ENTRE
ÁGUAS
BRAVAS E MANSAS
ÍNDIOS & QUILOMBOLAS EM ORIXIMINÁ
ENTRE
ÁGUAS
BRAVAS E MANSAS
ÍNDIOS & QUILOMBOLAS EM ORIXIMINÁ
© Comissão Pró-Índio de São Paulo & Iepé - Instituto de Pesquisa e Formação Indígena
São Paulo, setembro de 2015
ORGANIZAÇÃO
Denise Fajardo Grupioni
Lúcia M. M. de Andrade
PROJETO GRÁFICO E CAPA
Irmãs de Criação
FOTOGRAFIA DA CAPA
Carlos Penteado
FOTOS
Carlos Penteado
Lúcia M. M. de Andrade
Luisa G. Girardi
Maria Luísa Lucas
Rogério Assis
Ruben Caixeta de Queiroz
Victor Alcantara e Silva
APOIO À PUBLICAÇÃO
Os editores não se responsabilizam pelas opiniões, ideias e conceitos emitidos
nos artigos que são de inteira responsabilidade de seus autores.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Entre Águas Bravas e Mansas, índios & quilombolas em Oriximiná / organização
Denise Fajardo Grupioni, Lúcia M.M. de Andrade.
-- São Paulo : Comissão Pró-Índio de São Paulo :
Iepé, 2015.
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-98046-18-1 (Iepé)
1. Comunidades quilombolas - Oriximiná (PA) História 2. Comunidades quilombolas - Oriximiná
(PA) - Território 3. Povos indígenas - Oriximiná
(PA) - História 4. Povos indígenas - Oriximiná
(PA) - Território 5. Relações étnicas I. Grupioni,
Denise Fajardo. II. Andrade, Lúcia M.M. de.
15-06683
CDD-305.800981
Índices para catálogo sistemático:
1. Oriximiná : Pará : Estado : Relações entre
índios e quilombolas : História social
305.800981
ORGANIZAÇÃO
DENISE FAJARDO GRUPIONI
LÚCIA M. M. DE ANDRADE
ENTRE
ÁGUAS
BRAVAS E MANSAS
ÍNDIOS & QUILOMBOLAS EM ORIXIMINÁ
ÍNDICE
8
ApresentAção
Denise Fajardo Grupioni e Lúcia M. M. de Andrade
16
ComunidAdes moCAmbeirAs
62
HistóriAs, memóriAs e representAções
QuilombolA do ArirAmbA
do
trombetAs
Eurípedes A. Funes
dA
esCrAvidão
nA
ComunidAde
Luciana Gonçalves de Carvalho
84
relAções em movimento: inimizAde
e os meKoro (QuilombolAs)
e
pArentesCo
entre os
KAtxuyAnA
Luisa G. Girardi
104
CosmologiA e HistóriA WAiWAi e KAtxuyAnA: sobre
de Fusão e dispersão dos povos (yAnA).
os
movimentos
Ruben Caixeta de Queiroz
134
os yAnA CAribe-guiAnenses dA região
Que ColetividAdes são essAs?
de
oriximiná.
Denise Fajardo Grupioni
148
vestígios
do rio
turuni:
sobre
memóriA, migrAções
e
lugAres
Victor Alcantara e Silva
164
os zo’é
e As
metAmorFoses
do
FundAmentAlismo evAngéliCo
Fabio Augusto Nogueira Ribeiro
178
polítiCAs
do isolAmento
voluntário
nos interFlúvios do
Fabio Augusto Nogueira Ribeiro e Ruben Caixeta de Queiroz
rio trombetAs
194
210
QuilombolAs
em
oriximiná: desAFios
dA
propriedAde ColetivA
Lúcia Mendonça Morato de Andrade
entre urbAnizAção e regulArizAção FundiáriA:
de vidA QuilombolAs de oriximiná
umA
geogrAFiA
dos
novos modos
Stéphanie Nasuti, Ludivine Eloy, François-Michel Le Tourneau e Isabelle Tritsch
224
empoderAmento dAs ComunidAdes no ACesso A reCurso genétiCo
trAdiCionAl: CAso dAs ComunidAdes QuilombolAs de oriximiná
e
ConHeCimento
Roberta Peixoto Ramos
234
Consenso unânime: movimentos pelA trAnQuilidAde
entre os Coletivos QuilombolAs de oriximiná
e A
sobreposição
de
pensAmentos
Julia Frajtag Sauma
252
o extrAtivismo
272
miCropeçAs sobre gênero
284
Alguns modos zo´é
298
A “voltA”
316
dA
CAstAnHA
entre
QuilombolAs
do
Alto trombetAs
Igor Scaramuzzi
e
CAçAdA Junto
Aos
zo’é
Leonardo Viana Braga
de
FAzer Coletivos
e
liderAnçAs
Dominique Tilkin Gallois
dos
rAWAnA: notAs sobre
Maria Luísa Lucas
os Autores
As
FestAs regionAis
entre os
HixKAryAnA
carlos penteado
APRESENTAÇÃO
Denise Fajardo Grupioni e Lúcia M. M. de Andrade
Este livro, que o Iepé e a Comissão Pró-Índio de São Paulo ora
trazem a público, trata dos povos indígenas e quilombolas que
vivem no interflúvio formado pelos rios Nhamundá, Trombetas e
Erepecuru, ligados principalmente ao município de Oriximiná,
mas também a Óbidos, Faro e Nhamundá, na divisa entre os
estados do Pará com Amazonas.
Que povos são esses, que relações permeiam sua história, como
vivem, são informações que não se encontram com facilidade.
Contribuir para preencher tal lacuna é o propósito deste livro
que reúne artigos de 18 autores que aceitaram o convite para
disponibilizar ao público os conhecimentos gerados em recentes
estudos sobre tais povos.
A ideia deste livro nasceu no contexto da “articulação indígenaquilombola” que se iniciou em setembro de 2012, quando
o Quilombo Abuí recebeu mais de 170 convidados para um
reencontro histórico: o “1º Encontro Índios e Quilombolas de
Oriximiná”, que representou um marco nas atuais e resignificadas
relações entre índios e quilombolas nessa região.
O evento promovido pela Comissão Pró-Índio e Iepé buscou
incentivar a parceria entre índios e quilombolas frente a
novos desafios comuns, como as regularizações fundiárias
pendentes e a proteção dos territórios ameaçados pelo avanço
dos empreendimentos de mineração, madeireiros e de geração
de energia. Desde aquele primeiro encontro, a “articulação
indígena-quilombola” vem se consolidando com a realização de
atividades em Belém, Brasília, Santarém e Oriximiná1.
Neste ano de 2015 a articulação alcançou um resultado de
especial significado: a reaproximação entre os índios da
TI Katxuyana-Tunayana e os quilombolas da TQ Cachoeira
Porteira, cujas relações, no processo de regularização de suas
terras, haviam assumido ares de conflito. A necessidade de
se estabelecer limites rígidos em um espaço historicamente
compartilhado acabou por gerar tensão e desentendimentos.
1.
10
Mais uma vez reunidos no Quilombo Abuí, escolhido como “local
neutro” e livre de influências externas, em 30 de maio de 2015,
lideranças indígenas e quilombolas de ambas as terras, com a
mediação de lideranças quilombolas de outras comunidades,
selaram sua aliança em torno da necessária “des-sobreposição”
de limites territoriais para fins de regularização fundiária.
O acordo firmado no Abuí estabeleceu os limites físicos dos
dois territórios e foi oficializado junto ao Ministério Público
Federal e Ministério Público Estadual em 30 de julho de 2015.
E, assim, se espera que os processos de regularização dessas
terras possam avançar, e que as históricas relações de troca e
compartilhamento de recursos sejam retomadas e fortalecidas.
HISTÓRIAS E VIDAS EM COMUM
Índios e quilombolas nessa região conhecem-se há 200 anos, desde
quando escravos fugidos de fazendas e cidades do Baixo Amazonas
(Pará) subiram as águas mansas do Rio Trombetas em busca de
refúgio, alcançando as águas bravas e os territórios indígenas e ali
fundando seus mocambos, como eram denominados regionalmente
os quilombos. Avizinhando-se, mantiveram uma convivência,
ora de troca, ora conflituosa, que trouxe aprendizados mútuos,
influenciando profundamente tanto o modo de vida indígena quanto
o das comunidades afro-amazônicas que ali se constituíram.
A história de constituição dos quilombos nessa região é relatada
no presente livro nos artigos de Eurípedes Funes “Comunidades
mocambeiras do Trombetas”, e de Luciana Carvalho “Histórias,
memórias e representações da escravidão na comunidade
quilombola do Ariramba”. Já as históricas e complexas relações
entre índios e quilombolas – ou mekoro, como estes são chamados
localmente pelos índios – são analisadas por Luiza Girardi em
“Relações em movimento: inimizade e parentesco entre os
Katxuyana e os mekoro (quilombolas)”.
História é tema também do artigo de Ruben Caixeta de
Queiroz “Cosmologia e história Waiwai e Katxuyana: sobre os
As atividades da articulação “indígena-quilombola” contam com o apoio financeiro de Christian Aid, ICCO, Fundação Moore, Embaixada da Noruega e Rainforest
Foundation Noruega.
movimentos de fusão e dispersão dos povos (yana)”, que busca
compreender o fundo histórico-cosmológico da ocupação do vale
do rio Trombetas pelos povos indígenas.
POVOS INDÍGENAS, EM SEUS MOVIMENTOS
CONSTANTES DE FUSÃO E FISSÃO
Os povos indígenas que vivem ao longo dos rios Trombetas,
Mapuera, Cachorro e Nhamundá, são conhecidos pelas
denominações genéricas Waiwai e Katxuyana. No entanto,
como observam diversos autores neste livro, tais denominações
abrangem uma diversidade maior de povos, em sua maioria,
falantes de línguas Caribe, que se autorreconhecem, para além
de simplesmente Waiwai e Katxuyana, como Hixkariyana,
Inkarïnyana, Kahyana, Tunayana, Txikiyana, Kamarayana,
Karafawyana, Mawayana, Okomoyana, Pirixiyana, Txarumayana,
Xerewyana, Xowyana, Katwuena, Farukoto, dentre outros.
Os processos de “fusão étnica” – que, em dado momento
da história, levaram esses diversos grupos indígenas a se
relacionarem com o Estado e a sociedade nacional como uma
unidade social e política, e sob uma única denominação – são
discutidos no artigo de Denise Fajardo Grupioni “Os yana
caribe-guianenses na região de Oriximiná: que coletividades são
essas?”, que analisa o constante movimento de fusão e fissão
desses povos. A questão é abordada também por Victor Alcantara
e Silva em “Vestígios do rio Turuni: sobre memória, migrações e
lugares”, a partir da história de uma família indígena que planeja
reocupar o lugar onde viveu às margens do Turuni.
Atualmente, tais povos indígenas contam com uma população em
torno de 4 mil pessoas distribuídas em 35 aldeias, situadas em
três terras indígenas: Nhamundá-Mapuera, Trombetas-Mapuera
(ambas demarcadas) e Katxuyana-Tunayana (em processo de
regularização fundiária).
Uma quarta terra indígena, a TI Zo’é, localiza-se no rio Erepecuru,
onde vivem os índios de mesmo nome, falantes de uma língua
tupi, que somam aproximadamente 280 pessoas organizadas em
onze grupos locais. Os Zo’é entraram para a história como um dos
últimos povos “intactos” na Amazônia. Sua história de contato
com não índios é descrita no artigo de Fabio Augusto Nogueira
Ribeiro “Os Zo’é e as metamorfoses do fundamentalismo
evangélico”, que analisa também as várias estratégias adotadas
pelos missionários da Missão Novas Tribos do Brasil para tentar
levar a “palavra de Deus” a esse povo indígena.
Existem ainda fortes evidências da presença de povos isolados
nessa região, conforme discutido no artigo de Ruben Caixeta e
Fábio Augusto N. Ribeiro “Políticas do isolamento voluntário
nos interflúvios do rio Trombetas”. Segundo os autores, os povos
contatados ocupam as calhas dos rios enquanto aqueles que
optaram pelo isolamento voluntário circulam pelos interiores dos
interflúvios da bacia do rio Trombetas.
Terras Indígenas em Oriximiná
Terra
Situação Fundiária
Nhamundá-Mapuera
Homologada em 1989
Dimensão (ha)
1.049.520
Trombetas-Mapuera
Homologada em 2009
3.970.898
Zo’é
Homologada em 2009
668.565
Katxuyana-Tunayana
Em processo de identificação
Fonte: Iepé
QUILOMBOLAS, PIONEIROS NA LUTA
PELA TITULAÇÃO
Os quilombolas atualmente estão organizados em 36 comunidades
rurais distribuídas em oito territórios coletivos às margens dos
rios Erepecuru, Cuminã, Acapu e Trombetas. Estima-se que
somem 8 mil pessoas (mil famílias), mas não existe um censo ou
levantamento oficial de sua população.
Os quilombolas de Oriximiná são conhecidos por terem sido os
primeiros no Brasil a conquistar a titulação coletiva de suas terras.
Trajetória que é relembrada no artigo de Lúcia M. M. de Andrade
“Quilombolas em Oriximiná: desafios da propriedade coletiva”.
Uma luta que ainda não foi concluída, uma vez que 15 comunidades
11
ainda aguardam pela titulação de quatro terras (Alto Trombetas,
Alto Trombetas 2, Ariramba e Cachoeira Porteira).
A titulação de cinco territórios garantiu direitos, mas também
trouxe novos desafios para os quilombolas. As mudanças nas
relações de apropriação do espaço e novos acordos internos
para gerir a propriedade coletiva também são analisados no
artigo de Lúcia Andrade.
Terras Quilombolas em Oriximiná
Terra
Situação Fundiária
Dimensão (ha)
Boa Vista
Titulada - Incra em 1995
1.125,0341
Água Fria
Titulada - Incra em 1996
557,1355
Trombetas
Titulada - Incra e Iterpa em 1997
80.887,0941
218.044,2577
Erepecuru
Titulada - Incra e Iterpa em 2000
Alto
Trombetas
Parcialmente titulada - Iterpa em 2003
Em processo de titulação no Incra
Alto
Trombetas 2
Em processo de titulação no Incra
Ariramba
Em processo de titulação no Incra e no Iterpa
79.095,5912
Cachoeira
Em processo de titulação no Incra e no Iterpa
Porteira
Fonte: CPI-SP www.quilombo.org.br
As inovações nas práticas territoriais por parte dos quilombolas
são discutidas também no artigo “Entre urbanização e
regularização fundiária: uma geografia dos novos modos
de vida quilombolas de Oriximiná”, por Stéphanie Nasuti,
Ludivine Eloy, François-Michel Le Tourneau e Isabelle
Tritsch. Como apontam os autores, hoje, as territorialidades
tradicionais se reconfiguram, já que, cada vez mais, os sistemas
de atividades e os espaços de vida se distribuem entre áreas
urbanas e rurais, graças a uma crescente circulação entre a
cidade e a floresta. Os pesquisadores procuram compreender
como essas populações enfrentam o desafio da conservação
dos seus territórios em um contexto onde a pressão sobre os
recursos aumenta cada vez mais.
2.
12
OS NOVOS DESAFIOS
Dentre os novos temas postos aos povos quilombolas e indígenas na
gestão de seus territórios e saberes está o acesso por terceiros aos
seus recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado.
Em 2007, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético autorizou
a Universidade Federal do Rio de Janeiro a acessar o patrimônio
genético e o conhecimento tradicional associado aos quilombolas
de Oriximiná para a pesquisa de substâncias bioativas de plantas
medicinais. É desse caso que trata o artigo “Empoderamento
das comunidades no acesso a recurso genético e conhecimento
tradicional associado: caso das comunidades quilombolas de
Oriximiná”, em que Roberta Peixoto Ramos analisa as dificuldades
enfrentadas para um diálogo em igualdade de condições com atores
externos, e aponta a elaboração de protocolos comunitários como
um dos caminhos possíveis para se alcançar o empoderamento
necessário nessas situações.
Os novos desafios incluem também lidar com a crescente
ocupação da região, com o avanço da mineração e os projetos
de hidrelétricas. E ainda com a transformação de suas florestas
em unidades de conservação que vem impondo aos índios
da TI Katxuyana-Tunayana e quilombolas das terras Alto
Trombetas, Alto Trombetas 2, Ariramba e Cachoeira Porteira
restrições na gestão e uso dos recursos de seus territórios2.
Como aponta Igor Scaramuzzi em seu artigo “Extrativismo da
castanha do Alto Trombetas”, as unidades de conservação afetam
a realização de importante atividade econômica dos quilombolas:
a extração da castanha-do-pará.
Mas as unidades de conservação não têm representado obstáculo
para a expansão da Mineração Rio do Norte, maior produtora de
bauxita do Brasil. Instalada na região desde o final dos anos 1970,
a mineradora extrai minério no interior da Flona Saracá-Taquera e
começa a expandir sua área de extração na porção da Flona incidente
nas Terras Quilombolas Alto Trombetas e Alto Trombetas 2.
As UCs sobrepostas aos territórios quilombolas e indígenas são: Reserva Biológica do Rio Trombetas, a Floresta Nacional Saracá-Taquera (incidentes nas terras
quilombolas Alto Trombetas e Alto Trombetas 2); a Floresta Estadual Trombetas (incidente nas TQs Ariramba e Cachoeira Porteira e TI Kaxuyana-Tunayana) e a
Floresta Estadual Faro (incidente na TQ Cachoeira Porteira e TI Kaxuyana-Tunayana).
TERRAS INDÍGENAS E QUILOMBOLAS EM ORIXIMINÁ
LEGENDA
Terra Quilombola Titulada
Terra Quilombola em Processo de Regularização
Terra Indígena Demarcada
Terras Indígena em Processo de Regularização
Comunidade Quilombola
Aldeias Indígenas
0
30
60
120 km
Fontes: Acordo índios & quilombolas (julho, 2015); CPI-SP; Funai; Iepé.
13
carlos penteado
Outro fator de preocupação é a retomada, desde 2014, dos
estudos do governo federal para a construção de hidrelétricas no
rio Trombetas que podem impactar diretamente terras indígenas
e quilombolas e unidades de conservação.
Um instrumento importante na defesa de seus territórios frente
a tais empreendimentos pode ser o direito ao consentimento
livre, prévio e informado assegurado pela Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para povos
indígenas e quilombolas e previsto também na Constituição
Federal no caso dos povos indígenas. Mas a consulta ali
preconizada precisa levar em conta os modos e ritmos de decidir
próprios desses povos. O artigo de Julia Frajtag Sauma, “Consenso
unânime: movimentos pela tranquilidade e a sobreposição de
pensamentos entre os coletivos quilombolas de Oriximiná”,
descreve e analisa os mecanismos conceptuais e relacionais –
intra e intercomunitários –, que possibilitam alcançar o ideal
do “consenso unânime” que garante o bem-estar coletivo e a
tranquilidade desejada pelas comunidades.
UM MODO DE VIDA COMUM:
CAÇA, PESCA E SOSSEGO
“Índios e quilombolas se organizam em torno de um modo de
vida comum: caça, pesca, sossego”, foi assim que um grupo de
participantes de um dos encontros de índios e quilombolas em
Oriximiná definiu a forma como vivem e exploram seus territórios3.
Um conjunto de artigos no presente livro ilustra tal modo de
vida. Igor Scaramuzzi no artigo “Extrativismo da castanha entre
quilombolas do Alto Trombetas” nos conta sobre essa atividade
econômica tão característica dos quilombolas em Oriximiná e que
requer um “entender” a mata, os castanhais e as castanheiras.
Conforme explica o autor, os conhecimentos relacionados ao
extrativismo, além de configurar um modo específico e peculiar de
3.
relação com o ambiente, acabam por constituir também o modo de
vida dessa população e suas formas particulares de uso e ocupação
territorial de modo geral.
Leonardo Viana Braga, em seu artigo “Micropeças sobre
gênero e caçada entre os Zo’é”, trata do tema da caça a partir
da descrição minuciosa de ações e acontecimentos que nos
permitem entrever, para além da caça em si, também um modus
vivendi próprio aos Zo’é.
Outra faceta dos Zo’é é iluminada pelo artigo de Dominique Tilkin
Gallois “Alguns modos zo’é de fazer coletivos e lideranças”,
em que a autora analisa, de uma perspectiva histórica, os
desencontros entre as expectativas de jornalistas e indigenistas
em torno de uma suposta ausência de hierarquias e chefias entre
os Zo’é, e os modos propriamente zo’é de qualificar “poder” e
de caracterizar seus chefes, mostrando que não apenas existe
chefia, como é por meio da ação política de seus chefes que se
dá a formação de coletivos.
A temática das redes de relações que conectam os coletivos
indígenas dessa região é tratada no artigo de Maria Luisa
Lucas, “A ‘volta’ dos rawana: notas sobre as festas regionais
entre os Hixkaryana”, em que analisa a importância e as
transformações contemporâneas das festas regionais como
veículos de intercâmbio de pessoas, bens, conhecimentos e,
sobretudo, de relações.
Assim percorrendo diferentes aspectos da história e modos de
vida dos índios e quilombolas que vivem na região de Oriximiná,
quisemos, juntamente com os autores dos artigos que compõem
esta coletânea - a quem agradecemos pelo esforço conjunto prestar nossa homenagem a esses povos, divulgando informações
que contribuam para a defesa de seus direitos constitucionais,
principalmente à terra e à autodeterminação, e para que se
fortaleçam face aos desafios que enfrentam atualmente para
manter o “sossego” em seus territórios.
Encontro “Índios e quilombolas em Oriximiná: trocas em gestão territorial” promovido pela CPI-SP, Iepé, CEQMO e Associação Mãe Domingas, em novembro de
2014 na cidade de Oriximiná.
15
carlos penteado
COMUNIDADES
MOCAMBEIRAS
DO TROMBETAS
Eurípedes A. Funes
INTRODUÇÃO
Quando decidi estudar comunidades mocambeiras na Amazônia
brasileira alguns questionamentos se colocaram, entre eles, se
ali houve um regime escravista nos moldes de outras regiões
brasileiras, em especial, quanto ao contingente de população
cativa. Essa questão associava-se, por um lado, à representação
da Amazônia como um território indígena, e, por outro, à
natureza amazônica – um ambiente pouco propício às atividades
agropastoris – floresta úmida fechada, insalubre, um inferno
verde. Ali seria impossível a presença de relações de trabalho
escravista para além daquela em que o nativo constituíra a força
de trabalho, associada ao extrativismo.
No Pará, a população cativa, negra, não ultrapassou em nenhum
momento a taxa de 20% da população total da província. Todavia,
as relações de produção escravista ali se faziam presentes, fossem
na ilha de Marajó, na região do Salgado, no baixo Tocantins, ou
no oeste do estado, onde concentrei os meus estudos sobre as
sociedades mocambeiras, ali constituídas no século XIX – nos
rios Trombetas, Erepecuru/Cuminá, Curuá e nos lagos de Óbidos
e Santarém –, hoje materializadas nas comunidades quilombolas
descendentes dos mocambos existentes naquela região, então
conhecida por Baixo Amazonas (Funes, 1995).
Falar em remanescentes de quilombos, no Baixo Amazonas,
é remeter a uma história marcada por conflitos, resistências de
cativos que romperam com a sua condição social ao fugirem dos
cacoais, das fazendas de criar, das propriedades dos senhores de
Óbidos, Santarém e Alenquer. É navegar nas reminiscências vivas,
que marcam as experiências sociais e vivências de afro-amazônicas
que constituíram seus espaços no alto dos rios Curuá, Erepecuru
e, em especial, no Trombetas, onde ser livre era possível.
O Trombetas, assim como outros rios daquela região, se constitui de
duas partes. A primeira denominada de “águas bravas”, marcada
pela presença de cachoeiras, mais próxima das nascentes, de difícil
navegabilidade, até mesmo para uma simples canoa. Territórios
de várias nações indígenas, outrora também de refúgio de vários
18
quilombolas. A segunda, chamada de “águas mansas”, por ser
de fácil navegabilidade, tem uma extensão de aproximadamente
200 quilômetros até a sua foz. Trata-se de uma região com terra
preta (denunciando a presença de antigas povoações indígenas),
hoje pontilhada por comunidades quilombolas, que ali se
constituíram ao longo do século XIX. É área de disputa entre
essas comunidades, as empresas mineradoras e órgãos federais
de preservação ambiental – Reserva Biológica do Trombetas e
Floresta Nacional Saracá-Taquera.
Foi nesse rio de águas negras, emolduradas por castanhais,
que se constituiu no século XIX uma fronteira quilombola.
Ali, firmaram-se os mais importantes mocambos do oeste
paraense, configurando-se uma Amazônia negra. Uma fronteira
é sempre final e princípio; ponto de chegada e de partida,
âmbito do cotidiano e do desconhecido, geradora de medos e
desconfianças; espelho e escudo, eterna contradição de um ser
que requer o outro, ao mesmo tempo que necessita diferenciar-se
para seguir sendo essencialmente humano.
Rio que se constituiu caminho natural para aqueles que, em
processo de fuga, buscavam as águas bravas, onde ser livre era
possível. Mocambos que necessitavam, na opinião do governo
provincial do Pará, ser destruídos, “em razão dos graves prejuízos
que sofrem os lavradores daqueles distritos com a fuga de seus
escravos” (Governo do Pará, 1847).
Terras de negros sobrepondo territórios indígenas. Momentos de
tensões e alianças entre dois segmentos sociais distintos, onde
as sociedades nativas tornam-se o Outro frente ao quilombola,
sendo forçadas a se deslocar mais rumo ao Tumucumaque,
um divisor de águas entre aquelas que deságuam no Atlântico
Caribenho e aquelas que descem para o “Mar Dulce”. Ali se
encontram com outros negros fugidos da escravidão – os bush
negroes, configurando-se um elo entre as sociedades quilombolas
dessa região amazônica. Uma convivência, ora conflituosa, ora
de tolerância, que possibilitou trocas culturais perceptíveis nos
modus vivendi, em particular no cotidiano das comunidades afroamazônicas. Houve ali uma troca de saberes.
As marcas desse processo histórico são visíveis na documentação
gerada pelo governo paraense: correspondências, relatórios e
autos cíveis; nos jornais da época, nas narrativas produzidas por
viajantes, em sua maioria cientistas, que visitaram esses rios na
segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX.
Esse processo está visível, e permanente, sobretudo na memória
daqueles que são os continuadores dessa luta. Se, num primeiro
momento, o enfrentamento visava construir a liberdade rompendo
com a escravidão, hoje a luta se coloca no sentido de libertar a terra
para continuarem a ser livres e assegurarem o direito à cidadania.
No diálogo com os narradores, a língua vai se soltando, as palavras
vão saindo, configurando elos entre o presente e o passado. “Vou
contá o que me contaram, o que avô contou pro meu pai, o que
minha mãe contava... Isso se passou assim num sabe? Não conto
o que não sei, é assim a história.” Ali não há uma história avulsa.
Mesmo quando “se lembra de mim” é um lembrar de uma história
comunitária; do eu, mas também dos outros. São narrativas
carregadas de experiências vividas, ou assimiladas, colando à
sua história as histórias de seus anteriores.
São expressões que marcam as falas e nos fazem lembrar
ensinamentos do malinês Hampâté Bâ. Diz ele:
“Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer
dos séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros
arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos
homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel,
o escritor ou o estudioso mantém um diálogo secreto
consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem
recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso
de experiência própria, tal como ele mesmo os narra”
Hamatê Bá, 1982: 181-2.
Desde o início da pesquisa, percebi o necessário diálogo
com diferentes campos do conhecimento, em especial com
a antropologia, a geografia, a história social e a história
ambiental cujas fronteiras tornam-se tênues, permitindo aos
estudiosos circular por territórios vizinhos, sem comprometer
o olhar, a perspectiva de análise e construção de sua narrativa
historiográfica. Há aí um elemento comum, marco de interlocução
possível: a noção de cultura.
Cultura que abarca as práticas de resistência diante do poder,
resistência que se manifesta tanto na ação política quanto nas
formas ocultas e práticas culturais que têm também um forte
viés identitário. Cabe-nos buscar e analisar as formas simbólicas
– palavras, imagens, instituições, modos de comportamentos –
com cuja ajuda os homens de qualquer lugar se representam,
perante si mesmos e perante aos demais (IGGS, 1998).
A memória, mesmo sujeita a influências e novos valores – parte
natural do processo evolutivo do grupo que a preserva, enquanto
elemento que dá sustentação à identidade e ao sentido de origem
– mantém um vínculo entre o presente e o passado. Referências
repetitivas de fatos, nomes, lugares e atitudes são marcadores
significativos, e ao mesmo tempo reveladores, que permitem
traçar a trajetória histórica do grupo. Exemplo: vieram da África,
fugiram, mocambeiros, remanescentes. É quando a memória vira
fonte para a história.
Uma memória que é dinâmica, assim como a história. Segundo
Alistair Thonson,
A memória gira em torno da relação passado-presente,
e envolve um processo contínuo de reconstrução e
transformação das experiências lembradas, em função
das mudanças nos relatos públicos sobre o passado.
Que memórias escolhem para recordar e relatar (e, portanto,
relembrar), e como damos sentidos a elas são coisas que
mudam com o passar do tempo. [...] Esse sentido supõe
uma relação dialética entre memória e identidade. Nossa
identidade (ou “identidades”, termo mais apropriado
para indicar a natureza multifacetada e contraditória
da subjetividade) é a consciência do eu que, com o passar
do tempo, construímos através da interação com outras
pessoas e com nossas próprias vivências. Construímos
nossa identidade através do processo de contar história,
para nós mesmos – como histórias secretas ou fantasias –
ou para outras pessoas, no convívio social
Thonson, 1997: 57.
19
Através do diálogo com os mais velhos e lideranças comunitárias,
adentrei pouco a pouco o passado dessas sociedades e percebi
como este é apropriado, e (re)significado. Constatei que os
interlocutores possuem uma percepção viva de um passado que
não é apenas conhecido, mas vivido e sentido pessoalmente,
lembrado de forma coletiva. Uma memória que remete aos
tempos da escravidão; dos quilombos e dos conflitos sociais
que marcaram as histórias dos negros, cativos e libertos, e
constituíram um corolário de referências para a compreensão do
surgimento dessas comunidades negras.
Conforme Bonnemaison deve-se considerar que:
[...] entre a construção social, a função simbólica e a
organização do território de um grupo humano, existe
uma inter-relação constante e uma espécie de lei de
simetria. A paisagem é um primeiro reflexo visual disso,
mas toda uma parte permanece invisível porque é ligada
ao mundo subjacente da afetividade, das atitudes
mentais e das representações culturais [...] O território
toma aí todo o sentido que lhe foi atribuído por séculos
de civilização campesina: ele é, ao mesmo tempo, raiz
e cultura. Não é fortuito o fato de essas duas palavras
terem um mesmo campo semântico e uma referência
comum à terra nutridora
Bonnemaison, 2002: 106-7.
Interagindo com os moradores das comunidades negras, às
margens do rio Trombetas – Abuí, Paraná do Abuí, Tapagem,
Sagrado Coração, Mãe Cué, Jamari, Juquiri Grande (Juquiriaçu),
Erepecu (Aripecu) e Moura –, foi possível encontrar, nos labirintos
das memórias, os varadouros que nos levam à história desses
mocambeiros e de seus ancestrais, hoje estabelecidos numa
área ocupada por aproximadamente 500 famílias, cujos “ramos”
estão entrelaçados por relações de parentesco, compadrio e
outras afinidades. Sobretudo, entrelaçados por uma mesma
história, partilhando experiências comuns e a constituição de
uma identidade marcada pelo sentido de pertença e construção
de um espaço único – terras de mocambeiros.
20
Ao se referir aos antepassados, eles se voltam menos para o tempo
da escravidão, e mais para o dos mocambos, que eles têm como
uma espécie de utopia, por representar o tempo da liberdade, da
fartura, do respeito aos mais velhos. Assim, “transformam em
geral o passado (tudo o que aconteceu) num passado significante,
a história deles” (Price, 1983: 191).
Nas comunidades estudadas, não há guardiões das tradições nem
um ritual de transmissão de conhecimentos. Aqueles que detêm
a memória histórica, coletiva, são os mais velhos que ouviram as
narrativas dos avós, dos pais ou que, movidos pela curiosidade,
indagavam sobre o tempo dos mocambos, do cativeiro, de suas
origens. Um dos critérios adotados para escolher os interlocutores
foi o de terem origens comuns e serem depositários de uma
memória que, mesmo narrada de forma individual, expressas
lembranças coletivas; partilhando experiências e a constituição
de uma identidade marcada pelo sentido de pertença e construção
de uma territorialidade. Um pertencimento que engendra uma
rede de parentesco, que remete aos “ramos” e a um tronco comum
de ancestralidade. Os de agora fazem das histórias daqueles suas
histórias. Na origem, estão as raízes da identidade.
As narrativas das experiências vão interligando as comunidades
negras da bacia do Trombetas, suas histórias se fundem e
as memórias se entrelaçam. Ao falar de sua história, do eu,
de sua vivência em sua comunidade, o sujeito navega pelas
reminiscências de outras comunidades, porque estas fazem parte
de sua memória, de sua ancestralidade. Há neste sentido uma
rede de parentesco que vincula as comunidades, fortalecendo
o sentimento de pertença e de territorialidade; espaços sociais
conhecidos e sentidos como seus (Rio, 1998: 23).
As falas vão dando conta de vários lugares de refúgio,
nascimentos e encontros. São lugares que constituem um cenário
de memórias, configurado num território de negros, conferindo
significação e valor à existência. Uma origem comum, percepção
viva do passado, que não é apenas conhecido, mas vivido e
sentido pessoalmente, lembrado de forma coletiva, fortalecendo
a legitimidade do direito a terra. No diálogo com os narradores,
fui encontrando explicações para o entendimento das estratégias
de fuga e de sobrevida traçadas por aqueles ex-cativos que
construíram nos altos dos rios, lagos e matas territórios hoje
percebidos como terras de negros.
Discutir a interação homem-natureza, mais precisamente, as
relações das comunidades negras amazônicas com a floresta
em que se inserem e com a qual estabelecem dupla relação de
liberdade e de vida; entender como os quilombolas tecem uma
cumplicidade com a mata, os rios, as cachoeiras, no processo
de fuga e de reprodução dessas sociedades mocambeiras; que
leituras fazem da natureza e como a cumplicidade negros/
floresta foi quebrada pela chegada violenta de práticas
capitalistas – representadas pela mineração, construção de
barragem e implementação de políticas preservacionistas, a
partir da década de 1970, e hoje com o agronegócio –, são pontos
abordados neste texto. Na análise, onde além da documentação
e dos relatos de viajantes, recorremos às narrativas dos
moradores do Alto Trombetas. Alguns ouvidos por ocasião do
IV Encontro Raízes Negras, realizado na Tapagem, em julho de
1992, numa atividade chamada “Mesa com os Mais Velhos”;
outros em julho de 2000, o Sr. Raimundo da Silva Cardoso
(Sr. Donga), em julho de 1992, em Oriximiná, e o Sr. José Santa
Rita em julho de 1993, no Pacoval – Rio Curuá.
TEMPO DE FESTA, TEMPO DE CHEIAS,
TEMPO DA CASTANHA – TEMPO DA FUGA
A estratégia de defesa dos cativos em processo de fuga, para se
embrenhar nas matas – após atravessarem pelos furos de um lago ao
outro ou alcançarem os vários braços dos rios através dos paranãs
– implicava ser bons conhecedores daqueles espaços, mestres dos
rios e das florestas, para chegar acima das primeiras cachoeiras
– nas águas bravas –, onde se formaram os mais importantes
mocambos daquela região. Um aprendizado adquirido, em grande
parte, com os nativos, os indígenas, senhores daqueles territórios;
ali, os quilombolas se tornaram senhores dos rios.
Conhecer o meio ambiente era fundamental para o sucesso das
fugas, tendo a natureza como cúmplice. No tempo das cheias,
capinzais crescem às margens dos lagos, formando tapagens,
obstruindo os igarapés que os interligam entre si e aos rios,
dificultando a passagem e camuflando os “caminhos”. Segundo
o mocambeiro Benedito, que tentou levar consigo alguns
companheiros, para chegar ao mocambo “tinha que atravessar
um tabocal, passando por um igarapé e depois de atravessar
gasta-se andando três dias para lá chegar” (Governo do Estado
do Pará, 1811).
O processo de fuga, individual ou coletivo, geralmente ocorria
em épocas de festas e, no caso da Amazônia, no período de
cheias: dezembro a maio. Nessa região, as festas, em especial as
dos ciclos natalino e junino, coincidem com o tempo de inverno e
da castanha. O editorial do jornal “Baixo Amazonas”, Santarém,
do dia 8 de janeiro de 1876, afirmava ser:
Aflitivo e verdadeiramente ameaçador em que
[condições] vemos o direito de propriedade neste
município, relativamente aos escravos, [...] levas
abandonão seus senhores para se refugiarem nos
soberbos quilombos que nos cercam. Todos os dias
registram-se muitas fugas de escravos e de vez enquanto
uma leva de 10, 12, 20 e até 30 escravos [...] como as
que se deram nas noites de 28 de dezembro do ano
findo e 3 deste mês [...]. De janeiro a maio [período]
em que enche o Amazonas é tempo que os escravos
julgão mais apropriado para fugirem. Neste tempo
o trânsito, que é todo fluvial, facilita-lhes poderem
navegar por atalhos que conhecem ou por onde são
conduzidos, sem receio de serem agarrados; por este
tempo que é o em que se faz a colheita das castanhas
Uma fuga continuada, e às vezes reincidente, como o caso do
carafuz Gregório, conhecido no rio Trombetas por Raymundo,
que fugiu no dia 16 de dezembro de um sítio do rio Aritapera:
21
carlos penteado
[...] Levando em sua companhia a tapuia de nome
Maria, juntamente a escrava Sabina com 2 filhos
menores pertencentes a D. Maria Martins. Estes escravos
foram capturados em março pelo capitão do matto o
Sr. cândido Manoel do Espirito Santo e entregues ao
Sr. Antônio Joaquim Vianna. É de Supor que os ditos
escravos fossem para o mesmo Trombetas e por isso peço
as autoridade de Óbidos e mesmo capitão do mato que
haja de captural-os
Baixo Amazonas, 1882.
Esses registros tornam-se interessantes pelo fato de apontarem
para o processo de aliciamento procedido pelos quilombolas,
uma forma de reprodução dessas sociedades. Veja-se, nesse
sentido, o ofício do subdelegado de polícia de Óbidos, sobre
fugas ocorridas quando da vinda de quilombolas à cidade:
Ocazião em que eles cruzão os districtos desta villa,
consta que elles fazem esses descimentos por ser o tempo
mais oportuno pella facilidade, que dá as enchentes
dos rios para se proverem de pólvora, armas e do mais
que lhes é necessário. É nesta época justamente que se
multiplicão as fugas de nossos escravos por observações
que se tem feito, se tem conhecido que elles tem proteção
estabelecida dentro desta villa
Governo do Estado do Pará, 1854.
Em alguns casos, essas tentativas acabavam em confronto aberto
entre senhores e quilombolas, como o ocorrido em 18-05-1860,
quando mocambeiros do Trombetas atacaram a propriedade
de Maria Macambira para ver “se conseguiam levar consigo
alguns escravos [...] mas não lograrão seu intento, por que foram
acossados por um filho da senhora que os dispersou, prendendo
um dos seus agressores o qual fez revelações relativas aos
quilombos que ali existem” (Reis, 1860).
Todavia, muitos chegaram ao Alto Trombetas, como: José Cândido,
50 anos, pescador; Pedro, 55 anos, lavrador; Francisco, 54 anos,
lavrador; Antônia Maria, 60 anos, lavradora, todos africanos, e
Samaria, 46 anos, natural de Santarém, filha de Antônia Maria,
lavradora. Todos pertenciam a João Antônio Nunes, proprietário
em Óbidos (Governo do Estado do Pará, 1878).
Nesse processo de resistência escrava, os altos dos
Rios Erepecuru, Curuá e Trombetas, este em especial,
configuraram-se como espaço das sociedades quilombolas,
onde as autoridades governamentais tiveram pouco sucesso
em suas expedições punitivas, empreendidas desde o início do
século XIX. Assim, na margem esquerda do Amazonas, “desde
Almerim até Óbidos”, havia mocambos que necessitavam, na
opinião do governo provincial do Pará, serem destruídos, “em
razão dos graves prejuízos que sofrem os lavradores daqueles
distritos com a fuga de seus escravos” (Governo do Estado
do Pará, 1847).
Ao longo desse século, essas comunidades continuaram a
crescer, conforme bem registra o “Baixo Amazonas”, de 22 de
fevereiro de 1873:
Apesar da grande falta de braços no que lutam os
agricultores do Amazonas, aumentado este mal em
que a avultada emigração para os seringais do Alto
Amazonas, ainda temos a lamentar as continuas fugas
de escravos que diariamente, abandonam seus senhores
para se homisearem nos quilombos do Trombetas, em
Óbidos, e Curuá, em Alenquer. O número crescido de
escravos que contem estes dois mocambos eleva-se,
segundo bons cálculos, a mais de mil. Não encontramos
outro meio de extinguir os quilombos, já que tem sido
improficuo os meios empregados pelo governo, em suas
expedições com o fim de bater os mocambeiro
Em 17 de dezembro de 1870, o fazendeiro José Joaquim
Pereira Macambira enviou uma carta ao chefe de polícia, da
Província do Pará, Hermogenes Socrates Tavares Vasconcellos,
afirmando que:
23
A muitos anos que minha mãe a Sra. D. Maria
Margarida Pereira Macambira se ve privada do serviço
de avultado número de escravos seus e do seu casal que
se achão pio indivisos por terem elles se homeziados nos
quilombos dos rios Curuá e Trombetas, sem que os meios
empregados e a acção do governo tenhão podido tiralos de uma vida selvatica e restituidos ao animo de seus
legítimos senhores
Governo do Estado do Pará, 1870.
O lamento do Sr. Pereira Macambira não era solitário.
Todos os anos se repetem estas cenas e não vemos
remédio para isso, ou meio para que possa impedir, sem
que a ação da autoridade se pronuncie. Se continuar
a fuga de escravos em tão larga escala e com tanto
desembaraço em pouco tempo os rios Trombetas e
Curuá, terão concentrado em si todo o pessoal escravo
do Amazonas e lugares adjacentes
Baixo Amazonas, Editorial, 1876.
Tempo de festa, tempo de cheias, tempo da castanha – era esse
o tempo da fuga.
Estabelecidos acima das corredeiras e cachoeiras, os quilombolas
interpunham obstáculos naturais entre eles e seus perseguidores.
Ultrapassá-los implicava ser bom de remo e hábil em desviar
de pedras. Por sua vez, os caminhos pelas matas encurtavam as
distâncias em relação aos rios cheios de meandros, mas, para
conhecê-los era necessário ser mestre.
Veja-se, nesse sentido, a narrativa do Sr. José Santa Rita, morador
do Pacoval – rio Curuá —, ao fazer considerações sobre a fuga
dos escravos que saíram de Santarém e foram em busca de seus
parentes refugiados no rio Trombetas.
Eles queriam ir atrás do pessoal deles, que já tinham
regressado um pouco para o Trombetas fugidos.
1.
2.
24
Entrevista realizada em fevereiro de 1992.
Entrevista com Raimundo da Silva Cardoso, Donga. Oriximiná, julho de 1993.
Então, eles fizeram essa mente de que se fosse subir,
ela, Maria Macambira, já tava mais ou menos cismada
de procurar os outros. Então eles resolveram baixar
de Amazonas abaixo no intuito de procurar um lugar
onde eles não fossem perseguidos, que ela ia perseguir.
Aí, eles foram pra Monte Alegre, porque iam caçando
meio de se esconder mesmo, mas como não havia abrigo
pra eles aí, por que era muito pertinho da perseguição,
arresorveram sartar de Monte Alegre por terra e procurar
os destinos deles, pra onde desse pra eles pegarem
o rumo dos parceiros que havia ido pro Trombetas.
Eles contavam isso assim. Aí saíram atravessaram
o Maicuru, mas ainda era perto da perseguição; aí
atravessaram o Curuá, mas como é um rio muito seco,
era verão, e de pouco alimento pra eles, atravessaram
pra vê se pegavam mesmo onde os outros parceiros
tavam. Aí foram, não alcançaram. Aí atravessaram
o Curuá até que chegaram no Cuminá. Subiram rio
acima, procurando lugar pra eles se acamparem melhó,
onde podiam fazê as moradas deles.1
Alcançar os parceiros e buscar um lugar seguro, fora do alcance
da perseguição, onde fosse fácil encontrar alimentos na natureza,
eram elementos presentes nos planos dos escravos que foram
para o rio Trombetas. Segundo Sr. Raimundo da Silva Cardoso
(Donga), da comunidade Tapagem, no Trombetas: “foi depois que
eles fugiram dos senhores, que eles foram fazê a aldeia deles lá
muito dentro das cachoeiras do Turuna e Ipoana. A primeira foi
Maravilha, a segunda, quando foram atacados, foi no Turuna,
daí foram pro Ipoana, lá os homens não chegaram mais”.2
Padre Nicolino em sua primeira viagem ao Erepecuru, em
1876, encontrou uma “capoeira dos mocambeiros denominada
Sant’Ana”, que ficava no estirão Livramento, o primeiro, acima
da ilha do Breu.
Na arte de se tornar quilombola, o ex-escravo vai moldando sua
vida à nova realidade, e as pegadas do rio são marcas do tempo.
Sua alma torna-se tão profunda quanto os rios: vivazes, agitados,
inquietantes como as águas das superfícies, onde as imagens do
macrocosmo refletem no microcosmo das águas, constituindo uma
imagem indivisível, um todo único (Oliver, 2001). Mas, silenciosos,
taciturnos, contidos em seus sofrimentos como a profundeza dos
rios de águas negras do Trombetas. Calados quando necessário.
Um silêncio que não é a ausência da fala. No interior da selva
constroem seus diálogos e a hora de soltar os gritos.
Mocambos que estão vivos no imaginário dos descendentes,
como tempo de liberdade, de fartura, diante de uma atualidade
marcada por dificuldades sociais vivenciadas pelas comunidades
negras ribeirinhas: o não respeito aos mais velhos e, mais do que
a discriminação racial e o preconceito, a luta pela terra.
VIVER EM MOCAMBOS
A opção pelos mocambos, em especial para aqueles das primeiras
levas, significava adentrar o desconhecido, sem a certeza do
que encontrar pela frente. Era um recomeçar. Havia o gosto
da liberdade, mas também enormes desafios, a começar pelo
relacionamento com um novo espaço, a aprendizagem de novos
caminhos e a sobrevivência nas matas com o que a natureza lhes
dava. Aprendizado feito em grande parte com o nativo, mestre
conhecedor do meio ambiente, que tinha o controle sobre aquele
território que era seu.
Na escolha do lugar, além do ponto de vista estratégico, os
mocambeiros priorizavam áreas onde fosse possível plantar
e a natureza fosse pródiga. “Palmeiras e urucurys ahi estão
comprovando-lhe a excelência das terras e mostrando que
o preto teve dedo na escolha do local para o seu tugúrio”
(Cruls, 1945: 42), diz Gastão Cruls, referindo-se ao antigo sítio
3.
4.
do mocambeiro Lauthério no Erepecuru, o mesmo sítio que fora
visitado pelo Padre Nicolino em 1876.
“Chegaram lá foram fazê o acampamento deles”; “Fizeram as
aldeias”, “Construíram as casas e foram buscá a família” são
frases repetidas pelos narradores ao se referir ao momento
em que os quilombolas encontraram espaço ideal para se
estabelecer, apontando para o modus vivendi dos mocambos
do Baixo Amazonas.
Nesse novo momento de sua história, o escravo – agora
quilombola até então ocupado basicamente em atividades
agropastoris e domésticas – estava diante de uma nova
realidade: além do cultivo, deveria caçar, pescar e praticar o
extrativismo para garantir a sua sobrevivência. Conforme Santa
Rita, os mocambeiros que se estabeleceram nos altos do Curuá,
“lá estiveram um bocado de tempo comendo massa de babaçu
feito farinha e umas massas de uricuri, que eles chamavam de
nhamundá. Eles sustentavam como bicho do mato”.3
Depreende-se dessa fala a alteração na alimentação, com a
inclusão de novos gêneros até então ausentes em seu padrão
alimentar. Extrair da floresta seus alimentos tornava-os
usualmente próximos aos índios – na perspectiva de construção
de uma outra identidade –, com os quais dividiam o mesmo
espaço. A expressão “bicho do mato” é bem simbólica, podendo
ter cunho pejorativo referindo-se ao nativo, mas pode significar
também aquele que pertence à mata, filho da floresta.
Essa “relação maternal” é sentida até hoje na fala dos mais
velhos, como na de Rafael Printes Viana, morador da comunidade
do Abuí, no Alto Trombetas, para quem: “a floresta é como
nós chamamo essa música – nossa mãe cachoeira – assim nós
chamamo, também, nossa mãe floresta, nossa mãe porque dela
tiramos pode-se dizer de um tudo, desde a saúde [...] Então quer
dizer nossa mãe floresta é vida”.4
Entrevista com José Santa Rita, fevereiro 1992.
Entrevista com Rafael Viana Printes, junho 1992.
25
Remédios para diarreia e dor de cabeça; fórmulas infalíveis
contra veneno de cobra e outros bichos peçonhentos, e cura
para outros males eram, e são, extraídos das matas, um grande
laboratório farmacêutico, sempre bem utilizado por essas
comunidades. A natureza é parte essencial de seu cotidiano.
O extrativismo vegetal, pouco comum no mundo do escravo,
por ser uma prática de trabalhadores livres em decorrência de
sua especificidade, no quilombo tornou-se tarefa diária e base
da economia mocambeira. Um cuidado a mais, na hora de
escolher o lugar do acampamento, onde a natureza lhes fosse
pródiga, em especial na produção de castanhas. A área em que
essas sociedades quilombolas se constituíram era, e ainda é,
um castanhal único que vai desde a bacia do Paru do Leste,
em Almerim, até a do Trombetas, em Oriximiná, sendo que as
melhores “pontas de castanha” estão no alto dos rios, local onde
os mocambeiros se estabeleceram.
Além da castanha extraíam: salsaparrilha, cumaru, óleo de copaíba,
de andiroba, do pequiá e outros produtos naturais, necessários ao
dia a dia dos quilombos. O excedente tinha venda garantida no
mercado da região. Entretanto, nem só do pão da natureza viviam
os mocambeiros. Eles faziam seus roçados e hortas, onde, além
de árvores frutíferas, plantavam leguminosas e outras espécies
alimentares. Maximiano de Souza, capitão que comandou uma a
expedição punitiva ao quilombo Maravilha em 1855, diz:
Vê-se a serra Icamiaba revestida de relva, que disse o
preto Benedito [quilombola que servia de guia] ser essa
relva batata doce, que ali cresce espontaneamente e de
que se alimentam os mocambeiros e os gentios, disse
mais ainda que nessa serra em certo tempo do ano,
fazem grande caçada de porco montez que charqueiam
para o abastecimento do mocambo
Souza, 1875.5
5.
26
Soma-se à culinária dos mocambeiros a paca, a anta, o macacoguariba e outras espécies animais comestíveis, típicas da região.
Ainda segundo Sr. Donga, sua avó lhe contou que, quando os
cativos fugiam,
Eles não levavam feixe de maniva não, meu filho,
aquelas caboca, molatas grande, que tinham os cabelos
grandes, quando elas tavam iniciando pra fugi, eles iam
na roça tiravam a semente da maniva, porque maniva dá
semente, semente de tudo quanto é planta e iam metendo
na volta do cabelo pra prendê tudo quanto era semente,
quiabo, melancia, maxixe, quando eles fugiam, aqueles
que tinham cabelo grande desembrolhava ali dava com
a trocha da produção e assim foram levando, que quando
os outros chegavam já tinham para o sustento.
Chama a atenção na fala de Donga, mais do que a representação
das negras com seus cabelos enfeitados de sementes, o fato
de a maniva ser a primeira planta mencionada. Sem ela, ou a
macaxeira, não há farinha, produto básico na alimentação da
população ribeirinha, até hoje. Mistura-se com feijão, comese com peixe, com açaí, e na falta de qualquer produto para
misturar, faz-se o chibé – farinha, água e açúcar. Outro ponto
interessante é a preocupação em garantir o sustento para os que
chegassem depois. Sem dúvida os roçados eram pequenos e o
trabalho se baseava na unidade familiar.
Nesse processo, na medida em que os quilombolas buscavam
garantir a sua autonomia e reprodução, constituíram um
campesinato centrado em pequenas roças e nas relações de
produção baseadas na unidade familiar e no trabalho coletivo
representado pelos puxiruns; em especial no momento de
fazerem o roçado e construírem casas. Práticas de solidariedade
e de confraternização. Os homens assumiam as tarefas externas,
em especial nos roçados, as mulheres cuidavam da alimentação
Com o referido texto, João Maximiano de Souza pretendia corrigir algumas “inverdades, sobre o Trombetas, colocadas por F. Bernardino de Souza no seu livro
Lembranças e curiosidades do Valle do Amazonas.
e à noite, geralmente, era momento da dança. Aspectos como
esses – do “puxirum”, da facilidade de conseguir alimentos
junto à natureza, permitindo uma “vida tranquila” –fazem com
que, no imaginário dos descendentes, o mocambo pareça uma
“terra sem males”, a “cidade Maravilha”.
Em 1866, Frei Carmello Mazzarino esteve por dez dias entre
os quilombolas do Alto Trombetas. Considerando a data e a
descrição feita por ele, visitou os mocambos de Colônia e do
Campiche, para onde aqueles se transferiram após o ataque
da expedição comandada por Maximiano de Souza, em 1855.
Ali, esse franciscano encontrou “cerca de 130 pessoas, além de
índios que estão no meio dos pretos, os quais estão divididos por
muitos lugares e em cada um achei uma linda capelinha onde
praticão atos religiosos” (Cartório do 2º Ofício de Óbidos, 1868).
As habitações localizavam-se nas partes altas das margens, em
terra firme, fora do alcance das enchentes e, evidentemente,
em lugares estratégicos; muitas vezes ocultas à visão de quem
passasse pelo rio, em posição cômoda e bem escolhida, como
as 36 casas “construídas de taipa, cobertas de palha e porta de
japá”, encontradas por João Maximiano de Souza no Mocambo
Maravilha, em 1855, dando a ideia de um aglomerado de moradias
formando uma pequena vila, tendo os roçados mais para o centro
(Souza, 1875). Esse aspecto revela a existência de dois espaços:
o de morar e o de trabalhar. Até hoje, nas comunidades negras o
local onde se faz o roçado chama-se centro em relação à margem
do rio, espaço de moradia e de sociabilidade.
As casas construídas pelos mocambeiros eram “pequenas
palhoças feitas de quatro esteios, cobertas de palha, abertas,
com um girao, uma espécie de tecto feito de achas do stipo das
palmeiras, sobre o qual dormem em redes, presas aos caibros
da coberta. Prevenidos dormem assim ocultos” (Rodrigues,
1875: 27). O mesmo modelo de habitação vista por O. Coudreau,
no final do século XIX: uma casa com divisão bastante simples,
composta por “duas peças, uma para conversar, por que tem
alguém mais conversador que um negro mocambeiro? E outra
para dormir”. Para ela, um tipo de moradia condizente com o
modo de viver dos negros aquilombados, “uma promiscuidade
repugnante” (Coudreau, 1901: 178).
O tipo de habitação descrita por Barbosa Rodrigues, em 1875, e
por Coudreau, em 1899, era semelhante ao do velho Ricardo e sua
“consorte”, moradores da cachoeira Porteira, que pode ser visto
em foto de 1934, feita pelo fotógrafo da 1a Comissão Demarcadora
de Limites de Fronteiras (Aguiar, 1942). Uma construção de
madeira, coberta de palha, tipo paliçada amarrada com cipó,
que deve ser o timbó-titica, o mais usado e tido como resistente
na região. Vê-se, nesse caso, a área que corresponde à cozinha,
o espaço mais público da casa. Ali recebem as visitas, tomase café e, como não pode deixar de ser, conversa-se. Pode-se
observar o fogão construído com lascas, colocadas no sentido
horizontal e recheado com terra compactada. Compõe o conjunto
dos elementos indispensáveis o pilão, nesse caso construído de
forma horizontal e com duas bocas, empregado para beneficiar o
mantimento, pilar arroz e milho.
Chamam a atenção, ainda, nessa foto, alguns objetos de uso
cotidiano, como o jamaxi, a peneira, ambos feitos de fibras, sinais
evidentes de influência indígena; o casco de uma tartaruga –
cuja carne, provavelmente, garantiu as refeições daquela família
por alguns dias – transformado em utensílio doméstico.
Nas matas, os mocambeiros encontravam sementes oleaginosas
como o “uixi-pacu” e “piquiá”, com as quais fabricavam óleos
empregados na iluminação. Segundo Barbosa Rodrigues:
Das frutas maduras tiravam o epicarpio e mesocarpio,
aquecia-os um pouco em umavasilha e mettia essa
massa dentro de um Tipity expremendo-a, corria então
um lindo óleo amarello, muito transparente, porém de
um cheiro um pouco nauseante, que se concentrou logo
que a temperatura baixou, tornando-se esbranquiçado.
Alguns derretem a massa ao fogo e apuram o óleo.
Empregam-o geralmente só para luz
Rodrigues, 1875: 19
27
Nos rios e lagos buscavam, e buscam até hoje, o peixe, alimento
diário. Faziam grandes salgas para se alimentarem nos períodos
em que o pescado escasseava. Incorporavam à culinária a carne
e ovos de tracajá e tartaruga, quelônios altamente apreciados
pelas populações ribeirinhas.
Esses elementos remetem à relação mocambos-meio ambiente.
Na Amazônia uma relação significativa para o sucesso das fugas,
da resistência e, sobretudo, para a sobrevivência e reprodução
dessas comunidades enquanto organizações sociais diferenciadas
da sociedade escravista.
MARAVILHA: SOBREVIVENDO
ÀS EXPEDIÇÕES PUNITIVAS
As comunidades quilombolas que se constituíram nos altos
rios da Guiana Brasileira foram por diversas vezes atacadas
por expedições punitivas, mas também visitadas por religiosos,
cientistas, comerciantes e pessoas comuns da região. Se, por
um lado, isso significou a inserção daquelas comunidades
no contexto local, por outro, representou a sua legitimidade
e a concretude de um espaço de liberdade que sobreviveu à
sociedade escravista. A existência desses quilombos por tão
longo tempo, com um contingente populacional significativo,
implicava a presença de uma estrutura de poder e liderança
capaz de manter a unidade, coordenar a resistência, e garantir a
reprodução dessas sociedades.
Frei Carmello Mazzarino, quando de sua subida pelo Trombetas,
em 1866, ao se encontrar com os mocambeiros, manifestara o
desejo de ir até o local onde viviam. Teve que esperar 15 dias
pela resposta. Enviaram alguns quilombolas para consultar
as lideranças do quilombo, e somente então foi autorizada a
entrada daquele religioso no mocambo; antes, ainda, mandaram
“adiante uma canoa para avisar aos outros e evitar alguns
insultos, por que entre elles tinhão resolvido matar a qualquer
um que introduzisse um branco na morada deles” (Cartório do
2º Ofício de Óbidos, 1868).
28
Os quilombolas do Curuá que conseguiram escapar do ataque,
“foragidos pelas matas, vieram se estabelecer no Trombetas”,
aos quais se juntara Athanázio, um carafuz escravo do Major
Martinho da Fonseca Seixas, morador de Óbidos, que fugira em
1821, com mais 40 companheiros, estabelecendo-se num lugar
que ficou conhecido por lago do Mocambo. “Ahi chegando soube
granjear a amizade e tornar-se respeitado, de maneira que fez-se
eleger governador ou maioral e estabeleceu um governo despótico
electivo, sendo elle senhor de baraço e cutello, a exemplo do que
praticavam no Curuá. [...] Em 1823, uma expedição bateu o dito
mocambo aprisionando todos, até o rei Athanázio, que mais tarde
tornou a fugir e fundou um novo mocambo” (Rodrigues, 1875: 25).
Tavares Bastos, bem antes de Barbosa Rodrigues, em 1866,
afirmou que os negros do Trombetas viviam “debaixo de um
governo despótico e eletivo [provavelmente o dito Athanázio]
com efeito eles nomeiam o seu governador, e diz-se que os
delegados e sub-delegados são também electivos. Imitam nas
designações de suas autoridades os nomes que conheceram nas
povoações” (Bastos, 1866: 201).
Procurando confirmar as informações de Bastos, Barbosa
Rodrigues, em sua viagem pelo Trombetas, indagou a alguns
quilombolas – “muitos dos quais vivendo ali há mais de 30 annos”
– se existia entre eles esse tipo de governo, ao que responderam,
“que procurando eles a liberdade, não se sujeitavam a poder
algum, que cada um governa a sua família, e que como o proveito
era comum viviam na maior união sem que até o presente tivesse
havido um só caso de homicídio (Rodrigues, 1875: 26).
Se Bastos não confirma, também não nega que, assim como Barbosa,
teve como referência, para as suas conclusões, a história de
Athanázio, a quem chama de “governador”, “maioral” e “rei” que
se fizera “eleger”. O fato de existir a “maior união”, impedindo que
houvesse “um só caso de homicídio”, significava a presença de uma
estrutura de poder que, mesmo diluída, administrava os conflitos
internos, garantindo o “proveito comum” e a “união”, elementos
indispensáveis à segurança e reprodução dessas sociedades.
carlos penteado
Há de se considerar que talvez os quilombolas não vissem entre
eles esse poder despótico a que se referem Bastos e Rodrigues,
o que não significava, por sua vez, a ausência de uma estrutura
de poder e autoridade. Mesmo que na segunda metade do século
XIX tenha desaparecido a figura da corte, sua representação
continua até os dias atuais nas manifestações culturais como o
Aiuê e o Cordão do Marambiré, com os Reis de Congo, Rainhas
Auxiliares, Valsares e Contramestre, onde a autoridade máxima
está na figura do Rei de Congo. Um poder que poderia estar
diluído entre os mais velhos, o que hoje é lembrado pelos
remanescentes, que já não sentem o “respeito dos jovens”.
A autoridade de um idoso representava a de um pai: “cada um
manda em sua família”.
Não era rara a presença de índios vivendo nos quilombos, como
constatara Frei Carmello de Mazzarino, em 1866. Desse convívio
marcado por momentos de conflitos e de solidariedade,
resultaram marcas significativas, expressas nos tipos comuns
naquela região: o cafuzo e o tapuio. Marcas visíveis tanto nas
comunidades negras como entre os grupos indígenas. Em 1934,
a Comissão Demarcadora de Fronteiras encontrou, no Trombetas,
um núcleo de índios Katxuyana, composto por 13 indivíduos,
“mantendo estreita ligação com os pretos do mesmo rio que os
empregam na colheita da castanha e balata, além de servirem
de suas mulheres. Muitos desses índios apresentam caracteres
afro-mesclados com o mongólico característico das raças
indígenas brasileiras” (Aguiar, 1942: 312). Ao que tudo indica,
pouco ou quase nada havia mudado em relação à descrição feita
por Barbosa Rodrigues em 1875.
Convém mencionar a leitura feita, por essa comissão,
das comunidades negras que se encontravam “em estado
semibárbaro, por haverem assimilado totalmente os usos e
costumes dos índios com os quais estiveram em contato. Vivem da
caça, pesca e extração de produtos naturais” (Idem, ib.: 284)
Por muito tempo, os regatões, esses “mascates fluviais”, eram os
únicos que se atreviam a subir os rios e adentrar os espaços dos
quilombos. O rio Trombetas “temido pelo grande mocambo [...]
30
conservava-se sempre mysterioso, guardando os regatões a chave
deste mystério, que por conveniência exageravam os perigos
que ahi corria o indivíduo que tentasse exploral-o”. Que o diga
Frei Mazzarino, que ao chegar a cachoeira Porteira soube, com
extremo desprazer, que um comerciante de Óbidos e acostumado
a negociar, “ou, antes furtar aqueles pobres pretos fugidos do
Trombetas, lhes disse que escondessem para o interior das terras
e não apparecessem ao padre que chegava para levar a força
do governo, debaixo do pretexto de religião, vinha atraiçoal-os,
o que foi o bastante para que muitos adentrassem pelas matas
outros mais intrépidos e resolutos esconderão pelos arredores
para ver o fim” (Cartório do 2º Ofício de Óbidos, 1868).
Esses fatos demonstram não apenas os “desembaraços com
que os mesmos escravos fugidos transitão por toda parte
bem protegidos”, como sua inserção na sociedade escravista,
tornando pública e notória sua presença nas cidades
(Baixo Amazonas, 1876). Tais narrativas mais do que nunca
evidenciam a legitimidade dessas sociedades quilombolas e a
importância que ocupam no cenário socioeconômico da região,
a ponto de os “negociantes abandonarem o comércio dos
povoados para se embrenharem nas mattas onde estabelecem
casas de negócio para só traficarem com os escravos, que
seduziram da companhia de seus senhores” (Idem).
Dados estatísticos, referentes à produção de Óbidos, em 1867,
revelam o seguinte:
Tabaco – era cultivado em menor escala que o café.
A maior quantidade e a melhor qualidade que apparece
no mercado de Óbidos é proveniente dos mocambos do
rio Trombetas (Penna, 1869: 19).“Quando procurase por tabaco: pergunta-se logo quer o do mocambo?
É o melhor” (Rodrigues, 1875: 27). Castanha –
abunda em vários lugares da terra firme e nos valles de
montanhas. É o Trombetas que fornece a maior parte
do que chega ao porto de Óbidos. Óleo de cupahyba
– em 1867 foram exportados 160 canadas (419520
litros). Este produto se encontra em numerosos lugares
de município, mas a maior quantidade é procedente do
Trombetas.6 Salsa – A exportação no mesmo ano foi de
154 arrobas e 16 libras. Provém, também, pela maior
parte, das terras do Alto Trombetas
já serem bem antigos. Só em 1827 teve lugar algua
destruição no rio Trombetas por uma expedição desta
villa capturando muitos escravos, sempre escaparão
alguns que para ali continuarão a persistir nas mattas
Penna, 1869: 19-27
Governo do Pará, 1854.
Pergunta de resposta simples e rápida: Quem habitava o rio
Trombetas e os vales das montanhas?
Permanecer nas matas era o desafio que os mocambeiros
impunham às autoridades que reconheciam a duração dessas
sociedades. Uma resistência que incomodava os governos,
gerando desabafos como este de Rego Barros, presidente
da Província: “procurando tanto quanto permittem minhas
forças curar algumas chagas de longa data, e que muito fataes
poderião tornar-se no futuro. Refiro-me aos quilombos que estão
espalhados em diferentes pontos da Província”.7
São esses fatos que nos levam a perceber uma legitimidade
conseguida por esses mocambeiros que, mesmo tendo afetado
o sistema escravista, não comprometeram a economia local. Ao
contrário, dedicando-se ao extrativismo e à agricultura, apesar de
incipiente, garantiam um excedente de farinha, fumo e produtos
naturais, em especial a castanha, fortalecendo, pois, o mercado
regional. Aliás, como produtores, os mocambeiros ocupavam boa
fatia do mercado local.
Se destruir os mocambos restituía os escravos a seus senhores,
por outro lado, como se vê, contrariava os interesses de um
segmento considerável da sociedade local – os comerciantes,
muitos dos quais ocupavam cargos públicos e, por conseguinte,
gozavam de prestígio político. Havia, portanto, um forte jogo de
interesses entre o poder local e o Estado, no tocante à destruição
das comunidades quilombolas.
Os quilombos integravam-se ao contexto, ocupavam espaços na
economia extrativista, resistiam e sobreviviam às ações repressivas,
como fica claro no ofício do delegado de polícia de Óbidos:
[...] neste districto existem já de muitos anos os quilombos
do Alto Trombetas, além das suas cachoeiras, assim como
o do Mamiá, braço do lago Curuá Grande, para os quais
todos os annos se tem evadido não pequeno número de
escravos calculando-se o número delle, desde o anno de
1840, contar parte para mais de 150 de ambos os sexos,
fora o que antigamente existião nos mesmos quilombos,
cujo mesmo não nos he dado acertar hum calculo por
6.
7.
Inexpugnáveis, persistências, chaga de longa data, são
expressões que simbolizam a duração e a legitimidade dessas
comunidades quilombolas. Uma legitimidade expressa na
sua inserção na sociedade local, pelo fato de serem visitadas
por religiosos, cientistas, viajantes, negociantes e pessoas
comuns, e, sobretudo, pelo fato de as expedições punitivas
deixarem de ocorrer no Trombetas ainda na década de 1860.
No Cuminá/Erepecuru nunca chegaram a ser efetuadas e no
Curuá, foram mais efetivas até o final da década de 1870,
quando, em 1876, foram presos e levados para o presídio
São José em Belém 150 quilombolas do mocambo do Inferno.
Práticas repressivas que não foram suficientes para destruir
os quilombos ali constituídos.
Nos mocambos do Trombetas, as ações repressivas foram
sustadas após a década de 1860. Observando-se as expedições
enviadas a esse rio, percebe-se a periodicidade com que foram
realizadas e o inexpressivo sucesso obtido, no tocante à prisão
de quilombolas. Apesar de considerados antigos, só em 1827
teve lugar “algua destruição no rio Trombetas por uma expedição
dessa villa, que capturando muitos escravos, [entre eles o rei
Canada: antiga medida – 1 canada igual a 2622 l.
Fala do Presidente da Província, Rego Barros, à Assembleia Provincial 26-10-1855.
31
Atanásio] sempre escaparão alguns que para ali continuarão a
persistir nas mattas” (Governo do Pará, 1854).
Nos fins de 1852, portanto 25 anos depois, seguiu para o
Trombetas uma expedição enviada pelo delegado de polícia de
Santarém, auxiliada pela vila de Óbidos, tendo por guia,
hum escravo de D. Maria Macambira, que se havia
apresentado, cuja diligência teve de retroceder já das
praias daquele rio, por infelizmente haver adoecido das
sezoens quaze todos os praças de que se compunha a
diligência e alguns remeiros, depois do que nenhuma
outra diligência se tem posto em prática pela absoluta
falta de meios que estejão a disposição das authoridades
policiaes para ocorrerem às despezas que urgem
diligências desta natureza. Posso certificar a V. Sa que
nestes últimos anos de 1851 a esta parte tem sido neste
districto mais freqüentes as fugas de escravos podendo
atribuir-se a tal ou qual certeza que elles tem de não
serem perseguidos nos seus quilombos
Governo Do Pará, 1854.
Segundo o delegado de Óbidos à época, o fracasso das expedições
se dava não em razão da falta de energia das autoridades locais,
mas especificamente em razão da falta de meios necessários para
pôr em “prática” convenientes diligências.
Os relatos de João Maximiano de Souza sobre a expedição que
comandou, em 1855, contra os quilombolas do Trombetas dão uma
ideia da dimensão e das dificuldades dos combates a essas “chagas”
tão temidas pelas autoridades governamentais (Souza, 1875).
No mês de outubro de 1855, coube àquele capitão o “árduo
encargo de comandar uma expedição ao rio Trombetas, composta
de 190 praças”, a fim de bater os negros que se “achavão
aquilombados nos famosos mocambos desse rio, d’onde
annualmente sahião para, em suas excursões pelos districtos de
Óbidos e Santarém, praticarem roubos e quantas depredações
lhes parecia”. É bom lembrar que esse texto foi escrito depois
da publicação das obras de Tavares Bastos, em 1866, e ao
32
mesmo tempo que João Barbosa Rodrigues, em 1875, falava
da tranquilidade com que os mocambeiros vinham a Óbidos,
transitavam publicamente, tomavam a bênção de seus antigos
senhores, e compravam o que era necessário.
Após essas rápidas observações, é interessante voltar à expedição
que estava sob o comando de Maximiano de Souza, que “não
surtiu o effeito desejado pelas eventualidades e obstáculos
naturaes que a cada passo burlavão o meu intento, sem contudo
desanimar-me de prosseguir na diligência até o ponto que era
destinada”. Se por um lado não consegui surpreender e aprisionar
os quilombolas, por outro conseguiu destruir suas habitações,
“verdadeira cidadella ou praça de guerra e pol-os em debandada,
conseguindo mais evitar que d’ahi por diante elles continuassem
em liberdade a fazer novas e funestas execuções”.
Maximiano procurava valorizar, de forma equivocada, o resultado de
sua expedição. Os quilombolas não foram presos, eles se retiraram
e se estabeleceram na cachoeira Campiche, acima do local em
que estavam, onde, provavelmente, Mazzarino os encontrara em
1867, chegando a se estabelecerem no Turuna, conforme fala de
Sr. Donga, de onde saíra o mocambeiro Antônio Basílio, preso em
1876, no distrito de Alenquer no rio Curuá. Em liberdade, aqueles
quilombolas continuaram a fazer suas excursões e incursões pelas
vilas, circulando por lagos e rios da região.
Além de obstáculos naturais, Maximiano, entre outras
dificuldades, teve que:
luctar com a moléstia que se desenvolveo na tropa
expedicionária e a insobordinação de parte della
como se tudo se comprasia em nulificar a minha
marcha. Resta-me a consciência de ter cumprido o
meu dever, embora sinto até hoje os terriveis effeitos
da moléstia que adquiri nos insalubres lugares que
percorri [...] Para transpor as cachoeiras exige-se
canoa adaptada para este mister, tripolada com piloto
especial e equipagem adestrada neste modo de viajar
todo escepecional.
Até chegar ao mocambo Maravilha, a expedição atravessou
aproximadamente 15 cachoeiras, entre elas a do Caldeirão do
Inferno, acima da qual o rio perde a sua “forma ordinária e confundese n’uma infinidade de ilhas superpostas uma as outras tantos canaes
difficilmente navegaveis, até rumo N.O.” (Souza, 1875).
Cachoeiras “medonhas” que constituíram obstáculos naturais
a ser transpostos por aqueles que pretendiam chegar aos
mocambos. Elas retardavam as expedições, dando oportunidade
aos mocambeiros, que, avisados das diligências, se deslocavam
para outros lugares. Uma aliada natural, hoje cantada em
versos pelos remanescentes: “Mãe Cachoeira se não fosse você
eu não estaria aqui”8.
Quando Maximiano se encontrava na cachoeira Quebra-Pote, ou
Engolideira, para seu desconforto, o capitão do mato, que era o
guia da expedição, veio dizer-lhe que não podia mais conduzir a
tropa “d’ahi por diante pelo motivo de não saber dos caminhos.
Este inesperado incidente longe de me causar desânimo acorçoou
mais meu desejo de bem despenhar a minha ardua Missão”.
O capitão deve ter se perguntado: E agora? Sem guia, e sem
um rumo certo a seguir, a única saída encontrada foi confiar no
“instinto dos gentios” que o acompanhavam, depositando “neles
inteira confiança”. Mais uma vez faz sentido a fala de Manuel da
Costa Vidal, em 1813, sobre a importância de se ter os índios
como aliados por serem excelentes guias.
Mas nem todos os momentos foram de desencantos e desenganos
para esse comandante. À frente da expedição seguiam alguns
negros em fuga, após terem visto a tropa. Eram mocambeiros do
Maravilha que baixavam o rio para negociar e, ao terem deparado
com a diligência, procuravam voltar ao mocambo e avisar os
demais companheiros, conforme narração seguinte:
[Na] marcha preciptada em que ião quiz a fatalidade
que elles perdessem, ao transpor uma cachoeira, a
pequena canoa em que navegavão, e sem outro recurso
8.
mais do que prosseguirem na viagem por terra, foi
fácil agarrar-se um dos fugitivos, preto escravo
de nome Benedicto, que d’ahi por diante foi nosso
guia; que com certeza deve ter esticado o caminho
para dar tempo aos seus companheiros não serem
apanhados, já que forão elles os que levarão a notícia
ao quilombo da ida da tropa, e, por conseguinte, os
que malograram a expedição.
Ao ser interrogado, Benedito informou que descia o rio com
seus companheiros para se “refaserem do que lhes era preciso
no mocambo [...] que comportava pessoal de ambos os sexos,
superior a 70 negros; que estavão em contacto com os gentios,
menos alguns que são antropophagos”.
Quando tudo parecia resolvido, já que conseguira um guia, peçachave para o sucesso de uma diligência, Maximiano deparou com
um novo problema: a deserção de parte de sua tropa. Pelo seu
desabafo, dá para perceber a angústia por que passara. Diz ele:
“Empenhado nesta viagem fui superando difficuldades, que a
cada passo surgião para embargar-me o passo; via-me já a braços
com a fome e com a peste, restava-me a traição enfrentar-se para
me desanimar”. Fato que não o deixou a esperar.
Numa das paradas para pernoite, foi notificado por um soldado,
encarregado da ronda, que “muito praças formavão o projecto
de abandonar-me e retrocederem para se recolherem a seus
domicilíos, distinguindo-se entre os sediosos os praças do
batalhão de Obidos”. Ciente de tal ocorrência, mandou formar
a tropa e intimou “aos cobardes que desejão voltar que dessem
um passo a frente”. Se o capitão esperava que fossem poucos
os “sediosos”, teve uma surpresa: 47 praças deram um passo
à frente, sendo 32 de Óbidos, 6 de Santarém, 9 de Vila Franca
e ainda 1 de seus homens de confiança e de comando, o alferes
Alvarenga, que deu “parte de doente”. A expedição sofreu uma
baixa razoável de 48 praças. Tal episódio ocorrera antes da foz
do rio Cachorro.
Verso de “Mãe Cachoeira”, de Mimi Viana, morador da comunidade negra da Boa Vista, Trombetas.
33
carlos penteado
Adoentados, Maximiano, o tenente Gentil, e o que restou de sua
tropa, chegaram ao Mocambo Maravilha, que ficava numa ilha
com este nome, dado pelos negros. Todavia, ali não existia mais
mocambeiros. Avisados por seus companheiros, haviam fugidos,
mas, antes, tiveram a “preocupação de incendiarem as casas e
destruirão o que não puderam conduzir. Fugiram em 18 canoas,
que tantas eram as que ali existirão em termos de navegar, como
informou o prisioneiro Benedito”.
Embora os Mundurucu tenham perseguido aqueles quilombolas,
não conseguiram alcançá-los, encontrando, no entanto, com gentios,
“uns de cor alva e barbados e outros de cor abronzado e cabellos
crespos”. Segundo o mocambeiro Benedito, esses índios estavam
sempre em contato com os negros quilombolas e negociavam com
os “comerciantes ou mascates de Demerara”, e com certeza devem
tê-los auxiliado na fuga. Os negros se estabelecerem acima do
Maravilha, na cachoeira Campiche. Sem êxito e com o restante da
tropa atacado “de febres de mao caracter”, acabaram por perder o
guia Benedito, que, se aproveitando “de uma noite de temporal, da
confusão em que estavão os guardas evadio-se”. Assim, doentes,
enfrentando temporal, por ser tempo de inverno, regressaram e, na
descida, ao passar uma das cachoeiras ficaram sem “três canoas,
que se quebrarão, perdendo-se correames, armamentos e munição
que ellas trazião”.
São significativos os últimos parágrafos do relatório de
João Maximiano de Souza que nos dá uma dimensão do
significado da derrota sofrida, das perspectivas de luta contra
os mocambeiros e das saídas possíveis de enfrentamento de
forma mais eficaz. Diz ele:
É minha opinião, que os negros quilombolas hão
de sempre zombar da força pública que alli for para
batel-os, pelos muitos recursos naturaes que lhes presta
o terreno, quasi inacessivel e pestilento, concorrendo
também efficazmente a alliança em que estão com os
gentios, sendo-lhes, por isso facillimo transportaremse guiados por aquelles centros. Operada a catechese
dos gentios ficarão então os negros isolados e
desprotegidos desse auxilio vantajoso. Assim terminou
aquela diligência vindo a morrer de molestia alli
adquirida um terço da tropa que seguio a bater o
quilombo do Trombetas.
Depois dessa expedição, não se tem conhecimento de outras ao
rio Trombetas, onde, em 1867, frei Carmello Mazzarino esteve,
mas não com o objetivo explícito de combater os mocambeiros.
Procurava desenvolver uma ação catequética junto aos índios
e os negros daquele rio. Esse religioso fala em 30 mortos na
última expedição realizada ao Trombetas, provavelmente a
de Maximiano. “Os mocambeiros poderiam ter massacrado
toda a força, se tivessem querido.” É o que afirmaram alguns
quilombolas que ali viveram, em depoimento a O. Derby, em
1876 (Derby, 1897-98). No entanto, preferiram a tática da
fuga, levando tudo o que podiam, em alguns casos destruindo
o que restava. Tática esta que parece ter dado resultado, já que
outras diligências não se atreveram a superar as cachoeiras do
Trombetas para alcançar os mocambos que estavam além delas.
E acrescenta Derby:
[muitos] pretos têm-se mudado para um pouco mais
rio abaixo, e alguns mesmos descartando-se a proteção
das cachoeiras e estabelecendo nas margens dos lagos
abaixo destas, com o fim de obter maior facilidade para
o commércio clandestino, que mantém com Obidos,
e talvez também para dar aviso em caso de perigo.
Aquelles que vem até a parte inferior do rio tem quasi
segura a sua liberdade e alguns entretem relações
mesmo com seus antigos senhores (Idem: 369-370).
A expedição fracassou. Foi a primeira e a última que atacou os
mocambeiros do Trombetas, como pode ser visto na fala de seu
comandante. No entanto, a partir dela, pode se desenhar o mapa
dos mocambos no rio Trombetas, somado a outras narrativas.
Os quilombos podiam ser destruídos, os quilombolas não. Assim
como as árvores que têm seus troncos decepados, mas mantendo
35
as raízes, brotam novamente; ou como as sementes, que levadas
pelos pássaros e rios nascem em outras paragens, com a mesma
qualidade, os mocambos nasciam e renasciam com o mesmo
ideal de liberdade em outros cantos das matas, lagos e rios.
No verão de 1876, alarmados pela destruição do quilombo
do Inferno, no rio Curuá, os do Trombetas retiraram-se
temporariamente para uma posição mais segura, “numa restinga
que fica entre o rio Trombetas e o rio Faro que deságua na
primeira cachoeira chamada Porteira, restinga esta situada de tal
modo que d’ela ninguém se pode aproximar sem atravessar uma
cachoeira muito perigosa, que dá muito tempo para eles fugirem.
Na realidade sem o auxílio de um quilombola para guiar, poucos
ousariam tentar atravessar a cachoeira” (Idem, ibidem).
No seu cotidiano, os mocambeiros construíram resistência,
inserindo-se no meio ambiente, tirando dali não apenas o seu
sustento, mas também algumas estratégias de lutas. Acionando
sua rede de relacionamentos, integraram-se ao mercado local,
ocupando um espaço significativo na produção extrativista,
sobretudo na de castanha e óleos vegetais, o que lhes garantia
uma relativa autonomia.
Autonomia que contribuiu, em especial nas últimas décadas da
escravidão, para uma afluência maior de escravos aos quilombos,
acentuando a crise de um sistema combalido e uma agricultura
que nunca chegou a ser autossuficiente. Uma situação que já
vinha de algum tempo. Conforme registros da época:
Fazendeiros teem-me comunicado o estado anormal, em
que a existência conhecida de taes quilombos os tem
collocado, impossibilitando a disciplina pelo fundado
receio da fuga e acoutamento certo nesses lugares,
onde os fugitivos encontrão segurança contra qualquer
tentativa de apprehensão. No estado de penúria de
braços em que se acha a agricultura, esta causa
aggrava profundamente o mal não só pela privação dos
9.
36
que se evadem, como pela falta de disciplina dos que
conservão, sempre indolentes e ameaçadores.9
Eram os mocambos afetando o sistema escravista. Não só pelo fato de
serem lugares de refúgio, mas porque davam ao escravo mecanismos
de pressão e influência na sua relação com o senhor. A ameaça de
fuga significava para o cativo uma estratégia para ampliar o seu
espaço de negociações e garantia de conquistas. Mesmo não estando
no mocambo, o cativo sabia se valer deste, na sua luta cotidiana para
conseguir e manter alguns direitos conquistados.
“Não se pode precisar”, “não se sabe o lugar certo”, “foram
batidos mas mudarão para outros lugares”, são frases comuns
aos relatórios e ofícios trocados entre as diversas autoridades
do Baixo Amazonas e o Governo Provincial, o que aponta para a
incapacidade das autoridades governamentais de pôr fim a essas
sociedades quilombolas.
Convictos de não serem mais perseguidos, iniciaram a descida
para as “águas mansas” dos rios. Era o início do retorno.
AS MARCAS DOS CAMINHOS
Nos caminhos para as águas bravas as marcas dos mocambeiros
foram ficando ao longo das margens do rio Trombetas, nos nomes
dados às cachoeiras, ilhas, lagos e igarapés. Localidades onde
se constituíram pequenos mocambos que serviam de apoio e
alerta para as comunidades quilombolas maiores estabelecidas
próximo à cachoeira Porteira e acima desta. “Infelizmente,
Coudreau em seu livro trocou os nomes de algumas cachoeiras
dados pelos mocambeiros e únicos conhecidos no município”
(Ducke, 1909: 59).
Com base na documentação consultada, nos relatos de viajantes
e em depoimentos dos remanescentes, foi possível pontilhar o
trajeto dos quilombolas durante a fuga, que chegaram ao máximo
no Trombetas, na cachoeira Campiche e igarapé Poana.
João da Silva Cerrão. Discurso de abertura da Sessão Extraordinária da Assembleia Legislativa Provincial: 7-04-1858.
É verdade que os principais mocambos estavam no alto dos
rios, em trechos navegáveis, acima das cachoeiras. No entanto,
abaixo destas, nos igarapés e nos lagos como Mocambo,
Conceição, Macaxeira, Abuí, Jacaré, Tapagem, Erepecú
(Arepecu) e Moura, havia quilombos menores, antigos locais
de reunião de mocambeiros, que poderiam servir de apoio,
tanto para fuga e comércio com os regatões, quanto para a
resistência, sobrevivência e reprodução daqueles sociedades
situadas nas águas bravas, haja visto que muitos destes lagos
são interligados e os “caminhos”, só podem ser percorridos por
aqueles que são “mestres” como é o caso dos “mocambistas”.
Segundo Derby, “o lago de Arapicú diz-se que comunica no
inverno (tempo da cheia) pelo lado de cima com um braço do
lago Jacaré, parecendo que os dois juntos formam um antigo
canal do rio separado atualmente por uma zona importante de
terras elevadas, nas quais existem diversos lagos. Refere-se
também que ele recebe um igarapé de tamanho considerável”
(Derby, 1897-1898: 373). Por onde provavelmente se comunica
com o rio Erepecuru.
Significativo é o nome da primeira cachoeira do Trombetas,
batizada pelos missionários franciscanos como São Miguel
Arcanjo (Rodrigues, 1875: 22). Anjo guerreiro anunciador que
simbolizava a luta daqueles religiosos contra o paganismo, a
selvageria e a barbárie dos nativos. Ao atravessá-la, os negros
rebatizaram-na com o nome de Porteira. Um marco de resistência,
um divisor de dois tempos e lugares: o tempo das águas bravas,
dos mocambos, e o tempo das águas mansas, o das comunidades
remanescentes. Tempos que se juntam nas histórias de luta e
liberdade. Um lugar de memória daqueles que buscaram ser
livres. Ali, na margem direita está o lago do Mocambo, primeiro
refúgio dos pretos do Trombetas. Cachoeira por onde desciam
os mocambeiros do Trombetas, “senhores do rio”. Marca do
início de um espaço em que apenas seus donos podiam entrar:
mocambeiros e nativos da região.
10.
Segundo Barbosa Rodrigues, quando ele saiu na mata acima
daquela cachoeira, “por ella descia uma canoa tripolada por
mocambistas, que ouvindo alguns tiros, que davam meus
companheiros na cachoeira, vinham saber o que significava,
como senhores do rio vinham ver quem ousava transpor os seus
domínios” (Rodrigues, 1875: 23-24).
Atravessando a Porteira e, com Paciência e muita briga, o
Inferno, chegava-se ao lugar onde ser livre era possível –
Maravilha. Este era o nome do local em que os mocambeiros se
estabeleceram no Trombetas, uma ilha acima da cachoeira Mina.
Um lugar cuja posição “não podia ser mais bem escolhida e o
ponto mais estratégico”, diz João Maximiano de Souza (1875).
Maravilha que Coudreau não conseguiu ver: “o mocambo era
situado na margem esquerda perto de um igarapé [...] no pé de
uma cachoeira de mais ou menos dois metros de nivelamento,
atrás de uma pequena ilha, num baixio, na base de uma
região montanhosa. Se isso se considera do ponto de vista da
insalubridade o local é bem escolhido” (Coudreau, 1900: 67).
Conforme o Sr. Donga,
Lá eles viviam felizes, não tinha quase maldade
nenhuma, senão era festa que eles faziam, aquelas festas
de bandeiras, de caixa, de santos [...]. Faziam aquelas
festas por lá. Era uma cidade que não era lumiada com
luz elétrica [...] era fogo de candeia, fogo de fogueira,
pelos dias dos santos faziam aquelas fogueiras grandes,
alumiavam o terreiro. Faziam aquelas luminárias
de paus aí eles colocavam as candeias de barro, com
4 bicos, naquele mourão, com banha de pirarucu, óleo de
castanha, com esses óleos assim. Aquilo lumiava a noite
inteira as festas deles e aquilo era uma maravilha lá.10
Aspectos como esses – propiciadores a “vida tranquila” – fazem
com que, no imaginário dos descendentes, o mocambo pareça
uma “terra sem males”. A “cidade Maravilha”.
Entrevista de julho de 1993.
37
No início de 1867, foi preso Basílio Antônio, mocambeiro do
Turuna, que se encontrava no Curuá “districto de Allenquer, para
onde havia descido com seu companheiro Feliciano, que já tinha
retornado para o mocambo”. No ato do interrogatório Basílio
deu referências de seus companheiros do quilombo Maravilha,
que depois do ataque das tropas do governo refugiaram-se no
Turuna (Cartório do 2º Ofício de Santarém, 1867). Um momento
que está nas falas dos narradores, entre eles Rafael Printes e
Donga. Segundo eles, os mocambeiros chegaram até o Campiche
e o Turuna, dali, teriam se deslocado posteriormente para Poana,
“onde os homens não chegaram mais”.11
No Campiche nasceram pais, avós e viveram os bisavós de muitos
dos depoentes. Como diz D. Rosa — moradora do Sagrado,
nascida no lugar Coroá –, em frente à boca do rio Cachorro, e
a bisavó chamava-se “Maria Dominga ela foi ter minha avó no
tal Turuna. A minha bisavó veio corrida da escravidão, e teve a
minha avó para lá. Depois eles vieram baixando”. No Campiche
nasceu a “avó do meu pai”, diz Dona Luzia Clemente dos Santos,
moradora do Juquiri Grande.
Daí começou a volta, para a área localizada abaixo da cachoeira
Porteira. Uma baixada mesmo antes do fim da escravidão.
“Quando eles vieram, descendo, então eles vieram começando
explorar a margem baixa do rio, como bem, explorando a castanha,
explorando o cacau, todo o negro vieram fazendo isso aí, explorando
castanha”, afirma o Sr. Rafael, do Abuí, com 80 anos de idade.
Barbosa Rodrigues, por ocasião de sua estadia em Óbidos, em
1875, também registrou esse movimento dos mocambeiros.
[...] depois da subida do missionário e vendo que
impunes aportavam às povoações começaram a vir, até
de dia, em face das autoridades às povoações, onde
não só compram e vendem, como trazem seus filhos
ao baptismo na freguesia ousadamente declarando
que são mocambistas. Diversas canoas delles vi de dia
11.
38
Entrevista com Donga em julho de 1993.
estacionadas no porto de Óbidos; vi alguns levarem os
filhos ao baptismo, assim como em minha casa alguns
estiveram de dia. Já não admira vel-os desembarcar
de dia, o que mais admira é ver elles encontrarem-se
com os senhores, pedir-lhes a bênção e retirarem-se
tranqüillos, sientes os senhores do dia e hora da partida
Rodrigues, 1875: 27.
Por sua vez, Maximiano de Souza afirma: “os quilombolas em
certa quadra do anno veem estacionar no lago, formado pelo
Cuminá, para pescar pirayba e fazerem grande salga, para a
alimentação no tempo em que escasseia o pescado miúdo e caça”
(Souza, 1875). Tempo de salga é tempo de festa. Era também
a foz do “Erepecu”, o ponto de reunião dos regatões “que ahi
vão annualmente nos meses de fevereiro e abril comprarem o
produto do trabalho dos mocambistas” (Rodrigues, 1875: 16).
