática da construção da corporalidade: postos no corpo, os padrões gráficos e as variações cromáticas no contexto mítico antecipam as diferenças manifestas entre as espécies variadas no contexto mundano. A cobra-grande, personificação da alteridade na mitologia guianense16 (Gallois, 1988; Van Velthem, 2003; Gongora, 2007; Grupioni, 2009, 2010 e, numa versão mekoro, Sauma, 2013, 2014), é, aqui, o operador das transformações, oferecendo seus desenhos corporais aos antigos katxuyana, que constituem sua singularidade alterando-se, identificando-se ao inimigo. A um só tempo criativa 13. Acessado pelas experiências oníricas e xamânicas, o contexto mítico é também o destino póstumo de pïnarï, a “alma imortal” ou o “espírito humano”, que percebe em ihuno, a “massa” ou o “corpo”, uma “[...] uma espécie de ‘vestimenta’, que se recebe na hora do nascimento e se abandona ao falecer” (Frikel, 1971: 39, nota 16). É o contexto da morada dos demiurgos, um plano em que não há miséria, morte ou tristeza (Idem: 15). O futuro e o passado encontram-se: “na visão de mundo indígena, aquela época [panano wetxit’pïrï] era um estado realmente existente na terra, e embora não se encontrando mais agora neste mundo, por se ter tornado um assunto extra-telúrico, é ainda alcançável no além-mundo como sendo a mesma realidade do passado. É a idéia do ‘paraíso’ perdido, mas recuperável, que aqui se apresenta” (Idem, ibidem). 14. Como ressalta Viveiros de Castro (2002b: 355), a mitologia é “o ponto de fuga universal do perspectivismo, [tratando] um estado do ser onde os corpos e os nomes, as almas e as ações, o eu e outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo”. E prossegue: “o perspectivismo ameríndio conhece no mito um lugar, geométrico por assim dizer, onde a diferença entre os pontos de vista é ao mesmo tempo anulada e exacerbada. Neste discurso absoluto, cada espécie de ser aparece aos outros seres como aparece para si mesma – como humana – e entretanto age como já manifestando sua natureza distintiva e definitiva de animal, planta e espírito” (Viveiros de Castro, 2002b: 354-55). 15. As narrativas katxuyana sustentam que, no início do mundo, só havia o céu e o sol, fixo – e, portanto, só havia o dia. A separação entre o céu a terra – engendrada pela relação com alteridade, isto é, pelas alianças entre um homem e uma mulher-peixe que, em certas versões, introduz a panano a agricultura –, possibilita a viagem de canoa do sol, inaugurando a alternância entre dia e noite (Frikel, 1971: 4, 14). 16. Como ressalta Gongora (2007: 22) a cobra-grande é “[...] um elemento fundamental das mitologias e sociocosmologias na região das Guianas e é uma forte referência em diferentes dimensões da vida guianense: nas práticas rituais, nas atividades de caça e de pesca, nos artefatos e grafismos, no xamanismo, nas exegeses nativas sobre doença e morte. É notável que as referências a essa figura sejam abundantes em narrativas sobre os ‘outros mais outros’, nos reportando às relações de aliança, inimizade, guerra, canibalismo, entre outras”. 91 e destrutiva, a anaconda é também quem determina a extinção da (pré)humanidade originária e a fabricação da humanidade terrena, isto é, a passagem da imortalidade para a mortalidade expressa pela oposição entre madeira imperecível (pau-d’arco) e madeira perecível (taxi). É ela, enfim, quem estimula os demiurgos a (re)fabricarem a existência mundana numa mesma substância, deixando à história a tarefa de externar e maximizar as diferenças, internas e mínimas, tomadas de empréstimo das distintas qualidades de madeira que serviram de matéria-prima. Os protótipos transformam-se, assim, em brancos e caititus, queixadas e negros, distribuindo sua corporalidade específica pelo espectro cromático e metamórfico infinito. Prefigurada no “tempo dos antigos”, a presença dos mekoro, os “negros”, na paisagem ameríndia é pensada menos como uma chegada do que como um retorno, cujos processos históricos, documentados pela literatura, parecem indiferentes às exegeses katxuyana. Sua mitologia dedica-se à descrição das sucessivas extinções e recriações da humanidade que prefiguraram os seus (re)encontros nas florestas trombetanas, transcorridas, a depender da variante, antes ou depois da anaconda inimiga. São também bastante conhecidas, nesse sentido, as narrativas que descrevem os cataclismos cósmicos – a “grande água” (tuna-imo) e o “grande fogo” (wehoto-imo) – que antecederam a partida dos demiurgos para o plano celeste, e dos quais salvaram os pouquíssimos sobreviventes que, vez após outra, espalharamse e misturaram-se para constituir os “antigos”17 (Kruse, 1955; Frikel, 1970a, Gongora, 2007, Grupioni, 2009, 2010). Mas seria preciso sobreviver a outro fim de mundo – aquele que desolou os continentes africano e americano para constituir os estado 17. nacional brasileiro18 – até que os antigos e os mekoro (re) construíssem seus universos, parcialmente compartilhados na paisagem trombetana. GUERRAS DE MUNDOS A paisagem trombetana não foi constituída de maneira pacífica. Veja-se, a esse propósito, o relato seguinte: No tempo da seca, um homem e uma mulher estavam acampados numa maloca pequena, situada na embocadura do Katxpakuru. Certo dia, o casal foi à praia banhar-se, e os mekoro chegaram numa canoa grande, encostando-a perto da enseada. O homem conhecia os mekoro e, por isso, não deu importância à sua chegada. Mas os mekoro levavam bordunas, com as quais assaltaram e renderam o homem kahyana. O chefe dos mekoro, muito alto e muito forte, colocou a mulher nas costas e embarcou-a na canoa, deixando o homem na praia. Uns dias depois, o mekoro capturou outra mulher kahyana numa maloca à montante. Seu irmão salvouse do assalto, dirigiu-se à maloca principal e mobilizou seus parentes para a vingança. Esperaram. A expedição guerreira alcançou o mocambo durante a madrugada, cuidando de esconder-se na margem oposta do curso d’água. Em segurança, os guerreiros dividiram-se em duas frentes que, por água e por terra, avançaram até uma ilhota antes de subir o dia. Cedo pela manhã, um homem que conhecia os É, novamente, Frikel quem nos oferece a mais detalhada descrição: “contam os mitos que, cada vez que um tipo de antepassado parecia vitimado por um dos cataclismas [sic], um resto de gente se salvava e, depois de passado o perigo, espalhava-se e misturava-se com outros sobreviventes [...], de forma que os Katxuyana se dizem descendentes daqueles homens do ‘dilúvio’ e do ‘incêndio’, considerando-os todos ‘panano’, isto é, ancestrais” (Frikel, 1970a: 28). 18. Como ressalta Goldman, “os grandes acontecimentos são conhecidos por todos. Ainda que os números sejam algo controversos, não é nada improvável que ao longo de cerca de 300 anos, quase 10 milhões de pessoas tenham sido embarcadas à força da África para as Américas, na maior migração transoceânica da história. Desses, uns 4 milhões chegaram ao que hoje chamamos de Brasil – onde, sabemos, já viviam milhões de indígenas, vítimas de um genocídio que, nunca é demasiado lembrar, ao lado da diáspora africana sustenta a constituição do mundo moderno. Nessa história, que é de todos nós, coexistem poderes mortais de aniquilação e potências vitais de criatividade” (2014: 215). 92 mekoro dirigiu-se sozinho à casa do chefe, dizendo-lhe precisado de uma espingarda. Aproveitou para contar que havia visto um grande bando de porcos na ilhota. Os mekoro não desconfiaram da mentira e partiram em duas canoas para procurar os queixadas. Os Kahyana, escondidos, arremedaram: ‘krak txi, krak krak, krak txi’. As flechas zuniram sobre os mekoro, e somente dois homens sobreviveram. Os Kahyana, feridos, regressaram para a maloca principal, mas mudaram-se para a montante temendo a vingança. Os mekoro aguardaram. Depois de um tempo encontraram a maloca kahyana, exterminando, inclusive, as mulheres que resistiram. Um menino sobreviveu e procurou os parentes restantes. Os Kahyana fugiram, subindo o Trombetas. Esse relato, extraído de um artigo coautorado por Protásio Frikel e os chefes-xamãs katxuyana Matxuwaya e Ton’hirama (Frikel et al, 1955: 226-229), remonta a um contexto definido pela expressão waha wetxit’pïrï, que poderia ser traduzida como “tempo da borduna”, “tempo dos inimigos” ou, mais precisamente, “tempo da guerra”. Transformado com a conversão ao cristianismo, o contexto remete ao período em que os “antigos” 19 (panano) envolviam-se em disputas visíveis e invisíveis com seus “inimigos” (waha), engajando-se em práticas guerreiras menos relacionadas à constrangimentos econômicos – à escassez e demanda de mercadorias e territórios – do que à determinações cosmopolíticas – ao consumo criativo da alteridade e da diferença20. As narrativas katxuyana sobre o “tempo da guerra” descrevem os movimentos de concentração e dispersão conduzidos pelos “antigos” que, distribuídos em malocas dispersas pela paisagem trombetana, mobilizavam os espíritos auxiliares (worokyema)21 e/ou os parentes e vizinhos em expedições guerreiras motivadas pela retaliação. Esse aliancismo cosmopolítico conformava coalizões reversíveis e transitórias, dissolvidas em comunidades autônomas tão logo completada a vingança. Os Katxuyana, “da mesma língua e do mesmo sangue” (Frikel et al, 1955: 203) que os Kahyana, com eles experimentaram contendas intermináveis, em que a devoração de um inimigo implicava na imediata promessa de retribuição22; esses índios, por sua vez, “brigaram com todos e brigaram muito entre si” (Idem: 205), aliando-se 19. Matxuwaya e Ton’hirama afirmavam, à época, que não engajavam-se em práticas guerreiras – como, aliás, afirmam hoje os Katxuyana. Essas práticas aparecem associadas a panano, os “antigos” katxuyana, que os narradores distinguiam tanto dos antigos kahyana quanto dos mekoro. Embora admitissem que panano eram guerreiros (kayari), contrastavam os antigos katxuyana aos guerreiros kahyana e os mekoro: panano eram especialistas nas agressões xamanísticas, valendo-se do rapé (mori) e do tabaco para comunicar-se com os worokiyema, os espíritos auxiliares; os antigos kahyana e os mekoro, por sua vez, preferiam a borduna (waha), utilizada para rachar o crânio de seus inimigos. Matxuwaya e Ton’hirama também enfatizavam que panano eram mais pacíficos que os guerreiros kahyana e os mekoro, exaltando a agressividade, crueldade e voracidade dos seus inimigos. À maneira dos Katxuyana contemporâneos, os narradores insistiam que panano não eram dados à disputas gratuitas: suas habilidades guerreiras eram utilizadas somente para retaliação, isto é, para vingança. 20. Grossíssimo modo, seria possível afirmar que, às últimas, as primeiras contrapõem uma alternância entre autonomia e liberdade, por um lado, e um aliancismo confederativo, por outro, que encontram seu movimento e sentido na captura e incorporação da diferença (Sztutman, 2012). Mas o debate sobre a guerra indígena é extenso, e não cabe resumi-lo aqui. 21. Frikel e colaboradores descrevem: “os antigos costumes de guerra [...] estavam ligados, intimamente, a práticas religiosas [isto é, xamânicas]. [...] Txir’hana é a choupana do pajé ou piad’se. Entrando nela, pode ele estabelecer o contato com os espíritos. [...] O efeito do consecutivo e desmedido uso do [mori], o rapé, é o estado [...] em que opera-se o contato com os espíritos ‘bichos’ que, por fim, chega à identificação com os mesmos. As forças dos homens unem-se com as dos espíritos que, normalmente, manifestam-se pelos respectivos animais de identificação como, por exemplo, o macaco, o mutum, a onça. Surge assim o guerreiromacaco, o guerreiro-mutum, o guerreiro-onça. [...] Como guerreiros-bicho, os homens iniciaram a expedição de vingança” (Frikel et al, 1955: 223, n. 28). Os Katxuyana hoje dizem que os antigos eram especialistas nas “guerras invisíveis”, e que a “fusão ritual” entre os espíritos-animais e os xamãs implicava na devoração antropofágica de seus inimigos. Análises aprofundadas sobre a imbricação entre a guerra e o xamanismo também podem ser encontradas na literatura sugerida na nota anterior. 22. Os relatos são abundantes de exemplos. Tomemos o seguinte como ilustração: “Kureru levou somente uma flauta de osso, de perna de gente. Ia na frente, tocando. Tocava, dizendo que agora vinha a hora da vingança e da morte, e que, daí a pouco, ia fazer outra flauta mais bonita, assim como os Katxuyana já estavam fazendo com as canelas do pai dele [...]” (Frikel et al, 1955: 218). 93 em coalizões contra um mesmo oponente – no caso, os mekoro – para, em seguida, espalhar-se nas malocas trombetanas. Essas alianças constituíam e magnificavam a posição masculina, incorporada na figura dos guerreiros (kayari). É de se considerar a importância das mulheres para essa posição, uma vez que sua captura motivava o extermínio dos inimigos, por vezes devorados em cerimônias antropofágicas e, então, eternizados nas insígnias guerreiras, os cinturões de cabelo, as cabeças-troféu e as flautastíbia (Frikel et al, 1955: 209 e s.). Os mekoro eram um inimigo – ou, ao menos, eram um inimigo para os antigos kahyana, que, por sua vez, às vezes, eram inimigos dos antigos katxuyana. Como a narrativa transcrita sugere, não foram pacíficos os (re)encontros entre os antigos kahyana e os mekoro, embora não haja menção a contendas diretas com a participação dos antigos katxuyana. Não obstante, os seus relatos descrevem a agressividade e a voracidade dos mekoro, que presenteavam os antigos kahyana e, em seguida, assaltavam suas malocas para capturar mulheres indígenas. Os Kahyana respondiam à altura, constituindo expedições guerreiras sucessivas para vingar a morte de seus parentes e vizinhos. A excelência guerreira kahyana era incapaz de segurar a agressividade e voracidade mekoro: invariavelmente, essas coalizões determinavam seu extermínio ou deslocamento que, ativo, talvez encontrasse seu sentido na recusa. A propósito da recusa, note-se que as (re) investidas indígenas nos mocambos não implicavam a captura de mulheres mekoro – como, aliás, não implicavam a apropriação da diferença dos mekoro por cerimônias antropofágicas ou insígnias de prestígio. SOBRE ARMAS E CONTAS Uma história katxuyana descreve como os mekoro fizeram-se “parceiros” (pawana) dos índios: 23. 94 Havia uma aldeia velha, Wanahai, escondida na floresta. Seu dono, Wahra’txitxi, andava com seus parentes, fugindo dos karaiwa. Certo dia, sua mulher pediu peixe, e homem foi ao Cachorro procurar. Em sua canoa, que cuidava de esconder no fundo do rio, o velho remou com o neto até uma ilhota, onde armou uma armadilha. E esperou. Apareceram canoas grandes na curva do rio. O neto e o velho fugiram, mas os karaiwa remavam e remavam. O velho disse ao neto que corresse para a maloca, que o deixasse morrer sozinho. E assim foi. Os karaiwa alcançaram Warahtxitxi e explicaram que não eram inimigos, mas o velho não conhecia o português. Os karaiwa presentearam Wahra’txitxi: deram açúcar, mas o velho jogou fora; deram miçanga, mas o velho jogou fora também; deram machado e terçado, mas o velho jogou fora mais uma vez. Os karaiwa deram tudo, mas o velho não conhecia, não entendia. E assim foi, um dia e uma noite. Quando amanheceu, os karaiwa explicaram que não eram inimigos e ofereceram mais presentes. O velho aceitou. Warahtxitxi andou até a maloca e contou para os parentes: os karaiwa eram amigos, tinham presentes. Por isso, permitiram que seu chefe, chamado Vieira, fizesse uma maloca em Mariha, conhecida, em português, como “Vieirão”. Esse relato, a mim narrado por H. Awahuku, dedica-se ao evento que, em português, é descrito como o “contato”. Conforme o narrador, trata-se do tempo em que os antigos eram “bravos” (tïyone) e, à maneira de Wahra’txitxi, escondiam-se nas florestas em malocas pequenas, resguardadas dos inimigos karaiwa, “não indígenas” 23. Como os “isolados” – ou melhor, os “não Os karaiwa dessa narrativa são mekoro, “negros”, como os Katxuyana costumam especificar (ver nota 7, sobre a categoria mekoro). Isso também evidencia-se pela referência à família “Vieira” que, até hoje, distribui-se pelas comunidades de remanescentes de quilombo trombetanas. vistos” (txinehïnï) –, Wahra’txitxi abandonava seus lugares ao perceber o perigo, cuidando de levar a mandioca plantada nos roçados, escondidos e pequenos como as malocas. Wahra’txitxi, desse modo, perambulava, recusando, ativa e intencionalmente, a possibilidade de subordinar-se ou unificar-se aos agressivos karaiwa. Aceitar o contato era aceitar a morte – “deixe-me morrer sozinho”, disse ao neto o velho – que, ressalte-se, também rondava pelo espectro dos finados, exterminados pelas doenças karaiwa ou pelas contendas guerreiras24. Dissipada sua insistência em recusar as relações – análoga à insistência karaiwa em presentear Wahra’txitxi – abriram-se os caminhos para que os antigos deixassem suas aldeias na terra firme para estabelecer-se em malocas às margens do Cachorro e do Trombetas. É certo que essas aldeias, visíveis, os expunham à predileção guerreira dos inimigos indígenas e não indígenas, embora facilitassem o contato com os mekoro e, assim, com as estimadas mercadorias por eles oferecidas. Conta-se que espingardas, faquinhas, munições, miçangas, panelas, tecidos e terçados chegaram das mãos dos mekoro, a quem os índios forneciam, em contrapartida, andiroba, balata, copaíba, seringa e, sobretudo, cães de caça e castanha. Os Katxuyana dizem que, às vezes, buscavam suas encomendas junto aos mekoro nas florestas surinamesas, a elas retornando um ano mais tarde para retribuí-los. Mas foi com os mekoro das florestas brasileiras – em especial, com aqueles que hoje moram nas “comunidades de remanescentes de quilombo” de Abuí e Cachoeira Porteira, no curso do médio Trombetas –, que estabeleceram as parcerias mais reiteradas, adquirindo as mercadorias por eles obtidas de comerciantes citadinos e mascates fluviais no período que se seguiu à abolição da escravidão. Os Katxuyana e os mekoro fizeram-se, assim, “amigos”, “parceiros” – ou, conforme a expressão nativa, pawana. A palavra, cujos cognatos estão presentes em diversas línguas caribe (Rivière, 1969; Howard, 1993; Brightman, 2007; Grotti, 2007; Barbosa, 2007; Grupioni, 2012), é utilizada como referência e vocativo aos parceiros interpessoais, entre os quais estabelecemse intercâmbios baseados na confiança mútua e na reciprocidade protelada. A relação que o termo designa é aquela travada com desconhecidos e forasteiros indígenas ou não indígenas, com os quais não é possível retraçar vínculos cognáticos. A expressão encontra-se relacionada à alteridade e evidencia a predileção ameríndia pelos intercâmbios com desconhecidos, forasteiros ou visitantes, com quem se deve estabelecer algum tipo de parceria25. Imersas na alteridade e na diferença, as relações com desconhecidos e forasteiros envolvem a atenuação do seu potencial predatório, promovida pelos intercâmbios comerciais. Na literatura etnológica guianense proliferam narrativas sobre a transformação de inimigos em amigos, possibilitada por meio do intercâmbio de mercadorias e, em certos casos, de cônjuges (Howard, 2001; Barbosa, 2007; Brightman, 2007; Grotti, 2007). Costumeiramente designado pelo verbo “acostumar” ou “amansar” (-enhonmu) as parcerias pawana caribe conduzem a um “código de civilidade” (Frikel, 1970b) que, no caso katxuyana, envolve diplomacia, discrição, generosidade, gentileza, moderação e receptividade com estrangeiros ou forasteiros. As gentilezas e os presentes que movimentam as parcerias pawana são, em suma, definidores da condição humana socializada. Os mekoro fizeram dos antigos, “bravos” (tïyone), os Katxuyana contemporâneos, autodefinidos por esse “costume” ou 24. Conta-se, a esse propósito, que Wahra’txitxi deixava as malocas por ocasião do falecimento de um parente, cujo espectro chamava à lembrança e à tristeza (tirmahï), associada a um estado corpóreo letárgico ou pesado (tamïne ihuno, lit., “corpo pesado”) que remete à doença e, potencialmente, à morte. Estar perto dos falecidos, era, assim, estar perto do falecimento: em favor da própria vida – mais uma vez, em recusa à morte –, “Wahra’txitxi” também “andava para esquecer”. 25. A propósito dos Aparai e Wayana, Barbosa a define: “Amplamente praticadas pelas populações [guianenses], as parcerias pawana fornecem o modelo às demais formas de intercâmbio e relacionamento interpessoal amistoso. [...] Trata-se de uma relação voluntária, recíproca e exclusiva entre duas pessoas socialmente distantes [...]. Fundadas num ideal de conduta com o outro, essas parcerias baseiam-se numa ética do comedimento e, principalmente, da generosidade entre os parceiros. Seguindo esse ideal de conduta generosa, os parceiros devem solicitar, dar, receber e retribuir tanto bens como hospitalidade, serviços, visitas e gentilezas um ao outro” (Barbosa, 2011: 07). 95 “cultura” (wetohu) que, em muito, distingue-os de Wahra’txitxi. De maneira semelhante, as estimadas espingardas, faquinhas, machados, miçangas, panelas e terçados oferecidas pelos mekoro foram apropriadas criativamente, possibilitando a constituição da singularidade katxuyana pela alteração, isto é, pela apropriação da diferença. Veja-se, por exemplo, as miçangas que constituem posição feminina: as contas de vidro são utilizadas com as sofisticadas técnicas de tecelagem, costumeiramente transmitidas na reclusão que antecede a cerimônia propiciatória (sowowo) que prossegue à menarca; com as miçangas, meninas e mulheres confeccionam os cinturões masculinos (okonumi) e os saiotes femininos (manenohu), os adornos corporais katxuyana que os distinguem nas festas e rituais; são essas miçangas, por fim, que possibilitam às meninas e mulheres relações variadas, com que tanto conseguem mais miçangas, quanto circulam padrões gráficos e ornamentos. Mas isso não é tudo. CRIANDO PARENTES Não conheci os velhos. Quando nasci, já existiam marreteiros, negociantes. Antigamente, não tínhamos machado. Nós não conhecíamos os padres, só os marreteiros. Eles nos ensinaram a caçar [gato], a fazer salga. Só agora, vejo que faziam covardia: as coisas eram caras, até cachaça eles nos vendiam. Éramos como meninos: alguém manda fazer algo, menino faz. Depois os missionários... Para nós a vida era boa. Mas frei Fortunato falou:“em todo canto tem missão: Missão Cururu, Missão Tiriyó. Vocês não querem ir pra lá?”. Mas nós não conhecíamos, como iríamos para lá? “Vou dar um jeito”, disse o missionário, “vou falar com Dom Floriano.” Passado um ano, o bispo voltou: “Sabemos que vocês não estão passando bem nas mãos dos pretos, dos marreteiros. Trabalham como burros, na chuva e na doença, para outros enriquecerem. Vou pedir um avião em Belém”. O Dom marcou dia e chegou com 96 um barco grande, com motor, com rancho. Assim que embarcamos, os marreteiros foram até ele. Disseram que estávamos devendo, mostraram papel. D. Floriano não deu confiança... Fomos para Óbidos, depois para a Missão Tiriyó. Chegaram 39 pessoas, atualmente são 66 ou 67. Essa história, relatada por H. Awahuku a Roberto Cortez (1977: 35) em 1975, remete ao período que precedeu a transferência katxuyana para a Missão Tiriyó, estabelecida pelos franciscanos com o auxílio da Força Aérea Brasileira (FAB) no alto curso do Paru de Oeste, na atual TI Parque do Tumucumaque. Como ressaltado, essa transferência, estimulada pelos missionários, determinou sua separação de uma família katxuyana que, resistente, dirigiu-se para a aldeia-missão Kassawá, instalada pelos evangélicos do Summer Institute of Linguistics (SIL) junto aos Hixkaryana no alto curso do Nhamundá, na atual TI Nhamundá-Mapuera. A transferência também determinou a suspensão das relações com os mekoro trombetanos, retomadas, no começo da última década, com o retorno katxuyana a seu território tradicional. Como o relato sugere, o período que precedeu a transferência katxuyana às aldeias-missão foi marcado pela intensificação das relações com os karaiwa, que avançaram sobre a paisagem trombetana no contexto da expansão (e posterior retração) do extrativismo. A época é comumente denominada por expressões como “tempo da balata” (parakta wetxit’pïrï) e “tempo da castanha” (tutko wetxit’pïrï), com atenção às atividades econômicas que motivavam essas frentes. Nesses tempos, que são também o “tempo das doenças” (wirho wetx’pïrï), os índios fizeram-se “ajudantes” (ahoyarï) dos mekoro e, com os mekoro, de um patrão que comandava um sistema de aviamento regional na segunda metade do século XX. Os Katxuyana contam que apresentaram castanhais aos mekoro, e que cederam algumas “aldeias velhas” ou “antigos lugares” (patatpo) para que acampassem, temporária e sazonalmente, para a coleta. Diz-se que, por vezes, compartilhavam com os luisa g. girardi mekoro essas malocas temporárias, que nomeiam e situam até os dias atuais: eram, entre outras, Curuá, próxima à foz do Cachorro; Mariha, conhecida em português como “Vieira”, no médio Cachorro; e Murusi, na margem esquerda do Mapuera, à embocadura com Trombetas. A castanha – e, um pouco depois, o couro de onça – era a contrapartida principal das mercadorias oferecidas pelos mekoro e por esse patrão, que estabeleceu um barracão de comércio nas proximidades de Cachoeira Porteira. O patrão, que mantinha um regatão entre o entreposto e Oriximiná, adiantava mercadorias e, em cobrança às dívidas, demandava dos mekoro – e, junto aos mekoro, dos índios – sua dedicação à caçada ou ao extrativismo; uma vez realizado o trabalho e quitada a dívida, adiantava novas mercadorias e demandava novos serviços. Conta-se que os empréstimos e endividamentos eram infindáveis – “os marreteiros disseram que estávamos devendo, mostraram o papel”, lembrou H. Awahuku a Roberto Cortez –, mas note-se que ele não é entendido como desvantagem ou submissão: “para nós a vida era boa”, comentou o narrador, “só agora vejo que faziam covardia”. Se o “ajudante” (ahoyarï) colocava-se à disposição dos mekoro (e, com eles, do patrão), deles demandava alimentação e generosidade – além, é claro, das mercadorias26. 26. Destaque-se, nesse sentido, que a patronagem era também compadrio27. Conta-se que, nessa época, os indígenas e os mekoro tornaram-se “compadres” em batismos celebrados pelos mesmos franciscanos que, mais tarde, transfeririam os Katxuyana para a Missão Tiriyó. O compadrio reiterava e selava os vínculos entre os “compadres”, com quem, agora, trocava-se não apenas cães por espingardas ou mercadorias por serviços. Alimento, cuidado, presentes e proteção deveriam ser garantidos aos “afilhados” indígenas pelos “padrinhos” 28 mekoro, que também ofereceram alguns nomes e sobrenomes não indígenas que antecedem os nomes katxuyana em suas certidões de nascimento e documentos de identidade29. Nos acampamentos compartilhados entre “compadres”, os Katxuyana aprenderam como os mekoro cozinhavam, o que plantavam, como comiam, faziam farinha, a língua que falavam, a maneira como negociavam, como trabalhavam. Compartilhar alimento, cuidado, linguagem, nominação, trabalho e proteção é o que se espera de alguém considerado pïrehrï, “parente” ou, literalmente, “minha gente”, “meu pessoal”. Voltamos, portanto, ao aparentamento e à familiarização, isto é, à fabricação do parentesco, inaugurada pelo movimento a que se refere o verbo “acostumar” ou “amansar” (-enhonmu). Aparentar ou A expressão ahoyarï, que me foi traduzida como “ajudante”, é também utilizada para referir-se àqueles que auxiliam um “dono de lugar” ou “chefe” (pata yotono) nas atividades coletivas cotidianas. A expressão também me foi traduzida, nesse sentido, como “segundo cacique”, posição potencialmente ocupada pelo cunhado ou genro de um “dono de lugar” ou “chefe”. 27. O compadrio/patronagem é descrito por diversos etnógrafos amazonistas. Gabriel C. Barbosa (2007) analisa o compadrio-patronagem experimentado pelos Aparai e Wayana, enquanto Julia Frajtag Sauma (2013, 2014) trata de descrever o complexo entre os mekoro que identificam-se como “Filhos do Erepecuru”. Considerações sobre o compadrio-patronagem também podem ser encontradas nos trabalhos de Oiara Bonilla (2005), sobre os Paumari e, mais à distância, de Anne-Marie Losocnzy (1997), sobre os Embera na Colômbia, e de Peter Gow (1991), sobre os Campa e os Piro no Peru. 28. As expressões “afilhado(a)”, “compadre”, “madrinha” e “padrinho” não encontram correspondente direto nas línguas nativas. Em alguns contextos, o par “afilhado” e “padrinho” me foi traduzido, respectivamente, como murerï e paha, que se aplica a todos considerados “filhos” (S, BS, etc.) e “pais” (F, FB, etc.); em outros, como nuhoïtekarï e poïtekarï, “filho de criação” e “pai de criação”; e, em outros ainda, como nuanohïrï e ouwo, “sobrinho” (ZS) e “tio” (MB). Não tenho condições, aqui, para extrair as consequências dessas diferenças – como não tenho para explorar as diferenças entre colocar-se como “ajudante” (ahoyarï) ou como “compadre” –, mas cabe ressaltar se as primeiras relações (murerï/paha) remetem à consanguinidade, as últimas (nuanohïrï/ouwo) remetem à afinidade. Tal variância parece-me congruente com a leitura de Peter Gow (1991: 175) a propósito do compadrazgo entre os Campa e os Piro no Peru, definido, justamente, como uma relação de “quase-afinidade”/“quase-consanguinidade”. 29. João, Maria, Viana, Vieira e Printes são nomes e sobrenomes de batismo que, por vezes, também foram inscritos nos corpos indígenas sob a forma de tatuagens. 98 familiarizar é extrair da afinidade a consanguinidade, da inimizade o parentesco. A continuidade dessa fabricação, interminável, depende da habilidade de “criar” ou, mais precisamente, “fazer crescer” (hoïte-) algo ou alguém, destinando-lhe cuidado, nutrição e orientação. Experimentada e incorporada, essa capacidade é constitutiva da condição humana madura, definida pela justa habilidade de (re)produzir o parentesco, isto é, de “criar” ou “fazer crescer” outro algo ou alguém. Os Katxuyana, portanto, deixaram-se “acostumar” ou “amansar” (-enhonmu) pelos mekoro, fazendo-se “parentes” (pïrehrï) e, às vezes, descrevendo sua condição segundo a metáfora da “mistura” (toskema). Mas a que diria respeito a “mistura” katxuyana? Estariam os Katxuyana virando mekoro, isto é, virando cafuzos, caboclos, mestiços – virando brancos? Como um dia explicou-me um “padrinho” mekoro sobre seu “afilhado” katxuyana, “índio é igual onça: ele adoma, mas ele não amansa nunca, nunquinha”. Essas passagens possibilitariam a transformação da afinidade em consanguinidade, isto é, da alteridade e identidade. Progressão e regressão, todavia, parecem apresentar-se como itinerários simultaneamente possíveis: diante da primazia da afinidade sobre a consanguinidade na fabricação do parentesco amazônico, a transformação da inimizade em parentesco é, necessariamente, reversível30 (Viveiros de Castro, 2002a, 2002c). Em concordância com essa proposta, não me parece possível escolher, de antemão, entre a inimizade e o parentesco – entre a convivialidade e a predação –, tomando uma ou outra posição como explicativo monocausal das relações entre os Katxuyana e os mekoro no Trombetas. A dinâmica entre identidade e alteridade caracteriza as relações afroindígenas trombetanas, à qual, creio, dirige-nos a metáfora nativa da “mistura” (toskema). Contrapondose à noção de “mestiçagem” ou “miscigenação” – que, no contexto *** brasileiro, encontra expressão no “mito da três raças”, fundador À primeira vista, as relações com os mekoro delineiam um enredo progressivo: passar-se-ia da guerra para o de uma identidade nacional homogênea e unificada – a “mistura” comércio e, eventualmente, do comércio para o parentesco. realizada por (e na) contínua diferença. 30. katxuyana é, em suma, “abertura ao outro” (Lévi-Strauss, 1991), Uma polarização entre afinidade e consanguinidade apresenta-se como contraste caro às primeiras sínteses dedicadas às Guianas (Overing, 1983-1984; Rivière, 1984). Nelas, os povos nativos foram retratados como grupos locais dispersos em aldeias pequenas e instáveis, idealmente endogâmicas e com tendências à residência pós-marital uxorilocal. Essas aldeias seriam formadas pelas parentelas dos “chefes-sogro”, capazes de atrair seus genros para perto de si uma vez consumado o casamento com suas filhas. A endogamia e a uxorilocalidade seriam mecanismos para o controle de recursos humanos escassos – da produção do trabalho (e, assim, dos genros) e da sua reprodução (e, portanto, das mulheres) –, expressos pela aliança simétrica prescritiva, responsável por manter a produção e reprodução de riquezas nos limites de um mesmo grupo local. Rivière sustenta que “as trocas com o outro são marcadas mais pela reciprocidade do que pela predação” (1984), e que, nesse sentido, “o exterior é essencial para a existência e a reprodução do interior, [mas] é também perigoso, e os tratos com ele devem ser mantidos em nível mínimo” (Idem: 17). As relações entre exterior e interior somente seriam possíveis quando transmutadas por um mecanismo de expulsão das diferenças: o “outro”, um estrangeiro que pertence ao “exterior”, é percebido como parente ao corresidir em um mesmo local. O afim torna-se, assim, consanguíneo; o alter, logo, transforma-se em ego; a diferença converte-se, portanto, em identidade. Estes seriam, em suma, os resultados da “xenofobia típica da região”. A coletânea “Redes de relações nas Guianas” (Gallois, 2005) levanta questionamentos importantes sobre o modelo explicativo proposto por Overing e Rivière. Os artigos reunidos nesta obra tratam de temas que promovem a abertura da sociocosmologia indígena, como o comércio, a guerra, a espaçotemporalidade e o xamanismo (ver, respectivamente, Barbosa, 2005; Pateo, 2005; Grupioni, 2005; Sztutman, 2005) e, assim, “[...] questionam a imagem do atomismo guianense como correspondendo a uma forma estrutural nativa. Buscam, cada um a seu modo, mostrar como essa imagem fornece apenas uma visão parcial da vida social nas Guianas” (Gallois, 2005: 19; grifos meus). Esses trabalhos procuram superar recortes espaciais e étnicos nas reflexões sobre os povos indígenas da área em questão, focando-se, para tanto, nas relações que ultrapassam as fronteiras dos “grupos locais” e “grupos regionais”. A ênfase permite uma reflexão sobre a região nos termos da noção de “rede”, que possibilita, justamente, uma crítica à dicotomia entre o “interior” e “exterior”. 99 BIBLIOGRAFIA ACEVEDO, Rosa & CASTRO, Edna. Negros do Trombetas: guardiães de matas e rios. Belém: UFPA, 1993. ANDRADE, Lúcia. Os quilombos da bacia do rio Trombetas: breve histórico. In: Revista de Antropologia, vol. 38, n. 1. São Paulo: USP, 1995. BARBOSA, Gabriel Coutinho. Formas de intercâmbio, circulação de bens e a (re)produção das redes de relações aparai e wayana. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PPGAS/USP, 2002. _____. Das Trocas de Bens. In: GALLOIS, Dominique (org.). Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Humanitas/ Fapesp, 2005. _____. Os Aparai, os Wayana e suas redes de intercâmbio. Tese de Doutorado. São Paulo: PPGAS/USP, 2007. _____. Os Aparai, Wayana meridionais e os meikoro: domesticando cães, espingardas e pessoas. Manuscrito apresentado no 35º Encontro da ANPOCS. Caxambu: ANPOCS, 2011. 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O pertencimento de cada “subgrupo” indígena a uma ou outra dessas etnias pode ser melhor compreendido a partir de razões sociológicas, cosmológicas e históricas. Neste último caso, as circunstâncias particulares de intervenção perpetradas por agentes da sociedade ocidental – em especial a ação missionária – tiveram um papel crucial na formação e na “invenção” dessas duas unidades culturais e sociais que ora denominamos Waiwai e Katxuyana. Na verdade, ainda há poucos estudos sobre a história e a cosmologia desses grupos. Sobre a cosmologia Waiwai, contamos com um trabalho em inglês precursor e essencial: trata-se da etnografia de Niels Fock, datada de 1963, denominada “Waiwai: religion and society of an Amazonian tribe”. Sobre a história Katxuyana, contamos com textos dispersos de Protásio Frikel, notadamente, “Os Katxuyana: notas etno-históricas”, publicado em 1970. Estes dois textos são pontos de partida – ainda que datados e limitados – para o presente trabalho e nos servem para compreender o fundo histórico-cosmológico da paisagem e da ocupação indígena no município de Oriximiná, particularmente no vale do rio Trombetas.3 Cronistas, missionários, antropólogos e indigenistas que percorreram e descreveram a região usaram com frequência categorias distintas para designar tais “grupos” ou “subgrupos” indígenas: povo, nação, tribo, linhagem, sociedade, cultura.2 Há várias razões para essa variação terminológica, mas todas as designações guardam uma dificuldade em circunscrever a unidade social à qual se quer fazer referência. Unidades sociais aqui na região mencionada são associações provisórias e fortemente marcadas pelo fator de migração, intercasamentos e locais de moradia. Está que fatores como filiação, ou linhas de continuidade, como a antropóloga Denise Fajardo Grupioni Estamos cientes de que a carência de documentos históricos e a pouca profundidade nos relatos dos cronistas são circunstâncias que impedem que se tenha uma melhor compreensão da região. Ao mesmo tempo, tal constatação nos faz crer na necessidade de novos estudos na área da história e da arqueologia e, fundamentalmente, em uma história indígena ou feita a partir da perspectiva indígena. Curiosamente, o estudo de Protásio Frikel acima citado – ainda que demasiadamente especulativo e herdeiro que é de uma tradição ultrapassada na antropologia, o difusionismo – pretende articular cosmologia e história na compreensão do povo Katxuyana e defende que a mitologia 1. 2. 3. 106 (2002, 2005) prefere denominar a propósito dos Tiriyó, devem ser levados em conta nesses tipos de associações e formações indígenas. Contudo, neste trabalho, pretendemos focar em duas dimensões da vida social para dar conta de circunscrever os grupos Waiwai e Katxuayna no tempo e no espaço presentes: a história e a cosmologia. Katxuyana, esta parece ser a nova grafia que vem sendo estabelecida em um trabalho conjunto de linguistas e indígenas. Por isso, a adotamos aqui, exceto quando aparece em citações. Neste caso, precisamos manter a grafia do texto citado, por exemplo, Katxuyana. Neste trabalho, vamos usar, na maioria dos casos, a categoria “povo” para nos referirmos aos grupos indígenas, por achar que ela está mais próxima do conceito nativo de yana ou yenna, um coletivo de pessoas humanas, que, na verdade, também se estende às não-humanas. Por exemplo, Katxuyana (Katxu + Yana) quer dizer povo (Yana) do rio Katxuru (rio Cachorro). Algumas dissertações de mestrado têm, nos últimos anos, suprido em parte a carência de dados etnográficos na região, como a de Oliveira (2010) sobre os Waiwai, a de Girardi (2011) sobre os Katxuyana e a de Lucas (2014) sobre os Hixkaryana. As duas primeiras se desdobraram em teses de doutorado, atualmente em preparação. indígena pode ser uma linha auxiliar da história e vice-versa, sobretudo para aqueles casos nos quais não há qualquer documento escrito (isso vale para o período anterior à chegada dos europeus) ou, se existe, é pouco confiável.4 A articulação entre mito e história, na verdade, aparece nos relatos dos próprios informantes indígenas de Protásio Frikel, o que leva o antropólogo a acreditar que há uma espécie de tendência “mitologizante” da história, isto é, uma tendência a “substituir fatos históricos por traços mitológicos” (Frikel, 1970: 25). A afirmação do autor se deve ao fato de que ele era incapaz, na época, de reconhecer um traço marcante na cosmologia indígena, ou seja, a ausência de fronteiras absolutas entre humanos e não-humanos no passado pré-cosmológico. Na sua ânsia de separar história e mitologia, Frikel aponta que os relatos dos Katxuyana sobre um movimento migratório mais recente a partir do leste (depois da chegada do colonizador europeu), a propósito dos grupos que subiram os rios Amazonas e Trombetas, mencionam personagens e paisagens reais, bem conhecidos, como Santarém e Óbidos. Já o relato da imigração do oeste (por se tratar de uma época mais recuada, no passado anterior à invasão europeia) “apresenta os fatos em forma de um mito, escondendo os dados históricos sob o véu misterioso ou mistificante de figuras, as mais das vezes zoomórfas, tratandose de grupos alheios; ou antropomorfas, quando se trata do próprio grupo.” E, a partir disso, conclui: “No conjunto, constatam-se, portanto, duas maneiras de apresentação histórica que poderíamos denominar, uma, de mítica, outra de realista” (Frikel, 1970: 25). Do nosso ponto de vista, os dois relatos falam sobre o passado katxuyana a partir da experiência vivida e da sua cosmologia, sem que possamos discernir uma fronteira rígida entre fato realista e mítico. Os mitos dizem menos sobre o passado do que sobre as formas de organização social contemporânea, sobre as migrações, 4. a dispersão e, em suma, sobre como os índios se adequam ou se transformam em sua relação com o mundo dos não-indígenas que lhes chega na forma de mercadorias, ação missionária, políticas públicas, territorializações decorrentes das figuras jurídicas de terra indígena e das divisões administrativas entre estados e países. Enfim, de acordo com Marshall Sahlins (2008: 28), no seu livro “Metáforas históricas e realidades míticas”, o maior desafio para uma antropologia histórica é “não apenas saber como os eventos são ordenados pela cultura, mas como, nesse processo, a cultura é reordenada. Como a reprodução de uma estrutura se torna sua transformação?”. O objetivo maior do presente texto é menos falar sobre a organização social e mais sobre a distribuição espacial das unidades sociais (ainda que fluidas e dinâmicas), hoje, na paisagem do rio Trombetas – a partir de registros históricos e mitológicos. Apesar das limitações da obra de Frikel Protásio, conforme já assinalamos acima, acreditamos que é bastante importante e ainda atual a sua tentativa de desenhar um quadro da distribuição espacial – a partir de critérios linguísticoculturais e de proximidade geográfica – das unidades sociais no Pará setentrional e das suas zonas adjacentes, que, hoje, sabemos, formam uma rede de socialidade mais abrangente na região das Guianas. Ao fazer um resumo desta classificação proposta pelo autor, podemos falar de três complexos culturais – todos eles filiados à família linguística caribe, com exceção de uma pequena área (situada na margem esquerda do alto rio Mapuera) ocupada originalmente pelo povo Mawayana, falante da família aruaque –: 1) Complexo Parukuto-Charuma, composto pelos povos que ocupam a parte noroeste da bacia do rio Trombetas (incluindo o rio Nhamundá e o rio Jatapu). Os principais povos aqui Frikel (1970: 07) cita uma frase de um outro grande nome da antropologia brasileira, Eduardo Galvão, para corroborar o seu método: “a reconstituição através do mito e da memória tribal poderá parecer ousada, mas pode abrir caminho.” 107 citados são: Waiwai, Hexkaryana, Xereu, Mawayana, Karapawyana, Tunayana, Parukoto, Katuena;5 2) Complexo Warikyana, composto pelos povos que ocupam a parte central da bacia do rio Trombetas, às margens desse próprio rio e de seus afluentes médios: rios Cachorro, Cachorrinho, Yaskuri e Kaspakuru. Os principais grupos aqui citados são: Katxuyana, Yaskuriyana, Kahuyana, Kahyana, Ingarüne, Ewarohyana; e 3) Complexo Pianokoto-Tiriyó, composto pelos povos que ocupam a parte oriental da bacia do Trombetas, nos interflúvios do Panamá-Marapi-Paru de Oeste-Paru de Leste. Os principais grupos citados são: Prouyana, Okomoyana, Aramagotó e Akuriyó.6 No contexto do presente trabalho, vamos relatar aspectos da história e da cosmologia dos dois primeiros complexos acima citados, mostrando que de fato há entre eles uma diferença marcante. Se consideramos que o Complexo Parukoto-Charuma se assemelha muito em suas dimensões culturais e linguísticas ao Complexo Pianokoto-Tiriyó, podemos reconhecer, de acordo com Frikel Protásio, que o Complexo Warikyana, do qual fazem parte os Katxuyana, na zona central do rio Trombetas, situa-se como uma espécie de cunha entre os dois primeiros complexos. A LONGA HISTÓRIA NA REGIÃO: DESDE A CHEGADA DOS EUROPEUS Todas as cidades do baixo rio Trombetas foram fundadas em lugares que antes eram habitações indígenas ou por indígenas 5. 6. 7. 108 que desceram das cabeceiras dos rios para fundá-las: Óbidos, Oriximiná, Nhamundá, Faro. Por exemplo, quando, em 1697, o capitão Manoel da Mota e Siqueira construiu, por ordem do capitão-general e governador do Grão-Pará, uma fortaleza no local onde hoje se situa a cidade de Óbidos, ali já atuavam os missionários da Piedade7, promovendo a redução de índios então denominados de Pauxis (ou Pauchis), “dos quais a fortaleza e o novo lugar tomaram seu nome” (Frikel, 1970, p. 38). Ainda segundo o mesmo autor: A fortaleza, por sua vez, precisou sempre do braço indígena para sua construção, conservação e manutenção. Muitos dos índios se evadiram devido aos maus tratos que recebiam. Por isso, a população, de vez em quando, foi reforçada por descimentos de silvícolas do Rio Trombetas. Frikel, 1970. Trinta anos depois, mais precisamente em 1725, sob o comando do frei Francisco de São Manços – pelo que se sabe, o primeiro português a subir o alto rio Trombetas –, foram realizadas três expedições com o objetivo de localizar e atrair indígenas para as missões-aldeias no baixo curso deste rio. Tais expedições foram minuciosamente descritas pelo frei Francisco de São Manços no seu “Relatório”, o documento escrito mais importante até hoje produzido para a região durante todo o período colonial, submetido a uma recente análise e interpretação geográfica e etno-histórica por parte de Antônio Porro (2008). De acordo com este autor, a importância do documento se deve ao fato de que ele nomeia e localiza um conjunto de cerca de 50 ‘nações’ indígenas, “quase todas ignoradas pelas fontes históricas e etnográficas Aqui, optamos por usar a ortografia mais corrente na atualidade para nos referir a esses povos, e não aquela empregada por Frikel Protásio (1958: 132). Este autor cita 26 “subgrupos” ou povos filiados ao Complexo Tarumã-Parukoto. Hoje sabemos que muitas destas denominações são apenas variações para designar um mesmo “grupo” ou, como preferimos, povo. Conforme a literatura etnológica contemporânea tem revelado, os nomes próprios que definem uma “unidade social” ou grupo “étnico” nesta região (e alhures) não são autoatribuições, mas, sim, designações atribuídas por grupos “externos” (ver, por exemplo, Viveiros de Castro, 2002). Na verdade, a maior parte dos povos deste complexo habita o lado do Suriname, nas cabeceiras dos rios que desaguam no Atlântico, principalmente Shipariwini, Tupanahoni e Paloemeu. De acordo com Frikel (1970: 38), “os missionários da Piedade, também chamados Capuchos da Piedade, eram os antigos Franciscanos da Província da Piedade, em Portugal. Não eram os atuais ‘Capuchinhos’, que naqueles tempos foram denominados ‘Barbadinhos’.” posteriores, além de mencionar muitas de suas aldeias e de seus chefes” (Porro 2008, p. 387, grifo nosso)8. Francisco de São Manços era o frei responsável pela vila de São João Batista de Nhamundás9. Na sua primeira viagem ao rio Trombetas, em 1725, ele encontrou os índios Abuí (Wabuí) no lago de mesmo nome, na margem direita do rio Trombetas, de frente ao atual lago Jacaré (Frikel, 1970, p. 38), que se localiza logo abaixo da atual vila de Cachoeira Porteira. De lá, disse Porro (2008, p. 388), foram trazidos e assentados “na missão 162 índios da nação Babuhi [Uaboy], além de 70 da nação Nhamundá, provavelmente do rio homônimo”. Uma segunda expedição, solicitada pelo frei Manços, foi realizada em 1726 pelo seu assistente frei Francisco Alvor (e composta de mais 41 índios, além do soldado Francisco Dias, do presídio de Óbidos). Neste empreendimento, os expedicionários conseguiram arrebanhar para a missão apenas um casal da “nação” Parukoto habitante do rio Urucurin. Diversos chefes de aldeias vieram e ouviram sua exortação para que descessem com ele em seu retorno à missão do Nhamundá. Ao final dos entendimentos, o ‘chefe maioral’ daqueles Parukotó, Teumigé, da aldeia de Moxotoreí, determinou que dois outros chefes subalternos seus, Maxacari, da aldeia de Moiri, e Tomari, da aldeia de Momonhari, fossem com o missionário. A 19 de dezembro, a expedição começou a viagem de regresso levando consigo, ao todo, 40 índios parukotó; chegaram sem maiores incidentes à missão do Nhamundá a 1o de janeiro de 1728. Porro, 2008: 394. Conforme demonstramos em outro texto, Caixeta de Queiroz (2014), bem como no relatório de identificação e delimitação da TI Katxuyana-Tunayana, destas expedições e do “relatório” de São Manços, podemos extrair quatro conclusões muito importantes: 1) o rio Mapuera e os seus principais afluentes da margem direita (rios Acari, Baracuxi, e Tauini) e da margem esquerda Informado pelo seu assistente frei Alvor que nas cabeceiras do rio Trombetas (na verdade, como demonstra Antônio Porro, do rio Mapuera10) haveria inúmeras “nações” incógnitas, o próprio (rio Urucurim) eram habitados por uma grande quantidade de frei Manços realizou uma terceira expedição, subindo o rio Trombetas a partir da Vila de Nhamundá, no dia 28 de outubro de 1727. De acordo com a síntese de Antônio Porro: constitui, pois, como uma unidade territorial e etnográfica, grupos ou “nações” distintas – mais de 50 são citadas –; 2) todos estes grupos ocupavam a bacia do rio Trombetas, área que se ocupada por diferentes grupos indígenas, com diferentes dialetos, mas inscritos num mesmo complexo cultural; 3) estes grupos 8. “Além de ser a mais antiga, a ‘Relação’ de São Manços é, também, a única fonte anterior a meados do século XIX a nomear e a situar, em relação à hidrografia da região, um grande número de grupos indígenas e suas aldeias.” (Porro, 2008: 388) 9. “Em 1693, com a redistribuição dos territórios missionários, a aldeia jesuítica de Santa Cruz do Jamundá (ou Nhamundá), junto ao baixo curso daquele rio, passou à gestão dos Capuchos da Piedade sob a denominação de São João Batista de Nhamundás (Leite, 1943, p. 277-278). Alguns anos mais tarde, a aldeia foi transferida para as margens do lago de Faro, de ares mais salubres e de melhor acesso, onde iria dar origem à cidade deste nome”. (Porro, 2008: 388). 10. De acordo com o “Relatório” de São Manços, as expedições comandadas por sua missão teriam subido até as cabeceiras do rio Trombetas. Contudo, segundo Antônio Porro, a partir da cachoeira Porteira, os missionários teriam seguido o curso do rio Mapuera. Porro ainda relativiza este “equívoco”, ao dizer que, obviamente, “ao denominar ‘Trombetas’ o rio Mapuera, São Manços não estava cometendo um erro geográfico; o ‘verdadeiro’ curso de um rio tem sido, muitas vezes, mera convenção geográfica, e o ‘verdadeiro’ alto Trombetas ainda não era conhecido” (Porro 2008: 393). Além disso, ainda é preciso acrescentar que, na sua parte norte, o rio Mapuera é formado pela confluência dos rios Tauini (margem direita) e do rio Urucurim (margem esquerda). As cabeceiras deste último rio se aproximam das cabeceiras do rio Cafuini, que é exatamente um afluente da margem direita do rio Trombetas. Através destes interflúvio, Urucurin-Cafuini, os grupos indígenas da bacia do alto Mapuera comunicavam-se e tinham extensas relações com os grupos indígenas da bacia do alto Trombetas. Ou seja, no final das contas, alto Mapuera e alto Trombetas situam-se numa mesma “área etnográfica”. 109 ruben caixeta de queiroz mantinham-se relativamente isolados com relação às frentes de penetração da colonização portuguesa a partir da foz do rio Trombetas (frei São Manços teria sido o primeiro missionário português a subir este rio, conforme citado); 4) contudo, estas “nações” indígenas não estavam sem qualquer tipo de contato com a colonização europeia, muito pelo contrário, no século XVIII, tais indígenas sofriam pressão do norte, por meio dos holandeses, que buscavam mão de obra escrava em troca de mercadorias manufaturadas. Para confirmar o último ponto acima, podemos citar uma interpretação de Porro (2008: 396) extraída do “relatório” de Manços: A guerra, sob forma de ataques, incursões e razias, parece ter sido uma modalidade habitual de relações intertribais. Uma das suas principais finalidades, senão a principal, era a obtenção de escravos destinados ao escambo por mercadorias. A nação dos Paranancari [=Faranakaru]11, do extremo norte, era a “primeira que recebe ‘fazendas’ [mercadorias] da mão do Holandês, para as distribuir e passar [trocar] por escravos por todas as nações que ficam pelos rios”. Conforme já foi dito, o forte de Pauxis (atual cidade de Óbidos) sempre foi reabastecido com população indígena habitante do rio Trombetas. Num dos descimentos, em 1747, relata-nos Baena (apud Frikel, 1970: 39) que se “praticou enormidades e delictos, a cujo castigo se evadio transfugindo para a espessura do Trombetas.” O comentário de Frikel a seguir explica a subida ou fuga dos índios de Pauxis para as cabeceiras do rio Trombetas e seus afluentes: Houve um massacre por parte dos índios revoltados que serviram ao forte e aos colonos. Esta matança, provàvelmente, foi a razão da grande “arribação” dos índios do baixo Trombetas, dos Pawixi (Pauxís) e de outros grupos (Mêrêwá, etc.), dos quais a tradição Katxuyana fala [ainda hoje, 2014]. Primeiro separaram-se os Pawíxi que se refugiaram nas matas do rio Cuminá/Erepecuru12 [afluente da margem esquerda do rio Trombetas]. Nimuendaju (1948, 3: 211) menciona como nôvo “habitat” dêsses índios as cabeceiras dos afluentes do Cuminá, mais exatamente do baixo Erepecuru: Acapu, Água Fria e Penecura. A frase conclusiva: “The Pauxi no longer exist” (ibid.), parece-nos precipitada. Até 1946, os Katxuyana ainda tiveram contatos ocasionais com os Pawiyána do alto Küate/Ponékuru que é o nome correto do igarapé Penecura, no dialeto Katxuyana13. E mesmo no decênio 1950 a 1960, os Páwiyána ou Pawixi tiveram contatos esporádicos com os castanheiros que subiram o rio Erepecuru. Frikel, 1970: 39. Depois do documento de São Manços, datado de 1729, passaram-se cerca de cem anos sem que tivéssemos registros 11. Na verdade, muito provavelmente, como tem sido demonstrado pela etnografia contemporânea (Rivière, 1969: 14, n.1; Howard, 2003: 60 ), o termo paranancari, usado pelos índios Parukoto, de quem o frei recebeu a menção, pode ter sido usado pelos indígenas para designar os próprios holandeses. Ainda hoje, a palavra panarakari é utilizada por povos da família caribe para fazer referência aos estrangeiros com os quais estabelecem relações. Além disso, é preciso acrescentar que, mais ao norte das cabeceiras dos rios Trombetas e Mapuera, “um circuito comercial análogo, que envolvia holandeses do Essequibo e tribos do alto rio Branco, do rio Negro e do Solimões nessa modalidade de troca havia sido descrito ao final do século XVII pelo jesuíta Samuel Fritz, e é provável que a sua dinâmica estivesse enraizada numa tradição pré-européia de comércio intertribal” (Porro, 2008: 396). 12. [Nota do autor, 44]. “Uma informação Katxuyana diz: “Arapkúru é denominação Ingarüme (Katxuyana) para o Erepecuru; Kumína (Cumína) é a dos Pianokotó. Mas o rio é o mesmo.” 13. [Nota do autor, 45] “Referem os Katxuyana que, antigamente, existiam relações mais estreitas entre os dois grupos, que se visitaram mùtuamente e fizeram festas em comum.” 111 mais precisos sobre os índios do interflúvio do Trombetas – e é razoável conceber que eles tivessem mantido uma relativa independência com relação às frentes de colonização que ocupavam as regiões mais próximas da foz do rio. Em 1835, face à guerra denominada Cabanagem, os escravos negros, revoltosos contra os seus senhores e em busca de liberdade, subiram o rio em busca de proteção e fundaram quilombos famosos como o Maravilha, quase na boca do rio Kaspakuro. Nesta subida, os negros se aproximavam dos indígenas e deles adotavam práticas de agricultura (como o cultivo da mandioca) e contraíam casamentos (ou, mais frequentemente, “arranjavam” mulheres indígenas para homens negros), mas, ao mesmo tempo, entravam em conflitos com os indígenas e os obrigavam a subir ainda mais para as cabeceiras dos rios. Na segunda metade do século XIX, várias expedições punitivas aos quilombolas foram desencadeadas pelos soldados da Guarda Nacional, dentre elas, a famosa invasão do quilombo Maravilha em 1855. Comandada por João Maximiano de Souza, a expedição de punição se deparou com negros que desciam o rio, alguns dos quais conseguiram regressar ao mocambo antes dos oficiais e alertar as outras pessoas sobre a aproximação da expedição. Não obstante, um homem foi capturado, informando que o quilombo “[...] comportava pessoal de ambos os sexos, superior a 70 negros, e que [estavam] em contacto com os gentios [indígenas], menos alguns que são antropophagos” (Souza, 1875 apud Funes, 1995: 149). O mesmo homem afirmou que negros e índios estariam em contato com “mascates e comerciantes de Demerara” (Idem: 150), na Guiana Holandesa, e não seria descabido supor que esses povos também praticassem trocas matrimoniais. Nas cercanias do Maravilha, guias Munduruku encontraram indígenas “[...] de cor alva e barbados, e outros de cor abronzada e cabellos crespos” (Idem: 150), dando sugestões sobre um possível processo de miscigenação. Maximiano de Souza finalizou os seus relatos com a previsão de que os mocambos do Trombetas iriam permanecer, favorecidos pela aliança estabelecida pelos negros com os nativos (gentios ou indígenas) da região. 112 É minha opinião que os negros quilombolas hão de sempre zombar da força pública que ali for para batelos, pelos muitos recursos naturaes que lhes presta o terreno, quase inacessível e pestilento, concorrendo também efficazmente a alliança em que estão com os gentios, sendo-lhes, por isso, facillimo transportarem-se guiados por aquelles centros. Operada a catechese dos gentios ficarão então os negros isolados e desprotegidos desse auxilio vantajoso. Souza, 1875 apud Funes, 1995: 151. Portanto, os escravos fugidos mantinham com os indígenas do vale do rio Trombetas ora relações belicosas, empurrando-os para as cabeceiras, ora alianças pacíficas. O certo é que houve, no século XIX, uma extensa rede de relações entre indígenas e negros nesta região que, inclusive, a partir do Brasil, chegou até os países vizinhos. Os quilombos que por aqui (vale do rio Cuminá) existiam e, segundo consta, ficavam acima da cachoeira do Cajual e do rio Penecura, eram filiados aos nascidos, em 1840, no Trombetas, com os quais se comunicavam por terra. Aliás quase todos os rios da Amazônia tiveram desses refúgios de escravos e até no alto Içá, Crevaux foi surpresar a choça de uma preta velha. Parece que tanto no Trombetas como no Cuminá, os mocambeiros, temendo o gentio, nunca se localizaram muito acima das primeiras cachoeiras. Contudo, diz-se que eles acabaram por manter relações com os selvagens e há quem adiante que, por meio das tribos Ariquena, Charuma e Tunayana, através dos Tiriôs da Guiana, e passando pelos Pianacotós, eles chegaram a estabelecer contactos com seus irmãos, os negros da mata (bushnegroes) de Suriname, também escapos ao cativeiro. Cruls, 1930: 33-34, apud Wanderley, 2006: 15-16 [Grifos nossos]. Com base nas fontes consultadas (Salles, 1971; Andrade, 1995; Acevedo e Castro, 1993), o trabalho de Wanderley (2008: 83) oferece um curto e preciso resumo da ocupação quilombola no rio Trombetas no final do século XIX e início do século XX: A ocupação negra no Vale do Trombetas teve início nas partes altas do rio, acima das cachoeiras, onde a morfologia funcionava como uma barreira natural protetora, separando o mundo dos negros do mundo dos brancos. Neste período, houve a aproximação e a miscigenação com povos indígenas, que lhes proporcionaram o conhecimento sobre a dinâmica da floresta e das águas, um dos elementos essenciais da cultura negra no Trombetas. No fim do século XIX e início do XX, com a diminuição da pressão e o término da escravidão, iniciou-se o processo de descenso dos negros, que aos poucos ocuparam o médio curso do Trombetas, localidade onde ainda se encontram. Parte da população indígena, por sua vez, parece ter se afastado para as cabeceiras, diante das ameaças que representava a chegada dos “negros estrangeiros” fugindo da escravidão e da colonização. Os grupos Tunayana e Katuena, que ocupavam o interior do rio Turuna e o alto rio Trombetas, lá ficariam, sem quase nenhum contato direto com os brancos até os anos de 1960, limitando-se ao uso de material lítico (pedra) ou madeira na confecção dos seus instrumentos de trabalho. Já os povos do Complexo Warikyana (do qual fazem parte os Katxuyana, que habitavam os cursos do médio rio Trombetas, como os rios Cachorro, Ambrósio, Kuhá e Yaskuri) parecem ter sofrido duros abalos demográficos em função, sobretudo, das doenças trazidas pelos quilombolas (ou “mocambeiros”, como foram descritos pelos viajantes e administradores), ou por frentes de colonização. Segundo Frikel (1970: 40-41), os relatos dos Katxuyana falam de doenças introduzidas pelos mocambeiros, apanhadas, sem dúvida, no baixo rio, onde eles tinham os seus pontos de contato comercial clandestinos, para o recebimento de panos, munição e ferramentas que ali trocavam por salsa, breus, couros e outros artigos da mata. Houve surtos epidêmicos que levaram muitos índios para a cova. Todavia, eles parecem ter sido menos terríveis que os de sarampo da década de 1920 a 1930. Em todo o caso, essas doenças contribuíram da mesma maneira para a diminuição demográfica da região. A AÇÃO MISSIONÁRIA, A PARTIR DO FINAL DA DÉCADA DE 1940 Se no final do século XIX constatou-se o abrandamento da perseguição e da captura pelos senhores de escravos fugitivos, verificou-se igualmente a continuidade do processo de conversão religiosa, de pregação da fé entre índios e negros, da “descida” dos índios e da formação de “vilas” cristãs. Neste sentido, é necessário apontar que a atual cidade de Oriximiná, do baixo rio Trombetas, foi erguida sobre uma antiga aldeia indígena, sob o comando do padre Nicolino, ele mesmo um índio convertido dos antigos Hixkaryana habitantes do rio Nhamundá, que tinha como missão catequizar os índios do rio Trombetas. Com base nas fontes jornalísticas da época e nas informações da Prelazia de Santarém, Funes nos diz: Em 28 de setembro de 1890, chegou a Uruá-Tapera, Gonçalves Tocantins, que a descreveu como uma florescente povoação à margem esquerda do Trombetas, que poucos annos antes havia sido fundada pelo Padre Nicolino (dez. 1877) (...) Alma verdadeiramente christã, se havia feito espontaneamente um missionário, um apostolo daquella pobre gente. Imagine-se com quanto alvoroço aquelles infelizes recebiam o ministro Redemptor, que ia procurá-los nos desertos, baptisarlhes os filhos, celebrar missa, casamento, e levarlhes palavras de conforto e consolação. Dois ideais empolgaram a vida do Pe. Nicolino: “A pacificação e cristianização dos pretos mocambeiros dos rios Trombetas e Erepecurú e a catequese entre os índios.” Para alcançar tais fins, empreendeu várias viagens por 113 estes rios. Assim, o vemos em 1876 em Porteira, no alto Trombetas, catequizando e batizando grande número de pretos daquela região. Faleceu em 1882, no rio no alto rio Essequibo, sul da atual Guiana, no ano de 1949, Provavelmente existem outros duzentos índios do outro lado da fronteira do Brasil, e é neles que estamos realmente interessados. Os Waiwai da Guiana atuam como sementes, propagando a Palavra para eles – por isso é que estamos concentrando nossos esforços para convertê-los antes de tudo. Entrementes estamos tentando convencer os índios brasileiros a abandonar suas aldeias e vir morar aqui. Oferecemo-lhes facas, espelhos, miçangas – tudo o que apreciam. Enviamos mensageiros através das fronteiras, para contar-lhes que aqui viveriam muito melhor. com o objetivo de intervir e converter aquele povo, considerado Guppy, 1958: 20. Erepecurú, quando fazia sua terceira viagem a esse rio.” Funes, 2004: 11. Contudo, foi a partir do final da década de 1940 que se iniciou um processo radical de proselitismo cristão na região, responsável direto pela criação de grandes aldeias compósitas de diferentes povos e pelo esvaziamento daquele modelo de pequenas aldeias dispersas. A primeira frente evangélica, composta pelos missionários americanos Nilo, Jaime e Roberto Hawkins, chegou por eles como “animista e escravizado por um relacionamento espiritual com entidades demoníacas e extremamente resistente ao evangelho.” Ali os missionários fundaram a Missão Kanashen e, depois de cerca de cinco anos, conseguiram “destruir” as forças e os “espíritos” de um xamã bastante respeitado entre os Waiwai: Ewká.14 Depois disso, por meio de Ewká, várias expedições e pregações religiosas foram direcionadas a outros povos que viviam do lado brasileiro. O movimento de conversão dos índios Xereu, por exemplo, aconteceu em 1954. Os missionários Robert Hawkins e Claude Leavitt (este último tinha se juntado aos irmãos Hawkins em 1953) desceram o rio Mapuera, acompanhados de índios Waiwai, anunciando o fim iminente do mundo. Os Xereu do baixo Mapuera, então, temorosos, mudaram-se para perto da missão na Guiana, onde acreditavam estar mais protegidos. Além do discurso escatológico, os missionários prometiam aos índios habitantes do lado do Brasil, caso se mudassem para perto da missão no país vizinho, remédios e presentes como armas de fogo, miçangas, facas, espelhos. 14. 114 Desta forma, o missionário Claude Leavitt teria resumido o espírito da sua missão: De forma muito semelhante ao caso dos Xereu, os missionários promoveram incursões nos anos de 1966 e 1967, no alto rio Trombetas, atraindo para a aldeia-missão Kanashen uma parte dos grupos Katuena, Tunayana, Xereu e Kahyana. Outra parte destes grupos foi atraída para uma outra aldeia que tinha sido criada pelos mesmos missionários no sul do Suriname: Kwamará. Desta maneira, as duas aldeias, Kanashen e Kwamará (que existem ainda hoje), funcionaram como polo de atração e aglutinação de diferentes povos que estavam situados, anteriormente, do lado brasileiro. Uma outra frente missionária evangélica, desta feita conduzida pelo casal Derbyshire, ligado ao Summer Institute of Linguistics, instalou-se junto aos Hixkaryana, no ano de 1958, no rio Nhamundá, onde hoje ainda está situada a aldeia Kassauá. Apesar de os missionários americanos de Kanashen já, naquela época, terem feito também expedições de proselitismo religioso junto aos Hixkaryana do Nhamundá, a missão do Summer instalada ali funcionou como outro polo de atração e, deste modo, impediu uma migração indígena em massa para a Guiana. Sobre a saga de conversão deste xamã, ver o artigo de Caixeta de Queiroz (1999) e a tese de Howard (2003). Ao mesmo tempo, para a aldeia, Kassauá migraram vários povos do alto rio Nhamundá e até do rio Jatapu que vinham sofrendo o surto de epidemias como a gripe e o sarampo, depois de terem sido atraídos para o Posto de Jatapu (onde hoje está situada a aldeia de Santa Maria), por volta do ano de 1963, por uma ação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Porém, uma década depois, o SPI abandonou definitivamente a área. Os Katxuyana, por sua vez, já tinham enfrentado de forma mais direta e persistente os avanços das frentes de colonização e dos quilombolas nas cercanias do rio Cachorro e do médio rio Trombetas desde, pelo menos, a metade do século XIX. As doenças oriundas deste contato se prolongaram durante toda a primeira metade do século seguinte. Desta forma, por volta de 1925, uma epidemia de sarampo se alastrou entre a sua população, que era então estimada entre 300 e 500 pessoas, como nos conta Frikel (1970: 44): Os índios enfermos, com febre alta, procuraram ‘refrescar o sangue’, tomando banho na água fria. Em consequência disso, pegaram, no mais das vezes, pneumonia e com isso a morte certa. A mortandade foi enorme. Os índios entraram em pânico. Foi uma tragédia! Durante a nossa estadia no Kaxuru, os índios mais velhos contaram que aqueles que ainda estavam bons já não tinham mais tempo nem vontade de enterrar os mortos, abandonando os cadáveres juntamente com os doentes, fugiram para a mata. Quando, passada a epidemia, de novo se reuniram, restavam apenas 80 ou 90 pessoas entre homens, mulheres e as poucas crianças que escaparam. O sarampo arrasou, praticamente, todas as faixas da população de idade madura (dos 30 anos pra cima), da qual somente 6 ou 8 sobreviveram. De fato, quando 20 anos mais tarde conhecemos os Katxuyana pessoalmente, os três grupos (dos rios Kaxuru, Trombetas e Ambrósio) não contavam muito mais do que 60 pessoas, no total. Vários “subgrupos” katxuyana simplesmente desapareceram nesse período. De tal forma que, no final dos anos de 1960, diante da população reduzida e completamente sem esperanças de sobreviver a mais uma epidemia, os sobreviventes dos Katxuyana se apartaram e se dispersaram: um pequeno grupo se deslocou para a foz do rio Mapuera, para muito próximo à atual vila de Cachoeira Porteira, onde permaneceu por pouco tempo, e, em seguida, juntou-se aos Hixkaryana, do rio Nhamundá; um grupo maior, mobilizado por missionários franciscanos, dirigiu-se para a Missão Tiriyó, no alto Paru de Oeste. Sobre essa dispersão, mais uma vez, Frikel nos dá os detalhes: [...] até meados da nossa década (1965, aproximadamente) tinham deixado de existir os Waríkyana, Káhyana e Ingarüme do [rio] Panamá, sobrevivendo além do grupo principal dos Kaxúyana no rio Kaxúru [rio Cachorro], somente o núcleo Kahúyana no Trombetas. Todavia, naqueles anos, grande parte destes últimos morreu. Os restantes, por necessidade, ligaram-se novamente aos índios do rio Kaxúru que, outrossim, também foram dizimados por doenças. Em relação aos adultos, o número dos jovens estava em certa desproporção de excedentes, mas – e aí começa novamente o grande problema para os Kaxúyana – todos estavam aparentados entre si que, para a maioria dos jovens não havia mais possibilidade de casamento dentro das leis tribais do parentesco, etc. É, pois, natural que surgia a idéia de ligar-se, novamente, a algum grupo para assegurar a sobrevivência. Sob o ponto de vista Kaxúyana havia somente duas possibilidades: uma era descer o rio Trombetas para a região da Porteira, morar no meio da população negra e mesclar-se com ela. Mas isto não lhes agradava. Tinham ainda bastante consciência tribal de querer ser e continuar “gente”, isto é, índio. Outra era a de se agregar a um dos grupos dos altos rios. Visto que os Ingarume, seus parentes, tinham 115 abandonado o Panamá, como bem sabiam, só lhes restava escolher um dos grupos mais afastados. Excluíram de antemão os Tunayâna/Xarúma, portanto a região do [rio] Turúnu. Experiências antigas tinham mostrado que não se davam muito bem com eles, embora não houvesse inimizade. As opiniões variavam entre os Hixkaruyána do Nhamundá e os Tiriyó do alto Paru de Oeste. Realmente, uns poucos (duas famílias, se estamos bem informados, num total de 6 ou 7 pessoas) foram ao Nhamundá e agregaram-se lá à Missão do Summer Institut of Linguistics. A maioria, porém, simpatizava mais com os Tiriyó pelo seguinte motivo: havia uma simpatia tradicional para com os Pianakotó (= Tiriyó)15. Frikel, 1970: 47-48 [Grifo nosso]. Mais precisamente no ano de 1968, num avião da FAB, intermediados pelos missionários católicos, os Katxuyana foram retirados do seu lugar de habitação tradicional no rio Cachorro e levados para junto aos índios Tiriyó, na Missão criada no Parque do Tumucumaque16, como nos lembra Mariinha Takawaya: O dia em que fomos tirados à força [em um avião da FAB] da nossa terra foi o dia mais triste de nossas vidas. Nesse dia que fomos levados tivemos que deixar tudo para trás: roça, casas, animais de estimação, espíritos. Não entendíamos porque estávamos sendo levados. Meus irmãos sempre lutaram para voltar. Mas não sabíamos o caminho de volta porque fomos levados de avião lá para o Tumucumaque. carlos penteado 15. [Nota do autor: 50]. “Lendas Káhyana indicam frequentemente que grupos dissidentes se dirigiam ou refugiaram a estes grupos, tornando-se Pianakotó, isto é, sendo absorvidos por eles” (Frikel; Ton. Hirama & Matchuhuaya, 1955: 207-221). 16. De acordo com Frikel (1970: 48), a Missão Franciscana no Alto Paru de Oeste, entre os Tiriyó, foi fundada no ano de 1959. A “VIAGEM DE RETORNO”: NOVAS DISPERSÕES E SEDENTARIZAÇÕES Tão logo os povos indígenas tivessem chegado nessas novas missões-aldeias, do tipo da Missão Tiriyó no parque do Tumucumaque ou da aldeia Kanashen no sul da Guiana, atraídos pelos missionários, eles se organizaram a partir de núcleos próprios dentro do todo compósito ou, ainda, iniciaram um movimento de retorno aos territórios antigos. Por exemplo, os Katxuyana, mal chegaram à missão e se mudaram do centro do aglomerado para uma aldeia periférica, para manter uma autonomia do grupo e uma certa distância do grupo mais antigo e hegemônico no local: os Tiriyó. Em linhas gerais, podemos dizer que, se de 1950 a 1970 houve em toda a região um movimento em direção à concentração em grandes aldeias, numa época em que a população indígena tinha sofrido uma grande redução em função das epidemias, a partir do final da década de 1990, com a recuperação demográfica, verificou-se um movimento maior de dispersão e/ou regresso aos territórios tradicionais. Tal reocupação, em geral, foi feita sobre ou próxima a uma área onde no passado havia uma aldeia, ligada de alguma forma aos ascendentes da população recém-chegada. Esse é o movimento que iremos descrever a seguir. No princípio dos anos de 1970, teve início um movimento de dispersão a partir da aldeia-missão Kanashen, no sul da Guiana. Há um certo consenso nos relatos etnográficos de que tal movimento teria sido derivado de uma oposição do governo que tinha se instalado naquele país, de tendência comunista, à atuação dos missionários americanos no seu solo. Porém uma razão propriamente indígena deve ser levada em conta: os grupos indígenas deslocados para aquele lugar, imaginavam permanecer um período por lá e, um dia, regressar para a área de tradicional habitação do lado brasileiro. De fato, quando líderes como Ewká, assediados pelos missionários, pregavam a palavra de Deus para os não-convertidos, prometiam-lhes que a missão em Kanashem poderia oferecer-lhes bens como espelhos, miçangas, facas e machados, além de proteção contra o fim do mundo iminente: “vamos lá conhecer nossa aldeia-missão, passar um tempo por lá, depois vocês retornam”. Era esse o convite que, com frequência, Ewká fazia aos seus “parentes isolados”.17 Nesse sentido, duas frentes de novo deslocamento foram traçadas pelos Waiwai de Kanashen. A primeira delas foi em direção ao médio rio Mapuera – local de tradicional habitação dos povos Xereu, de onde muito deles tinham saído em direção à Guiana; a segunda foi em direção ao noroeste do Estado de Roraima, onde hoje está situada a Terra Indígena Waiwai. Neste último caso, a motivação de deslocamento estava associada ao desejo de “pacificar” os WaimiriAtroari, um povo que recusava e combatia a construção da BR-174 (que ligaria Manaus a Boa Vista) em seu território.18 Depois de instalada a aldeia de Mapuera, os Waiwai continuaram suas expedições de busca dos “povos não-vistos” ou isolados e que não haviam deixado a região naquele movimento migratório para Kanashen. Foi desta forma, que, em 1981, eles encontram várias aldeias do povo Karapawyana localizadas no interflúvio do alto rio Mapuera e do alto rio Jatapu, mais especificamente, nas cabeceiras do rio Kikwo e do rio Jatapuzinho. Uma pequena parte da população destas aldeias, no total de 16 pessoas, foi levada para a aldeia Mapuera, enquanto o restante se dispersou na região e, ainda hoje, permanece “isolada”. Os Karapawyana levados para Mapuera, imediatamente, tornaram-se vítimas de 17. De fato, os Katuena do rio Turuni foram levados para Kanashem entre 1966-67, e, cerca de cinco anos depois já começavam a retornar para o lado brasileiro. É verdade, eles estavam retornando junto com os Waiwai para fundar a aldeia Mapuera, no rio Mapuera, e não para o rio Turuni, onde moravam antes. Vivendo ainda hoje na aldeia Mapuera ou nas aldeias do seu entorno, os Katuena ainda cultivam com muita insistência o sonho de retornar para o rio Turuni. 18. Depois de duas ou três expedições pelo interior do território waimiri-atroari, após parte dos Waimiri-Atroari ter ido viver por um período na aldeia waiwai, podese dizer que fracassou o projeto missionário (que pretendia usar os Waiwai como linha de frente) de “pacificação” e conversão dos Waimiri-Atroari. Para mais detalhes sobre esse processo, confira o texto de Ribeiro & Caixeta de Queiroz (na presente obra) e o livro de Sabatini (1998). 