Um retrato dessa ocupação é feito por O. Derby, segundo o qual,
Actualmente a população do Trombetas está muito
espalhada. Até ao logo Arapicú há alguns sítios dispersos
de brancos e tapuios, sendo aquelles principalmente
negociantes que commerciam em castanhas. Entre este
ponto e as cachoeiras vivem alguns negros em diversos
pontos ao longo do rio até o aldeamento principal que
está situado a uma distância de alguns dias de viagem
acima da primeira cachoeira. Nos mezes de outubro e
novembro muita gente da parte baixa do rio e mesmo
do Amazonas, dirige-se as praias de arêa, que ficam
immediatamente abaixo das cachoeiras com o fim de
apanhar tartarugas e ovos de tartarugas, ao passo que
pouco tempo depois, esta mesma região fica cheia de
colledores de castanhas. O castanheiro brasileiro é
excessivamente abundante no rio e nos lagos desde as
cahoeiras rio abaixo até o lago Arapicú, e exporta-se
todos os annos grande quantidade de castanhas
Derby, 1897-1898.
Sem dúvida, essa ocupação gerou um desconforto para as
autoridades locais, em particular de Óbidos, em razão da
presença e significado dos mocambos, embora depois de 1855
nunca mais tenham sido atacados, e o comércio “clandestino”
praticado pelos regatões. Tais práticas, provavelmente, exigiram
providências no sentido de se intensificar a fiscalização nessa
área. Em 1871, por exemplo, a Câmara de Óbidos “Oficiou os
fiscais nomeados André Avelino do Amaral para o rio Trombetas
e Lago do Arapecú; Ângelo José Valle para o rio Trombetas
e lago Carimã; Thomas Benedito Nunes para o rio Trombetas
e lago Urapicu e Martinho de Azevedo para o Paranamiry de
Baixo” (Associação Cultural Obidense, 1871: 124). Em 1873,
diante da persistência da situação, a Câmara envia um ofício ao
Governo da Província, propondo a criação de novos distritos:
A grande estenção que tem o districto desta cidade no
rio Trombetas e lago Sapuacá faz-se necessário ali a
divisão da districto com subdelegacia especialmente
no Trombetas onde o districto se estende a mais de
30 léguas ficando por essa forma fora do alcance das
authoridades; criminozos que por lá se vão horrorizar,
nem só desse districto, como de outros, convindo serem
as divisões do districto. Convindo sobre todo fundar
uma fregesia no lugar denominado Urua = Tapera
com invocação de Santa Philomena, na divisão do
districto acima mencionado. Ato que foi concretizado
Prefeitura Municipal de Óbidos, 1873: 96-97.
Em 28 de setembro de 1890, chegou a Uruá-Tapera Gonçalves
Tocantins, que afirmou ser essa vila uma:
Florescente povoação à margem esquerda do Trombetas,
que poucos annos antes havia sido fundada pelo Padre
Nicolino (dez. 1877) (...) alma verdadeiramente
christã, se havia feito espontaneamente um missionário,
um apostolo daquella pobre gente. Imagine-se
com quanto alvoroço aquelles infelizes recebiam o
ministro Redemptor, que ia procural-os nos desertos,
baptisar-lhes os filhos, celebrar missa, casamento, e
levar-lhes palavras de conforto e consolação
Tocantins, s.d.: 402.
Dois ideais empolgaram a vida do Pe. Nicolino: “A pacificação
e cristianização dos pretos mocambeiros dos rios Trombetas e
Erepecuru e a catequese entre os índios”. Para alcançar esses
fins, empreendeu várias viagens por estes rios. Assim o vemos em
1876 em Porteira, no Alto Trombetas, catequizando e batizando
grande número de negros daquela região. Faleceu em 1882, no
rio Erepecuru, quando fazia sua terceira viagem a essa região.
“Pode-se dizer que dos seus dois ideais, somente conseguiu
realizar um – a catequese entre os mocambeiros daqueles rios.”
Parece que o referido padre seguiu, e concretizou as orientações
do franciscano Mazzarino (Cúria Prelatícia, 1953).
Se num primeiro momento o espaço de liberdade estava
acima das primeiras cachoeiras, posteriormente, a concretude
dessa liberdade se dá abaixo. Antes do fim da escravidão,
mesmo durante a guerra contra os quilombos, comunidades
mocambeiras já faziam parte do cenário do rio manso. Tapagem,
Abuí, Jacaré, Mãe Cué, Juquiri, Erepecu e Moura já estavam
ali desde meados do século XIX, e ali se encontram até os dias
atuais, vivenciando, todavia, fortes momentos de tensão com a
chegada do grande capital na forma de exploração mineradora
e políticas preservacionistas imputadas pelo governo militar a
partir da década de 1970.
Esses mocambos, ao longo de sua existência, foram visitados por
religiosos, viajantes e pesquisadores, o que demonstra, muito
claramente, que mesmo considerados uma “praga” a ser combatida,
gozavam de uma legitimidade, inseridos no contexto local e tão
“industriosos como o resto da gente do Amazonas”(Derby, 18971898: 370), com cultura própria e uma organização socioeconômica
como qualquer sociedade “civilizada”.
39
Tomamos, aqui, a lição de Alfredo Bosi segundo o qual:
O que há de inexaurível no espírito de um grande
historiador vem de sua capacidade de pôr-se à escuta
das águas que jorram do passado e que a memória faz
irromper no presente. Essas águas podem crescer ou
minguarem, depende dos climas instáveis da cultura,
mas no coração de quem se dispõem a ouvi-las, não
secam jamais
Bosi, 2003: 255.
Assim, seguindo o caminho, e o barulho das águas, torna-se salutar
ouvir um pouco mais as histórias das, e sobre as, comunidades
negras, secularmente constituídas no Alto Trombetas.
AS COMUNIDADES
Nas várias narrativas encontram-se a descrição e a constituição
dessas comunidades, como forma de resistência ao processo de
exclusão, dando um sentido de continuidade à luta pela liberdade
empreendida pelos ancestrais.
Se os olhares dos visitantes – documentados nos registros
de suas viagens –, chegaram através da oralidade aos nossos
narradores, como a viagem dos Coudreau, a passagem da
Comissão Demarcadora de Fronteiras (1934) foi vivenciada
pelos depoentes mais idosos, que juntamente com seus filhos e
netos, participaram dos momentos de enfrentamentos; quando da
chegada da mineração e da política ambientalista, representada
pela floresta nacional e pela reserva biológica, implementadas
pelo então IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal). Conheceram ações repressivas e expulsão de suas
terras. Uma expulsão que incomodou os moradores daquelas
comunidades, onde muitas famílias teimaram em ficar.
Carlos Printes, 37 anos, morador do Abuí diz:
12.
40
Quando os meus antepassados, os meus avós, eles
contavam que o quilombo antes era até chamado de
mocambo. Então era um lugar onde o povo vivia junto
reunido. E lá eles viviam em comum, onde só viviam
mesmo só os remanescentes, aquele povo sofrido. Viviam
morando lá. Então, diz que significava Quilombo.
Aí teve a história de que teve vários quilombo aí pro Alto
Trombetas, aí pelas cachoeiras. Aí depois que eles já
estavam libertos, foram descendo o rio e foram morando
nesses lugares, onde nós estamos morando agora. É no
Abuí, é na Tapagem, no Paraná, essas comunidades
que hoje em dia temos. Então foi assim, segundo eles
falou pra gente, que começou essa história.12
Vejamos um pouco mais das histórias dessas comunidades.
MOURA
Antes da viagem de Barbosa Rodrigues ao Trombetas, duas
outras expedições haviam adentrado esse rio. Uma delas chegou
até o lago Mura. Segundo este, “a duas milhas da foz do Paraucú,
seguindo sempre pela mesma margem, chegamos ao lago
Caypurú, que não é mais do que uma profunda enseada, que ahi
faz o rio para o leste, habitada por três famílias de mocambistas.
Na margem opposta, a 16 milhas do lago Batata, fica o ponto deste
rio, até onde chegou, há annos o vapor Monarcha commandado
pelo capitão tenente Parahybuna dos Reis, único que o explorou
até ahi” (Rodrigues, 1875: 11).
É denominado “lago Mura, ou dos Muras, por ter ali, em tempos
idos, havido uma maloca dos mesmos gentios. D’ahi para cima,
só o aventureiro regatão se animava a subir, não levando,
contudo, longe o seu itinerário depois que o frei Mazarino foi
levar a religião ao mucambo” (Idem: 16).
As entrevistas com Carlos Printes e os demais narradores cujas falas são recorrentes na seção Comunidades foram realizadas em junho de 2000, por ocasião de
um trabalho de campo junto às comunidades quilombolas do alto Trombetas para a Comissão Pró-Índio de São Paulo.
carlos penteado
No Moura, conversamos com o Sr. Alberto Rogério Constantino,
de agrado Lúcio Macaxeira, 81 anos, nascido ali mesmo, filho de
Nicolina Pereira de Jesus e Maciel Constantino Pereira de Jesus.
Neto de Margarida Pereira de Jesus e João Paulo Pereira de Jesus.
Foi casado com Maria Nicolina de Souza, já falecida, natural do
Erepecu. Aí se percebe outro elemento significativo que envolve
essas comunidades: o laço de parentesco, constituindo um ramo
só, fortalecido pelo deslocamento populacional por entre as
diversas comunidades negras do rio Trombetas, pelo compadrio
e por outras formas de solidariedades e sociabilidades.
De acordo com Lúcio:
Eles eram daí de fora. Vinheram prá cá corridos no
tempo da cabanagem. Tudo isso por aqui era índio que
vivia e a prova é que em toda essa terra preta por aí
você encontrava figura de índio, daí eles pegaram de
veras e vieram entrando, aí os índios também foram se
afastando, foram carregando aí pra cima e eles vieram
entrando e ficando. [Além de Margarida] tinha a velha
Emília, velha Brígida, velha Liôncia, velha Tomázia,
isso tudo era dos tempos antigos, a velha Cirila também
era desse tempo da Cabanagem.
E ali tinha festas?
Tinha sim senhô. Está aqui eu tenho a santa, olhe essa
santa era da minha vó veio para a Senhora de Nazaré.
Que os índios afastaram daqui, eles jogavam veneno
na água que a febre dava numa hora dessa, quando
era de manhã entrava de pé pra frente caia todos os
cabelos, ela fez uma promessa, essa minha avó, com
essa santa que está aqui até hoje.(...) Eu era ainda
pixotinho mais ainda mim lembro bem, ela começou a
manter, mandou buscar essa santa, também graças a
Deus paralisou a família e todo o povo em gerá aí ela
mandou fazer essa festa.
Nas festas vamos encontrando outros elos entre o presente
e o passado. São lugares de memórias; continuadas pelos
42
descendentes que assumem o cargo de protetor do Santo, uma
prática iniciada por seus avós ou bisavós. O Sr. Lúcio não se
limita a falar das festas no Moura; remete a outros festejos
como no Abuí, cujo o padroeiro é São Benedito, “o mais velho
era aí na Tapagem, são Sebastião. E santo Antônio festejado por
Sr. Antônio Macaxeira no Jamari”.
Conversando com Mário Santos de Jesus – 48 anos, natural do
Moura, assim como seus pais, Josino Pereira de Jesus e Inês
Valéria dos Santos –, outras famílias antigas são referenciadas,
como as de: Lúcio Macaxeira, Didio Macaxeira, Persivaldo
Santana. “Somos parentes do Antônio Macaxeira lá do Jamari.”
E ainda, velha Nilda, Esperança, Roxinha, Lídia Siqueira, Duruca
Régis, Armerindo Pereira de Jesus. Nas palavras de Mário:
O mais velho que eu conheci aqui foi o velho Conceição,
que morreu com 80 anos, há uns dois anos. Festa?
A de Senhora de Nazaré. Os protetores da santa eram:
o finado meu pai, Jozino, era Lúcio Macaxeira, era
Didio Macaxeira, era os donos da festa. A santa era
da minha avó Maria Caetana Pereira de Jesus, que
nasceu aqui no Moura.
Na narrativa desse depoente encontramos os fios de uma luta
constante que marcou as comunidades remanescentes do Alto
Trombetas: a ameaça de tomar suas terras. Prática dos “coroné”,
em especial, “Raimundo Costa Lima, um português”. Sua fala
remete a enfrentamentos ocorridos com esse senhor, e outros
semelhantes, não só em relação ao Moura, mas, também, a outras
comunidades como o Abuí.
No Moura, vive Maria do Carmo Colé Viana, 40 anos, filha de Rafael
Printes e Rosa Colé, que encontramos no Abuí. Ela chegou ali por
ter se casado com José Lopes dos Santos, natural dessa comunidade.
Vivem da pesca e da roça e, também, do trabalho na mineração.
Segundo ela os moradores mais antigos dali são: “seu Osvaldo
Santana, a mãe dele (Marcelina Santana) que era uma negra e
exerceu assim muitos anos nessa comunidade, a Dona Nilda e tem a
Dona Esperança, também, que é a senhora mais antiga”.
Observa-se que a Santa já estava com a terceira geração de
protetores (Leite, 2002).
Dona Maria Nicolina, a Dona Esperença, mãe de Dona Roxinha
(74 ano) cujo nome é Herminia Nicolino de Souza, está hoje com
95 anos. Filha de Moacir Nicolino de Sousa e Jenoveva Nicolina
de Souza, nascida “pro Mucura”. Veio há muitos anos para o
Moura onde os mais velhos que conheceu foram: “Marculino,
Caetana, Margarida mãe do Jozino, pai do Mário, era uma
porção de gente.” “Eu não tinha marido, eu tinha uma costela
comigo, ele chamava Vito Ramos e era daqui mesmo do Moura.
Tirei muita castanha no Erepecu.”
EREPECU OU ARIPECU
De acordo com os registros de Barbosa Rodrigues, três milhas
acima do Mura:
Apresenta-se na margem esquerda a pittoresca foz do
lago Aripecú, (Erepecu) com meia milha de largura
ornada a ponta leste com um lindo jauarisal, no meio
da qual um banco de areia, impede a entrada do lago
a grandes vapores, sem prático, que não conheça o
canal. A estratégia ao escolher o local, defesa, proteção,
ser bom prático, conhecer os caminhos. Tem de largura
este lago 2 milhas pouco mais ou menos...É este
muito abundante de castanhas que cresce não só nas
terras firmas como nas ilhas. É o ponto de reunião
dos regatões, que ahi vão annualmente nos mezes de
fevereiro a abril, comprarem o producto do trabalho
dos mocambistas, que nesse tempo descem das
cachoeiras, como trabalharem no apanho das mesmas
castanhas para elles, pagam com ninharias os gêneros
por preços fabulosos
as mais antiga, de que tem informação são as de: Juca e Ventuinha
e as senhoras mães deles, “aquelas que tinha mais de um século,
elas chamavam Brígida, Tomázia e Emília, eram negras... Era um
lugar pouco habitado, mas em tempo de safra entrava para tirar
safra de castanha, e entrava muita gente. Quando terminava a safra
saíam todos. Eram poucos os moradores que ficavam”. Ali, além
da castanha, extraem o breu e o leite de copirana.
As festas era de pau e corda, nós que fazíamos os
nosso instrumentos, e a festa era animada, a luz
era iluminada com uma candeia feita de umas
panelinhas de barro, eles tirava banha de castanha,
de andiroba, propriamente praquilo. Festa de ramada
– era muita festa, Deus me livre. Dança – mazuca,
landú, quadrilha, marcha, samba. [A padroeira é]
santa Maria Aparecida.
Uma das queixas do Sr. Germano, como também da maioria dos
depoentes, refere-se às ações do, então, IBDF que, segundo ele:
“Trouxe uma formalidade mais comprimida pra nós, comprimida
mesmo, que nós andamos correndo, se escondendo, pois o negócio
tava feio. Agora tá mais moderado. Mas logo que chegou, não
chegou fácil, não podia nem mais usar uma rede pra pega a boia,
porque se encontrasse a gente tomava tudo”.
Sua irmã Tereza Fernandes Régis, de 71 anos, que também
nasceu no Erepecu, neta de Maria Santana Fernandes, trabalha
com a castanha. Com o Ibama,
Rodrigues, 1875: 16.
A gente passou meio ruim, que em casa até cansei de
esconder a panela com comida. A gente tava cozinhano
né e aí a gente se escondia, umas diversas veiz, porque
muitas veiz era carne de caça, e não queria que a gente
matasse. Mas a gente tinha que cumê, eu ficava sempre
escondendo lá em casa. Mas graças a Deus, como o
irmão falou, melhorou mais prá nós e agora estamos
mais tranquilo.
Aí vive Germano Régis, 71 anos. Nasceu nesse lago, filho de
Manuel Régis e Cecília Fernandes da Costa. As primeiras famílias,
Mais uma vez, aparece a figura dos “Patrões”: Manuel Costa
Lima; Machado e Sr. Guimarães, antes do IBDF:
43
Se diziam proprietários, teve muita gente presa. Por isso
não podíamos nem tirar uma castanha enquanto não
falasse com cada um, cada um de nós tinha uma
colocação, uns lá no Belo ou na Santa Rosa, depois
foram tomando conta de tudo, aí ficou comum, e pode
entra, tira e mete a mão aonde a gente quiser, não tem
mais dono acabou-se as casas que representava.
Por sua vez, Manoel Fernandes Régis, 56 anos, irmão de Tereza
e Germano, casado com Francisca dos Santos Régis, lá do
Bacabal, afirma:
Muitos vieram esconder pra cá do nosso lado, por
esse lago ou pro rio. São as pessoas que deixou essas
galhos que nós também participamo ... Que nós tâmo
passando, que antes quando tinha os proprietários, que
era os donos dos castanhais, e era sempre a mesma
humilhação. Daí pra nós até vende uma caixa de
castanha se quisesse para outro, tinha que vende bem
com cuidado por que se o patrão soubesse ainda era o
xadrez. Da minha época pra cá, tinha uns morador aí
que quando o IBDF chegou, trouxe a onça pra eles saí.
Tinha o Aguinaldo, o Pinto e mais outros aí, saíram com
medo do IBDF. Quando veio aqui, veio humilhando todo
mundo dizendo que vinha até a federal pra mata, faze
isso, e todo mundo correu. Só quem não correu mesmo
foi esses que estão aqui que é o Germano, eu, minha
mãe, que faleceu, minhas irmãs e alguns moradores e o
Raimundinho, também, que ainda está.
Na fala de Ibenor Ferreira Pimentel, 59 anos, nascido no Erepecu,
no barracão chamado Fartura, filho de Moacir Pimentel e Amélia
Guerreira, vamos encontrar um “ramo”que remete às terras do
Curuá de Alenquer de onde era o seu pai. Seus avós chamavamse: Viturino Pimentel e Clotilde Guerreira.
O meu avô e minha bisavó eles vinheram até fugidos
da escravidão. De lá eles vinheram fugido com aqueles
senhores que os humilhavam e vieram prum barraco
44
bem aqui, que chamava Barrero, bem aqui. Aliás não,
eu sei que eles foram localizados aqui numa parada
chamada Primor e foi lá no Primor que eles baixaram
e aí foram o final deles e aí eles se acabaram. O Primor
fica no Aripecú.
No Erepecu, encontramos João Souza Figueredo, o Pinduca,
59 anos. O seu referencial dos mocambos não é o Trombetas e
sim o rio Erepecurú; onde nasceu num lugar chamado Porteira.
Filho de Leonor Souza Santos e Manuel Figueredo e neto de
Maria do Rosário Conceição e Bazílio. João diz:
[...] vieram, bem dizer de encomenda, no tempo da
escravidão. Eles andavam corrido e então se socaram
dentro do Erepecurú e fazia plantio. Hoje em dia ainda
tem muito plantio, pelo menos cacau, que eles faziam
cacual, alambique, ainda cansei de ver, tudo isso, era
feito pro lá, que eles faziam roça. Tudo isso minha avó
cansou de contá. Era ela, Candeia, Micaela, Sofia,
Figêna, tudo isso era nome dos antigos né, que moravam
lá, mas eu só conheci minha vó. Conheci também o
finado Anjo (Ângelo) com a Mafalda, era a mulher
dele. Agora esses outros já era a minha avó que me
dizia o nome deles. Raimundo Lotério era o irmão que
morreu com 125 anos, ela morreu com 100 anos. Aquele
Raimundo Lotério, eles me contavam muitas coisas do
rio Erepecurú, quando eles andavam tudo corrido, tudo
arribado, assim como hoje em dia nós vive tudo corrido
por aqui do Ibama, aqui nós temo medo que quando a
gente é pego aqui, no meio do rio, é aquela confusão
doida, tomam tudo, e a gente fica voando. O pobre já
não tem nada, e quem tem fica tomâno. Uma coisa,
também, acho esquisito por aqui, que o Ibama entrou
piorou muitas cosias. Judiaram muito dos parceiros,
coitados. Tinha deles que tirava até a comida das
panelas, jogava fora, ficava criança chorano aí com
fome. Era um sentimento prá todos nós. Eu peço a Deus
que ajude a ARQMO pra nós consegui o documento
dessas terra aqui, por que lá onde eu nasci, parece que
já conseguiram. Depois que nós tiver o documento, pode
ser que as coisa melhorem de vez pra nós.
Ao que tudo indica, o Erepecú continua a ser o lugar onde os
parceiros se encontram. “O rio do Aripecú para cima, começa
a ser habitado pelos que ali têm suas palhoças, para passarem
o tempo da colheita da castanha dali para cima torna-se mais
animado pela constante presença de montarias dos mesmos,
cruzando o rio, saindo dos lagos ou neles entrando (Rodrigues,
1875: 121). É bom lembrar que os mocambeiros baixavam para
trabalhar para os “patrões” certos no tempo da castanha.
JUQUIRI GRANDE (YUKIRY-UAÇU)
Depois de deixar o Aripecú, mais conhecido hoje como Erepecú,
Barbosa Rodrigues entrou,
pela foz do lago Yukiry-uaçu que dista 26 milhas do
Aripecú, desembocando na mesma margem. Um canal
de 30 metros pouco mais ou menos, muito tortuoso, leva
o explorador, por entre uma fechada mata, que borda
as margens, ao lago. O Lago sem ser muito extenso,
é contudo salpicado de ilhas das quaes a principal é
a do Diamante ...Três sítios alhi encontrei, habitados
por pretos fugidos, mocambistas e por uma família
de tapuya desgraçada pela elephantiasi dos gregos.
[...]Ainda sendo dia, desembarquei, encontrando só
a família, e abandonadas as casas dos mocambistas,
que com nossa chegada fugiram, observando contudo
nossos movimentos. [...] Estes depois, que nenhum mal
lhe faríamos começaram a apparecer.
Barbosa continua sua narrativa no contato com os moradores do
Juquiri Grande.
Quando desembarquei, preparava uma das mulheres
doentes, o óleo de piquiá. Empregam-o geralmente só
para luz. Pelo mesmo processo vi ahi exthair-se também
o do uixi-pocu. Com alguns mocambistas, que poucos
dias antes haviam descido das cachoeiras, conversei e
deram-me informações dessa região. Percorrendo no dia
as suas roças, encontrei signaes de extinta maloca, nos
numerosos fragmentos de loca que haviam espalhados.
Entre esses fragmentos, encontrei alguns com formas de
animaes, entre elles um representando bem a cabeça de
um jacaré
Rodrigues, 1875: 18-19
Acima do Jukiry-uaçu fica o lago Palhal e na margem opostas o
lago Mãe Cué.
Bem, quanto a nós, no Juquiri Grande, conversamos
primeiramente com D. Ana, 88 anos, filha de Maria Joana dos
Santos e Manoel Régis. Irmã, por parte de pai, de Germano,
Tereza e Manoel Fernandes, lá do Erepecú. Nasceu nas várzeas
perto, abaixo da Macaxeira. Neta de Martinha Maria dos Santos
e Clemente Antônio dos Santos. A mãe era “aqui mesmo do
Trombetas, só pode ser no lugar de frente ao lago Matapi onde
nasceu diversos deles”.
Vieram para o Juquiri, “porque nós saimo de lá. A companhia
jogou nós de lá daquele lago chamado Matapi. Lá era nossos
terreno, mas ela indenizou e nós saimo. Viver só na vargem
todo o ano a coisa vai pro fundo, num interessou nós ficá lá,
né? As famílias que já existiam aqui era: Azamor Gualberto,
Manoel Gualberto, Cantidio Gualberto, Osmarino Gualberto,
era essa família”.
Sobre os mocambos:
eles falavam que quando eles entraram aqui foram vivê
nesse mocambo juntos. Agora o meu avô, pai da minha
mãe, não senhor ele não chegou prá lá, ele ficou nesse
lago aqui do Erepecu, quando ele veio da terra dele, que
era Alenquer. A minha avó era de Santarém, entraram
aqui e foram direitinho pra o Erepecu. Vieram para cá
por causa dos brancos que vendiam eles, aí fizeram eles
corre de lá prá cá. Foi prá tê esse mocambo.
45
carlos penteado
Sobre o fato de se esconder no Erepecu.
É, eles ficaram. Mais o negócio já estava mais liberto.
Por que eles vieram e esse velho, vivia dentro do lago
chamado Matapi, chamado Rafael era conhecido dele,
viu que ele estava fazendo um lugar aí dentro e foi
chamá ele pra vendê uma parte desse lugar no Matapi,
e aí os outros todos já vinham atirando aí de cima do
mocambo, já tavam ficano liberto né, e eles entrou nesse
tempo fazendo também, como o velho, e ali levantaram
e pronto. E criou os filhos todos e já os netos também se
criaram aí nesse lugar.
Essa fala torna-se bastante interessante em razão de confirmar
a existência dessas “paragens menores”, que deram suporte
aos mocambeiros que estavam acima das cachoeiras. Sem a
necessidade de “comprovar” a sua fala, ela complementa as
informações de Barbosa Rodrigues quanto aos quilombolas que
ele encontrou nessa localidade.
Aí vivem, também, descendentes daqueles das cachoeiras como
Raimundo Alves dos Santos, 60 anos, filho de Raimundo Viera
dos Santos e Maria Viera dos Santos, nascido na Porteira. A avó
Maria Vieira, “era de lá da gema do Mocambo”.
A fala de Dona Luzia Clemente dos Santos, 49 anos, é mais uma
que remete ao Mocambo do “Yukiri-Uaçu”. Filha de Lucimara
Clemente dos Santos e Antônio Andrade, nasceu no Jamari.
Seus avós eram: Maria Joana dos Santos, “mãe da minha mãe”,
e Eleonor Vicentino de Andrade e Matias Alves, por parte de
pai. Veio para o Juquiri, em 1977, porque “a companhia do
Jari achou que a gente não devia ficar do lado de lá, ai ela deu
uma mixaria e a gente desocupemos as terras de lá e viemos pra
várzea. Só que na várzea nós não podia ter uma moradia fixa,
porque de verão ela tá em terra, de inverno ela vai pro fundo.
A gente precisa de planta e achamos importante de vim fazer
umas plantação foi aqui no Juquiri”.
Dos antigos, os do mocambo, diz ela:
A vó do meu pai nasceu nesse Campiche. Ela falava
que quando eles vieram eles subiram aqui nesse rio e
foram pras cachoeiras, se esconde dos brancos e de lá, a
cidade que eles faziam as compras era Óbidos. Mas só
viajavam a noite, porque só andavam escondidos por
causa dos brancos. Mas eles iam de remo de cachoeira
pra Óbidos e de Óbidos pras cachoeiras. Ainda me
lembro que ela falava que lá eles faziam festa, uma
festa de Nossa Senhora da Conceição. Ela cresceu
nesse mocambo Campiche. Aí num ano que o pai dela
trabalhou prá arrumá o dinheiro pra vi buscá a vó
dela, pra pagá o senhor da vó. Já quando eles iam, aí
gritaram a liberdade e liberto tado os escravos. Aí todo
mundo ficou alegre, aí quando trouxeram a velha não
foram mais pra lá, já vieram pra cá trabalhá e construí
a família deles. Aí que até hoje mora esses galhos dessa
turma, tudo veio dela. A mãe dela teve só ela de filha e
ela aumentou uma família que até hoje ainda tem tudo
essa turma lá do Jamari.
JAMARI
A comunidade do Jamari foi uma das mais atingidas pela política
ambientalista aplicada naquela região. Todavia, ali se encontram
pessoas cujas histórias estão entrelaçadas com as comunidades
que estão mais acima, como a Tapagem, e como aquelas já referidas
anteriormente. Ali vive Máximo, de 74 anos, e sua irmã Nazena
Andrade da Conceição, de 77 anos. Ele nasceu no Jamari e ela em
Mãe Cué. “Eu nasci ali dentro do lago do Mãe Cué, mais mim criei
aqui nesse pedaço do Jamari.” São filhos de Donga e Leonor. A avó
por parte de mãe era Maria Cirila da Conceição, e por parte de pai
Sebastião Cordeiro. “Eram, os meus bisavós.”
Diz o Sr. Máximo:
eu ouvi contar, eles vinheram pra cá, fugidos da
escravidão. Os meus bisavô vinheram tudo pra cá
e nós se assentamos por aqui. Foi o nosso começo.
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Não queriam mais ser escravos e vinheram morar
pra cachoeira, tivemos que ficar lá, as escondidas
pelas cabeceiras do rio pra se escondê do branco.
Esses meus bisavô subiram aqui nesse rio e foram
morá na cachoeira por que o branco não sabia ir pra
cachoeira, era atrasado, iam pra cachoeira chegavam
lá no pé da cachoeira e quem foi que disse pra subir na
água forte e aí eles voltavam. Foi que quando abriu a
liberdade, eles vinheram baixando, procurando lugar
pra cá por baixo pra morar. A minha mãe nasceu aqui
nesse lugar na baixa.
As famílias mais antigas eram, “a minha vó, a vó da Zuila.
Eram os donos desse terreno aqui, do meu bisavô que era dono
desse lugar daí da vargem era Francisco Cirila, era pai da minha
avó e a mulher dele era Maria Leonor, era mãe da minha avó esses
dois, pai e mãe, mãe da minha vó, por que o pai da velha Joana
era Clemente que morava aqui no Jamari”.
Dona Zena por sua vez, ao ser indagada sobre os antigos, os do
Mocambo, responde:
Olha minha vó contava que a mãe dela foi escrava dos
brancos. A minha vó contava que quando eles entraram
nesse rio a mãe dela veio gestante dela, ela foi ter ela lá
no tal de Mocambo. Era Maria Cirila da Conceição, ela
nasceu lá na cachoeira no lugar chamado Campiche,
lá ela nasceu. Olha aqui nós vivíamo, duma castanha,
de um pirarucu, de uma tartaruga, de um couro de
onça, de um couro de porco, de couro de maracajá, as
vezes algum sabia caça, outro não dava pra isso, aí ia
na roça, fazia a rocinha hoje em dia pra se manter e a
gente vive assim.
E sobre a forma de uso coletivo da mata.
É. Pra cá não tinha esse negócio, “há não entra aqui
no meu terreno”. Tinha os que compraram; um velho
que tinha, era proprietário. A maioria a terra era do
governo qualquer um podia fazê o seu lugar; tinha
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direito no lugar dentro de uns 4 ou 5 anos que ele
morasse o lugar já tava como dele, os branco mesmo
diziam: é, rapaz esse é teu por que você já está aí tantos
anos, não tem mais direito de te jogarem daí...
Quanto à questão relacionada a tentativas de expulsá-los.
Olhe só o Ibama queria jogá nós daqui de lado,
queria jogá nós do nosso lugar. Aí na comunidade se
levantaram. Eles ainda foram três vezes pra bandalhá o
barracão que estavam fazendo pra escola, e ai perguntou
com que ordem estavam fazendo a escola lá; disseram
que era com ordem do prefeito. Eles perguntaram “quem
é o prefeito desse lugar”. Aí disse: “olhe vocês deve sabe
quem é, você mora lá, na cidade”. Aí disseram: “olhe
se vocês continuarem com essa escola a gente vai jogá
gasolina e tocá fogo”. Bem, aí continuaram com o serviço
e eles [os fiscais] vinheram, viram que a escola ia pra
frente eles pararam, nunca mais vinheram. Aí levantou a
comunidade, pra cá tinha muito menino atrasado, não
tinha escola, não tinha nada. Foi assim que foi começado
a escola, a comunidade. Do outro lado.
As ações do Ibama os conduziram para a região.
Nosso lugar definitivo de nós morá era lá, lá nós fomos
criado, e olhe meu senhô no tempo que nós se criemos pra
nós tudo era fácil, era farto uma boia, era farto peixe,
era farto tartaruga, era farto caça, não tinha falta de
nada. De uns certos tempos pra cá escangalhou, hoje em
dia tem dia que o pescador sai pra pescar não puxa um
peixe, depois apareceu essas companhias, todo mundo
já quer pegar peixe pra vender é que bandalhô, por que
o Ibama lá veio zelá, diz que veio zelá, mais é que zela
por uma parte e não zela por outra, por que quando tá
zelando pra cá, pra cá estão invadindo, aqui não tem
esse negócio de dizer ai é reserva, reserva era no tempo
que nós moramos aqui, por que naquele tempo pra nós
tudo era farto, hoje não tem mais fartura, acabou, por
que o Ibama disse que veio zelá, eu acho que ela veio
foi esbandalhá de uma vez, o tabuleiro onde tartaruga
saltava nem lá mais salta, então ele não veio zelá, ela
veio esbandalhá, é assim.
O diálogo vai acontecendo e os personagens vão surgindo,
delineando os fios da história. Assim aparece madame Coudreau:
“O que eu ouvi falar dela, é que ela subiu prá cá (...) e foi cá, lá
na Colônia, e lá o marido dela morreu e ela deixou enterrado ali
no lugar do finado Chico Dantas e quando chegou uns tempos ela
veio buscar o cadáver”.
Assim, também, se lembram das histórias contadas sobre o e
Basílio, e o seu tacho, onde conseguiu escapar das perseguições
dos brancos. História que o pai, o Sr. Donga, gostava de contar.
No outro lado do rio, em frente aos filhos do Sr. Donga, mora
a família do Sr. Antônio Pereira de Jesus, 89 anos, conhecido
por Antônio Macaxeira, parente de Mário e Lúcio Macaxeira,
lá do Moura. Nasceu no Arrozal. Filho de Joaquim e Tomazia.
Seus avós eram João Rocha e Joana Rocha. Veio pra o Jamari
há mais de 30 anos. “As famílias que já estavam ali eram as de
Maria Cirila, a casa dela era ali em baixo.” É o protetor do santo
Antônio. “Aquele santo quem mim deu foi o meu avô Vitório na
cachoeira. Era tio da minha mãe.”
E para refazer o percurso do santo até chegar a Vitório.
E, eu não sei. Ele trouxe de lá debaixo, o avô dele, que
veio pra cá fugido, naquele tempo eles eram arribado.
Eles moravam no Turuna, dentro da cachoeira. Lá eles
faziam festa desse santo, eles baxavam, naquele tempo
eles andavam só de noite. O pai da velha Cirila foi
quem ajudou a limpá aquele lugá. Eles iam comprá
a despesa do rancho tudo e subiam, saiam de lá de
noite, andavam o dia e de subida quando anoitecia
eles baixavam no remo, com carga grande que eles
tinham iam cheios de mercadorias e iam embora,
subiam cachoeira de certa parte pra lá eles já iam
festejando davam tiro tinha muita gente lá, lá eles
moravam. Festejavam muito esse santo. Esse santo ele
fugiu. Diz ele que quando era de noite eles arribavam
pra cá; queriam pegar eles. E eles se defendiam com
esse santo e nunca eles foram pegos, assim esse santo
veio pra cá. Aí depois foram morrendo, até por fim
ficou o Vitório, ele é herdeiro desse santo, ficou já na
mão do irmão dele, o irmão dele morreu.
Na nossa conversa, outros velhos mocambeiros vão surgindo, o
João Rocha, o velho Ricardo que:
João morava no lago chamado Macaco, abaixo do
Arrosal, no Mucambim. É abaixo da cachoeira.
Ricardo Pereira, Cardão, era assim que chamavam
ele. Ele e três mais velhos que tinha naquele meio.
Tem também, Margarida era a minha vó, era a mãe
do meu pai. Eu conheci muito. Ela morava no lago do
Mura. Lá nós começamos, lá a minha vó fazia uma festa
muito grande. O santo era Nossa Senhora de Nazaré.
O Sr. Antônio vive com sua filha Antônia Pereira de Jesus, 52 anos,
casada com José do Carmo. “É filho daqui do rio mesmo, do
Jamari também.” Assim como ela. Segundo D. Antônia, quando
chegou o IBDF,
atrapalhou, quando nós sentemos nesse lugar não
existia IBDF, já depois que nós já tava aqui morando
já vários tempos, tava com uns 15 anos morando aqui
já que apareceu o IBDF aqui pra querer jogar com
nós daqui. Aí que foi que nós começamos a fazer essa
escola eles botaram em cima, eles vinha aqui e queriam
brigar com os homens que estavam trabalhando aqui.
Aí quando foi um dia disseram que iam tacá fogo
na escola, aí o meu irmão disse: “olha você vai tacá
fogo mais fale lá com o prefeito que foi o prefeito que
mandou nós fazê isso aqui, que a escola é do governo,
não é nossa”. Mais o fiscal falô: “Aqui eu não quero
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escola que isso aqui é reserva”. “Mais o que você está
reservando aqui, que aqui não tem o que você reservar?”
“Eu vou pra cima, amanhã quando eu passar eu venho
tacá fogo aqui” (replica o fiscal). Pois é taque fogo em
tudinho nas casas que tem aqui não taque só numa.
Aí baixaram e falaram com o prefeito, era o Luiz Suza
e ele disse olha: “volta e quando eles chegarem lá tu
diz pra eles que eu vou assistir eles tocarem fogo na
escola”. E quando foi um certo dia eles chegaram
aqui, eles passaram bem por fora não encostaram mais.
Aí teve uma prima minha que disse: “Olha tu qué sabê
de uma coisa? Vamos levantar uma comunidade aqui
ai foi que prá nós conseguir a comunidade ai eles vão
se afugentar. Aí foi indo, aí foi dando gente, e o pessoal
foram entendendo que era bom, aí foram se chegando e
hoje é uma comunidade só quase de uma família.
Acima do Jamari está Mãe Cué e logo após o Sagrado Coração.
Essas comunidades estão praticamente no “quarteirão” da
Tapagem, assim como o Abuí.
SAGRADO CORAÇÃO
O Sagrado surgiu como uma extensão da Tapagem, consequência
natural do processo de deslocamento das pessoas, na busca
de novos espaços para o trabalho. Ali encontramos moradores,
descendentes dos mocambeiros, vindos das áreas da cachoeira
Porteira, como Dona Rosa Vieira dos Santos, 74 anos. Nasceu
no lugar chamado Curuá “lá frente a boca do Cachorro”; filha
de Silvério dos Santos e Maria Vieira. Seus avós – Sebastião
Vieira e Maria Pinheiro – eram do Mocambo. Dona Rosa fala dos
deslocamentos de seus antepassados, e, também, seu. Sua bisavó
chamava-se Maria Dominga
Ela foi ter minha avó no tal Turuna. A minha bisavó
veio corrida da escravidão, e teve a minha avó para
lá. Depois eles vieram baxano. O meu pai, quando a
50
mamãe morreu, veio para cá, que a mãe dele morava
aqui eu fiquei pra lá com minha avó materna. Me criei
com ela, me criei na cachoeira Porteira. Quando foi em
1942, meu pai arrumou outra mulher, eu vim para cá
com ele. E desde essa década, ele morreu, tem 42 anos
de falecido, e eu estou aqui.
Suas narrativas vão dando conta das famílias mais antigas que
tinham no Sagrado; das festas e do tempo da chegada do Ibama:
A Maria do Carmo, Bárbara, Joana Manso, tudo isso
era só uma família. Aqui a gente vive da roça, da pesca,
castanha. Agora a gente trabalhava na castanha lá
no Jacaré. Hoje ainda algumas pessoas vão tirar
de teimosos, mas é reserva biológica. Aí quando foi
criada essas reservas, florestas, a gente já morava aqui.
O assentamento do Ibama causou até morte, a de uma
criança de três anos. Paravam nas casas e quando os
donos das casas vinham já estavam por dentro. Aí na
Tapagem bateram num rapaz. [...] Eu conheci muitos
dos antigos. A mãe desse Xavier aí a Maria Sofia.
A festa cultural que faziam, na Tapagem, era muito
bonito. Agora já mudou muito. Tinha outra festa, de
umas pretas velhas que moravam aqui pro lado da Água
Fria. Eu não conheci as festas delas, mas, eu conheci as
três, moravam numa casa ali onde era a Assembleia,
era casa delas, Ana, Benedita, e Neta, eram três irmãs.
Ao recordar dos embates com fazendeiros que queriam se apossar
da área compreendida pela comunidade do Sagrado Dona Rosa
enfatiza esse momento de enfrentamentos.
Queria tomar tudo isso para fazer campo. O nome
dele é Humberto Guimarães, é de Santarém. Ele botou
um rapaz por aí mais a mulher. Já, nós tinham uma
capelinha de palha, quando num domingo nós fomo no
culto lá, era capim plantado desde o batente da capela,
até na beira da ladeira assim e nós arrancando e jogando
na água. Daí, a luta foi pra frente. Nós arrancamo o
capim, só derramamo lá na casa, na porta da casa.
Depois o fazendeiro tirou, levou ele embora, que daí eu
nunca mais vi aquele homem. Não sei para onde ele foi.
Na fala com Dona Rosa vamos encontrando um pouco da história
de outras comunidades, mais acima, quando ela se refere às
várias famílias que foram expulsas da reserva biológica, em
particular do lago do Jacaré. “Uns estão atuando por aqui, dali
abaixo, outros foram para o Abuí.”
No Sagrado vive, também, Ornélio Correia da Natividade,
conhecido por Nilo Colé. Nasceu no Mãe Cué. Filho de João
Colé e Maria Correia da Natividade. Suas avós: Lorentina, por
parte da mãe, e a outra Joanina, “da parte do meu pai. O meu
avô por parte do papai era Zé Colé e da parte da mamãe eu não
conheci. Eles nasceram aqui nesse lago de Tapagem”. É casado
com Raquel Pires dos Santos, 57 anos, que ao responder sobre o
lugar onde nasceu, dá a dimensão e o significado da Comunidade
da Tapagem. “Olha, esse município aqui tudo, conhecem como
Tapagem, quando eu nasci, já conhecendo com esse apelido
Tapagem. E aqui nós trabalhamos, vivemos da castanha, muita
castanha. Pra gente se mantê, faz uma rocinha.”
Todavia, no Sagrado a história não é apenas desses
descendentes de mocambeiros. As lembranças dos antigos
estão ali. Nilo Colé também fala de seus conhecimentos sobre
a história e pessoas do lugar:
Eu conheço um bocado de preto velho, sabe? E aí pras
cachoeiras, eu vi muitos locais que os pretos velhos
andaram morando, cheguei até defronte da boca do
Poana, isso é mais de semana viajando, remando.
Eu ainda vi o Manoel José, Velho Bernardo, a velha
Sofia, isso tudo eram velhos. Velha Maria Máxima,
Chico Pedro, o velho Genuíno e finalmente tios meus;
José Bernardino, velha Loiana, velha Inácia e Luiz Colé
tudo isso eram velho. O meu avô contava isso, a mãe
dele, a Joana Manso cansava de contar isso pra nós.
Que ela ainda foi uma que se escondeu. Ela contava que
veio o pega-pega e aí eles se arrumaram e entraram aí
pro mato, pra atrás. Quando ela deixava anoitecer, ela
fazia aqueles foguinhos pra fazerem o que eles comerem;
aí eles comiam, apagavam o fogo e ficavam tudo quieto,
não fazia zuada pra não escutarem. As crianças tudo,
ficavam tudo caladinhas, que o pega-pega estavam
andando. Pega-pega eram as pessoas, que andavam
por aí querendo pegar o pessoal; às vezes pegavam né,
davam pisa no rabo deles. Escutava eles contarem.
No Sagrado os laços de parentesco vão além da Tapagem e de
Mãe Cué, passam pelo o Abuí. Como diz o Sr. Nilo: “lá é que estão
meus familiares. Olha esse moreno aí é meu parente chegado,
filho de uma prima legítima minha”. Refere-se a Carlos Printes.
É primo “legítimo” de Dona Rosa Colé. Dona Raquel, também,
tem vários parentes no Abuí. “Tem uma irmã lá, duas irmãs, uma
é mulher do Miro e outra é mulher do Leonel.”
As narrativas desses depoentes evidenciam o quanto as
histórias dessas comunidades estão entrelaçadas, em particular
com a Tapagem.
TAPAGEM
Mais uma vez recorro aos viajantes do século XIX para chegar
a Tapagem. Em 1875, João Barbosa Rodrigues chegou até as
primeiras cachoeiras. Durante a subida do rio, esteve em casa de
mocambeiros estabelecidos na Tapagem:
Ahi fundeado ainda cedo, fui à terra à casa de uns
mocambistas que ahi moravam; e que me confirmaram
as informações que já tinha e deram-me outras, para
as quaes sua longa prática e estada nesse rio, de 35
anos , os habilitava. [...] Personificado vi ahi o amor da
liberdade. Dous pretos, dous irmãos, Antônio e Miguel,
esqueletos ambulantes, com a neve de mais de 70 anos
de existência sobre a cabeça, nús trabalhando sem
poder, arrastando os perigos de travessias de cachoeiras,
51
sempre sobressaltados, preferindo a vida infeliz que
passa, ao socego e descanço de que são merecedores,
debaixo do poder de seu senhor. Aconselhando-os que
voltassem ao seio da família que abandonaram, que
garantia-lhes obter a sua liberdade, responderam-me
antes a vida animal em liberdade, do que o bem estar
no cativeiro. Descrentes, pela vida sempre de enganos
que passam, no trato com os regatões, não acreditaram
na promessa que lhes fiz
Rodrigues, 1875: 20.
A resposta dada por esses mocambeiros expressa o significado
dos mocambos: a liberdade, contrapondo-se ao cativeiro
que para Barbosa Rodrigues representava o bem-estar.
Aqueles quilombolas sabiam o real sentido do que era ser cativo.
Como qualquer “animal”, preferiam viver livres a voltar para a
família que abandonaram, que os escravizava.
Os registros de Barbosa revelam detalhes significativos quanto
à antiguidade desses mocambos e à prática do comércio com
os regatões, que possibilitava aos negros “ter tudo quanto
precisa inclusive fazenda, sal, pólvora e armas”. E com certeza
as informações de que necessitavam sobre a movimentação
na cidade, no que se refere à organização das diligências.
“Dizendo adeus aos velhos mocambistas, segui viagem”,
concluindo assim a sua visita àquela comunidade quilombola.
Outro visitante que esteve na Tapagem no século XIX e deixou
preciosas informações foi O. Derby:
Nós fomos bastante felizes em ter conseguido os
serviços de um bom rapaz, chamado Rufino, que
vivia no lago da Tapagem e não só serviu de guia
mas também obteve em nosso favor a boa vontade de
outros, ou antes impediu que fugissem de nós, pois
não parecem dispostos a cometer violências, muito
pelo contrário, ansiosos por conservar a boa reputação
a este respeito. Durante a nossa estada entre eles
mostravam-se ansiosos por que nos não acontecesse
52
qualquer acidente, do qual lhes pudesse provir censura.
Menciono, de propósito, este fato , porque comumente
representam-se os quilombolas como classe perigosa,
de ladrões, violentos e preguiçosos, e nós achamos
o contrário quietos, de bom coração e industriosos
como o resto da gente do Amazonas. [...] O número de
quilombolas está continuamente crescendo com os
nascimentos e com a chegada de novos fugitivos, e
atualmente devem contar muitas centenas d’eles no
Trombetas e no Cuminá. Eles têm em Conceição uma
capelinha e mostram com muito orgulho santos feitos
do âmago dos troncos de palmeiras. Celebram os dias
santificados com toda a pompa possível, e um padre,
que penetrou no quilombo, há alguns anos passados,
foi recebido com entusiasmo. Cultivam muito fumo,
que d’antes era muito procurado passando ser o
melhor do Amazonas, mas n’estes últimos anos tem
decaído do conceito que era tido
Derby, 1897-1898: 37.
No final do século XIX passaram também por ali os Coudreau
(Henry e sua mulher Octavie), que não guardaram uma boa
impressão dos quilombolas que encontraram no rio Trombetas,
assim como no Curuá, Erepecurú e mesmo na Guina Francesa e
no atual Suriname.
Seja entre os Bonis ou os Boches de Guiana Francesa e
Holandesa, ou entre os mocambeiros de Chouna ou de
Ouraraip na Guiana Inglesa, ou naqueles do Curuá [...]
se via em toda parte escravos fugitivos apresentando as
mesmas características: baixeza, mentira, traição com
relação ao branco. Ele se apresentava insolente e tirânico
em relação ao índio, enfim, entre eles a regressão rápida
em direção aos costumes mais primitivos dos negros tais
como aqueles das ilhas de Fidji, Daomé e de Uganda
onde, também, se encontrava essa curiosa espécie
Coudreau 1901, 130.
carlos penteado
Por fim, temos as informações de Adolpho Ducke, que em seu
relatório: “Explorações Scientíficas no Estado do Pará”, afirma
que no Trombetas:
Os últimos moradores são os da “Colônia”, ao pé da
cachoeira Porteira, lugar lindo como paisagem porém
infeccionado por febres perigosíssimas; mais em baixo,
no Arrozal e na Tapaginha, existem espalhados outros
d’estes descendentes do antigo “mucambo” (colônia
de escravos fugidos de Óbidos, Santarém, etc.) do
Maravilha, que ficava um pouco ao norte do equador,
entre as cachoeiras do Caspacouro e da Mina. Com a
falta de higiene n’uma região insalubre, as moléstias
dizimaram horrivelmente os mucambeiros, que de mais
de mil estão reduzidos a poucas dúzias de indivíduos; da
atual geração, muitos exercem o ofício de “cachoeirista”,
sendo eles quase indispensáveis para uma viagem
em qualquer um dos afluentes encachoeirados do
Trombetas. Há entre eles homens fortes e sadios que
gozam d’essa perfeita imunidade contra o paludismo,
que às vezes se observa na raça africana
Ducke, 1909: 159-160.
Os “mocambistas”, conhecidos por Barbosa Rodrigues e Derby,
hoje fazem parte das lembranças dos moradores da Tapagem, e do
Abuí. Dona Maria Rosa Xavier Cardoso, natural da Tapagem, 76
anos, filha de Felipe Francisco Xavier e Maria Tereza Cordeiro diz:
Eles nasceram aqui na Tapagem. A mamãe quando
morreu ela já estava com uns 80 anos e o papai também
já estava caminhando pros 90 anos. O pessoal daqui
que eu conheci, olha justamente foi a minha vó, Maria
Helena, a Jinfonsia, e o avô, Manoel Francisco. Ele era do
Mocambo. Já o papai contando, conversando, ele foi pra
lá pra cachoeira. Pra lá ele se acompanhou com o Vieira,
eles eram tudo parente. Eles, iam pra lá com os índios ,
dizem que pra lá eles comiam aquelas comidas que aqueles
índios preparavam. Depois ele baixou, veio embora, até
54
ele foi casado com a mãe do Antônio Gomes. Ela era
do Mocambo também. Era de lá de cima. Nasceram
acho que na Porteira, foi pra lá também, tudo pra lá.
Da escravidão quem contava era a avó, chamada Maria
Helena. Ela contava, do cativeiro, eles vieram da peleja
da escravidão. O irmão dela, era Felipe. Eles mandavam
eles remarem, “rema Felipe” aí ele dizia assim: “Tá seguro
meu senhô”. Ele tinha cada custo de braço, aí metia o
remo n’ água chega espocava lá atrás (risos).
Dona Rosa e o Sr. Pedro não ouviram falar dos irmãos Antônio e
Miguel, encontrados por Derby. Quanto a Rufino: “Eu ouvi falar
sim, essa cabeceira que vai aí, até que se chama Rufino, por que
esse Rufino ele morava pra’í”.
Ali as festas de ramada eram as mais significativas. Diz Dona Rosa
O protetor do santo era o papai. São Sebastião. Tinha
uma festa ali das velhas que nós chamava a Jinfonsa.
Ali de onde é a congregação, na Água Fria. Elas eram
Mocambeiras também, elas festejavam lá a Santíssima
Trindade, senhora da Conceição, eles festejavam,
Divino Espírito Santo. Era muito linda a festa das
velhas, preparavam tudo, um bocado de biscoito que
dava gosto da gente comê. Era a Ana, tinha a Esméria,
a Benedita, tinha a Luzia e a Inês.
A fala de D. Rosa é interessante ao mostrar as imagens de são
Sebastião que estão lá na capela. Há uma de gesso, grande, doada
por Gabriel Guerreiro, político de Oriximiná, e outra pequena
“mirradinha”, feita de madeira, esculpida pelos antigos. “Nós
festejamos essa”, refere-se à imagem menor, “veio do tempo dos
antigos.” É nessa imagem que está o sentido de ancestralidade.
Ali, também, os moradores guardam na memória os impactos e os
conflitos advindos com a chegada de “organismos” como IBDF
(Ibama) e Eletronorte. O Sr. Pedro Viana da Cruz – Pedro Barulho,
60 anos, nascido no Arrozal –, em um depoimento, por ocasião
do IV Encontro Raízes Negras realizado na Tapagem em julho
de 1992, expressou bem o que se pode considerar sentimento
de todas as comunidades do Alto Trombetas, que vivenciaram
momentos desagradáveis por ocasião da chegada das políticas
governamentais, no tocante ao desenvolvimento e preservação do
meio ambiente, propugnada para aquela área. Diz ele:
No tempo que me criei, a vida era tranquila, ninguém
tinha perseguição, e vivia muito bem, sem companhia
hidrelétrica, sem essas outras consequências que
está acontecendo agora no meio de nós. Meus pais
me contavam certos passados deles que eles viviam.
Contavam também de nossos antepassados que eram
escravos, isto já passou, ontem, já ficou. Só vou falar
de hoje. Mas a gente vivia uma vida boa, ninguém
tinha perseguição nenhuma. Eu estou com 59 anos,
depois de eu estar com 40 anos, mais ou menos,
começou a aparecer no nosso município, esse tipo de
exploração, de coisas ruins pra nós. Primeiro chegou
a onça que foi a mineração Rio do Norte; depois
chegou o tigre, que foi a Cruz Alta [à época, estava
para ser instalada a Alcoa]; finalmente chegou, tá
quereno chegá o leão que é o mais brabo, que é a
Eletronorte, quereno formar essa grande barragem.
E ainda tem outro mais forte a cascavel, que foi o
Ibama que chegou no nosso meio.
Em razão do processo de desocupação da área da reserva biológica,
houve um aumento populacional significativo da comunidade
do Abuí, para onde havia muito tempo tinham deslocado antigos
moradores da Tapagem, juntando-se a outros procedentes das
cachoeiras e ainda aqueles que foram expulsos do Jacaré.
ABUÍ
Maximiano de Souza, em 1855, na expedição que comandou
para destruir o Mocambo Maravilha, diz: “Da foz do rio Arepecú,
segui em marcha forçada até o lago Jacaré, onde fiz acampar
a força por me dizer o capitão-do-matto existir nos conturnos
d’aquelle lago um mucambo. Sem perder tempo fis uma força
de 40 praças de reforço dos índios mundurucu, voltando dessa
exploração de 4 dias sem resultado satisfatório.” Evidentemente
que os mocambeiros haviam fugido. É bom lembrar que
Maximiano não conseguiu trazer preso nenhum quilombola do
Trombetas (Souza, 1875).
Conforme Derby: “No lago do Jacaré começa a parte do
Trombetas, percorrida no tempo da safra da castanha por
embarcações a vapor e visitada por comerciantes, sendo porém
os moradores até Oriximiná muito escassos. Este lago consiste
de dois braços unidos perto da embocadura, estendendo-se um
d’eles rio acima até perto do lago de Abuí e outro para baixo em
direção as cabeceiras do Arapicú” (Derby, 1897-1898: 373).
Segundo Ducke, o lago do Jacaré:
É o último dos grandes lagos do Trombetas, d’ali até
a cachoeira Porteira há somente lagos menores, porém
as margens do rio continuam baixas e com a mesma
vegetação monótona. Os “taboleiros”, praias altas
de areia grossa amarelada, são frequentados pelas
tartarugas do Amazonas, mantendo a intendência
municipal de Óbidos um “fiscal da praia” para obstar
à demasiada matança destes animais utilíssimos e à
destruição dos ovos. Os poucos moradores d’este trecho
do rio são os restos dos mucambeiros e seus descendentes,
hoje talvez umas trinta pessoas
Ducke, 1909: 166-167.
É imprescindível falar no Jacaré, para posteriormente chegar ao
Abuí. Muitas famílias desse lago se juntaram às que estavam no
Paraná e Lago do Abuí, como a de Argemiro Vieira dos Santos,
72 anos, neto de Conceição José e Maria do Espírito Santo.
Todos nascidos nos altos Campiche e Turuna.
Eram mocambeiros, cheguei a conhecê. Contavam do tempo
que vieram corrido da escravidão por aí. Eles correram e
foram se assituá aí pro rio. Eu nasci lá acima da cachoeira
Porteira, num lugar pro nome Cachorro. A minha família
55
é só negro cruzado com índio. Porque meus tios não tinha
mulhé negra pra eles cruzarem, eles cruzaram com índias.
Eu tenho muito parente índio. Depois do Cachorro, meu
pai veio embora aqui pra Tapagem, vim com oito anos.
Ele acabou de criar nós aí e minha avó ficou lá na
cachoeira Porteira, lá ela se acabou.
Printes. Eu conheci o meu avô materno, era Felipe
Xavier Felipe que contava que eles ficavam trabalhando,
também, por essas cachoeiras, iam pra lá ficavam muitos
tempos sem poder vir pra cá, pra onde eles começaram a
vida deles, né. Por todos esses martírios eles passavam.
Eles contavam essas história.
Para informar quando veio para o Abuí, vira para Carlos Printes
e pergunta:
Os deslocamentos espaciais dos moradores dessa região, como
se vê, ocorreram fundamentalmente por duas razões: a busca
de melhor espaço para trabalhar e a expulsão, motivada por
interesses externos e alheios às suas realidades. Nas falas do
Sr. Rafael Printes, 81 anos, e de Dona Rosa Colé, 72 anos,
encerramos nossa viagem por esses canteiros de memórias.
Em suas narrativas encontramos os últimos, ou primeiros, ramos
dessa grande árvore, formada pelas comunidades mocambeiras
do Alto Trombetas.
Parente, se não está lembrando de quando jogaram nós
do Jacaré? Que ano foi? Foi em 80? Quem jogou nós foi
um tal de Gringo. Nós morava lá então, a gente conhecia
aquilo lá como terreno de um tal de Raimundo Costa
Lima. Depois ele morreu aí ficou com a viúva dele, com
a filha dele, e casou com um português de nome José
Machado e esse Zé Machado vendeu essa terra para
um gringo. Diz que o Ibama comprou essa terra e foram
desapropriaram sem direito a nada. Eu recebi pelo
menos a indenização que deram, foi de dois mil cruzeiro,
naquele tempo, e hoje em dia num dá nem pra comprá
uma caixa de fósforo. Tinha 25 famílias, que morava
lá dentro. Essas 25 famílias forma expulsas de lá. Tem
eu aqui, tem um senhor por nome Manduca, tem lá pro
Oriximiná, pro Capintuba, no Cuminá, pelo Moura.
Outra moradora do Paranã é Maria Cira Cordeiro, 57 anos, filha de
Martinho Floriano Printes e Maria Rosa Cordeiro. O pai morreu
com 88 anos e a mãe ainda vive, mora na Tapagem, onde ela
também nasceu. Ela recorda passagens de narrativas que ouviu:
Eu vim pra cá pra gente trabalhar. A gente trabalhava
lá na comunidade da Tapagem, aí o meu marido
resolveu que a gente viesse mora pra cá que tinha mais
espaço, bom da gente trabalhar. É com a conclusão da
escola foi que me nomearam para professora, e fiquemos
trabalhando por aqui na lavoura, roça, castanha às
vezes tirava madeira, mas isso não era todo o tempo.
Olha tinha o meu pai, o meu avô chamado Martinho
56
Rafael é filho de José Viana e Sebastiana Printes do Carmo. Seus
avós paternos eram Miguel Viana e Bibiana Viana; e maternos
Francisca Maria do Carmo e Rafael Printes do Carmo. Todos
eram “mocambeiros do Turuna; depois baixaram para o Arroizá
(Arrozal) e Nova Amizade”. Segundo Rafael sua mãe morreu com
60 anos, na década de 1950.
Dona Rosa Colé, nasceu em Mãe Cué, filha de Loriana e neta de
Joana Joaquina do Livramento (Joaninha) que era do Mocambo do
Turuna. Em seus depoimentos, o Sr. Rafael e Dona Rosa trazem à
tona a saga dos mocambeiros que se estabeleceram no rio grande:
Havia mocambeiros na Macaxeira, sob o nome
Atanázio, do Atanázio foram pro Maravilha daí pro
Turuna e deram com piché deles (dos brancos), de novo
foram pra Poana, onde se aguentaram lá, por que o
Poana fica numa parage que, numa ilha grande, não
encosta nem pro lado nem pra outro e eles não podiam
chegar lá. Ai foram indo até que chegou um tempo que
eles vinheram descendo aos poucos. De lá eles vieram
pararam no boca do Cachorro, por nome Croá, de
lá vieram aí pro Boto, ai fizeram um acampamento
grande aí no Boto, vieram já pra Colônia, outros já
vieram pro Macaxeira que tinha ai um igarapé, onde
o primeiro Atanásio fugiu. Ele voltou de novo pra’í e os
outros vieram pra Tapagem, pra Colônia, eles foram se
colocando já aí na margem do rio.
Nesse processo de fuga, e deslocamentos constantes, é ressaltada
a proeza de Basílio, também lembrada por narradores anteriores.
“[Ele] andava dentro de um tacho, daí prá cima esse Basílio
quando acabava o rancho dele, aí quem vai buscar o Basílio
por que o Basílio era um negro forrado de muitas orações, uma
oração bem maior é são João aí ele vinham embora. Era o meu
bisavô, o Basílio”, diz D. Rosa.
Outros atores sociais dessa história vão aparecendo como Rufino,
que evidentemente não chegaram a conhecer, mas sabem que:
“Rufino, também, um negro velho aí, que até tem ali um nome do
lugar por nome Rufino ai ele morava lá esse Rufino, era um preto
velho também”. O mesmo se refere ao mocambeiro Ambrózio,
sobre o qual Dona Rosa Colé faz menções interessantes. Diz ela:
Ambrózio era da família da velha Inês, que era irmã
do Boaventura, era dessa família que o Ambrózio era.
Depois que eles vieram, que subiro, a moradia deles
era aí pro lago do Aripicu. Eles voltaram quando
baixaram do Mocambo pro Erepecu. Sim foi, por
que teve muito que subiro e foram embora, e outros
entraro prá o Eripecuru, e outros subiro entraram aí
pro lado da Tapagem. Esse Ambrózio com a turma
dele entraro pra o Eripecu. Tem uma parage lá e
fizeram o acampamento pra lá, fica longe. Lá tem um
castanhalzinho. Já os galhos que já estavam por aqui
era Miguel Nunes, pai do Didico. É dessa família que
ele era o velho Ambrózio.
Ao ver a foto do “velho Ricardo e sua consorte” o Sr. Rafael e
Dona Rosa afirmaram quase que uníssonos: “Careira. Ele era
também dos fugitivos também o pai dele também. O pai dele era
Sebastião Carreira. A mulher dele chamava Tarcíla”.
Interessante é o narrar destes sobre a história que ouviram sobre
os Coudreau que passaram por ali na virada do século XIX para
o XX. Dona Rosa diz:
A minha mãe mi contava de quando eles vieram.
Ela ainda era criança, mais já se lembrava de tudo mais
ou menos do que acontecia. Quando ela veio, quando
chegou ai foi no tempo que o marido dela adoeceu
e morreu, ai enterraram lá em baixo da Tapagem;
era um lugar grande e poucos anos vieram buscar o
cadáver dele aí. Na hora da despedida que os antigos
mais, o velho Chico Adão, Antônio e os outros velhos,
Joana Amância, esses velhos, Sofia, o Manoel Francisco,
são as pessoas que mais ou menos conversavam com
eles. E até hoje ainda vem aqui e acolá ainda querem
ver aí, ver aonde era a cova dele.
Indagados sobre a Comissão de Demarcação de Limites, o Sr.
Rafael todo animado, vai informando.
Pois é, em 1934 entrou a comissão de limite aqui
e ajuntando alguns moradores, rapazes, daqui pra
trabalhá. Daqui trabalhou Antônio Cordeiro da
Silva, Marcolino Lima dos Santos, Miguel Viana,
Raimundo Carlos, o pai do Valério, né? Zé Marcelo,
eles trabalharam na comissão de limites. Na época, eu
estava com 14 anos, trabalhei, mas assim encostado,
não me fichei porque eu estava de menor. Trabalhava
assim, fazia viagem na cachoeira com eles, essas coisas
assim lá. Dos maiorais, conheci primeiro o comandante
Brás, segundo o comandante Prejocam, terceiro major
Santana; aí Gil, Carlos, são esses cinco.
O Sr. Rafael e Dona Rosa casaram-se em 1945. Nessa ocasião
moravam na Tapagem e em 1965, se mudaram para o Abuí, onde
já viviam as primeiras famílias que haviam se estabelecidas
ali. “Eram: o tio dela, o Zé Bernardino, o Leocardio Xavier,
Bijoga, Davi com a Inácia a minha tia, também já estavam”.
Estabeleceram-se no Abuí, por quê:
57
Era uma terra boa de primeiro... Agora, a terra do
Abuí tá ruim que não dá nada, e nós viemos pra cá
se colocar aqui, se coloquemos ali no ramo, pra lá
aonde está a Madalena; nós paremo, fundemos essa
casa aqui. Eu trabalhava em lavoura; já tive muita
roça, milho, bananal, essas coisas. Com castanha,
naquele tempo até com cacau eu trabalhava. [Eram
seus aviadores] Costa Lima, no começo, Manoel Costa.
Costa Lima era um Português, o Suza, o Francisco
Sousa, o Duca. Os Guerreiro. José Gabriel Guerreiro
era o que trabalhava mais pra cá; Ele era patrão e era
prefeito. Chegou também os regatão, chegou lá com
alguma mercadoriazinha, já trocando com eles, a troca
dessas benfeitorias deles e também da produção da
castanha e outras coisas, mais cumaru, e outras coisas.
Bem aí eles vieram e aí foram dizeno “vocês são meus
freguês”. Aí eles começaram a comprar terra no nome
dos pretos, que só quem compravam terra era os negros,
eles compravam a terra e levava para Belém e chegava
em Belém, trazia o documento de vocês, dizia: “Olha tá
aqui o documento, agora eu quero pra passá em branco
que vocês não sabe passá”. Ia embora, e ia colocá o
lote da terra no nome dele. E assim foi crescendo,
começando a tomá a terra dos negros. Engrupia o negro
tudo, pra incentivá, pra explorá mais. Quando foi 60,
62, morreu Zé Machado. Era um português dono do
Alto Trombetas. Todo o castanhal pertencia a ele, que
foi tomando do meus avós, como até do meu pai. Tomou
o castanhal por nome Arroizá [Arrozal], Tapaginha.13
Na fala do Sr. Rafael pode se perceber o sentimento, externado
também por outros narradores, a respeito da ameaça constante
ao legítimo direito de posse da terra onde secularmente se
constituíram essas comunidades. Num primeiro momento
a perseguição das expedições punitivas, posteriormente a
13.
58
sujeição, controle e arbitrariedades praticadas pelos regatões,
aviadores, mesmo “quando patrões bons” e, finalmente, a ação
violenta praticada pelos órgãos governamentais em particular
nos anos 1970. Todo esse passado leva esses descendentes dos
mocambeiros a terem no “tempo dos avós”, um tempo de fartura,
de bondade e perceberem o quilombo como espaço de liberdade.
Um sentimento bem vivo na fala de D. Maria Francisca dos Santos
(Dona Popó), nascida no Alto Trombetas, e que por ocasião do IV
Encontro Raízes Negras estava com 81 anos. Diz ela:
O que eu lamento e fico sentida é de ver nossa mesa
tomada pelos outros, e nós ficamos olhando com fome
sem podê comê. Isso eu lamento muito. Que no tempo
dos meus avós, que eu me criei, isso aqui tudo era liberto,
nós não tinha preocupação: ah! Não tem comida, pega
um peixe, pega uma tartaruga e nós vamos comê.
Hoje em dia, nós temos saudade. Se nós pega uma
tartaruga, nós temo que comê escondido, senão vamo preso,
vamo surrado, aqui dentro de nossa terra, tenho bastante
saudade do tempo de liberdade, tempo que passou.
A fala de Dona Maria Francisca dá uma dimensão da permanência
de uma luta pela liberdade que secularmente se coloca para
aquelas comunidades negras do Trombetas. Uma situação que
vem sendo revertida sem, contudo, arrefecer os ânimos da luta
para libertar a terra e legitimar a sua posse definitiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS. NOVAS LUTAS:
NA TERRA LIBERTA, O DIREITO
DE SER LIVRE
No mundo da floresta os quilombolas do Trombetas praticam
o extrativismo, tecem novas relações com o meio ambiente e
constroem seus espaços, seus territórios e suas identidades
de afro-amazônicas que juntos aos caboclos, com os quais se
Entrevista com Rafael Printes, realizada durante o IV Encontro Raízes Negras, Tapagem.
confundem e são confundidos, e os índios, outrora inimigos,
tornam-se povos da floresta, frente ao sulista, também chamados
de paulista, e em especial o capitalista. Este tem a terra e a natureza
como mercadorias, beneficiado pela política desenvolvimentista
dos anos 1970, na ditadura militar. Os dominantes impõem
novas formas de luta e enfrentamentos para esses sujeitos, que
mesmo de forma separada e estratégias distintas enfrentaram e
enfrentam o mesmo inimigo – o Estado e o grande capital.
As áreas das terras quilombolas foram atingidas diretamente
pelas políticas governamentais implementadas pelo governo
brasileiro, propugnando um desenvolvimento para a Amazônia,
provocando fortes impactos ambientais e tensões sociais. A ideia
de progresso difundida nos anos 1970 passa a ser contestada de
forma incisiva, por setores da sociedade que procuram contribuir
com o combate às imensas desigualdades sociais, e que se
mostram comprometidos com interesses sociais, isto é, dos que
trabalham na terra. A partir de determinados discursos, o inferno
verde se transforma, agora, num paraíso que deve ser preservado.
Ali, configurou-se uma frente capitalista, amparada por
incentivos fiscais, financiamentos a baixos juros e um aparato
policialesco, que garantiam a implantação de grandes projetos:
agropastoris, madeireiro e, em especial, minerador, sobrepondo
territórios indígenas e quilombolas. Povos que tinham, e tem,
em comum, as atividades extrativistas, uma relação quase
harmoniosa com a natureza – seus ganhos saem da pele e
“sangue” que cobre a terra, a floresta e as águas dos rios e lagos.
Nesse contexto, a expansão capitalista exige necessariamente
que se liberem terras, de uso comum, ao mercado e à apropriação
individual, provocando transformação radical das estruturas que
condicionam a posse e uso.
Assim, hoje recuperar o passado tem um duplo sentido:
afirmação de uma identidade e legitimação de uma luta pela
titulação da posse da terra. Nesse sentido, as práticas culturais,
por serem lugares de memórias, constituem os pilares do
ser remanescente, ser mocambeiro e o sentido de pertença.
Na relação com a terra está outra marca da ancestralidade desses
descendentes de quilombolas.
Manter a terra liberta tornou-se a representação do direito
de ser livre e de posse do espaço vivido. Na constituição dos
mocambos estava a concretização da liberdade da escravidão
e na terra liberta está a concretude das comunidades negras
remanescentes dos mocambeiros. Esse movimento tem ganhado
força consubstancial através da organização de associações dos
quilombolas, que têm conseguido o título de posse das terras
ocupadas há mais de um século por aqueles que forjaram na luta
o direito à liberdade.
O sentimento de pertença, de lutar pela posse e titulação definitiva
de sua terra, amparado em dispositivos legais – como o artigo 68
das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição
Federal, de 1988, e o artigo 322, da Constituição do Estado do
Pará – e, sobretudo, na ancestralidade dessas comunidades,
na historicidade de suas lutas frente às diferentes formas de
repressão, em particular aquelas praticadas pelo Estado nas
décadas de 1980, levou essas comunidades a se organizar na
luta por seus direitos como descendentes de quilombolas, de
ex-escravos, e, em especial, com cidadãos.
Como resultado dessa luta, em 1995 foi concedido o primeiro
título de posse de terra a uma comunidade quilombola, no
Brasil, a de Boa vista, no rio Trombetas. Em 1996 foi a vez das
comunidades negras do Pacoval e Água Fria receberem os títulos.
Hoje, naquela região somam-se dez títulos de posse coletiva da
terra concedidos, atendendo as reivindicações de centenas de
comunidades afro-amazônicas, descendentes dos quilombos que
ali se formaram no século XIX.
Todavia, outros desafios se colocam, há outros direitos a serem
conquistados, e novos confrontos se delineiam com a chegada
de novos sujeitos àqueles espaços: os capitalistas. Estes vivem
da especulação fundiária e do uso desordenado das florestas.
Está em curso um grande desmatamento para venda, às vezes
ilegal, da madeira; implementação da pecuária em larga escala;
59
plantio da soja e, em menor escala, de arroz, principalmente na
região de Santarém e Alenquer, cultivos que até então não faziam
parte daquele cenário, hoje brutalmente transformado pelo uso
indevido das áreas de várzeas, grandes danos ambientais, e o
consequente encolhimento das terras dos mocambeiros que
ali vivem há mais de um século. Um processo de ocupação
desordenado e desastroso, tanto para as populações tradicionais
quanto para a natureza, mas que retrata bem a lógica desses
novos migrantes em relação ao meio ambiente, ao uso e valor da
terra, amparados pelas políticas de incentivos governamentais,
em todas as esferas.
Qualquer medida de ordem administrativa que possa vir a
incidir sobre as comunidades negras dos rios Trombetas,
Erepecuru e Cuminá, por órgãos dos governos federais, estaduais
e municipais; em particular por qualquer empresa mineradora,
bem como por projetos hidroelétricos, deve ser precedida de
consultas a suas associações representativas.
Na atualidade, vivem-se momentos em que se confrontam duas
concepções de valor da terra: terra de trabalho, sentimento
de nosso, versus terra de negócio, especulação fundiária,
implicando novas formas de organização e de enfrentamento por
aqueles que se sentem ameaçados pelos “de fora”. Momentos em
que se afirma a identidade negra, quilombola, afro-amazônica,
frente ao outro, que os vê com olhares de estranhamentos.
BIBLIOGRAFIA
São essas lutas que nos levam a entender que a percepção
identitária desses grupos se dá a partir dos próprios grupos, na
busca de suas raízes, dos “troncos velhos”, dos quais são os
galhos, os ramos. Ramos impregnados de historicidades, práticas
e orientações culturais diversas, muitas vezes recriadas, e de
sentimentos e uma relação com a terra, que lhes permitem se
perceberem mocambeiros, camponês, indígenas, seringueiros,
Povos da Floresta. Na busca das raízes está a afirmação de suas
identidades e de pertenças ao território, no qual estão fincadas.
Nesse sentido – do Mocambo “paragem deserdada, escondida”, às
comunidades de hoje, “lugar de fartura e trabalho” –, o caminho
percorrido pelos negros foi de criação de direitos. O direito sobre
a terra, historicamente conquistado. O direito à sua especificidade
negra, raiz profunda de sua cultura. O direito de reproduzir seu
modo de vida agrícola e extrativo, sobre as bases de territorialidade
conquistada; com manejo ecológico traduzido pela preservação
atestado nos 200 anos de existência no lugar.
60
Todavia, para esses negros, a afirmação de suas fronteiras étnicas
e territoriais passa por desafios novos e novos enfrentamentos se
colocam. Pois assim, como o tempo não para, o circulo não se
fecha, a história não tem fim. É assim a História.
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61
carlos penteado
HISTÓRIAS,
MEMÓRIAS E
REPRESENTAÇÕES
DA ESCRAVIDÃO
NA COMUNIDADE
QUILOMBOLA
DO ARIRAMBA
Luciana Gonçalves de Carvalho
INTRODUÇÃO
A ariramba é uma ave de cerca de 20 cm de comprimento, que
possui um bico longo e fino, com o qual faz ninhos, cavando
buracos profundos nos barrancos das margens do igarapé que
leva seu nome, e serve de principal via de acesso à comunidade
remanescente de quilombo Ariramba. Tal como a ave, que protege
os ovos e as crias nos buracos escondidos, os mocambeiros1 que
deram origem à comunidade de Ariramba aprenderam a proteger
a si e aos seus nas brenhas das florestas no entorno do rio Cuminá,
que banha os municípios de Oriximiná e Óbidos.2
No Ariramba, atualmente, há cerca de 20 famílias,3 mas nem
todas vivem ali permanentemente, por diferentes motivos, entre
eles a necessidade de enviar os jovens para estudar e/ou buscar
trabalho na cidade. Sua população total, portanto, é oscilante
em torno de 60 a 100 habitantes. A maioria deles descende do
casal Joaquim e Tereza dos Santos Oliveira ou com eles mantém
parentesco por afinidade, ou relações estreitas de vizinhança e
amizade. Da mesma forma, frequenta a Assembleia de Deus na
localidade, como Joaquim.
Joaquim e Tereza, por sua vez, são oriundos de famílias de
mocambeiros que viviam no rio Cuminá e arredores, em áreas
hoje pertencentes ao território quilombola do Erepecuru,4 que
faz fronteira com o Ariramba. Com efeito, foi partindo daí que
ambos se transferiram para as margens do igarapé Ariramba,
1.
2.
3.
4.
5.
64
dando origem à comunidade nos anos 1970. Muito antes disso,
porém, o casal e seus ascendentes iam caçar, pescar, tirar
castanha, capturar quelônios e catar ovos ao longo desse igarapé,
que era tido como particularmente farto. Ou seja, mesmo antes
do estabelecimento de moradias no lugar, os mocambeiros já o
ocupavam, entendendo-se por ocupação a “efetiva utilização”,
conforme ensinam Acevedo e Castro (1993: 119).
As relações entre famílias do Ariramba e do Erepecuru ainda
hoje são estreitas. Além da própria situação de fronteira física,
moradores de ambos os territórios compartilham florestas,
castanhais, rios e lagos de uso comum; casam-se entre si; as
crianças estudam juntas na escola da comunidade Boa Vista, já
que no Ariramba não há estabelecimento de ensino; frequentam
os mesmos postos de saúde nas comunidades de Jauari e Boa
Vista. No conjunto, trata-se efetivamente de uma grande extensão
de terras ocupadas e trabalhadas por pessoas que mantêm
laços consanguíneos, de compadrio, afinidade, sociabilidade e
de natureza política, e que compartilham princípios, práticas,
modos de vida, histórias e memórias.
Apesar desses laços, os territórios trilharam caminhos opostos
no que tange ao processo de regularização fundiária preconizado
pela Constituição Federal de 1988, que criou direitos territoriais
específicos para os remanescentes de quilombo.5 No Ariramba,
os moradores rejeitaram inicialmente a proposta de criação da
terra coletiva de quilombo, preferindo não participar do processo
Eram referidos como mocambeiros os negros que viviam nos vários mocambos existentes no Baixo Amazonas, nos séculos XIX e XX. Pelo menos até a definição
de “comunidades remanescentes de quilombos” a partir da Constituição Federal de 1988, os termos “mocambo” e “mocambeiros” tiveram uso mais frequente
que “quilombo” e “quilombola” na região, e designavam não apenas os grupamentos de escravos negros fugidos, mas também os libertos e descendentes nascidos
livres, estendendo-se até a brancos e caboclos igualmente “amocambados”. Em atenção à recorrência desses termos nos relatos dos remanescentes, mantêm-se
os mesmos neste texto.
Embora a comunidade do Ariramba pertença ao Município de Óbidos, conforme a divisão geopolítica do Estado do Pará, todos os serviços públicos lhe são
prestados pela municipalidade de Oriximiná, localidade com a qual efetivamente a comunidade se identifica.
Estudo da CPI-SP, de 2005, referencia 16 famílias quilombolas. Relatório de vistoria do Incra, de 2006, menciona 27 famílias quilombolas e 26 não quilombolas.
O território Erepecuru compreende 11 comunidades: Pancada, Araçá, Espírito Santo, São Joaquim, Jauari, Boa Vista Cuminá, Santa Rita, Varre Vento, Jarauacá,
Acapu e Poço Fundo.
O Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) garantiu “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando
suas terras” o direito de que lhes seja “reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Dispositivos posteriores, em
especial o Decreto nº 4.887 de 2003, estabeleceram os procedimentos para regularização dessas terras. Não há condições para explorar o tema aqui, mas sobre
ele há muitos trabalhos de vulto [O’Dwyer (2002), Almeida (2002), Arruti (2006), Treccani (2006), Leite (2012), Rios (2007)].
que conduziu à delimitação e à titulação do território quilombola
do Erepecuru em 1998. Apenas em 2004 aderiram à proposta
de regularização da terra coletiva e, desde então, aguardam a
tramitação dos processos abertos junto ao Instituto Nacional da
Colonização e Reforma Agrária (Incra) e ao Instituto de Terras do
Pará (Iterpa). Foi justamente nesse contexto que se procedeu à
elaboração do Relatório Antropológico que propiciou o início das
pesquisas nessa comunidade e no entorno.6
Este texto pretende oferecer uma contribuição aos estudos sobre
a ocupação negra no rio Cuminá, do qual o igarapé Ariramba
é tributário. Seu objetivo específico é mapear narrativas que
esclareçam sobre formas de representação da escravidão
nessa localidade, relacionando-as com a trajetória histórica
da ocupação. Quiçá, este exercício poderá contribuir para
compreender aspectos compartilhados por outras comunidades
quilombolas de Oriximiná.7
Diante de parca documentação histórica8 e das possibilidades
investigativas abertas pela memória coletiva como representação
das relações dinâmicas e dos movimentos dos grupos,9 optou-se
por valorizar relatos de vida e narrativas orais variadas como
material de pesquisa. Assim, pretendeu-se acessar a memória
cujos expedientes revelam as experiências sociais de produção
simbólica da “presunção” ou “afirmação” da ancestralidade
negra e do passado comum de resistência à escravidão.10
Como sugere Alencar, tal postura metodológica “significa
enfrentar muitos desafios, e o principal deles é a profundidade
da memória social e a dificuldade encontrada pelos narradores
para lembrarem-se dos eventos passados e situá-los
cronologicamente” (Alencar, 2009: 183). Ao contrário da
história, que na maioria dos casos traz uma visão distante e
cristalizada da realidade, a memória coletiva é tomada como
“uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade
que nada tem de artificial, pois não retém do passado senão o
que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo
que a mantém” (Halbwachs, 1990: 102).
Assume-se que os processos coletivos de reconstituição
da memória no âmbito das comunidades remanescentes
de quilombos são essenciais para a própria criação dessas
“comunidades” como algo que supera unidades territoriais,
fazendo delas unidades sociopolíticas que se representam
para si e para a sociedade abrangente a partir da assunção
da identidade quilombola, num movimento de superação do
histórico de preconceito e negação de direitos, e de valorização
de tradições comuns. São, nesse sentido, processos que criam
“comunidades imaginadas”, para usar o termo pelo qual Hall
se referiu às nações: “as identidades nacionais não são coisas
com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas
no interior da representação” (Hall, 2002: 48).
6.
O Relatório Antropológico é uma peça integrante do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) que constitui procedimento obrigatório para a
titulação de terras quilombolas pelo Incra. Em suma, ele deve demonstrar como a comunidade se autodetermina e como fundamenta sua proposta de delimitação
territorial, a partir de dados históricos, econômicos, sociais, culturais, religiosos, entre outros. O Relatório Antropológico da comunidade do Ariramba foi elaborado
em 2012-2013, sob responsabilidade da Ecodimensão, no âmbito de contrato estabelecido com o Incra a partir de processo licitatório. Os dados e relatos ora
apresentados foram registrados principalmente durante as pesquisas para esse relatório e complementados em levantamentos posteriores para finalidades diversas.
7.
Pesquisas iniciadas em 2013 na Ufopa e no âmbito do Inventário Nacional de Referências Culturais dos Quilombos de Oriximiná, desenvolvido pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), permitem vislumbrar semelhanças significativas nos processos vividos pelo conjunto de comunidades
remanescentes de quilombos em Oriximiná, sugerindo uma base comum às mais diversas representações da escravidão.
8.
O que foi encontrado em arquivos, bibliotecas e paróquias de Óbidos e Oriximiná resume-se a alguns livros de batistério, documentos públicos e registros de
compra e venda de escravos, os quais não chegam a possibilitar esclarecimentos específicos sobre a região.
9.
Halbwachs (1990) chama a atenção para as interdependências entre memórias individuais e memória coletiva, na medida em que elas se retroalimentam no curso
de relações dialéticas, ora complementares ora divergentes, mas sempre implicando referência uma a outra.
10.
Aqui se alude ao Artigo 12º do Decreto nº 4.887, que estabelece os critérios de identificação das comunidades remanescentes de quilombos, designando-os como
“os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
65
A natureza da representação não elimina o fato de que a
ancestralidade negra e o passado escravo estejam frequentemente
associados à percepção (por parte dos próprios sujeitos) de uma
“identidade imperativa”, ou seja, dotada de um status “superior
em relação à maioria dos outros status”, e que “definirá a
constelação permissível de status, ou personalidades sociais,
que um indivíduo com uma dada identidade pode assumir”
(Barth, 2000: 37). De todo modo, a assunção da identidade
quilombola não é automaticamente derivada dessa percepção,
mas se constrói no interior de embates políticos e, igualmente,
nos planos simbólicos da cultura e da representação individual
e coletiva.
Logo, tal qual a nação, o quilombo não deve ser apenas uma
terra ou uma entidade política, “mas algo que produz sentidos
– um sistema de representação cultural” (Hall, 2002: 49) capaz
de unir diferenças. Esse sistema erige-se sobre sentimentos
de pertencimento, participação e lealdade ao grupo, os quais
contribuem decisivamente para a construção simbólica da
comunidade, assim como para sua unificação política. Tratase, no entanto, de um sistema aberto a brechas, vulnerável a
desavenças e cisões no interior do grupo, que se distingue
internamente em múltiplas camadas de identificação. Porém, no
plano da representação coletiva a continuidade e a coesão é que
são valorizadas. Emergem das coletividades mitos fundacionais,
narrativas sobre o passado e a origem comum situada num tempo
ancestral, a ideia de uma essencialidade atemporal que forja
tradições e engendra a identidade quilombola ao longo de uma
trajetória histórica trilhada coletivamente.
OS MOCAMBEIROS E A FORMAÇÃO
DA COMUNIDADE DO ARIRAMBA
O rio Trombetas e seus afluentes Erepecuru e Cuminá foram
destinos privilegiados dos mocambeiros fugidos das senzalas
de Santarém, Óbidos, Alenquer, imediações de Belém e até
de Macapá, no estado do Amapá. Os mocambos formados em
66
áreas de floresta localizadas acima das cachoeiras no alto curso
desses rios, sobretudo no século XIX, deram origem a mais de
30 comunidades autodeterminadas como remanescentes de
quilombos existentes hoje no município de Oriximiná.
Caracterizadas por imensa diversidade sociocultural e
biológica, essas comunidades têm sido investigadas sob
diferentes perspectivas por profissionais de áreas tão diversas
como Antropologia, História, Geografia, Ecologia, Biologia
e Direito, entre outras. Por questões de espaço e foco, ainda
que isto contribuísse para melhor compreensão do contexto
geral das comunidades e do tema proposto, não se fará aqui
uma explanação da rica e complexa trajetória de ocupação dos
quilombos de Oriximiná. Para tanto, há leituras obrigatórias de
autores como Funes (2000), Acevedo e Castro (1993), Andrade
(1995), O’Dwyer (2002) e Salles (2005), de modo que este
trabalho se restringirá a uma breve revisão da ocupação negra no
rio Cuminá e no seu afluente Ariramba.
Muito pouco está sistematizado a respeito da história dos
mocambos do Cuminá, devendo-se as notas disponíveis
principalmente às viagens científicas e missionárias
empreendidas entre fins do século XIX e princípios do
seguinte. Menos ainda se encontra sobre a ocupação do
igarapé Ariramba, fazendo-se necessário coligir referências e
memórias fragmentadas.
Um dos primeiros exploradores do rio Cuminá foi o padre
Nicolino José Rodrigues de Souza, que registrou impressões de
viagem em diários de três expedições realizadas em 1876, 1877
e 1882 com o intuito de alcançar os Campos Gerais e contatar
os povos nativos da região. Sobre os negros, o missionário
referiu-se à sua presença em fazendas de gado no trecho entre
Óbidos e a primeira cachoeira do Cuminá, e revelou que acima
dela eles eram os únicos ocupantes do rio.
Gonçalves Tocantins, em 1893, seguiu os caminhos do padre a
mando do governo do Pará com a missão de “ir aos campos ao sul
do Tumucumaque e informar sua importância econômica”, com
interesse especial em explorar criação de gado nesses campos.
Em sua tarefa contou com ajuda dos “ex-mocambeiros habitantes
do Erepecurú”, já estabelecidos como desbravadores da região.
Um ano depois, Valente de Couto foi mais uma vez subir o rio
Cuminá com o objetivo de abrir uma estrada ligando os campos
a Óbidos, “de modo que se pudesse iniciar a criação de gado”
conforme recomendação de seu predecessor (Sanchez, 1996: 4).
Como os homens de Couto se perderam na mata na volta da
expedição, Avelino Oliveira foi enviado pelo governo paraense
numa expedição de resgate. Em suas anotações ele referiu o
igarapé Ariramba como uma área de castanhais em exploração,
ponto estratégico de sua viagem:
Esta dirigiu-se primeiramente para o rio Ariramba,
subafluente do Erepecurú, por lhe parecer mais
razoável acharem-se na sua bacia Valente de Couto
e a sua comitiva. De facto, teve a fortuna de recolher
uma parte desta, que, reconhecendo o erro de direção
de Valente de Couto, se desligara do itinerário
seguido por elle, rumando intelligentemente para
as zonas dos castanhaes em exploração, onde sabia
encontrar recursos
Oliveira, 1925: 10.
Viajando pelo Cuminá em 1900, O. Coudreau também percorreu
o igarapé Ariramba, em companhia de negros mocambeiros
a quem imputava castigos e a pecha de preguiçosos,
dissimulados, desobedientes e mentirosos. “Não podemos nos
fiar aos ensinamentos desses mocambeiros, eles mentem por
necessidade, por prazer” – ela escreveu, diante dos insucessos
da viagem. O próprio igarapé recebeu comentários pouco
elogiosos da viajante, que, acometida por febres, delírios e
vômitos, lhe dedicou as piores lembranças: “Àqueles que
11.
falarem do Ariramba do Cuminá, eu responderei: ‘o Ariramba!
Um belo nome para um igarapé sujo e feio!’” (Coudreau, 1900:
135-136. Tradução da autora).
Coudreau nada mencionou a respeito da ocupação desse igarapé,
mas observou, referindo-se ao Cuminá, que índios e mocambeiros
até então conviviam na área, mas nem sempre de forma pacífica.
Ao atingir a Ilha do Garafon, por exemplo, registrou tratar-se
do local “onde ocorreu o massacre dos índios Pianocótos11 do
Poanna pelos mocambeiros” (Coudreau, 1900: 56).
Os moradores atuais do Ariramba pressupõem a anterioridade
indígena na área, à qual atribuem a descoberta relativamente
frequente de vestígios cerâmicos em seus quintais e roçados:
“muito caco de barro, orelha de tacho, de panela de barro.
Sempre a gente tirava aquelas caretas”. Entretanto, a presença
de povos ameríndios na área é remetida a tempos ancestrais,
após os quais se segue um fosso na memória coletiva até os
contatos estabelecidos com indígenas já no século XX, conforme
lembranças de Tereza Oliveira.
Eu conheci muito eles. Quando nós trabalhávamos
aqui, eles gostavam muito de vir aqui. Quando Joaquim
trabalhava aí para cima, ele se deu a conhecer, depois
que eles baixaram aí para a cidade. Aí, quando foi um
dia, chegou aquele bando de homem. Aí, aquele monte
de índio, um barraco do tamanho quase desse aí ficava
cheio deles lá, aí depois foram embora. Eles falavam
a língua da gente já. É, mas eles falavam enrolado
também, quando eles estavam todos só num grupo, eles
falavam a língua deles
Entrevista com Tereza Oliveira. Ariramba, 01/12/12.
De todo modo, a convivência dos negros com os indígenas na
área do Cuminá não perduraria além do século XX. De acordo
Segundo Sanchez, os Pianocótos, Rangu-Piquis e Tiriyó (índios karib historicamente constituídos como grupos diversos, mas classificados atualmente como
Tiriyó), assim como os Zo’é, teriam sido os ocupantes do interflúvio Erepecuru/Curuá até o século XIX, mas, a partir de então, os mocambeiros teriam adquirido
domínio econômico sobre esses rios (Sanchez, 1996: 14).
67
carlos penteado
com Joaquim Oliveira, “no Erepecuru eles vinham no barracão,
mas de lá houve um desarruma com um pessoal lá, e eles ficaram
desconfiados”. Ainda segundo ele, naqueles tempos tampouco
havia brancos fixados na área. “Entrar branco para cá? Era só
esses Pinheiros, esses pretos velhos aí”.
O Ariramba foi sempre explorado pelos Pinheiro.
Eles moravam aí fora, mas quando eles queriam pegar
peixe com mais facilidade para o puxirum, era para o
Ariramba que eles iam. E isso há décadas. Sempre eles
iam. Depois, as terras em que eles moravam lá atrás
tinham muita água e iam diminuindo [a terra útil].
Eles iam fazendo o roçado deles e a terra ia diminuindo.
Aí eles passaram para o Ariramba. Mas o Ariramba já
havia sido explorado por eles há muitos anos, nessa forma
de buscar comida para fazer puxirum, buscar pescado
para o final de semana, para trazerem comida para se
alimentarem e faziam sempre isso, todos os irmãos
Entrevista com Daniel de Souza. Santarém, 08/12/12.
Nas memórias dos mais antigos, os primeiros negros a ocupar
o território do Ariramba e arredores foram os Pinheiro, que
estabeleceram moradia nas margens do igarapé Murta (um dos
limites da área de pretensão da comunidade do Ariramba).
O Murta, como chamavam a localidade, ora é lembrado como uma
vila – “a vila dos Pinheirozada”, como diz Joaquim Oliveira –, ora
como uma ilha, como diz uma descendente. Seja como for, o Murta
é sempre representado como um lugar dos “pretos do mocambo”.
Pretos do mocambos: essa identificação pejorativa, atribuída
por sujeitos externos aos mocambos, perdurou muito além da
abolição da escravidão. Em alguma medida, foi incorporada e
positivada pelos próprios mocambeiros, que também a utilizaram
para se autorrepresentar. Maria de Lourdes Pinheiro, que é
conhecida como dona Zênia, nasceu em 1932, quase 50 anos
após a Lei Áurea, e ainda ouviu muito essa expressão.
Não precisava dificuldade para chamarem esse nome
para a gente: preto do mocambo. Era preto, né!?
Tudo negro, bem negro de brilhar a pele. Não eram
desses que têm uma misturazinha, uns clarinhos que
ficam fazendo filho com outros, com outros e outros.
Eles eram só negros, não tinha um caboclo! A gente era
maltratado. Passava a vida no credo
Entrevista com Maria de Lourdes Pinheiro.
Oriximiná, 01/03/13.
De acordo com dona Zênia, os Pinheiro viveram em mocambos
do Erepecuru no século XIX e de lá “foram se espalhando”
até povoarem o Murta: “Eram os Pinheiro: Virgíneo Pinheiro
da Silva, Maria Pinheiro, Maria Pinheiro de Braga, Filomena
Pinheiro, Deunilo Pinheiro... Chegaram lá do Erepecuru!
Chegaram, colocaram uma cerca em tudo no Murta, de lá
foram se espalhando”.
Os processos de migração eram frequentes nas áreas de ocupação
negra. Em função da economia baseada no extrativismo, na
pesca e na agricultura de subsistência, áreas extensas eram
requeridas para a garantia de segurança alimentar das famílias
e o não esgotamento dos recursos naturais, especialmente diante
do crescimento dos mocambos. Ademais, as próprias condições
de reprodução sociocultural dos mocambeiros pareceram estar
atreladas à sua capacidade de organizar-se e gerenciar de forma
integrada um amplo território.
Eu morava lá fora, no Murta, na ilha do Murta.
Quando meu pai casou, nós viemos aí pro lago que
chamavam de Pai Domingos, logo de lá para cá
do Murta. Lá que nós parávamos, mas a morada
era lá mesmo na ilha do Murta. E era uma turma
[de Pinheiro] que morava lá. Não todos, porque na
ilha não deu para acomodar todos! Mas um bocado
morava lá, eles eram oito irmãos, meu velho, minha
velha, minha avó Braga e meu avô Silvestre Pinheiro.
Aí tinha os oito filhos e três filhas, e era assim
Entrevista com Maria de Lourdes Pinheiro.
Oriximiná, 01/03/13.
69
À medida que foram ocorrendo casamentos a dispersão dos
Pinheiro no rio Cuminá e arredores se intensificou, e, nesse
ínterim, alguns descendentes se deslocaram para as margens do
igarapé Ariramba com o intuito de nelas estabeleceram moradia.
Segundo Zênia, o lugar “era deserto” na primeira metade do século
XX. Apesar das atividades produtivas regularmente desenvolvidas
pelos mocambeiros, ainda não havia residências na área.
O marco inicial do processo de ocupação permanente desse
afluente do Cuminá foi a união de Geraldo dos Santos Oliveira
(irmão de Joaquim Oliveira) com Maria de Lourdes da Cruz
Pinheiro (Dona Zênia). Segundo a neta do casal, “eles foram se
misturando! O vovô foi para lá e casou com a vovó. Casou com
ela e foi aí que começou a mistura. Foi a mistura dos Santos
com os Pinheiro”. No entanto, até a década de 1960 as famílias
permaneceram no rio Cuminá, residindo nas imediações do
igarapé das Cobras, que fica cerca de 500 metros acima da boca
do igarapé Ariramba, onde trabalhavam.
Tinha ovos que se estragavam! Mas, agora, a gente
se quiser comer... Nós enchíamos! Ele [Gervásio,
filho de Joaquim] na canoa, eu com a mãe dele, nós
botávamos ele na canoa, todo dia, a gente subia da
Boa Vista. Nós enchíamos, ele enchia uma caixa, nós
enchíamos outra. De ovo! Com a mãe do Gervásio!
Nós não morávamos juntos, mas era pertinho uma da
outra. Juntas, só numa canoa, nós. Mas toda hora, nós
tirávamos era muito! Ela trazia assim uma caixinha
cheia, e eu trazia outra. Daí nós íamos tirar castanha,
nós íamos lá para o Remédio, íamos lá no Boa Vista,
nós ia encostar lá. Nós íamos encostar lá e descíamos
para o castanhal, tirar castanha
Entrevista com Maria de Lourdes Pinheiro.
Oriximiná, 01/03/13).
Com o crescimento da família, Joaquim e Tereza se mudaram
definitivamente para o Ariramba no início da década de 1970,
e ele passou a trabalhar como encarregado de uma fazenda.
70
Sua função era preparar o campo, tratar do gado, plantar roça na
área que era do sócio; em troca, recebia metade das novilhas quando
o gado procriava. Paralelamente, para o sustento da família, extraía
castanha, roçava, pescava e caçava. Nesse tempo, os primeiros
Pinheiro que haviam ocupado a área já estavam mortos.
Os primeiros moradores daqui já tinham morrido.
Moravam ali embaixo. Os primeiros moradores daqui
eram: o Virgíneo Pinheiro; mais em cima de onde o
meu genro estava, lá era um fulano de tal por nome
Antônio Souza. Bom, de lá do Antônio Souza, aqui onde
era o Ernandes, era o Manoel Pinheiro que morava aí
Entrevista com Joaquim Oliveira. Ariramba, 29/11/12.
Na visão de Joaquim e Tereza, foi só depois de sua efetiva
instalação na área que a comunidade pôde se desenvolver,
principalmente a partir da descendência do casal. Ao mesmo
tempo que os Oliveira se espalhavam pelo igarapé Ariramba, as
terras do igarapé Murta foram paulatinamente desmembradas
e passaram a ser tratadas como “propriedades” de certas
famílias – como aconteceu, a propósito, com vastas extensões
de terras públicas em Oriximiná (Acevedo & Castro, 1993).
Os Pinheiro, que na segunda década do século XX chegaram
a ter o “Título Definitivo de Venda de Terras”, logo perderiam
o domínio sobre o Murta.
Registrado no Cartório Pedro Martins do Único Ofício de
Oriximiná, seu título referia-se a terras situadas “à margem
direita do rio Murta, tributário do rio Cuminá, com fundos à
margem esquerda do rio Ariramba”. Atesta o documento que,
“tendo sido aprovada por decisão de 28 de abril de 1926, a
medição e discriminação de um lote de terras devolutas... foi
o mesmo vendido a Pedro, Virgínio, Benedito, Paulino, Manoel,
Francisca e Maria”. O referido lote é descrito como um “polígono
irregular... apropriado à indústria extrativa da castanha”. De fato,
os antigos lembram ricos castanhais que existiam na área, entre
eles o Três Paiol, o Veado e o Bom Prazer, que mais tarde foram
destruídos com o avanço da ocupação da área.
Cansei de subir lá para pegar castanha. Na propriedade
mesmo deles [dos Pinheiro] lá no Murta, o Igarapé do
Murta. Trabalhava muita gente lá minha, muita gente
de fora, muita gente desconhecida, que trabalhou com
nós também. Mas, tirava muita castanha, comboiava aí
para fora, botava tudo no paiol
Entrevista com Duca Pinheiro. Oriximiná, 01/03/13.
A área do Murta foi arrendada para uma rica família local.
Mas, segundo Joaquim Oliveira, os arrendatários não teriam pago
os devidos impostos, e as terras foram levadas a leilão em Belém.
No leilão, foram arrematadas por um membro da mesma família
dos arrendatários, garantindo-lhes a continuidade do domínio
sobre o Murta. Assim, os novos “proprietários” passaram a
controlar a exploração de castanha na área, imputando aos
negros a experiência de novas formas de escravidão relacionadas
ao sistema do aviamento.
A área teve sucessivos “donos” até que, nas últimas décadas do
século XX, transformou-se numa fazenda de gado e plantações.
O mesmo aconteceu nas margens do igarapé Ariramba.
A chegada de pessoas que se intitulavam donas de terras e as
sucessivas vendas de benfeitorias se aceleraram nos anos 1980
e 1990, junto com a abertura de campos de pasto nas margens
do igarapé. Segundo os antigos moradores, não havia lei ou regra
explícita sobre a ocupação das terras: “Simplesmente chegava e:
‘Vou tirar aqui’. Não tinha ninguém! E tiravam!”.
O comércio de terras, escamoteado pela venda de benfeitorias,
abria cada vez mais o Ariramba para brancos, na maioria
vindos de Oriximiná, e para “donos de terras” nas imediações
(Trombetas, Salgado, Água Fria, Iripixi, Cuminá). Esses, em
regra, não estabeleciam residência na localidade e vislumbravam
apenas investimentos em terras para posterior comercialização.
Com a crescente ocupação da comunidade por “gente de fora”
e sem qualquer tipo de laço com os “pretos do mocambo”, os
Oliveira também passaram a adquirir benfeitorias visando
a alojar filhos e netos. Joaquim não mediu esforços e investiu
economias na compra de lotes de terras ao longo do igarapé, dos
quais guarda apenas um recibo.
Quando a gente procurou família, o papai teve toda
uma preocupação porque, na época... algumas pessoas
tentaram vender os lotes para o fazendeiro. Aí o papai,
como ele visionou que ia ficar sem terra, que ia ficar
difícil se a fazenda estendesse para cá, papai andou
comprando os lotes de algumas pessoas que queriam
vender, aí onde colocando nós. Porque, se outras pessoas
comprassem, por exemplo, se esse fazendeiro comprasse,
nós não tínhamos essa ocupação hoje, né!?
Entrevista com Gervásio Oliveira. Ariramba, 30/11/12.
Os processos de segregação espacial e expulsão dos negros
das terras que ocupavam foram particularmente acentuados
nas décadas de 1970 e 1980, em todo o rio Trombetas e em
seus afluentes Erepecuru e Cuminá. A pressão imposta por
grileiros, grandes empresas, projetos desenvolvimentistas e
unidades de conservação ameaçava-lhes não só a continuidade
nos territórios, mas também o modo de vida tradicional, os
princípios, as crenças e as práticas culturais. Nesse contexto,
as comunidades remanescentes dos mocambos reagiram por
meio da organização política.
Apoiadas na Constituição Federal de 1988, 28 comunidades
distribuídas numa área de cerca de 665 mil hectares fundaram,
em 1989, a Associação das Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO).
Bom, a criação da Associação é que antes o sofrimento
dos negros era mais do que existe hoje, né!? Em 1980,
com a criação da Reserva Biológica (do Trombetas),
expulsaram várias famílias do Lago do Jacaré...
E te vira aí! Teve alguns que receberam algumas
indenizaçãozinha que eles deram, e outras, segundo o
pessoal, que não receberam nada. E aí foi que a gente
começou a se organizar. Quando foi em 1988, que o
tema da Campanha da Fraternidade falava sobre
71
o negro, aí foi que a gente teve o conhecimento da
história do negro, como é que vieram para o Brasil,
o sofrimento que eles tinham, tudo isso. A professora
Idaliana [professora em Óbidos], junto com outros
órgãos e a igreja daqui de Oriximiná e mais a prelazia
de Óbidos mobilizaram e organizaram, e saiu o primeiro
Encontro Raízes Negras, que aconteceu no Pacoval.
Quando a gente veio de lá, veio com o compromisso de
organizar o segundo encontro aqui já no Município de
Oriximiná... E foi assim que a gente fez. Nisso tudo,
quando a gente estava organizando, a gente já tinha o
sonho de criar uma associação. Então, quando a gente
foi lá pro Jauari, a gente já foi com aquele pensamento,
se fosse possível criar uma associação para lutar e
defender os negros. Lá no Jauari, lá teve um momento
de reunir as comunidades todinhas e fundar... Quando
foi no dia 25 a gente veio para cá para Oriximiná
para escrever um projeto e escolher uma coordenação
provisória, isso em julho de 1989
Entrevista com Carlos Printes. Oriximiná, 03/12/12.
Com a organização os quilombolas puderam conhecer melhor e
acessar direitos e políticas públicas visando à permanência nos
territórios que ocupavam. Assim, a maioria das comunidades
identificadas com os mocambos em Oriximiná alinhou-se à
entidade, que nasceu com a demanda principal de obter a
demarcação e a titulação das terras.
Porém, algumas comunidades, igualmente identificadas com
os mocambos, hesitaram em relação às propostas da ARQMO
e postergaram durante anos a autodeterminação e a assunção
da luta pela terra coletiva. Tal foi o caso do Ariramba, cujos
moradores aderiram a propostas de titulação “individual” dos
lotes, em grande medida influenciados por agentes externos que
se opunham ao movimento quilombola.
De início, quando a gente estava articulando as
comunidades quilombolas pra titular e tal, eles não
72
se identificavam assim. Eles não quiseram, não
aceitaram, acharam que não era bom, e ficaram
de fora. Eles queriam ser individual. Foi feito um
trabalho com eles, reuniões, tentamos explicar.
Acontece que nesse tempo a Astro foi criada pra
brigarem com nós... Ele falava um bocado de coisa,
que isso não prestava, que a gente estava querendo a
terra que era para vender para fora. Que se fosse uma
área coletiva ninguém ia ser dono; que, se eu tinha
uma coisa, todos iam tomar; enfim, ele falava um
bocado de coisa que amedrontou muita gente. É! Até
as mulheres das pessoas, tudo isso inventavam, que
outro ia chegar lá e ia levar, enfim...
Entrevista com Carlos Printes. Oriximiná, 03/12/12.
A categoria “individual” foi analisada por Sauma a partir de
sua pesquisa no território Erepecuru. De acordo com a autora,
essa categoria era recorrentemente acionada por aqueles que
recusavam a demarcação e titulação de territórios coletivos.
A maioria dos “individuais”, segundo ela, vinha de outros
municípios e até de outros estados, mas, mesmo entre os
“filhos do rio” (autorrepresentação dos quilombolas nativos),
também havia “individuais”, os quais eram considerados como
“quilombolas que negam a sua coletividade” (Sauma, 2009: 3).
Os “individuais” eram justamente o público alvo e apoiador da
Associação dos Produtores e Criadores Rurais da Bacia do Rio
Trombetas (Astro) que, nas palavras de seu fundador, chegou a
ter 2800 sócios oriundos de 43 comunidades de Oriximiná.
A associação representava as populações tradicionais
ribeirinhas, porque existia um problema entre áreas
quilombolas e populações tradicionais ribeirinhas
que também viviam na área... Então, nosso objetivo
era esse, representar os associados judicialmente
e extrajudicialmente no problema fundiário.
Na época houve uma disputa muito grande de terra,
até pela forma com que foi conduzida a demarcação...
Muita gente ficou incrédula e até com medo da situação,
então por isso optaram... Esses eram individual
Entrevista concedida em 03/12/12,
na cidade de Oriximiná.
Os argumentos da Astro encontraram eco e se tornaram
predominantes no Ariramba, onde os moradores, acreditando
que alcançariam os títulos “individuais” de seus terrenos, se
recusaram a participar do processo de demarcação e titulação
do território quilombola contíguo do Erepecuru. A titulação
“individual” parecia-lhes a melhor opção, sobretudo tendo em
vista a liberdade de dispor da terra, sem terem que “continuar
presos”. Ademais, a própria identidade “quilombola”,
remetida ao passado de escravidão, era negada, muito embora
se reconhecessem descendentes de negros que haviam sido
escravizados: “Mas antes a gente não se chamava quilombo.
E até fazia caçoada do pessoal do Jauari” – disse um morador.
O pleito de titulação “individual” nunca foi atendido no
Ariramba, embora no Erepecuru alguns ocupantes tenham
logrado êxito nesse sentido. Entre 2005 e 2006 a Astro foi
desativada e os moradores do Ariramba arrependeram-se
da decisão de não integrar o processo de titulação da terra
coletiva que fora levado a cabo pelos parentes do Erepecuru.
Como as pressões externas sobre as áreas de moradia e uso
da comunidade aumentaram consideravelmente, passaram
a rejeitar a ideia de “ser individual”, enquanto a ideia da
coletividade se tornou mais forte. Assim, adquiriu nova
dimensão a causa quilombola de defesa da terra e dos recursos
a ela associados como um bem coletivo.
Essa área que agora nós estamos lutando, tudo nesse
mundo aqui era para ser coletivo, mas só que naquele
tempo era uma coisa que muitos queriam e muitos não
queriam. Muitos queriam que fosse individual, né? É!
Isso aqui era para ser coletivo, mas não quiseram
Entrevista com Antônio Melo. Ariramba, 29/11/12.
O “tempo dos individuais” findou em 2004 com a criação
da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo
do Ariramba (ACORQA) e com a abertura de processos de
regularização fundiária no Incra e no Iterpa. No entanto, o
território pleiteado já estava profundamente afetado pelas
ocupações abertas por colonos, fazendeiros e invasores. Ademais,
em 2006, a criação da Floresta Estadual do Trombetas em
sobreposição a áreas de moradia e uso agravaria a situação da
comunidade, suscitando novas formas de pensar a experiência
da escravidão, mesmo no século XXI.
REPRESENTAÇÕES DA ESCRAVIDÃO
As experiências da escravidão vividas pelos antepassados dos
remanescentes de quilombos de Oriximiná persistem em gestos,
memórias, pesadelos e histórias passadas de pais para filhos.
Conformam um material simbólico denso para a elaboração de
representações de um passado comum, as quais reforçam o sentimento
de pertença étnica e alimentam a continuidade das comunidades.
O meu pai contava que minha avó dizia que eles vieram
do Curuá de Alenquer, eles vieram corrido do tempo da
escravidão. Aí eles passaram direto para a cachoeira,
o pai e a mãe da minha mãe avó, tudo se esconderam
pra lá. Ainda vi minha avó contar que eles iam de lá
dessa paragem, do [mocambo] Campiche, eles iam
para Óbidos comprar. Eles iam de canoa e, quando
escutavam zoada de motor, eles se escondiam. Andavam
mais de noite do que de dia
Entrevista com Antônia Santos. Jamari, 15/07/12.
Confundem-se, nas memórias individuais e nas histórias narradas,
marcos temporais que alternam referências ao passado mais
distante, em que “os pretos velhos vinham corridos da escravidão”,
até o presente de luta pela terra e por outros direitos, passando pelos
períodos em que os castanhais eram comandados por supostos donos.
As narrativas dos fatos também são marcadas por experiências
mágicas da sobrevivência e da reprodução dos negros.
73
Olha, a vovó contava muita coisa. Ela contava para nós
que eles andaram, eles andaram corridos um tempo.
Aí chegaram, era ela, o marido e duas criancinhas.
Quando eles entraram num buraco, chegaram atrás.
Para matar. Para matar. Aí, mandado por Deus, fechou
o buraco do pau grande, da castanheira, fechou de teia
de aranha. Aí um disse: “Mas aqui tem gente”. E o
outro disse: “Não, não tem gente aqui, rapaz. Aqui não
tem gente, não”. E eles lá dentro escondidos. Foram
embora; eles ficaram. No outro dia, eles saíram. Faziam
fogo, cavavam buraco na terra, tampavam. Botavam
assim para ferver a panela lá, pra não fumaçar longe.
Era um tal do dono que vinha. Ele chegava e matava
mesmo. Chegava numa maloca aí no Erepecuru, ele
matava tudinho, deixava só um índio. Aí: “Vamos
embora, onde é a tua maloca?”. Quando chegava
perto: “É ali”. Aí ele matava e ia e matava o resto.
Matava negro também. Era um perseguidor, matava,
matava e matava mesmo. Ainda estava na escravidão
Entrevista com Antônio Melo. Ariramba, 29/11/12.
O terror imputado pela brutalidade das experiências e
memórias do passado escravo é tão grande, que se reproduz
nas faces e nos membros dos sujeitos sempre que contam
as histórias dos “pretos velhos”, mesmo sem tê-las vivido
pessoalmente. Como afirma Pollak, a memória coletiva
incorpora os acontecimentos “vividos por tabela”, ou seja, não
pelo indivíduo portador da memória, mas pelo grupo ou pela
coletividade a que ele sente e julga pertencer.
São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre
participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho
relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela
consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe,
a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar
todos os eventos que não se situam dentro do espaçotempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente
possível que, por meio da socialização política, ou da
74
socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção
ou de identificação com determinado passado, tão forte
que podemos falar numa memória quase que herdada.
Pollak, 1992: 201.
Os narradores de hoje recusam a possibilidade da experiência
objetiva do sofrimento passado pelos antigos. Recusam não só
as barbaridades dos castigos, mas também a condição subumana
à qual os escravos eram reduzidos, “tipo animal”. Porém, no
plano subjetivo da experiência, atravessado pela memória dos
fatos “vividos por tabela”, os entrevistados presentificam a
barbárie na ação de narrar: encarquilham as mãos, em formato
de concha, quando falam do hábito de os senhores porem óleo
e acenderem pavios na mão dos negros, para iluminarem seus
jantares. “Eu ainda conheci uma senhora que tinha as mãos
assim”, contou um senhor de meia idade, de olhos arregalados,
enquanto retorcia as mãos para mostrar a degeneração provocada
pelo calor das chamas com que a idosa alumiava a mesa de jantar.
Eu ouvia, eu ouvia as pessoas, os mais velhos no caso,
tio da gente, avô, contavam histórias, barbaridades que
a gente achava que a pessoa não ia aguentar. Se fosse
com a gente, mesmo a gente criança, se fosse agora
a gente não ia suportar, não ia aceitar, ia se revoltar,
não ia deixar acontecer aquilo. Por exemplo, a pessoa
colocava óleo na mão [dos escravos] e acendia o fogo
para ficar alumiando para as pessoas, esse tipo de coisa.
Tinha coisas terríveis assim, a gente ficava pensando
assim se realmente isso acontecia
Entrevista com Domingos Xavier. Oriximiná, 04/12/12.
A crueldade desse hábito, e de outros que caracterizam o
tratamento dado aos negros escravizados, é resumida na
expressão “tempo das candeias”, frequentemente usada pelos
remanescentes de quilombos de Oriximiná. Com efeito, essa é
uma representação eloquente do período da escravidão, cujos
símbolos são lembrados para “reificar a revolta e o quilombo”
(Acevedo & Castro, 1993: 2).
carlos penteado
Segundo Farias Júnior, o “tempo das candeias” opõe-se
simbolicamente ao momento histórico mais recente de organização
e politização dos “filhos do rio” em defesa de seus direitos:
“o primeiro representa a opressão do sistema escravocrata,
o segundo é a ruptura com esse sistema” (Farias Jr., 2008: 7).
Desenvolvendo seu argumento, o autor reproduz depoimento de
Como “o império prometia alforria para os que se apresentassem
Era, na verdade, uma história muito engraçada.
O pega-pega, para nós, era o capitão do mato que
vinha de volta para buscar a gente! E quando a
mamãe queria espantar a gente de alguma coisa...
[a gente] estava tomando banho no rio e não queria
sair para terra, aí a mamãe dizia: ‘Lá vem o pegapega’! Aí a gente corria e se escondia no mato. E isso
estava muito presente na minha adolescência, de se
esconder no mato. Qualquer coisa que ouvia, o barco
vindo, que a gente não sabia o que era, a gente ia
se esconder. Essa história, ela está presente e não dá
para esquecer. Que eu tenho que repassar isso para
o meu filho, do que eu vivi e meus irmãos viveram.
Essa história do pega-pega que era exatamente o
capitão do mato: “Vamos buscar esses pretos de volta”.
E a mamãe ensina isso para a gente, para a gente se
esconder, e a gente se escondia mesmo. Isso na década
de 60! Na verdade, isso acontecia muito. A escravidão
ainda não tinha nem 100 anos [de terminada] e o
povo ainda continuava com medo.
para a guerra, fazendo vista grossa para os fugidos” (Toral, 1995:
Entrevista com Daniel de Souza. Santarém, 08/12/12.
uma quilombola do Rio Trombetas que ilustra bem essa oposição:
“tem pessoa que é revoltada, tem pessoa desses ribeirinho que
num leva mais candeia na mão” (Idem, Ib.).
O “tempo do pega-pega” é outra representação usual do período
da escravidão. Ao que tudo indica, além de aludir às expedições
de recaptura dos mocambeiros, está relacionado ao recrutamento
forçado de escravos para servir ao Brasil na Guerra do Paraguai
(1864-1870), tendo em vista a insuficiência de militares efetivos.
Como o Exército brasileiro carecesse de combatentes, foram
criados em 1865 os Corpos de Voluntários da Pátria.
Segundo Toral (1995), as oligarquias não mandavam seus filhos
para os Corpos de Voluntários, já que contribuíam para os
esforços de guerra doando recursos, equipamentos e escravos.
Famílias de menos posses alistavam sobrinhos, agregados,
parentes mais jovens, e algumas também recorriam à compra
de escravos para serem seus substitutos nas fileiras de guerra.
O mesmo faziam sociedades patrióticas, conventos e o governo.
292), um contingente de escravos foi recrutado para os campos
de batalha.12
Mas, para além da guerra, livres de amarras históricas, as
representações do “tempo do pega-pega” escorregam para um
passado bem mais recente, estendendo-se por quase cem anos
após a libertação de 1888. Na verdade, a escravidão não se
12.
76
suspende com o ato formal; ao contrário, contamina múltiplas
dimensões da vida dos negros libertos, condicionando objetiva
e subjetivamente sua experiência de liberdade. Relembrando a
infância vivida na década de 1960, Daniel Souza, do Erepecuru,
resume a visão local do “tempo do pega-pega”.
Na prática, mesmo após a libertação, não era prudente confiar em
estranhos e principalmente em brancos, porque se acreditava que
eles vinham para capturar os negros e escravizá-los novamente.
Aproximações deviam ser evitadas, à exceção daquelas com
sujeitos com que de praxe os negros comercializavam produtos
dos mocambos.
O efetivo contingente de negros escravos e libertos que participaram da guerra é tema de debate na historiografia, sofrendo variações na casa do milhar, de acordo
com diferentes historiadores. Como afirma Félix Júnior, a esse respeito “a historiografia da guerra é plural” (2011: 398).
A mamãe ainda foi desse tempo... Se ela te via, mas
quando13 que ela vinha aqui!? Ela corria. Ela corria
para o mato, ela pegava o terçadinho e a tabaqueira...
e caminho da roça! E, agora, chamasse, mas quem!?
Se tinha dois, três filhos, tudo era do mesmo jeito.
Já tinham medo, porque faziam medo para gente
também. Ficava cobrindo os filhos, eles corriam
também, por causa da pega-pega. Da escravidão e
da revolta, né?! Não teve uma revolta que entrou aí
pegando gente?! É isso que chamam de pega-pega
Entrevista com Maria da Cruz Pinheiro.
Oriximiná, 02/12/12.
pau dentro de um buraco grande, fizeram o fogo lá
dentro, fizeram a comida. Nós comemos, terminamos
de comer e ficamos lá. Aí a mãe: “Tomara que não
chova”. Aí, quando foi de manhã cedo, mamãe jogou
água naquele fogo, apagou tudinho. Quando foi de
manhã, aí lá vem esse motor atravessando lá para
casa. Bom, agora sim. Mamãe: “Lá vem o motor, lá
vem o motor!”. E nós, para o mato! E para lá: “tii”,
“tii”... Não demora, ela assobiou. E ela assobiava.
O assobio que ela assobiava para um, aquele conhecia;
quando fosse para outro, aquele dizia: “Olha, mamãe
está te chamando”
O cuidado que os descendentes de escravos tomavam para
Entrevista com Antônio Melo. Ariramba, 29/11/12.
proteger a família do “pega-pega” envolveu a criação de códigos
para se comunicarem a salvo de eventuais perseguidores, assim
como nos mocambos do passado havia sentinelas com olfato
e audição aguçados para antecipar possíveis emboscadas,
percebendo antes dos demais o cheiro de fumaça e o barulho
de embarcações que se aproximassem. Antônio Melo, nascido
em 1946, cresceu no Erepecuru fugindo de estranhos,
principalmente brancos.
Medo, silêncio e desconfiança, traduzidos em forte rejeição a
relações com “gente de fora” marcaram as experiências dos
remanescentes no século XX. Aprenderam-no com o “pessoal
da antiguidade”, como muitas vezes são referidos aqueles que
ainda conviveram com ex-escravos. Muitas pessoas idosas,
até hoje, temem contatos e evitam ficar de frente ou dirigir
o olhar para um interlocutor branco. “Ela não se senta de
frente para você, ela vai virando assim, de costas, e conversa,
mas não olha para você”, disse um quilombola de Cachoeira
Porteira a respeito da avó.
Tinha um branco aí para baixo, era fiscal dos menores,
das crianças. Ele veio, chegou lá no outro lado da
praia. Papai não estava, só estávamos eu, mamãe, nós,
a família da mamãe e a família da tia Raimunda.
Aí nos se soquemo para o mato tudinho. Fomos embora
para o mato. Mamãe dizia: “Meus filhos, não choram,
não choram, não choram, não choram”. E esse motor
[embarcação] lá do outro lado. Aí tia Raimunda:
“Como é que a gente vai passar aqui?”. Circulamos o
dia todo, aí a mamãe disse: “Olha, tu fazes o fogo lá”.
Mas como é que vai fazer o fogo, que vai fumaçar?
“Traz para cá, traz para cá.” Aí mamãe agarrava um
13.
Tinha muita gente aí que era complicada, o pessoal da
antiguidade... eles eram um tipo de gente que eles eram
tudo assim, meio selvagem. Se sentasse uma pessoa numa
paragem, todo mundo ficava ali refugiado. Pra eles
se chegarem, era preciso muita coisa. Uma criança?
Mas quando?! Ele não se chegava. Era tudo refugiado,
tudo por ali, escondido. Eles não gostavam de branco,
não se davam com branco... Mas não se davam, não
se davam mesmo! Eles tinham, não sei o que diacho
que eles tinham de receio com branco. Se estávamos em
Expressão regional que pode ser traduzida, no contexto, como: Imagine! Nunca!
77
casa, mamãe chegava assim: “Olha, Seu Fulano vai
chegar em casa, cês tão ouvindo?”. Pronto, aí nós
íamos tudo para o mato
Entrevista com Antônio Melo. Ariramba, 29/11/12.
O comportamento até pode parecer exagerado na
contemporaneidade, mas as experiências vividas nas primeiras
décadas de liberdade não permitiram às comunidades locais
esquecer o passado de escravidão. Se as capturas não eram
mais uma ameaça real, as formas de expressão do preconceito
racial eram várias, machucavam física e emocionalmente, e
foram eficazes para mostrar aos mais jovens que as prevenções
dos antigos ainda se justificavam: “ainda era meio perigoso, não
como era com eles [os antepassados], mas a gente andava com
cuidado”. A situação demoraria muito a se alterar.
Embora a aproximação entre mocambeiros e outros grupos étnicos,
e mesmo com grupos urbanos, tenha se iniciado em fins do século
XIX, intensificando-se consideravelmente no seguinte, esse
movimento deve ser compreendido fundamentalmente a partir
das relações de dependência que os mocambeiros estabeleceram
com comerciantes locais. Mais que a superação de preconceitos
raciais ou o esmaecimento de fronteiras étnicas, essas relações
suscitariam novas formas de percepção da escravidão.
Olhe, quando nós paramos de nos esconder, foi quando
já entrou o garimpeiro, já entrou regatão no rio,
comprando castanha, essas coisas. Aí o negócio foi, foi
abrindo. Foi o tempo que veio uma prima nossa daí de
Manaus, aí ela abriu uma escola lá no Puraqué, para
a gente estudar. Aí já foi favorecendo mais. Mas, logo
na idade de quatro anos, cinco anos, o negócio não era
fácil não. Não era fácil não. Era duro
Entrevista com Antônio Melo. Ariramba, 29/11/12.
14.
78
Segundo Acevedo e Castro, inicialmente essas relações
basearam-se no monopólio da compra e do transporte de
gêneros coletados ou produzidos pelos negros, mas não incidia
diretamente na propriedade das terras, que permaneciam como
devolutas. O modelo econômico que garantia esse monopólio
operava por meio do aviamento14 e do endividamento dos
extrativistas – um modelo tão comum e central na economia
regional que Miyazaki e Ono registraram não haver “nenhuma
produção no Amazonas que não tenha alguma relação com o
sistema de aviamento” (1958: 269). Para Wagley (1977: 108),
tratou-se mesmo de um padrão de “relações tradicionais entre
comerciantes e fregueses, constituindo um forte elo social e
econômico” baseado simultaneamente em dependência material
e num senso de lealdade entre as partes.
O grande enigma que a maioria dos autores
encontrava no aviamento era a formação de uma
moralidade especial, aquela que liga o patrão ao
freguês mediante poderosos laços de fidelidade e
deveres morais mútuos. A fidelidade comercial do
freguês é um termo de uma relação cujo outro termo
são as obrigações morais que os patrões têm para com
seus clientes em casos de dificuldade. A relação entre
o comerciante e o freguês é uma relação social central
na vida do interior amazônico, pois não só possibilita
a existência de produção mercantil mas constitui
relação de poder sujeita a uma moralidade que dispõe
prescrições morais de ajuda aos fregueses em casos
de perigo (doenças, carestias etc.) em troca de uma
relação comercial monopolista
Aramburu, 1994: 2.
O aviamento, com o consequente endividamento, passou a ser
percebido pelos negros como uma nova forma de escravidão
O aviamento, definido por Aramburu (1994) como um sistema de adiantamento de mercadorias a crédito, se desenvolveu na Amazônia desde a época colonial e
se consolidou no chamado ciclo da borracha, tornando-se modelo estruturante das relações sociais, e não só de trabalho e comércio na região.
quando, no decorrer do século XX, submeteu-os a um circuito
de exploração desenfreada do ambiente e do trabalho humano,
associada à expropriação das terras de onde tradicionalmente
tiravam o sustento. As áreas ricas em castanhais – sendo a
castanha o principal produto econômico dos remanescentes
dos mocambos – foram especialmente visadas pelos novos
proprietários brancos, os quais, segundo os quilombolas, não
respeitavam necessariamente os limites dos terrenos que
adquiriam e, frequentemente, exploravam muito mais áreas e
recursos do que os títulos que lhes concediam direito sobre as
terras previam.
Era assim que eles vinham fazendo. Então o governo
despachava aquele pedaço de terra para eles, e eles
tinham aquela área lá e mandavam o engenheiro
desmatar que tudo era deles. Aí o caboclo ia lá e tirava
um bocado de castanha, pegavam o caboclo e davam
uma pisa. E já metia na cadeia. Além de tomarem a
castanha, ainda metiam na cadeia! Era, acontecia
isso, eles vinham fazendo a escravidão nessa época
com a gente aí. Eram só brancos. Nessa época eles
eram os grandes de Oriximiná. Eles viviam na cidade.
Eles eram prefeitos, eram vereadores. Eram eles que
comandavam com isso
Entrevista com Joaquim Oliveira. Ariramba, 29/11/12.
O comerciante, metamorfoseado “em dono da terra e dos
castanhais”, garantiu, por meio de mecanismos de arrendamento
e de compra e venda de terras públicas, a privatização dos
castanhais (Acevedo & Castro, 1993: 109). Em Oriximiná grupos
da elite local enriqueceram com a concessão de autorizações
para realização de trabalho extrativista nas terras (sobretudo
de castanhais) privatizadas e mantidas sob controle de seus
emissários, conhecidos popularmente como encarregados. Por
fim, “os coronéis de barranco podiam assegurar esse sistema de
exploração visível aos olhos dos castanheiros porque proibiram
qualquer comercialização. O paiol do patrão era a obrigação do
castanheiro”, concluem Acevedo e Castro (1993: 111).
Hum, os patrões eram perigosos. O patrão enchia
o barracão, comprava uma coisa de mercadoria.
Se quisesse, eles levavam tudinho. Tudo. O seu Manoel
levava roupa, eles levavam pano, a gente comprava pano
aqui e fazia aquelas roupas para ir para o castanhal.
Tudo eles levavam! O freguês ia fazer compra para ir
para o castanhal, era tudo no paiol que eles compravam,
naquele barracão. Quando terminava a última viagem
da castanha, o que tomava conta da castanha (porque
era só burro, não tinha ninguém sabido para tomar de
conta, era tudo analfabeto), chegavam lá os patrões,
ajuntavam todinhos, os bestas pagavam toda a despesa
Entrevista com Maria de Lourdes Pinheiro.
Oriximiná, 01/03/13.
Quando era época da coleta, as embarcações dos patrões
atracavam na localidade e se abasteciam fartamente dos
frutos do trabalho dos negros, deixando-lhes em troca itens
manufaturados, sal, cachaça, todos muito bem pagos pela safra
de castanha entregue aos patrões por baixíssimos preços.
E aí os castanheiros entregavam tudo em castanha,
era assim que eles pagavam a mercadoria que o
patrão aviava. Eles entregavam em mercadoria, as
mercadorias tudo. Recebiam alguns que tiravam saldo,
mas era aquela mixaria, que, olhe, castanha era dois
reais, três. Senão entregava a castanha toda e não
ficava com saldo nenhum. Com nadinha, ficavam só
com as roupas velhas. O patrão levava pinga para
vender? Mas se levavam! Dinheiro eles não levavam
para pagar, mas pinga! Nessa uma eles iam. Os velhos
tomavam a cachaça para ir trabalhar, eles tomavam no
copo para ir para o mato, depois do café, para entrar
na mata, tomavam outra para tomar banho quando
chegavam. Eles não bebiam assim para se embriagar.
A vida do pobre era difícil
Entrevista com Maria de Lourdes Pinheiro.
Oriximiná, 01/03/13.
79
carlos penteado
O endividamento e a dependência eram constantes, já que o
fruto do trabalho dos extrativistas raramente saldava os débitos
assumidos com a aquisição de mercadorias cuja disponibilidade
e preço os patrões também controlavam. Conforme ressaltam
Lima e Pozzobon (2005) em relação ao aviamento, por meio
dessa forma de “escambo monetizado, era possível imobilizar a
força de trabalho através de uma escravidão pela dívida, pois
eram os patrões quem manipulavam as contas de seus fregueses”
(2005: 56). O sistema obrigava os castanheiros a trabalhar a
cada ano na esperança de quitar os débitos e “tirar um saldo”, e
foi efetivamente percebido pelos negros como uma continuação
da escravidão.
Hoje, a gente já com entendimento, a gente já percebe
hoje em dia o trabalho escravo. Até passar por aquilo,
a gente não sabia que era escravidão, por exemplo, a
pessoa trabalhar para outra pessoa, viver numa situação
dentro do mato, uma situação praticamente para pagar
o alimento, e a pessoa sair dali sem nada. A pessoa
trabalhar por tanto tempo e chegar no fim não tirar
saldo, então hoje a gente percebe que aquela situação
era de escravidão
Entrevista com Domingos Xavier. Ariramba, 29/11/12.
O duplo movimento de expropriação das terras tradicionalmente
usadas pelos negros e de concentração das mesmas nas
mãos de supostos donos caracterizou “o tempo dos patrões”.
No entendimento dos quilombolas, os mecanismos que
indevidamente reconheceram a patrões, fazendeiros e membros
da elite local a titularidade sobre áreas secularmente ocupadas
e exploradas pelos negros, tornando-os “proprietários” de terras
públicas em Oriximiná, foi a forma de escravização do século XX.
Do controle dos castanhais pelos patrões à revenda de lotes
e as sucessivas retransmissões de terras, inclusive áreas de
florestas, o passo foi curto. A passagem para o século XXI trouxe
a intensificação da ocupação desordenada por sucessivas levas
de migrantes, fazendeiros, madeireiros, mineradores e agravou
a expropriação das terras que os antepassados mocambeiros
cuidaram, trabalharam e lhes deixaram.
Olha, desse lado daqui, era dono daqui, outro dali.
Mas naquele tempo era só nome, só quase nome! Eram
donos, mas não tinha um documento certo, nada!
Olha, hoje em dia, não tem mais nada de dono, é
tudo do povo, o povo é que estão tomando conta de
tudo. Olha o Salgado, agora está cheio de gente,
tem três comunidades, tudo está cheio de gente.
O Repartimento, o Capintuba... Tudo isso tomaram
de conta dessas terras, mas, olha, foram se acabando,
os outros vão entrando, vão levando, vão tomando de
conta e pronto, e assim vai embora tudo. Lá no Lago
do Rapé, hoje em dia já me disseram que é só campo,
acabaram aquele castanhal em campo. Na Queimada
é campo tudo aquele quadro lá
Entrevista com Duca Pinheiro. Oriximiná, 01/03/13.
Ao discorrer sobre as transformações ocorridas nas áreas
tradicionalmente exploradas, os remanescentes de quilombos
do Ariramba e do Cuminá relembram pessoas em sucessivas
gerações e lugares. Suas referências espaciais integram
mapas mentalizados por eles a partir dos caminhos trilhados
e compartilhados, pouco acessíveis para alguém de fora do
grupo. As fronteiras “de cima”, “de baixo”, das “bandas” de
lá e de cá são dificilmente compreendidas quando não se tem a
experiência vivida.
As memórias desses sujeitos serpenteiam entre pontos
geográficos e lugares simbolicamente povoados. A lembrança
de um puxa a do outro, num exercício de concatenação de
lembranças e sentimentos que afloram em reencontros com
pessoas, tempos e lugares distantes, que nem sempre são
agradáveis. A escravidão é frequentemente lembrada, em suas
sucessivas representações: “tempo das candeias”, “tempo do
pega-pega”, “tempo dos patrões”.
81
Nestas primeiras décadas do século XXI os remanescentes de
quilombos protagonizam um tempo de luta por direitos territoriais,
socioambientais, agrários, culturais, intelectuais. As relações
com a sociedade abrangente mudaram, mas o sentimento de
desconfiança em relação aos “de fora”, que foi estratégico para a
permanência dos mocambos, não acabou. Como diz Daniel Souza,
“hoje, se você vê no Trombetas um motor de fora, no Erepecuru,
o pessoal fica de olho. Embora os quilombos têm razão, eles são
sempre muito desconfiados das coisas, de alguém que chega.
‘De onde veio, quem é?’”.
Os motivos para a desconfiança não são poucos, eles creem.
As fronteiras étnicas e as relações interétnicas mudaram, e a
ameaça não vem necessariamente dos brancos, mas não deixa
de ter conteúdos racistas e representar formas contemporâneas
de escravidão. Para os remanescentes de quilombo do Ariramba
está personificada no Estado, em Unidades de Conservação,
em projetos dos minerários, no esgotamento das florestas e dos
recursos naturais, e, acima de tudo, na morosidade dos processos
de regularização fundiária. Numa ocasião, quase dez anos após
o início da luta pela regularização do território, um quilombola
declarou durante uma reunião:
Isso é um destino de ser negro? Os nossos antepassados já
vieram para essas bandas fugidos. Durante muito tempo
a gente se acostumava a fugir, desconfiado de tudo.
Quando a gente começou a achar que estava no nosso
lugar, para viver em paz, criar família, agora a gente tem
que fugir de novo, ficar se escondendo, calado?
A regularização da terra quilombola é vista como condição para
a gestão autônoma “[d]as formas de ocupação e uso da terra
e dos recursos naturais; [d]as culturas e valores vinculados a
essa terra... [d]os recursos naturais existentes... e [do] uso,
administração e conservação dos recursos mencionados”
(Shiraishi Neto, 2007: 47). É para eles, portanto, condição para
a superação da escravidão, em suas diferentes faces e roupagens,
e para o exercício da liberdade constantemente restringida.
82
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83
luisa g. girardi
RELAÇÕES
EM MOVIMENTO:
INIMIZADE
E PARENTESCO
ENTRE OS
KATXUYANA
E OS MEKORO
(QUILOMBOLAS)
Luisa G. Girardi
Y supieron mirar a los otros que los miran mirar.
Y así aprendieron los diferentes a mirar y a mirarse.
Viejo Antonio.
Este artigo dedica-se às relações afroindígenas1 no vale do
Trombetas, curso d’água situado na porção paraense do Planalto
Guianense, na Amazônia Setentrional. Tomando a perspectiva
ameríndia como ponto de partida, seu principal propósito é
apresentar um panorama das relações com os mekoro, os “negros”
que, no contexto histórico de resistência às tentativas de controle
e domínio coloniais, constituíram sua singularidade na paisagem
trombetana. Com atenção às práticas de sentido dos índios que
se reconhecem mutuamente como pïrehno, “pessoas humanas”
– e identificam-se, no contexto interétnico, como a “gente”
(-yana) do “Cachorro” (Katxuru), doravante “Katxuyana” –,
este artigo procura apresentar as relações afroindígenas em suas
distintas modalidades, descrevendo-as segundo sua alternância
ou ambivalência. Considerados “inimigos” (waha), “parceiros”
(pawana) ou “parentes” (pïrehrï) nas exegeses e experiências
katxuyana, os mekoro parecem situar-se num entrelugar entre a
afinidade e a consanguinidade, a convivialidade e a predação.
NA PAISAGEM TROMBETANA
“Katxuyana” é o etnônimo que se consolidou como identificação
dos ameríndios que se reconhecem mutuamente como pïrehno,
“pessoas humanas”. Usualmente traduzido como “gente” ou
1.
2.
3.
4.
86
“povo” (-yana) do “Cachorro” (Katxuru), o substantivo remete
às relações de afinidade e parentesco estabelecidas na região do
curso d’água que o constitui, situada na área central da bacia
do Trombetas (Kahu), no noroeste do estado do Pará. Embora
utilizada como autodenominação no contexto interétnico, a
alcunha, genérica e inclusiva, não demarca uma entidade
cultural ou sociológica autônoma e isolada, à imagem de um
sujeito jurídico com contornos delimitados2. Descrita pela
metáfora nativa da “mistura” (toskema), a condição katxuyana
é marcada por uma “alteridade constituinte” (Erikson, 1986),
ilustrada pelas designações variáveis – Kahyana, “gente”
do Kahu (Trombetas), Txuruwayana, “povo” do Txuruwahu
(Cachorrinho), Yaskuryana, “gente” do Yaskuri (Jascuri) – com
que pïrehno localizam suas distinções em termos de nascimento,
filiação ou (co)residência3.
“Katxuyana” é também o nome dado à pïrehno mïtanï, “fala”
ou “palavra” pïrehno, que com as línguas hixkaryana e waiwai,
conforma o ramo Parukoto da família Caribe (Gildea, 2012).
Junto aos Hixkaryana e os Waiwai, aliás, os Katxuyana participam
de um abrangente circuito de comunicações, circulações e
trânsitos que delineia um sistema relacional compreensivo, do
qual também tomam parte aqueles que se identificam, entre
outros, pelos etnônimos Aparai, Tiriyó e Wayana. Articulado e
sobreposto a outras redes de trocas que remontam ao período
pré-colombiano,4 esse circuito envolve intercâmbios cerimoniais,
econômicos, guerreiros e matrimoniais que se prolongam por
A expressão é tomada de empréstimo de Márcio Goldman (2014). Privilegiando os dois vértices minoritários do “mito das três raças”, fundador da ideologia da
“mestiçagem”, o autor convida-nos a libertar a relação afroindígena da dominação e do ofuscamento decorrentes de sua submissão ao pensamento europeu, que
concebe o Estado – e, com ele, a construção de uma identidade nacional unificada, necessariamente branqueada – como seu principal problema. Este artigo
considera o desafio lançado por Goldman, esforçando-se para demonstrar como as relações afroindígenas trombetanas, tecidas no coração da invasão colonial, em
muito extrapolaram as tentativas de controle e domínio euro-americanas.
Como a etnologia amazônica tem insistentemente ressaltado, as alcunhas indígenas que se consagraram como etnônimos usualmente não correspondem às
autodesignações ameríndias – que, no mais das vezes, expressam-se por expressões que demarcam a posição de sujeito, e que poderiam ser traduzidas,
simplesmente, como “gente”, “humanos” ou “pessoas” (Viveiros de Castro, 2002b).
Para informações detalhadas a propósito dos –yana, ver os artigos de Denise Fajardo Grupioni e Ruben Caixeta de Queiroz, neste volume.
Essas redes de trocas, juntas, conformam um circuito multicentrado que abarca todo o Planalto Guianense. Essas redes, de fronteiras fluidas e tênues, articulam-se
e sobrepõem-se, envolvendo intercâmbios cerimoniais, econômicos, guerreiros e matrimoniais relacionados à dinâmica da concentração e dispersão da região em
questão (Dreyfus, 1993; Barbosa, 2005).
toda a extensão da paisagem trombetana, pela qual circulam
adornos, agressões, canoas, cantos, contas, cônjuges, cativos,
espingardas, mercadorias, nomes, padrões éticos e estéticos,
xerimbabos, utensílios, saberes e técnicas imemorialmente.
Os karaiwa, “brasileiros” ou “não indígenas”, compõem esse
circuito comunicativo, transformado em extensão e sentido por
sua crescente presença5. Sua existência, entretanto, é conhecida
desde o “tempo dos antigos” (panano wetxit’pïrï), em que os
demiurgos talharam a humanidade em madeiras variadas e,
então, deixaram à história a tarefa de visibilizar suas diferenças.
Os processos históricos relacionados à sua chegada na paisagem
trombetana, amplamente documentados pela literatura (Frikel,
1970a), parecem não importar às exegeses indígenas: a memória
nativa dedica-se a recontar a cadência, intensidade e qualidade
dos reencontros que, seguindo o movimento de expansão
e retração da invasão colonial, a princípio aconteceram de
maneira intermitente e violenta. Conta-se que os agressivos
karaiwa capturaram, escravizaram e exterminaram os “antigos”
(panano), determinando seu desaparecimento ou deslocamento
para as cabeceiras e interflúvios que ofereceram proteção e
refúgio às investidas não indígenas6.
Os encontros amistosos ou pacíficos com os karaiwa ocorreram
somente com os mekoro7, os “negros”, descendentes de
5.
6.
7.
ex-escravos fugidos de cidades e fazendas do baixo Amazonas
que, no contexto histórico de resistência às tentativas de
controle e domínio coloniais, constituíram sua singularidade
na paisagem trombetana (Acevedo & Castro, 1993; Andrade,
1995; Funes, 1995; Sauma, 2013, 2014). Não tenho
propriedade para detalhar a maneira como esses mekoro
fizeram-se os contemporâneos “remanescentes quilombolas” ou,
simplesmente, “Filhos do Erepecuru” ou “Filhos do Trombetas”
(Sauma, 2013), cabendo somente ressaltar que experimentaram
relações variantes e reversíveis com os Katxuyana.
Como tampouco tenho intenção de realizar uma releitura da
documentação historiográfica disponível neste momento, pareceme suficiente remontá-las ao período que procedeu à Revolta
dos Cabanos (1835-1840), em que se constituíram os famosos
“mocambos” ou “quilombos” trombetanos (Acevedo & Castro,
1993; Andrade, 1995; Funes, 1995). Com efeito, os primeiros
registros do etnônimo “Katxuyana” – grafado como “Cachuana”,
“Cachuianã”, “Cashuena” e “Caxorena” – mencionam,
justamente, as relações com os “mocambeiros” ou “quilombolas”,
que informavam os viajantes sobre esses índios então tidos como
“arredios” ou “bravios” (Souza, 1873; Brown e Lidstone, 1873;
Rodrigues, 1875; Derby, 1897-1898; O. Coudreau, 1900).
Relatos historiográficos e nativos sugerem que a frequência dos
vínculos regularizou-se na primeira metade do século passado,
Os karaiwa alteraram esses circuitos comunicativos, integrando-os, redirecionando-os e, por vezes, suspendendo-os. Como ressalta Barbosa (2005: 60), “ao que
parece as redes de relações contemporâneas têm uma amplitude bem menor do que aquelas descritas no passado, articulando-se de modo mais compartimentado
e localizado, em áreas como a Grande Savana, a região dos rios Uaçá e Oiapoque, o litoral das Guianas e a Serra do Tumucumaque”. É importante ressaltar,
entretanto, que os circuitos comunicativos contemporâneos não configuram-se como resquícios daqueles mencionados pelos primeiros viajantes. Os circuitos
comunicativos contemporâneos mantêm operante a memória relacional, incorporando particularidades relacionadas à interferência de políticas assistenciais, bem
como o “encapsulamento” das populações em torno de designações étnicas.
Os Katxuyana afirmam que os karaiwa conduziram panano às cabeceiras e interflúvios, mencionando “antigos lugares” (patatpo) em toda calha do Amazonas
(Warikuru) e do Trombetas (Kahu): Werekekepïrï, Pawisi e Parawapotpïri, por exemplo, são “antigos lugares” nomeados, situados, respectivamente, em Santarém,
Óbidos e Oriximiná. O movimento de subida também foi relatado a Protásio Frikel (1970a: 20-21): “antes que ‘branco’ veio descobrir a terra, ‘panano’, mas os
‘bem antigos’, moravam no Arikuru [...], lá embaixo. [...] Panano tinha muitas casas ali, gente e maloca grande. Morava na boca de um grande rio que vem do
outro lado do Arikuru. O lugar chamava Txurutahumu, ou também Arikamana; é o lugar onde depois português fez Santarém. Ali morava também o grande chefe
que mandava em todos. Quando português descobriu a terra, [pïrehno] fugiu. Português vinha de Kampixi, no nascente [...]. Português perseguiu nossa gente, que
fugiu” (Frikel, 1970a: 20-21).
A palavra mekoro, difundida entre as línguas indígenas guianenses, é genérica, consagrada em referências às pessoas “negras” – de cuja cor de pele provém o
termo (Carlin & Boven, 2002; Carlin, 2004) –, sejam elas brasileiras ou estrangeiras. Os Katxuyana, por vezes, referem-se aos mekoro brasileiros como karaiwa,
“não -indígenas”, como ficará evidente no decorrer deste trabalho (ver, em especial, a narrativa transcrita no tópico “Sobre armas e contas”). Neste artigo, utilizome da expressão mekoro em referência aos “negros” brasileiros e estrangeiros, evitando, assim, confundi-los com os outros karaiwa com quem os Katxuyana
relacionam-se.
87
em que balateiros, castanheiros e gateiros também avançaram,
em fluxos e refluxos, sobre a paisagem trombetana. Trata-se do
tempo do contágio pelas “doenças de branco” (karaiwa wïrho),
ocorrido no contexto da exploração da borracha, da castanha e da
caça ao couro de onça8.
Os encontros com os karaiwa intensificaram-se com a chegada
dos missionários católicos e protestantes, que instalaram
diversas aldeias-missão nas fronteiras entre o Brasil, a Guiana
e o Suriname na segunda metade do século passado9 (Caixeta
de Queiroz, 2008). Os missionários valeram-se das estimadas
mercadorias e medicamentos – além, é claro, da promessa
de salvação prevista pelas narrativas bíblicas –, para a
sedução da população ameríndia trombetana, concentrada
em conglomerados multiétnicos fundados com o propósito de
promover sua “integração à sociedade nacional”. As aldeiasmissão centralizaram os indígenas que, outrora, se distribuíam
por comunidades dispersas, às vezes fazendo antigos “inimigos”
(waha) corresidentes, isto é, “parentes” (pïrehrï) (Caixeta de
Queiroz, 2008; Grupioni, 2011).
Os Katxuyana foram transferidos pelos missionários no final da
década de 1960: desolados pelo sarampo e pela tuberculose e
somando menos de 70 pessoas (Frikel, 1970a), dividiram-se
entre a Missão Tiriyó, estabelecida pelos franciscanos com o
auxílio da Força Aérea Brasileira (FAB) junto aos Tiriyó no alto
Paru d’Oeste, e a missão Kassawá, instalada pelos evangélicos
do Summer Institute of Linguistics (SIL) entre os Hixkaryana no
Nhamundá (Caixeta de Queiroz, 2008; Grupioni, 2010; Caixeta
de Queiroz & Girardi, 2012). Nesses lugares, conheceram a
8.
assistência médica, a escola primária e o serviço assalariado,
bem como a inesgotável parafernália karaiwa. Ali, também
conheceram o hábito não indígena da “demarcação” – da
delimitação dum território que, noutros tempos, “ia até onde a
sola dos pés queria ir” (Grupioni, 2011: 321) –, familiarizandose, pouco a pouco, com a vida na “terra fechada” (Idem: 322).
E, ali, enfim, aparentaram-se com seus corresidentes, com quem
conviveram nas Terras Indígenas (TI’s) Nhamundá-Mapuera
e Parque do Tumucumaque durante as últimas cinco décadas
(Grupioni, 2011; Caixeta de Queiroz & Girardi, 2012).
Os Katxuyana decidiram regressar à sua área de origem no
começo da década de 2000, delineando um movimento de
retomada de seu território tradicional e, assim, reabrindo uma
“aldeia velha” (patatpo), Santidade ou Warahaxta, às margens do
médio Cachorro. Em 2003, reivindicaram à Fundação Nacional
do Índio (Funai) a regularização de seu território, recebendo, em
2008 e 2010, os grupos de trabalho responsáveis pelo Relatório
Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID).
Nesse ínterim, outra aldeia katxuyana, Chapéu, foi fundada à
jusante de Santidade, e uma aldeia kahyana, Katxpakuru, foi
reaberta na embocadura do curso d’água homônimo, no alto
Trombetas. Hoje, as famílias katxuyana e kahyana aguardam – e
lutam – com seus vizinhos Tunayana10 pela demarcação da TI
Katxuyana-Tunayana, cujo RCID, aprovado e finalizado desde
abril de 2013, encontra-se à espera de publicação.
O movimento katxuyana de concentração e (re)dispersão
modificou os circuitos de comunicação e intercâmbio em
amplitude e direção, estimulando a constituição e extensão de
Frikel (1970a: 44) estima que os indígenas somavam de 300 a 500 pessoas entre 1920 e 1925. Na primeira metade do século XX, a disseminação de epidemias
teria contribuído para uma drástica redução do contingente populacional: o sarampo espalhou-se entre os índios que, sofrendo com febres altas, procuravam
“refrescar o sangue” na água fria (Id., ibidem). Como ressalta o missionário, muitas dessas pessoas teriam falecido: “os índios mais velhos contaram que aqueles
que ainda estavam bons não tinham mais tempo nem vontade de enterrar os mortos. [A]bandonando os cadáveres juntamente com os doentes, [eles] fugiam para
a mata”. (Id., ibidem).
9.
Cinco missões foram estabelecidas na região entre as décadas de 1950 e 1960: Kanashen, Araraparu e Paruma, fundadas por missionários protestantes norteamericanos na Guiana e no Suriname; Missão Tiriyó, instalada por missionários católicos e pela Força Aérea Brasileira (FAB) na porção brasileira da Serra do
Tumucumaque; e Kassawá, estabelecida por missionários protestantes no médio curso do rio Nhamundá (Caixeta de Queiroz, 2008).
10.
O movimento de descentralização – como o de concentração – aconteceu em escala regional (Grupioni, 2011; Caixeta de Queiroz & Girardi, 2012). A propósito do
movimento de concentração e (re)dispersão experimentado pelos Tunayana, ver os artigos de Ruben Caixeta de Queiroz e Victor Alcântara e Silva, neste volume.
88
determinados vínculos às custas do resfriamento e suspensão de
outros. Destacam-se, entre eles, as preciosas relações com os
mekoro trombetanos – em especial, com aqueles estabelecidos
na comunidade de remanescentes de quilombo de Cachoeira
Porteira11 –, suspensas com a transferência katxuyana para as
aldeias-missão e, anos mais tarde, reavivadas com seu regresso
para sua área de origem. Na última década, à colaboração
amistosa e à convivência pacífica entre os “parceiros” (pawana)
ou “parentes” (pïrehrï) mekoro reencontrados, alternaram-se
os conflitos declarados e as disputas violentas entre antigos
“inimigos” (waha) revisitados – alimentados e aprofundados,
é imprescindível ressaltar, pela morosidade do processo de
regularização da TI Katxuyana-Tunayana, que, parcialmente
sobreposta à TQ Cachoeira Porteira, têm instaurado a incerteza
e a insegurança na região em questão12. É a uma história dessas
relações, reversíveis e variantes, que dedica-se o experimento
narrativo proposto por este trabalho. Vamos a ela.
sozinhos, estabelecidos em uma maloca fundada
nas proximidades de Yiremat’pïrï (Cachoeira do
Paraíso), nas cabeceiras no Txuruwahu (Cachorrinho).
Certa vez, os demiurgos sentiram vontade de conversar
e, com madeiras variadas, fizeram os experimentos que
originaram as matrizes das espécies que habitam o
universo. Na primeira tentativa, Purá e Murá valeramse de uma madeira durável e resistente – pura’kma,
o pau-d’arco ou, literalmente, “pau de Purá” – para
confeccionar os modelos reduzidos dos primeiros
humanos. Os demiurgos colocaram estes modelos em
um pequeno vasilhame, no qual transformaram-se
na (pré)humanidade que, à maneira da madeira, era
marcada pela imortalidade.
Purá e Murá, então, fabricaram canoas grandes e
pediram aos seres imortais que partissem em viagem
para povoar o mundo, ignorando que uma anaconda
CORPOS CROMÁTICOS
preparava-se para devorá-los no caminho. Depois de
matar a cobra para vingar a morte dos seus, Purá
Comecemos pelos eventos que marcam o início (e o fim) do
mundo pïrehno:
e Murá vestiram seu corpo pintado e, adornados,
No mundo não havia nada, além de dois seres que
não foram criados por ninguém. Purá e Murá existiam
seus cestos, peneiras e tipitis, os demiurgos retornaram
cantaram e dançaram. Depois de copiar os desenhos em
à Yiremat’pïrï no intuito de refazer as criaturas.
11.
Cachoeira Porteira é uma das 36 comunidades de remanescentes de quilombo existentes nos rios Erepecuru e Trombetas. Situada às margens da corredeira
homônima, no médio Trombetas, a comunidade é a última localidade à qual pode-se alcançar por navegação. Trata-se da comunidade quilombola mais próxima,
histórica e contemporaneamente, das aldeias indígenas estabelecidas nos rios Cachorro, Mapuera e Trombetas – e, portanto, também aquela à qual remete a maioria
das narrativas katxuyana reunidas neste trabalho. Cabe ressaltar, entretanto, que os Katxuyana também relacionam-se com os mekoro de outras comunidades
do Erepecuru e do Trombetas. Articulações entre a Associação Katxuyana, Tunayana e Kahyana (AIKATUK) e Associação das Comunidades Remanescentes de
Quilombo do Município de Oriximiná (ARQMO) – apoiadas pela Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) e pelo Iepé-Instituto de Pesquisa e Formação Indígena
– têm mobilizado e motivado indígenas e quilombolas recentemente, sinalizando para a potência dessas parcerias para a defesa conjunta de direitos.
12.
A comunidade de remanescentes de quilombo de Cachoeira Porteira reivindicou a regularização fundiária do Território Quilombola (TQ) no ano de 2004,
época em que o processo de titulação (Processo de 2004/125212) foi instaurado pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa). Não obstante, o processo foi protelado
devido à instituição da Floresta Estadual do Trombetas, decretada numa área de 3.172.978 ha pelo Governo do Estado do Pará (Decreto 2607, de 04/12/2006).
A regularização fundiária foi retomada em 2012, em razão dos conflitos entre indígenas e quilombolas que conduziram à intervenção do Ministério Público Federal
(MPF). O resumo do relatório de identificação do território quilombola foi publicado nessa mesma época, incluindo cinco aldeias indígenas no interior do polígono
proposto (Idesp, 2012). Cabe ressaltar que o contexto regional – que, é bom lembrar, é também o da ameaça aos direitos constitucionais indígenas e quilombolas,
pressionados pelas iniciativas lideradas pela bancada evangélico-ruralista – vê-se agravado pela contratação dos estudos socioambientais para a implantação da
Usina Hidrelétrica de Cachoeira Porteira, cujo primeiro projeto remonta ao período da ditadura militar.
89
luisa g. girardi
Purá e Murá fizeram experimentos com diversas
madeiras, uma vez que todo o pau-d’arco havia sido gasto
nas primeiras tentativas. Os modelos confeccionados
com o caranaí, o cipó e o miriti transformaram-se,
respectivamente, nos caititus, nas cobras e nas queixadas.
Outros seres também surgiram durante os experimentos,
tomando de empréstimo a qualidade distintiva das
madeiras que, por acidente, lhes servira de matéria-prima:
da madeira do jenipapo surgiram os mekoro, “negros”;
do marupá, os pananakïrï, “brancos”, “estrangeiros”;
do taxizeiro, os Warahayana, que, confeccionados em
madeira que apodrece, transformaram-se em seres
mortais, os antigos Katxuyana.
Esta história bastante conhecida (Kruse, 1955; Frikel, 1970a;
Gongora, 2007; Grupioni, 2009, 2010; Girardi, 2011),
apresentada nesta variante adaptada e resumida, ilumina
o cenário de panano wetxit’pïrï, o “tempo dos antigos”.
Correspondente ao que diríamos “mítico”, esse contexto é
marcado pela capacidade de comunicação e metamorfose
das distintas espécies que habitam o universo, perdida com
a inscrição da existência na condição terrena, repartida entre
a morte e a vida. Contemporâneo ao mundano13, o contexto
mítico é, em poucas palavras, aquele em que “[...] animais e
homens não [são] distintos” (Lévi-Strauss & Eribon, 1988:
193), ou, melhor dizendo, o horizonte em que suas diferenças
estão pressupostas, embora não expostas14. Os acontecimentos
transcorridos no “tempo dos antigos” relacionam-se, justamente,
à inauguração de distâncias ou intervalos (espaciais, corporais e
periódicas) entre o céu e a terra, o dia e a noite, os indígenas e
os não indígenas15 – como a clássica tetralogia das Mitológicas
(Lévi-Strauss, 1964, 1966, 1967, 1971) cuidou de mostrar.
O “mito de origem” katxuyana põe em cena a passagem do
contínuo para o descontínuo, isto é, da natureza para a cultura.
A principal problemática dessa narrativa é a diferença, manifesta
pelo afastamento entre a animalidade e a humanidade e entre
as sociedades humanas. No mito acima, essa problemática é
apresentada segundo a temática da construção da corporalidade:
postos no corpo, os padrões gráficos e as variações cromáticas
no contexto mítico antecipam as diferenças manifestas entre
as espécies variadas no contexto mundano. A cobra-grande,
personificação da alteridade na mitologia guianense16 (Gallois,
1988; Van Velthem, 2003; Gongora, 2007; Grupioni, 2009, 2010
e, numa versão mekoro, Sauma, 2013, 2014), é, aqui, o operador
das transformações, oferecendo seus desenhos corporais
aos antigos katxuyana, que constituem sua singularidade
alterando-se, identificando-se ao inimigo. A um só tempo criativa
13.
Acessado pelas experiências oníricas e xamânicas, o contexto mítico é também o destino póstumo de pïnarï, a “alma imortal” ou o “espírito humano”, que percebe
em ihuno, a “massa” ou o “corpo”, uma “[...] uma espécie de ‘vestimenta’, que se recebe na hora do nascimento e se abandona ao falecer” (Frikel, 1971: 39,
nota 16). É o contexto da morada dos demiurgos, um plano em que não há miséria, morte ou tristeza (Idem: 15). O futuro e o passado encontram-se: “na visão de
mundo indígena, aquela época [panano wetxit’pïrï] era um estado realmente existente na terra, e embora não se encontrando mais agora neste mundo, por se ter
tornado um assunto extra-telúrico, é ainda alcançável no além-mundo como sendo a mesma realidade do passado. É a idéia do ‘paraíso’ perdido, mas recuperável,
que aqui se apresenta” (Idem, ibidem).
14.
Como ressalta Viveiros de Castro (2002b: 355), a mitologia é “o ponto de fuga universal do perspectivismo, [tratando] um estado do ser onde os corpos e os nomes,
as almas e as ações, o eu e outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo”. E prossegue: “o perspectivismo ameríndio
conhece no mito um lugar, geométrico por assim dizer, onde a diferença entre os pontos de vista é ao mesmo tempo anulada e exacerbada. Neste discurso absoluto,
cada espécie de ser aparece aos outros seres como aparece para si mesma – como humana – e entretanto age como já manifestando sua natureza distintiva e
definitiva de animal, planta e espírito” (Viveiros de Castro, 2002b: 354-55).
15.
As narrativas katxuyana sustentam que, no início do mundo, só havia o céu e o sol, fixo – e, portanto, só havia o dia. A separação entre o céu a terra – engendrada
pela relação com alteridade, isto é, pelas alianças entre um homem e uma mulher-peixe que, em certas versões, introduz a panano a agricultura –, possibilita a
viagem de canoa do sol, inaugurando a alternância entre dia e noite (Frikel, 1971: 4, 14).
16.
Como ressalta Gongora (2007: 22) a cobra-grande é “[...] um elemento fundamental das mitologias e sociocosmologias na região das Guianas e é uma forte
referência em diferentes dimensões da vida guianense: nas práticas rituais, nas atividades de caça e de pesca, nos artefatos e grafismos, no xamanismo, nas
exegeses nativas sobre doença e morte. É notável que as referências a essa figura sejam abundantes em narrativas sobre os ‘outros mais outros’, nos reportando às
relações de aliança, inimizade, guerra, canibalismo, entre outras”.
91
e destrutiva, a anaconda é também quem determina a extinção
da (pré)humanidade originária e a fabricação da humanidade
terrena, isto é, a passagem da imortalidade para a mortalidade
expressa pela oposição entre madeira imperecível (pau-d’arco)
e madeira perecível (taxi). É ela, enfim, quem estimula os
demiurgos a (re)fabricarem a existência mundana numa mesma
substância, deixando à história a tarefa de externar e maximizar
as diferenças, internas e mínimas, tomadas de empréstimo das
distintas qualidades de madeira que serviram de matéria-prima.
Os protótipos transformam-se, assim, em brancos e caititus,
queixadas e negros, distribuindo sua corporalidade específica
pelo espectro cromático e metamórfico infinito.
Prefigurada no “tempo dos antigos”, a presença dos mekoro, os
“negros”, na paisagem ameríndia é pensada menos como uma
chegada do que como um retorno, cujos processos históricos,
documentados pela literatura, parecem indiferentes às exegeses
katxuyana. Sua mitologia dedica-se à descrição das sucessivas
extinções e recriações da humanidade que prefiguraram os
seus (re)encontros nas florestas trombetanas, transcorridas, a
depender da variante, antes ou depois da anaconda inimiga.
São também bastante conhecidas, nesse sentido, as narrativas
que descrevem os cataclismos cósmicos – a “grande água”
(tuna-imo) e o “grande fogo” (wehoto-imo) – que antecederam a
partida dos demiurgos para o plano celeste, e dos quais salvaram
os pouquíssimos sobreviventes que, vez após outra, espalharamse e misturaram-se para constituir os “antigos”17 (Kruse, 1955;
Frikel, 1970a, Gongora, 2007, Grupioni, 2009, 2010). Mas seria
preciso sobreviver a outro fim de mundo – aquele que desolou
os continentes africano e americano para constituir os estado
17.
nacional brasileiro18 – até que os antigos e os mekoro (re)
construíssem seus universos, parcialmente compartilhados na
paisagem trombetana.
GUERRAS DE MUNDOS
A paisagem trombetana não foi constituída de maneira pacífica.
Veja-se, a esse propósito, o relato seguinte:
No tempo da seca, um homem e uma mulher estavam
acampados numa maloca pequena, situada na
embocadura do Katxpakuru. Certo dia, o casal foi à
praia banhar-se, e os mekoro chegaram numa canoa
grande, encostando-a perto da enseada. O homem
conhecia os mekoro e, por isso, não deu importância à
sua chegada. Mas os mekoro levavam bordunas, com as
quais assaltaram e renderam o homem kahyana. O chefe
dos mekoro, muito alto e muito forte, colocou a mulher
nas costas e embarcou-a na canoa, deixando o homem na
praia. Uns dias depois, o mekoro capturou outra mulher
kahyana numa maloca à montante. Seu irmão salvouse do assalto, dirigiu-se à maloca principal e mobilizou
seus parentes para a vingança. Esperaram.
A expedição guerreira alcançou o mocambo durante
a madrugada, cuidando de esconder-se na margem
oposta do curso d’água. Em segurança, os guerreiros
dividiram-se em duas frentes que, por água e por
terra, avançaram até uma ilhota antes de subir o
dia. Cedo pela manhã, um homem que conhecia os
É, novamente, Frikel quem nos oferece a mais detalhada descrição: “contam os mitos que, cada vez que um tipo de antepassado parecia vitimado por um
dos cataclismas [sic], um resto de gente se salvava e, depois de passado o perigo, espalhava-se e misturava-se com outros sobreviventes [...], de forma que os
Katxuyana se dizem descendentes daqueles homens do ‘dilúvio’ e do ‘incêndio’, considerando-os todos ‘panano’, isto é, ancestrais” (Frikel, 1970a: 28).
18.
Como ressalta Goldman, “os grandes acontecimentos são conhecidos por todos. Ainda que os números sejam algo controversos, não é nada improvável que ao
longo de cerca de 300 anos, quase 10 milhões de pessoas tenham sido embarcadas à força da África para as Américas, na maior migração transoceânica da
história. Desses, uns 4 milhões chegaram ao que hoje chamamos de Brasil – onde, sabemos, já viviam milhões de indígenas, vítimas de um genocídio que, nunca
é demasiado lembrar, ao lado da diáspora africana sustenta a constituição do mundo moderno. Nessa história, que é de todos nós, coexistem poderes mortais de
aniquilação e potências vitais de criatividade” (2014: 215).
92
mekoro dirigiu-se sozinho à casa do chefe, dizendo-lhe
precisado de uma espingarda. Aproveitou para contar
que havia visto um grande bando de porcos na ilhota.
Os mekoro não desconfiaram da mentira e partiram em
duas canoas para procurar os queixadas. Os Kahyana,
escondidos, arremedaram: ‘krak txi, krak krak, krak
txi’. As flechas zuniram sobre os mekoro, e somente dois
homens sobreviveram.
Os Kahyana, feridos, regressaram para a maloca
principal, mas mudaram-se para a montante temendo
a vingança. Os mekoro aguardaram. Depois de um
tempo encontraram a maloca kahyana, exterminando,
inclusive, as mulheres que resistiram. Um menino
sobreviveu e procurou os parentes restantes. Os Kahyana
fugiram, subindo o Trombetas.
Esse relato, extraído de um artigo coautorado por Protásio Frikel e
os chefes-xamãs katxuyana Matxuwaya e Ton’hirama (Frikel et al,
1955: 226-229), remonta a um contexto definido pela expressão
waha wetxit’pïrï, que poderia ser traduzida como “tempo da
borduna”, “tempo dos inimigos” ou, mais precisamente, “tempo
da guerra”. Transformado com a conversão ao cristianismo, o
contexto remete ao período em que os “antigos” 19 (panano)
envolviam-se em disputas visíveis e invisíveis com seus “inimigos”
(waha), engajando-se em práticas guerreiras menos relacionadas
à constrangimentos econômicos – à escassez e demanda de
mercadorias e territórios – do que à determinações cosmopolíticas
– ao consumo criativo da alteridade e da diferença20.
As narrativas katxuyana sobre o “tempo da guerra” descrevem
os movimentos de concentração e dispersão conduzidos pelos
“antigos” que, distribuídos em malocas dispersas pela paisagem
trombetana, mobilizavam os espíritos auxiliares (worokyema)21
e/ou os parentes e vizinhos em expedições guerreiras motivadas
pela retaliação. Esse aliancismo cosmopolítico conformava
coalizões reversíveis e transitórias, dissolvidas em comunidades
autônomas tão logo completada a vingança. Os Katxuyana, “da
mesma língua e do mesmo sangue” (Frikel et al, 1955: 203) que
os Kahyana, com eles experimentaram contendas intermináveis,
em que a devoração de um inimigo implicava na imediata
promessa de retribuição22; esses índios, por sua vez, “brigaram
com todos e brigaram muito entre si” (Idem: 205), aliando-se
19.
Matxuwaya e Ton’hirama afirmavam, à época, que não engajavam-se em práticas guerreiras – como, aliás, afirmam hoje os Katxuyana. Essas práticas aparecem
associadas a panano, os “antigos” katxuyana, que os narradores distinguiam tanto dos antigos kahyana quanto dos mekoro. Embora admitissem que panano eram
guerreiros (kayari), contrastavam os antigos katxuyana aos guerreiros kahyana e os mekoro: panano eram especialistas nas agressões xamanísticas, valendo-se do
rapé (mori) e do tabaco para comunicar-se com os worokiyema, os espíritos auxiliares; os antigos kahyana e os mekoro, por sua vez, preferiam a borduna (waha),
utilizada para rachar o crânio de seus inimigos. Matxuwaya e Ton’hirama também enfatizavam que panano eram mais pacíficos que os guerreiros kahyana e os
mekoro, exaltando a agressividade, crueldade e voracidade dos seus inimigos. À maneira dos Katxuyana contemporâneos, os narradores insistiam que panano não
eram dados à disputas gratuitas: suas habilidades guerreiras eram utilizadas somente para retaliação, isto é, para vingança.
20.
Grossíssimo modo, seria possível afirmar que, às últimas, as primeiras contrapõem uma alternância entre autonomia e liberdade, por um lado, e um aliancismo
confederativo, por outro, que encontram seu movimento e sentido na captura e incorporação da diferença (Sztutman, 2012). Mas o debate sobre a guerra indígena
é extenso, e não cabe resumi-lo aqui.
21.
Frikel e colaboradores descrevem: “os antigos costumes de guerra [...] estavam ligados, intimamente, a práticas religiosas [isto é, xamânicas]. [...] Txir’hana é
a choupana do pajé ou piad’se. Entrando nela, pode ele estabelecer o contato com os espíritos. [...] O efeito do consecutivo e desmedido uso do [mori], o rapé, é
o estado [...] em que opera-se o contato com os espíritos ‘bichos’ que, por fim, chega à identificação com os mesmos. As forças dos homens unem-se com as dos
espíritos que, normalmente, manifestam-se pelos respectivos animais de identificação como, por exemplo, o macaco, o mutum, a onça. Surge assim o guerreiromacaco, o guerreiro-mutum, o guerreiro-onça. [...] Como guerreiros-bicho, os homens iniciaram a expedição de vingança” (Frikel et al, 1955: 223, n. 28).
Os Katxuyana hoje dizem que os antigos eram especialistas nas “guerras invisíveis”, e que a “fusão ritual” entre os espíritos-animais e os xamãs implicava na
devoração antropofágica de seus inimigos. Análises aprofundadas sobre a imbricação entre a guerra e o xamanismo também podem ser encontradas na literatura
sugerida na nota anterior.
22.
Os relatos são abundantes de exemplos. Tomemos o seguinte como ilustração: “Kureru levou somente uma flauta de osso, de perna de gente. Ia na frente, tocando.
Tocava, dizendo que agora vinha a hora da vingança e da morte, e que, daí a pouco, ia fazer outra flauta mais bonita, assim como os Katxuyana já estavam fazendo
com as canelas do pai dele [...]” (Frikel et al, 1955: 218).
93
em coalizões contra um mesmo oponente – no caso, os mekoro
– para, em seguida, espalhar-se nas malocas trombetanas.
Essas alianças constituíam e magnificavam a posição masculina,
incorporada na figura dos guerreiros (kayari). É de se considerar
a importância das mulheres para essa posição, uma vez que sua
captura motivava o extermínio dos inimigos, por vezes devorados
em cerimônias antropofágicas e, então, eternizados nas insígnias
guerreiras, os cinturões de cabelo, as cabeças-troféu e as flautastíbia (Frikel et al, 1955: 209 e s.).
Os mekoro eram um inimigo – ou, ao menos, eram um inimigo para
os antigos kahyana, que, por sua vez, às vezes, eram inimigos dos
antigos katxuyana. Como a narrativa transcrita sugere, não foram
pacíficos os (re)encontros entre os antigos kahyana e os mekoro,
embora não haja menção a contendas diretas com a participação
dos antigos katxuyana. Não obstante, os seus relatos descrevem
a agressividade e a voracidade dos mekoro, que presenteavam os
antigos kahyana e, em seguida, assaltavam suas malocas para
capturar mulheres indígenas. Os Kahyana respondiam à altura,
constituindo expedições guerreiras sucessivas para vingar
a morte de seus parentes e vizinhos. A excelência guerreira
kahyana era incapaz de segurar a agressividade e voracidade
mekoro: invariavelmente, essas coalizões determinavam seu
extermínio ou deslocamento que, ativo, talvez encontrasse seu
sentido na recusa. A propósito da recusa, note-se que as (re)
investidas indígenas nos mocambos não implicavam a captura de
mulheres mekoro – como, aliás, não implicavam a apropriação da
diferença dos mekoro por cerimônias antropofágicas ou insígnias
de prestígio.
SOBRE ARMAS E CONTAS
Uma história katxuyana descreve como os mekoro fizeram-se
“parceiros” (pawana) dos índios:
23.
94
Havia uma aldeia velha, Wanahai, escondida na
floresta. Seu dono, Wahra’txitxi, andava com seus
parentes, fugindo dos karaiwa. Certo dia, sua mulher
pediu peixe, e homem foi ao Cachorro procurar.
Em sua canoa, que cuidava de esconder no fundo do
rio, o velho remou com o neto até uma ilhota, onde
armou uma armadilha. E esperou.
Apareceram canoas grandes na curva do rio. O neto e
o velho fugiram, mas os karaiwa remavam e remavam.
O velho disse ao neto que corresse para a maloca, que
o deixasse morrer sozinho. E assim foi. Os karaiwa
alcançaram Warahtxitxi e explicaram que não eram
inimigos, mas o velho não conhecia o português.
Os karaiwa presentearam Wahra’txitxi: deram açúcar,
mas o velho jogou fora; deram miçanga, mas o velho
jogou fora também; deram machado e terçado, mas o
velho jogou fora mais uma vez. Os karaiwa deram tudo,
mas o velho não conhecia, não entendia. E assim foi,
um dia e uma noite.
Quando amanheceu, os karaiwa explicaram que não
eram inimigos e ofereceram mais presentes. O velho
aceitou. Warahtxitxi andou até a maloca e contou
para os parentes: os karaiwa eram amigos, tinham
presentes. Por isso, permitiram que seu chefe, chamado
Vieira, fizesse uma maloca em Mariha, conhecida, em
português, como “Vieirão”.
Esse relato, a mim narrado por H. Awahuku, dedica-se ao evento
que, em português, é descrito como o “contato”. Conforme o
narrador, trata-se do tempo em que os antigos eram “bravos”
(tïyone) e, à maneira de Wahra’txitxi, escondiam-se nas florestas
em malocas pequenas, resguardadas dos inimigos karaiwa,
“não indígenas” 23. Como os “isolados” – ou melhor, os “não
Os karaiwa dessa narrativa são mekoro, “negros”, como os Katxuyana costumam especificar (ver nota 7, sobre a categoria mekoro). Isso também evidencia-se pela
referência à família “Vieira” que, até hoje, distribui-se pelas comunidades de remanescentes de quilombo trombetanas.
vistos” (txinehïnï) –, Wahra’txitxi abandonava seus lugares ao
perceber o perigo, cuidando de levar a mandioca plantada nos
roçados, escondidos e pequenos como as malocas. Wahra’txitxi,
desse modo, perambulava, recusando, ativa e intencionalmente,
a possibilidade de subordinar-se ou unificar-se aos agressivos
karaiwa. Aceitar o contato era aceitar a morte – “deixe-me
morrer sozinho”, disse ao neto o velho – que, ressalte-se, também
rondava pelo espectro dos finados, exterminados pelas doenças
karaiwa ou pelas contendas guerreiras24.
Dissipada sua insistência em recusar as relações – análoga à
insistência karaiwa em presentear Wahra’txitxi – abriram-se os
caminhos para que os antigos deixassem suas aldeias na terra
firme para estabelecer-se em malocas às margens do Cachorro e
do Trombetas. É certo que essas aldeias, visíveis, os expunham
à predileção guerreira dos inimigos indígenas e não indígenas,
embora facilitassem o contato com os mekoro e, assim, com
as estimadas mercadorias por eles oferecidas. Conta-se que
espingardas, faquinhas, munições, miçangas, panelas, tecidos
e terçados chegaram das mãos dos mekoro, a quem os índios
forneciam, em contrapartida, andiroba, balata, copaíba, seringa
e, sobretudo, cães de caça e castanha. Os Katxuyana dizem
que, às vezes, buscavam suas encomendas junto aos mekoro nas
florestas surinamesas, a elas retornando um ano mais tarde para
retribuí-los. Mas foi com os mekoro das florestas brasileiras –
em especial, com aqueles que hoje moram nas “comunidades
de remanescentes de quilombo” de Abuí e Cachoeira Porteira,
no curso do médio Trombetas –, que estabeleceram as parcerias
mais reiteradas, adquirindo as mercadorias por eles obtidas de
comerciantes citadinos e mascates fluviais no período que se
seguiu à abolição da escravidão.
Os Katxuyana e os mekoro fizeram-se, assim, “amigos”,
“parceiros” – ou, conforme a expressão nativa, pawana. A palavra,
cujos cognatos estão presentes em diversas línguas caribe
(Rivière, 1969; Howard, 1993; Brightman, 2007; Grotti, 2007;
Barbosa, 2007; Grupioni, 2012), é utilizada como referência e
vocativo aos parceiros interpessoais, entre os quais estabelecemse intercâmbios baseados na confiança mútua e na reciprocidade
protelada. A relação que o termo designa é aquela travada com
desconhecidos e forasteiros indígenas ou não indígenas, com os
quais não é possível retraçar vínculos cognáticos. A expressão
encontra-se relacionada à alteridade e evidencia a predileção
ameríndia pelos intercâmbios com desconhecidos, forasteiros ou
visitantes, com quem se deve estabelecer algum tipo de parceria25.
Imersas na alteridade e na diferença, as relações com
desconhecidos e forasteiros envolvem a atenuação do seu
potencial predatório, promovida pelos intercâmbios comerciais.
Na literatura etnológica guianense proliferam narrativas sobre
a transformação de inimigos em amigos, possibilitada por meio
do intercâmbio de mercadorias e, em certos casos, de cônjuges
(Howard, 2001; Barbosa, 2007; Brightman, 2007; Grotti, 2007).
Costumeiramente designado pelo verbo “acostumar” ou “amansar”
(-enhonmu) as parcerias pawana caribe conduzem a um “código
de civilidade” (Frikel, 1970b) que, no caso katxuyana, envolve
diplomacia, discrição, generosidade, gentileza, moderação e
receptividade com estrangeiros ou forasteiros. As gentilezas e os
presentes que movimentam as parcerias pawana são, em suma,
definidores da condição humana socializada.
Os mekoro fizeram dos antigos, “bravos” (tïyone), os Katxuyana
contemporâneos, autodefinidos por esse “costume” ou
24.
Conta-se, a esse propósito, que Wahra’txitxi deixava as malocas por ocasião do falecimento de um parente, cujo espectro chamava à lembrança e à tristeza (tirmahï),
associada a um estado corpóreo letárgico ou pesado (tamïne ihuno, lit., “corpo pesado”) que remete à doença e, potencialmente, à morte. Estar perto dos falecidos,
era, assim, estar perto do falecimento: em favor da própria vida – mais uma vez, em recusa à morte –, “Wahra’txitxi” também “andava para esquecer”.
25.
A propósito dos Aparai e Wayana, Barbosa a define: “Amplamente praticadas pelas populações [guianenses], as parcerias pawana fornecem o modelo às demais
formas de intercâmbio e relacionamento interpessoal amistoso. [...] Trata-se de uma relação voluntária, recíproca e exclusiva entre duas pessoas socialmente
distantes [...]. Fundadas num ideal de conduta com o outro, essas parcerias baseiam-se numa ética do comedimento e, principalmente, da generosidade entre
os parceiros. Seguindo esse ideal de conduta generosa, os parceiros devem solicitar, dar, receber e retribuir tanto bens como hospitalidade, serviços, visitas e
gentilezas um ao outro” (Barbosa, 2011: 07).
95
“cultura” (wetohu) que, em muito, distingue-os de Wahra’txitxi.
De maneira semelhante, as estimadas espingardas, faquinhas,
machados, miçangas, panelas e terçados oferecidas pelos mekoro
foram apropriadas criativamente, possibilitando a constituição
da singularidade katxuyana pela alteração, isto é, pela
apropriação da diferença. Veja-se, por exemplo, as miçangas que
constituem posição feminina: as contas de vidro são utilizadas
com as sofisticadas técnicas de tecelagem, costumeiramente
transmitidas na reclusão que antecede a cerimônia propiciatória
(sowowo) que prossegue à menarca; com as miçangas, meninas e
mulheres confeccionam os cinturões masculinos (okonumi) e os
saiotes femininos (manenohu), os adornos corporais katxuyana
que os distinguem nas festas e rituais; são essas miçangas, por
fim, que possibilitam às meninas e mulheres relações variadas,
com que tanto conseguem mais miçangas, quanto circulam
padrões gráficos e ornamentos. Mas isso não é tudo.
CRIANDO PARENTES
Não conheci os velhos. Quando nasci, já existiam
marreteiros, negociantes. Antigamente, não tínhamos
machado. Nós não conhecíamos os padres, só os
marreteiros. Eles nos ensinaram a caçar [gato], a fazer
salga. Só agora, vejo que faziam covardia: as coisas
eram caras, até cachaça eles nos vendiam. Éramos
como meninos: alguém manda fazer algo, menino
faz. Depois os missionários... Para nós a vida era boa.
Mas frei Fortunato falou:“em todo canto tem missão:
Missão Cururu, Missão Tiriyó. Vocês não querem ir pra
lá?”. Mas nós não conhecíamos, como iríamos para
lá? “Vou dar um jeito”, disse o missionário, “vou falar
com Dom Floriano.” Passado um ano, o bispo voltou:
“Sabemos que vocês não estão passando bem nas mãos
dos pretos, dos marreteiros. Trabalham como burros, na
chuva e na doença, para outros enriquecerem. Vou pedir
um avião em Belém”. O Dom marcou dia e chegou com
96
um barco grande, com motor, com rancho. Assim que
embarcamos, os marreteiros foram até ele. Disseram que
estávamos devendo, mostraram papel. D. Floriano não
deu confiança... Fomos para Óbidos, depois para a Missão
Tiriyó. Chegaram 39 pessoas, atualmente são 66 ou 67.
Essa história, relatada por H. Awahuku a Roberto Cortez
(1977: 35) em 1975, remete ao período que precedeu a
transferência katxuyana para a Missão Tiriyó, estabelecida
pelos franciscanos com o auxílio da Força Aérea Brasileira
(FAB) no alto curso do Paru de Oeste, na atual TI Parque do
Tumucumaque. Como ressaltado, essa transferência, estimulada
pelos missionários, determinou sua separação de uma família
katxuyana que, resistente, dirigiu-se para a aldeia-missão
Kassawá, instalada pelos evangélicos do Summer Institute
of Linguistics (SIL) junto aos Hixkaryana no alto curso do
Nhamundá, na atual TI Nhamundá-Mapuera. A transferência
também determinou a suspensão das relações com os mekoro
trombetanos, retomadas, no começo da última década, com o
retorno katxuyana a seu território tradicional.