117 doenças como diarreia e gripe. Depois de algumas mortes, os sobreviventes, apreensivos e desadaptados a uma aldeia grande e de gente tão diferente, solicitaram ao líder Ewká que fossem levados de volta ao seu território tradicional, na expectativa de reencontrar uma vida tranquila e, se possível, perto dos parentes que tinham fugido no momento do contato com os Waiwai. Foi desta maneira que, a partir de 1984, iniciou-se a reocupação do alto rio Jatapu e, após a abertura de duas aldeias provisórias, foi fundada a aldeia Jatapuzinho, na beira do rio homônimo, afluente da margem esquerda do rio Jatapu. Até final da década de 1990, permanecia na região uma paisagem com a presença de grupos isolados, situados nas cabeceiras dos igarapés, e de grandes aldeias (para o padrão guianês) com uma formação compósita, isto é, composta por pessoas ou gentes provenientes de “subgrupos” distintos e originários de diferentes áreas: 1) Aaku (próximo à missão Kanashen, sul da Guiana, alto rio Essequibo); 2) Kwamará (sul do Suriname, rio Sipawilini); 3) Missão Tiriyó (norte do Pará, rio Paru de Oeste); 4) Mapuera (noroeste do Pará, rio Mapuera); 5) Kassawá (noroeste do Pará e oeste do Amazonas, rio Nhamundá); 6) Jatapuzinho (noroeste de Roraima, rio Jatapuzinho); e 7) Anauá (noroeste de Roraima, rio Anauá). No final de 1990 e início de 2000, a partir destas principais aldeias, várias outras frentes de dispersão se desencadearam na região, num movimento de reocupação da área e, na maioria das vezes, de volta aos locais tradicionais de habitação dos povos (Yana) antes da intervenção missionária nas décadas de 1950 e 1960. Deste modo, os Katxuyana da Missão Tiriyó e do rio Nhamundá reocuparam o rio Cachorro, fundando ali duas novas aldeias. Os Tunayana reocuparam o baixo rio Turuni e o alto rio Trombetas. Hoje, há 13 aldeias dispersas ao longo do rio Mapuera; 11, do rio Nhamundá; e 7, do rio Jatapu. Além disso, está em curso um movimento de reocupação do alto rio Cachorro, local tradicional de habitação de um “subgrupo” do povo Xereu, e do alto rio Turuni, região tradicional de habitação do povo Katuena. 118 PETARU: UMA NARRATIVA MÍTICA WAIWAI Essa breve e ao mesmo tempo longa história dos povos indígenas dos complexos culturais Tarumã-Parukoto e Warikyana, dos quais os principais “grupos” aqui descritos são os Waiwai e os Katxuyana, teve o objetivo de demonstrar, em primeiro lugar, que o movimento de dispersão ou migração (em que o desejo de reocupação do território dos antepassados é evidente) é quase que uma variável constante. Em segundo lugar, quisemos demonstrar que, por um lado, a fusão e a fissão dos grupos ou povos têm, sim, muito a ver com a relação estabelecida ou imposta pelo mundo não-indígena, sobretudo, com as ações e intervenções das frentes missionárias; e que, por outro lado, como muitas vezes deixamos implícito, este processo obedece um pensamento indígena que agencia e organiza a forma como tende a balança: ora para a dispersão, ora para a concentração. Poderíamos afirmar que o movimento nunca se completa e se fixa de maneira permanente (como nos dizem os trabalhos de Perrone-Moisés & Sztutman, 2010 e Caixeta de Queiroz, 2014) num dos polos desse pêndulo. Da mesma forma, poderíamos justificar esse processo com base na já conhecida tese de Pierre Clastres sobre a sociedade contra o poder coercitivo do chefe e contra o surgimento do Estado. Porém, a nossa tarefa aqui é bem mais modesta: ao apresentar alguns mitos waiwai e katxuyana, queremos sugerir que esse movimento de fusão-fissão desses povos indígenas, além de decorrer de fatores externos, pode ser compreendido à luz da sua cosmologia ou mitologia, portanto, do seu pensamento. Não iremos apresentar e comentar tais mitos para justificar a história waiwai e katxuyana, nem para justificar a sua forma de organização social. Longe de nós também a ideia de que a mitologia é uma forma de recuar na proto-história ou na história dos antepassados, lá onde a memória ou a fonte escrita não pode chegar. Nada disso. Ao contrário, achamos mesmo que o mito tem um poder de falar muito sobre o tempo presente, atual, mesmo quando, como no caso aqui analisado, ele não faz parte do cotidiano da vida de tais povos, pois a ação missionária enfraqueceu de forma eloquente esse tipo de narrativa. Um mito não fala apenas de um tempo passado, recuperado pela memória do narrador, mas também ajuda a organizar o mundo, por exemplo, para explicar a “mistura” entre os povos, os lugares que eles habitam hoje e para onde desejam se deslocar ou se movimentar. Feitas essas ressalvas, passemos ao mito waiwai.19 Cekma, índio waiwai da aldeia Mapuera, em 2000, nos conta uma “história”: Havia um homem que era dono de uma cobra-grande20. O dono da cobra disse para sua mulher: “Vamos fazer um cercado na beira do rio”. Ali eles davam comida para a cobra: carne de akri [caititu], paski [cotia pequena] e pakria [caititu]. Sempre lhe davam comida, e a cobra crescia. Ela comia akri, paski e pakria, era a comida que a cobra-grande gostava. Ela comia muito, a barriga dela ficava grande, estava alegre por haver tanta comida. Ela ficava mansinha, igual mesmo cachorro quando chega e lambe o seu dono. Ela parecia mesmo gente de verdade. Aí o dono falou: ‘Vamos botar um nome nela, um nome bonito: Petaru’. Todo mundo passou a chamá-la de Petaru. Ela cresceu ali, dentro do cercado, onde fez um poço bem fundo, pois cresceu. Havia tanta comida: paski, akri... Jogavam o paski ali dentro e ela comia, comia tudo. Petaru estava mansa, bem mansinha, igual cachorro. ‘Vamos dar comida para Petaru’, dizia a mulher do dono. Davam comida para Petaru e ela vinha lamber o corpo da mulher. Ela tinha muita comida, estava alegre, ficou mansa. Até que Petaru ficou muito grande, não sei quantos metros a cobra cresceu. O dono dela dava comida e ela 19. 20. o lambia, igual cachorro. Recebia mais comida, ficava mais alegre. Petaru queria falar: ‘iiiiii’. Um dia, como de hábito, o dono saiu para caçar pakria. Os meninos, logo em seguida, vieram cochichar com Petaru: “Ei, ei, o seu dono é mentiroso; ele foi caçar pakria [cotia], mas vai trazer para você só paski [cotia pequena]. Ele vai dizer que só matou paski, ele está te enganando, ele vai trazer só o pequeno para você, não vai trazer o grande não”. Então, o dono chegou da caça e foi chamar Petaru. Chamou: “Petaru, Petaru, Petaru!” Ela não respondeu, estava só boiando. Aí Petaru queria matar o dono, estava muito brava. “A Petaru é enganada, o dono mata caititu grande, mas não traz para ela”, disseram as crianças. Petaru disse: ‘iiiii’. O dono chegou perto, Petaru não respondeu. O dono disse para sua mulher: “Por que Petaru não me respondeu? Eu a chamei e ela não respondeu, está com raiva”. Aí, a mulher do dono foi ver o que acontecia, chegou perto do cercado, perto do rio e Petaru derrubou a cerca e engoliu a mulher. Todo mundo se perguntou: “Por que Petaru levou a mulher do dono dela?”; “A água estava borbulhando!”, exclamaram as pessoas. Todo mundo ficou triste: “Por que será?”. Depois, as pessoas foram falar com o pajé Xurupana. Ele disse: “Vamos procurála”. E todo mundo virou wayawaya [ariranha], foram todos juntos para o rio, havia muita gente, o rio ficou cheio. “Ela fugiu rio abaixo”, disseram. Cantavam, rezavam: “Petaru fugiu mesmo rio abaixo, foi lá para o poço Weyun. Ela parou lá onde tem o poço Wamá, perto da cachoeira Uakri [cachoeira Bateria, rio Mapuera]”. Aí Petaru pensou: “Cheguei muito longe, ninguém vai me achar”. O povo Wayawaya cantou a mesma música: “wayawaya, wayawaya, wayawaya....”. Aí saíram O mito a seguir nos foi narrado por Cekma, em 2000, na aldeia Mapuera. Cobra Grande é uma das denominações que tem sido usada na etnografia regional para se referir ao tipo de cobra que também é conhecida como Sucuri ou Anaconda. 119 todos à procura de Petaru. “Onde está Petaru?”, perguntaram a um povo de uma aldeia rio abaixo, que respondeu: “Petaru estava aqui até ontem, mas já foi embora”. O pessoal wayawaya desceu mais o rio, até encontrar outra aldeia, e perguntou: “Será que Petaru não passou por aqui não?” - “Passou sim, agorinha mesmo, mas já foi embora”, responderam-lhes. Petaru não parava não, ela ia descendo o tempo todo, até o poço Weyun. “Cadê Petaru?” – “Saiu daqui ontem”, respondiam. O povo Wayawaya ia descendo, todos juntos, eles eram muitos. No caminho, encontravam outras pessoas: “Onde está Petaru?”, perguntavam. Até que chegaram onde estava Petaru. “Vamos cercá-la, não vamos deixá-la fugir”, disseram. “Uns vão para lá, outros vão para cá”, combinaram. O pessoal wayawaya avistou o poço; viram uma cobra pequena e perguntaram: “Cadê Petaru?”. Ela estava ali no poço, escondida atrás das cobras pequenas. Aí alguns wayawaya voltaram até a aldeia Kuumutîrî, lá onde Petaru havia crescido e de onde tinha fugido. Eles contaram para o povo de Kuumutîrî: “Nós achamos Petaru, o que vamos fazer agora? Vamos matá-la?”. Eles contaram para o marido da mulher, o dono da Petaru. Aí o marido foi perguntar para o pajé da aldeia: “O que eu devo fazer?” – “Você é quem sabe”, respondeu o pajé. Respondeu o marido: “eu vou escolher uma mulher velha, que tenha muito umawa [timbó] nos braços, e vamos lá no poço onde está Petaru”. A velha se prontificou: “Vamos baixar o rio, onde está a Petaru?” E a velha levou o pessoal todo com ela: Kworo [arara vermelha], Kwayari [arara vermelha de asas azuis], Xaapi [arara de cor azul e amarela], Yakwe [tucano de peito branco], Peeu [galo das rochas], Worohku [pássaro de tamanho médio e avermelhado]. A velha levou todo mundo com ela; desceram o rio e chegaram bem perto do poço 120 onde se encontrava Petaru. “Amanhã cedo vamos botar veneno, vamos botar timbó para a Petaru”. No dia seguinte botaram veneno no rio. Morreu uma cobra: “Será que é a Petaru?”, perguntaram-se. Não era. “Será aquele?” Também não era. Botaram muito veneno, estava igual a barro branco. “Será que é aquele?” Ainda não era. O veneno estava no corpo da velha, ela estava cheia de veneno. “Cadê Petaru, é aquela?” – “É sim”. Ela estava morrendo, flecharamna. Morreu, puxaram-na para a pedra e vieram todos os povos: os Kworo, os Kwayari, os Peeu... Cortaram Petaru. Ela estava muito comprida, cortaram o rabo dela, cortaram de novo, cortaram muitos pedaços. Hoje, lá onde ela foi cortada chama-se Okoimokoto [pedaço da cobra-grande]. É assim que chamamos esse lugar. Quando acabou de cortar a Petaru, tudo ali estava cheio de sangue. Aí perguntaram: “Quem quer sangue de Petaru? Quem quer botar no corpo dele?”. Aí o Kwayaryana [povo arara vermelha de asas azuis] disse: “Eu quero”. E botou um pouquinho no seu corpo, por isso não ficou bem vermelho. Já o Kworoyana [povo arara vermelha] botou muito sangue no corpo e ficou bem vermelho. Todos passarinhos chegaram, Worohku também ficou bem avermelhado. Já o Yakwe colocou só no rabo, ficou só um pouquinho vermelho. Por fim, chegou o Xaapyana [arara amarelada] e disse: “Eu quero, me dá sangue”. A velha indagou-lhe: “Por que não veio antes? Está atrasado, você é preguiçoso”. Xaapi botou só um pouco de sangue e, por isso, ela é amarelada só no peito. A velha disse: “Todo mundo já botou sangue no corpo, vamos voltar para a aldeia”. Então começou a viagem de volta. Andaram, andaram... A chuva veio, era tempo de chuva, chovia muito! Não havia casa para todo mundo esconder. Kwayari foi logo para a casa dele. O Yakwe se molhou um pouco e a água lavou suas costas. Xaapi, que era preguiçosa, correu para sua casa bem atrasada, a chuva limpou quase todo seu corpo e, por isso, ela é amarelada. Depois da chuva, voltaram para a aldeia Kuumutîrî [o lugar da bacaba], lá onde moravam os Kworoyana, os Kwayaryana... lá havia muita bacaba. Comentário A narrativa mítica que os Waiwai denominam “História de Petaru” remete ao universo dos relatos indígenas sobre a cobragrande (ou anaconda, ou sucuri), muito frequente em vários outros povos e contextos etnográficos. A análise desse tema está presente, por exemplo, nos trabalhos notáveis de Van Velthem (2003), denominado “O bela é a fera”, e de Gongora (2007), chamado “No rastro da cobra-grande”, nos quais, se é que podemos assim resumir, o objetivo é compreender a apreciação indígena da diferença como valor estético e as reflexões indígenas a respeito das diferenciações dos seres, bem como da “produção incessante das diferenças nas relações narradas ou vividas pelos indígenas habitantes da região das Guianas” (Gongora, 2007: 11). Em várias narrativas míticas, inclusive do povo Waiwai (como é o caso da “História de Urupere”), a anaconda é descrita como um ser perigoso, mas cobiçado pelo fato de possuir uma bela pele, isto é, por ser o detentor do desenho e do grafismo. Além disso, a cobra é cobiçada ou invejada pelo fato de conhecer o dom da transformação contínua e do rejuvenescimento, uma vez que tem a capacidade de trocar de pele.21 Contudo, na “História de Petaru” aqui narrada, pode-se dizer que o elemento central tematizado é a origem das cores dos pássaros e da diversidade dos grupos humanos. É digno de nota o fato de que os pássaros e animais são postulados como grupos humanos, ou vice-versa, pois o sufixo usado para ambos é 21. justamente yana, que quer dizer gente ou pessoas. Dessa forma, Kworoyana significa “povo arara vermelha” (kworo = arara vermelha; yana = povo). Tais povos- pássaros ou povos-animais definem as suas diferenças e fronteiras a partir das diferentes dosagens de sangue que conseguem obter ou manter da cobragrande (Petaru). Também é interessante notar que, ao contrário de outras narrativas míticas indígenas sobre a origem das cores dos pássaros – como, por exemplo, o mito 172, descrito por LéviStrauss (2004, p. 347) em “O Cru e o Cozido” –, nas quais os diferentes tipos de pássaros se diferenciam pelo fato de cada um (cada espécie) ter se apropriado de uma parte específica da pele da cobra-grande com as suas cores (amarelo, vermelho, verde, preto e branco) e os seus desenhos singulares, na versão Petaru, os pássaros se diferenciam pelo sangue “guardado” após a cobra ter sido morta e despedaçada. Não menos importante é sublinhar o evento, anterior à distribuição do sangue, no qual Petaru é cortada numa infinidade de pedaços (ela não é apenas morta), numa fragmentação a partir da qual ela vai se transformar e dar origem a uma diversidade de outros povos-seres. Gongora (2007: 22, nota 12) observa o fato de que as partes originadas a partir do corpo da cobra são exatamente transformações dela e cita o caso de variações wayãpi, nas quais os vermes que surgem no corpo decomposto da cobra dão origem aos inimigos. Se, no início da narrativa, Petaru é um animal domesticado ou um xerimbabo de um casal humano, logo ela se torna uma inimiga e devora a mulher. A devoração é uma espécie de vingança da Petaru, pois o casal havia se mostrado sovina e lhe ofertara apenas a parte menor (a cotia pequena) da caça. Desta primeira retaliação, segue a união dos homens e diferentes espécies de animais (com o concurso fundamental da ariranha, que é, ao Gongora (2007: 22) cita o trabalho de diversos autores – dentre eles Gallois (1988), Vidal (2007) e Van Velthem (2003) – nos quais a cobra grande é descrita como “um elemento fundamental das mitologias e sócio-cosmologias na região das Guianas e é uma forte referência em diferentes dimensões da vida guianense: nas práticas rituais, nas atividades de caça e pesca, nos artefatos e grafismos, no xamanismo, nas exegeses nativas sobre doença e morte... É notável que as referências a essa figura são abundantes em narrativas sobre os ‘outros mais outros’, nos reportando às relações de aliança, inimizade, guerra, canibalismo, entre outras.” 121 mesmo tempo, um animal terrestre e aquático) para perseguir, capturar e despedaçar a cobra. Ou seja, o mito aponta para as relações de inimizade e de afinidade entre humanos e animais – relações que são, concomitantemente, perigosas e cobiçadas, evitadas e buscadas. Antes de concluirmos o comentário, para melhor compreender este ponto da narrativa, vejamos o resumo de outro mito waiwai, sobre outro povo cobra-grande, denominado Okoimoyana (literalmente traduzido como: okoimo = Anaconda; e yana = povo), descrito por Niels Fock (1963: 48-52). Muito tempo atrás, todos os moradores de uma aldeia waiwai foram festejar em outra aldeia. Somente permaneceram naquela aldeia uma velha e uma menina que tinha acabado de sair da reclusão decorrente do ritual relativo à primeira menstruação. A velha pediu para a menina pegar água no rio, não sem antes adverti-la: “Vá em direção certa, não vague, não olhe para o meio do rio Mapuera, pois, se isso acontecer, Okoimoyana virá lhe pegar”. A menina não obedeceu a velha e, ao olhar para o centro do rio, ela viu emergir dali todos os homens e as mulheres do povo Anaconda (Okoimoyana). Todas essas pessoas pareciam seres humanos, mas possuíam a alma (ekatï) Anaconda, ou seja, eram pessoas Anaconda que apareciam na forma humana. A menina ficou com medo e saiu correndo em direção à sua casa. Quando lá chegou, disse para a velha: “Eu vi o povo Anaconda, ele está vindo atrás de mim. Onde posso me esconder?” A velha ficou furiosa: “Eu disse que não era para olhar. Não posso te esconder por causa do seu cheiro!”. Mesmo assim, ela escondeu a garota debaixo de um panela de barro. Quando chegaram, os Anaconda ficaram festejando na clareira, do lado de fora da casa. Eles dançavam e aguardavam bebida, mas, na verdade, queriam tomar a menina como esposa. Todos estavam paramentados para a festa, com plumagens e miçangas que os Waiwai nunca tinham visto antes. Para tentar afastá-los dali, a velha jogou no fogo a pimenta que estava numa cabaça. Os Anaconda tossiram e gritaram: “O QUE É ISSO, VELHA, VOCÊ QUER NOS 122 NEGAR A SUA NETA?”. A velha respondeu que somente ela estava na casa, que os Anaconda a viam e achavam que era uma jovem. Essa discussão continuou por longo tempo, enquanto os Anaconda dançavam a noite inteira na aldeia da velha. No final, desconfiados, mas resignados ao fato de que talvez a menina não estivesse ali mesmo, eles decidiram ir embora, não sem antes deixar em cima da casa todos os seus enfeites trazidos para a dança: braceletes, tubos para amarrar os longos cabelos, adereços de penas para o septo nasal e o queixo, brincos etc. Ao partirem, os Okoimoyana disseram para a velha: “Deixamos esses presentes para quando os cunhados retornarem da festa”. Os Waiwai amaram tanto os adereços deixados pelo povo Anaconda que jamais os esqueceram e comentaram a história por gerações e gerações: “Assim eram as pessoas Anaconda, elas eram muito belas!” Essa breve narrativa nos auxilia na interpretação do mito Petaru, como vimos, também uma cobra-grande com poderes extraordinários e da qual os povos da região se apropriaram não das vestimentas e da pele (como na narrativa mítica katxuyana, que veremos a seguir), mas das suas diferentes tonalidades e intensidades de sangue. Da mesma forma que se passa ainda em outra narrativa mítica – um mito que conta o périplo dos cunhados Mawari e Woxi que, nos tempos antigos, em que não havia mulheres no mundo, pescaram no rio não apenas as suas próprias esposas, mas também os artigos conectados ao uso e à posse do universo feminino –, o relacionamento que se estabelece entre os “povos-gentes” e os “povos-anacondas”, tal qual apresentado na história de Petaru e de Okoimoyana, é baseado nas relações de afinidade. Pode-se dizer que essa relação é pautada, ao mesmo tempo, na cobiça e no temor. Claramente, as pessoas Okoimoyana chegam à aldeia da velha e da menina com o objetivo de procurar uma esposa e, enfeitadas, chegam da mesma forma que os visitantes ou “estrangeiros” (Pawana) chegam e partem de uma aldeia durante uma visita: pintados, gritando, cantando e dançando. ruben caixeta de queiroz Neste sentido, é interessante notar que os Waiwai do rio Mapuera, ao longo da sua história, tinham e ainda têm intensas relações matrimoniais e comerciais (mas também de guerra) com os povos mais situados ao leste, nas cabeceiras dos rios Cachorro e Turuni, especialmente os Katuena e os Xereu, povos que eram chamados genericamente por eles de Okoimoyana. Além disso, ao contrário do que acontece na história de Petaru, que está bem referenciada geograficamente no rio Mapuera – a denominação okoimokoto (pedaço da cobra-grande) se refere a uma pedra grande onde a cobra-grande foi cortada, um local logo abaixo de onde atualmente está localizada a aldeia Cachoeira Bateria –, a história de Okoimoyana é contada por diferentes “povos” na região e se passa quase que da mesma forma que aquela que foi aqui resumida. Por exemplo, no início de 2015, durante uma oficina de elaboração preliminar de um plano de gestão para as terras indígenas daquele entorno, conduzida pelo Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (IEPE), na aldeia Mapuera, o índio Menura, pertencente ao povo Xereu, contou e desenhou a história de Okoimoyana, localizando-a no alto rio Cachorro, local de tradicional habitação de um importante grupo Xereu. Da mesma forma, já tínhamos ouvido essa história contada por “gente” diferente no rio Mapuera, rio Nhamundá e rio Jatapu. PURA E MURA: UMA NARRATIVA MÍTICA KATXUYANA22 Pura e Mura muitas vezes fizeram gente, mas em outra parte do mundo. Estas deram origem às outras tribos que vivem por aí. Quando Pura esteve nas cabeceiras do (rio) Kaxúru, ele fez a nossa gente. Panamo [o antepassado] morava lá pra as serras das cabeceiras do Kaxúru e Txôrôwáho (rios Cachorro e Cachorrinho). E lá fabricavam gente de pau d’arco. 22. 124 Pura fez ali uma casa bem cercada. Depois foi tirar pau d’arco daquele bonito, pintado, fez os arcos e quando estavam bons, encostou-os num canto da casa para ali virarem gente. Depois de dois dias Pura foi ver. Os arcos já tinham virado gente. Fez, então, uma canoa grande (kanawaimó) e mandou os homens baixar o rio para morar aqui embaixo [no baixo rio Cachorro]. Ainda avisou os homens que tivessem cuidado com Marmaru-imó, a Cobra Grande que morava na Cachoeira Grande do Txôrôwáhô e que engolia tudo que por lá aparecia. Assim os homens se foram. Marmaru-imó estava deitado no rio, esticado, dormindo, quando o japu gritou –; pois ele tinha um japu que vigiava por ele e avisava quando alguma coisa ia passando pelo rio. O japu morava no alto de uma sucuubeira (worhu-yáhô ktuhó), na beira do rio. Quando enxergou a canoa grande com os homens, gritou: “mkó miáre, Marmaru-imó!... Lá vêm eles, Marmaru-imó...” A Cobra Grande, então, fez um rebujo enorme que era como o de uma cachoeira, abriu a boca que era como um porão, alagou a canoa e engoliu os homens. E Pura, o pai deles, não sabia. Passou-se muito tempo e os homens nunca mais mandaram notícias. Pura disse: “Foi Marmaruimó que os engoliu. Vou fazer outros homens”. E fez outra quantidade de gente. Foi procurar pau d’arco, do pintado, mas não encontrou mais. Já se tinha acabado com os primeiros que fez. Cortou, então, pau d’arco liso (do comum), e fez dele arcos bem feitos, encostou-os num canto da casa e quando, depois de dois dias, voltou, já tinham virado gente. Pura, então, mandou-os morar aqui embaixo e fez canoas para eles. Não mais uma só canoa grande, mas muitas canoas A narrativa mítica deste capítulo foi apresentada por Frikel (1970: 12-17), acrescida de notas de contextualização e explicação do autor. Na presente reapresentação, resumida, suprimimos tais notas. pequenas, uma para cada um. Pois, disse ele, se Marmaru-imó os quer comer, ficando eles espalhados, sempre escapam alguns. Mas os homens baixavam em monte e quando chegaram lá perto, onde a Cobra Grande morava, o japu gritou; “mkó miáre, marmaru-imó! Lá vem eles Marmaru-imó!...” De repente, Marmaru-imó fez rebujo, abriu a boca e os homens, descuidados, viram-se no meio de rebujo de cachoeira, enfiados num porão... e acabou-se tudo. Marmaru-imó já os tinha engolido a todos. E assim também eles se acabaram. Mas Pura tinha ido atrás deles para ver onde iam morar. E viu tudo que se passou. Pura se aborreceu e disse: “Eles são fortes e por isso se descuidam. Todavia vou fazer outros homens”... Panamo voltou para casa para fazer outra vez arcos. Mas não encontrou mais pau d’arco, que já tinha acabado com a segunda leva de gente que fez. Ele, então, escolheu outra madeira boa, fez arcos e encostou-os num canto da casa para ali virarem gente. Depois de dois dias voltou. Mas, os arcos não tinham virado gente; tinham permanecido arcos. Pura disse: “Este pau não presta!...” E foi tirar outro. Quando, mais tarde, foi olhar, também este não tinha virado gente. Experimentou mais outras qualidades de madeira, mas nenhuma deu certo. Pura já estava cansado de tanto fazer arcos e se aborreceu. Pura foi tirar madeira do taxizeiro, mas daquele grande da mata (waraharí; waraha-yáhô) que é um pau fraco e mole e apodrece facilmente. Pura fez os arcos, encostouos no canto da casa e quando, depois de dois dias, foi ver, já de longe viu movimento no terreiro, a zoada alegre do pessoal e a casa cheia de gente. Pura olhou para eles e disse: “É gente boa, mas fraca, essa de pau mole!...” Depois Pura disse: “Vou colocar essa gente lá em baixo. Mas primeiro vou matar Marmaru-imó. Pois, se aqueles fortes de pau d’arco se acabaram tão ligeiro, quanto mais estes fracos e moles de taxi”. Pura chamou Mura e disse: “Agora vamos matar o bichão para mandar depois a tropa”. E fizeram seus planos. Os dois embarcaram numa canoa e levaram um jamaruzinho (korohí) e suas “navalhas” (yaró). Quando chegaram perto do lugar de Marmaru-imó, o japu gritou da sucuubeira: “mkó miáre, marmaru-imó! Lá vem eles Marmaru-imó!...” Pura disse: “Já estamos perto. O japu já gritou. Vamos preparar-nos!”. Eles amarraram a canoa na beira e foram primeiro experimentar as “navalhas” numa grossa sumaumeira, que partiram com um só golpe. Disseram: “Está bem, vamos embora!” Entraram com as navalhas no jamaruzinho e caíram n›água. O baldinho ia de bubuia. Marmaru-imó os esperava, Pura tinha um companheiro, Mura, que em tudo lhe ajudava. Começaram a preparar caroço do mato, caroço de miriti, patuá, babaçu e outros. Mas não saiu mais gente; virava era bicho. Caroço de miriti (kuá-ihérere) virou porco queixada; piaró (carani) virou caititu; tinató (um cipó) virou cobra, okói. E assim por diante. fez rebujo, abriu a boca e os engoliu com todo o jamaru. Quando Pura se aborreceu de fazer tanto bicho, ele disse: “Hoje vou tentar mais uma vez fazer gente. Se não der certo, não faço mais gente”. da cabeça ao rabo. Quando se encontraram no ânus, Uma vez dentro da Cobra Grande, eles saíram do korohí. A barriga de Marmaru-imó era alta e comprida como uma grande casa. “Vamos partir o bicho!” disse Pura. E começaram a trabalhar. Ele cortou pela esquerda. Mura pela direita e assim partiram a cobra entraram novamente no jamaruzinho, boiaram à flor d’água e ganharam a terra firme. 125 Na saída encontraram ainda muitas cobrinhas que eram os filhos e a gente de Marmaru-imó (marmaruimó ímrere). Pura matou um bocado deles com o yaró, como também a mulher de Marmaru-imó de nome Koróhüdze. Afinal, quando já eram poucos, Psôu e Arahuá que também eram filhos de Marmaru-imó, pediram que lhes poupassem a vida. Prometeram nunca incomodar a gente dele (de Pura) e de não fazer mal aos homens. Pura não acreditou. Desconfiou de Psôu e Arahuá, mas deixou-os vivos. Dois dias depois, Pura foi ver Marmaru-imó. Lá estava a Cobra Grande esticada, morta. Quando Marmaru-imó boiou morto, Pura disse a Mura: “Vamos tirar o couro de Marmaru-imó; vamos ver para que presta!” Eles tiraram o couro. Pura o abriu, colocou-o nas costas, entrou bem nele e começou a dançar e cantar. Depois despiu a pele e eles começaram a olhar. O couro de Marmaru-imó estava todo pintado com desenhos: mamdjari wakúru, rêtxko ihútpo, káimare hóta e todos os outros (sistemas de pintura). Dali aprenderam todos os desenhos. Pura tirou as pintas do couro e enfeitou com elas tudo quanto a gente tem, empregando-as em peneiras, tipitis, balaios e cestinhas. Assim fizeram peneira pintada, tipiti pintado e tudo. Ptúmbanê (o desenho específico do tipiti) era a pinta da costela de Marmaru-imó. Depois só restava ainda um perigo para a gente dos Pura, um inimigo muito forte: Yuhuru-manáo, pois Marmaru-imó tinha casa grande com muita gente (prenó). Morto Marmaru-imó, Pura e Mura foram à casa de Yuhuru-manáo para avisá-lo de que tinham morto o seu tio (sogro). Yuhuru-manáo era sobrinho (genro) de Marmaru-imó e era muito valente. Morava logo acima do Varadouro Grande do rio Cachorro (na Cachoeira de São Pedro). Pura lhe disse para não fazer mal à gente dele (de Pura) e ameaçou-o que, se ele não atendesse, 126 vinha matá-lo também. Yuhuru-manáo prometeu tudo, disse que não ia se incomodar com os outros e que eles podiam baixar. Pura disse: “Agora vamos voltar para mandar a tropa”. Chegando em casa, fizeram canoas, uma para cada um deles e mandaram os filhos morar cá embaixo, onde ainda estamos morando [perto de onde hoje é a aldeia Santidade]. Mas Yuhuru-manáo era traiçoeiro. Quando Pura tinha ido embora, para mandar a gente dele, Yuhuru-manáo foi esperar na boca do Cachorrinho para matar o pessoal de Pura. Mas Pura desconfiou dele e viu tudo. Pulou por cima e escapou. E o pessoal baixou sempre para o Kaxúru e Kahú (os rios Cachorro e Trombetas). Comentário A história katxuyana de Pura e Mura guarda muitos pontos em comum com a história waiwai de Petaru. Em primeiro lugar, em ambas as histórias se fala de uma cobra-grande dotada de uma essência ou alma humana, que age de forma hostil com relação às pessoas e aos heróis waiwai e katxuyana. Há ainda o fato de que, nos dois casos, depois de várias tentativas, os personagens dos povos Waiwai e Katxuyana conseguem capturar ou entrar na cobra-grande e retalhá-la, cortá-la em vários pedaços, dando ensejo à sua transformação. No caso da história de Petaru, os personagens quase- humanos (na verdade, humanos na forma humana que se tornaram – durante a narrativa – animais na forma humana) se apropriam do sangue da cobra-grande para produzir a especiação daqueles quase-humanos, ou seja, para provocar o surgimento de vários “grupos” de pássaros – “pássaros-gente”. Ou seja, o mito da Petaru dá conta da origem dos diferentes grupos de pássaros e de pessoas. Já a narrativa katxuyana Pura e Mura conta que, depois de a cobra ser retalhada, os antepassados dos Katxuyana se apropriaram do seu couro e dos seus diferentes padrões de cores para colocá-las na pintura e nos desenhos usados nas cestarias e no corpo humano. Numa pequena variação, a cobra-grande da narrativa waiwai de Okoimoyana não devora os humanos, mas busca, por meio deles, obter esposas. No final de uma visita não desejada, os Okoimoyana não obtêm sucesso nesta busca, mas deixam para os “anfitriões” (o pessoal da aldeia) toda a indumentária que haviam levado para a festa, para presenteá-los e, quem sabe, por meio disso estabelecer uma relação mais duradoura com este outro povo. Conforme vimos, se as narrativas de Pura e Mura e de Petaru nomeiam os lugares onde se desenrolou a história (rio Cachorro e rio Mapuera, respectivamente), referiando-se até mesmo a lugares específicos onde a cobra-grande foi cortada, a narrativa Okoimoyana é mais difusa neste sentido, fato que talvez possibilite que a mesma história seja transportada para outra região próxima, ou outro curso de rio, ou até mesmo para um grupo indígena que fale outra variação da língua. De qualquer forma, na história oral e nas narrativas míticas analisadas por Frikel para o caso dos Katxuyana – e isso é válido para muitos outros povos indígenas –, é bem frequente a transposição de referências aos personagens e aos “lugares” de um determinado espaço geográfico para outro. Frikel (1970: 23) diz que se trata, pois, “da transferência de um antigo ambiente a um mais recente ou, quiçá, no fundo, da tentativa de transferência do próprio ambiente anterior a um novo ou atual, de forma que o “ambientefundo” sempre fica o mesmo, embora as circunstâncias externas ou acidentais mudem”. Contudo, parece-nos justo aproximar o mito Pura e Mura do povo Katxuyana de um tipo de narrativa que enfatiza a conexão entre a população atual de um povo e os seus antepassados, circunscritos por um determinado território, no caso, o rio Cachorro e o seu entorno. Aliás, é esse esforço de conexão que faz Frikel (1970) ao justapor narrativas mitológicas e históricas. O autor chega a considerar que parece factível supor que, num tempo muito antigo, houve uma mistura entre um povo das cabeceiras do rio Cachorro com um povo imigrante do rio Amazonas. Após uma catástrofe (descrita como um “grande fogo”), os sobreviventes desta mesclagem foram apontados como sendo os Marmaru-imó do mito aqui analisado. Depois disso, outros grupos (representados pelos ancestrais Pura e Mura) das cabeceiras do rio Cachorro desceram novamente, e, como relatado no mito, houve um grande confronto entre o povo Pura-Mura e o povo de Marmaru-imó. Mais tarde, já no período colonial, houve outras levas de migração indígena provenientes do rio Amazonas e, novamente, elas se mesclaram aos grupos já “misturados” do rio Cachorro. Dessa mistura, surgiu o povo Katxuyana e os seus diversos subgrupos, embora eles sempre tenham mantido como referência o rio Cachorro e o médio rio Trombetas. Ainda que possamos considerar com muita precaução (e desconfiança) esse apoio que a mitologia fornece à história, e vice-versa, para chegar às “origens” do povo Katxuyana – na verdade, no presente texto, procuramos nos distanciar desse tipo de especulação –, é justo supor que, ao contrário da história e da mitologia dos povos Waiwai, as dos povos Katxuyana se construíram a partir de narrativas que se situam no rio Cachorro e no seu entorno. Daí, o etnônimo Katxuyana expressar exatamente “povo do rio Katxoru”. Ainda que o rio Mapuera seja a referência para o mito waiwai Petaru, a partir dele não conseguimos traçar uma conexão direta entre a população atual daquele rio e os antepassados descritos no mito. Dito de outra forma, o mito Petaru quer tratar muito mais da diferença atual dos povos entre si e dos animais entre si do que de uma continuidade entre o passado e o presente destes mesmos povos-animais. Ou seja, nos dois casos, tanto para o povo Katxuyana quanto para o povo Waiwai, há uma continuidade entre passado e presente, na qual os mitos aqui analisados tentam dar conta, ou seja, tentam aproximar história e mitologia, mas, no primeiro caso, isso aparece de uma forma mais enfática e forte, enquanto, no segundo, aparece de forma mais fluída e fraca. 127 ruben caixeta de queiroz CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao contrário dos Tiriyó que remetem a construção de seu repertório gráfico a uma longa história de contatos, Podemos novamente colocar a questão23: o que os Waiwai e encontros, guerras e trocas com outros povos, para os os Katxuyana estão atualizando nessas narrativas mitológicas? Katxuyana, a origem de suas pinturas corporais se Certa vez, o antropólogo Claude Lévi-Strauss disse que, se confundem com as suas próprias origens enquanto povo: perguntássemos o que é um mito a um índio americano, “é a primeira cobra-grande da qual tiraram seus motivos muito provável que ele respondesse: é uma história do tempo de pintura corporal foi aquela que engoliu as primeiras em que os homens e os animais ainda não se distinguiam” criações de Pura e Mura, dois irmãos, demiurgos dos (apud Viveiros de Castro, 2002 : 354). As narrativas míticas ancestrais Katxuyana. Petaru e Pura/Mura nos falam exatamente disso, de uma indistinção das fronteiras entre homens e animais, de como Como vimos acima, depois de várias tentativas fracassadas de os animais e os homens se transformavam e se comunicavam. Pura e Mura de povoar o rio Cachorro, pois a cobra-grande de Essa é uma noção quase universal no pensamento indígena que, nome Marmaru-imó engolia todas as pessoas recém-criadas, os em primeiro lugar, tem como premissa o “estado originário de demiurgos foram lá se vingar. Ao ver a cobra-grande, “ficaram indiferenciação entre os humanos e os animais” e, em segundo tão maravilhados e seduzidos pela beleza da decoração da lugar, afirma que “a condição original comum aos humanos e pele daquela cobra que depois de matá-la quiseram copiar os animais não é a animalidade, mas a humanidade” (Viveiros de desenhos e começaram a pintar seus corpos, do rosto até as Castro, 2002: 354-355). pernas, com tais desenhos” (Grupioni, 2009: 38). Nos relatos que transcrevemos acima, fica explícita a ausência Certa vez, Frikel (1970: 9) perguntou aos pajés Katxuyana de fronteira rígida entre humanos e não-humanos e falta maior sobre as origens do seu povo e obteve a resposta claramente: ainda de fronteiras entre os povos, pois ali se vê mais um processo “Nós somos um povo misturado”. Num trabalho de campo intensivo de diferenciação do que um movimento no sentido da realizado em 2008, ouvimos o seguinte relato de um informante produção de contornos definidos e substantivos entre as fronteiras e antigo pajé do povo Tunayana, chamado Kaubá: territoriais ou “étnicas”. O sangue, a indumentária, os desenhos e os padrões gráficos que pertenciam à cobra-grande foram Antigamente os Tunayana moravam junto com outros apropriados pelas diferentes gentes (Yana) e utilizados para povos estranhos, era tudo misturado! Um dia, Moriki marcar as diferenças entre elas que hoje se fazem notar. A história (um Tatu pequeno) convidou parte dessa gente: vamos de intercâmbio ou guerra com outros grupos indígenas ou com os morar longe daqui, vamos embora. “Para onde?” colonizadores, para muitos povos indígenas, também contribuiu Perguntaram os homens. “Para onde eu não sei”, para a intensificação das diferenças – talvez mais do que a fusão respondeu Moriki. Então, Moriki começou a cavar a ou a perda de “identidade”. Desta forma, no livro organizado por terra, sem parar, cavou, ficou cansado, nem tomava Denise Fajardo Grupioni (2009: 38), podemos ler: água, até varar do outro lado do mundo. Já, lá do 23. A mesma questão que já colocamos em outro trabalho: Caixeta de Queiroz, 2008: 274. 129 outro lado do mundo, Morikici [o pequeno tatuzinho] disse: vou tomar água, e convidou todo mundo para tomar água. Todo mundo tomou muita água, estavam com muita sede! Desde lá, essa gente que mora do lado de cá dessa terra, foi chamada de Tunayana, que quer dizer, gente da água! Podemos tirar a seguinte conclusão de tais narrativas: os índios têm consciência de que, no passado, eram “todos misturados” e de que a diferenciação entre eles segue causas de ordem interna (sociológica e cosmológica) e de ordem externa (por exemplo, o contato com as frentes de colonização). Porém, não há dúvida, a cosmologia (explicitadas nas narrativas míticas) são fortes indicações tanto para justificar as formações étnicas ou a conjunção dos “grupos” em determinados sítios e lugares ao longo da história, quanto para os movimentos de reocupações ou retomadas territoriais. Esse fato não é específico do caso Na maioria das vezes, as sociedades ou “grupos” das Guianas foram descritos como “fechados” e sem uma consciência “tribal” ou de “nação” mais abrangente24. De fato, parece-nos equivocada a ideia de que houve ou está prestes a existir uma “confederação” no rio Mapuera sob o comando das lideranças Waiwai, ou uma confederação no rio Cachorro sob o comando das lideranças Katxuyana. Mas as histórias e narrativas míticas descritas anteriormente apontam para o fato de que os Waiwai e os Katxuyana, respectivamente, tentam hoje produzir uma “aglomeração dispersante” no rio Mapuera e no rio Cachorro. A história recente parece demonstrar que esse movimento está em curso, parece que os segundos têm obtido mais sucesso que os primeiros. Porém, antes que esse processo se conclua para ambos os casos, parece já ter-se iniciado um movimento na direção oposta, isto é, da “dispersão generalizante”. Por exemplo, há alguns índios “aglomerados” no rio Mapuera que desejam migrar para o rio Turuni (alto rio Trombetas), onde moravam antes da atração para as Guianas promovida pela ação missionária. Katxuyana ou Waiwai, pois pode ser verificado em outros contextos etnográficos, como aquele do noroeste amazônico ou outro dos Aruaque subandinos do período colonial. Neste último caso, ao citar o trabalho notável de Renard-Casevitz (1993), Manuela Carneiro da Cunha (1998: 09) conclui muito acertadamente que: Comunidades autônomas e morfologicamente equivalentes podem se agrupar em unidades mais amplas, cuja forma no entanto compartilham. Da família extensa à unidade local, desta à unidade regional, geralmente definida pelo rio ou por um segmento do rio, da unidade regional à província, desta à etnia e à “nação”, cada uma dessas unidades se reveste da mesma forma. Carneiro da Cunha, 1998 apud Renard-Casevitz, 1993. 24. 130 Conforme já citamos no início deste trabalho, por volta de 1925, os Katxuyana estavam diante de uma tragédia decorrente das epidemias: os sobreviventes não tinham tempo e nem disposição para enterrar tantos mortos – restou-lhes fugir para a mata. Aproximadamente em 1965, as epidemias de sarampo e gripe ainda atacavam os Katxuyana, e vários dos seus subgrupos desapareceram. Os sobreviventes, conta-nos Frikel (1970: 47), já não podiam se casar dentro do grupo de acordo com as regras de parentesco. Diante disso e da pressão dos missionários para retirá-los do rio Cachorro, como já relatamos, em 1968, os Katxuyana se cindiram em dois grupos: um se juntou aos Tiriyó, na Missão homônima, no Parque do Tumucumaque (alto rio Paru de Oeste), e o outro se juntou aos Hixkaryana, na terra indígena Nhamundá-Mapuera (rio Nhamundá). Depois desta época, os Katxuyana se viram obrigados a estabelecer relações Sobre essa caracterização das sociedades guianenses, ver o trabalho de Peter Rivière (1984). Sobre uma crítica a esta visão, ver o trabalho de Viveiros de Castro (1987) e, especialmente, a coletânea organizada por Gallois (2005). Ver ainda o debate entre Rivière e o grupo das Guianas coordenado por Dominique Gallois, publicado na revista Mana, em 2007 (Rivière et al., 2007) . de troca com grupos com os quais tinham, até então, reduzido contato. Por um lado, na Missão Tiriyó, apesar de um relativo afastamento, boa parte deles contraíram casamentos com pessoas do grupo Tiriyó, ou seja, misturaram-se mais uma vez. E, por outro lado, embora vivessem muito próximo dos Hixkaryana, ali os Katxuyana se mantiveram numa relativa autonomia e nunca perderam a oportunidade de se casar dentro do grupo – com pouquíssimos casos de casamentos “exogâmicos”. Nos dois casos, os Katxuyana nunca abandonaram o desejo de um dia retornar ao rio Cachorro: lugar que a memória histórica e os relatos míticos sempre lhes assinalavam como “o lugar dos Katxuyana”, onde podiam viver na sua terra e sem “mistura”. Os dois acontecimentos marcados acima, relativos às epidemias, parecem encontrar amparo ou ressonância na mitologia katxuyana. De fato, Frikel (1970, p. 51-52) nos fala de dois cataclismas que teriam ocorrido num tempo muito antigo: o primeiro deles foi uma grande enchente (tuna-imo); e o segundo teria sido um grande fogo (wehoto-imo). Depois disso, ainda se sucederam os eventos nos quais os demiurgos Katxuyana tinham tentado várias vezes “criar” a sua gente, mas haviam sido derrotados em inúmeras tentativas, até que, numa última, conseguiram. Enfim, os Katxuyana surgiram, misturaram-se, diminuíram, cresceram, tornaram a quase desaparecer, misturaram-se novamente e estão, finalmente, retomando o seu lugar (no rio Cachorro) e crescendo como povo. No ano de 2003, os Katxuyana reabriram uma aldeia às margens do rio Cachorro no exato local da antiga aldeia denominada “Waraha Hatxa”, acima da cachoeira São Pedro (perto do lugar onde relatamos os acontecimentos da cobra-grande Marmaruimó), na margem esquerda do rio. Depois que eles derrubaram as árvores e as queimaram, formando uma clareira onde seria a nova roça, aconteceu um evento de conjunção da natureza e da cultura. Naquela clareira, germinaram e brotaram várias sementes e plantas cultivadas pelos Katxuyana – sementes e brotos que permaneceram por mais de quatro décadas sem vegetar debaixo da mata e, então, encontraram luz para vir à tona. Eram plantas como o cará, o inhame, a banana, o urucum, o mamão, o abacaxi. Tal evento natural-cultural não deixou de ser também sintomaticamente simbólico: o renascimento daquelas plantas, que dariam o “de comer” aos Katxuyana regressos ao seu lugar de moradia, correspondia ao “renascimento” de um povo e de uma cultura no seu território tradicional. Ali eles continuam se misturando, também se diferenciando como gente (Yana), da mesma forma que, ao longo da sua história, como está guardado na memória “mítica” ou histórica da sua gente. Misturaram-se e se diferenciaram. Esse processo parece não ter um início definido nem um fim, seja porque começou muito antigamente na “fusão-fissão” dos “grupos”, seja porque continuou nos casamentos “interétnicos” na Missão Tiriyó ou na aldeia Mapuera, ou seja porque se prolonga nos dias atuais por meio das viagens e moradias cada vez mais frequentes no mundo dos brancos e no meio urbano. As “gentes” (Yana) parecem não parar de se misturar: para muitos, isso pode ser o fim de um povo ou mesmo do mundo; para outros, é a dinâmica posta pela vida no curso da história e da mitologia. BIBLIOGRAFIA ACEVEDO, Rosa & CASTRO, Edna. Negros do Trombetas: guardiães de matas e rios. Belém: UFPA, 1993. ANDRADE, Lúcia. Os quilombos da bacia do Trombetas: breve histórico. In: Revista de Antropologia. v. 38, n. 1, 1995. CAIXETA DE QUEIROZ, Ruben. Olhares e perspectivas que fabricam a diversidade do passado e do presente: por uma arqueologia etnográfica das bacias dos rios Trombetas e Nhamundá. 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Esse seu trabalho foi publicado em 1958. Uma década mais tarde, a paisagem abaixo descrita já não era mais a mesma: lá para comprovar o grau de fracionamento das unidades sociopolíticas, bem de acordo com a lógica centrífuga que, no modelo proposto por Pierre Clastres (1977), seria imanente às sociedades ameríndias. Em outro trabalho, Frikel falava do “espírito belicoso” das “tribos” do rio Trombetas: (...) foram-me indicados até agora mais de cem nomes tribais. (...) No decorrer dos anos, tentei organizar uma estatística (...). Teoricamente, ela dá como cota média cerca de 30 pessoas por maloca [aldeia], enquanto as cifras reais variam de 15 a 50, sendo raro encontrarse uma maloca com mais de 50 habitantes. (...) devido à tendência dos Karib para um certo isolacionismo em moradias dispersas, o pesquisador encontrará apenas pequenos grupos. Um estudo geral sobre cada um desses grupos culturais ou cada uma dessas famílias será como um mosaico: há de se compor, conforme as circunstâncias, de estudos parciais numerosos e quase idênticos Frikel, 1958: 205. Frikel, 1958: 116-118. Com efeito, o padrão de ocupação territorial que se observou na longa história dessa região, e que se estendeu até meados do século XX, era baseado em uma altíssima dispersão e mobilidade, em que aldeias não apenas se espalhavam mais amplamente, como seus moradores, ora diferenciavamse, fissionando-se, física e nominalmente em coletividades distintas; ora se identificavam, fundindo-se em uma única coletividade, para mais adiante fissionarem-se novamente. Os tantos nomes encontrados nas fontes sobre a região estariam 1. 136 Os atuais grupos, são, como já dissemos, remanescentes daquela população que se extinguiu pelo seu espírito belicoso (...). assim o afirmam ainda os Kachúyana: “Brigaram com todos e brigaram muito também entre si. Não foi por doença que eles se acabaram como os nossos. Foi por briga!” Nessa paisagem, poderíamos pensar a profusão de nomes para coletivos indígenas como um produto, ou resquício, dessas relações de guerra e de outras derivadas, de fissão e fusão, que existiam antes dos processos de “pacificação” de grupos indígenas conduzidos por Estados Nacionais, por meio da ação missionária ou indigenista. De modo que, enquanto tais relações existiram conforme sua dinâmica própria, a guerra poderia ser vista, de uma perspectiva clastreana, como uma máquina de centrifugar coletividades, e a fragmentação de coletivos, em princípio, apenas como um efeito da guerra. Isso é o que nos diz Philippe Erikson (1993: 51) sobre as guerras intestinas entre os povos de língua Pano, no sudoeste Amazônico: que uma das, senão a finalidade da guerra seria justamente “manter inviável a constituição de uma ordem supralocal”, corroborando assim a tese de Pierre Clastres, segundo a qual as sociedades sul-ameríndias seriam “sociedades contra o estado”. Mas se a finalidade apontada por Erikson vai ao encontro da perspectiva clastreana, também vai além, na medida em que demonstra que é só por meio da incessante fragmentação que se produz a figura do “outro” como imprescindível à constituição do “nós”, pois é diferenciando-se que, como diz o autor: “abrem-se Protásio Frikel, inicialmente, missionário franciscano e, posteriormente, pesquisador do Museu Goeldi, fez várias incursões pelo interior da região centroguianense no decorrer dos anos 1940/50. as portas para o reconhecimento de outrem” e, portanto, para que o “social” se instaure. Sem o que a imensa área de povos de língua pano compreenderia um terreno identitário tão homogêneo no interior do qual a plena identidade, sem alteridade, seria inócua. Mas esse não seria um “mundo possível” para nenhum ameríndio, isso é o que nos ensina toda antropologia pósMitológicas de Lévi-Strauss2, pois, como também demonstra Oscar Calavia Sáez, outro especialista na área pano: Em último caso, o que se caça fora – inimigos, carne, nomes, cantos – é objeto de um consumo produtivo que dá corpo e alma ao interior Sáez, 2002-03: 11.3 Voltando ao caso em questão, no início dos anos 1960 toda a região que abrange Oriximiná, estendendo-se ao restante da calha norte do Pará e países vizinhos, seria confrontada com um processo de fusão sem volta: um processo sem precedentes, de amalgamamento em unidades étnicas, ou, propriamente de “etnogêneses” decorrentes das relações que, a partir de então, passaram a ser estabelecidas entre as chamadas “tribos das Guianas” e os Estados Nacionais (Brasil e Guianas Francesa, Holandesa e Inglesa). De tal modo que, na mesma região onde Frikel (1958) identificou “cerca de 144 tribos”, hoje não chegam a dez os grupos étnicos reconhecidos oficialmente, dentre falantes de línguas Caribe (Aparai, Wayana, Tiriyó, Katxuyana, Txikiyana, Tunayana, Waiwai, Hixkariyana) e Tupi (Zo’é). O mesmo se deu alhures, por toda Amazônia e América do Sul, como exemplifica Erikson: Com efeito, tendo em vista sua propensão ao compósito, os numerosos grupos Pano, ao serem confrontados com o despovoamento, recentemente se fundiram para evitar sua extinção. (...) Os Marinawa, agora reduzidos a uma centena de pessoas, apresentam a respeito disso, um caso 2. 3. 4. extremo muito revelador, uma vez que os seus missionários dizem que hoje compõem uma aldeia constituída a partir dos sobreviventes de cerca de 25 antigas “tribos” Erikson, 1993: 54.4 Se, por um lado, circunstâncias históricas exigiram dos povos pano e das chamadas “tribos” das Guianas e Floresta Tropical em geral, que lançassem mão de sua “propensão à fusão” para fazerem frente ao perigo da extinção; por outro lado, Erikson também destaca em que outras circunstâncias não só desejam, como lançam mão de sua “propensão ao fracionamento”. Podemos citar como exemplo o que acontece no âmbito de uma aldeia indígena caribe-guianenese situada no alto Trombetas, Ayaramã, reconhecida como aldeia do povo Tunayana. No entanto, dentre seus moradores alguns são considerados estrangeiros, ainda que tenham nascido nessa mesma aldeia, enquanto são identificados propriamente como Tunayana certos moradores de aldeias espalhadas pela região, com quem não mantêm contato efetivo. O caso Tunayana é apenas um exemplo, dentre tantos outros, onde é possível observar que, por detrás da “fusão étnica”, a memória das diferenças que estão na base de sua constituição permanece lá, pronta para emergir a qualquer momento, subvertendo fronteiras identitárias de um modo desafiante ao olhar estrangeiro. O que dizer do caso citado acima, em que os remanescentes de cerca de 25 “tribos” antigas, que viviam relativamente dispersos entre si, após um processo de fusão étnica passam a compor os atuais Marinawa? Que coletividades seriam aquelas ditas “tribos”? E o que acontece com elas a partir do momento em que, fundindo-se, se transformam em “amálgamas étnicos”, passando a se relacionar com o Estado e a sociedade nacional como uma unidade social e política, e sob uma única denominação? Desaparecem, levando consigo a profusão de nomes respectivos? Ou permanecem de alguma As Mitológicas compõem um conjunto de quatro obras escritas pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss e publicadas entre 1964 e 1971 na França. Tradução da autora. Tradução da autora. 137 carlos penteado forma, para desespero de quem não encontra correspondente sociológico para as mesmas? Daí que, como bem observa Sáez (2002: 35), a atenção que se dá à profusão de nomes para coletivos indígenas normalmente não passe das palavras iniciais de quase todo estudo antropológico, seja monografia, dissertação ou tese. Aqui, ao contrário, esse tema é tomado como substancial. Para tanto, me apoio em autores que contribuíram, com seus estudos, para demonstrar que os nomes, parafraseando Sáez (2002: 40), não são apenas “ruídos”, mas remetem a uma dimensão estrutural da socialidade indígena. ONDE TUDO É NOME “Um mundo onde tudo é nome”, assim Pedro Achefa Tiriyó me descreveu o seu e o nosso mundo (não indígena), em uma das tantas conversas que entabulamos sobre o significado dos diferentes yana (termo caribe-guianense que designa “povo”, “gente”)5 e seus nomes: Denise: Por que hoje todo mundo se diz Tiriyó? Achefa: Por quê? É outro nome que nos deram. Denise: Quem que deu esse nome? Achefa: Não sei... (pensativo). É assim: paulista, é paulistayana, carioca, cariocayana, todos tipos de pessoa. (...) Gente é assim: tarëno, todos índios são tarëno. Mas também tem pananakiri, nós botamos nome para todos tipos de pessoa, pananakiri é americano, holandês, quem é pessoa. Denise: E Akuriyó? Achefa: Nós os chamamos de Akuriyó [gente cutia], mas eles dizem que nome deles é Tura, Turayana [gente macaco], assim como tem Okomoyana [gente vespa], Pïrouyana [gente 5. 6. flecha], Aramayana [gente abelha] e assim por diante... Denise: E Mekoro6 é Pananakiri? Achefa: Não! Mekoro é Tarëno, daqui mesmo, como nós. Só branco que nós chamamos Pananakiri, este é o nome geral. Depois tem nome um por um: Karaiwa [brasileiro], americano, holandês, alemão, japonês. Mas depois, tem também nome de índio Kayapó, Munduruku, Waiwai, Tapirapé, Bororo, Wajãpi-puku, Wajãpi, Aparai, Tiriyó. Só nome. Todos aqui têm nome, meu nome é Achefa, nome dele é outro, você também tem outro nome. Ele também. Todos têm nome, mas toda aldeia é Waiwai, ou Aparai, é assim, tudo é nome. Com efeito, o assunto dos nomes para diferentes “coletividades”, ou diferentes “tipos de pessoas” é algo que me chamou a atenção desde que pisei pela primeira vez na Missão Tiriyó (Terra Indígena Parque do Tumucumaque, extremo norte do Pará). Essa aldeia foi fundada em 1960 para sediar uma missão franciscana, ao lado de um destacamento de fronteira da Força Aérea Brasileira. Não cabe aqui adentrar nos meandros dessa história que se refere a um dos chamados “Trinômios Missão/FAB/Índios” instalados na Amazônia nos anos 1960. Basta dizer que esse modelo foi idealizado para garantir que a presença militar em áreas indígenas fosse mediada pela atuação de religiosos incumbidos de atrair, catequizar e civilizar os índios da região. No caso em questão, que população era essa? Aquela hoje genericamente reconhecida como Tiriyó e Katxuyana, que vivia nas cabeceiras, e médio curso, dos rios próximos à fronteira com as Guianas Inglesa (atual Guiana) e Holandesa (atual Suriname). Entre 1959/61, parte da mesma encontrava-se em pleno processo de migração em direção ao extremo sul desses dois países vizinhos, atraída por três missões protestantes.7 Com a instalação da Missão -yó, como em Tiriyó; -koto, como em Aramakoto; -so, como em Maraso são variantes da partícula yana e designam indistintamente: gente. Ex-escravos do Suriname com quem os Tiriyó mantêm relações comerciais de longa data. 139 Tiriyó, em 1960, no lado brasileiro, esse vetor migratório em direção aos países vizinhos teve sua intensidade diminuída. Também não cabe aqui adentrar nos detalhes desse processo, mas ainda hoje os mais velhos comentam o quão drasticamente a população local havia sido reduzida em consequência das muitas mortes ocorridas às vésperas da chegada dos missionários, não pelos motivos aos quais, de longa data, estavam acostumados – guerras locais, causadoras de baixas populacionais cíclicas –, mas por uma onda de doenças desconhecidas, inimigos invisíveis e invencíveis que horrorizavam a todos e, principalmente, às mulheres, que agora evitavam ter filhos, profundamente tristes e desanimadas com o contexto que se afigurava. Fato é que a região esvaziou-se rapidamente.8 Aldeias inteiras migraram para as missões, no interior das quais se operou um acelerado processo de “fusão intertribal” dando origem aos atuais grupos étnicos, como é o caso dos Tiriyó e Katxuyana aqui mencionados, mas também dos Waiwai e Hixkariyana. E se antes dificilmente a população de uma aldeia passava de 50 pessoas, após esse período uma aldeia como a Missão Tiriyó (Terra Indígena Parque do Tumucumaque), no Brasil, chegou a ter mais de 500 moradores. Na verdade, em algum momento ao final da década de 1960, chegou-se ao auge desse processo de fusão e centralização, de tal modo que, por toda calha norte paraense e vizinha, onde antes se espalhavam mais de 150 pequenas aldeias, agora existiam apenas quatro grandes aldeias, de leste para oeste: Kassawa, Mapuera, Missão Tiriyó e Bona. Em minhas primeiras pesquisas de campo, logo que pisei na Missão Tiriyó, minha preocupação era identificar quem era Tiriyó e quem era Katxuyana, pois sabia, por leituras prévias, de dois fatos que considerava básicos para me situar naquele universo até então, para mim desconhecido, em primeiro lugar 7. 8. 9. 140 que, conforme Rivière: (...) Relativamente pouco se sabe sobre a pré-história da região, e o que o conhecimento histórico que temos indica é que a região foi uma área de retração para onde vários remanescentes de povos tribais se amalgamaram para formar os atuais Tiriyó Rivière, 1963: 57. 9 E, em segundo lugar que, desde 1968, algumas famílias Katxuyana, sobreviventes de epidemias sofridas na região do médio rio Trombetas, haviam se reunido aos Tiriyó naquela Missão, passando a dividir parte do seu território, e aparentandose aos Tiriyó por meio de intercasamentos. Assim, naquele meu primeiro dia em campo, logo de chegada conheci Sina, um rapaz que se aproximou curioso com a minha presença, como todas as demais pessoas que me viam pela primeira vez. Porém, como poucos ali, Sina falava português, e nunca esqueço dele, pela surpresa que me causaram suas respostas: eu perguntava se ele era Tiriyó, e ele me dizia que não, que era Tarëno: Denise: Mas como assim, quem são os Tarëno? Sina: Somos nós, daqui mesmo. Denise: Mas, e os Tiriyó, quem são? Sina: Tiriyó é nome do branco, na nossa língua nós falamos que somos Tarëno. Tarëno é Prouyana, é Sakïta, tem também Aramayana, Okomoyana, meu pai é Sakïta, minha mãe é Maraso, mas é tudo Tarëno, daqui mesmo. Em 1959, o governo da então Guiana Holandesa, atual Suriname, concede permissão à American Door-to-life Gospel Mission para atuar entre os índios da fronteira sul. Com isso, em 1961, são construídas duas bases missionárias na região, sendo uma, de nome Alalaparu, em um afluente do rio Sipaliweni, e outra, de nome Paloemeu na confluência dos rios Tapanahoni/Paloemeu. Ambas próximas a pistas de pouso previamente instaladas. Um ano mais tarde, em 1962, as duas bases são assumidas pela West Indies Mission (cf. Rivière, 1963: 14). Trata-se de uma região de navegação difícil, com inúmeras cachoeiras e curvas, fator que sempre atuou no sentido de inibir o acesso de não índios até lá. Somente com a instalação de pistas de pouso em alguns pontos, a partir de 1959, é que esse acesso tornou-se mais viável, porém sempre difícil. Tradução da autora. Desde então, busquei várias aproximações ao tema, tanto nas subsequentes viagens a campo que tive oportunidade de realizar, quanto nas fontes documentais. Nesse caso, até a primeira metade do século XX as informações disponíveis resumemse ao que foi documentado em relatos de viajantes, relatórios de expedições oficiais e na obra de alguns historiadores.10 Dentre esses materiais, são raros os que vão um pouco mais além de listas com os nomes dos coletivos populacionais encontrados. Mesmo assim, cabe aqui observar que, tanto nas fontes do século XVII em diante, quanto em minhas pesquisas de campo encontrei referências à existência histórica e atual de gente com nomes como Aramayana, Okomoyana, Prouyana, Ewarhoyana, e outros. Todos eles, desde longa data, identificados como compondo “tribos”. E, nesse sentido, não há como não atentar para as diferentes conceitualizações sob as quais essas gentes foram apreendidas e sob as quais se pensam. Analisar as origens, os sentidos, usos e implicações de um conceito tal como “tribo” renderia com certeza um estudo próprio, o que não é o caso aqui. Mas o que gostaria de reter aqui é o seu enraizamento em uma tradição de pensamento de origem euro-ocidental, onde “tribo” define um tipo específico de formação social. E se este foi historicamente o termo atribuído às unidades populacionais encontradas nas terras baixas da América do Sul é porque estas pareceram corresponder ao que este termo define: a grosso modo, uma formação social antes do desenvolvimento de, ou fora de, Estados, composta por uma família, ou uma associação de poucas famílias que habitam em um mesmo local, comumente designado “aldeia”, ou em um mesmo território composto por várias aldeias. Voltando aos materiais históricos, como dito acima, até a primeira metade do século XX o que temos são relatos de viagens com menções às “tribos” encontradas, e listas, com sua localização e tamanho. Já nesses materiais saltava aos olhos a enorme profusão 10. de nomes utilizada pelos nativos para se designar uns aos outros. Peter Rivière (1963) chamava a atenção para alguns aspectos intrigantes, para não dizer, desanimadores, relacionados aos nomes das tribos. Se não bastassem os problemas de ortografia, dadas as distintas origens dos diferentes autores (portugueses, ingleses, holandeses, alemães, franceses, espanhóis) e seus variados modos de compreender e grafar cada nome, Rivière menciona o fato de que: “Esse problema se agrava no caso dos índios que se reconhecem por um nome, mas são conhecidos por outro” (1963: 97). Daí derivam obstáculos metodológicos de toda ordem. Um exemplo encontramos em Audrey Butt-Colson (1973), em “Inter-tribal Trade in the Guiana Highlands”. Nele, a autora menciona as dificuldades em identificar os diferentes grupos envolvidos no comércio intertribal de bens manufaturados, e em saber exatamente quem é quem nesse processo: quem manufaturou, quem intermediou e quem recebeu os bens. Para ilustrar, a autora dá um exemplo, segundo o qual lhe foi dito que um ralador de mandioca que tinha procedência entre os Pawana, havia chegado aos Waika por intermédio dos Pötsawugok e Ingarikok. Em alternativa, e sem prejuízo às identidades dos grupos envolvidos, segundo Butt-Colson, essa mesma rota poderia ser descrita do seguinte modo: o ralador de mandioca procedente dos Yekuana teria chegado aos Akawaio por intermédio dos Taurepang e Akawaio do alto rio Cotinga. Isso porque a autora conseguiu saber que os Akawaio são frequentemente referidos como Waika pelos Arekuna e grupos vizinhos; que os Pawana de quem estavam falando eram os Yekuana; e que os Pötsawugok seriam os mesmos Taurepang de ambos os lados da fronteira entre Brasil e Venezuela; assim como os Ingarikok mencionados, seriam mesmos Akawaio do alto Cotinga, também conhecidos como Kwatingok, literalmente, “gente do rio Kwatin (Cotinga)”. Como, por exemplo, Henri Froidevaux (1895) Explorations Françaises à l’interieur de La Guyane pendant le second quart du XVIIIe siècle. Paris : Imprimerie natinale, M DCCC XCV. 141 FABRICAÇÃO DE NOMES E GENTES: UMA “OBRA ABERTA” Com sua afirmação “tudo é nome”, supracitada, estaria Achefa invocando a ideia de que, para além dos nomes, das palavras, nada há de real? Faço aqui uma digressão sobre que valor terá o nome para esse pensamento, já que a preocupação com nomes parece ocupar lugar importante entre os sul-ameríndios. Nomes fazem parte dos processos de fabricação da pessoa, isso é o que mostram muitos estudos e etnografias. Regras de nominação, transmissão e cuidados com nomes próprios nos revelam que certo poder é atribuído aos nomes: o poder não só de oferecer sentido à existência de cada pessoa, como de determinar sua fortuna ou infortúnio, dependendo de como for manejado ao longo de sua existência, se adequadamente ou não. O que dá aos nomes, portanto, uma realidade própria. Tal preocupação dos índios com nomes teria, como bem observa Sáez (2002: 39), contagiado os etnólogos, haja vista o desenvolvimento, nessa disciplina, de toda uma honorável tradição de estudos: a das onomásticas indígenas. Não fosse tão motivada pelo próprio pensamento ameríndio, como também observa Sáez (idem, ibidem), tal questão em torno do valor do nome ganharia ares bizantinos, se considerarmos que a filosofia medieval foi permeada por toda uma discussão entre nominalistas, realistas e conceitualistas que disputavam entre si argumentos em torno da correspondência entre a palavra e aquilo que ela designa. Os nominalistas postulavam que palavras e nomes não passariam de convenções, ou flatus vocis. Postulado esse que parece encontrar eco na afirmação de Achefa de que, simplesmente, “tudo é nome”. Já os realistas defendiam uma correspondência entre as palavras e aquilo que elas designam, e que, portanto, elas não seriam exteriores nem independentes das coisas, assim postulava-se uma correspondência entre pensamento e realidade. Já para os conceitualistas o significado das palavras era exterior às coisas por elas nomeadas, a realidade seria dada pelo pensamento, não existindo fora dele. Porém, não 142 vem ao caso situar o pensamento ameríndio nessa discussão, até porque este apresenta outras particularidades que fogem a qualquer uma dessas tendências, principalmente se levamos em conta que também faz parte desse pensamento a atribuição de poder mágico ao ato de nomear. Tal como demonstra Nadia Farage em sua etnografia sobre os Wapishana: No começo, dizem os Wapishana, “quando o céu era perto, tudo falava, era puri”, magia. (...) Era sobretudo plástico aquele mundo original, e a força de o moldar encontrava-se na palavra: “Antes falava e mudava as coisas. Tudo agora já está feito”. Eficaz, criativa, a palavra provocava transformações contínuas, que deram ao mundo a feição que ele ainda hoje guarda: cachoeiras, rios, montanhas assim se criaram, em batalhas verbais entre os demiurgos Farage, 1998. De modo semelhante, percebi ao longo da minha pesquisa que entre os Tiriyó o ato de “nomear” é concebido enquanto um ato de criação, onde o que se vê diante de si só existe porque “tem nome”, em tiriyó: eka entume (expressão que designa que algo, ou alguém está, literalmente, “preenchido” de nome), pois concebe-se que tudo que existe, só existe porque é o nome que lhe dá existência. E talvez isso tenha a ver com uma atitude que sempre me chamou a atenção em minhas conversas com Achefa, e outros interlocutores Tiriyó, que era aquela de tentar me explicar o seu mundo fazendo o exercício de me mostrar como os seus conceitos funcionariam no meu mundo, para finalmente me dizerem: “olha só, é tudo a mesma coisa, só mudam os nomes”. O que no fim das contas não difere do que um antropólogo faz, quando supõe que outros povos também possam ser compreendidos com base em conceitos como “grupo” e “sociedade”. Como evidenciou Roy Wagner, em sua análise crítica a respeito da crença antropológica na universalidade dos “grupos sociais” e no sentimento de “grupidade” que animaria toda a humanidade: “Os ‘grupos’ eram uma função do nosso carlos penteado entendimento do que as pessoas estavam fazendo, e não do que elas mesmas faziam das coisas”.11 Com base nisso, poderíamos dizer sobre a nomonímia sulameríndia para coletivos, que o que definimos como “grupos”, eles definem como “gente”. Mas qual a diferença entre pensar coletividades enquanto “grupos” e enquanto “gente”? Na concepção ameríndia de gente se faz presente o mesmo senso de “grupidade” que caracteriza a concepção antropológica de “grupos sociais”? Em primeiro lugar as “gentes” ameríndias não se autoidentificam, nem se autodefinem, mas são identificadas, contrastadas, classificadas, “recortadas” e nomeadas por outrem. Se isso seria o mesmo que dizer que são “agrupadas” por outrem, não decorre daí que cultivem, ou alimentem, no interior das fronteiras em que são inseridas, uma intencionalidade nesse sentido ou um sentimento de corporativismo grupal. Desse modo, o mesmo que Wagner diz a respeito das coletividades daribi vale para os yana caribe-guianenses: “grupos nunca são deliberadamente organizados, mas tão somente elicitados por meio do uso de nomes” (Wagner, 1974: 105). Tais nomes costumam ser flexíveis e contextuais, mas com base em um dispositivo bastante versátil que é o de coletivizar “conjuntos de pessoas” definindo-os como “os tais ou quais” ou “a gente tal ou qual”, estes resultam por tomar a aparência de grupos. No entanto, não podemos perder de vista que não se trata de grupos deliberadamente organizados ou ideologicamente regulamentados como os grupos étnicos, e como análises na linha da “etnicidade” descrevem tais agrupamentos (Barth, 1997). Conforme propõe Wagner: nós somos tão criadores quanto os povos que estudamos, e precisamos prestar atenção tanto à nossa criatividade quanto à criatividade deles. Dito de modo um pouco diferente, a 11. 12. 144 Tradução da autora. Tradução da autora. suposição da criatividade coloca o antropólogo em igualdade de condições com seus sujeitos de pesquisa; também o nativo é um “antropólogo”, com sua própria “hipótese de pesquisa” sobre seu modo de vida. E a despeito de como desejamos compor esse modo de vida, temos de haver-nos com a “teoria” do próprio nativo por uma questão de dever profissional e ético Wagner, 1974: 120.12 Com efeito, por toda a região guianense, e sem exceção para Oriximiná e calha norte do Pará, observam-se os nomes desenhando fronteiras identitárias essenciais a toda e qualquer relação social, porque, antes de impor limites para tais relações, a fragmentação e com esta os nomes que a acompanham instituem as condições de possibilidade da própria socialidade entre si e outrem, e onde a figura do outro, nominalmente diferenciado, é imprescindível. Mas, voltando à questão do nome entre os Tiriyó, também é possível entrevermos uma estreita ligação entre “nome”: eka e “pensamento”: ekanïpï, na medida em que se concebe que algo só existe enquanto tal, porque existe alguém que pensa sobre, e nomeia algo, por meio da linguagem. Ao fim e ao cabo, tudo é nome, e os nomes não são todos iguais, porque, em cada caso eles compõem uma configuração própria, distinta e única. Assim, as coletividades concebidas como de diferentes tipos recebem nomes diferentes para que possam ser distinguidas umas das outras. Nesse sentido, tal como sugere Roy Wagner (1974), os nomes “elicitam” coletividades sociais no ato mesmo de distingui-las. Assim, à luz do que me respondia Achefa quando eu lhe perguntava por que hoje se chamam Tiriyó, e parafraseando Wagner, eu diria: “Tiriyó é um nome, não um grupo; é uma forma de distinguir, de incluir e excluir; é, pois, meramente um dispositivo para estabelecer mais uma fronteira necessária”. Mas o que Sáez define como “nominismo” parece melhor dar conta do que se passa com os nomes no universo ameríndio em geral: o nome não nomeia, convoca; não responde a nada fora dele, mas é real – as coisas, mais cedo ou mais tarde, acabam por lhe responder. Em termos mais concretos, isto supõe reconhecer como significativas todas essas operações com nomes que resenhei acima, e admitir também que os etnônimos não são um ruído, mas uma estrutura Sáez, 2002: 39. Compartilho com Sáez esta visão de que os nomes (“etnônimos”) não existem aleatoriamente, mas nos remetem estruturas nominativas que embasam uma prática corrente entre os ameríndios em geral: que é a prática nominista. É dela que advém a profusão etnonímica presente em fontes orais e escritas, históricas e atuais. - koto (povos de língua caribe) como em Piyanakoto (gente gavião) - kok (povos de língua caribe) como em Ingarikok (gente da montanha) - gok (povos de língua caribe) como em Kukuigok (gente do rio Kukui) - teri (Yanomami), como em Maxapipiwei teri (gente da região onde há muito peixe/traíra) Sudoeste amazônico: - dawa (Zuruahã/língua arawa) como em Jokihidawa (gente do igarapé jokihi) - madi ou madiha (Arawa), - ëvu (Nukini/língua pano) como em Inubakëvu (gente da onça-pintada) - txabê (Kaxarari/língua (gente do papagaio) pano) como em Bauêtxabê - djapá (Katukina/língua (gente da queixada) pano) como em Wiridjapa As operações com nomes que, na citação acima, Sáez menciona ter resenhado, dizem respeito a uma prática muito comum no nominismo ameríndio: aquela que permite que, nas mais diversas línguas, diferentes coletivos sejam nomeados a partir de uma partícula coletivizadora, cujo significado quase que invariavelmente remete a “gente”, ou funciona como pluralizador “os”, e que na maioria das vezes aparece na posição de sufixo, mas há casos em que vem no prefixo. Extremo oeste amazônico (Peru e Equador): - shuar (Jivaro), como em Murayashuar (gente da colina) Assim, temos, por exemplo: Gran Chaco: Norte amazônico: - yana (povos de língua caribe) como em Katxuyana (gente do rio cachorro) - ene (Palikur/de língua arawak) como em Wayveyene (gente da lagarta) - yó (povos de (gente cutia) língua caribe) como em Akuriyó - nawa (povos de língua pano) como em Xixinawa (gente do quati) - oro (Wari/de língua Txapakura) como em Oromin (gente anta) - lec (Toba) como em dapiguemlec (gente que mora no alto) - pi (Toba) como em Yolopi (gente javali) A recorrência dessa prática de nominação de coletivos (um qualificativo + uma partícula coletivizadora anteposta ou posposta) é que faz da fabricação de nomes uma obra estruturada, ao mesmo tempo que aberta a infinitas composições, e aberta, portanto, ao evento. Tal como propunha Sahlins (2008) quando 145 carlos penteado defendia que toda estrutura também é um objeto histórico. E tal como já demonstraram vários autores que se dedicaram a descrever, com maior ou menor detalhe, como funcionam sistemas nominativos e classificatórios de gente por toda América do Sul (cf. Butt-Colson, 1983-84; Taylor, 1985; Erikson, 1993; Sáez, 2002; Gallois, 2007; Tola, 2007). Além de nos remeter a outras lógicas e outros mundos possíveis, os nomes para coletivos indígenas, quando dizem respeito, principalmente, a autodenominações, desafiam qualquer “tentação substantivista”. O que parece claro do ponto de vista da prática nominista ameríndia é que esta se constitui antes como um meio de nomear “alteridades”, do que identidades coletivas. Portanto, como uma prática a serviço da produção necessária do outro. Do mesmo modo, ficou claro que a isso que nós (não nativos) chamamos de grupos, os ameríndios, em suas distintas línguas e concepções não apenas chamam de outras coisas, como possuem compreensões, de caráter ontológico, absolutamente distintas. Sabemos que para os mesmos, o estatuto de “gente” ou “pessoa” não se restringe à espécie humana, tal como concebida no pensamento “ocidental”, mas estende-se ao que este conceberia como “não humanos”. Resta indagar como se dá essa produção de continuidades e descontinuidades, e qual o papel dos nomes neste âmbito? Atuam como instrumentos de segmentação, conforme Butt Colson (1983-84), ou como operadores de cortes num fluxo contínuo (Viveiros de Castro, 2000)? A partir dos anos 1970, tornou-se lugar comum na etnologia americanista que as fronteiras entre os grupos locais são muito tênues, e que a mobilidade e a independência dos indivíduos ou famílias nucleares fazem com que se torne muito complicado definir o que seria, ou quais seriam suas unidades sociais. Uma das tentativas deste estudo, por meio da análise das onomásticas indígenas para coletivos, foi a de propor que o que estas nomeiam são formações sociopolíticas situadas em campos relacionais em constante movimento entre fusão e cisão, e que é no bojo desses processos que se fabricam nomes e gentes continuamente, ad infinitum... BIBLIOGRAFIA BARTH, F. Grupos étnicos e suas fronteiras. In POUTIGNAT, Ph. & STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. São Paulo: Unesp, 1997, pp. 187-227 BUTT-COLSON, Audrey. Inter-tribal Trade in the Guiana Highlands. In: Antropologica, 34, 1973, p. 6-67. _____. The Spatial Component in the Political Structure of the Caribe Speakers of the Guiana Highlands: Kapon and Pemon. In: Antropologica, 59-62, 1983-1984, p. 73-124. CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, [1977]. 2003. ERIKSON, Philippe. Une nebuleuse compacte: lê marcoensemble pano In La remontée de l’Amazone: anthropologie et histoire des sociétés amazoniennes. 