Como o relato sugere, o período que precedeu a transferência
katxuyana às aldeias-missão foi marcado pela intensificação
das relações com os karaiwa, que avançaram sobre a paisagem
trombetana no contexto da expansão (e posterior retração) do
extrativismo. A época é comumente denominada por expressões
como “tempo da balata” (parakta wetxit’pïrï) e “tempo da
castanha” (tutko wetxit’pïrï), com atenção às atividades
econômicas que motivavam essas frentes. Nesses tempos, que
são também o “tempo das doenças” (wirho wetx’pïrï), os índios
fizeram-se “ajudantes” (ahoyarï) dos mekoro e, com os mekoro,
de um patrão que comandava um sistema de aviamento regional
na segunda metade do século XX.
Os Katxuyana contam que apresentaram castanhais aos mekoro,
e que cederam algumas “aldeias velhas” ou “antigos lugares”
(patatpo) para que acampassem, temporária e sazonalmente,
para a coleta. Diz-se que, por vezes, compartilhavam com os
luisa g. girardi
mekoro essas malocas temporárias, que nomeiam e situam até
os dias atuais: eram, entre outras, Curuá, próxima à foz do
Cachorro; Mariha, conhecida em português como “Vieira”, no
médio Cachorro; e Murusi, na margem esquerda do Mapuera, à
embocadura com Trombetas. A castanha – e, um pouco depois,
o couro de onça – era a contrapartida principal das mercadorias
oferecidas pelos mekoro e por esse patrão, que estabeleceu um
barracão de comércio nas proximidades de Cachoeira Porteira.
O patrão, que mantinha um regatão entre o entreposto e
Oriximiná, adiantava mercadorias e, em cobrança às dívidas,
demandava dos mekoro – e, junto aos mekoro, dos índios –
sua dedicação à caçada ou ao extrativismo; uma vez realizado
o trabalho e quitada a dívida, adiantava novas mercadorias e
demandava novos serviços. Conta-se que os empréstimos e
endividamentos eram infindáveis – “os marreteiros disseram que
estávamos devendo, mostraram o papel”, lembrou H. Awahuku
a Roberto Cortez –, mas note-se que ele não é entendido como
desvantagem ou submissão: “para nós a vida era boa”, comentou
o narrador, “só agora vejo que faziam covardia”. Se o “ajudante”
(ahoyarï) colocava-se à disposição dos mekoro (e, com eles, do
patrão), deles demandava alimentação e generosidade – além, é
claro, das mercadorias26.
26.
Destaque-se, nesse sentido, que a patronagem era também
compadrio27. Conta-se que, nessa época, os indígenas e os
mekoro tornaram-se “compadres” em batismos celebrados
pelos mesmos franciscanos que, mais tarde, transfeririam os
Katxuyana para a Missão Tiriyó. O compadrio reiterava e selava
os vínculos entre os “compadres”, com quem, agora, trocava-se
não apenas cães por espingardas ou mercadorias por serviços.
Alimento, cuidado, presentes e proteção deveriam ser garantidos
aos “afilhados” indígenas pelos “padrinhos” 28 mekoro, que
também ofereceram alguns nomes e sobrenomes não indígenas
que antecedem os nomes katxuyana em suas certidões de
nascimento e documentos de identidade29. Nos acampamentos
compartilhados entre “compadres”, os Katxuyana aprenderam
como os mekoro cozinhavam, o que plantavam, como comiam,
faziam farinha, a língua que falavam, a maneira como negociavam,
como trabalhavam.
Compartilhar alimento, cuidado, linguagem, nominação, trabalho
e proteção é o que se espera de alguém considerado pïrehrï,
“parente” ou, literalmente, “minha gente”, “meu pessoal”.
Voltamos, portanto, ao aparentamento e à familiarização, isto é,
à fabricação do parentesco, inaugurada pelo movimento a que se
refere o verbo “acostumar” ou “amansar” (-enhonmu). Aparentar ou
A expressão ahoyarï, que me foi traduzida como “ajudante”, é também utilizada para referir-se àqueles que auxiliam um “dono de lugar” ou “chefe” (pata yotono)
nas atividades coletivas cotidianas. A expressão também me foi traduzida, nesse sentido, como “segundo cacique”, posição potencialmente ocupada pelo cunhado
ou genro de um “dono de lugar” ou “chefe”.
27.
O compadrio/patronagem é descrito por diversos etnógrafos amazonistas. Gabriel C. Barbosa (2007) analisa o compadrio-patronagem experimentado pelos
Aparai e Wayana, enquanto Julia Frajtag Sauma (2013, 2014) trata de descrever o complexo entre os mekoro que identificam-se como “Filhos do Erepecuru”.
Considerações sobre o compadrio-patronagem também podem ser encontradas nos trabalhos de Oiara Bonilla (2005), sobre os Paumari e, mais à distância, de
Anne-Marie Losocnzy (1997), sobre os Embera na Colômbia, e de Peter Gow (1991), sobre os Campa e os Piro no Peru.
28.
As expressões “afilhado(a)”, “compadre”, “madrinha” e “padrinho” não encontram correspondente direto nas línguas nativas. Em alguns contextos, o par
“afilhado” e “padrinho” me foi traduzido, respectivamente, como murerï e paha, que se aplica a todos considerados “filhos” (S, BS, etc.) e “pais” (F, FB, etc.); em
outros, como nuhoïtekarï e poïtekarï, “filho de criação” e “pai de criação”; e, em outros ainda, como nuanohïrï e ouwo, “sobrinho” (ZS) e “tio” (MB). Não tenho
condições, aqui, para extrair as consequências dessas diferenças – como não tenho para explorar as diferenças entre colocar-se como “ajudante” (ahoyarï) ou
como “compadre” –, mas cabe ressaltar se as primeiras relações (murerï/paha) remetem à consanguinidade, as últimas (nuanohïrï/ouwo) remetem à afinidade.
Tal variância parece-me congruente com a leitura de Peter Gow (1991: 175) a propósito do compadrazgo entre os Campa e os Piro no Peru, definido, justamente,
como uma relação de “quase-afinidade”/“quase-consanguinidade”.
29.
João, Maria, Viana, Vieira e Printes são nomes e sobrenomes de batismo que, por vezes, também foram inscritos nos corpos indígenas sob a forma de tatuagens.
98
familiarizar é extrair da afinidade a consanguinidade, da inimizade
o parentesco. A continuidade dessa fabricação, interminável,
depende da habilidade de “criar” ou, mais precisamente, “fazer
crescer” (hoïte-) algo ou alguém, destinando-lhe cuidado, nutrição
e orientação. Experimentada e incorporada, essa capacidade é
constitutiva da condição humana madura, definida pela justa
habilidade de (re)produzir o parentesco, isto é, de “criar” ou “fazer
crescer” outro algo ou alguém.
Os Katxuyana, portanto, deixaram-se “acostumar” ou “amansar”
(-enhonmu) pelos mekoro, fazendo-se “parentes” (pïrehrï) e, às
vezes, descrevendo sua condição segundo a metáfora da “mistura”
(toskema). Mas a que diria respeito a “mistura” katxuyana?
Estariam os Katxuyana virando mekoro, isto é, virando cafuzos,
caboclos, mestiços – virando brancos? Como um dia explicou-me
um “padrinho” mekoro sobre seu “afilhado” katxuyana, “índio é
igual onça: ele adoma, mas ele não amansa nunca, nunquinha”.
Essas passagens possibilitariam a transformação da afinidade
em consanguinidade, isto é, da alteridade e identidade.
Progressão e regressão, todavia, parecem apresentar-se como
itinerários simultaneamente possíveis: diante da primazia
da afinidade sobre a consanguinidade na fabricação do
parentesco amazônico, a transformação da inimizade em
parentesco é, necessariamente, reversível30 (Viveiros de
Castro, 2002a, 2002c).
Em concordância com essa proposta, não me parece possível
escolher, de antemão, entre a inimizade e o parentesco – entre
a convivialidade e a predação –, tomando uma ou outra posição
como explicativo monocausal das relações entre os Katxuyana e
os mekoro no Trombetas. A dinâmica entre identidade e alteridade
caracteriza as relações afroindígenas trombetanas, à qual, creio,
dirige-nos a metáfora nativa da “mistura” (toskema). Contrapondose à noção de “mestiçagem” ou “miscigenação” – que, no contexto
***
brasileiro, encontra expressão no “mito da três raças”, fundador
À primeira vista, as relações com os mekoro delineiam
um enredo progressivo: passar-se-ia da guerra para o
de uma identidade nacional homogênea e unificada – a “mistura”
comércio e, eventualmente, do comércio para o parentesco.
realizada por (e na) contínua diferença.
30.
katxuyana é, em suma, “abertura ao outro” (Lévi-Strauss, 1991),
Uma polarização entre afinidade e consanguinidade apresenta-se como contraste caro às primeiras sínteses dedicadas às Guianas (Overing, 1983-1984; Rivière,
1984). Nelas, os povos nativos foram retratados como grupos locais dispersos em aldeias pequenas e instáveis, idealmente endogâmicas e com tendências à
residência pós-marital uxorilocal. Essas aldeias seriam formadas pelas parentelas dos “chefes-sogro”, capazes de atrair seus genros para perto de si uma vez
consumado o casamento com suas filhas. A endogamia e a uxorilocalidade seriam mecanismos para o controle de recursos humanos escassos – da produção
do trabalho (e, assim, dos genros) e da sua reprodução (e, portanto, das mulheres) –, expressos pela aliança simétrica prescritiva, responsável por manter a
produção e reprodução de riquezas nos limites de um mesmo grupo local. Rivière sustenta que “as trocas com o outro são marcadas mais pela reciprocidade do
que pela predação” (1984), e que, nesse sentido, “o exterior é essencial para a existência e a reprodução do interior, [mas] é também perigoso, e os tratos com
ele devem ser mantidos em nível mínimo” (Idem: 17). As relações entre exterior e interior somente seriam possíveis quando transmutadas por um mecanismo
de expulsão das diferenças: o “outro”, um estrangeiro que pertence ao “exterior”, é percebido como parente ao corresidir em um mesmo local. O afim torna-se,
assim, consanguíneo; o alter, logo, transforma-se em ego; a diferença converte-se, portanto, em identidade. Estes seriam, em suma, os resultados da “xenofobia
típica da região”. A coletânea “Redes de relações nas Guianas” (Gallois, 2005) levanta questionamentos importantes sobre o modelo explicativo proposto por
Overing e Rivière. Os artigos reunidos nesta obra tratam de temas que promovem a abertura da sociocosmologia indígena, como o comércio, a guerra, a espaçotemporalidade e o xamanismo (ver, respectivamente, Barbosa, 2005; Pateo, 2005; Grupioni, 2005; Sztutman, 2005) e, assim, “[...] questionam a imagem do
atomismo guianense como correspondendo a uma forma estrutural nativa. Buscam, cada um a seu modo, mostrar como essa imagem fornece apenas uma visão
parcial da vida social nas Guianas” (Gallois, 2005: 19; grifos meus). Esses trabalhos procuram superar recortes espaciais e étnicos nas reflexões sobre os povos
indígenas da área em questão, focando-se, para tanto, nas relações que ultrapassam as fronteiras dos “grupos locais” e “grupos regionais”. A ênfase permite uma
reflexão sobre a região nos termos da noção de “rede”, que possibilita, justamente, uma crítica à dicotomia entre o “interior” e “exterior”.
99
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luisa g. girardi
carlos penteado
COSMOLOGIA
E HISTÓRIA WAIWAI
E KATXUYANA:
SOBRE OS
MOVIMENTOS
DE FUSÃO
E DISPERSÃO
DOS POVOS (YANA)
Ruben Caixeta de Queiroz
INTRODUÇÃO
Waiwai é um nome genérico para designar vários “subgrupos”
indígenas que hoje habitam uma vasta região que vai do sul da
Guiana (rio Essequibo), passa pelo leste do Estado de Roraima
(rios Jatapu e Anauá) e chega ao noroeste do Estado do Pará (rio
Mapuera). Da mesma forma, Katxuyana1 é um nome genérico
para designar outros “subgrupos” que também estão espalhados
no norte e noroeste do Estado do Pará (rios Paru de Oeste,
Trombetas, Cachorro e Nhamundá).
O pertencimento de cada “subgrupo” indígena a uma ou outra
dessas etnias pode ser melhor compreendido a partir de razões
sociológicas, cosmológicas e históricas. Neste último caso,
as circunstâncias particulares de intervenção perpetradas
por agentes da sociedade ocidental – em especial a ação
missionária – tiveram um papel crucial na formação e na
“invenção” dessas duas unidades culturais e sociais que ora
denominamos Waiwai e Katxuyana.
Na verdade, ainda há poucos estudos sobre a história e a
cosmologia desses grupos. Sobre a cosmologia Waiwai, contamos
com um trabalho em inglês precursor e essencial: trata-se da
etnografia de Niels Fock, datada de 1963, denominada “Waiwai:
religion and society of an Amazonian tribe”. Sobre a história
Katxuyana, contamos com textos dispersos de Protásio Frikel,
notadamente, “Os Katxuyana: notas etno-históricas”, publicado
em 1970. Estes dois textos são pontos de partida – ainda que
datados e limitados – para o presente trabalho e nos servem para
compreender o fundo histórico-cosmológico da paisagem e da
ocupação indígena no município de Oriximiná, particularmente
no vale do rio Trombetas.3
Cronistas, missionários, antropólogos e indigenistas que
percorreram e descreveram a região usaram com frequência
categorias distintas para designar tais “grupos” ou “subgrupos”
indígenas: povo, nação, tribo, linhagem, sociedade, cultura.2
Há várias razões para essa variação terminológica, mas todas
as designações guardam uma dificuldade em circunscrever a
unidade social à qual se quer fazer referência. Unidades sociais
aqui na região mencionada são associações provisórias e
fortemente marcadas pelo fator de migração, intercasamentos
e locais de moradia. Está que fatores como filiação, ou linhas
de continuidade, como a antropóloga Denise Fajardo Grupioni
Estamos cientes de que a carência de documentos históricos e a
pouca profundidade nos relatos dos cronistas são circunstâncias
que impedem que se tenha uma melhor compreensão da região.
Ao mesmo tempo, tal constatação nos faz crer na necessidade
de novos estudos na área da história e da arqueologia e,
fundamentalmente, em uma história indígena ou feita a partir
da perspectiva indígena. Curiosamente, o estudo de Protásio
Frikel acima citado – ainda que demasiadamente especulativo
e herdeiro que é de uma tradição ultrapassada na antropologia,
o difusionismo – pretende articular cosmologia e história na
compreensão do povo Katxuyana e defende que a mitologia
1.
2.
3.
106
(2002, 2005) prefere denominar a propósito dos Tiriyó, devem
ser levados em conta nesses tipos de associações e formações
indígenas. Contudo, neste trabalho, pretendemos focar em duas
dimensões da vida social para dar conta de circunscrever os
grupos Waiwai e Katxuayna no tempo e no espaço presentes: a
história e a cosmologia.
Katxuyana, esta parece ser a nova grafia que vem sendo estabelecida em um trabalho conjunto de linguistas e indígenas. Por isso, a adotamos aqui, exceto quando
aparece em citações. Neste caso, precisamos manter a grafia do texto citado, por exemplo, Katxuyana.
Neste trabalho, vamos usar, na maioria dos casos, a categoria “povo” para nos referirmos aos grupos indígenas, por achar que ela está mais próxima do conceito
nativo de yana ou yenna, um coletivo de pessoas humanas, que, na verdade, também se estende às não-humanas. Por exemplo, Katxuyana (Katxu + Yana) quer
dizer povo (Yana) do rio Katxuru (rio Cachorro).
Algumas dissertações de mestrado têm, nos últimos anos, suprido em parte a carência de dados etnográficos na região, como a de Oliveira (2010) sobre os
Waiwai, a de Girardi (2011) sobre os Katxuyana e a de Lucas (2014) sobre os Hixkaryana. As duas primeiras se desdobraram em teses de doutorado, atualmente
em preparação.
indígena pode ser uma linha auxiliar da história e vice-versa,
sobretudo para aqueles casos nos quais não há qualquer
documento escrito (isso vale para o período anterior à chegada
dos europeus) ou, se existe, é pouco confiável.4
A articulação entre mito e história, na verdade, aparece nos
relatos dos próprios informantes indígenas de Protásio Frikel,
o que leva o antropólogo a acreditar que há uma espécie de
tendência “mitologizante” da história, isto é, uma tendência
a “substituir fatos históricos por traços mitológicos” (Frikel,
1970: 25). A afirmação do autor se deve ao fato de que ele
era incapaz, na época, de reconhecer um traço marcante na
cosmologia indígena, ou seja, a ausência de fronteiras absolutas
entre humanos e não-humanos no passado pré-cosmológico.
Na sua ânsia de separar história e mitologia, Frikel aponta que
os relatos dos Katxuyana sobre um movimento migratório mais
recente a partir do leste (depois da chegada do colonizador
europeu), a propósito dos grupos que subiram os rios Amazonas
e Trombetas, mencionam personagens e paisagens reais, bem
conhecidos, como Santarém e Óbidos. Já o relato da imigração
do oeste (por se tratar de uma época mais recuada, no passado
anterior à invasão europeia) “apresenta os fatos em forma de um
mito, escondendo os dados históricos sob o véu misterioso ou
mistificante de figuras, as mais das vezes zoomórfas, tratandose de grupos alheios; ou antropomorfas, quando se trata
do próprio grupo.” E, a partir disso, conclui: “No conjunto,
constatam-se, portanto, duas maneiras de apresentação
histórica que poderíamos denominar, uma, de mítica, outra de
realista” (Frikel, 1970: 25).
Do nosso ponto de vista, os dois relatos falam sobre o passado
katxuyana a partir da experiência vivida e da sua cosmologia, sem
que possamos discernir uma fronteira rígida entre fato realista e
mítico. Os mitos dizem menos sobre o passado do que sobre as
formas de organização social contemporânea, sobre as migrações,
4.
a dispersão e, em suma, sobre como os índios se adequam ou se
transformam em sua relação com o mundo dos não-indígenas que
lhes chega na forma de mercadorias, ação missionária, políticas
públicas, territorializações decorrentes das figuras jurídicas de
terra indígena e das divisões administrativas entre estados e
países. Enfim, de acordo com Marshall Sahlins (2008: 28), no
seu livro “Metáforas históricas e realidades míticas”, o maior
desafio para uma antropologia histórica é “não apenas saber
como os eventos são ordenados pela cultura, mas como, nesse
processo, a cultura é reordenada. Como a reprodução de uma
estrutura se torna sua transformação?”.
O objetivo maior do presente texto é menos falar sobre a
organização social e mais sobre a distribuição espacial das
unidades sociais (ainda que fluidas e dinâmicas), hoje, na
paisagem do rio Trombetas – a partir de registros históricos
e mitológicos.
Apesar das limitações da obra de Frikel Protásio, conforme
já assinalamos acima, acreditamos que é bastante importante
e ainda atual a sua tentativa de desenhar um quadro da
distribuição espacial – a partir de critérios linguísticoculturais e de proximidade geográfica – das unidades sociais
no Pará setentrional e das suas zonas adjacentes, que, hoje,
sabemos, formam uma rede de socialidade mais abrangente
na região das Guianas. Ao fazer um resumo desta classificação
proposta pelo autor, podemos falar de três complexos culturais
– todos eles filiados à família linguística caribe, com exceção
de uma pequena área (situada na margem esquerda do alto rio
Mapuera) ocupada originalmente pelo povo Mawayana, falante
da família aruaque –:
1) Complexo Parukuto-Charuma, composto pelos povos que
ocupam a parte noroeste da bacia do rio Trombetas (incluindo
o rio Nhamundá e o rio Jatapu). Os principais povos aqui
Frikel (1970: 07) cita uma frase de um outro grande nome da antropologia brasileira, Eduardo Galvão, para corroborar o seu método: “a reconstituição através do
mito e da memória tribal poderá parecer ousada, mas pode abrir caminho.”
107
citados são: Waiwai, Hexkaryana, Xereu, Mawayana,
Karapawyana, Tunayana, Parukoto, Katuena;5
2) Complexo Warikyana, composto pelos povos que ocupam a
parte central da bacia do rio Trombetas, às margens desse
próprio rio e de seus afluentes médios: rios Cachorro,
Cachorrinho, Yaskuri e Kaspakuru. Os principais grupos aqui
citados são: Katxuyana, Yaskuriyana, Kahuyana, Kahyana,
Ingarüne, Ewarohyana; e
3) Complexo Pianokoto-Tiriyó, composto pelos povos que
ocupam a parte oriental da bacia do Trombetas, nos
interflúvios do Panamá-Marapi-Paru de Oeste-Paru de Leste.
Os principais grupos citados são: Prouyana, Okomoyana,
Aramagotó e Akuriyó.6
No contexto do presente trabalho, vamos relatar aspectos da
história e da cosmologia dos dois primeiros complexos acima
citados, mostrando que de fato há entre eles uma diferença
marcante. Se consideramos que o Complexo Parukoto-Charuma
se assemelha muito em suas dimensões culturais e linguísticas
ao Complexo Pianokoto-Tiriyó, podemos reconhecer, de acordo
com Frikel Protásio, que o Complexo Warikyana, do qual fazem
parte os Katxuyana, na zona central do rio Trombetas, situa-se
como uma espécie de cunha entre os dois primeiros complexos.
A LONGA HISTÓRIA NA REGIÃO:
DESDE A CHEGADA DOS EUROPEUS
Todas as cidades do baixo rio Trombetas foram fundadas em
lugares que antes eram habitações indígenas ou por indígenas
5.
6.
7.
108
que desceram das cabeceiras dos rios para fundá-las: Óbidos,
Oriximiná, Nhamundá, Faro. Por exemplo, quando, em 1697,
o capitão Manoel da Mota e Siqueira construiu, por ordem do
capitão-general e governador do Grão-Pará, uma fortaleza no
local onde hoje se situa a cidade de Óbidos, ali já atuavam os
missionários da Piedade7, promovendo a redução de índios então
denominados de Pauxis (ou Pauchis), “dos quais a fortaleza e
o novo lugar tomaram seu nome” (Frikel, 1970, p. 38). Ainda
segundo o mesmo autor:
A fortaleza, por sua vez, precisou sempre do braço
indígena para sua construção, conservação e
manutenção. Muitos dos índios se evadiram devido aos
maus tratos que recebiam. Por isso, a população, de vez
em quando, foi reforçada por descimentos de silvícolas
do Rio Trombetas.
Frikel, 1970.
Trinta anos depois, mais precisamente em 1725, sob o comando
do frei Francisco de São Manços – pelo que se sabe, o primeiro
português a subir o alto rio Trombetas –, foram realizadas três
expedições com o objetivo de localizar e atrair indígenas para as
missões-aldeias no baixo curso deste rio. Tais expedições foram
minuciosamente descritas pelo frei Francisco de São Manços
no seu “Relatório”, o documento escrito mais importante até
hoje produzido para a região durante todo o período colonial,
submetido a uma recente análise e interpretação geográfica e
etno-histórica por parte de Antônio Porro (2008). De acordo com
este autor, a importância do documento se deve ao fato de que ele
nomeia e localiza um conjunto de cerca de 50 ‘nações’ indígenas,
“quase todas ignoradas pelas fontes históricas e etnográficas
Aqui, optamos por usar a ortografia mais corrente na atualidade para nos referir a esses povos, e não aquela empregada por Frikel Protásio (1958: 132). Este autor
cita 26 “subgrupos” ou povos filiados ao Complexo Tarumã-Parukoto. Hoje sabemos que muitas destas denominações são apenas variações para designar um mesmo
“grupo” ou, como preferimos, povo. Conforme a literatura etnológica contemporânea tem revelado, os nomes próprios que definem uma “unidade social” ou grupo
“étnico” nesta região (e alhures) não são autoatribuições, mas, sim, designações atribuídas por grupos “externos” (ver, por exemplo, Viveiros de Castro, 2002).
Na verdade, a maior parte dos povos deste complexo habita o lado do Suriname, nas cabeceiras dos rios que desaguam no Atlântico, principalmente Shipariwini,
Tupanahoni e Paloemeu.
De acordo com Frikel (1970: 38), “os missionários da Piedade, também chamados Capuchos da Piedade, eram os antigos Franciscanos da Província da Piedade,
em Portugal. Não eram os atuais ‘Capuchinhos’, que naqueles tempos foram denominados ‘Barbadinhos’.”
posteriores, além de mencionar muitas de suas aldeias e de seus
chefes” (Porro 2008, p. 387, grifo nosso)8.
Francisco de São Manços era o frei responsável pela vila de
São João Batista de Nhamundás9. Na sua primeira viagem ao rio
Trombetas, em 1725, ele encontrou os índios Abuí (Wabuí) no
lago de mesmo nome, na margem direita do rio Trombetas, de
frente ao atual lago Jacaré (Frikel, 1970, p. 38), que se localiza
logo abaixo da atual vila de Cachoeira Porteira. De lá, disse
Porro (2008, p. 388), foram trazidos e assentados “na missão
162 índios da nação Babuhi [Uaboy], além de 70 da nação
Nhamundá, provavelmente do rio homônimo”.
Uma segunda expedição, solicitada pelo frei Manços, foi
realizada em 1726 pelo seu assistente frei Francisco Alvor (e
composta de mais 41 índios, além do soldado Francisco Dias, do
presídio de Óbidos). Neste empreendimento, os expedicionários
conseguiram arrebanhar para a missão apenas um casal da
“nação” Parukoto habitante do rio Urucurin.
Diversos chefes de aldeias vieram e ouviram sua
exortação para que descessem com ele em seu retorno
à missão do Nhamundá. Ao final dos entendimentos,
o ‘chefe maioral’ daqueles Parukotó, Teumigé, da
aldeia de Moxotoreí, determinou que dois outros
chefes subalternos seus, Maxacari, da aldeia de Moiri,
e Tomari, da aldeia de Momonhari, fossem com o
missionário. A 19 de dezembro, a expedição começou a
viagem de regresso levando consigo, ao todo, 40 índios
parukotó; chegaram sem maiores incidentes à missão
do Nhamundá a 1o de janeiro de 1728.
Porro, 2008: 394.
Conforme demonstramos em outro texto, Caixeta de Queiroz
(2014), bem como no relatório de identificação e delimitação da
TI Katxuyana-Tunayana, destas expedições e do “relatório” de São
Manços, podemos extrair quatro conclusões muito importantes:
1) o rio Mapuera e os seus principais afluentes da margem
direita (rios Acari, Baracuxi, e Tauini) e da margem esquerda
Informado pelo seu assistente frei Alvor que nas cabeceiras do
rio Trombetas (na verdade, como demonstra Antônio Porro, do
rio Mapuera10) haveria inúmeras “nações” incógnitas, o próprio
(rio Urucurim) eram habitados por uma grande quantidade de
frei Manços realizou uma terceira expedição, subindo o rio
Trombetas a partir da Vila de Nhamundá, no dia 28 de outubro
de 1727. De acordo com a síntese de Antônio Porro:
constitui, pois, como uma unidade territorial e etnográfica,
grupos ou “nações” distintas – mais de 50 são citadas –; 2) todos
estes grupos ocupavam a bacia do rio Trombetas, área que se
ocupada por diferentes grupos indígenas, com diferentes dialetos,
mas inscritos num mesmo complexo cultural; 3) estes grupos
8.
“Além de ser a mais antiga, a ‘Relação’ de São Manços é, também, a única fonte anterior a meados do século XIX a nomear e a situar, em relação à hidrografia da
região, um grande número de grupos indígenas e suas aldeias.” (Porro, 2008: 388)
9.
“Em 1693, com a redistribuição dos territórios missionários, a aldeia jesuítica de Santa Cruz do Jamundá (ou Nhamundá), junto ao baixo curso daquele rio,
passou à gestão dos Capuchos da Piedade sob a denominação de São João Batista de Nhamundás (Leite, 1943, p. 277-278). Alguns anos mais tarde, a aldeia foi
transferida para as margens do lago de Faro, de ares mais salubres e de melhor acesso, onde iria dar origem à cidade deste nome”. (Porro, 2008: 388).
10.
De acordo com o “Relatório” de São Manços, as expedições comandadas por sua missão teriam subido até as cabeceiras do rio Trombetas. Contudo, segundo
Antônio Porro, a partir da cachoeira Porteira, os missionários teriam seguido o curso do rio Mapuera. Porro ainda relativiza este “equívoco”, ao dizer que,
obviamente, “ao denominar ‘Trombetas’ o rio Mapuera, São Manços não estava cometendo um erro geográfico; o ‘verdadeiro’ curso de um rio tem sido, muitas
vezes, mera convenção geográfica, e o ‘verdadeiro’ alto Trombetas ainda não era conhecido” (Porro 2008: 393). Além disso, ainda é preciso acrescentar que, na
sua parte norte, o rio Mapuera é formado pela confluência dos rios Tauini (margem direita) e do rio Urucurim (margem esquerda). As cabeceiras deste último rio
se aproximam das cabeceiras do rio Cafuini, que é exatamente um afluente da margem direita do rio Trombetas. Através destes interflúvio, Urucurin-Cafuini, os
grupos indígenas da bacia do alto Mapuera comunicavam-se e tinham extensas relações com os grupos indígenas da bacia do alto Trombetas. Ou seja, no final das
contas, alto Mapuera e alto Trombetas situam-se numa mesma “área etnográfica”.
109
ruben caixeta de queiroz
mantinham-se relativamente isolados com relação às frentes
de penetração da colonização portuguesa a partir da foz do rio
Trombetas (frei São Manços teria sido o primeiro missionário
português a subir este rio, conforme citado); 4) contudo, estas
“nações” indígenas não estavam sem qualquer tipo de contato
com a colonização europeia, muito pelo contrário, no século
XVIII, tais indígenas sofriam pressão do norte, por meio dos
holandeses, que buscavam mão de obra escrava em troca de
mercadorias manufaturadas.
Para confirmar o último ponto acima, podemos citar uma
interpretação de Porro (2008: 396) extraída do “relatório”
de Manços:
A guerra, sob forma de ataques, incursões e razias,
parece ter sido uma modalidade habitual de relações
intertribais. Uma das suas principais finalidades, senão
a principal, era a obtenção de escravos destinados ao
escambo por mercadorias. A nação dos Paranancari
[=Faranakaru]11, do extremo norte, era a “primeira que
recebe ‘fazendas’ [mercadorias] da mão do Holandês,
para as distribuir e passar [trocar] por escravos por
todas as nações que ficam pelos rios”.
Conforme já foi dito, o forte de Pauxis (atual cidade de Óbidos)
sempre foi reabastecido com população indígena habitante
do rio Trombetas. Num dos descimentos, em 1747, relata-nos
Baena (apud Frikel, 1970: 39) que se “praticou enormidades e
delictos, a cujo castigo se evadio transfugindo para a espessura
do Trombetas.” O comentário de Frikel a seguir explica a subida
ou fuga dos índios de Pauxis para as cabeceiras do rio Trombetas
e seus afluentes:
Houve um massacre por parte dos índios revoltados
que serviram ao forte e aos colonos. Esta matança,
provàvelmente, foi a razão da grande “arribação”
dos índios do baixo Trombetas, dos Pawixi (Pauxís) e
de outros grupos (Mêrêwá, etc.), dos quais a tradição
Katxuyana fala [ainda hoje, 2014]. Primeiro
separaram-se os Pawíxi que se refugiaram nas matas
do rio Cuminá/Erepecuru12 [afluente da margem
esquerda do rio Trombetas]. Nimuendaju (1948, 3:
211) menciona como nôvo “habitat” dêsses índios as
cabeceiras dos afluentes do Cuminá, mais exatamente
do baixo Erepecuru: Acapu, Água Fria e Penecura.
A frase conclusiva: “The Pauxi no longer exist” (ibid.),
parece-nos precipitada. Até 1946, os Katxuyana
ainda tiveram contatos ocasionais com os Pawiyána
do alto Küate/Ponékuru que é o nome correto do
igarapé Penecura, no dialeto Katxuyana13. E mesmo
no decênio 1950 a 1960, os Páwiyána ou Pawixi
tiveram contatos esporádicos com os castanheiros que
subiram o rio Erepecuru.
Frikel, 1970: 39.
Depois do documento de São Manços, datado de 1729,
passaram-se cerca de cem anos sem que tivéssemos registros
11.
Na verdade, muito provavelmente, como tem sido demonstrado pela etnografia contemporânea (Rivière, 1969: 14, n.1; Howard, 2003: 60 ), o termo paranancari,
usado pelos índios Parukoto, de quem o frei recebeu a menção, pode ter sido usado pelos indígenas para designar os próprios holandeses. Ainda hoje, a palavra
panarakari é utilizada por povos da família caribe para fazer referência aos estrangeiros com os quais estabelecem relações. Além disso, é preciso acrescentar que,
mais ao norte das cabeceiras dos rios Trombetas e Mapuera, “um circuito comercial análogo, que envolvia holandeses do Essequibo e tribos do alto rio Branco, do
rio Negro e do Solimões nessa modalidade de troca havia sido descrito ao final do século XVII pelo jesuíta Samuel Fritz, e é provável que a sua dinâmica estivesse
enraizada numa tradição pré-européia de comércio intertribal” (Porro, 2008: 396).
12.
[Nota do autor, 44]. “Uma informação Katxuyana diz: “Arapkúru é denominação Ingarüme (Katxuyana) para o Erepecuru; Kumína (Cumína) é a dos Pianokotó.
Mas o rio é o mesmo.”
13.
[Nota do autor, 45] “Referem os Katxuyana que, antigamente, existiam relações mais estreitas entre os dois grupos, que se visitaram mùtuamente e fizeram festas
em comum.”
111
mais precisos sobre os índios do interflúvio do Trombetas – e
é razoável conceber que eles tivessem mantido uma relativa
independência com relação às frentes de colonização que
ocupavam as regiões mais próximas da foz do rio. Em 1835, face
à guerra denominada Cabanagem, os escravos negros, revoltosos
contra os seus senhores e em busca de liberdade, subiram o rio
em busca de proteção e fundaram quilombos famosos como o
Maravilha, quase na boca do rio Kaspakuro. Nesta subida, os
negros se aproximavam dos indígenas e deles adotavam práticas
de agricultura (como o cultivo da mandioca) e contraíam
casamentos (ou, mais frequentemente, “arranjavam” mulheres
indígenas para homens negros), mas, ao mesmo tempo, entravam
em conflitos com os indígenas e os obrigavam a subir ainda mais
para as cabeceiras dos rios.
Na segunda metade do século XIX, várias expedições punitivas
aos quilombolas foram desencadeadas pelos soldados da Guarda
Nacional, dentre elas, a famosa invasão do quilombo Maravilha
em 1855. Comandada por João Maximiano de Souza, a expedição
de punição se deparou com negros que desciam o rio, alguns
dos quais conseguiram regressar ao mocambo antes dos oficiais
e alertar as outras pessoas sobre a aproximação da expedição.
Não obstante, um homem foi capturado, informando que o quilombo
“[...] comportava pessoal de ambos os sexos, superior a 70 negros,
e que [estavam] em contacto com os gentios [indígenas], menos
alguns que são antropophagos” (Souza, 1875 apud Funes, 1995:
149). O mesmo homem afirmou que negros e índios estariam em
contato com “mascates e comerciantes de Demerara” (Idem: 150),
na Guiana Holandesa, e não seria descabido supor que esses
povos também praticassem trocas matrimoniais. Nas cercanias do
Maravilha, guias Munduruku encontraram indígenas “[...] de cor
alva e barbados, e outros de cor abronzada e cabellos crespos”
(Idem: 150), dando sugestões sobre um possível processo de
miscigenação. Maximiano de Souza finalizou os seus relatos com
a previsão de que os mocambos do Trombetas iriam permanecer,
favorecidos pela aliança estabelecida pelos negros com os nativos
(gentios ou indígenas) da região.
112
É minha opinião que os negros quilombolas hão de sempre
zombar da força pública que ali for para batelos, pelos
muitos recursos naturaes que lhes presta o terreno, quase
inacessível e pestilento, concorrendo também efficazmente
a alliança em que estão com os gentios, sendo-lhes, por
isso, facillimo transportarem-se guiados por aquelles
centros. Operada a catechese dos gentios ficarão então os
negros isolados e desprotegidos desse auxilio vantajoso.
Souza, 1875 apud Funes, 1995: 151.
Portanto, os escravos fugidos mantinham com os indígenas do
vale do rio Trombetas ora relações belicosas, empurrando-os
para as cabeceiras, ora alianças pacíficas. O certo é que houve,
no século XIX, uma extensa rede de relações entre indígenas e
negros nesta região que, inclusive, a partir do Brasil, chegou até
os países vizinhos.
Os quilombos que por aqui (vale do rio Cuminá) existiam
e, segundo consta, ficavam acima da cachoeira do
Cajual e do rio Penecura, eram filiados aos nascidos,
em 1840, no Trombetas, com os quais se comunicavam
por terra. Aliás quase todos os rios da Amazônia tiveram
desses refúgios de escravos e até no alto Içá, Crevaux
foi surpresar a choça de uma preta velha. Parece que
tanto no Trombetas como no Cuminá, os mocambeiros,
temendo o gentio, nunca se localizaram muito acima
das primeiras cachoeiras. Contudo, diz-se que eles
acabaram por manter relações com os selvagens e
há quem adiante que, por meio das tribos Ariquena,
Charuma e Tunayana, através dos Tiriôs da Guiana, e
passando pelos Pianacotós, eles chegaram a estabelecer
contactos com seus irmãos, os negros da mata (bushnegroes) de Suriname, também escapos ao cativeiro.
Cruls, 1930: 33-34, apud Wanderley,
2006: 15-16 [Grifos nossos].
Com base nas fontes consultadas (Salles, 1971; Andrade, 1995;
Acevedo e Castro, 1993), o trabalho de Wanderley (2008: 83)
oferece um curto e preciso resumo da ocupação quilombola no
rio Trombetas no final do século XIX e início do século XX:
A ocupação negra no Vale do Trombetas teve início
nas partes altas do rio, acima das cachoeiras, onde
a morfologia funcionava como uma barreira natural
protetora, separando o mundo dos negros do mundo
dos brancos. Neste período, houve a aproximação
e a miscigenação com povos indígenas, que lhes
proporcionaram o conhecimento sobre a dinâmica da
floresta e das águas, um dos elementos essenciais da
cultura negra no Trombetas. No fim do século XIX e
início do XX, com a diminuição da pressão e o término
da escravidão, iniciou-se o processo de descenso dos
negros, que aos poucos ocuparam o médio curso do
Trombetas, localidade onde ainda se encontram.
Parte da população indígena, por sua vez, parece ter se afastado
para as cabeceiras, diante das ameaças que representava a
chegada dos “negros estrangeiros” fugindo da escravidão e da
colonização. Os grupos Tunayana e Katuena, que ocupavam o
interior do rio Turuna e o alto rio Trombetas, lá ficariam, sem
quase nenhum contato direto com os brancos até os anos de
1960, limitando-se ao uso de material lítico (pedra) ou madeira
na confecção dos seus instrumentos de trabalho.
Já os povos do Complexo Warikyana (do qual fazem parte os
Katxuyana, que habitavam os cursos do médio rio Trombetas,
como os rios Cachorro, Ambrósio, Kuhá e Yaskuri) parecem ter
sofrido duros abalos demográficos em função, sobretudo, das
doenças trazidas pelos quilombolas (ou “mocambeiros”, como
foram descritos pelos viajantes e administradores), ou por frentes
de colonização. Segundo Frikel (1970: 40-41), os relatos dos
Katxuyana falam de doenças introduzidas pelos mocambeiros,
apanhadas, sem dúvida, no baixo rio, onde eles tinham os seus
pontos de contato comercial clandestinos, para o recebimento de
panos, munição e ferramentas que ali trocavam por salsa, breus,
couros e outros artigos da mata. Houve surtos epidêmicos que
levaram muitos índios para a cova. Todavia, eles parecem ter
sido menos terríveis que os de sarampo da década de 1920 a
1930. Em todo o caso, essas doenças contribuíram da mesma
maneira para a diminuição demográfica da região.
A AÇÃO MISSIONÁRIA, A PARTIR
DO FINAL DA DÉCADA DE 1940
Se no final do século XIX constatou-se o abrandamento da
perseguição e da captura pelos senhores de escravos fugitivos,
verificou-se igualmente a continuidade do processo de conversão
religiosa, de pregação da fé entre índios e negros, da “descida”
dos índios e da formação de “vilas” cristãs. Neste sentido, é
necessário apontar que a atual cidade de Oriximiná, do baixo
rio Trombetas, foi erguida sobre uma antiga aldeia indígena, sob
o comando do padre Nicolino, ele mesmo um índio convertido
dos antigos Hixkaryana habitantes do rio Nhamundá, que tinha
como missão catequizar os índios do rio Trombetas. Com base
nas fontes jornalísticas da época e nas informações da Prelazia
de Santarém, Funes nos diz:
Em 28 de setembro de 1890, chegou a Uruá-Tapera,
Gonçalves Tocantins, que a descreveu como uma
florescente povoação à margem esquerda do Trombetas,
que poucos annos antes havia sido fundada pelo Padre
Nicolino (dez. 1877) (...) Alma verdadeiramente
christã, se havia feito espontaneamente um missionário,
um apostolo daquella pobre gente. Imagine-se com
quanto alvoroço aquelles infelizes recebiam o ministro
Redemptor, que ia procurá-los nos desertos, baptisarlhes os filhos, celebrar missa, casamento, e levarlhes palavras de conforto e consolação. Dois ideais
empolgaram a vida do Pe. Nicolino: “A pacificação
e cristianização dos pretos mocambeiros dos rios
Trombetas e Erepecurú e a catequese entre os índios.”
Para alcançar tais fins, empreendeu várias viagens por
113
estes rios. Assim, o vemos em 1876 em Porteira, no alto
Trombetas, catequizando e batizando grande número
de pretos daquela região. Faleceu em 1882, no rio
no alto rio Essequibo, sul da atual Guiana, no ano de 1949,
Provavelmente existem outros duzentos índios do outro
lado da fronteira do Brasil, e é neles que estamos
realmente interessados. Os Waiwai da Guiana atuam
como sementes, propagando a Palavra para eles –
por isso é que estamos concentrando nossos esforços
para convertê-los antes de tudo. Entrementes estamos
tentando convencer os índios brasileiros a abandonar
suas aldeias e vir morar aqui. Oferecemo-lhes facas,
espelhos, miçangas – tudo o que apreciam. Enviamos
mensageiros através das fronteiras, para contar-lhes
que aqui viveriam muito melhor.
com o objetivo de intervir e converter aquele povo, considerado
Guppy, 1958: 20.
Erepecurú, quando fazia sua terceira viagem a esse rio.”
Funes, 2004: 11.
Contudo, foi a partir do final da década de 1940 que se iniciou um
processo radical de proselitismo cristão na região, responsável
direto pela criação de grandes aldeias compósitas de diferentes
povos e pelo esvaziamento daquele modelo de pequenas
aldeias dispersas. A primeira frente evangélica, composta pelos
missionários americanos Nilo, Jaime e Roberto Hawkins, chegou
por eles como “animista e escravizado por um relacionamento
espiritual com entidades demoníacas e extremamente resistente
ao evangelho.” Ali os missionários fundaram a Missão Kanashen
e, depois de cerca de cinco anos, conseguiram “destruir” as
forças e os “espíritos” de um xamã bastante respeitado entre
os Waiwai: Ewká.14 Depois disso, por meio de Ewká, várias
expedições e pregações religiosas foram direcionadas a outros
povos que viviam do lado brasileiro.
O movimento de conversão dos índios Xereu, por exemplo,
aconteceu em 1954. Os missionários Robert Hawkins e Claude
Leavitt (este último tinha se juntado aos irmãos Hawkins
em 1953) desceram o rio Mapuera, acompanhados de índios
Waiwai, anunciando o fim iminente do mundo. Os Xereu do
baixo Mapuera, então, temorosos, mudaram-se para perto da
missão na Guiana, onde acreditavam estar mais protegidos.
Além do discurso escatológico, os missionários prometiam aos
índios habitantes do lado do Brasil, caso se mudassem para perto
da missão no país vizinho, remédios e presentes como armas de
fogo, miçangas, facas, espelhos.
14.
114
Desta forma, o missionário Claude Leavitt teria resumido o
espírito da sua missão:
De forma muito semelhante ao caso dos Xereu, os missionários
promoveram incursões nos anos de 1966 e 1967, no alto rio
Trombetas, atraindo para a aldeia-missão Kanashen uma parte
dos grupos Katuena, Tunayana, Xereu e Kahyana. Outra parte
destes grupos foi atraída para uma outra aldeia que tinha
sido criada pelos mesmos missionários no sul do Suriname:
Kwamará. Desta maneira, as duas aldeias, Kanashen e
Kwamará (que existem ainda hoje), funcionaram como polo de
atração e aglutinação de diferentes povos que estavam situados,
anteriormente, do lado brasileiro.
Uma outra frente missionária evangélica, desta feita conduzida
pelo casal Derbyshire, ligado ao Summer Institute of Linguistics,
instalou-se junto aos Hixkaryana, no ano de 1958, no rio
Nhamundá, onde hoje ainda está situada a aldeia Kassauá.
Apesar de os missionários americanos de Kanashen já, naquela
época, terem feito também expedições de proselitismo religioso
junto aos Hixkaryana do Nhamundá, a missão do Summer
instalada ali funcionou como outro polo de atração e, deste
modo, impediu uma migração indígena em massa para a Guiana.
Sobre a saga de conversão deste xamã, ver o artigo de Caixeta de Queiroz (1999) e a tese de Howard (2003).
Ao mesmo tempo, para a aldeia, Kassauá migraram vários povos
do alto rio Nhamundá e até do rio Jatapu que vinham sofrendo
o surto de epidemias como a gripe e o sarampo, depois de terem
sido atraídos para o Posto de Jatapu (onde hoje está situada a
aldeia de Santa Maria), por volta do ano de 1963, por uma ação
do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Porém, uma década
depois, o SPI abandonou definitivamente a área.
Os Katxuyana, por sua vez, já tinham enfrentado de forma
mais direta e persistente os avanços das frentes de colonização
e dos quilombolas nas cercanias do rio Cachorro e do médio
rio Trombetas desde, pelo menos, a metade do século XIX.
As doenças oriundas deste contato se prolongaram durante toda
a primeira metade do século seguinte. Desta forma, por volta
de 1925, uma epidemia de sarampo se alastrou entre a sua
população, que era então estimada entre 300 e 500 pessoas,
como nos conta Frikel (1970: 44):
Os índios enfermos, com febre alta, procuraram
‘refrescar o sangue’, tomando banho na água fria.
Em consequência disso, pegaram, no mais das vezes,
pneumonia e com isso a morte certa. A mortandade
foi enorme. Os índios entraram em pânico. Foi uma
tragédia! Durante a nossa estadia no Kaxuru, os
índios mais velhos contaram que aqueles que ainda
estavam bons já não tinham mais tempo nem vontade
de enterrar os mortos, abandonando os cadáveres
juntamente com os doentes, fugiram para a mata.
Quando, passada a epidemia, de novo se reuniram,
restavam apenas 80 ou 90 pessoas entre homens,
mulheres e as poucas crianças que escaparam.
O sarampo arrasou, praticamente, todas as faixas
da população de idade madura (dos 30 anos
pra cima), da qual somente 6 ou 8 sobreviveram.
De fato, quando 20 anos mais tarde conhecemos os
Katxuyana pessoalmente, os três grupos (dos rios
Kaxuru, Trombetas e Ambrósio) não contavam muito
mais do que 60 pessoas, no total.
Vários “subgrupos” katxuyana simplesmente desapareceram
nesse período. De tal forma que, no final dos anos de 1960, diante
da população reduzida e completamente sem esperanças de
sobreviver a mais uma epidemia, os sobreviventes dos Katxuyana
se apartaram e se dispersaram: um pequeno grupo se deslocou
para a foz do rio Mapuera, para muito próximo à atual vila de
Cachoeira Porteira, onde permaneceu por pouco tempo, e, em
seguida, juntou-se aos Hixkaryana, do rio Nhamundá; um grupo
maior, mobilizado por missionários franciscanos, dirigiu-se para
a Missão Tiriyó, no alto Paru de Oeste. Sobre essa dispersão,
mais uma vez, Frikel nos dá os detalhes:
[...] até meados da nossa década (1965,
aproximadamente) tinham deixado de existir os
Waríkyana, Káhyana e Ingarüme do [rio] Panamá,
sobrevivendo além do grupo principal dos Kaxúyana
no rio Kaxúru [rio Cachorro], somente o núcleo
Kahúyana no Trombetas. Todavia, naqueles anos,
grande parte destes últimos morreu. Os restantes, por
necessidade, ligaram-se novamente aos índios do rio
Kaxúru que, outrossim, também foram dizimados
por doenças. Em relação aos adultos, o número dos
jovens estava em certa desproporção de excedentes,
mas – e aí começa novamente o grande problema
para os Kaxúyana – todos estavam aparentados entre
si que, para a maioria dos jovens não havia mais
possibilidade de casamento dentro das leis tribais do
parentesco, etc. É, pois, natural que surgia a idéia de
ligar-se, novamente, a algum grupo para assegurar a
sobrevivência. Sob o ponto de vista Kaxúyana havia
somente duas possibilidades: uma era descer o rio
Trombetas para a região da Porteira, morar no meio
da população negra e mesclar-se com ela. Mas isto não
lhes agradava. Tinham ainda bastante consciência
tribal de querer ser e continuar “gente”, isto é, índio.
Outra era a de se agregar a um dos grupos dos altos
rios. Visto que os Ingarume, seus parentes, tinham
115
abandonado o Panamá, como bem sabiam, só lhes
restava escolher um dos grupos mais afastados.
Excluíram de antemão os Tunayâna/Xarúma, portanto
a região do [rio] Turúnu. Experiências antigas tinham
mostrado que não se davam muito bem com eles,
embora não houvesse inimizade. As opiniões variavam
entre os Hixkaruyána do Nhamundá e os Tiriyó do
alto Paru de Oeste. Realmente, uns poucos (duas
famílias, se estamos bem informados, num total de 6
ou 7 pessoas) foram ao Nhamundá e agregaram-se lá
à Missão do Summer Institut of Linguistics. A maioria,
porém, simpatizava mais com os Tiriyó pelo seguinte
motivo: havia uma simpatia tradicional para com os
Pianakotó (= Tiriyó)15.
Frikel, 1970: 47-48 [Grifo nosso].
Mais precisamente no ano de 1968, num avião da FAB,
intermediados pelos missionários católicos, os Katxuyana foram
retirados do seu lugar de habitação tradicional no rio Cachorro e
levados para junto aos índios Tiriyó, na Missão criada no Parque
do Tumucumaque16, como nos lembra Mariinha Takawaya:
O dia em que fomos tirados à força [em um avião da
FAB] da nossa terra foi o dia mais triste de nossas
vidas. Nesse dia que fomos levados tivemos que deixar
tudo para trás: roça, casas, animais de estimação,
espíritos. Não entendíamos porque estávamos sendo
levados. Meus irmãos sempre lutaram para voltar.
Mas não sabíamos o caminho de volta porque fomos
levados de avião lá para o Tumucumaque.
carlos penteado
15.
[Nota do autor: 50]. “Lendas Káhyana indicam frequentemente que grupos
dissidentes se dirigiam ou refugiaram a estes grupos, tornando-se Pianakotó,
isto é, sendo absorvidos por eles” (Frikel; Ton. Hirama & Matchuhuaya,
1955: 207-221).
16.
De acordo com Frikel (1970: 48), a Missão Franciscana no Alto Paru de
Oeste, entre os Tiriyó, foi fundada no ano de 1959.
A “VIAGEM DE RETORNO”: NOVAS
DISPERSÕES E SEDENTARIZAÇÕES
Tão logo os povos indígenas tivessem chegado nessas novas
missões-aldeias, do tipo da Missão Tiriyó no parque do
Tumucumaque ou da aldeia Kanashen no sul da Guiana,
atraídos pelos missionários, eles se organizaram a partir de
núcleos próprios dentro do todo compósito ou, ainda, iniciaram
um movimento de retorno aos territórios antigos. Por exemplo,
os Katxuyana, mal chegaram à missão e se mudaram do centro
do aglomerado para uma aldeia periférica, para manter uma
autonomia do grupo e uma certa distância do grupo mais antigo e
hegemônico no local: os Tiriyó. Em linhas gerais, podemos dizer
que, se de 1950 a 1970 houve em toda a região um movimento
em direção à concentração em grandes aldeias, numa época em
que a população indígena tinha sofrido uma grande redução
em função das epidemias, a partir do final da década de 1990,
com a recuperação demográfica, verificou-se um movimento
maior de dispersão e/ou regresso aos territórios tradicionais.
Tal reocupação, em geral, foi feita sobre ou próxima a uma área
onde no passado havia uma aldeia, ligada de alguma forma aos
ascendentes da população recém-chegada. Esse é o movimento
que iremos descrever a seguir.
No princípio dos anos de 1970, teve início um movimento
de dispersão a partir da aldeia-missão Kanashen, no sul da
Guiana. Há um certo consenso nos relatos etnográficos de que
tal movimento teria sido derivado de uma oposição do governo
que tinha se instalado naquele país, de tendência comunista, à
atuação dos missionários americanos no seu solo. Porém uma
razão propriamente indígena deve ser levada em conta: os grupos
indígenas deslocados para aquele lugar, imaginavam permanecer
um período por lá e, um dia, regressar para a área de tradicional
habitação do lado brasileiro. De fato, quando líderes como Ewká,
assediados pelos missionários, pregavam a palavra de Deus para
os não-convertidos, prometiam-lhes que a missão em Kanashem
poderia oferecer-lhes bens como espelhos, miçangas, facas e
machados, além de proteção contra o fim do mundo iminente:
“vamos lá conhecer nossa aldeia-missão, passar um tempo por lá,
depois vocês retornam”. Era esse o convite que, com frequência,
Ewká fazia aos seus “parentes isolados”.17
Nesse sentido, duas frentes de novo deslocamento foram traçadas
pelos Waiwai de Kanashen. A primeira delas foi em direção ao médio
rio Mapuera – local de tradicional habitação dos povos Xereu, de
onde muito deles tinham saído em direção à Guiana; a segunda
foi em direção ao noroeste do Estado de Roraima, onde hoje está
situada a Terra Indígena Waiwai. Neste último caso, a motivação de
deslocamento estava associada ao desejo de “pacificar” os WaimiriAtroari, um povo que recusava e combatia a construção da BR-174
(que ligaria Manaus a Boa Vista) em seu território.18
Depois de instalada a aldeia de Mapuera, os Waiwai continuaram
suas expedições de busca dos “povos não-vistos” ou isolados e
que não haviam deixado a região naquele movimento migratório
para Kanashen. Foi desta forma, que, em 1981, eles encontram
várias aldeias do povo Karapawyana localizadas no interflúvio
do alto rio Mapuera e do alto rio Jatapu, mais especificamente,
nas cabeceiras do rio Kikwo e do rio Jatapuzinho. Uma pequena
parte da população destas aldeias, no total de 16 pessoas, foi
levada para a aldeia Mapuera, enquanto o restante se dispersou
na região e, ainda hoje, permanece “isolada”. Os Karapawyana
levados para Mapuera, imediatamente, tornaram-se vítimas de
17.
De fato, os Katuena do rio Turuni foram levados para Kanashem entre 1966-67, e, cerca de cinco anos depois já começavam a retornar para o lado brasileiro.
É verdade, eles estavam retornando junto com os Waiwai para fundar a aldeia Mapuera, no rio Mapuera, e não para o rio Turuni, onde moravam antes. Vivendo
ainda hoje na aldeia Mapuera ou nas aldeias do seu entorno, os Katuena ainda cultivam com muita insistência o sonho de retornar para o rio Turuni.
18.
Depois de duas ou três expedições pelo interior do território waimiri-atroari, após parte dos Waimiri-Atroari ter ido viver por um período na aldeia waiwai, podese dizer que fracassou o projeto missionário (que pretendia usar os Waiwai como linha de frente) de “pacificação” e conversão dos Waimiri-Atroari. Para mais
detalhes sobre esse processo, confira o texto de Ribeiro & Caixeta de Queiroz (na presente obra) e o livro de Sabatini (1998).
117
doenças como diarreia e gripe. Depois de algumas mortes, os
sobreviventes, apreensivos e desadaptados a uma aldeia grande
e de gente tão diferente, solicitaram ao líder Ewká que fossem
levados de volta ao seu território tradicional, na expectativa de
reencontrar uma vida tranquila e, se possível, perto dos parentes
que tinham fugido no momento do contato com os Waiwai.
Foi desta maneira que, a partir de 1984, iniciou-se a reocupação
do alto rio Jatapu e, após a abertura de duas aldeias provisórias,
foi fundada a aldeia Jatapuzinho, na beira do rio homônimo,
afluente da margem esquerda do rio Jatapu.
Até final da década de 1990, permanecia na região uma
paisagem com a presença de grupos isolados, situados nas
cabeceiras dos igarapés, e de grandes aldeias (para o padrão
guianês) com uma formação compósita, isto é, composta por
pessoas ou gentes provenientes de “subgrupos” distintos e
originários de diferentes áreas: 1) Aaku (próximo à missão
Kanashen, sul da Guiana, alto rio Essequibo); 2) Kwamará
(sul do Suriname, rio Sipawilini); 3) Missão Tiriyó (norte do
Pará, rio Paru de Oeste); 4) Mapuera (noroeste do Pará, rio
Mapuera); 5) Kassawá (noroeste do Pará e oeste do Amazonas,
rio Nhamundá); 6) Jatapuzinho (noroeste de Roraima, rio
Jatapuzinho); e 7) Anauá (noroeste de Roraima, rio Anauá).
No final de 1990 e início de 2000, a partir destas principais
aldeias, várias outras frentes de dispersão se desencadearam
na região, num movimento de reocupação da área e, na maioria
das vezes, de volta aos locais tradicionais de habitação dos
povos (Yana) antes da intervenção missionária nas décadas de
1950 e 1960. Deste modo, os Katxuyana da Missão Tiriyó e do
rio Nhamundá reocuparam o rio Cachorro, fundando ali duas
novas aldeias. Os Tunayana reocuparam o baixo rio Turuni e
o alto rio Trombetas. Hoje, há 13 aldeias dispersas ao longo
do rio Mapuera; 11, do rio Nhamundá; e 7, do rio Jatapu.
Além disso, está em curso um movimento de reocupação do alto
rio Cachorro, local tradicional de habitação de um “subgrupo”
do povo Xereu, e do alto rio Turuni, região tradicional de
habitação do povo Katuena.
118
PETARU: UMA NARRATIVA
MÍTICA WAIWAI
Essa breve e ao mesmo tempo longa história dos povos indígenas
dos complexos culturais Tarumã-Parukoto e Warikyana, dos
quais os principais “grupos” aqui descritos são os Waiwai e os
Katxuyana, teve o objetivo de demonstrar, em primeiro lugar,
que o movimento de dispersão ou migração (em que o desejo
de reocupação do território dos antepassados é evidente) é
quase que uma variável constante. Em segundo lugar, quisemos
demonstrar que, por um lado, a fusão e a fissão dos grupos
ou povos têm, sim, muito a ver com a relação estabelecida ou
imposta pelo mundo não-indígena, sobretudo, com as ações e
intervenções das frentes missionárias; e que, por outro lado,
como muitas vezes deixamos implícito, este processo obedece
um pensamento indígena que agencia e organiza a forma como
tende a balança: ora para a dispersão, ora para a concentração.
Poderíamos afirmar que o movimento nunca se completa e se
fixa de maneira permanente (como nos dizem os trabalhos de
Perrone-Moisés & Sztutman, 2010 e Caixeta de Queiroz, 2014)
num dos polos desse pêndulo. Da mesma forma, poderíamos
justificar esse processo com base na já conhecida tese de Pierre
Clastres sobre a sociedade contra o poder coercitivo do chefe e
contra o surgimento do Estado. Porém, a nossa tarefa aqui é bem
mais modesta: ao apresentar alguns mitos waiwai e katxuyana,
queremos sugerir que esse movimento de fusão-fissão desses
povos indígenas, além de decorrer de fatores externos, pode ser
compreendido à luz da sua cosmologia ou mitologia, portanto,
do seu pensamento.
Não iremos apresentar e comentar tais mitos para justificar a
história waiwai e katxuyana, nem para justificar a sua forma
de organização social. Longe de nós também a ideia de
que a mitologia é uma forma de recuar na proto-história ou
na história dos antepassados, lá onde a memória ou a fonte
escrita não pode chegar. Nada disso. Ao contrário, achamos
mesmo que o mito tem um poder de falar muito sobre o tempo
presente, atual, mesmo quando, como no caso aqui analisado,
ele não faz parte do cotidiano da vida de tais povos, pois a
ação missionária enfraqueceu de forma eloquente esse tipo
de narrativa. Um mito não fala apenas de um tempo passado,
recuperado pela memória do narrador, mas também ajuda a
organizar o mundo, por exemplo, para explicar a “mistura”
entre os povos, os lugares que eles habitam hoje e para onde
desejam se deslocar ou se movimentar. Feitas essas ressalvas,
passemos ao mito waiwai.19 Cekma, índio waiwai da aldeia
Mapuera, em 2000, nos conta uma “história”:
Havia um homem que era dono de uma cobra-grande20.
O dono da cobra disse para sua mulher: “Vamos fazer
um cercado na beira do rio”. Ali eles davam comida
para a cobra: carne de akri [caititu], paski [cotia
pequena] e pakria [caititu]. Sempre lhe davam comida,
e a cobra crescia. Ela comia akri, paski e pakria, era a
comida que a cobra-grande gostava. Ela comia muito,
a barriga dela ficava grande, estava alegre por haver
tanta comida. Ela ficava mansinha, igual mesmo
cachorro quando chega e lambe o seu dono. Ela parecia
mesmo gente de verdade. Aí o dono falou: ‘Vamos botar
um nome nela, um nome bonito: Petaru’. Todo mundo
passou a chamá-la de Petaru. Ela cresceu ali, dentro
do cercado, onde fez um poço bem fundo, pois cresceu.
Havia tanta comida: paski, akri... Jogavam o paski ali
dentro e ela comia, comia tudo. Petaru estava mansa,
bem mansinha, igual cachorro. ‘Vamos dar comida
para Petaru’, dizia a mulher do dono. Davam comida
para Petaru e ela vinha lamber o corpo da mulher.
Ela tinha muita comida, estava alegre, ficou mansa.
Até que Petaru ficou muito grande, não sei quantos
metros a cobra cresceu. O dono dela dava comida e ela
19.
20.
o lambia, igual cachorro. Recebia mais comida, ficava
mais alegre. Petaru queria falar: ‘iiiiii’. Um dia, como
de hábito, o dono saiu para caçar pakria. Os meninos,
logo em seguida, vieram cochichar com Petaru: “Ei, ei, o
seu dono é mentiroso; ele foi caçar pakria [cotia], mas
vai trazer para você só paski [cotia pequena]. Ele vai
dizer que só matou paski, ele está te enganando, ele vai
trazer só o pequeno para você, não vai trazer o grande
não”. Então, o dono chegou da caça e foi chamar
Petaru. Chamou: “Petaru, Petaru, Petaru!” Ela não
respondeu, estava só boiando. Aí Petaru queria matar
o dono, estava muito brava. “A Petaru é enganada,
o dono mata caititu grande, mas não traz para ela”,
disseram as crianças. Petaru disse: ‘iiiii’. O dono
chegou perto, Petaru não respondeu. O dono disse
para sua mulher: “Por que Petaru não me respondeu?
Eu a chamei e ela não respondeu, está com raiva”.
Aí, a mulher do dono foi ver o que acontecia, chegou
perto do cercado, perto do rio e Petaru derrubou a cerca
e engoliu a mulher. Todo mundo se perguntou: “Por que
Petaru levou a mulher do dono dela?”; “A água estava
borbulhando!”, exclamaram as pessoas. Todo mundo
ficou triste: “Por que será?”. Depois, as pessoas foram
falar com o pajé Xurupana. Ele disse: “Vamos procurála”. E todo mundo virou wayawaya [ariranha], foram
todos juntos para o rio, havia muita gente, o rio ficou
cheio. “Ela fugiu rio abaixo”, disseram. Cantavam,
rezavam: “Petaru fugiu mesmo rio abaixo, foi lá para o
poço Weyun. Ela parou lá onde tem o poço Wamá, perto
da cachoeira Uakri [cachoeira Bateria, rio Mapuera]”.
Aí Petaru pensou: “Cheguei muito longe, ninguém vai
me achar”. O povo Wayawaya cantou a mesma música:
“wayawaya, wayawaya, wayawaya....”. Aí saíram
O mito a seguir nos foi narrado por Cekma, em 2000, na aldeia Mapuera.
Cobra Grande é uma das denominações que tem sido usada na etnografia regional para se referir ao tipo de cobra que também é conhecida como Sucuri ou Anaconda.
119
todos à procura de Petaru. “Onde está Petaru?”,
perguntaram a um povo de uma aldeia rio abaixo, que
respondeu: “Petaru estava aqui até ontem, mas já foi
embora”. O pessoal wayawaya desceu mais o rio, até
encontrar outra aldeia, e perguntou: “Será que Petaru
não passou por aqui não?” - “Passou sim, agorinha
mesmo, mas já foi embora”, responderam-lhes. Petaru
não parava não, ela ia descendo o tempo todo, até o
poço Weyun. “Cadê Petaru?” – “Saiu daqui ontem”,
respondiam. O povo Wayawaya ia descendo, todos
juntos, eles eram muitos. No caminho, encontravam
outras pessoas: “Onde está Petaru?”, perguntavam.
Até que chegaram onde estava Petaru. “Vamos cercá-la,
não vamos deixá-la fugir”, disseram. “Uns vão para lá,
outros vão para cá”, combinaram.
O pessoal wayawaya avistou o poço; viram uma
cobra pequena e perguntaram: “Cadê Petaru?”.
Ela estava ali no poço, escondida atrás das cobras
pequenas. Aí alguns wayawaya voltaram até a aldeia
Kuumutîrî, lá onde Petaru havia crescido e de onde
tinha fugido. Eles contaram para o povo de Kuumutîrî:
“Nós achamos Petaru, o que vamos fazer agora?
Vamos matá-la?”. Eles contaram para o marido da
mulher, o dono da Petaru. Aí o marido foi perguntar
para o pajé da aldeia: “O que eu devo fazer?” –
“Você é quem sabe”, respondeu o pajé. Respondeu o
marido: “eu vou escolher uma mulher velha, que
tenha muito umawa [timbó] nos braços, e vamos lá
no poço onde está Petaru”. A velha se prontificou:
“Vamos baixar o rio, onde está a Petaru?” E a velha
levou o pessoal todo com ela: Kworo [arara vermelha],
Kwayari [arara vermelha de asas azuis], Xaapi [arara
de cor azul e amarela], Yakwe [tucano de peito branco],
Peeu [galo das rochas], Worohku [pássaro de tamanho
médio e avermelhado]. A velha levou todo mundo com
ela; desceram o rio e chegaram bem perto do poço
120
onde se encontrava Petaru. “Amanhã cedo vamos botar
veneno, vamos botar timbó para a Petaru”. No dia
seguinte botaram veneno no rio. Morreu uma cobra:
“Será que é a Petaru?”, perguntaram-se. Não era.
“Será aquele?” Também não era. Botaram muito
veneno, estava igual a barro branco. “Será que é
aquele?” Ainda não era. O veneno estava no corpo
da velha, ela estava cheia de veneno. “Cadê Petaru, é
aquela?” – “É sim”. Ela estava morrendo, flecharamna. Morreu, puxaram-na para a pedra e vieram todos
os povos: os Kworo, os Kwayari, os Peeu... Cortaram
Petaru. Ela estava muito comprida, cortaram o rabo
dela, cortaram de novo, cortaram muitos pedaços.
Hoje, lá onde ela foi cortada chama-se Okoimokoto
[pedaço da cobra-grande]. É assim que chamamos
esse lugar. Quando acabou de cortar a Petaru, tudo
ali estava cheio de sangue. Aí perguntaram: “Quem
quer sangue de Petaru? Quem quer botar no corpo
dele?”. Aí o Kwayaryana [povo arara vermelha de
asas azuis] disse: “Eu quero”. E botou um pouquinho
no seu corpo, por isso não ficou bem vermelho. Já o
Kworoyana [povo arara vermelha] botou muito sangue
no corpo e ficou bem vermelho. Todos passarinhos
chegaram, Worohku também ficou bem avermelhado.
Já o Yakwe colocou só no rabo, ficou só um pouquinho
vermelho. Por fim, chegou o Xaapyana [arara
amarelada] e disse: “Eu quero, me dá sangue”. A velha
indagou-lhe: “Por que não veio antes? Está atrasado, você é
preguiçoso”. Xaapi botou só um pouco de sangue e, por isso,
ela é amarelada só no peito. A velha disse: “Todo mundo já
botou sangue no corpo, vamos voltar para a aldeia”. Então
começou a viagem de volta. Andaram, andaram... A chuva
veio, era tempo de chuva, chovia muito! Não havia casa
para todo mundo esconder. Kwayari foi logo para a casa
dele. O Yakwe se molhou um pouco e a água lavou suas
costas. Xaapi, que era preguiçosa, correu para sua casa
bem atrasada, a chuva limpou quase todo seu corpo e, por
isso, ela é amarelada. Depois da chuva, voltaram para a
aldeia Kuumutîrî [o lugar da bacaba], lá onde moravam os
Kworoyana, os Kwayaryana... lá havia muita bacaba.
Comentário
A narrativa mítica que os Waiwai denominam “História de
Petaru” remete ao universo dos relatos indígenas sobre a cobragrande (ou anaconda, ou sucuri), muito frequente em vários
outros povos e contextos etnográficos. A análise desse tema está
presente, por exemplo, nos trabalhos notáveis de Van Velthem
(2003), denominado “O bela é a fera”, e de Gongora (2007),
chamado “No rastro da cobra-grande”, nos quais, se é que
podemos assim resumir, o objetivo é compreender a apreciação
indígena da diferença como valor estético e as reflexões indígenas
a respeito das diferenciações dos seres, bem como da “produção
incessante das diferenças nas relações narradas ou vividas pelos
indígenas habitantes da região das Guianas” (Gongora, 2007: 11).
Em várias narrativas míticas, inclusive do povo Waiwai (como é
o caso da “História de Urupere”), a anaconda é descrita como um
ser perigoso, mas cobiçado pelo fato de possuir uma bela pele,
isto é, por ser o detentor do desenho e do grafismo. Além disso,
a cobra é cobiçada ou invejada pelo fato de conhecer o dom da
transformação contínua e do rejuvenescimento, uma vez que tem
a capacidade de trocar de pele.21
Contudo, na “História de Petaru” aqui narrada, pode-se dizer
que o elemento central tematizado é a origem das cores dos
pássaros e da diversidade dos grupos humanos. É digno de
nota o fato de que os pássaros e animais são postulados como
grupos humanos, ou vice-versa, pois o sufixo usado para ambos é
21.
justamente yana, que quer dizer gente ou pessoas. Dessa forma,
Kworoyana significa “povo arara vermelha” (kworo = arara
vermelha; yana = povo). Tais povos- pássaros ou povos-animais
definem as suas diferenças e fronteiras a partir das diferentes
dosagens de sangue que conseguem obter ou manter da cobragrande (Petaru). Também é interessante notar que, ao contrário
de outras narrativas míticas indígenas sobre a origem das cores
dos pássaros – como, por exemplo, o mito 172, descrito por LéviStrauss (2004, p. 347) em “O Cru e o Cozido” –, nas quais os
diferentes tipos de pássaros se diferenciam pelo fato de cada um
(cada espécie) ter se apropriado de uma parte específica da pele
da cobra-grande com as suas cores (amarelo, vermelho, verde,
preto e branco) e os seus desenhos singulares, na versão Petaru,
os pássaros se diferenciam pelo sangue “guardado” após a cobra
ter sido morta e despedaçada.
Não menos importante é sublinhar o evento, anterior à
distribuição do sangue, no qual Petaru é cortada numa infinidade
de pedaços (ela não é apenas morta), numa fragmentação
a partir da qual ela vai se transformar e dar origem a uma
diversidade de outros povos-seres. Gongora (2007: 22, nota
12) observa o fato de que as partes originadas a partir do corpo
da cobra são exatamente transformações dela e cita o caso de
variações wayãpi, nas quais os vermes que surgem no corpo
decomposto da cobra dão origem aos inimigos.
Se, no início da narrativa, Petaru é um animal domesticado ou
um xerimbabo de um casal humano, logo ela se torna uma inimiga
e devora a mulher. A devoração é uma espécie de vingança da
Petaru, pois o casal havia se mostrado sovina e lhe ofertara
apenas a parte menor (a cotia pequena) da caça. Desta primeira
retaliação, segue a união dos homens e diferentes espécies de
animais (com o concurso fundamental da ariranha, que é, ao
Gongora (2007: 22) cita o trabalho de diversos autores – dentre eles Gallois (1988), Vidal (2007) e Van Velthem (2003) – nos quais a cobra grande é descrita como
“um elemento fundamental das mitologias e sócio-cosmologias na região das Guianas e é uma forte referência em diferentes dimensões da vida guianense: nas
práticas rituais, nas atividades de caça e pesca, nos artefatos e grafismos, no xamanismo, nas exegeses nativas sobre doença e morte... É notável que as referências
a essa figura são abundantes em narrativas sobre os ‘outros mais outros’, nos reportando às relações de aliança, inimizade, guerra, canibalismo, entre outras.”
121
mesmo tempo, um animal terrestre e aquático) para perseguir,
capturar e despedaçar a cobra. Ou seja, o mito aponta para as
relações de inimizade e de afinidade entre humanos e animais
– relações que são, concomitantemente, perigosas e cobiçadas,
evitadas e buscadas.
Antes de concluirmos o comentário, para melhor compreender
este ponto da narrativa, vejamos o resumo de outro mito waiwai,
sobre outro povo cobra-grande, denominado Okoimoyana
(literalmente traduzido como: okoimo = Anaconda; e yana =
povo), descrito por Niels Fock (1963: 48-52). Muito tempo
atrás, todos os moradores de uma aldeia waiwai foram festejar
em outra aldeia. Somente permaneceram naquela aldeia uma
velha e uma menina que tinha acabado de sair da reclusão
decorrente do ritual relativo à primeira menstruação. A
velha pediu para a menina pegar água no rio, não sem antes
adverti-la: “Vá em direção certa, não vague, não olhe para
o meio do rio Mapuera, pois, se isso acontecer, Okoimoyana
virá lhe pegar”. A menina não obedeceu a velha e, ao olhar
para o centro do rio, ela viu emergir dali todos os homens e
as mulheres do povo Anaconda (Okoimoyana). Todas essas
pessoas pareciam seres humanos, mas possuíam a alma (ekatï)
Anaconda, ou seja, eram pessoas Anaconda que apareciam
na forma humana. A menina ficou com medo e saiu correndo
em direção à sua casa. Quando lá chegou, disse para a velha:
“Eu vi o povo Anaconda, ele está vindo atrás de mim. Onde
posso me esconder?” A velha ficou furiosa: “Eu disse que
não era para olhar. Não posso te esconder por causa do seu
cheiro!”. Mesmo assim, ela escondeu a garota debaixo de
um panela de barro. Quando chegaram, os Anaconda ficaram
festejando na clareira, do lado de fora da casa. Eles dançavam
e aguardavam bebida, mas, na verdade, queriam tomar a
menina como esposa. Todos estavam paramentados para a
festa, com plumagens e miçangas que os Waiwai nunca tinham
visto antes. Para tentar afastá-los dali, a velha jogou no fogo
a pimenta que estava numa cabaça. Os Anaconda tossiram
e gritaram: “O QUE É ISSO, VELHA, VOCÊ QUER NOS
122
NEGAR A SUA NETA?”. A velha respondeu que somente
ela estava na casa, que os Anaconda a viam e achavam que
era uma jovem. Essa discussão continuou por longo tempo,
enquanto os Anaconda dançavam a noite inteira na aldeia da
velha. No final, desconfiados, mas resignados ao fato de que
talvez a menina não estivesse ali mesmo, eles decidiram ir
embora, não sem antes deixar em cima da casa todos os seus
enfeites trazidos para a dança: braceletes, tubos para amarrar
os longos cabelos, adereços de penas para o septo nasal e o
queixo, brincos etc. Ao partirem, os Okoimoyana disseram para
a velha: “Deixamos esses presentes para quando os cunhados
retornarem da festa”. Os Waiwai amaram tanto os adereços
deixados pelo povo Anaconda que jamais os esqueceram e
comentaram a história por gerações e gerações: “Assim eram
as pessoas Anaconda, elas eram muito belas!”
Essa breve narrativa nos auxilia na interpretação do mito
Petaru, como vimos, também uma cobra-grande com poderes
extraordinários e da qual os povos da região se apropriaram
não das vestimentas e da pele (como na narrativa mítica
katxuyana, que veremos a seguir), mas das suas diferentes
tonalidades e intensidades de sangue. Da mesma forma que
se passa ainda em outra narrativa mítica – um mito que
conta o périplo dos cunhados Mawari e Woxi que, nos tempos
antigos, em que não havia mulheres no mundo, pescaram
no rio não apenas as suas próprias esposas, mas também os
artigos conectados ao uso e à posse do universo feminino –,
o relacionamento que se estabelece entre os “povos-gentes”
e os “povos-anacondas”, tal qual apresentado na história de
Petaru e de Okoimoyana, é baseado nas relações de afinidade.
Pode-se dizer que essa relação é pautada, ao mesmo tempo,
na cobiça e no temor. Claramente, as pessoas Okoimoyana
chegam à aldeia da velha e da menina com o objetivo de
procurar uma esposa e, enfeitadas, chegam da mesma forma
que os visitantes ou “estrangeiros” (Pawana) chegam e
partem de uma aldeia durante uma visita: pintados, gritando,
cantando e dançando.
ruben caixeta de queiroz
Neste sentido, é interessante notar que os Waiwai do rio
Mapuera, ao longo da sua história, tinham e ainda têm intensas
relações matrimoniais e comerciais (mas também de guerra) com
os povos mais situados ao leste, nas cabeceiras dos rios Cachorro
e Turuni, especialmente os Katuena e os Xereu, povos que eram
chamados genericamente por eles de Okoimoyana. Além disso,
ao contrário do que acontece na história de Petaru, que está bem
referenciada geograficamente no rio Mapuera – a denominação
okoimokoto (pedaço da cobra-grande) se refere a uma pedra
grande onde a cobra-grande foi cortada, um local logo abaixo
de onde atualmente está localizada a aldeia Cachoeira Bateria
–, a história de Okoimoyana é contada por diferentes “povos”
na região e se passa quase que da mesma forma que aquela que
foi aqui resumida. Por exemplo, no início de 2015, durante uma
oficina de elaboração preliminar de um plano de gestão para as
terras indígenas daquele entorno, conduzida pelo Instituto de
Pesquisa e Formação Indígena (IEPE), na aldeia Mapuera, o
índio Menura, pertencente ao povo Xereu, contou e desenhou
a história de Okoimoyana, localizando-a no alto rio Cachorro,
local de tradicional habitação de um importante grupo Xereu.
Da mesma forma, já tínhamos ouvido essa história contada por
“gente” diferente no rio Mapuera, rio Nhamundá e rio Jatapu.
PURA E MURA: UMA NARRATIVA
MÍTICA KATXUYANA22
Pura e Mura muitas vezes fizeram gente, mas em outra
parte do mundo. Estas deram origem às outras tribos
que vivem por aí. Quando Pura esteve nas cabeceiras do
(rio) Kaxúru, ele fez a nossa gente.
Panamo [o antepassado] morava lá pra as serras das
cabeceiras do Kaxúru e Txôrôwáho (rios Cachorro e
Cachorrinho). E lá fabricavam gente de pau d’arco.
22.
124
Pura fez ali uma casa bem cercada. Depois foi tirar pau
d’arco daquele bonito, pintado, fez os arcos e quando
estavam bons, encostou-os num canto da casa para
ali virarem gente. Depois de dois dias Pura foi ver.
Os arcos já tinham virado gente. Fez, então, uma canoa
grande (kanawaimó) e mandou os homens baixar o
rio para morar aqui embaixo [no baixo rio Cachorro].
Ainda avisou os homens que tivessem cuidado com
Marmaru-imó, a Cobra Grande que morava na
Cachoeira Grande do Txôrôwáhô e que engolia tudo
que por lá aparecia. Assim os homens se foram.
Marmaru-imó estava deitado no rio, esticado,
dormindo, quando o japu gritou –; pois ele tinha um
japu que vigiava por ele e avisava quando alguma
coisa ia passando pelo rio. O japu morava no alto de
uma sucuubeira (worhu-yáhô ktuhó), na beira do rio.
Quando enxergou a canoa grande com os homens,
gritou: “mkó miáre, Marmaru-imó!... Lá vêm eles,
Marmaru-imó...” A Cobra Grande, então, fez um rebujo
enorme que era como o de uma cachoeira, abriu a boca
que era como um porão, alagou a canoa e engoliu os
homens. E Pura, o pai deles, não sabia.
Passou-se muito tempo e os homens nunca mais
mandaram notícias. Pura disse: “Foi Marmaruimó que os engoliu. Vou fazer outros homens”. E fez
outra quantidade de gente. Foi procurar pau d’arco,
do pintado, mas não encontrou mais. Já se tinha
acabado com os primeiros que fez. Cortou, então, pau
d’arco liso (do comum), e fez dele arcos bem feitos,
encostou-os num canto da casa e quando, depois de
dois dias, voltou, já tinham virado gente. Pura, então,
mandou-os morar aqui embaixo e fez canoas para eles.
Não mais uma só canoa grande, mas muitas canoas
A narrativa mítica deste capítulo foi apresentada por Frikel (1970: 12-17), acrescida de notas de contextualização e explicação do autor. Na presente reapresentação,
resumida, suprimimos tais notas.
pequenas, uma para cada um. Pois, disse ele, se
Marmaru-imó os quer comer, ficando eles espalhados,
sempre escapam alguns. Mas os homens baixavam em
monte e quando chegaram lá perto, onde a Cobra Grande
morava, o japu gritou; “mkó miáre, marmaru-imó! Lá
vem eles Marmaru-imó!...” De repente, Marmaru-imó fez
rebujo, abriu a boca e os homens, descuidados, viram-se
no meio de rebujo de cachoeira, enfiados num porão...
e acabou-se tudo. Marmaru-imó já os tinha engolido a
todos. E assim também eles se acabaram.
Mas Pura tinha ido atrás deles para ver onde iam
morar. E viu tudo que se passou. Pura se aborreceu
e disse: “Eles são fortes e por isso se descuidam.
Todavia vou fazer outros homens”...
Panamo voltou para casa para fazer outra vez arcos.
Mas não encontrou mais pau d’arco, que já tinha
acabado com a segunda leva de gente que fez.
Ele, então, escolheu outra madeira boa, fez arcos e
encostou-os num canto da casa para ali virarem gente.
Depois de dois dias voltou. Mas, os arcos não tinham
virado gente; tinham permanecido arcos. Pura disse:
“Este pau não presta!...” E foi tirar outro. Quando, mais
tarde, foi olhar, também este não tinha virado gente.
Experimentou mais outras qualidades de madeira, mas
nenhuma deu certo. Pura já estava cansado de tanto
fazer arcos e se aborreceu.
Pura foi tirar madeira do taxizeiro, mas daquele grande
da mata (waraharí; waraha-yáhô) que é um pau fraco e
mole e apodrece facilmente. Pura fez os arcos, encostouos no canto da casa e quando, depois de dois dias, foi
ver, já de longe viu movimento no terreiro, a zoada alegre
do pessoal e a casa cheia de gente. Pura olhou para eles
e disse: “É gente boa, mas fraca, essa de pau mole!...”
Depois Pura disse: “Vou colocar essa gente lá em baixo.
Mas primeiro vou matar Marmaru-imó. Pois, se aqueles
fortes de pau d’arco se acabaram tão ligeiro, quanto
mais estes fracos e moles de taxi”. Pura chamou Mura
e disse: “Agora vamos matar o bichão para mandar
depois a tropa”. E fizeram seus planos.
Os dois embarcaram numa canoa e levaram um
jamaruzinho (korohí) e suas “navalhas” (yaró).
Quando chegaram perto do lugar de Marmaru-imó, o
japu gritou da sucuubeira: “mkó miáre, marmaru-imó!
Lá vem eles Marmaru-imó!...” Pura disse: “Já estamos
perto. O japu já gritou. Vamos preparar-nos!”.
Eles amarraram a canoa na beira e foram
primeiro experimentar as “navalhas” numa grossa
sumaumeira, que partiram com um só golpe.
Disseram: “Está bem, vamos embora!” Entraram
com as navalhas no jamaruzinho e caíram n›água.
O baldinho ia de bubuia. Marmaru-imó os esperava,
Pura tinha um companheiro, Mura, que em tudo lhe
ajudava. Começaram a preparar caroço do mato, caroço
de miriti, patuá, babaçu e outros. Mas não saiu mais
gente; virava era bicho. Caroço de miriti (kuá-ihérere)
virou porco queixada; piaró (carani) virou caititu;
tinató (um cipó) virou cobra, okói. E assim por diante.
fez rebujo, abriu a boca e os engoliu com todo o jamaru.
Quando Pura se aborreceu de fazer tanto bicho, ele
disse: “Hoje vou tentar mais uma vez fazer gente. Se não
der certo, não faço mais gente”.
da cabeça ao rabo. Quando se encontraram no ânus,
Uma vez dentro da Cobra Grande, eles saíram do
korohí. A barriga de Marmaru-imó era alta e comprida
como uma grande casa. “Vamos partir o bicho!” disse
Pura. E começaram a trabalhar. Ele cortou pela
esquerda. Mura pela direita e assim partiram a cobra
entraram novamente no jamaruzinho, boiaram à flor
d’água e ganharam a terra firme.
125
Na saída encontraram ainda muitas cobrinhas que
eram os filhos e a gente de Marmaru-imó (marmaruimó ímrere). Pura matou um bocado deles com o yaró,
como também a mulher de Marmaru-imó de nome
Koróhüdze. Afinal, quando já eram poucos, Psôu e
Arahuá que também eram filhos de Marmaru-imó,
pediram que lhes poupassem a vida. Prometeram nunca
incomodar a gente dele (de Pura) e de não fazer mal
aos homens. Pura não acreditou. Desconfiou de Psôu e
Arahuá, mas deixou-os vivos.
Dois dias depois, Pura foi ver Marmaru-imó. Lá estava a
Cobra Grande esticada, morta. Quando Marmaru-imó
boiou morto, Pura disse a Mura: “Vamos tirar o
couro de Marmaru-imó; vamos ver para que presta!”
Eles tiraram o couro. Pura o abriu, colocou-o nas
costas, entrou bem nele e começou a dançar e cantar.
Depois despiu a pele e eles começaram a olhar. O couro
de Marmaru-imó estava todo pintado com desenhos:
mamdjari wakúru, rêtxko ihútpo, káimare hóta e todos
os outros (sistemas de pintura). Dali aprenderam todos
os desenhos. Pura tirou as pintas do couro e enfeitou
com elas tudo quanto a gente tem, empregando-as em
peneiras, tipitis, balaios e cestinhas. Assim fizeram
peneira pintada, tipiti pintado e tudo. Ptúmbanê (o
desenho específico do tipiti) era a pinta da costela de
Marmaru-imó.
Depois só restava ainda um perigo para a gente dos
Pura, um inimigo muito forte: Yuhuru-manáo, pois
Marmaru-imó tinha casa grande com muita gente
(prenó). Morto Marmaru-imó, Pura e Mura foram à casa
de Yuhuru-manáo para avisá-lo de que tinham morto o
seu tio (sogro). Yuhuru-manáo era sobrinho (genro) de
Marmaru-imó e era muito valente. Morava logo acima
do Varadouro Grande do rio Cachorro (na Cachoeira de
São Pedro). Pura lhe disse para não fazer mal à gente
dele (de Pura) e ameaçou-o que, se ele não atendesse,
126
vinha matá-lo também. Yuhuru-manáo prometeu tudo,
disse que não ia se incomodar com os outros e que eles
podiam baixar.
Pura disse: “Agora vamos voltar para mandar a
tropa”. Chegando em casa, fizeram canoas, uma
para cada um deles e mandaram os filhos morar cá
embaixo, onde ainda estamos morando [perto de onde
hoje é a aldeia Santidade].
Mas Yuhuru-manáo era traiçoeiro. Quando Pura tinha
ido embora, para mandar a gente dele, Yuhuru-manáo
foi esperar na boca do Cachorrinho para matar o
pessoal de Pura. Mas Pura desconfiou dele e viu tudo.
Pulou por cima e escapou. E o pessoal baixou sempre
para o Kaxúru e Kahú (os rios Cachorro e Trombetas).
Comentário
A história katxuyana de Pura e Mura guarda muitos pontos em
comum com a história waiwai de Petaru. Em primeiro lugar, em
ambas as histórias se fala de uma cobra-grande dotada de uma
essência ou alma humana, que age de forma hostil com relação
às pessoas e aos heróis waiwai e katxuyana. Há ainda o fato de
que, nos dois casos, depois de várias tentativas, os personagens
dos povos Waiwai e Katxuyana conseguem capturar ou entrar
na cobra-grande e retalhá-la, cortá-la em vários pedaços, dando
ensejo à sua transformação. No caso da história de Petaru, os
personagens quase- humanos (na verdade, humanos na forma
humana que se tornaram – durante a narrativa – animais na forma
humana) se apropriam do sangue da cobra-grande para produzir
a especiação daqueles quase-humanos, ou seja, para provocar o
surgimento de vários “grupos” de pássaros – “pássaros-gente”.
Ou seja, o mito da Petaru dá conta da origem dos diferentes
grupos de pássaros e de pessoas. Já a narrativa katxuyana Pura e
Mura conta que, depois de a cobra ser retalhada, os antepassados
dos Katxuyana se apropriaram do seu couro e dos seus diferentes
padrões de cores para colocá-las na pintura e nos desenhos
usados nas cestarias e no corpo humano.
Numa pequena variação, a cobra-grande da narrativa waiwai
de Okoimoyana não devora os humanos, mas busca, por meio
deles, obter esposas. No final de uma visita não desejada, os
Okoimoyana não obtêm sucesso nesta busca, mas deixam para
os “anfitriões” (o pessoal da aldeia) toda a indumentária que
haviam levado para a festa, para presenteá-los e, quem sabe,
por meio disso estabelecer uma relação mais duradoura com
este outro povo.
Conforme vimos, se as narrativas de Pura e Mura e de Petaru
nomeiam os lugares onde se desenrolou a história (rio Cachorro
e rio Mapuera, respectivamente), referiando-se até mesmo a
lugares específicos onde a cobra-grande foi cortada, a narrativa
Okoimoyana é mais difusa neste sentido, fato que talvez
possibilite que a mesma história seja transportada para outra
região próxima, ou outro curso de rio, ou até mesmo para um
grupo indígena que fale outra variação da língua. De qualquer
forma, na história oral e nas narrativas míticas analisadas por
Frikel para o caso dos Katxuyana – e isso é válido para muitos
outros povos indígenas –, é bem frequente a transposição de
referências aos personagens e aos “lugares” de um determinado
espaço geográfico para outro. Frikel (1970: 23) diz que se trata,
pois, “da transferência de um antigo ambiente a um mais recente
ou, quiçá, no fundo, da tentativa de transferência do próprio
ambiente anterior a um novo ou atual, de forma que o “ambientefundo” sempre fica o mesmo, embora as circunstâncias externas
ou acidentais mudem”.
Contudo, parece-nos justo aproximar o mito Pura e Mura do
povo Katxuyana de um tipo de narrativa que enfatiza a conexão
entre a população atual de um povo e os seus antepassados,
circunscritos por um determinado território, no caso, o rio
Cachorro e o seu entorno. Aliás, é esse esforço de conexão que
faz Frikel (1970) ao justapor narrativas mitológicas e históricas.
O autor chega a considerar que parece factível supor que,
num tempo muito antigo, houve uma mistura entre um povo
das cabeceiras do rio Cachorro com um povo imigrante do rio
Amazonas. Após uma catástrofe (descrita como um “grande
fogo”), os sobreviventes desta mesclagem foram apontados
como sendo os Marmaru-imó do mito aqui analisado. Depois
disso, outros grupos (representados pelos ancestrais Pura e
Mura) das cabeceiras do rio Cachorro desceram novamente,
e, como relatado no mito, houve um grande confronto entre
o povo Pura-Mura e o povo de Marmaru-imó. Mais tarde, já
no período colonial, houve outras levas de migração indígena
provenientes do rio Amazonas e, novamente, elas se mesclaram
aos grupos já “misturados” do rio Cachorro. Dessa mistura,
surgiu o povo Katxuyana e os seus diversos subgrupos, embora
eles sempre tenham mantido como referência o rio Cachorro e
o médio rio Trombetas.
Ainda que possamos considerar com muita precaução (e
desconfiança) esse apoio que a mitologia fornece à história, e
vice-versa, para chegar às “origens” do povo Katxuyana – na
verdade, no presente texto, procuramos nos distanciar desse
tipo de especulação –, é justo supor que, ao contrário da história
e da mitologia dos povos Waiwai, as dos povos Katxuyana se
construíram a partir de narrativas que se situam no rio Cachorro e
no seu entorno. Daí, o etnônimo Katxuyana expressar exatamente
“povo do rio Katxoru”. Ainda que o rio Mapuera seja a referência
para o mito waiwai Petaru, a partir dele não conseguimos traçar
uma conexão direta entre a população atual daquele rio e os
antepassados descritos no mito. Dito de outra forma, o mito Petaru
quer tratar muito mais da diferença atual dos povos entre si e dos
animais entre si do que de uma continuidade entre o passado e o
presente destes mesmos povos-animais. Ou seja, nos dois casos,
tanto para o povo Katxuyana quanto para o povo Waiwai, há uma
continuidade entre passado e presente, na qual os mitos aqui
analisados tentam dar conta, ou seja, tentam aproximar história
e mitologia, mas, no primeiro caso, isso aparece de uma forma
mais enfática e forte, enquanto, no segundo, aparece de forma
mais fluída e fraca.
127
ruben caixeta de queiroz
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao contrário dos Tiriyó que remetem a construção de
seu repertório gráfico a uma longa história de contatos,
Podemos novamente colocar a questão23: o que os Waiwai e
encontros, guerras e trocas com outros povos, para os
os Katxuyana estão atualizando nessas narrativas mitológicas?
Katxuyana, a origem de suas pinturas corporais se
Certa vez, o antropólogo Claude Lévi-Strauss disse que, se
confundem com as suas próprias origens enquanto povo:
perguntássemos o que é um mito a um índio americano, “é
a primeira cobra-grande da qual tiraram seus motivos
muito provável que ele respondesse: é uma história do tempo
de pintura corporal foi aquela que engoliu as primeiras
em que os homens e os animais ainda não se distinguiam”
criações de Pura e Mura, dois irmãos, demiurgos dos
(apud Viveiros de Castro, 2002 : 354). As narrativas míticas
ancestrais Katxuyana.
Petaru e Pura/Mura nos falam exatamente disso, de uma
indistinção das fronteiras entre homens e animais, de como
Como vimos acima, depois de várias tentativas fracassadas de
os animais e os homens se transformavam e se comunicavam.
Pura e Mura de povoar o rio Cachorro, pois a cobra-grande de
Essa é uma noção quase universal no pensamento indígena que,
nome Marmaru-imó engolia todas as pessoas recém-criadas, os
em primeiro lugar, tem como premissa o “estado originário de
demiurgos foram lá se vingar. Ao ver a cobra-grande, “ficaram
indiferenciação entre os humanos e os animais” e, em segundo
tão maravilhados e seduzidos pela beleza da decoração da
lugar, afirma que “a condição original comum aos humanos e
pele daquela cobra que depois de matá-la quiseram copiar os
animais não é a animalidade, mas a humanidade” (Viveiros de
desenhos e começaram a pintar seus corpos, do rosto até as
Castro, 2002: 354-355).
pernas, com tais desenhos” (Grupioni, 2009: 38).
Nos relatos que transcrevemos acima, fica explícita a ausência
Certa vez, Frikel (1970: 9) perguntou aos pajés Katxuyana
de fronteira rígida entre humanos e não-humanos e falta maior
sobre as origens do seu povo e obteve a resposta claramente:
ainda de fronteiras entre os povos, pois ali se vê mais um processo
“Nós somos um povo misturado”. Num trabalho de campo
intensivo de diferenciação do que um movimento no sentido da
realizado em 2008, ouvimos o seguinte relato de um informante
produção de contornos definidos e substantivos entre as fronteiras
e antigo pajé do povo Tunayana, chamado Kaubá:
territoriais ou “étnicas”. O sangue, a indumentária, os desenhos
e os padrões gráficos que pertenciam à cobra-grande foram
Antigamente os Tunayana moravam junto com outros
apropriados pelas diferentes gentes (Yana) e utilizados para
povos estranhos, era tudo misturado! Um dia, Moriki
marcar as diferenças entre elas que hoje se fazem notar. A história
(um Tatu pequeno) convidou parte dessa gente: vamos
de intercâmbio ou guerra com outros grupos indígenas ou com os
morar longe daqui, vamos embora. “Para onde?”
colonizadores, para muitos povos indígenas, também contribuiu
Perguntaram os homens. “Para onde eu não sei”,
para a intensificação das diferenças – talvez mais do que a fusão
respondeu Moriki. Então, Moriki começou a cavar a
ou a perda de “identidade”. Desta forma, no livro organizado por
terra, sem parar, cavou, ficou cansado, nem tomava
Denise Fajardo Grupioni (2009: 38), podemos ler:
água, até varar do outro lado do mundo. Já, lá do
23.
A mesma questão que já colocamos em outro trabalho: Caixeta de Queiroz, 2008: 274.
129
outro lado do mundo, Morikici [o pequeno tatuzinho]
disse: vou tomar água, e convidou todo mundo para
tomar água. Todo mundo tomou muita água, estavam
com muita sede! Desde lá, essa gente que mora do lado
de cá dessa terra, foi chamada de Tunayana, que quer
dizer, gente da água!
Podemos tirar a seguinte conclusão de tais narrativas: os índios
têm consciência de que, no passado, eram “todos misturados”
e de que a diferenciação entre eles segue causas de ordem
interna (sociológica e cosmológica) e de ordem externa (por
exemplo, o contato com as frentes de colonização). Porém, não
há dúvida, a cosmologia (explicitadas nas narrativas míticas) são
fortes indicações tanto para justificar as formações étnicas ou
a conjunção dos “grupos” em determinados sítios e lugares ao
longo da história, quanto para os movimentos de reocupações
ou retomadas territoriais. Esse fato não é específico do caso
Na maioria das vezes, as sociedades ou “grupos” das Guianas
foram descritos como “fechados” e sem uma consciência
“tribal” ou de “nação” mais abrangente24. De fato, parece-nos
equivocada a ideia de que houve ou está prestes a existir uma
“confederação” no rio Mapuera sob o comando das lideranças
Waiwai, ou uma confederação no rio Cachorro sob o comando
das lideranças Katxuyana. Mas as histórias e narrativas míticas
descritas anteriormente apontam para o fato de que os Waiwai
e os Katxuyana, respectivamente, tentam hoje produzir uma
“aglomeração dispersante” no rio Mapuera e no rio Cachorro.
A história recente parece demonstrar que esse movimento está em
curso, parece que os segundos têm obtido mais sucesso que os
primeiros. Porém, antes que esse processo se conclua para ambos
os casos, parece já ter-se iniciado um movimento na direção oposta,
isto é, da “dispersão generalizante”. Por exemplo, há alguns índios
“aglomerados” no rio Mapuera que desejam migrar para o rio
Turuni (alto rio Trombetas), onde moravam antes da atração para
as Guianas promovida pela ação missionária.
Katxuyana ou Waiwai, pois pode ser verificado em outros contextos
etnográficos, como aquele do noroeste amazônico ou outro dos
Aruaque subandinos do período colonial. Neste último caso, ao
citar o trabalho notável de Renard-Casevitz (1993), Manuela
Carneiro da Cunha (1998: 09) conclui muito acertadamente que:
Comunidades
autônomas
e
morfologicamente
equivalentes podem se agrupar em unidades mais
amplas, cuja forma no entanto compartilham.
Da família extensa à unidade local, desta à unidade
regional, geralmente definida pelo rio ou por um
segmento do rio, da unidade regional à província,
desta à etnia e à “nação”, cada uma dessas unidades
se reveste da mesma forma.
Carneiro da Cunha, 1998 apud Renard-Casevitz, 1993.
24.
130
Conforme já citamos no início deste trabalho, por volta de
1925, os Katxuyana estavam diante de uma tragédia decorrente
das epidemias: os sobreviventes não tinham tempo e nem
disposição para enterrar tantos mortos – restou-lhes fugir para
a mata. Aproximadamente em 1965, as epidemias de sarampo e
gripe ainda atacavam os Katxuyana, e vários dos seus subgrupos
desapareceram. Os sobreviventes, conta-nos Frikel (1970: 47), já
não podiam se casar dentro do grupo de acordo com as regras
de parentesco. Diante disso e da pressão dos missionários
para retirá-los do rio Cachorro, como já relatamos, em 1968,
os Katxuyana se cindiram em dois grupos: um se juntou aos
Tiriyó, na Missão homônima, no Parque do Tumucumaque (alto
rio Paru de Oeste), e o outro se juntou aos Hixkaryana, na terra
indígena Nhamundá-Mapuera (rio Nhamundá). Depois desta
época, os Katxuyana se viram obrigados a estabelecer relações
Sobre essa caracterização das sociedades guianenses, ver o trabalho de Peter Rivière (1984). Sobre uma crítica a esta visão, ver o trabalho de Viveiros de Castro
(1987) e, especialmente, a coletânea organizada por Gallois (2005). Ver ainda o debate entre Rivière e o grupo das Guianas coordenado por Dominique Gallois,
publicado na revista Mana, em 2007 (Rivière et al., 2007) .
de troca com grupos com os quais tinham, até então, reduzido
contato. Por um lado, na Missão Tiriyó, apesar de um relativo
afastamento, boa parte deles contraíram casamentos com pessoas
do grupo Tiriyó, ou seja, misturaram-se mais uma vez. E, por
outro lado, embora vivessem muito próximo dos Hixkaryana, ali
os Katxuyana se mantiveram numa relativa autonomia e nunca
perderam a oportunidade de se casar dentro do grupo – com
pouquíssimos casos de casamentos “exogâmicos”. Nos dois
casos, os Katxuyana nunca abandonaram o desejo de um dia
retornar ao rio Cachorro: lugar que a memória histórica e os
relatos míticos sempre lhes assinalavam como “o lugar dos
Katxuyana”, onde podiam viver na sua terra e sem “mistura”.
Os dois acontecimentos marcados acima, relativos às
epidemias, parecem encontrar amparo ou ressonância na
mitologia katxuyana. De fato, Frikel (1970, p. 51-52) nos fala
de dois cataclismas que teriam ocorrido num tempo muito
antigo: o primeiro deles foi uma grande enchente (tuna-imo);
e o segundo teria sido um grande fogo (wehoto-imo). Depois
disso, ainda se sucederam os eventos nos quais os demiurgos
Katxuyana tinham tentado várias vezes “criar” a sua gente,
mas haviam sido derrotados em inúmeras tentativas, até que,
numa última, conseguiram. Enfim, os Katxuyana surgiram,
misturaram-se, diminuíram, cresceram, tornaram a quase
desaparecer, misturaram-se novamente e estão, finalmente,
retomando o seu lugar (no rio Cachorro) e crescendo como povo.
No ano de 2003, os Katxuyana reabriram uma aldeia às margens
do rio Cachorro no exato local da antiga aldeia denominada
“Waraha Hatxa”, acima da cachoeira São Pedro (perto do lugar
onde relatamos os acontecimentos da cobra-grande Marmaruimó), na margem esquerda do rio. Depois que eles derrubaram
as árvores e as queimaram, formando uma clareira onde seria
a nova roça, aconteceu um evento de conjunção da natureza
e da cultura. Naquela clareira, germinaram e brotaram várias
sementes e plantas cultivadas pelos Katxuyana – sementes
e brotos que permaneceram por mais de quatro décadas sem
vegetar debaixo da mata e, então, encontraram luz para vir à
tona. Eram plantas como o cará, o inhame, a banana, o urucum, o
mamão, o abacaxi. Tal evento natural-cultural não deixou de ser
também sintomaticamente simbólico: o renascimento daquelas
plantas, que dariam o “de comer” aos Katxuyana regressos ao
seu lugar de moradia, correspondia ao “renascimento” de um
povo e de uma cultura no seu território tradicional.
Ali eles continuam se misturando, também se diferenciando
como gente (Yana), da mesma forma que, ao longo da sua história,
como está guardado na memória “mítica” ou histórica da sua
gente. Misturaram-se e se diferenciaram. Esse processo parece
não ter um início definido nem um fim, seja porque começou
muito antigamente na “fusão-fissão” dos “grupos”, seja porque
continuou nos casamentos “interétnicos” na Missão Tiriyó ou na
aldeia Mapuera, ou seja porque se prolonga nos dias atuais por
meio das viagens e moradias cada vez mais frequentes no mundo
dos brancos e no meio urbano. As “gentes” (Yana) parecem não
parar de se misturar: para muitos, isso pode ser o fim de um povo
ou mesmo do mundo; para outros, é a dinâmica posta pela vida
no curso da história e da mitologia.
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133
carlos penteado
OS YANA
CARIBEGUIANENSES
NA REGIÃO DE
ORIXIMINÁ: QUE
COLETIVIDADES
SÃO ESSAS?
Denise Fajardo Grupioni
Em sua “Classificação linguístico-etnológica das tribos
indígenas do Pará setentrional e zonas adjacentes”, Protásio
Frikel1 identifica o impressionante número de 144 “tribos”
indígenas distribuídas em inúmeras aldeias na faixa que vai
do rio Trombetas ao rio Paru de Leste, atravessando toda a
calha norte do rio Amazonas no estado do Pará. Guardadas as
devidas ressalvas em relação à precisão desse número, o quadro
apresentado por Frikel nos fornece uma visão de uma paisagem
que estava prestes a desaparecer. Esse seu trabalho foi publicado
em 1958. Uma década mais tarde, a paisagem abaixo descrita já
não era mais a mesma:
lá para comprovar o grau de fracionamento das unidades
sociopolíticas, bem de acordo com a lógica centrífuga que, no
modelo proposto por Pierre Clastres (1977), seria imanente
às sociedades ameríndias. Em outro trabalho, Frikel falava do
“espírito belicoso” das “tribos” do rio Trombetas:
(...) foram-me indicados até agora mais de cem nomes
tribais. (...) No decorrer dos anos, tentei organizar uma
estatística (...). Teoricamente, ela dá como cota média
cerca de 30 pessoas por maloca [aldeia], enquanto as
cifras reais variam de 15 a 50, sendo raro encontrarse uma maloca com mais de 50 habitantes. (...) devido
à tendência dos Karib para um certo isolacionismo em
moradias dispersas, o pesquisador encontrará apenas
pequenos grupos. Um estudo geral sobre cada um desses
grupos culturais ou cada uma dessas famílias será como
um mosaico: há de se compor, conforme as circunstâncias,
de estudos parciais numerosos e quase idênticos
Frikel, 1958: 205.
Frikel, 1958: 116-118.
Com efeito, o padrão de ocupação territorial que se observou
na longa história dessa região, e que se estendeu até meados
do século XX, era baseado em uma altíssima dispersão e
mobilidade, em que aldeias não apenas se espalhavam mais
amplamente, como seus moradores, ora diferenciavamse, fissionando-se, física e nominalmente em coletividades
distintas; ora se identificavam, fundindo-se em uma única
coletividade, para mais adiante fissionarem-se novamente.
Os tantos nomes encontrados nas fontes sobre a região estariam
1.
136
Os atuais grupos, são, como já dissemos, remanescentes
daquela população que se extinguiu pelo seu espírito
belicoso (...). assim o afirmam ainda os Kachúyana:
“Brigaram com todos e brigaram muito também entre
si. Não foi por doença que eles se acabaram como os
nossos. Foi por briga!”
Nessa paisagem, poderíamos pensar a profusão de nomes para
coletivos indígenas como um produto, ou resquício, dessas
relações de guerra e de outras derivadas, de fissão e fusão,
que existiam antes dos processos de “pacificação” de grupos
indígenas conduzidos por Estados Nacionais, por meio da ação
missionária ou indigenista. De modo que, enquanto tais relações
existiram conforme sua dinâmica própria, a guerra poderia ser
vista, de uma perspectiva clastreana, como uma máquina de
centrifugar coletividades, e a fragmentação de coletivos, em
princípio, apenas como um efeito da guerra. Isso é o que nos
diz Philippe Erikson (1993: 51) sobre as guerras intestinas
entre os povos de língua Pano, no sudoeste Amazônico: que
uma das, senão a finalidade da guerra seria justamente “manter
inviável a constituição de uma ordem supralocal”, corroborando
assim a tese de Pierre Clastres, segundo a qual as sociedades
sul-ameríndias seriam “sociedades contra o estado”.
Mas se a finalidade apontada por Erikson vai ao encontro da
perspectiva clastreana, também vai além, na medida em que
demonstra que é só por meio da incessante fragmentação que se
produz a figura do “outro” como imprescindível à constituição do
“nós”, pois é diferenciando-se que, como diz o autor: “abrem-se
Protásio Frikel, inicialmente, missionário franciscano e, posteriormente, pesquisador do Museu Goeldi, fez várias incursões pelo interior da região centroguianense no decorrer dos anos 1940/50.
as portas para o reconhecimento de outrem” e, portanto, para
que o “social” se instaure. Sem o que a imensa área de povos de
língua pano compreenderia um terreno identitário tão homogêneo
no interior do qual a plena identidade, sem alteridade, seria
inócua. Mas esse não seria um “mundo possível” para nenhum
ameríndio, isso é o que nos ensina toda antropologia pósMitológicas de Lévi-Strauss2, pois, como também demonstra
Oscar Calavia Sáez, outro especialista na área pano:
Em último caso, o que se caça fora – inimigos, carne,
nomes, cantos – é objeto de um consumo produtivo que
dá corpo e alma ao interior
Sáez, 2002-03: 11.3
Voltando ao caso em questão, no início dos anos 1960 toda a
região que abrange Oriximiná, estendendo-se ao restante da
calha norte do Pará e países vizinhos, seria confrontada com
um processo de fusão sem volta: um processo sem precedentes,
de amalgamamento em unidades étnicas, ou, propriamente de
“etnogêneses” decorrentes das relações que, a partir de então,
passaram a ser estabelecidas entre as chamadas “tribos das
Guianas” e os Estados Nacionais (Brasil e Guianas Francesa,
Holandesa e Inglesa). De tal modo que, na mesma região onde
Frikel (1958) identificou “cerca de 144 tribos”, hoje não chegam
a dez os grupos étnicos reconhecidos oficialmente, dentre
falantes de línguas Caribe (Aparai, Wayana, Tiriyó, Katxuyana,
Txikiyana, Tunayana, Waiwai, Hixkariyana) e Tupi (Zo’é).
O mesmo se deu alhures, por toda Amazônia e América do Sul,
como exemplifica Erikson:
Com efeito, tendo em vista sua propensão ao compósito,
os numerosos grupos Pano, ao serem confrontados com
o despovoamento, recentemente se fundiram para evitar
sua extinção. (...) Os Marinawa, agora reduzidos a uma
centena de pessoas, apresentam a respeito disso, um caso
2.
3.
4.
extremo muito revelador, uma vez que os seus missionários
dizem que hoje compõem uma aldeia constituída a partir
dos sobreviventes de cerca de 25 antigas “tribos”
Erikson, 1993: 54.4
Se, por um lado, circunstâncias históricas exigiram dos povos
pano e das chamadas “tribos” das Guianas e Floresta Tropical
em geral, que lançassem mão de sua “propensão à fusão” para
fazerem frente ao perigo da extinção; por outro lado, Erikson
também destaca em que outras circunstâncias não só desejam,
como lançam mão de sua “propensão ao fracionamento”. Podemos
citar como exemplo o que acontece no âmbito de uma aldeia
indígena caribe-guianenese situada no alto Trombetas, Ayaramã,
reconhecida como aldeia do povo Tunayana. No entanto, dentre
seus moradores alguns são considerados estrangeiros, ainda que
tenham nascido nessa mesma aldeia, enquanto são identificados
propriamente como Tunayana certos moradores de aldeias
espalhadas pela região, com quem não mantêm contato efetivo.
O caso Tunayana é apenas um exemplo, dentre tantos outros,
onde é possível observar que, por detrás da “fusão étnica”, a
memória das diferenças que estão na base de sua constituição
permanece lá, pronta para emergir a qualquer momento,
subvertendo fronteiras identitárias de um modo desafiante ao
olhar estrangeiro. O que dizer do caso citado acima, em que
os remanescentes de cerca de 25 “tribos” antigas, que viviam
relativamente dispersos entre si, após um processo de fusão
étnica passam a compor os atuais Marinawa?
Que coletividades seriam aquelas ditas “tribos”? E o que acontece
com elas a partir do momento em que, fundindo-se, se transformam
em “amálgamas étnicos”, passando a se relacionar com o Estado
e a sociedade nacional como uma unidade social e política, e
sob uma única denominação? Desaparecem, levando consigo
a profusão de nomes respectivos? Ou permanecem de alguma
As Mitológicas compõem um conjunto de quatro obras escritas pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss e publicadas entre 1964 e 1971 na França.
Tradução da autora.
Tradução da autora.
137
carlos penteado
forma, para desespero de quem não encontra correspondente
sociológico para as mesmas? Daí que, como bem observa
Sáez (2002: 35), a atenção que se dá à profusão de nomes
para coletivos indígenas normalmente não passe das palavras
iniciais de quase todo estudo antropológico, seja monografia,
dissertação ou tese. Aqui, ao contrário, esse tema é tomado
como substancial. Para tanto, me apoio em autores que
contribuíram, com seus estudos, para demonstrar que os nomes,
parafraseando Sáez (2002: 40), não são apenas “ruídos”, mas
remetem a uma dimensão estrutural da socialidade indígena.
ONDE TUDO É NOME
“Um mundo onde tudo é nome”, assim Pedro Achefa Tiriyó
me descreveu o seu e o nosso mundo (não indígena), em uma
das tantas conversas que entabulamos sobre o significado dos
diferentes yana (termo caribe-guianense que designa “povo”,
“gente”)5 e seus nomes:
Denise: Por que hoje todo mundo se diz Tiriyó?
Achefa: Por quê? É outro nome que nos deram.
Denise: Quem que deu esse nome?
Achefa: Não sei... (pensativo). É assim: paulista, é
paulistayana, carioca, cariocayana, todos tipos de pessoa.
(...) Gente é assim: tarëno, todos índios são tarëno.
Mas também tem pananakiri, nós botamos nome para
todos tipos de pessoa, pananakiri é americano, holandês,
quem é pessoa.
Denise: E Akuriyó?
Achefa: Nós os chamamos de Akuriyó [gente cutia], mas
eles dizem que nome deles é Tura, Turayana [gente macaco],
assim como tem Okomoyana [gente vespa], Pïrouyana [gente
5.
6.
flecha], Aramayana [gente abelha] e assim por diante...
Denise: E Mekoro6 é Pananakiri?
Achefa: Não! Mekoro é Tarëno, daqui mesmo, como
nós. Só branco que nós chamamos Pananakiri, este é
o nome geral. Depois tem nome um por um: Karaiwa
[brasileiro], americano, holandês, alemão, japonês.
Mas depois, tem também nome de índio Kayapó,
Munduruku, Waiwai, Tapirapé, Bororo, Wajãpi-puku,
Wajãpi, Aparai, Tiriyó. Só nome. Todos aqui têm nome,
meu nome é Achefa, nome dele é outro, você também
tem outro nome. Ele também. Todos têm nome, mas
toda aldeia é Waiwai, ou Aparai, é assim, tudo é nome.
Com efeito, o assunto dos nomes para diferentes “coletividades”,
ou diferentes “tipos de pessoas” é algo que me chamou a atenção
desde que pisei pela primeira vez na Missão Tiriyó (Terra Indígena
Parque do Tumucumaque, extremo norte do Pará). Essa aldeia foi
fundada em 1960 para sediar uma missão franciscana, ao lado
de um destacamento de fronteira da Força Aérea Brasileira.
Não cabe aqui adentrar nos meandros dessa história que se refere
a um dos chamados “Trinômios Missão/FAB/Índios” instalados
na Amazônia nos anos 1960. Basta dizer que esse modelo foi
idealizado para garantir que a presença militar em áreas indígenas
fosse mediada pela atuação de religiosos incumbidos de atrair,
catequizar e civilizar os índios da região.
No caso em questão, que população era essa? Aquela hoje
genericamente reconhecida como Tiriyó e Katxuyana, que vivia
nas cabeceiras, e médio curso, dos rios próximos à fronteira com
as Guianas Inglesa (atual Guiana) e Holandesa (atual Suriname).
Entre 1959/61, parte da mesma encontrava-se em pleno processo
de migração em direção ao extremo sul desses dois países vizinhos,
atraída por três missões protestantes.7 Com a instalação da Missão
-yó, como em Tiriyó; -koto, como em Aramakoto; -so, como em Maraso são variantes da partícula yana e designam indistintamente: gente.
Ex-escravos do Suriname com quem os Tiriyó mantêm relações comerciais de longa data.
139
Tiriyó, em 1960, no lado brasileiro, esse vetor migratório em direção
aos países vizinhos teve sua intensidade diminuída. Também não
cabe aqui adentrar nos detalhes desse processo, mas ainda hoje
os mais velhos comentam o quão drasticamente a população local
havia sido reduzida em consequência das muitas mortes ocorridas às
vésperas da chegada dos missionários, não pelos motivos aos quais,
de longa data, estavam acostumados – guerras locais, causadoras
de baixas populacionais cíclicas –, mas por uma onda de doenças
desconhecidas, inimigos invisíveis e invencíveis que horrorizavam
a todos e, principalmente, às mulheres, que agora evitavam ter
filhos, profundamente tristes e desanimadas com o contexto que
se afigurava. Fato é que a região esvaziou-se rapidamente.8 Aldeias
inteiras migraram para as missões, no interior das quais se operou
um acelerado processo de “fusão intertribal” dando origem aos
atuais grupos étnicos, como é o caso dos Tiriyó e Katxuyana aqui
mencionados, mas também dos Waiwai e Hixkariyana. E se antes
dificilmente a população de uma aldeia passava de 50 pessoas,
após esse período uma aldeia como a Missão Tiriyó (Terra Indígena
Parque do Tumucumaque), no Brasil, chegou a ter mais de 500
moradores. Na verdade, em algum momento ao final da década de
1960, chegou-se ao auge desse processo de fusão e centralização,
de tal modo que, por toda calha norte paraense e vizinha, onde
antes se espalhavam mais de 150 pequenas aldeias, agora existiam
apenas quatro grandes aldeias, de leste para oeste: Kassawa,
Mapuera, Missão Tiriyó e Bona.
Em minhas primeiras pesquisas de campo, logo que pisei na
Missão Tiriyó, minha preocupação era identificar quem era
Tiriyó e quem era Katxuyana, pois sabia, por leituras prévias,
de dois fatos que considerava básicos para me situar naquele
universo até então, para mim desconhecido, em primeiro lugar
7.
8.
9.
140
que, conforme Rivière:
(...) Relativamente pouco se sabe sobre a pré-história
da região, e o que o conhecimento histórico que temos
indica é que a região foi uma área de retração para onde
vários remanescentes de povos tribais se amalgamaram
para formar os atuais Tiriyó
Rivière, 1963: 57. 9
E, em segundo lugar que, desde 1968, algumas famílias
Katxuyana, sobreviventes de epidemias sofridas na região do
médio rio Trombetas, haviam se reunido aos Tiriyó naquela
Missão, passando a dividir parte do seu território, e aparentandose aos Tiriyó por meio de intercasamentos.
Assim, naquele meu primeiro dia em campo, logo de chegada
conheci Sina, um rapaz que se aproximou curioso com a minha
presença, como todas as demais pessoas que me viam pela
primeira vez. Porém, como poucos ali, Sina falava português,
e nunca esqueço dele, pela surpresa que me causaram suas
respostas: eu perguntava se ele era Tiriyó, e ele me dizia que
não, que era Tarëno:
Denise: Mas como assim, quem são os Tarëno?
Sina: Somos nós, daqui mesmo.
Denise: Mas, e os Tiriyó, quem são?
Sina: Tiriyó é nome do branco, na nossa língua nós
falamos que somos Tarëno. Tarëno é Prouyana, é
Sakïta, tem também Aramayana, Okomoyana, meu
pai é Sakïta, minha mãe é Maraso, mas é tudo Tarëno,
daqui mesmo.
Em 1959, o governo da então Guiana Holandesa, atual Suriname, concede permissão à American Door-to-life Gospel Mission para atuar entre os índios da
fronteira sul. Com isso, em 1961, são construídas duas bases missionárias na região, sendo uma, de nome Alalaparu, em um afluente do rio Sipaliweni, e outra, de
nome Paloemeu na confluência dos rios Tapanahoni/Paloemeu. Ambas próximas a pistas de pouso previamente instaladas. Um ano mais tarde, em 1962, as duas
bases são assumidas pela West Indies Mission (cf. Rivière, 1963: 14).
Trata-se de uma região de navegação difícil, com inúmeras cachoeiras e curvas, fator que sempre atuou no sentido de inibir o acesso de não índios até lá. Somente
com a instalação de pistas de pouso em alguns pontos, a partir de 1959, é que esse acesso tornou-se mais viável, porém sempre difícil.
Tradução da autora.
Desde então, busquei várias aproximações ao tema, tanto nas
subsequentes viagens a campo que tive oportunidade de realizar,
quanto nas fontes documentais. Nesse caso, até a primeira
metade do século XX as informações disponíveis resumemse ao que foi documentado em relatos de viajantes, relatórios
de expedições oficiais e na obra de alguns historiadores.10
Dentre esses materiais, são raros os que vão um pouco mais
além de listas com os nomes dos coletivos populacionais
encontrados. Mesmo assim, cabe aqui observar que, tanto nas
fontes do século XVII em diante, quanto em minhas pesquisas
de campo encontrei referências à existência histórica e
atual de gente com nomes como Aramayana, Okomoyana,
Prouyana, Ewarhoyana, e outros. Todos eles, desde longa
data, identificados como compondo “tribos”. E, nesse sentido,
não há como não atentar para as diferentes conceitualizações
sob as quais essas gentes foram apreendidas e sob as quais se
pensam. Analisar as origens, os sentidos, usos e implicações de
um conceito tal como “tribo” renderia com certeza um estudo
próprio, o que não é o caso aqui. Mas o que gostaria de reter
aqui é o seu enraizamento em uma tradição de pensamento de
origem euro-ocidental, onde “tribo” define um tipo específico de
formação social. E se este foi historicamente o termo atribuído
às unidades populacionais encontradas nas terras baixas da
América do Sul é porque estas pareceram corresponder ao que
este termo define: a grosso modo, uma formação social antes
do desenvolvimento de, ou fora de, Estados, composta por uma
família, ou uma associação de poucas famílias que habitam em
um mesmo local, comumente designado “aldeia”, ou em um
mesmo território composto por várias aldeias.
Voltando aos materiais históricos, como dito acima, até a primeira
metade do século XX o que temos são relatos de viagens com
menções às “tribos” encontradas, e listas, com sua localização e
tamanho. Já nesses materiais saltava aos olhos a enorme profusão
10.
de nomes utilizada pelos nativos para se designar uns aos outros.
Peter Rivière (1963) chamava a atenção para alguns aspectos
intrigantes, para não dizer, desanimadores, relacionados aos
nomes das tribos. Se não bastassem os problemas de ortografia,
dadas as distintas origens dos diferentes autores (portugueses,
ingleses, holandeses, alemães, franceses, espanhóis) e seus
variados modos de compreender e grafar cada nome, Rivière
menciona o fato de que: “Esse problema se agrava no caso dos
índios que se reconhecem por um nome, mas são conhecidos por
outro” (1963: 97).
Daí derivam obstáculos metodológicos de toda ordem.
Um exemplo encontramos em Audrey Butt-Colson (1973), em
“Inter-tribal Trade in the Guiana Highlands”. Nele, a autora
menciona as dificuldades em identificar os diferentes grupos
envolvidos no comércio intertribal de bens manufaturados,
e em saber exatamente quem é quem nesse processo: quem
manufaturou, quem intermediou e quem recebeu os bens.
Para ilustrar, a autora dá um exemplo, segundo o qual lhe foi
dito que um ralador de mandioca que tinha procedência entre
os Pawana, havia chegado aos Waika por intermédio dos
Pötsawugok e Ingarikok. Em alternativa, e sem prejuízo às
identidades dos grupos envolvidos, segundo Butt-Colson, essa
mesma rota poderia ser descrita do seguinte modo: o ralador de
mandioca procedente dos Yekuana teria chegado aos Akawaio
por intermédio dos Taurepang e Akawaio do alto rio Cotinga.
Isso porque a autora conseguiu saber que os Akawaio são
frequentemente referidos como Waika pelos Arekuna e grupos
vizinhos; que os Pawana de quem estavam falando eram os
Yekuana; e que os Pötsawugok seriam os mesmos Taurepang
de ambos os lados da fronteira entre Brasil e Venezuela; assim
como os Ingarikok mencionados, seriam mesmos Akawaio do
alto Cotinga, também conhecidos como Kwatingok, literalmente,
“gente do rio Kwatin (Cotinga)”.
Como, por exemplo, Henri Froidevaux (1895) Explorations Françaises à l’interieur de La Guyane pendant le second quart du XVIIIe siècle. Paris : Imprimerie
natinale, M DCCC XCV.
141
FABRICAÇÃO DE NOMES E GENTES:
UMA “OBRA ABERTA”
Com sua afirmação “tudo é nome”, supracitada, estaria Achefa
invocando a ideia de que, para além dos nomes, das palavras,
nada há de real? Faço aqui uma digressão sobre que valor
terá o nome para esse pensamento, já que a preocupação com
nomes parece ocupar lugar importante entre os sul-ameríndios.
Nomes fazem parte dos processos de fabricação da pessoa,
isso é o que mostram muitos estudos e etnografias. Regras de
nominação, transmissão e cuidados com nomes próprios nos
revelam que certo poder é atribuído aos nomes: o poder não só de
oferecer sentido à existência de cada pessoa, como de determinar
sua fortuna ou infortúnio, dependendo de como for manejado ao
longo de sua existência, se adequadamente ou não. O que dá
aos nomes, portanto, uma realidade própria. Tal preocupação
dos índios com nomes teria, como bem observa Sáez (2002:
39), contagiado os etnólogos, haja vista o desenvolvimento,
nessa disciplina, de toda uma honorável tradição de estudos:
a das onomásticas indígenas. Não fosse tão motivada pelo
próprio pensamento ameríndio, como também observa Sáez
(idem, ibidem), tal questão em torno do valor do nome ganharia
ares bizantinos, se considerarmos que a filosofia medieval foi
permeada por toda uma discussão entre nominalistas, realistas
e conceitualistas que disputavam entre si argumentos em torno
da correspondência entre a palavra e aquilo que ela designa. Os
nominalistas postulavam que palavras e nomes não passariam
de convenções, ou flatus vocis. Postulado esse que parece
encontrar eco na afirmação de Achefa de que, simplesmente,
“tudo é nome”. Já os realistas defendiam uma correspondência
entre as palavras e aquilo que elas designam, e que, portanto,
elas não seriam exteriores nem independentes das coisas,
assim postulava-se uma correspondência entre pensamento e
realidade. Já para os conceitualistas o significado das palavras
era exterior às coisas por elas nomeadas, a realidade seria
dada pelo pensamento, não existindo fora dele. Porém, não
142
vem ao caso situar o pensamento ameríndio nessa discussão,
até porque este apresenta outras particularidades que fogem
a qualquer uma dessas tendências, principalmente se levamos
em conta que também faz parte desse pensamento a atribuição
de poder mágico ao ato de nomear. Tal como demonstra Nadia
Farage em sua etnografia sobre os Wapishana:
No começo, dizem os Wapishana, “quando o céu era
perto, tudo falava, era puri”, magia. (...) Era sobretudo
plástico aquele mundo original, e a força de o moldar
encontrava-se na palavra: “Antes falava e mudava
as coisas. Tudo agora já está feito”. Eficaz, criativa,
a palavra provocava transformações contínuas, que
deram ao mundo a feição que ele ainda hoje guarda:
cachoeiras, rios, montanhas assim se criaram, em
batalhas verbais entre os demiurgos
Farage, 1998.
De modo semelhante, percebi ao longo da minha pesquisa que
entre os Tiriyó o ato de “nomear” é concebido enquanto um
ato de criação, onde o que se vê diante de si só existe porque
“tem nome”, em tiriyó: eka entume (expressão que designa que
algo, ou alguém está, literalmente, “preenchido” de nome),
pois concebe-se que tudo que existe, só existe porque é o
nome que lhe dá existência. E talvez isso tenha a ver com uma
atitude que sempre me chamou a atenção em minhas conversas
com Achefa, e outros interlocutores Tiriyó, que era aquela de
tentar me explicar o seu mundo fazendo o exercício de me
mostrar como os seus conceitos funcionariam no meu mundo,
para finalmente me dizerem: “olha só, é tudo a mesma coisa,
só mudam os nomes”. O que no fim das contas não difere do
que um antropólogo faz, quando supõe que outros povos também
possam ser compreendidos com base em conceitos como “grupo”
e “sociedade”. Como evidenciou Roy Wagner, em sua análise
crítica a respeito da crença antropológica na universalidade dos
“grupos sociais” e no sentimento de “grupidade” que animaria
toda a humanidade: “Os ‘grupos’ eram uma função do nosso
carlos penteado
entendimento do que as pessoas estavam fazendo, e não do que
elas mesmas faziam das coisas”.11
Com base nisso, poderíamos dizer sobre a nomonímia sulameríndia para coletivos, que o que definimos como “grupos”,
eles definem como “gente”. Mas qual a diferença entre
pensar coletividades enquanto “grupos” e enquanto “gente”?
Na concepção ameríndia de gente se faz presente o mesmo senso
de “grupidade” que caracteriza a concepção antropológica de
“grupos sociais”?
Em primeiro lugar as “gentes” ameríndias não se autoidentificam,
nem se autodefinem, mas são identificadas, contrastadas,
classificadas, “recortadas” e nomeadas por outrem. Se isso seria
o mesmo que dizer que são “agrupadas” por outrem, não decorre
daí que cultivem, ou alimentem, no interior das fronteiras em
que são inseridas, uma intencionalidade nesse sentido ou um
sentimento de corporativismo grupal. Desse modo, o mesmo
que Wagner diz a respeito das coletividades daribi vale para
os yana caribe-guianenses: “grupos nunca são deliberadamente
organizados, mas tão somente elicitados por meio do uso de
nomes” (Wagner, 1974: 105). Tais nomes costumam ser flexíveis
e contextuais, mas com base em um dispositivo bastante versátil
que é o de coletivizar “conjuntos de pessoas” definindo-os como
“os tais ou quais” ou “a gente tal ou qual”, estes resultam por
tomar a aparência de grupos. No entanto, não podemos perder
de vista que não se trata de grupos deliberadamente organizados
ou ideologicamente regulamentados como os grupos étnicos,
e como análises na linha da “etnicidade” descrevem tais
agrupamentos (Barth, 1997).
Conforme propõe Wagner:
nós somos tão criadores quanto os povos que estudamos, e
precisamos prestar atenção tanto à nossa criatividade quanto
à criatividade deles. Dito de modo um pouco diferente, a
11.
12.
144
Tradução da autora.
Tradução da autora.
suposição da criatividade coloca o antropólogo em igualdade
de condições com seus sujeitos de pesquisa; também o nativo
é um “antropólogo”, com sua própria “hipótese de pesquisa”
sobre seu modo de vida. E a despeito de como desejamos
compor esse modo de vida, temos de haver-nos com a “teoria”
do próprio nativo por uma questão de dever profissional e ético
Wagner, 1974: 120.12
Com efeito, por toda a região guianense, e sem exceção para
Oriximiná e calha norte do Pará, observam-se os nomes
desenhando fronteiras identitárias essenciais a toda e qualquer
relação social, porque, antes de impor limites para tais relações,
a fragmentação e com esta os nomes que a acompanham
instituem as condições de possibilidade da própria socialidade
entre si e outrem, e onde a figura do outro, nominalmente
diferenciado, é imprescindível.
Mas, voltando à questão do nome entre os Tiriyó, também é
possível entrevermos uma estreita ligação entre “nome”: eka
e “pensamento”: ekanïpï, na medida em que se concebe que
algo só existe enquanto tal, porque existe alguém que pensa
sobre, e nomeia algo, por meio da linguagem. Ao fim e ao
cabo, tudo é nome, e os nomes não são todos iguais, porque,
em cada caso eles compõem uma configuração própria,
distinta e única. Assim, as coletividades concebidas como de
diferentes tipos recebem nomes diferentes para que possam
ser distinguidas umas das outras. Nesse sentido, tal como
sugere Roy Wagner (1974), os nomes “elicitam” coletividades
sociais no ato mesmo de distingui-las. Assim, à luz do que me
respondia Achefa quando eu lhe perguntava por que hoje se
chamam Tiriyó, e parafraseando Wagner, eu diria: “Tiriyó é
um nome, não um grupo; é uma forma de distinguir, de incluir
e excluir; é, pois, meramente um dispositivo para estabelecer
mais uma fronteira necessária”.
Mas o que Sáez define como “nominismo” parece melhor dar
conta do que se passa com os nomes no universo ameríndio
em geral:
o nome não nomeia, convoca; não responde a nada
fora dele, mas é real – as coisas, mais cedo ou mais
tarde, acabam por lhe responder. Em termos mais
concretos, isto supõe reconhecer como significativas
todas essas operações com nomes que resenhei acima,
e admitir também que os etnônimos não são um ruído,
mas uma estrutura
Sáez, 2002: 39.
Compartilho com Sáez esta visão de que os nomes (“etnônimos”)
não existem aleatoriamente, mas nos remetem estruturas
nominativas que embasam uma prática corrente entre os
ameríndios em geral: que é a prática nominista. É dela que
advém a profusão etnonímica presente em fontes orais e escritas,
históricas e atuais.
- koto (povos de língua caribe) como em Piyanakoto
(gente gavião)
- kok (povos de língua caribe) como em Ingarikok (gente
da montanha)
- gok (povos de língua caribe) como em Kukuigok (gente
do rio Kukui)
- teri (Yanomami), como em Maxapipiwei teri (gente da região
onde há muito peixe/traíra)
Sudoeste amazônico:
- dawa (Zuruahã/língua arawa) como em Jokihidawa (gente
do igarapé jokihi)
- madi ou madiha (Arawa),
- ëvu (Nukini/língua pano) como em Inubakëvu (gente
da onça-pintada)
- txabê (Kaxarari/língua
(gente do papagaio)
pano)
como
em
Bauêtxabê
- djapá (Katukina/língua
(gente da queixada)
pano)
como
em
Wiridjapa
As operações com nomes que, na citação acima, Sáez menciona
ter resenhado, dizem respeito a uma prática muito comum
no nominismo ameríndio: aquela que permite que, nas mais
diversas línguas, diferentes coletivos sejam nomeados a partir
de uma partícula coletivizadora, cujo significado quase que
invariavelmente remete a “gente”, ou funciona como pluralizador
“os”, e que na maioria das vezes aparece na posição de sufixo,
mas há casos em que vem no prefixo.
Extremo oeste amazônico (Peru e Equador):
- shuar (Jivaro), como em Murayashuar (gente da colina)
Assim, temos, por exemplo:
Gran Chaco:
Norte amazônico:
- yana (povos de língua caribe) como em Katxuyana
(gente do rio cachorro)
- ene (Palikur/de língua arawak) como em Wayveyene
(gente da lagarta)
- yó (povos de
(gente cutia)
língua
caribe)
como
em
Akuriyó
- nawa (povos de língua pano) como em Xixinawa
(gente do quati)
- oro (Wari/de língua Txapakura) como em Oromin
(gente anta)
- lec (Toba) como em dapiguemlec (gente que mora no alto)
- pi (Toba) como em Yolopi (gente javali)
A recorrência dessa prática de nominação de coletivos (um
qualificativo + uma partícula coletivizadora anteposta ou
posposta) é que faz da fabricação de nomes uma obra estruturada,
ao mesmo tempo que aberta a infinitas composições, e aberta,
portanto, ao evento. Tal como propunha Sahlins (2008) quando
145
carlos penteado
defendia que toda estrutura também é um objeto
histórico. E tal como já demonstraram vários autores
que se dedicaram a descrever, com maior ou menor
detalhe, como funcionam sistemas nominativos e
classificatórios de gente por toda América do Sul
(cf. Butt-Colson, 1983-84; Taylor, 1985; Erikson,
1993; Sáez, 2002; Gallois, 2007; Tola, 2007).
Além de nos remeter a outras lógicas e outros
mundos possíveis, os nomes para coletivos
indígenas, quando dizem respeito, principalmente,
a autodenominações, desafiam qualquer “tentação
substantivista”. O que parece claro do ponto de
vista da prática nominista ameríndia é que esta
se constitui antes como um meio de nomear
“alteridades”, do que identidades coletivas.
Portanto, como uma prática a serviço da produção
necessária do outro.
Do mesmo modo, ficou claro que a isso que nós
(não nativos) chamamos de grupos, os ameríndios,
em suas distintas línguas e concepções não
apenas chamam de outras coisas, como
possuem compreensões, de caráter ontológico,
absolutamente distintas. Sabemos que para os
mesmos, o estatuto de “gente” ou “pessoa” não se
restringe à espécie humana, tal como concebida
no pensamento “ocidental”, mas estende-se
ao que este conceberia como “não humanos”.
Resta indagar como se dá essa produção de
continuidades e descontinuidades, e qual o papel
dos nomes neste âmbito? Atuam como instrumentos
de segmentação, conforme Butt Colson (1983-84),
ou como operadores de cortes num fluxo contínuo
(Viveiros de Castro, 2000)?
A partir dos anos 1970, tornou-se lugar comum
na etnologia americanista que as fronteiras entre
os grupos locais são muito tênues, e que a mobilidade e a
independência dos indivíduos ou famílias nucleares fazem com
que se torne muito complicado definir o que seria, ou quais
seriam suas unidades sociais. Uma das tentativas deste estudo,
por meio da análise das onomásticas indígenas para coletivos,
foi a de propor que o que estas nomeiam são formações
sociopolíticas situadas em campos relacionais em constante
movimento entre fusão e cisão, e que é no bojo desses processos
que se fabricam nomes e gentes continuamente, ad infinitum...
BIBLIOGRAFIA
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147
ruben caixeta de queiroz
VESTÍGIOS
DO RIO TURUNI:
SOBRE MEMÓRIA,
MIGRAÇÕES
E LUGARES
Victor Alcantara e Silva
Quando em 2010 cheguei pela primeira vez na região do médio
rio Trombetas, integrava uma equipe de arqueologia da UFMG
que trabalhou prospectando os baixos rios Mapuera e Cachorro.1
Trabalhando com indígenas Waiwai, Katxuyana e com quilombolas
da vila de Cachoeira Porteira, ouvi várias histórias de formação de
novas aldeias, tanto no rio Mapuera quanto nos rios Cachorro e
Trombetas. Em uma conversa com um indígena Katxuyana sobre
a “volta” que faziam às antigas aldeias, ouvi o seguinte: “Aqui é
assim, Victor, querendo a gente vai pra qualquer lugar”. Qualquer
lugar, mesmo, eu pensava, impressionado com a dimensão da
floresta livre de estradas e de fazendas e com os rios não cerceados
por barragens e pontes. Porém, diferentemente do que poderíamos
julgar, esse “lugar” de que me falavam os índios não é uma porção
qualquer de terra na floresta. Em comum, todas as novas aldeias
tinham o fato de serem reocupações de antigos locais de moradia, e
as pessoas que então os ocupavam reivindicavam como tendo sido,
outrora, lugares onde seus antepassados viveram. Esses “lugares”,
assim, eram qualificados pela história, experiência e vivência das
pessoas que ocuparam e circularam por aquelas terras e rios, e,
no movimento de “volta”, as novas ocupações se legitimam pela
continuidade dessa vivência.
Este texto trata de uma dessas tentativas de “volta”, que
acompanho há cerca de três anos.2 Vivendo atualmente em
uma pequena aldeia próxima à foz do rio Mapuera, Xokokono,
juntamente com seu pai, Tikti, planeja reocupar o lugar onde este
viveu antes de seguir com os Waiwai para a missão Kanaxen3 na
1.
2.
3.
4.
5.
6.
150
então Guiana Inglesa. Ambos se dizem Txikyana, mas misturados
aos Tunayana, Mînpowyana, Xerew e Katuena dos rios Cachorro
e Turuni e, portanto, diferentes dos Waiwai do rio Mapuera.
Juntamente com Xokokono e Rosene, sua esposa, eu por várias
vezes me sentei com Tikti para ouvir as histórias de sua antiga
aldeia, no igarapé Tarao – que é formador do rio Turuni, afluente
da margem direita do Trombetas4 – e da perambulação de sua
família, que, devido a conflitos com gateiros e outros karaiwa5
que subiam o rio Trombetas, deixou aldeias no médio curso
do rio para se estabelecer entre outros grupos que também
migravam para o rio Turuni, formando juntos uma grande aldeia
chamada Yewucwi. Ocupando as cabeceiras do Turuni, entraram
em contato com outros grupos que ali estavam, como aqueles
que se chamam de Katuena, Xerew e Mînpowyana, com os quais
estabeleceram alianças que são perpetuadas ainda hoje.
Pensando nesses movimentos de “volta”, seria errôneo pensar
que existe, entre as populações nativas das Guianas, uma
identificação imediata entre grupo ou etnia e território. O que
vemos nas aldeias guianenses é uma miríade de nomes, cuja
história é marcada por constantes “misturas”, como afirmam
as pessoas da região. Atualmente, os nomes que se tornaram
circunstancialmente mais conhecidos, como Waiwai, Katxuyana,
Tunayana, representam coletivos múltiplos, formados por diversos
adensamentos de relacionamentos tecidos nos movimentos de
aproximação e distanciamento que caracterizam a dinâmica
social guianense.6 Com o advento das missões e a concentração
“Projeto Norte Amazônico: etnologia e arqueologia na calha do rio Trombetas e na região das Guianas”, coordenado pelos professores Ruben Caixeta de Queiroz
e André Prous, propunha uma abordagem conjunta entre antropologia e arqueologia, a fim de apreender as dinâmicas de ocupação e movimentação passadas e
presentes na região etnográfica das Guianas.
Este texto é um ensaio da dissertação de mestrado que desenvolvo no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, sobre o mesmo tema.
Cf. a seção “A chegada dos missionários: missões evangélicas e Missão Tiriyós”, na página 156 deste livro para um breve histórico da missão.
A área em que Xokokono pretende formar sua nova aldeia se encontra fora das TIs atualmente demarcadas (Nhamundá-Mapuera e Trombetas-Mapuera) e dentro
dos limites da proposta de demarcação da Terra Indígena Katxuyana-Tunayana.
Que é como chamam aos “brasileiros”, independentemente se brancos ou quilombolas, tendo como critério principal o fato de falarem a língua portuguesa.
Como caracteriza Dominique Gallois (2007), as populações guianenses se relacionam em redes multilocais, nas quais não há pontos de vista sociocentrados ou que
representem todos sociopolíticos. Nessas redes, o que vale são as elaborações e estratégias pessoais ou de pequenos grupos e famílias, inexistindo posições que
totalizem unidades em relação a todos os outros. A enunciação de um “nós” coletivo, no entanto, constituiria hoje uma necessidade para essas populações, em que
“o desafio que se coloca hoje aos índios, submetidos e constrangidos por nossas ideias a respeito das unidades que eles supostamente representam e por instituições
que pretendem configurá-los como coletivos, é encontrar elementos para atender a essas demandas sem que precisem abdicar de suas filosofias sociais” (Idem: 75).
Esses elementos selecionados, no caso dos Waiãpi, se baseiam em traços de aparência e/ou comportamento, o que garante que as classificações sobre a diferença
permaneçam abertas, em infinitas possibilidades, o que permite a formação dessas identidades genéricas que representam contextualmente um “nós”.
populacional a partir dos anos 1950, além da intensificação
das relações com órgãos de Estado, no entanto, esse movimento
ficou mais restrito – ao menos espacialmente –, passando a
impressão da formação de grandes blocos étnicos encerrados
em territórios bem delimitados.7 A “volta”, como veremos, não é
uma reivindicação baseada na posse de um território, mas uma
afirmação de continuidade que, além de histórica, está fundada
na perpetuação através do tempo de relacionamentos formados
em dado espaço e que formam corpos e parentes.
Apesar da restrição atual, a formação de novas aldeias explicita a
continuidade do movimento e das maneiras de criar e de desfazer
agrupamentos. Até recentemente, antes da concentração, isso
se dava principalmente por meio dos convites para festas cujo
mote eram a dança e o consumo de bebida fermentada, e nas
quais as aldeias que eram dispersas, mas ligadas por trocas,
alternavam os papéis de anfitriãs e convidadas, engendrando um
ciclo de reciprocidade ritual que propiciava, além das alianças
matrimoniais, parcerias comerciais e políticas. Também a guerra
e o rapto de mulheres tem papel importante na articulação dos
antigos assentamentos. Formavam assim conjuntos que não se
restringiam à marca étnica, pois eram formados por coletivos
– Yana, na língua nativa – de procedências diversas, dando
origem às “misturas”. Mesmo no contexto de aglomeração, em
que esses yanas diversos se viram confinados em um mesmo
espaço, as festas adquiriram outro aspecto, explicitando então
diferenças internas e mantendo seu papel fundamental de marcar
dessemelhanças contextuais (Caixeta de Queiroz, 2009).
Atentando para as histórias da família de Tikti, devemos ver
tanto o fato de viverem hoje entre Waiwai quanto de terem se
“misturado” com outros grupos no Turuni como acontecimentos
contingenciais, ligados à história de sua movimentação e às
7.
relações decorrentes dela. Atualmente, mesmo vivendo longe
desses lugares onde foram criados os laços que hoje informam
relações que continuam cultivando vivendo entre os Waiwai,
esses locais permanecem vivos e as pessoas permanecem ligadas
a eles justamente pela perpetuação, ainda que à distância
– tanto a distância das pessoas com o lugar quanto aquela
entre as pessoas relacionadas separadas pelas missões –, dos
contatos e alianças produzidos ali anteriormente. A “volta”,
assim, significa rearticular essas relações dispersas novamente
em espaço compartilhado, em aldeias que seguem um ideal de
residência com parentes próximos, e não se restringe somente
às pessoas que de fato viveram naqueles locais. Não por
acaso, muitos daqueles que viveram no Turuni e querem voltar
acercam-se de Xokokono, que jamais esteve lá, para expressar
seu apoio e vontade de voltar, além de reconhecer nele, por suas
qualidades e trajetória, um chefe capaz de levá-los até lá e fazer
uma boa aldeia. Xokokono, assim, vai se tornando um ponto de
convergência numa ampla e antiga rede de relacionamentos,
articulando várias dessas relações, tornando-se um cacique de
uma aldeia porvir.
A SAGA DE TIKTI
Já noite, debruçados com lanternas sobre um mapa em papel,
eu e Xokokono íamos acompanhando a narrativa de Tikti sobre
o abandono de antigas aldeias nas margens do rio Trombetas
e a ocupação de seus afluentes e cabeceiras. Xokokono ia
guiando a memória do velho, já desgastada pelos tantos anos:
percorrendo com os dedos a estreita linha azul que representava
o rio, imaginando e descrevendo a partir do que via no papel
cartografado paisagens por ele desconhecidas, curvas de rios,
O que Roy Wagner (2010: 253) aponta para o caso etnográfico dos Daribi também vale aqui. Lá, os agentes coloniais, diante de uma miríade de nomes,
agrupamentos e terras de famílias, organizaram aldeias, desfizeram as casas coletivas e distinguiram grupos e territórios. Ou seja, criaram uma imagem de
sociedade como conheciam: uma terra, para um grupo. Essa forma estatal de lidar com a socialidade nativa também ocorre no caso do Trombetas, e a formulação
do vocabulário do grupo étnico por parte dos índios é uma resposta nativa à expectativa dos brancos de encontrar grupos em um sistema perpectivista, multilocal,
em que os nomes marcam estados de relação.
151
entradas de igarapés, corredeiras e ilhas, ajudando Tikti a
rememorar os lugres que ele ia nomeando, situando aldeias,
narrando histórias de guerras, festas, fugas e casamentos.
Perguntado sobre onde vivam os Txikyana, que é como ele
coletivamente se nomeia, Tikti me contou uma história que
remonta há séculos. Sua memória nos levou até as beiras do rio
Amazonas, em um progressivo recuo rio acima desde a região
de Santarém, e posteriormente ao Trombetas e daí para suas
cabeceiras e afluentes. Tikti conta que os Txikyana viviam, muito
antigamente, entre outros grupos em aldeias nas margens do rio
Amazonas8, que foram sendo abandonadas devido aos conflitos
com os karaiwa. Por isso, teriam subido o rio Trombetas direto até
suas cabeceiras, estabelecendo-se, principalmente, no rio Ponama
(formador da margem esquerda do Trombetas) e cabeceiras do rio
Kaspakuru (afluente da margem esquerda do Trombetas)9.
Do que retém em memória com detalhes, Tikti nomeia três locais de
aldeia no rio Amazonas: a aldeia do cacique Onuwayari, chamada
Tunaherenî na língua Txikyana, algo como “água grande”, onde
hoje é cidade de Santarém; abandonada essa aldeia, recuaram
para a região de Óbidos, e posteriormente Oriximiná, chamada
por ele de Osohku mitî, cujo cacique era Maani. Abandonando
também essa aldeia, recuaram ainda mais e formaram uma
aldeia muito grande, onde hoje fica a vila de Cachoeira Porteira,
chamada Yxamna pelos Tunayana ou Orixamna pelos Txikyana.
Nessa primeira migração, pelo que entendo de sua narrativa,
não se estabeleceram por muito tempo nesses locais, pois,
diferentemente de outros grupos, como os que se chamariam
Katxuyana, não ficaram próximos da região de Cachoeira Porteira
e seguiram rio acima. No entanto, esses locais permaneceram na
memória dos que migraram, sendo posteriormente reocupados por
uma geração que é a do avô de Tikti.
8.
Ele conta que seu pai nasceu na antiga aldeia Ayaramã, no rio
Ponama. De lá, junto com seu avô, o pai desceu e viveu na região
de Orixamna, próximos aos Kahyana, Katxuyana e Yaskuryana,
que então ocupavam o baixo rio Mapuera e Cachorro, além
do médio rio Trombetas. A partir daí Tikti narra outra história
de fugas, essas de pessoas que foram seus contemporâneos.
Os Txikyana ficavam bem no encontro do rio Mapuera com o
Trombetas, os Kahyana ficavam na margem do Trombetas, os
Yaskuryna ocupavam tanto a boca do Mapuera quanto o rio
Cachorro, juntamente com os Katxuyana. Vivendo nessa época
em Orixamna, cujos caciques eram Tataki e Tuho, os Txikyana
foram visitados pelos Tunayana que vinham do rio Turuni, de
muito longe, de uma aldeia chamada Yuuwa. Subindo o rio,
porém, novamente chegaram os karaiwa:
Chegaram também os karaiwa, e encostaram o barco e
falaram: - “ei, tudo bem, Tunayana”?
- “Aham, tudo bem, karaiwa”, os Txikyana responderam
já com os arcos na mão, preparados.
“-A gente te enganou e vamos te flechar agora”, o
homem puxou a flecha na frente do karaiwa e atirou
nele, karaiwa gritou “aaa”.
Outro karaiwa ficou em pé e o Txikyana segurou o
terçado dele. Mas ele puxou o terçado e cortou todos os
dedos do homem. Ele ficou sem dedos.
Isso acontecia por causa das mulheres.10
Depois de vários conflitos com os karaiwa, Tikti diz que seu avô
ficou com medo de continuar morando em Orixamna e decidiu
seguir rio acima, para morar próximo dos Tunayana. No caminho,
conta que eles viram várias aldeias e conheceram outros Txikyana
que então viviam entre os Katxuyana no rio Cachorro e também
Protásio Frikel (1970:20) recolheu história semelhante entre os Katxuyana no rio Cachorro nos anos 1940. A partir dos relatos nativos, o autor traça um grande
movimento de migração desde o rio Amazonas para a região trombetana em sucessivas levas, que teria formado os grupos atuais através de misturas dos Warikyana,
que subiam, e de grupos originários da região das serras dos formadores da bacia do Trombetas.
9.
Ainda Frikel (1958: 177) relata um encontro com “Tchikoyánas” - que falavam Tirivó - em 1953 no Ponama, além de ter visitado aldeias Kahyana (que são aparentados
dos Txikyana) no baixo Kaspakuru no mesmo ano. William Farabee (1924) relata ter encontrado pessoas que se chamavam “Chikena” no rio Maroni, no Suriname.
10.
Esse excerto foi retirado de um entrevista realizada com Tikti em 2015 e transcrita e traduzida por Rosene.
152
com os Kahyana no rio Kaxpakuru. Continuaram subindo até
chegar a uma cachoeira próxima ao rio Turuni, chamada Yaimo
Kahxin em waiwai e Piana Tohuru em txikyana. Lá foram visitados
novamente pelos Tunayana, que iam dançar na aldeia deles. Por
essa época já não havia mais aldeias na parte baixa do Trombetas,
pois os karaiwa estavam entrando, e os índios fugiam rio acima
e para as cabeceiras11. Vivendo perto das aldeias tunayana, os
Txikyana passaram a se aproximar deles: entravam por terra pela
margem do Trombetas e depois desciam de canoas até suas aldeias
no rio Turuni, para trocar e fazer festas. Ainda assim, logo esses
caminhos passaram a ser usados para fazer guerra, já que um
homem txikyana roubou uma mulher tunayana, sendo morto pelo
marido dela. Deu-se inicio a uma série de mortes por vingança.
Tikti diz que os Tunayana queriam acabar com os Txikyana e essas
brigas deixaram muitos de seus parentes mortos ou doentes, tudo
“por causa de roubar mulher”.
Por essa época também começaram a aparecer novamente os
karaiwa. Chegaram alguns em Yaimo que sabiam falar a língua
txikyana. Chegaram novamente perguntando na língua nativa:
“ei, Txikyana, tudo bom com vocês?”. Eles respondiam que sim,
mas já sabiam que eles estavam lá para tentar pegar mulher
deles, e estavam esperando com flechas. Um deles queria levar
a irmã de Pirihoput, um guerreiro, que não queria deixar que o
karaiwa a levasse e resolveu mata-lo. Enganou ele, dizendo que
sua mãe estava doente, que era pra ele levar remédios pra ela.
Levando-o para dentro de aldeia, o flecharam. Outro, que tentou
fugir para a canoa, também foi morto. Depois disso, resolveram
abandonar a margem do Trombetas e formaram Marani no
Turuni. Foi lá que o pai de Tikti casou-se com uma mulher
Tunayana. Mas lá novamente apareceu outro karaiwa, e os índios
resolveram logo dizer pra ele ir embora, que ele não era amigo e
não levaria nenhuma mulher com ele. Se tentasse, seria morto.
Um pouco depois o pai fez outra aldeia mais para dentro do
Turuni, chamada Mapotu. Porém, viviam constantemente com
medo de novos encontros com os karaiwa, e decidiram fazer suas
aldeias longe do rio. Uma série delas, como Yawari, Mawa Thîrî
e Matitikiri foram feitas bem longe das margens dos rios grandes.
Faziam isso porque a antiga Manutu, que foi sua contemporânea,
depois de ter sido raptada por karaiwa na região de Santarém e
conseguido fugir novamente para onde vivia em Óbidos, havia
lhes contado que os brancos não andam pelo mato, só pelos rios.
Ainda assim, decidem abandonar a parte baixa do Turuni e subir
até Yewucwi, uma grande aldeia nas cabeceiras que reunia gente
dos rios Trombetas, Turuni e dos formadores do rio Cachorro.
Lá ele diz ter conhecido pela primeira vez os Katuena,
Xerewyana e Mînpowyana, Tiriyó, que frequentavam a aldeia
para fazer festas e trocar. Conta que os Xerewyana e Mînpowyana
tinha feito muita guerra entre si no passado, mas que naquele
momento vivam juntos. Diversos deles foram morar também
em Yewucwi. Também tomou contato com os Mawayana nessa
época, que passavam pela aldeia para trocar. Mesmo alguns
negros apareceram por lá, mas pela língua falada perceberam
não serem karaiwa, pois não falavam português12. Em Yewucwi
conseguiam trocar com Tiriyó cães de caça por miçangas,
terçados e machados13. Essa aldeia, sendo muito grande, durou
muitos anos e teve vários caciques: primeiro Enikawa, depois
Maiaka, e ainda Riiko, todos tunayanas.
Quando Tikti morava lá, os Waiwai de Kanaxen chegaram ao
Turuni14. Quem liderava era Yakuta, irmão de Ewká:
11.
Cf. Girardi (2011: 72-83) para um exemplo das narrativas nativas sobre conflitos nessa área com os negros que subiam o rio Trombetas.
Tikti ressalta que com esses negros, havia alianças e trocas, pois não tentavam roubar suas mulheres.
13.
Como se percebe, Yewucwi foi criada em um lugar de intenso fluxo de pessoas. Frikel (1955: 224) fala de um caminho usado pelos índios que ligava desde a zona de
campos do rio Erepecuru, passando pelo Trombetas, Turuni até chegar no Cachorro, que ele assim descreve: “ele vai do rio Kachuru, maginando, mais ou menos, o
Itchitch.wahú, ou Igarapé do Ambrósio e, atravessando as cabeceiras deste, leva aos Yaskuri e de lá ao rio Kuha ou rio Velho [...]. Segundo parte do curso do Kuha
[Trombetas], atravessava para o Turuni e dali para o alto Kahu ou Trombetas (Kafuine), onde se unia com outra que vinha descendo das cabeceiras do Kafuine. Esta,
por sua vez, levava, atravessando o Kahu e Wanamu (Panama), para os campos dos Pianokoto e Tiriyó até o Marapi e Erepecuru ou Parú de Oeste e mais além.”
14.
Talvez em meados dos anos 1960, que é quando Howard (2002) situa a atração dos Katuena.
12.
153
victor alcantara e silva
Estávamos dançando até o meio dia, quando ouvimos
um barulho “Wih! Wih!”. Pensamos “quem são
essas pessoas?”
O pessoal waiwai que começou a chegar. Quando eles
chegaram eu vi os Waiwai.
Antes eu nunca tinha visto eles.
Eu vi Yakuta, Manaka, Tamokrana, essas pessoas que
eu conheci.
Eles estavam contando a história do livro grande.
Tikti conta que só Marakri, Putaya e um outro homem quiseram
seguir com eles para Kanaxen. Conversei com Marakri, que hoje
vive na aldeia Mapium no rio Mapuera, sobre essa visita. Ele era bem
jovem quando Yakuta e outros Waiwai vindos da Guiana chegaram.
Deram tiros de espingarda nos arredores da aldeia para anunciar
sua proximidade, pois temiam aqueles que chamavam de enîrnî
komo – os “povos não vistos”, ou os “isolados” como os chamam
em português –, tidos como desconfiados e violentos. Entraram na
aldeia todos enfeitados de penas e miçangas, vestindo bermudas.
Marakri disse que os visitantes falavam uma língua só um pouco
diferente da deles, e que chegaram querendo ensinar “palavra de
deus”. Diante da perplexidade dos habitantes de Yewucwi, fecharam
os olhos, rezaram e cantaram hinos evangélicos, dizendo que assim
deviam fazer aos Domingos, pois daquela maneira lhes ensinaram
os missionários, paranakiri.15 Poucos demonstraram interesse
inicialmente e apenas Marakri, seu irmão mais velho e outros dois
homens adultos seguiram com Yakuta para a missão, numa viagem
de três dias varando por terra as cabeceiras, “para ver a aldeia deles,
ver como eles estavam morando”, como me disse.
Após um ano vivendo em Kanaxen, construíram canoas e
retornaram com Yakuta a Yewucwi pelos rios. Quando chegaram,
diversas pessoas de outras aldeias se reuniram para vê-los e
para escutar a narrativa da viagem. Marakri contou-lhes que
a vida em Kanaxen era muito boa e que queria levar todos
outros para lá. Que lá aprendiam os hinos e rezas de Deus na
igreja e que os caciques não deixavam haver briga. Tikti conta
que os Waiwai chegaram falando das “palavras de deus”, dos
ensinamentos dos paranakiri, e que queriam levá-los para
conhecer Kanaxen. Interessados nos visitantes e nas novas
palavras que apresentavam, as pessoas de sua aldeia rumaram
com os Waiwai para a Guiana em uma longa viagem, ainda que
várias outras pessoas tenham se recusado, isolando-se na região
das cabeceiras, onde provavelmente permanecem até hoje.
Para a viagem, Tikti disse que fizeram várias canoas com
troncos e cascas e seguiram por mais de dois meses até chegar
a Kanaxen, com pouca comida e se alimentando praticamente
só carne de caça, sofrendo muito. Pensavam então que seria
apenas uma visita, pois deixaram a maioria de seus pertences
arrumados em grandes potes de barro na aldeia. Mesmo os cães
e as galinhas foram deixados para trás! No entanto, conta o
velho, uma vez na missão foram constantemente desencorajados
pelos Waiwai e pelos missionários a retornar. Ele diz que não
gostava de lá, que não podiam cantar, não podiam fazer as festas
de bebidas, que os Waiwai brigavam com eles se mexessem nas
roças. Eles tentaram voltar, mas Ewká16, que era o cacique geral
em Kanaxen, dizia que todos que saíssem de lá morreriam, que
iam morrer no caminho, porque agora já tinham tomado remédio,
vacina, que precisavam dessas coisas. No entanto, mesmo assim
Tikti retornou, para buscar seus irmãos, mas ao chegar encontrou
a aldeia totalmente abandonada17. “Agora estou velho, já não
aguento. Se fosse jovem te levava lá onde meu pai ficava”.
15.
Paranakari é uma palavra de origem antiga, usada pelos caribe da costa no período colonial para se referir aos holandeses – parana-kari (Dreyfus, 1993).
Entre os Waiwai, atualmente paranakiri designa povos não indígenas, geralmente de pele muito clara, que não falam o português. Aos missionários foi atribuído
posteriormente o nome amerkan (Howard, 2002).
16.
Ewká foi um prestigioso xamã escolhido pelos missionários como alvo de seu esforço de evangelização. Quando Ewká se declara convertido, há uma adesão
coletiva ao estilo de vida crente. Cf. Caixeta de Queiroz (1999) para detalhes dessa história.
17.
Como ficaram sabendo depois, os demais habitantes haviam seguido para outra concentração missionária, chamada Alalaparu, estabelecida entre os Tiryó pelos
mesmos fundamentalistas que atuavam entre os Waiwai.
155
Apesar do desejo de voltar, Titki permaneceu contrariado por
muitos anos em Kanaxen e retornou ao Brasil com os Waiwai
quando eles decidiram abrir a aldeia no rio Mapuera. Como tantos
outros que deixaram suas aldeias e lugares para se juntar aos
Waiwai, Tikti tentou abrir aldeias separadas no rio Mapuera, mas
a atração que a aldeia grande causava nos seus filhos, devido
aos recursos que concentrava, o deixou sozinho na empreitada.
“Por isso”, ele diz, “não consegui até hoje retornar ao Turuni, por
falta de ajuda”.
A CHEGADA DOS MISSIONÁRIOS:
MISSÕES EVANGÉLICAS
E A MISSÃO TIRIYÓS
Em fins dos anos 1940, missionários passaram a realizar visitas
no rio Essequibo, na Guiana. Os missionários da Unevangelized
Fields Mission (UFM), atual Missão Evangélica da Amazônia
(MEVA), haviam se instalado no Brasil no começo da década
de 1940, visando evangelizar entre os índios das savanas no
Território do Rio Branco (atualmente o Estado de Roraima) e
da Guiana, notadamente os Wapixana, Macuxi e Ingaricó. Entre
esses índios, escutaram relatos a respeito de grupos isolados
e belicosos na região de densas florestas e serras ao sul da
Serra do Acarí, a que os povos da savana chamavam “Waiwai”,
os quais os irmãos Neill, Rader e Robert Hawkins decidem
contatar, organizando uma expedição em 1948. Como sabiam
que os índios do lado brasileiro eram mais numerosos e com a
recusa do Governo em deixá-los implantar a missão no Brasil,
empreenderam a estratégia de converter um pequeno grupo
contatado na Guiana para, então, apostando na circulação das
18.
156
pessoas e palavras marcante na região, usá-los como ponte para
acessar aqueles com os quais os primeiros mantinham contato.
Estabeleceram assim a missão Kanaxen, próximo à aldeia
Yakayaka nas cabeceiras do rio Essequibo, por volta de 1952.
Já no ano de 1953 um grande afluxo de pessoas começa em
Kanaxen, que atraia aquelas aldeias com as quais as pessoas de
Yakayaka, que passaram a se denominar Waiwai,18 mantinham
relações de trocas no rio Mapuera, como os Xerew. Em poucos
anos a missão passa de cerca de 30 pessoas em sua fundação
para mais de 250, ainda em 1958, e chega a 450 no fim dos anos
1960. Como exemplo da estratégia da UFM, temos a transcrição
feita por Guppy – um pesquisador botânico que visitou Kanaxen
em 1953 – da fala de um missionário:
Uma vez que alguns artigos como armas para os
homens, ou roupas para as mulheres, tenham se
tornado necessários para eles, nós podemos facilmente
catequizá-los, pois eles terão que ganhar dinheiro e como
consequência morar próximo da missão, onde podemos
controlá-los e guiá-los para caminhos melhores. (...)
Há provavelmente 200 índios depois da fronteira, no
Brasil, e é neles em que estamos realmente interessados.
Os Waiwai da Guiana vão atuar como sementes,
espalhando a Palavra para os outros – e é por isso que
devemos concentrar esforços para convertê-los primeiro.
Por enquanto, estamos tentando convencer os índios
brasileiros a deixar suas aldeias e se assentar aqui.
Estamos oferecendo a eles miçangas, facas, espelhos
– tudo o que adoram. Nós mandamos mensageiros
através da fronteira para dizer a eles que aqui viverão
muito melhor. E alguns estão vindo
Guppy, 1958 apud Valentino, 2010, tradução do autor.
Como mostra Catherine Howard (2002: 30, 404), mesmo aqueles indígenas que à época de sua pesquisa eram reconhecidos como “waiwai”, diziam-se, na
verdade, outra coisa. Em um sistema de nomeação relacional, o termo Waiwai me parece ter sido adotado pelos indígenas contatados devido à insistência dos
missionários em assim chamá-los, adotando o nome usado pelos habitantes das savanas, que serviram de guias a diversas expedições que percorreram a área
de fronteira marcada pela serra do Acarí, para nomear os povos da floresta. Ruben Caixeta de Queiroz (2009) denomina todos esses povos como pertencentes ao
“complexo tarumã-parukoto”, uma categoria exterior à denominação nativa e baseada nos estudos de Protásio Frikel (1971), que estabeleceu um recorte geográfico
a partir da densidade de relações que alguns desses agrupamentos mantinham entre si em certas regiões.
Se, por um lado, os missionários mantinham um caráter
pragmático em sua estratégia de atração, os índios pareciam
atraídos não só pelas benesses materiais dos “presentes” ou da
disponibilidade de remédios alopáticos e outros cuidados de
saúde disponibilizados pelos norte-americanos. Pelos relatos
que colhi com Tikti e Marakri, quando os Waiwai visitaram suas
aldeias não levaram quase nenhum presente, e ambos enfatizaram
o fato de estarem aprendendo novas palavras e formas de conduta
com os paranakarî, a “palavra de deus”. Se os missionários
assistência de saúde sem a intenção de concentrar os índios.
pensavam que controlavam os índios pelos bens materiais, os
DISTANCIAMENTOS, MIGRAÇÕES
E PROFETISMOS
índios que se deslocavam até a missão o faziam por motivos
Porém, com a pressão das missões protestantes no Suriname e as
expedições de atração que começaram a promover, os católicos
passaram também a tentar reunir a população indígena dispersa
na fronteira. Assim, já em 1968 todos os Tiriyó e grupos vizinhos
estavam concentrados em apenas três aldeias, sendo que muitos
haviam atravessado a fronteira para o Suriname.
ligados à circulação dessas palavras, em um movimento com
feições proféticas,19 como abordarei mais à frente.
De toda forma, esse modo de trabalho missionário iniciado na
Guiana seria replicado em outras áreas. Em 1963, duas missões
protestantes foram formadas no Suriname pela UFM com ajuda
dos Waiwai de Kanaxen (Frikel, 1971: 30). A partir delas foram
realizadas incursões rumo aos Tiriyó do lado brasileiro, bem como
ao rio Trombetas, atraindo diversas aldeias Tunayana, Kahyana
e Txikyana que haviam permanecido depois das investidas dos
Waiwai da Guiana. Essas expedições fizeram com que a missão
católica instalada na fronteira do Brasil com o Suriname mudasse
de postura, passando também a “disputar” os indígenas. Formada
ainda em 1960, a Missão Tiriyós, situada no alto rio ErepecuruPA, foi uma resposta às incursões de missionários evangélicos
na região (Grupioni, 1999). Em uma aliança com a Força Aérea
Brasileira, que tinha o interesse de estabelecer uma pista de
pouso próxima à fronteira, Frei Protásio Frikel propôs a criação
da Missão, que, inicialmente, tinha como objetivo prestar
A atuação das missões e das expedições a partir dos anos 1950
causou a aglomeração, em poucos centros, de uma população
outrora dispersa. Outro impacto importante foi a distensão das
redes de relação devido à distância entre esses centros, uma
vez que agrupamentos antes próximos espacialmente tomaram
decisões distintas quanto a qual missão se juntar, e mesmo
alguns preferiram se isolar e não seguir para missão alguma.20
Assim, pessoas que viviam próximas, mesmo parentes, se
viram apartados por centenas de quilômetros de floresta e sem
perspectiva próxima de conseguirem voltar a seus lugares.
Em toda a região, o quadro resultante foi que, nos anos 1990,
a população da área entre os rios Nhamundá e Trombetas
estava concentrada em apenas cinco grandes aldeias,21 além de
existirem outras três aglomerações Tiriyó,22 à exceção daqueles
que preferiram se manter em isolamento até hoje.
Se as missões tiveram tanto sucesso em atrair essas populações
para seu entorno, não podemos creditar sua eficácia somente
aos missionários ou, como algumas interpretações apostam, no
19.
Comum na literatura caribe no circum-roraima. Cf. Andrello (1992); Abreu (2004); Amaral (2014).
É comum ouvir nas aldeias do rio Mapuera relatos sobre grupos próximos que se isolaram quando foram visitados pelos Waiwai e que não foram mais vistos em
nenhuma das missões, e que provavelmente vivem de maneira autônoma em seus lugares de origem.
21.
Mapuera, com cerca de 1300 pessoas; Jatapuzinho, no rio Jatapuzinho, com cerca de 300 pessoas; Anauá, no rio Anauá, com cerca de 150 pessoas, e Shapariymo,
no rio Essequibo, na Guiana, com cerca de 150 pessoas, e Kassawá, no rio Nhamundá com aproximadamente 600 pessoas (Caixeta de Queiroz, 2009: 218).
22.
De acordo com Grupioni (1999), já a partir de 1968 os Tiriyó que estavam no Brasil passaram a descentralizar as aldeias, permanecendo, porém, nos arredores
da missão.
20.
157
engrandecimento político dos Waiwai.23 Os relatos históricos e
etnográficos que temos da área no período anterior à entrada dos
missionários mostram um quadro de muitas guerras e de epidemias
que reduziam as populações, causando muita movimentação pelo
território e estratégias de sobrevivência diversas, como o isolamento
ou a aproximação e fusão com aldeias aliadas. Nesse momento
dramático, em que mesmo as referências cosmológicas parecem
falhar quando os xamãs são desacreditados (Caixeta de Queiroz,
1999), as missões parecem ter sido vistas como uma possibilidade
de sobrevivência em continuidade com o que já vinham fazendo
esses povos diante da queda demográfica. No entanto, essa visão
das missões não se restringe ao aspecto material, dos remédios e
dos bens, que nunca surgem nas narrativas daqueles que viveram
a migração como algo importante. A “palavra de deus” e a figura
dos paranakiri, esses sim, têm ênfase nos relatos.
Se não tomamos essa ênfase como uma explicação a posteriori
da suposta conversão evangélica Waiwai, como podemos
compreender o interesse dos índios nela? Ou, modificando a
pergunta, o que os ditos isolados buscavam ao decidir seguir
aquela gente e ouvir aquelas palavras estranhas? A circulação
e a aquisição de palavras estrangeiras aparece com bastante
importância na literatura sobre os fenômenos proféticos relatados
entre outros povos caribe, como aqueles da região circumroraimense (Abreu, 2004; Andrello, 1992). Nesses estudos fica
clara a generalidade do fenômeno entre os povos caribe das
Guianas e sua abrangência, uma vez que através das redes de
troca as pregações que surgiam nas áreas de serra de Roraima
atingiam regiões muito distantes, tendo chegado aos Waiwai
e Carumã no alto rio Essequibo na primeira década de 1900.
Circulando pelas Guianas, as pregações e notícias de visitas de
missionários causaram, desde o século XVIII, vários movimentos
de migração e concentração populacional.
23.
24.
25
158
Por exemplo, temos o caso dos Taurepang, entre os quais a sucessão
de uma série de “profetas”, surgidos desde os anos de 1840, os
levou a sucessivas migrações e a movimentos de concentração
e dispersão territorial, nas quais grupos vizinhos, tendo ouvido
falar das pregações, tomavam parte (Andrello, 1992: 110-126).
Figura emblemática nessa história é Jeremiah, um líder religioso
Taurepang que recebeu o pastor O. Davis em sua aldeia em 1911.
A partir daí, Jeremiah criou uma série de novos cultos e cantos,
interpretando os ensinamentos de Davis e cruzando-os com
antigas danças indígenas, aos quais chamou de “aleluia”24. Nessas
cerimônias, Jeremiah pregava sobre um bom lugar, preparado por
Jesus, a ser alcançado por todos aqueles que observassem certas
práticas, como proibições alimentares e abandono das curas
xamânicas. Na época do Natal, Jeremiah enviava mensageiros às
demais aldeias da região convidando as pessoas para aprender os
cantos e as danças. Tudo isso fez com que sua aldeia se tornasse
um aglomerado de grupos outrora espalhados que voltaram a
se dispersar em pequenos núcleos pela fronteira do Brasil e da
Venezuela alguns anos depois, devido à sua morte.
O interesse dos povos da região do Trombetas nos missionários
e nos Waiwai, a meu ver, decorre desse fundo cosmológico
compartilhado na região que associa a repetição exaustiva de
cantos e danças e uma conduta moral rígida a possibilidades
de transformações fundamentais na condição humana (Abreu,
2004: 26). E o interesse nas palavras estrangeiras é tal que o
padre Cary-Elwes,25 que percorreu a região dos Ingarikó no início
dos século XX, se declara espantado com a avidez dos índios
em relação às rezas e hinos, e sua “conversão espontânea” ao
cristianismo, uma vez que mesmo aqueles grupos mais isolados
já tinham conhecimento das rezas, que circulavam pelas redes
nativas. No caso dos povos circum-roraimenses, as pregações dos
missionários foram transformadas em novos cultos, hinos e danças
Aspecto enfatizado por Catherine Howard (2002).
Cf. Amaral (2014: 99-130) para um histórico dos estudos e gênese do aleluia e da exposição de suas linhas gerais.
O jesuíta, tendo se deparado em 1912 com um grupo Waiwai que conhecia algumas rezas, foi informado que tinham enviado mulheres para aldeias Wapixana, em
uma caminhada de 15 dias, com a instrução de só retornarem depois de terem aprendido as rezas (Abreu, 2004: 44).
Poderíamos pensar, no caso dos grupos que se juntaram aos
Waiwai, que o quadro de mortes e fugas causado pelas guerras
e doenças preparou uma leitura cataclísmica da chegada dos
missionários. Essa suspeita é confirmada ao menos no caso
de algumas aldeias Xerew do rio Mapuera, as quais teriam
migrado para os arredores de Kanaxen temendo o fim do mundo
anunciado pelos evangélicos e a possibilidade de salvação
na missão (Howard, 2002: 64). Nos demais, como no caso de
Marakri e Tikti, a “palavra de deus” é o grande interesse deles,
e aparece associada a uma mudança de comportamento. Marakri
ainda ressalta que na missão não há brigas, característica
que ouvi diversas vezes em campo como marca das aldeias
“crentes”. Brigas essas que englobam, pela lógica nativa, as
doenças, vistas como ataques xamânicos e vingadas tanto pelo
conflito físico quanto espiritual. A ênfase da conduta “crente”
que foi sendo criada se pautava na anulação da desconfiança
e violência que marcava a vida nas aldeias dispersas, do ponto
de vista dos Waiwai. Tendo em vista esse quadro, poderíamos
pensar que os diversos grupos que se reuniram em Kanaxen
fizeram uso dos missionários para reverter uma período negativo
e deliberadamente propor mudanças coletivas.
O que chamamos de “profetismo” aparece constantemente em
relações de “contato”, sendo, no fundo, uma leitura particular
desse encontro com os brancos – vivenciados xamanisticamente
–, que muitas vezes são incluídos nos discursos apocalípticos e
de renovação nativos.26 No caso caribe, como vimos, a imagem
do branco, seu corpo e sua linguagem foram apropriados e
associados a um meio ritual de produzir transformações no
mundo – e às vezes como anunciadores do fim dos tempos.
26.
Ver Sztutman (2012) e Viveiros de Castro (2008) para interpretações sobre
as capacidades da ação profética.
ruben caixeta de queiroz
que possibilitavam, por sua incorporação e repetição exaustivas
em festas, produzir em terra transformações que os levariam a um
“bom lugar”, como numa imagem da “terra sem males”.
Encontrando semelhanças na cosmologia nativa, as pregações
missionárias foram capturadas por movimentos autônomos de
transformação nos quais foram criadas novas formas de conduta,
novos ritos, incitando concentração e dispersão de aldeias,
formação e dissolução de coletivos, além da movimentação pelos
territórios que criaram novas formações sociais, novas festas,
novos nomes, novas maneiras de se relacionar. Permitiram ainda
a esses povos se recuperar da queda demográfica, manter seu
território e aprender a lidar com os brancos e suas instituições.
CONTINUIDADE DE RELAÇÕES
À DISTÂNCIA
Se o interesse inicial pela missão pode ser explicado por um
viés profético, temos que ter em mente que são momentos
distintos aqueles em que a mensagem profética sai em busca
dos outros e os atrai daquele em que, uma vez na missão, forças
estabilizadoras impedem a saída. Mesmo atuando através de uma
linguagem nativa, aquela do convite das festas, que implicava
visitação e troca de conhecimentos, a missão em Kanaxen
teve a característica de manter, através de certa coerção, uma
população aglomerada por muito tempo. Assim, através da
forma das inter-visitações comuns entre esses povos, criou-se,
com o emperramento dos ciclos, certas assimetrias entre eles.
De algum modo, Tikti, quando deixou sua aldeia, adentrava um
novo mundo de relações no qual não dispunha de muitos meios
e conhecimentos para manter sua vida como gostaria, restando a
ele manter sua história ligada à dos Waiwai, mas sempre com o
desejo de retornar a seu rio.
Mas viver entre tantos diferentes ajuntados no movimento
iniciado em torno dos missionários não significou que as
diferenças anteriores fossem abolidas e que todos se misturassem
indiscriminadamente. A “mistura”, sim, continuou operante,
tecendo contextualmente diferenças que permitiram às pessoas
manter suas relações dentro de certas preferências. Tikti, por
exemplo, casou todos os seus 13 filhos com filhos de pessoas
160
que considera seus parentes, distinguindo e escolhendo pessoas
Katuena, Xerew, Mînpowyana, Tunayana, Katxuyana que estão
ligadas a ele por uma história comum de migrações, festas,
casamentos no rio Turuni. Por exemplo, Xokokono foi mandado por
ele para a Missão Tiriyós para conhecer Rosene a fim de se casar
com ela, já que ela é filha de uma mulher cujo pai é considerado
irmão por Tikti. Se o processo de missionarização tanto separou
pessoas aparentadas quanto ajuntou desconhecidos, isso não
significou o rompimento das antigas redes, justamente porque
possibilitava outras formas de criar e manter esses laços pelas
tecnologias que introduziam.
O sistema de radiofonia, os encontros religiosos, a circulação de
objetos e notícias pelos aviões e rádios, e mesmo as migrações
entre aldeias, que apesar da distância acabavam ocorrendo –
principalmente nas aldeias próximas à fronteira entre Brasil,
Suriname e Guiana Francesa – permitiram que as pessoas
continuassem cultivando e rememorando suas relações, reduzindo
o afastamento espacial ao aproximar esses parentes através do
fluxo de palavras e de uma “comensalidade” à distância (Grotti,
2007: 64). Distância que não impedia os casamentos de seguir
as preferências elencadas, como vimos no caso de Xokokono e
Rosene. Dessa forma, mesmo em uma espécie de êxodo, Tikti foi
capaz de manter vivas as relações que ele e os seus articularam
desde Yewucui – e que outros antes dele fizeram –, vivendo fora
de seus lugares. Lugares que como vimos não são meros espaços
que existem sem gente, uma vez que estão intrinsecamente
ligados aos corpos, aos nomes, aos laços que unem as pessoas.
Tanto que quando falam desses locais, referem-se a eles como
sendo locais constituídos no fluxo da vida, locais onde “tomavam
banho”, “caçavam”, nos quais “fizeram festa” ou houve “guerra”,
onde “se casaram”, nos quais “comeram” com certas pessoas,
onde “nasceram e morreram pessoas” etc.
Os lugares, apesar da distância, permanecem sendo seus
lugares, pois as relações, os nomes e os corpos das pessoas
evidenciam isso. São como índices dessas tessituras. Aquilo que
vemos como grupos, no fundo são possibilidades de se nomear
baseadas nesses lugares. Diferentemente da definição enquanto
grupos autocentrados, as pessoas dessa região formam certos
adensamentos de relacionamento em que os nomes marcam
estados de relação e diferenças ligadas à origem, lugares onde
viveram, relações que travaram, mas que não são excludentes,
haja vista que a “mistura” apontada pelos indígenas na
constituição de seus corpos e aldeias não é negativa, mas parte
necessária da constituição da vida. Ao invés de permanecer como
um estigma sem referência exterior, o nome marca diferenças
temporárias, pois é preciso que em determinados momentos
essa diferença seja “eliciada”,27 que os antigos encontros e
alianças sejam lembrados, para que as festas sejam refeitas e
que as prestações matrimoniais se atualizem, perpetuando
certas relações preferenciais dentre uma infinidade de possíveis.
Ou seja, o nome é sempre uma marca de relação com o exterior.
Por isso, o surgimento de nomes de grupo com uma carga étnica
entre os índios deve ser visto com cautela, pois corresponde a
uma resposta deles à nossa expectativa de encontrá-los. E essa é
uma característica comum de locais em que não há a necessidade
de filiação nem um referencial total para os nomes, havendo
constantes sobreposições, sendo que a nomeação só é possível
a partir de pontos de vista específicos, dispersos em rede, que
marcam estados de relação (Gallois, 2007: 72). Assim, um nome
jamais existe sozinho, pois ele é justamente a diferença que se
deseja criar. Não há nome sem relação, e a pergunta “quem são
vocês?” tem embutida um complemento “quem são vocês em
relação a mim, que pergunta?”, e a resposta não existe sem a
contrapartida: “somos X para Y”. Assim, também ao antropólogo
não cabe procurar uma entidade encerrada na definição “os-X”,
sendo x um nome tomado em função da lógica identitária, como se
no plano analítico conseguíssemos separar o nome das relações,
pois ele é justamente contraste. O nome, de certa forma, “cria”
o outro a partir de com quem se relaciona, o inventa baseado
nas classificações possível. E esses nomes não são aleatórios,
pois são possibilitados justamente pela trajetória das pessoas,28
inscrita nos lugares.
Dizer-se Waiwai, Tunayana, Txikyana ou Katxuyana, por
exemplo, em diferentes momentos não implica em contradição,
mas depende de com quem se relaciona, qual a diferença que
se quer estabelecer. Isso é muito interessante quando vemos
o movimento de afastamento de Xokokono em relação aos
Waiwai. Para ele e os seus, eles sempre foram diferentes dos
Waiwai, apesar de, na cidade, terem usado por muito tempo
essa designação para si próprios, contrastando o fato de serem
indígenas em relação aos brancos. Quando converso com Tikti
sobre suas histórias no Turuni, constantemente ele oscila entre
se considerar, pos exemplo, Tunayana e Txikyana, dependendo
do que está contando. Atualmente, porém, no correr de sua
vontade de deixar o Mapuera e assumir a vida em outra aldeia,
a denominação Txikyana vem ganhando certa amplitude,
passando a incorporar outros nomes sob o seu, no movimento de
articulação mais ampla de várias pessoas em torno de Xokokono
e da futura aldeia. É que da maneira como as qualidades de um
chefe são avaliadas está a necessidade de saber lidar com os
brancos e com o Estado, em que a formação de outra “unidade”
para apresentar um coletivo múltiplo que contraste com o Waiwai
e com os brancos parece ser importante.