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Porém, diferentemente do que poderíamos julgar, esse “lugar” de que me falavam os índios não é uma porção qualquer de terra na floresta. Em comum, todas as novas aldeias tinham o fato de serem reocupações de antigos locais de moradia, e as pessoas que então os ocupavam reivindicavam como tendo sido, outrora, lugares onde seus antepassados viveram. Esses “lugares”, assim, eram qualificados pela história, experiência e vivência das pessoas que ocuparam e circularam por aquelas terras e rios, e, no movimento de “volta”, as novas ocupações se legitimam pela continuidade dessa vivência. Este texto trata de uma dessas tentativas de “volta”, que acompanho há cerca de três anos.2 Vivendo atualmente em uma pequena aldeia próxima à foz do rio Mapuera, Xokokono, juntamente com seu pai, Tikti, planeja reocupar o lugar onde este viveu antes de seguir com os Waiwai para a missão Kanaxen3 na 1. 2. 3. 4. 5. 6. 150 então Guiana Inglesa. Ambos se dizem Txikyana, mas misturados aos Tunayana, Mînpowyana, Xerew e Katuena dos rios Cachorro e Turuni e, portanto, diferentes dos Waiwai do rio Mapuera. Juntamente com Xokokono e Rosene, sua esposa, eu por várias vezes me sentei com Tikti para ouvir as histórias de sua antiga aldeia, no igarapé Tarao – que é formador do rio Turuni, afluente da margem direita do Trombetas4 – e da perambulação de sua família, que, devido a conflitos com gateiros e outros karaiwa5 que subiam o rio Trombetas, deixou aldeias no médio curso do rio para se estabelecer entre outros grupos que também migravam para o rio Turuni, formando juntos uma grande aldeia chamada Yewucwi. Ocupando as cabeceiras do Turuni, entraram em contato com outros grupos que ali estavam, como aqueles que se chamam de Katuena, Xerew e Mînpowyana, com os quais estabeleceram alianças que são perpetuadas ainda hoje. Pensando nesses movimentos de “volta”, seria errôneo pensar que existe, entre as populações nativas das Guianas, uma identificação imediata entre grupo ou etnia e território. O que vemos nas aldeias guianenses é uma miríade de nomes, cuja história é marcada por constantes “misturas”, como afirmam as pessoas da região. Atualmente, os nomes que se tornaram circunstancialmente mais conhecidos, como Waiwai, Katxuyana, Tunayana, representam coletivos múltiplos, formados por diversos adensamentos de relacionamentos tecidos nos movimentos de aproximação e distanciamento que caracterizam a dinâmica social guianense.6 Com o advento das missões e a concentração “Projeto Norte Amazônico: etnologia e arqueologia na calha do rio Trombetas e na região das Guianas”, coordenado pelos professores Ruben Caixeta de Queiroz e André Prous, propunha uma abordagem conjunta entre antropologia e arqueologia, a fim de apreender as dinâmicas de ocupação e movimentação passadas e presentes na região etnográfica das Guianas. Este texto é um ensaio da dissertação de mestrado que desenvolvo no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, sobre o mesmo tema. Cf. a seção “A chegada dos missionários: missões evangélicas e Missão Tiriyós”, na página 156 deste livro para um breve histórico da missão. A área em que Xokokono pretende formar sua nova aldeia se encontra fora das TIs atualmente demarcadas (Nhamundá-Mapuera e Trombetas-Mapuera) e dentro dos limites da proposta de demarcação da Terra Indígena Katxuyana-Tunayana. Que é como chamam aos “brasileiros”, independentemente se brancos ou quilombolas, tendo como critério principal o fato de falarem a língua portuguesa. Como caracteriza Dominique Gallois (2007), as populações guianenses se relacionam em redes multilocais, nas quais não há pontos de vista sociocentrados ou que representem todos sociopolíticos. Nessas redes, o que vale são as elaborações e estratégias pessoais ou de pequenos grupos e famílias, inexistindo posições que totalizem unidades em relação a todos os outros. A enunciação de um “nós” coletivo, no entanto, constituiria hoje uma necessidade para essas populações, em que “o desafio que se coloca hoje aos índios, submetidos e constrangidos por nossas ideias a respeito das unidades que eles supostamente representam e por instituições que pretendem configurá-los como coletivos, é encontrar elementos para atender a essas demandas sem que precisem abdicar de suas filosofias sociais” (Idem: 75). Esses elementos selecionados, no caso dos Waiãpi, se baseiam em traços de aparência e/ou comportamento, o que garante que as classificações sobre a diferença permaneçam abertas, em infinitas possibilidades, o que permite a formação dessas identidades genéricas que representam contextualmente um “nós”. populacional a partir dos anos 1950, além da intensificação das relações com órgãos de Estado, no entanto, esse movimento ficou mais restrito – ao menos espacialmente –, passando a impressão da formação de grandes blocos étnicos encerrados em territórios bem delimitados.7 A “volta”, como veremos, não é uma reivindicação baseada na posse de um território, mas uma afirmação de continuidade que, além de histórica, está fundada na perpetuação através do tempo de relacionamentos formados em dado espaço e que formam corpos e parentes. Apesar da restrição atual, a formação de novas aldeias explicita a continuidade do movimento e das maneiras de criar e de desfazer agrupamentos. Até recentemente, antes da concentração, isso se dava principalmente por meio dos convites para festas cujo mote eram a dança e o consumo de bebida fermentada, e nas quais as aldeias que eram dispersas, mas ligadas por trocas, alternavam os papéis de anfitriãs e convidadas, engendrando um ciclo de reciprocidade ritual que propiciava, além das alianças matrimoniais, parcerias comerciais e políticas. Também a guerra e o rapto de mulheres tem papel importante na articulação dos antigos assentamentos. Formavam assim conjuntos que não se restringiam à marca étnica, pois eram formados por coletivos – Yana, na língua nativa – de procedências diversas, dando origem às “misturas”. Mesmo no contexto de aglomeração, em que esses yanas diversos se viram confinados em um mesmo espaço, as festas adquiriram outro aspecto, explicitando então diferenças internas e mantendo seu papel fundamental de marcar dessemelhanças contextuais (Caixeta de Queiroz, 2009). Atentando para as histórias da família de Tikti, devemos ver tanto o fato de viverem hoje entre Waiwai quanto de terem se “misturado” com outros grupos no Turuni como acontecimentos contingenciais, ligados à história de sua movimentação e às 7. relações decorrentes dela. Atualmente, mesmo vivendo longe desses lugares onde foram criados os laços que hoje informam relações que continuam cultivando vivendo entre os Waiwai, esses locais permanecem vivos e as pessoas permanecem ligadas a eles justamente pela perpetuação, ainda que à distância – tanto a distância das pessoas com o lugar quanto aquela entre as pessoas relacionadas separadas pelas missões –, dos contatos e alianças produzidos ali anteriormente. A “volta”, assim, significa rearticular essas relações dispersas novamente em espaço compartilhado, em aldeias que seguem um ideal de residência com parentes próximos, e não se restringe somente às pessoas que de fato viveram naqueles locais. Não por acaso, muitos daqueles que viveram no Turuni e querem voltar acercam-se de Xokokono, que jamais esteve lá, para expressar seu apoio e vontade de voltar, além de reconhecer nele, por suas qualidades e trajetória, um chefe capaz de levá-los até lá e fazer uma boa aldeia. Xokokono, assim, vai se tornando um ponto de convergência numa ampla e antiga rede de relacionamentos, articulando várias dessas relações, tornando-se um cacique de uma aldeia porvir. A SAGA DE TIKTI Já noite, debruçados com lanternas sobre um mapa em papel, eu e Xokokono íamos acompanhando a narrativa de Tikti sobre o abandono de antigas aldeias nas margens do rio Trombetas e a ocupação de seus afluentes e cabeceiras. Xokokono ia guiando a memória do velho, já desgastada pelos tantos anos: percorrendo com os dedos a estreita linha azul que representava o rio, imaginando e descrevendo a partir do que via no papel cartografado paisagens por ele desconhecidas, curvas de rios, O que Roy Wagner (2010: 253) aponta para o caso etnográfico dos Daribi também vale aqui. Lá, os agentes coloniais, diante de uma miríade de nomes, agrupamentos e terras de famílias, organizaram aldeias, desfizeram as casas coletivas e distinguiram grupos e territórios. Ou seja, criaram uma imagem de sociedade como conheciam: uma terra, para um grupo. Essa forma estatal de lidar com a socialidade nativa também ocorre no caso do Trombetas, e a formulação do vocabulário do grupo étnico por parte dos índios é uma resposta nativa à expectativa dos brancos de encontrar grupos em um sistema perpectivista, multilocal, em que os nomes marcam estados de relação. 151 entradas de igarapés, corredeiras e ilhas, ajudando Tikti a rememorar os lugres que ele ia nomeando, situando aldeias, narrando histórias de guerras, festas, fugas e casamentos. Perguntado sobre onde vivam os Txikyana, que é como ele coletivamente se nomeia, Tikti me contou uma história que remonta há séculos. Sua memória nos levou até as beiras do rio Amazonas, em um progressivo recuo rio acima desde a região de Santarém, e posteriormente ao Trombetas e daí para suas cabeceiras e afluentes. Tikti conta que os Txikyana viviam, muito antigamente, entre outros grupos em aldeias nas margens do rio Amazonas8, que foram sendo abandonadas devido aos conflitos com os karaiwa. Por isso, teriam subido o rio Trombetas direto até suas cabeceiras, estabelecendo-se, principalmente, no rio Ponama (formador da margem esquerda do Trombetas) e cabeceiras do rio Kaspakuru (afluente da margem esquerda do Trombetas)9. Do que retém em memória com detalhes, Tikti nomeia três locais de aldeia no rio Amazonas: a aldeia do cacique Onuwayari, chamada Tunaherenî na língua Txikyana, algo como “água grande”, onde hoje é cidade de Santarém; abandonada essa aldeia, recuaram para a região de Óbidos, e posteriormente Oriximiná, chamada por ele de Osohku mitî, cujo cacique era Maani. Abandonando também essa aldeia, recuaram ainda mais e formaram uma aldeia muito grande, onde hoje fica a vila de Cachoeira Porteira, chamada Yxamna pelos Tunayana ou Orixamna pelos Txikyana. Nessa primeira migração, pelo que entendo de sua narrativa, não se estabeleceram por muito tempo nesses locais, pois, diferentemente de outros grupos, como os que se chamariam Katxuyana, não ficaram próximos da região de Cachoeira Porteira e seguiram rio acima. No entanto, esses locais permaneceram na memória dos que migraram, sendo posteriormente reocupados por uma geração que é a do avô de Tikti. 8. Ele conta que seu pai nasceu na antiga aldeia Ayaramã, no rio Ponama. De lá, junto com seu avô, o pai desceu e viveu na região de Orixamna, próximos aos Kahyana, Katxuyana e Yaskuryana, que então ocupavam o baixo rio Mapuera e Cachorro, além do médio rio Trombetas. A partir daí Tikti narra outra história de fugas, essas de pessoas que foram seus contemporâneos. Os Txikyana ficavam bem no encontro do rio Mapuera com o Trombetas, os Kahyana ficavam na margem do Trombetas, os Yaskuryna ocupavam tanto a boca do Mapuera quanto o rio Cachorro, juntamente com os Katxuyana. Vivendo nessa época em Orixamna, cujos caciques eram Tataki e Tuho, os Txikyana foram visitados pelos Tunayana que vinham do rio Turuni, de muito longe, de uma aldeia chamada Yuuwa. Subindo o rio, porém, novamente chegaram os karaiwa: Chegaram também os karaiwa, e encostaram o barco e falaram: - “ei, tudo bem, Tunayana”? - “Aham, tudo bem, karaiwa”, os Txikyana responderam já com os arcos na mão, preparados. “-A gente te enganou e vamos te flechar agora”, o homem puxou a flecha na frente do karaiwa e atirou nele, karaiwa gritou “aaa”. Outro karaiwa ficou em pé e o Txikyana segurou o terçado dele. Mas ele puxou o terçado e cortou todos os dedos do homem. Ele ficou sem dedos. Isso acontecia por causa das mulheres.10 Depois de vários conflitos com os karaiwa, Tikti diz que seu avô ficou com medo de continuar morando em Orixamna e decidiu seguir rio acima, para morar próximo dos Tunayana. No caminho, conta que eles viram várias aldeias e conheceram outros Txikyana que então viviam entre os Katxuyana no rio Cachorro e também Protásio Frikel (1970:20) recolheu história semelhante entre os Katxuyana no rio Cachorro nos anos 1940. A partir dos relatos nativos, o autor traça um grande movimento de migração desde o rio Amazonas para a região trombetana em sucessivas levas, que teria formado os grupos atuais através de misturas dos Warikyana, que subiam, e de grupos originários da região das serras dos formadores da bacia do Trombetas. 9. Ainda Frikel (1958: 177) relata um encontro com “Tchikoyánas” - que falavam Tirivó - em 1953 no Ponama, além de ter visitado aldeias Kahyana (que são aparentados dos Txikyana) no baixo Kaspakuru no mesmo ano. William Farabee (1924) relata ter encontrado pessoas que se chamavam “Chikena” no rio Maroni, no Suriname. 10. Esse excerto foi retirado de um entrevista realizada com Tikti em 2015 e transcrita e traduzida por Rosene. 152 com os Kahyana no rio Kaxpakuru. Continuaram subindo até chegar a uma cachoeira próxima ao rio Turuni, chamada Yaimo Kahxin em waiwai e Piana Tohuru em txikyana. Lá foram visitados novamente pelos Tunayana, que iam dançar na aldeia deles. Por essa época já não havia mais aldeias na parte baixa do Trombetas, pois os karaiwa estavam entrando, e os índios fugiam rio acima e para as cabeceiras11. Vivendo perto das aldeias tunayana, os Txikyana passaram a se aproximar deles: entravam por terra pela margem do Trombetas e depois desciam de canoas até suas aldeias no rio Turuni, para trocar e fazer festas. Ainda assim, logo esses caminhos passaram a ser usados para fazer guerra, já que um homem txikyana roubou uma mulher tunayana, sendo morto pelo marido dela. Deu-se inicio a uma série de mortes por vingança. Tikti diz que os Tunayana queriam acabar com os Txikyana e essas brigas deixaram muitos de seus parentes mortos ou doentes, tudo “por causa de roubar mulher”. Por essa época também começaram a aparecer novamente os karaiwa. Chegaram alguns em Yaimo que sabiam falar a língua txikyana. Chegaram novamente perguntando na língua nativa: “ei, Txikyana, tudo bom com vocês?”. Eles respondiam que sim, mas já sabiam que eles estavam lá para tentar pegar mulher deles, e estavam esperando com flechas. Um deles queria levar a irmã de Pirihoput, um guerreiro, que não queria deixar que o karaiwa a levasse e resolveu mata-lo. Enganou ele, dizendo que sua mãe estava doente, que era pra ele levar remédios pra ela. Levando-o para dentro de aldeia, o flecharam. Outro, que tentou fugir para a canoa, também foi morto. Depois disso, resolveram abandonar a margem do Trombetas e formaram Marani no Turuni. Foi lá que o pai de Tikti casou-se com uma mulher Tunayana. Mas lá novamente apareceu outro karaiwa, e os índios resolveram logo dizer pra ele ir embora, que ele não era amigo e não levaria nenhuma mulher com ele. Se tentasse, seria morto. Um pouco depois o pai fez outra aldeia mais para dentro do Turuni, chamada Mapotu. Porém, viviam constantemente com medo de novos encontros com os karaiwa, e decidiram fazer suas aldeias longe do rio. Uma série delas, como Yawari, Mawa Thîrî e Matitikiri foram feitas bem longe das margens dos rios grandes. Faziam isso porque a antiga Manutu, que foi sua contemporânea, depois de ter sido raptada por karaiwa na região de Santarém e conseguido fugir novamente para onde vivia em Óbidos, havia lhes contado que os brancos não andam pelo mato, só pelos rios. Ainda assim, decidem abandonar a parte baixa do Turuni e subir até Yewucwi, uma grande aldeia nas cabeceiras que reunia gente dos rios Trombetas, Turuni e dos formadores do rio Cachorro. Lá ele diz ter conhecido pela primeira vez os Katuena, Xerewyana e Mînpowyana, Tiriyó, que frequentavam a aldeia para fazer festas e trocar. Conta que os Xerewyana e Mînpowyana tinha feito muita guerra entre si no passado, mas que naquele momento vivam juntos. Diversos deles foram morar também em Yewucwi. Também tomou contato com os Mawayana nessa época, que passavam pela aldeia para trocar. Mesmo alguns negros apareceram por lá, mas pela língua falada perceberam não serem karaiwa, pois não falavam português12. Em Yewucwi conseguiam trocar com Tiriyó cães de caça por miçangas, terçados e machados13. Essa aldeia, sendo muito grande, durou muitos anos e teve vários caciques: primeiro Enikawa, depois Maiaka, e ainda Riiko, todos tunayanas. Quando Tikti morava lá, os Waiwai de Kanaxen chegaram ao Turuni14. Quem liderava era Yakuta, irmão de Ewká: 11. Cf. Girardi (2011: 72-83) para um exemplo das narrativas nativas sobre conflitos nessa área com os negros que subiam o rio Trombetas. Tikti ressalta que com esses negros, havia alianças e trocas, pois não tentavam roubar suas mulheres. 13. Como se percebe, Yewucwi foi criada em um lugar de intenso fluxo de pessoas. Frikel (1955: 224) fala de um caminho usado pelos índios que ligava desde a zona de campos do rio Erepecuru, passando pelo Trombetas, Turuni até chegar no Cachorro, que ele assim descreve: “ele vai do rio Kachuru, maginando, mais ou menos, o Itchitch.wahú, ou Igarapé do Ambrósio e, atravessando as cabeceiras deste, leva aos Yaskuri e de lá ao rio Kuha ou rio Velho [...]. Segundo parte do curso do Kuha [Trombetas], atravessava para o Turuni e dali para o alto Kahu ou Trombetas (Kafuine), onde se unia com outra que vinha descendo das cabeceiras do Kafuine. Esta, por sua vez, levava, atravessando o Kahu e Wanamu (Panama), para os campos dos Pianokoto e Tiriyó até o Marapi e Erepecuru ou Parú de Oeste e mais além.” 14. Talvez em meados dos anos 1960, que é quando Howard (2002) situa a atração dos Katuena. 12. 153 victor alcantara e silva Estávamos dançando até o meio dia, quando ouvimos um barulho “Wih! Wih!”. Pensamos “quem são essas pessoas?” O pessoal waiwai que começou a chegar. Quando eles chegaram eu vi os Waiwai. Antes eu nunca tinha visto eles. Eu vi Yakuta, Manaka, Tamokrana, essas pessoas que eu conheci. Eles estavam contando a história do livro grande. Tikti conta que só Marakri, Putaya e um outro homem quiseram seguir com eles para Kanaxen. Conversei com Marakri, que hoje vive na aldeia Mapium no rio Mapuera, sobre essa visita. Ele era bem jovem quando Yakuta e outros Waiwai vindos da Guiana chegaram. Deram tiros de espingarda nos arredores da aldeia para anunciar sua proximidade, pois temiam aqueles que chamavam de enîrnî komo – os “povos não vistos”, ou os “isolados” como os chamam em português –, tidos como desconfiados e violentos. Entraram na aldeia todos enfeitados de penas e miçangas, vestindo bermudas. Marakri disse que os visitantes falavam uma língua só um pouco diferente da deles, e que chegaram querendo ensinar “palavra de deus”. Diante da perplexidade dos habitantes de Yewucwi, fecharam os olhos, rezaram e cantaram hinos evangélicos, dizendo que assim deviam fazer aos Domingos, pois daquela maneira lhes ensinaram os missionários, paranakiri.15 Poucos demonstraram interesse inicialmente e apenas Marakri, seu irmão mais velho e outros dois homens adultos seguiram com Yakuta para a missão, numa viagem de três dias varando por terra as cabeceiras, “para ver a aldeia deles, ver como eles estavam morando”, como me disse. Após um ano vivendo em Kanaxen, construíram canoas e retornaram com Yakuta a Yewucwi pelos rios. Quando chegaram, diversas pessoas de outras aldeias se reuniram para vê-los e para escutar a narrativa da viagem. Marakri contou-lhes que a vida em Kanaxen era muito boa e que queria levar todos outros para lá. Que lá aprendiam os hinos e rezas de Deus na igreja e que os caciques não deixavam haver briga. Tikti conta que os Waiwai chegaram falando das “palavras de deus”, dos ensinamentos dos paranakiri, e que queriam levá-los para conhecer Kanaxen. Interessados nos visitantes e nas novas palavras que apresentavam, as pessoas de sua aldeia rumaram com os Waiwai para a Guiana em uma longa viagem, ainda que várias outras pessoas tenham se recusado, isolando-se na região das cabeceiras, onde provavelmente permanecem até hoje. Para a viagem, Tikti disse que fizeram várias canoas com troncos e cascas e seguiram por mais de dois meses até chegar a Kanaxen, com pouca comida e se alimentando praticamente só carne de caça, sofrendo muito. Pensavam então que seria apenas uma visita, pois deixaram a maioria de seus pertences arrumados em grandes potes de barro na aldeia. Mesmo os cães e as galinhas foram deixados para trás! No entanto, conta o velho, uma vez na missão foram constantemente desencorajados pelos Waiwai e pelos missionários a retornar. Ele diz que não gostava de lá, que não podiam cantar, não podiam fazer as festas de bebidas, que os Waiwai brigavam com eles se mexessem nas roças. Eles tentaram voltar, mas Ewká16, que era o cacique geral em Kanaxen, dizia que todos que saíssem de lá morreriam, que iam morrer no caminho, porque agora já tinham tomado remédio, vacina, que precisavam dessas coisas. No entanto, mesmo assim Tikti retornou, para buscar seus irmãos, mas ao chegar encontrou a aldeia totalmente abandonada17. “Agora estou velho, já não aguento. Se fosse jovem te levava lá onde meu pai ficava”. 15. Paranakari é uma palavra de origem antiga, usada pelos caribe da costa no período colonial para se referir aos holandeses – parana-kari (Dreyfus, 1993). Entre os Waiwai, atualmente paranakiri designa povos não indígenas, geralmente de pele muito clara, que não falam o português. Aos missionários foi atribuído posteriormente o nome amerkan (Howard, 2002). 16. Ewká foi um prestigioso xamã escolhido pelos missionários como alvo de seu esforço de evangelização. Quando Ewká se declara convertido, há uma adesão coletiva ao estilo de vida crente. Cf. Caixeta de Queiroz (1999) para detalhes dessa história. 17. Como ficaram sabendo depois, os demais habitantes haviam seguido para outra concentração missionária, chamada Alalaparu, estabelecida entre os Tiryó pelos mesmos fundamentalistas que atuavam entre os Waiwai. 155 Apesar do desejo de voltar, Titki permaneceu contrariado por muitos anos em Kanaxen e retornou ao Brasil com os Waiwai quando eles decidiram abrir a aldeia no rio Mapuera. Como tantos outros que deixaram suas aldeias e lugares para se juntar aos Waiwai, Tikti tentou abrir aldeias separadas no rio Mapuera, mas a atração que a aldeia grande causava nos seus filhos, devido aos recursos que concentrava, o deixou sozinho na empreitada. “Por isso”, ele diz, “não consegui até hoje retornar ao Turuni, por falta de ajuda”. A CHEGADA DOS MISSIONÁRIOS: MISSÕES EVANGÉLICAS E A MISSÃO TIRIYÓS Em fins dos anos 1940, missionários passaram a realizar visitas no rio Essequibo, na Guiana. Os missionários da Unevangelized Fields Mission (UFM), atual Missão Evangélica da Amazônia (MEVA), haviam se instalado no Brasil no começo da década de 1940, visando evangelizar entre os índios das savanas no Território do Rio Branco (atualmente o Estado de Roraima) e da Guiana, notadamente os Wapixana, Macuxi e Ingaricó. Entre esses índios, escutaram relatos a respeito de grupos isolados e belicosos na região de densas florestas e serras ao sul da Serra do Acarí, a que os povos da savana chamavam “Waiwai”, os quais os irmãos Neill, Rader e Robert Hawkins decidem contatar, organizando uma expedição em 1948. Como sabiam que os índios do lado brasileiro eram mais numerosos e com a recusa do Governo em deixá-los implantar a missão no Brasil, empreenderam a estratégia de converter um pequeno grupo contatado na Guiana para, então, apostando na circulação das 18. 156 pessoas e palavras marcante na região, usá-los como ponte para acessar aqueles com os quais os primeiros mantinham contato. Estabeleceram assim a missão Kanaxen, próximo à aldeia Yakayaka nas cabeceiras do rio Essequibo, por volta de 1952. Já no ano de 1953 um grande afluxo de pessoas começa em Kanaxen, que atraia aquelas aldeias com as quais as pessoas de Yakayaka, que passaram a se denominar Waiwai,18 mantinham relações de trocas no rio Mapuera, como os Xerew. Em poucos anos a missão passa de cerca de 30 pessoas em sua fundação para mais de 250, ainda em 1958, e chega a 450 no fim dos anos 1960. Como exemplo da estratégia da UFM, temos a transcrição feita por Guppy – um pesquisador botânico que visitou Kanaxen em 1953 – da fala de um missionário: Uma vez que alguns artigos como armas para os homens, ou roupas para as mulheres, tenham se tornado necessários para eles, nós podemos facilmente catequizá-los, pois eles terão que ganhar dinheiro e como consequência morar próximo da missão, onde podemos controlá-los e guiá-los para caminhos melhores. (...) Há provavelmente 200 índios depois da fronteira, no Brasil, e é neles em que estamos realmente interessados. Os Waiwai da Guiana vão atuar como sementes, espalhando a Palavra para os outros – e é por isso que devemos concentrar esforços para convertê-los primeiro. Por enquanto, estamos tentando convencer os índios brasileiros a deixar suas aldeias e se assentar aqui. Estamos oferecendo a eles miçangas, facas, espelhos – tudo o que adoram. Nós mandamos mensageiros através da fronteira para dizer a eles que aqui viverão muito melhor. E alguns estão vindo Guppy, 1958 apud Valentino, 2010, tradução do autor. Como mostra Catherine Howard (2002: 30, 404), mesmo aqueles indígenas que à época de sua pesquisa eram reconhecidos como “waiwai”, diziam-se, na verdade, outra coisa. Em um sistema de nomeação relacional, o termo Waiwai me parece ter sido adotado pelos indígenas contatados devido à insistência dos missionários em assim chamá-los, adotando o nome usado pelos habitantes das savanas, que serviram de guias a diversas expedições que percorreram a área de fronteira marcada pela serra do Acarí, para nomear os povos da floresta. Ruben Caixeta de Queiroz (2009) denomina todos esses povos como pertencentes ao “complexo tarumã-parukoto”, uma categoria exterior à denominação nativa e baseada nos estudos de Protásio Frikel (1971), que estabeleceu um recorte geográfico a partir da densidade de relações que alguns desses agrupamentos mantinham entre si em certas regiões. Se, por um lado, os missionários mantinham um caráter pragmático em sua estratégia de atração, os índios pareciam atraídos não só pelas benesses materiais dos “presentes” ou da disponibilidade de remédios alopáticos e outros cuidados de saúde disponibilizados pelos norte-americanos. Pelos relatos que colhi com Tikti e Marakri, quando os Waiwai visitaram suas aldeias não levaram quase nenhum presente, e ambos enfatizaram o fato de estarem aprendendo novas palavras e formas de conduta com os paranakarî, a “palavra de deus”. Se os missionários assistência de saúde sem a intenção de concentrar os índios. pensavam que controlavam os índios pelos bens materiais, os DISTANCIAMENTOS, MIGRAÇÕES E PROFETISMOS índios que se deslocavam até a missão o faziam por motivos Porém, com a pressão das missões protestantes no Suriname e as expedições de atração que começaram a promover, os católicos passaram também a tentar reunir a população indígena dispersa na fronteira. Assim, já em 1968 todos os Tiriyó e grupos vizinhos estavam concentrados em apenas três aldeias, sendo que muitos haviam atravessado a fronteira para o Suriname. ligados à circulação dessas palavras, em um movimento com feições proféticas,19 como abordarei mais à frente. De toda forma, esse modo de trabalho missionário iniciado na Guiana seria replicado em outras áreas. Em 1963, duas missões protestantes foram formadas no Suriname pela UFM com ajuda dos Waiwai de Kanaxen (Frikel, 1971: 30). A partir delas foram realizadas incursões rumo aos Tiriyó do lado brasileiro, bem como ao rio Trombetas, atraindo diversas aldeias Tunayana, Kahyana e Txikyana que haviam permanecido depois das investidas dos Waiwai da Guiana. Essas expedições fizeram com que a missão católica instalada na fronteira do Brasil com o Suriname mudasse de postura, passando também a “disputar” os indígenas. Formada ainda em 1960, a Missão Tiriyós, situada no alto rio ErepecuruPA, foi uma resposta às incursões de missionários evangélicos na região (Grupioni, 1999). Em uma aliança com a Força Aérea Brasileira, que tinha o interesse de estabelecer uma pista de pouso próxima à fronteira, Frei Protásio Frikel propôs a criação da Missão, que, inicialmente, tinha como objetivo prestar A atuação das missões e das expedições a partir dos anos 1950 causou a aglomeração, em poucos centros, de uma população outrora dispersa. Outro impacto importante foi a distensão das redes de relação devido à distância entre esses centros, uma vez que agrupamentos antes próximos espacialmente tomaram decisões distintas quanto a qual missão se juntar, e mesmo alguns preferiram se isolar e não seguir para missão alguma.20 Assim, pessoas que viviam próximas, mesmo parentes, se viram apartados por centenas de quilômetros de floresta e sem perspectiva próxima de conseguirem voltar a seus lugares. Em toda a região, o quadro resultante foi que, nos anos 1990, a população da área entre os rios Nhamundá e Trombetas estava concentrada em apenas cinco grandes aldeias,21 além de existirem outras três aglomerações Tiriyó,22 à exceção daqueles que preferiram se manter em isolamento até hoje. Se as missões tiveram tanto sucesso em atrair essas populações para seu entorno, não podemos creditar sua eficácia somente aos missionários ou, como algumas interpretações apostam, no 19. Comum na literatura caribe no circum-roraima. Cf. Andrello (1992); Abreu (2004); Amaral (2014). É comum ouvir nas aldeias do rio Mapuera relatos sobre grupos próximos que se isolaram quando foram visitados pelos Waiwai e que não foram mais vistos em nenhuma das missões, e que provavelmente vivem de maneira autônoma em seus lugares de origem. 21. Mapuera, com cerca de 1300 pessoas; Jatapuzinho, no rio Jatapuzinho, com cerca de 300 pessoas; Anauá, no rio Anauá, com cerca de 150 pessoas, e Shapariymo, no rio Essequibo, na Guiana, com cerca de 150 pessoas, e Kassawá, no rio Nhamundá com aproximadamente 600 pessoas (Caixeta de Queiroz, 2009: 218). 22. De acordo com Grupioni (1999), já a partir de 1968 os Tiriyó que estavam no Brasil passaram a descentralizar as aldeias, permanecendo, porém, nos arredores da missão. 20. 157 engrandecimento político dos Waiwai.23 Os relatos históricos e etnográficos que temos da área no período anterior à entrada dos missionários mostram um quadro de muitas guerras e de epidemias que reduziam as populações, causando muita movimentação pelo território e estratégias de sobrevivência diversas, como o isolamento ou a aproximação e fusão com aldeias aliadas. Nesse momento dramático, em que mesmo as referências cosmológicas parecem falhar quando os xamãs são desacreditados (Caixeta de Queiroz, 1999), as missões parecem ter sido vistas como uma possibilidade de sobrevivência em continuidade com o que já vinham fazendo esses povos diante da queda demográfica. No entanto, essa visão das missões não se restringe ao aspecto material, dos remédios e dos bens, que nunca surgem nas narrativas daqueles que viveram a migração como algo importante. A “palavra de deus” e a figura dos paranakiri, esses sim, têm ênfase nos relatos. Se não tomamos essa ênfase como uma explicação a posteriori da suposta conversão evangélica Waiwai, como podemos compreender o interesse dos índios nela? Ou, modificando a pergunta, o que os ditos isolados buscavam ao decidir seguir aquela gente e ouvir aquelas palavras estranhas? A circulação e a aquisição de palavras estrangeiras aparece com bastante importância na literatura sobre os fenômenos proféticos relatados entre outros povos caribe, como aqueles da região circumroraimense (Abreu, 2004; Andrello, 1992). Nesses estudos fica clara a generalidade do fenômeno entre os povos caribe das Guianas e sua abrangência, uma vez que através das redes de troca as pregações que surgiam nas áreas de serra de Roraima atingiam regiões muito distantes, tendo chegado aos Waiwai e Carumã no alto rio Essequibo na primeira década de 1900. Circulando pelas Guianas, as pregações e notícias de visitas de missionários causaram, desde o século XVIII, vários movimentos de migração e concentração populacional. 23. 24. 25 158 Por exemplo, temos o caso dos Taurepang, entre os quais a sucessão de uma série de “profetas”, surgidos desde os anos de 1840, os levou a sucessivas migrações e a movimentos de concentração e dispersão territorial, nas quais grupos vizinhos, tendo ouvido falar das pregações, tomavam parte (Andrello, 1992: 110-126). Figura emblemática nessa história é Jeremiah, um líder religioso Taurepang que recebeu o pastor O. Davis em sua aldeia em 1911. A partir daí, Jeremiah criou uma série de novos cultos e cantos, interpretando os ensinamentos de Davis e cruzando-os com antigas danças indígenas, aos quais chamou de “aleluia”24. Nessas cerimônias, Jeremiah pregava sobre um bom lugar, preparado por Jesus, a ser alcançado por todos aqueles que observassem certas práticas, como proibições alimentares e abandono das curas xamânicas. Na época do Natal, Jeremiah enviava mensageiros às demais aldeias da região convidando as pessoas para aprender os cantos e as danças. Tudo isso fez com que sua aldeia se tornasse um aglomerado de grupos outrora espalhados que voltaram a se dispersar em pequenos núcleos pela fronteira do Brasil e da Venezuela alguns anos depois, devido à sua morte. O interesse dos povos da região do Trombetas nos missionários e nos Waiwai, a meu ver, decorre desse fundo cosmológico compartilhado na região que associa a repetição exaustiva de cantos e danças e uma conduta moral rígida a possibilidades de transformações fundamentais na condição humana (Abreu, 2004: 26). E o interesse nas palavras estrangeiras é tal que o padre Cary-Elwes,25 que percorreu a região dos Ingarikó no início dos século XX, se declara espantado com a avidez dos índios em relação às rezas e hinos, e sua “conversão espontânea” ao cristianismo, uma vez que mesmo aqueles grupos mais isolados já tinham conhecimento das rezas, que circulavam pelas redes nativas. No caso dos povos circum-roraimenses, as pregações dos missionários foram transformadas em novos cultos, hinos e danças Aspecto enfatizado por Catherine Howard (2002). Cf. Amaral (2014: 99-130) para um histórico dos estudos e gênese do aleluia e da exposição de suas linhas gerais. O jesuíta, tendo se deparado em 1912 com um grupo Waiwai que conhecia algumas rezas, foi informado que tinham enviado mulheres para aldeias Wapixana, em uma caminhada de 15 dias, com a instrução de só retornarem depois de terem aprendido as rezas (Abreu, 2004: 44). Poderíamos pensar, no caso dos grupos que se juntaram aos Waiwai, que o quadro de mortes e fugas causado pelas guerras e doenças preparou uma leitura cataclísmica da chegada dos missionários. Essa suspeita é confirmada ao menos no caso de algumas aldeias Xerew do rio Mapuera, as quais teriam migrado para os arredores de Kanaxen temendo o fim do mundo anunciado pelos evangélicos e a possibilidade de salvação na missão (Howard, 2002: 64). Nos demais, como no caso de Marakri e Tikti, a “palavra de deus” é o grande interesse deles, e aparece associada a uma mudança de comportamento. Marakri ainda ressalta que na missão não há brigas, característica que ouvi diversas vezes em campo como marca das aldeias “crentes”. Brigas essas que englobam, pela lógica nativa, as doenças, vistas como ataques xamânicos e vingadas tanto pelo conflito físico quanto espiritual. A ênfase da conduta “crente” que foi sendo criada se pautava na anulação da desconfiança e violência que marcava a vida nas aldeias dispersas, do ponto de vista dos Waiwai. Tendo em vista esse quadro, poderíamos pensar que os diversos grupos que se reuniram em Kanaxen fizeram uso dos missionários para reverter uma período negativo e deliberadamente propor mudanças coletivas. O que chamamos de “profetismo” aparece constantemente em relações de “contato”, sendo, no fundo, uma leitura particular desse encontro com os brancos – vivenciados xamanisticamente –, que muitas vezes são incluídos nos discursos apocalípticos e de renovação nativos.26 No caso caribe, como vimos, a imagem do branco, seu corpo e sua linguagem foram apropriados e associados a um meio ritual de produzir transformações no mundo – e às vezes como anunciadores do fim dos tempos. 26. Ver Sztutman (2012) e Viveiros de Castro (2008) para interpretações sobre as capacidades da ação profética. ruben caixeta de queiroz que possibilitavam, por sua incorporação e repetição exaustivas em festas, produzir em terra transformações que os levariam a um “bom lugar”, como numa imagem da “terra sem males”. Encontrando semelhanças na cosmologia nativa, as pregações missionárias foram capturadas por movimentos autônomos de transformação nos quais foram criadas novas formas de conduta, novos ritos, incitando concentração e dispersão de aldeias, formação e dissolução de coletivos, além da movimentação pelos territórios que criaram novas formações sociais, novas festas, novos nomes, novas maneiras de se relacionar. Permitiram ainda a esses povos se recuperar da queda demográfica, manter seu território e aprender a lidar com os brancos e suas instituições. CONTINUIDADE DE RELAÇÕES À DISTÂNCIA Se o interesse inicial pela missão pode ser explicado por um viés profético, temos que ter em mente que são momentos distintos aqueles em que a mensagem profética sai em busca dos outros e os atrai daquele em que, uma vez na missão, forças estabilizadoras impedem a saída. Mesmo atuando através de uma linguagem nativa, aquela do convite das festas, que implicava visitação e troca de conhecimentos, a missão em Kanaxen teve a característica de manter, através de certa coerção, uma população aglomerada por muito tempo. Assim, através da forma das inter-visitações comuns entre esses povos, criou-se, com o emperramento dos ciclos, certas assimetrias entre eles. De algum modo, Tikti, quando deixou sua aldeia, adentrava um novo mundo de relações no qual não dispunha de muitos meios e conhecimentos para manter sua vida como gostaria, restando a ele manter sua história ligada à dos Waiwai, mas sempre com o desejo de retornar a seu rio. Mas viver entre tantos diferentes ajuntados no movimento iniciado em torno dos missionários não significou que as diferenças anteriores fossem abolidas e que todos se misturassem indiscriminadamente. A “mistura”, sim, continuou operante, tecendo contextualmente diferenças que permitiram às pessoas manter suas relações dentro de certas preferências. Tikti, por exemplo, casou todos os seus 13 filhos com filhos de pessoas 160 que considera seus parentes, distinguindo e escolhendo pessoas Katuena, Xerew, Mînpowyana, Tunayana, Katxuyana que estão ligadas a ele por uma história comum de migrações, festas, casamentos no rio Turuni. Por exemplo, Xokokono foi mandado por ele para a Missão Tiriyós para conhecer Rosene a fim de se casar com ela, já que ela é filha de uma mulher cujo pai é considerado irmão por Tikti. Se o processo de missionarização tanto separou pessoas aparentadas quanto ajuntou desconhecidos, isso não significou o rompimento das antigas redes, justamente porque possibilitava outras formas de criar e manter esses laços pelas tecnologias que introduziam. O sistema de radiofonia, os encontros religiosos, a circulação de objetos e notícias pelos aviões e rádios, e mesmo as migrações entre aldeias, que apesar da distância acabavam ocorrendo – principalmente nas aldeias próximas à fronteira entre Brasil, Suriname e Guiana Francesa – permitiram que as pessoas continuassem cultivando e rememorando suas relações, reduzindo o afastamento espacial ao aproximar esses parentes através do fluxo de palavras e de uma “comensalidade” à distância (Grotti, 2007: 64). Distância que não impedia os casamentos de seguir as preferências elencadas, como vimos no caso de Xokokono e Rosene. Dessa forma, mesmo em uma espécie de êxodo, Tikti foi capaz de manter vivas as relações que ele e os seus articularam desde Yewucui – e que outros antes dele fizeram –, vivendo fora de seus lugares. Lugares que como vimos não são meros espaços que existem sem gente, uma vez que estão intrinsecamente ligados aos corpos, aos nomes, aos laços que unem as pessoas. Tanto que quando falam desses locais, referem-se a eles como sendo locais constituídos no fluxo da vida, locais onde “tomavam banho”, “caçavam”, nos quais “fizeram festa” ou houve “guerra”, onde “se casaram”, nos quais “comeram” com certas pessoas, onde “nasceram e morreram pessoas” etc. Os lugares, apesar da distância, permanecem sendo seus lugares, pois as relações, os nomes e os corpos das pessoas evidenciam isso. São como índices dessas tessituras. Aquilo que vemos como grupos, no fundo são possibilidades de se nomear baseadas nesses lugares. Diferentemente da definição enquanto grupos autocentrados, as pessoas dessa região formam certos adensamentos de relacionamento em que os nomes marcam estados de relação e diferenças ligadas à origem, lugares onde viveram, relações que travaram, mas que não são excludentes, haja vista que a “mistura” apontada pelos indígenas na constituição de seus corpos e aldeias não é negativa, mas parte necessária da constituição da vida. Ao invés de permanecer como um estigma sem referência exterior, o nome marca diferenças temporárias, pois é preciso que em determinados momentos essa diferença seja “eliciada”,27 que os antigos encontros e alianças sejam lembrados, para que as festas sejam refeitas e que as prestações matrimoniais se atualizem, perpetuando certas relações preferenciais dentre uma infinidade de possíveis. Ou seja, o nome é sempre uma marca de relação com o exterior. Por isso, o surgimento de nomes de grupo com uma carga étnica entre os índios deve ser visto com cautela, pois corresponde a uma resposta deles à nossa expectativa de encontrá-los. E essa é uma característica comum de locais em que não há a necessidade de filiação nem um referencial total para os nomes, havendo constantes sobreposições, sendo que a nomeação só é possível a partir de pontos de vista específicos, dispersos em rede, que marcam estados de relação (Gallois, 2007: 72). Assim, um nome jamais existe sozinho, pois ele é justamente a diferença que se deseja criar. Não há nome sem relação, e a pergunta “quem são vocês?” tem embutida um complemento “quem são vocês em relação a mim, que pergunta?”, e a resposta não existe sem a contrapartida: “somos X para Y”. Assim, também ao antropólogo não cabe procurar uma entidade encerrada na definição “os-X”, sendo x um nome tomado em função da lógica identitária, como se no plano analítico conseguíssemos separar o nome das relações, pois ele é justamente contraste. O nome, de certa forma, “cria” o outro a partir de com quem se relaciona, o inventa baseado nas classificações possível. E esses nomes não são aleatórios, pois são possibilitados justamente pela trajetória das pessoas,28 inscrita nos lugares. Dizer-se Waiwai, Tunayana, Txikyana ou Katxuyana, por exemplo, em diferentes momentos não implica em contradição, mas depende de com quem se relaciona, qual a diferença que se quer estabelecer. Isso é muito interessante quando vemos o movimento de afastamento de Xokokono em relação aos Waiwai. Para ele e os seus, eles sempre foram diferentes dos Waiwai, apesar de, na cidade, terem usado por muito tempo essa designação para si próprios, contrastando o fato de serem indígenas em relação aos brancos. Quando converso com Tikti sobre suas histórias no Turuni, constantemente ele oscila entre se considerar, pos exemplo, Tunayana e Txikyana, dependendo do que está contando. Atualmente, porém, no correr de sua vontade de deixar o Mapuera e assumir a vida em outra aldeia, a denominação Txikyana vem ganhando certa amplitude, passando a incorporar outros nomes sob o seu, no movimento de articulação mais ampla de várias pessoas em torno de Xokokono e da futura aldeia. É que da maneira como as qualidades de um chefe são avaliadas está a necessidade de saber lidar com os brancos e com o Estado, em que a formação de outra “unidade” para apresentar um coletivo múltiplo que contraste com o Waiwai e com os brancos parece ser importante. Em toda essa região, desde antes do encontro com os missionários, os impactos da violência colonial já eram sentidos, como as guerras em que se envolveram com os karaiwa que subiam os rios para explorar recursos em suas terras e os surtos de doenças 27. O termo é de Wagner (2010: 246), que insiste que os nomes não são grupos, mas meios de traçar fronteiras contextuais. Eliciar seria esse movimento de criar um contexto de enunciação. 28. Gallois (2007: 55) diz que entre os Waiãpi essas diferenças são traçadas a partir de três conjuntos: substância, aparência, modos de vida, o que se aplica também à forma como os caribe dessa região usam os nomes, com a diferença que tendem a enfatizar muito o local de habitação ao nomear os yana, como Katxuyana (yana do rio Katxuru) ou Kahyana (yana do rio Kahu). 161 que levavam a conflitos internos generalizados. Tudo isso causou mudanças na maneira como se organizava a vida nativa, culminando, em dado momento, nos movimentos de concentração em torno das missões que introduziram vários novos elementos que precisavam ser manejados. A maior proximidade de alguns grupos nativos com os missionários, e consequente privilégio no manejo desses elementos, produziu temporariamente assimetrias que tirou autonomia dos demais, fazendo-os algo dependentes da missão e dos grupos mais favorecidos pelos missionários e mais tarde pelo Estado. Dessa forma, se viram impedidos de retornar a seus lugares, fazer suas aldeias, viver a vida como gostariam por não conseguirem, sozinhos, obter recursos ou manter essas relações mais abrangentes. O resultado foi que, por décadas, vastas áreas anteriormente habitadas por eles se tornaram, ao menos aos olhos dos brancos, desabitadas, “vazios demográficos”, apesar da presença oculta daqueles que preferiram se isolar a seguir para as missões. A “volta” significa então rearticular relações dispersas nesse êxodo que as missões causaram novamente em um local compartilhado, além de indicar que o manejo desses elementos, hoje fundamentais para a vida nativa, se fragmentou. Não quer dizer reassumir a vida que levavam antes, pois esse movimento propiciou transformações necessárias ao estabelecimento de relações novas com o Estado e outros órgãos, à formação de novas formas de chefia e política, engendrou novas maneiras de fazer comunidades. E essas novas maneiras implicam uma forte ligação com o mundo dos brancos, mais especificamente seu domínio e uso para as comunidades. A dispersão atual aponta para formas criativas de produzir um “bem viver” sob essas novas condições, em um tempo em que novas necessidades foram criadas, como 29. o acesso à saúde e à educação, o escoamento de produção das roças, o acesso à cidade e, principalmente, a garantia de um território livre de determinações que não a dos próprios indígenas. Nesse sentido, a garantia dos direitos no plano Estatal, como a demarcação da TI Tunayana-Katxuyana e o acesso pleno à saúde e à educação, é condição de autonomia para esses povos, pois o acesso e a apropriação desses direitos formam novas condições para a emergência das chefias,29 e com elas a emergência das novas aldeias e a ocupação dos antigos locais de moradia30. BIBLIOGRAFIA ABREU, Stela. O Aleluia e o Banco de Luz. Campinas: CMU, 2004. AMARAL, Virgínia. A caminho do mundo-luz celestial: o areruya e os profetismos Kapon e Pemon. Dissertação de Mestradode Mestrado. Rio de Janeiro: PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, 2014. ANDRELLO, Geraldo. Os Taurepang: memória e profetismo no século XX. Tese de Doutorado. Campinas: PPGAS/ Unicamp, 1992. BRIGHTMAN, Marc. Amerindian Leadership in Guianese Amazonia. Submitted for the Degree of PhD St. John’s College & Department of Social Anthropology University of Cambridge. Cambridge, 2007. CAIXETA DE QUEIROZ, Ruben. 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Como mostra Dominique Gallois (2007), sendo o contato um confronto entre lógicas territoriais, “as diversas formas de regulamentar a questão territorial indígena implementadas pelos Estados Nacionais não podem ser vistas apenas do ângulo do reconhecimento do direito à ‘terra’, mas como tentativa de solução desse confronto”. 162 Direção de QUEIROZ, Ruben. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2009. DVD, 56min. color. DREYFUS, Simone. Os empreendimentos coloniais e os espaços políticos indígenas no interior da Guiana Ocidental de 1613 a 1796. In: Viveiros de Castro, E.; Carneiro Da Cunha, M. (Orgs.). Amazônia: Etnologia e História Indígena. São Paulo: NHII/USP/FAPESP, 1993, p. 19-41. FARABEE, William C. The Central Caribs. University Museum Anthropological Publications. Vol. 10. Philadelphia: University of Pennsylvania Museum, 1924. FRIKEL, Protásio et al. Tradições histórico-lendárias dos Kachuyana e Kahyana (versão Kachuyana). In: Revista do Museu Paulista, nova série, vol. 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Como um dos seus integrantes, o autor apresenta em detalhes a trajetória da “frente evangélica de contato” da MNTB: o início dos trabalhos de localização dos índios que ele chama de “arredios do Cuminapanema”, a efetivação do contato, a consolidação da “Base Esperança”, o início do trabalho de “aquisição” de dados linguísticos e antropológicos e, em 1991, a retirada da equipe missionária da área pela Funai. Referindo-se a este último episódio, no epílogo do livro, o autor conclui a narrativa anunciando: Sabemos que por trás de tudo está o Príncipe das Trevas que, conforme a revelação de Deus no livro do Apocalipse, “desceu até vós cheio de cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta”. Ele sabe também que “quando o Evangelho for pregado em todo o mundo virá o fim”, e ele e seus anjos serão lançados no lago de fogo e enxofre com todas as pessoas que seguem as suas artimanhas. Não é à toa que ele usa de todos os meios para adiar esse dia e uma de suas principais estratégias é impedir que o Evangelho seja anunciado, principalmente aos povos isolados. Todavia como o próprio Senhor Jesus profetizou, as portas do inferno não prevalecerão contra o avanço da Igreja e Deus não desistiu de se revelar também aos Zo’é. [...] A obra continua! E numa relação de parceria entre agências missionárias, igreja 1. 2. 166 brasileira e igreja indígena prosseguimos para o alvo na certeza de logo vermos os índios Zo’é conhecerem a Palavra de Deus e terem sua expectativa messiânica plenamente satisfeita. ” Castro, 2008: 148. Além de oferecer uma versão da história do contato, a narrativa deixa entrever os métodos utilizados pelos missionários fundamentalistas1. Pelo fato de o autor do mencionado livro e outros missionários continuarem a atuar nas regiões de Santarém-PA, da bacia do rio Trombetas, do Parque Indígena do Tumucumaque e de Brasília-DF e a tentar retornar à Terra Indígena Zo’é e a outras Terras Indígenas no norte do Pará e no Amapá, pretendo com o presente texto dar uma contribuição ao longo debate sobre a ação de missionários e igrejas evangélicas entre os povos indígenas no Brasil (ver Wright, 1999, 2006; Milanez, 2011a). Depois de contextualizar brevemente o leitor acerca da questão envolvendo os Zo’é, a MNTB e a Funai, apresento e discuto informações sobre as várias estratégias adotadas pelos missionários ao longo do tempo para tentar levar a “palavra de Deus” aos Zo’é e, ao final, procuro esboçar uma breve crítica às premissas teóricas e às implicações políticas da antropologia fundamentalista. A QUESTÃO Os Zo’é são um povo de língua tupi-guarani cujo território compreende uma área de floresta no sudeste do escudo das Guianas, no interflúvio entre os rios Erepecuru e Cuminapanema, subafluentes da margem esquerda do rio Amazonas, no norte do estado do Pará. Atualmente vivem na Terra Indígena Zo’é, regularizada pelo estado brasileiro em 2009 e com 668.565 hectares. Somam aproximadamente 280 pessoas (Funai, 2015), organizadas em dez grupos locais2. Tais assuntos já foram tratados por Dominique Tilkin Gallois e Luis Donisete Grupioni no artigo “O Índio na Missão Novas Tribos”, publicado em 1999. Utilizo aqui o termo “grupo local” para fazer referência ao termo nativo -wan. Conforme notou Havt (2001), -wan remete não a uma localização espacial (aldeia) especifica, mas sim à organização política ameríndia. É assim que cada -wan zo’é é formado por várias pessoas que circulam por um extenso território e que têm várias casas, roças e acampamentos nas suas áreas de domínio. As informações historiográficas, etnográficas, linguísticas ou arqueológicas atualmente disponíveis ainda não são suficientes para que se possa afirmar com certeza qual a origem do grupo ou as rotas de migração que o levou ao atual território que ocupa3. A despeito dessa escassez de informações sobre a história da ocupação indígena na região, as informações apresentadas por Gallois e Havt (1998) sobre um dos mitos de origem e sobre episódios importantes de trocas comerciais, conflitos, canibalismo, vinganças, alianças, raptos e fugas atestam a inserção muito antiga dos Zo’é em extensas redes de trocas regionais de agressões, coisas, pessoas e saberes. As narrativas orais, no entanto, indicam que os Zo’é se viram progressivamente privados de relações amistosas com outros povos e, por volta da primeira metade do século XX, confinaram-se nos rincões da terra firme. Essa situação de retraimento a que foram submetidos não apenas os Zo’é, mas também outros povos guianenses se estendeu até a segunda metade do século XX, quando, por volta das décadas de 1950 e 1960, tem início o processo de “pacificação” e o consequente declínio demográfico dos povos da região4. Conforme as narrativas registradas por Gallois e Havt (1998), após uma série de contatos esporádicos com castanheiros e gateiros regionais em um passado não muito distante – provavelmente nas décadas de 1950 e 1960 –, em períodos mais recentes – décadas de 1970 e 1980 –, a presença dos brancos nas imediações do seu território foi percebida pelos Zo’é nos termos de uma cronologia dos “barulhos”, rapidamente associados aos bens que esses brancos dispunham: motores de popa, aviões que arremessavam embrulhos cheios de presentes, helicópteros. Finalmente, chegaram os 3. 4. missionários da New Tribes Mission, instituição missionária evangélica norte-americana cuja filial nacional é a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB). Os missionários, auxiliados por mateiros, abriram uma pista de pouso, fixaram uma base (Base Esperança) ao sul do território zo’é e, no período de 1982 a 1987, iniciaram um processo de atração cujo efeito mais imediato foi a concentração dos diversos grupos locais zo’é no entorno da Base. Em 1987, a Funai interditou a Área Indígena UrucurianaCuminapanema, com o objetivo de resguardar o território ocupado pelos Zo’é e possivelmente por outros povos indígenas isolados. Em 1989, após a MNTB informar à Funai que o estado de saúde dos índios era crítico, uma primeira equipe da Funai (composta por um sertanista, um médico e uma antropóloga) visitou a área. Em 1991, Sidney Possuelo, então presidente da Funai, no contexto de uma ampla iniciativa de retirada de missões evangélicas das Terras Indígenas, decidiu retirar a equipe de missionários da MNTB do território zo’é. Gallois e Grupioni (1999), que na época iniciavam um trabalho de pesquisa etnológica no Cuminapanema, oferecem-nos uma boa síntese da conjuntura do episódio: Como únicos Kirahi [brancos] vivendo entre os Zo’é e com total controle da área, a MNTB teve a oportunidade de implantar toda a sequência de procedimentos de sedução que ela chegou a padronizar pela experiência acumulada em frentes no mundo inteiro, para garantir a convivência amistosa – mesmo distanciada – e estreitar com os nativos uma relação de dependência favorável à propagação da fé. Teriam No entanto, como sugerem Gallois e Havt (1998), o vínculo linguístico e cultural com outros povos tupis-guaranis (Wajãpi, Emerillon), a predominância de povos de língua caribe na área etnográfica das guianas e as informações mencionadas por Frikel (1958) a partir dos relatos do Frei Krause na década de 1940 sobre a possível presença de remanescentes de um povo de língua tupi-guarani designado Apãma a oeste da calha do rio Maicuru (provavelmente no CuruáCuminapanema) permitem aventarmos a hipótese de que os Zo’é são descendentes dos grupos de língua tupi-guarani do baixo Xingu. Aldeados em missões na margem esquerda do Amazonas nos séculos XVII e XVIII (ver Gallois, 1986) em algum momento da história colonial (provavelmente após a expulsão dos jesuítas no período pombalino), estes grupos se refugiaram nas vastas matas cortadas pelos afluentes da margem esquerda do baixo Amazonas: Jari, Paru, Maicuru, Curuá, Cuminapanema, Erepecuru e Trombetas. Refiro-me, em particular, aos povos indígenas vizinhos dos Zo’é: Tiriyó, Wayana, Apalai, Katxuyana e Waiwai. Tais povos ocupam a região da fronteira entre o Brasil, Suriname, Guiana e Guiana Francesa. No lado brasileiro, atualmente, eles vivem nas Terras Indígenas Trombetas-Mapuera, Nhamundá-Mapuera, Katxuyana-Tunayana e Isolados (em estudo), Parque Indígena do Tumucumaque e Paru de Leste. 167 alcançado essa meta, se considerarmos a atitude dos índios no episódio da retirada da MNTB da Base. Os Zo’é reagiram brutalmente contra os representantes da Funai e tentaram impedir a saída dos missionários; argumentavam que queriam manter perto deles esses Kirahi de quem eles tinham decidido se aproximar e de quem obtinham os bens que desejavam: ferramentas, roupas, remédios, etc. Na verdade, os Zo’é se sentiam “donos” desses Kirahi. de Consultoria da Missão apoiando os colegas na aquisição de língua e cultura em outras aldeias, enquanto que, junto com Edward Luz, lutávamos junto às entidades governamentais pelo retorno de nossa equipe de trabalho. Castro, 2008: 144-145. No relato do autor, transparecem os dois eixos sobre os quais foram estruturadas as estratégias adotadas pelos missionários: as ações de campo e as ações jurídico-burocráticas. Gallois & Grupioni, 1999: 83. A Base Esperança foi progressivamente abandonada, e os Zo’é retomaram o antigo padrão de dispersão territorial pelo interflúvio Erepecuru-Cuminapanema. A Funai instalou uma base em uma localidade denominada Keijã, no alto curso do Tarari, o “igarapé dos Índios” mencionado pelos regionais. Nos vinte anos subsequentes (1992-2011), foi instituída uma política indigenista de proteção radical, que partia da premissa de que os Zo’é eram um povo “isolado”, “puro”, “sem chefes” e que não mantinha “contato” com outros povos5. O objetivo era garantir uma suposta autonomia cultural e econômica dos Zo’é por meio da restrição do acesso dos índios às mercadorias e à interlocução com outros agentes. No período que se sucedeu à retirada da equipe da MNTB pela Funai, os missionários, no entanto, não desistiram da ideia de satisfazer as “expectativas messiânicas” dos Zo’é. Segundo Onésimo: Com muito pesar, vimos aos poucos nossa equipe se dispersar. [...] Nós, porém, permanecemos em Santarém até 1995, dando sequência à análise linguística, na expectativa de logo podermos retornar à aldeia. Por fim, depois de quatro anos sem férias, saímos para o sul de Minas. E, a partir daí, fomos designados pelas lideranças da MNTB a atuarmos no Departamento 5. 6. 168 Ver o texto de Dominique Tilkin Gallois, neste volume. Ver Milanez (2011a) e o texto de Caixeta e Ribeiro neste volume. OS CAMINHOS DA GEOPOLÍTICA FUNDAMENTALISTA Ao retirar a equipe da MNTB, a Funai interrompeu a sequência dos procedimentos necessários para levar a palavra de Deus aos Zo’é. Após um período de “recesso” (1991-1997), a partir de 1998, as ações de campo efetivadas pelos missionários estiveram voltadas para a realização de “visitas” terrestres às aldeias zo’é e para a consolidação de bases missionárias no entorno da T.I. Tais ações estão interconectadas e seguem uma mesma lógica: inicialmente os missionários se instalam em aldeias estratégicas e desenvolvem pesquisas linguísticas com o intuito de traduzir a Bíblia para as línguas nativas. Após o longo processo de tradução dos evangelhos, os missionários fomentam então a formação de pastores indígenas e, em alguns casos, a formação de bases nativas, que servem como ponta-de-lança para a evangelização dos povos “não alcançados”. Na região da Guiana Brasileira, segundo a perspectiva missionária, os povos não alcançados atualmente são justamente os Zo’é e os indígenas isolados6. No campo da etnologia das guianas, a estratégia utilizada pelos missionários fundamentalistas de formar bases nativas e incentivar povos indígenas cristianizados e que têm “uma propensão à visitação intertribal” a realizar expedições de contato com povos isolados ficou conhecida por “evangelismo cumulativo” (Howard, 2001) ou “modelo piramidal”, conforme Gallois e Grupioni (1999). São, sobretudo, os nacionais formados por esses institutos, os responsáveis pela evangelização dos nativos que, quando transformados em “cristãos tribais” serão capazes de levar a palavra de Deus a outras tribos. Todo o esforço concentra-se, assim, na criação e utilização de “bases” nativas. Este modelo piramidal de propagação da fé, assim como os exemplos bem-sucedidos de povos “alcançados” pela mediação dos próprios nativos, são difundidos incansavelmente nas publicações da agência [...] Várias experiências desse tipo ocorreram no Brasil sob a influência da MNTB ou do MICEB, que apoiou a atração dos Karafawyana pelos Waiwai. Gallois & Grupioni, 1999: 87. É a partir dessa metodologia do “evangelismo cumulativo” que podemos compreender a estratégia geopolítica adotada pelos missionários. Em 1998 e 1999, são registradas as primeiras visitas ao território zo’é por missionários auxiliados por mateiros regionais e indígenas Waiwai evangelizados (Funai, 2003). Outras invasões similares são registradas em 2003 (Funai, 2003). No entanto, tendo em vista a impossibilidade legal de permanecerem no interior da Terra Indígena Zo’é, os missionários e os evangelizadores indígenas passam a fazer incursões – relâmpago na Terra Indígena, com objetivo de incentivar os Zo’é a fazerem viagens para fora dali, o que passa a ocorrer a partir de 2010 (Funai, 2010a, 2010b, 2012). De modo concomitante às invasões, no período em questão os missionários estabelecem bases missionárias em pontos estratégicos no entorno da Terra Indígena. Dentre essas, podemos mencionar a base conhecida pelos Zo’é por “Rui rupa”7, instalada 7. na região dos Campos Gerais do Erepecuru, em algumas aldeias tiriyó na região do rio Marapi, no Parque Indígena do Tumucumaque e na aldeia Katxuyana de Santidade, no rio Cachorro, na Terra Indígena Katxuyana-Tunayana e Isolados (em estudo pela Funai). O auge dos movimentos zo’é ocorreu em 2010, quando dois episódios (ver Funai 2010a e 2010b) marcantes abriram para os Zo’é novas perspectivas de relacionamento com os brancos, com os povos indígenas vizinhos e com as mercadorias. No primeiro, acontecido no período das chuvas, evangelizadores tiriyó provenientes do Suriname fizeram uma visita a uma aldeia zo’é nas proximidades do rio Erepecuru e levaram muitos presentes: roupas, redes, um motor de popa e uma espingarda, que foi dada a um importante chefe zo’é. Na volta para o Suriname, o jovem Kitá partiu junto com os evangelizadores indígenas para Kwamalasamutu (aldeia predominantemente tiriyó localizada na bacia do rio Sipaliwini) e por lá permaneceu por quatro meses, indo à escola e à igreja e vendo coisas inéditas. Kitá viu também a cidade de Paramaribo, capital do Suriname e, entre outras coisas, aprendeu a falar a língua tiriyó. No segundo episódio, ocorrido em outubro do mesmo ano, após uma visita-relâmpago de mateiros apoiados por missionários com o objetivo de “atrair” os Zo’é para fora da Terra Indígena, noventa e seis índios Zo’é – homens e mulheres de várias idades, incluindo velhos e crianças – fizeram uma longa viagem rumo à região conhecida por Campos Gerais do Erepecuru (situada ao sul do território zo’é, na zona rural do município de OriximináPA) em busca das tão desejadas roupas, sandálias, relógios, espingardas, panelas, redes, mosquiteiros, miçangas, espelhos, lanternas, pilhas e outras mercadorias. A trilha utilizada foi a mesma aberta na década de 1980 pelos missionários evangélicos da MNTB. Durante o período em que ficaram acampados junto com alguns castanheiros e com o missionário Luís Carlos Ferreira, “Morada do Luís”, em referência ao missionário Luís Carlos Ferreira, ex-integrante da MNTB. Cabe mencionar que no período após o contato com os missionários, no final da década de 1980, os Zo’é referiam-se à Base Esperança ou por “Missão” ou por “Rui rupa”. Atualmente, Rui rupa refere-se à base instalada no entorno sul da TI Zo’é, na região dos Campos Gerais do Erepecuru. 169 rogério assis os Zo’é foram filmados por um empresário e político da cidade de Oriximiná-PA. No vídeo, que posteriormente foi divulgado pela TV local, o jovem Kitá (o mesmo que se aventurou pelo Suriname), um dos poucos Zo’é que compreende e fala o português, manifestou o seu descontentamento com relação ao fato de que a Funai não dava roupas, espingardas e outros bens aos indígenas. Mesmo que o incentivo dos missionários no sentido de criar essa situação seja evidente, a fala de Kitá na ocasião tornou claro que é um equívoco atribuir única e exclusivamente a eles os movimentos dos Zo’é para a região dos Campos Gerais e para as terras tiriyó. É preciso lembrar também que, nessa época, a Funai praticava uma política indigenista restritiva, fundamentada em métodos ortodoxos e muitas vezes autoritários. Os Zo’é, portanto, nesse contexto de pós-contato, estavam situados entre dois radicalismos: o fundamentalismo evangélico, que insistia em levar as boas-novas do Evangelho aos Zo’é, supostamente assolados nas trevas do paganismo, e o indigenismo protecionista radical que insistia em considerá-los como “isolados”. Razões pelas quais os movimentos e as denúncias tiveram desdobramentos políticos complexos, que culminaram, entre outras coisas: na ida de um grupo de chefes zo’é à Funai de Brasília-DF, em fevereiro de 2011, com o objetivo de pactuar a criação do “Programa Zo’é”; na mudança na coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema (FPEC/ Funai) em dezembro de 2011; e na abertura de Inquéritos Civis e Policiais com o objetivo de averiguar os crimes cometidos contra os Zo’é durante o período em que permaneceram nos Campos Gerais. Embora nos dois casos a ação dos Zo’é tenha sido motivada em parte pelo caráter restritivo da política implementada pela Funai e pelos convites feitos por castanheiros e pelos Tiriyó do Suriname (ambos em articulação com missionários fundamentalistas), não podemos desconsiderar que tais movimentos foram concebidos e efetivados pelos Zo’é. “Para pegar as coisas dos brancos”, certa 8. vez disse o índio Puku durante uma reunião. Hoje os Zo’é têm uma percepção clara de que os movimentos, ao mesmo tempo em que viabilizaram a aquisição de bens importantes, acarretaram a aquisição de doenças e resultaram na exploração do seu povo pelos brancos. Por conta da intervenção conjunta da Funai, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal (ver MPF-STM, 2011), a Rui Rupa está abandonada. O missionário e o castanheiro envolvidos no episódio dos Campos Gerais foram recentemente denunciados à Justiça Federal8. Com relação aos Tiriyó, embora uma pequena fração de indígenas evangelizados provenientes do Suriname continue com planos de regressar para a terra zo’é, desde 2012 os Tiriyó do Brasil, por meio da Associação dos Povos Indígenas Tiriyó, Katxuyana e Tikuyana (Apitikati), se manifestaram contra as idas de alguns índios tiriyó para a terra zo’é. CONEXÕES EM REDE Os missionários evangélicos fundamentalistas, no entanto, continuam em atividade. Paralelamente às ações desenvolvidas (sem a devida autorização do órgão indigenista) em Terras Indígenas, no período em questão os missionários fizeram diversas solicitações formais de ingresso na TI Zo’é em 1993, 1997 e 1998. Além disso, em articulação com políticos e instituições ligadas aos interesses evangélicos, apresentaram denúncias contra a Funai (ver MPF-STM, 2011) que, no entanto, foram arquivadas por falta de provas. Além de ser apoiada pela Associação das Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), que congrega diversas instituições missionárias, a consolidação do “evangelismo cumulativo”, ou seja, o trabalho de formação de pastores indígenas e de consolidação de igrejas nativas tem sido fomentado pelo De fato, como resultado dos Inquéritos Civis e Policiais, em abril de 2015 o Ministério Público Federal em Santarém denunciou à Justiça Federal o missionário Luís Carlos Ferreira e o castanheiro Manoel Ferreira de Oliveira por explorarem, em condições análogas à escravidão, o trabalho dos 96 indígenas Zo’é que foram para a região dos Campos Gerais do Erepecuru em 2010. Notícia disponível em: http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/mpf-acusa-missionario-e-castanheiropor-explorar-indios-zoe-em-condicoes-de-escravidao. Acesso em 12 de abril de 2015. 171 Conselho Nacional de Líderes e Pastores Evangélicos Indígenas (CONPLEI). Um dos principais objetivos do CONPLEI é justamente “programar e promover cursos de treinamento para obreiros indígenas em evangelização transcultural” 9. De fato, é a ideia mesma da “evangelização transcultural” que confere à ação missionária o seu caráter fundamentalista, intolerante e antiecumênico. É bastante significativo a esse respeito um trecho do depoimento feito pelo Presidente da MNTB, Edward Luz, ao jornalista Felipe Milanez (2011b): Em 29 de março de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a “abstenção da atuação” da MNTB na Terra Indígena Zo’é. Na ocasião, o STF decidiu negar provimento ao recurso extraordinário interposto pela Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) ao Acordão proferido pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região. Na interpretação do Ministro do STF, “o acordão recorrido encontra-se suficientemente fundamentado” (item III, p. 4), razão pela qual considera que carece de cabimento o recurso da MNTB10. [...] a tentativa de institucionalizar a discriminação religiosa no país é um argumento da Funai e que vai cair logo logo porque nós vamos levar às raias do tribunal do Supremo. Nós vamos levar e o Governo Federal vai ser obrigado a dizer se é crime ou se não é crime. [...] Se você proíbe pregar o Evangelho, você proíbe a liberdade de adoração. Se você proíbe o Evangelho, você proíbe o autor do Evangelho. E se você proibiu o autor do Evangelho você proibiu o senhor Jesus, proibiu a Bíblia, proibiu o Deus criador. E nós partimos para um confronto. O Estado é laico, mas as pessoas que compõem esse Estado não são laicas. Cada um tem sua crença, todo mundo pensa. A sociedade brasileira na hora que for pro confronto – e nós vamos –, a sociedade brasileira vai responder positivamente. [...] Nós vamos voltar para os Zo’é. Não sei como, mas nós vamos voltar. Como esse recurso conseguiu chegar às “raias do Supremo”? Talvez as articulações da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (ANAJURE), braço jurídico das missões fundamentalistas, tenham tido alguma influência. Mas a hipótese forte é a que aponta para as conexões envolvendo o movimento fundamentalista de evangelização dos povos indígenas, os grupos políticos e econômicos interessados na exploração de Terras Indígenas e a propagação de um pensamento que se diz “antropológico” e que hoje em dia parece fundamentar teoricamente a atuação de juízes e políticos ligados ao agronegócio, à exploração madeireira, ao garimpo, aos grandes empreendimentos e, claro, ao fundamentalismo evangélico. 9. Além desse caso dos Zo’é, há diversos outros recentes que evidenciam o modus operandi dessa aliança entre religião (evangélica) e política (ruralista-progressista) que tem efetivado sucessivos ataques aos direitos dos povos indígenas no Brasil. Dentre eles, podemos mencionar o da Terra Indígena Maró11, Ver o sítio na internet: www.conplei.org.br. Entre outras coisas, o Acordão em tela dizia o seguinte: “3 – É líquido e certo o direito de tribo indígena, que ocupa área de isolamento e acesso restrito, de não ter seu território invadido por quem quer que seja. Constitui obrigação da Funai zelar pela observância de tal determinação [...]”; “5 – Cabe à Funai, e não às organizações e instituições que pretendem atuar junto aos indígenas, estipular as regras de acesso àquelas populações, que tem sua acessibilidade restringida em face de circunstâncias culturais ou de integridade física”; “6 – [...] determinar a atuação da Funai e à abstenção da litisconsorte no sentido de não retornar à área da qual foi retirada em 1988”. 11. Embora o procedimento de regularização fundiária da Terra Indígena Maró tenha seguido estritamente o disposto no Decreto 1.775/96 e mesmo que o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI tenha sido aprovado pela Funai e publicado no Diário Oficial da União em 2011, em 2014, o Juiz Federal Airton Portela, então em exercício em Santarém, com base em um laudo elaborado pelo Sr. Edward M. Luz e encomendado pela Associação Comunitária dos Trabalhadores do Aruã e Maró (Acutarm) – uma das associações contrárias à demarcação da TI e apoiada pelas empresas madeireiras –, lavrou uma sentença absurda que, entre outras coisas, dizia que a TI Maró era “inexistente” e que os indígenas do Tapajós e Arapiuns eram “falsos” (ver a reportagem de Felipe Milanez, 2014). Em fevereiro de 2015, no entanto, o Juiz Federal Érico Freitas Pinheiro decidiu suspender os efeitos da sentença do Juiz Airton Portela (ver Decisão relativa ao Processo N° 0000610-82.2010.4.01.3902). 10. 172 no Oeste do Pará, e da Terra Indígena Morro-dos-Cavalos12, em Santa Catarina. Não poderia deixar de citar aqui a relação de parentesco que perpassa os casos mencionados acima, pois o antropólogo especialista em elaborar “antilaudos”13 de identificação de Terras Indígenas e que tem defendido ideias contrárias aos procedimentos técnicos de identificação e delimitação de terras indígenas e à Convenção 169 da OIT14 é filho do atual presidente da MNTB, que na década de 1980 participou do contato dos Zo’é15. PARA UMA BREVE CRÍTICA DA ANTROPOLOGIA FUNDAMENTALISTA Embora aqui não seja o espaço adequado para empreender uma revisão crítica aprofundada da antropologia fundamentalista16, gostaria apenas de tecer alguns comentários pontuais. Os depoimentos apresentados a seguir talvez nos deem uma pista para compreender em parte os fundamentos teóricometodológicos da mesma. Edward Luz (missionário): Há um desenvolvimento natural na antropologia brasileira, no pensamento antropológico brasileiro, saindo gradativamente daquela corrente mais próisolacionismo em direção ao pró-integracionismo. Nessa transição, nessa evolução, um fator determinante, que já vem tomando espaço no pensamento antropológico brasileiro, na academia brasileira e já tem norteado várias ações dentro do próprio Governo, é a questão da auto-determinação dos povos. [...] Os próprios índios, pelo princípio da auto-determinação, tem o desejo de conhecer algo de fora. Grupos que eram quase que acorrentados por forças políticas e, por ações de alguns segmentos, mantidos isolados, eles mesmos querem vir pra fora. Eles querem buscar a relação com a cultura envolvente, pois a relação com essa cultura representa mais saúde, mais educação, desenvolvimento, cidadania e a relação intercultural. É totalmente anacrônica a tendência isolacionista da antropologia brasileira. 12. Embora a Terra Indígena Morro-dos-Cavalos tenha sido declarada como de posse permanente do povo Guarani por meio de Portaria nº 771/2008, assinada pelo então Ministro da Justiça, em 2014, o Estado de Santa Catarina, com base em um laudo elaborado pelo Sr. Edward M. Luz, no qual este afirma que a maioria dos índios que ali residem foram trazidos do Paraguai e da Argentina por ONG indigenistas, entrou com uma ação civil ordinária (nº 2323) e com um mandato de segurança (nº 32709) contra a referida Portaria no Supremo Tribunal Federal. Cabe aqui mencionar que o processo de regularização fundiária da TI Morro-dos-Cavalos foi abordado de maneira bastante tendenciosa pelo jornal Diário Catarinense na reportagem “Terra Contestada”. Na reportagem, o Diário insinua que a Funai estaria usando o processo demarcatório como moeda de troca para autorizar a duplicação de um trecho da BR-101. Em nota de repúdio à referida reportagem, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI, 2014) lembra que o antropólogo Edward M. Luz nunca fez pesquisa entre os Guarani e foi expulso da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) pela sua conduta incompatível com o Código de Ética da Instituição. 13. Depois de se formar em antropologia pela UNB e coordenar na década de 2000 alguns Grupos de Trabalho (GT) para a identificação de terras indígenas no Amazonas e supostamente se dar conta “de quão bem estruturada, organizada e bem paga era a rede de organizações que tramavam, manipulavam e operavam o sistema de demarcações de terras indígenas”, Edward M. Luz passa a atacar o processo de “fabricação de etnias” apoiado por um grande esquema de financiamento internacional no qual estariam envolvidas diversas ONG ambientalistas e indigenistas internacionais, com a conivência e apoio da Funai. A Revista Veja, na reportagem “a Farra da Antropologia Oportunista” (VEJA, 2010), acabou por popularizar no Brasil essas ideias preconceituosas a respeito dos povos indígenas, das organizações indígenas e indigenistas e de alguns antropólogos. 