Em toda essa região, desde antes do encontro com os missionários,
os impactos da violência colonial já eram sentidos, como as
guerras em que se envolveram com os karaiwa que subiam os
rios para explorar recursos em suas terras e os surtos de doenças
27.
O termo é de Wagner (2010: 246), que insiste que os nomes não são grupos, mas meios de traçar fronteiras contextuais. Eliciar seria esse movimento de criar um
contexto de enunciação.
28.
Gallois (2007: 55) diz que entre os Waiãpi essas diferenças são traçadas a partir de três conjuntos: substância, aparência, modos de vida, o que se aplica também
à forma como os caribe dessa região usam os nomes, com a diferença que tendem a enfatizar muito o local de habitação ao nomear os yana, como Katxuyana (yana
do rio Katxuru) ou Kahyana (yana do rio Kahu).
161
que levavam a conflitos internos generalizados. Tudo isso
causou mudanças na maneira como se organizava a vida nativa,
culminando, em dado momento, nos movimentos de concentração
em torno das missões que introduziram vários novos elementos
que precisavam ser manejados. A maior proximidade de alguns
grupos nativos com os missionários, e consequente privilégio no
manejo desses elementos, produziu temporariamente assimetrias
que tirou autonomia dos demais, fazendo-os algo dependentes da
missão e dos grupos mais favorecidos pelos missionários e mais
tarde pelo Estado. Dessa forma, se viram impedidos de retornar
a seus lugares, fazer suas aldeias, viver a vida como gostariam
por não conseguirem, sozinhos, obter recursos ou manter essas
relações mais abrangentes. O resultado foi que, por décadas,
vastas áreas anteriormente habitadas por eles se tornaram, ao
menos aos olhos dos brancos, desabitadas, “vazios demográficos”,
apesar da presença oculta daqueles que preferiram se isolar a
seguir para as missões.
A “volta” significa então rearticular relações dispersas nesse
êxodo que as missões causaram novamente em um local
compartilhado, além de indicar que o manejo desses elementos,
hoje fundamentais para a vida nativa, se fragmentou. Não quer
dizer reassumir a vida que levavam antes, pois esse movimento
propiciou transformações necessárias ao estabelecimento de
relações novas com o Estado e outros órgãos, à formação de novas
formas de chefia e política, engendrou novas maneiras de fazer
comunidades. E essas novas maneiras implicam uma forte ligação
com o mundo dos brancos, mais especificamente seu domínio e
uso para as comunidades. A dispersão atual aponta para formas
criativas de produzir um “bem viver” sob essas novas condições,
em um tempo em que novas necessidades foram criadas, como
29.
o acesso à saúde e à educação, o escoamento de produção das
roças, o acesso à cidade e, principalmente, a garantia de um
território livre de determinações que não a dos próprios indígenas.
Nesse sentido, a garantia dos direitos no plano Estatal, como a
demarcação da TI Tunayana-Katxuyana e o acesso pleno à saúde
e à educação, é condição de autonomia para esses povos, pois o
acesso e a apropriação desses direitos formam novas condições
para a emergência das chefias,29 e com elas a emergência das
novas aldeias e a ocupação dos antigos locais de moradia30.
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rather than a formal hole”. Se as condições da chefia mudaram, é porque mudaram também as formas de se constituir as aldeias, que passam a demandar outras
qualidades das lideranças.
30.
Com isso não quero dizer que é o Estado quem “resolve” o problema dos índios. Como mostra Dominique Gallois (2007), sendo o contato um confronto entre
lógicas territoriais, “as diversas formas de regulamentar a questão territorial indígena implementadas pelos Estados Nacionais não podem ser vistas apenas do
ângulo do reconhecimento do direito à ‘terra’, mas como tentativa de solução desse confronto”.
162
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163
rogério assis
OS ZO’É E AS
METAMORFOSES DO
FUNDAMENTALISMO
EVANGÉLICO
Fabio Augusto Nogueira Ribeiro
INTRODUÇÃO
Embora tenha passado despercebida do público não evangélico,
a publicação, em 2008, do livro Esperando a volta do Criador:
expectativa messiânica de um povo indígena “isolado” na
Amazônia merece comentários. De autoria do missionário da
Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), Onésimo Martins de
Castro, a obra narra a história da ação missionária entre os Zo’é a
partir do início da década de 1980. Como um dos seus integrantes,
o autor apresenta em detalhes a trajetória da “frente evangélica
de contato” da MNTB: o início dos trabalhos de localização
dos índios que ele chama de “arredios do Cuminapanema”, a
efetivação do contato, a consolidação da “Base Esperança”,
o início do trabalho de “aquisição” de dados linguísticos e
antropológicos e, em 1991, a retirada da equipe missionária da
área pela Funai. Referindo-se a este último episódio, no epílogo
do livro, o autor conclui a narrativa anunciando:
Sabemos que por trás de tudo está o Príncipe das
Trevas que, conforme a revelação de Deus no livro do
Apocalipse, “desceu até vós cheio de cólera, sabendo que
pouco tempo lhe resta”. Ele sabe também que “quando o
Evangelho for pregado em todo o mundo virá o fim”, e
ele e seus anjos serão lançados no lago de fogo e enxofre
com todas as pessoas que seguem as suas artimanhas.
Não é à toa que ele usa de todos os meios para adiar
esse dia e uma de suas principais estratégias é impedir
que o Evangelho seja anunciado, principalmente aos
povos isolados. Todavia como o próprio Senhor Jesus
profetizou, as portas do inferno não prevalecerão
contra o avanço da Igreja e Deus não desistiu de se
revelar também aos Zo’é. [...] A obra continua! E numa
relação de parceria entre agências missionárias, igreja
1.
2.
166
brasileira e igreja indígena prosseguimos para o alvo
na certeza de logo vermos os índios Zo’é conhecerem
a Palavra de Deus e terem sua expectativa messiânica
plenamente satisfeita. ”
Castro, 2008: 148.
Além de oferecer uma versão da história do contato, a narrativa
deixa entrever os métodos utilizados pelos missionários
fundamentalistas1. Pelo fato de o autor do mencionado livro e outros
missionários continuarem a atuar nas regiões de Santarém-PA, da
bacia do rio Trombetas, do Parque Indígena do Tumucumaque e
de Brasília-DF e a tentar retornar à Terra Indígena Zo’é e a outras
Terras Indígenas no norte do Pará e no Amapá, pretendo com o
presente texto dar uma contribuição ao longo debate sobre a ação
de missionários e igrejas evangélicas entre os povos indígenas
no Brasil (ver Wright, 1999, 2006; Milanez, 2011a). Depois de
contextualizar brevemente o leitor acerca da questão envolvendo
os Zo’é, a MNTB e a Funai, apresento e discuto informações sobre
as várias estratégias adotadas pelos missionários ao longo do tempo
para tentar levar a “palavra de Deus” aos Zo’é e, ao final, procuro
esboçar uma breve crítica às premissas teóricas e às implicações
políticas da antropologia fundamentalista.
A QUESTÃO
Os Zo’é são um povo de língua tupi-guarani cujo território
compreende uma área de floresta no sudeste do escudo das
Guianas, no interflúvio entre os rios Erepecuru e Cuminapanema,
subafluentes da margem esquerda do rio Amazonas, no norte
do estado do Pará. Atualmente vivem na Terra Indígena Zo’é,
regularizada pelo estado brasileiro em 2009 e com 668.565
hectares. Somam aproximadamente 280 pessoas (Funai, 2015),
organizadas em dez grupos locais2.
Tais assuntos já foram tratados por Dominique Tilkin Gallois e Luis Donisete Grupioni no artigo “O Índio na Missão Novas Tribos”, publicado em 1999.
Utilizo aqui o termo “grupo local” para fazer referência ao termo nativo -wan. Conforme notou Havt (2001), -wan remete não a uma localização espacial (aldeia)
especifica, mas sim à organização política ameríndia. É assim que cada -wan zo’é é formado por várias pessoas que circulam por um extenso território e que têm
várias casas, roças e acampamentos nas suas áreas de domínio.
As informações historiográficas, etnográficas, linguísticas ou
arqueológicas atualmente disponíveis ainda não são suficientes
para que se possa afirmar com certeza qual a origem do grupo ou
as rotas de migração que o levou ao atual território que ocupa3.
A despeito dessa escassez de informações sobre a história da
ocupação indígena na região, as informações apresentadas por
Gallois e Havt (1998) sobre um dos mitos de origem e sobre
episódios importantes de trocas comerciais, conflitos, canibalismo,
vinganças, alianças, raptos e fugas atestam a inserção muito antiga
dos Zo’é em extensas redes de trocas regionais de agressões,
coisas, pessoas e saberes. As narrativas orais, no entanto, indicam
que os Zo’é se viram progressivamente privados de relações
amistosas com outros povos e, por volta da primeira metade do
século XX, confinaram-se nos rincões da terra firme. Essa situação
de retraimento a que foram submetidos não apenas os Zo’é, mas
também outros povos guianenses se estendeu até a segunda
metade do século XX, quando, por volta das décadas de 1950
e 1960, tem início o processo de “pacificação” e o consequente
declínio demográfico dos povos da região4.
Conforme as narrativas registradas por Gallois e Havt (1998), após
uma série de contatos esporádicos com castanheiros e gateiros
regionais em um passado não muito distante – provavelmente nas
décadas de 1950 e 1960 –, em períodos mais recentes – décadas
de 1970 e 1980 –, a presença dos brancos nas imediações do seu
território foi percebida pelos Zo’é nos termos de uma cronologia dos
“barulhos”, rapidamente associados aos bens que esses brancos
dispunham: motores de popa, aviões que arremessavam embrulhos
cheios de presentes, helicópteros. Finalmente, chegaram os
3.
4.
missionários da New Tribes Mission, instituição missionária
evangélica norte-americana cuja filial nacional é a Missão Novas
Tribos do Brasil (MNTB). Os missionários, auxiliados por mateiros,
abriram uma pista de pouso, fixaram uma base (Base Esperança)
ao sul do território zo’é e, no período de 1982 a 1987, iniciaram um
processo de atração cujo efeito mais imediato foi a concentração
dos diversos grupos locais zo’é no entorno da Base.
Em 1987, a Funai interditou a Área Indígena UrucurianaCuminapanema, com o objetivo de resguardar o território
ocupado pelos Zo’é e possivelmente por outros povos indígenas
isolados. Em 1989, após a MNTB informar à Funai que o estado
de saúde dos índios era crítico, uma primeira equipe da Funai
(composta por um sertanista, um médico e uma antropóloga)
visitou a área. Em 1991, Sidney Possuelo, então presidente
da Funai, no contexto de uma ampla iniciativa de retirada de
missões evangélicas das Terras Indígenas, decidiu retirar a
equipe de missionários da MNTB do território zo’é. Gallois
e Grupioni (1999), que na época iniciavam um trabalho de
pesquisa etnológica no Cuminapanema, oferecem-nos uma boa
síntese da conjuntura do episódio:
Como únicos Kirahi [brancos] vivendo entre os
Zo’é e com total controle da área, a MNTB teve
a oportunidade de implantar toda a sequência de
procedimentos de sedução que ela chegou a padronizar
pela experiência acumulada em frentes no mundo
inteiro, para garantir a convivência amistosa – mesmo
distanciada – e estreitar com os nativos uma relação
de dependência favorável à propagação da fé. Teriam
No entanto, como sugerem Gallois e Havt (1998), o vínculo linguístico e cultural com outros povos tupis-guaranis (Wajãpi, Emerillon), a predominância de
povos de língua caribe na área etnográfica das guianas e as informações mencionadas por Frikel (1958) a partir dos relatos do Frei Krause na década de 1940
sobre a possível presença de remanescentes de um povo de língua tupi-guarani designado Apãma a oeste da calha do rio Maicuru (provavelmente no CuruáCuminapanema) permitem aventarmos a hipótese de que os Zo’é são descendentes dos grupos de língua tupi-guarani do baixo Xingu. Aldeados em missões na
margem esquerda do Amazonas nos séculos XVII e XVIII (ver Gallois, 1986) em algum momento da história colonial (provavelmente após a expulsão dos jesuítas
no período pombalino), estes grupos se refugiaram nas vastas matas cortadas pelos afluentes da margem esquerda do baixo Amazonas: Jari, Paru, Maicuru, Curuá,
Cuminapanema, Erepecuru e Trombetas.
Refiro-me, em particular, aos povos indígenas vizinhos dos Zo’é: Tiriyó, Wayana, Apalai, Katxuyana e Waiwai. Tais povos ocupam a região da fronteira entre
o Brasil, Suriname, Guiana e Guiana Francesa. No lado brasileiro, atualmente, eles vivem nas Terras Indígenas Trombetas-Mapuera, Nhamundá-Mapuera,
Katxuyana-Tunayana e Isolados (em estudo), Parque Indígena do Tumucumaque e Paru de Leste.
167
alcançado essa meta, se considerarmos a atitude dos
índios no episódio da retirada da MNTB da Base. Os
Zo’é reagiram brutalmente contra os representantes da
Funai e tentaram impedir a saída dos missionários;
argumentavam que queriam manter perto deles esses
Kirahi de quem eles tinham decidido se aproximar e
de quem obtinham os bens que desejavam: ferramentas,
roupas, remédios, etc. Na verdade, os Zo’é se sentiam
“donos” desses Kirahi.
de Consultoria da Missão apoiando os colegas na
aquisição de língua e cultura em outras aldeias,
enquanto que, junto com Edward Luz, lutávamos junto
às entidades governamentais pelo retorno de nossa
equipe de trabalho.
Castro, 2008: 144-145.
No relato do autor, transparecem os dois eixos sobre os quais
foram estruturadas as estratégias adotadas pelos missionários: as
ações de campo e as ações jurídico-burocráticas.
Gallois & Grupioni, 1999: 83.
A Base Esperança foi progressivamente abandonada, e os
Zo’é retomaram o antigo padrão de dispersão territorial pelo
interflúvio Erepecuru-Cuminapanema. A Funai instalou uma
base em uma localidade denominada Keijã, no alto curso do
Tarari, o “igarapé dos Índios” mencionado pelos regionais.
Nos vinte anos subsequentes (1992-2011), foi instituída uma
política indigenista de proteção radical, que partia da premissa
de que os Zo’é eram um povo “isolado”, “puro”, “sem chefes”
e que não mantinha “contato” com outros povos5. O objetivo era
garantir uma suposta autonomia cultural e econômica dos Zo’é
por meio da restrição do acesso dos índios às mercadorias e à
interlocução com outros agentes.
No período que se sucedeu à retirada da equipe da MNTB
pela Funai, os missionários, no entanto, não desistiram da
ideia de satisfazer as “expectativas messiânicas” dos Zo’é.
Segundo Onésimo:
Com muito pesar, vimos aos poucos nossa equipe se
dispersar. [...] Nós, porém, permanecemos em Santarém
até 1995, dando sequência à análise linguística,
na expectativa de logo podermos retornar à aldeia.
Por fim, depois de quatro anos sem férias, saímos para
o sul de Minas. E, a partir daí, fomos designados pelas
lideranças da MNTB a atuarmos no Departamento
5.
6.
168
Ver o texto de Dominique Tilkin Gallois, neste volume.
Ver Milanez (2011a) e o texto de Caixeta e Ribeiro neste volume.
OS CAMINHOS DA GEOPOLÍTICA
FUNDAMENTALISTA
Ao retirar a equipe da MNTB, a Funai interrompeu a sequência
dos procedimentos necessários para levar a palavra de Deus aos
Zo’é. Após um período de “recesso” (1991-1997), a partir de
1998, as ações de campo efetivadas pelos missionários estiveram
voltadas para a realização de “visitas” terrestres às aldeias zo’é
e para a consolidação de bases missionárias no entorno da T.I.
Tais ações estão interconectadas e seguem uma mesma lógica:
inicialmente os missionários se instalam em aldeias estratégicas
e desenvolvem pesquisas linguísticas com o intuito de traduzir a
Bíblia para as línguas nativas. Após o longo processo de tradução
dos evangelhos, os missionários fomentam então a formação de
pastores indígenas e, em alguns casos, a formação de bases
nativas, que servem como ponta-de-lança para a evangelização
dos povos “não alcançados”. Na região da Guiana Brasileira,
segundo a perspectiva missionária, os povos não alcançados
atualmente são justamente os Zo’é e os indígenas isolados6.
No campo da etnologia das guianas, a estratégia utilizada
pelos missionários fundamentalistas de formar bases nativas
e incentivar povos indígenas cristianizados e que têm “uma
propensão à visitação intertribal” a realizar expedições de
contato com povos isolados ficou conhecida por “evangelismo
cumulativo” (Howard, 2001) ou “modelo piramidal”, conforme
Gallois e Grupioni (1999).
São, sobretudo, os nacionais formados por esses institutos,
os responsáveis pela evangelização dos nativos que,
quando transformados em “cristãos tribais” serão capazes
de levar a palavra de Deus a outras tribos. Todo o esforço
concentra-se, assim, na criação e utilização de “bases”
nativas. Este modelo piramidal de propagação da
fé, assim como os exemplos bem-sucedidos de povos
“alcançados” pela mediação dos próprios nativos, são
difundidos incansavelmente nas publicações da agência
[...] Várias experiências desse tipo ocorreram no Brasil
sob a influência da MNTB ou do MICEB, que apoiou a
atração dos Karafawyana pelos Waiwai.
Gallois & Grupioni, 1999: 87.
É a partir dessa metodologia do “evangelismo cumulativo” que
podemos compreender a estratégia geopolítica adotada pelos
missionários. Em 1998 e 1999, são registradas as primeiras
visitas ao território zo’é por missionários auxiliados por mateiros
regionais e indígenas Waiwai evangelizados (Funai, 2003).
Outras invasões similares são registradas em 2003 (Funai,
2003). No entanto, tendo em vista a impossibilidade legal de
permanecerem no interior da Terra Indígena Zo’é, os missionários
e os evangelizadores indígenas passam a fazer incursões –
relâmpago na Terra Indígena, com objetivo de incentivar os Zo’é
a fazerem viagens para fora dali, o que passa a ocorrer a partir de
2010 (Funai, 2010a, 2010b, 2012).
De modo concomitante às invasões, no período em questão
os missionários estabelecem bases missionárias em pontos
estratégicos no entorno da Terra Indígena. Dentre essas, podemos
mencionar a base conhecida pelos Zo’é por “Rui rupa”7, instalada
7.
na região dos Campos Gerais do Erepecuru, em algumas aldeias
tiriyó na região do rio Marapi, no Parque Indígena do Tumucumaque
e na aldeia Katxuyana de Santidade, no rio Cachorro, na Terra
Indígena Katxuyana-Tunayana e Isolados (em estudo pela Funai).
O auge dos movimentos zo’é ocorreu em 2010, quando dois
episódios (ver Funai 2010a e 2010b) marcantes abriram para os
Zo’é novas perspectivas de relacionamento com os brancos, com
os povos indígenas vizinhos e com as mercadorias. No primeiro,
acontecido no período das chuvas, evangelizadores tiriyó
provenientes do Suriname fizeram uma visita a uma aldeia zo’é
nas proximidades do rio Erepecuru e levaram muitos presentes:
roupas, redes, um motor de popa e uma espingarda, que foi
dada a um importante chefe zo’é. Na volta para o Suriname, o
jovem Kitá partiu junto com os evangelizadores indígenas para
Kwamalasamutu (aldeia predominantemente tiriyó localizada na
bacia do rio Sipaliwini) e por lá permaneceu por quatro meses,
indo à escola e à igreja e vendo coisas inéditas. Kitá viu também
a cidade de Paramaribo, capital do Suriname e, entre outras
coisas, aprendeu a falar a língua tiriyó.
No segundo episódio, ocorrido em outubro do mesmo ano, após
uma visita-relâmpago de mateiros apoiados por missionários
com o objetivo de “atrair” os Zo’é para fora da Terra Indígena,
noventa e seis índios Zo’é – homens e mulheres de várias idades,
incluindo velhos e crianças – fizeram uma longa viagem rumo à
região conhecida por Campos Gerais do Erepecuru (situada ao
sul do território zo’é, na zona rural do município de OriximináPA) em busca das tão desejadas roupas, sandálias, relógios,
espingardas, panelas, redes, mosquiteiros, miçangas, espelhos,
lanternas, pilhas e outras mercadorias. A trilha utilizada foi a
mesma aberta na década de 1980 pelos missionários evangélicos
da MNTB. Durante o período em que ficaram acampados junto
com alguns castanheiros e com o missionário Luís Carlos Ferreira,
“Morada do Luís”, em referência ao missionário Luís Carlos Ferreira, ex-integrante da MNTB. Cabe mencionar que no período após o contato com os missionários,
no final da década de 1980, os Zo’é referiam-se à Base Esperança ou por “Missão” ou por “Rui rupa”. Atualmente, Rui rupa refere-se à base instalada no entorno
sul da TI Zo’é, na região dos Campos Gerais do Erepecuru.
169
rogério assis
os Zo’é foram filmados por um empresário e político da cidade de
Oriximiná-PA. No vídeo, que posteriormente foi divulgado pela TV
local, o jovem Kitá (o mesmo que se aventurou pelo Suriname), um
dos poucos Zo’é que compreende e fala o português, manifestou o
seu descontentamento com relação ao fato de que a Funai não dava
roupas, espingardas e outros bens aos indígenas.
Mesmo que o incentivo dos missionários no sentido de criar essa
situação seja evidente, a fala de Kitá na ocasião tornou claro que é
um equívoco atribuir única e exclusivamente a eles os movimentos
dos Zo’é para a região dos Campos Gerais e para as terras tiriyó.
É preciso lembrar também que, nessa época, a Funai praticava
uma política indigenista restritiva, fundamentada em métodos
ortodoxos e muitas vezes autoritários. Os Zo’é, portanto, nesse
contexto de pós-contato, estavam situados entre dois radicalismos:
o fundamentalismo evangélico, que insistia em levar as boas-novas
do Evangelho aos Zo’é, supostamente assolados nas trevas do
paganismo, e o indigenismo protecionista radical que insistia em
considerá-los como “isolados”. Razões pelas quais os movimentos
e as denúncias tiveram desdobramentos políticos complexos, que
culminaram, entre outras coisas: na ida de um grupo de chefes zo’é
à Funai de Brasília-DF, em fevereiro de 2011, com o objetivo de
pactuar a criação do “Programa Zo’é”; na mudança na coordenação
da Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema (FPEC/
Funai) em dezembro de 2011; e na abertura de Inquéritos Civis e
Policiais com o objetivo de averiguar os crimes cometidos contra os
Zo’é durante o período em que permaneceram nos Campos Gerais.
Embora nos dois casos a ação dos Zo’é tenha sido motivada em
parte pelo caráter restritivo da política implementada pela Funai
e pelos convites feitos por castanheiros e pelos Tiriyó do Suriname
(ambos em articulação com missionários fundamentalistas), não
podemos desconsiderar que tais movimentos foram concebidos e
efetivados pelos Zo’é. “Para pegar as coisas dos brancos”, certa
8.
vez disse o índio Puku durante uma reunião. Hoje os Zo’é têm
uma percepção clara de que os movimentos, ao mesmo tempo em
que viabilizaram a aquisição de bens importantes, acarretaram
a aquisição de doenças e resultaram na exploração do seu povo
pelos brancos.
Por conta da intervenção conjunta da Funai, do Ministério Público
Federal e da Polícia Federal (ver MPF-STM, 2011), a Rui Rupa
está abandonada. O missionário e o castanheiro envolvidos no
episódio dos Campos Gerais foram recentemente denunciados à
Justiça Federal8. Com relação aos Tiriyó, embora uma pequena
fração de indígenas evangelizados provenientes do Suriname
continue com planos de regressar para a terra zo’é, desde 2012
os Tiriyó do Brasil, por meio da Associação dos Povos Indígenas
Tiriyó, Katxuyana e Tikuyana (Apitikati), se manifestaram contra
as idas de alguns índios tiriyó para a terra zo’é.
CONEXÕES EM REDE
Os missionários evangélicos fundamentalistas, no entanto,
continuam em atividade. Paralelamente às ações desenvolvidas
(sem a devida autorização do órgão indigenista) em Terras
Indígenas, no período em questão os missionários fizeram
diversas solicitações formais de ingresso na TI Zo’é em 1993,
1997 e 1998. Além disso, em articulação com políticos e
instituições ligadas aos interesses evangélicos, apresentaram
denúncias contra a Funai (ver MPF-STM, 2011) que, no entanto,
foram arquivadas por falta de provas.
Além de ser apoiada pela Associação das Missões Transculturais
Brasileiras (AMTB), que congrega diversas instituições
missionárias, a consolidação do “evangelismo cumulativo”,
ou seja, o trabalho de formação de pastores indígenas e de
consolidação de igrejas nativas tem sido fomentado pelo
De fato, como resultado dos Inquéritos Civis e Policiais, em abril de 2015 o Ministério Público Federal em Santarém denunciou à Justiça Federal o missionário
Luís Carlos Ferreira e o castanheiro Manoel Ferreira de Oliveira por explorarem, em condições análogas à escravidão, o trabalho dos 96 indígenas Zo’é que foram
para a região dos Campos Gerais do Erepecuru em 2010. Notícia disponível em: http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/mpf-acusa-missionario-e-castanheiropor-explorar-indios-zoe-em-condicoes-de-escravidao. Acesso em 12 de abril de 2015.
171
Conselho Nacional de Líderes e Pastores Evangélicos Indígenas
(CONPLEI). Um dos principais objetivos do CONPLEI é
justamente “programar e promover cursos de treinamento para
obreiros indígenas em evangelização transcultural” 9. De fato,
é a ideia mesma da “evangelização transcultural” que confere
à ação missionária o seu caráter fundamentalista, intolerante e
antiecumênico. É bastante significativo a esse respeito um trecho
do depoimento feito pelo Presidente da MNTB, Edward Luz, ao
jornalista Felipe Milanez (2011b):
Em 29 de março de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF)
determinou a “abstenção da atuação” da MNTB na Terra
Indígena Zo’é. Na ocasião, o STF decidiu negar provimento ao
recurso extraordinário interposto pela Missão Novas Tribos do
Brasil (MNTB) ao Acordão proferido pelo Tribunal Regional
Federal (TRF) da 1ª Região. Na interpretação do Ministro
do STF, “o acordão recorrido encontra-se suficientemente
fundamentado” (item III, p. 4), razão pela qual considera que
carece de cabimento o recurso da MNTB10.
[...] a tentativa de institucionalizar a discriminação
religiosa no país é um argumento da Funai e que vai
cair logo logo porque nós vamos levar às raias do
tribunal do Supremo. Nós vamos levar e o Governo
Federal vai ser obrigado a dizer se é crime ou se não
é crime. [...] Se você proíbe pregar o Evangelho, você
proíbe a liberdade de adoração. Se você proíbe o
Evangelho, você proíbe o autor do Evangelho. E se você
proibiu o autor do Evangelho você proibiu o senhor
Jesus, proibiu a Bíblia, proibiu o Deus criador. E nós
partimos para um confronto. O Estado é laico, mas
as pessoas que compõem esse Estado não são laicas.
Cada um tem sua crença, todo mundo pensa. A sociedade
brasileira na hora que for pro confronto – e nós vamos
–, a sociedade brasileira vai responder positivamente.
[...] Nós vamos voltar para os Zo’é. Não sei como, mas
nós vamos voltar.
Como esse recurso conseguiu chegar às “raias do Supremo”?
Talvez as articulações da Associação Nacional dos Juristas
Evangélicos (ANAJURE), braço jurídico das missões
fundamentalistas, tenham tido alguma influência. Mas a hipótese
forte é a que aponta para as conexões envolvendo o movimento
fundamentalista de evangelização dos povos indígenas, os
grupos políticos e econômicos interessados na exploração de
Terras Indígenas e a propagação de um pensamento que se
diz “antropológico” e que hoje em dia parece fundamentar
teoricamente a atuação de juízes e políticos ligados ao
agronegócio, à exploração madeireira, ao garimpo, aos grandes
empreendimentos e, claro, ao fundamentalismo evangélico.
9.
Além desse caso dos Zo’é, há diversos outros recentes que
evidenciam o modus operandi dessa aliança entre religião
(evangélica) e política (ruralista-progressista) que tem efetivado
sucessivos ataques aos direitos dos povos indígenas no Brasil.
Dentre eles, podemos mencionar o da Terra Indígena Maró11,
Ver o sítio na internet: www.conplei.org.br.
Entre outras coisas, o Acordão em tela dizia o seguinte: “3 – É líquido e certo o direito de tribo indígena, que ocupa área de isolamento e acesso restrito, de não
ter seu território invadido por quem quer que seja. Constitui obrigação da Funai zelar pela observância de tal determinação [...]”; “5 – Cabe à Funai, e não às
organizações e instituições que pretendem atuar junto aos indígenas, estipular as regras de acesso àquelas populações, que tem sua acessibilidade restringida em
face de circunstâncias culturais ou de integridade física”; “6 – [...] determinar a atuação da Funai e à abstenção da litisconsorte no sentido de não retornar à área
da qual foi retirada em 1988”.
11.
Embora o procedimento de regularização fundiária da Terra Indígena Maró tenha seguido estritamente o disposto no Decreto 1.775/96 e mesmo que o Relatório
Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI tenha sido aprovado pela Funai e publicado no Diário Oficial da União em 2011, em 2014, o Juiz Federal
Airton Portela, então em exercício em Santarém, com base em um laudo elaborado pelo Sr. Edward M. Luz e encomendado pela Associação Comunitária dos
Trabalhadores do Aruã e Maró (Acutarm) – uma das associações contrárias à demarcação da TI e apoiada pelas empresas madeireiras –, lavrou uma sentença
absurda que, entre outras coisas, dizia que a TI Maró era “inexistente” e que os indígenas do Tapajós e Arapiuns eram “falsos” (ver a reportagem de Felipe
Milanez, 2014). Em fevereiro de 2015, no entanto, o Juiz Federal Érico Freitas Pinheiro decidiu suspender os efeitos da sentença do Juiz Airton Portela (ver
Decisão relativa ao Processo N° 0000610-82.2010.4.01.3902).
10.
172
no Oeste do Pará, e da Terra Indígena Morro-dos-Cavalos12,
em Santa Catarina. Não poderia deixar de citar aqui a relação
de parentesco que perpassa os casos mencionados acima,
pois o antropólogo especialista em elaborar “antilaudos”13 de
identificação de Terras Indígenas e que tem defendido ideias
contrárias aos procedimentos técnicos de identificação e
delimitação de terras indígenas e à Convenção 169 da OIT14
é filho do atual presidente da MNTB, que na década de 1980
participou do contato dos Zo’é15.
PARA UMA BREVE CRÍTICA DA
ANTROPOLOGIA FUNDAMENTALISTA
Embora aqui não seja o espaço adequado para empreender uma
revisão crítica aprofundada da antropologia fundamentalista16,
gostaria apenas de tecer alguns comentários pontuais.
Os depoimentos apresentados a seguir talvez nos deem uma
pista para compreender em parte os fundamentos teóricometodológicos da mesma.
Edward Luz (missionário):
Há um desenvolvimento natural na antropologia
brasileira, no pensamento antropológico brasileiro,
saindo gradativamente daquela corrente mais próisolacionismo em direção ao pró-integracionismo.
Nessa transição, nessa evolução, um fator determinante,
que já vem tomando espaço no pensamento antropológico
brasileiro, na academia brasileira e já tem norteado
várias ações dentro do próprio Governo, é a questão da
auto-determinação dos povos. [...] Os próprios índios,
pelo princípio da auto-determinação, tem o desejo de
conhecer algo de fora. Grupos que eram quase que
acorrentados por forças políticas e, por ações de alguns
segmentos, mantidos isolados, eles mesmos querem vir
pra fora. Eles querem buscar a relação com a cultura
envolvente, pois a relação com essa cultura representa
mais saúde, mais educação, desenvolvimento, cidadania
e a relação intercultural. É totalmente anacrônica a
tendência isolacionista da antropologia brasileira.
12.
Embora a Terra Indígena Morro-dos-Cavalos tenha sido declarada como de posse permanente do povo Guarani por meio de Portaria nº 771/2008, assinada
pelo então Ministro da Justiça, em 2014, o Estado de Santa Catarina, com base em um laudo elaborado pelo Sr. Edward M. Luz, no qual este afirma que a
maioria dos índios que ali residem foram trazidos do Paraguai e da Argentina por ONG indigenistas, entrou com uma ação civil ordinária (nº 2323) e com um
mandato de segurança (nº 32709) contra a referida Portaria no Supremo Tribunal Federal. Cabe aqui mencionar que o processo de regularização fundiária da
TI Morro-dos-Cavalos foi abordado de maneira bastante tendenciosa pelo jornal Diário Catarinense na reportagem “Terra Contestada”. Na reportagem, o Diário
insinua que a Funai estaria usando o processo demarcatório como moeda de troca para autorizar a duplicação de um trecho da BR-101. Em nota de repúdio à
referida reportagem, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI, 2014) lembra que o antropólogo Edward M. Luz nunca fez pesquisa entre os Guarani e foi expulso da
Associação Brasileira de Antropologia (ABA) pela sua conduta incompatível com o Código de Ética da Instituição.
13.
Depois de se formar em antropologia pela UNB e coordenar na década de 2000 alguns Grupos de Trabalho (GT) para a identificação de terras indígenas no
Amazonas e supostamente se dar conta “de quão bem estruturada, organizada e bem paga era a rede de organizações que tramavam, manipulavam e operavam
o sistema de demarcações de terras indígenas”, Edward M. Luz passa a atacar o processo de “fabricação de etnias” apoiado por um grande esquema de
financiamento internacional no qual estariam envolvidas diversas ONG ambientalistas e indigenistas internacionais, com a conivência e apoio da Funai. A Revista
Veja, na reportagem “a Farra da Antropologia Oportunista” (VEJA, 2010), acabou por popularizar no Brasil essas ideias preconceituosas a respeito dos povos
indígenas, das organizações indígenas e indigenistas e de alguns antropólogos.
14.
Não por acaso, as declarações de Edward M. Luz sobre esses assuntos estão sendo divulgadas na internet pelo maior site de notícias e ideias anti-indígenas (http://
www.questaoindigena.org) e pelo site do Instituto Emdireita Brasil (www.emdireitabrasil.com.br), instituição que, conforme o seu estatuto, “pretende difundir o
ideário conservador e de direita no Brasil”. No Congresso Nacional, eu mesmo fui testemunha durante uma Audiência Pública em 2014 de que as propostas de
mudanças na legislação de terras indígenas e de desratificação da Convenção 169 têm sido defendidas veementemente por um deputado federal pelo Estado de
Roraima que há alguns anos atrás era o maior invasor da Terra Indígena Raposa/Serra-do-Sol. O argumento utilizado pelo mesmo na ocasião era de que a legislação
e a convenção são ameaças que estariam tanto incentivando o acirramento de conflitos étnicos em diversas regiões como “travando” o desenvolvimento do Brasil.
15.
Além dessa relação de parentesco, o vínculo do antropólogo Edward M. Luz com os evangélicos pode ser evidenciado pelo fato de que ele é professor no Centro
Universitário UniEvangélica, instituição evangélica de ensino superior sediada na cidade de Anápolis-GO (http://www.unievangelica.edu.br/noticias/3386).
Não por acaso, na cidade de Anápolis-GO também está localizada a sede da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB).
16.
Ver, por exemplo, Lidório (2011).
173
A evolução é clara e visível. Já há vários antropólogos
de renome valorizando essa questão da integração e
do desenvolvimento entre as culturas. A integração é
possível e sendo feita de forma correta, há o respeito
e a preservação das culturas. É nessa integração
das culturas e na valorização de todas as culturas
que o Evangelho surge como um elemento a mais.
Nossa expectativa é que essa evolução da antropologia
brasileira vai também acabar favorecendo de alguma
maneira a evangelização.
Milanez, 2011b.
Edward M. Luz (antropólogo):
Os indígenas deram uma incomensurável contribuição
ao desenvolvimento nacional desde o descobrimento do
Brasil. O Brasil é um dos poucos países onde o colono
europeu encontrou, pode contar com ajuda nativa no
esforço conjunto de colonização. Veja, Portugal era o país
europeu com o menor território durante o século XVI e não
tinha recursos humanos para encampar esta iniciativa
colonizatória sem a força, o apoio, o conhecimento e o
empenho indígena. Durante cinco séculos de colonização
portuguesa, com algumas exceções pontuais aqui e acolá,
os nossos indígenas juntamente com outros colonos que
migraram para as Américas, foram nossos parceiros
nessa empreitada colonizadora. [...] O que a elite
intelectual não quer reconhecer de jeito nenhum, é que
os indígenas não desapareceram, mas fundiram-se ao
colonizador, formando uma nação mestiça. Esta oposição
entre indígenas e desenvolvimento nacional foi forjada
e recentemente criada. [...] Portanto, o que salta aos
olhos deste analista neste início de século XXI, é a forma
como alguns grupos indígenas estão sendo sorrateira e
17.
inteligentemente manipulados, sendo jogados contra
os projetos de desenvolvimento de interesse do estado
e da sociedade brasileira. Isso acontece porque sem a
bandeira comunista para se opor ao desenvolvimento do
capitalismo, restou o ambientalismo e o indigenismo,
que ao final do século XX, uniram-se formando um
movimento misógeno, absolutamente contrário a
qualquer projeto desenvolvimentista
Luz, 201417.
A partir desses dois discursos, podemos vislumbrar como
estão sintonizados a ideia de que a “integração e valorização
de culturas” favorece a propagação do Evangelho, a teoria
do “Brasil mestiço” e os interesses de setores políticos e
econômicos interessados na exploração dos recursos naturais
das Terras Indígenas. Em outras palavras, ao lançar mão tanto de
uma teoria da história dos índios no Brasil bastante questionável
assim como de uma classificação etnológica, mais questionável
ainda, composta das categorias de “falsos índios” (como os
Borari), “índios alcançados” (isto é, evangelizados) e “índios
não alcançados” (que devem ser evangelizados), a antropologia
fundamentalista forneceu argumentos para aqueles que procuram
desqualificar de maneira preconceituosa movimentos políticos
legítimos como o dos povos do baixo Tapajós e Arapiuns, para
declarar que Morro dos Cavalos não é território de ocupação
tradicional Guarani e para o esbulho de Terras Indígenas e contra
a Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil.
Finalmente – e aqui volto ao livro mencionado no início –, não
poderia encerrar esse texto sem deixar de comentar tanto o
procedimento de traduzir Nipujan18 por “Criador” como a noção
de “expectativa messiânica” mencionada pelo autor, pois ambas
estão inter-relacionadas e remetem a discussões fundamentais
no campo da antropologia. Com relação à tradução praticada
Trecho da reportagem “Perfil - Conheça Edward Luz, o antropólogo que pode implodir a antropologia convencional”. Disponível em: <http://www.questaoindigena.
org/2014/03/perfil-conheca-edward-luz-o-antropologo.html>.
18.
Segundo D. Gallois (ver texto neste volume), Nipujan é uma figura central na cosmologia zo’é, pois recriou os Zo’é após o incêndio e o dilúvio que derrubaram a
primeira humanidade.
174
rogério assis
pelos missionários, gostaria de relembrar que nas páginas finais
do último apêndice de Bruxaria, Oráculos e Magia entre os
Azande, Edward Evans-Pritchard, um dos grandes mestres da
antropologia social, diz o seguinte:
Não aceitem, sobretudo em assuntos de religião, o que
se encontra na literatura missionária. O missionário
geralmente só conhece a língua fora do contexto da
vida nativa e, portanto, pode desconhecer o pleno
significado de palavras que apenas o contexto permite
captar. O fato de o missionário ter estado com um povo
por muito tempo nada prova: o que conta é a maneira
e o modo de residência; é preciso saber se Deus lhe
deu, entre outras bênçãos, o dom da inteligência. Peço
cautela, sobretudo, em temas religiosos. É óbvio que,
como os nativos não sabem inglês, o missionário, em
sua propaganda, não tem outra escolha senão procurar
palavras da língua nativa que possam servir para
exprimir conceitos como “Deus”, “alma”, “pecado” etc.
Assim, ele não está traduzindo as palavras nativas para
sua língua, mas procurando traduzir palavras europeias
que possivelmente não compreende em palavras de
uma língua nativa que talvez entenda menos ainda. O
resultado desse exercício pode ser algo confuso, se não
caótico. Publiquei uma notícia sobre a quase-idiotia de
certos hinos ingleses quando traduzidos para o zande.
Os missionários usaram, por exemplo, a palavra mbori
para traduzir “Deus” em zande, sem ter a menor ideia
do significado do termo para os Azande. Coisas ainda
piores acontecem em algumas línguas nilóticas. Não
vou insistir no assunto; deixem-me apenas dizer que,
no final das contas, a confusão se torna inextricável:
ao escolher uma palavra nativa para “Deus”, os
missionários terminam inevitavelmente por conferir
ao termo nativo o significado e as qualidades que a
palavra “Deus” tem para eles, missionários.
Evans-Pritchard , 2005: 250-251.
176
Arrisco dizer que esse mesmo argumento pode ser mobilizado
para criticar a noção de “expectativa messiânica” utilizada pelo
autor, já que este procura atribuir aos Zo’é uma expectativa cristã
(de “volta do Criador”) e, consequentemente, uma cosmologia,
que é a sua própria. Dizem os Zo’é que Nipujan, depois de
recriar os Zo’é após o incêndio (tata uhu) e o dilúvio (y uhu) que
tragaram a primeira humanidade (zo’é ypy), foi-se embora (oho
é) e não mais voltará (dajiwirahyi).
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2014. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.
br/blogs/blog-do-milanez/indigenas-protestam-contrasentenca-e-acao-missionaria-8383.html>.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Informação nº
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Decisão referente ao
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VEJA. A Farra da Antropologia Oportunista. nº. 2163, 05
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_____.(Org.). Transformando os deuses. Igrejas evangélicas,
pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas
no Brasil. v. 2. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
177
carlos penteado
POLÍTICAS DO
ISOLAMENTO
VOLUNTÁRIO NOS
INTERFLÚVIOS DO
RIO TROMBETAS
Fabio Augusto Nogueira Ribeiro
e Ruben Caixeta de Queiroz
INTRODUÇÃO
A presente nota etnográfica versa sobre os povos indígenas em
isolamento voluntário nas bacias dos rios Trombetas e Jatapu,
na região da Calha Norte, na fronteira entre os estados do
Pará, Amazonas e Roraima. Pretendemos, em primeiro lugar, a
partir do material historiográfico e etnográfico disponível sobre
esta região, fazer um breve histórico que visa evidenciar a
continuidade espaço-temporal da ocupação indígena e delinear
o contexto das vastas redes de relações que conectavam e
conectam vários povos na região das Guianas. Tendo como pano
de fundo as transformações geradas na área pela chegada e
expansão dos missionários (nas décadas de 1950 e 1960), sobre
as formas indígenas de organização social e territorial, o segundo
objetivo desta nota é situar esse processo de contato com diversos
povos e, ao mesmo tempo e em contrapartida, de emergência de
povos não contatados à categoria de “isolados”. É desenvolvida,
assim, uma discussão sobre tal categoria, considerando que ela
carrega diversas contradições que têm fortes implicações nas
políticas indígenas e nas políticas indigenistas relacionadas a
esses povos, e são apresentadas e discutidas algumas situações
de isolamento e contato com alguns povos da região. O último e
breve objetivo do nosso trabalho é discutir as perspectivas atuais
e futuras para os povos em isolamento voluntário nos interflúvios
do rio Trombetas face às principais ameaças com relação aos
territórios e aos direitos indígenas.
A OCUPAÇÃO INDÍGENA NOS
INTERFLÚVIOS DO RIO TROMBETAS
E AS REDES DE RELAÇÕES NAS GUIANAS
A maioria dos grupos indígenas dos interflúvios do rio Trombetas
ocupa uma região de floresta densa, em áreas situadas acima
das cachoeiras, em lugares de difícil acesso. Isso não impedia
que eles mantivessem redes extensas de contato com povos
próximos e distantes, conectadas por caminhos terrestres que
180
cortavam as cabeceiras dos rios no sentido leste-oeste e nortesul, atravessando o espaço que é hoje a fronteira entre os estados
do Pará, Roraima, Amazonas e os países Brasil, Guiana e
Suriname. Muito provavelmente essas redes sofreram um duro
golpe com a diminuição populacional e com a sedentarização
efetivada pela ação colonial e missionária a partir da segunda
metade do século XX. Deste modo, provavelmente as redes
de relações atuais que conectam os grupos indígenas são bem
diferentes daquelas anteriores à chegada dos brancos na região.
Sobre a situação anterior à chegada dos europeus ao continente,
no entanto, a arqueologia poderá nos informar de forma um pouco
mais satisfatória – embora, na região, os estudos arqueológicos
ainda estejam em fase embrionária. Os dados históricos (falando
de fontes escritas), a partir desta época, também não são fartos
ou são pouco confiáveis, até mesmo porque, devido à dificuldade
de acesso ao local, foram poucos os viajantes e estrangeiros que
visitaram a região e a descreveram. Sem dúvida, um estudo mais
rico sobre a história da região só poderia ser feito a partir da
combinação entre a arqueologia, as fontes documentais e as
fontes orais indígenas.
É fácil constatar que os poucos viajantes que por ali passaram,
como os Coudreau (1900), limitaram-se a explorar a calha
principal do rio Trombetas e dos seus principais afluentes, não
se aventurando pelas suas cabeceiras ou para o interior (não tão
distante assim) da floresta, onde exatamente se encontravam
os grupos indígenas. Como já dissemos, as barreiras naturais
do rio e dos seus principais afluentes, formados por inúmeras
corredeiras, impediam o acesso fácil e, ao mesmo tempo,
serviam de proteção para os índios ali residentes. Não é à toa
que várias são as histórias indígenas que apontam lugares
concretos nos quais os aventureiros e estrangeiros se deram mal
ou foram levados pelos índios a fracassarem quando tentavam
atravessar as cachoeiras: muitos se foram para sempre na “caída
dos pretos”, no rio Cachorro, ou na Cachoeira Bateria, no rio
Mapuera. Podemos dizer que as redes indígenas dos interflúvios
do rio Trombetas intercalaram por um longo tempo, pelo menos
desde o início do século XVIII até o início do século XX,
períodos de relativo isolamento nas matas combinados com
aproximações e agressões às expedições de captura de escravos
vindas do norte (fundamentalmente da Guiana Holandesa), aos
negros-quilombolas e aos gateiros que subiam o rio Trombetas a
partir da sua foz. Neste contexto, durante todo esse período, os
índios da região se mantiveram longe do baixo rio Trombetas e
das suas águas mansas – portanto, longe da frente de colonização
luso-brasileira.
Protásio Frikel, o estudioso (missionário e etnólogo) que talvez
tenha percorrido de forma mais intensiva e feito registros
sobre a região, a partir dos anos de 1940, assim dizia no seu
texto de 1958:
O rio Trombetas, com cerca de 1.000 km, é o maior
afluente da margem esquerda do Amazonas, dentro
do Estado do Pará. [...] Os rios principais desta área
têm suas nascentes nos divisores reais do Acaraí e
Tumucumaque (Tumuk-Humak). O mesmo acontece
com o próprio Trombetas, com seus formadores
Cafuíne (Kafuwiní) e Panamá (Wanamú) e com seus
dois maiores formadores, o Mapuera e o Erepecuru,
juntamente com o Marapi. [...] Seus afluentes mais
importantes do lado ocidental são: o já mencionado
Mapuera, o Cachorro ou Kaxurú, o Yaskurí, o rio do
Velho ou Kuhá e, na altura equatorial, o rio Turunú.
A leste recebe o Erepecuru, o Damiana ou Kah.
yahó, o Kachpakurú, o Imnohúmu e o Ponékuru.
[...] A maioria destes rios divide-se, em seus cursos
superiores, em dois ou mais formadores, que para os
estudos indigenistas são de alguma importância
Frikel, 1958: 114.
1.
2.
Por um lado, as informações do missionário-etnólogo,
complementadas por aquelas produzidas por diversos cronistas
e viajantes que andaram pela região no passado, e, por outro
lado, as informações atuais sobre as áreas de ocupação dos povos
indígenas (Caixeta de Queiroz, 2008; Grupioni, 2010; Funai,
2015) nos fornecem diversas evidências sobre a continuidade no
espaço e no tempo da presença indígena na bacia do Trombetas.
A despeito da lacuna de informações recentes (décadas de 1990
e 2000) sobre os povos em “isolamento voluntário” nessa região1,
os dados de que atualmente dispomos apresentam fortes relações
com as informações da metade do século XX: as áreas onde se
constata a presença de povos isolados (regiões do Mapuera, alto
Cachorro, Alto Paru de Oeste e alto Kaspakuru), assim como as
hipóteses mais fortes sobre a filiação linguística desses povos
são exatamente as mesmas. Assim, a respeito dos formadores
e afluentes do Mapuera, Frikel nos informava que “[...] todos
esses rios são habitados por tribos do grupo Parukotó”. Sobre o
Paru de Oeste, dizia ele, “recebe certo número de afluentes cujas
cabeceiras são bastante povoadas de índios. Em todos esses rios
e igarapés vivem grupos Tiriyó”. Com relação a um afluente
do Trombetas (o Kotonúru), afirmava: “suas margens são ricas
em malocas de índios, com os quais, porém, não existe contato
porque são considerados bravos, selvagens”.
De acordo com a classificação linguística e etnológica desse
autor, a bacia do Trombetas é habitada quase que exclusivamente
por povos de língua caribe2. Os povos classificados no grupo
Parukoto-Charúma ocupam a parte oeste e noroeste da bacia,
ou seja, o interflúvio Jatapu-Nhamundá-Mapuera-TurunuAlto Trombetas. Nesse grupo, estão incluídos, entre outros, os
povos Waiwai, Mawayana, Karaphawyana, Tcheréu, Tunayana e
Katuena. Os povos do grupo Warikyana ocupam a parte central
De fato, as últimas informações sobre povos isolados na Calha Norte do Pará foram publicadas em 1983 (ver Ricardo, 1983).
As exceções são uma pequena invasão Aruaque nas cabeceiras do Mapuera e um grupo Tupí em um afluente do Maecuru (na ocasião da publicação do artigo, 1958,
os Zo’é ainda estavam “isolados” no interflúvio Erepecuru-Cuminapanema).
181
da bacia, sendo que os seus assentamentos estão às margens
do Trombetas, do Cachorro, do Cachorrinho, do Yaskuri e do
Kaspakuru. Nesse grupo, estariam incluídos, entre outros, os
povos Katxuyana, Yaskuryana, Kahyana, Ingarüne, Ewarohyana
e Prênhoma. Na parte oriental da bacia do Trombetas, no
interflúvio Panamá-Marapi-Paru de Oeste-Paru de Leste, estão
os povos Pianakotó-Tiriyó. Nesse grupo, estariam incluídos
diversos povos, dentre os quais, os Tiriyó, Prouyana, Aramagotó,
Pianakotó e Akuriyó.
A continuidade espaço-temporal da ocupação caribe no Trombetas
tem como pano de fundo sociológico as redes de relações
que envolvem diversos povos (ameríndios, afro-americanos e
europeus) e conectam uma vasta região para além do Trombetas.
A despeito das evidências da continuidade histórica e geográfica
da presença indígena e das articulações em rede, alguns
estudos antropológicos sobre a região das Guianas (Overing,
1983-1984; Riviére, 1984) retrataram os povos indígenas como
grupos locais dispersos por um grande território em aldeias
pequenas, politicamente autônomas, idealmente endogâmicas e
ideologicamente xenófobas. As relações entre grupos se daria em
função da pressão gerada pela escassez de recursos humanos,
em particular de mulheres. Tal modelo, embora tenha captado
por meio de uma etnografia minuciosa aspectos essenciais da
organização social e do parentesco nas Guianas, contribuiu para
popularizar a ideia de “sociedades minimalistas” (ver Viveiros
de Castro, 1986).
Outros autores, no entanto, já vinham abordando a dinâmica
das redes de relações nas Guianas nos seus trabalhos desde
os anos de 1980. Os trabalhos de Butt-Colson (1985), Gallois
(1986), Farage (1991), Dreyfus (1993) e, mais recentemente,
Howard (2003), Perrone-Moisés (2006) e Grotti & Brightman
(2010) lançaram uma nova luz sobre a história e a dinâmica
das organizações políticas supralocais e dos circuitos de troca
de pessoas, mercadorias e ideias na região. Ao abordarem
a imbricação e as implicações mútuas de múltiplas lógicas,
coloniais e indígenas, que operam simultaneamente em escalas
182
diferentes (locais, regionais, nacionais e transnacionais),
esses estudiosos evidenciaram as conexões para além das
redes guianenses, enfatizando tanto os efeitos das estratégias
geopolíticas colonialistas sobre a configuração política e a
articulação territorial das redes indígenas como o papel dessas
últimas na conformação das fronteiras e das geopolíticas dos
atuais Estados Nacionais no escudo das Guianas (Brasil,
Guianas, Venezuela, Suriname).
Ainda que a região tenha sido relativamente esvaziada num
período recente, a partir do final da década de 1940, em virtude
da ação missionária e da concentração da população em poucas
aldeias multiétnicas, conforme veremos a seguir, pode-se dizer
que esse modelo da dispersão territorial dos grupos indígenas
voltou a ser posto em prática a partir da década de 1990.
Mais do que isso, a região mostra fortes evidências de que todos os
grandes interflúvios (Erepecuru-Trombetas-Cachorro-Mapuera)
que compõem a bacia do Trombetas, bem como os interflúvios
do rio Jatapu e Nhamundá, são habitados por povos isolados.
A região do divisor de águas Nhamundá-Mapuera é o território
dos Karapawyana e de outro grupo que vive nas cabeceiras do rio
Pitinga (afluente da margem esquerda do Nhamundá). A região
do alto Kaspakuru e do alto Água Fria (no interflúvio TrombetasErepecuru) é território dos Ingarünhe. Os Tiriyó afirmam que
diversos Pianakotó ainda vivem nas matas do interflúvio MarapiPanamá, em alguns afluentes da margem esquerda do Paru de
Oeste (Quinze de Novembro) e no Poanã. E, no alto Cachorrinho,
no interflúvio Cachorro-Mapuera, diversas evidências indicam a
ocupação da área por povos isolados.
A INVENÇÃO DOS POVOS “ISOLADOS”
É verdade que a colonização do continente produziu um
forte impacto sobre os povos indígenas do interflúvio do rio
Trombetas: seja por meio da guerra fomentada pela captura de
escravos indígenas, como indicam as fontes históricas que nos
relatam sobre a incursão de holandeses na região; seja pela
fuga de escravos negros das fazendas do baixo Trombetas e da
pressão que isso exerceu para que os índios permanecessem nas
cabeceiras desse rio; seja pelas incursões por terras indígenas
de gateiros e de aventureiros à procura de riquezas vegetais ou
minerais na região.
Contudo, muito provavelmente, tudo isso não tenha produzido
tanto impacto na organização supralocal indígena quanto a
expansão missionária na região a partir da década de 1950.
Catherine Howard (1993: 234) nos oferece uma clara ideia da
dinâmica do processo:
Em 1949, missionários protestantes norte-americanos
da Unevangelized Tribes Mission instalaram-se entre
os Waiwai do Essequibo [na Guiana]. Vários anos de
esforços para converter os Waiwai encontraram alguma
resistência, e mesmo uma tentativa malograda de
matar o chefe da missão. Mas este último concentrou
suas baterias sobre um jovem xamã de futuro político
promissor; quando ele se converteu em meados dos
anos cinquenta, a maioria dos Waiwai o acompanhou,
de modo congruente com a natureza fortemente
marcada da liderança política nessa sociedade.
Os missionários se aproveitaram da característica
propensão dos Waiwai à visitação intertribal,
explorando-a para contatar e atrair outros grupos
ao sul e ao leste da região do Mapuera-Trombetas.
Os Waiwai, por seu lado, aproveitaram-se do acesso
privilegiado aos bens de troca dos missionários, aos
remédios, às novas formas do saber ritual (como a
escrita) e às novas fontes (cristãs) de poder espiritual,
para poderem dominar outros grupos. Desaparecerem
as forças que limitavam o poder de cada grupo no
sistema, e os Waiwai atingiram a eminência regional.
3.
4.
A assimilação de outros grupos se acelerou, e as
aldeias compósitas se expandiram rapidamente. Os
Waiwai logo assumiram o controle das expedições de
contato; hoje em dia, desencorajam os missionários a
acompanhá-los nelas, dizendo que só eles mesmos, não
os brancos, sabem como pacificar as tribos bravias.
Apropriaram-se da linguagem da evangelização
como uma das estratégias para persuadir os outros a
se juntarem a eles, mas ela foi subordinada aos seus
próprios modelos e dirigida aos seus próprios fins
cosmológicos e políticos.3
O relato da autora é relevante, pois nos remete à história indígena
recente no interflúvio do rio Trombetas e, principalmente,
permite-nos vislumbrar as dinâmicas e as sobreposições das
várias políticas, indígenas e não-indígenas, no contexto das
relações interétnicas. Embora se refira especificamente aos
Waiwai, tal relato guarda fortes similaridades com os processos
ocorridos entre os Tiriyó e Akuriyó com o advento das missões.4
Em primeiro lugar, Howard menciona a política dos missionários
no contexto da criação de diversos aldeamentos missionários
(católicos e evangélicos) no Brasil (Missão Tiriyó), no Suriname
(Araraparu, Kwamalasamutu) e na Guiana Inglesa (Kanashen).
A técnica de contato desenvolvida pelos missionários foi
caracterizada por Howard (2003) como um “evangelismo
cumulativo” e consistia em potencializar “a propensão dos Waiwai
à visitação intertribal” e persuadi-los a realizar contatos com povos
que ainda se encontravam isolados. Essa política “contatualista”
colocada em prática tanto entre os Waiwai quanto entre os Tiriyó
do Suriname estava na base da criação de verdadeiras “frentes
de contato indígenas evangélicas”, responsáveis pelo contato de
diversos povos na região do Trombetas-Mapuera e da serra do
Sobre a ação missionária e o processo de conversão do xamã Ewká, ver também o artigo de Caixeta de Queiroz (1999).
Ver, por exemplo, o trabalho de Grotti e Brightman, 2010.
183
luisa g. girardi
Tumucumaque. A partir desses processos de contato, assimilação
e concentração em aldeamentos de diversos povos diferentes, é
que se deu a emergência das designações genéricas “Wai-Wai”
e “Tiriyó”. Teve início assim um grande processo, para fins de
evangelização, de contato e concentração territorial de diversos
povos indígenas que se encontravam dispersos por uma vasta
região (ver Howard, 1993 e 2003; Grotti e Brigthman, 2010).
Em segundo lugar, e em contrapartida ao processo de contato,
esse período assiste também a emergência da categoria de povos
“isolados” ou “não-vistos”, utilizada para se referir àqueles
grupos ou frações de grupos que optaram por não estabelecerem
relações permanentes com os brancos ou com os povos indígenas
que haviam se submetido à dominação. Se, no caso dos Waiwai,
os missionários conseguiram convencê-los a se converter ao
evangelho, podemos afirmar que diversos povos adotaram uma
política de recusa de contato. Mesmo que na perspectiva do
pensamento guianense o termo “isolado” e a política do “não
contato” possam encerrar uma contradição ao irem de encontro
ao conceito e à prática das redes de relações, a opção dos povos
isolados de permanecerem livres de relações com o Estado e com
outros povos deve ser considerada.
E aqui chegamos ao cerne do nosso argumento: a despeito da
continuidade histórica da ocupação territorial, no período,
houve uma descontinuidade sociológica nos modos de relações
entre os diversos povos. Se, no passado, operava uma complexa
política ritualizada de intercâmbios de pessoas, coisas e ideias,
atualmente se observa que os povos contatados tem uma política
do contato (resultado de uma “mistura” de fatores tradicionais
– propensão à visitação intertribal – e externos – técnica do
“evangelismo cumulativo”) para com povos que estão isolados,
enquanto que esses últimos têm uma política deliberada,
voluntária, de não contato com quem quer que seja. Isto é, mais
do que um dado, ou uma característica intrínseca, ou um índice
da “pureza” de alguns povos, o estado de isolamento voluntário
é produto de circunstâncias históricas recentes.
SITUAÇÕES DE CONTATO
E DE ISOLAMENTO
Vejamos mais de perto, a partir de alguns casos, como se formaram
na região, ao mesmo tempo, aldeias compósitas e grupos isolados
em função da ação missionária.
No ano de 1950, os missionários evangélicos americanos ligados
à Unevangelized Fields Missions (UFM), guiados por indígenas
Wapixana, chegaram ao território habitado pelos índios Waiwai,
na fronteira do Brasil com a Guiana. Os Waiwai, um povo de língua
Caribe, nesta ocasião, eram um grupo pequeno e em processo
de fusão (intercasamentos) com outros grupos, como os Tarumã
(língua desconhecida e, hoje, praticamente desaparecida) e os
Mawayana (língua aruaque hoje falada somente pelos velhos
sobreviventes ao contato).
Os Waiwai propriamente ditos tinham como local de habitação
tradicional os formadores da margem direita do alto rio Mapuera –
notadamente o rio Kikwo ou Baracuxi. Já os Mawayana, habitavam
a margem esquerda do alto rio Mapuera, mais especificamente o
rio Urucurim. E os Tarumã viviam no alto rio Essequibo, do lado
da Guiana inglesa. Quando os missionários instalaram a Missão
Kanashen, esses três grupos (Waiwai, Tarumã e Mawayana), já
misturados, na sua maior parte, acabaram abandonando as suas
aldeias e indo morar em torno de Kanashen, mais propriamente,
numa nova aldeia denominada Yakayaka.
Mais tarde, em 1954, a partir de Kanashen, os missionários
Claude Leavitt e Bob Hawkins acompanharam os Waiwai
numa expedição ao baixo rio Mapuera, onde moravam os índios
Xereu. Como nos relata a tese revista de Howard (2003: 288),
os missionários disseminaram entre os Xereu a mensagem de
que um enorme fogo iria destruir a terra e todas aquelas pessoas
que não tivessem aceitado Jesus nos seus corações. Ao mesmo
tempo, prometeram-lhes abrigo e proteção, caso mudassem para
a Missão Kanashen. Logo em seguida, os Mawayana restantes do
alto rio Urucurim também seguiram para o alto rio Essequibo na
185
Guiana, onde se localizava esta missão, esvaziando a ocupação
indígena do lado brasileiro do alto rio Mapuera – muito embora,
conforme veremos, por ali ainda tenham permanecido grupos
que acabaram se tornando “isolados”.
Procedimento similar à expedição entre os Xereu ocorreu com
relação a vários outros grupos indígenas, numa ampla região
da Calha Norte, nas décadas de 1960 até 1980. Desta forma,
por exemplo, expedições lideradas pelos índios Waiwai abriram
uma pista de pouso no alto rio Trombetas ou rio Cafuini –
pista, esporadicamente, ainda usada nos dias atuais – com o
objetivo de criar uma base para a atração dos índios Katuena
e Tunayana dispersos nas cabeceiras do rio Turuni e dos índios
Xereu dispersos no alto rio Cachorro e Cachorrinho. Estes índios
foram levados, na sua maioria, para as proximidades da aldeia
Kanashen entre 1966 e 1967.
A aldeia-missão Kanashen na Guiana se tornou um grande
polo de atração para os indígenas localizados do lado brasileiro
(para onde os missionários enviavam “embaixadores” indígenas
dizendo que do lado de lá viveriam muito melhor, teriam acesso
a bens materiais industriais e medicamentos, além da proteção
divina), até o início da década de 1970. Nesta ocasião, depois
da instalação de um governo de tendência socialista e avesso aos
missionários americanos, estes incentivaram que os indígenas
retornassem para o lado brasileiro. De forma mais ou menos
planejada, com o apoio dos militares brasileiros, iniciou-se um
processo de reocupação do norte do Pará e do oeste de Roraima,
com a fundação de duas aldeias, respectivamente: aldeia
Mapuera, no rio Mapuera, que era local de tradicional habitação
dos Xereu-Hixkaryana; e aldeia Pista Velha (que logo se mudou
para a aldeia Yauko e, em seguida, para a aldeia Kaximi), nas
cabeceiras do rio Anauá e do rio Jatapu.
Nesta época, início da década de 1970, o governo militar estava
abrindo a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, e uma repressão
5.
186
violenta foi iniciada contra os Waimiri-Atroari, que resistiam à
penetração da rodovia no seu território. A Funai tentava, em vão,
pacificá-los. Foi nesse quadro que os Waiwai foram incentivados
a migrar para Kaximi e, de lá, mais uma vez estimulados pelos
missionários evangélicos, a enviar expedições para “atrair” e
“pacificar” os Waimiri-Atroari. De fato, os Waiwai realizaram
pelo menos duas grandes incursões no território Atroari, e
dezenas destes índios visitaram a aldeia waiwai de Kaximi por um
período relativamente longo. Contudo, depois dos desastres dos
primeiros contatos, em que a população waimiri-atroari sofreu
um duro abalo em função das epidemias e da violência militar5,
aqueles Waimiri-Atroari que haviam procurado abrigo provisório
entre os Waiwai retornaram ao seu território tradicional – com a
exceção de um único índio atroari, Xiquinho, que se casou com
uma índia waiwai e hoje mora na aldeia Soma (rio Jatapu), o
processo de assimilação dos Waimiri-Atroari pelos Waiwai não
se efetivou e funciona como um contra-exemplo com relação a
vários outros grupos.
No ano de 1978, durante a abertura de um trecho da BR 210
– uma estrada que, originalmente, atravessaria toda a extensão
da Calha Norte, cortando inúmeras áreas habitadas por índios
isolados –, onde hoje é parte da TI Trombetas-Mapuera, foi
contatado um grupo indígena isolado nas cabeceiras do rio
Jatapu. Muito provavelmente, tratavam-se dos mesmos índios
Karapawyana que foram contatados pelos Waiwai no ano de
1981. Tal contato foi concretizado por meio de duas expedições
muito bem organizadas pelos Waiwai, auxiliados, ao que tudo
indica, pela realização de sobrevoos por conta dos missionários
da MEVA, que, ainda hoje, fazem com frequência o trajeto aéreo
entre Boa Vista e as aldeias no rio Mapuera. Duas equipes de
indígenas se deslocaram, ao mesmo tempo, da aldeia Kaximi, em
Roraima, e da aldeia Mapuera, no Pará. No meio do caminho, a
segunda equipe se deparou com cinco aldeias, habitadas pelos
índios Karapawyana. Estes habitavam casas construídas a partir
Sobre tais episódios, conferir os depoimentos apresentados nos livros de Sabatini (1998) e Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do
Amazonas (2014).
de uma base de árvore viva, possuíam boas roças de mandioca,
banana e pupunha.
Deste primeiro encontro, uma parte dos Karapawyana se
dispersou na região, enquanto outra parte (composta por cerca de
16 pessoas) foi convencida pelos Waiwai a se instalar na aldeia
do rio Mapuera. Em 1982, divididos enquanto grupo, vítimas
de doenças do contato como gripes e diarreias, os sobreviventes
decidiram voltar para o local de habitação tradicional, onde,
teoricamente, ainda estavam os outros parentes que não se
sujeitaram aos Waiwai e permaneciam isolados. Neste mesmo ano,
um sertanista da Funai, Sebastião Amâncio, fez uma expedição
pela região, na tentativa de localizar o grupo Karapawyana que
se dispersou e que não tinha mais sido avistado. A partir desta
expedição, foi feito um relatório bem detalhado sobre os locais
de moradia tradicionais dos Karapawyana e sobre os possíveis
e principais igarapés por onde teriam se dispersado. O relatório
propunha a interdição da área de perambulação dos índios
isolados da região, com o objetivo de pacificar e eleger uma
área necessária à sobrevivência daquelas “sociedades tribais
isoladas” e à sua proteção pelo órgão tutelar. Tal documento
foi fundamental para o processo posterior de identificação e
delimitação da TI Trombetas-Mapuera, que se iniciou em 2000
e foi concluído em 2004 (Caixeta de Queiroz, 2008: 225).
Nele também estão detalhados, inclusive, os possíveis locais
de perambulação dos índios isolados, de acordo com o mapa
desenhado pelo sertanista Sebastião Amâncio.
Se tais informações ainda não confirmaram a presença de índios
isolados na área – na verdade, desde a época dos estudos para
a identificação da TI Trombetas-Mapuera, não foram realizadas
novas expedições e não houve levantamentos mais consistentes
por parte do órgão indigenista sobre tal presença –, continuam
6.
aparecendo informações bastante consistentes por parte dos índios
Waiwai e Hixkaryana acerca dos possíveis locais de moradia ou
perambulação dos grupos isolados nos interflúvios do rio Trombetas
e do rio Jatapu. Ao mesmo tempo, tais índios nunca deixaram de
realizar expedições à procura dos seus parentes “não vistos” que
ainda permanecem no interior da floresta e sobre os quais recai
tanto uma preocupação de “proteção” (prover-lhes medicamentos
e instrumentos de trabalho de metal) quanto de “conversão”
religiosa ou de “pacificação”. Na verdade, as expedições de contato
com os isolados, organizadas pelos próprios indígenas (já que, de
forma estratégica, decidiram ser os protagonistas de tais contatos
e excluíram tanto o órgão indigenista quanto os missionários desse
processo), inspiraram-se no modelo de “pacificação” levado a
cabo pela Funai (que utiliza ações como levar presentes como
machado, facão e miçangas) e de conversão religiosa promovida
pelos evangélicos nas décadas de 1950 e 1960.
De fato, os Waiwai e Hixkaryana participaram oficialmente de
frentes de atração da Funai de outros grupos indígenas, o que
lhes trouxe conhecimentos sobre tais práticas e que, ainda
hoje, marca a dinâmica das relações entre diferentes grupos na
região. Por exemplo, no início da década de 1980, os Waiwai
e os Hixkaryana participaram da frente de atração dos Arara,
um grupo Caribe que estava “isolado” nos afluentes da margem
esquerda do médio rio Xingu (onde hoje se localizam as TI
Arara e Cachoeira Seca). Depois do contato, da “atração” e
da “pacificação” dos Arara, passadas mais de três décadas, os
Waiwai-Hixkaryana decidiram visitá-los e iniciar um processo de
“atração” de parte deste grupo para o interior da TI NhamundáMapuera. Eles argumentam que os Arara foram abandonados
pelo órgão indigenista à sorte, que foram entregues, nas suas
terras e cidades da região, ao alcoolismo e extração ilegal de
madeiras.6 Por isso, em 2013 e 2014, atraíram para a aldeia
Não deixa de ser interessante notar que os Waiwai e os Tiriyó usaram – e ainda usam com frequência – argumentos semelhantes para dizer que os Zoé estão
abandonados pela Funai (desprovidos de bens civilizados como roupas, facões e armas de fogo) e, por isso, justificam as suas frequentes incursões naquele
território. Paradoxalmente, os Zoé não tiveram o mesmo destino dos Arara devido ao fato de que a Funai conseguiu, ali, manter uma estrutura bem-sucedida de
proteção, sobretudo no que tange ao atendimento à saúde, fato que tem sido bem utilizado para enfraquecer o fervor “pacificador” dos Waiwai e dos Tiriyó –
incentivado pelos missionários ainda atuantes na região.
187
Mapuera (rio Mapuera) e aldeia Riozinho (rio Nhamundá) várias
famílias de índios Arara.
Na sua tese de doutorado, Catherine Howard (2003: 287) insere
a figura 32 – intitulada “História dos grupos contatados pelas
expedições waiwai, 1950-1980” –, de forma a demonstrar que
os Waiwai, quatro anos depois dos primeiros contatos, iniciaram
um movimento no sentido da atração e pacificação e, ao mesmo
tempo, da “conversão” ou “waiwainização”, como prefere a
autora, de outros grupos indígenas, próximos e distantes social
e espacialmente.
Embora os Waiwai tenham sido os protagonistas na região
dos interflúvios do rio Trombetas na atração e pacificação
dos isolados, o órgão indigenista e outros grupos indígenas
atuaram, sem obter o igual sucesso, nesse mesmo sentido.
No período de 1940 a 1960, o antigo Serviço de Proteção aos
Índios (SPI) coletou informações acerca dos índios isolados
habitantes da parte ocidental do interflúvio do rio Trombetas e
do rio Jatapu, mais especificamente no médio-alto rio Jatapu
(nos seus afluentes da margem direita, denominados Cidade
Velha e Igarapé das Pedras), que tinham sido atacados nas
suas aldeias por balateiros. Por isso, o SPI havia criado o
Posto Indígena do rio Jatapu (onde hoje se acha localizada
a aldeia Santa Maria) e, de lá, realizou várias expedições rio
acima, atraindo para este posto vários grupos isolados, dentre
eles, os índios Xowyana e os sobreviventes do grupo atacado
pelos balateiros, que, mais tarde, foram identificados como
Karara (Caixeta de Queiroz, 2008: 239-240). Na pesquisa
de identificação e delimitação da TI Trombetas-Mapuera, no
ano de 2002, encontramos com duas mulheres descendentes e
sobreviventes dos Karara. Elas nos confirmaram que os Karara
quase desapareceram em função das epidemias pós-contato,
mas que ainda haviam sobreviventes em situação de isolamento
voluntário nas cabeceiras do rio Cidade Velha. De fato, há
várias informações sobre a presença de um grupo isolado
próximo a esta região, que hoje é visitada esporadicamente
pelos índios Waimiri-Atroari. Os Waiwai moradores do rio
188
Jatapu, por sua vez, em 2014, realizaram uma incursão na
tentativa, malsucedida, de contato com isolados daquela área.
Na verdade, nada se pode dizer sobre o fato de esse grupo
isolado pertencer aos remanescentes dos Karara, dos Xowyana,
dos Karapawyana ou de se referir a um outro grupo.
Já na parte oriental do interflúvio do rio Trombetas, que foi
praticamente esvaziada depois da segunda metade da década de
1960, devido à ação dos missionários cristãos e das expedições
Waiwai (os missionários evangélicos e os Waiwai “atraíram” os
Xereu, os Katuena e os Tunayana do alto rio Cachorro e do alto rio
Turuni para a Guiana; os missionários franciscanos “buscaram”
os Katxuyana no rio Cachorro e os levaram para a Missão Tiriyó
no Parque do Tumucumaque), ainda permaneceram grupos
isolados. O missionário Frikel Protásio (1970) dizia que, entre
1950 e 1960, alguns grupos que habitavam esta área tinham
se fundido, outros tinham mesmo desaparecido em função das
doenças e dos conflitos acirrados com a presença colonizadora,
mas ainda havia grupos de famílias isoladas e esparsas:
dentre elas, remanescentes de subgrupos Katxuyana, como os
Ingarüne-Kahyana, os Rerêyana Prenoma e os Urumamayana.
Muito provavelmente alguns destes grupos continuam isolados até
hoje, sendo que o último contato deles com os índios Katxuyana
foi feito na década de 1970. Nesta época, João do Vale Katxuyana
e a sua esposa (hoje, habitantes da aldeia Santidade, no rio
Cachorro) viveram por cerca de dois anos nas aldeias desses
isolados, nas cabeceiras do Igarapé Água Fria, um afluente da
margem direita do rio Erepecuru.
Em meados de 1981, uma equipe de servidoras da Funai,
composta por Maria da Penha de Almeida e Lúcia Helena
Soares de Mello, foi deslocada para a área do rio Trombetas/
Mapuera com o objetivo de assessorar a Eletronorte nos estudos
da hidrelétrica de Cachoeira Porteira e assim, possivelmente,
propor aos povos indígenas medidas de mitigação dos impactos
que seriam causados pelo empreendimento. Como pode ser
verificado no relatório desta expedição (Almeida, 1981),
destaca-se uma preocupação especial com relação às condições
de existência e localização dos índios isolados na região.
Conforme já vimos, naquele ano, 1981, os índios Karapawayana
do interflúvio Mapuera e Jatapu – nas cabeceiras dos rios
Jatapuzinho e do rio Baracuxi – tinham sido contatos pelos
Waiwai da aldeia Mapuera; e, daqueles que para esta aldeia
tinham sido levados, num total de 16 pessoas, a maioria estava
doente e desnutrida.
Na verdade, a possível construção da hidrelétrica de Cachoeira
Porteira representava uma ameaça concreta à sobrevivência e
à manutenção do modo de vida tradicional de todos os grupos
indígenas daquela região, mas, sem dúvida, a ameaça maior caía
sobre os índios isolados ou “arredios”. Os servidores da Funai,
no relatório aqui já citado (Almeida, 1981: 18-21), a partir de
dados coletados em campo e informados pelos indígenas, citam
nada menos do que 51 nomes de grupos “arredios” e dispersos
nos afluentes dos rios Jatapu, Nhamundá e Trombetas. Embora
o número seja de fato expressivo e, muito provavelmente, não
corresponda exatamente a “grupos” indígenas concretos –
sabemos que o fato da “filosofia indígena” não estabelecer
fronteiras fixas entre humanos e não-humanos pode ter “afetado”
a interpretação destes dados pela equipe de servidores da Funai
–, não devemos menosprezar ou não dar ouvidos a tais fontes.
De fato, a partir do final dos anos de 1990, quando se iniciou de
forma mais intensa um processo de descentralização das grandes
aldeias (por exemplo, das aldeias de Kassauá no rio Nhamundá
e de Mapuera no rio homônimo), bem como da reocupação de
alguns rios (como do rio Cachorro pelos Katxuyana, do alto rio
Trombetas pelos Tunauyana), começaram a surgir de forma mais
intensa registros da presença de índios isolados na região. Desde
então, foram retomadas aquelas expedições, muito comuns na
segunda metade do século XX, de “busca” e “atração” dos
“isolados” por parte dos índios contatados.
Conforme vimos, se os índios assumiram o protagonismo na
organização de tais expedições, a Funai teve, nessa área,
uma atuação discreta ou inexistente. Essa ausência do órgão
indigenista, por um lado, permitiu que as ações e estratégias
de “atração” dos isolados fossem tomadas ou traçadas pelos
evangelizadores indígenas (ou mesmo por missionários nãoindígenas) – em geral, justificadas com o argumento de que os
“isolados” podem estar sofrendo no “meio da floresta”, sem
nenhuma assistência à saúde ou até mesmo sem a oportunidade
de ter acesso aos “bens” ocidentais como facas e machados –;
por outro lado, deixou à sorte e ao desamparo completo os grupos
isolados (sem sequer contar com uma equipe médica preparada
para a vacinação, condição mínima exigida em tais situações)
quando contatados pelos próprios indígenas. Esse é o caso dos
Karapawyana, um grupo forte e vigoroso até ser contatado em
1981 e que praticamente deixou de existir enquanto grupo social
diferenciado (a não ser que parte deles ainda continue isolada,
ou que consideremos os seus sobreviventes que se casaram com
índios Waiwai e Yekuana e vivem dispersos no meio deles).
Como veremos a seguir, tal situação só começou a se
modificar a partir de 2011, a partir de uma atuação mais
persistente e abrangente da Frente de Proteção Etnoambiental
Cuminapanema, que já existia anteriormente, mas que atuava
quase exclusivamente na área Zo’é. Ainda assim, tal atuação
está, por enquanto, limitada ao levantamento de informações e
reuniões pontuais com a população indígena já contatada, com
resultados ainda bastante modestos, em decorrência da situação
de penúria do órgão indigenista vivida nos últimos tempos e
da cobertura necessária para uma grande área de floresta e de
difícil acesso.
POLÍTICAS INDÍGENAS,
POLÍTICAS INDIGENISTAS:
PERSPECTIVAS ATUAIS E FUTURAS
De qualquer maneira, a realidade dos povos indígenas isolados
no interflúvio dos rios Trombetas e Jatapu não são muito
diferentes daquelas verificadas em outras regiões. Peter Gow
(2011) nos fornece algumas informações sobre a política dos
Mascho isolados na região do baixo rio Urubamba, na Amazônia
189
Peruana. “Me deixa em paz!”, na interpretação de Gow, parece
ser o sentido da frase dita pelo índio Mascho ao índio Piro que
certa vez o tentou capturar à força com o intuito de “civilizálo”. Albert e Ramos (2002) evidenciaram diversas estratégias
postas em marcha pelos povos indígenas para “pacificar” o
branco. Dentre essas estratégias, a do “me deixa em paz!”, do
isolamento voluntário, da recusa ao contato foi e continua sendo
uma importante estratégia política indígena, que, no entanto,
depende de uma série de condições para ser efetivada.
Quais são as condições necessárias ao exercício do isolamento
voluntário? Os contatos realizados nos últimos anos e, em
particular, em 2014 nos dão a resposta pela negativa. De fato, os
episódios recentes ocorridos na fronteira do Acre com o Peru com
os Xatanawa e com os Mascho, no vale do Javari com os Korubo e
no oeste do Maranhão com os Awá-Guajá indicam que as razões
pelas quais um povo decide sair do isolamento voluntário e a
estabelecer relações (pacíficas ou belicosas) com outros povos
(indígenas ou não indígenas) estão relacionadas a confinamentos
territoriais, conflitos, busca por ferramentas, escassez de comida
e doenças. Embora tenham se dado em circunstâncias muito
distintas, todos esses episódios nos mostram que a decisão de
sair do isolamento voluntário foi uma política deliberada dos
índios, ou seja, os isolados que até então tinham optado por
assim permanecerem é que fizeram o contato.
Muito tempo se passou até que o pensamento indigenista
brasileiro internalizasse na sua prática a ideia da “agência” e
do protagonismo político dos povos indígenas isolados. De fato,
na região amazônica, a política de contato do Estado brasileiro
nas décadas de 1960, 1970 e início da década de 1980 tinha
como finalidade liberar áreas de floresta para a colonização e
para grandes empreendimentos. É enorme a lista dos povos
contatados nesse período em consequência dos grandes projetos
de desenvolvimento da região. Parakanã, Araweté, Arara,
7.
190
Tenharim, Panará, Cinta-Larga, Urueu-wau-wau, Zoró e WaimiriAtroari são alguns dos povos cuja liberdade de permanecerem
isolados foi proscrita e cujos territórios foram esbulhados pelo
Estado brasileiro.
Apenas em 1987 é que um grupo de sertanistas, indignado com
relação aos resultados catastróficos dos diversos processos de
contato levados a cabo pelo Estado brasileiro por meio da Funai,
decidiu reavaliar as diretrizes da política indigenista para povos
isolados7. A mudança de orientação se consolidou a partir da
constatação de uma grave contradição: a política do contato, em
vez de garantir a proteção territorial e a sobrevivência física e
cultural dos povos indígenas, estava contribuindo para o esbulho
e invasão dos territórios e para o alastramento de doenças
infectocontagiosas. Atualmente, a política indigenista do não
contato praticada pelo Estado brasileiro por meio da Funai está
respaldada pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto
da Funai, instituído por meio do Decreto nº 1778 de 2012.
No sistema jurídico internacional, conforme ressalta Shelton
(2012), o direito dos povos indígenas ao isolamento voluntário,
assim como a obrigação dos Estados Nacionais de respeitar esse
direito e de desenvolver mecanismos eficientes de proteção
territorial desses povos está previsto na Declaração das Nações
Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas de 2007. No mesmo
sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) tem tentado, por meio de diversos mecanismos, garantir
os direitos territoriais dos povos isolados.
Embora a passos um tanto lentos, a política indigenista do não
contato e da proteção territorial de povos em isolamento voluntário
tem se consolidado na região da Guiana brasileira. Desde 2011,
a Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema, unidade da
Funai vinculada à Coordenação Geral de Índios Isolados e de
Recente Contato, desenvolve um trabalho de caracterização e
qualificação das informações sobre povos indígenas isolados na
Tal decisão foi tomada durante o Encontro de Sertanistas realizado na Funai em Brasília em junho de 1987, normatizada por meio da Portaria nº 1900/Pres/Funai,
que instituiu as diretrizes da política de proteção dos povos indígenas isolados em território brasileiro.
carlos penteado
região norte do Estado do Pará e no Estado do Amapá. De um total
de dez referências8 sobre povos isolados na região constantes
no banco de dados da Funai, quatro estão situadas na bacia do
rio Trombetas: Karapawyana, rio Pitinga, alto Cachorro e alto
Kaspakuru. Destas, uma está situada no interior da Terra Indígena
Trombetas-Mapuera (homologada pelo Estado Brasileiro em
2010), e outras três estão situadas no interior da Terra Indígena
Katxuyana-Tunayana e em estudo pela Funai desde 2008.
Os desafios para a implementação dessa política são, no entanto,
diversos e de várias ordens. Entre os principais estão: dificuldade
na interlocução com os povos contatados que compartilham
terras indígenas com os povos isolados, persistência da ação
missionária fundamentalista na área (ver o texto de Ribeiro nessa
coletânea), retomada do projeto de aproveitamento hidroelétrico
de Cachoeira Porteira, garimpos e projetos de mineração e os
sucessivos ataques aos artigos 231 e 232 da Constituição Federal.
Em doses diferentes, todas essas questões têm contribuído para
o retardamento da regularização fundiária da Terra Indígena
Katxuyana-Tunayana.
Com exceção da Terra Indígena Zo’é, todas as outras Terras
Indígenas na bacia do Trombetas (Nhamundá-Mapuera,
Trombetas-Mapuera, Katxuyana-Tunayana, Parque Indígena do
Tumucumaque) são compartilhadas por povos contatados e povos
isolados. É interessante observar que, em todas essas Terras
Indígenas, após o processo de contato e concentração territorial no
período de 1950 a 1990, a partir do ano 2000 aproximadamente,
teve início um processo de “dispersão sedentarizante” (Grupioni,
2010). Conforme já indicamos, antes concentradas em grandes
aldeamentos (Mapuera, Missão Tiriyó, Kwamalasamutu), as áreas
de ocupação dos povos indígenas contatados foi se espalhando
pelas calhas dos rios. Podemos afirmar, portanto, que atualmente
os povos contatados ocupam as calhas dos rios e os povos isolados
ocupam as áreas dos interflúvios.
8.
192
Tendo em vista que em todas essas áreas é forte a presença de
missionários evangélicos fundamentalistas e que, influenciados
ou não pelos missionários, os Waiwai e os Hixkaryana ainda
têm o desejo de contatar os povos isolados, o estabelecimento
de protocolos de gestão compartilhada que respeitem o direito
ao “isolamento voluntário” ainda é um desafio enorme. Nesse
sentido, nos últimos anos, foram executados dois projetos que
visavam justamente construir os Planos de Gestão Territorial
e Ambiental (PGTA) dessas Terras Indígenas (com exceção da
TI Katxuyana-Tunayana, ainda não regularizada pelo Estado),
tendo como fundamento a Política Nacional de Gestão Territorial
e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída em 2012.
Sabe-se que as Terras Indígenas da bacia do Trombetas fazem
parte de um imenso corredor de áreas protegidas que vai do litoral
do Amapá à divisa do Brasil com a Colômbia (incluindo áreas
de floresta da Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela
e Colômbia). No entanto, mesmo que a conservação ambiental
dessa parte da floresta amazônica seja fundamental para que
sejam evitados futuros desastres (relacionados, por exemplo,
à escassez de água, aquecimento global, mudanças climáticas
etc.) e ainda que os povos indígenas saibam como manter modos
de vida compatíveis com a conservação ambiental, diversos
interesses desenvolvimentistas continuam pairando sobre a
região. De fato, o ano de 2014 foi marcado pela retomada pelo
Estado Brasileiro do projeto de aproveitamento hidroelétrico do
rio Trombetas. Há uma movimentação também no sentido de
viabilizar novos empreendimentos minerários na região. E, em
Brasília, no mesmo Congresso Nacional onde há 25 anos foram
assegurados os direitos originários dos índios sobre as terras que
ocupam, observamos hoje uma forte ofensiva, orquestrada pela
bancada ruralista, contra esses direitos fundamentais.
Cientes ou não dessas tramas políticas, diversos povos continuam
firmes na sua política de recusar o contato.
Conforme as diretrizes da Política de Proteção dos Povos Indígenas Isolados, o termo “referência” refere-se a um conjunto de informações (relatórios, relatos,
mapas, imagens, vídeos) que indicam a presença de um povo indígena isolado em uma determinada região.
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193
lúcia mendonça morato de andrade
QUILOMBOLAS
EM ORIXIMINÁ:
DESAFIOS DA
PROPRIEDADE
COLETIVA
Lúcia Mendonça Morato de Andrade
A titulação foi uma libertação, a nova libertação
dos escravos. Meus antepassados fugiram para ter
liberdade, mas só encontraram outros brancos dizendo
que eram donos da terra. Agora não, agora a gente tem
o papel que fala que a terra é nossa.
Augusto Figueiredo, comunidade Pancada,
Terra Quilombola Erepecuru.
As conquistas em Oriximiná representam um marco na luta dos
quilombolas. Foi lá que há quase 20 anos, em 20 de novembro
de 1995, ocorreu a primeira titulação coletiva de um território
quilombola no Brasil.
A busca dos quilombolas de Oriximiná pela efetividade do
artigo 68 do ADCT aprovado na Constituição Federal de 1988
iniciou-se já no ano seguinte à promulgação do novo texto
constitucional. Foi o que impulsionou a criação da Associação
das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município
de Oriximiná (ARQMO) em julho de 1989. Já em dezembro de
1989, lideranças da ARQMO fizeram a sua primeira viagem à
Brasília para reivindicar a titulação de suas terras acompanhadas
de representantes da Paróquia de Oriximiná e da Comissão PróÍndio de São Paulo.
Foram sete anos de mobilizações e pressão até a obtenção do
primeiro título em 1995 (Terra Quilombola Boa Vista), seguido
de titulações em 1996 (Terra Quilombola Água Fria), 1997 (Terra
Quilombola Trombetas), 1998/2000 (Terra Quilombola Erepecuru)
e em 2003 (Terra Quilombola Alto Trombetas, titulação parcial).
Recebemos o primeiro título em 1995 festejamos o
tricentenário de Zumbi. O segundo foi em 1996 e o
terceiro em 1997 – a área era muito maior. Foi uma
estratégia política nossa começar pelo menor [território],
menos complexo. Experiência piloto e começamos pela
Boa Vista, 1125 hectares. A gente ia convencendo aos
poucos o governo.
Daniel Souza, comunidade Jauari,
um dos primeiros coordenadores da ARQMO.
196
Atualmente (julho de 2015), os territórios já regularizados em
Oriximiná representam 51% da dimensão total titulada no Brasil
em nome de comunidades quilombolas. Mas 15 comunidades
ainda aguardam pela titulação de suas terras – Alto Trombetas,
Alto Trombetas 2, Ariramba e Cachoeira Porteira –, todas
incidentes em unidades de conservação.
FIRMANDO PRECEDENTES JURÍDICOS
A titulação respaldou e deu para levar a mensagem para
todo o Brasil que não aceitava terra coletiva. No nosso
entendimento isso não tinha como. Aí o Incra aprendeu
com a gente isso da titulação coletiva e com longo
debate. Mensagem do coletivo, propriedade definitiva
coletiva, isso se discutia só para o índio, não para os
quilombolas. A titulação nos deu respaldo e deu para
levar a mensagem para todo o Brasil que era possível
ter o título coletivo.
Daniel Souza, comunidade Jauari,
Terra Quilombola Erepecuru.
A luta em Oriximiná suscitou a primeira regulamentação
federal sobre a matéria: a Portaria Incra n.º 307, de 22 de
novembro de 1995, que determinava que as comunidades
remanescentes de quilombos inseridas em áreas públicas
federais sob a jurisdição do Incra (arrecadadas ou obtidas
por processo de desapropriação) tivessem suas áreas medidas
e demarcadas, bem como tituladas, mediante a concessão de
título de reconhecimento, com cláusula pro indiviso, na forma
do art. 68 do ADCT da Constituição Federal.
Já o governo do Pará iniciou suas ações para assegurar a
regularização de territórios quilombolas provocado pelo pedido
de titulação da Terra Quilombola Trombetas apresentado
pela ARQMO em fins de 1996. Atendendo a essa demanda,
em novembro de 1997, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa)
outorgou o primeiro título de terra quilombola. Iniciativa que se
desdobrou em ações de âmbito mais amplo com a regulamentação
de procedimentos1 e instituição de programas específicos para
os quilombolas2.
A primeira titulação pelo governo federal em 1995 firmou, ao
menos, dois importantes precedentes jurídicos. Consolidou
a interpretação que o artigo 68 do ADCT é autoaplicável, não
dependendo de regulamentação para sua efetivação, questão
que era controversa naquela época. Além disso, firmou o
entendimento que a titulação das terras quilombolas deveria ser
coletiva, instituindo uma modalidade singular de propriedade no
ordenamento jurídico brasileiro: uma propriedade coletiva que
não pode ser vendida, arrendada ou loteada3.
Precedentes que foram reforçados pelo governo do Pará quando,
em 1997, outorgou o título coletivo às comunidades da Terra
Trombetas, também em Oriximiná, sendo o primeiro governo
estadual a regularizar uma terra quilombola.
Os resultados obtidos em Oriximiná repercutiram também junto
aos quilombolas de outras regiões que se sentiram motivados a
buscar seus direitos.
Em 88, o pessoal de Oriximiná já começou a luta deles.
Como eles conseguiram a titulação por lá, a gente foi
atrás também. A gente viu essa necessidade de lutar
por um direito que era nosso e que até então a gente
desconhecia. O pessoal de Oriximiná veio também,
colocou a experiência deles. Eles já tinham experiência,
nós éramos marinheiros de primeira viagem.
Verinha Oliveira dos Santos, comunidade Cuecé
situada no Município de Óbidos, vizinho à Oriximiná.
1.
2.
3.
4.
Nós éramos chamados para tudo quanto é canto,
em São Paulo, Brasília. Tinha reunião sempre, fui
no Maranhão, Pernambuco, Rio de Janeiro, vários
lugares do Brasil onde tem quilombo. Fui para contar a
experiência da titulação.
Daniel Souza, comunidade Jauari,
Terra Quilombola Erepecuru.
A TITULAÇÃO COLETIVA
Esse é o nosso modo de vida. Não temos só a casa e o
roçado, a gente mora aqui, pesca para um lado, tira
castanha em outro e assim vai, tudo coletivo.
Francisco Hugo de Souza, presidente da Cooperativa Mista
Extrativista dos Quilombolas do Município de Oriximiná
e morador da comunidade Jauari.
Essa questão da titulação é um marco histórico dentro
da nossa identidade quilombola, mostrar a convivência,
terra coletiva, tirar castanha junto e dividir o peixe.
Ajudou a fortalecer a identidade quilombola que o país
não reconhecia.
Daniel de Souza, comunidade Jauari,
Terra Quilombola Erepecuru.
A titulação de forma coletiva para as comunidades, e não
individualmente para cada família, foi a demanda dos quilombolas
em Oriximiná desde o início4. Se hoje está consagrado que as
terras quilombolas devem ser regularizadas por meio de um
título coletivo, em 1989, o cenário era outro.
Lei 6.165/1998 que dispõe sobre a legitimação de terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Decreto nº 3.572/1999 que regulamenta a Lei nº
6.165/1998, que dispõe sobre a legitimação de terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Instrução Normativa nº 2 do Instituto de Terras do Pará,
de 16 de novembro de 1999, que regulamenta a abertura, processamento e conclusão dos processos administrativos de legitimação de terras dos remanescentes
das comunidades dos quilombos.
Como o Programa Raízes instituído em 2000 pelo Decreto Estadual n° 4.054/2000.
Lembrando que no caso das terras indígenas a propriedade é da União, e os índios têm o direito de usufruto exclusivo.
Essa demanda foi, inclusive, o que motivou lideranças da ARQMO a convidar a Comissão Pró-Índio de São Paulo (que havia participado do Encontro Raízes
Negras na Comunidade Jauari, em 1989, para debater os impactos da hidroelétrica de Cachoeira Porteira prevista para a região) para contribuir com o processo
de luta pela titulação: imaginaram que com nossa experiência no tema da regularização dos territórios indígenas (coletivos) poderíamos ajudá-los a encontrar um
caminho para a titulação de suas terras.
197
A grande dificuldade que tivemos é que o Incra nunca
tinha dado o título para uma área coletiva, ainda era
uma dúvida. Inclusive o Incra chegou a dizer que nem
sabia como fazia.
Domingos Printes, comunidade Abuí,
Terra Quilombola Alto Trombetas.
Para superar a resistência do Incra, os quilombolas colocaram em
prática diversas estratégias destinadas a sensibilizar e pressionar
o governo, contando com o apoio da Paróquia de Oriximiná,
do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) e
da Comissão Pró-Índio de São Paulo – tendo sido o Ministério
Público Federal outro ator importante nesse processo. Aqui não
será possível detalhar esse percurso, mas adiante tratarei de uma
das estratégias adotadas: a autodemarcação do território.
Mas, se no primeiro momento a resistência à titulação coletiva
veio do Incra, no processo de regularização da Terra Trombetas
(entre 1996 e 1997) o “coletivo”5 foi alvo de contestação por
parte dos posseiros “individuais” que ocupavam áreas dentro
dos limites reivindicados pelos quilombolas e que contaram com
amplo apoio de políticos e empresários locais.
Quando iniciou o processo houve muito conflito, muito
mesmo por causa que pessoas que não eram quilombolas
e também alguns quilombolas que optaram por ser
individual. Quando se falava em titulação de terra
coletiva, eles entendiam que coletividade ia passar a ter
direito a tudo, até mesmo à esposa, às coisas de dentro
da casa. Foi difícil explicar porque do outro lado existia
uma associação que ficava diretamente com essas
pessoas. A gente não tinha dúvida – tudo depende de
a gente se unir e o outro lado não. Foi importante ser
coletivo e não individual.
carlos penteado
Nilzanira Melo de Souza, comunidade Jauari, Erepecuru.
5.
No uso de termos empregados pelos quilombolas utilizarei as aspas, como
“coletivo”, “enricar”, “associações das áreas”.
Segundo os quilombolas, muitos “individuais”, na sua maioria
originários de outras regiões, se instalaram no local com a sua
permissão. Mas na sua concepção, tal consentimento envolveria
apenas o direito de moradia e não o direito de uso exclusivo ou
de propriedade da terra. No entanto, não era essa a visão dos
posseiros nem tampouco do órgão fundiário que considerava
que a ocupação teria gerado direitos de posse. Como se verá a
seguir, a “propriedade coletiva” acabou sendo conformada na
articulação e negociação entre essas concepções distintas.
Para além dos interesses desse ou daquele pretenso proprietário,
a regularização coletiva representava uma ameaça mais ampla
para esses setores por impedir de forma definitiva o acesso a
extensas áreas de floresta, já que as propriedades coletivas não
podem ser vendidas, loteadas ou arrendadas, o que não ocorre
com a regularização individual. Assim também se compreende
por que a titulação das áreas menores (Boa Vista e Água Fria)
não suscitou qualquer reação local sobre o seu caráter coletivo.
Embora tenha sido durante o processo de regularização da Terra
Trombetas que se cristalizaram as denominações “coletivos”
e “individuais”, que até então não eram empregadas, as
divergências e tensões já existiam na relação dos quilombolas
coletivos com os posseiros individuais que, entre outros aspectos,
envolvia diferentes concepções sobre a forma adequada de
utilizar os recursos naturais6.
O TERRITÓRIO
E A PROPRIEDADE COLETIVA
Assim os quilombolas viam com preocupação o aumento dos
pastos, que traziam o desmatamento e prejudicavam as áreas
de extração de castanha. De fato, zoneamento realizado pela
Embrapa nas Terras Trombetas e Erepecuru em 1998 indicou
que as áreas exploradas pelos posseiros individuais (áreas de
classes capoeira, agropecuária e solo exposto) correspondiam à
época em torno do triplo ou quádruplo das observadas nas áreas
coletivas (ARQMO, CPI-SP e Embrapa, 2000: 32).
Vale chamar a atenção ainda para o amplo apoio que os
“individuais” receberam dos políticos, fazendeiros e empresários
locais, o que indica que a disputa em jogo não se restringia aos
interesses dos “pequenos” quilombolas e posseiros. A demanda
quilombola ameaçava os interesses de uma empresa madeireira
e outras pessoas influentes de Oriximiná que alegavam deter
títulos de propriedade incidentes nas áreas de castanhais das
Terras Trombetas e Erepecuru – documentos que se mostraram
sem valor jurídico no levantamento cartorial realizado pelo Incra
como parte dos procedimentos para titulação.
6.
Se por um lado a titulação coletiva atende a reivindicação dos
quilombolas, por outro lhes coloca novos desafios já que os
conceitos de “território” (na concepção nativa) e de “propriedade
coletiva” (enquanto um conceito jurídico) não são idênticos.
A titulação norteia-se por princípios e regras diversos daqueles
que conformam a territorialidade concebida e praticada por tais
grupos. Trata-se do mesmo tipo de distinção que Gallois descreve
para os povos indígenas:
Como expuseram vários estudos antropológicos,
a diferença entre “terra” e “território” remete a
distintas perspectivas e atores envolvidos no processo de
reconhecimento e demarcação de uma Terra Indígena.
A noção de “Terra Indígena” diz respeito ao processo
político-jurídico conduzido sob a égide do Estado,
enquanto a de “território” remete à construção e à
vivência, culturalmente variável, da relação entre uma
sociedade específica e sua base territorial.
Gallois, 2004: 39.
Dessa forma, a titulação colocou aos quilombolas de Oriximiná
a necessidade de lidar com uma lógica espacial distinta que
trouxe novos elementos como as fronteiras fixas e espacialmente
delimitadas e ainda a categoria das comunidades quilombolas
Para uma análise sobre as concepções coletivo e individual dos quilombolas, confira Sauma, 2013.
199
proprietárias – condição que, na lógica do conceito jurídico,
confere a esse conjunto um direito distinto de gestão e uso da
área frente aos demais quilombolas (não proprietários).
A etnografia do extrativismo da castanha-do-pará pelos
quilombolas do Rio Trombetas em elaboração pelo antropólogo
Igor Scaramuzzi ilustra aspectos da diferença entre as
concepções de territorialidade e da propriedade coletiva —
“terras quilombolas” como denomina o pesquisador:
[...] no que concerne ao extrativismo da castanha do
Pará, pode-se dizer que a forma como se organiza e
se realiza o trabalho, assim como a gestão e uso do
espaço no âmbito dessa atividade não estão atrelados
necessariamente à existência das comunidades nem
à divisão do território tradicional em diferentes
Terras Quilombolas.
Os espaços usados para a coleta nos castanhais
e pontas de castanha por uma pessoa, família,
grupo de pessoas ou comunidades não são de
direito de uso exclusivo e não estão circunscritos a
locais específicos de acordo com famílias, grupos
ou comunidades. Pessoas e famílias de diferentes
comunidades geograficamente distantes umas das
outras podem compartilhar os mesmos espaços para
a coleta de castanha. Igualmente, pessoas de diversas
comunidades que conformam uma Terra Quilombola
podem trabalhar não somente nos lugares dentro
dos limites dessa terra, mas também em lugares
localizados em diferentes Terras Quilombolas.
Scaramuzzi, 2013: 23-24.
A dinâmica de formação das comunidades dentro dos territórios
também opera em lógica diversa da “propriedade coletiva”,
que congela no título as comunidades proprietárias. Assim, por
exemplo, na Terra Quilombola Erepecuru após a titulação em
1998 foram criadas três novas comunidades. Fundadas depois
da regularização, elas não constam formalmente no título de
200
propriedade, mas são reconhecidas pelos quilombolas como
legítimas detentoras daquela “propriedade coletiva”.
O que se constata, portanto, é que a “propriedade coletiva” não é
simples espelho do “território coletivo”, mas articula concepções
diversas. Sua constituição envolve adaptações sociopolíticas no
âmbito das comunidades quilombolas e é influenciada por uma
gama variada de agentes externos (aliados e opositores), como
analisarei a seguir.
DEFININDO E NEGOCIANDO LIMITES
Foi um grande desafio a titulação, como entender de lei,
cobrar, ir para Brasília. Você sabe onde você vai pegar
comida, pegar a fruta, você sabe onde tem o remédio
para curar alguma coisa, mas não sabe no processo de
titulação. Chegou um ponto que fomos discutir o mapa
com o Incra em Santarém. Era difícil entender esta
questão do mapa, como colocar no papel era difícil.
Tivemos que aprender tudo – quantos quilômetros
– teoricamente olhando no mapa era muito difícil.
Até que acertamos.
Daniel Souza, comunidade Jauari.
Um importante passo na conformação da propriedade coletiva
foram as autodemarcações, processos por meio dos quais os
quilombolas de Oriximiná identificaram e acordaram entre
si diversas questões relativas à propriedade coletiva antes
da chegada do ator estatal. A autodemarcação foi uma das
estratégias adotadas para pressionar o governo a proceder a
titulação, mas acabou por cumprir também outro importante
papel: proporcionar aos quilombolas a oportunidade de refletir
sobre o território na lógica da propriedade coletiva.
Ao longo dos processos de autodemarcação foi possível consolidar
acordos comunitários para responder às novas questões que a
propriedade coletiva lhes colocava, tais como: quais comunidades
compartilhariam da mesma terra (decisão que toma em
consideração outros aspectos além de simples proximidade física
das comunidades7); que áreas comporiam essa propriedade (nem
sempre estava claro ou era consenso, por exemplo, quais castanhais
deveriam ser incluídos, ou por quais valeria priorizar e brigar pela
inclusão); os limites (inclusive, por vezes, acordando tais limites
com os quilombolas de terras vizinhas) e ainda as regras para o
estatuto da associação proprietária.
A Comissão Pró-Índio de São Paulo acompanhou e apoiou a
autoidentificação de sete territórios quilombolas em Oriximiná,
atividade que se iniciou em 1992 com a autodemarcação da Terra
Boa Vista e prosseguiu até o início dos anos 2000. Os processos de
autoidentificação incluíram reuniões nas comunidades, estudos
das bases cartográficas, vistorias nas matas para identificar
os possíveis limites, treinamento para uso de teodolito e GPS,
levantamento dos moradores, tendo em média a duração de 12 a
18 meses cada um.
A autoidentificação se materializou por meio dos mutirões para
marcação de limites através da abertura de picos (autodemarcação
realizada nos territórios Boa Vista, Água Fria e Trombetas) ou do
levantamento dos limites com o GPS (nos territórios Erepecuru,
Alto Trombetas, Jamari/Último Quilombo e Moura) e envolveu
ainda a colocação de placas indicativas em diferentes pontos
do território. Resultou também em mapas encaminhados pela
ARQMO aos organismos governamentais como subsídio à
reivindicação pela titulação.
Construída internamente a proposta da “propriedade coletiva”,
deu-se outra etapa no processo de sua definição que envolveu
o diálogo e, muitas vezes, a disputa com os agentes externos.
O território acordado e identificado pelos quilombolas orientou
seu diálogo com o Poder Público e seu posicionamento nas
disputas com outros atores locais. Mas, na maior parte dos casos,
7.
a proposta inicial dos quilombolas não correspondeu exatamente
à área regularizada.
As negociações e ajustes foram de ordem diversa. No caso de
Boa Vista, o primeiro ponto de disputa foi a titulação de forma
coletiva, uma vez que o Incra planejava a titulação em lotes
individuais, o que não foi aceito pelos quilombolas.
No dia 10 de outubro de 1992, a Comunidade da Boa
Vista, por decisão própria, deu início a autodemarcação
de suas terras. Nos dias 17 a 20 de novembro de 1992,
com o apoio da diretoria da ARQMO e das outras
comunidades remanescentes, foi organizado um puxirum
para concluir os trabalhos de abertura dos picos. Essa foi
a primeira comunidade a realizar a autodemarcação.
Como nós negros já estamos organizados e trabalhando
na autodemarcação, a Mineração Rio do Norte se
preocupou e se pôs de boazinha no caso. E, assim,
chamou o Incra de Santarém para titular as terras da
Boa Vista, mas em lotes individuais. Como a cultura
dos remanescentes é por terras coletivas, fez que nós não
aceitássemos a proposta em lotes.
José Dos Santos, Antônio César Pereira de Jesus e
Josinaldo dos Santos, moradores da comunidade Boa Vista.
In: ARQMO: 1994.
Superada essa questão, tendo o Incra concordado com a titulação
coletiva, negociação de outra ordem surgiu. O Incra verificou
que parte da área requerida pela Comunidade Boa Vista estava
inserida dentro dos limites da Floresta Nacional Saracá-Taquera,
unidade de conservação federal. Dessa forma, o órgão propôs à
comunidade a troca dessa porção do território por outra área de
igual dimensão contígua, mas incidente em terras devolutas da
União. A comunidade acatou a proposição diante da avaliação
Assim houve um caso em que as lideranças quilombolas davam como certo que uma comunidade aceitaria fazer parte de determinada terra coletiva (pela
proximidade física, pelas relações de parentesco e uso compartilhado dos castanhais), mas seus moradores (quilombolas) optaram pela titulação individual. Já em
outra situação, existe a demanda de uma comunidade por integrar uma terra, mas os moradores das demais comunidades resistiam porque consideram que essa
comunidade tem um jeito diferente de usar o território, e não cuida do território como deveria.
201
de que não haveria um prejuízo em termos de recursos naturais,
considerando principalmente que essa decisão permitiria agilizar
o andamento do processo de titulação que veio a ser concluído
em novembro 1995.
Já nos territórios Trombetas e Erepecuru as mudanças de
limites decorreram de disputas e negociações com posseiros
(“individuais”) apoiados por políticos e empresários locais.
A área identificada inicialmente pelos quilombolas para a Terra
Trombetas somava 108 mil hectares dos quais foram titulados
80.877,0941 hectares.
A alteração de limites visou à exclusão dos lotes e centros
comunitários “individuais” e foi resultado de longa e tensa
negociação que envolveu os quilombolas, os “individuais”,
o Incra, o Ministério Público Federal e foi acompanhada pela
Comissão Pró-Índio e a Paróquia de Oriximiná. A quantidade de
mapas elaborados para a Terra Quilombola Trombetas é ilustrativa
da ordem de dificuldade encontrada nessas negociações.
Foram confeccionadas 13 versões por diferentes agentes – até
mesmo a Câmara de Vereadores de Oriximiná apresentou a sua
proposição de limites para essa terra quilombola.
No transcorrer do processo, os quilombolas da Terra Trombetas
tiveram que rever sua proposta inicial para a “propriedade
coletiva”. Avaliando que as principais áreas de extração de
castanha seriam preservadas, e considerando que a insistência
na manutenção da proposta original provocaria um acirramento
do conflito comprometendo o andamento do processo de titulação,
os quilombolas acabaram por concordar com a exclusão da área
ocupada pelos “individuais”.
No processo de regularização da Terra Erepecuru, iniciado
em 1998, o mesmo procedimento foi adotado seguindo o
precedente firmado no ano anterior com a titulação da Terra
8.
9.
202
Trombetas. Assim, foi acordada a exclusão dos limites da
propriedade coletiva Erepecuru dos lotes dos “individuais”8
e também da comunidade quilombola Ariramba que, naquele
momento, havia optado pela titulação individual – decisão que
foi revista anos depois e atualmente tramita no Incra e no Iterpa
o processo para titulação coletiva do Ariramba (mas destacado
da terra Erepecuru).
OS PROPRIETÁRIOS
DA PROPRIEDADE COLETIVA –
AS “ASSOCIAÇÕES DAS ÁREAS”
Outro fato novo suscitado pela regularização fundiária foi o
surgimento da associação quilombola detentora da “propriedade
coletiva”. A emissão do título em nome de associação
formalmente constituída foi a fórmula encontrada para contornar
o fato das comunidades não terem personalidade jurídica e, por
essa razão, não poderem, segundo a legislação brasileira, serem
proprietárias. Essa solução foi adotada já na regularização da
Terra Boa Vista, inaugurando um procedimento que se tornou
padrão nas titulações das terras quilombolas em todo o Brasil.
Atualmente, cada terra quilombola em Oriximiná (titulada ou em
processo de regularização) conta com sua associação criada para
viabilizar a titulação – organizações chamadas pelos quilombolas
de “associações das áreas”. As “associações das áreas” têm
entre os seus objetivos estatutários9, “administrar as terras
ocupadas e de propriedade” das comunidades; “representar os
interesses das comunidades” e “incentivar o desenvolvimento
das comunidades”. Os estatutos das “associações das áreas”
foram discutidos e aprovados pelos quilombolas de cada terra
em processo coordenado pela ARQMO e que contou com o apoio
da Comissão Pró-Índio de São Paulo.
Vale observar que em 2013, constatou-se um erro técnico do Incra no procedimento de regularização da Terra Erepecuru que resultou na não exclusão da área
referente dos lotes individuais no cálculo da dimensão da terra quilombola. Dessa forma, o título da TQ Erepecuru incluiu os lotes individuais. O caso está sendo
acompanhado pelo Ministério Público que faz a mediação entre os diferentes envolvidos em busca de uma solução para o problema.
Os estatutos das diferentes associações das áreas seguem o mesmo padrão de conteúdo.
carlos penteado
Os estatutos tiveram que se adequar à legislação que regulamenta
as associações sem fins lucrativos de forma que várias de suas
cláusulas simplesmente atendem às exigências das normas
legais. Mas algumas cláusulas refletem as preocupações e
acordos dos quilombolas sobre o uso da propriedade coletiva,
como a determinação que “todos os sócios têm direito de praticar
as atividades de agricultura, caça, pesca e coleta, desde que
de forma não predatória”. Ou especialmente as cláusulas que
estabelecem que “as áreas de moradia e de trabalho de cada
associado serão respeitadas mesmo em caso de sua ausência” e
que as terras “poderão ser utilizadas por integrantes de outras
comunidades remanescentes de quilombos desde que autorizados
pela Associação e que respeitem o presente Estatuto”.
De qualquer forma, o foco das preocupações no processo de
discussão dos estatutos não era a futura gestão da propriedade
coletiva, mas muito mais o cumprimento de mais um trâmite
da “burocracia” da titulação. Até hoje, o estatuto, cujo texto é
pouco conhecido da maioria dos quilombolas, não opera como
referência no cotidiano para orientar o uso do espaço coletivo ou
a relação entre os moradores – as poucas ocasiões em que vi o
mesmo sendo acionado como referência envolviam a relação com
atores externos, como no caso dos contratos com a madeireira
que tratarei adiante.
Não me parece que no seu processo de constituição as “associações
das áreas” tenham sido vislumbradas pelos quilombolas como
um instrumento de gestão da futura “propriedade coletiva” e
nem tampouco como uma instância de representação política10,
ainda que assim conste em seus estatutos. Mas, sendo as
proprietárias oficiais das terras, as “associações das áreas” vêm
sendo acionadas por uma gama diversa de atores externos para
responder por diferentes demandas relacionadas à propriedade
coletiva, tais como solução de conflitos fundiários, acordos
comerciais envolvendo os recursos naturais dos territórios e,
10.
204
até mesmo, como instância de representação em processos de
consulta livre, prévia e informada nos termos da Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho.
É interessante comparar o processo de instituição das “associações
das áreas” com o da criação das “comunidades” (comunidades
eclesiais de base) incentivada pelos padres do Verbo Divino da
Igreja Católica na década de 1980. Antes da atuação da Igreja,
dizem os quilombolas, não existia comunidade, mas “somente
a localidade”. Scaramuzzi analisa o papel do termo/categoria
comunidade atualmente:
Pode-se dizer que atualmente “comunidade” se
configura uma unidade política, principalmente nas
relações com aqueles de “fora”. Em alguns contextos
de relações sociais internas também é concebida
atualmente como uma unidade sociológica. [...]
Além da constituição de um novo tipo de unidade política
no contexto local, o termo/categoria “comunidade”,
mais do que para se referir a uma forma de organização
social ou significar uma unidade sociológica distinta
e absoluta que habita um espaço delimitado, é, como
já salientado, usado principalmente para circunscrever
àquilo que concerne ao âmbito das relações com o estado
e alguns segmentos da sociedade civil. Inclui-se nesse
espectro de relações bens materiais e objetos como o
barco comunitário e o motor de luz movido a óleo diesel
ou gasolina; a estrutura física dos centros comunitários
como o posto de saúde, escola e igreja e os empregos
ligados a educação, transporte e saúde. Comunidade
também é termo usado para designar o espaço, também
chamado de centro comunitário, em que se localizam
as construções coletivas como a igreja, escola, barraco
para as reuniões e campo de futebol. [...]
Com exceção, talvez, da associação de Cachoeira Porteira, cujo processo de formação não acompanhamos e parece ter peculiaridades entre elas a de ser constituída
desde início com um caráter de representação da comunidade (que não é filiada à ARQMO).
Embora localmente não se relacione o termo/categoria
“comunidade” a qualquer mudança na forma de
organização social dos habitantes dos lagos e da
margem do rio Trombetas, não se pode dizer que a
forma de organização política e o aparato burocrático
e material que acompanha sua existência não tenham
interferido no modo de vida e no modo de ocupação
territorial das pessoas. Mesmo sendo corriqueiro escutar
que o jeito de morar e se organizar das pessoas não tenha
mudado de forma significativa no passar do tempo,
pode-se seguramente dizer que são os mecanismos da
“comunidade” que auxiliam na gestão dos espaços,
pessoas, daquilo que já existia anteriormente antes
da chegada da igreja. Um exemplo interessante é a
gestão sobre o estabelecimento de moradia. Como já
comentado, é comum a mudança de pessoas de um
lugar para outro. Atualmente, a possibilidade de se
mudar de uma comunidade para outra é, caso não se
tenha parentes próximos no lugar em que se quer morar,
discutida e avaliada nas assembleias comunitárias.
De mesmo modo, cabe aos representantes comunitários
conduzir a negociação de verbas e empregos com a
prefeitura; a organização de missas, atividades e festas
religiosas; organização de eventos de esporte e lazer; a
organização de trabalhos coletivos.
Scaramuzzi, idem: 21-23.
De forma semelhante, as “associações das áreas”, criadas a
partir do final da década 1990, vêm se conformando em mais um
mecanismo de gestão dos espaços e das pessoas no âmbito da
propriedade coletiva. Vale notar que, no caso das propriedades
coletivas que compreendem diversas comunidades, a “associação
da área” é a única instância formal de representação do conjunto
das comunidades proprietárias.
Em grande medida, as “comunidades” e as “associações das
áreas” atuam em âmbitos diferentes, estando as primeiras
muito mais presentes na organização do cotidiano da vida das
pessoas, em situações como as descritas acima por Scaramuzzi.
Mas a importância da “associação da área” na relação dos
quilombolas com uma série de agentes externos vem crescendo.
A propriedade confere aos quilombolas o poder de adotar novas
modalidades de exploração dos recursos naturais de suas terras
e as “associações das áreas” são a instância formal para tomada
de tais decisões – uma das mudanças suscitadas pela titulação.
PROPRIEDADE COLETIVA:
O QUE MUDA APÓS A TITULAÇÃO?
Quais mudanças nas relações de apropriação do espaço são
suscitadas pela propriedade coletiva? Essa é uma questão ainda
a ser mais bem compreendida e aqui apenas apresento uma
provocação inicial com a qual finalizo este artigo.
Em grande medida, pode-se dizer que a vida cotidiana segue seu
curso, sem grandes mudanças. Em diversos aspectos, não me
parece que a titulação tenha trazido inovações nas práticas que
regulam o uso do espaço, como, por exemplo, no caso já citado do
extrativismo da castanha que se organiza e se utiliza do espaço
sem atrelamento à lógica da divisão do território tradicional em
diferentes propriedades quilombolas.
Mas o que nos dizem os quilombolas sobre “o que mudou
após a titulação”? A segurança de permanência na terra e o
empoderamento frente aos demais atores (o “respeito”) são
frequentemente citados por eles como mudanças decorrentes da
regularização fundiária.
A gente se sentiu mais seguro com o território titulado.
Deu a garantia para as famílias que eles eram os donos,
que ninguém podia expulsar as famílias. A gente passou
a ser mais respeitado e a comunidade acabou se unindo
mais. [...] Com o título a gente consegue conversar com
governo, que passou a investir no território.
Domingos Printes, Comunidade Abuí.
205
Quem não tem título é menos respeitado. O título dá
respeito principalmente para dialogar com os órgãos
e autoridades.
Francisco Hugo de Souza, comunidade Jauari.
Ajudou a combater até o preconceito, como tinha muita
discriminação, agora todos sabem a nossa identidade
e respeitam mais.
Pedro Paulo Viana de Almeida, comunidade Jauari.
A titulação é percebida pelos quilombolas como um fato
que os reposiciona na relação com os atores externos. E um
desdobramento positivo dessa nova situação recorrentemente
mencionado é o maior acesso a políticas públicas.
Com o título nós começamos a ter acesso às políticas
públicas. Tenho meus filhos todos alfabetizados.
Daniel Souza, comunidade Jauari.
Outra importante mudança observada é o surgimento de um novo
ator: as “empresas” interessadas nos recursos da propriedade
coletiva (em “fazer negócio”).
Uma das coisas que chamou mais atenção também foi
das empresas. Depois que ficamos donos tem turista
querendo fazer negócio, propostas de várias madeireiras
– é uma área muita rica.
Domingos Printes, comunidade Abuí.
Na nova condição de propriedade coletiva, os recursos naturais das
terras quilombolas podem ser explorados com maior autonomia
e de novas formas. Exploração madeireira, comercialização
de crédito de carbono11 e turismo para pesca esportiva são as
propostas de parcerias comerciais que se apresentaram até o
momento. Tais propostas são percebidas por alguns quilombolas
como oportunidades e por outros como “ameaças”.
11.
206
Para os quilombolas que têm uma avaliação positiva, trata-se de
oportunidades de conseguir “recursos financeiros”. Já aqueles
que se opõem argumentam que tais atividades ameaçam o
extrativismo da castanha e a atividade pesqueira, e desconfiam
das promessas das empresas. As diferenças de opiniões vêm
dividindo as comunidades, as “associações das áreas” e as
entidades quilombolas de âmbito municipal (ARQMO e a
Cooperativa do Quilombo – CEQMO).
Foi assim, em clima de opiniões divididas, que os acordos para
exploração madeireira foram firmados pelas “associações das
áreas” de Trombetas e Erepecuru em início de 2011. Na ocasião
da assinatura do acordo, já fazia cerca de cinco anos que
diferentes empresas procuravam insistentemente os quilombolas
das propriedades coletivas Trombetas e Erepecuru em busca
de parcerias comerciais – e também os da Terra Alto Trombetas
(parcialmente titulada), que rejeitaram as propostas.
Dentre as empresas que se apresentaram aos quilombolas,
havia algumas consolidadas no mercado e que contavam com o
“selo verde” de certificação FSC – Forest Stewardship Council.
Mas, ao final, o acordo foi firmado com uma empresa pouco
conhecida, a Construtora Medeiros Ambiental Ltda., apresentada
aos quilombolas por meio de políticos locais.
Os contratos firmados com a empresa têm vigência de cinco
anos e estabelecem uma parceria para elaboração, exploração e
execução de projeto de manejo florestal sustentável e determinam
que 50% do volume extraído será repassado para as associações e
os outros 50% para a empresa como “remuneração pelos serviços
realizados”. Os contratos preveem também o compromisso das
associações quilombolas venderem os seus 50% do volume de
madeira extraída para a Construtora Medeiros por valores fixos
predeterminados, sem previsão de índice para reajuste ao longo
dos cinco anos de vigência da parceria (Andrade, 2011).
Em 2012, os quilombolas foram procurados pela empresa Anthrotect, para desenvolvimento de projeto de pagamento por serviços ambientais, iniciativa que teve
o acompanhamento do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio). Essa empresa da Califórnia (EUA) pretendia desenvolver projeto de pagamentos por
serviços ambientais nos territórios quilombolas de Oriximiná à semelhança do que empreende com o Consejo Comunitario Mayor De Comunidades Negras De La
Cuenca Del Rio Tolo Y Zona Costera Sur/COCOMASUR na Colômbia. Até o momento, não foi formalizado acordo com a empresa.
A formalização do acordo com a madeireira dividiu a opinião dos
quilombolas das duas propriedades coletivas. Mas a expectativa
de ver concretizada a promessa de remunerações mensais por
família de R$ 3.000,00 na Terra Erepecuru e R$ 1.804,43 na
Terra Trombetas ao longo dos cinco anos de vigência do contrato
foi a que prevaleceu.
Na ocasião em que se discutia o acordo, diversos parceiros dos
quilombolas – entre eles a Comissão Pró-Índio de São Paulo –
alertaram para os riscos envolvidos no contrato, e também que
a promessa de retorno financeiro não estava calcada em bases
realistas. De fato, o empreendimento não alcançou as cifras
anunciadas. Transcorridos quatro anos da assinatura dos acordos,
o montante total recebido por cada família esteve muito abaixo
do esperado. Entre 2011 e 2014, cada família recebeu apenas a
quantia próxima à prometida como remuneração mensal.
Não se trata aqui de julgar a decisão, mas procurar compreendê-la
no contexto das novas expectativas suscitadas pela titulação para
os quilombolas proprietários. Os contratos com as madeireiras
parecem estar relacionados com o desejo de “melhorar de
vida” entendido como “enricar” (maior acesso ao dinheiro)
– expectativa que várias lideranças quilombolas vinculam
diretamente com a conquista da titulação.
A mudança nas comunidades [depois do título], as
pessoas querem melhorar de vida, ganhar mais dinheiro.
Nós consegue viver lá sem dinheiro. Riqueza é não ter
que comprar o almoço e a janta e muitos não têm noção
disso. A floresta preservada é muita riqueza.
Daniel Souza, comunidade Jauari.
Na perspectiva do “enricar”, o maior acesso aos serviços
básicos e a programas sociais – que é recorrentemente
mencionado pelos quilombolas como um desdobramento
positivo da titulação – não atende ao desejo de “melhorar
de vida”. Tampouco o crescente acesso a bens de consumo
experimentado nos últimos 15 anos parece corresponder
plenamente à “melhora de vida” desejada.
Os contratos com a madeireira foram firmados em um momento
em que muitos quilombolas questionavam as possibilidades
da propriedade coletiva virar “riqueza” com frases como:
“se fala muito da riqueza da floresta, mas ela não vira dinheiro
no bolso do quilombola”.
Mas se a “riqueza” da floresta sempre gerou renda para os
quilombolas, há de se perguntar o que ocorre para que, em
dado momento, se afirme que ela “não vira dinheiro no bolso”?
Me parece que tal mudança está relacionada à conversão do
território em propriedade.
Na propriedade coletiva, a “riqueza da floresta” ganha uma nova
dimensão: potencial de virar “negócio”. O “negócio” coloca novos
paradigmas na exploração do território/propriedade. A “riqueza”
da propriedade coletiva não é mais apenas o resultado do trabalho
de cada quilombola, de seu conhecimento e da sua relação com a
natureza, de suas vivências no território vinculadas às suas relações
de parentesco e compadrio. A “floresta” passa a ser uma mercadoria
que pode ser negociada por meio da “associação da área” e pela
qual se espera patamares mais altos de remuneração (“enricar”).
Um dos desafios dos quilombolas proprietários no momento
atual parece ser justamente encontrar e acordar internamente
as formas de lidar com essa nova maneira de gerar “riqueza”
que, como transparece nas discussões comunitárias, é ao mesmo
tempo uma potencialidade e uma ameaça.
Não é um debate simples pois envolve conciliar diferentes
percepções sobre o futuro que se deseja – sobre o que é “melhorar
de vida” – e sobre as formas mais adequadas de explorar a “riqueza”
da propriedade coletiva. É um processo pelo qual os quilombolas
proprietários refletem e consolidam acordos internos sobre como
assumir a nova “responsabilidade” trazida pela titulação.
Depois que lutamos para receber o título de nossas
terras, passamos a ter a responsabilidade dentro
do nosso território.
Altino Regis de Melo,
comunidade Serrinha.
207
carlos penteado
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www.cpisp.org.br/htm/leis/
www.quilombo.org.br/
209
carlos penteado
ENTRE URBANIZAÇÃO E
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA:
UMA GEOGRAFIA
DOS NOVOS MODOS
DE VIDA QUILOMBOLAS
DE ORIXIMINÁ
Stéphanie Nasuti, Ludivine Eloy,
François-Michel Le Tourneau e Isabelle Tritsch
INTRODUÇÃO
A partir dos anos 1970-1980, o vale do Trombetas passou
por uma reconfiguração importante em termos territoriais
com a chegada de um complexo minerador, a demarcação de
diversos tipos de unidades de conservação, mas também com a
regularização fundiária de territórios devolutos às populações
locais, sob a forma de territórios indígenas, quilombolas e
assentamentos agroextrativistas.
Esse fenômeno de reconfiguração social e fundiária foi
acompanhado de um processo de urbanização, expresso na
expansão dos limites da cidade de Oriximiná, na estruturação
de infraestruturas e serviços de base, bem como no crescimento
da mobilidade das populações das zonas rurais do município em
direção ao centro urbano. Isso levou igualmente a uma expansão
dos mercados locais (madeira, carne, minério), além de uma
reorganização das cadeias comerciais dos principais recursos
naturais, como a castanha-do-pará.
No caso dos territórios quilombolas, a atribuição da terra sob a
forma de territórios coletivos tem fortes implicações em termos de
acesso e gestão dos recursos, pois o princípio de indivisibilidade
da terra, ao mesmo tempo que protege o território da partição,
envolve a responsabilidade coletiva dos moradores. Mas, hoje,
além das pressões ambientais costumeiras, esses dispositivos
fundiários devem lidar com a evolução das práticas territoriais
da sua população.
Tradicionalmente, os modos de vida eram dispersos na área
rural, entre diversos espaços – agrícolas, de residência e de
coleta –, o que justificou a atribuição de territórios muito
extensos aos quilombolas de Oriximiná. Hoje, no entanto, essas
territorialidades tradicionais se reconfiguram, já que, cada vez
mais, os sistemas de atividades e os espaços de vida se distribuem
entre áreas urbanas e rurais, graças a uma crescente circulação
entre a cidade e a floresta.
Esse fenômeno de intensificação das mobilidades ruraisurbanas, que se observa em toda a região amazônica
212
(Eloy et al., 2014; Alexiades, 2009), associa-se geralmente a
uma diversificação econômica da renda doméstica das famílias.
Porém, a literatura não conseguiu ainda oferecer uma visão
clara das consequências desses fenômenos sobre as dinâmicas
ambientais, sociais e agrícolas. Os estudos são consistentes
para estabelecer ligações entre a mobilidade, a urbanização
e as mudanças nas práticas de produção em áreas rurais de
origem. No entanto, os efeitos descritos são contraditórios e
variam muito entre regiões e famílias.
De fato, as mobilidades rurais-urbanas são frequentemente
entendidas como uma ameaça aos sistemas tradicionais de
gestão de recursos, em função das mudanças demográficas
que as mobilidades ocasionam, das mudanças técnicas e,
principalmente, da aproximação do mercado que os centros
urbanos proporcionam. Em outros casos, estas mudanças podem
provocar uma desestruturação das instituições tradicionais
(Gray, 2009), um esgotamento dos recursos naturais (Grau et al.,
2008), ou uma “desagrarização” das comunidades camponesas
(Steward, 2007). A realização de uma ou outra tendência está
ligada à forma como as familias vão usar a renda urbana, que
tanto pode estimular a atividade agrícola, caso seja reinvestida
na produção, quanto pode, ao contrário, inibi-la e substituí-la.
Como essa importante – e crescente – participação do meio
urbano nos modos de vida interage com o uso dos espaços e
recursos rurais nas comunidades quilombolas de Oriximiná?
Pode ser a prefiguração de uma ruptura com o modo de vida
florestal e comunitário? Em um contexto onde a pressão sobre os
recursos aumenta, como essas populações enfrentam o desafio da
conservação dos seus territórios?
Para responder a essas interrogações. Em um primeiro momento,
analisaremos a configuração e o impacto das mobilidades entre
a comunidade e a cidade. Na sequência, tentaremos entender
como estas circulações interferem nos sistemas produtivos
desenvolvidos nas comunidades.
A análise proposta se baseia em pesquisas de campo
realizadas principalmente nas comunidades de Abuí (território
Alto Trombetas) e Jarauacá (território Trombetas), entre 2010 e
2013, no âmbito do projeto USART1, e durante diversas atividades
realizadas nas comunidades tradicionais de Oriximiná nesse
período. Cerca de 150 famílias foram entrevistadas sobre as suas
atividades e locais de produção, as suas relações com a cidade, a
sua composição de renda e as suas perspectivas de futuro.
ESTREITAMENTO DAS RELAÇÕES ENTRE
FLORESTA E CIDADE
Tradicionalmente, na Amazônia, os modos de vida se
caracterizam por uma intensa circulação dos indivíduos.
Os frequentes deslocamentos são associados a uma grande
dispersão das residências da unidade familiar, em função
das atividades de extrativismo e de exploração dos recursos
sazonais (Carneiro, 1983; Dufour, 1990; Lizot, 1996; Meira,
1997). Todavia, a partir do início dos anos 1980, a importância
dos deslocamentos entre áreas rurais tendeu a diminuir
frente ao desenvolvimento das mobilidades2 entre campo e
cidade. Com efeito, a oferta de serviços e empregos reforçou
a atratividade dos centros urbanos, cuja taxa de urbanização
cresceu – especialmente nas cidades pequenas e médias –
à medida que os sistemas residenciais e as mobilidades se
reorganizavam ao redor das cidades (Eloy & Lasmar, 2012;
Kohler et al., 2011). No município de Oriximiná, as mobilidades
urbanas se organizavam principalmente em função do
crescimento demográfico e territorial da cidade de Oriximiná,
onde a população urbana passou de 29.171 pessoas, em 2000,
para 40.147 pessoas, em 2010 (IBGE, 2000; 2010). Esse
crescimento está em parte ligado à incorporação, pela cidade,
1.
2.
de áreas rurais, mas também, em grande parte, às ocupações
e loteamentos irregulares que se multiplicaram nas áreas
periféricas a partir do final dos anos 1990 (Oriximiná, 2010).
Mobilidades entre floresta e cidade
Hoje, para a maioria dos indivíduos das comunidades quilombolas
de Oriximiná, os deslocamentos na cidade são mais frequentes
que os deslocamentos entre as comunidades. A viagem tem uma
função predominantemente econômica e, como principal destino,
Oriximiná. Um levantamento realizado nas comunidades de Abuí
(TQ Alto Trombetas) e Jarauacá (TQ Trombetas) mostra que 71%
dos entrevistados de Abuí e 80% de Jarauacá afirmam ir para a
cidade pelo menos uma vez por mês.
Essa frequência de deslocamentos se explica pelo acesso
crescente aos benefícios sociais (aposentadoria, Bolsa Família),
pela comercialização dos recursos naturais, mas, também,
por uma maior facilidade de acesso aos empregos urbanos,
principalmente na construção civil, para os homens, e, nos postos
de empregadas domésticas, para as mulheres. Assim, apesar da
delimitação de territórios extensos , os quilombolas intensificam
a sua mobilidade para as cidades. Frente à desvalorização dos
produtos do extrativismo, os moradores buscam diversificar as
suas fontes de renda e, por isso, apostam em novas alianças
institucionais e comerciais, que exigem um contato regular
com o centro urbano. De fato, a recente reconfiguração social e
fundiária contribuiu para ampliar tais oportunidades, pois mexeu
com o sistema de comercialização dos recursos naturais mais
significativos. Assim, após o declínio do sistema de exploração
paternalista dominado pelos “patrões”, a nova segurança
“Usos, conhecimentos e representações do espaço em populações tradicionais da Amazônia brasileira”, financiado pela Agência Nacional da Pesquisa (França),
e coordenado pelo Centro de Pesquisa e de Documentação das Américas (CREDA/França). Esse projeto almejou apreender, de forma multidisciplinar, alguns
aspectos da relação que populações amazônicas rurais “tradicionais” mantêm com o espaço.
O termo mobilidade corresponde, neste texto, aos deslocamentos temporários, sem mudança de residência principal (para trabalho, lazer etc.), ao contrário da
“migração” que designa “o movimento de pessoas para estabelecer uma nova residência” (Domenach & Picouet, 1987: 469). Cabe destacar, no entanto, que a
migração como mudança de residência pode seguir um padrão reversível e circular ao longo da trajetória do indivíduo (Cortes & Faret, 2009). Neste artigo, usamos
mobilidade para designar os deslocamentos de mais de 24 horas.
213
fundiária e o contato mais direto com os comerciantes urbanos
trouxeram novas oportunidades econômicas, relacionadas
com a extração de madeira, a criação de gado de sociedade
e a pesca comercial. Essas atividades representam hoje as
principais perspectivas econômicas de crescimento, tanto para
os quilombolas quanto para os seus vizinhos.
Dispersão geográfica das famílias
Em paralelo aos deslocamentos de curta duração, a cidade se
torna, cada vez mais, um lugar de vida para os moradores das
comunidades. Por exemplo, é comum que as mulheres se filiem
à associação local e matriculem os seus filhos mais jovens na
escola da comunidade, enquanto os mais velhos são enviados
para uma “casa de família” na cidade.
Como em outras regiões da Amazônia (Stoian, 2003; Eloy &
Brondizio & Pateo, 2014), este tipo de estratégia permite que
as famílias desfrutem, ao mesmo tempo, do potencial oferecido
pelas zonas rurais e pelas áreas urbanas. A família pode manter
uma roça, garantir os seus direitos de acesso sobre as áreas
de pesca e continuar recebendo os benefícios específicos da
população rural (salário maternidade, aposentadoria rural etc.).
Em concomitância, vários membros da unidade familiar se
deslocam de forma temporária ou semipermanente para trabalhar
na cidade, acessar os serviços de educação e saúde, retornando
para a comunidade com uma frequência variável.
Estratégias familiares para acessar os serviços de educação na cidade
A escolarização na cidade pode acontecer de duas maneiras diferentes. Na primeira, as crianças são enviadas sozinhas
para a cidade, por vezes, muito jovens, graças à mobilização das redes locais de conhecimento ou de parentesco. Nos outros
casos, até agora menos observados, as mães de família lançam mão de estratégias para acompanhar os filhos, prevenindo-se,
dessa maneira, contra a evasão escolar. Elas alugam (ou mesmo adquirem) uma casa na cidade, encontram um emprego e
permanecem o tempo da escolarização, voltando para a comunidade de origem durante as férias escolares.
Foi com esse objetivo que P., 40 anos, instalou-se na cidade com as suas três filhas, de 10, 13 e 15 anos. Ela, de início, foi
alojada pela madrasta. Enquanto fazia faxina durante o dia e tinha aulas à noite, as filha frequentavam a escola diurna.
Depois de um ano e meio, com a vinda do marido que encontrara um emprego numa pequena usina local, a família conseguiu
alugar uma casa na periferia. Há dois anos, eles acolhem dois afilhados de P., de 17 e de 22 anos, a quem os pais enviam
todo mês um saco de farinha de mandioca e legumes frescos para ajudar nas despesas. Em troca da hospedagem, os pais dos
afilhados cuidam da roça de P. na comunidade.
Em outras situações, meninas são enviadas sozinhas para a cidade. Assim R. foi hospedada na “casa de família” de uma
“conhecida”, em troca de trabalhos domésticos. Como ela não tinha boas notas na escola, a mãe não hesitou quando surgiu
essa oportunidade, pensando que a filha poderia recuperar tal atraso. Já a S. foi enviada com 10 anos de idade para a casa de
uma velha prima distante, a quem “fazia companhia” durante do dia e, à noite, frequentava a escola. Ela fugiu depois de dois
anos, porque tinha medo do filho mais velho da prima. Além da carga de trabalho, estas jovens são frequentemente expostas
a violências e humilhações diversas, inclusive sexuais.
214
Assim, tal como evidenciado por um dos habitantes de Jarauacá,
“aqui, é normal ter várias casas. É mais difícil a gente mesmo ser
o dono, mas às vezes nem precisa, a gente fica com a família”.
Nesse sentido, os pais que vieram morar na cidade depois de se
aposentarem servem muitas vezes de ponto focal para o resto da
família. É comum que essas residências sejam localizadas nos
bairros periféricos da cidade, pois, muitas vezes, foi aproveitando
a oportunidade das “invasões”, antigas ou recentes, que os
moradores das comunidades conseguiram adquirir um lote para
construir uma residência urbana.
Por outro lado, o nosso interlocutor explica que, da mesma
forma que é difícil viver em áreas rurais sem manter contatos
na cidade, “aquele que vive na cidade sem ter uma roça no
rio vai passar necessidade”. É por isso que este morador, que
já mora em Oriximiná há dois anos, entendeu-se com um
irmão para contribuir com as atividades agrícolas da família e
periodicamente retorna à comunidade para ajudar no preparo da
terra e participar da colheita.
Estes exemplos mostram que, para os quilombolas de
Oriximiná, é coisa comum, para não dizer trivial, dispor de
diversas residências.
A casa na cidade: exemplo
de estratégia familiar
Os pais de C. conseguiram comprar uma casa em
Oriximiná graças ao dinheiro da aposentadoria. Nela
habitam de modo permanente, desde que B, o patriarca,
começou a ter sérios problemas de saúde. C. se instala na
casa dos pais de tempos em tempos, quando precisa ficar
um período na cidade, sobretudo quando está empregado
temporariamente. Uma das suas sobrinhas mora de modo
permanente com os avôs, o que lhe permite, em troca,
continuar os estudos em Oriximiná.
3.
A construção de territórios multipolares
para articular floresta e cidade
Assim, a conexão com as áreas urbanas, embora exista desde muito
tempo, tende a se banalizar, em função de uma maior facilidade
de transporte, da aparição de novas oportunidades monetárias,
assim como da influência dos centros urbanos (regionais e
nacionais) sobre a dispersão da rede familiar, notadamente para
o acesso ao mercado e serviços de base (educação, saúde).
Essas práticas atestam que os espaços percorridos pelos
moradores das comunidades quilombolas de Oriximiná se
estendem bem além dos limites das terras demarcadas.
Os habitantes dessas terras organizam as suas atividades
segundo um modelo multipolar3: eles têm base em diversas
residências e articulam espaços descontínuos, rurais e urbanos,
percorridos com uma frequência variável, porém regular.
Essa flexibilidade no uso do espaço permite a elaboração de
estratégias econômicas diversificadas, no intuito de compensar
o baixo valor econômico das atividades agroextrativistas.
A realização dessas estratégias espaciais se tornou possível
graças a diversos fatores recentes: a segurança fundiária,
a organização coletiva dos transportes, a multiplicação dos
domicílios urbanos e uma menor dependência das famílias com
relação às atividades agroextrativistas, devido ao acesso aos
programas sociais e aos empregos urbanos.
Seguindo essa lógica, o fato de ter a sua residência principal
na cidade não necessariamente prefigura um rompimento com
a comunidade de origem. Ao contrário, sob certas condições,
o meio urbano passa a ser considerado como uma extensão da
comunidade. Por exemplo, é comum que os representantes das
associações comunitárias sejam eleitos enquanto passam estadias
longas na cidade, ou que mães de família acompanhem os filhos
que estudam na cidade. No entanto, os dois espaços (comunidade
O território multipolar agrupa um conjunto de lugares descontínuos, que formam um espaço funcional, percorrido e vivenciado, em oposição à visão de um
território baseado em um espaço único (Cortes, 1998; Padoch et al., 2008).
215
carlos penteado
e cidade) são claramente diferenciados: a comunidade permanece
o espaço de referência e de identificação, mas a ausência dela
pode ser admitida. O espaço da cidade não substitui as terras
quilombolas, ele as complementa nas suas funções, de um
ponto de vista econômico, social e político. Nesse sentido, as
estadias urbanas de curta ou média duração não somente são
toleradas como também são consideradas necessárias para
garantir o sustento das famílias e proporcionar alguma ascensão
socioeconômica (Nasuti & Tristch & Eloy, 2014).
Tal extensão de áreas de uso e de identificação se torna possível
graças à multi-residência (ou seja, a associação de diversas
residências), condição importante para a circulação das pessoas
e dos recursos, de acordo com a necessidade. Em paralelo, a
continuidade territorial entre áreas distantes é garantida por meio
da existência de um sistema de regras que rege a mobilidade
das pessoas para a cidade. Isto é, a ausência da comunidade
nunca é completamente livre. A perspectiva de manter ou não
os seus direitos sobre os recursos locais orienta as práticas de
mobilidade organizadas pelos indivíduos ou pelas famílias.
Uma análise nas comunidades de Jarauacá e Abuí mostrou
que, para conseguir respeitar as regras coletivas e manter os
seus direitos na comunidade, as famílias adotam uma lógica de
complementaridade entre os membros da família. Isso quer dizer
que, para realizar as suas estratégias de mobilidade, as famílias
não mobilizam somente os indivíduos, mas toda a rede familiar.
Dessa forma, as funções estão distribuídas entre os
membros da unidade doméstica e/ou da família extensa.
Enquanto determinadas pessoas se deslocam na cidade, com
uma intensidade variável para fins de comércio ou emprego
temporário, outros membros da família quase não circulam.
Estes últimos são os que garantem a “âncora” na zona rural e o
pleno desenvolvimento das atividades produtivas (Nasuti et al.,
2013). Em conformidade com estas regras, o pertencimento ao
grupo – e, portanto, ao território – não é questionado.
Exemplo de uma unidade doméstica
combinando diversos perfis
de circulação
T. vai a cidade de Oriximiná todas as semanas, para
organizar o seu comércio de madeira. Ele faz entregas
e recebe pedidos de fazendeiros da região. A madeira é
utilizada para fazer cercas de gado e é transportada graças
ao barco que ele comprou com o seu pai e outras famílias.
A cada viagem (3 a 4 por mês), ele garante também o
frete para aqueles que desejam vender na cidade o que
produziram, principalmente farinha de mandioca ou
castanha. A sua esposa, R., ocupa-se da roça com o filho
mais velho. Ela viaja com o marido somente uma vez por
mês, quando recebe os benefícios sociais. Aproveita a
viagem para fazer compras domésticas e prover o bar que
a família tem na comunidade.
Assim, a configuração atual das mobilidades rurais-urbanas,
associada a um sistema de uso multipolar do espaço, não
ameaça a estabilidade da população quilombola nas áreas rurais.
Todavia, isso não significa que os modos de vida nos territórios
florestais não estejam evoluindo, sob a influência de diversos
fatores, que vão além dos fenômenos de circulação.
Quais transformações nos sistemas locais de produção podem
ser observadas hoje? Como o desenvolvimento dessas fontes
de renda, bem como a introdução de empregos formais nas
áreas rurais (professores, agentes de saúde, transporte escolar,
emprego doméstico em Porto Trombetas etc.) afetam as atividades
desenvolvidas nas comunidades?
217
TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS:
UM SISTEMA PRODUTIVO
EM TRANSFORMAÇÃO
Nos locais estudados, os moradores praticam uma agricultura
familiar típica dos rios amazônicos. Esta atividade se baseia na
complementaridade entre a agricultura de corte e queima, jardins
agroflorestais, extrativismo, pesca, caça, criação de animais de
pequeno porte, e, em certos casos, de algumas cabeças de gado.
As roças são localizadas em áreas de terra firme e são dominadas
pela mandioca (Manihot esculenta Crantz), associada a diversas
variedades de abóbora, batata doce, pimentão, inhame, banana,
cana-de-açúcar etc.
Um sistema produtivo extensivo, articulando
vários locais de produção
Em Abuí e Jarauacá, 80% das famílias entrevistadas cultivam
roças. A maioria dessas famílias pratica uma estratégia chamada
de “multilocalidade produtiva”, comum a outras sociedades
tradicionais da Amazônia (Carneiro, 1983; Eloy, 2005). Isso
consiste em cultivar pelo menos dois tipos de roças: uma aberta
na mata densa (“roça de mata virgem”), distante da residência
principal, onde se trabalha somente algumas vezes por mês; e uma
“roça de capoeira”, localizada na proximidade da casa, que se
usa quase diariamente. A “roça de mata virgem” é relativamente
grande (1 a 2 hectares) e tem uma diversidade específica maior
do que a roça de capoeira, que, em geral, não excede 0,5 hectare
e produz principalmente mandioca, com rendimentos limitados.
No município de Oriximiná, essas estratégias agrícolas são,
muitas vezes, acompanhadas por uma multilocalidade residencial
parcial. Durante a seca do rio, as áreas de floresta densa da terra
firme são acessíveis apenas a pé, ao custo de várias horas de
caminhada. Portanto, as famílias que cultivam esses espaços,
muitas vezes, constroem uma segunda casa e, na medida das
218
possibilidades, uma segunda casa de farinha, para não depender
da comunidade. Tal período corresponde, em parte, à época de
coleta da castanha e das férias escolares. Assim, toda ou parte da
família reside nesta segunda casa durante várias semanas, para
as coletas e para fabricar as grandes quantidades de farinha de
mandioca oriunda da “roça de mata virgem”.
Mesmo com a diversificação da renda doméstica, a mobilidade
ligada às atividades agroextrativistas continua sendo um elo
fundamental da relação com o território. De uma forma geral,
as atividades cotidianas (pesca, visita das roças, caça) são
mais próximas das residências, enquanto os lugares mais
longínquos são frequentados em períodos mais pontuais,
principalmente para o extrativismo da castanha-do-pará, de
resinas (breu) ou de certos óleos (copaíba, andiroba etc.).
No entanto, um levantamento dos locais onde são realizadas as
atividades produtivas demonstra uma predominância de áreas
mais próximas da comunidade, o que sugere uma mudança
na mobilidade sazonal relacionada ao extrativismo, a favor de
atividades de maior proximidade.
Um afastamento progressivo
das terras agrícolas
Em paralelo, observa-se que as áreas onde são realizadas
as atividades agrícolas se afastam gradualmente das áreas
residenciais. Via de regra, o espaço utilizado para a agricultura
não forma uma área contínua ao redor da comunidade, mas,
sim, um mosaico de parcelas agrícolas, geralmente pequenas,
espalhadas na floresta. Porém, hoje em dia, esse movimento
evolui, criando uma nova configuração espacial para as atividades
agrícolas das populações quilombolas. Vários fatores contribuem
para explicar esse fenômeno.
O empobrecimento do solo é o primeiro fator determinante.
A agricultura de corte-queima requer pousios longos, para que a
floresta se recupere e a fertilidade se renove. Assim, tal sistema
demanda um deslocamento constante das áreas cultivadas. Com o
crescimento populacional que as comunidades quilombolas de
Oriximiná conheceram nos últimos anos, esse sistema se
encontra perturbado. Com efeito, para instalar as suas roças, as
novas famílias devem respeitar os direitos de uso criados por
ocupações passadas, pelas capoeiras abertas na zona, e, também,
levar em consideração condições ambientais (qualidade do solo)
e acessibilidade. Dessa forma, mesmo que o espaço ainda pareça
vasto e pouco ocupado, em verdade, na maioria dos locais de
estudo, ele é relativamente saturado.
O aumento da pecuária bovina
Outro fator, ligado à localização das residências, explica a
reorganização espacial das atividades agrícolas. No passado,
as casas eram deslocadas e seguiam as roças para evitar
caminhos muito longos. Hoje, alguns elementos levam as
famílias a fixar as suas residências perto da comunidade,
especialmente nas proximidades das instalações públicas,
como a escola ou o centro comunitário, ou então um sistema
de energia ou de água encanada. Nessa situação, duas
estratégias foram se desenvolvendo.
É importante ponderar que a prática da pecuária ainda permanece
uma atividade minoritária entre os residentes. Na comunidade
de Abuí, por exemplo, somente 14,5% das famílias entrevistadas
(11 de 76) a praticavam em 2012; na comunidade de Jarauacá,
o número chega a 20,8% (15 de 72). Embora os rebanhos
continuem modestos (não há mais de cem bovinos em Abuí),
esse fenômeno é relativamente rápido: essa comunidade, que
contava apenas um criador em 1995, tem hoje treze famílias
envolvidas com a atividade, apesar da distância da cidade e da
rede rodoviária (250 km). A interpretação de imagens de satélite
mostra que esta atividade já tem impactos visíveis espacialmente,
uma vez que mais de 40% das áreas desmatadas são agora
ocupadas por pastagens, uma proporção com forte crescimento
desde 2000. A título de ilustração, nas comunidades de Abuí
e Jarauacá, as áreas desmatadas foram multiplicadas por mais
de 3, em média, entre 1992 e 2011. Observamos, porém, que,
em números absolutos, essas áreas permanecem pequenas, com
menos de 100 ha de solo exposto em cada uma das comunidades
e aberturas médias por família entre 1,3 e 2 ha.
A primeira consiste na procura de meios de transporte rápidos
para resolver a dificuldade de acesso aos espaços agrícolas.
Assim, muitas famílias jovens estão agora se estabelecendo
perto de equipamentos comunitários e podendo ter as suas áreas
agrícolas distantes de vários quilômetros. Outra estratégia é a
simplificação do sistema agrícola. As famílias se concentram nas
roças de capoeira mais próximas das casas, porque elas não têm
os meios ou a força de trabalho para buscar terras férteis em
áreas remotas. Graças à renda monetária e, em alguns casos,
à distribuição de cestas básicas, essas famílias conseguem
diminuir significativamente a sua produção. Ora, essa maior
dependência das roças de capoeira próximas (e a crescente
escassez de grandes “roças de mata virgem”) pode levar a um
declínio gradual da biodiversidade agrícola na escala regional
e maior vulnerabilidade da produção agrícola às variações
climáticas (Le Tourneau & Eloy, no prelo).
A agricultura de corte-queima, associada ao extrativismo,
permanecem as atividades mais comuns nas comunidades
estudadas. Porém, a criação animal, especialmente bovina,
parece ganhar espaço na produção familiar. A maior parte dos
criadores de gado das comunidades viabiliza a sua atividade a
partir de um sistema de “meia” com os fazendeiros da região. Na
realidade, a cadeia de produção é controlada pela elite política e
comercial localizada em Oriximiná.
Esses números indicam que as famílias continuam a praticar
uma agricultura cuja principal finalidade é a subsistência.
Nesse sentido, o crescimento demográfico é provavelmente uma
das principais razões para o aumento de áreas abertas ao longo
das duas últimas décadas. O gado, no entanto, também tem a sua
parcela de responsabilidade. Assim, as roças correspondiam a
219
cerca de 80% das superfícies abertas em Abuí e Jarauacá em
1992, enquanto, em 2011, correspondiam a 57,6% e 45,3%.
Isso mostra que as pastagens estão se tornando um importante
fator de desmatamento, em particular nos últimos dez anos.
Além disso, o gado já influencia fortemente o afastamento
progressivo das áreas destinadas à agricultura, devido à
devastação causada pelos animais nas culturas e ao uso do
espaço próximo para plantar pastagens.
Rumo a uma mudança na gestão das terras?
A pecuária é uma atividade que, na Amazônia, gera grandes
debates, sendo considerada responsável por grande parte do
desmatamento. Mas é uma das atividades econômicas mais
lucrativas de acordo com as condições geográficas da maioria
das regiões da Amazônia (Smeraldii & May, 2008; PoccardChapuis, 2004; Marchand, 2009). Nesse caso, também se
incluem as áreas quilombolas de Oriximiná. De difícil acesso,
distante dos mercados, elas sofrem de uma estrutura precária
para a comercialização dos seus produtos. Além disso, a maioria
dos produtos do extrativismo (castanha-do-pará, óleos e resinas)
não é consumida no local, mas destinada a mercados distantes.
A má reputação da criação de gado gera controvérsia,
especialmente no caso de populações quilombolas. Elas estão
conscientes de que muitos dos seus direitos foram adquiridos
em função de um sistema diferenciado dos outros modos de
vida agrícolas. Praticar hoje as mesmas atividades que os
outros agricultores representa uma perda de legitimidade que
é muito bem identificada. Assim, um líder regional admitiu
que sente uma contradição: “é ruim para as nossas tradições”,
disse ele. Mas a criação de gado apresenta vantagens.
A distância do mercado não é um obstáculo, uma vez que
o animal é comercializado cada vez mais no mercado local.
As flutuações dos preços dos gêneros agrícolas e extrativistas,
que em geral desmoronam no momento em que todos os
produtores colocam os seus produtos no mercado, são evitadas
220
porque o animal pode ser vendido em qualquer estação. A sua
liquidez constitui também uma das suas principais vantagens,
como uma conta de poupança: ele pode ser convertido
rapidamente em dinheiro, se necessário.
Hoje, o desenvolvimento da atividade parece levar a uma
mudança de gestão das terras. De fato, esse processo requer a
atribuição em longo prazo de uma determinada finalidade a essas
terras, o que trava o sistema itinerante da agricultura de cortequeima. Dessa maneira, a implantação de pastagens implica
uma apropriação privada e permanente das terras, o que desafia
a gestão comunitária. Talvez por esse motivo, observe-se uma
tendência à individualização dos direitos fundiários nas áreas
de capoeira próximas das roças. É verdade que, como diz uma
moradora do Abuí, “hoje em dia, todo mundo quer ter sua própria
área. [...] Temos de garantir a nossa parte agora, caso contrário,
as crianças terão que ir em outro rio longe. Há mais e mais
famílias, as pessoas têm o seu gado, e torna-se cada vez menor”.
DESAFIOS PARA A GESTÃO
DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS
Como vimos, a reorganização dos espaços agrícolas internos
aos territórios quilombolas, associada à intensificação dos
deslocamentos para a cidade, constitui um aspecto importante
do desenvolvimento econômico e social dos territórios
quilombolas. No entanto, a importância desses fenômenos
coloca muitas questões sobre as dinâmicas ambientais, sociais
e agrícolas na região.
Sistemas de mobilidade
Hoje, no município de Oriximiná, os sistemas de mobilidade
entre floresta e cidade não são acompanhados de uma forte
transformação dos modos de vida, que permanecem baseados
na agricultura de subsistência, pesca, caça e extrativismo,
apesar da presença crescente – mas, por enquanto, moderada –
da pecuária bovina. Além disso, a aproximação com a cidade
aumentou a frequência dos deslocamentos numa proporção
ainda controlada. Também não questiona de forma direta a
estabilidade das residências nas áreas rurais, notadamente em
função dos mecanismos de multirresidência, de distribuição das
funções dentro da unidade doméstica e dos sistemas de regras
que regem a mobilidade urbana das famílias.
Assim, graças a essas estratégias, os moradores procuram tirar
proveito dos recursos disponíveis em ambos os espaços em vez
de se voltarem para dinâmicas de êxodo rural. Nesse sentido, as
dinâmicas de circulação entre zonas rurais e urbanas, enquanto
permanecem enquadradas num sistema de regras, contribuem
para a sustentabilidade dos territórios quilombolas.
Transformação espacial dos espaços agrícolas
As atividades agrícolas das comunidades estudadas
correspondem em parte à imagem clássica que se tem das
populações tradicionais. A produção de farinha de mandioca
é onipresente, mesmo que a quantidade produzida dependa
do valor de mercado e de outras especulações. A geografia
da atividade, no entanto, parece estar mudando. Atualmente,
vários fatores se combinam para causar um distanciamento
progressivo das casas com relação às áreas cultivadas: a) o
crescimento da população, o que significa que o número de
roças aumenta, criando a necessidade de ir buscar mais longe
as áreas adequadas para a sua implantação; b) a instalação
de infraestruturas nas comunidades (energia, escolas, água
encanada etc.) que “fixam”as habitações; c) o equipamento
das famílias com rabetas que aumentam a capacidade de
deslocamento; d) a conversão das roças mais próximas
das habitações em pastos, frequentemente abertos, e as
consequências da divagação dos animais.
No final, mesmo que ter roças distantes das casas não
seja inteiramente novidade, uma vez que as populações
tradicionais adotavam essa prática de mobilidade sazonal,
hoje, provavelmente, um novo tipo de relação é construído com
as áreas agrícolas nas comunidades de Oriximiná. Será preciso
continuar acompanhando as suas consequências, notadamente
a respeito da diversidade de espécies cultivadas, para ver se
ela se direciona para uma simplificação e uma especialização
em culturas mais lucrativas (como a mandioca), ou se, ao
contrário, permite uma certa manutenção da diversidade
por meio da busca de plantas adaptadas a cuidados mais
episódicos nas roças.
Gestão comunitária
Essas questões são particularmente importantes para os
territórios quilombolas de quem, assim como com relação
às terras indígenas, a sociedade espera cada vez mais que se
responsabilize pela proteção das florestais tropicais brasileiras.
O conjunto das mudanças econômicas e institucionais que hoje
reestruturam os espaços quilombolas de Oriximiná coloca os
moradores frente a um desafio significativo em termos de gestão
territorial. Enquanto a organização geral é baseada em uma
lógica de território “multipolar”, as instituições devem conseguir
proteger um espaço contínuo, extenso, caracterizado por uma
baixa densidade de ocupação e um aumento das pressões
internas e externas.
Frente a esses desafios, manter a integridade da área florestal das
terras quilombolas depende da capacidade do grupo de emitir
regras coletivas voltadas para a gestão dos recursos naturais.
Depende também da capacidade que o grupo terá de fazer
com que essas regras sejam aplicadas, assim como de fazê-las
evoluir. No entanto, percebe-se que as populações quilombolas
enfrentam dificuldades para estabelecer e fazer cumprir regras
de gestão ambiental. Por exemplo, os impactos da pecuária
sobre a organização local do espaço ainda fogem dos debates
locais e não geraram novas – ou geraram poucas – regras acerca
dos modos de gestão dos recursos. Como é observado em outros
221
territórios tradicionais (Castro et al., 2006), as tensões ligadas
às contradições entre desenvolvimento econômico e proteção
ambiental são resolvidas pelo estabelecimento de regras que
não tratam diretamente do manejo dos recursos-chave, mas,
sim, contornam o problema, especialmente ao questionar a
legitimidade dos usuários sobre o território.
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carlos penteado
EMPODERAMENTO
DAS COMUNIDADES
NO ACESSO A
RECURSO GENÉTICO
E CONHECIMENTO
TRADICIONAL:
CASO DAS COMUNIDADES
QUILOMBOLAS
DE ORIXIMINÁ
Roberta Peixoto Ramos
INTRODUÇÃO
As políticas de conservação têm estado na agenda da maioria dos
países há mais de duas décadas, uma vez que foi reconhecido que
a perda da biodiversidade tem um impacto direto na segurança
alimentar, em solos férteis, água potável, medicamentos,
mudanças climáticas, além de ser essencial para manter valores
culturais e espirituais dos povos e comunidades tradicionais
(Secretariat of the Convention on Biological Diversity, 2010).
O Brasil é um país extremamente diverso, abrigando cerca de
20% de todas as espécies do mundo e também mais de 230 povos
indígenas e muitas comunidades tradicionais como quilombolas,
ribeirinhos, seringueiros, etc. Na definição do governo Brasileiro,
comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados
e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias
de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos
naturais como condição para sua reprodução cultural, social,
ancestral, econômica e religiosa, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição
(Decreto 6.040/2007). Essas comunidades tradicionais são
também caracterizadas pelo uso sustentável dos seus recursos
naturais (Diegues e col., 2000).
A conservação da biodiversidade e a proteção do modo de
vida tradicional das comunidades são ações complementares
e que devem ser desenvolvidas em conjunto para que sejam
efetivas. É necessário desenvolver políticas que trabalhem a
sustentabilidade ambiental e social, valorizando o papel dos povos
e comunidades tradicionais na conservação da biodiversidade.
Dentro desse contexto, este artigo volta o olhar para o
acesso a recursos genéticos e ao conhecimento tradicional
associado, uma atividade que tem o potencial de propiciar a
sustentabilidade econômica, social e ambiental dos territórios
das comunidades tradicionais. Através do estudo de caso do
1.
226
quilombo de Oriximiná,1 este artigo vai também identificar os
desafios que as comunidades tradicionais têm que enfrentar para
se tornarem atores empoderados nesse processo, assegurando
seu direito de participar das decisões que afetam seu modo de
vida e seu território.
CONTEXTUALIZAÇÃO
A Convenção da Diversidade Biológica (CDB) de 1992, ao
reafirmar a soberania das nações sobre seus próprios recursos
naturais, estabeleceu um espaço importante de debate sobre
a conservação da biodiversidade e do seu uso sustentável.
Seus três objetivos – conservação da biodiversidade, uso
sustentável e repartição justa e equitativa de benefícios (CBD,
1992) – proporcionaram a base para que países signatários da
Convenção pudessem iniciar uma discussão interna do papel das
comunidades locais na conservação da natureza e o valor dos
seus conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
É dentro desse contexto que se encontra a medida provisória
2.186-16 de 2001 que foi desenvolvida como uma resposta à
necessidade urgente do Brasil de legislar sobre o acesso ao
patrimônio genético e conhecimento tradicional associado (CTA)
em seu território (Medida Provisória nº 2.186). Nessa atividade
de acesso, ocorre a procura por recursos genéticos na natureza
que podem ter um valor econômico e/ou social, podendo ser
derivados dos conhecimentos tradicionais das populações.
Essa atividade tem um potencial muito grande de ser tornar um
instrumento de conservação da biodiversidade, de manutenção
e melhoramento do modo de vida das comunidades além de ser
extremamente importante para a pesquisa científica (Beattie,
2005; Reid e col., 1993).
Entretanto, essa medida provisória é limitada, não atende
as necessidades nem dos usuários nem dos provedores da
Esse estudo de caso faz parte da pesquisa de doutorado (em andamento) com o título “Bioprospection and benefit sharing: governance of natural resources in the
Brazilian Amazon”, pela London School of Economics and Political Science (LSE).
biodiversidade. No Brasil, o processo para se conseguir
autorização de acesso, seja do patrimônio genético e/ou do
conhecimento tradicional, é extremamente moroso e burocrático,
e na grande maioria das vezes não possibilita uma repartição de
benefícios justa e equitativa como requer a CDB.
Apesar disso, sendo essa a legislação vigente no país, é preciso
entender onde estão seus desafios para poder conseguir alcançar
o melhor resultado possível dentro da estrutura existente e ao
mesmo tempo iniciar um debate nacional para influenciar o
conteúdo de uma lei mais apropriada.2
Olhando, portanto, para a MP 2.186 é possível focar três passos
essenciais para conseguir autorização de acesso: a anuência prévia,
o laudo antropológico e o contrato de repartição de benefícios.
O termo de anuência prévia é um documento que precisa ser
assinado pela comunidade (provedora do recurso genético) e
pelo usuário (bioprospector), seja ele empresa, universidade ou
instituto de pesquisa. A assinatura desse documento representa
o entendimento e o consentimento para que o acesso seja
feito. De acordo com as orientações do Conselho de Gestão do
Patrimônio Genético (CGEN), órgão deliberativo e normativo
criado pela Medida Provisória, a anuência deve conter os
objetivos da pesquisa, sua metodologia, duração, orçamento,
formas de uso do patrimônio genético e CTA, qual área
geográfica que abrange o projeto e quais comunidades vão estar
envolvidas nesse processo. Esse documento tem que ser feito
no idioma nativo da comunidade e tem que utilizar linguagem
clara. Além disso, deve ser assegurado a todo momento o direito
das comunidades de recusar o desenvolvimento do projeto em
seu território (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético,
2003). Esse documento é o modo pelo qual as comunidades
podem dar o seu consentimento prévio ao projeto, direito
2.
essencial que é assegurado tanto em legislações nacionais
quanto internacionais.
De acordo com a atual legislação, é possível fazer o acesso ao
recurso genético com ou sem conhecimento tradicional associado.
Desse modo, quando há o acesso ao CT é necessário um laudo
antropológico independente, que possa assegurar que o processo
de anuência prévia foi feito de acordo com os requerimentos da
lei e que a comunidade tem conhecimento pleno dos seus direitos
e deveres (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, 2004a).
O terceiro passo importante é quando existe um potencial
comercial do acesso. Nesse caso, é também necessário firmar
o contrato de uso e repartição de benefícios entre o provedor e
o usuário. Esse contrato tem que definir claramente qual será o
formato da repartição de benefícios (monetário ou não monetário),
tem que deixar claro se existe alguma provisão de propriedade
intelectual, qual a duração desse contrato, além de identificar
os direitos e deveres de ambas as partes (Medida Provisória nº
2.186; Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, 2004).
Entre 2004 e 2013, o CGEN autorizou 70 contratos de
repartição de benefícios no Brasil e, em março de 2013,
havia 33 contratos em processo de tramitação. A indústria de
cosméticos é a que tem mais contratos de acesso e repartição de
benefícios (ABS) no Brasil, enquanto a presença da indústria
farmacêutica é mínima. Uma análise desses números mostra
que 89 desses contratos foram acessos somente ao patrimônio
genético, enquanto apenas oito foram acessos ao patrimônio
genético e CTA (Schmidt, 2014). Isso reflete o receio existente
entre usuários de acessar patrimônio genético associado
a conhecimentos tradicionais, uma vez que existem ainda
muitas incertezas relacionadas ao CTA e ao envolvimento de
comunidades tradicionais nesse processo.
Até a data desse artigo (janeiro de 2015) se encontrava em tramitação no Congresso, em caráter de urgência, o Projeto de Lei 7.735, que regula o acesso
aos recursos genéticos da agrobiodiversidade e da biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais a eles associados. Importante ressaltar que os povos e as
comunidades tradicionais do Brasil não foram propriamente consultados sobre essa nova proposta e por isso pedem a retirada do caráter de urgência para dar
espaço a uma discussão mais democrática dessa nova lei.
227
carlos penteado
ACESSANDO O RECURSO
GENÉTICO E O CONHECIMENTO
TRADICIONAL ASSOCIADO
projeto nas comunidades quilombolas de Oriximiná (Oliveira
ecol., 2010; Contrato de Utilização do Patrimônio Genético
e ao Conhecimento Tradicional Associado e Repartição de
Benefícios, 2006).
Em 2007, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN)
autorizou a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
a acessar o patrimônio genético e o conhecimento tradicional
associado das comunidades remanescentes do quilombo
de Oriximiná para a pesquisa “Bioprospecção de Espécies
Vegetais Farmacologicamente Ativas Utilizadas Medicinalmente
por Comunidades Quilombolas de Oriximiná (PA), Brasil”.
Esse estudo teve o objetivo de pesquisar substâncias bioativas
de plantas medicinais, utilizando o conhecimento tradicional
das comunidades quilombolas de Oriximiná, com foco no uso
potencial para o tratamento de doenças do sistema respiratório
como tuberculose e doenças do sistema nervoso como Alzheimer
(Oliveira e col., 2010; TAP, 2008).
Um dos resultados desse acesso foi que, em 2012, os pesquisadores
da UFRJ estavam no processo de desenvolvimento tecnológico de
dois produtos farmacêuticos que foram originados a partir desse
estudo de plantas locais e conhecimento tradicional associado.
Para isso, os pesquisadores estavam novamente visitando as
comunidades para fazer uma explicação da atual situação do
projeto, coletar material necessário para pesquisa e finalizar o
novo contrato de repartição de benefícios.
O contato inicial com a Associação das Comunidades
Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná
(ARQMO) foi feito em dezembro de 2005 através de telefonemas
e e-mails em que os pesquisadores da UFRJ explicaram o
projeto para a coordenação da ARQMO, inclusive enviando para
eles as legislações relacionadas ao ABS no Brasil. Essa troca de
informação culminou em uma reunião em maio de 2006, com
uma visita dos pesquisadores a ARQMO para esclarecer detalhes
do projeto, através de uma exposição sobre objetivos, métodos,
etapas, fontes de financiamento e repartição de benefícios do
projeto proposto (Oliveira e col., 2010), como é requerido pela
resolução 6 do CGEN.
Depois dessa conversa com os coordenadores da ARQMO e
também de uma breve visita a algumas comunidades, a ARQMO
assinou o termo de anuência prévia e o contrato de repartição
de benefícios dando, desse modo, seu consentimento ao projeto.
O laudo antropológico foi elaborado logo em seguida e, em
dezembro de 2007, o CGEN autorizou o desenvolvimento desse
A UFRJ seguiu todos os passos necessários e cumpriu todas
as exigências legais para conseguir autorização para acessar
o patrimônio genético e CTA das comunidades quilombolas
de Oriximiná.
Entretanto, apesar de ter seguido a legislação vigente e
ter conseguido a autorização para acessar, uma análise
mais cuidadosa desse estudo de caso revela que seguir as
leis nacionais não garante necessariamente que o acesso
e a repartição de benefícios sejam feitos de modo justo e
equitativo. Os pesquisadores da UFRJ envolvidos nesse projeto
têm consciência da importância de valorizar e envolver as
comunidades no processo e por isso esse acesso se tornou o mais
justo que poderia ser dentro das atuais circunstâncias. O que
ocorre é que a estrutura institucional e legal existente no Brasil
não permite a quebra da assimetria de poder existente entre
comunidades tradicionais provedoras do recurso genético e CT
e os usuários dessa biodiversidade. O resultado é que não existe
um empoderamento dessas comunidades no processo de ABS.
REFLEXÃO SOBRE O ACESSO
Analisando especificamente o caso de Oriximiná, houve por
parte da UFRJ uma tentativa de informar as comunidades sobre
229
o projeto e sobre as leis vigentes sobre ABS. Entretanto, existe
um conflito de interesse, que não é exclusivo para esse caso e
sim presente em todos os casos de acesso no Brasil, que precisa
ser levado em consideração.
No atual sistema brasileiro, o órgão bioprospector acaba sendo
responsável por informar as comunidades sobre seus direitos
e deveres, o que claramente coloca essa organização em uma
situação de maior poder sobre as comunidades. Nesse estudo
de caso, a organização que tinha o interesse direto que as
comunidades quilombolas de Oriximiná aceitassem o projeto
proposto foi a mesma responsável para explicar-lhes os detalhes
do projeto, esclarecendo quaisquer dúvidas.
A atual legislação brasileira não possui instrumentos que
possibilitem a quebra dessa assimetria de poder e, portanto,
o primeiro contato entre uma comunidade tradicional e a
instituição bioprospectora necessariamente gera uma situação
que é considerada desigual. No momento em que a organização
bioprospectora é a autoridade máxima para explicar a uma
comunidade seus direitos e deveres dentro de um processo
de ABS, existe a possibilidade de monopólio da informação e
abuso de poder.
Acesso e repartição de benefícios é um assunto relativamente
novo no país e alguns dos procedimentos para o acesso ainda
estão em construção, o que gera muitas dúvidas entre as
partes, tanto para os usuários quanto para os provedores do
recurso genético e CT. Os povos e comunidades tradicionais
se encontram totalmente desinformados a respeito do ABS e
desempoderados do processo, não tendo nenhuma assistência
externa e independente de como proceder.
No caso das comunidades quilombolas de Oriximiná, se observou
que não houve uma capacitação suficiente tanto da ARQMO
quanto das comunidades envolvidas no acesso. Enquanto a
grande maioria sabia que um projeto sobre plantas medicinais
estava sendo desenvolvido no seu território, nenhum dos
comunitários entrevistados, incluindo as lideranças da ARQMO,
230
souberam articular os objetivos reais do projeto, o que seria
realmente acessado e como seria a repartição de benefícios.
O que se verificou em Oriximiná foi que havia um conhecimento
superficial sobre a pesquisa desenvolvida no território, mas
que não existia um sentimento de pertencimento e legitimidade
do projeto. Como em outros exemplos de acesso no Brasil, é
extremamente difícil para a instituição bioprospectora (no caso a
UFRJ) assegurar que as comunidades passaram por um processo
de capacitação. Existem pressões internas como orçamento
limitado e tempo limitado para se desenvolver um projeto que
acabam por influenciar o diálogo com as comunidades. Além disso,
ao se trabalhar com povos e comunidades tradicionais, como é
o caso das comunidades quilombolas de Oriximiná, é preciso
entender sua cultura e seu modo de vida para poder construir
um relacionamento que respeite e entenda sua estrutura de
governança interna, seu processo de tomada de decisão e seu
relacionamento com o meio ambiente.
É importante entender que em um processo de acesso ao recurso
genético e CTA existem variáveis importantes que precisam
ser entendidas para que uma comunidade possa ter uma
participação efetiva, dialogando de igual para igual com o agente
bioprospector. É preciso trabalhar conceitos que na grande
maioria das vezes não fazem parte do dia a dia das comunidades,
como recurso genético (e sua diferença de matéria-prima),
o que é o acesso, anuência prévia, repartição de benefícios e
conhecimento tradicional associado. Certamente, no caso de
Oriximiná, esses conceitos foram apresentados e explicados
para as comunidades pelos pesquisadores da UFRJ, uma vez
que faz parte dos requerimentos legais para o acesso. Entretanto,
deve-se questionar a metodologia de repasse da informação que
foi utilizada, o nível de aprofundamento das discussões, qual o
tempo dedicado a essas atividades e como esses conceitos foram
traduzidos para o dia a dia dos comunitários.
O processo de ABS é interligado a diversos temas como
conservação da biodiversidade, direito consuetudinário,
consentimento, preservação e valorização de CT, geração de
renda, manejo de recursos naturais e direito fundiário. Desse
modo, é necessário que as comunidades tenham acesso a todas
essas informações, se apropriando do processo e passando deste
modo a serem atores ativos e não somente comunidades sem o
poder de negociação nos processos de ABS.
DISCUSSÃO FINAL
Uma das perguntas relevantes nessa discussão é de quem deveria
ser a responsabilidade, portanto, de capacitar essas comunidades
para o acesso e repartição de benefícios. Certamente não deveria
ser a responsabilidade de nenhuma instituição bioprospectora,
já que essa opção pode proporcionar um abuso de poder e o
monopólio da informação.
O Ministério do Meio Ambiente chegou a desenvolver algumas
oficinas para capacitar as comunidades tradicionais na
negociação com as instituições bioprospectoras, entretanto, o
governo não conseguiu manter essas atividades (Departamento
do Patrimônio Genético, 2012). Existe no Brasil um grande
número de comunidades tradicionais, muitas vivendo em
localidades de difícil acesso. Por isso, uma capacitação efetiva é
um processo caro e a longo prazo, o que dificulta ter uma garantia
de investimento do governo.
aparece no texto do Protocolo de Nagoia como mecanismo de
empoderamento das comunidades. Esses protocolos comunitários
podem ser entendidos como regras internas criadas pela própria
comunidade. Tais regras refletem as suas características
tradicionais, o modo como a comunidade se relaciona interna e
externamente e também define alguns procedimentos, critérios e
instrumentos de gestão territorial e de manejo e uso sustentável
de recursos naturais (Rede GTA, 2014).
Protocolos comunitários devem ser específicos para cada
comunidade, refletindo as características e o modo de vida de cada
população. A construção de um protocolo comunitário permite
a discussão sobre questões relacionadas ao gerenciamento de
recursos naturais, conservação da biodiversidade, governança
interna, processo de tomada de decisão comunitária e questões
relacionadas ao acesso e repartição de benefícios. Além disso,
o desenvolvimento de protocolos comunitários se encontra
na agenda internacional, aparecendo no Protocolo de Nagoia,
que afirma a necessidade dos protocolos serem apoiados por
governos nacionais, o que inevitavelmente coloca pressão sobre
os Estados para que esses protocolos virem políticas públicas
(Nagoya Protocol, 2011; Swiderska, 2012).
As comunidades deveriam estar totalmente empoderadas para
iniciar um diálogo com qualquer agente externo, se tornando
atores participantes e legítimos desse processo. Mas, para isso,
é necessário garantir a essas populações o direito a informação
e o direito a uma participação real, assegurando que haja uma
boa governança dos recursos naturais e do território. Entretanto,
a não ser que esses direitos sejam garantidos através de políticas
públicas, será extremamente difícil garantir a sustentabilidade
de investimentos para essas atividades de capacitação.
No Brasil, a primeira experiência desse tipo foi a construção
do Protocolo Comunitário do Bailique, desenvolvido pela Rede
GTA. O Bailique é uma comunidade extrativista e pescadora
do Estado do Amapá e concluiu seu protocolo em dezembro de
2014, tendo um documento que trabalha desde a questão de
identidade coletiva da comunidade até estabelecer regras para
ABS. Essa comunidade inicia agora a fase de implementação do
protocolo através de melhoramentos dos seus produtos e parcerias
com novos mercados. A metodologia comunitária de construção
de protocolos possibilita que esse seja um instrumento de gestão
territorial, de uso sustentável de recursos naturais e de proteção
aos direitos comunitários no acesso e repartição de benefícios.
Uma das alternativas para capacitar essas comunidades seria
através da criação de Protocolos Comunitários, instrumento que
É importante notar que esse protocolo foi desenvolvido pelo
movimento social, o que traz uma legitimidade necessária ao
231
processo e possibilita o real empoderamento das comunidades
sem a influência de partes interessadas, como a instituição
bioprospectora. Protocolos Comunitários, portanto, podem ser
um dos instrumentos usados para preparar as comunidades para
esse diálogo com os atores externos.
Independentemente de qual ferramenta for utilizada, é importante
ter consciência de que nenhum acesso e repartição de benefícios
serão justos e equitativos enquanto as comunidades não forem
realmente empoderadas no processo, permitindo que possa
existir um diálogo entre iguais e não uma capacitação de “cima
para baixo”. Para isso, é necessário que o governo compreenda
que a atual legislação não é suficiente e que será necessário um
apoio mais robusto, pensando em ações que permitam que a
atual assimetria de poder possa ser dissipada.
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CONSENSO UNÂNIME:
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TRANQUILIDADE
E A SOBREPOSIÇÃO
DE PENSAMENTOS ENTRE
OS COLETIVOS
QUILOMBOLAS
DE ORIXIMINÁ
Julia Frajtag Sauma
Ao longo do meu primeiro dia de regresso a Oriximiná, no início
de julho de 2014, fui gradualmente tomada pela impressão de
que nunca saíra daquele lugar, apesar de ter passado três anos e
meio sem visitar os meus amigos e interlocutores quilombolas.1
Essa sensação crescia à medida que circulava pelas casas e
outros paradeiros2 permanentes ou temporários dos meus amigos
– a maioria deles filhos do Erepecuru – naquela pequena cidade
amazônica, transitando por seu asfalto intensamente banhado
pelo sol, a pé e por mototáxi, sob uma sombrinha recém-adquirida.
Tomávamos café, trocávamos notícias e, na maioria dos casos,
organizávamos as nossas subidas para o interior, cada um para
a sua comunidade, seu centro rio acima; no meu caso, para a
Comunidade do Jauari no Rio Erepecuru.3 Em cada uma dessas
visitas, conforme eu contava sobre as minhas andanças, sobre
meu paradeiro, o meu trabalho e a minha família, fui atualizada
sobre as suas famílias, comunidades, centros, trabalhos e
movimentos – termo nativo para as suas reuniões sociopolíticas.
Foi assim que, ao longo desse primeiro dia, fui informada
sobre as quatro frentes sociopolíticas mais importantes para
os meus amigos quilombolas naquele momento. O primeiro
desses assuntos, elaborado em maior profundidade ao longo das
próximas semanas, foi a notícia surpreendente – revelada por
agentes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
1.
2.
3.
4.
5.
236
(Incra) de Santarém, poucos dias antes do meu retorno, que a
demarcação coletiva da Área Erepecuru (titulada em 1998) não
ocorreu de forma esperada. Foi com consternação que os meus
anfitriões explicavam que os agentes do Incra, responsáveis pela
titulação, não excluíram os lotes dos individuais4 da área coletiva
titulada, conforme combinado por todas as partes na época da
demarcação; o que, para os filhos do Erepecuru, significava
uma retomada da luta para garantir a titulação coletiva.
Naquele mesmo dia, os coletivos da bacia do rio Trombetas
também explicaram sobre o retorno dos estudos de capacidade
hidrelétrica nas suas áreas – tema que eu tinha acompanhado de
fora – e os novos estudos geológicos da Mineração do Rio Norte
na área da Comunidade do Moura no Rio Trombetas, ambos
iniciados sem consultar os povos quilombolas que serão afetados
por esses empreendimentos. A quarta preocupação dos meus
interlocutores, naquela época, dirigia-se ao impacto do projeto
de manejo de madeira, em andamento desde 2011 nas Áreas
Erepecuru e Trombetas.5
Digo que esses eram os assuntos mais importantes porque,
assim como descrito em trabalhos anteriores (especialmente,
Sauma, 2013), as diversas famílias quilombolas do município
de Oriximiná também estão constantemente envolvidas na luta
contra invasões (de pesca, terra e garimpo) nas suas áreas, e
Como apresento em minha tese de doutorado (Sauma, 2013), no seu dia a dia os remanescentes de quilombos de Oriximiná utilizam diversos termos de
autodenominação, de acordo com o contexto, esses termos incluem quilombolas, remanescentes, coletivos e filhos dos seus rios, entre outros. Esses termos não
devem ser tomados como sinônimos, nem tampouco como autoexcludentes. Isto é, cada um desses termos possui um sentido próprio, certa ênfase singular, mas
também se sobrepõem, tanto que ser coletivo é necessariamente ser quilombola, remanescente e filho de determinado rio (como filho do Erepecuru, ou filho do
Trombetas). Nesse sentido, o uso desses diferentes termos não se refere a passagens entre classificações “nativas” e “normativas”, assim como sugerido por Arruti
(2008: 29) em outro contexto, e sim da sobreposição e proliferação de sentidos que tornam a “autodenominação” em um ato pleno e permanente, baseado em
experiências coletivas.
Os termos em itálico, ao longo do texto, são conceitos ou expressões nativas; quer dizer, são próprias dos quilombolas de Oriximiná. Os termos com aspas simples
são conceitos da autora e aqueles com aspas duplas são conceitos ou citações de outros autores e/ou textos.
Fiquei 20 meses em trabalho de campo para o doutorado entre janeiro de 2009 e novembro de 2010, durante os quais constitui minha base na Comunidade do
Jauari, no Rio Erepecuru, mas também passei tempo em muitas das outras comunidades desta e de outras áreas coletivas.