14. Não por acaso, as declarações de Edward M. Luz sobre esses assuntos estão sendo divulgadas na internet pelo maior site de notícias e ideias anti-indígenas (http:// www.questaoindigena.org) e pelo site do Instituto Emdireita Brasil (www.emdireitabrasil.com.br), instituição que, conforme o seu estatuto, “pretende difundir o ideário conservador e de direita no Brasil”. No Congresso Nacional, eu mesmo fui testemunha durante uma Audiência Pública em 2014 de que as propostas de mudanças na legislação de terras indígenas e de desratificação da Convenção 169 têm sido defendidas veementemente por um deputado federal pelo Estado de Roraima que há alguns anos atrás era o maior invasor da Terra Indígena Raposa/Serra-do-Sol. O argumento utilizado pelo mesmo na ocasião era de que a legislação e a convenção são ameaças que estariam tanto incentivando o acirramento de conflitos étnicos em diversas regiões como “travando” o desenvolvimento do Brasil. 15. Além dessa relação de parentesco, o vínculo do antropólogo Edward M. Luz com os evangélicos pode ser evidenciado pelo fato de que ele é professor no Centro Universitário UniEvangélica, instituição evangélica de ensino superior sediada na cidade de Anápolis-GO (http://www.unievangelica.edu.br/noticias/3386). Não por acaso, na cidade de Anápolis-GO também está localizada a sede da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB). 16. Ver, por exemplo, Lidório (2011). 173 A evolução é clara e visível. Já há vários antropólogos de renome valorizando essa questão da integração e do desenvolvimento entre as culturas. A integração é possível e sendo feita de forma correta, há o respeito e a preservação das culturas. É nessa integração das culturas e na valorização de todas as culturas que o Evangelho surge como um elemento a mais. Nossa expectativa é que essa evolução da antropologia brasileira vai também acabar favorecendo de alguma maneira a evangelização. Milanez, 2011b. Edward M. Luz (antropólogo): Os indígenas deram uma incomensurável contribuição ao desenvolvimento nacional desde o descobrimento do Brasil. O Brasil é um dos poucos países onde o colono europeu encontrou, pode contar com ajuda nativa no esforço conjunto de colonização. Veja, Portugal era o país europeu com o menor território durante o século XVI e não tinha recursos humanos para encampar esta iniciativa colonizatória sem a força, o apoio, o conhecimento e o empenho indígena. Durante cinco séculos de colonização portuguesa, com algumas exceções pontuais aqui e acolá, os nossos indígenas juntamente com outros colonos que migraram para as Américas, foram nossos parceiros nessa empreitada colonizadora. [...] O que a elite intelectual não quer reconhecer de jeito nenhum, é que os indígenas não desapareceram, mas fundiram-se ao colonizador, formando uma nação mestiça. Esta oposição entre indígenas e desenvolvimento nacional foi forjada e recentemente criada. [...] Portanto, o que salta aos olhos deste analista neste início de século XXI, é a forma como alguns grupos indígenas estão sendo sorrateira e 17. inteligentemente manipulados, sendo jogados contra os projetos de desenvolvimento de interesse do estado e da sociedade brasileira. Isso acontece porque sem a bandeira comunista para se opor ao desenvolvimento do capitalismo, restou o ambientalismo e o indigenismo, que ao final do século XX, uniram-se formando um movimento misógeno, absolutamente contrário a qualquer projeto desenvolvimentista Luz, 201417. A partir desses dois discursos, podemos vislumbrar como estão sintonizados a ideia de que a “integração e valorização de culturas” favorece a propagação do Evangelho, a teoria do “Brasil mestiço” e os interesses de setores políticos e econômicos interessados na exploração dos recursos naturais das Terras Indígenas. Em outras palavras, ao lançar mão tanto de uma teoria da história dos índios no Brasil bastante questionável assim como de uma classificação etnológica, mais questionável ainda, composta das categorias de “falsos índios” (como os Borari), “índios alcançados” (isto é, evangelizados) e “índios não alcançados” (que devem ser evangelizados), a antropologia fundamentalista forneceu argumentos para aqueles que procuram desqualificar de maneira preconceituosa movimentos políticos legítimos como o dos povos do baixo Tapajós e Arapiuns, para declarar que Morro dos Cavalos não é território de ocupação tradicional Guarani e para o esbulho de Terras Indígenas e contra a Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil. Finalmente – e aqui volto ao livro mencionado no início –, não poderia encerrar esse texto sem deixar de comentar tanto o procedimento de traduzir Nipujan18 por “Criador” como a noção de “expectativa messiânica” mencionada pelo autor, pois ambas estão inter-relacionadas e remetem a discussões fundamentais no campo da antropologia. Com relação à tradução praticada Trecho da reportagem “Perfil - Conheça Edward Luz, o antropólogo que pode implodir a antropologia convencional”. Disponível em: <http://www.questaoindigena. org/2014/03/perfil-conheca-edward-luz-o-antropologo.html>. 18. Segundo D. Gallois (ver texto neste volume), Nipujan é uma figura central na cosmologia zo’é, pois recriou os Zo’é após o incêndio e o dilúvio que derrubaram a primeira humanidade. 174 rogério assis pelos missionários, gostaria de relembrar que nas páginas finais do último apêndice de Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, Edward Evans-Pritchard, um dos grandes mestres da antropologia social, diz o seguinte: Não aceitem, sobretudo em assuntos de religião, o que se encontra na literatura missionária. O missionário geralmente só conhece a língua fora do contexto da vida nativa e, portanto, pode desconhecer o pleno significado de palavras que apenas o contexto permite captar. O fato de o missionário ter estado com um povo por muito tempo nada prova: o que conta é a maneira e o modo de residência; é preciso saber se Deus lhe deu, entre outras bênçãos, o dom da inteligência. Peço cautela, sobretudo, em temas religiosos. É óbvio que, como os nativos não sabem inglês, o missionário, em sua propaganda, não tem outra escolha senão procurar palavras da língua nativa que possam servir para exprimir conceitos como “Deus”, “alma”, “pecado” etc. Assim, ele não está traduzindo as palavras nativas para sua língua, mas procurando traduzir palavras europeias que possivelmente não compreende em palavras de uma língua nativa que talvez entenda menos ainda. O resultado desse exercício pode ser algo confuso, se não caótico. Publiquei uma notícia sobre a quase-idiotia de certos hinos ingleses quando traduzidos para o zande. Os missionários usaram, por exemplo, a palavra mbori para traduzir “Deus” em zande, sem ter a menor ideia do significado do termo para os Azande. Coisas ainda piores acontecem em algumas línguas nilóticas. Não vou insistir no assunto; deixem-me apenas dizer que, no final das contas, a confusão se torna inextricável: ao escolher uma palavra nativa para “Deus”, os missionários terminam inevitavelmente por conferir ao termo nativo o significado e as qualidades que a palavra “Deus” tem para eles, missionários. Evans-Pritchard , 2005: 250-251. 176 Arrisco dizer que esse mesmo argumento pode ser mobilizado para criticar a noção de “expectativa messiânica” utilizada pelo autor, já que este procura atribuir aos Zo’é uma expectativa cristã (de “volta do Criador”) e, consequentemente, uma cosmologia, que é a sua própria. Dizem os Zo’é que Nipujan, depois de recriar os Zo’é após o incêndio (tata uhu) e o dilúvio (y uhu) que tragaram a primeira humanidade (zo’é ypy), foi-se embora (oho é) e não mais voltará (dajiwirahyi). BIBLIOGRAFIA CASTRO, Onésimo Martins de. Esperando a volta do Criador. Expectativa missionária de um povo “isolado” na Amazônia. Anápolis: Editora Transcultural, 2008. 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Campinas: Editora da Unicamp, 2006. 177 carlos penteado POLÍTICAS DO ISOLAMENTO VOLUNTÁRIO NOS INTERFLÚVIOS DO RIO TROMBETAS Fabio Augusto Nogueira Ribeiro e Ruben Caixeta de Queiroz INTRODUÇÃO A presente nota etnográfica versa sobre os povos indígenas em isolamento voluntário nas bacias dos rios Trombetas e Jatapu, na região da Calha Norte, na fronteira entre os estados do Pará, Amazonas e Roraima. Pretendemos, em primeiro lugar, a partir do material historiográfico e etnográfico disponível sobre esta região, fazer um breve histórico que visa evidenciar a continuidade espaço-temporal da ocupação indígena e delinear o contexto das vastas redes de relações que conectavam e conectam vários povos na região das Guianas. Tendo como pano de fundo as transformações geradas na área pela chegada e expansão dos missionários (nas décadas de 1950 e 1960), sobre as formas indígenas de organização social e territorial, o segundo objetivo desta nota é situar esse processo de contato com diversos povos e, ao mesmo tempo e em contrapartida, de emergência de povos não contatados à categoria de “isolados”. É desenvolvida, assim, uma discussão sobre tal categoria, considerando que ela carrega diversas contradições que têm fortes implicações nas políticas indígenas e nas políticas indigenistas relacionadas a esses povos, e são apresentadas e discutidas algumas situações de isolamento e contato com alguns povos da região. O último e breve objetivo do nosso trabalho é discutir as perspectivas atuais e futuras para os povos em isolamento voluntário nos interflúvios do rio Trombetas face às principais ameaças com relação aos territórios e aos direitos indígenas. A OCUPAÇÃO INDÍGENA NOS INTERFLÚVIOS DO RIO TROMBETAS E AS REDES DE RELAÇÕES NAS GUIANAS A maioria dos grupos indígenas dos interflúvios do rio Trombetas ocupa uma região de floresta densa, em áreas situadas acima das cachoeiras, em lugares de difícil acesso. Isso não impedia que eles mantivessem redes extensas de contato com povos próximos e distantes, conectadas por caminhos terrestres que 180 cortavam as cabeceiras dos rios no sentido leste-oeste e nortesul, atravessando o espaço que é hoje a fronteira entre os estados do Pará, Roraima, Amazonas e os países Brasil, Guiana e Suriname. Muito provavelmente essas redes sofreram um duro golpe com a diminuição populacional e com a sedentarização efetivada pela ação colonial e missionária a partir da segunda metade do século XX. Deste modo, provavelmente as redes de relações atuais que conectam os grupos indígenas são bem diferentes daquelas anteriores à chegada dos brancos na região. Sobre a situação anterior à chegada dos europeus ao continente, no entanto, a arqueologia poderá nos informar de forma um pouco mais satisfatória – embora, na região, os estudos arqueológicos ainda estejam em fase embrionária. Os dados históricos (falando de fontes escritas), a partir desta época, também não são fartos ou são pouco confiáveis, até mesmo porque, devido à dificuldade de acesso ao local, foram poucos os viajantes e estrangeiros que visitaram a região e a descreveram. Sem dúvida, um estudo mais rico sobre a história da região só poderia ser feito a partir da combinação entre a arqueologia, as fontes documentais e as fontes orais indígenas. É fácil constatar que os poucos viajantes que por ali passaram, como os Coudreau (1900), limitaram-se a explorar a calha principal do rio Trombetas e dos seus principais afluentes, não se aventurando pelas suas cabeceiras ou para o interior (não tão distante assim) da floresta, onde exatamente se encontravam os grupos indígenas. Como já dissemos, as barreiras naturais do rio e dos seus principais afluentes, formados por inúmeras corredeiras, impediam o acesso fácil e, ao mesmo tempo, serviam de proteção para os índios ali residentes. Não é à toa que várias são as histórias indígenas que apontam lugares concretos nos quais os aventureiros e estrangeiros se deram mal ou foram levados pelos índios a fracassarem quando tentavam atravessar as cachoeiras: muitos se foram para sempre na “caída dos pretos”, no rio Cachorro, ou na Cachoeira Bateria, no rio Mapuera. Podemos dizer que as redes indígenas dos interflúvios do rio Trombetas intercalaram por um longo tempo, pelo menos desde o início do século XVIII até o início do século XX, períodos de relativo isolamento nas matas combinados com aproximações e agressões às expedições de captura de escravos vindas do norte (fundamentalmente da Guiana Holandesa), aos negros-quilombolas e aos gateiros que subiam o rio Trombetas a partir da sua foz. Neste contexto, durante todo esse período, os índios da região se mantiveram longe do baixo rio Trombetas e das suas águas mansas – portanto, longe da frente de colonização luso-brasileira. Protásio Frikel, o estudioso (missionário e etnólogo) que talvez tenha percorrido de forma mais intensiva e feito registros sobre a região, a partir dos anos de 1940, assim dizia no seu texto de 1958: O rio Trombetas, com cerca de 1.000 km, é o maior afluente da margem esquerda do Amazonas, dentro do Estado do Pará. [...] Os rios principais desta área têm suas nascentes nos divisores reais do Acaraí e Tumucumaque (Tumuk-Humak). O mesmo acontece com o próprio Trombetas, com seus formadores Cafuíne (Kafuwiní) e Panamá (Wanamú) e com seus dois maiores formadores, o Mapuera e o Erepecuru, juntamente com o Marapi. [...] Seus afluentes mais importantes do lado ocidental são: o já mencionado Mapuera, o Cachorro ou Kaxurú, o Yaskurí, o rio do Velho ou Kuhá e, na altura equatorial, o rio Turunú. A leste recebe o Erepecuru, o Damiana ou Kah. yahó, o Kachpakurú, o Imnohúmu e o Ponékuru. [...] A maioria destes rios divide-se, em seus cursos superiores, em dois ou mais formadores, que para os estudos indigenistas são de alguma importância Frikel, 1958: 114. 1. 2. Por um lado, as informações do missionário-etnólogo, complementadas por aquelas produzidas por diversos cronistas e viajantes que andaram pela região no passado, e, por outro lado, as informações atuais sobre as áreas de ocupação dos povos indígenas (Caixeta de Queiroz, 2008; Grupioni, 2010; Funai, 2015) nos fornecem diversas evidências sobre a continuidade no espaço e no tempo da presença indígena na bacia do Trombetas. A despeito da lacuna de informações recentes (décadas de 1990 e 2000) sobre os povos em “isolamento voluntário” nessa região1, os dados de que atualmente dispomos apresentam fortes relações com as informações da metade do século XX: as áreas onde se constata a presença de povos isolados (regiões do Mapuera, alto Cachorro, Alto Paru de Oeste e alto Kaspakuru), assim como as hipóteses mais fortes sobre a filiação linguística desses povos são exatamente as mesmas. Assim, a respeito dos formadores e afluentes do Mapuera, Frikel nos informava que “[...] todos esses rios são habitados por tribos do grupo Parukotó”. Sobre o Paru de Oeste, dizia ele, “recebe certo número de afluentes cujas cabeceiras são bastante povoadas de índios. Em todos esses rios e igarapés vivem grupos Tiriyó”. Com relação a um afluente do Trombetas (o Kotonúru), afirmava: “suas margens são ricas em malocas de índios, com os quais, porém, não existe contato porque são considerados bravos, selvagens”. De acordo com a classificação linguística e etnológica desse autor, a bacia do Trombetas é habitada quase que exclusivamente por povos de língua caribe2. Os povos classificados no grupo Parukoto-Charúma ocupam a parte oeste e noroeste da bacia, ou seja, o interflúvio Jatapu-Nhamundá-Mapuera-TurunuAlto Trombetas. Nesse grupo, estão incluídos, entre outros, os povos Waiwai, Mawayana, Karaphawyana, Tcheréu, Tunayana e Katuena. Os povos do grupo Warikyana ocupam a parte central De fato, as últimas informações sobre povos isolados na Calha Norte do Pará foram publicadas em 1983 (ver Ricardo, 1983). As exceções são uma pequena invasão Aruaque nas cabeceiras do Mapuera e um grupo Tupí em um afluente do Maecuru (na ocasião da publicação do artigo, 1958, os Zo’é ainda estavam “isolados” no interflúvio Erepecuru-Cuminapanema). 181 da bacia, sendo que os seus assentamentos estão às margens do Trombetas, do Cachorro, do Cachorrinho, do Yaskuri e do Kaspakuru. Nesse grupo, estariam incluídos, entre outros, os povos Katxuyana, Yaskuryana, Kahyana, Ingarüne, Ewarohyana e Prênhoma. Na parte oriental da bacia do Trombetas, no interflúvio Panamá-Marapi-Paru de Oeste-Paru de Leste, estão os povos Pianakotó-Tiriyó. Nesse grupo, estariam incluídos diversos povos, dentre os quais, os Tiriyó, Prouyana, Aramagotó, Pianakotó e Akuriyó. A continuidade espaço-temporal da ocupação caribe no Trombetas tem como pano de fundo sociológico as redes de relações que envolvem diversos povos (ameríndios, afro-americanos e europeus) e conectam uma vasta região para além do Trombetas. A despeito das evidências da continuidade histórica e geográfica da presença indígena e das articulações em rede, alguns estudos antropológicos sobre a região das Guianas (Overing, 1983-1984; Riviére, 1984) retrataram os povos indígenas como grupos locais dispersos por um grande território em aldeias pequenas, politicamente autônomas, idealmente endogâmicas e ideologicamente xenófobas. As relações entre grupos se daria em função da pressão gerada pela escassez de recursos humanos, em particular de mulheres. Tal modelo, embora tenha captado por meio de uma etnografia minuciosa aspectos essenciais da organização social e do parentesco nas Guianas, contribuiu para popularizar a ideia de “sociedades minimalistas” (ver Viveiros de Castro, 1986). Outros autores, no entanto, já vinham abordando a dinâmica das redes de relações nas Guianas nos seus trabalhos desde os anos de 1980. Os trabalhos de Butt-Colson (1985), Gallois (1986), Farage (1991), Dreyfus (1993) e, mais recentemente, Howard (2003), Perrone-Moisés (2006) e Grotti & Brightman (2010) lançaram uma nova luz sobre a história e a dinâmica das organizações políticas supralocais e dos circuitos de troca de pessoas, mercadorias e ideias na região. Ao abordarem a imbricação e as implicações mútuas de múltiplas lógicas, coloniais e indígenas, que operam simultaneamente em escalas 182 diferentes (locais, regionais, nacionais e transnacionais), esses estudiosos evidenciaram as conexões para além das redes guianenses, enfatizando tanto os efeitos das estratégias geopolíticas colonialistas sobre a configuração política e a articulação territorial das redes indígenas como o papel dessas últimas na conformação das fronteiras e das geopolíticas dos atuais Estados Nacionais no escudo das Guianas (Brasil, Guianas, Venezuela, Suriname). Ainda que a região tenha sido relativamente esvaziada num período recente, a partir do final da década de 1940, em virtude da ação missionária e da concentração da população em poucas aldeias multiétnicas, conforme veremos a seguir, pode-se dizer que esse modelo da dispersão territorial dos grupos indígenas voltou a ser posto em prática a partir da década de 1990. Mais do que isso, a região mostra fortes evidências de que todos os grandes interflúvios (Erepecuru-Trombetas-Cachorro-Mapuera) que compõem a bacia do Trombetas, bem como os interflúvios do rio Jatapu e Nhamundá, são habitados por povos isolados. A região do divisor de águas Nhamundá-Mapuera é o território dos Karapawyana e de outro grupo que vive nas cabeceiras do rio Pitinga (afluente da margem esquerda do Nhamundá). A região do alto Kaspakuru e do alto Água Fria (no interflúvio TrombetasErepecuru) é território dos Ingarünhe. Os Tiriyó afirmam que diversos Pianakotó ainda vivem nas matas do interflúvio MarapiPanamá, em alguns afluentes da margem esquerda do Paru de Oeste (Quinze de Novembro) e no Poanã. E, no alto Cachorrinho, no interflúvio Cachorro-Mapuera, diversas evidências indicam a ocupação da área por povos isolados. A INVENÇÃO DOS POVOS “ISOLADOS” É verdade que a colonização do continente produziu um forte impacto sobre os povos indígenas do interflúvio do rio Trombetas: seja por meio da guerra fomentada pela captura de escravos indígenas, como indicam as fontes históricas que nos relatam sobre a incursão de holandeses na região; seja pela fuga de escravos negros das fazendas do baixo Trombetas e da pressão que isso exerceu para que os índios permanecessem nas cabeceiras desse rio; seja pelas incursões por terras indígenas de gateiros e de aventureiros à procura de riquezas vegetais ou minerais na região. Contudo, muito provavelmente, tudo isso não tenha produzido tanto impacto na organização supralocal indígena quanto a expansão missionária na região a partir da década de 1950. Catherine Howard (1993: 234) nos oferece uma clara ideia da dinâmica do processo: Em 1949, missionários protestantes norte-americanos da Unevangelized Tribes Mission instalaram-se entre os Waiwai do Essequibo [na Guiana]. Vários anos de esforços para converter os Waiwai encontraram alguma resistência, e mesmo uma tentativa malograda de matar o chefe da missão. Mas este último concentrou suas baterias sobre um jovem xamã de futuro político promissor; quando ele se converteu em meados dos anos cinquenta, a maioria dos Waiwai o acompanhou, de modo congruente com a natureza fortemente marcada da liderança política nessa sociedade. Os missionários se aproveitaram da característica propensão dos Waiwai à visitação intertribal, explorando-a para contatar e atrair outros grupos ao sul e ao leste da região do Mapuera-Trombetas. Os Waiwai, por seu lado, aproveitaram-se do acesso privilegiado aos bens de troca dos missionários, aos remédios, às novas formas do saber ritual (como a escrita) e às novas fontes (cristãs) de poder espiritual, para poderem dominar outros grupos. Desaparecerem as forças que limitavam o poder de cada grupo no sistema, e os Waiwai atingiram a eminência regional. 3. 4. A assimilação de outros grupos se acelerou, e as aldeias compósitas se expandiram rapidamente. Os Waiwai logo assumiram o controle das expedições de contato; hoje em dia, desencorajam os missionários a acompanhá-los nelas, dizendo que só eles mesmos, não os brancos, sabem como pacificar as tribos bravias. Apropriaram-se da linguagem da evangelização como uma das estratégias para persuadir os outros a se juntarem a eles, mas ela foi subordinada aos seus próprios modelos e dirigida aos seus próprios fins cosmológicos e políticos.3 O relato da autora é relevante, pois nos remete à história indígena recente no interflúvio do rio Trombetas e, principalmente, permite-nos vislumbrar as dinâmicas e as sobreposições das várias políticas, indígenas e não-indígenas, no contexto das relações interétnicas. Embora se refira especificamente aos Waiwai, tal relato guarda fortes similaridades com os processos ocorridos entre os Tiriyó e Akuriyó com o advento das missões.4 Em primeiro lugar, Howard menciona a política dos missionários no contexto da criação de diversos aldeamentos missionários (católicos e evangélicos) no Brasil (Missão Tiriyó), no Suriname (Araraparu, Kwamalasamutu) e na Guiana Inglesa (Kanashen). A técnica de contato desenvolvida pelos missionários foi caracterizada por Howard (2003) como um “evangelismo cumulativo” e consistia em potencializar “a propensão dos Waiwai à visitação intertribal” e persuadi-los a realizar contatos com povos que ainda se encontravam isolados. Essa política “contatualista” colocada em prática tanto entre os Waiwai quanto entre os Tiriyó do Suriname estava na base da criação de verdadeiras “frentes de contato indígenas evangélicas”, responsáveis pelo contato de diversos povos na região do Trombetas-Mapuera e da serra do Sobre a ação missionária e o processo de conversão do xamã Ewká, ver também o artigo de Caixeta de Queiroz (1999). Ver, por exemplo, o trabalho de Grotti e Brightman, 2010. 183 luisa g. girardi Tumucumaque. A partir desses processos de contato, assimilação e concentração em aldeamentos de diversos povos diferentes, é que se deu a emergência das designações genéricas “Wai-Wai” e “Tiriyó”. Teve início assim um grande processo, para fins de evangelização, de contato e concentração territorial de diversos povos indígenas que se encontravam dispersos por uma vasta região (ver Howard, 1993 e 2003; Grotti e Brigthman, 2010). Em segundo lugar, e em contrapartida ao processo de contato, esse período assiste também a emergência da categoria de povos “isolados” ou “não-vistos”, utilizada para se referir àqueles grupos ou frações de grupos que optaram por não estabelecerem relações permanentes com os brancos ou com os povos indígenas que haviam se submetido à dominação. Se, no caso dos Waiwai, os missionários conseguiram convencê-los a se converter ao evangelho, podemos afirmar que diversos povos adotaram uma política de recusa de contato. Mesmo que na perspectiva do pensamento guianense o termo “isolado” e a política do “não contato” possam encerrar uma contradição ao irem de encontro ao conceito e à prática das redes de relações, a opção dos povos isolados de permanecerem livres de relações com o Estado e com outros povos deve ser considerada. E aqui chegamos ao cerne do nosso argumento: a despeito da continuidade histórica da ocupação territorial, no período, houve uma descontinuidade sociológica nos modos de relações entre os diversos povos. Se, no passado, operava uma complexa política ritualizada de intercâmbios de pessoas, coisas e ideias, atualmente se observa que os povos contatados tem uma política do contato (resultado de uma “mistura” de fatores tradicionais – propensão à visitação intertribal – e externos – técnica do “evangelismo cumulativo”) para com povos que estão isolados, enquanto que esses últimos têm uma política deliberada, voluntária, de não contato com quem quer que seja. Isto é, mais do que um dado, ou uma característica intrínseca, ou um índice da “pureza” de alguns povos, o estado de isolamento voluntário é produto de circunstâncias históricas recentes. SITUAÇÕES DE CONTATO E DE ISOLAMENTO Vejamos mais de perto, a partir de alguns casos, como se formaram na região, ao mesmo tempo, aldeias compósitas e grupos isolados em função da ação missionária. No ano de 1950, os missionários evangélicos americanos ligados à Unevangelized Fields Missions (UFM), guiados por indígenas Wapixana, chegaram ao território habitado pelos índios Waiwai, na fronteira do Brasil com a Guiana. Os Waiwai, um povo de língua Caribe, nesta ocasião, eram um grupo pequeno e em processo de fusão (intercasamentos) com outros grupos, como os Tarumã (língua desconhecida e, hoje, praticamente desaparecida) e os Mawayana (língua aruaque hoje falada somente pelos velhos sobreviventes ao contato). Os Waiwai propriamente ditos tinham como local de habitação tradicional os formadores da margem direita do alto rio Mapuera – notadamente o rio Kikwo ou Baracuxi. Já os Mawayana, habitavam a margem esquerda do alto rio Mapuera, mais especificamente o rio Urucurim. E os Tarumã viviam no alto rio Essequibo, do lado da Guiana inglesa. Quando os missionários instalaram a Missão Kanashen, esses três grupos (Waiwai, Tarumã e Mawayana), já misturados, na sua maior parte, acabaram abandonando as suas aldeias e indo morar em torno de Kanashen, mais propriamente, numa nova aldeia denominada Yakayaka. Mais tarde, em 1954, a partir de Kanashen, os missionários Claude Leavitt e Bob Hawkins acompanharam os Waiwai numa expedição ao baixo rio Mapuera, onde moravam os índios Xereu. Como nos relata a tese revista de Howard (2003: 288), os missionários disseminaram entre os Xereu a mensagem de que um enorme fogo iria destruir a terra e todas aquelas pessoas que não tivessem aceitado Jesus nos seus corações. Ao mesmo tempo, prometeram-lhes abrigo e proteção, caso mudassem para a Missão Kanashen. Logo em seguida, os Mawayana restantes do alto rio Urucurim também seguiram para o alto rio Essequibo na 185 Guiana, onde se localizava esta missão, esvaziando a ocupação indígena do lado brasileiro do alto rio Mapuera – muito embora, conforme veremos, por ali ainda tenham permanecido grupos que acabaram se tornando “isolados”. Procedimento similar à expedição entre os Xereu ocorreu com relação a vários outros grupos indígenas, numa ampla região da Calha Norte, nas décadas de 1960 até 1980. Desta forma, por exemplo, expedições lideradas pelos índios Waiwai abriram uma pista de pouso no alto rio Trombetas ou rio Cafuini – pista, esporadicamente, ainda usada nos dias atuais – com o objetivo de criar uma base para a atração dos índios Katuena e Tunayana dispersos nas cabeceiras do rio Turuni e dos índios Xereu dispersos no alto rio Cachorro e Cachorrinho. Estes índios foram levados, na sua maioria, para as proximidades da aldeia Kanashen entre 1966 e 1967. A aldeia-missão Kanashen na Guiana se tornou um grande polo de atração para os indígenas localizados do lado brasileiro (para onde os missionários enviavam “embaixadores” indígenas dizendo que do lado de lá viveriam muito melhor, teriam acesso a bens materiais industriais e medicamentos, além da proteção divina), até o início da década de 1970. Nesta ocasião, depois da instalação de um governo de tendência socialista e avesso aos missionários americanos, estes incentivaram que os indígenas retornassem para o lado brasileiro. De forma mais ou menos planejada, com o apoio dos militares brasileiros, iniciou-se um processo de reocupação do norte do Pará e do oeste de Roraima, com a fundação de duas aldeias, respectivamente: aldeia Mapuera, no rio Mapuera, que era local de tradicional habitação dos Xereu-Hixkaryana; e aldeia Pista Velha (que logo se mudou para a aldeia Yauko e, em seguida, para a aldeia Kaximi), nas cabeceiras do rio Anauá e do rio Jatapu. Nesta época, início da década de 1970, o governo militar estava abrindo a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, e uma repressão 5. 186 violenta foi iniciada contra os Waimiri-Atroari, que resistiam à penetração da rodovia no seu território. A Funai tentava, em vão, pacificá-los. Foi nesse quadro que os Waiwai foram incentivados a migrar para Kaximi e, de lá, mais uma vez estimulados pelos missionários evangélicos, a enviar expedições para “atrair” e “pacificar” os Waimiri-Atroari. De fato, os Waiwai realizaram pelo menos duas grandes incursões no território Atroari, e dezenas destes índios visitaram a aldeia waiwai de Kaximi por um período relativamente longo. Contudo, depois dos desastres dos primeiros contatos, em que a população waimiri-atroari sofreu um duro abalo em função das epidemias e da violência militar5, aqueles Waimiri-Atroari que haviam procurado abrigo provisório entre os Waiwai retornaram ao seu território tradicional – com a exceção de um único índio atroari, Xiquinho, que se casou com uma índia waiwai e hoje mora na aldeia Soma (rio Jatapu), o processo de assimilação dos Waimiri-Atroari pelos Waiwai não se efetivou e funciona como um contra-exemplo com relação a vários outros grupos. No ano de 1978, durante a abertura de um trecho da BR 210 – uma estrada que, originalmente, atravessaria toda a extensão da Calha Norte, cortando inúmeras áreas habitadas por índios isolados –, onde hoje é parte da TI Trombetas-Mapuera, foi contatado um grupo indígena isolado nas cabeceiras do rio Jatapu. Muito provavelmente, tratavam-se dos mesmos índios Karapawyana que foram contatados pelos Waiwai no ano de 1981. Tal contato foi concretizado por meio de duas expedições muito bem organizadas pelos Waiwai, auxiliados, ao que tudo indica, pela realização de sobrevoos por conta dos missionários da MEVA, que, ainda hoje, fazem com frequência o trajeto aéreo entre Boa Vista e as aldeias no rio Mapuera. Duas equipes de indígenas se deslocaram, ao mesmo tempo, da aldeia Kaximi, em Roraima, e da aldeia Mapuera, no Pará. No meio do caminho, a segunda equipe se deparou com cinco aldeias, habitadas pelos índios Karapawyana. Estes habitavam casas construídas a partir Sobre tais episódios, conferir os depoimentos apresentados nos livros de Sabatini (1998) e Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas (2014). de uma base de árvore viva, possuíam boas roças de mandioca, banana e pupunha. Deste primeiro encontro, uma parte dos Karapawyana se dispersou na região, enquanto outra parte (composta por cerca de 16 pessoas) foi convencida pelos Waiwai a se instalar na aldeia do rio Mapuera. Em 1982, divididos enquanto grupo, vítimas de doenças do contato como gripes e diarreias, os sobreviventes decidiram voltar para o local de habitação tradicional, onde, teoricamente, ainda estavam os outros parentes que não se sujeitaram aos Waiwai e permaneciam isolados. Neste mesmo ano, um sertanista da Funai, Sebastião Amâncio, fez uma expedição pela região, na tentativa de localizar o grupo Karapawyana que se dispersou e que não tinha mais sido avistado. A partir desta expedição, foi feito um relatório bem detalhado sobre os locais de moradia tradicionais dos Karapawyana e sobre os possíveis e principais igarapés por onde teriam se dispersado. O relatório propunha a interdição da área de perambulação dos índios isolados da região, com o objetivo de pacificar e eleger uma área necessária à sobrevivência daquelas “sociedades tribais isoladas” e à sua proteção pelo órgão tutelar. Tal documento foi fundamental para o processo posterior de identificação e delimitação da TI Trombetas-Mapuera, que se iniciou em 2000 e foi concluído em 2004 (Caixeta de Queiroz, 2008: 225). Nele também estão detalhados, inclusive, os possíveis locais de perambulação dos índios isolados, de acordo com o mapa desenhado pelo sertanista Sebastião Amâncio. Se tais informações ainda não confirmaram a presença de índios isolados na área – na verdade, desde a época dos estudos para a identificação da TI Trombetas-Mapuera, não foram realizadas novas expedições e não houve levantamentos mais consistentes por parte do órgão indigenista sobre tal presença –, continuam 6. aparecendo informações bastante consistentes por parte dos índios Waiwai e Hixkaryana acerca dos possíveis locais de moradia ou perambulação dos grupos isolados nos interflúvios do rio Trombetas e do rio Jatapu. Ao mesmo tempo, tais índios nunca deixaram de realizar expedições à procura dos seus parentes “não vistos” que ainda permanecem no interior da floresta e sobre os quais recai tanto uma preocupação de “proteção” (prover-lhes medicamentos e instrumentos de trabalho de metal) quanto de “conversão” religiosa ou de “pacificação”. Na verdade, as expedições de contato com os isolados, organizadas pelos próprios indígenas (já que, de forma estratégica, decidiram ser os protagonistas de tais contatos e excluíram tanto o órgão indigenista quanto os missionários desse processo), inspiraram-se no modelo de “pacificação” levado a cabo pela Funai (que utiliza ações como levar presentes como machado, facão e miçangas) e de conversão religiosa promovida pelos evangélicos nas décadas de 1950 e 1960. De fato, os Waiwai e Hixkaryana participaram oficialmente de frentes de atração da Funai de outros grupos indígenas, o que lhes trouxe conhecimentos sobre tais práticas e que, ainda hoje, marca a dinâmica das relações entre diferentes grupos na região. Por exemplo, no início da década de 1980, os Waiwai e os Hixkaryana participaram da frente de atração dos Arara, um grupo Caribe que estava “isolado” nos afluentes da margem esquerda do médio rio Xingu (onde hoje se localizam as TI Arara e Cachoeira Seca). Depois do contato, da “atração” e da “pacificação” dos Arara, passadas mais de três décadas, os Waiwai-Hixkaryana decidiram visitá-los e iniciar um processo de “atração” de parte deste grupo para o interior da TI NhamundáMapuera. Eles argumentam que os Arara foram abandonados pelo órgão indigenista à sorte, que foram entregues, nas suas terras e cidades da região, ao alcoolismo e extração ilegal de madeiras.6 Por isso, em 2013 e 2014, atraíram para a aldeia Não deixa de ser interessante notar que os Waiwai e os Tiriyó usaram – e ainda usam com frequência – argumentos semelhantes para dizer que os Zoé estão abandonados pela Funai (desprovidos de bens civilizados como roupas, facões e armas de fogo) e, por isso, justificam as suas frequentes incursões naquele território. Paradoxalmente, os Zoé não tiveram o mesmo destino dos Arara devido ao fato de que a Funai conseguiu, ali, manter uma estrutura bem-sucedida de proteção, sobretudo no que tange ao atendimento à saúde, fato que tem sido bem utilizado para enfraquecer o fervor “pacificador” dos Waiwai e dos Tiriyó – incentivado pelos missionários ainda atuantes na região. 187 Mapuera (rio Mapuera) e aldeia Riozinho (rio Nhamundá) várias famílias de índios Arara. Na sua tese de doutorado, Catherine Howard (2003: 287) insere a figura 32 – intitulada “História dos grupos contatados pelas expedições waiwai, 1950-1980” –, de forma a demonstrar que os Waiwai, quatro anos depois dos primeiros contatos, iniciaram um movimento no sentido da atração e pacificação e, ao mesmo tempo, da “conversão” ou “waiwainização”, como prefere a autora, de outros grupos indígenas, próximos e distantes social e espacialmente. Embora os Waiwai tenham sido os protagonistas na região dos interflúvios do rio Trombetas na atração e pacificação dos isolados, o órgão indigenista e outros grupos indígenas atuaram, sem obter o igual sucesso, nesse mesmo sentido. No período de 1940 a 1960, o antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) coletou informações acerca dos índios isolados habitantes da parte ocidental do interflúvio do rio Trombetas e do rio Jatapu, mais especificamente no médio-alto rio Jatapu (nos seus afluentes da margem direita, denominados Cidade Velha e Igarapé das Pedras), que tinham sido atacados nas suas aldeias por balateiros. Por isso, o SPI havia criado o Posto Indígena do rio Jatapu (onde hoje se acha localizada a aldeia Santa Maria) e, de lá, realizou várias expedições rio acima, atraindo para este posto vários grupos isolados, dentre eles, os índios Xowyana e os sobreviventes do grupo atacado pelos balateiros, que, mais tarde, foram identificados como Karara (Caixeta de Queiroz, 2008: 239-240). Na pesquisa de identificação e delimitação da TI Trombetas-Mapuera, no ano de 2002, encontramos com duas mulheres descendentes e sobreviventes dos Karara. Elas nos confirmaram que os Karara quase desapareceram em função das epidemias pós-contato, mas que ainda haviam sobreviventes em situação de isolamento voluntário nas cabeceiras do rio Cidade Velha. De fato, há várias informações sobre a presença de um grupo isolado próximo a esta região, que hoje é visitada esporadicamente pelos índios Waimiri-Atroari. Os Waiwai moradores do rio 188 Jatapu, por sua vez, em 2014, realizaram uma incursão na tentativa, malsucedida, de contato com isolados daquela área. Na verdade, nada se pode dizer sobre o fato de esse grupo isolado pertencer aos remanescentes dos Karara, dos Xowyana, dos Karapawyana ou de se referir a um outro grupo. Já na parte oriental do interflúvio do rio Trombetas, que foi praticamente esvaziada depois da segunda metade da década de 1960, devido à ação dos missionários cristãos e das expedições Waiwai (os missionários evangélicos e os Waiwai “atraíram” os Xereu, os Katuena e os Tunayana do alto rio Cachorro e do alto rio Turuni para a Guiana; os missionários franciscanos “buscaram” os Katxuyana no rio Cachorro e os levaram para a Missão Tiriyó no Parque do Tumucumaque), ainda permaneceram grupos isolados. O missionário Frikel Protásio (1970) dizia que, entre 1950 e 1960, alguns grupos que habitavam esta área tinham se fundido, outros tinham mesmo desaparecido em função das doenças e dos conflitos acirrados com a presença colonizadora, mas ainda havia grupos de famílias isoladas e esparsas: dentre elas, remanescentes de subgrupos Katxuyana, como os Ingarüne-Kahyana, os Rerêyana Prenoma e os Urumamayana. Muito provavelmente alguns destes grupos continuam isolados até hoje, sendo que o último contato deles com os índios Katxuyana foi feito na década de 1970. Nesta época, João do Vale Katxuyana e a sua esposa (hoje, habitantes da aldeia Santidade, no rio Cachorro) viveram por cerca de dois anos nas aldeias desses isolados, nas cabeceiras do Igarapé Água Fria, um afluente da margem direita do rio Erepecuru. Em meados de 1981, uma equipe de servidoras da Funai, composta por Maria da Penha de Almeida e Lúcia Helena Soares de Mello, foi deslocada para a área do rio Trombetas/ Mapuera com o objetivo de assessorar a Eletronorte nos estudos da hidrelétrica de Cachoeira Porteira e assim, possivelmente, propor aos povos indígenas medidas de mitigação dos impactos que seriam causados pelo empreendimento. Como pode ser verificado no relatório desta expedição (Almeida, 1981), destaca-se uma preocupação especial com relação às condições de existência e localização dos índios isolados na região. Conforme já vimos, naquele ano, 1981, os índios Karapawayana do interflúvio Mapuera e Jatapu – nas cabeceiras dos rios Jatapuzinho e do rio Baracuxi – tinham sido contatos pelos Waiwai da aldeia Mapuera; e, daqueles que para esta aldeia tinham sido levados, num total de 16 pessoas, a maioria estava doente e desnutrida. Na verdade, a possível construção da hidrelétrica de Cachoeira Porteira representava uma ameaça concreta à sobrevivência e à manutenção do modo de vida tradicional de todos os grupos indígenas daquela região, mas, sem dúvida, a ameaça maior caía sobre os índios isolados ou “arredios”. Os servidores da Funai, no relatório aqui já citado (Almeida, 1981: 18-21), a partir de dados coletados em campo e informados pelos indígenas, citam nada menos do que 51 nomes de grupos “arredios” e dispersos nos afluentes dos rios Jatapu, Nhamundá e Trombetas. Embora o número seja de fato expressivo e, muito provavelmente, não corresponda exatamente a “grupos” indígenas concretos – sabemos que o fato da “filosofia indígena” não estabelecer fronteiras fixas entre humanos e não-humanos pode ter “afetado” a interpretação destes dados pela equipe de servidores da Funai –, não devemos menosprezar ou não dar ouvidos a tais fontes. De fato, a partir do final dos anos de 1990, quando se iniciou de forma mais intensa um processo de descentralização das grandes aldeias (por exemplo, das aldeias de Kassauá no rio Nhamundá e de Mapuera no rio homônimo), bem como da reocupação de alguns rios (como do rio Cachorro pelos Katxuyana, do alto rio Trombetas pelos Tunauyana), começaram a surgir de forma mais intensa registros da presença de índios isolados na região. Desde então, foram retomadas aquelas expedições, muito comuns na segunda metade do século XX, de “busca” e “atração” dos “isolados” por parte dos índios contatados. Conforme vimos, se os índios assumiram o protagonismo na organização de tais expedições, a Funai teve, nessa área, uma atuação discreta ou inexistente. Essa ausência do órgão indigenista, por um lado, permitiu que as ações e estratégias de “atração” dos isolados fossem tomadas ou traçadas pelos evangelizadores indígenas (ou mesmo por missionários nãoindígenas) – em geral, justificadas com o argumento de que os “isolados” podem estar sofrendo no “meio da floresta”, sem nenhuma assistência à saúde ou até mesmo sem a oportunidade de ter acesso aos “bens” ocidentais como facas e machados –; por outro lado, deixou à sorte e ao desamparo completo os grupos isolados (sem sequer contar com uma equipe médica preparada para a vacinação, condição mínima exigida em tais situações) quando contatados pelos próprios indígenas. Esse é o caso dos Karapawyana, um grupo forte e vigoroso até ser contatado em 1981 e que praticamente deixou de existir enquanto grupo social diferenciado (a não ser que parte deles ainda continue isolada, ou que consideremos os seus sobreviventes que se casaram com índios Waiwai e Yekuana e vivem dispersos no meio deles). Como veremos a seguir, tal situação só começou a se modificar a partir de 2011, a partir de uma atuação mais persistente e abrangente da Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema, que já existia anteriormente, mas que atuava quase exclusivamente na área Zo’é. Ainda assim, tal atuação está, por enquanto, limitada ao levantamento de informações e reuniões pontuais com a população indígena já contatada, com resultados ainda bastante modestos, em decorrência da situação de penúria do órgão indigenista vivida nos últimos tempos e da cobertura necessária para uma grande área de floresta e de difícil acesso. POLÍTICAS INDÍGENAS, POLÍTICAS INDIGENISTAS: PERSPECTIVAS ATUAIS E FUTURAS De qualquer maneira, a realidade dos povos indígenas isolados no interflúvio dos rios Trombetas e Jatapu não são muito diferentes daquelas verificadas em outras regiões. Peter Gow (2011) nos fornece algumas informações sobre a política dos Mascho isolados na região do baixo rio Urubamba, na Amazônia 189 Peruana. “Me deixa em paz!”, na interpretação de Gow, parece ser o sentido da frase dita pelo índio Mascho ao índio Piro que certa vez o tentou capturar à força com o intuito de “civilizálo”. Albert e Ramos (2002) evidenciaram diversas estratégias postas em marcha pelos povos indígenas para “pacificar” o branco. Dentre essas estratégias, a do “me deixa em paz!”, do isolamento voluntário, da recusa ao contato foi e continua sendo uma importante estratégia política indígena, que, no entanto, depende de uma série de condições para ser efetivada. Quais são as condições necessárias ao exercício do isolamento voluntário? Os contatos realizados nos últimos anos e, em particular, em 2014 nos dão a resposta pela negativa. De fato, os episódios recentes ocorridos na fronteira do Acre com o Peru com os Xatanawa e com os Mascho, no vale do Javari com os Korubo e no oeste do Maranhão com os Awá-Guajá indicam que as razões pelas quais um povo decide sair do isolamento voluntário e a estabelecer relações (pacíficas ou belicosas) com outros povos (indígenas ou não indígenas) estão relacionadas a confinamentos territoriais, conflitos, busca por ferramentas, escassez de comida e doenças. Embora tenham se dado em circunstâncias muito distintas, todos esses episódios nos mostram que a decisão de sair do isolamento voluntário foi uma política deliberada dos índios, ou seja, os isolados que até então tinham optado por assim permanecerem é que fizeram o contato. Muito tempo se passou até que o pensamento indigenista brasileiro internalizasse na sua prática a ideia da “agência” e do protagonismo político dos povos indígenas isolados. De fato, na região amazônica, a política de contato do Estado brasileiro nas décadas de 1960, 1970 e início da década de 1980 tinha como finalidade liberar áreas de floresta para a colonização e para grandes empreendimentos. É enorme a lista dos povos contatados nesse período em consequência dos grandes projetos de desenvolvimento da região. Parakanã, Araweté, Arara, 7. 190 Tenharim, Panará, Cinta-Larga, Urueu-wau-wau, Zoró e WaimiriAtroari são alguns dos povos cuja liberdade de permanecerem isolados foi proscrita e cujos territórios foram esbulhados pelo Estado brasileiro. Apenas em 1987 é que um grupo de sertanistas, indignado com relação aos resultados catastróficos dos diversos processos de contato levados a cabo pelo Estado brasileiro por meio da Funai, decidiu reavaliar as diretrizes da política indigenista para povos isolados7. A mudança de orientação se consolidou a partir da constatação de uma grave contradição: a política do contato, em vez de garantir a proteção territorial e a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, estava contribuindo para o esbulho e invasão dos territórios e para o alastramento de doenças infectocontagiosas. Atualmente, a política indigenista do não contato praticada pelo Estado brasileiro por meio da Funai está respaldada pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Funai, instituído por meio do Decreto nº 1778 de 2012. No sistema jurídico internacional, conforme ressalta Shelton (2012), o direito dos povos indígenas ao isolamento voluntário, assim como a obrigação dos Estados Nacionais de respeitar esse direito e de desenvolver mecanismos eficientes de proteção territorial desses povos está previsto na Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas de 2007. No mesmo sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) tem tentado, por meio de diversos mecanismos, garantir os direitos territoriais dos povos isolados. Embora a passos um tanto lentos, a política indigenista do não contato e da proteção territorial de povos em isolamento voluntário tem se consolidado na região da Guiana brasileira. Desde 2011, a Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema, unidade da Funai vinculada à Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, desenvolve um trabalho de caracterização e qualificação das informações sobre povos indígenas isolados na Tal decisão foi tomada durante o Encontro de Sertanistas realizado na Funai em Brasília em junho de 1987, normatizada por meio da Portaria nº 1900/Pres/Funai, que instituiu as diretrizes da política de proteção dos povos indígenas isolados em território brasileiro. carlos penteado região norte do Estado do Pará e no Estado do Amapá. De um total de dez referências8 sobre povos isolados na região constantes no banco de dados da Funai, quatro estão situadas na bacia do rio Trombetas: Karapawyana, rio Pitinga, alto Cachorro e alto Kaspakuru. Destas, uma está situada no interior da Terra Indígena Trombetas-Mapuera (homologada pelo Estado Brasileiro em 2010), e outras três estão situadas no interior da Terra Indígena Katxuyana-Tunayana e em estudo pela Funai desde 2008. Os desafios para a implementação dessa política são, no entanto, diversos e de várias ordens. Entre os principais estão: dificuldade na interlocução com os povos contatados que compartilham terras indígenas com os povos isolados, persistência da ação missionária fundamentalista na área (ver o texto de Ribeiro nessa coletânea), retomada do projeto de aproveitamento hidroelétrico de Cachoeira Porteira, garimpos e projetos de mineração e os sucessivos ataques aos artigos 231 e 232 da Constituição Federal. Em doses diferentes, todas essas questões têm contribuído para o retardamento da regularização fundiária da Terra Indígena Katxuyana-Tunayana. Com exceção da Terra Indígena Zo’é, todas as outras Terras Indígenas na bacia do Trombetas (Nhamundá-Mapuera, Trombetas-Mapuera, Katxuyana-Tunayana, Parque Indígena do Tumucumaque) são compartilhadas por povos contatados e povos isolados. É interessante observar que, em todas essas Terras Indígenas, após o processo de contato e concentração territorial no período de 1950 a 1990, a partir do ano 2000 aproximadamente, teve início um processo de “dispersão sedentarizante” (Grupioni, 2010). Conforme já indicamos, antes concentradas em grandes aldeamentos (Mapuera, Missão Tiriyó, Kwamalasamutu), as áreas de ocupação dos povos indígenas contatados foi se espalhando pelas calhas dos rios. Podemos afirmar, portanto, que atualmente os povos contatados ocupam as calhas dos rios e os povos isolados ocupam as áreas dos interflúvios. 8. 192 Tendo em vista que em todas essas áreas é forte a presença de missionários evangélicos fundamentalistas e que, influenciados ou não pelos missionários, os Waiwai e os Hixkaryana ainda têm o desejo de contatar os povos isolados, o estabelecimento de protocolos de gestão compartilhada que respeitem o direito ao “isolamento voluntário” ainda é um desafio enorme. Nesse sentido, nos últimos anos, foram executados dois projetos que visavam justamente construir os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) dessas Terras Indígenas (com exceção da TI Katxuyana-Tunayana, ainda não regularizada pelo Estado), tendo como fundamento a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída em 2012. Sabe-se que as Terras Indígenas da bacia do Trombetas fazem parte de um imenso corredor de áreas protegidas que vai do litoral do Amapá à divisa do Brasil com a Colômbia (incluindo áreas de floresta da Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela e Colômbia). No entanto, mesmo que a conservação ambiental dessa parte da floresta amazônica seja fundamental para que sejam evitados futuros desastres (relacionados, por exemplo, à escassez de água, aquecimento global, mudanças climáticas etc.) e ainda que os povos indígenas saibam como manter modos de vida compatíveis com a conservação ambiental, diversos interesses desenvolvimentistas continuam pairando sobre a região. De fato, o ano de 2014 foi marcado pela retomada pelo Estado Brasileiro do projeto de aproveitamento hidroelétrico do rio Trombetas. Há uma movimentação também no sentido de viabilizar novos empreendimentos minerários na região. E, em Brasília, no mesmo Congresso Nacional onde há 25 anos foram assegurados os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam, observamos hoje uma forte ofensiva, orquestrada pela bancada ruralista, contra esses direitos fundamentais. Cientes ou não dessas tramas políticas, diversos povos continuam firmes na sua política de recusar o contato. Conforme as diretrizes da Política de Proteção dos Povos Indígenas Isolados, o termo “referência” refere-se a um conjunto de informações (relatórios, relatos, mapas, imagens, vídeos) que indicam a presença de um povo indígena isolado em uma determinada região. BIBLIOGRAFIA ALBERT, Bruce & RAMOS, Alcida Rita (Orgs.). Pacificando o branco: cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo: Editora Unesp: Imprensa Oficial do Estado, 2002. ALMEIDA, Maria da Penha Cunha de. Relatório referente ao projeto da hidrelétrica de Cachoeira Porteria (Trombetas). Manuscrito, 1981. BUTT-COLSON, Audrey. 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Meus antepassados fugiram para ter liberdade, mas só encontraram outros brancos dizendo que eram donos da terra. Agora não, agora a gente tem o papel que fala que a terra é nossa. Augusto Figueiredo, comunidade Pancada, Terra Quilombola Erepecuru. As conquistas em Oriximiná representam um marco na luta dos quilombolas. Foi lá que há quase 20 anos, em 20 de novembro de 1995, ocorreu a primeira titulação coletiva de um território quilombola no Brasil. A busca dos quilombolas de Oriximiná pela efetividade do artigo 68 do ADCT aprovado na Constituição Federal de 1988 iniciou-se já no ano seguinte à promulgação do novo texto constitucional. Foi o que impulsionou a criação da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO) em julho de 1989. Já em dezembro de 1989, lideranças da ARQMO fizeram a sua primeira viagem à Brasília para reivindicar a titulação de suas terras acompanhadas de representantes da Paróquia de Oriximiná e da Comissão PróÍndio de São Paulo. Foram sete anos de mobilizações e pressão até a obtenção do primeiro título em 1995 (Terra Quilombola Boa Vista), seguido de titulações em 1996 (Terra Quilombola Água Fria), 1997 (Terra Quilombola Trombetas), 1998/2000 (Terra Quilombola Erepecuru) e em 2003 (Terra Quilombola Alto Trombetas, titulação parcial). Recebemos o primeiro título em 1995 festejamos o tricentenário de Zumbi. O segundo foi em 1996 e o terceiro em 1997 – a área era muito maior. Foi uma estratégia política nossa começar pelo menor [território], menos complexo. Experiência piloto e começamos pela Boa Vista, 1125 hectares. A gente ia convencendo aos poucos o governo. Daniel Souza, comunidade Jauari, um dos primeiros coordenadores da ARQMO. 196 Atualmente (julho de 2015), os territórios já regularizados em Oriximiná representam 51% da dimensão total titulada no Brasil em nome de comunidades quilombolas. Mas 15 comunidades ainda aguardam pela titulação de suas terras – Alto Trombetas, Alto Trombetas 2, Ariramba e Cachoeira Porteira –, todas incidentes em unidades de conservação. FIRMANDO PRECEDENTES JURÍDICOS A titulação respaldou e deu para levar a mensagem para todo o Brasil que não aceitava terra coletiva. No nosso entendimento isso não tinha como. Aí o Incra aprendeu com a gente isso da titulação coletiva e com longo debate. Mensagem do coletivo, propriedade definitiva coletiva, isso se discutia só para o índio, não para os quilombolas. A titulação nos deu respaldo e deu para levar a mensagem para todo o Brasil que era possível ter o título coletivo. Daniel Souza, comunidade Jauari, Terra Quilombola Erepecuru. A luta em Oriximiná suscitou a primeira regulamentação federal sobre a matéria: a Portaria Incra n.º 307, de 22 de novembro de 1995, que determinava que as comunidades remanescentes de quilombos inseridas em áreas públicas federais sob a jurisdição do Incra (arrecadadas ou obtidas por processo de desapropriação) tivessem suas áreas medidas e demarcadas, bem como tituladas, mediante a concessão de título de reconhecimento, com cláusula pro indiviso, na forma do art. 68 do ADCT da Constituição Federal. Já o governo do Pará iniciou suas ações para assegurar a regularização de territórios quilombolas provocado pelo pedido de titulação da Terra Quilombola Trombetas apresentado pela ARQMO em fins de 1996. Atendendo a essa demanda, em novembro de 1997, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) outorgou o primeiro título de terra quilombola. Iniciativa que se desdobrou em ações de âmbito mais amplo com a regulamentação de procedimentos1 e instituição de programas específicos para os quilombolas2. A primeira titulação pelo governo federal em 1995 firmou, ao menos, dois importantes precedentes jurídicos. Consolidou a interpretação que o artigo 68 do ADCT é autoaplicável, não dependendo de regulamentação para sua efetivação, questão que era controversa naquela época. Além disso, firmou o entendimento que a titulação das terras quilombolas deveria ser coletiva, instituindo uma modalidade singular de propriedade no ordenamento jurídico brasileiro: uma propriedade coletiva que não pode ser vendida, arrendada ou loteada3. Precedentes que foram reforçados pelo governo do Pará quando, em 1997, outorgou o título coletivo às comunidades da Terra Trombetas, também em Oriximiná, sendo o primeiro governo estadual a regularizar uma terra quilombola. Os resultados obtidos em Oriximiná repercutiram também junto aos quilombolas de outras regiões que se sentiram motivados a buscar seus direitos. Em 88, o pessoal de Oriximiná já começou a luta deles. Como eles conseguiram a titulação por lá, a gente foi atrás também. A gente viu essa necessidade de lutar por um direito que era nosso e que até então a gente desconhecia. O pessoal de Oriximiná veio também, colocou a experiência deles. Eles já tinham experiência, nós éramos marinheiros de primeira viagem. Verinha Oliveira dos Santos, comunidade Cuecé situada no Município de Óbidos, vizinho à Oriximiná. 1. 2. 3. 4. Nós éramos chamados para tudo quanto é canto, em São Paulo, Brasília. Tinha reunião sempre, fui no Maranhão, Pernambuco, Rio de Janeiro, vários lugares do Brasil onde tem quilombo. Fui para contar a experiência da titulação. Daniel Souza, comunidade Jauari, Terra Quilombola Erepecuru. A TITULAÇÃO COLETIVA Esse é o nosso modo de vida. Não temos só a casa e o roçado, a gente mora aqui, pesca para um lado, tira castanha em outro e assim vai, tudo coletivo. Francisco Hugo de Souza, presidente da Cooperativa Mista Extrativista dos Quilombolas do Município de Oriximiná e morador da comunidade Jauari. Essa questão da titulação é um marco histórico dentro da nossa identidade quilombola, mostrar a convivência, terra coletiva, tirar castanha junto e dividir o peixe. Ajudou a fortalecer a identidade quilombola que o país não reconhecia. Daniel de Souza, comunidade Jauari, Terra Quilombola Erepecuru. A titulação de forma coletiva para as comunidades, e não individualmente para cada família, foi a demanda dos quilombolas em Oriximiná desde o início4. Se hoje está consagrado que as terras quilombolas devem ser regularizadas por meio de um título coletivo, em 1989, o cenário era outro. Lei 6.165/1998 que dispõe sobre a legitimação de terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Decreto nº 3.572/1999 que regulamenta a Lei nº 6.165/1998, que dispõe sobre a legitimação de terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Instrução Normativa nº 2 do Instituto de Terras do Pará, de 16 de novembro de 1999, que regulamenta a abertura, processamento e conclusão dos processos administrativos de legitimação de terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Como o Programa Raízes instituído em 2000 pelo Decreto Estadual n° 4.054/2000. Lembrando que no caso das terras indígenas a propriedade é da União, e os índios têm o direito de usufruto exclusivo. Essa demanda foi, inclusive, o que motivou lideranças da ARQMO a convidar a Comissão Pró-Índio de São Paulo (que havia participado do Encontro Raízes Negras na Comunidade Jauari, em 1989, para debater os impactos da hidroelétrica de Cachoeira Porteira prevista para a região) para contribuir com o processo de luta pela titulação: imaginaram que com nossa experiência no tema da regularização dos territórios indígenas (coletivos) poderíamos ajudá-los a encontrar um caminho para a titulação de suas terras. 197 A grande dificuldade que tivemos é que o Incra nunca tinha dado o título para uma área coletiva, ainda era uma dúvida. Inclusive o Incra chegou a dizer que nem sabia como fazia. Domingos Printes, comunidade Abuí, Terra Quilombola Alto Trombetas. Para superar a resistência do Incra, os quilombolas colocaram em prática diversas estratégias destinadas a sensibilizar e pressionar o governo, contando com o apoio da Paróquia de Oriximiná, do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) e da Comissão Pró-Índio de São Paulo – tendo sido o Ministério Público Federal outro ator importante nesse processo. Aqui não será possível detalhar esse percurso, mas adiante tratarei de uma das estratégias adotadas: a autodemarcação do território. Mas, se no primeiro momento a resistência à titulação coletiva veio do Incra, no processo de regularização da Terra Trombetas (entre 1996 e 1997) o “coletivo”5 foi alvo de contestação por parte dos posseiros “individuais” que ocupavam áreas dentro dos limites reivindicados pelos quilombolas e que contaram com amplo apoio de políticos e empresários locais. Quando iniciou o processo houve muito conflito, muito mesmo por causa que pessoas que não eram quilombolas e também alguns quilombolas que optaram por ser individual. Quando se falava em titulação de terra coletiva, eles entendiam que coletividade ia passar a ter direito a tudo, até mesmo à esposa, às coisas de dentro da casa. Foi difícil explicar porque do outro lado existia uma associação que ficava diretamente com essas pessoas. A gente não tinha dúvida – tudo depende de a gente se unir e o outro lado não. Foi importante ser coletivo e não individual. carlos penteado Nilzanira Melo de Souza, comunidade Jauari, Erepecuru. 5. No uso de termos empregados pelos quilombolas utilizarei as aspas, como “coletivo”, “enricar”, “associações das áreas”. Segundo os quilombolas, muitos “individuais”, na sua maioria originários de outras regiões, se instalaram no local com a sua permissão. Mas na sua concepção, tal consentimento envolveria apenas o direito de moradia e não o direito de uso exclusivo ou de propriedade da terra. No entanto, não era essa a visão dos posseiros nem tampouco do órgão fundiário que considerava que a ocupação teria gerado direitos de posse. Como se verá a seguir, a “propriedade coletiva” acabou sendo conformada na articulação e negociação entre essas concepções distintas. Para além dos interesses desse ou daquele pretenso proprietário, a regularização coletiva representava uma ameaça mais ampla para esses setores por impedir de forma definitiva o acesso a extensas áreas de floresta, já que as propriedades coletivas não podem ser vendidas, loteadas ou arrendadas, o que não ocorre com a regularização individual. Assim também se compreende por que a titulação das áreas menores (Boa Vista e Água Fria) não suscitou qualquer reação local sobre o seu caráter coletivo. Embora tenha sido durante o processo de regularização da Terra Trombetas que se cristalizaram as denominações “coletivos” e “individuais”, que até então não eram empregadas, as divergências e tensões já existiam na relação dos quilombolas coletivos com os posseiros individuais que, entre outros aspectos, envolvia diferentes concepções sobre a forma adequada de utilizar os recursos naturais6. O TERRITÓRIO E A PROPRIEDADE COLETIVA Assim os quilombolas viam com preocupação o aumento dos pastos, que traziam o desmatamento e prejudicavam as áreas de extração de castanha. De fato, zoneamento realizado pela Embrapa nas Terras Trombetas e Erepecuru em 1998 indicou que as áreas exploradas pelos posseiros individuais (áreas de classes capoeira, agropecuária e solo exposto) correspondiam à época em torno do triplo ou quádruplo das observadas nas áreas coletivas (ARQMO, CPI-SP e Embrapa, 2000: 32). Vale chamar a atenção ainda para o amplo apoio que os “individuais” receberam dos políticos, fazendeiros e empresários locais, o que indica que a disputa em jogo não se restringia aos interesses dos “pequenos” quilombolas e posseiros. A demanda quilombola ameaçava os interesses de uma empresa madeireira e outras pessoas influentes de Oriximiná que alegavam deter títulos de propriedade incidentes nas áreas de castanhais das Terras Trombetas e Erepecuru – documentos que se mostraram sem valor jurídico no levantamento cartorial realizado pelo Incra como parte dos procedimentos para titulação. 6. Se por um lado a titulação coletiva atende a reivindicação dos quilombolas, por outro lhes coloca novos desafios já que os conceitos de “território” (na concepção nativa) e de “propriedade coletiva” (enquanto um conceito jurídico) não são idênticos. A titulação norteia-se por princípios e regras diversos daqueles que conformam a territorialidade concebida e praticada por tais grupos. Trata-se do mesmo tipo de distinção que Gallois descreve para os povos indígenas: Como expuseram vários estudos antropológicos, a diferença entre “terra” e “território” remete a distintas perspectivas e atores envolvidos no processo de reconhecimento e demarcação de uma Terra Indígena. A noção de “Terra Indígena” diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto a de “território” remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial. Gallois, 2004: 39. Dessa forma, a titulação colocou aos quilombolas de Oriximiná a necessidade de lidar com uma lógica espacial distinta que trouxe novos elementos como as fronteiras fixas e espacialmente delimitadas e ainda a categoria das comunidades quilombolas Para uma análise sobre as concepções coletivo e individual dos quilombolas, confira Sauma, 2013. 199 proprietárias – condição que, na lógica do conceito jurídico, confere a esse conjunto um direito distinto de gestão e uso da área frente aos demais quilombolas (não proprietários). A etnografia do extrativismo da castanha-do-pará pelos quilombolas do Rio Trombetas em elaboração pelo antropólogo Igor Scaramuzzi ilustra aspectos da diferença entre as concepções de territorialidade e da propriedade coletiva — “terras quilombolas” como denomina o pesquisador: [...] no que concerne ao extrativismo da castanha do Pará, pode-se dizer que a forma como se organiza e se realiza o trabalho, assim como a gestão e uso do espaço no âmbito dessa atividade não estão atrelados necessariamente à existência das comunidades nem à divisão do território tradicional em diferentes Terras Quilombolas. Os espaços usados para a coleta nos castanhais e pontas de castanha por uma pessoa, família, grupo de pessoas ou comunidades não são de direito de uso exclusivo e não estão circunscritos a locais específicos de acordo com famílias, grupos ou comunidades. Pessoas e famílias de diferentes comunidades geograficamente distantes umas das outras podem compartilhar os mesmos espaços para a coleta de castanha. Igualmente, pessoas de diversas comunidades que conformam uma Terra Quilombola podem trabalhar não somente nos lugares dentro dos limites dessa terra, mas também em lugares localizados em diferentes Terras Quilombolas. Scaramuzzi, 2013: 23-24. A dinâmica de formação das comunidades dentro dos territórios também opera em lógica diversa da “propriedade coletiva”, que congela no título as comunidades proprietárias. Assim, por exemplo, na Terra Quilombola Erepecuru após a titulação em 1998 foram criadas três novas comunidades. Fundadas depois da regularização, elas não constam formalmente no título de 200 propriedade, mas são reconhecidas pelos quilombolas como legítimas detentoras daquela “propriedade coletiva”. O que se constata, portanto, é que a “propriedade coletiva” não é simples espelho do “território coletivo”, mas articula concepções diversas. Sua constituição envolve adaptações sociopolíticas no âmbito das comunidades quilombolas e é influenciada por uma gama variada de agentes externos (aliados e opositores), como analisarei a seguir. DEFININDO E NEGOCIANDO LIMITES Foi um grande desafio a titulação, como entender de lei, cobrar, ir para Brasília. Você sabe onde você vai pegar comida, pegar a fruta, você sabe onde tem o remédio para curar alguma coisa, mas não sabe no processo de titulação. Chegou um ponto que fomos discutir o mapa com o Incra em Santarém. Era difícil entender esta questão do mapa, como colocar no papel era difícil. Tivemos que aprender tudo – quantos quilômetros – teoricamente olhando no mapa era muito difícil. Até que acertamos. Daniel Souza, comunidade Jauari. Um importante passo na conformação da propriedade coletiva foram as autodemarcações, processos por meio dos quais os quilombolas de Oriximiná identificaram e acordaram entre si diversas questões relativas à propriedade coletiva antes da chegada do ator estatal. A autodemarcação foi uma das estratégias adotadas para pressionar o governo a proceder a titulação, mas acabou por cumprir também outro importante papel: proporcionar aos quilombolas a oportunidade de refletir sobre o território na lógica da propriedade coletiva. Ao longo dos processos de autodemarcação foi possível consolidar acordos comunitários para responder às novas questões que a propriedade coletiva lhes colocava, tais como: quais comunidades compartilhariam da mesma terra (decisão que toma em consideração outros aspectos além de simples proximidade física das comunidades7); que áreas comporiam essa propriedade (nem sempre estava claro ou era consenso, por exemplo, quais castanhais deveriam ser incluídos, ou por quais valeria priorizar e brigar pela inclusão); os limites (inclusive, por vezes, acordando tais limites com os quilombolas de terras vizinhas) e ainda as regras para o estatuto da associação proprietária. A Comissão Pró-Índio de São Paulo acompanhou e apoiou a autoidentificação de sete territórios quilombolas em Oriximiná, atividade que se iniciou em 1992 com a autodemarcação da Terra Boa Vista e prosseguiu até o início dos anos 2000. Os processos de autoidentificação incluíram reuniões nas comunidades, estudos das bases cartográficas, vistorias nas matas para identificar os possíveis limites, treinamento para uso de teodolito e GPS, levantamento dos moradores, tendo em média a duração de 12 a 18 meses cada um. A autoidentificação se materializou por meio dos mutirões para marcação de limites através da abertura de picos (autodemarcação realizada nos territórios Boa Vista, Água Fria e Trombetas) ou do levantamento dos limites com o GPS (nos territórios Erepecuru, Alto Trombetas, Jamari/Último Quilombo e Moura) e envolveu ainda a colocação de placas indicativas em diferentes pontos do território. Resultou também em mapas encaminhados pela ARQMO aos organismos governamentais como subsídio à reivindicação pela titulação. Construída internamente a proposta da “propriedade coletiva”, deu-se outra etapa no processo de sua definição que envolveu o diálogo e, muitas vezes, a disputa com os agentes externos. O território acordado e identificado pelos quilombolas orientou seu diálogo com o Poder Público e seu posicionamento nas disputas com outros atores locais. Mas, na maior parte dos casos, 7. a proposta inicial dos quilombolas não correspondeu exatamente à área regularizada. As negociações e ajustes foram de ordem diversa. No caso de Boa Vista, o primeiro ponto de disputa foi a titulação de forma coletiva, uma vez que o Incra planejava a titulação em lotes individuais, o que não foi aceito pelos quilombolas. No dia 10 de outubro de 1992, a Comunidade da Boa Vista, por decisão própria, deu início a autodemarcação de suas terras. Nos dias 17 a 20 de novembro de 1992, com o apoio da diretoria da ARQMO e das outras comunidades remanescentes, foi organizado um puxirum para concluir os trabalhos de abertura dos picos. Essa foi a primeira comunidade a realizar a autodemarcação. Como nós negros já estamos organizados e trabalhando na autodemarcação, a Mineração Rio do Norte se preocupou e se pôs de boazinha no caso. E, assim, chamou o Incra de Santarém para titular as terras da Boa Vista, mas em lotes individuais. Como a cultura dos remanescentes é por terras coletivas, fez que nós não aceitássemos a proposta em lotes. José Dos Santos, Antônio César Pereira de Jesus e Josinaldo dos Santos, moradores da comunidade Boa Vista. In: ARQMO: 1994. Superada essa questão, tendo o Incra concordado com a titulação coletiva, negociação de outra ordem surgiu. O Incra verificou que parte da área requerida pela Comunidade Boa Vista estava inserida dentro dos limites da Floresta Nacional Saracá-Taquera, unidade de conservação federal. Dessa forma, o órgão propôs à comunidade a troca dessa porção do território por outra área de igual dimensão contígua, mas incidente em terras devolutas da União. A comunidade acatou a proposição diante da avaliação Assim houve um caso em que as lideranças quilombolas davam como certo que uma comunidade aceitaria fazer parte de determinada terra coletiva (pela proximidade física, pelas relações de parentesco e uso compartilhado dos castanhais), mas seus moradores (quilombolas) optaram pela titulação individual. Já em outra situação, existe a demanda de uma comunidade por integrar uma terra, mas os moradores das demais comunidades resistiam porque consideram que essa comunidade tem um jeito diferente de usar o território, e não cuida do território como deveria. 201 de que não haveria um prejuízo em termos de recursos naturais, considerando principalmente que essa decisão permitiria agilizar o andamento do processo de titulação que veio a ser concluído em novembro 1995. Já nos territórios Trombetas e Erepecuru as mudanças de limites decorreram de disputas e negociações com posseiros (“individuais”) apoiados por políticos e empresários locais. A área identificada inicialmente pelos quilombolas para a Terra Trombetas somava 108 mil hectares dos quais foram titulados 80.877,0941 hectares. A alteração de limites visou à exclusão dos lotes e centros comunitários “individuais” e foi resultado de longa e tensa negociação que envolveu os quilombolas, os “individuais”, o Incra, o Ministério Público Federal e foi acompanhada pela Comissão Pró-Índio e a Paróquia de Oriximiná. A quantidade de mapas elaborados para a Terra Quilombola Trombetas é ilustrativa da ordem de dificuldade encontrada nessas negociações. Foram confeccionadas 13 versões por diferentes agentes – até mesmo a Câmara de Vereadores de Oriximiná apresentou a sua proposição de limites para essa terra quilombola. No transcorrer do processo, os quilombolas da Terra Trombetas tiveram que rever sua proposta inicial para a “propriedade coletiva”. Avaliando que as principais áreas de extração de castanha seriam preservadas, e considerando que a insistência na manutenção da proposta original provocaria um acirramento do conflito comprometendo o andamento do processo de titulação, os quilombolas acabaram por concordar com a exclusão da área ocupada pelos “individuais”. No processo de regularização da Terra Erepecuru, iniciado em 1998, o mesmo procedimento foi adotado seguindo o precedente firmado no ano anterior com a titulação da Terra 8. 9. 202 Trombetas. Assim, foi acordada a exclusão dos limites da propriedade coletiva Erepecuru dos lotes dos “individuais”8 e também da comunidade quilombola Ariramba que, naquele momento, havia optado pela titulação individual – decisão que foi revista anos depois e atualmente tramita no Incra e no Iterpa o processo para titulação coletiva do Ariramba (mas destacado da terra Erepecuru). OS PROPRIETÁRIOS DA PROPRIEDADE COLETIVA – AS “ASSOCIAÇÕES DAS ÁREAS” Outro fato novo suscitado pela regularização fundiária foi o surgimento da associação quilombola detentora da “propriedade coletiva”. A emissão do título em nome de associação formalmente constituída foi a fórmula encontrada para contornar o fato das comunidades não terem personalidade jurídica e, por essa razão, não poderem, segundo a legislação brasileira, serem proprietárias. Essa solução foi adotada já na regularização da Terra Boa Vista, inaugurando um procedimento que se tornou padrão nas titulações das terras quilombolas em todo o Brasil. Atualmente, cada terra quilombola em Oriximiná (titulada ou em processo de regularização) conta com sua associação criada para viabilizar a titulação – organizações chamadas pelos quilombolas de “associações das áreas”. As “associações das áreas” têm entre os seus objetivos estatutários9, “administrar as terras ocupadas e de propriedade” das comunidades; “representar os interesses das comunidades” e “incentivar o desenvolvimento das comunidades”. Os estatutos das “associações das áreas” foram discutidos e aprovados pelos quilombolas de cada terra em processo coordenado pela ARQMO e que contou com o apoio da Comissão Pró-Índio de São Paulo. Vale observar que em 2013, constatou-se um erro técnico do Incra no procedimento de regularização da Terra Erepecuru que resultou na não exclusão da área referente dos lotes individuais no cálculo da dimensão da terra quilombola. Dessa forma, o título da TQ Erepecuru incluiu os lotes individuais. O caso está sendo acompanhado pelo Ministério Público que faz a mediação entre os diferentes envolvidos em busca de uma solução para o problema. Os estatutos das diferentes associações das áreas seguem o mesmo padrão de conteúdo. carlos penteado Os estatutos tiveram que se adequar à legislação que regulamenta as associações sem fins lucrativos de forma que várias de suas cláusulas simplesmente atendem às exigências das normas legais. Mas algumas cláusulas refletem as preocupações e acordos dos quilombolas sobre o uso da propriedade coletiva, como a determinação que “todos os sócios têm direito de praticar as atividades de agricultura, caça, pesca e coleta, desde que de forma não predatória”. Ou especialmente as cláusulas que estabelecem que “as áreas de moradia e de trabalho de cada associado serão respeitadas mesmo em caso de sua ausência” e que as terras “poderão ser utilizadas por integrantes de outras comunidades remanescentes de quilombos desde que autorizados pela Associação e que respeitem o presente Estatuto”. De qualquer forma, o foco das preocupações no processo de discussão dos estatutos não era a futura gestão da propriedade coletiva, mas muito mais o cumprimento de mais um trâmite da “burocracia” da titulação. Até hoje, o estatuto, cujo texto é pouco conhecido da maioria dos quilombolas, não opera como referência no cotidiano para orientar o uso do espaço coletivo ou a relação entre os moradores – as poucas ocasiões em que vi o mesmo sendo acionado como referência envolviam a relação com atores externos, como no caso dos contratos com a madeireira que tratarei adiante. Não me parece que no seu processo de constituição as “associações das áreas” tenham sido vislumbradas pelos quilombolas como um instrumento de gestão da futura “propriedade coletiva” e nem tampouco como uma instância de representação política10, ainda que assim conste em seus estatutos. Mas, sendo as proprietárias oficiais das terras, as “associações das áreas” vêm sendo acionadas por uma gama diversa de atores externos para responder por diferentes demandas relacionadas à propriedade coletiva, tais como solução de conflitos fundiários, acordos comerciais envolvendo os recursos naturais dos territórios e, 10. 204 até mesmo, como instância de representação em processos de consulta livre, prévia e informada nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. É interessante comparar o processo de instituição das “associações das áreas” com o da criação das “comunidades” (comunidades eclesiais de base) incentivada pelos padres do Verbo Divino da Igreja Católica na década de 1980. Antes da atuação da Igreja, dizem os quilombolas, não existia comunidade, mas “somente a localidade”. Scaramuzzi analisa o papel do termo/categoria comunidade atualmente: Pode-se dizer que atualmente “comunidade” se configura uma unidade política, principalmente nas relações com aqueles de “fora”. Em alguns contextos de relações sociais internas também é concebida atualmente como uma unidade sociológica. [...] Além da constituição de um novo tipo de unidade política no contexto local, o termo/categoria “comunidade”, mais do que para se referir a uma forma de organização social ou significar uma unidade sociológica distinta e absoluta que habita um espaço delimitado, é, como já salientado, usado principalmente para circunscrever àquilo que concerne ao âmbito das relações com o estado e alguns segmentos da sociedade civil. Inclui-se nesse espectro de relações bens materiais e objetos como o barco comunitário e o motor de luz movido a óleo diesel ou gasolina; a estrutura física dos centros comunitários como o posto de saúde, escola e igreja e os empregos ligados a educação, transporte e saúde. Comunidade também é termo usado para designar o espaço, também chamado de centro comunitário, em que se localizam as construções coletivas como a igreja, escola, barraco para as reuniões e campo de futebol. [...] Com exceção, talvez, da associação de Cachoeira Porteira, cujo processo de formação não acompanhamos e parece ter peculiaridades entre elas a de ser constituída desde início com um caráter de representação da comunidade (que não é filiada à ARQMO). Embora localmente não se relacione o termo/categoria “comunidade” a qualquer mudança na forma de organização social dos habitantes dos lagos e da margem do rio Trombetas, não se pode dizer que a forma de organização política e o aparato burocrático e material que acompanha sua existência não tenham interferido no modo de vida e no modo de ocupação territorial das pessoas. Mesmo sendo corriqueiro escutar que o jeito de morar e se organizar das pessoas não tenha mudado de forma significativa no passar do tempo, pode-se seguramente dizer que são os mecanismos da “comunidade” que auxiliam na gestão dos espaços, pessoas, daquilo que já existia anteriormente antes da chegada da igreja. Um exemplo interessante é a gestão sobre o estabelecimento de moradia. Como já comentado, é comum a mudança de pessoas de um lugar para outro. Atualmente, a possibilidade de se mudar de uma comunidade para outra é, caso não se tenha parentes próximos no lugar em que se quer morar, discutida e avaliada nas assembleias comunitárias. De mesmo modo, cabe aos representantes comunitários conduzir a negociação de verbas e empregos com a prefeitura; a organização de missas, atividades e festas religiosas; organização de eventos de esporte e lazer; a organização de trabalhos coletivos. Scaramuzzi, idem: 21-23. De forma semelhante, as “associações das áreas”, criadas a partir do final da década 1990, vêm se conformando em mais um mecanismo de gestão dos espaços e das pessoas no âmbito da propriedade coletiva. Vale notar que, no caso das propriedades coletivas que compreendem diversas comunidades, a “associação da área” é a única instância formal de representação do conjunto das comunidades proprietárias. Em grande medida, as “comunidades” e as “associações das áreas” atuam em âmbitos diferentes, estando as primeiras muito mais presentes na organização do cotidiano da vida das pessoas, em situações como as descritas acima por Scaramuzzi. Mas a importância da “associação da área” na relação dos quilombolas com uma série de agentes externos vem crescendo. A propriedade confere aos quilombolas o poder de adotar novas modalidades de exploração dos recursos naturais de suas terras e as “associações das áreas” são a instância formal para tomada de tais decisões – uma das mudanças suscitadas pela titulação. PROPRIEDADE COLETIVA: O QUE MUDA APÓS A TITULAÇÃO? Quais mudanças nas relações de apropriação do espaço são suscitadas pela propriedade coletiva? Essa é uma questão ainda a ser mais bem compreendida e aqui apenas apresento uma provocação inicial com a qual finalizo este artigo. Em grande medida, pode-se dizer que a vida cotidiana segue seu curso, sem grandes mudanças. Em diversos aspectos, não me parece que a titulação tenha trazido inovações nas práticas que regulam o uso do espaço, como, por exemplo, no caso já citado do extrativismo da castanha que se organiza e se utiliza do espaço sem atrelamento à lógica da divisão do território tradicional em diferentes propriedades quilombolas. Mas o que nos dizem os quilombolas sobre “o que mudou após a titulação”? A segurança de permanência na terra e o empoderamento frente aos demais atores (o “respeito”) são frequentemente citados por eles como mudanças decorrentes da regularização fundiária. A gente se sentiu mais seguro com o território titulado. Deu a garantia para as famílias que eles eram os donos, que ninguém podia expulsar as famílias. A gente passou a ser mais respeitado e a comunidade acabou se unindo mais. [...] Com o título a gente consegue conversar com governo, que passou a investir no território. Domingos Printes, Comunidade Abuí. 205 Quem não tem título é menos respeitado. O título dá respeito principalmente para dialogar com os órgãos e autoridades. Francisco Hugo de Souza, comunidade Jauari. Ajudou a combater até o preconceito, como tinha muita discriminação, agora todos sabem a nossa identidade e respeitam mais. Pedro Paulo Viana de Almeida, comunidade Jauari. A titulação é percebida pelos quilombolas como um fato que os reposiciona na relação com os atores externos. E um desdobramento positivo dessa nova situação recorrentemente mencionado é o maior acesso a políticas públicas. Com o título nós começamos a ter acesso às políticas públicas. Tenho meus filhos todos alfabetizados. Daniel Souza, comunidade Jauari. Outra importante mudança observada é o surgimento de um novo ator: as “empresas” interessadas nos recursos da propriedade coletiva (em “fazer negócio”). Uma das coisas que chamou mais atenção também foi das empresas. Depois que ficamos donos tem turista querendo fazer negócio, propostas de várias madeireiras – é uma área muita rica. Domingos Printes, comunidade Abuí. Na nova condição de propriedade coletiva, os recursos naturais das terras quilombolas podem ser explorados com maior autonomia e de novas formas. Exploração madeireira, comercialização de crédito de carbono11 e turismo para pesca esportiva são as propostas de parcerias comerciais que se apresentaram até o momento. Tais propostas são percebidas por alguns quilombolas como oportunidades e por outros como “ameaças”. 11. 206 Para os quilombolas que têm uma avaliação positiva, trata-se de oportunidades de conseguir “recursos financeiros”. Já aqueles que se opõem argumentam que tais atividades ameaçam o extrativismo da castanha e a atividade pesqueira, e desconfiam das promessas das empresas. As diferenças de opiniões vêm dividindo as comunidades, as “associações das áreas” e as entidades quilombolas de âmbito municipal (ARQMO e a Cooperativa do Quilombo – CEQMO). Foi assim, em clima de opiniões divididas, que os acordos para exploração madeireira foram firmados pelas “associações das áreas” de Trombetas e Erepecuru em início de 2011. Na ocasião da assinatura do acordo, já fazia cerca de cinco anos que diferentes empresas procuravam insistentemente os quilombolas das propriedades coletivas Trombetas e Erepecuru em busca de parcerias comerciais – e também os da Terra Alto Trombetas (parcialmente titulada), que rejeitaram as propostas. Dentre as empresas que se apresentaram aos quilombolas, havia algumas consolidadas no mercado e que contavam com o “selo verde” de certificação FSC – Forest Stewardship Council. Mas, ao final, o acordo foi firmado com uma empresa pouco conhecida, a Construtora Medeiros Ambiental Ltda., apresentada aos quilombolas por meio de políticos locais. Os contratos firmados com a empresa têm vigência de cinco anos e estabelecem uma parceria para elaboração, exploração e execução de projeto de manejo florestal sustentável e determinam que 50% do volume extraído será repassado para as associações e os outros 50% para a empresa como “remuneração pelos serviços realizados”. Os contratos preveem também o compromisso das associações quilombolas venderem os seus 50% do volume de madeira extraída para a Construtora Medeiros por valores fixos predeterminados, sem previsão de índice para reajuste ao longo dos cinco anos de vigência da parceria (Andrade, 2011). Em 2012, os quilombolas foram procurados pela empresa Anthrotect, para desenvolvimento de projeto de pagamento por serviços ambientais, iniciativa que teve o acompanhamento do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio). Essa empresa da Califórnia (EUA) pretendia desenvolver projeto de pagamentos por serviços ambientais nos territórios quilombolas de Oriximiná à semelhança do que empreende com o Consejo Comunitario Mayor De Comunidades Negras De La Cuenca Del Rio Tolo Y Zona Costera Sur/COCOMASUR na Colômbia. Até o momento, não foi formalizado acordo com a empresa. A formalização do acordo com a madeireira dividiu a opinião dos quilombolas das duas propriedades coletivas. Mas a expectativa de ver concretizada a promessa de remunerações mensais por família de R$ 3.000,00 na Terra Erepecuru e R$ 1.804,43 na Terra Trombetas ao longo dos cinco anos de vigência do contrato foi a que prevaleceu. Na ocasião em que se discutia o acordo, diversos parceiros dos quilombolas – entre eles a Comissão Pró-Índio de São Paulo – alertaram para os riscos envolvidos no contrato, e também que a promessa de retorno financeiro não estava calcada em bases realistas. De fato, o empreendimento não alcançou as cifras anunciadas. Transcorridos quatro anos da assinatura dos acordos, o montante total recebido por cada família esteve muito abaixo do esperado. Entre 2011 e 2014, cada família recebeu apenas a quantia próxima à prometida como remuneração mensal. Não se trata aqui de julgar a decisão, mas procurar compreendê-la no contexto das novas expectativas suscitadas pela titulação para os quilombolas proprietários. Os contratos com as madeireiras parecem estar relacionados com o desejo de “melhorar de vida” entendido como “enricar” (maior acesso ao dinheiro) – expectativa que várias lideranças quilombolas vinculam diretamente com a conquista da titulação. A mudança nas comunidades [depois do título], as pessoas querem melhorar de vida, ganhar mais dinheiro. Nós consegue viver lá sem dinheiro. Riqueza é não ter que comprar o almoço e a janta e muitos não têm noção disso. A floresta preservada é muita riqueza. Daniel Souza, comunidade Jauari. Na perspectiva do “enricar”, o maior acesso aos serviços básicos e a programas sociais – que é recorrentemente mencionado pelos quilombolas como um desdobramento positivo da titulação – não atende ao desejo de “melhorar de vida”. Tampouco o crescente acesso a bens de consumo experimentado nos últimos 15 anos parece corresponder plenamente à “melhora de vida” desejada. Os contratos com a madeireira foram firmados em um momento em que muitos quilombolas questionavam as possibilidades da propriedade coletiva virar “riqueza” com frases como: “se fala muito da riqueza da floresta, mas ela não vira dinheiro no bolso do quilombola”. Mas se a “riqueza” da floresta sempre gerou renda para os quilombolas, há de se perguntar o que ocorre para que, em dado momento, se afirme que ela “não vira dinheiro no bolso”? Me parece que tal mudança está relacionada à conversão do território em propriedade. Na propriedade coletiva, a “riqueza da floresta” ganha uma nova dimensão: potencial de virar “negócio”. O “negócio” coloca novos paradigmas na exploração do território/propriedade. A “riqueza” da propriedade coletiva não é mais apenas o resultado do trabalho de cada quilombola, de seu conhecimento e da sua relação com a natureza, de suas vivências no território vinculadas às suas relações de parentesco e compadrio. A “floresta” passa a ser uma mercadoria que pode ser negociada por meio da “associação da área” e pela qual se espera patamares mais altos de remuneração (“enricar”). Um dos desafios dos quilombolas proprietários no momento atual parece ser justamente encontrar e acordar internamente as formas de lidar com essa nova maneira de gerar “riqueza” que, como transparece nas discussões comunitárias, é ao mesmo tempo uma potencialidade e uma ameaça. Não é um debate simples pois envolve conciliar diferentes percepções sobre o futuro que se deseja – sobre o que é “melhorar de vida” – e sobre as formas mais adequadas de explorar a “riqueza” da propriedade coletiva. É um processo pelo qual os quilombolas proprietários refletem e consolidam acordos internos sobre como assumir a nova “responsabilidade” trazida pela titulação. Depois que lutamos para receber o título de nossas terras, passamos a ter a responsabilidade dentro do nosso território. Altino Regis de Melo, comunidade Serrinha. 207 carlos penteado BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Lúcia. Terras Quilombolas em Oriximiná: pressões e ameaças. 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Esse fenômeno de reconfiguração social e fundiária foi acompanhado de um processo de urbanização, expresso na expansão dos limites da cidade de Oriximiná, na estruturação de infraestruturas e serviços de base, bem como no crescimento da mobilidade das populações das zonas rurais do município em direção ao centro urbano. Isso levou igualmente a uma expansão dos mercados locais (madeira, carne, minério), além de uma reorganização das cadeias comerciais dos principais recursos naturais, como a castanha-do-pará. No caso dos territórios quilombolas, a atribuição da terra sob a forma de territórios coletivos tem fortes implicações em termos de acesso e gestão dos recursos, pois o princípio de indivisibilidade da terra, ao mesmo tempo que protege o território da partição, envolve a responsabilidade coletiva dos moradores. Mas, hoje, além das pressões ambientais costumeiras, esses dispositivos fundiários devem lidar com a evolução das práticas territoriais da sua população. Tradicionalmente, os modos de vida eram dispersos na área rural, entre diversos espaços – agrícolas, de residência e de coleta –, o que justificou a atribuição de territórios muito extensos aos quilombolas de Oriximiná. Hoje, no entanto, essas territorialidades tradicionais se reconfiguram, já que, cada vez mais, os sistemas de atividades e os espaços de vida se distribuem entre áreas urbanas e rurais, graças a uma crescente circulação entre a cidade e a floresta. Esse fenômeno de intensificação das mobilidades ruraisurbanas, que se observa em toda a região amazônica 212 (Eloy et al., 2014; Alexiades, 2009), associa-se geralmente a uma diversificação econômica da renda doméstica das famílias. Porém, a literatura não conseguiu ainda oferecer uma visão clara das consequências desses fenômenos sobre as dinâmicas ambientais, sociais e agrícolas. Os estudos são consistentes para estabelecer ligações entre a mobilidade, a urbanização e as mudanças nas práticas de produção em áreas rurais de origem. No entanto, os efeitos descritos são contraditórios e variam muito entre regiões e famílias. De fato, as mobilidades rurais-urbanas são frequentemente entendidas como uma ameaça aos sistemas tradicionais de gestão de recursos, em função das mudanças demográficas que as mobilidades ocasionam, das mudanças técnicas e, principalmente, da aproximação do mercado que os centros urbanos proporcionam. Em outros casos, estas mudanças podem provocar uma desestruturação das instituições tradicionais (Gray, 2009), um esgotamento dos recursos naturais (Grau et al., 2008), ou uma “desagrarização” das comunidades camponesas (Steward, 2007). A realização de uma ou outra tendência está ligada à forma como as familias vão usar a renda urbana, que tanto pode estimular a atividade agrícola, caso seja reinvestida na produção, quanto pode, ao contrário, inibi-la e substituí-la. Como essa importante – e crescente – participação do meio urbano nos modos de vida interage com o uso dos espaços e recursos rurais nas comunidades quilombolas de Oriximiná? Pode ser a prefiguração de uma ruptura com o modo de vida florestal e comunitário? Em um contexto onde a pressão sobre os recursos aumenta, como essas populações enfrentam o desafio da conservação dos seus territórios? Para responder a essas interrogações. Em um primeiro momento, analisaremos a configuração e o impacto das mobilidades entre a comunidade e a cidade. Na sequência, tentaremos entender como estas circulações interferem nos sistemas produtivos desenvolvidos nas comunidades. A análise proposta se baseia em pesquisas de campo realizadas principalmente nas comunidades de Abuí (território Alto Trombetas) e Jarauacá (território Trombetas), entre 2010 e 2013, no âmbito do projeto USART1, e durante diversas atividades realizadas nas comunidades tradicionais de Oriximiná nesse período. Cerca de 150 famílias foram entrevistadas sobre as suas atividades e locais de produção, as suas relações com a cidade, a sua composição de renda e as suas perspectivas de futuro. ESTREITAMENTO DAS RELAÇÕES ENTRE FLORESTA E CIDADE Tradicionalmente, na Amazônia, os modos de vida se caracterizam por uma intensa circulação dos indivíduos. Os frequentes deslocamentos são associados a uma grande dispersão das residências da unidade familiar, em função das atividades de extrativismo e de exploração dos recursos sazonais (Carneiro, 1983; Dufour, 1990; Lizot, 1996; Meira, 1997). Todavia, a partir do início dos anos 1980, a importância dos deslocamentos entre áreas rurais tendeu a diminuir frente ao desenvolvimento das mobilidades2 entre campo e cidade. Com efeito, a oferta de serviços e empregos reforçou a atratividade dos centros urbanos, cuja taxa de urbanização cresceu – especialmente nas cidades pequenas e médias – à medida que os sistemas residenciais e as mobilidades se reorganizavam ao redor das cidades (Eloy & Lasmar, 2012; Kohler et al., 2011). No município de Oriximiná, as mobilidades urbanas se organizavam principalmente em função do crescimento demográfico e territorial da cidade de Oriximiná, onde a população urbana passou de 29.171 pessoas, em 2000, para 40.147 pessoas, em 2010 (IBGE, 2000; 2010). Esse crescimento está em parte ligado à incorporação, pela cidade, 1. 2. de áreas rurais, mas também, em grande parte, às ocupações e loteamentos irregulares que se multiplicaram nas áreas periféricas a partir do final dos anos 1990 (Oriximiná, 2010). Mobilidades entre floresta e cidade Hoje, para a maioria dos indivíduos das comunidades quilombolas de Oriximiná, os deslocamentos na cidade são mais frequentes que os deslocamentos entre as comunidades. A viagem tem uma função predominantemente econômica e, como principal destino, Oriximiná. Um levantamento realizado nas comunidades de Abuí (TQ Alto Trombetas) e Jarauacá (TQ Trombetas) mostra que 71% dos entrevistados de Abuí e 80% de Jarauacá afirmam ir para a cidade pelo menos uma vez por mês. Essa frequência de deslocamentos se explica pelo acesso crescente aos benefícios sociais (aposentadoria, Bolsa Família), pela comercialização dos recursos naturais, mas, também, por uma maior facilidade de acesso aos empregos urbanos, principalmente na construção civil, para os homens, e, nos postos de empregadas domésticas, para as mulheres. Assim, apesar da delimitação de territórios extensos , os quilombolas intensificam a sua mobilidade para as cidades. Frente à desvalorização dos produtos do extrativismo, os moradores buscam diversificar as suas fontes de renda e, por isso, apostam em novas alianças institucionais e comerciais, que exigem um contato regular com o centro urbano. De fato, a recente reconfiguração social e fundiária contribuiu para ampliar tais oportunidades, pois mexeu com o sistema de comercialização dos recursos naturais mais significativos. Assim, após o declínio do sistema de exploração paternalista dominado pelos “patrões”, a nova segurança “Usos, conhecimentos e representações do espaço em populações tradicionais da Amazônia brasileira”, financiado pela Agência Nacional da Pesquisa (França), e coordenado pelo Centro de Pesquisa e de Documentação das Américas (CREDA/França). Esse projeto almejou apreender, de forma multidisciplinar, alguns aspectos da relação que populações amazônicas rurais “tradicionais” mantêm com o espaço. O termo mobilidade corresponde, neste texto, aos deslocamentos temporários, sem mudança de residência principal (para trabalho, lazer etc.), ao contrário da “migração” que designa “o movimento de pessoas para estabelecer uma nova residência” (Domenach & Picouet, 1987: 469). Cabe destacar, no entanto, que a migração como mudança de residência pode seguir um padrão reversível e circular ao longo da trajetória do indivíduo (Cortes & Faret, 2009). Neste artigo, usamos mobilidade para designar os deslocamentos de mais de 24 horas. 213 fundiária e o contato mais direto com os comerciantes urbanos trouxeram novas oportunidades econômicas, relacionadas com a extração de madeira, a criação de gado de sociedade e a pesca comercial. Essas atividades representam hoje as principais perspectivas econômicas de crescimento, tanto para os quilombolas quanto para os seus vizinhos. Dispersão geográfica das famílias Em paralelo aos deslocamentos de curta duração, a cidade se torna, cada vez mais, um lugar de vida para os moradores das comunidades. Por exemplo, é comum que as mulheres se filiem à associação local e matriculem os seus filhos mais jovens na escola da comunidade, enquanto os mais velhos são enviados para uma “casa de família” na cidade. Como em outras regiões da Amazônia (Stoian, 2003; Eloy & Brondizio & Pateo, 2014), este tipo de estratégia permite que as famílias desfrutem, ao mesmo tempo, do potencial oferecido pelas zonas rurais e pelas áreas urbanas. A família pode manter uma roça, garantir os seus direitos de acesso sobre as áreas de pesca e continuar recebendo os benefícios específicos da população rural (salário maternidade, aposentadoria rural etc.). Em concomitância, vários membros da unidade familiar se deslocam de forma temporária ou semipermanente para trabalhar na cidade, acessar os serviços de educação e saúde, retornando para a comunidade com uma frequência variável. Estratégias familiares para acessar os serviços de educação na cidade A escolarização na cidade pode acontecer de duas maneiras diferentes. Na primeira, as crianças são enviadas sozinhas para a cidade, por vezes, muito jovens, graças à mobilização das redes locais de conhecimento ou de parentesco. Nos outros casos, até agora menos observados, as mães de família lançam mão de estratégias para acompanhar os filhos, prevenindo-se, dessa maneira, contra a evasão escolar. Elas alugam (ou mesmo adquirem) uma casa na cidade, encontram um emprego e permanecem o tempo da escolarização, voltando para a comunidade de origem durante as férias escolares. Foi com esse objetivo que P., 40 anos, instalou-se na cidade com as suas três filhas, de 10, 13 e 15 anos. Ela, de início, foi alojada pela madrasta. Enquanto fazia faxina durante o dia e tinha aulas à noite, as filha frequentavam a escola diurna. Depois de um ano e meio, com a vinda do marido que encontrara um emprego numa pequena usina local, a família conseguiu alugar uma casa na periferia. Há dois anos, eles acolhem dois afilhados de P., de 17 e de 22 anos, a quem os pais enviam todo mês um saco de farinha de mandioca e legumes frescos para ajudar nas despesas. Em troca da hospedagem, os pais dos afilhados cuidam da roça de P. na comunidade. Em outras situações, meninas são enviadas sozinhas para a cidade. Assim R. foi hospedada na “casa de família” de uma “conhecida”, em troca de trabalhos domésticos. Como ela não tinha boas notas na escola, a mãe não hesitou quando surgiu essa oportunidade, pensando que a filha poderia recuperar tal atraso. Já a S. foi enviada com 10 anos de idade para a casa de uma velha prima distante, a quem “fazia companhia” durante do dia e, à noite, frequentava a escola. Ela fugiu depois de dois anos, porque tinha medo do filho mais velho da prima. Além da carga de trabalho, estas jovens são frequentemente expostas a violências e humilhações diversas, inclusive sexuais. 214 Assim, tal como evidenciado por um dos habitantes de Jarauacá, “aqui, é normal ter várias casas. É mais difícil a gente mesmo ser o dono, mas às vezes nem precisa, a gente fica com a família”. Nesse sentido, os pais que vieram morar na cidade depois de se aposentarem servem muitas vezes de ponto focal para o resto da família. É comum que essas residências sejam localizadas nos bairros periféricos da cidade, pois, muitas vezes, foi aproveitando a oportunidade das “invasões”, antigas ou recentes, que os moradores das comunidades conseguiram adquirir um lote para construir uma residência urbana. Por outro lado, o nosso interlocutor explica que, da mesma forma que é difícil viver em áreas rurais sem manter contatos na cidade, “aquele que vive na cidade sem ter uma roça no rio vai passar necessidade”. É por isso que este morador, que já mora em Oriximiná há dois anos, entendeu-se com um irmão para contribuir com as atividades agrícolas da família e periodicamente retorna à comunidade para ajudar no preparo da terra e participar da colheita. Estes exemplos mostram que, para os quilombolas de Oriximiná, é coisa comum, para não dizer trivial, dispor de diversas residências. A casa na cidade: exemplo de estratégia familiar Os pais de C. conseguiram comprar uma casa em Oriximiná graças ao dinheiro da aposentadoria. Nela habitam de modo permanente, desde que B, o patriarca, começou a ter sérios problemas de saúde. C. se instala na casa dos pais de tempos em tempos, quando precisa ficar um período na cidade, sobretudo quando está empregado temporariamente. Uma das suas sobrinhas mora de modo permanente com os avôs, o que lhe permite, em troca, continuar os estudos em Oriximiná. 3. A construção de territórios multipolares para articular floresta e cidade Assim, a conexão com as áreas urbanas, embora exista desde muito tempo, tende a se banalizar, em função de uma maior facilidade de transporte, da aparição de novas oportunidades monetárias, assim como da influência dos centros urbanos (regionais e nacionais) sobre a dispersão da rede familiar, notadamente para o acesso ao mercado e serviços de base (educação, saúde). Essas práticas atestam que os espaços percorridos pelos moradores das comunidades quilombolas de Oriximiná se estendem bem além dos limites das terras demarcadas. Os habitantes dessas terras organizam as suas atividades segundo um modelo multipolar3: eles têm base em diversas residências e articulam espaços descontínuos, rurais e urbanos, percorridos com uma frequência variável, porém regular. Essa flexibilidade no uso do espaço permite a elaboração de estratégias econômicas diversificadas, no intuito de compensar o baixo valor econômico das atividades agroextrativistas. A realização dessas estratégias espaciais se tornou possível graças a diversos fatores recentes: a segurança fundiária, a organização coletiva dos transportes, a multiplicação dos domicílios urbanos e uma menor dependência das famílias com relação às atividades agroextrativistas, devido ao acesso aos programas sociais e aos empregos urbanos. Seguindo essa lógica, o fato de ter a sua residência principal na cidade não necessariamente prefigura um rompimento com a comunidade de origem. Ao contrário, sob certas condições, o meio urbano passa a ser considerado como uma extensão da comunidade. Por exemplo, é comum que os representantes das associações comunitárias sejam eleitos enquanto passam estadias longas na cidade, ou que mães de família acompanhem os filhos que estudam na cidade. No entanto, os dois espaços (comunidade O território multipolar agrupa um conjunto de lugares descontínuos, que formam um espaço funcional, percorrido e vivenciado, em oposição à visão de um território baseado em um espaço único (Cortes, 1998; Padoch et al., 2008). 215 carlos penteado e cidade) são claramente diferenciados: a comunidade permanece o espaço de referência e de identificação, mas a ausência dela pode ser admitida. O espaço da cidade não substitui as terras quilombolas, ele as complementa nas suas funções, de um ponto de vista econômico, social e político. Nesse sentido, as estadias urbanas de curta ou média duração não somente são toleradas como também são consideradas necessárias para garantir o sustento das famílias e proporcionar alguma ascensão socioeconômica (Nasuti & Tristch & Eloy, 2014). Tal extensão de áreas de uso e de identificação se torna possível graças à multi-residência (ou seja, a associação de diversas residências), condição importante para a circulação das pessoas e dos recursos, de acordo com a necessidade. Em paralelo, a continuidade territorial entre áreas distantes é garantida por meio da existência de um sistema de regras que rege a mobilidade das pessoas para a cidade. Isto é, a ausência da comunidade nunca é completamente livre. A perspectiva de manter ou não os seus direitos sobre os recursos locais orienta as práticas de mobilidade organizadas pelos indivíduos ou pelas famílias. Uma análise nas comunidades de Jarauacá e Abuí mostrou que, para conseguir respeitar as regras coletivas e manter os seus direitos na comunidade, as famílias adotam uma lógica de complementaridade entre os membros da família. Isso quer dizer que, para realizar as suas estratégias de mobilidade, as famílias não mobilizam somente os indivíduos, mas toda a rede familiar. Dessa forma, as funções estão distribuídas entre os membros da unidade doméstica e/ou da família extensa. Enquanto determinadas pessoas se deslocam na cidade, com uma intensidade variável para fins de comércio ou emprego temporário, outros membros da família quase não circulam. Estes últimos são os que garantem a “âncora” na zona rural e o pleno desenvolvimento das atividades produtivas (Nasuti et al., 2013). Em conformidade com estas regras, o pertencimento ao grupo – e, portanto, ao território – não é questionado. Exemplo de uma unidade doméstica combinando diversos perfis de circulação T. vai a cidade de Oriximiná todas as semanas, para organizar o seu comércio de madeira. Ele faz entregas e recebe pedidos de fazendeiros da região. A madeira é utilizada para fazer cercas de gado e é transportada graças ao barco que ele comprou com o seu pai e outras famílias. A cada viagem (3 a 4 por mês), ele garante também o frete para aqueles que desejam vender na cidade o que produziram, principalmente farinha de mandioca ou castanha. A sua esposa, R., ocupa-se da roça com o filho mais velho. Ela viaja com o marido somente uma vez por mês, quando recebe os benefícios sociais. Aproveita a viagem para fazer compras domésticas e prover o bar que a família tem na comunidade. Assim, a configuração atual das mobilidades rurais-urbanas, associada a um sistema de uso multipolar do espaço, não ameaça a estabilidade da população quilombola nas áreas rurais. Todavia, isso não significa que os modos de vida nos territórios florestais não estejam evoluindo, sob a influência de diversos fatores, que vão além dos fenômenos de circulação. Quais transformações nos sistemas locais de produção podem ser observadas hoje? Como o desenvolvimento dessas fontes de renda, bem como a introdução de empregos formais nas áreas rurais (professores, agentes de saúde, transporte escolar, emprego doméstico em Porto Trombetas etc.) afetam as atividades desenvolvidas nas comunidades? 217 TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS: UM SISTEMA PRODUTIVO EM TRANSFORMAÇÃO Nos locais estudados, os moradores praticam uma agricultura familiar típica dos rios amazônicos. Esta atividade se baseia na complementaridade entre a agricultura de corte e queima, jardins agroflorestais, extrativismo, pesca, caça, criação de animais de pequeno porte, e, em certos casos, de algumas cabeças de gado. As roças são localizadas em áreas de terra firme e são dominadas pela mandioca (Manihot esculenta Crantz), associada a diversas variedades de abóbora, batata doce, pimentão, inhame, banana, cana-de-açúcar etc. Um sistema produtivo extensivo, articulando vários locais de produção Em Abuí e Jarauacá, 80% das famílias entrevistadas cultivam roças. A maioria dessas famílias pratica uma estratégia chamada de “multilocalidade produtiva”, comum a outras sociedades tradicionais da Amazônia (Carneiro, 1983; Eloy, 2005). Isso consiste em cultivar pelo menos dois tipos de roças: uma aberta na mata densa (“roça de mata virgem”), distante da residência principal, onde se trabalha somente algumas vezes por mês; e uma “roça de capoeira”, localizada na proximidade da casa, que se usa quase diariamente. A “roça de mata virgem” é relativamente grande (1 a 2 hectares) e tem uma diversidade específica maior do que a roça de capoeira, que, em geral, não excede 0,5 hectare e produz principalmente mandioca, com rendimentos limitados. No município de Oriximiná, essas estratégias agrícolas são, muitas vezes, acompanhadas por uma multilocalidade residencial parcial. Durante a seca do rio, as áreas de floresta densa da terra firme são acessíveis apenas a pé, ao custo de várias horas de caminhada. Portanto, as famílias que cultivam esses espaços, muitas vezes, constroem uma segunda casa e, na medida das 218 possibilidades, uma segunda casa de farinha, para não depender da comunidade. Tal período corresponde, em parte, à época de coleta da castanha e das férias escolares. Assim, toda ou parte da família reside nesta segunda casa durante várias semanas, para as coletas e para fabricar as grandes quantidades de farinha de mandioca oriunda da “roça de mata virgem”. Mesmo com a diversificação da renda doméstica, a mobilidade ligada às atividades agroextrativistas continua sendo um elo fundamental da relação com o território. De uma forma geral, as atividades cotidianas (pesca, visita das roças, caça) são mais próximas das residências, enquanto os lugares mais longínquos são frequentados em períodos mais pontuais, principalmente para o extrativismo da castanha-do-pará, de resinas (breu) ou de certos óleos (copaíba, andiroba etc.). No entanto, um levantamento dos locais onde são realizadas as atividades produtivas demonstra uma predominância de áreas mais próximas da comunidade, o que sugere uma mudança na mobilidade sazonal relacionada ao extrativismo, a favor de atividades de maior proximidade. Um afastamento progressivo das terras agrícolas Em paralelo, observa-se que as áreas onde são realizadas as atividades agrícolas se afastam gradualmente das áreas residenciais. Via de regra, o espaço utilizado para a agricultura não forma uma área contínua ao redor da comunidade, mas, sim, um mosaico de parcelas agrícolas, geralmente pequenas, espalhadas na floresta. Porém, hoje em dia, esse movimento evolui, criando uma nova configuração espacial para as atividades agrícolas das populações quilombolas. Vários fatores contribuem para explicar esse fenômeno. O empobrecimento do solo é o primeiro fator determinante. A agricultura de corte-queima requer pousios longos, para que a floresta se recupere e a fertilidade se renove. Assim, tal sistema demanda um deslocamento constante das áreas cultivadas. Com o crescimento populacional que as comunidades quilombolas de Oriximiná conheceram nos últimos anos, esse sistema se encontra perturbado. Com efeito, para instalar as suas roças, as novas famílias devem respeitar os direitos de uso criados por ocupações passadas, pelas capoeiras abertas na zona, e, também, levar em consideração condições ambientais (qualidade do solo) e acessibilidade. Dessa forma, mesmo que o espaço ainda pareça vasto e pouco ocupado, em verdade, na maioria dos locais de estudo, ele é relativamente saturado. O aumento da pecuária bovina Outro fator, ligado à localização das residências, explica a reorganização espacial das atividades agrícolas. No passado, as casas eram deslocadas e seguiam as roças para evitar caminhos muito longos. Hoje, alguns elementos levam as famílias a fixar as suas residências perto da comunidade, especialmente nas proximidades das instalações públicas, como a escola ou o centro comunitário, ou então um sistema de energia ou de água encanada. Nessa situação, duas estratégias foram se desenvolvendo. É importante ponderar que a prática da pecuária ainda permanece uma atividade minoritária entre os residentes. Na comunidade de Abuí, por exemplo, somente 14,5% das famílias entrevistadas (11 de 76) a praticavam em 2012; na comunidade de Jarauacá, o número chega a 20,8% (15 de 72). Embora os rebanhos continuem modestos (não há mais de cem bovinos em Abuí), esse fenômeno é relativamente rápido: essa comunidade, que contava apenas um criador em 1995, tem hoje treze famílias envolvidas com a atividade, apesar da distância da cidade e da rede rodoviária (250 km). A interpretação de imagens de satélite mostra que esta atividade já tem impactos visíveis espacialmente, uma vez que mais de 40% das áreas desmatadas são agora ocupadas por pastagens, uma proporção com forte crescimento desde 2000. A título de ilustração, nas comunidades de Abuí e Jarauacá, as áreas desmatadas foram multiplicadas por mais de 3, em média, entre 1992 e 2011. Observamos, porém, que, em números absolutos, essas áreas permanecem pequenas, com menos de 100 ha de solo exposto em cada uma das comunidades e aberturas médias por família entre 1,3 e 2 ha. A primeira consiste na procura de meios de transporte rápidos para resolver a dificuldade de acesso aos espaços agrícolas. Assim, muitas famílias jovens estão agora se estabelecendo perto de equipamentos comunitários e podendo ter as suas áreas agrícolas distantes de vários quilômetros. Outra estratégia é a simplificação do sistema agrícola. As famílias se concentram nas roças de capoeira mais próximas das casas, porque elas não têm os meios ou a força de trabalho para buscar terras férteis em áreas remotas. Graças à renda monetária e, em alguns casos, à distribuição de cestas básicas, essas famílias conseguem diminuir significativamente a sua produção. Ora, essa maior dependência das roças de capoeira próximas (e a crescente escassez de grandes “roças de mata virgem”) pode levar a um declínio gradual da biodiversidade agrícola na escala regional e maior vulnerabilidade da produção agrícola às variações climáticas (Le Tourneau & Eloy, no prelo). A agricultura de corte-queima, associada ao extrativismo, permanecem as atividades mais comuns nas comunidades estudadas. Porém, a criação animal, especialmente bovina, parece ganhar espaço na produção familiar. A maior parte dos criadores de gado das comunidades viabiliza a sua atividade a partir de um sistema de “meia” com os fazendeiros da região. Na realidade, a cadeia de produção é controlada pela elite política e comercial localizada em Oriximiná. Esses números indicam que as famílias continuam a praticar uma agricultura cuja principal finalidade é a subsistência. Nesse sentido, o crescimento demográfico é provavelmente uma das principais razões para o aumento de áreas abertas ao longo das duas últimas décadas. O gado, no entanto, também tem a sua parcela de responsabilidade. Assim, as roças correspondiam a 219 cerca de 80% das superfícies abertas em Abuí e Jarauacá em 1992, enquanto, em 2011, correspondiam a 57,6% e 45,3%. Isso mostra que as pastagens estão se tornando um importante fator de desmatamento, em particular nos últimos dez anos. Além disso, o gado já influencia fortemente o afastamento progressivo das áreas destinadas à agricultura, devido à devastação causada pelos animais nas culturas e ao uso do espaço próximo para plantar pastagens. Rumo a uma mudança na gestão das terras? A pecuária é uma atividade que, na Amazônia, gera grandes debates, sendo considerada responsável por grande parte do desmatamento. Mas é uma das atividades econômicas mais lucrativas de acordo com as condições geográficas da maioria das regiões da Amazônia (Smeraldii & May, 2008; PoccardChapuis, 2004; Marchand, 2009). Nesse caso, também se incluem as áreas quilombolas de Oriximiná. De difícil acesso, distante dos mercados, elas sofrem de uma estrutura precária para a comercialização dos seus produtos. Além disso, a maioria dos produtos do extrativismo (castanha-do-pará, óleos e resinas) não é consumida no local, mas destinada a mercados distantes. A má reputação da criação de gado gera controvérsia, especialmente no caso de populações quilombolas. Elas estão conscientes de que muitos dos seus direitos foram adquiridos em função de um sistema diferenciado dos outros modos de vida agrícolas. Praticar hoje as mesmas atividades que os outros agricultores representa uma perda de legitimidade que é muito bem identificada. Assim, um líder regional admitiu que sente uma contradição: “é ruim para as nossas tradições”, disse ele. Mas a criação de gado apresenta vantagens. A distância do mercado não é um obstáculo, uma vez que o animal é comercializado cada vez mais no mercado local. As flutuações dos preços dos gêneros agrícolas e extrativistas, que em geral desmoronam no momento em que todos os produtores colocam os seus produtos no mercado, são evitadas 220 porque o animal pode ser vendido em qualquer estação. A sua liquidez constitui também uma das suas principais vantagens, como uma conta de poupança: ele pode ser convertido rapidamente em dinheiro, se necessário. Hoje, o desenvolvimento da atividade parece levar a uma mudança de gestão das terras. De fato, esse processo requer a atribuição em longo prazo de uma determinada finalidade a essas terras, o que trava o sistema itinerante da agricultura de cortequeima. Dessa maneira, a implantação de pastagens implica uma apropriação privada e permanente das terras, o que desafia a gestão comunitária. Talvez por esse motivo, observe-se uma tendência à individualização dos direitos fundiários nas áreas de capoeira próximas das roças. É verdade que, como diz uma moradora do Abuí, “hoje em dia, todo mundo quer ter sua própria área. [...] Temos de garantir a nossa parte agora, caso contrário, as crianças terão que ir em outro rio longe. Há mais e mais famílias, as pessoas têm o seu gado, e torna-se cada vez menor”. DESAFIOS PARA A GESTÃO DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS Como vimos, a reorganização dos espaços agrícolas internos aos territórios quilombolas, associada à intensificação dos deslocamentos para a cidade, constitui um aspecto importante do desenvolvimento econômico e social dos territórios quilombolas. No entanto, a importância desses fenômenos coloca muitas questões sobre as dinâmicas ambientais, sociais e agrícolas na região. Sistemas de mobilidade Hoje, no município de Oriximiná, os sistemas de mobilidade entre floresta e cidade não são acompanhados de uma forte transformação dos modos de vida, que permanecem baseados na agricultura de subsistência, pesca, caça e extrativismo, apesar da presença crescente – mas, por enquanto, moderada – da pecuária bovina. Além disso, a aproximação com a cidade aumentou a frequência dos deslocamentos numa proporção ainda controlada. Também não questiona de forma direta a estabilidade das residências nas áreas rurais, notadamente em função dos mecanismos de multirresidência, de distribuição das funções dentro da unidade doméstica e dos sistemas de regras que regem a mobilidade urbana das famílias. Assim, graças a essas estratégias, os moradores procuram tirar proveito dos recursos disponíveis em ambos os espaços em vez de se voltarem para dinâmicas de êxodo rural. Nesse sentido, as dinâmicas de circulação entre zonas rurais e urbanas, enquanto permanecem enquadradas num sistema de regras, contribuem para a sustentabilidade dos territórios quilombolas. Transformação espacial dos espaços agrícolas As atividades agrícolas das comunidades estudadas correspondem em parte à imagem clássica que se tem das populações tradicionais. A produção de farinha de mandioca é onipresente, mesmo que a quantidade produzida dependa do valor de mercado e de outras especulações. A geografia da atividade, no entanto, parece estar mudando. Atualmente, vários fatores se combinam para causar um distanciamento progressivo das casas com relação às áreas cultivadas: a) o crescimento da população, o que significa que o número de roças aumenta, criando a necessidade de ir buscar mais longe as áreas adequadas para a sua implantação; b) a instalação de infraestruturas nas comunidades (energia, escolas, água encanada etc.) que “fixam”as habitações; c) o equipamento das famílias com rabetas que aumentam a capacidade de deslocamento; d) a conversão das roças mais próximas das habitações em pastos, frequentemente abertos, e as consequências da divagação dos animais. No final, mesmo que ter roças distantes das casas não seja inteiramente novidade, uma vez que as populações tradicionais adotavam essa prática de mobilidade sazonal, hoje, provavelmente, um novo tipo de relação é construído com as áreas agrícolas nas comunidades de Oriximiná. Será preciso continuar acompanhando as suas consequências, notadamente a respeito da diversidade de espécies cultivadas, para ver se ela se direciona para uma simplificação e uma especialização em culturas mais lucrativas (como a mandioca), ou se, ao contrário, permite uma certa manutenção da diversidade por meio da busca de plantas adaptadas a cuidados mais episódicos nas roças. Gestão comunitária Essas questões são particularmente importantes para os territórios quilombolas de quem, assim como com relação às terras indígenas, a sociedade espera cada vez mais que se responsabilize pela proteção das florestais tropicais brasileiras. O conjunto das mudanças econômicas e institucionais que hoje reestruturam os espaços quilombolas de Oriximiná coloca os moradores frente a um desafio significativo em termos de gestão territorial. Enquanto a organização geral é baseada em uma lógica de território “multipolar”, as instituições devem conseguir proteger um espaço contínuo, extenso, caracterizado por uma baixa densidade de ocupação e um aumento das pressões internas e externas. Frente a esses desafios, manter a integridade da área florestal das terras quilombolas depende da capacidade do grupo de emitir regras coletivas voltadas para a gestão dos recursos naturais. Depende também da capacidade que o grupo terá de fazer com que essas regras sejam aplicadas, assim como de fazê-las evoluir. No entanto, percebe-se que as populações quilombolas enfrentam dificuldades para estabelecer e fazer cumprir regras de gestão ambiental. Por exemplo, os impactos da pecuária sobre a organização local do espaço ainda fogem dos debates locais e não geraram novas – ou geraram poucas – regras acerca dos modos de gestão dos recursos. Como é observado em outros 221 territórios tradicionais (Castro et al., 2006), as tensões ligadas às contradições entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental são resolvidas pelo estabelecimento de regras que não tratam diretamente do manejo dos recursos-chave, mas, sim, contornam o problema, especialmente ao questionar a legitimidade dos usuários sobre o território. BIBLIOGRAFIA ALEXIADES, Miguel N. Mobility and Migration in Indigenous Amazonia: Contemporary Ethnoecological Perspectives. Nova Iorque, Oxford: Berghahn, 2009. CARNEIRO, Robert. The cultivation of manioc among the Kuikuru of the upper Xingu. In: HAMES, R. B. et W. T. VICKERS (Eds.). Adaptative responses of Native Amazonians. Nova Iorque: Academic Press, 1983. CASTRO, Fábio de. et al. Use and misuse of the concepts of tradition and property rights in the conservation of natural resources in the atlantic forest (Brazil). Ambiente and Sociedade. n. 9, 2006. p. 23–39. CORTES, Geneviève. 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Bonn, 19–23/mai/2003. carlos penteado EMPODERAMENTO DAS COMUNIDADES NO ACESSO A RECURSO GENÉTICO E CONHECIMENTO TRADICIONAL: CASO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE ORIXIMINÁ Roberta Peixoto Ramos INTRODUÇÃO As políticas de conservação têm estado na agenda da maioria dos países há mais de duas décadas, uma vez que foi reconhecido que a perda da biodiversidade tem um impacto direto na segurança alimentar, em solos férteis, água potável, medicamentos, mudanças climáticas, além de ser essencial para manter valores culturais e espirituais dos povos e comunidades tradicionais (Secretariat of the Convention on Biological Diversity, 2010). O Brasil é um país extremamente diverso, abrigando cerca de 20% de todas as espécies do mundo e também mais de 230 povos indígenas e muitas comunidades tradicionais como quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, etc. Na definição do governo Brasileiro, comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, ancestral, econômica e religiosa, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (Decreto 6.040/2007). Essas comunidades tradicionais são também caracterizadas pelo uso sustentável dos seus recursos naturais (Diegues e col., 2000). A conservação da biodiversidade e a proteção do modo de vida tradicional das comunidades são ações complementares e que devem ser desenvolvidas em conjunto para que sejam efetivas. É necessário desenvolver políticas que trabalhem a sustentabilidade ambiental e social, valorizando o papel dos povos e comunidades tradicionais na conservação da biodiversidade. Dentro desse contexto, este artigo volta o olhar para o acesso a recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado, uma atividade que tem o potencial de propiciar a sustentabilidade econômica, social e ambiental dos territórios das comunidades tradicionais. Através do estudo de caso do 1. 226 quilombo de Oriximiná,1 este artigo vai também identificar os desafios que as comunidades tradicionais têm que enfrentar para se tornarem atores empoderados nesse processo, assegurando seu direito de participar das decisões que afetam seu modo de vida e seu território. CONTEXTUALIZAÇÃO A Convenção da Diversidade Biológica (CDB) de 1992, ao reafirmar a soberania das nações sobre seus próprios recursos naturais, estabeleceu um espaço importante de debate sobre a conservação da biodiversidade e do seu uso sustentável. Seus três objetivos – conservação da biodiversidade, uso sustentável e repartição justa e equitativa de benefícios (CBD, 1992) – proporcionaram a base para que países signatários da Convenção pudessem iniciar uma discussão interna do papel das comunidades locais na conservação da natureza e o valor dos seus conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. É dentro desse contexto que se encontra a medida provisória 2.186-16 de 2001 que foi desenvolvida como uma resposta à necessidade urgente do Brasil de legislar sobre o acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional associado (CTA) em seu território (Medida Provisória nº 2.186). Nessa atividade de acesso, ocorre a procura por recursos genéticos na natureza que podem ter um valor econômico e/ou social, podendo ser derivados dos conhecimentos tradicionais das populações. Essa atividade tem um potencial muito grande de ser tornar um instrumento de conservação da biodiversidade, de manutenção e melhoramento do modo de vida das comunidades além de ser extremamente importante para a pesquisa científica (Beattie, 2005; Reid e col., 1993). Entretanto, essa medida provisória é limitada, não atende as necessidades nem dos usuários nem dos provedores da Esse estudo de caso faz parte da pesquisa de doutorado (em andamento) com o título “Bioprospection and benefit sharing: governance of natural resources in the Brazilian Amazon”, pela London School of Economics and Political Science (LSE). biodiversidade. No Brasil, o processo para se conseguir autorização de acesso, seja do patrimônio genético e/ou do conhecimento tradicional, é extremamente moroso e burocrático, e na grande maioria das vezes não possibilita uma repartição de benefícios justa e equitativa como requer a CDB. Apesar disso, sendo essa a legislação vigente no país, é preciso entender onde estão seus desafios para poder conseguir alcançar o melhor resultado possível dentro da estrutura existente e ao mesmo tempo iniciar um debate nacional para influenciar o conteúdo de uma lei mais apropriada.2 Olhando, portanto, para a MP 2.186 é possível focar três passos essenciais para conseguir autorização de acesso: a anuência prévia, o laudo antropológico e o contrato de repartição de benefícios. O termo de anuência prévia é um documento que precisa ser assinado pela comunidade (provedora do recurso genético) e pelo usuário (bioprospector), seja ele empresa, universidade ou instituto de pesquisa. A assinatura desse documento representa o entendimento e o consentimento para que o acesso seja feito. De acordo com as orientações do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão deliberativo e normativo criado pela Medida Provisória, a anuência deve conter os objetivos da pesquisa, sua metodologia, duração, orçamento, formas de uso do patrimônio genético e CTA, qual área geográfica que abrange o projeto e quais comunidades vão estar envolvidas nesse processo. Esse documento tem que ser feito no idioma nativo da comunidade e tem que utilizar linguagem clara. Além disso, deve ser assegurado a todo momento o direito das comunidades de recusar o desenvolvimento do projeto em seu território (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, 2003). Esse documento é o modo pelo qual as comunidades podem dar o seu consentimento prévio ao projeto, direito 2. essencial que é assegurado tanto em legislações nacionais quanto internacionais. De acordo com a atual legislação, é possível fazer o acesso ao recurso genético com ou sem conhecimento tradicional associado. Desse modo, quando há o acesso ao CT é necessário um laudo antropológico independente, que possa assegurar que o processo de anuência prévia foi feito de acordo com os requerimentos da lei e que a comunidade tem conhecimento pleno dos seus direitos e deveres (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, 2004a). O terceiro passo importante é quando existe um potencial comercial do acesso. Nesse caso, é também necessário firmar o contrato de uso e repartição de benefícios entre o provedor e o usuário. Esse contrato tem que definir claramente qual será o formato da repartição de benefícios (monetário ou não monetário), tem que deixar claro se existe alguma provisão de propriedade intelectual, qual a duração desse contrato, além de identificar os direitos e deveres de ambas as partes (Medida Provisória nº 2.186; Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, 2004). Entre 2004 e 2013, o CGEN autorizou 70 contratos de repartição de benefícios no Brasil e, em março de 2013, havia 33 contratos em processo de tramitação. A indústria de cosméticos é a que tem mais contratos de acesso e repartição de benefícios (ABS) no Brasil, enquanto a presença da indústria farmacêutica é mínima. Uma análise desses números mostra que 89 desses contratos foram acessos somente ao patrimônio genético, enquanto apenas oito foram acessos ao patrimônio genético e CTA (Schmidt, 2014). Isso reflete o receio existente entre usuários de acessar patrimônio genético associado a conhecimentos tradicionais, uma vez que existem ainda muitas incertezas relacionadas ao CTA e ao envolvimento de comunidades tradicionais nesse processo. Até a data desse artigo (janeiro de 2015) se encontrava em tramitação no Congresso, em caráter de urgência, o Projeto de Lei 7.735, que regula o acesso aos recursos genéticos da agrobiodiversidade e da biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais a eles associados. Importante ressaltar que os povos e as comunidades tradicionais do Brasil não foram propriamente consultados sobre essa nova proposta e por isso pedem a retirada do caráter de urgência para dar espaço a uma discussão mais democrática dessa nova lei. 227 carlos penteado ACESSANDO O RECURSO GENÉTICO E O CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO projeto nas comunidades quilombolas de Oriximiná (Oliveira ecol., 2010; Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e ao Conhecimento Tradicional Associado e Repartição de Benefícios, 2006). Em 2007, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) autorizou a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a acessar o patrimônio genético e o conhecimento tradicional associado das comunidades remanescentes do quilombo de Oriximiná para a pesquisa “Bioprospecção de Espécies Vegetais Farmacologicamente Ativas Utilizadas Medicinalmente por Comunidades Quilombolas de Oriximiná (PA), Brasil”. Esse estudo teve o objetivo de pesquisar substâncias bioativas de plantas medicinais, utilizando o conhecimento tradicional das comunidades quilombolas de Oriximiná, com foco no uso potencial para o tratamento de doenças do sistema respiratório como tuberculose e doenças do sistema nervoso como Alzheimer (Oliveira e col., 2010; TAP, 2008). Um dos resultados desse acesso foi que, em 2012, os pesquisadores da UFRJ estavam no processo de desenvolvimento tecnológico de dois produtos farmacêuticos que foram originados a partir desse estudo de plantas locais e conhecimento tradicional associado. Para isso, os pesquisadores estavam novamente visitando as comunidades para fazer uma explicação da atual situação do projeto, coletar material necessário para pesquisa e finalizar o novo contrato de repartição de benefícios. O contato inicial com a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO) foi feito em dezembro de 2005 através de telefonemas e e-mails em que os pesquisadores da UFRJ explicaram o projeto para a coordenação da ARQMO, inclusive enviando para eles as legislações relacionadas ao ABS no Brasil. Essa troca de informação culminou em uma reunião em maio de 2006, com uma visita dos pesquisadores a ARQMO para esclarecer detalhes do projeto, através de uma exposição sobre objetivos, métodos, etapas, fontes de financiamento e repartição de benefícios do projeto proposto (Oliveira e col., 2010), como é requerido pela resolução 6 do CGEN. Depois dessa conversa com os coordenadores da ARQMO e também de uma breve visita a algumas comunidades, a ARQMO assinou o termo de anuência prévia e o contrato de repartição de benefícios dando, desse modo, seu consentimento ao projeto. O laudo antropológico foi elaborado logo em seguida e, em dezembro de 2007, o CGEN autorizou o desenvolvimento desse A UFRJ seguiu todos os passos necessários e cumpriu todas as exigências legais para conseguir autorização para acessar o patrimônio genético e CTA das comunidades quilombolas de Oriximiná. Entretanto, apesar de ter seguido a legislação vigente e ter conseguido a autorização para acessar, uma análise mais cuidadosa desse estudo de caso revela que seguir as leis nacionais não garante necessariamente que o acesso e a repartição de benefícios sejam feitos de modo justo e equitativo. Os pesquisadores da UFRJ envolvidos nesse projeto têm consciência da importância de valorizar e envolver as comunidades no processo e por isso esse acesso se tornou o mais justo que poderia ser dentro das atuais circunstâncias. O que ocorre é que a estrutura institucional e legal existente no Brasil não permite a quebra da assimetria de poder existente entre comunidades tradicionais provedoras do recurso genético e CT e os usuários dessa biodiversidade. O resultado é que não existe um empoderamento dessas comunidades no processo de ABS. REFLEXÃO SOBRE O ACESSO Analisando especificamente o caso de Oriximiná, houve por parte da UFRJ uma tentativa de informar as comunidades sobre 229 o projeto e sobre as leis vigentes sobre ABS. Entretanto, existe um conflito de interesse, que não é exclusivo para esse caso e sim presente em todos os casos de acesso no Brasil, que precisa ser levado em consideração. No atual sistema brasileiro, o órgão bioprospector acaba sendo responsável por informar as comunidades sobre seus direitos e deveres, o que claramente coloca essa organização em uma situação de maior poder sobre as comunidades. Nesse estudo de caso, a organização que tinha o interesse direto que as comunidades quilombolas de Oriximiná aceitassem o projeto proposto foi a mesma responsável para explicar-lhes os detalhes do projeto, esclarecendo quaisquer dúvidas. A atual legislação brasileira não possui instrumentos que possibilitem a quebra dessa assimetria de poder e, portanto, o primeiro contato entre uma comunidade tradicional e a instituição bioprospectora necessariamente gera uma situação que é considerada desigual. No momento em que a organização bioprospectora é a autoridade máxima para explicar a uma comunidade seus direitos e deveres dentro de um processo de ABS, existe a possibilidade de monopólio da informação e abuso de poder. Acesso e repartição de benefícios é um assunto relativamente novo no país e alguns dos procedimentos para o acesso ainda estão em construção, o que gera muitas dúvidas entre as partes, tanto para os usuários quanto para os provedores do recurso genético e CT. Os povos e comunidades tradicionais se encontram totalmente desinformados a respeito do ABS e desempoderados do processo, não tendo nenhuma assistência externa e independente de como proceder. No caso das comunidades quilombolas de Oriximiná, se observou que não houve uma capacitação suficiente tanto da ARQMO quanto das comunidades envolvidas no acesso. Enquanto a grande maioria sabia que um projeto sobre plantas medicinais estava sendo desenvolvido no seu território, nenhum dos comunitários entrevistados, incluindo as lideranças da ARQMO, 230 souberam articular os objetivos reais do projeto, o que seria realmente acessado e como seria a repartição de benefícios. O que se verificou em Oriximiná foi que havia um conhecimento superficial sobre a pesquisa desenvolvida no território, mas que não existia um sentimento de pertencimento e legitimidade do projeto. Como em outros exemplos de acesso no Brasil, é extremamente difícil para a instituição bioprospectora (no caso a UFRJ) assegurar que as comunidades passaram por um processo de capacitação. Existem pressões internas como orçamento limitado e tempo limitado para se desenvolver um projeto que acabam por influenciar o diálogo com as comunidades. Além disso, ao se trabalhar com povos e comunidades tradicionais, como é o caso das comunidades quilombolas de Oriximiná, é preciso entender sua cultura e seu modo de vida para poder construir um relacionamento que respeite e entenda sua estrutura de governança interna, seu processo de tomada de decisão e seu relacionamento com o meio ambiente. É importante entender que em um processo de acesso ao recurso genético e CTA existem variáveis importantes que precisam ser entendidas para que uma comunidade possa ter uma participação efetiva, dialogando de igual para igual com o agente bioprospector. É preciso trabalhar conceitos que na grande maioria das vezes não fazem parte do dia a dia das comunidades, como recurso genético (e sua diferença de matéria-prima), o que é o acesso, anuência prévia, repartição de benefícios e conhecimento tradicional associado. Certamente, no caso de Oriximiná, esses conceitos foram apresentados e explicados para as comunidades pelos pesquisadores da UFRJ, uma vez que faz parte dos requerimentos legais para o acesso. Entretanto, deve-se questionar a metodologia de repasse da informação que foi utilizada, o nível de aprofundamento das discussões, qual o tempo dedicado a essas atividades e como esses conceitos foram traduzidos para o dia a dia dos comunitários. O processo de ABS é interligado a diversos temas como conservação da biodiversidade, direito consuetudinário, consentimento, preservação e valorização de CT, geração de renda, manejo de recursos naturais e direito fundiário. Desse modo, é necessário que as comunidades tenham acesso a todas essas informações, se apropriando do processo e passando deste modo a serem atores ativos e não somente comunidades sem o poder de negociação nos processos de ABS. DISCUSSÃO FINAL Uma das perguntas relevantes nessa discussão é de quem deveria ser a responsabilidade, portanto, de capacitar essas comunidades para o acesso e repartição de benefícios. Certamente não deveria ser a responsabilidade de nenhuma instituição bioprospectora, já que essa opção pode proporcionar um abuso de poder e o monopólio da informação. O Ministério do Meio Ambiente chegou a desenvolver algumas oficinas para capacitar as comunidades tradicionais na negociação com as instituições bioprospectoras, entretanto, o governo não conseguiu manter essas atividades (Departamento do Patrimônio Genético, 2012). Existe no Brasil um grande número de comunidades tradicionais, muitas vivendo em localidades de difícil acesso. Por isso, uma capacitação efetiva é um processo caro e a longo prazo, o que dificulta ter uma garantia de investimento do governo. aparece no texto do Protocolo de Nagoia como mecanismo de empoderamento das comunidades. Esses protocolos comunitários podem ser entendidos como regras internas criadas pela própria comunidade. Tais regras refletem as suas características tradicionais, o modo como a comunidade se relaciona interna e externamente e também define alguns procedimentos, critérios e instrumentos de gestão territorial e de manejo e uso sustentável de recursos naturais (Rede GTA, 2014). Protocolos comunitários devem ser específicos para cada comunidade, refletindo as características e o modo de vida de cada população. A construção de um protocolo comunitário permite a discussão sobre questões relacionadas ao gerenciamento de recursos naturais, conservação da biodiversidade, governança interna, processo de tomada de decisão comunitária e questões relacionadas ao acesso e repartição de benefícios. Além disso, o desenvolvimento de protocolos comunitários se encontra na agenda internacional, aparecendo no Protocolo de Nagoia, que afirma a necessidade dos protocolos serem apoiados por governos nacionais, o que inevitavelmente coloca pressão sobre os Estados para que esses protocolos virem políticas públicas (Nagoya Protocol, 2011; Swiderska, 2012). As comunidades deveriam estar totalmente empoderadas para iniciar um diálogo com qualquer agente externo, se tornando atores participantes e legítimos desse processo. Mas, para isso, é necessário garantir a essas populações o direito a informação e o direito a uma participação real, assegurando que haja uma boa governança dos recursos naturais e do território. Entretanto, a não ser que esses direitos sejam garantidos através de políticas públicas, será extremamente difícil garantir a sustentabilidade de investimentos para essas atividades de capacitação. No Brasil, a primeira experiência desse tipo foi a construção do Protocolo Comunitário do Bailique, desenvolvido pela Rede GTA. O Bailique é uma comunidade extrativista e pescadora do Estado do Amapá e concluiu seu protocolo em dezembro de 2014, tendo um documento que trabalha desde a questão de identidade coletiva da comunidade até estabelecer regras para ABS. Essa comunidade inicia agora a fase de implementação do protocolo através de melhoramentos dos seus produtos e parcerias com novos mercados. A metodologia comunitária de construção de protocolos possibilita que esse seja um instrumento de gestão territorial, de uso sustentável de recursos naturais e de proteção aos direitos comunitários no acesso e repartição de benefícios. Uma das alternativas para capacitar essas comunidades seria através da criação de Protocolos Comunitários, instrumento que É importante notar que esse protocolo foi desenvolvido pelo movimento social, o que traz uma legitimidade necessária ao 231 processo e possibilita o real empoderamento das comunidades sem a influência de partes interessadas, como a instituição bioprospectora. Protocolos Comunitários, portanto, podem ser um dos instrumentos usados para preparar as comunidades para esse diálogo com os atores externos. Independentemente de qual ferramenta for utilizada, é importante ter consciência de que nenhum acesso e repartição de benefícios serão justos e equitativos enquanto as comunidades não forem realmente empoderadas no processo, permitindo que possa existir um diálogo entre iguais e não uma capacitação de “cima para baixo”. Para isso, é necessário que o governo compreenda que a atual legislação não é suficiente e que será necessário um apoio mais robusto, pensando em ações que permitam que a atual assimetria de poder possa ser dissipada. BIBLIOGRAFIA BANDEIRA, Roberto & VERÍSSIMO, Adalberto & COSLOVSKY, Salo & PEREIRA, Jakeline & QUINTELLA, Reynaldo. Potencial Econômico nas Florestas Estaduais da Calha Norte: madeira e castanha do Brasil. Belém: Imazon, 2011. BEATTIE, Andrew J. New Products and Industries from Biodiversity. In R. M. Hassan, Scholes, R. & Ash, N. (Eds.). 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Termo de Anuência Prévia entre UFRJ e Comunidade Quilombola de Oriximiná, 2008. lúcia mendonça morato de andrade CONSENSO UNÂNIME: MOVIMENTOS PELA TRANQUILIDADE E A SOBREPOSIÇÃO DE PENSAMENTOS ENTRE OS COLETIVOS QUILOMBOLAS DE ORIXIMINÁ Julia Frajtag Sauma Ao longo do meu primeiro dia de regresso a Oriximiná, no início de julho de 2014, fui gradualmente tomada pela impressão de que nunca saíra daquele lugar, apesar de ter passado três anos e meio sem visitar os meus amigos e interlocutores quilombolas.1 Essa sensação crescia à medida que circulava pelas casas e outros paradeiros2 permanentes ou temporários dos meus amigos – a maioria deles filhos do Erepecuru – naquela pequena cidade amazônica, transitando por seu asfalto intensamente banhado pelo sol, a pé e por mototáxi, sob uma sombrinha recém-adquirida. Tomávamos café, trocávamos notícias e, na maioria dos casos, organizávamos as nossas subidas para o interior, cada um para a sua comunidade, seu centro rio acima; no meu caso, para a Comunidade do Jauari no Rio Erepecuru.3 Em cada uma dessas visitas, conforme eu contava sobre as minhas andanças, sobre meu paradeiro, o meu trabalho e a minha família, fui atualizada sobre as suas famílias, comunidades, centros, trabalhos e movimentos – termo nativo para as suas reuniões sociopolíticas. Foi assim que, ao longo desse primeiro dia, fui informada sobre as quatro frentes sociopolíticas mais importantes para os meus amigos quilombolas naquele momento. O primeiro desses assuntos, elaborado em maior profundidade ao longo das próximas semanas, foi a notícia surpreendente – revelada por agentes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária 1. 2. 3. 4. 5. 236 (Incra) de Santarém, poucos dias antes do meu retorno, que a demarcação coletiva da Área Erepecuru (titulada em 1998) não ocorreu de forma esperada. Foi com consternação que os meus anfitriões explicavam que os agentes do Incra, responsáveis pela titulação, não excluíram os lotes dos individuais4 da área coletiva titulada, conforme combinado por todas as partes na época da demarcação; o que, para os filhos do Erepecuru, significava uma retomada da luta para garantir a titulação coletiva. Naquele mesmo dia, os coletivos da bacia do rio Trombetas também explicaram sobre o retorno dos estudos de capacidade hidrelétrica nas suas áreas – tema que eu tinha acompanhado de fora – e os novos estudos geológicos da Mineração do Rio Norte na área da Comunidade do Moura no Rio Trombetas, ambos iniciados sem consultar os povos quilombolas que serão afetados por esses empreendimentos. A quarta preocupação dos meus interlocutores, naquela época, dirigia-se ao impacto do projeto de manejo de madeira, em andamento desde 2011 nas Áreas Erepecuru e Trombetas.5 Digo que esses eram os assuntos mais importantes porque, assim como descrito em trabalhos anteriores (especialmente, Sauma, 2013), as diversas famílias quilombolas do município de Oriximiná também estão constantemente envolvidas na luta contra invasões (de pesca, terra e garimpo) nas suas áreas, e Como apresento em minha tese de doutorado (Sauma, 2013), no seu dia a dia os remanescentes de quilombos de Oriximiná utilizam diversos termos de autodenominação, de acordo com o contexto, esses termos incluem quilombolas, remanescentes, coletivos e filhos dos seus rios, entre outros. Esses termos não devem ser tomados como sinônimos, nem tampouco como autoexcludentes. Isto é, cada um desses termos possui um sentido próprio, certa ênfase singular, mas também se sobrepõem, tanto que ser coletivo é necessariamente ser quilombola, remanescente e filho de determinado rio (como filho do Erepecuru, ou filho do Trombetas). Nesse sentido, o uso desses diferentes termos não se refere a passagens entre classificações “nativas” e “normativas”, assim como sugerido por Arruti (2008: 29) em outro contexto, e sim da sobreposição e proliferação de sentidos que tornam a “autodenominação” em um ato pleno e permanente, baseado em experiências coletivas. Os termos em itálico, ao longo do texto, são conceitos ou expressões nativas; quer dizer, são próprias dos quilombolas de Oriximiná. Os termos com aspas simples são conceitos da autora e aqueles com aspas duplas são conceitos ou citações de outros autores e/ou textos. Fiquei 20 meses em trabalho de campo para o doutorado entre janeiro de 2009 e novembro de 2010, durante os quais constitui minha base na Comunidade do Jauari, no Rio Erepecuru, mas também passei tempo em muitas das outras comunidades desta e de outras áreas coletivas. Ao longo desse trabalho, os termos substantivos coletivo e individual, grafados em itálico, são categorias nativas, e se referem àqueles que se uniram na luta pela titulação quilombola de um lado, e aqueles que se opuseram à mesma na década de 1990 e buscam a titulação dos seus lotes, que estão dentro das áreas coletivas. Andrade (2011) apresenta uma descrição e análise detalhada dessas quatro áreas de “ameaça” para os quilombolas da região. trabalhando em prol da expansão de serviços municipais de educação e saúde nas suas comunidades.6 Além dessas frentes de confronto, esse povo também se dedica intensamente à organização de festas religiosas, e outras comemorações nas suas comunidades e na cidade de Oriximiná, que têm um papel fundamental para a permanência desse povo no seu território, pois esse outro tipo de movimento – as suas confraternizações – gera a força e a alegria que os quilombolas precisam para continuar protegendo a tranquilidade das suas comunidades; qualidade central do seu bem-estar. * Essa descrição introdutória tem o intuito de explicitar dois elementos básicos daquilo que podemos identificar como ‘processo sociopolítico’ entre os quilombolas de Oriximiná – quer dizer, os mecanismos conceptuais e relacionais, intra e intercomunitários, que possibilitam a formação de decisões consensuais nesse contexto – tema principal do presente trabalho. O primeiro desses elementos é a intensidade da atuação sociopolítica desse povo, ponto que aprofundarei na primeira parte deste artigo para enfatizar a importância de levarmos as suas concepções e práticas sociopolíticas em consideração, ao refletir sobre a elaboração e regulamentação dos procedimentos legais que devem proteger os seus direitos constitucionais. O segundo elemento que a descrição de abertura nos traz, e que será o foco da segunda parte deste texto, é, justamente, a identificação da circulação ou visitas entre as casas dos quilombolas como um dos mecanismos centrais do seu processo sociopolítico. Nesse sentido, quero descrever e analisar a configuração desses mecanismos dentro dos movimentos sociopolíticos 6. dos quilombolas, a partir da importante relação entre as suas reuniões oficiais e as visitas domésticas que estruturam a vida cotidiana nas suas comunidades. As questões que levanto neste artigo são as seguintes. O que acontece quando realmente levamos em conta a história de povos como os quilombolas de Oriximiná nos processos que devem fundar-se em sua consulta e garantir sua participação sociopolítica? O que se passa se aceitarmos que essa história traz com ela mais do que o passado, um presente e, com isso, uma experiência e uma prática sociopolítica? Como reagimos quando essa prática tem a capacidade de elucidar conceitos centrais mas ambíguos – como “consulta” e “participação” – das políticas públicas estatais e dos acordos multilaterais que o Estado visa implementar? O que sucede se, para responder a essas perguntas, precisamos repensar o que é viver de forma coletiva e participar como pessoa, como indivíduo? O que muda, em suma, quando a consulta e a participação são tomadas como processos permanentes, nos quais se estabelece a sobreposição de pensamentos, direcionados ao consenso, e não como obstáculos pontuais aos desejos de uma ou outra parte? Ao final do artigo, busco explicitar como a assim chamada “consulta” na linguagem formal do licenciamento socioambiental deve ser entendida como muito mais do que um procedimento pontual. Veremos como os mecanismos sociopolíticos equivalentes entre os quilombolas operam por um processo fundado na circulação das pessoas e em um modo narrativo que enfatiza a troca e a sobreposição como forma de construir uma experiência e um pensamento em comum. Dessa forma, propõese que se sentir contemplado e contemplar o outro compõem Os serviços de educação e saúde oferecidos pelo município nas comunidades do interior continuam sendo insuficientes nessa região, especialmente na área de saúde. Ao oferecer acesso à enfermagem nas comunidades e uma formação fortalecida e diversificada, garantindo, aos quilombolas qualificados, primeiro acesso aos empregos que seriam gerados, tais serviços poderiam assegurar a permanência dessa população em seu território titulado, em vez de obrigar os quilombolas, entre outros ribeirinhos, a migrar para a cidade de Oriximiná sem recursos adequados, em busca de atendimento médico, formação e trabalhos mal remunerados longe de casa. Os poucos avanços obtidos nos últimos dez anos, especialmente na área da educação, são o resultado do árduo trabalho dos quilombolas em suas negociações com servidores públicos e governantes locais. 237 o objetivo predominante dos mecanismos sociopolíticos nesse contexto. A estrutura interna desse modo participativo será investigada na última parte deste artigo, onde explicito as concepções singulares dos filhos do Erepecuru, especificamente acerca da relação entre a coletividade e o indivíduo. Assim, longe de qualquer “justificativa” ou “legitimação” de como os meus amigos e interlocutores em Oriximiná atuam nos encontros com representantes estatais e outras pessoas de fora – tarefa que não cabe aos pesquisadores que trabalham com eles –, a intenção do presente trabalho é mostrar como as suas concepções e práticas sociopolíticas podem nos iluminar em um momento de amplo ataque aos direitos constitucionais deste e de outros povos tradicionais e indígenas no contexto brasileiro. por encontros com outro tipo de pessoa de fora, uma gente graúda que fala bonito e fala grande, mas que tenta impedir os esforços dos quilombolas a garantir uma vida tranquila nas suas comunidades. Entre outras coisas, segundo os meus interlocutores, essa gente graúda tentou obstruir a titulação coletiva dos seus territórios violentamente e fizeram a cabeça de certas famílias quilombolas a se opor a esse título – uma decisão que muitas dessas famílias agora se arrependem de terem tomado. Essa gente também continua dificultando a integridade das áreas quilombolas, incentivando invasões de pesca, extração de madeira e garimpo, a venda de lotes que estão dentro do território coletivo, e atuação de atravessadores7 que tentam enfraquecer o trabalho da Cooperativa Mista Extrativista dos Remanescentes de Quilombos (CEQMO). ANTIGOS E NOVOS ENCONTROS E CONFRONTOS Começando com o encontro importante dos quilombolas de Oriximiná com os padres do Verbo Divino – a ordem católica que substituiu os franciscanos na região em 1970, e que incentivou fortemente a mobilização em favor da proteção de suas terras –, passando para diversos representantes do Movimento Negro, de ONGs (acima de tudo a Comissão Pró-Índio de São Paulo), governantes, representantes do Ministério Público e outros órgãos estatais, antropólogos e outros pesquisadores, além dos confrontos com políticos, grandes fazendeiros e usineiros da região, somamse mais de 40 anos de encontros com pessoas de fora. Somamse também mais de 40 anos de um trabalho permanente para a proteção das suas terras, florestas e castanhais, e, com isso, o seu modo de vida, frente à expansão, nesse mesmo período, dos interesses sociais, políticos e econômicos de governantes, diversas empresas nacionais e multinacionais nessa região. As comunidades quilombolas de Oriximiná têm uma história recente e importante de mobilização sociopolítica em nível regional, estadual e nacional, que iniciou na década de 1970 e que, através da formação da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO) em 1989, resultou na primeira titulação quilombola no Brasil, para a comunidade de Boa Vista-Trombetas em 1995. Posteriormente, a ARQMO também participou na formação de associações e titulações das Áreas Quilombolas Água Fria (em 1996), Trombetas (em 1997), Erepecuru (em 1998 e 2000) e Alto Trombetas (parcialmente titulada em 2003) (ver Andrade, 2011). Para alcançar essas conquistas consideráveis, os quilombolas passaram por diversos encontros importantes com pessoas de fora, como eles diriam, que apoiaram e incentivaram a sua luta pelo reconhecimento constitucional e pela titulação de suas terras. Ao longo dos anos, esses povos também passaram 7. 238 Sabemos também que a luta desses povos tem raízes mais profundas do que recentes negociações fundiárias e as atuais negociações para a preservação dos seus territórios e do seu modo de vida. Segundo os relatos dos próprios quilombolas (por Compradores de castanha-do-pará, nesse caso, enviados por grandes usineiros da região, que oferecem um preço menor por cada caixa de castanha às famílias quilombolas, beneficiando-se do fato de que a CEQMO pode demorar mais tempo para fazer a compra, por estar lidando com a produção de muitos cooperados. exemplo, Lima, 1992) e o trabalho de diversos historiadores (ver, por exemplo, Funes, 1995; Gomes, 2005; e Ruiz-Peinado, 2002), são pelo menos 200 anos de experiência de encontros, negociações, alianças e confrontos com outros – entre eles, outros mocambeiros, povos indígenas, comerciantes, garimpeiros, mineradores, padres franciscanos, patrões e governantes municipais, estaduais e federais. Portanto, como descrevo em outros trabalhos (Sauma, 2013; Sauma, 2014), o modo de vida dessa coletividade – e, dentro disso, a própria configuração dos seus mecanismos sociopolíticos – está plenamente fundamentado nos encontros/confrontos e negociações com outros, internos e externos às suas comunidades. Nesse sentido, podemos afirmar que os quilombolas de Oriximiná não chegam aos seus encontros contemporâneos com pessoas de fora enquanto novatos políticos. Eles não chegam a essas negociações como um grupo que “não entende como as coisas funcionam”, “que vão aprender como as coisas funcionam”, ou “como um povo desorganizado”, e tantas outras afirmações que tive a infelicidade de escutar ao longo dos anos. Nesse contexto, somos levados a lembrar que, do ponto de vista desse povo, nos seus encontros com governantes, por exemplo, os seus antigos e atuais perseguidores muitas vezes estão do outro lado da mesa – e mesmo assim, eles não deixam de negociar e de lutar pelo seu modo de vida. Realmente, reconhecer a condição histórica desses encontros/confrontos e, portanto, as repercussões contemporâneas desse passado, é o primeiro passo necessário em direção a uma melhor compreensão dos mecanismos sociopolíticos desse povo e, assim, da relação contemporânea entre eles e representantes e processos estatais, como o licenciamento socioambiental e/ou a titulação das suas terras. Infelizmente, a imagem de um quadro antagônico no encontro entre quilombolas e governantes é bastante fiel à situação atual dessa população. Por um lado, como explicitado pela Procuradora 8. da República Deborah Duprat (2002), o Estado brasileiro se inseriu em uma nova fase de atuação frente a povos como os quilombolas de Oriximiná a partir da Constituição Federal de 1988, (doravante CF) que visa romper decisivamente com a atuação totalitária e reconhecer-se (constitucionalmente, pelo menos) como um “Estado pluriétnico”: não mais pautado em pretendidas homogeneidades, garantidas ora por uma perspectiva de assimilação, mediante a qual sub-repticiamente se instalam entre os diferentes grupos étnicos novos gostos e hábitos, corrompendo-os e levando-os a renegarem a si próprios ao eliminar o específico de sua identidade, ora submetendo-os forçadamente à invisibilidade. Duprat, 2002: 41. Por outro lado, a vulnerabilidade desse novo encontro com povos indígenas e tradicionais fica clara quando consideramos os esforços governamentais recentes para acelerar a construção e operacionalização de grandes empreendimentos energéticos na Amazônia, como as hidrelétricas de Belo Monte, São Luiz e Cachoeira Porteira; a última das quais afetará, de forma significativa, os quilombolas de Oriximiná. Dessa forma, como descrito pela procuradora da República em Altamira, Thais Santi, em entrevista recente sobre a situação de Belo Monte8 – e lembrando que esse é um empreendimento que gera precedentes para os outros projetos mencionados acima –, temos atualmente situações nas quais “feita a escolha governamental, que já é questionável, o caminho para se implementar essa opção é trilhado pelo governo como se também fosse uma escolha, como se o governo pudesse optar entre respeitar ou não as regras do licenciamento”. Nesse sentido, na mesma entrevista, Santi faz uma comparação entre as ações do Governo Federal brasileiro, nesse contexto, e a atuação dos estados totalitários (segundo Hannah Arendt), nos quais “tudo é possível”. Brum, E. Belo Monte: a anatomia de um etnocídio. In El País, 01/12/2014. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/01/opinion/1417437633_930086. html>. Acesso em: 19 mar 2015. 239 carlos penteado Como sabemos, os ataques atuais aos direitos dos povos indígenas e tradicionais e, portanto, ao Estado pluriétnico definido pela CF estão presentes em diversas frentes. Eles incluem, entre outras ações, a criação da PEC 215/2000, articulada por parlamentares ruralistas, que pretende transferir do Poder Executivo para o Poder Legislativo as atribuições constitucionais de titulação dos Territórios Quilombolas, da demarcação de Terras Indígenas e de criação de Unidades de Conservação. O ataque está na criação da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 contra o Decreto 4.887/2003, que regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, previsto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da CF. Além disso, temos as próprias dificuldades envolvidas no processo de titulação, geradas por múltiplos obstáculos administrativos, como a Instrução Normativa Incra N.º 49/2008, que tornou esse processo muito mais difícil e burocratizado – resultando na estimativa da Comissão Pró-Índio que somente 6,8% das comunidades remanescentes de quilombos no Brasil têm o título das suas terras. E, para voltar mais diretamente ao assunto do presente trabalho, o processo de regulamentação da Consulta Prévia prevista pela Convenção 169 da OIT no Brasil – que também deve garantir a consulta dos povos indígenas e tradicionais nas decisões que afetam “as suas vidas, crenças, instituições, valores espirituais e a própria terra que ocupam ou utilizam” (Ramos & Abramo, 2011: 8) –, encabeçado por um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) do Governo Federal, também tem sido amplamente criticado pela exclusão desses mesmos povos (ver, por exemplo, a carta pública da APIB)9. Nesse quadro, a questão da consulta prévia aparece como um dos muitos entraves que os mediadores de um Estado pluriétnico – como agentes do Ministério Público Federal – precisam definir precisamente, e para tanto torna-se fundamental a participação dos povos indígenas e tradicionais, como os quilombolas de Oriximiná. Visto que essa inclusão está sendo dificultada por elementos internos ao Governo Federal, e dada a urgência da participação desses povos nos processos de licenciamentos socioambientais que devem proteger os seus direitos constitucionais, alguns povos têm lutado pela autodefinição da consulta prévia (ver, por exemplo, o recente Protocolo de Consulta Munduruku)10. Considerando a vulnerabilidade da CF na mediação entre esses povos e o Governo Federal, fica claro que esse processo de autoidentificação dos protocolos de consulta prévia devem ser estimulados e apoiados em cada contexto de encontro e/ou confronto entre essas partes, como no caso dos quilombolas de Oriximiná. Somente esses povos podem definir a forma em que esse processo deve ocorrer em seus territórios, de forma a incluir as suas próprias prioridades e práticas sociopolíticas no processo de licenciamento socioambiental, e, assim, fortalecer a posição de mediadores como o Ministério Público Federal e a luta pelos seus próprios direitos constitucionais. Como forma de estimular o apoio ao processo de diálogo direto entre representantes estatais e os quilombolas de Oriximiná, em defesa dos seus direitos, e com base na minha pesquisa entre os filhos do Erepecuru, a segunda parte deste trabalho parte para a descrição e análise etnográfica dos mecanismos sociopolíticos desse povo. Como enfatizado na introdução, tal descrição busca, acima de tudo, enfatizar a qualidade propriamente participativa desses mecanismos para, posteriormente, considerar a estrutura relacional que possibilita aos quilombolas de Oriximiná agir e se pensar como pessoas coletivas, e a pessoas de fora como individuais – distinção essa que pode nos iluminar em relação à dificuldade de regulamentar procedimentos como a “consulta livre, prévia e informada”. 9. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, publicada em 26 de julho de 2013. Disponível em: <http://racismoambiental.net.br/2013/07/27/carta-publica-daapib-sobre-a-regulamentacao-dos-procedimentos-do-direito-de-consulta-assegurado-pela-convencao-169-da-oit/>. Acesso em: 19 mar 2015. 10. Documento aprovado em assembleia extraordinária do povo Munduruku em 13 e 14 de dezembro de 2014. Disponível em: <http://fase.org.br/wp-content/ uploads/2015/01/Protocolo-de-Consulta-Munduruku.pdf>. Acesso em: 19 mar 2015. 241 MOVIMENTOS: UMA ASSEMBLEIA EXTRAORDINÁRIA E O PENSAMENTO DE CADA UM No final da minha estadia no Rio Erepecuru em julho de 2014 fui convidada pelos coordenadores da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo da Área Erepecuru (ACORQE) a observar a assembleia extraordinária que eles estavam convocando na Comunidade Boa Vista Cuminá para discutir um dos assuntos críticos mencionados no início do presente trabalho: a questão da coincidência da demarcação coletiva e dos lotes individuais no Erepecuru. Segundo os relatos dos coordenadores da ACORQE, em reunião com representantes do Ministério Público Federal e Estadual em Santarém em junho de 2014, eles foram informados sobre a justaposição das terras e as suas possíveis soluções, e ficaram com a tarefa de repassar essa informação aos coletivos, filhos do Erepecuru (doravante Filhos), e mobilizar uma posição que poderia ser transmitida aos Ministérios Públicos no final de julho. Portanto, essa assembleia tinha um assunto bastante específico em pauta, mas tanto durante as preparações para a assembleia quanto durante a própria reunião, ficou claro que, enquanto eles discutiam esse assunto, os meus anfitriões também estavam pensando, refletindo e/ou atuando em relação às outras questões, mais e menos críticas, identificadas na introdução deste artigo. Quer dizer, ao conversar entre eles sobre a questão da demarcação, os Filhos também refletiam sobre a luta contra a invasão violenta no território, contra a pesca e garimpo ilegais que ocorrem no seu território, que os individuais têm facilitado desde a demarcação. Eles também estavam pensando sobre a defesa do seu modo de vida e dos seus parentes – sejam eles coletivos ou não –, sobre a recente busca de expansão de atividades da Mineração do Rio Norte (e a tentativa da empresa de comprar o apoio dos seus parentes). Eles estavam refletindo sobre o manejo de madeira e sobre os estudos hidrelétricos na Cachoeira Porteira, que serão estendidos para o Rio Erepecuru e que ameaçam destruir a mãe 242 cachoeira, protetora desse povo. Essa reflexão conjunta de todas essas questões pode ser entendida de forma bastante simples: são todas questões que emergem quando consideram a manutenção da tranquilidade nas suas comunidades. Portanto, ao falar de um desses temas, a reflexão sobre a conjunção deles, dessas ameaças ao seu modo de vida, é bastante comum. Assim, no decorrer da assembleia extraordinária, após a oração de abertura e uma introdução pelos coordenadores da ACORQE, foram muitas horas de reflexão coletiva em que membros de cada comunidade levantavam observações relativas a diversas questões. Isso não significa que os associados não falassem especificamente sobre a questão em pauta, pois durante a assembleia esse foi um assunto ao qual os quilombolas sempre voltavam. Para chegar a propostas concretas que poderiam ser encaminhadas ao Ministério Público, os associados presentes, que lotavam o grande barracão da Comunidade Boa Vista-Cuminá, se dividiram em quatro grupos: o primeiro composto por associados com menos de 25 anos, o segundo grupo por associados entre 26 a 35 anos, o terceiro por associados entre 36 a 45 anos, e o quarto por associados com mais de 45 anos. Diferentes propostas, dúvidas e questões foram discutidas dentro de cada grupo, tais como quem pagaria a indenização dos individuais e a possibilidade de sua inclusão no território coletivo, além de outros temas. Após essa etapa os grupos reuniram-se mais uma vez no barracão, compartilharam as suas diferentes propostas e começaram a trabalhar em direção a um consenso que poderia ser encaminhado ao Ministério Público e que, acima de tudo, poderia ser votado em unanimidade no final da assembleia. Algo inesperado aconteceu exatamente nesse momento. Acompanhando a fala de muitos dos associados ali presentes surgiu uma proposta paralela. Essa proposta demandava uma explicação oficial, pública e presencial sobre o erro ocorrido na demarcação coletiva. Portanto, antes de encaminhar qualquer posicionamento sobre como as comunidades coletivas queriam lidar com isso – assunto que demandava mais tempo de reflexão entre eles e dentro de suas comunidades –, os associados decidiram que o próximo passo seria convidar os agentes do Incra e do Ministério Público a outra assembleia extraordinária na Comunidade de Boa Vista-Cuminá para obter esses esclarecimentos diretamente. E essa foi a decisão votada em unanimidade no final do dia. O ideal dos quilombolas é que todos os encaminhamentos formados durante essas reuniões – aquilo que chamo de ‘consensos’ no presente trabalho – são confirmados por uma votação no final do dia, e a expectativa é que essa votação seja unânime. Como veremos adiante, os coletivos tendem a criticar decisões tomadas de forma apressada, que são baseadas na votação pela maioria. Apesar de reconhecer que o conceito – consenso unânime – seja um pleonasmo do ponto de vista de pessoas de fora, o intuito aqui é mostrar que tal observação explicita aquilo que Viveiros de Castro (2004) nomeia como uma “equivocação”, uma comparação tradutiva de termos nativos que deve ser “controlada” pelo antropólogo a fim de impedir que o seu próprio discurso seja incluído como um dos termos de análise. No presente caso, esse controle analítico é alcançado quando refletimos detidamente sobre a forma em que o consenso é alcançado e, com isso, a necessidade de visibilizar a unanimidade do consenso no final dessas reuniões. Em nove anos de trabalho com as comunidades remanescentes de quilombos de Oriximiná presenciei diversas assembleias e outras reuniões, algumas com duração de vários dias, outras de algumas horas, muitas das primeiras relativas a encontros e/ou confrontos com pessoas de fora e, das segundas, aos encontros entre as comunidades coletivas ou entre os parentes de uma mesma comunidade. Independentemente do assunto ou sua extensão, todas essas reuniões – que os quilombolas frequentemente chamam de movimentos – têm uma mesma estrutura: após uma oração e introdução pelos coordenadores sobre o(s) tema(s) em pauta, abre-se o espaço para cada pessoa presente que queira falar. O pensamento de cada um é importantíssimo nessas reuniões, e os coordenadores que encaminham a discussão devem fazê-lo sem obstruir a enunciação desses pensamentos, deixando-os fluir livremente até que todos sentem que uma boa proporção daqueles presentes têm se manifestado. Muitos foram os encontros em que os próprios coordenadores enfatizavam a importância de todos se manifestarem, e se colocavam de forma a não demonstrar qualquer posicionamento próprio. Isso não significa que os outros quilombolas presentes nessas reuniões não saibam a opinião do coordenador – algo que ele(a) muitas vezes não manifestará nesses movimentos, mas em outros momentos mais íntimos – pois significa que, entre os povos dessa região, a boa liderança parte da visão da coletividade, a partir da explicitação e sobreposição progressiva do pensamento de cada um, e não da postura pública de líderes como “representantes” da coletividade. Nas reuniões em si, essa postura é praticada pelos coordenadores através de enunciações que incentivam a fala de cada um, por suas posturas como articuladores e animadores – aqueles que organizam manifestações culturais durante os encontros, elementos decisivos para uma reunião bem-sucedida – e não como detentores da razão. Essa diminuição da posição política durante as reuniões coletivas também se reflete no comportamento de outros indivíduos respeitados, a quem muitos olham para entender assuntos polêmicos, quando estes se sentam no fundo do barracão durante as reuniões e optam por não falar, falam pouco ou falam somente da importância de proteger a história de resistência do povo quilombola, e pouco sobre o assunto específico em pauta. O trabalho que esses líderes silenciosos fazem para disseminar informações e possíveis soluções para assuntos polêmicos não ocorre nesses movimentos, mas em momentos mais informais, anteriores e posteriores às reuniões. Todos os coletivos entendem que parte do trabalho daqueles que têm o dom para estar à frente dos seus movimentos envolve visitas domiciliares aos chefes de família (homens e mulheres) que os apoiam, para falar de assuntos políticos ao mesmo tempo que trocam informações sobre os seus parentes, sobre caça e pesca, sobre as próximas festividades e os torneios de futebol. Como aponto na minha tese de doutorado (Sauma 2013), essas 243 visitas marcam o dia a dia de todos os quilombolas – normalmente ocorrendo no final da tarde, quando todos já finalizaram o seu trabalho nas roças ou suas atividades domiciliares – e são momentos importantes para a troca de informações, favores e para organizar o trabalho coletivo. O pensamento de cada um também é fundamental durante essas visitas, que são usadas por articuladores dos movimentos e os chefes de família para enunciar as suas opiniões de forma calma e clara, tirar dúvidas e encontrar o consenso entre eles aos poucos. A partir dessas visitas, os chefes de família decidirão como agir nas reuniões coletivas e aqueles que têm filhos mais velhos, com suas próprias famílias, conversarão com os mesmos, aconselhando-os a agir da mesma forma, mas também nunca coagindo-os. Esse é o processo a partir do qual os coletivos constroem os consensos que são votados por unanimidade das reuniões coletivas, sem o qual o consenso é impossível e, portanto, a participação e as decisões sociopolíticas coletivas não serão alcançadas. São consensos coletivos que dependem da sobreposição gradativa de muitos pensamentos singulares, construídos através dos consensos gerados de forma cumulativa dos consensos entre duas ou três pessoas, dois ou três pensamentos diferentes, formados durante essas visitas domiciliares. No caso específico da coincidência das terras coletivas e individuais, a disseminação de informações e de possíveis soluções que contribuiria para um consenso sobre o posicionamento dos quilombolas precisava de muito mais tempo que o mês proporcionado a eles em Santarém. Aquele mês serviu apenas para organizar a assembleia extraordinária em si, em um contexto de inquietação acerca de outros assuntos que ameaçam as comunidades remanescentes de quilombos em Oriximiná. Assim, nas conversas que presenciei durante as preparações para a assembleia, houve poucas discussões sobre as possíveis soluções para a coincidência da demarcação das terras coletivas com os lotes individuais e, sim, muito 11. 244 Artigo 6, Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho. compreensivelmente, a indignação com o erro do Incra, da ameaça que esse erro proporcionava à demarcação coletiva após a dura luta por essa conquista. E foi essa indignação que levou ao ‘consenso unânime’ no final da assembleia extraordinária, construído pela sobreposição de pensamentos nas poucas semanas após o encontro dos coordenadores com o Ministério Público em Santarém. Outro consenso, acerca de como os filhos do Erepecuru queriam se posicionar em relação à justaposição do seu território aos lotes individuais, portanto, ficou para uma nova fase de trocas de pensamentos e falas. O CONSENSO ENTRE PESSOAS COLETIVAS O processo de construção de um consenso entre os quilombolas de Oriximiná pode ser comparado ao procedimento de “consulta livre, prévia e informada” que deve ser aplicado (mas dificilmente o é) nos casos de licenciamento socioambiental, como na expansão das atividades da Mineração do Rio Norte e nos estudos de capacidade hidroelétrica da Cachoeira Porteira. Pelos termos do artigo 169 da OIT que consolidou a inclusão desse procedimento no licenciamento socioambiental, esse tipo de consulta deveria garantir a participação permanente dos povos tradicionais e indígenas em todas as decisões que podem afetar o seu modo de vida. Contudo, esse continua sendo um procedimento ambíguo para os mediadores da CF e muitas vezes é tratado como mero obstáculo por governantes-empresas. É possível que, para os mediadores da CF, a ambiguidade do procedimento esteja na sua amplitude ou flexibilidade, considerando que um dos elementos centrais desse procedimento é que a consulta prévia deve ocorrer “de uma maneira adequada às circunstâncias”11 – elemento que dificulta a sua padronização. Porém, também é provável que a maior dificuldade esteja no engajamento dos mediadores da CF com o que é nomeado pela convenção 169 como “as instituições carlos penteado representativas” desses povos, uma vez que – como no caso dos quilombolas de Oriximiná – essas instituições incluem elementos irreconhecíveis para muitas pessoas de fora. Como vimos acima, entre esses quilombolas, a ‘sobreposição de pensamentos’ que tais instituições deve possibilitar é formado por múltiplas “consultas” prévias e posteriores a uma reunião coletiva, onde as lideranças devem ser diminuídas para possibilitar a fala de cada um, que costura o ‘consenso unânime’ que será votado no final, e que pode ser repensado posteriormente. Assim, vemos como aquilo que pode parecer uma redundância política – isto é, a necessidade de visibilizar o processo consensual político com sua votação unânime no final de qualquer reunião –, para quem está acostumado com um sistema representativo ancorado na “votação pela maioria”, toma dimensões muito diferentes nesse contexto. Portanto, notamos que, em relação a essa população, a consulta prévia – assim como a votação – não deve ser pensada como procedimento único, com data marcada, e sim como processo propriamente participativo, fortalecedor de uma coletividade que luta por sua sobrevivência, tranquilidade e alegria há mais de 200 anos. O que se postula aqui é que, considerando a ampla expansão dos interesses governamentais-empresariais nessa região, esse processo permanente de construção de trocas e consensos talvez serviria como forma para os defensores e mediadores da CF pensarem sobre o encontro entre governantes-empresas e esse povo, e principalmente de como a consulta livre, prévia e informada poderia ser implementada nesse contexto. Ao mesmo tempo, porém, a forma processual da construção de um consenso coletivo entre os quilombolas de Oriximiná deve ser entendida, aqui, como mais do que um possível modelo para o ambíguo procedimento de consulta prévia, uma vez que esse processo também explicita a singularidade das suas concepções e práticas sociopolíticas. Ao explicitar essa singularidade, é possível retomar o primeiro passo, estabelecido no início deste artigo, que reconhece a experiência 12. 246 histórica e atual dessa população nos encontros e negociações com pessoas de fora. E, com isso, abriríamos a possibilidade de deixar as suas concepções e práticas sociopolíticas iluminar aquilo que nós entendemos como “coletividade”, uma vez que “nós” – mediadores da CF e/ou pesquisadores – não conseguimos fazê-lo e defendê-lo com muita facilidade. Seguimos, nesse sentido, com uma pergunta meio contraintuitiva: no que envolve a ação do indivíduo entre os quilombolas dessa região? Na minha observação, o primeiro impulso para muitas das pessoas de fora que buscam entender, com boas intenções, a coletividade dos quilombolas é confundir a ênfase desse povo na coletividade com algum tipo de protecionismo autoritário, que desrespeita o indivíduo, e que pode ser desaprendido através de ensinamentos vindos de fora. Esse tipo de concepção acerca do que é ser coletivo tem uma lógica básica: o indivíduo é a unidade básica de ação e direitos que pode escolher ser coletivo ou não, ou será coagido pela coletividade ou por outros indivíduos. Contudo, no caso dos quilombolas de Oriximiná, é possível identificar outras concepções onde ser individual – quer dizer, aquele que age a partir do que é melhor para si mesmo – é uma escolha e não uma condição, e ser coletivo carrega um peso realmente ontológico; nesse sentido, os quilombolas são coletivos, mesmo aqueles que escolheram ser individuais durante a demarcação.12 Na verdade, como mencionado no início do texto, do ponto de vista coletivo os quilombolas que escolheram a individualidade durante a demarcação foram os que tiveram a sua cabeça feita, ou seja, aqueles que agiram como individuais foram coagidos por pessoas de fora a negar a sua coletividade, a ter preconceito contra elas mesmas. Muitos deles, porém, parecem lamentar essa escolha, como se fosse um momento em que eles perderam a consciência de si. Ao mesmo tempo, como vimos na importância dada ao pensamento de cada um, a ênfase na coletividade não diminui a importância da ação de cada pessoa quilombola nesse contexto, pois a coletividade é construída, mantida e protegida Comentário pessoal da Dona Legilda, da Comunidade do Varre Vento para mim, em 2009. pela ação (que inclui o pensamento) e sobreposição dos indivíduos, e, com isso, a coletividade não abre espaço para uma capacidade autoritária. A capacidade autoritária, que os meus interlocutores chamam de ganância, é própria da pessoa que recusa ou despreza a sua coletividade ou é daquele que nasce individual – em outras palavras seria própria ao sujeito unitário do Estado-nação, identificado por Duprat (2002: 42) –, que considera o outro “apenas a partir do ego”, ou seja, que apreende o outro “reflexivamente” por meio de si mesmo. Tomemos o processo de construção do consenso entre os Filhos descrito acima como exemplo. Do ponto de vista jurídico, as decisões tomadas nas assembleias de associações como a ACORQE dependem somente do voto da maioria, refletindo a estrutura das votações das assembleias legislativas nos níveis municipal, estadual e federal. No contexto governamental, sabemos que essas votações dependem de conversas e negociações entre diferentes indivíduos e grupos, mas, em termos ideais, o que confirma uma decisão é a maioria dos votos, composta pelo voto de cada representante dentro da assembleia. Como vimos anteriormente, o que confirma uma decisão nas assembleias dos quilombolas em Oriximiná, em termos ideais, não seria a opinião da maioria, mas o consenso entre todos. O ideal do consenso unânime, da sobreposição de pensamentos, é tão forte nesse contexto que em conversas recentes com os quilombolas sobre a extração de madeira nas terras quilombolas do Erepecuru e Trombetas, a decisão de assinar contratos com empresas madeireiras é criticada por ser tomada de forma apressada e, portanto, por estar baseada na votação pela maioria e não pelo consenso unânime. Assim, a operação de negociações internas toma outro sentido para os quilombolas, não tratando de “politicagens” ou manobras duvidosas nos bastidores por sujeitos gananciosos – atividades que, no contexto das assembleias legislativas do governo brasileiro, têm uma qualidade sombria em contraposição à aparente transparência e clareza da votação que ocorre durante as assembleias – e sim de um processo de reflexão, compartilhamento de informações, sobreposição de opiniões e, portanto, de construção do consenso unânime. O que se enfatiza nesse contexto é o comportamento adequado a um coletivo – envolvendo receber, escutar e responder ao outro – em busca da formação de pontos de conexão (e não de identificação absoluta) e, assim, do consenso. O que gera a desconfiança é aquele que não recebe o outro em sua casa, aquele que ativamente tenta impor determinada opinião ou que se ausenta da coletividade para fazê-lo, como aqueles que se isolam e não participam das reuniões coletivas, ou que não estimulam a formação do consenso unânime e recorrem a um mecanismo externo (como a votação pela maioria) para forçar determinada decisão. Por que esse processo de negociação é pensado de forma tão diferente entre os quilombolas de Oriximiná? A forma com que esse povo define a formação do indivíduo, quer dizer, a formação do pensamento e da ação de cada um, nos ajuda a ampliar essa “comparação tradutiva”, pois nos permite refletir sobre a existência de outros tipos de indivíduos, que não sejam os sujeitos unitários e egocêntricos do Estado-nação, assim como identificado por Duprat (2002). Nesse sentido, é importante compreender o que é a família coletiva no Erepecuru, especificamente no que se refere à formação da criança coletiva e, portanto, da pessoa coletiva. Nesse contexto, como em muitos outros, a vulnerabilidade da criança é enfatizada nos seus primeiros anos de vida, mas nesse caso, essa fragilidade é explicada pelo fato que a criança ainda não tomou ciência de si e que, portanto, ela tem um corpo aberto e não consegue controlar as suas interações com outros. Assim, os seus pais, avós e padrinhos, principalmente, constroem defesas em torno da criança, ao controlar a comida que ela ingere e o espaço que ela habita, até ela poder se conhecer como gente – o que normalmente ocorre em torno dos sete a dez anos de idade, dependendo da criança. Isso não significa que os pais não permitem à criança ser afetada por agências externas, mas que o seu bem-estar e, portanto, a sua formação enquanto pessoa dependem de interações controladas com tais agências. 247 carlos penteado Nesse sentido, para usar um exemplo bem concreto, a boa formação da pessoa, segundo os filhos do Erepecuru, é influenciada por agências externas como, por exemplo, os espíritos responsáveis por cuidar da caça na floresta (chamados de mãe da caça) que interagem com a mãe do corpo da criança (órgão que regula a circulação de sangue no seu corpo, entre outras coisas) através da comida que ela ingere, por intermédio do caçador – normalmente o seu pai, mas muitas vezes também seu padrinho ou tio – e de quem prepara a sua comida (a sua mãe, avó, tia ou madrinha). O intermédio bem-sucedido (e controlado) dos adultos que formam a defesa em torno da criança depende das decisões que eles tomam durante a caça ou o preparo do alimento, que deve levar em conta o fato de que a comida não será ingerida somente pelo sujeito que caça ou que cozinha, mas também pelo sujeito vulnerável que recebe a comida e cujo corpo responderá através do bem-estar ou da doença. Esse controle significa que, entre outras ações, o caçador deve evitar matar uma quantidade muito grande de presas, respeitando a sua interação controlada com a mãe da caça, e que a pessoa que alimenta a criança deve preparar somente comidas que não serão fortes demais para o seu sangue fraco. Esse tipo de interação e intermédio controlado multiplicase em diversas instâncias em torno de cada criança, e cada pessoa que contribui para a sua formação fará esse intermédio de acordo com a sua posição e com o seu dom – aquilo que cada pessoa faz de melhor, em determinado contexto. Isso significa que a formação de uma pessoa coletiva, que se conhece como gente, depende das interações controladas. Esse tipo de interação controlada também deve estar presente em torno de outros tipos de atores vulneráveis – pessoas mais velhas ou adultos adoecidos, mulheres grávidas ou que menstruam, os sacacas (curadores) dos filhos e, muitas vezes, em torno da própria coletividade (a comunidade, família extensa ou casal), que também pode ficar triste, cercada por tudo que é ruim e cheia de brigas. Assim, podemos pensar no consenso coletivo, descrito acima, enquanto elemento equivalente à tranquilidade e o bem-estar da coletividade, prova de que a interação entre os quilombolas está ocorrendo de forma controlada. Podemos pensar, portanto, no consenso e na coletividade, que são formados e mantidos aos poucos e permanentemente no dia a dia, como equivalente à pessoa, formada aos poucos por um conjunto de interações e/ou intermédios controlados. Nesse sentido, também podemos explicitar que a unidade básica sociopolítica nesse contexto não seria nem o indivíduo egocêntrico, nem uma coletividade autoritária, pois tanto o indivíduo quanto a coletividade são o resultado daquilo que denominei, aqui, de ‘interação e/ou intermédio controlado’ – o ato de se dispor a receber e responder (por pensamento ou ação), enquanto também se considera aquele que receberá e responderá em seguida. Portanto, não podemos considerar o indivíduo simplesmente como fruto da coletividade e nem a coletividade como reflexo dos indivíduos, porque o que se avalia é o bem-estar de cada um (coletividade e indivíduo/pessoa); o que se toma como unidade básica é a qualidade (controlada) da relação e não do termo. Proponho, então, que a interação controlada com outros é um elemento constitutivo do processo que forma um consenso coletivo, da sobreposição de pensamentos, assim como ele é constitutivo na formação da pessoa. Entretanto, nesse contexto, isso não implica a aceitação de toda e qualquer opinião externa, atitude que, para os filhos do Erepecuru, envolve em ter a cabeça feita por outros – como vimos no caso daqueles quilombolas que se juntaram aos grandes fazendeiros da região e se opuseram à sua própria coletividade. Considera-se que, em todo tipo de relacionamento – entre corpo e comida, mãe e filho, homem e mulher, e entre diferentes comunidades quilombolas, até a relação entre coletivos e individuais, quilombolas e o Governo Federal –, a negociação entre posições diferentes é constitutiva das pessoas envolvidas, que serão sempre transformadas de forma positiva por tal negociação, em maior e menor grau, desde que essa interação ocorra seguindo certas regras, ou seja, de forma controlada. Podemos detectar esse controle na importância dada à enunciação do pensamento de cada um, nos encontros entre coordenadores e/ou outras lideranças com chefes de 249 família, entre diferentes comunidades, como ocorreu durante a assembleia extraordinária. E esse controle também está presente na postura idealmente ‘diminuída’ das lideranças durante essas ocasiões e na animação que elas geram, controles que permitem a condição de sobreposição, tranquila e alegre entre pensamentos diferentes, em busca de um consenso. Nesse sentido, um consenso coletivo efetivo envolve uma decisão, opinião e/ou posição interiorizada – a partir de sucessivas conversas e negociações –, que cada coletivo pode defender pessoalmente, como parte do seu pensamento singular, sem necessidade de identificação absoluta com ou representação por coordenadores e outras lideranças. A coletividade é constitutivamente construída, assim como o consenso é constitutivamente unânime: sem a construção que ocorre pelo encontro e sobreposição entre o pensamento de cada um, o coletivo não existe e sem a unanimidade visibilizada no final de cada reunião, o consenso também não. EM BUSCA DA CONSULTA Como voltamos ao início e assim chegamos no final? Retomamos alguns passos brevemente. Em primeiro lugar, no início deste artigo, buscou-se argumentar a favor do diálogo direto entre representantes estatais e povos tradicionais, como os quilombolas de Oriximiná, em relação à defesa e à garantia de sua participação nas decisões governamentais que podem afetar o seu modo de vida. Para tanto, o primeiro passo tomado foi enfatizar a importância de levar esses povos a sério enquanto atores políticos e reconhecer as suas lutas permanentes em defesa das suas comunidades. O segundo passo foi sugerir que no seu papel enquanto mediadora dos encontros entre esses povos e governantes, a Constituição Federal – e, especificamente, a sua defesa de um Estado pluriétnico que deveria garantir os direitos desses povos – está em fase de enfraquecimento e ataque. Esse enfraquecimento foi postulado como um dos elementos que contribui para a dificuldade de definir procedimentos participativos importantes como a “consulta livre, prévia e 250 informada”. A partir da descrição de como funciona o movimento entre os filhos do Erepecuru, na conjunção entre assembleias e trocas de pensamentos, estabeleceram-se alguns dos parâmetros relacionais necessários para entender os mecanismos propriamente participativos do processo sociopolítico dos quilombolas de Oriximiná. Aparece, portanto, a importância do processo de construção de consenso, prática que garante o bem-estar coletivo, que está em constante processo de formação, assim como o corpo coletivo. Sucede que essa formação tem sua base em interações controladas de troca, de receber o outro e responder a ele, enquanto se contempla o encadeamento de cada um desses encontros. E, com isso, volto, nessas considerações finais, a refletir sobre a dificuldade em definir a “consulta prévia” e garantir a participação no nosso atual quadro político nacional. A pergunta que acho importante colocar aqui, como modo de finalizar este trabalho, é: por que a efetiva contemplação do outro não aparece como elemento central dos mecanismos sociopolíticos brasileiros? Por que contemplar o outro, escutar os pensamentos dos outros e absorver esses pensamentos – de forma cuidadosa, é claro – quase não faz parte da forma pela qual nos engajamos socialmente e politicamente com outros coletivos? O sujeito egocêntrico levantado por Duprat, em contraposição à pessoa coletiva entre os filhos do Erepecuru, é uma resposta – só conseguimos contemplar o outro a partir de nós mesmos e não a partir do próximo –, mas devemos levar essa resposta adiante. A dificuldade de definir a consulta prévia e a participação dos povos tradicionais e indígenas nos processos políticos nacionais que os afetam está justamente na nossa contemplação deles como sujeitos que agem somente pensando neles mesmos, assim como nós. Os ataques aos direitos constitucionais desses povos estão baseados na ideia de que “eles” são pessoas individuais, como “nós”, enquanto tudo indica que esse não é o caso. A pergunta é saber, portanto, o que muda nos nossos mecanismos sociopolíticos quando podemos pensar no outro como realmente diferente de nós mesmos e, ao mesmo tempo, como alguém que devemos contemplar e, talvez, deixar que nos ilumine? BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Lúcia. Terras Quilombolas em Oriximiná. 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O extrativismo da castanha foi fundamental para o estabelecimento da população quilombola da bacia do rio Trombetas, atual município de Oriximiná, desde o tempo de sua chegada na região no século XIX até os dias de hoje. Como se verá a seguir, tal atividade é constituinte do modo de ser e viver dessa população e é um dos elementos que a faz uma unidade sociológica distinta do entorno. A população remanescente de quilombos da região de Oriximiná está estabelecida, além do rio Trombetas, nos rios Erepecuru e Cuminá e é constituída pelos descendentes de escravos que fugiram das fazendas e das propriedades que exploravam o cacau e a pecuária nas regiões de Óbidos, Santarém, Alenquer e Belém (Andrade, 1995). A formação dos mocambos ou quilombos nessa região é documentada através de uma série de fontes históricas, como registros de viajantes, naturalistas, missionários e documentação administrativa estatal. O conjunto dessas fontes já foi descrito e analisado tendo como questões principais a formação dos mocambos e a história de ocupação territorial da população remanescente em importantes trabalhos nas áreas de História e Antropologia, como na tese de doutorado (1995) e em uma série de artigos posteriores (1999, 2004, 2007, 2009) do historiador Eurípedes Funes; no livro a respeito da escravidão e formação dos quilombos na região, de Acevedo & Castro (1998) e em 1. 2. 254 trabalhos que tratam da história da escravidão na Amazônia e no estado do Pará de forma mais genérica como Salles (1988). Uma peculiaridade muito interessante da história da formação de quilombos na bacia do Rio Trombetas é o fato de que a memória da resistência à escravidão e da formação dos mocambos permanece viva na tradição oral das comunidades remanescentes que ocupam atualmente os rios Trombetas, Cuminá e Erepecuru. Muitas pessoas, especialmente os mais velhos, contam histórias e narrativas sobre este tempo histórico que revelam conhecimentos detalhados sobre a chegada na região e a genealogia dos antepassados, toponímia e sobre as formas de relação existentes com vários segmentos populacionais. As fontes orais e documentais sobre o passado dessa população ressaltam o importante papel do extrativismo da castanha-dopará e outros produtos florestais para a ocupação territorial, para a constituição da organização social interna, para o estabelecimento de relações com outros segmentos populacionais e também para a inserção dessa população na economia regional. Uma hipótese muito interessante levantada pelo historiador Eurípedes Funes (1995, 1999) é a de que o extrativismo, especialmente da castanha-do-pará, foi um fator fundamental para a bem-sucedida resistência e para o estabelecimento da população quilombola na bacia do rio Trombetas. A análise documental do autor, especialmente dos documentos estatais, revela que, conforme estabeleciam parcerias comerciais diretas e indiretas pelo viés do extrativismo, as políticas punitivas contra os mocambeiros ou quilombolas foram se atenuando até desaparecerem. Depois do fim da escravidão e da mudança de parte da população das cachoeiras para a região dos lagos, das águas bravas para as águas mansas, o extrativismo da castanha continuou como uma atividade fundamental que auxiliou a configuração de um modo de viver particular em relação às adjacências. Este ensaio é decorrente de uma pesquisa de doutorado em Antropologia Social em andamento sob o titulo provisório “Extrativismo da castanha e a Natureza entre quilombolas do Alto Trombetas/PA”. A pesquisa está sendo realizada na Universidade Estadual de Campinas e financiada pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo. Os termos locais mais relevantes à descrição proposta no ensaio estão grafados em itálico. Pode-se dizer que desde a formação dos mocambos até os dias de hoje, o extrativismo, especialmente da castanha, é a principal modalidade de intercâmbio comercial entre a população quilombola e segmentos regionais. As atividades extrativistas foram fundamentais para, por um lado, garantir a autonomia econômica da população quilombola no tempo da escravidão e, por outro, foram determinantes para a continuidade da ocupação do mesmo território até os dias de hoje. Com efeito, se tornou um elemento usado nos contextos de negociação com segmentos estatais para a distinção sociológica em relação à população rural e ribeirinha, habitantes da mesma região. Desse modo, além do fato de serem comunidades remanescentes de quilombos, o que lhes garante constitucionalmente o direito às terras tradicionalmente ocupadas, a atividade extrativista, que leva parte da população a se identificar também como “castanheiros”, compõe a produção discursiva enunciada em diversos contextos para justificar, perante os segmentos do Estado Nacional, seus direitos territoriais. No rio Trombetas, a população das comunidades está distribuída nas margens do próprio rio e nas margens dos lagos adjuntos. A região onde está sendo realizada a pesquisa sobre o extrativismo é conhecida localmente como Alto Trombetas e abrange a margem esquerda e direita do rio Trombetas, as áreas de florestas e castanhais, os lagos e igarapés adjacentes que ficam a montante da Mineração Rio do Norte. No Alto Trombetas existem quinze comunidades e o território tradicional da população quilombola dessa região está dividido em cinco terras quilombolas: Boa Vista, Moura, Jamari/Último Quilombo, Alto Trombetas e Cachoeira Porteira. Com exceção de Cachoeira Porteira, realizei pesquisa sobre o extrativismo da castanha em algumas dessas comunidades e lugares com grande incidência de castanhais, como nas margens do lago do Erepecu, onde trabalham pessoas de diversas comunidades. O extrativismo de castanha em Cachoeira Porteira possui algumas diferenças em 3. relação a como ele é praticado nas demais comunidades. Por tais diferenças, e como não realizei pesquisa nesse local, ele não será abordado neste ensaio, embora alguns aspectos que serão destacados sejam comuns em toda região do Alto Trombetas. Com exceção de Cachoeira Porteira, que possui uma configuração habitacional um pouco diferente das demais comunidades, os moradores das comunidades quilombolas do Alto Trombetas habitam as margens dos cursos d’água e praticamente não existem casas em locais de terra firme. Nos espaços de terra firme são realizadas principalmente as atividades agrícolas. Existem duas categorias locais usadas para designar tais ambientes: a beira, referente às margens do rio Trombetas e dos lagos povoados e o centro, que se refere aos locais de terra firme e aos cursos d’água localizados em locais distantes de onde moram as pessoas. As casas estão espalhadas pelas margens do rio e lagos e praticamente não formam aglomerados. Para aquele que não conhece a região, seria muito difícil distinguir o espaço de cada comunidade, já que as casas formam um continuum no curso do rio e margens dos lagos. Em alguns casos, as comunidades recebem os nomes dos lagos onde estão localizadas as casas, como comunidade do Abuí ou comunidade Tapagem. A maior parte do território tradicional dessa população ainda não foi regularizada como terra quilombola e o principal empecilho está relacionado à sua sobreposição a duas unidades de conservação: Reserva Biológica do Rio Trombetas (Rebio Trombetas) e Floresta Nacional de Saraquá-Taquera (Flona Saraquá-Taquera). Além da sobreposição com as unidades de conservação, existe a cerca de trinta anos na área de uso e ocupação quilombola a extração de bauxita em grande escala, realizada pela Mineração Rio do Norte (MRN), a qual possui planos de expansão para um futuro próximo que caso se concretizem, trarão grande impacto sobre uma porção significativa deste território.3 Para maiores informações sobre a atividade minerária no território quilombola consultar o site da Comissão Pró- Índio de São Paulo www.cpisp.org.br e o livro produzido pela mesma ONG intitulado “Terras Quilombolas em Oriximiná: pressões e ameaças” (Andrade, 2011). 255 Aparte os problemas gerados por conflitos territoriais, um desafio importante a ser enfrentado pela população quilombola do Alto Trombetas é pensar e elaborar formas de gestão territorial aliadas à geração de renda. Um dos caminhos para a gestão, o manejo ambientalmente adequado e o incremento de renda é o aprimoramento das atividades extrativistas, especialmente da castanha-do-pará. Atualmente existe uma cooperativa, a Cooperativa do Quilombo, que engloba parte dos habitantes das comunidades e que busca o escoamento e a venda da castanha em maior quantidade sem passar pelo crivo de atravessadores. Também existe para o futuro próximo o plano de construção de uma pequena usina para o beneficiamento do produto, buscando agregar mais valor e, por consequência, gerar uma maior renda para os extrativistas. A COLETA DA CASTANHA A castanheira A castanha-do-pará, seu nome mais conhecido, castanha do Brasil ou castanha da Amazônia (Bertholletia excelsa) é uma árvore nativa da Amazônia de grande porte e longevidade, que se encontra distribuída de forma descontínua em todo bioma amazônico, notadamente em florestas de terra firme. Na taxonomia botânica, a castanheira pertence à família das Lecythidaceae e é a única espécie do gênero Bertholletia. Tanto para a taxonomia botânica, quanto para os extrativistas do Alto Trombetas, a castanheira não possui variedades na espécie, mesmo apresentando diferenças significativas quanto ao comprimento e largura do tronco e do caule, tamanho dos ouriços, tamanho, quantidade e número de castanhas por ouriço, entre outras diferenças. Geralmente, as castanheiras habitam ambientes com alta densidade populacional de sua espécie, lugares que são conhecidos como castanhais. As sementes das castanheiras, as castanhas, são abrigadas em um fruto lenhoso, o ouriço; elas são altamente nutritivas, de agradável sabor e muito 256 apreciadas no mercado internacional e nacional. Sabe-se que são utilizadas por populações indígenas desde os tempos précolombianos e que sua comercialização em grande escala ocorre desde o século XIX (Shepard & Ramirez, 2011). Atualmente, a castanha-do-pará é o mais importante produto florestal não madeireiro comercializado na Amazônia. Na região do Alto Trombetas, as castanheiras ocupam ambas as margens do próprio rio, principalmente nas proximidades das áreas habitadas pelos quilombolas; as margens e entorno dos lagos; as margens e entorno de alguns igarapés e o interior da floresta em lugares distantes dos cursos d’água. A margem esquerda do rio, sobreposta quase que totalmente pela Rebio Trombetas, é onde fica a maior parte da população de castanheiras. Nas águas mansas, região dos lagos, a população de castanheiras está situada principalmente nas margens e no entorno dos lagos e igarapés. Na área de uso e ocupação da comunidade Cachoeira Porteira, localizada a montante da região dos lagos, no trecho de águas bravas do Trombetas, não existem grandes lagos e a população de castanheiras ocupa as margens dos igarapés e também lugares mais distantes dos cursos d’água. Designações dos coletivos de castanheiras Além de castanhal, os extrativistas do Alto Trombetas possuem outros termos para designar coletivos de castanheiras. O mais importante e mais usado é ponta de castanha. Pontas de castanha são porções de terra circunscritas, geralmente de pequena extensão em comparação aos castanhais, que podem ser percorridas em pouco tempo e que são ocupadas quase em sua totalidade por castanheiras. Castanhal é localmente usado para se referir a porções territoriais muito grandes, habitadas em sua maior parte por castanheiras. Normalmente, este termo é usado para se referir a uma população de castanheiras muito grande e de forma vaga ou genérica. Pode-se dizer, por exemplo, que toda a margem esquerda do rio Trombetas, desde a área da mineração até Cachoeira Porteira é um castanhal só... Os castanhais, devido à sua extensão, não são conhecidos em sua totalidade, mas somente algumas porções então designadas pontas de castanha. As pontas de castanha são as unidades espaciais mais importantes na atividade castanheira. Suas características principais são a pequena extensão, limites definidos e o fato de sempre possuírem, desde que freqüentadas por alguém, um nome próprio. É baseado nas pontas de castanha que o conhecimento sobre o ambiente do castanhal se desenvolve no âmbito da atividade extrativista, ou de acordo com a fala de alguns castanheiros, é a partir delas que se desenvolve o entender a respeito dos ambientes de castanhal. Quando um bom castanheiro diz que conhece, ou que entende, a mata de uma ou de um conjunto de pontas de castanha, ele quer dizer que sabe detalhadamente os melhores acessos às castanheiras, tanto por terra quanto por água; a localização de muitas dessas árvores; a qualidade e produtividade delas; os locais mais apropriados para a caça e/ou pesca e para a coleta de espécies vegetais; os tipos de vegetação, composição hidrográfica e relevo; os nomes das pontas de castanha e onde elas “começam ou terminam” em várias direções. As pontas de castanha possuem como limites elementos dos mais diversificados, tais como pequenas cabeceiras, morros, pés de morros, baixas, algumas castanheiras específicas, estradas e caminhos feitos pelas pessoas. De mesmo modo, seus topônimos podem não ser estáveis e seus limites podem ser muito variáveis: castanheiros diferentes que trabalham em uma mesma ponta podem delimitá-la de modo diferente e darem nomes diferentes para ela de acordo com suas experiências particulares atreladas a esses lugares. O entender uma ponta de castanha ou um conjunto delas também perpassa pelos nomes que recebem dos castanheiros. Seus nomes próprios reverberam características ambientais e a presença de espécies animais e vegetais específicas como, por exemplo, ponta da Jararaca ou ponta do Tauari (espécie de árvore); as qualidades e atributos das castanheiras, como ponta Panema (castanheiras 4. ruins de produção) ou Paciência (as castanheiras jogam os frutos somente no fim da safra); as experiências pessoais de um ou de um conjunto de castanheiros, como ponta das mulheres (entorno de onde aconteciam bailes e festas no castanhal durante a safra) ou ponta do Relógio (que dava muita castanha e, por isso, os castanheiros usavam o dinheiro ganho para comprar colares e relógios); os nomes de famílias e de antigos moradores ou coletores, como ponta da Jovita ou do Paulino. Os castanhais que fazem parte do território tradicional dos quilombolas da bacia do rio Trombetas possuem um conjunto de centenas de pontas de castanha, que, por sua vez, através de seus nomes próprios, revelam um enorme aglomerado de histórias, experiências coletivas e subjetivas daqueles que coletaram castanha nesses locais ao longo do tempo: Olha, eles, os antigos, lá davam o nome, vários nomes, sabe? Que até é difícil a gente dizer assim, nome por nome, porque castanhal eles dão muitos nomes; se eles matavam um inambu, eles dizem “olha, essa ponta é do inambu”; se for um mutum, “essa ponta é do mutum”, assim, qualquer encontro que tenha ali, eles dão aquele nome. Isso até que todos são cheios de nomes; só esse lago do Farias aqui, se você ver os nomes que ele tem, são muitos: é Cabeceira do Quati, Tirirical, é assim, Cabeceira da Serra, são vários nomes que eles dão no castanhal. “Seu” Santana, comunidade Tapagem. Para se ter uma ideia da quantidade de lugares nomeados no território das comunidades quilombolas dos rios Trombetas, Erepecuru e Cuminá, acompanhando um experiente castanheiro durante a pesquisa de campo, eu pude percorrer e identificar cerca de trinta pontas de castanha em um espaço que no tempo das antigas colocações era possível trabalhar de cinco a dez famílias e que hoje acolhe mais ou menos o mesmo número de pessoas.4 É um castanhal de pequena extensão se comparado Colocações eram espaços circunscritos onde famílias praticavam o extrativismo da castanha no tempo em que esses eram comandados por supostos proprietários, chamados de patrões. Os patrões controlavam o acesso, os direitos de uso das castanheiras e a comercialização da castanha em grandes extensões do território tradicional dos quilombolas. Maiores detalhes no decorrer do ensaio. 257 carlos penteado com outros castanhais como, por exemplo, os situados nas margens do lago do Erepecu, onde os maiores possuíam capacidade para abrigar, nos tempos dos patrões, mais de vinte famílias, cada qual com sua colocação. É impressionante imaginar a riqueza de histórias, eventos e experiências que se pode vislumbrar pelos nomes das pontas de castanha, em um território que existem centenas de famílias trabalhando no extrativismo e em que uma mesma população coleta castanha há pelo menos três gerações. O conhecimento sobre as castanheiras ocorre tanto em termos coletivos como individuais. Geralmente, os extrativistas possuem um conhecimento detalhado de muitas castanheiras individualmente, pois o extrativismo da castanha de escala comercial é quase sempre realizado de forma seletiva. Tal como as pontas de castanha, as castanheiras possuem nomes ou, como dizem, apelidos, que designam, por exemplo, as características morfológicas dos ouriços e sementes – castanheira quebra terçado (ouriços muito duros de quebrar); o gosto de um castanheiro por determinada árvore – castanheira do Almerindo (nome do castanheiro que gosta de coletar castanha nessa castanheira toda a safra); os atributos e qualidades produtivas da castanheira – castanheira da necessidade (em um momento difícil, com pouco dinheiro e dívidas com regatões, um castanheiro encontrou com ela bamburrada de castanha) – e assim por diante. Um dos requisitos principais para ser um bom castanheiro é o conhecimento detalhado da localização, dos atributos produtivos e das características morfológicas, principalmente dos frutos e sementes, de muitos indivíduos castanheiras. Quando se diz que entende uma população de castanheiras, isso significa que o castanheiro sabe o tamanho e fase da vida das árvores; o formato dos caules; presença ou não de ranhuras no tronco. Como a relação estabelecida com as castanheiras acontece com maior intimidade pela via dos frutos, se dá grande destaque e detalhamento a diversas características dos ouriços e das castanhas como o formato, cor e tamanho; se os ouriços são duros ou moles para quebrar; quantas castanhas existem em cada ouriço; se as castanhas são graúdas ou miúdas; se as castanhas de cada árvore possuem pouco leite ou muito leite; pouco ou muito óleo. Também é comum saber a quantidade aproximada de ouriços que cada castanheira produz anualmente nas safras anteriores: O castanheiro conhece as árvores, ainda tem isso, conhece a mata e as árvores. Cada árvore! Ele chega aqui e já sabe que ali tem uma castanheira. Ele já vai direto nela, quando ele pega lá, ele já sabe que pra ali tem outra, então quando ele enxerga ali, longe, ele já sabe a castanheira que ele vai. Ele conhece as árvores. Uma por uma. Onde a gente trabalha em castanha, a gente conhece as árvores. Sabe qual dá mais, sabe qual dá menos, qual é graúda qual é miúda, quando ele chega lá, diz “parece que essa castanha é meio miúda”, ou então, “essa castanha aqui é dura rapaz, pra quebrar!”, tudo eles sabem. “Seu” Santana, Comunidade Tapagem. Os conhecimentos que incluem os saberes sobre a localização das castanheiras, sobre as características paisagísticas e ambientais das pontas de castanha; sobre os habitats das espécies cinegéticas e de outras espécies vegetais, destinadas à obtenção de alimento e aqueles sobre a morfologia e produtividade de diversos indivíduos castanheiras, são muito valorizados valorizado entre os extrativistas e, como se verá a seguir, possuem um modo de transmissão que enfatiza a restrição. Estes conhecimentos não são repassados a qualquer pessoa e há o desejo pela exclusividade como um dos mecanismos que os constituem. Período da safra e o ciclo das águas No rio Trombetas, o período da safra da castanha se estende, com algumas variações de ano a ano, do mês de janeiro ao mês de maio ou junho. Neste período, castanheiras jogam, como dizem 259 os castanheiros, os ouriços maduros no chão quando são então coletados. Existem variações no que diz respeito ao período de jogar os ouriços. Algumas árvores começam a jogar logo no início da safra e outras somente no final. Segundo os castanheiros, esse fator varia tanto em termos coletivos, de um castanhal ou ponta de castanha para outro, como também de uma árvore para a outra no mesmo lugar. Em parte dos locais de trabalho o acesso é possível em todo o inverno, mas é o nível das águas que regula a possibilidade do transporte da castanha coletada. Assim, muitos castanhais, principalmente aqueles mais distantes da margem dos cursos d’água, são freqüentados desde o início do inverno, mas o transporte do produto é realizado no decorrer da estação, conforme o maior nível das águas. O período da safra da castanha abrange exclusivamente a estação do inverno que se inicia no mês de janeiro e termina no mês de junho. Ela possui temperaturas mais amenas e maior índice de chuvas do que a época do verão. A diferença mais aparente entre as duas estações na paisagem da região é o nível das águas do rio Trombetas, lagos e igarapés adjacentes. No verão, em parte do rio Trombetas e em alguns lagos e igarapés ocorre a formação de belas praias onde se observa a desova de quelônios no alto desta estação. No período do inverno, grande parte da vegetação nas adjacências do rio Trombetas fica inundada formando imensos igapós, como se chamam as florestas alagadas, que passam, com o decorrer do inverno, a serem percorridos com o auxílio de botes ou cascos e rabetas5. Dizem os castanheiros que existem muitos locais no território quilombola em que a castanha estraga, pois nesses locais as árvores estão situadas muito distantes das águas, mesmo no período do inverno. Sendo assim, se torna difícil o acesso para coletar e, principalmente, escoar a castanha desses locais. No rio Erepecuru, onde se situam diversas comunidades quilombolas extrativistas com relações de parentesco e afinidade com aquelas do rio Trombetas, muitos castanhais estão distantes do acesso fluvial. Nesses casos, o transporte é feito por estradas, em caminhonetes e mulas até o acesso fluvial. Na região do Alto Trombetas, o escoamento da castanha do interior da floresta até o acesso fluvial é realizado em paneiros, cestas trançadas com capacidade de carga variada, que são carregados pelos próprios extrativistas. Posteriormente, o escoamento por via fluvial é feito através de cascos ou botes até os locais de moradia, os acampamentos sazonais ou até os locais de venda. A coleta da castanha-do-pará tem uma relação íntima com o ciclo das águas, pois nessa região ela depende fundamentalmente da possibilidade de acesso e de escoamento do produto pela via fluvial. O acesso a áreas distantes dos lugares de moradia depende estritamente do nível das águas. Geralmente, são lugares localizados próximos aos igarapés adjacentes do rio Trombetas e dos lagos em todo o território dos quilombolas. A maior parte das cabeceiras e furos6 dos lagos, e também dos igarapés, somente se torna navegável por cascos e rabetas na metade ou no fim da estação das cheias. É, então, somente nesse período que a empreitada da coleta da castanha é realizada em parte dos castanhais e pontas de castanha. 5. 6. 260 O regime das águas orienta também a sequência dos lugares de coleta da castanha. De modo geral, é nos castanhais e pontas de castanhal localizados nas margens do rio Trombetas e lagos como o do Abuí, Tapagem, Erepecu, onde se situam as comunidades quilombolas, que ocorre a primeira etapa do trabalho de coleta. Posteriormente, ou, em alguns casos, de forma concomitante, são freqüentados os lagos e igarapés mais próximos aos locais de moradia permanente, como o lago do Jacaré, próximo das comunidades Tapagem e Abuí; Lago da Tapaginha, próximo da comunidade do Abuí; Lago do Farias, próximo da comunidade Botes ou cascos são embarcações de pequeno porte que são conduzidos a remo ou com o auxílio de pequenos motores à gasolina chamados de rabetas. Furos são canais que se formam nas adjacências de lagos e igarapés no período das cheias que servem de atalhos para a navegação. Tapagem, entre outros. Quando, finalmente, o rio Trombetas, alguns lagos com suas cabeceiras e furos e os igarapés estão com vazão de água suficiente para o transporte por cascos ou botes, serão então acessados os castanhais e pontas de castanha situadas nos centros mais distantes. Centro, como já salientado, é um termo local usada para denotar lugares distantes das margens do rio Trombetas e dos lagos habitados e mais conhecidos. Por isso, embora possa ser mais lucrativa àqueles que se dispõem a ir a tais lugares, tal empreitada é sempre considerada arriscada. Modalidades de coleta da castanha Entre os quilombolas do Alto Trombetas existem três modalidades de trabalho de coleta: a coleta nos arredores dos locais de habitação permanente; a coleta nos acampamentos sazonais e a coleta realizada no empreendimento conhecido como jornada. É necessário dizer de antemão que tais modalidades não se exprimem necessariamente em categorias explícitas, mas são claramente diferenciadas entre si no que diz respeito ao espaço em que são realizadas, tempo de permanência no local de trabalho, tipo de organização, número de pessoas envolvidas e atividades paralelas desenvolvidas. Tais diferenças são enunciadas e também podem ser observadas por alguém de fora que acompanhe e pesquise sobre o assunto. As três modalidades de trabalho podem ser realizadas de forma concomitante por pessoas e famílias durante parte significativa da safra da castanha. Contudo, a execução de todas elas durante uma única safra não depende exclusivamente da condição, disposição e vontade dos extrativistas, mas também das cheias de inverno. Com efeito, quando tais modalidades de trabalho são executadas em uma única safra por uma mesma pessoa ou família, são geralmente em períodos distintos. É também bastante comum que pessoas e famílias executem determinado tipo de coleta em determinada safra e na safra posterior realizem outra(s) modalidade(s) de trabalho. São vários os fatores que influenciam sobre qual modalidade será empreendida em determinada safra como, por exemplo, a qualidade da safra da castanha; o dinheiro disponível para investimento inicial na compra de combustível, alimentação e material de trabalho; a disponibilidade de membros da família para deslocamentos e a ausência nas atividades paralelas que exigem maior permanência nas comunidades, como a reforma de casas e embarcações, trabalhos de representação política e no âmbito escolar. A coleta de castanha nos arredores das comunidades é realizada nos castanhais e pontas de castanha localizados na beira do rio Trombetas, igarapés e, principalmente, nos lagos habitados ou naqueles próximos das comunidades em que cada indivíduo ou família estejam morando. A característica mais importante dessa modalidade é que é realizada em lugares que se pode ir e voltar em um mesmo dia para casa. Também, diferentemente das outras duas, pode ser realizada em dias intercalados ou somente em alguns dias da semana por pelo menos um membro da família. A coleta de castanha realizada em acampamentos sazonais é uma modalidade muito influente entre os quilombolas do Alto Trombetas. Durante o período da safra da castanha-do-pará, de janeiro a maio de cada ano, muitos castanheiros acompanhados ou não da família estabelecem acampamentos, ou barracos, como dizem localmente, nas margens dos lagos adjacentes ao rio Trombetas, como o Erepecu, Farias, Jacaré, Murta e também em alguns igarapés conectados com esses e outros lagos. Atualmente, a maior parte desses locais está no perímetro da Reserva Biológica do Rio Trombetas e são, na maior parte dos casos, locais não habitados ou parcialmente habitados, como é o caso do lago do Erepecu. Nos castanhais pertencentes à Rebio Trombetas, existem regras especiais para a coleta da castanha-do-pará, principalmente no que diz respeito ao manejo da fauna e flora. A Rebio fica aberta aos castanheiros dos meses de janeiro a maio para a coleta da castanha. Para coletar, deve-se fazer um cadastramento prévio onde se recebe um documento chamado de papeleta. Ela contém informações como nome do castanheiro, comunidade onde 261 mora, castanhal onde se está trabalhando, número de caixas de castanha coletadas, nomes dos compradores da castanha etc. É obrigatório circular com a documentação de identificação que deve sempre ser apresentada na entrada e saída da Rebio. A pesca é somente permitida com redes e anzóis com medidas previamente acordadas e é, sobretudo, direcionada a espécies mais abundantes e de pequeno porte. A caça e o porte de armas de fogo não são permitidos na área da Rebio. Nessa modalidade de trabalho, a coleta da castanha é realizada diariamente tanto pela manhã quanto no período da tarde, com exceção dos dias de domingo, considerados dias santos. Os acampamentos são compostos por famílias nucleares ou, quando os castanheiros não levam a família, por grupos de homens parceiros, aparentados ou não entre si. Como se estabelece uma espécie de ocupação semi permanente, essa modalidade de coleta exige certo investimento prévio em combustível para embarcações (barco a motor ou rabeta) e em itens básicos de consumo como café, açúcar, arroz, farinha, entre outros. A farinha, base da alimentação local, somente é comprada caso a família ou castanheiro e parceiros não tenham uma roça produtiva no período da safra. Por se tratar de um trabalho diário, exclusivo, que envolve um número grande de pessoas (toda a família ou um grupo de parceiros) e, como acontece em lugares menos freqüentados do que os arredores das comunidades, a possibilidade de conseguir uma grande quantidade de castanha é muito maior do que naquela em que se trabalha próximo aos locais de moradia. A terceira e última modalidade de trabalho com a castanhado-pará é denominada localmente de jornada. Jornada é um empreendimento de curta duração, geralmente entre dez a quinze dias, em que se vai à busca da castanha em lugares distantes e de difícil acesso. Esses locais geralmente são distantes do rio Trombetas e dos lagos mais conhecidos e habitados. O destino das jornadas e a via de acesso para os castanhais e pontas de castanha são os igarapés. Geralmente, o período em que se costuma realizar esta empreitada se dá no mês de abril, na segunda metade da estação do inverno, quando o nível das águas 262 dos lagos, cabeceiras, furos e dos próprios igarapés está mais alto. O trânsito é sempre realizado com embarcações pequenas e com o uso do remo, pois é necessário atravessar longos trechos de floresta alagada de pouca profundidade e com grande quantidade de troncos e raízes submersas. A jornada é a busca por lugares em que existe pouca ou nenhuma concorrência, ou seja, onde a castanha ainda não foi coletada na safra vigente. Na maior parte dos casos, os locais onde se realizam as jornadas são lugares não conhecidos por todos de determinada comunidade, o que torna possível tentar averiguar de antemão se ele foi frequentado em determinada safra por alguém antes de organizar a viagem. Ela não conta com a presença de mulheres e crianças. Nessa empreitada, vão somente os homens, em grupos de três a doze pessoas, com o menor peso e utensílios possíveis, já que o acesso aos lugares é difícil e porque se tenta sempre trazer toda a castanha coletada em uma única viagem. Os barracos são feitos geralmente com cobertura de lona ou palha e são bem pequenos, feitos somente para comportar a rede e a comida. Os únicos componentes do rancho da jornada são o café, açúcar e a farinha. Etapas da coleta da castanha A coleta da castanha-do-pará é feita em etapas constituídas por diferentes técnicas e modos de relação com o ambiente: a observação das copas das castanheiras; a coleta dos ouriços na floresta; a quebra dos ouriços e retirada das castanhas; o vasculho, que é o de coleta, realizado no fim da safra, o transporte da castanha, já fora dos ouriços e. por fim, a comercialização. Cada etapa traz técnicas corporais diferenciadas e também modos de uso específicos das ferramentas e apetrechos de trabalho. Cada etapa acontece, na maior parte dos casos, de acordo com os diferentes estágios da safra da castanha e com os períodos distintos da estação do inverno e do ciclo das águas. Em todas as etapas do trabalho de coleta da castanha é fundamental a observação das copas das castanheiras para a tentativa de visualizar flores, bilros, como são chamados os ouriços em estágio inicial de desenvolvimento e ouriços maduros. Todavia, antes do início do trabalho de coleta, no início da safra de castanha ocorre a observação minuciosa da copa das árvores em busca dos ouriços já maduros. Este trabalho é considerado muito importante, principalmente para o planejamento do trabalho de coleta durante toda a safra. O trabalho de observação ocorre geralmente em todos os lugares onde um castanheiro vai trabalhar durante a safra. É uma atividade realizada primordialmente nos castanhais onde se estabelecem a maior parte dos acampamentos sazonais, porque naqueles localizados no entorno das comunidades, onde as castanheiras estão mais próximas aos locais de habitação permanente, isso pode ser feito no decorrer do ano. Além de ser distante dos locais de habitação permanente, esses castanhais recebem restrições de acesso fora do período da safra porque a Rebio Trombetas se sobrepõe à grande parte deles. Estes fatores tornam a atividade de observação realizada no início da safra muito importante, porque os castanheiros, não tendo acesso à grande parte destes castanhais ao longo do ano, não têm como estimar com precisão a produtividade que pode ser atingida na coleta a ser realizada no decorrer da safra. Observar a copa das castanheiras serve tanto para averiguar as castanheiras que possuem ouriços já maduros a serem coletados, como também para fazer previsões da safra do ano seguinte, pois é a presença de flores e bilros que dão informações sobre a produtividade futura das castanheiras. A coleta dos ouriços no chão das florestas é a etapa mais longa da safra e acontece quando a maior parte das castanheiras está jogando os ouriços. Nessa etapa, os castanheiros os juntam e depois os amontoam em pontos estratégicos para a quebra e o transporte posterior. Ela acontece já no início da safra nos locais de fácil acesso e quando o nível de águas de lagos, 7. cabeceiras e igarapés permite que se alcance certos castanhais e pontas de castanha. No período da safra de castanha, os meses de fevereiro e março são considerados o tempo da força da castanha, quando a maior parte das castanheiras joga seus ouriços maduros no chão. Nesses dois meses, a etapa de juntar e amontoar ouriços maduros acontece de forma mais intensa, embora ela se inicie por volta de janeiro e possa se estender até meados de junho, depois do fim da safra. Os apetrechos e ferramentas usados pelos castanheiros são: o terçado para catar os ouriços do chão e cortar galhos, ramas e cipós que atrapalham o trânsito fluvial e o caminhar pela floresta; a bota de borracha para caminhar na mata, transitar nos locais alagados e evitar os acidentes com cobras venenosas; o paneiro para transportar e amontoar os ouriços em pontos estratégicos e depois transportar a castanha; a espingarda (fora do perímetro da Rebio Trombetas) para caçar e se proteger do ataque de animais ameaçadores e perigosos classificados na taxonomia local como “feras”7. Após o término da coleta, segue-se a etapa do quebrar os ouriços, retirar e transportar a castanha para o barraco, para casa ou diretamente para o local onde será comercializada. O trabalho de quebrar é realizado em concomitância ou posteriormente à coleta, conforme a modalidade de trabalho e também de acordo com a necessidade de se obter dinheiro ou mercadorias. Quebrar a castanha consiste em golpear os ouriços com o terçado, rachando-os para retirar a castanha de seu interior. Cada ouriço, dependendo da árvore que o gerou, pode conter de 12 a 25 castanhas. O tamanho das castanhas e a quantidade podem variar de ouriço para ouriço dependendo da árvore de onde ele veio. Terminada a etapa do quebrar ou quando a safra está próxima do fim, no caso do trabalho nos acampamentos sazonais, segue-se a Categoria taxonômica local que abrange animais ameaçadores aos humanos, como as cobras venenosas, a jiboia, a sucuri e os felinos, especialmente, a onça-pintada. 263 última etapa de trabalho, denominada localmente de vasculho. Vasculho é o trabalho de coleta feito no final da safra, em lugares de acesso mais difícil ou fora de mão dos lugares onde o castanheiro trabalhou durante a safra. O trabalho de vasculho pode ser realizado buscando apenas algumas castanheiras específicas ou ir a pontas de castanha, geralmente de pequeno porte. A característica principal do vasculho é que a coleta é realizada em pequena quantidade; se a safra é boa, o resultado dessa coleta não é a comercialização, mas a castanha pra comer durante o ano. Caso seja um ano de safra ruim, o vasculho adquire importância maior e é realizado com mais assiduidade e com fins estritamente comerciais. A comercialização da castanha-do-pará é um dos principais elementos da atividade extrativista. Atualmente, a maior parte da castanha coletada na região é vendida para atravessadores, os regatões, também chamados atualmente pelos castanheiros de patrões, que depois repassam a castanha para indústrias de beneficiamento em Oriximiná e Óbidos. Os regatões, em grande parte dos casos, financiam o castanheiro no início da safra em troca da fidelidade da compra de mercadorias e venda da castanha. Esse modo de relação é comum em toda a economia extrativista e recebe o nome de aviamento8. Existe também a Cooperativa do Quilombo, fundada há poucos anos, que ainda não escoa parte significativa da produção e não possui adesão da maioria dos extrativistas. Os regatões, que atualmente são pessoas tanto de dentro quanto de fora das comunidades, são fundamentais e consideradas pelos castanheiros como inseparáveis e indispensáveis para a existência da atividade extrativista. Além de ser um elemento constituinte e fundamental, a comercialização da castanha desempenha um papel central para o entendimento da importância política e econômica da atividade extrativista entre os quilombolas do rio Trombetas, bem como para entender a relação dos extrativistas com a castanha. Nessa etapa, 8 264 a castanha coletada é nomeada produto, passa a estar inserida no mundo do mercado, surgindo então, uma relação de natureza diversa da estabelecida nas etapas anteriores do trabalho com as pontas de castanha e as castanheiras. Usufruto e conhecimentos sobre castanheiras e castanhais Entre os quilombolas do rio Trombetas, todas as castanheiras presentes em seu território tradicional são de usufruto coletivo, excetuando o tempo em que os castanhais eram controlados por proprietários particulares, período que abrange o início até os anos 1970 e 1980 do século XX; e o tempo em que as atividades extrativistas foram proibidas com a implantação da Rebio Trombetas nos anos 1970. Um dos recursos mais usados pelos anciões para explicar a história dos direitos de uso das castanheiras e sua importância para o modo de vida das pessoas é contar narrativas sobre o regime de trabalho das colocações, controladas pelos “donos” dos castanhais chamados localmente de patrões. Esse regime foi vigente na região em boa parte do século XX, da primeira metade até os anos 1970 e 1980 aproximadamente. Neste período, as áreas de castanhais foram expropriadas dos quilombolas e transformadas em propriedades particulares voltadas ao extrativismo comercial da castanha. Os quilombolas, sem acesso a dinheiro e a mercadorias, foram trabalhar no ramo extrativista para tais proprietários em regime de aviamento. A relação de trabalho com os patrões tinha como principal característica a obrigação por parte do extrativista de trabalhar em espaços circunscritos, as colocações, e a obrigatoriedade da venda da castanha coletada e da compra de mercadorias nos barracões, dirigidos pelos mesmos, por valores muito assimétricos. A assimetria entre o valor da castanha coletada e Aviamento é um sistema de crédito que configura relações hierárquicas entre financiador e financiado muito comum a toda economia extrativista na Amazônia. Para maiores detalhes ver Weinstein (1993), Almeida (1993) entre outros. carlos penteado o preço das mercadorias impulsionava a criação de vínculos e obrigações de castanheiros para com os patrões pelo permanente endividamento. Embora se tenha um conhecimento significativo no âmbito acadêmico a respeito da formação e estabelecimento das populações negras no rio Trombetas, fornecidas por fontes documentais do século XIX e início do XX, pouco se sabe, no entanto, a respeito da vida dos quilombolas no período em que os castanhais eram comandados pelos patrões. Um dos trabalhos que aborda este período na região é o de Acevedo & Castro (1998) que apresenta um panorama desse período histórico por via de fontes documentais, sem, contudo, explorar de forma sistemática a memória da tradição oral. Ao conversar com os anciões sobre o extrativismo neste período, além de salientarem a assimetria das relações entre castanheiros e os patrões, muitos mencionam o trabalho nas colocações como mais organizado, mais seguro e mais rentável do que o atual9. Esta é uma questão muito interessante e que deve ser tratada em maior detalhe em outra ocasião. Mesmo destacando elementos da relação com os patrões que não abordam sua assimetria, o fim do tempo das colocações é de modo geral entendido como um movimento de emancipação política e que impulsionou a resistência e a luta pelos direitos territoriais nas décadas posteriores. Outro conjunto de narrativas recorrente quando se fala dos direitos de uso das castanheiras é sobre a história de formação da Rebio Trombetas e sobre os conflitos passados e atuais com seus gestores. Embora tenha sido realizado em alguns lugares e por algum tempo de forma clandestina, o extrativismo da castanha-dopará na área da Rebio Trombetas, unidade de conservação de proteção integral, é atualmente permitido, mas, no entanto, possui um prazo pré-definido pelo órgão gestor da unidade, 9. 266 o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e está sujeito a normas e regras estabelecidas por este instituto. O controle do usufruto da área da reserva, incluindo o das castanheiras, é sempre envolto em conflitos, pois envolve as lembranças da expropriação territorial sofrida com a implantação da Reserva, que aconteceu sem consentimento e sem discussão prévia nos anos 1970, ainda nos tempos do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), órgão estatal federal que era um dos responsáveis pela gestão ambiental da bacia do rio Trombetas antes da criação do Ibama. Obviamente, por ser parte do espaço de uso e ocupação atual e por ter sido expropriado de forma violenta e sem consentimento, parte dos quilombolas entende que a área da Rebio Trombetas compõe seu território tradicional e que seu espaço deve ser regularizado e integrado ao conjunto de terras quilombolas dos rios Trombetas, Erepecuru e Cuminá. Atualmente, com a possibilidade de praticar o extrativismo “de forma legal”, surgida por recentes acordos com o ICMBio, os quilombolas estão gradativamente retomando o controle sobre os direitos de uso dos castanhais e suas formas particulares de direitos de uso territorial estão ressurgindo no espaço ocupado por esta unidade de conservação. Gradativamente, a terra e as castanheiras existentes na Rebio Trombetas estão voltando a serem geridas, pelo menos em parte, pelo o que os quilombolas entendem como “coletivo”. “Coletivo”, de acordo com sua conotação local, engloba todos aqueles que nasceram ou possuem pai e/ou mãe, biológicos ou de criação, nascidos ou moradores de alguma comunidade ou porção do território quilombola não habitado atualmente que se tornou parte da Rebio Trombetas. Engloba também pessoas de fora que se casaram e tiveram filhos com alguém com as prerrogativas descritas acima. As pessoas de fora permanecem com direto de Esse aspecto talvez esteja relacionado aos mecanismos, tanto àqueles inerentes a própria relação criada no regime de aviamento, quanto aos que foram criados pelos próprios extrativistas, que atenuavam a assimetria existente nas relações com os patrões, como destaca Almeida (1993) sobre a economia seringalista e o sistema de aviamento no Acre. estabelecer moradia e uso da terra enquanto estiverem casadas com algum habitante das comunidades. Em caso de separação no casamento, é necessário negociar com as pessoas do local onde se mora ou de outras comunidades para poder permanecer no território tradicional. No âmbito da organização social interna desta população no Alto Trombetas, existem restrições quanto ao uso e acesso da terra conforme a intensidade da intervenção humana realizada. Casas, quintais, roças e pastagens tendem a ser de uso restrito de famílias extensas e/ou nucleares. Com relação às áreas de florestas, igapós, lagos e igarapés, em que ocorre a intervenção e manejo humano em menor escala, o uso fruto é considerado coletivo. Isso significa que em tese qualquer pessoa com as prerrogativas para integrar o que se entende por coletivo pode realizar a caça, pesca e coleta, em qualquer lugar no espaço correspondente ao território tradicional quilombola. O que ocorre na prática, no entanto, é que, embora não haja restrições formais de manejo e uso, cada pessoa, família nuclear e família extensa usam, de acordo com determinados critérios, fragmentos específicos do espaço territorial. O elemento norteador que restringe, ou melhor, fragmenta o manejo do espaço, configurando uma lógica local de uso e ocupação das áreas florestais e das águas, é o conhecimento que pessoas e famílias possuem advindo de relações de longa duração com os lugares onde moram, trabalham e circulam. A coleta da castanha está inserida nesta lógica, pois, como sempre enfatizam os castanheiros, somente se coleta castanha em lugares que se entende a mata e/ou com quem entende. O entender é o que dá sentido a como funcionam os direitos de uso de certas porções territoriais, como também especificamente dos castanhais. O entender é necessariamente fragmentário e funciona de acordo com as histórias e experiências de pessoas e famílias. Ele é desenvolvido pelo convívio e a experiência pelo viés da prática da caça, da pesca ou da coleta em determinados lugares. O entender uma mata ou um lugar é permeado por diversos fatores, tais como o local de origem e de nascimento da pessoa e de seus antepassados, a distância geográfica de áreas e florestas e águas dos lugares de habitação permanente, o estabelecimento de parcerias ao longo da vida, a capacidade individual de explorar novos lugares e, por fim, por predileções espirituais. Ele cria muitas vezes vínculos que extrapolam a duração da vida dos pioneiros que encontraram e passaram a frequentar determinados lugares. Geralmente, o entender perdura por gerações e está sempre se renovando de acordo com as novas experiências das pessoas com tais lugares. Algo importante a dizer é que ele precisa estar sempre se renovando, tanto em termos individuais, coletivos, como também geracionais, pois como dizem os castanheiros: “o mato está sempre mudando”. Como já salientado, no caso da atividade castanheira, entender significa, além de saber sobre a disposição, distribuição e produtividade das castanheiras, ter conhecimento de outros aspectos do castanhal ou ponta de castanha, como as configurações paisagísticas que envolvem relevo, hidrografia e vegetação; as histórias dos antepassados que frequentaram tais lugares; os melhores caminhos e atalhos; os locais favoráveis para a caça, para a pesca, para coleta de frutos, para constituição dos acampamentos. Decerto, é muito difícil um castanheiro, uma família de castanheiros ou um grupo de parceiros estabelecerem acampamento sazonal ou irem para uma jornada em um local que ninguém tenha frequentado anteriormente, mesmo que de modo superficial. Tendo em vista os direitos de uso das castanheiras vigentes entre os quilombolas, o que garante alguma exclusividade de uso é, sem dúvida, a transmissão restrita de conhecimentos a este respeito. O conhecimento que constitui a prática extrativista, por ter em sua constituição o desejo da exclusividade é, portanto, somente transmitido em contextos e relações sociais muito específicos. Por desejar a ausência de concorrência, todo bom castanheiro prefere trabalhar solitariamente ou, no 267 máximo, com a companhia da esposa e dos filhos, como salienta o depoimento a seguir: (...) esse negócio de não levar em castanheira, a gente chama pra isso, reservado. Isso veio desde o princípio. Veio, até os velhos que… e eles que tinham mesmo isso. É costume mesmo deles, olha eu tenho certeza que tem nego aí que já morreu, que eu conheci, que tem castanheira que nunca mostrou pra ninguém, nunca na vida! Tem uns que ainda mostram pra filho, mostravam. Desses agora que sabem, mas tinha deles, que não, não mostrava mesmo, de jeito nenhum! Onde ele ia numa castanheira, “já terminou a castanha”,“já, está no vasculho, agora eu vou lá no meu reservado”; às vezes ele falava pra mulher, “olha, eu vou pra tal lugar”, às vezes, nem pra mulher. E já chegava com o paneiro cheio de castanha: “andando por aí, achei uma castanheira em tal lugar”, não, ele já sabia daquela castanheira há muitos anos, deixou cair tudo pra ir lá buscar. Mas isso rolava muito entre os antigos… “Seu” Edilson, comunidade do Abuí. A maneira mais eficaz e mais radical de se impedir a concorrência é dificultar que outras pessoas conheçam e tenham acesso aos locais em que se trabalha. Quando muita gente passa a frequentar um lugar antes conhecido por poucas pessoas, se costuma dizer que “estragaram o lugar” ou “o lugar está estragado”. Este tipo de afirmação é bastante comum na região para se referir a diversos lugares pouco conhecidos há alguns anos ou décadas e que foram “popularizados”: É o seguinte, se, por exemplo, eu levo o Edilson este ano lá, aí no outro ano, que o Edilson já sabe, ele não vai me esperar e já vai levar outro, aí no outro ano que vier, aí ele não vai esperar o Edilson e vai levar esse aqui, aí no outro ano que vem esse aqui já não vai esperar e vai levar outro, assim que está lá… Está uma bagunça que… Eliézio, comunidade do Abuí. 268 Aí fica bagunçado… Nesse sentido, que o parceiro está falando. Sendo só um ou dois que sabem, que conheça, aí, vamos supor, se os outros não soubessem, quando ele fosse daqui, ele ia lá e a castanha estava lá. “Seu” Almerindo, comunidade Moura. Para evitar que outros acessem alguns de seus pontos de trabalho, os extrativistas do Alto Trombetas desenvolveram diversas tecnologias e modos de circular pelos lugares que procuram não deixar vestígios e pistas a outros castanheiros. O caminhar e o navegar devem ser sempre sutis: sem fazer muita zoada, cortando somente os galhos e o mato que realmente atrapalham a passagem, o que implica no uso moderado do terçado. Esse procedimento, como implica em andar pela vegetação densa, requer corpos atentos com os espinhos, formigas e insetos que picam, como as temidas abelhas com ferrão, as cabas. Quando se transita pelos igapós e igarapés pouco frequentados, costuma-se navegar com cascos e botes pequenos e instáveis pelo meio da vegetação submersa. O caminhar também requer passos calculados; a velocidade da caminhada não aparenta ser o mais relevante. Mais importante é evitar quebrar galhos e alterar menos possível o entorno. Esse conjunto de procedimentos também define o modo de relação com o ambiente; nunca se faz trilhas ou caminhos marcados nos castanhais para se chegar a castanheiras específicas e nem nas passagens nos igapós e igarapés. Aparentemente, no caso do caminhar, com a ausência de trilhas demarcadas, são as castanheiras que ditam o rumo da caminhada, e a ordem das castanheiras que serão visitadas pode ser diferente quando se caminha e se coleta no mesmo lugar mais de uma vez na safra. Essa característica dificulta a locomoção daqueles que não conhecem e não possuem intimidade com os lugares em questão: Seja pra onde a gente conhece, mas aonde mais ou menos a gente calcula que a gente dá conta de andar, nós não fazemos caminho. E onde esse pessoal que vem de fora anda, ali perto do lago onde eu morava, tem um senhor que não é dali; você tinha gosto de andar na estrada dele. Tanto faz se em terra, como na água, sua canoa não esbarrava tanto no mato, só naqueles paus mesmo que tinha que esbarrar, mas era tudo limpo. Cabeceiras fundas assim, grandes; ele fazia as estradas, ele era o castanheiro lá. Eu ia no fim dela tranquilo. E nós daqui do Trombetas já não temos esse costume. “Seu” Edilson, comunidade do Abuí. No contexto do extrativismo onde imperam tais técnicas, tecnologias e modos de relação com o ambiente, além dos conhecimentos sobre as castanheiras e sobre outros seres vivos que lá habitam, se dá muito valor, quando se fala em entender a mata, à capacidade de se orientar com perspicácia sem caminhos delimitados, de se locomover por atalhos e chegar de forma rápida e sem muito trabalho onde se necessita. O sistema de orientação que utilizam para circular nesses lugares sem o auxilio de caminhos ou trilhas delimitados é composto por elementos muito diversificados e que em alguns casos se apresentam sobrepostos entre si, como por exemplo: os contrastes paisagísticos – morros, enseadas, várzeas, igapós, pés de serra, as baixas; os poucos caminhos ou estradas que dão acesso para algumas pontas de castanha; algumas castanheiras específicas e outras árvores, geralmente fruteiras de grande magnitude; as cabeceiras de lagos e igarapés: São as árvores, as pontas de terras, as bocas de cabeceiras; quantas cabeceiras a gente passa pra chegar no ponto que a gente quer, quantas pontas a gente passa pra chegar naquele lugar que a gente quer; inclusive, pra ali por onde nós vamos com o E., acontece isso com nós. Tem vezes que erramos, “mas nós passamos tantas cabeceiras, tantas pontas, a ponta tal, nós ainda não passamos, está pra frente…”, é assim que nós fazemos. Boca de cabeceira é o que a gente mais usa, vamos conferindo as bocas das cabeceiras. Pelas enseadas, que a gente chama curva, vai conferindo e aí quando, por exemplo, passam três, quatro, “olha rapaz, já passamos as três pontas ou as três enseadas, já está próximo de onde a gente tem que chegar”; porque nós não temos costume, como o pessoal aí de fora que vem pra cá, pra esses nossos matos, eles têm o costume de cortar mato, fazer o caminho deles. “Seu” Edilson, comunidade do Abuí. Esses conhecimentos relacionados ao extrativismo, além de configurarem um modo específico e peculiar de relação com o ambiente, acabam por constituir também o modo de vida dessa população e suas formas particulares de uso e ocupação territorial de modo geral. Desde que chegaram ao rio Trombetas, os quilombolas estabeleceram uma convivência de natureza não predatória com as castanheiras e com seus ambientes e fazem da relação com elas um dos aspectos importantes de seu modo de viver. As castanheiras nunca são derrubadas e não há qualquer tipo de controle ou seleção visando maior produtividade ou salientar alguma característica específica, tal como acontece com os vegetais cultivados. Decerto, tais atitudes moldaram uma relação de boa convivência que perdura há mais de duzentos anos e que nos últimos anos tem sido ameaçada pelos empreendimentos hidrelétricos, madeireiros e minerários que vêm assolando a região da bacia do Trombetas. Por ser de baixo impacto, o extrativismo da castanha, sem dúvida, contribuiu e contribui de modo fundamental para a preservação ambiental do território quilombola. O conjunto de histórias, práticas e conhecimentos que compõem o extrativismo da castanha, brevemente descritos neste ensaio, reiteram a intimidade e os vínculos de longa duração dos quilombolas com este território, já há muito evidenciado pelas fontes orais e documentais. Isto não deixa dúvida de que os órgãos estatais devem atuar como parceiros e ajudá-los a terem seus direitos territoriais resguardados, assim como também proteger o ambiente e contribuir para a manutenção do modo de vida dessa população. O entender as castanheiras, animais, matas, lagos e 269 carlos penteado igarapés é algo constituinte do modo de ser, conhecer e viver dos quilombolas do Alto Trombetas, como bem explica as belas palavras de “Seu” Tinga da comunidade Mãe Cué, com as quais encerro este ensaio: Então a vida do negro – do branco ele descobre coisas pelos estudos, o negro descobre coisas pela natureza; andando, trabalhando, igual a causa da onça, da cobra grande, da visagem; o que é a visagem? Ele diz, é uma visão da natureza. A natureza, ela fala, ela grita, é a natureza. A terra ela grita, ela espoca, ela quebra; tudo através da natureza. No caso, a madeira: a madeira quando ela esbarra uma pra outra, quando vão conversar, ela grita “ahhhhhhh”, aquilo lá é uma alegria dela, sei lá, uma conversa dela, ela tem que esbarrar em um galho com outro; estão se comunicando. E fora disso, estão cantando, se divertindo através da própria, olha como elas estão ali agora, mas espia só como elas estão, estão cantando, olha! E aí? Olha aí como elas estão, olha as folhas delas como estão; sorrindo, porque, dá o vento nela e aí ela se alegra; se não dá o vento nela, ela fica triste ali olhando, igual a nós, quando estamos com fome. Quando estamos com fome, nós não temos prazer, quando a gente enche a barriga, dá pra conversar, dá pra brincar!!! BIBLIOGRAFIA ACEVEDO, Rosa & CASTRO, Edna. Negros de Trombetas: guardiães de matas e rios. 2ª ed. Belém: Cejup/UFPANAEA, 1998. ALMEIDA, Mauro.W. B. Rubber Tappers of the Upper Jurua River Brazil: The Making of a Forest Peasantry Economy. Tese de doutorado. 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São Paulo: Hucitec/Edusp, 1993. 271 rogério assis MICROPEÇAS SOBRE GÊNERO E CAÇADA JUNTO AOS ZO’É Leonardo Viana Braga NINGUÉM SE COMPARA A TIKARUK Gemidos rompem um momento de quase absoluto silêncio. Realizam incentivos. As crianças ali presentes, meninos e meninas, projetam-se em direção ao animal. Estão munidas de ímpeto e euforia além dos gravetos secos transformados em armas com as quais elas riscam o ar. Em segundos é abatida a solitária borboleta, cuja desatenção fez cruzar o caminho de pequenos assassinos. Dedos em pinça exibem o ser de um azul cintilante e que havia pouco pintava os tons de verde da floresta em um voo cambaleante. Na boca dos adultos os gemidos dão lugar a palavras e risadas de celebração, enquanto ao lado o jovem iniciando mantém pela eternidade daqueles segundos sua postura indiferente ao acontecido. Presenciei essa cena em uma caminhada pelas picadas abertas pelos Zo’é na floresta. Recorrente em outros encontros com essa borboleta do gênero Morpho, a falta de moderação das crianças me chamou a atenção. Não pelos perigos impostos pelo animal, mas pela diferença em relação ao comportamento dos demais ali presentes. Os gemidos dos adultos pareciam indicar menos dor do que nostalgia. E o ar do jovem, por sua vez, uma necessidade de se manter distante. Que tipo de atitude vislumbravam os adultos que se divertiam com o resultado final da ação daquelas crianças? Por que aquele jovem não partia em direção à borboleta e tampouco incentivava as crianças? Logo em meu primeiro campo junto aos Zo’é, garotos me descreveram as características da vida de um caçador de acordo com suas fases da vida. Diziam-me que os meninos pequenos começam treinando com seus arcozinhos atirando em moitas sem buscar de início flechar qualquer animal. Quando começam a crescer já flecham animais como gafanhotos e lagartos; meninos maiores os ajudam correndo pelas roças e cercando o animal para que aqueles consigam flechá-lo. Posteriormente, quando estão começando a se tornar jovens, tentam matar pássaros e macacos, caso estes apareçam perto das casas. Até essa fase dificilmente saem dos limites das clareiras para caçar; isso depende de serem 274 suficientemente hábeis para flechar animais de pequeno porte, macacos, cotias, etc. Em seguida, quase adultos, passam então a ir para a mata acompanhados normalmente pelo pai, que os ensina a caçar animais maiores. Vão se tornando cada vez mais aptos a matar animais como queixadas, caititus, e até mesmo uma anta. No futuro, quando começarem a envelhecer, estando quase velhos, voltarão a caçar animais menores, até parar de caçar, restringindo-se a atividades mais brandas. Se os limites entre a clareira e a mata evidenciam aspectos da maturação do caçador, esses limites também podem ser observados de acordo com diferentes modalidades de caçada, se assim se pode dizer. Bem perto das clareiras, ou mesmo dentro das roças, é possível avistar estruturas montadas sobre o chão com folhas de palmeiras. As chamadas tokej são usadas como espécie de esconderijo. O caçador entra nessas tocaias de folhas e se trancafia lá, às vezes por horas, dependendo do surgimento da caça. Aberturas circulares são feitas mais ou menos na altura do peito de um adulto, por onde é possível atirar as flechas. As tocaias são montadas perto de árvores frutíferas na mata ou de pés de mandioca na roça. Aves como mutuns, jacus, jacamins, além de cotias, roedor que não possui faro muito apurado, aproximam-se para comer quando são em geral abatidos. Todo homem a partir de certa maturidade já caça sozinho nas tocaias, e é o tipo de caçada no qual os homens mais velhos irão investir quando estiverem perdendo seu preparo. Esses homens em geral são encarregados de buscar lenha para alimentar as fogueiras que ficam acesas todo o dia, sejam as usadas para preparar os alimentos ou as para aquecer as redes durante a noite. Também são responsáveis pela pesca de pequenos peixes presentes nos igarapés próximos das clareiras. É nessa fase de suas vidas que eles se ocupam bastante do aprendizado de meninos já crescidos. Os velhos podem levar seus filhos pequenos ou netos para dentro da tocaia e, juntos, irão dar as primeiras diretrizes para o futuro caçador. Além disso, os meninos pequenos também se engajam nessas pescarias nas cercanias. Esses são praticamente os primeiros movimentos de um menino caçador fora dos limites da clareira. Outra forma de caçar são as esperas noturnas. Estas são realizadas somente por homens adultos. Quando a noite já caiu, vai-se da clareira rumo às árvores que não estejam muito longe. Normalmente estas já são conhecidas pelos caçadores que costumam voltar para esperar roedores como pacas e capivaras. Estes sim têm um faro muito apurado, e a espera em tocaias não é conveniente. Na bita, nome dado à ação de esperar em cima das árvores, o homem pode subir até mais ou menos cinco metros de altura com seu arco e suas flechas apenas tentando escutar os sons ao seu redor. Quando percebe a presença de uma paca ou capivara, que como os demais animais caçados em tocaia vêm procurar frutas no pé das árvores, o caçador se concentra para, no momento certo, acender sua lanterna e focar no rosto do animal. O clarão da luz em meio à escuridão da floresta atordoa a caça por alguns segundos, tempo suficiente para o caçador preparar o tiro e tentar flechar o alvo. A bita é também uma forma de caçar mais recorrente na vida de um homem conforme vai ficando mais velho. A bita e a tokej, enquanto formas de esperar a caça, podem ser pensadas em contraposição a outras duas formas de caçada: ywy pe e jupit. A primeira ywy, “terra”, “chão”, pe, “caminho”, é o modo de caçada próprio para caçadores com muita disposição. Exige longas caminhadas, engajamentos de até dez horas pela mata em um único dia. Inclui a busca por animais terrestres como porcos, antas, veados, tamanduás, além de macacos que vivem em árvores mais baixas como macacos-prego, poroaçus. Esses animais possuem bom faro e audição, e por isso são vistos como animais que pensam muito bem ou são espertos. Dificilmente se aproximam das clareiras. Daí a exigência das longas caminhadas. Todavia os caçadores não andam a esmo. Primeiro porque os Zo’é se dividem internamente em grupos de famílias que possuem cada um suas fatias do território. Dentro desses domínios estão seus caminhos de caçada (cf. Havt, 2001). Estes levam para regiões nas quais esses animais habitam com maior regularidade. Os caminhos nem sempre são visíveis para quem não está acostumado com a mata. As picadas em determinados momentos se desfazem, e o caçador segue pela mata fechada de acordo com algum sinal que evidencie a presença da caça. Isso é necessário uma vez que os animais também percebem os rastros deixados pelos humanos. Mas isso não evita possíveis vacilos dos animais. Esses podem chegar muito perto do caçador sem perceber a presença deste último que, por sua vez, ao notar o animal, embrenha-se correndo pela mata contra galhos que lhe riscam a pele, pedras, espinhos e gravetos que perfuram seus pés, esperando ser por algum momento mais rápido que o animal e o flechar no lugar ideal. Os Zo’é dizem que os animais terrestres devem ser acertados entre as costelas e os macacos, na parte frontal do peito, sempre visando o coração. Sempre que um homem está contando uma história sobre os feitos caçadores é possível vê-lo fazer gestos muito peculiares: estica os braços e estrala os dedos como se estivesse atirando e, em seguida, dependendo do animal, bate com a mão fechada nas próprias costelas, ou com as pontas dos dedos na cavidade torácica. Por sua vez, jupit, “subir”, é como os Zo’é chamam os cercos feitos no alto das árvores. Macacos-aranha e guaribas vivem em árvores muito altas, e nem sempre é possível acertá-los do chão. É comum, portanto, que os caçadores subam em árvores próximas àquelas onde avistam essas caças, ou onde imaginam que elas estejam, uma vez que esses animais também possuem maneiras de se esconder na copa das árvores. Esse tipo de caçada não é fácil para um só caçador tampouco para um caçador já velho. A jupit, como as longas caminhadas, é feita em geral por pessoas no auge de sua forma física. Tanto as distâncias que um caçador pode ir sozinho ou acompanhado quanto essas modalidades aqui apresentadas estão diretamente ligadas ao tipo de animal caçado. Mas a vida de um caçador é marcada pelo abatimento de um animal em especial: o queixada. Ao matar seu primeiro queixada, um jovem passa por rituais que efetivam o reconhecimento de que ele atingiu as habilidades necessárias para caçar sozinho, e poderá ser então reconhecido como adulto pleno. Hoje todos aqueles 275 homens que são vistos como bons caçadores ou que já foram grandes caçadores passaram por esse ritual, e depois do primeiro mataram muitos outros queixadas. O abatimento de uma anta também é significativo. Mesmo os homens já experientes são valorizados quando matam uma, algo que fica claro no momento de distribuição da infinidade de carne fornecida pelo animal. Essa espécie de trajetória ideal da vida de um caçador serve de base para pensarmos casos particulares, situações em que as ações dos caçadores evidenciam os critérios esperados para qualificá-los como caçadores ou não. Dois jovens entre os Zo’é chamam a atenção como exemplos de caçadores. O primeiro deles está no auge de sua forma. Aos 12 anos já havia matado sua primeira anta, e hoje, aos 22, caça sozinho sem grandes problemas, já tendo passado pelo ritual de iniciação após ter matado seu primeiro queixada. Chama a atenção o fato de os Zo’é quase sempre usarem ele como exemplo quando querem falar de alguém que está no ápice de sua vida como caçador. Uma anedota pode ilustrar outro caso interessante. Durante minha segunda viagem aos Zo’é, estava produzindo dados de genealogia, e eu ainda não havia conhecido pessoalmente todas as pessoas. Eu perguntava para as pessoas com quem eu estava tendo mais contato sobre uma família que dificilmente vinha até o posto da Funai. Quando comecei a perguntar sobre os filhos do casal que compõe essa família, falavam-me sobre o filho mais velho, na época com 13 anos. Ao perguntar com quem o menino se parecia, querendo me remeter aos seus aspectos físicos, seu tio, uma das pessoas que conversavam comigo, disse-me: “Ninguém se compara a Tikaruk”. Em seguida, o homem começou a enumerar os feitos caçadores do menino, a quantidade de macacos, de caititus e até mesmo um veado, que ele já havia matado. Também, disse que o menino já ia caçar muito longe, alcançando os limites da Terra Indígena no rio Erepecuru, e virando noites sozinho. Ficou claro para mim que a pergunta gerou um equívoco, pois aquele homem me respondeu de acordo com os critérios que lhe interessavam na possível comparação. Consenso ou não quanto às condições do menino, o 276 fato é que esse equívoco evidenciou alguns critérios importantes para entender a posição esperada para um homem entre os Zo’é. Por outro lado, é possível também trazer algumas anedotas que por contrariedade podem reforçar esses valores caçadores. Em minha segunda ida a campo, eu estava conversando com dois jovens sobre caçada, perguntando se já haviam matado seu primeiro queixada e/ou outros animais. Um deles disse que sim, mas relatou suas dificuldades para conseguir a façanha. Contou que os seus convivas ouviram uma vara de queixadas passando perto da clareira onde viviam, e os homens correram em direção aos porcos. O jovem disse que, por ainda ser inexperiente, estava muito assustado com a braveza dos animais, que faziam muito barulho. Quando alcançaram os porcos ele focou em um dos queixadas, que ao perceber sua presença se voltou contra o jovem e o atacou. O jovem mal teve tempo de preparar seu arco e, quando percebeu, o queixada estava passando por baixo de suas pernas. Com medo, o jovem subiu em uma árvore esperando o animal se acalmar e fugir. Ao contar sobre seu medo, todos caímos na risada, e eles me disseram que o medo fazia com que o jovem não soubesse matar o animal. No posto da Funai, a janela da cozinha é como o ponto de encontro para uma boa conversa com os Zo’é. Durante todo dia pessoas aparecem para observar o que se está fazendo na casa, e para bater papo. Em uma dessas situações, um jovem acompanhado de outro rapaz me contou sobre seu primeiro encontro com uma anta. Dizia que havia ido colher castanha e andava pela mata um tanto distraído. Quando de repente avistou uma anta que, dada sua proximidade, parecia ainda mais distraída que ele. Mas em segundos, quando ela percebeu a presença do jovem caçador, disparou em retirada, com uma velocidade que sempre impressiona os Zo’é, que fazem com que a pessoa que está ouvindo a história fique ainda mais impressionada de imaginar que um animal com tal tamanho possa correr tanto. O jovem, que nunca havia encontrado um animal como aquele, rapidamente começou a disparar seu arco. Mas sua posição não era nada privilegiada, e as flechas certeiras atingiram as nádegas do animal e não as costelas. Fato que gerou novas gargalhadas, agora na janela da cozinha. Hoje, os protagonistas dessas duas últimas histórias já são vistos como bons caçadores, saem regularmente para a mata, e em geral obtêm sucesso em suas empreitadas. Mas nesses e em outros casos o fato de saber matar, jukie, é sempre tido como critério crucial para o sucesso na vida de um homem. Em muitas conversas, quando se pergunta sobre os feitos caçadores de uma pessoa, os Zo’é justificam o insucesso com expressões como “os queixadas foram embora”, “ele ainda não viu queixada”, “ele tem medo” ou “ele não sabe matar”. Todavia, esses casos enumerados acima condizem com histórias de jovens que, por mais que tenham tido dificuldades no início de sua vida como caçador, hoje caçam normalmente e possuem seu reconhecimento. Uma vez um caçador já experiente me disse que quando um jovem não quer ir caçar o pai lhe fala com ênfase: – Ekwa ma’ereketrajukie!. Algo como: – Vá obter alguma coisa para matar! Eu nunca presenciei um homem dizendo isso para seu filho ou para quem quer que seja. No entanto, eu sempre pensei no porquê de esse tipo de cobrança ser quase impossível de acontecer no caso de alguns homens. Entre os Zo’é, assim como em outras populações tupi-guarani, mas também de certa forma por todo o norte do Brasil, é comum se dizer que um homem azarado está panema (cf. DaMatta, 1976; Garcia, 2010). Para os Zo’é, mais do que designar um simples azar, panen parece significar uma distância desejada ou não. Por diferentes motivos os caçadores podem passar bons períodos sem encontrar caça: devido ao contato indesejado com sangue menstrual, por ter um parente ou ele mesmo estar doente, etc. Assim, são feitos procedimentos rituais para atrair novamente os animais, ou simplesmente o caçador se resguarda esperando que esse momento de exceção passe. Nesses casos, portanto, caçadores já experientes sofrem pela impossibilidade de caçar, mas cumprem com a moderação desejada para evitar consequências graves para si ou para seus parentes. Isso porque para os Zo’é, e não só (cf. Gallois, 1988; Lima, Tânia Stolze, 1996; Garcia, 2010), a caçada é vista como uma espécie de guerra contra os animais. O estado atual da vida é fruto de um estado mítico anterior em que homens e animais se comunicavam entre si e, mais importante do que as possibilidades de comunicação, guerreavam entre si. Hoje, muitas doenças são vistas como consequências de agressões enviadas pelos animais, como mostra de sua vingança guerreira. Ser moderado é, portanto, um fundamento da relação com os animais, ou seja, é preciso avaliar as possibilidades certas de ser agressivo ao se tentar abater uma caça (cf. Gallois, 1988; Garcia, 2010). Entretanto, se o panen assola a vida de caçadores ativos, chamo a atenção para casos em que o panen não parece uma exceção na vida de determinados homens, mas sim uma situação constante. Entre os Zo’é, alguns homens adultos e jovens são exemplos de pessoas panen. Diz-se que não sabem caçar, que têm medo de ir sozinhos para a mata, ou mesmo que nunca tentaram se aventurar nas caçadas. São qualificados, portanto, pelo medo, pela preguiça e pelo não saber. Mas mesmo que não cacem, alguns deles normalmente participam da coleta de castanha, açaí, bacaba, pescam e trabalham nas roças. Essas características fazem com que muitas vezes seu comportamento seja comparado ao das mulheres de maneira bastante genérica, que em relação aos caçadores são vistas como fracas e moles. Parece haver, portanto, também para os Zo’é, uma relação intrínseca entre a ideia de panen e as distinções de gênero, que geram valorações específicas na definição de comportamentos ideais, como já vem sendo notado há muito tempo na literatura americanista (cf. Clastres 2003 [1974]; Lima, Tânia Stolze, 2011; Lima, Edilene Coffaci, 2014). Em suma. Vemos que a caçada é importante no reconhecimento da maturidade de um homem, e que a distância dos animais caracterizada pelo panen é importante delimitador dos 277 rogério assis comportamentos esperados. É possível termos alguma ideia do que os adultos esperavam ao incentivar aquelas crianças ao ataque à borboleta: uma falta de moderação que não era mais recomendada nem mesmo aos adultos. Por sua vez, por minha convivência com a família que protagonizava aquela cena inicial, vim a saber que o jovem aparentemente indiferente à cena estava em intensa introdução na vida de caçador. Como em outros casos enumerados acima, ele também foi tomado algumas vezes como exemplo de potencial bom caçador, dado os seus feitos até o momento; sendo fundamental para tal reconhecimento a combinação entre moderação e matar, esta última ação sendo entendida como consequência clara de não ter medo, preguiça e, por efeito, saber como abater o animal. PISA E AS “COISAS” A criança na tipoia não é capaz de saber o que se passa. A mulher com a tipoia sabe dos riscos que podem correr. A tipoia permite que a mulher empunhe o arco e suas flechas. Os caminhos de caçada e coleta na mata são invadidos por esses atores que compõem uma cena de exceção: a mulher, seu filho, a tipoia, o arco e a flecha. Exceção que traduz uma condição de necessidade, pois não há homens para buscar a carne e as castanhas. Ela vai concentrada, atenta; as onças sempre estão espreitando. Imaginação do pesquisador diante de uma história tão interessante: caçar é uma atividade eminentemente masculina! Por isso, está presente de várias formas durante a vida de um homem. Mas qual o lugar das mulheres na caçada? O exemplo dessa mulher citada acima, e as dissensões com relação ao que ela fazia ou era capaz de fazer, instigou-me a pensar quais os limites do acontecimento chamado caçada. A primeira vez que ouvi falar dessa história eu havia pedido para um Zo’é de aproximadamente uns cinquenta anos para que me ajudasse na pronúncia dos nomes das pessoas já falecidas. A intenção era registrar em áudio a pronúncia de um Zo’é que provavelmente havia conhecido a maioria das pessoas, pois eu queria saber os nomes corretamente para depois enviar para a linguista responsável pela formulação da grafia da língua zo’é. É certo que o trabalho despertou o interesse de outras pessoas, inclusive pessoas mais velhas, que ajudaram muito. Mas o interessante da conversa eram os desvios cometidos por meu colaborador: a cada nome que lhe despertava alguma lembrança interessante o homem sempre tinha uma história para contar, contrariando a pressa do pesquisador de uma maneira que os indígenas primordialmente dominam. Um desses casos, portanto, foi o de Pisa abyt, uma mulher caçadora. O homem me dizia que Pisa não tinha alguém que trouxesse comida para ela. Com seu filho pequeno, era obrigada a ir para a mata coletar castanha e até mesmo caçar. Em geral, procurava caçar cotias em tocaias, mas chegava também a procurar macacos nas picadas da floresta. Diz o homem que ela matou macacosaranha, e até mesmo uma onça. Intrigado com o que ele tinha me dito, conversei com um segundo homem. Ao dizer em detalhes o que o primeiro havia contato, o segundo homem se voltou nervoso, dizendo que o primeiro havia mentido, e que a mulher não tinha sido capaz de matar macacos e onças. Contudo, confirmou que realmente a necessidade de buscar comida a levou a fazer algo por si e pelo seu filho, que seguia com ela ainda bebê. Mais do que confirmar a veracidade dos fatos em torno da história dessa mulher, interessou-me as reações do segundo homem, que parecia menos constrangido com as prováveis mentiras do que com o fato de uma mulher fazer o que é típico de um homem. A reação do segundo homem me despertou ainda mais o interesse por pensar a importância das mulheres nas caçadas. Ir caçar também parece ser critério importante no reconhecimento da maturidade de uma mulher zo’é. Assim como os meninos, as meninas durante a infância pouco saem das clareiras; divertem-se nos igarapés próximos ou na mata quando as famílias transitam de uma clareira para outra. É também na clareira que iniciam sua vida de trabalho, 279 ajudando desde muito cedo suas mães e demais mulheres com quem convivem, buscando água no igarapé, ajudando na produção de farinha de mandioca, no preparo da carne e outros alimentos. Entre os Zo’é, muitos casamentos são arranjados na tenra idade, e quando as meninas atingem a puberdade é quase certo quem será seu primeiro marido. É nesse momento, em que uma menina passa a conviver junto de seu marido – seja este se mudando para a casa de seu sogro, ou ela indo para casa de seu esposo – que a caçada parece começar a fazer diferença diretamente na vida de uma mulher. Em geral, as meninas púberes se casam com um homem mais velho e, normalmente, um caçador já casado com outras mulheres mais velhas. O fato de esse homem conviver com outros homens em plena atividade de caçador, ou de ter outras mulheres com filhos ou não, é decisivo para o engajamento da nova esposa na caçada; vale lembrar que crianças pequenas, sobretudo recém-nascidos, não devem sair da clareira, pois seu cheiro atrai animais e outros seres perigosos. Isso diz respeito, portanto, ao que poderia ser chamado de parcerias de caçada. Assim como as distâncias percorridas para além da clareira, e as formas de caçada próprias aos Zo’é, como caçadas terrestres, cercos no alto das árvores, e caçadas de espera, as parcerias realizadas por um homem são também expressão de sua maturação como caçador. As jovens esposas participam de maneira direta das caçadas terrestres, nas quais se procuram porcos, antas e outros animais, e também dos cercos aéreos feitos contra macacos-aranha e guaribas. Em terra, as jovens esposas, ainda sem filhos, acompanham seus maridos nas longas caminhadas. Da mesma forma que os homens, elas imitam o som dos animais, batem com galhos contra os troncos das árvores, etc., visando enganar o animal para que seu marido possa flechá-lo. Além disso, não é incomum ver essas jovens meninas trazendo para a casa a carga abatida na mata. Nos cercos feitos no alto das árvores, as mulheres cumprem papel semelhante, ajudando a emboscar o animal, contribuindo para ludibriá-lo desde o chão. 280 Esses cercos aéreos podem envolver mais gente do que os caçadores e suas jovens esposas. Às vezes um simples translado de uma família de uma clareira a outra pode desencadear em um cerco caso encontrem um bando de macacos no meio do caminho. Entretanto, é durante o inverno, quando as chuvas permitem que os animais estejam gordos, sobretudo macacosaranha, que se realizam arranjos entre famílias aliadas produtiva e politicamente, que migram para os limites da terra indígena onde se encontra fartura de caça (cf. Havt, 2001). Certa vez eu estava hospedado na casa de um homem reconhecido como importante liderança entre os Zo’é. Ele já era casado com uma mulher de mesma faixa etária, e havia mais ou menos três anos se casara com mais duas jovens esposas. Em uma manhã ele saiu para caçar com estas enquanto eu fiquei com as demais pessoas de sua clareira; basicamente seu grupo se constitui de mais três famílias além da sua, dentre as quais fazem partem pelo menos quatro homens em condição de caçar, incluindo seu irmão e sobrinho. No fim da tarde, ele retornou e iniciamos uma conversa sobre a caçada do dia; ele havia matado três macacos-aranha. Em dado momento eu questionei porque ele não tinha ido com os homens ao invés de suas jovens esposas. Ele disse que os maridos não gostam de deixar suas esposas na clareira enquanto estão sozinhos na mata, por diversos motivos, enfatizando que sempre que se tem esposas jovens elas são parceiras preferenciais para as caçadas diárias, o que vim a confirmar também em outras situações. É possível dizer que as mulheres possuem valor privilegiado na caçada. A parceria com as mulheres não advém apenas de uma necessidade, como se fossem substitutas na falta de um ou mais homens para acompanhar o caçador. Mais do que necessidade, as mulheres jovens e sem filhos parecem ocupar o lugar da preferência como parceiras de caçada. No entanto, no caso das parcerias entre caçadores e suas jovens esposas, uma questão parece unânime: uma mulher não matará o animal, mas se restringirá a ajudar no cerco ou a enganar aquele. Em um de meus campos muitas pessoas estavam doentes, e por isso, alguns homens se sentiam panen, em um estado caracterizado pela distância dos animais, que pode ser traduzido pelo azar na caçada. Isso me despertou o interesse sobre o assunto, e comecei a pensar nas possibilidades de mulheres serem consideradas panen. Então perguntei para uma jovem, já casada e com filhos, se mulheres tinham panen. Ela me respondeu enfaticamente que não. Perguntei por que não. E ela disse que mulheres não matam a caça. O que, de certa forma, confirmou algo que não é uma novidade para a discussão em torno das causalidades do panema: matar como diagnóstico certeiro para a constatação desse estado (cf. DaMatta, 1976). A parceria com as mulheres e a importância de matar como marca de distinção das atividades masculina e feminina na caçada podem permitir certa relativização do entendimento do que seja a caçada, pensando a definição de seus limites como acontecimento. A meu ver, isso necessariamente passa pela compreensão da expressão ma’ereket, “obter coisa”, utilizada pelos Zo’é como tradução de nossa ideia de caçar. O estranhamento com a história de Pisa abyt surge com o fato de que matar, jukie, é uma atividade aparentemente restrita aos homens. Mas a relação com o animal na caçada, e a valoração proveniente desse acontecimento, não parece se restringir ao ato de matar. Na caçada, é preciso levar em consideração a hostilidade entre homens e animais, o que caracteriza a caçada como uma espécie de guerra assentada em agressões e vingança de parte a parte. Muitos trabalhos sobre populações ameríndias vêm enfatizando o fato de os animais serem considerados como potencialmente humanos (cf. Descola, 1986; Lima, Tânia Stolze, 1996; Viveiros de Castro, 2002). E penso que, no caso dos Zo’é, o fato de designarem a caça como ma’e, “coisa”, parece estar conectado a esse jogo de hostilidade enfatizado por esses autores, traduzido nos perigos atuais em cada caçada de os humanos reconhecerem a humanidade dos animais. É nesse sentido que ma’ereket, “obter coisa”, não inicia na saída para mata, e nem termina quando o caçador chega com a caça morta. Antes de ir para e depois de voltar da mata o caçador deve cumprir vários procedimentos para manter o reconhecimento da caça como “coisa”: ele toma banhos para que não tenha cheiro de presa-inimigo; quando se abate uma anta, corta-se seu rabo, que é esfregado nos dedos das mãos e dos pés enquanto se imita o animal para enganar e atrair novas antas; introduz em seu próprio ombro uma garra de gavião-real, como forma de negociar com esse animal visto como cuidador de macacos-aranha e guaribas, e para caçar tão bem quanto ele; “lustra-se” o arco para que fique bonito, eficiente, e realizam-se outras ações rituais para controlar a distância dos animais, para que não tenha panen; cozinha-se a carne do animal para também tirar a sua subjetividade, etc. Além disso, sonhos prévios à ida para a mata funcionam como indícios do que virá, sendo assim possível que o sonho também seja meio do caçador controlar seu próprio futuro. Não só os seus sonhos, mas também o de parentes e pessoas próximas, por exemplo: se alguém próximo sonha com rede de fios de castanha é sinal que aparecerá uma onça pintada; se é rede de algodão, então será onça parda. Tipos de ações já notadas pela literatura estudiosa do tema (cf. Lima, Tânia Stolze, 1996; Garcia, 2010; Lima, Edilene Coffaci, 2014; Descola, 2006 [1993]). Esses são alguns poucos exemplos das ações e acontecimentos que giram em torno do que nós chamaríamos como caçada. Levando em consideração as formulações feitas pelos Zo’é, ora esse acontecimento pode ser restringido à ação de matar, delegando o lugar dos homens, ora ser ampliado, incorporando as mulheres e outras pessoas no processo de manutenção do animal como “coisa”. E é nesse ponto de alargamento da compreensão do que seja a caçada, por meio da participação de outros atores que não só os caçadores, como as mulheres, que sugiro que seja fundamental um entendimento apurado da caçada por meio da correlação entre diferenças de gênero e processos de maturação. Quem já encontrou uma cintilante borboleta-azul em meio à opaca floresta sabe que sua cor é de chocar os olhos. Mas na 281 realidade, o tom azul dessas borboletas de tipo Morpho não é natural, as escamas são pardas ou ocres, e a luz ao penetrar nos alvéolos cheios de ar que atapetam as escamas produz as tonalidades azul-turquesa que dão seu efeito impressionante. O caso de Pisa abyt, como uma exageração das cores com que o pesquisador pode olhar para um caso, desperta algumas questões para pensarmos a caçada como modus vivendi próprio aos Zo’é, e também a outras populações que vivem em condições socioambientais semelhantes (cf. Garcia, 2010) ou não. Se é possível afirmar que os Zo’é têm um modo de vida eminentemente caçador, é preciso mensurar a importância de homens e mulheres para a definição desse modo. Por mais que histórias de mulheres que caçam possam causar estranheza aos Zo’é e, por efeito, ao pesquisador, é preciso olhar com atenção a essas metamorfoses das relações sociais que nos parecem tão óbvias. BIBLIOGRAFIA CLASTRES, Pierre. O Arco e o Cesto. In: A sociedade contra o Estado, e outros ensaios. São Paulo: Cosac & Naif, 2003 [1974], p. 117-143. DAMATTA, Roberto. Um mundo dividido: A estrutura social dos índios Apinayé. Petrópolis: Vozes, 1976. DESCOLA, Philippe. La nature domestique: symbolisme et práxis dans l’écologie des Achuar. Paris: Maison de Sciences de L’Homme, 1986. _____. As lanças do crepúsculo: relações jivaro na Alta Amazônia. São Paulo: Cosac & Naify, 2006 [1993]. 520 p. GALLOIS, Dominique Tilkin. O movimento na cosmologia waiapi: criação, expansão e transformação do universo. Tese de doutorado. São Paulo: PPGAS/ USP, 1988. GARCIA, U. F. Karawara. A caça e o mundo dos Awa-Guajá. Tese de Doutorado. São Paulo: PPGAS/USP, 2010. HAVT, Nadja Binda. Representações do Ambiente e da Territorialidade entre os Zo’é/PA. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PPGAS/USP, 2001. LIMA, Edilene Coffaci. O Kampô enquanto coisa: objeto ou técnica. Comunicação apresentada na Mesa Redonda “Objetos e Técnicas”, no III Seminário de Antropologia da UFSCar, 2014. (Apresentação de Trabalho/Seminário). LIMA, Tânia Stolze. O Dois e seu Múltiplo: Reflexões sobre o Perspectivismo em uma Cosmologia Tupi. In: Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n.2, 1996, p. 21-47. _____. Por uma cartografia do poder e da diferença nas cosmopolíticas ameríndias. In: Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v.54 nº2, 2011, p. 601-646. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 345-399. 282 rogério assis rogério assis ALGUNS MODOS ZO´É DE FAZER COLETIVOS E LIDERANÇAS Dominique Tilkin Gallois Para introduzir os modos como os Zo’é caracterizam hoje seus chefes1, procuro inicialmente aproximar dois tipos de assertivas em torno da chefia ameríndia, considerando de um lado afirmações de indigenistas e jornalistas engajados na divulgação da fragilidade dos grupos indígenas sob proteção do Estado, e, do outro, reflexões de etnólogos que se debruçaram sobre as formas de “ação política”2 entre povos ameríndios, históricos ou contemporâneos. Na sequência, darei atenção às formulações dos Zo’é, quando explicitam transformações na atuação de suas lideranças. A confrontação dessas conceituações em torno das competências e habilidades de chefes é, de fato, inescapável quando se quer abordar a situação dos Zo’é, um pequeno grupo que foi até recentemente taxado de “isolado” na região do Cuminapanema, norte do Pará. Ali, afluíram jornalistas do mundo inteiro, que continuam visitando a área desde o final dos anos 1980, reiterando ter encontrado um dos últimos exemplares de sociedades primitivas do planeta. 1. 2. 3. 4. 286 IMAGENS DA FRÁGIL HARMONIA PRIMITIVA O que nos interessa nas descrições elaboradas pelos jornalistas que visitaram os Zo’é, mesmo que impressionistas ou sensacionalistas, é justamente a caracterização do que seja um “povo primitivo”. Veremos que, nessas reportagens – e nas concepções indigenistas que as informam – é o sentido evolucionista do termo que se destaca. Os Zo’é são primitivos porque podem deixar de sê-lo. É contra essa evolução que uma certa tradição sertanista “à moda antiga”3 advogava, justificando ações de proteção que visavam manter o isolamento desses grupos, a favor da preservação de sua vida “harmônica”. E não deve nos surpreender que a percepção de tal harmonia seja sempre caracterizada por uma série de ausências. A mais citada, evidentemente, é a carência tecnológica, já que vivem na “idade da pedra”. Importante considerar que, acoplada à simplicidade material, as necessidades seriam necessariamente diminutas.4 Pesquisa desenvolvida com apoio do CNPq. Agradeço os comentários de Antenor Vaz e de Fabio Ribeiro, com quem mantive ao longo desses anos instigantes discussões em torno das questões de que trata esse artigo. Espero que o texto reflita meu respeito por ambos e a densidade dos meus aprendizados com os indigenistas da Funai, mesmo que não acate sempre suas sugestões. Agradeço também ao meu orientando Leonardo Viana Braga, pela leitura e pelo seu entusiasmo na pesquisa junto aos Zo’é. Formulação que adoto de Sztutman (2009: 17). Refiro me aqui à uma certa tradição sertanista, que foi praticada entre os Zo’é nos anos 1980 e 1990 e entre outros grupos então “isolados” e hoje considerados como “recém-contatados”. Essa tradição foi analisada por Antonio Carlos de Souza Lima em diversos trabalhos e especialmente num texto em que parte de escritos de Roquette-Pinto para caracterizar aspectos importantes das ideias relativas à proteção fraternal, como cunhada por Rondon e seus aliados, e as bases das ações de governo para os índios no Brasil daquele período. Estão nele presentes: a) uma classificação implícita dos índios (os que ainda o são, os que estão corrompidos, os que deixaram de sê-lo [...]); b) um ponto de vista moral e ético, em que a sociedade e o Estado, conquistadores do território brasileiro e dos povos nele habitantes, são os responsáveis pela dívida da conquista; c) uma separação suposta entre brasileiro e índio, uma das bases ideológicas da tutela; d) uma definição do papel das ações de governo de proteger sem dirigir nem aproveitar; e) a meta da evolução espontânea como o desejável, e o certo de acontecer, caso deixados à sua própria sorte [...]. Há também um pressuposto, presente ainda hoje, que deve ser relativizado: o de que as populações indígenas “sempre viveram independentes” (2002: 13). As descrições parecem indicar que as reduzidas necessidades são consequência da precária capacidade de produção, uma certa inversão em relação às considerações de Sahlins (2007) sobre a “afluência primitiva”. Para os funcionários da Funai dos anos 1980 e 1990, ainda guiados pela tradição sertanista acima mencionada (Souza Lima, 2002), a aquisição de novas tecnologias pode desequilibrar não apenas a harmônica vida social – em que todos sabem produzir as mesmas coisas com as mesmas tecnologias – mas também a igualdade entre os produtores. O que explica o trauma desses agentes da Funai diante do interesse aguçado dos Zo’é pela obtenção de armas de fogo, que esses logo apontaram como muito mais eficazes que arcos e flechas e que se transformaram em bens de prestígio e portanto de disputa entre grupos e entre lideranças. Mas há sobretudo um conjunto de traços negativos, recorrentes na descrição das relações sociais e políticas, marcadas pela inexistência de hierarquias e de chefes, de que não precisariam para resolver conflitos, dada a inexistência de rivalidades.5 Na formulação de um jornalista do “The Sunday Telegraph” (2008): “[...] the Zo’e lives a stone age existence, they have no need for clothes, no concept of ownership and disputes”. Já, segundo o jornalista Rogério Assis (2013): “os caçadores, os idosos, os pais e as mães de muitos filhos gozavam de certo prestígio no grupo social, mesmo assim não existiam lideranças na figura de um cacique ou de um pajé. As rivalidades eram temporárias e sempre resolvidas verbalmente, não havia disputas que resultassem em lutas corporais”. Passaram-se 20 anos, mas as apreciações de visitantes no Cuminapanema continuaram reiterando a imagem de uma sociedade sem chefes e por isso pacífica, lançada pela “Revista Manchete” no final dos anos 1980: “Não se percebe entre eles nenhum tipo de liderança. Cada um faz o que quer e todos cumprem suas tarefas... não vimos nenhum tipo de disputas... os donos do poturu parecem não ter cacique ou pajé. Mas a estrutura social garante uma rotina organizada onde tudo que precisam é providenciado de maneira certa” (Berman, 1989). Essa dificuldade em perceber ações de liderança, por parte dos jornalistas que passavam pela área zo’é, era consequência direta das informações fornecidas pelos agentes da Funai, que direcionavam o olhar e a apreciação dos visitantes para alguns mecanismos de igualdade entre todos: todo homem caça e constrói sua casa, toda mulher cuida dos filhos e processa alimentos, cada um faz exatamente o mesmo que todos sabem fazer. Com certeza, antes como hoje, todos se engajam na produção, mas o que cada um faz certamente não é avaliado de forma uniforme. Mesmo assim, as informações 5. 6. repassadas pelos agentes indigenistas aos visitantes construíam a imagem de uma indistinção generalizada, que só poderia se manter pelo fato da inexistência de personagens com destaque especial. Segundo Cartagenes (2009): “A cultura Zo’é não reconhece chefes nem xamãs, e os ‘yü’ poderiam ser vistos apenas como diluídas lideranças nucleares; de qualquer forma, sustentáculos do modo de ser cultural dos Zo’é, e de seu difuso modelo de poder coletivamente pulverizado”. Por esse motivo, os agentes da Funai não só impediam estadias nas aldeias – para evitar que os Zo’é sintam desejo pelas roupas, alimentação, etc. – como vetavam aos visitantes qualquer distribuição de presentes ou a doação de objetos assiduamente pedidos pelos índios, sob alegação de evitar a “desigualdade” entre membros da comunidade. Tratava-se, portanto, de impedir a sobreposição de uma figura ou grupo familiar sobre o outro. O lema era: ou todos recebem as mesmas coisas, ou ninguém recebe nada. Neste modelo indigenista da preservação da harmonia primitiva, que dispensa o exercício da liderança,6 qualquer transformação é vista com suspeita; o aparecimento de novas práticas sendo sempre provocado pelo contato com o “exterior”, perigo que se procura afastar ou mitigar. Assim, no caso Zo’é, os indigenistas dos anos 1980 e 1990 temiam, sobretudo, a atuação dos missionários evangélicos fundamentalistas que, por ocasião de suas visitas e encontros, promoveriam transformações capazes de alterar o sistema político zo’é. “Estas ‘visitas sociais’ às escondidas, à revelia de quaisquer possibilidades de controle do órgão indigenista, promovem focos de tensão e instabilidade do equilíbrio político interno Zo’é, na medida em que insistem numa assimetria inexistente em sua cultura, atribuindo deferências de ‘chefia’ ou promovendo doações a indivíduos específicos” (Cartagenes, 2006). O primeiro problema, portanto, diz respeito ao modo como é “Sin líderes políticos ni religiosos, recurren al consenso para tomar decisiones y resolver conflictos. No tienen cacique ni tuxaua ni chaman. Si siquiera se rijen por un consejo de ancianos. Existe une única figura de liderazgo, pero es temporal: dura lo que dura el conflicto para el cual el que fue designado. Son los iu. Algo como palo, baston ou viga” (Abril, 2010). Os diários dos chefes da Frente Zo’é evidenciam a opção radical em negar a existência de formas de liderança entre os Zo’é: nesses registros, mantidos por sucessivos representantes da Funai na área na década dos anos 1990, os termos “chefe” e “chefia” são usados exclusivamente para se referir aos agentes do Estado, não aparecendo nenhuma menção a chefes, líderes ou representantes indígenas. 287 figurada a “indução” de figuras de chefe supostamente inexistentes no modo tradicional, reiterando a imagem do “selvagem inocente e manipulado”, como faziam os jesuítas portugueses no século XVII, quando avaliavam as alianças dos Tamoios com os franceses (Perrone-Moisés & Sztutman, 2010: 405). Além de negar aos ameríndios a capacidade de criar novas formas de ação na interface com o mundo não indígena, essa modalidade da contaminação era sobretudo problemática, no caso Zo’é, porque cabia apenas à “chefia” da frente de proteção da Funai decidir quem manipulava, com total ausência de reflexão sobre os efeitos da própria atuação nas relações entre os Zo’é e entre estes e os agentes do Estado. Mas, afinal, quem seria contaminado e em que consistiria exatamente tal perversão da harmonia primitiva? Como se pode verificar nas citações dos jornalistas, os indigenistas haviam identificado pelo menos duas instâncias de decisões, pois mencionavam a existência de um “conselho de anciãos” e também da posição de “liderança nuclear”, ou “jy”. Personagens identificados nessas descrições, mas logo anulados enquanto figuras de chefia, na medida em que tais posições – e a possibilidade de desponte enquanto personagens diferenciados – seriam subjugadas pela busca de “consenso” e pela “pulverização” do poder. Como se verá adiante, tal tradução da figura do “jy” ou mesmo do papel dos anciões é radicalmente distinta das exegeses elaboradas pelos próprios Zo’é. Por ora, vejamos em que poderia consistir tal indução de formas alienígenas de chefia, que podem nos iluminar sobre um aspecto significativo da liderança indígena: a capacidade de constituir e, portanto, de representar um coletivo. Tanto as práticas sertanistas à moda antiga, como as práticas indigenistas mais recentes, sensíveis à capacidade de agência dos próprios índios, trazem necessariamente consigo o aparecimento de uma figura ambígua: a de “representante”. A famosa fórmula cadê o chefe? explicita – em todos os períodos da história – uma real necessidade para a relação colonial. 7. 288 Estabelecer uma interlocução com o representante do “povo”, da “comunidade”, de uma “parcialidade” enfim, de alguma “unidade”. E as respostas indígenas, não menos famosas, são sempre as mesmas: ao invés de indicar “um” chefe, apresentam uma multiplicidade de personagens importantes. Como indica o estudo de Sztutman, a partir de fontes coloniais, “entre os antigos Tupi, para o desconsolo dos colonizadores e cronistas, essa representação não se fazia senão de forma efêmera, circunstancial” (2009: 33).7 Mas a história das relações coloniais também evidencia que modalidades de representação estavam presentes, e que era a partir dessas modalidades próprias que os índios procuravam dialogar com as formas de chefia percebidas entre os colonizadores. Não é estranho, portanto, que poucos anos depois do estabelecimento de relações regulares com o posto da Funai (e com agentes percebidos como gerentes dos bens contidos nesse posto), os Zo’é tenham desenvolvido a observação e comparação entre suas formas de liderança e as atitudes dos “representantes” da Funai. No final dos anos 1990, Havt foi testemunha desse processo de “contaminação”, mas às avessas. Em seus esforços para formular um entendimento a respeito dos Kirahi [não indígenas] com quem vêm se relacionando, os Zo’é estão construindo uma comparação e uma graduação dos jy-Funai [...]. Pela observação das atitudes de servidores e funcionários e seus resultados, identificam como jy aqueles que percebem serem chamados ou referidos como “chefe”. A comparação dá-se, portanto, por uma interpretação que os leva a considerar como jy os chefes kirahi. Tal interpretação faz-se já incorporando uma característica associada ao jy kirahi que não é mencionada quando se fala dos jy zo’é, isto é, o mandar e o ser obedecido. Como uma espécie de desdobramento lógico, mas também pela observação das posturas, atitudes e discursos Havt 2001:191. Em outro estudo, Sztutman e Perrone-Moisés ressaltam o quanto Anchieta “mostrava-se atônito diante dessas formas de organização política, em que todos e ninguém pareciam ter autoridade” (2010: 420). DE QUE CHEFES ESTAMOS FALANDO? Afinal, de quais segmentações, de que “grupos nucleares” estamos falando? A etnografia disponibilizada pelos registros dos funcionários da Funai é pobre, limitando-se a listas de indivíduos rogério assis Há, obviamente, “chefes” entre os Zo’é. Pessoas com posições diferenciadas que eles também procuram identificar entre os brancos, mas que não desejam necessariamente imitar, considerava Havt naquela época. No passar dos anos e das experiências com as “chefias” que se sucederam no posto do Cuminapanema, os Zo’é continuaram entendendo tais figuras de chefes kirahi ao seu modo, ou seja, prosseguem identificando múltiplos chefes, nem sempre acertando suas escolhas em acordo com a hierarquia definida pelo órgão estatal. Pois analisam disposições para a distribuição de bens, atitudes de comando, mais do que posições abstratas de autoridade ou de representatividade. Podem, portanto, acatar a explicação de um funcionário quando este justifica não poder lhes dar nada, pois para essa decisão, “depende dos chefes em Brasília”, julgando se tratar de um chefe fraco ou mesmo, ruim. Ao mesmo tempo, irão considerar como “chefe” toda pessoa que consegue, por disposição pessoal, assumir autonomia na tomada de decisões, especialmente, mas não só, no que diz respeito à distribuição de bens “dos brancos”. Chegamos a um ponto sensível, que diz respeito à generosidade esperada de um chefe, à sua capacidade de obter e de fazer circular bens. Mas não apenas bens, ou apenas conhecimentos, pois veremos que se trata sobretudo de uma indicação da capacidade de gerenciar relações com o exterior. Antes de detalharmos esse aspecto fundamental na ação política indígena, precisamos nos defrontar com um outro problema na conceituação da chefia ameríndia na tradição sertanista da “proteção fraternal” – ou, de forma mais geral, colonial – da chefia ameríndia, voltando mais uma vez às descrições operadas pelos que reconheceram entre os Zo’é as feições da comunidade primitiva. agrupados em torno de figuras masculinas, denominadas “chefes de família”. Para além das listas, essas unidades sempre aparecem subsumidas, nos documentos dos indigenistas, pela referência a uma unidade genérica: “o povo zo’é”. Teríamos então de um lado núcleos iguais entre si e, do outro, “o conjunto” dos Zo’é, este idealmente representado pela figura de um “conselho dos anciões”. Dois tipos de unidade consideradas como dadas, preexistentes ao surgimento de seus líderes. Nessa concepção, não só a unidade social antecede seu representante como dispensaria a necessidade de chefes, se considerarmos a busca de consenso e equilíbrio entre partes equivalentes, pressuposto indispensável à ideia de harmonia primitiva. Pode-se então imaginar a aversão dos sertanistas à moda antiga, à ação política zo’é, que faz surgir múltiplos chefes ao mesmo tempo que são criadas novas unidades, nunca equivalentes entre si. A recusa de reconhecimento de tais lideranças, que despontavam – como também eram rapidamente substituídas por novas figuras – ao longo dos 20 anos da proteção radical (de 1990 a 2010 aproximadamente), decorria da ideia de que esses chefes se imporiam aos grupos sociais preexistentes, como apêndices desnecessários. Ora, o que nos ensina a antropologia é que se deve sempre procurar não comunidades com ou sem chefes (numa leitura simplificada da oposição “sociedades com estado” e “sociedades sem estado”, proposta por Clastres), mas a articulação entre formação de coletivos e formas de liderança. Não há um sem outro, aliás, não há coletivo sem antes haver um chefe. Portanto, como todos os ameríndios, os Zo’é sempre tiveram chefes, com diversificadas competências para a liderança e, portanto, capazes de fazer surgir variados tipos de coletivos. Como mostra Sztutman a partir de sugestões de Strathern, a ação política entre povos ditos “primitivos” – sejam os antigos Tupi ou grupos contemporâneos, melanésios ou ameríndios –, “não seria possível pensar a constituição de unidades sociopolíticas sem pensar também e simultaneamente a constituição de certos ‘personagens’, ‘homens capazes de conter outros homens’” 8. 290 (Sztutman 2009: 18). Para completar sua demonstração, e fugir assim da conceituação do poder em termos ocidentais, Sztutman recorre à formulação certeira de Latour, para quem “isso que chamamos de política poderia ser pensado como simplesmente a arte de compor associações e criar coletivos, tendo em vista que as associações compostas se dão sempre entre atores heterogêneos; o social, o sociopolítico sendo sempre algo que resulta e não aquilo que já está dado que faz a si mesmo” (Idem: 19). COMO OS ZO’É QUALIFICAM O “PODER” DE SEUS CHEFES Outro problema a enfrentar, voltando à caracterização das formas políticas zo’é pelos indigenistas e singelamente replicada pelos jornalistas, diz respeito ao pressuposto da “inexistência de assimetrias” (cfr. Cartagenes, acima citada) que é comumente acoplada à figura clássica dos “chefes sem poder”, por sua vez associada à tomada de decisões por consenso num não menos clássico “conselho de anciões”. Essa caracterização parece ter vindo de uma leitura apressada da obra de Pierre Clastres, e não resiste à etnografia. Pois, como já esboçamos acima, a chefia ameríndia não é uma posição vazia a ser preenchida, um “papel social” prefigurado para representar um coletivo preexistente. Nem a soma dessas posições deveria necessariamente se manifestar na forma de um “conselho”, constituído pela junção de pessoas equivalentes, capazes por esse motivo de operar consensos. O que está em jogo, ao contrário, é o “processo de diferenciação interna entre as pessoas”, “a constituição de figuras especiais” que revela “uma certa economia de prestígio e um processo de magnificação” (Sztutman, 2009: 20, 24-25), fazendo aparecer homens importantes,8 ou homens-esteio como dizem os Zo’é. Assim, a pergunta certa, como sugere Sztutman, é “Como certas pessoas se tornam chefes, líderes políticos e o que significa isso?” (Idem: 20). Significa em primeiro lugar que devamos Cf. Godelier & Strathern (1991) e Descola & Lory (1982). Para uma aproximação entre os big men melanésios e os homens importantes entre os Zo’e, ver Havt (2001). atentar para a qualidade do “poder” em jogo, que não diz respeito ao monopólio da violência, mas à capacidade de agir, de impulsionar outros a agir, enfim, à capacidade de fazer aparecer e movimentar coletivos. Para tanto, devemos verificar quais são os termos utilizados pelos Zo’é para designar formas de liderança e as diferenças que esses termos indicam nos modos de operar. Indagados, em 2012, a respeito desses modos de atuação, jovens líderes zo’é me respondiam sempre apontando duas habilidades: a primeira sendo que “jy fala duro”, ou ainda que é quem “manda trabalhar” e a segunda é que “jy tem de refletir (pensar muito) para depois conhecer”; para destacar a capacidade de reflexão, destacavam que “alguns se dizem jy mas só brincam”, porque “não sabem pensar” e, portanto, não são chefes (jy rowã). Além dessas competências, é significativo observar como, no contexto de reuniões com a equipe da Funai – visando organizar, por exemplo, a distribuição de equipamentos nas aldeias ou a organização de expedições de vigilância – os Zo’é se esforçavam em designar um “jy” – aqui, um representante – para cada aldeia.9 Mesmo que eles indiquem sempre jovens lideranças com reconhecido prestígio, essa equiparação entre todos (um líder-representante por aldeia ou grupo local) não resistia à diferenciação. Comentavam logo que de toda essa longa lista de “jy” apenas dois – às vezes três – seriam efetivos “jy”. É interessante ressaltar que esses poucos chefes jovens e com prestígio eram também descritos como “Funai ijy”, o que significa que sua competência incluía “cuidar da Funai”. Para caracterizar o modo operatório dessas lideranças, dizia-se que eles “cuidam para que crianças não roubem (as coisas da Funai)”. Mas não só. Cuidar da Funai é também orientar a equipe do posto, oferecendo as informações solicitadas a respeito dos movimentos das famílias, etc., mas sobretudo explicitando os interesses dos Zo’é – ora em nome de seus grupos locais ora em nome de um coletivo mais amplo. Nas reivindicações enunciadas por esses jovens jy-representantes, a autoridade é marcada pela referência a esse coletivo, em nome do qual eles enunciam os interesses de todos: “Zo’é reko rahyi” ou, em português “o que Zo’é quer”. Argumentavam inclusive que os chefes-que-só-brincam só sabem falar em nome próprio. A acuidade na observação das motivações da Funai, por parte dos jovens representantes que mais se destacavam nos anos de 2011 e 2012, lhes permitia propor aos coordenadores do órgão indigenista uma negociação como essa: “Se Funai dá bacia, panela, rede, cuia, mosquiteiro, roupa, sandália, bacia, se Funai dá, aí Zo’é não anda mais. Também tem de dar lona. Não pode dar roupa rasgada. Mais importante é bok [espingarda]. Se tem bok, ai não anda”. Onde “andar” significa continuar se deslocando até os núcleos ocupados por castanheiros, fora da Terra Indígena, ou até os Tiriyó, ao norte da TI.10 De fato, há vários anos, os Zo’é “andam” para obter os bens que aprenderam a conhecer frequentando o posto da Funai e que esta não lhes disponibilizava. Na negociação, o jovem chefe estabelece uma comparação, quando diz “não pode dar roupa rasgada... o mais importante é a espingarda”. Na negociação, reconhecem que não é a Funai quem dá roupa rasgada, mas os castanheiros ou mesmo os vizinhos Tiriyó, que vez ou outra também lhes cedem uma espingarda velha. Em outros discursos como esses, jovens lideranças expressaram claramente que preferem “não andar”, e que por isso continuariam a “cuidar da Funai”, onde cuidar inclui, como vimos, evitar transtornos no posto, mas sobretudo orientar esse parceiro privilegiado para que as relações de qualidade possam perdurar. 9. Os registros dessas listas de jy-representantes de aldeias em meus cadernos, em 2011 e 2012 evidenciam não só uma certa flutuação, como dificuldades em indicar apenas um por aldeia. Além disso, a lista das aldeias tendia sempre a aumentar, toda vez que era preciso ressaltar o desempenho de mais um líder. Já, quando a indagação remetia claramente à fundação das aldeias, quando se utiliza o qualificativo jet, “dono”, desapareciam as dificuldades de ambos os lados – Funai e índios – pois remetia não ao reconhecimento da capacidade de liderança, mas apenas ao ato de fundação de um local de moradia. 10. Cabe destacar aqui o significativo papel dos missionários da MNTB, bem como pastores Tiriyó do Suriname, no incentivo às “andanças” dos Zo’é, tanto rumo ao sul como rumo ao norte (ver texto de Ribeiro, neste volume). No entanto, deve ficar claro que a iniciativa do movimento e das caminhadas sempre foi de autoria dos líderes zo’é. 291 rogério assis ALGUMAS CONTINUIDADES NAS TRANSFORMAÇÕES DA CHEFIA ZO’É No rol dos equívocos colocados pela caracterização dos Zo’é como uma sociedade sem chefes (nem xamãs),11 já mencionei o trauma que os funcionários da Funai ressentiam pelas mudanças induzidas pelo “contato”. Será necessário voltar, mais uma vez, a essa questão, na medida em que a caracterização da atuação dos atuais jovens chefes, pelos próprios Zo’é, parece indicar que houve recentemente uma drástica alteração nos padrões de chefia. Veremos, no entanto, que se pode entender tal transformação de outra forma, se levamos em conta elementos da ação política que raramente são levados em consideração: as modalidades de enunciação dos feitos dos grandes homens, não apenas em forma retrospectiva, mas também prospectiva. Mas vejamos quais elementos foram interpretados como uma ruptura advinda dos efeitos do “contato”. Desde pelo menos 2008, um pequeno número de jovens líderes reivindica para si a denominação de “jy”, justificando tal prerrogativa tanto em atos como em palavras. Entre suas ações memoráveis, encabeçaram destemidas expedições rumo sul (onde buscavam encontrar kirahi moradores dos campos gerais) e rumo ao norte (atendendo convite de Tiriyó moradores da aldeia Boca do Marapi, aliados a alguns Trio evangelizados de aldeias situadas no Suriname), em busca dos objetos que a Funai lhe recusava: roupas, panelas, espingardas. Durante três anos, cada um desses jovens jy encabeçou pelo menos uma, ou sucessivas expedições, despistando os agentes da Funai, e voltando com pouco objetos, que procuravam esconder dos indigenistas. Mas, no entanto, também voltariam com doenças, que se transformaram em 11. Não abordarei aqui esse outro equívoco, que poderia ser analisado pelo mesmo viés: procuravam-se xamãs, quando se deveria antes verificar se há xamanismo. Xamanismo obviamente há, moldando diversos regimes de relações entre humanos e não humanos (pois a potência xamânica não é atributo reservado aos humanos). Entre os Zo’é tais relações são mediadas por homens e mulheres com capacidades “especiais” e se manifestam através de pelo menos dois tipos de intervenções: a de pessoas “com pajé” que vingam e curam agressões, a dos velhos que “sonham” e trazem notícias dos mortos. 293 epidemias e geraram desentendimentos entre grupos familiares, acusando-se mutuamente pelo contágio. Começaram então as negociações acima mencionadas: caso recebessem da Funai os objetos que iam buscar longe, parariam de “andar”. As expedições diminuíram, mas não cessaram completamente. Devemos nos perguntar se esses líderes interromperiam mesmo suas andanças pelos caminhos que eles abriram em busca de novos lugares e recursos desejados por seus seguidores. E assim voltamos à pergunta posta acima: o que faz determinados líderes “grandes homens”? Quais são os feitos desses jy, rememorados e transmitidos até hoje? A partir de pesquisa realizada no final dos anos 1990, Havt enumera um certo número de “homens importantes”12, cujas “iniciativas e ações pioneiras na promoção da ocupação configuram-se em exemplos que são seguidos” (2001: 188). As indicações convergiam sempre quando os interlocutores da antropóloga identificavam “homens adultos, plenamente maduros, reconhecidos por serem detentores destacados – em comparação a outros homens – de conhecimentos relativos: 1) aos saberes atribuídos aos antigos; 2) às histórias acumuladas de trocas entre os grupos locais; 3) à capacidade de transmitir conhecimentos e distribuir adequadamente alimentos e bens de maneira geral” (Idem). Teríamos pelo menos neste último elemento uma clara continuidade entre a ação dos líderes mais velhos e a dos jovens jy atuais: são provedores e são capazes de transmitir conhecimentos. 12. Basta lembrar a ênfase com a qual esses jovens identificam um jy como alguém que “sabe pensar para conhecer”, ou, dito de outra forma alguém que “se preocupa” em gerir relações para obtenção desses saberes. Teríamos, atualmente, uma mudança no teor dessas preocupações e no conhecimento a transmitir? Vejamos o que me diziam, em 2012, homens e mulheres, jovens ou mais velhos, a esse respeito. Alguns,13 enfáticos, me diziam que agora, os velhos (taimi) não seriam mais chefes, apenas os jovens (ta’an). Outros explicitavam que os velhos não conhecem nem falam das coisas hoje necessárias aos Zo’é: “não pensam nisso, não falam disso... nem sabem o que é pilha, alguns achavam que pilha é o enfeite labial do branco... quando viram machado pela primeira vez, não sabiam o que era, tentavam quebrar pedra com ele e jogavam fora”. Os autores desse tipo de comentário concluíam sempre que um jy deve se preocupar em obter as coisas dos brancos. E novamente comparavam: “agora, os velhos ficam parados, não andam, não vão buscar nada”. Outros ainda destacam que os jovens trabalham (kiapiruhu),14 ao passo que os velhos – de novo o mesmo elemento do diagnóstico – “ficam parados”. Uma das habilidades mais significativas nos comentários dos Zo’é acerca de seus jy é a disposição para capturar e fazer circular conhecimentos. A capacidade de buscar e de colocar esses conhecimentos em movimento, vem a ser o aspecto mais relevante nos relatos acerca de trajetórias de personagens importantes, tanto hoje como no passado.15 O “caráter marcante das trajetórias de homens importantes” (Havt, 2001: 188) inclui em especial a abertura de novos caminhos, ou seja, a capacidade de encontrar locais apropriados para a ocupação, levando em conta os saberes e atuação dos seus ancestrais; rememora-se também a determinação em ir ao encontro de estranhos. Quando Havt perguntava quem eram os jy passados e atuais “os falecidos Tamiri, Sarakut, Towari, Sihe, Dyby uhu, Bikut, etc., como os também mencionados Biri, Tehun, Keapu são referências constantes” (Idem). Note-se que esses líderes foram inclusive identificados pelos Zo’é como cabeças de grupos locais, no momento da identificação da terra indígena; os diagramas e croquis que resultaram desse levantamento (Gallois & Havt, 2008) parecem ter sido considerados durante algum tempo pelos indigenistas da Funai, quando queriam identificar os “chefes verdadeiros” – ou seja, os mais velhos – e assim desautorizar os jovens líderes que começavam a despontar em meados dos anos 2000. 13. Um dos meus interlocutores, nessas conversas sobre formas de liderança, foi Biri, um dos “homens importantes”, reconhecido na década de 1990. Seu depoimento não destoava em nada dos interlocutores mais jovens ao atestar que os chefes, hoje, são apenas os mais jovens. 14. Os jovens usam normalmente o enunciado “trabalham muito!” em português, algumas vezes reforçando pela formulação kiapiruhu, na língua Zo’é, que, no entanto, tem um sentido ao mesmo tempo mais restrito (de trabalhar na roça) e mais amplo (nos diversos contextos em que vem sendo aplicado atualmente). 15. Em acordo com Havt “avaliando dados conhecidos de trajetórias, recentes como a de Tamiri e Sarakut, ou mais antigas – como Tamesi, Towari, etc. – percebese, juntamente com a implementação de ações de ocupação, iniciativas diversas e multidirecionadas de aproximação ou renovação de laços com outros grupos locais. Da promoção dessas iniciativas resultariam oportunidades de acumular e/ou fazer-se depositários dos conhecimentos trocados em contextos de encontro e convívio” (2001: 190). 294 Mas de que conhecimentos se trata? Estariam os Zo’é dizendo que, hoje, interessa apenas saber onde e como obter as desejadas mercadorias dos brancos, saber como lidar com os agentes da Funai, com as comunidades no entorno da terra indígena? Ouvi, de alguns jovens líderes, muitas afirmações nesse sentido. São de fato esses assuntos que, como dizem, os fazem pensar, os preocupam. E para tanto remetiam à comparação com figuras importantes no passado, como Siherabyt, um ancestral a quem todos os mais velhos se referem quando apontam a origem de seus saberes e práticas. “Sabemos isso, porque Sihet contou”. “Não sabemos disso, Sihet não disse nada a respeito”. E os jovens, hoje, enfatizam: “o tempo de Sihet acabou”, “não nasci no tempo de Sihet”, “Sihet não pensa nisso, em panelas e redes dos kirahi, não sabia [da existência] dessas coisas”. Apontam que os mais velhos, outrora líderes reconhecidos, não aprenderam a fazer circular conhecimentos sobre os objetos dos brancos, sobre os lugares onde podem acessá-los, ao contrário dos jovens que se mobilizaram para aprender a respeito. Razão pela qual, como me disse um dos jovens líderes: são eles hoje que sabem “recolocar [em pé] os Zo’é”. Essa formulação é importante, pois remete ao movimento da cosmologia zo’é, em que não há criação (ex-nihili), mas sempre recriação da humanidade, que é reerguida. Assim, uma figura importante – por vezes confundida com a de um “criador” (no sentido cristão) – é Nipuhan, que reergueu os Zo’é após o dilúvio e o incêndio que derrubou uma das humanidades anteriores, e que é também rememorado por transmitir um conjunto de saberes e práticas reportadas até hoje como “ensinadas por Nipuhan” ou “aprendidas no tempo de Nipuhan”. O mesmo ocorre com Siherabyt, que poderia ser entendido com outro recriador, na medida em que definiu um rumo e transmitiu conhecimentos à atual geração dos mais velhos entre os Zo’é, depois de um período de conflitos com inimigos. E o mesmo para cada um dos velhos que eram, a seu tempo, 16. homens-esteio, e que orientaram seus grupos familiares em buscas e apropriações de lugares e conhecimentos, num passado mais recente. É sobretudo significativo o modo como esses ciclos são enunciados, seja na forma retrospectiva – seguindo a prática do discurso reportado, em que se identifica sempre a fonte de algum conhecimento – como também prospectiva. É o que me diziam os jovens: não nasceram no tempo de Siherabyt, tempo que se esgotou, nasceram no tempo da Funai. E por isso, no futuro, os saberes sobre a Funai e sobre os kirahi serão reportados a eles. No futuro, os jovens dirão: conforme os dizeres de Te. ou de To., que nos ensinaram, aprendemos sobre isso. Explicaram inclusive que, quando os velhos de hoje morrerem, falar-se-á também de tudo que esses ensinaram. De fato, hoje, já se reportam a destacados homens maduros como Bi. e Kw., quando mencionam os saberes e práticas que esses velhos legaram aos jovens. E aqui, a lista é infindável: caminhos e lugares de inimigos, caminhos e lugares adequados para roças e para caçadas, cantos, artefatos... A capacidade de liderança é por natureza aquela que será rememorada, na forma de relatos sobre trajetórias, de movimentos de apropriação e circulação de conhecimentos. Conhecimentos que não são necessariamente excludentes: simplesmente, enfatiza-se através do discurso reportado quem aprendeu e ofereceu determinado saber, que continua em circulação até hoje. Por todas essas razões, os Zo’é valorizam hoje seus jovens líderes, capazes de trazer conhecimentos novos, em complemento aos saberes dos antigos, que seguem valorizados e colocados em prática, sob incentivo de seus detentores. Os mais velhos entoam cantos,16 organizam festas, ensinam a respeito dos inimigos e dos aliados de outrora. Os mais jovens se preocupam em se apropriar objetos de saber, que eles tiveram a competência de identificar em seus próprios movimentos. Tudo, enfim, é questão de autoridade. Autoridade sobre saberes que, pouco importando Cabe ressaltar que alguns jovens líderes, ao invés de excluir categoricamente os mais idosos da posição de jy, os definem como “jy de cantos”, ou seja, alocam a competência de liderança e esse campo de saberes e práticas que os velhos movimentaram, ao longo de sua trajetória. Vale notar que algumas mulheres também são designadas como jy de determinados cantos e saberes que souberam acumular e, sobretudo, disseminar, ao longo de sua trajetória de vida. 295 se são “tradicionais” ou “de fora”, são reconhecidamente adquiridos por indivíduos com habilidades para a liderança, sejam os jovens chefes de hoje ou os velhos de antigamente. Um modo de construir liderança que segue o modelo até hoje rememorado dos feitos dos grandes homens de que falam os relatos “dos antigos”. Reconhecemos aí a capacidade de multiplicação da chefia ameríndia, que possibilita a proliferação de formas de liderança, nunca contidas em um mesmo formato, nem no tempo nem no espaço. Os Zo’é configuram uma sociedade tradicional e, portanto, não tradicionalista (cfr. Lenclud, 1987: 118). E por esse motivo, por ora, eles não atribuem aos saberes “dos antigos” um valor exclusivo para a definição de seus rumos de futuro. BIBLIOGRAFIA ABRIL, Albert. Los Zo’é y el espejismo de la selva feliz. In Revista Altair, nº 63, 2010. ASSIS, Rogério. Zo’é. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. BERMAN, Débora. Crepúsculo de uma raça. Os donos do poturu. In: Manchete, 1989. CARTAGENES, Rosa. Os Zo’é e a nova marcha para o oeste. In: Povos Indígena no Brasil 2001-2005. ISA, 2006. _____. Zo’é: os Tupi da fronteira do mundo. 2009. DESCOLA, Philippe & LORY, Jean Luc. 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Por isso quando pareço não concordar comigo, Reparem bem para mim: Se estava virado para a direita, Voltei-me agora para a esquerda, Mas sou sempre eu – assente sobre os mesmos pés (...). Alberto Caeiro. Os trabalhos em etnologia na região das Guianas, sobretudo aqueles feitos por pesquisadores brasileiros, geralmente tocam, de modo mais ou menos direto, em questões concernentes às controvérsias envolvendo duas linhas de pesquisa opostas (e, a meu ver, muitas vezes complementares), personificadas nas figuras de Rivière e Gallois, respectivamente em seus livros “O indivíduo e a sociedade nas Guianas (2001)” e “Redes de relações nas Guianas (2005)”1. O que pretendo aqui, antes que posicionar-me em um dos polos da querela, é direcionar minhas atenções a um rendimento por vezes pouco explorado no contexto das produções mais recentes. A saber, a importância e as transformações contemporâneas das festas regionais que, no âmbito das redes de relações que conectam coletivos dispersos, configuram-se no contexto guianense como veículos de intercâmbio de pessoas, bens, tecnologia e, sobretudo, relações. 1. 2. 3. 4. 5. 300 A temática das redes de relações nas Guianas, onde, acredito, as festas possuem lugar central, foi explorada por muitos autores. Assim, Dreyfus (1993) mostra como, pelo menos desde o século XVII, essas populações participavam de complexas redes de alianças matrimoniais e circulação de objetos2. Esse espaço político de “comunicação social e ideológica” (Idem: 24) guianense abrangeria, nesse sentido, tanto guerras intertribais como trocas de bens, prisioneiros e mulheres. Dreyfus considera, porém, que no século XIX a escravidão e a queda demográfica decorrente das epidemias fizeram com que as redes do passado se transformassem em apenas um “sistema residual” do que antes existia3. De fato, o enfraquecimento de sistemas locais de interdependência nas Guianas parece ter tido um caráter pan-regional no decorrer do século XIX, como demonstram, por exemplo, ArveloJiménez & Biord (1994) para o Orinoco. Não acredito, contudo, que a partir disso possamos inferir automaticamente sobre o desaparecimento de tais sistemas ou tampouco considerar que o que hoje observamos é apenas um resíduo do que havia no passado. Penso, antes, que esse nunca deixou de ser um tema importante para a região4 – suposição que, de alguma forma, acredito ser confirmada pelos dados apresentados neste trabalho. Por outro lado, é igualmente importante termos em mente que o contato permanente com os brancos parece ter sido o catalisador, nesses sistemas, de diversas transformações. É sobre essas transformações que desejo tecer algumas considerações. Para isso, abordarei as festas por serem expressões privilegiadas dessas redes e de suas transformações5. Ao final, seguindo esse caminho será possível refletir de modo mais aprofundado sobre uma importante categoria guianense: Esse último organizado pela autora, com a contribuição de seus alunos. Sobre esse debate, ver também Rivière e col. (2007). A circulação de objetos e consequentemente de tecnologia é sugerida também pelos dados apresentados por Jácome (2011) e Guapindaia (2008) para as antigas populações da calha do rio Trombetas e por Rostain (2010) para a costa. Opinião semelhante a que tem Rostain (2008) sobre o desaparecimento dos centros de especialização regionais para a região costeira das Guianas. Outro exemplo é o que demonstra Butt-Colson (1973) a respeito das trocas de cerâmicas, canções, cães, etc. entre os Akawaio e seus vizinhos. Um esboço desse trabalho, em formato de pôster, foi apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 3 e 6 de agosto de 2014, Natal/RN. rawana, em Hixkaryana. É interessante que conheçamos, antes, as informações que estão disponíveis sobre o passado por meio das narrativas indígenas e outras informações etnográficas. AS FESTAS ANTIGAMENTE Basso (1977: 17) aponta como os grupos de língua Caribe são conhecidos por suas festas comunitárias que envolvem uma série de aldeias. Esses encontros, entretanto, geralmente não estão ligados, como em outros contextos ameríndios, a rituais funerários ou de iniciação. Servem, principalmente, como momentos de troca entre grupos que residem distantes uns dos outros6. Isso é semelhante ao que pude tomar conhecimento a partir de narrativas hixkaryana sobre as festas no tempo dos antigos, amynehran komo. Sabe-se que, antes do contato permanente com os brancos, tais festas aconteciam entre aldeias distantes que em determinadas épocas do ano reuniam-se em um só assentamento para cantar, dançar e compartilhar alimentos (Fock, 1963). Conta-nos M. Txekeryefu, da aldeia Torre: Antigamente, existia o awekarà. Eles vinham, os awekarà komo. Eram visitantes, pessoas que moram longe (...). Eles tinham recebido o aviso: “venham porque vai ter nosso banquete”. Tinha uma cordinha, tumxemo, era de contar os dias pra quem não tinha calendário. Servia para contar a vinda dos awekarà. (...) Eles mandavam levar pras outras aldeias. Era pra marcar o dia certo dos awekarà chegarem. Quando amanhecia, eles puxavam: “passou um dia” (...). Quando chegava ao final, eles sabiam: acabou. Agora eles estão aqui, já chegaram”. (...) Na data marcada eles apareciam, os awekarà. O dia certo era marcado com vermelho, com urucum. Cordas como a tumxemo eram encontradas entre outros grupos Caribe da região (Chaumeil, 2005) e utilizadas sobretudo para mensurar o tempo. No caso dos Hixkaryana, a corda-convite era feita com enfeites de plumas e tantos nós quantos fossem os dias até a data marcada para a festa, de modo que, a cada dia, um nó era desfeito.7 Assim, os moradores das outras aldeias chegavam no dia assinalado pela marca de urucum. Enquanto isso, o dono da festa, aquele que a tinha convocado e era responsável por providenciar o alimento para os convidados, já havia organizado expedições para buscar a comida necessária. Os visitantes vinham cantando e tocando seus instrumentos ainda dentro das canoas, na chegada. Os anfitriões eram os tarymaxe komo,8 e eles esperavam seus convidados na beira do rio, pintados com tabatinga (kawawu). Nesse momento já estavam prontos para a luta, que começava tão logo o anfitrião escolhesse seu oponente. Entre os lutadores, havia os awekarà komo, os de fora, e os txetxayeno komo,9 os da aldeia. Segundo Txekeryefu, quando uma pessoa era derrubada, os outros diziam: “pronto, acabou, você não precisa se vingar. Ele foi mais forte que você”. Ele relata ainda que os lutadores arranhavam o antebraço, as coxas e a panturrilha com as unhas do tatu-peba para ficarem fortes como esses animais, que são capazes de derrubar uma pessoa.10 6. Como de costume, algumas exceções são conhecidas. Para a região do Pará setentrional, onde se incluem os Hixkaryana, um exemplo é a festa do rapé (morí) descrita por Frickel (1961) para os Katxuyana no rio Trombetas. Segundo o autor, tratava-se de um ritual sem “alegres músicas ou danças das festas normais; nada de mulheres e por conseguinte, nada de gritaria, barulho, bebedeira e amores clandestinos” (Idem: 1-2). Em oposição às “festas normais”, objeto desse trabalho, a festa do rapé era um ritual de cura e profilaxia. Entre os Hixkaryana, ouvi relatos do mesmo tipo de ritual no passado, coordenado pelos xamãs. O rapé, entretanto, não figurou nessas narrativas. Os xamãs hixkaryana utilizavam, para o mesmo fim, defumações e pedras mágicas. 7. Além de convite para festas as tumxemo eram também marcadores de passagem temporal na antiga contagem do tempo hixkaryana (Lucas, 2014a). 8. Literalmente, “aqueles que estão para serem derrubados”, mas do ponto de vista dos que chegam para lutar (awekarà). A raiz da palavra, aryma, é também o verbo utilizado para jogar, lançar, derrubar. 9. Trata-se aqui de outra denominação para tarymaxe komo, mas desta vez não do ponto de vista dos awekarà. 10. A presença de lutas entre grupos falantes de línguas Caribe é característica marcante daquelas populações que habitam hoje o Alto Xingu, assim como é também ali que são mais frequentes os relatos de escarificações no corpo do lutador. Sobre esse assunto cf., por exemplo, Avelar (2010). 301 Tais lutas eram apenas parte das festas, que contavam também com grandes refeições coletivas (carne de caça e frutas trazidas anteriormente pelos homens e alimentos à base de mandioca preparados pelas mulheres) e várias danças: Dançavam [dentro do maya, a casa comunal]. Depois bebiam, comiam. Isso era a noite inteira, até amanhecer. Era assim antigamente. Era bonito. Se você estivesse lá para filmar, seria muito bom. Eram danças muito bonitas de se ver. Tinha muitas músicas também. Muitas músicas mesmo. Eles cantavam, cantavam, cantavam, até amanhecer. Terminavam às cinco horas da manhã. Iam, tomavam banho, porque esse era o jeito que eles viviam. (...) Era bonita a nossa dança, era como a dança que tem em Parintins.11 (...) Tinha a nossa bebida, que era igual cerveja, chamada woku. Eles bebiam e ficavam bêbados. (...) – Você bebe cerveja? [Eu:] – Um pouquinho. A gente também bebia assim. Mas outros bebiam muito, e esses ficavam bêbados. Dormiam. Outros dormiam no chão mesmo, estavam bêbados por causa da nossa bebida, woku ymo12 M. Txekeryefu, aldeia Torre. Dentre tais danças, destaca-se na literatura e nas narrativas hixkaryana a do Yamo, estudada por Fock (1963) na década de 1950 entre os Waiwai, vizinhos imediatos dos Hixkaryana e seus tradicionais parceiros de troca. Fock (Idem: 170-172) informa, baseando-se em relatos waiwai, que o Yamo era um “festival de dança” que se prolongava por até dois meses, com intervalos pequenos. Na primeira parte da festa, apenas os homens participavam, com roupas de palha que deixavam à mostra somente os pés e uma das mãos, que era usada para tocar a flauta mahoà, interdita às mulheres. Na etapa seguinte a flauta era substituída por um chocalho, e aí então era permitido às mulheres participar oferecendo diretamente comida aos 11. dançarinos e permanecendo no meio do círculo da dança, observando uma importante separação por gênero. A respeito desses instrumentos utilizados na ocasião das festas encontrei atualmente, entre os Hixkaryana, os seguintes: Txeryekra: flauta de bambu, geralmente tocada em par por mulheres, sem digitadores, com dois orifícios e uma extremidade fechada e outra aberta. Kosoyotxo: flauta feita de osso de veado, com três orifícios de digitação e as Aerofones extremidades abertas. (flautas) Weryekye: flauta de madeira com quatro orifícios de digitação alinhados no centro do instrumento e as extremidades abertas. Xakryekrye: flauta tocada na posição transversal, com as extremidades fechadas e dois orifícios de digitação em cada ponta. Kwatxe: instrumento confeccionado com o casco de tracajá limpo, é tocado por fricção. Kamafura: espécie de tambor feito de Instrumentos madeira da árvore karakru yohà (da qual se de Percussão extraem sementes, regionalmente conhecidas como morototó, usadas para artesanato) recoberta por couro de preguiça, cutia, onça ou porco do mato. É importante salientar que, em relação a essas festas, observase a presença indispensável dos convidados. Existe um termo bastante importante e amplamente difundido na região que designa, de modo geral, os visitantes. No caso dos Hixkaryana, diz-se rawana toda pessoa que sai de sua aldeia em direção a Aqui Txekeryefu faz referência ao Festival Folclórico de Parintins, que acontece todos os anos no último final de semana de junho, movido pela rivalidade entre as agremiações dos bois Caprichoso e Garantido e para o qual vários Hixkaryana se mobilizam para participar. 12. Ymo é um sufixo para indicar grandeza (e, em alguma medida, periculosidade), sendo seu inverso txeko, ou simplesmente tye. 302 outra, seja para participar de uma festa, de uma reunião, para encontrar seus parentes, etc. Dias Jr. aponta outras variações que o termo apresenta nas Guianas: A ocorrência dos cognatos pawanas encontra algumas variações: entre os Akawaio, Tiriyó, Waiwai e Wayana, o termo expressa o “não vizinho”, “não parente”, “visitante” e “forasteiro”, respectivamente. Variações podem ser notadas como pana entre os Aparai, pabanoton entre os Kamarakoto, pawanaton nos Pemon e panary entre os Wajãpi. (...) Entre os Akawaio, (...) o termo pode ser traduzido por “aqueles que vendem”; (...) os Wayana utilizam-se do termo para falar dos “Bush negroes” da República Guiana com quem estabelecem relações de troca; Rivière (1969) menciona o termo ipawana entre os Trio como parceiros de troca distantes; Thomas (1972: 14) fala em pawanaton (“gente comerciante”) usado pelos Pemon em suas trocas comerciais com índios e não índios. Dias Jr., 2005: 20. No mesmo sentido de Rivière (1969), Grotti (2009: 173) indica como ainda hoje o termo trio ipawana é utilizado para designar parceiros formais de trocas, sobretudo os maroons que mantêm contato frequente com os Trio do Suriname. De semelhante maneira, Barbosa (2007: 97) também observa a atualidade do termo para os Wayana e Apalai. Como afirma Dreyfus (1993: 24), trata-se de fato de um conceito “pan-guianense”, tanto em relação à coisa designada quanto à palavra utilizada. Dias Jr. observa, contudo, que enquanto em alguns grupos pawana pode designar um parceiro formal de troca, entre os Waiwai o termo é aplicado genericamente para pessoas de fora que estejam por alguma razão presentes na aldeia e com quem se pode ou não estabelecer alguma negociação.13 Acredito que entre os Hixkaryana a palavra rawana funcione de modo semelhante ao 13. 14. caso Waiwai, não designando necessariamente qualquer relação ou parceria formal de troca, mas sublinhando apenas o caráter estrangeiro daquele visitante. Em suma, é rawana quem vem de fora. Guardemos essa reflexão. MOVIMENTOS CENTRÍPETOS Desde pelo menos o século XVII os Hixkaryana mantiveram contato esporádico com padres jesuítas e capuchinhos que estabeleceram, na foz do rio Nhamundá, próximo de onde hoje se localiza a cidade de Faro, um polo missionário. As visitas desses religiosos às aldeias nas cabeceiras, porém, não eram frequentes. O contato com os brancos se intensificou apenas no começo do século XX, com a chegada de extrativistas14 e alguns viajantes. Mais tarde, no começo dos anos 1950, os Hixkaryana entraram em contato com a mensagem cristã evangélica através dos Waiwai, que são conhecidos na literatura por terem tomado, desde o começo de sua conversão, uma postura evangelizadora, buscando atrair para perto de si outros grupos da região (Howard, 2001). Além de “aceitar Jesus”, quiseram eles mesmos se tornar missionários, de modo que empreenderam expedições ao rio Nhamundá a fim de alcançar os Hixkaryana, como relata Horyeharma, em Kassawá: Vieram outros, que eram Waiwai. O nome dele era Pywa. Ele era missionário (...), era alguém que tinha ouvido antes um pouquinho. Tinha o filho dele também, o nome dele era Yempu. Ele ainda era menino, um jovem. Ele pregava e falava: “orem assim”. Ele falava: “orem e falem só um pouquinho”. Meu pai e os outros ouviam o que eles oravam: kiriwanyehe, kiriwanyehe, kiriwanyehe, que significa “bom” [em Waiwai], ohxe. Era assim que eles oravam, porque eles não sabiam como fazer. Então eles só diziam kiriwanyehe, É desse modo também que Hawkins (2002) traduz o termo em Waiwai apenas como “visitante”. Sobretudo de pau-rosa (Aniba rosaeodora Ducke) 303 maria luísa lucas kiriwanyehe, kiriwanyehe. Eles não diziam “o Senhor é maravilhoso”, só diziam kiriwanyehe, kiriwanyehe, kiriwanyehe. Eles cantavam também, tinha música também. Eles estavam começando a ouvir. Eles estavam começando a ouvir assim: “Jesus vem, Jesus vem”. Era só isso. Porque eles não sabiam, eles cantavam só a mesma coisa. Eles estavam começando a entender. Com a investida, algumas famílias hixkaryana deixaram o rio Nhamundá em direção a Kanashen, antiga base missionária na Guiana. De acordo com Caixeta de Queiroz (2009), apenas 15 famílias nucleares permaneceram no Nhamundá após as expedições dos Waiwai15. Vários descendentes daqueles que seguiram essa migração permanecem vivendo com os Waiwai, muito em razão da tendência uxorilocal de casamento. É nesse contexto que em 1958 Desmundo,16 missionário do SIL,17 subiu o rio Nhamundá. Em sua primeira viagem ele fez contato com uma família que vivia na antiga aldeia Mutuma (ou Mutum), no médio curso do rio, comunicando-lhes sua intenção de trabalhar na área. Cerca de um ano mais tarde, Desmundo voltou à região, mas tomou conhecimento que o chefe da família que havia conhecido falecera. Assim, seguiu com os filhos desse homem até a recém-aberta Kassawá, mais a montante, onde encontrou em Candinho Kaywerye seu principal informante. Desmundo iniciou então sua aprendizagem da língua visando traduzir o Novo Testamento e, ao mesmo tempo, contatou aldeias dispersas no território a fim de reunir os Hixkaryana em Kassawá para evangelizá-los. Para isso, contou ainda com a ajuda de sua esposa, Graça,18 que possuía formação em saúde e realizou diversos atendimentos entre os Hixkaryana, que na época sofriam com algumas doenças oriundas do contato com 15. Apesar de parecer pouco, muitas pessoas que hoje estão na área hixkaryana são descendentes daqueles que escolheram não sair de sua terra, já que se tratava de uma população, na época, de pouco mais de cem pessoas. 16. Desmond Derbyshire, a quem os Hixkaryana sempre chamaram Desmundo. 17. Summer Institute of Linguistics. 18. Grace Derbyshire. 305 brancos. Uma vez concentrados em Kassawá, os Hixkaryana passaram a ouvir de Desmundo sobre as práticas que ele considerava abomináveis, como a poligamia, o sexo fora do casamento e a ingestão de bebida fermentada. Os Hixkaryana, desde então, condenam esses comportamentos, ainda que não seja raro tomar conhecimento de tais ocorrências. Algumas outras práticas, porém, não estavam abertas a esse tipo de negociação, onde podemos salientar a residência uxorilocal e, de modo muito significativo, as festas regionais. Kassawá tornou-se, com o passar do tempo, uma aldeia de grandes proporções, onde vivem hoje quase quinhentas pessoas. Todas os núcleos populacionais que estabeleceram contato com Desmundo nessa época acabaram se mudando para a aldeia, o que alterou também as festas pois, como vimos, era indispensável para sua realização a presença de visitantes vindos de outras aldeias. Howard (1993) descreve essas transformações para os Waiwai do rio Anauá, da extinta aldeia Kaxmi, onde viveram algumas famílias hixkaryana no passado. Segundo a autora, que desenvolveu seu trabalho de campo na década de 1980, a partir dos anos 1960 as festas comunitárias ganharam contornos distintos em toda a região. Em primeiro lugar, elas passaram a ocorrer nas datas cristãs do Natal e da Páscoa. O mais notável, todavia, fora a “inversão cômica” (Idem: 229) decorrente da ausência de visitantes de outras aldeias, consequência direta da mudança no padrão de assentamento. Com a formação de grandes aldeias e a impossibilidade de convidar pessoas que não sejam corresidentes, os Waiwai passaram a improvisar, eles mesmos, a condição de visitantes estrangeiros. O detalhe, contudo, é que o fizeram por meio da performance de um comportamento inadequado aos olhos dos próprios índios. Assim, os pawana waiwai (as mesmas pessoas que vivem na aldeia durante todo o ano, mas no período das festas se ausentam para caçar durante vários dias e voltam como visitantes) não sabem o que é beiju ou tapioca ou como estabelecer uma conversa em Waiwai. Toda a situação é percebida com muito humor, e cabe aos Waiwai, nesse momento, ensiná-los a se portar de modo apropriado. 306 De maneira parecida, o filme “Histórias de Mawary” (Caixeta de Queiroz e col., 2009) mostra a festa de Natal da aldeia Mapuera, na década de 1990. Nele podemos ver algo condizente com o que Howard descreve em seu artigo: homens da aldeia chegando à festa como visitantes e trazendo a caça que coletaram no mato. Eles, contudo, não são capazes de falar de modo inteligível, não sabem atirar flechas, se vestem de modo inadequado e não sabem andar muito bem. Há, entre eles, um homem vestido de garimpeiro, que também é um pawana. Eles se dirigem à maloca de festas e tomam parte nas brincadeiras e na refeição coletiva preparada especialmente para os visitantes. Segundo Howard (1993: 253), essas são ocasiões marcadas pela alegria (tahwore), manifesta pelo riso, pela jocosidade e pela beleza. Acrescendo ainda que as festas em toda a região são também os momentos por excelência em que aparecem os adornos plumários, de sementes e certas peças de cestaria (Yde, 1965) que não são utilizados no cotidiano, embora muitos deles fizessem parte da indumentária no passado, como é o caso das tangas femininas. Enfim, para a autora, a alegria e o humor são estratégias waiwai no processo de socialização do exterior (“waiwaização”), percebido pela “farsa” dos pawana, e quem tem como objetivo central a domesticação da alteridade: Vimos que os “estrangeiros” são representados como abaixo da escala humana; eles mostram muitas características “naturais”, animalescas. Mas tais características traem um poder que, se “domesticado” e controlado, canalizado pela troca, tem a capacidade de reinfundir a sociedade waiwai com forças geradoras indispensáveis Howard, 1993: 259. Em março de 2013 pude acompanhar a festa da Páscoa em Kassawá. Sua descrição nos permite constatar que ela guarda diversas semelhanças com aquilo que descreve Howard para os Waiwai. A partida dos caçadores Na terça-feira anterior à páscoa, às cinco da manhã, um dos tuxawas19 chamou todos da aldeia ao maya, construção semelhante à antiga casa comunal e hoje utilizada para festas e reuniões políticas. Ele fez isso com um grito grave e contínuo que sempre é usado pelas lideranças para convocar grandes reuniões coletivas. Chegando lá, havia duas mesas em cada extremidade. Uma era destinada à refeição dos homens e outra à das mulheres. Na dos homens havia muito mais comida que na das mulheres, sobretudo beiju e farinha. Esse era o momento de reunir o alimento daqueles que iriam para a mata conseguir a caça necessária para a realização da festa. A distribuição das pessoas dentro do maya está representada abaixo, onde os quadrados indicam as mesas e as marcas em H e M a concentração de, respectivamente, homens e mulheres em determinado local. Muito embora não haja nenhuma restrição formal a respeito de qual porta deve ser utilizada por cada grupo de pessoas ou um esquema de posições rígido, todas as vezes que participei de atividades no maya era mais ou menos essa a configuração. (porta) velhos lideranças H H H H H H H H H HHH caçadores M M M M M (porta) 19. jovens H H M M O tuxawa começou então um longo discurso a respeito de quem iria caçar. Esse era o momento em que aqueles homens que desejavam ir para a mata deveriam se pronunciar. Aos poucos alguns deles saíram de seus lugares e formaram uma fila a seu lado, e ao todo 11 pessoas se dispuseram a acompanhá-lo. O chefe dos pastores esclareceu que não iria porque ficaria para coletar bacaba e buriti. Assim, após uma oração para agradecer e abençoar o alimento, os caçadores começaram a comer a comida disponível na mesa dos homens. Algumas mulheres buscaram comida em sua mesa para distribuir para outras mulheres e crianças. Na saída dos caçadores mais pessoas resolveram se juntar ao grupo e havia aproximadamente 25 homens, contando crianças e jovens. Muita gente acompanhou a partida dos caçadores na beira do rio. A chegada dos caçadores Era quinta-feira, e desde o dia anterior as mulheres preparavam muita farinha, beiju e bebida de goma (woknano). No começo da tarde as esposas daqueles que tinha ido caçar foram chamadas ao maya para levar a comida de seus maridos. Às cinco horas da tarde foi a vez de chamar todas as mulheres: elas também deviam levar comida. Já de noitinha, os caçadores chegaram à beira do rio, dançando e cantando em pé nas canoas. Todos desceram com suas caças nas mãos ou guardadas em jamanxins improvisados com folhas de palmeira. Eles se dirigiram à frente do maya e continuaram cantando músicas diferentes das canções que me acostumei a ouvir na igreja. Eram melodias com ritmo bem mais marcado e próximas das poucas músicas que ouvi dos velhos quando conversamos sobre os festivais de dança, como o yamo. Os caçadores então dançaram em volta da construção e entraram em fila, guiados Esse é o termo que os Hixkaryana usam em português para se referirem às lideranças políticas, grafando-o, porém, de acordo com o alfabeto convencionalizado por Desmundo e largamente utilizado hoje pelos Hixkaryana. 307 pelo tuxawa. Nesse momento as mulheres estavam no centro do maya com os alimentos que trouxeram, esperando os homens. Eles chegaram, cantaram e dançaram em volta delas. Alguns homens passaram os pedaços da caça que trouxeram, ainda com sangue, nas mulheres, que se irritaram e gritaram. Depois disso, os homens se organizaram em um grande círculo. Era a hora de as mulheres oferecerem a eles a comida preparada pelas mulheres. À tarde aconteceu mais um culto, e nessa ocasião alguns pastores tiveram conversas particulares com jovens que iriam se confessar no culto de domingo. À noite que haviam trazido (beiju, bolo, pão, bolacha, refrigerante, suco, bebida de goma). A maioria das bebidas, com exceção do refrigerante, foi servida em panelas que as mulheres levam à boca dos homens. As comidas eram guardadas em sacolas plásticas, e as crianças que foram com seus pais também estavam na fila. Nesse momento as músicas dos cultos evangélicos começaram a tocar. Antes das sete da manhã houve mais uma refeição no maya. Alguns homens iriam sair para coletar frutos rio acima, e por isso não haveria outra refeição coletiva à tarde. Os homens voltaram no fim do dia, com os frutos que coletaram dispostos também em jamanxins improvisados. Fomos para o maya e esperamos a reunião e entrada dos homens. Quando todos eles chegaram, dançaram em volta do maya. O que seguiu foi muito semelhante à recepção dos caçadores. Após a distribuição dos frutos as mulheres voltaram pra casa para preparar com eles as bebidas de goma. A caça que os homens trouxeram, que estava amontoada, foi então organizada em círculo de acordo com o número de famílias que havia se disposto a contribuir com a festa no preparo dos alimentos. Um professor indígena chamou uma a uma as famílias no microfone, geralmente pelo nome do homem. Cada um pegou seu pedaço de caça e foi para casa. Sexta-feira de Páscoa Pela manhã, todos comemos juntos no maya, onde a disposição das mesas e das pessoas foi a mesma daquela mostrada na figura. Enquanto as pessoas chegavam os cantores se ocupavam com músicas da igreja, e algumas meninas dançavam as mesmas coreografias executadas nos cultos. Quando todos já estavam presentes o chefe dos pastores fez uma oração e os diáconos e suas esposas distribuíram a comida para cada grupo. Novamente, havia mais comida na mesa dos homens. No fim da refeição todos recolheram suas panelas e voltaram para suas casas. Ainda pela manhã houve um culto na igreja, bastante similar aos que acontecem normalmente. Depois, outra refeição coletiva ocorreu, mas dessa vez com a caça trazida no dia anterior e 308 houve outra refeição coletiva. Sábado de Páscoa No fim da tarde, houve outra refeição coletiva, mas havia bem menos comida que nos outros dias, sobretudo na mesa das mulheres. Por volta das oito da noite começou um culto em que não houve pregação, apenas música. Essa era uma ocasião esperada com grande entusiasmo. Praticamente todas as pessoas da aldeia foram divididas em categorias (homens, mulheres, professores, pastores, diáconos, merendeiras da escola, agentes de saúde, etc.), muitas delas sobrepostas. Cada grupo de pessoas foi então à frente e cantou uma música que escolheu no vasto repertório de canções cristãs em Hixkaryana. O microfone ficava com uma dessas pessoas e as outras seguiam a música. A celebração prosseguiu até meia-noite. Domingo de Páscoa No domingo, a música começou antes das seis da manhã, e a refeição coletiva foi logo em seguida. Depois houve o culto com o testemunho daqueles que haviam conversado com os pastores na sexta-feira. Nessa ocasião, menos que uma descrição detalhada dos pecados cometidos, as pessoas frisaram o modo pelo qual Satanás as enganou. Como em todos os domingos, após a ceia aconteceu outro culto. Depois de mais uma refeição, foi organizado um torneio de pênaltis com premiação (50 e 30 reais para os dois primeiros lugares) e um jogo de futebol. No fim do dia, na última refeição coletiva, já quase não havia comida. Depois que todos comeram o que restava, o tuxawa organizou uma dança tímida com alguns homens e crianças, na volta para casa. O dia acabou com mais um culto, muito parecido a todos os demais, e se encerraram assim as comemorações da Páscoa. O que notamos, a partir dessa breve descrição, é que a música e a dança, agora presentes nos cultos que se repetem diariamente, permanecem sendo fundamentais nas festas. A continuidade com o passado torna-se ainda mais evidente, porém, na chegada dos caçadores, quando aqueles que se ausentam da aldeia e retornam como visitantes20 dançam em volta das mulheres com a caça que trouxeram e depois são alimentados por elas (como vimos, algo muito similar ao que Fock descreveu para o festival yamo). Além disso, as refeições coletivas continuam sendo parte central da festa, e mesmo quando a comida já se encontrava escassa, todos se reuniam para partilhá-la. Porém, como vimos no argumento de Howard da “farsa dos visitantes”, a concentração de grupos dispersos em grandes assentamentos fez com que as festas passassem por uma transformação importante em relação ao passado ao não contarem mais com os convidados que chegam de outras aldeias (e, ainda, ao aconteceram nas datas cristãs do Natal e Páscoa). Esses visitantes performados, contudo, muito provavelmente indicam o valor dos rawana para os povos da região, antes que sua desaparição. Desejo contribuir um pouco com esse debate apresentando configurações recentes das festas regionais entre os Hixkaryana que, a meu ver, apontam para a importância dos visitantes em toda a região, ao mesmo tempo que chamam a atenção para mais uma faceta de suas transformações. MOVIMENTOS CENTRÍFUGOS E CONFERÊNCIAS CRISTÃS Como vimos, antes do contato permanente com os missionários evangélicos os Hixkaryana viviam dispersos ao longo de seu território em pequenas aldeias. A concentração desses grupos em Kassawá, empreendida no fim dos anos 1950, permaneceu inalterada até algumas décadas atrás. Nos últimos 20 anos, porém, núcleos residenciais distribuídos em “bairros” de Kassawá iniciaram um movimento de dispersão na área, fundando aldeias de pequenas proporções na parte mais baixa do rio. Hoje existem dez dessas novas aldeias, várias delas com pouco mais de 20 pessoas. As causas apontadas para esse deslocamento são várias, onde podemos citar desde a morte de um parente até o acesso mais fácil à cidade.21 As informações disponíveis sobre essas aldeias (Lucas, 2014b) indicam que há hoje, no rio Nhamundá, modos diferentes de viver em comunidade, com variadas configurações possíveis. Por exemplo, enquanto em Kassawá quase 500 pessoas vivem em um só assentamento, empenhando-se em diversos tipos de relações com agentes não indígenas (missionários, enfermeiros, funcionários da Funai, da Seduc/AM, etc.) e reunindo-se apenas em determinadas ocasiões como cultos, conferências cristãs, festas e trabalhos coletivos, percebemos que, apesar da maior proximidade com a cidade, essas relações não são as mesmas no cotidiano das aldeias recentes, onde além de ser menor a circulação dos brancos, as pessoas estão espacial e relacionalmente mais próximas umas das outras, mantendo entre si certo contato diário que faz com que a socialidade em Kassawá 20. Ainda que essa condição não fique tão evidente na descrição da festa da Páscoa, ao conversar com os Hixkaryana soube que, no Natal, quando a festa é maior e os preparativos duram mais tempo (os caçadores podem sair da aldeia com quase um mês de antecedência), o caráter de estrangeiro dos que chegam é mais marcado. 21. Uma vez que tais aldeias se localizam, ao contrário de Kassawá, fora das áreas encachoeiradas do rio Nhamundá. 309 e nas demais aldeias seja, para quem toma conhecimento desses contextos, evidentemente diferente em cada um dos casos. Apesar de esse ser um tema fascinante, interessa-nos aqui uma consequência direta dessa dispersão. Nos últimos anos, entre os Hixkaryana,22 as festas do Natal e da Páscoa têm sido feitas também nas aldeias pequenas. A cada vez uma delas é escolhida como anfitriã da celebração, recebendo diversos visitantes dos assentamentos vizinhos e sendo responsável por alojá-los e alimentá-los. Ao final de cada comemoração é combinado onde acontecerá a próxima festa. Dessa forma, desvinculam-se da comemoração em Kassawá ao mesmo tempo que, com isso, recebem rawana de outras aldeias. Nesses casos, os visitantes não são, como nas grandes aldeias, performados. De fato, aqueles que chegam cantando em suas canoas vêm, como no passado, de aldeias vizinhas. Ao mesmo tempo, não participam mais das lutas ou bebem caxiri. Empenham-se, agora, em participar das refeições coletivas, das orações e das danças e músicas nos cultos e na casa de festas. Outro tipo de encontro desenvolvido mais recentemente é igualmente capaz de articular continuidade e inovação no que diz respeito ao tema das festas regionais entre os Hixkaryana: trata-se das conferências cristãs.23 No período em que estive em Kassawá, a comunidade estava muito envolvida na organização de uma conferência que aconteceu em julho de 2013, o CONPLEI regional. O CONPLEI (Congresso Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas) é uma organização interdenominacional que se caracteriza por promover a articulação de indígenas evangélicos que vivem no Brasil por meio de diversos encontros e congressos. Fundada na década de 1990, a organização está ligada à “terceira onda missionária”, que foi assim definida por Paulo Nunes, representante do CONPLEI: 22. Por que terceira onda? Porque nós indígenas acreditamos que a primeira onda foi o estrangeiro trazendo o evangelho para o Brasil, e que chegou também até nós indígenas. Depois, com essas restrições, a igreja nacional, que nós denominamos a segunda onda missionária, eles também se levantaram e continuaram levando o evangelho pra nós. E com a retirada da primeira e da segunda onda a gente precisava se levantar, e Deus mesmo nos levantou hoje, numa terceira onda missionária pra nós pregarmos a palavra de Deus pro nosso povo indígena no Brasil.24 O último congresso nacional do CONPLEI aconteceu em 2012, em um centro de conferências na Chapada dos Guimarães, Mato Grosso. Segundo a organização do evento, indígenas de 81 etnias e 15 países estavam presentes, dentre eles alguns pastores hixkaryana. A organização empenha-se ainda na manutenção do abrigo “O Coração do Pai”, que, em parceira com a ONG Hakani e os proponentes do Projeto de Lei nº 1057/2007, visa retirar das comunidades indígenas crianças em situação de “risco social”, o que, para eles, resume-se às crianças com alguma possibilidade de serem mortas por infanticídio. Há, ainda, conferências regionais do CONPLEI, como a que aconteceu em Kassawá. Ligados à “terceira onda missionária”, esses encontros são propostos pelos próprios indígenas a fim de reunir, durante alguns dias, grupos que estejam mais ou menos próximos. O “mini-CONPLEI”, como também é conhecido, acontece em diversas regiões do país, autonomamente. No caso do evento em Kassawá, embora não tenha podido acompanhá-lo, participei de seus preparativos. Dentre eles, a construção de uma nova casa para os visitantes, a arrecadação de pelo menos uma saca de farinha por cada família da aldeia (somando, aproximadamente, E também entre os Waiwai (Oliveira, comunicação pessoal). Para mais informações sobre os eventos do CONPLEI, como as conferências nacionais e os mini-CONPLEI e uma etnografia detalhada de uma conferência bíblica no Alto Içana, ver Xavier (2013). 24. Disponível em: <http://youtu.be/ojHbmGHsKYk>, acessado em 29 abr. 2015. 23. 310 maria luísa lucas 80 sacas de 60 litros)25, as campanhas de doação de dinheiro e mantimentos feitas pelos tuxawas e pastores e a confecção de camisas personalizadas para os grupos de cantores de cada aldeia do rio Nhamundá. O tema da conferência era o trecho bíblico Lucas 23: 44-49,26 e sobre essa passagem foi composta pelo menos uma canção, que era sempre executada nos cultos a fim de que todos a conhecessem bem na época do evento. Após a realização do mini-CONPLEI, soube que estiveram presentes na conferência representantes de aldeias Waiwai, Katxuyana, Kahyana, Tunayana, Arara e Tiriyó. As centenas de pessoas reunidas para esse encontro deslocaram-se até a aldeia anfitriã por terra,27 rio ou até mesmo em voos fretados. As conferências são também um desses momentos em que alguns tipos de adornos aparecem. Além disso, é nessa época que são produzidas grandes quantidades de pulseiras, cintos e colares de miçangas (compradas nas cidades próximas ou trazidas como produto de troca pelos missionários) que são usados, vendidos e trocados, especialmente entre os jovens. Existe, ainda, uma grande preocupação em registrar esses encontros com fotografias, vídeos e arquivos de áudios. Vários desses registros produzidos pelos próprios Hixkaryana com celulares e câmeras digitais são utilizados posteriormente como material para a confecção de DVDs em Nhamundá ou Parintins. Com encarte customizado e fragmentos de apresentações de músicas e danças, esses DVDs ganham grande circulação entre as aldeias, de modo que diversas vezes, à noite, o gerador das casas é ligado apenas para que esses vídeos sejam reproduzidos na televisão. Assim como no caso das festas do Natal e Páscoa nas aldeias pequenas, nas conferências e encontros cristãos a aldeia anfitriã também é responsável por alojar e alimentar os visitantes. 25. Trata-se, contudo, de um contingente muito maior de pessoas, muitas delas vindas de regiões relativamente distantes, como os Trio do Suriname, o que faz com que a realização de tais encontros mobilize toda a aldeia durante meses. Em ambas comemorações, porém, vemos que tanto as refeições coletivas quanto o uso dos termos de parentesco fazem parte de um interminável processo de consanguinização desses visitantes. No último caso, assim como nos cultos cotidianos, todos são chamados rowtà komo, “meus irmãos”. A adoção dessa linguagem cristã é já um indicativo de como rawana, enquanto categoria nativa, é uma noção em constante transformação. RAWANA: UMA CATEGORIA EM CONSTANTE TRANSFORMAÇÃO Durante a festa da Páscoa descrita anteriormente, houve um momento emblemático em relação ao que foi discutido aqui. Em uma das refeições coletivas o animador da festa que narrava ao microfone tudo o que acontecia pediu para que eu levantasse e, com muito entusiasmo, me apresentou como visitante, ressaltando o fato de que era uma antropóloga e havia vindo de longe para participar da festa em Kassawá. Em suas palavras em português misturadas ao Hixkaryana, uma “presença ilustre”. A situação se tornou peculiar quando fizeram o mesmo com os missionários. Mesmo vivendo lá há anos (uma das missionárias mora na aldeia há mais de uma década), eles também se levantaram e foram apresentados como visitantes. Acredito que esse episódio salienta tanto a indispensabilidade dos visitantes nas festas e, por conseguinte, sua importância para os Hixkaryana, quanto uma de suas caraterísticas fundamentais. Na época, cerca de R$ 16000,00. “Já era quase a hora sexta, e, escurecendo-se o sol, houve trevas sobre toda a terra até a hora nona. E rasgou-se pelo meio o véu do santuário. Então, Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto, expirou. Vendo o centurião o que tinha acontecido, deu glória a Deus, dizendo: Verdadeiramente, este homem era justo. E todas as multidões reunidas para este espetáculo, vendo o que havia acontecido, retiraram-se a lamentar, batendo nos peitos. Entretanto, todos os conhecidos de Jesus e as mulheres que o tinham seguido desde a Galileia permaneceram a contemplar de longe estas coisas”. 27. Existe um caminho que liga, com alguns dias de caminhada, a aldeia waiwai de Mapuera a Kassawá. 26. 312 A exemplo do que aconteceu com os missionários, é rawana aquele que vem de fora, e, no caso dos brancos, não importa há quanto tempo estejam na aldeia: seu caráter de estrangeiro será, em determinados momentos, sempre lembrado. Procurei, ao longo dessa exposição, abordar as festas regionais na região dos Hixkaryana sob a ótica daquelas pesquisas que buscam compreender como as Guianas encontram-se em relação por meio de extensas redes de trocas. Percebemos o alcance dessas redes, por exemplo, quando analisamos as conferências cristãs, que são capazes de mobilizar um grande contingente de pessoas que vivem em locais distantes espacialmente. A importância das festas entre os Hixkaryana pode ser percebida na narrativa dos próprios índios e na sua permanência, ainda que transformada, mesmo após a conversão ao cristianismo. Em uma das danças que participei, o tuxawa da aldeia me procurou e disse que eu deveria registrar o que via em fotos e vídeos, pois aquela era a “cultura de verdade dos Hixkaryana”. Acredito que a partir daí podemos suspeitar também porque as festas são as ocasiões em que os adornos corporais aparecem de modo mais evidente, sempre acompanhados por um discurso que explica, para os visitantes leigos como eu, que assim era como os antigos Hixkaryana se vestiam cotidianamente no passado. Se pensarmos nas festas como momentos de trocas de objetos, de pessoas e, sobretudo, de relações, devemos ter em mente também que, a cada celebração, os próprios Hixkaryana podem ser ou receber visitantes, estando ou não em suas próprias aldeias, ou seja, participando de um jogo que é, no limite, sobre trocas de perspectivas. Assim, vimos que após a concentração em grandes aldeias, as festas passaram a acontecer nas datas cristãs e os rawana, então indisponíveis, começaram a ser encontrados dentre os próprios moradores. Meu objetivo maior aqui foi apresentar, por meio de dados etnográficos preliminares, uma 28. nova configuração das festas entre os Hixkaryana, observada a partir das conferências cristãs e das comemorações que recentemente passaram a ocorrer nesses novos assentamentos envolvidos no movimento de dispersão que está ainda em curso em toda a região. Em ambos os casos o que se pode perceber é o “ressurgimento” dos rawana, visitantes que de fato vêm de outras aldeias para as comemorações, não sendo mais imprescindível que sejam performados por meio da reclusão na mata e o retorno como estrangeiros. O caráter dessa reaparição, porém, deve ser lido com cautela. Em primeiro lugar, de maneira alguma podemos imaginar que os rawana, enquanto tais, sumiram sequer temporariamente do universo hixkaryana. Se por um lado eles estavam presentes em todas as festas, por outro, como categoria, não é possível que desaparecessem, pois marcam a presença indispensável de estrangeiros com quem se pode, potencialmente, estabelecer algum tipo de troca.28 Em segundo lugar, tal ressurgimento não carrega consigo qualquer grau de incorruptibilidade. Ao contrário, vimos que os rawana de hoje são diferentes daqueles de antigamente em diversos aspectos, assim como também são as festas. Mais do que reforçar a dicotomia passado e presente por meio da enumeração exaustiva dessas transformações com o passar do tempo, interessame aqui como a categoria nativa rawana, da forma que ela aparece no pensamento e na prática hixkaryana, pode indicar como essa é uma noção chave capaz de conjugar através da história continuidade e inovação. Por exemplo, podemos nos perguntar em que medida ao dizer que “somos todos irmãos” os Hixkaryana estão, como no passado, buscando “domesticar” (Howard, 2002) seus estrangeiros como faziam por meio do compartilhamento de comida e da consubstancialidade. Por outro lado, não é possível fechar os olhos para o fato de que, E aqui poderíamos sem grandes problemas relacionar tal discussão com a importância da alteridade no universo ameríndio, tal como esquematizada por Viveiros de Castro (2002a) a partir de sua leitura atenciosa de uma série de etnografias amazônicas. Tal empreitada, porém, excederia os limites desse trabalho. 313 atualmente, os cultos cristãos são parte importante das festas, em que pregações sobre Deus e as armadilhas de Satanás, figuras antes ausentes na vida dos Hixkaryana, são sempre lembradas. Em resumo, meu argumento é que os Hixkaryana lidam há muito tempo em seu cotidiano com a tensão, própria ao pensamento ameríndio, entre alteridade e identidade29. Esse não parece, contudo, ser um problema em busca de solução ou uma contradição latente. Nessa direção, acredito que rawana, como uma categoria nativa indispensável, resiliente mas em constante transformação, pode ser uma lição oferecida a nós pelos próprios Hixkaryana para que pensemos sobre questões contemporâneas a respeito da região das Guianas e alhures, sem que com isso seja necessário optar de forma irredutível entre abordagens excludentes que enfatizam ou a continuidade ou a ruptura em suas análises. BIBLIOGRAFIA ARVELO-JIMÉNEZ, Nelly & BIORD, Horacio. The Impact of Conquest on Contemporary Indigenous Peoples of the Guiana Shield: the System of Orinoco Regional Interdependence. In: ROOSEVELT, A. (ed.). Amazonian Indians from Prehistory to the Present: Anthropological Perspectives. Tucson: University of Arizona Press, 1994, p.55 – 78. AVELAR, Gustavo. Valores Brutos: Lutadores do Alto Xingu. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. BARBOSA, Gabriel. 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Nationalmuseets Skrifter, Etnigrafisk Roelke, X. Copenhagen: The National Museum of Copenhagen, 1965. 315 carlos penteado OS AUTORES DENISE FAJARDO GRUPIONI doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, realizou pós-doutorado nesta mesma universidade de 2008 a 2011, onde exerceu atividade docente e de pesquisa com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Tem experiência na área de Etnologia Indígena, com ênfase em Antropologia das Guianas, e pesquisas etnográficas entre os Tiriyó e Katxuyana no Norte do Pará e fronteira com o Suriname. É coautora do livro “Povos Indígenas no Amapá e Norte do Pará” (2009/ 2a edição) e autora do livro “Arte Visual dos Povos Tiriyó e Katxuyana: Padrões de uma Estética Ameríndia” (2009). É sócia-fundadora do Iepé - Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, onde coordena o Programa Tumucumaque desde 2006. DOMINIQUE TILKIN GALLOIS docente do Departamento de Antropologia e coordenadora do Centro de Estudos Ameríndios - CEstA da Universidade de São Paulo. Possui doutorado em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (1988). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Etnologia e História Indígena, atuando principalmente nos seguintes temas: tradições orais e cosmologias ameríndias, políticas indígenas, patrimônio cultural e conhecimento tradicional. Desenvolve atividades de assessoria direta a comunidades indígenas no Amapá e norte do Pará, colaborando com órgãos públicos e organizações não governamentais em programas de formação indígena. EURÍPEDES ANTÔNIO FUNES professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Cursou Mestrado na Universidade Federal Fluminense, Doutorado na Universidade de São Paulo e Pós-Doutorado na Universidade Estadual de Campinas. Publicou “Goiás de 1800 a 1850 – um período de transição da mineração a agropecuária”. É coautor do livro “História e Memórias de Três Fronteiras: Brasil, Peru, Bolívia”. Tem publicado vários capítulos de livros e artigos sobre comunidades mocambeiras na Amazônia brasileira. Desenvolve no momento estudos no campo da História Ambiental. FABIO AUGUSTO NOGUEIRA RIBEIRO doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo e atual Coordenador da Frente 318 de Proteção Etnoambiental Cuminapanema da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Fundação Nacional do Índio. Realiza pesquisas etnográficas e atividades indigenistas junto aos Zo’é e aos povos indígenas isolados no norte do Pará e no Amapá. FRANÇOIS-MICHEL LE TOURNEAU doutor pela universidade de Marne la Vallée em Ciências da Informação Geográfica (1999). Atualmente é pesquisador titular do Centre National de la Recherche Scientifique (França), lotado no Instituto dos Altos Estudos da América latina (IHEAL). Coordenou diversos projetos voltados para a o desenvolvimento territorial sustentável, os usos e representações do território em populações tradicionais e identidades indígenas emergentes. Tem experiência na área de geografia, atuando principalmente nos seguintes temas: Amazônia, sistemas de informação geográfica, sensoriamento remoto, populações tradicionais e indígenas. IGOR SCARAMUZZI Possui Bacharelado e Licenciatura em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2001) e mestrado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2008). Atualmente é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas desenvolvendo pesquisa sobre o extrativismo da castanha-do-pará com ênfase na produção e transmissão de conhecimentos no âmbito dessa atividade entre os quilombolas do Alto Trombetas, em Oriximiná, no Estado do Pará. Desde 2004, atua como consultor de projetos que envolvem educação, cultura/patrimônio e terra/meio ambiente para populações indígenas e tradicionais. ISABELLE TRITSCH POSSUI graduação em Agronomia (2009) e doutorado em Geografia (2013) pelo CIRAD - Universidade da Guiana Francesa. A sua tese trata da governança territorial e do manejo dos recursos naturais no território dos povos indígenas Wayãpi e Teko da Guiana francesa. Atualmente é pós-doutoranda no Centre National de la Recherche Scientifique (Paris, França). Trabalha principalmente na Amazônia nos seguintes temas: dinâmicas agrárias, direitos fundiários, áreas protegidas e desenvolvimento local. JULIA FRAJTAG SAUMA é pós-doutoranda no Programa de Pósgraduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com financiamento do Programa Nacional de Pós-Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A autora finalizou o seu doutorado na University College London em fevereiro de 2014, com a tese “The Deep and the Erepecuru: tracing transgressions in an Amazonian Quilombola territory” (“O Fundo e o Erepecuru: o traço das transgressões em um território quilombola na Amazônia”) baseada em quase dois anos contínuos de pesquisa de campo com os “Filhos do Erepecuru”, remanescentes de quilombos do município de Oriximiná. LEONARDO VIANA BRAGA mestrando do Programa de Pósgraduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo e membro do Centro de Estudos Ameríndios – CestA da USP. Bacharel em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Por meio de pesquisa de Iniciação Científica esteve vinculado à pesquisa temática “Redes Ameríndias: geração e transformação de relações nas Terras Baixas sul-americanas”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e realizada por pesquisadores do antigo Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP. Sua pesquisa junto aos Zo’é enfatiza a aprendizagem, o gênero, e a maturação da pessoa, articulados sobretudo pelos aspectos da caçada. LÚCIA MENDONÇA MORATO DE ANDRADE Coordenadora Executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo desde 2002. Mestre em Antropologia Social pelo Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1992. Autora dos livros “Terras Quilombolas em Oriximiná: pressões e ameaças” (CPI-SP, 2010) e “Terra de Quilombo: Herança e Direito” (CPI-SP, 2005). Coordena as atividades da Comissão Pró-Índio de São Paulo junto aos quilombolas de Oriximiná desde 1989. LUCIANA GONÇALVES DE CARVALHO possui doutorado em Ciências Humanas-Antropologia (2005) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente do Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará, onde tem projetos de pesquisa e extensão em andamento sobre memória, trabalho e conhecimentos tradicionais em comunidades rurais, ribeirinhas e extrativistas, vinculados ao grupo de pesquisa Diversidade Cultural, Território e Novos Direitos na Amazônia. Recentemente, coordenou a elaboração de relatórios antropológicos dos territórios quilombolas Moura, Jamari-Último Quilombo e Ariramba para o Incra, e o Inventário de Referências Culturais dos Quilombos de Oriximiná. LUDIVINE ELOY POSSUI graduação em Agronomia pelo AgroParisTech (2001), mestrado em Geografia e prática do desenvolvimento – Universidade de Nanterre Paris X (2002) e doutorado em Estudos das Sociedades Latino-americanas pelo Instituto de Altos Estudos da América latina (IHEAL, 2005). Atualmente é pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique (Montpellier, França) e pesquisadora colaboradora no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. Tem experiência na área de agronomia e geografia, com ênfase em desenvolvimento agrícola, manejo dos recursos naturais e políticas ambientais. Trabalha principalmente no Cerrado e na Amazônia. LUISA G. GIRARDI é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, pelo qual realiza pesquisa etnográfica entre os Katxuyana no Trombetas (Pará). É bacharel em Ciências Sociais (2008) e mestre em Antropologia (2011) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Entre 2012 e 2014, fez parte da equipe do Programa Tumucumaque do Iepé Instituto de Pesquisa e Formação Indígena. MARIA LUÍSA LUCAS graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011). Obteve o Mestrado em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014), onde defendeu a dissertação “Antes a gente tinha vindo do jabuti”: notas etnográficas sobre algumas transformações entre os Hixkaryana no rio Nhamundá/AM. Atualmente cursa o doutorado na mesma instituição. 319 ROBERTA PEIXOTO RAMOS é formada em Política Internacional pela Universidade de Middlesex, com mestrado em Desenvolvimento da América Latina pela Universidade de Londres e atualmente cursa o doutorado na London School of Economics and Political Science no departamento de Políticas Públicas pesquisando o tema de acesso a recursos genéticos, conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios. Trabalha com consultoria e pesquisa na área de acesso e repartição de benefícios (ABS) e é colaboradora no projeto pioneiro de desenvolvimento de protocolos comunitários no Brasil. RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ Professor Associado de Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (1991) e doutor em Letras e Ciências Humanas pela Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense (1998). A partir de seu doutorado, vem atuando junto ao povo Waiwai desde 1994. De 2000 a 2004, coordenou o grupo de trabalho para identificação e delimitação da Terra Indígena TrombetasMapuera. De 2008 a 2012, coordenou o grupo de trabalho para a identificação e delimitação da TI Katxuyana-Tunayana. STÉPHANIE NASUTI possui mestrado em estudos das sociedades latino-americanas pelo Instituto de Altos Estudos da América latina (2005) e doutorado em Geografia pela Universidade Paris 3 (2010). Atualmente, realiza pós-doutorado no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília Tem experiência na área de geografia e em ciências ambientais. Está envolvida em vários projetos de pesquisa no Brasil e na França, voltados para o estudo da vulnerabilidade e adaptação da população às mudanças do clima; as mobilidades ruraisurbanas; os direitos fundiários; e o desenvolvimento territorial nas regiões da Amazônia e do Semiárido brasileiro. VICTOR ALCANTARA E SILVA bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012) e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo desde 2013, com projeto na área de etnologia ameríndia. Trabalha com os Waiwai desde 2010. 320 A Comissão Pró-Índio de São Paulo é uma organização não governamental fundada em 1978 que atua junto com índios e quilombolas para garantir seus direitos territoriais, culturais e políticos, procurando contribuir com o fortalecimento da democracia, o reconhecimento dos direitos das minorias étnicas e o combate à discriminação racial. A parceria da CPI-SP com os quilombolas de Oriximiná iniciou-se em 1989 e se concretiza por meio da assessoria às organizações quilombolas, da promoção de atividades de capacitação, do desenvolvimento de ações conjuntas de incidência e da busca de alternativas de manejo sustentado dos territórios quilombolas. CONSELHO DIRETOR Carlos Fernando da Rocha Medeiros, Flávio Jorge Rodrigues da Silva, Lúcia Helena Vitalli Rangel e Paulo Roberto David de Araújo CONSELHO CONSULTIVO Ana Lúcia Amaral, Dalmo de Abreu Dallari, Eurípides Antônio Funes, Girolamo Domenico Treccani, Lux Boelitz Vidal, Manuel Mindlin Lafer, Orlando Sampaio Silva e Rodrigo Barbosa Ribeiro. COORDENADORA EXECUTIVA Lúcia M. M. de Andrade ASSESSORA DE COORDENAÇÃO Carolina Kaori Ikawa Bellinger O Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena é uma organização sem fins lucrativos, fundada em 2002, com o objetivo de contribuir para o fortalecimento cultural e político e para o desenvolvimento sustentável das comunidades indígenas que vivem no Amapá e norte do Pará, proporcionando-lhes assessoria especializada e capacitação técnica diversificada, para que se organizem e possam enfrentar, de forma articulada, os desafios crescentes que se colocam hoje às suas comunidades e organizações, para a defesa de seus direitos e interesses. CONSELHO DIRETOR Maria Bernadette Arantes Nogueira Franceschini (Presidente), Dominique Tilkin Gallois (Tesoureira), Lúcia Hussak van Velthem (Secretária) CONSELHO EDITORIAL Denise Fajardo, Dominique Tilkin Gallois, Luis Donisete Benzi Grupioni, Lúcia Hussak Van Velthem, Lux Boelitz Vidal COORDENADOR EXECUTIVO Luis Donisete Benzi Grupioni COORDENADOR EXECUTIVO ADJUNTO Décio Horita Yokota COORDENADORA DO PROGRAMA TUMUCUMAQUE Denise Fajardo ASSESSOR DE PROGRAMAS Otávio de Camargo Penteado EQUIPE DO PROGRAMA TUMUCUMAQUE Andréia da Silva Vaz, Evandro Batista Antunes Bernardi, Jeciane Fonseca de Souza, Marina Minari ASSISTENTE ADMINISTRATIVA Kelly Cristina Viera dos Santos ASSESSORIA ANTROPOLÓGICA AO PROGRAMA TUMUCUMAQUE Lúcia Hussak Van Velthem Rua Padre de Carvalho 175 - São Paulo - SP - Brasil - 05427-100 Email: cpisp@cpisp.org.br www.cpisp.org.br Rua Professor Monjardino, 19 - São Paulo - SP – Brasil - 05625-160 Email: sede-sp@institutoiepe.org.br www.institutoiepe.org.br 321 carlos penteado Este livro, que o Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena e a Comissão Pró-Índio de São Paulo ora trazem a público, trata dos povos indígenas e quilombolas que vivem no interflúvio formado pelos rios Nhamundá, Trombetas e Erepecuru, ligados principalmente ao município de Oriximiná, mas também a Óbidos, Faro e Nhamundá, na divisa do estado do Pará com Amazonas. Que povos são esses, que relações permeiam sua história, como vivem, são informações que não se encontram com facilidade. Contribuir para preencher tal lacuna é o propósito deste livro que reúne artigos de 18 autores que aceitaram o convite para disponibilizar ao público os conhecimentos gerados em recentes estudos sobre tais povos. A ideia deste livro nasceu no contexto da “articulação indígenaquilombola” que se iniciou em setembro de 2012, quando o Quilombo Abuí recebeu mais de 170 convidados para um reencontro histórico: o “1º Encontro Índios e Quilombolas de Oriximiná”, que representou um marco nas atuais e resignificadas relações entre índios e quilombolas.