Ao longo desse trabalho, os termos substantivos coletivo e individual, grafados em itálico, são categorias nativas, e se referem àqueles que se uniram na luta pela
titulação quilombola de um lado, e aqueles que se opuseram à mesma na década de 1990 e buscam a titulação dos seus lotes, que estão dentro das áreas coletivas.
Andrade (2011) apresenta uma descrição e análise detalhada dessas quatro áreas de “ameaça” para os quilombolas da região.
trabalhando em prol da expansão de serviços municipais de
educação e saúde nas suas comunidades.6 Além dessas frentes
de confronto, esse povo também se dedica intensamente à
organização de festas religiosas, e outras comemorações nas
suas comunidades e na cidade de Oriximiná, que têm um papel
fundamental para a permanência desse povo no seu território,
pois esse outro tipo de movimento – as suas confraternizações
– gera a força e a alegria que os quilombolas precisam para
continuar protegendo a tranquilidade das suas comunidades;
qualidade central do seu bem-estar.
*
Essa descrição introdutória tem o intuito de explicitar dois
elementos básicos daquilo que podemos identificar como
‘processo sociopolítico’ entre os quilombolas de Oriximiná –
quer dizer, os mecanismos conceptuais e relacionais, intra e
intercomunitários, que possibilitam a formação de decisões
consensuais nesse contexto – tema principal do presente
trabalho. O primeiro desses elementos é a intensidade da atuação
sociopolítica desse povo, ponto que aprofundarei na primeira
parte deste artigo para enfatizar a importância de levarmos as suas
concepções e práticas sociopolíticas em consideração, ao refletir
sobre a elaboração e regulamentação dos procedimentos legais
que devem proteger os seus direitos constitucionais. O segundo
elemento que a descrição de abertura nos traz, e que será o
foco da segunda parte deste texto, é, justamente, a identificação
da circulação ou visitas entre as casas dos quilombolas como
um dos mecanismos centrais do seu processo sociopolítico.
Nesse sentido, quero descrever e analisar a configuração
desses mecanismos dentro dos movimentos sociopolíticos
6.
dos quilombolas, a partir da importante relação entre as suas
reuniões oficiais e as visitas domésticas que estruturam a vida
cotidiana nas suas comunidades.
As questões que levanto neste artigo são as seguintes. O que
acontece quando realmente levamos em conta a história de
povos como os quilombolas de Oriximiná nos processos que
devem fundar-se em sua consulta e garantir sua participação
sociopolítica? O que se passa se aceitarmos que essa história
traz com ela mais do que o passado, um presente e, com isso,
uma experiência e uma prática sociopolítica? Como reagimos
quando essa prática tem a capacidade de elucidar conceitos
centrais mas ambíguos – como “consulta” e “participação” –
das políticas públicas estatais e dos acordos multilaterais que
o Estado visa implementar? O que sucede se, para responder
a essas perguntas, precisamos repensar o que é viver de forma
coletiva e participar como pessoa, como indivíduo? O que muda,
em suma, quando a consulta e a participação são tomadas como
processos permanentes, nos quais se estabelece a sobreposição de
pensamentos, direcionados ao consenso, e não como obstáculos
pontuais aos desejos de uma ou outra parte?
Ao final do artigo, busco explicitar como a assim chamada
“consulta” na linguagem formal do licenciamento socioambiental
deve ser entendida como muito mais do que um procedimento
pontual. Veremos como os mecanismos sociopolíticos
equivalentes entre os quilombolas operam por um processo
fundado na circulação das pessoas e em um modo narrativo que
enfatiza a troca e a sobreposição como forma de construir uma
experiência e um pensamento em comum. Dessa forma, propõese que se sentir contemplado e contemplar o outro compõem
Os serviços de educação e saúde oferecidos pelo município nas comunidades do interior continuam sendo insuficientes nessa região, especialmente na área de
saúde. Ao oferecer acesso à enfermagem nas comunidades e uma formação fortalecida e diversificada, garantindo, aos quilombolas qualificados, primeiro acesso
aos empregos que seriam gerados, tais serviços poderiam assegurar a permanência dessa população em seu território titulado, em vez de obrigar os quilombolas,
entre outros ribeirinhos, a migrar para a cidade de Oriximiná sem recursos adequados, em busca de atendimento médico, formação e trabalhos mal remunerados
longe de casa. Os poucos avanços obtidos nos últimos dez anos, especialmente na área da educação, são o resultado do árduo trabalho dos quilombolas em suas
negociações com servidores públicos e governantes locais.
237
o objetivo predominante dos mecanismos sociopolíticos nesse
contexto. A estrutura interna desse modo participativo será
investigada na última parte deste artigo, onde explicito as
concepções singulares dos filhos do Erepecuru, especificamente
acerca da relação entre a coletividade e o indivíduo. Assim, longe
de qualquer “justificativa” ou “legitimação” de como os meus
amigos e interlocutores em Oriximiná atuam nos encontros com
representantes estatais e outras pessoas de fora – tarefa que não
cabe aos pesquisadores que trabalham com eles –, a intenção do
presente trabalho é mostrar como as suas concepções e práticas
sociopolíticas podem nos iluminar em um momento de amplo
ataque aos direitos constitucionais deste e de outros povos
tradicionais e indígenas no contexto brasileiro.
por encontros com outro tipo de pessoa de fora, uma gente
graúda que fala bonito e fala grande, mas que tenta impedir
os esforços dos quilombolas a garantir uma vida tranquila
nas suas comunidades. Entre outras coisas, segundo os meus
interlocutores, essa gente graúda tentou obstruir a titulação
coletiva dos seus territórios violentamente e fizeram a cabeça de
certas famílias quilombolas a se opor a esse título – uma decisão
que muitas dessas famílias agora se arrependem de terem
tomado. Essa gente também continua dificultando a integridade
das áreas quilombolas, incentivando invasões de pesca, extração
de madeira e garimpo, a venda de lotes que estão dentro do
território coletivo, e atuação de atravessadores7 que tentam
enfraquecer o trabalho da Cooperativa Mista Extrativista dos
Remanescentes de Quilombos (CEQMO).
ANTIGOS E NOVOS ENCONTROS
E CONFRONTOS
Começando com o encontro importante dos quilombolas de
Oriximiná com os padres do Verbo Divino – a ordem católica que
substituiu os franciscanos na região em 1970, e que incentivou
fortemente a mobilização em favor da proteção de suas terras
–, passando para diversos representantes do Movimento Negro,
de ONGs (acima de tudo a Comissão Pró-Índio de São Paulo),
governantes, representantes do Ministério Público e outros órgãos
estatais, antropólogos e outros pesquisadores, além dos confrontos
com políticos, grandes fazendeiros e usineiros da região, somamse mais de 40 anos de encontros com pessoas de fora. Somamse também mais de 40 anos de um trabalho permanente para
a proteção das suas terras, florestas e castanhais, e, com isso,
o seu modo de vida, frente à expansão, nesse mesmo período,
dos interesses sociais, políticos e econômicos de governantes,
diversas empresas nacionais e multinacionais nessa região.
As comunidades quilombolas de Oriximiná têm uma história
recente e importante de mobilização sociopolítica em nível
regional, estadual e nacional, que iniciou na década de 1970
e que, através da formação da Associação das Comunidades
Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná
(ARQMO) em 1989, resultou na primeira titulação quilombola
no Brasil, para a comunidade de Boa Vista-Trombetas em 1995.
Posteriormente, a ARQMO também participou na formação de
associações e titulações das Áreas Quilombolas Água Fria (em
1996), Trombetas (em 1997), Erepecuru (em 1998 e 2000) e
Alto Trombetas (parcialmente titulada em 2003) (ver Andrade,
2011). Para alcançar essas conquistas consideráveis, os
quilombolas passaram por diversos encontros importantes com
pessoas de fora, como eles diriam, que apoiaram e incentivaram
a sua luta pelo reconhecimento constitucional e pela titulação
de suas terras. Ao longo dos anos, esses povos também passaram
7.
238
Sabemos também que a luta desses povos tem raízes mais
profundas do que recentes negociações fundiárias e as atuais
negociações para a preservação dos seus territórios e do seu
modo de vida. Segundo os relatos dos próprios quilombolas (por
Compradores de castanha-do-pará, nesse caso, enviados por grandes usineiros da região, que oferecem um preço menor por cada caixa de castanha às famílias
quilombolas, beneficiando-se do fato de que a CEQMO pode demorar mais tempo para fazer a compra, por estar lidando com a produção de muitos cooperados.
exemplo, Lima, 1992) e o trabalho de diversos historiadores
(ver, por exemplo, Funes, 1995; Gomes, 2005; e Ruiz-Peinado,
2002), são pelo menos 200 anos de experiência de encontros,
negociações, alianças e confrontos com outros – entre eles, outros
mocambeiros, povos indígenas, comerciantes, garimpeiros,
mineradores, padres franciscanos, patrões e governantes
municipais, estaduais e federais. Portanto, como descrevo em
outros trabalhos (Sauma, 2013; Sauma, 2014), o modo de vida
dessa coletividade – e, dentro disso, a própria configuração dos
seus mecanismos sociopolíticos – está plenamente fundamentado
nos encontros/confrontos e negociações com outros, internos e
externos às suas comunidades.
Nesse sentido, podemos afirmar que os quilombolas de Oriximiná
não chegam aos seus encontros contemporâneos com pessoas
de fora enquanto novatos políticos. Eles não chegam a essas
negociações como um grupo que “não entende como as coisas
funcionam”, “que vão aprender como as coisas funcionam”, ou
“como um povo desorganizado”, e tantas outras afirmações que
tive a infelicidade de escutar ao longo dos anos. Nesse contexto,
somos levados a lembrar que, do ponto de vista desse povo, nos
seus encontros com governantes, por exemplo, os seus antigos e
atuais perseguidores muitas vezes estão do outro lado da mesa –
e mesmo assim, eles não deixam de negociar e de lutar pelo seu
modo de vida. Realmente, reconhecer a condição histórica desses
encontros/confrontos e, portanto, as repercussões contemporâneas
desse passado, é o primeiro passo necessário em direção a uma
melhor compreensão dos mecanismos sociopolíticos desse povo
e, assim, da relação contemporânea entre eles e representantes e
processos estatais, como o licenciamento socioambiental e/ou a
titulação das suas terras.
Infelizmente, a imagem de um quadro antagônico no encontro
entre quilombolas e governantes é bastante fiel à situação atual
dessa população. Por um lado, como explicitado pela Procuradora
8.
da República Deborah Duprat (2002), o Estado brasileiro se
inseriu em uma nova fase de atuação frente a povos como os
quilombolas de Oriximiná a partir da Constituição Federal de
1988, (doravante CF) que visa romper decisivamente com a
atuação totalitária e reconhecer-se (constitucionalmente, pelo
menos) como um “Estado pluriétnico”:
não mais pautado em pretendidas homogeneidades,
garantidas ora por uma perspectiva de assimilação,
mediante a qual sub-repticiamente se instalam entre
os diferentes grupos étnicos novos gostos e hábitos,
corrompendo-os e levando-os a renegarem a si próprios
ao eliminar o específico de sua identidade, ora
submetendo-os forçadamente à invisibilidade.
Duprat, 2002: 41.
Por outro lado, a vulnerabilidade desse novo encontro com
povos indígenas e tradicionais fica clara quando consideramos
os esforços governamentais recentes para acelerar a construção
e operacionalização de grandes empreendimentos energéticos
na Amazônia, como as hidrelétricas de Belo Monte, São Luiz
e Cachoeira Porteira; a última das quais afetará, de forma
significativa, os quilombolas de Oriximiná. Dessa forma, como
descrito pela procuradora da República em Altamira, Thais
Santi, em entrevista recente sobre a situação de Belo Monte8 – e
lembrando que esse é um empreendimento que gera precedentes
para os outros projetos mencionados acima –, temos atualmente
situações nas quais “feita a escolha governamental, que já é
questionável, o caminho para se implementar essa opção é
trilhado pelo governo como se também fosse uma escolha, como
se o governo pudesse optar entre respeitar ou não as regras do
licenciamento”. Nesse sentido, na mesma entrevista, Santi faz
uma comparação entre as ações do Governo Federal brasileiro,
nesse contexto, e a atuação dos estados totalitários (segundo
Hannah Arendt), nos quais “tudo é possível”.
Brum, E. Belo Monte: a anatomia de um etnocídio. In El País, 01/12/2014. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/01/opinion/1417437633_930086.
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239
carlos penteado
Como sabemos, os ataques atuais aos direitos dos povos indígenas
e tradicionais e, portanto, ao Estado pluriétnico definido pela CF
estão presentes em diversas frentes. Eles incluem, entre outras
ações, a criação da PEC 215/2000, articulada por parlamentares
ruralistas, que pretende transferir do Poder Executivo para o
Poder Legislativo as atribuições constitucionais de titulação dos
Territórios Quilombolas, da demarcação de Terras Indígenas e de
criação de Unidades de Conservação. O ataque está na criação
da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 contra o Decreto
4.887/2003, que regulamentou o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos,
previsto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) da CF. Além disso, temos as próprias
dificuldades envolvidas no processo de titulação, geradas por
múltiplos obstáculos administrativos, como a Instrução Normativa
Incra N.º 49/2008, que tornou esse processo muito mais difícil
e burocratizado – resultando na estimativa da Comissão
Pró-Índio que somente 6,8% das comunidades remanescentes de
quilombos no Brasil têm o título das suas terras. E, para voltar
mais diretamente ao assunto do presente trabalho, o processo de
regulamentação da Consulta Prévia prevista pela Convenção 169
da OIT no Brasil – que também deve garantir a consulta dos povos
indígenas e tradicionais nas decisões que afetam “as suas vidas,
crenças, instituições, valores espirituais e a própria terra que
ocupam ou utilizam” (Ramos & Abramo, 2011: 8) –, encabeçado
por um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) do Governo
Federal, também tem sido amplamente criticado pela exclusão
desses mesmos povos (ver, por exemplo, a carta pública da APIB)9.
Nesse quadro, a questão da consulta prévia aparece como um
dos muitos entraves que os mediadores de um Estado pluriétnico
– como agentes do Ministério Público Federal – precisam definir
precisamente, e para tanto torna-se fundamental a participação dos
povos indígenas e tradicionais, como os quilombolas de Oriximiná.
Visto que essa inclusão está sendo dificultada por elementos
internos ao Governo Federal, e dada a urgência da participação
desses povos nos processos de licenciamentos socioambientais
que devem proteger os seus direitos constitucionais, alguns
povos têm lutado pela autodefinição da consulta prévia (ver,
por exemplo, o recente Protocolo de Consulta Munduruku)10.
Considerando a vulnerabilidade da CF na mediação entre
esses povos e o Governo Federal, fica claro que esse processo
de autoidentificação dos protocolos de consulta prévia devem
ser estimulados e apoiados em cada contexto de encontro e/ou
confronto entre essas partes, como no caso dos quilombolas de
Oriximiná. Somente esses povos podem definir a forma em que
esse processo deve ocorrer em seus territórios, de forma a incluir
as suas próprias prioridades e práticas sociopolíticas no processo
de licenciamento socioambiental, e, assim, fortalecer a posição
de mediadores como o Ministério Público Federal e a luta pelos
seus próprios direitos constitucionais.
Como forma de estimular o apoio ao processo de diálogo direto
entre representantes estatais e os quilombolas de Oriximiná, em
defesa dos seus direitos, e com base na minha pesquisa entre os
filhos do Erepecuru, a segunda parte deste trabalho parte para
a descrição e análise etnográfica dos mecanismos sociopolíticos
desse povo. Como enfatizado na introdução, tal descrição busca,
acima de tudo, enfatizar a qualidade propriamente participativa
desses mecanismos para, posteriormente, considerar a estrutura
relacional que possibilita aos quilombolas de Oriximiná agir
e se pensar como pessoas coletivas, e a pessoas de fora como
individuais – distinção essa que pode nos iluminar em relação
à dificuldade de regulamentar procedimentos como a “consulta
livre, prévia e informada”.
9.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, publicada em 26 de julho de 2013. Disponível em: <http://racismoambiental.net.br/2013/07/27/carta-publica-daapib-sobre-a-regulamentacao-dos-procedimentos-do-direito-de-consulta-assegurado-pela-convencao-169-da-oit/>. Acesso em: 19 mar 2015.
10.
Documento aprovado em assembleia extraordinária do povo Munduruku em 13 e 14 de dezembro de 2014. Disponível em: <http://fase.org.br/wp-content/
uploads/2015/01/Protocolo-de-Consulta-Munduruku.pdf>. Acesso em: 19 mar 2015.
241
MOVIMENTOS: UMA ASSEMBLEIA
EXTRAORDINÁRIA E O PENSAMENTO
DE CADA UM
No final da minha estadia no Rio Erepecuru em julho de 2014 fui
convidada pelos coordenadores da Associação das Comunidades
Remanescentes de Quilombo da Área Erepecuru (ACORQE)
a observar a assembleia extraordinária que eles estavam
convocando na Comunidade Boa Vista Cuminá para discutir
um dos assuntos críticos mencionados no início do presente
trabalho: a questão da coincidência da demarcação coletiva e
dos lotes individuais no Erepecuru. Segundo os relatos dos
coordenadores da ACORQE, em reunião com representantes do
Ministério Público Federal e Estadual em Santarém em junho
de 2014, eles foram informados sobre a justaposição das terras
e as suas possíveis soluções, e ficaram com a tarefa de repassar
essa informação aos coletivos, filhos do Erepecuru (doravante
Filhos), e mobilizar uma posição que poderia ser transmitida aos
Ministérios Públicos no final de julho. Portanto, essa assembleia
tinha um assunto bastante específico em pauta, mas tanto durante
as preparações para a assembleia quanto durante a própria
reunião, ficou claro que, enquanto eles discutiam esse assunto,
os meus anfitriões também estavam pensando, refletindo e/ou
atuando em relação às outras questões, mais e menos críticas,
identificadas na introdução deste artigo.
Quer dizer, ao conversar entre eles sobre a questão da demarcação,
os Filhos também refletiam sobre a luta contra a invasão violenta
no território, contra a pesca e garimpo ilegais que ocorrem no seu
território, que os individuais têm facilitado desde a demarcação.
Eles também estavam pensando sobre a defesa do seu modo de
vida e dos seus parentes – sejam eles coletivos ou não –, sobre
a recente busca de expansão de atividades da Mineração do
Rio Norte (e a tentativa da empresa de comprar o apoio dos seus
parentes). Eles estavam refletindo sobre o manejo de madeira e
sobre os estudos hidrelétricos na Cachoeira Porteira, que serão
estendidos para o Rio Erepecuru e que ameaçam destruir a mãe
242
cachoeira, protetora desse povo. Essa reflexão conjunta de todas
essas questões pode ser entendida de forma bastante simples: são
todas questões que emergem quando consideram a manutenção
da tranquilidade nas suas comunidades. Portanto, ao falar de um
desses temas, a reflexão sobre a conjunção deles, dessas ameaças
ao seu modo de vida, é bastante comum. Assim, no decorrer
da assembleia extraordinária, após a oração de abertura e uma
introdução pelos coordenadores da ACORQE, foram muitas
horas de reflexão coletiva em que membros de cada comunidade
levantavam observações relativas a diversas questões.
Isso não significa que os associados não falassem especificamente
sobre a questão em pauta, pois durante a assembleia esse foi um
assunto ao qual os quilombolas sempre voltavam. Para chegar
a propostas concretas que poderiam ser encaminhadas ao
Ministério Público, os associados presentes, que lotavam
o grande barracão da Comunidade Boa Vista-Cuminá, se
dividiram em quatro grupos: o primeiro composto por associados
com menos de 25 anos, o segundo grupo por associados entre
26 a 35 anos, o terceiro por associados entre 36 a 45 anos, e
o quarto por associados com mais de 45 anos. Diferentes
propostas, dúvidas e questões foram discutidas dentro de cada
grupo, tais como quem pagaria a indenização dos individuais e
a possibilidade de sua inclusão no território coletivo, além de
outros temas. Após essa etapa os grupos reuniram-se mais uma
vez no barracão, compartilharam as suas diferentes propostas e
começaram a trabalhar em direção a um consenso que poderia
ser encaminhado ao Ministério Público e que, acima de tudo,
poderia ser votado em unanimidade no final da assembleia.
Algo inesperado aconteceu exatamente nesse momento.
Acompanhando a fala de muitos dos associados ali presentes
surgiu uma proposta paralela. Essa proposta demandava uma
explicação oficial, pública e presencial sobre o erro ocorrido
na demarcação coletiva. Portanto, antes de encaminhar
qualquer posicionamento sobre como as comunidades coletivas
queriam lidar com isso – assunto que demandava mais tempo
de reflexão entre eles e dentro de suas comunidades –, os
associados decidiram que o próximo passo seria convidar os
agentes do Incra e do Ministério Público a outra assembleia
extraordinária na Comunidade de Boa Vista-Cuminá para obter
esses esclarecimentos diretamente. E essa foi a decisão votada
em unanimidade no final do dia.
O ideal dos quilombolas é que todos os encaminhamentos
formados durante essas reuniões – aquilo que chamo de
‘consensos’ no presente trabalho – são confirmados por uma
votação no final do dia, e a expectativa é que essa votação seja
unânime. Como veremos adiante, os coletivos tendem a criticar
decisões tomadas de forma apressada, que são baseadas na
votação pela maioria. Apesar de reconhecer que o conceito –
consenso unânime – seja um pleonasmo do ponto de vista de
pessoas de fora, o intuito aqui é mostrar que tal observação
explicita aquilo que Viveiros de Castro (2004) nomeia como
uma “equivocação”, uma comparação tradutiva de termos
nativos que deve ser “controlada” pelo antropólogo a fim de
impedir que o seu próprio discurso seja incluído como um dos
termos de análise. No presente caso, esse controle analítico é
alcançado quando refletimos detidamente sobre a forma em que
o consenso é alcançado e, com isso, a necessidade de visibilizar
a unanimidade do consenso no final dessas reuniões.
Em nove anos de trabalho com as comunidades remanescentes de
quilombos de Oriximiná presenciei diversas assembleias e outras
reuniões, algumas com duração de vários dias, outras de algumas
horas, muitas das primeiras relativas a encontros e/ou confrontos
com pessoas de fora e, das segundas, aos encontros entre as
comunidades coletivas ou entre os parentes de uma mesma
comunidade. Independentemente do assunto ou sua extensão,
todas essas reuniões – que os quilombolas frequentemente
chamam de movimentos – têm uma mesma estrutura: após uma
oração e introdução pelos coordenadores sobre o(s) tema(s) em
pauta, abre-se o espaço para cada pessoa presente que queira
falar. O pensamento de cada um é importantíssimo nessas
reuniões, e os coordenadores que encaminham a discussão
devem fazê-lo sem obstruir a enunciação desses pensamentos,
deixando-os fluir livremente até que todos sentem que uma boa
proporção daqueles presentes têm se manifestado. Muitos foram
os encontros em que os próprios coordenadores enfatizavam a
importância de todos se manifestarem, e se colocavam de forma
a não demonstrar qualquer posicionamento próprio. Isso não
significa que os outros quilombolas presentes nessas reuniões
não saibam a opinião do coordenador – algo que ele(a) muitas
vezes não manifestará nesses movimentos, mas em outros
momentos mais íntimos – pois significa que, entre os povos dessa
região, a boa liderança parte da visão da coletividade, a partir da
explicitação e sobreposição progressiva do pensamento de cada
um, e não da postura pública de líderes como “representantes”
da coletividade.
Nas reuniões em si, essa postura é praticada pelos coordenadores
através de enunciações que incentivam a fala de cada um,
por suas posturas como articuladores e animadores – aqueles
que organizam manifestações culturais durante os encontros,
elementos decisivos para uma reunião bem-sucedida – e não
como detentores da razão. Essa diminuição da posição política
durante as reuniões coletivas também se reflete no comportamento
de outros indivíduos respeitados, a quem muitos olham para
entender assuntos polêmicos, quando estes se sentam no fundo
do barracão durante as reuniões e optam por não falar, falam
pouco ou falam somente da importância de proteger a história
de resistência do povo quilombola, e pouco sobre o assunto
específico em pauta. O trabalho que esses líderes silenciosos
fazem para disseminar informações e possíveis soluções para
assuntos polêmicos não ocorre nesses movimentos, mas em
momentos mais informais, anteriores e posteriores às reuniões.
Todos os coletivos entendem que parte do trabalho daqueles
que têm o dom para estar à frente dos seus movimentos envolve
visitas domiciliares aos chefes de família (homens e mulheres)
que os apoiam, para falar de assuntos políticos ao mesmo tempo
que trocam informações sobre os seus parentes, sobre caça e
pesca, sobre as próximas festividades e os torneios de futebol.
Como aponto na minha tese de doutorado (Sauma 2013), essas
243
visitas marcam o dia a dia de todos os quilombolas – normalmente
ocorrendo no final da tarde, quando todos já finalizaram o seu
trabalho nas roças ou suas atividades domiciliares – e são
momentos importantes para a troca de informações, favores e
para organizar o trabalho coletivo. O pensamento de cada um
também é fundamental durante essas visitas, que são usadas
por articuladores dos movimentos e os chefes de família para
enunciar as suas opiniões de forma calma e clara, tirar dúvidas
e encontrar o consenso entre eles aos poucos. A partir dessas
visitas, os chefes de família decidirão como agir nas reuniões
coletivas e aqueles que têm filhos mais velhos, com suas próprias
famílias, conversarão com os mesmos, aconselhando-os a agir
da mesma forma, mas também nunca coagindo-os. Esse é o
processo a partir do qual os coletivos constroem os consensos que
são votados por unanimidade das reuniões coletivas, sem o qual
o consenso é impossível e, portanto, a participação e as decisões
sociopolíticas coletivas não serão alcançadas. São consensos
coletivos que dependem da sobreposição gradativa de muitos
pensamentos singulares, construídos através dos consensos
gerados de forma cumulativa dos consensos entre duas ou três
pessoas, dois ou três pensamentos diferentes, formados durante
essas visitas domiciliares.
No caso específico da coincidência das terras coletivas e
individuais, a disseminação de informações e de possíveis
soluções que contribuiria para um consenso sobre o
posicionamento dos quilombolas precisava de muito mais
tempo que o mês proporcionado a eles em Santarém. Aquele
mês serviu apenas para organizar a assembleia extraordinária
em si, em um contexto de inquietação acerca de outros assuntos
que ameaçam as comunidades remanescentes de quilombos
em Oriximiná. Assim, nas conversas que presenciei durante
as preparações para a assembleia, houve poucas discussões
sobre as possíveis soluções para a coincidência da demarcação
das terras coletivas com os lotes individuais e, sim, muito
11.
244
Artigo 6, Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho.
compreensivelmente, a indignação com o erro do Incra, da
ameaça que esse erro proporcionava à demarcação coletiva após
a dura luta por essa conquista. E foi essa indignação que levou
ao ‘consenso unânime’ no final da assembleia extraordinária,
construído pela sobreposição de pensamentos nas poucas
semanas após o encontro dos coordenadores com o Ministério
Público em Santarém. Outro consenso, acerca de como os filhos
do Erepecuru queriam se posicionar em relação à justaposição
do seu território aos lotes individuais, portanto, ficou para uma
nova fase de trocas de pensamentos e falas.
O CONSENSO ENTRE
PESSOAS COLETIVAS
O processo de construção de um consenso entre os quilombolas
de Oriximiná pode ser comparado ao procedimento de “consulta
livre, prévia e informada” que deve ser aplicado (mas dificilmente
o é) nos casos de licenciamento socioambiental, como na expansão
das atividades da Mineração do Rio Norte e nos estudos de
capacidade hidroelétrica da Cachoeira Porteira. Pelos termos do
artigo 169 da OIT que consolidou a inclusão desse procedimento
no licenciamento socioambiental, esse tipo de consulta deveria
garantir a participação permanente dos povos tradicionais e
indígenas em todas as decisões que podem afetar o seu modo de
vida. Contudo, esse continua sendo um procedimento ambíguo
para os mediadores da CF e muitas vezes é tratado como mero
obstáculo por governantes-empresas. É possível que, para os
mediadores da CF, a ambiguidade do procedimento esteja na sua
amplitude ou flexibilidade, considerando que um dos elementos
centrais desse procedimento é que a consulta prévia deve ocorrer
“de uma maneira adequada às circunstâncias”11 – elemento que
dificulta a sua padronização. Porém, também é provável que a
maior dificuldade esteja no engajamento dos mediadores da CF
com o que é nomeado pela convenção 169 como “as instituições
carlos penteado
representativas” desses povos, uma vez que – como no caso dos
quilombolas de Oriximiná – essas instituições incluem elementos
irreconhecíveis para muitas pessoas de fora.
Como vimos acima, entre esses quilombolas, a ‘sobreposição
de pensamentos’ que tais instituições deve possibilitar é
formado por múltiplas “consultas” prévias e posteriores a uma
reunião coletiva, onde as lideranças devem ser diminuídas
para possibilitar a fala de cada um, que costura o ‘consenso
unânime’ que será votado no final, e que pode ser repensado
posteriormente. Assim, vemos como aquilo que pode parecer
uma redundância política – isto é, a necessidade de visibilizar o
processo consensual político com sua votação unânime no final
de qualquer reunião –, para quem está acostumado com um
sistema representativo ancorado na “votação pela maioria”, toma
dimensões muito diferentes nesse contexto. Portanto, notamos
que, em relação a essa população, a consulta prévia – assim como
a votação – não deve ser pensada como procedimento único, com
data marcada, e sim como processo propriamente participativo,
fortalecedor de uma coletividade que luta por sua sobrevivência,
tranquilidade e alegria há mais de 200 anos.
O que se postula aqui é que, considerando a ampla expansão
dos interesses governamentais-empresariais nessa região, esse
processo permanente de construção de trocas e consensos talvez
serviria como forma para os defensores e mediadores da CF
pensarem sobre o encontro entre governantes-empresas e esse
povo, e principalmente de como a consulta livre, prévia e informada
poderia ser implementada nesse contexto. Ao mesmo tempo,
porém, a forma processual da construção de um consenso coletivo
entre os quilombolas de Oriximiná deve ser entendida, aqui, como
mais do que um possível modelo para o ambíguo procedimento
de consulta prévia, uma vez que esse processo também explicita
a singularidade das suas concepções e práticas sociopolíticas. Ao
explicitar essa singularidade, é possível retomar o primeiro passo,
estabelecido no início deste artigo, que reconhece a experiência
12.
246
histórica e atual dessa população nos encontros e negociações com
pessoas de fora. E, com isso, abriríamos a possibilidade de deixar
as suas concepções e práticas sociopolíticas iluminar aquilo
que nós entendemos como “coletividade”, uma vez que “nós” –
mediadores da CF e/ou pesquisadores – não conseguimos fazê-lo
e defendê-lo com muita facilidade.
Seguimos, nesse sentido, com uma pergunta meio contraintuitiva:
no que envolve a ação do indivíduo entre os quilombolas dessa
região? Na minha observação, o primeiro impulso para muitas
das pessoas de fora que buscam entender, com boas intenções,
a coletividade dos quilombolas é confundir a ênfase desse povo
na coletividade com algum tipo de protecionismo autoritário, que
desrespeita o indivíduo, e que pode ser desaprendido através de
ensinamentos vindos de fora. Esse tipo de concepção acerca do
que é ser coletivo tem uma lógica básica: o indivíduo é a unidade
básica de ação e direitos que pode escolher ser coletivo ou não, ou
será coagido pela coletividade ou por outros indivíduos. Contudo,
no caso dos quilombolas de Oriximiná, é possível identificar
outras concepções onde ser individual – quer dizer, aquele que
age a partir do que é melhor para si mesmo – é uma escolha
e não uma condição, e ser coletivo carrega um peso realmente
ontológico; nesse sentido, os quilombolas são coletivos, mesmo
aqueles que escolheram ser individuais durante a demarcação.12
Na verdade, como mencionado no início do texto, do ponto de
vista coletivo os quilombolas que escolheram a individualidade
durante a demarcação foram os que tiveram a sua cabeça feita,
ou seja, aqueles que agiram como individuais foram coagidos
por pessoas de fora a negar a sua coletividade, a ter preconceito
contra elas mesmas. Muitos deles, porém, parecem lamentar essa
escolha, como se fosse um momento em que eles perderam a
consciência de si. Ao mesmo tempo, como vimos na importância
dada ao pensamento de cada um, a ênfase na coletividade não
diminui a importância da ação de cada pessoa quilombola nesse
contexto, pois a coletividade é construída, mantida e protegida
Comentário pessoal da Dona Legilda, da Comunidade do Varre Vento para mim, em 2009.
pela ação (que inclui o pensamento) e sobreposição dos
indivíduos, e, com isso, a coletividade não abre espaço para uma
capacidade autoritária. A capacidade autoritária, que os meus
interlocutores chamam de ganância, é própria da pessoa que
recusa ou despreza a sua coletividade ou é daquele que nasce
individual – em outras palavras seria própria ao sujeito unitário
do Estado-nação, identificado por Duprat (2002: 42) –, que
considera o outro “apenas a partir do ego”, ou seja, que apreende
o outro “reflexivamente” por meio de si mesmo.
Tomemos o processo de construção do consenso entre os Filhos
descrito acima como exemplo. Do ponto de vista jurídico, as
decisões tomadas nas assembleias de associações como a
ACORQE dependem somente do voto da maioria, refletindo a
estrutura das votações das assembleias legislativas nos níveis
municipal, estadual e federal. No contexto governamental,
sabemos que essas votações dependem de conversas e
negociações entre diferentes indivíduos e grupos, mas, em
termos ideais, o que confirma uma decisão é a maioria dos
votos, composta pelo voto de cada representante dentro da
assembleia. Como vimos anteriormente, o que confirma uma
decisão nas assembleias dos quilombolas em Oriximiná, em
termos ideais, não seria a opinião da maioria, mas o consenso
entre todos. O ideal do consenso unânime, da sobreposição
de pensamentos, é tão forte nesse contexto que em conversas
recentes com os quilombolas sobre a extração de madeira nas
terras quilombolas do Erepecuru e Trombetas, a decisão de
assinar contratos com empresas madeireiras é criticada por
ser tomada de forma apressada e, portanto, por estar baseada
na votação pela maioria e não pelo consenso unânime. Assim,
a operação de negociações internas toma outro sentido para
os quilombolas, não tratando de “politicagens” ou manobras
duvidosas nos bastidores por sujeitos gananciosos – atividades
que, no contexto das assembleias legislativas do governo
brasileiro, têm uma qualidade sombria em contraposição
à aparente transparência e clareza da votação que ocorre
durante as assembleias – e sim de um processo de reflexão,
compartilhamento de informações, sobreposição de opiniões e,
portanto, de construção do consenso unânime. O que se enfatiza
nesse contexto é o comportamento adequado a um coletivo –
envolvendo receber, escutar e responder ao outro – em busca da
formação de pontos de conexão (e não de identificação absoluta)
e, assim, do consenso. O que gera a desconfiança é aquele que
não recebe o outro em sua casa, aquele que ativamente tenta
impor determinada opinião ou que se ausenta da coletividade
para fazê-lo, como aqueles que se isolam e não participam
das reuniões coletivas, ou que não estimulam a formação do
consenso unânime e recorrem a um mecanismo externo (como
a votação pela maioria) para forçar determinada decisão.
Por que esse processo de negociação é pensado de forma tão
diferente entre os quilombolas de Oriximiná? A forma com
que esse povo define a formação do indivíduo, quer dizer, a
formação do pensamento e da ação de cada um, nos ajuda a
ampliar essa “comparação tradutiva”, pois nos permite refletir
sobre a existência de outros tipos de indivíduos, que não
sejam os sujeitos unitários e egocêntricos do Estado-nação,
assim como identificado por Duprat (2002). Nesse sentido, é
importante compreender o que é a família coletiva no Erepecuru,
especificamente no que se refere à formação da criança coletiva
e, portanto, da pessoa coletiva. Nesse contexto, como em
muitos outros, a vulnerabilidade da criança é enfatizada nos
seus primeiros anos de vida, mas nesse caso, essa fragilidade
é explicada pelo fato que a criança ainda não tomou ciência
de si e que, portanto, ela tem um corpo aberto e não consegue
controlar as suas interações com outros. Assim, os seus pais,
avós e padrinhos, principalmente, constroem defesas em torno
da criança, ao controlar a comida que ela ingere e o espaço
que ela habita, até ela poder se conhecer como gente – o que
normalmente ocorre em torno dos sete a dez anos de idade,
dependendo da criança. Isso não significa que os pais não
permitem à criança ser afetada por agências externas, mas que
o seu bem-estar e, portanto, a sua formação enquanto pessoa
dependem de interações controladas com tais agências.
247
carlos penteado
Nesse sentido, para usar um exemplo bem concreto, a boa formação
da pessoa, segundo os filhos do Erepecuru, é influenciada por
agências externas como, por exemplo, os espíritos responsáveis
por cuidar da caça na floresta (chamados de mãe da caça) que
interagem com a mãe do corpo da criança (órgão que regula a
circulação de sangue no seu corpo, entre outras coisas) através da
comida que ela ingere, por intermédio do caçador – normalmente
o seu pai, mas muitas vezes também seu padrinho ou tio – e de
quem prepara a sua comida (a sua mãe, avó, tia ou madrinha).
O intermédio bem-sucedido (e controlado) dos adultos que
formam a defesa em torno da criança depende das decisões que
eles tomam durante a caça ou o preparo do alimento, que deve
levar em conta o fato de que a comida não será ingerida somente
pelo sujeito que caça ou que cozinha, mas também pelo sujeito
vulnerável que recebe a comida e cujo corpo responderá através
do bem-estar ou da doença. Esse controle significa que, entre
outras ações, o caçador deve evitar matar uma quantidade muito
grande de presas, respeitando a sua interação controlada com a
mãe da caça, e que a pessoa que alimenta a criança deve preparar
somente comidas que não serão fortes demais para o seu sangue
fraco. Esse tipo de interação e intermédio controlado multiplicase em diversas instâncias em torno de cada criança, e cada
pessoa que contribui para a sua formação fará esse intermédio
de acordo com a sua posição e com o seu dom – aquilo que cada
pessoa faz de melhor, em determinado contexto. Isso significa
que a formação de uma pessoa coletiva, que se conhece como
gente, depende das interações controladas.
Esse tipo de interação controlada também deve estar presente em
torno de outros tipos de atores vulneráveis – pessoas mais velhas
ou adultos adoecidos, mulheres grávidas ou que menstruam,
os sacacas (curadores) dos filhos e, muitas vezes, em torno da
própria coletividade (a comunidade, família extensa ou casal),
que também pode ficar triste, cercada por tudo que é ruim e
cheia de brigas. Assim, podemos pensar no consenso coletivo,
descrito acima, enquanto elemento equivalente à tranquilidade
e o bem-estar da coletividade, prova de que a interação entre
os quilombolas está ocorrendo de forma controlada. Podemos
pensar, portanto, no consenso e na coletividade, que são formados
e mantidos aos poucos e permanentemente no dia a dia, como
equivalente à pessoa, formada aos poucos por um conjunto
de interações e/ou intermédios controlados. Nesse sentido,
também podemos explicitar que a unidade básica sociopolítica
nesse contexto não seria nem o indivíduo egocêntrico, nem
uma coletividade autoritária, pois tanto o indivíduo quanto a
coletividade são o resultado daquilo que denominei, aqui, de
‘interação e/ou intermédio controlado’ – o ato de se dispor a
receber e responder (por pensamento ou ação), enquanto também
se considera aquele que receberá e responderá em seguida.
Portanto, não podemos considerar o indivíduo simplesmente
como fruto da coletividade e nem a coletividade como reflexo
dos indivíduos, porque o que se avalia é o bem-estar de cada um
(coletividade e indivíduo/pessoa); o que se toma como unidade
básica é a qualidade (controlada) da relação e não do termo.
Proponho, então, que a interação controlada com outros é um
elemento constitutivo do processo que forma um consenso
coletivo, da sobreposição de pensamentos, assim como ele é
constitutivo na formação da pessoa. Entretanto, nesse contexto,
isso não implica a aceitação de toda e qualquer opinião externa,
atitude que, para os filhos do Erepecuru, envolve em ter a cabeça
feita por outros – como vimos no caso daqueles quilombolas que
se juntaram aos grandes fazendeiros da região e se opuseram
à sua própria coletividade. Considera-se que, em todo tipo de
relacionamento – entre corpo e comida, mãe e filho, homem
e mulher, e entre diferentes comunidades quilombolas, até a
relação entre coletivos e individuais, quilombolas e o Governo
Federal –, a negociação entre posições diferentes é constitutiva
das pessoas envolvidas, que serão sempre transformadas de
forma positiva por tal negociação, em maior e menor grau, desde
que essa interação ocorra seguindo certas regras, ou seja, de
forma controlada. Podemos detectar esse controle na importância
dada à enunciação do pensamento de cada um, nos encontros
entre coordenadores e/ou outras lideranças com chefes de
249
família, entre diferentes comunidades, como ocorreu durante a
assembleia extraordinária. E esse controle também está presente
na postura idealmente ‘diminuída’ das lideranças durante essas
ocasiões e na animação que elas geram, controles que permitem a
condição de sobreposição, tranquila e alegre entre pensamentos
diferentes, em busca de um consenso.
Nesse sentido, um consenso coletivo efetivo envolve uma decisão,
opinião e/ou posição interiorizada – a partir de sucessivas conversas
e negociações –, que cada coletivo pode defender pessoalmente,
como parte do seu pensamento singular, sem necessidade de
identificação absoluta com ou representação por coordenadores e
outras lideranças. A coletividade é constitutivamente construída,
assim como o consenso é constitutivamente unânime: sem a
construção que ocorre pelo encontro e sobreposição entre o
pensamento de cada um, o coletivo não existe e sem a unanimidade
visibilizada no final de cada reunião, o consenso também não.
EM BUSCA DA CONSULTA
Como voltamos ao início e assim chegamos no final? Retomamos
alguns passos brevemente. Em primeiro lugar, no início
deste artigo, buscou-se argumentar a favor do diálogo direto
entre representantes estatais e povos tradicionais, como os
quilombolas de Oriximiná, em relação à defesa e à garantia de
sua participação nas decisões governamentais que podem afetar
o seu modo de vida. Para tanto, o primeiro passo tomado foi
enfatizar a importância de levar esses povos a sério enquanto
atores políticos e reconhecer as suas lutas permanentes em
defesa das suas comunidades. O segundo passo foi sugerir que no
seu papel enquanto mediadora dos encontros entre esses povos e
governantes, a Constituição Federal – e, especificamente, a sua
defesa de um Estado pluriétnico que deveria garantir os direitos
desses povos – está em fase de enfraquecimento e ataque.
Esse enfraquecimento foi postulado como um dos elementos
que contribui para a dificuldade de definir procedimentos
participativos importantes como a “consulta livre, prévia e
250
informada”. A partir da descrição de como funciona o movimento
entre os filhos do Erepecuru, na conjunção entre assembleias e
trocas de pensamentos, estabeleceram-se alguns dos parâmetros
relacionais necessários para entender os mecanismos
propriamente participativos do processo sociopolítico dos
quilombolas de Oriximiná. Aparece, portanto, a importância
do processo de construção de consenso, prática que garante o
bem-estar coletivo, que está em constante processo de formação,
assim como o corpo coletivo. Sucede que essa formação tem sua
base em interações controladas de troca, de receber o outro e
responder a ele, enquanto se contempla o encadeamento de cada
um desses encontros. E, com isso, volto, nessas considerações
finais, a refletir sobre a dificuldade em definir a “consulta prévia”
e garantir a participação no nosso atual quadro político nacional.
A pergunta que acho importante colocar aqui, como modo de
finalizar este trabalho, é: por que a efetiva contemplação do
outro não aparece como elemento central dos mecanismos
sociopolíticos brasileiros? Por que contemplar o outro, escutar os
pensamentos dos outros e absorver esses pensamentos – de forma
cuidadosa, é claro – quase não faz parte da forma pela qual nos
engajamos socialmente e politicamente com outros coletivos?
O sujeito egocêntrico levantado por Duprat, em contraposição à
pessoa coletiva entre os filhos do Erepecuru, é uma resposta – só
conseguimos contemplar o outro a partir de nós mesmos e não a
partir do próximo –, mas devemos levar essa resposta adiante.
A dificuldade de definir a consulta prévia e a participação dos
povos tradicionais e indígenas nos processos políticos nacionais
que os afetam está justamente na nossa contemplação deles
como sujeitos que agem somente pensando neles mesmos, assim
como nós. Os ataques aos direitos constitucionais desses povos
estão baseados na ideia de que “eles” são pessoas individuais,
como “nós”, enquanto tudo indica que esse não é o caso.
A pergunta é saber, portanto, o que muda nos nossos mecanismos
sociopolíticos quando podemos pensar no outro como realmente
diferente de nós mesmos e, ao mesmo tempo, como alguém que
devemos contemplar e, talvez, deixar que nos ilumine?
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Lúcia. Terras Quilombolas em Oriximiná.
Pressões e Ameaças. São Paulo: Comissão Pro-Índio de
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251
carlos penteado
O EXTRATIVISMO
DA CASTANHA
ENTRE
QUILOMBOLAS
DO ALTO
TROMBETAS
Igor Scaramuzzi
INTRODUÇÃO
Esse ensaio1 visa apresentar uma caracterização geral do
extrativismo da castanha-do-pará entre quilombolas do Alto
Trombetas, com ênfase na descrição de alguns aspectos que
constituem este ramo de atividade e que compõem o que
alguns castanheiros denominam entender2 a mata, castanhais
e castanheiras.
O extrativismo da castanha foi fundamental para o estabelecimento
da população quilombola da bacia do rio Trombetas, atual
município de Oriximiná, desde o tempo de sua chegada na região
no século XIX até os dias de hoje. Como se verá a seguir, tal
atividade é constituinte do modo de ser e viver dessa população
e é um dos elementos que a faz uma unidade sociológica distinta
do entorno.
A população remanescente de quilombos da região de Oriximiná
está estabelecida, além do rio Trombetas, nos rios Erepecuru
e Cuminá e é constituída pelos descendentes de escravos que
fugiram das fazendas e das propriedades que exploravam o
cacau e a pecuária nas regiões de Óbidos, Santarém, Alenquer e
Belém (Andrade, 1995).
A formação dos mocambos ou quilombos nessa região é
documentada através de uma série de fontes históricas, como
registros de viajantes, naturalistas, missionários e documentação
administrativa estatal. O conjunto dessas fontes já foi descrito
e analisado tendo como questões principais a formação dos
mocambos e a história de ocupação territorial da população
remanescente em importantes trabalhos nas áreas de História e
Antropologia, como na tese de doutorado (1995) e em uma série
de artigos posteriores (1999, 2004, 2007, 2009) do historiador
Eurípedes Funes; no livro a respeito da escravidão e formação
dos quilombos na região, de Acevedo & Castro (1998) e em
1.
2.
254
trabalhos que tratam da história da escravidão na Amazônia e no
estado do Pará de forma mais genérica como Salles (1988).
Uma peculiaridade muito interessante da história da formação
de quilombos na bacia do Rio Trombetas é o fato de que
a memória da resistência à escravidão e da formação dos
mocambos permanece viva na tradição oral das comunidades
remanescentes que ocupam atualmente os rios Trombetas,
Cuminá e Erepecuru. Muitas pessoas, especialmente os mais
velhos, contam histórias e narrativas sobre este tempo histórico
que revelam conhecimentos detalhados sobre a chegada na região
e a genealogia dos antepassados, toponímia e sobre as formas de
relação existentes com vários segmentos populacionais.
As fontes orais e documentais sobre o passado dessa população
ressaltam o importante papel do extrativismo da castanha-dopará e outros produtos florestais para a ocupação territorial, para a
constituição da organização social interna, para o estabelecimento
de relações com outros segmentos populacionais e também para
a inserção dessa população na economia regional. Uma hipótese
muito interessante levantada pelo historiador Eurípedes Funes
(1995, 1999) é a de que o extrativismo, especialmente da
castanha-do-pará, foi um fator fundamental para a bem-sucedida
resistência e para o estabelecimento da população quilombola
na bacia do rio Trombetas. A análise documental do autor,
especialmente dos documentos estatais, revela que, conforme
estabeleciam parcerias comerciais diretas e indiretas pelo viés
do extrativismo, as políticas punitivas contra os mocambeiros
ou quilombolas foram se atenuando até desaparecerem. Depois
do fim da escravidão e da mudança de parte da população das
cachoeiras para a região dos lagos, das águas bravas para as
águas mansas, o extrativismo da castanha continuou como uma
atividade fundamental que auxiliou a configuração de um modo
de viver particular em relação às adjacências.
Este ensaio é decorrente de uma pesquisa de doutorado em Antropologia Social em andamento sob o titulo provisório “Extrativismo da castanha e a Natureza entre
quilombolas do Alto Trombetas/PA”. A pesquisa está sendo realizada na Universidade Estadual de Campinas e financiada pela Fundação de Amparo a Pesquisa
do Estado de São Paulo.
Os termos locais mais relevantes à descrição proposta no ensaio estão grafados em itálico.
Pode-se dizer que desde a formação dos mocambos até os dias
de hoje, o extrativismo, especialmente da castanha, é a principal
modalidade de intercâmbio comercial entre a população
quilombola e segmentos regionais. As atividades extrativistas
foram fundamentais para, por um lado, garantir a autonomia
econômica da população quilombola no tempo da escravidão e,
por outro, foram determinantes para a continuidade da ocupação
do mesmo território até os dias de hoje. Com efeito, se tornou
um elemento usado nos contextos de negociação com segmentos
estatais para a distinção sociológica em relação à população rural
e ribeirinha, habitantes da mesma região. Desse modo, além
do fato de serem comunidades remanescentes de quilombos,
o que lhes garante constitucionalmente o direito às terras
tradicionalmente ocupadas, a atividade extrativista, que leva
parte da população a se identificar também como “castanheiros”,
compõe a produção discursiva enunciada em diversos contextos
para justificar, perante os segmentos do Estado Nacional, seus
direitos territoriais.
No rio Trombetas, a população das comunidades está
distribuída nas margens do próprio rio e nas margens dos lagos
adjuntos. A região onde está sendo realizada a pesquisa sobre
o extrativismo é conhecida localmente como Alto Trombetas
e abrange a margem esquerda e direita do rio Trombetas, as
áreas de florestas e castanhais, os lagos e igarapés adjacentes
que ficam a montante da Mineração Rio do Norte. No Alto
Trombetas existem quinze comunidades e o território tradicional
da população quilombola dessa região está dividido em cinco
terras quilombolas: Boa Vista, Moura, Jamari/Último Quilombo,
Alto Trombetas e Cachoeira Porteira. Com exceção de Cachoeira
Porteira, realizei pesquisa sobre o extrativismo da castanha em
algumas dessas comunidades e lugares com grande incidência
de castanhais, como nas margens do lago do Erepecu, onde
trabalham pessoas de diversas comunidades. O extrativismo de
castanha em Cachoeira Porteira possui algumas diferenças em
3.
relação a como ele é praticado nas demais comunidades. Por tais
diferenças, e como não realizei pesquisa nesse local, ele não
será abordado neste ensaio, embora alguns aspectos que serão
destacados sejam comuns em toda região do Alto Trombetas.
Com exceção de Cachoeira Porteira, que possui uma
configuração habitacional um pouco diferente das demais
comunidades, os moradores das comunidades quilombolas
do Alto Trombetas habitam as margens dos cursos d’água
e praticamente não existem casas em locais de terra firme.
Nos espaços de terra firme são realizadas principalmente as
atividades agrícolas. Existem duas categorias locais usadas
para designar tais ambientes: a beira, referente às margens do
rio Trombetas e dos lagos povoados e o centro, que se refere aos
locais de terra firme e aos cursos d’água localizados em locais
distantes de onde moram as pessoas.
As casas estão espalhadas pelas margens do rio e lagos e
praticamente não formam aglomerados. Para aquele que não
conhece a região, seria muito difícil distinguir o espaço de cada
comunidade, já que as casas formam um continuum no curso
do rio e margens dos lagos. Em alguns casos, as comunidades
recebem os nomes dos lagos onde estão localizadas as casas,
como comunidade do Abuí ou comunidade Tapagem.
A maior parte do território tradicional dessa população ainda não
foi regularizada como terra quilombola e o principal empecilho está
relacionado à sua sobreposição a duas unidades de conservação:
Reserva Biológica do Rio Trombetas (Rebio Trombetas) e
Floresta Nacional de Saraquá-Taquera (Flona Saraquá-Taquera).
Além da sobreposição com as unidades de conservação, existe
a cerca de trinta anos na área de uso e ocupação quilombola a
extração de bauxita em grande escala, realizada pela Mineração
Rio do Norte (MRN), a qual possui planos de expansão para um
futuro próximo que caso se concretizem, trarão grande impacto
sobre uma porção significativa deste território.3
Para maiores informações sobre a atividade minerária no território quilombola consultar o site da Comissão Pró- Índio de São Paulo www.cpisp.org.br e o livro
produzido pela mesma ONG intitulado “Terras Quilombolas em Oriximiná: pressões e ameaças” (Andrade, 2011).
255
Aparte os problemas gerados por conflitos territoriais, um desafio
importante a ser enfrentado pela população quilombola do
Alto Trombetas é pensar e elaborar formas de gestão territorial
aliadas à geração de renda. Um dos caminhos para a gestão, o
manejo ambientalmente adequado e o incremento de renda é
o aprimoramento das atividades extrativistas, especialmente
da castanha-do-pará. Atualmente existe uma cooperativa, a
Cooperativa do Quilombo, que engloba parte dos habitantes das
comunidades e que busca o escoamento e a venda da castanha
em maior quantidade sem passar pelo crivo de atravessadores.
Também existe para o futuro próximo o plano de construção de
uma pequena usina para o beneficiamento do produto, buscando
agregar mais valor e, por consequência, gerar uma maior renda
para os extrativistas.
A COLETA DA CASTANHA
A castanheira
A castanha-do-pará, seu nome mais conhecido, castanha do
Brasil ou castanha da Amazônia (Bertholletia excelsa) é uma
árvore nativa da Amazônia de grande porte e longevidade,
que se encontra distribuída de forma descontínua em todo
bioma amazônico, notadamente em florestas de terra firme.
Na taxonomia botânica, a castanheira pertence à família das
Lecythidaceae e é a única espécie do gênero Bertholletia.
Tanto para a taxonomia botânica, quanto para os extrativistas
do Alto Trombetas, a castanheira não possui variedades na
espécie, mesmo apresentando diferenças significativas quanto
ao comprimento e largura do tronco e do caule, tamanho dos
ouriços, tamanho, quantidade e número de castanhas por ouriço,
entre outras diferenças. Geralmente, as castanheiras habitam
ambientes com alta densidade populacional de sua espécie,
lugares que são conhecidos como castanhais. As sementes das
castanheiras, as castanhas, são abrigadas em um fruto lenhoso, o
ouriço; elas são altamente nutritivas, de agradável sabor e muito
256
apreciadas no mercado internacional e nacional. Sabe-se que
são utilizadas por populações indígenas desde os tempos précolombianos e que sua comercialização em grande escala ocorre
desde o século XIX (Shepard & Ramirez, 2011). Atualmente,
a castanha-do-pará é o mais importante produto florestal não
madeireiro comercializado na Amazônia.
Na região do Alto Trombetas, as castanheiras ocupam ambas
as margens do próprio rio, principalmente nas proximidades
das áreas habitadas pelos quilombolas; as margens e entorno
dos lagos; as margens e entorno de alguns igarapés e o interior
da floresta em lugares distantes dos cursos d’água. A margem
esquerda do rio, sobreposta quase que totalmente pela Rebio
Trombetas, é onde fica a maior parte da população de castanheiras.
Nas águas mansas, região dos lagos, a população de castanheiras
está situada principalmente nas margens e no entorno dos lagos
e igarapés. Na área de uso e ocupação da comunidade Cachoeira
Porteira, localizada a montante da região dos lagos, no trecho
de águas bravas do Trombetas, não existem grandes lagos e a
população de castanheiras ocupa as margens dos igarapés e
também lugares mais distantes dos cursos d’água.
Designações dos coletivos de castanheiras
Além de castanhal, os extrativistas do Alto Trombetas possuem
outros termos para designar coletivos de castanheiras.
O mais importante e mais usado é ponta de castanha. Pontas
de castanha são porções de terra circunscritas, geralmente de
pequena extensão em comparação aos castanhais, que podem ser
percorridas em pouco tempo e que são ocupadas quase em sua
totalidade por castanheiras. Castanhal é localmente usado para
se referir a porções territoriais muito grandes, habitadas em sua
maior parte por castanheiras. Normalmente, este termo é usado
para se referir a uma população de castanheiras muito grande e
de forma vaga ou genérica. Pode-se dizer, por exemplo, que toda
a margem esquerda do rio Trombetas, desde a área da mineração
até Cachoeira Porteira é um castanhal só... Os castanhais, devido
à sua extensão, não são conhecidos em sua totalidade, mas
somente algumas porções então designadas pontas de castanha.
As pontas de castanha são as unidades espaciais mais importantes
na atividade castanheira. Suas características principais são a
pequena extensão, limites definidos e o fato de sempre possuírem,
desde que freqüentadas por alguém, um nome próprio. É baseado
nas pontas de castanha que o conhecimento sobre o ambiente do
castanhal se desenvolve no âmbito da atividade extrativista, ou
de acordo com a fala de alguns castanheiros, é a partir delas que
se desenvolve o entender a respeito dos ambientes de castanhal.
Quando um bom castanheiro diz que conhece, ou que entende,
a mata de uma ou de um conjunto de pontas de castanha, ele
quer dizer que sabe detalhadamente os melhores acessos às
castanheiras, tanto por terra quanto por água; a localização de
muitas dessas árvores; a qualidade e produtividade delas; os
locais mais apropriados para a caça e/ou pesca e para a coleta de
espécies vegetais; os tipos de vegetação, composição hidrográfica
e relevo; os nomes das pontas de castanha e onde elas “começam
ou terminam” em várias direções. As pontas de castanha possuem
como limites elementos dos mais diversificados, tais como
pequenas cabeceiras, morros, pés de morros, baixas, algumas
castanheiras específicas, estradas e caminhos feitos pelas pessoas.
De mesmo modo, seus topônimos podem não ser estáveis e seus
limites podem ser muito variáveis: castanheiros diferentes que
trabalham em uma mesma ponta podem delimitá-la de modo
diferente e darem nomes diferentes para ela de acordo com suas
experiências particulares atreladas a esses lugares.
O entender uma ponta de castanha ou um conjunto delas também
perpassa pelos nomes que recebem dos castanheiros. Seus nomes
próprios reverberam características ambientais e a presença de
espécies animais e vegetais específicas como, por exemplo, ponta
da Jararaca ou ponta do Tauari (espécie de árvore); as qualidades
e atributos das castanheiras, como ponta Panema (castanheiras
4.
ruins de produção) ou Paciência (as castanheiras jogam os frutos
somente no fim da safra); as experiências pessoais de um ou de
um conjunto de castanheiros, como ponta das mulheres (entorno
de onde aconteciam bailes e festas no castanhal durante a safra)
ou ponta do Relógio (que dava muita castanha e, por isso, os
castanheiros usavam o dinheiro ganho para comprar colares
e relógios); os nomes de famílias e de antigos moradores ou
coletores, como ponta da Jovita ou do Paulino.
Os castanhais que fazem parte do território tradicional dos
quilombolas da bacia do rio Trombetas possuem um conjunto de
centenas de pontas de castanha, que, por sua vez, através de seus
nomes próprios, revelam um enorme aglomerado de histórias,
experiências coletivas e subjetivas daqueles que coletaram
castanha nesses locais ao longo do tempo:
Olha, eles, os antigos, lá davam o nome, vários nomes,
sabe? Que até é difícil a gente dizer assim, nome por nome,
porque castanhal eles dão muitos nomes; se eles matavam
um inambu, eles dizem “olha, essa ponta é do inambu”; se
for um mutum, “essa ponta é do mutum”, assim, qualquer
encontro que tenha ali, eles dão aquele nome. Isso até que
todos são cheios de nomes; só esse lago do Farias aqui, se
você ver os nomes que ele tem, são muitos: é Cabeceira do
Quati, Tirirical, é assim, Cabeceira da Serra, são vários
nomes que eles dão no castanhal.
“Seu” Santana, comunidade Tapagem.
Para se ter uma ideia da quantidade de lugares nomeados no
território das comunidades quilombolas dos rios Trombetas,
Erepecuru e Cuminá, acompanhando um experiente castanheiro
durante a pesquisa de campo, eu pude percorrer e identificar
cerca de trinta pontas de castanha em um espaço que no tempo
das antigas colocações era possível trabalhar de cinco a dez
famílias e que hoje acolhe mais ou menos o mesmo número de
pessoas.4 É um castanhal de pequena extensão se comparado
Colocações eram espaços circunscritos onde famílias praticavam o extrativismo da castanha no tempo em que esses eram comandados por supostos proprietários,
chamados de patrões. Os patrões controlavam o acesso, os direitos de uso das castanheiras e a comercialização da castanha em grandes extensões do território
tradicional dos quilombolas. Maiores detalhes no decorrer do ensaio.
257
carlos penteado
com outros castanhais como, por exemplo, os situados nas
margens do lago do Erepecu, onde os maiores possuíam
capacidade para abrigar, nos tempos dos patrões, mais de vinte
famílias, cada qual com sua colocação. É impressionante
imaginar a riqueza de histórias, eventos e experiências que
se pode vislumbrar pelos nomes das pontas de castanha, em
um território que existem centenas de famílias trabalhando no
extrativismo e em que uma mesma população coleta castanha
há pelo menos três gerações.
O conhecimento sobre as castanheiras ocorre tanto em termos
coletivos como individuais. Geralmente, os extrativistas
possuem um conhecimento detalhado de muitas castanheiras
individualmente, pois o extrativismo da castanha de escala
comercial é quase sempre realizado de forma seletiva.
Tal como as pontas de castanha, as castanheiras possuem
nomes ou, como dizem, apelidos, que designam, por exemplo,
as características morfológicas dos ouriços e sementes
– castanheira quebra terçado (ouriços muito duros de
quebrar); o gosto de um castanheiro por determinada árvore –
castanheira do Almerindo (nome do castanheiro que gosta de
coletar castanha nessa castanheira toda a safra); os atributos
e qualidades produtivas da castanheira – castanheira da
necessidade (em um momento difícil, com pouco dinheiro
e dívidas com regatões, um castanheiro encontrou com
ela bamburrada de castanha) – e assim por diante.
Um dos requisitos principais para ser um bom castanheiro
é o conhecimento detalhado da localização, dos atributos
produtivos e das características morfológicas, principalmente
dos frutos e sementes, de muitos indivíduos castanheiras.
Quando se diz que entende uma população de castanheiras,
isso significa que o castanheiro sabe o tamanho e fase da vida
das árvores; o formato dos caules; presença ou não de ranhuras
no tronco. Como a relação estabelecida com as castanheiras
acontece com maior intimidade pela via dos frutos, se dá grande
destaque e detalhamento a diversas características dos ouriços
e das castanhas como o formato, cor e tamanho; se os ouriços
são duros ou moles para quebrar; quantas castanhas existem
em cada ouriço; se as castanhas são graúdas ou miúdas; se as
castanhas de cada árvore possuem pouco leite ou muito leite;
pouco ou muito óleo. Também é comum saber a quantidade
aproximada de ouriços que cada castanheira produz anualmente
nas safras anteriores:
O castanheiro conhece as árvores, ainda tem isso,
conhece a mata e as árvores. Cada árvore! Ele chega
aqui e já sabe que ali tem uma castanheira. Ele já vai
direto nela, quando ele pega lá, ele já sabe que pra ali
tem outra, então quando ele enxerga ali, longe, ele já
sabe a castanheira que ele vai. Ele conhece as árvores.
Uma por uma. Onde a gente trabalha em castanha,
a gente conhece as árvores. Sabe qual dá mais, sabe
qual dá menos, qual é graúda qual é miúda, quando
ele chega lá, diz “parece que essa castanha é meio
miúda”, ou então, “essa castanha aqui é dura rapaz,
pra quebrar!”, tudo eles sabem.
“Seu” Santana, Comunidade Tapagem.
Os conhecimentos que incluem os saberes sobre a localização
das castanheiras, sobre as características paisagísticas e
ambientais das pontas de castanha; sobre os habitats das
espécies cinegéticas e de outras espécies vegetais, destinadas
à obtenção de alimento e aqueles sobre a morfologia e
produtividade de diversos indivíduos castanheiras, são muito
valorizados valorizado entre os extrativistas e, como se verá
a seguir, possuem um modo de transmissão que enfatiza a
restrição. Estes conhecimentos não são repassados a qualquer
pessoa e há o desejo pela exclusividade como um dos
mecanismos que os constituem.
Período da safra e o ciclo das águas
No rio Trombetas, o período da safra da castanha se estende, com
algumas variações de ano a ano, do mês de janeiro ao mês de
maio ou junho. Neste período, castanheiras jogam, como dizem
259
os castanheiros, os ouriços maduros no chão quando são então
coletados. Existem variações no que diz respeito ao período de
jogar os ouriços. Algumas árvores começam a jogar logo no início
da safra e outras somente no final. Segundo os castanheiros, esse
fator varia tanto em termos coletivos, de um castanhal ou ponta
de castanha para outro, como também de uma árvore para a outra
no mesmo lugar.
Em parte dos locais de trabalho o acesso é possível em todo
o inverno, mas é o nível das águas que regula a possibilidade
do transporte da castanha coletada. Assim, muitos castanhais,
principalmente aqueles mais distantes da margem dos cursos
d’água, são freqüentados desde o início do inverno, mas o
transporte do produto é realizado no decorrer da estação,
conforme o maior nível das águas.
O período da safra da castanha abrange exclusivamente a estação
do inverno que se inicia no mês de janeiro e termina no mês de
junho. Ela possui temperaturas mais amenas e maior índice de
chuvas do que a época do verão. A diferença mais aparente entre
as duas estações na paisagem da região é o nível das águas do rio
Trombetas, lagos e igarapés adjacentes. No verão, em parte do
rio Trombetas e em alguns lagos e igarapés ocorre a formação de
belas praias onde se observa a desova de quelônios no alto desta
estação. No período do inverno, grande parte da vegetação nas
adjacências do rio Trombetas fica inundada formando imensos
igapós, como se chamam as florestas alagadas, que passam, com
o decorrer do inverno, a serem percorridos com o auxílio de botes
ou cascos e rabetas5.
Dizem os castanheiros que existem muitos locais no território
quilombola em que a castanha estraga, pois nesses locais as
árvores estão situadas muito distantes das águas, mesmo no
período do inverno. Sendo assim, se torna difícil o acesso para
coletar e, principalmente, escoar a castanha desses locais. No rio
Erepecuru, onde se situam diversas comunidades quilombolas
extrativistas com relações de parentesco e afinidade com aquelas
do rio Trombetas, muitos castanhais estão distantes do acesso
fluvial. Nesses casos, o transporte é feito por estradas, em
caminhonetes e mulas até o acesso fluvial. Na região do Alto
Trombetas, o escoamento da castanha do interior da floresta até
o acesso fluvial é realizado em paneiros, cestas trançadas com
capacidade de carga variada, que são carregados pelos próprios
extrativistas. Posteriormente, o escoamento por via fluvial é
feito através de cascos ou botes até os locais de moradia, os
acampamentos sazonais ou até os locais de venda.
A coleta da castanha-do-pará tem uma relação íntima
com o ciclo das águas, pois nessa região ela depende
fundamentalmente da possibilidade de acesso e de escoamento
do produto pela via fluvial.
O acesso a áreas distantes dos lugares de moradia depende
estritamente do nível das águas. Geralmente, são lugares
localizados próximos aos igarapés adjacentes do rio Trombetas e
dos lagos em todo o território dos quilombolas. A maior parte das
cabeceiras e furos6 dos lagos, e também dos igarapés, somente
se torna navegável por cascos e rabetas na metade ou no fim
da estação das cheias. É, então, somente nesse período que a
empreitada da coleta da castanha é realizada em parte dos
castanhais e pontas de castanha.
5.
6.
260
O regime das águas orienta também a sequência dos lugares de
coleta da castanha. De modo geral, é nos castanhais e pontas de
castanhal localizados nas margens do rio Trombetas e lagos como
o do Abuí, Tapagem, Erepecu, onde se situam as comunidades
quilombolas, que ocorre a primeira etapa do trabalho de coleta.
Posteriormente, ou, em alguns casos, de forma concomitante,
são freqüentados os lagos e igarapés mais próximos aos locais
de moradia permanente, como o lago do Jacaré, próximo das
comunidades Tapagem e Abuí; Lago da Tapaginha, próximo da
comunidade do Abuí; Lago do Farias, próximo da comunidade
Botes ou cascos são embarcações de pequeno porte que são conduzidos a remo ou com o auxílio de pequenos motores à gasolina chamados de rabetas.
Furos são canais que se formam nas adjacências de lagos e igarapés no período das cheias que servem de atalhos para a navegação.
Tapagem, entre outros. Quando, finalmente, o rio Trombetas,
alguns lagos com suas cabeceiras e furos e os igarapés estão
com vazão de água suficiente para o transporte por cascos ou
botes, serão então acessados os castanhais e pontas de castanha
situadas nos centros mais distantes. Centro, como já salientado, é
um termo local usada para denotar lugares distantes das margens
do rio Trombetas e dos lagos habitados e mais conhecidos.
Por isso, embora possa ser mais lucrativa àqueles que se dispõem
a ir a tais lugares, tal empreitada é sempre considerada arriscada.
Modalidades de coleta da castanha
Entre os quilombolas do Alto Trombetas existem três modalidades
de trabalho de coleta: a coleta nos arredores dos locais de
habitação permanente; a coleta nos acampamentos sazonais e
a coleta realizada no empreendimento conhecido como jornada.
É necessário dizer de antemão que tais modalidades não se
exprimem necessariamente em categorias explícitas, mas são
claramente diferenciadas entre si no que diz respeito ao espaço
em que são realizadas, tempo de permanência no local de
trabalho, tipo de organização, número de pessoas envolvidas
e atividades paralelas desenvolvidas. Tais diferenças são
enunciadas e também podem ser observadas por alguém de fora
que acompanhe e pesquise sobre o assunto.
As três modalidades de trabalho podem ser realizadas de forma
concomitante por pessoas e famílias durante parte significativa
da safra da castanha. Contudo, a execução de todas elas durante
uma única safra não depende exclusivamente da condição,
disposição e vontade dos extrativistas, mas também das cheias
de inverno. Com efeito, quando tais modalidades de trabalho
são executadas em uma única safra por uma mesma pessoa
ou família, são geralmente em períodos distintos. É também
bastante comum que pessoas e famílias executem determinado
tipo de coleta em determinada safra e na safra posterior realizem
outra(s) modalidade(s) de trabalho. São vários os fatores que
influenciam sobre qual modalidade será empreendida em
determinada safra como, por exemplo, a qualidade da safra da
castanha; o dinheiro disponível para investimento inicial na
compra de combustível, alimentação e material de trabalho; a
disponibilidade de membros da família para deslocamentos e a
ausência nas atividades paralelas que exigem maior permanência
nas comunidades, como a reforma de casas e embarcações,
trabalhos de representação política e no âmbito escolar.
A coleta de castanha nos arredores das comunidades é realizada
nos castanhais e pontas de castanha localizados na beira do rio
Trombetas, igarapés e, principalmente, nos lagos habitados ou
naqueles próximos das comunidades em que cada indivíduo ou
família estejam morando. A característica mais importante dessa
modalidade é que é realizada em lugares que se pode ir e voltar
em um mesmo dia para casa. Também, diferentemente das outras
duas, pode ser realizada em dias intercalados ou somente em
alguns dias da semana por pelo menos um membro da família.
A coleta de castanha realizada em acampamentos sazonais é
uma modalidade muito influente entre os quilombolas do Alto
Trombetas. Durante o período da safra da castanha-do-pará, de
janeiro a maio de cada ano, muitos castanheiros acompanhados
ou não da família estabelecem acampamentos, ou barracos,
como dizem localmente, nas margens dos lagos adjacentes ao
rio Trombetas, como o Erepecu, Farias, Jacaré, Murta e também
em alguns igarapés conectados com esses e outros lagos.
Atualmente, a maior parte desses locais está no perímetro da
Reserva Biológica do Rio Trombetas e são, na maior parte dos
casos, locais não habitados ou parcialmente habitados, como é o
caso do lago do Erepecu.
Nos castanhais pertencentes à Rebio Trombetas, existem regras
especiais para a coleta da castanha-do-pará, principalmente no
que diz respeito ao manejo da fauna e flora. A Rebio fica aberta
aos castanheiros dos meses de janeiro a maio para a coleta da
castanha. Para coletar, deve-se fazer um cadastramento prévio
onde se recebe um documento chamado de papeleta. Ela contém
informações como nome do castanheiro, comunidade onde
261
mora, castanhal onde se está trabalhando, número de caixas de
castanha coletadas, nomes dos compradores da castanha etc.
É obrigatório circular com a documentação de identificação
que deve sempre ser apresentada na entrada e saída da Rebio.
A pesca é somente permitida com redes e anzóis com medidas
previamente acordadas e é, sobretudo, direcionada a espécies
mais abundantes e de pequeno porte. A caça e o porte de armas
de fogo não são permitidos na área da Rebio.
Nessa modalidade de trabalho, a coleta da castanha é realizada
diariamente tanto pela manhã quanto no período da tarde,
com exceção dos dias de domingo, considerados dias santos.
Os acampamentos são compostos por famílias nucleares ou,
quando os castanheiros não levam a família, por grupos de homens
parceiros, aparentados ou não entre si. Como se estabelece uma
espécie de ocupação semi permanente, essa modalidade de
coleta exige certo investimento prévio em combustível para
embarcações (barco a motor ou rabeta) e em itens básicos de
consumo como café, açúcar, arroz, farinha, entre outros. A farinha,
base da alimentação local, somente é comprada caso a família ou
castanheiro e parceiros não tenham uma roça produtiva no período
da safra. Por se tratar de um trabalho diário, exclusivo, que envolve
um número grande de pessoas (toda a família ou um grupo de
parceiros) e, como acontece em lugares menos freqüentados do
que os arredores das comunidades, a possibilidade de conseguir
uma grande quantidade de castanha é muito maior do que naquela
em que se trabalha próximo aos locais de moradia.
A terceira e última modalidade de trabalho com a castanhado-pará é denominada localmente de jornada. Jornada é um
empreendimento de curta duração, geralmente entre dez a quinze
dias, em que se vai à busca da castanha em lugares distantes e
de difícil acesso. Esses locais geralmente são distantes do rio
Trombetas e dos lagos mais conhecidos e habitados. O destino
das jornadas e a via de acesso para os castanhais e pontas de
castanha são os igarapés. Geralmente, o período em que se
costuma realizar esta empreitada se dá no mês de abril, na
segunda metade da estação do inverno, quando o nível das águas
262
dos lagos, cabeceiras, furos e dos próprios igarapés está mais
alto. O trânsito é sempre realizado com embarcações pequenas e
com o uso do remo, pois é necessário atravessar longos trechos de
floresta alagada de pouca profundidade e com grande quantidade
de troncos e raízes submersas.
A jornada é a busca por lugares em que existe pouca ou
nenhuma concorrência, ou seja, onde a castanha ainda não foi
coletada na safra vigente. Na maior parte dos casos, os locais
onde se realizam as jornadas são lugares não conhecidos por
todos de determinada comunidade, o que torna possível tentar
averiguar de antemão se ele foi frequentado em determinada
safra por alguém antes de organizar a viagem. Ela não conta
com a presença de mulheres e crianças. Nessa empreitada, vão
somente os homens, em grupos de três a doze pessoas, com o
menor peso e utensílios possíveis, já que o acesso aos lugares é
difícil e porque se tenta sempre trazer toda a castanha coletada
em uma única viagem. Os barracos são feitos geralmente com
cobertura de lona ou palha e são bem pequenos, feitos somente
para comportar a rede e a comida. Os únicos componentes do
rancho da jornada são o café, açúcar e a farinha.
Etapas da coleta da castanha
A coleta da castanha-do-pará é feita em etapas constituídas
por diferentes técnicas e modos de relação com o ambiente: a
observação das copas das castanheiras; a coleta dos ouriços
na floresta; a quebra dos ouriços e retirada das castanhas; o
vasculho, que é o de coleta, realizado no fim da safra, o transporte
da castanha, já fora dos ouriços e. por fim, a comercialização.
Cada etapa traz técnicas corporais diferenciadas e também modos
de uso específicos das ferramentas e apetrechos de trabalho.
Cada etapa acontece, na maior parte dos casos, de acordo com
os diferentes estágios da safra da castanha e com os períodos
distintos da estação do inverno e do ciclo das águas.
Em todas as etapas do trabalho de coleta da castanha é
fundamental a observação das copas das castanheiras para
a tentativa de visualizar flores, bilros, como são chamados os
ouriços em estágio inicial de desenvolvimento e ouriços maduros.
Todavia, antes do início do trabalho de coleta, no início da safra
de castanha ocorre a observação minuciosa da copa das árvores
em busca dos ouriços já maduros. Este trabalho é considerado
muito importante, principalmente para o planejamento do
trabalho de coleta durante toda a safra.
O trabalho de observação ocorre geralmente em todos os
lugares onde um castanheiro vai trabalhar durante a safra.
É uma atividade realizada primordialmente nos castanhais
onde se estabelecem a maior parte dos acampamentos sazonais,
porque naqueles localizados no entorno das comunidades, onde
as castanheiras estão mais próximas aos locais de habitação
permanente, isso pode ser feito no decorrer do ano. Além de ser
distante dos locais de habitação permanente, esses castanhais
recebem restrições de acesso fora do período da safra porque a
Rebio Trombetas se sobrepõe à grande parte deles. Estes fatores
tornam a atividade de observação realizada no início da safra
muito importante, porque os castanheiros, não tendo acesso à
grande parte destes castanhais ao longo do ano, não têm como
estimar com precisão a produtividade que pode ser atingida
na coleta a ser realizada no decorrer da safra. Observar a copa
das castanheiras serve tanto para averiguar as castanheiras que
possuem ouriços já maduros a serem coletados, como também
para fazer previsões da safra do ano seguinte, pois é a presença
de flores e bilros que dão informações sobre a produtividade
futura das castanheiras.
A coleta dos ouriços no chão das florestas é a etapa mais longa
da safra e acontece quando a maior parte das castanheiras está
jogando os ouriços. Nessa etapa, os castanheiros os juntam e
depois os amontoam em pontos estratégicos para a quebra e
o transporte posterior. Ela acontece já no início da safra nos
locais de fácil acesso e quando o nível de águas de lagos,
7.
cabeceiras e igarapés permite que se alcance certos castanhais
e pontas de castanha.
No período da safra de castanha, os meses de fevereiro e março
são considerados o tempo da força da castanha, quando a maior
parte das castanheiras joga seus ouriços maduros no chão.
Nesses dois meses, a etapa de juntar e amontoar ouriços maduros
acontece de forma mais intensa, embora ela se inicie por volta
de janeiro e possa se estender até meados de junho, depois do
fim da safra.
Os apetrechos e ferramentas usados pelos castanheiros são: o
terçado para catar os ouriços do chão e cortar galhos, ramas
e cipós que atrapalham o trânsito fluvial e o caminhar pela
floresta; a bota de borracha para caminhar na mata, transitar
nos locais alagados e evitar os acidentes com cobras venenosas;
o paneiro para transportar e amontoar os ouriços em pontos
estratégicos e depois transportar a castanha; a espingarda (fora
do perímetro da Rebio Trombetas) para caçar e se proteger do
ataque de animais ameaçadores e perigosos classificados na
taxonomia local como “feras”7.
Após o término da coleta, segue-se a etapa do quebrar os ouriços,
retirar e transportar a castanha para o barraco, para casa ou
diretamente para o local onde será comercializada. O trabalho
de quebrar é realizado em concomitância ou posteriormente à
coleta, conforme a modalidade de trabalho e também de acordo
com a necessidade de se obter dinheiro ou mercadorias. Quebrar
a castanha consiste em golpear os ouriços com o terçado,
rachando-os para retirar a castanha de seu interior. Cada ouriço,
dependendo da árvore que o gerou, pode conter de 12 a 25
castanhas. O tamanho das castanhas e a quantidade podem variar
de ouriço para ouriço dependendo da árvore de onde ele veio.
Terminada a etapa do quebrar ou quando a safra está próxima do
fim, no caso do trabalho nos acampamentos sazonais, segue-se a
Categoria taxonômica local que abrange animais ameaçadores aos humanos, como as cobras venenosas, a jiboia, a sucuri e os felinos, especialmente, a
onça-pintada.
263
última etapa de trabalho, denominada localmente de vasculho.
Vasculho é o trabalho de coleta feito no final da safra, em
lugares de acesso mais difícil ou fora de mão dos lugares onde
o castanheiro trabalhou durante a safra. O trabalho de vasculho
pode ser realizado buscando apenas algumas castanheiras
específicas ou ir a pontas de castanha, geralmente de pequeno
porte. A característica principal do vasculho é que a coleta é
realizada em pequena quantidade; se a safra é boa, o resultado
dessa coleta não é a comercialização, mas a castanha pra comer
durante o ano. Caso seja um ano de safra ruim, o vasculho
adquire importância maior e é realizado com mais assiduidade e
com fins estritamente comerciais.
A comercialização da castanha-do-pará é um dos principais
elementos da atividade extrativista. Atualmente, a maior parte
da castanha coletada na região é vendida para atravessadores,
os regatões, também chamados atualmente pelos castanheiros
de patrões, que depois repassam a castanha para indústrias de
beneficiamento em Oriximiná e Óbidos. Os regatões, em grande
parte dos casos, financiam o castanheiro no início da safra
em troca da fidelidade da compra de mercadorias e venda da
castanha. Esse modo de relação é comum em toda a economia
extrativista e recebe o nome de aviamento8. Existe também a
Cooperativa do Quilombo, fundada há poucos anos, que ainda
não escoa parte significativa da produção e não possui adesão da
maioria dos extrativistas. Os regatões, que atualmente são pessoas
tanto de dentro quanto de fora das comunidades, são fundamentais
e consideradas pelos castanheiros como inseparáveis e
indispensáveis para a existência da atividade extrativista.
Além de ser um elemento constituinte e fundamental, a
comercialização da castanha desempenha um papel central para
o entendimento da importância política e econômica da atividade
extrativista entre os quilombolas do rio Trombetas, bem como para
entender a relação dos extrativistas com a castanha. Nessa etapa,
8
264
a castanha coletada é nomeada produto, passa a estar inserida
no mundo do mercado, surgindo então, uma relação de natureza
diversa da estabelecida nas etapas anteriores do trabalho com as
pontas de castanha e as castanheiras.
Usufruto e conhecimentos sobre
castanheiras e castanhais
Entre os quilombolas do rio Trombetas, todas as castanheiras
presentes em seu território tradicional são de usufruto coletivo,
excetuando o tempo em que os castanhais eram controlados por
proprietários particulares, período que abrange o início até os
anos 1970 e 1980 do século XX; e o tempo em que as atividades
extrativistas foram proibidas com a implantação da Rebio
Trombetas nos anos 1970.
Um dos recursos mais usados pelos anciões para explicar a
história dos direitos de uso das castanheiras e sua importância
para o modo de vida das pessoas é contar narrativas sobre o
regime de trabalho das colocações, controladas pelos “donos”
dos castanhais chamados localmente de patrões.
Esse regime foi vigente na região em boa parte do século XX,
da primeira metade até os anos 1970 e 1980 aproximadamente.
Neste período, as áreas de castanhais foram expropriadas dos
quilombolas e transformadas em propriedades particulares
voltadas ao extrativismo comercial da castanha. Os quilombolas,
sem acesso a dinheiro e a mercadorias, foram trabalhar no ramo
extrativista para tais proprietários em regime de aviamento.
A relação de trabalho com os patrões tinha como principal
característica a obrigação por parte do extrativista de trabalhar
em espaços circunscritos, as colocações, e a obrigatoriedade
da venda da castanha coletada e da compra de mercadorias
nos barracões, dirigidos pelos mesmos, por valores muito
assimétricos. A assimetria entre o valor da castanha coletada e
Aviamento é um sistema de crédito que configura relações hierárquicas entre financiador e financiado muito comum a toda economia extrativista na Amazônia.
Para maiores detalhes ver Weinstein (1993), Almeida (1993) entre outros.
carlos penteado
o preço das mercadorias impulsionava a criação de vínculos e
obrigações de castanheiros para com os patrões pelo permanente
endividamento. Embora se tenha um conhecimento significativo
no âmbito acadêmico a respeito da formação e estabelecimento
das populações negras no rio Trombetas, fornecidas por fontes
documentais do século XIX e início do XX, pouco se sabe, no
entanto, a respeito da vida dos quilombolas no período em que
os castanhais eram comandados pelos patrões. Um dos trabalhos
que aborda este período na região é o de Acevedo & Castro (1998)
que apresenta um panorama desse período histórico por via de
fontes documentais, sem, contudo, explorar de forma sistemática
a memória da tradição oral.
Ao conversar com os anciões sobre o extrativismo neste
período, além de salientarem a assimetria das relações entre
castanheiros e os patrões, muitos mencionam o trabalho nas
colocações como mais organizado, mais seguro e mais rentável
do que o atual9. Esta é uma questão muito interessante e
que deve ser tratada em maior detalhe em outra ocasião.
Mesmo destacando elementos da relação com os patrões que
não abordam sua assimetria, o fim do tempo das colocações é
de modo geral entendido como um movimento de emancipação
política e que impulsionou a resistência e a luta pelos direitos
territoriais nas décadas posteriores.
Outro conjunto de narrativas recorrente quando se fala dos
direitos de uso das castanheiras é sobre a história de formação
da Rebio Trombetas e sobre os conflitos passados e atuais com
seus gestores.
Embora tenha sido realizado em alguns lugares e por algum
tempo de forma clandestina, o extrativismo da castanha-dopará na área da Rebio Trombetas, unidade de conservação de
proteção integral, é atualmente permitido, mas, no entanto,
possui um prazo pré-definido pelo órgão gestor da unidade,
9.
266
o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio) e está sujeito a normas e regras estabelecidas por este
instituto. O controle do usufruto da área da reserva, incluindo
o das castanheiras, é sempre envolto em conflitos, pois
envolve as lembranças da expropriação territorial sofrida com
a implantação da Reserva, que aconteceu sem consentimento
e sem discussão prévia nos anos 1970, ainda nos tempos do
Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF),
órgão estatal federal que era um dos responsáveis pela gestão
ambiental da bacia do rio Trombetas antes da criação do Ibama.
Obviamente, por ser parte do espaço de uso e ocupação atual e
por ter sido expropriado de forma violenta e sem consentimento,
parte dos quilombolas entende que a área da Rebio Trombetas
compõe seu território tradicional e que seu espaço deve ser
regularizado e integrado ao conjunto de terras quilombolas dos
rios Trombetas, Erepecuru e Cuminá.
Atualmente, com a possibilidade de praticar o extrativismo “de
forma legal”, surgida por recentes acordos com o ICMBio, os
quilombolas estão gradativamente retomando o controle sobre
os direitos de uso dos castanhais e suas formas particulares de
direitos de uso territorial estão ressurgindo no espaço ocupado
por esta unidade de conservação. Gradativamente, a terra e as
castanheiras existentes na Rebio Trombetas estão voltando a
serem geridas, pelo menos em parte, pelo o que os quilombolas
entendem como “coletivo”.
“Coletivo”, de acordo com sua conotação local, engloba todos
aqueles que nasceram ou possuem pai e/ou mãe, biológicos ou de
criação, nascidos ou moradores de alguma comunidade ou porção
do território quilombola não habitado atualmente que se tornou
parte da Rebio Trombetas. Engloba também pessoas de fora que
se casaram e tiveram filhos com alguém com as prerrogativas
descritas acima. As pessoas de fora permanecem com direto de
Esse aspecto talvez esteja relacionado aos mecanismos, tanto àqueles inerentes a própria relação criada no regime de aviamento, quanto aos que foram criados
pelos próprios extrativistas, que atenuavam a assimetria existente nas relações com os patrões, como destaca Almeida (1993) sobre a economia seringalista e o
sistema de aviamento no Acre.
estabelecer moradia e uso da terra enquanto estiverem casadas
com algum habitante das comunidades. Em caso de separação
no casamento, é necessário negociar com as pessoas do local
onde se mora ou de outras comunidades para poder permanecer
no território tradicional.
No âmbito da organização social interna desta população no
Alto Trombetas, existem restrições quanto ao uso e acesso da
terra conforme a intensidade da intervenção humana realizada.
Casas, quintais, roças e pastagens tendem a ser de uso restrito
de famílias extensas e/ou nucleares. Com relação às áreas de
florestas, igapós, lagos e igarapés, em que ocorre a intervenção
e manejo humano em menor escala, o uso fruto é considerado
coletivo. Isso significa que em tese qualquer pessoa com as
prerrogativas para integrar o que se entende por coletivo pode
realizar a caça, pesca e coleta, em qualquer lugar no espaço
correspondente ao território tradicional quilombola. O que
ocorre na prática, no entanto, é que, embora não haja restrições
formais de manejo e uso, cada pessoa, família nuclear e família
extensa usam, de acordo com determinados critérios, fragmentos
específicos do espaço territorial.
O elemento norteador que restringe, ou melhor, fragmenta o
manejo do espaço, configurando uma lógica local de uso e
ocupação das áreas florestais e das águas, é o conhecimento que
pessoas e famílias possuem advindo de relações de longa duração
com os lugares onde moram, trabalham e circulam. A coleta da
castanha está inserida nesta lógica, pois, como sempre enfatizam
os castanheiros, somente se coleta castanha em lugares que se
entende a mata e/ou com quem entende. O entender é o que dá
sentido a como funcionam os direitos de uso de certas porções
territoriais, como também especificamente dos castanhais.
O entender é necessariamente fragmentário e funciona de
acordo com as histórias e experiências de pessoas e famílias.
Ele é desenvolvido pelo convívio e a experiência pelo viés
da prática da caça, da pesca ou da coleta em determinados
lugares. O entender uma mata ou um lugar é permeado por
diversos fatores, tais como o local de origem e de nascimento
da pessoa e de seus antepassados, a distância geográfica de
áreas e florestas e águas dos lugares de habitação permanente,
o estabelecimento de parcerias ao longo da vida, a capacidade
individual de explorar novos lugares e, por fim, por predileções
espirituais. Ele cria muitas vezes vínculos que extrapolam a
duração da vida dos pioneiros que encontraram e passaram
a frequentar determinados lugares. Geralmente, o entender
perdura por gerações e está sempre se renovando de acordo
com as novas experiências das pessoas com tais lugares.
Algo importante a dizer é que ele precisa estar sempre se
renovando, tanto em termos individuais, coletivos, como
também geracionais, pois como dizem os castanheiros: “o mato
está sempre mudando”.
Como já salientado, no caso da atividade castanheira, entender
significa, além de saber sobre a disposição, distribuição
e produtividade das castanheiras, ter conhecimento de
outros aspectos do castanhal ou ponta de castanha, como as
configurações paisagísticas que envolvem relevo, hidrografia
e vegetação; as histórias dos antepassados que frequentaram
tais lugares; os melhores caminhos e atalhos; os locais
favoráveis para a caça, para a pesca, para coleta de frutos,
para constituição dos acampamentos. Decerto, é muito difícil
um castanheiro, uma família de castanheiros ou um grupo de
parceiros estabelecerem acampamento sazonal ou irem para
uma jornada em um local que ninguém tenha frequentado
anteriormente, mesmo que de modo superficial.
Tendo em vista os direitos de uso das castanheiras vigentes entre
os quilombolas, o que garante alguma exclusividade de uso é,
sem dúvida, a transmissão restrita de conhecimentos a este
respeito. O conhecimento que constitui a prática extrativista,
por ter em sua constituição o desejo da exclusividade é,
portanto, somente transmitido em contextos e relações sociais
muito específicos. Por desejar a ausência de concorrência,
todo bom castanheiro prefere trabalhar solitariamente ou, no
267
máximo, com a companhia da esposa e dos filhos, como salienta
o depoimento a seguir:
(...) esse negócio de não levar em castanheira, a gente
chama pra isso, reservado. Isso veio desde o princípio.
Veio, até os velhos que… e eles que tinham mesmo
isso. É costume mesmo deles, olha eu tenho certeza que
tem nego aí que já morreu, que eu conheci, que tem
castanheira que nunca mostrou pra ninguém, nunca na
vida! Tem uns que ainda mostram pra filho, mostravam.
Desses agora que sabem, mas tinha deles, que não, não
mostrava mesmo, de jeito nenhum! Onde ele ia numa
castanheira, “já terminou a castanha”,“já, está no
vasculho, agora eu vou lá no meu reservado”; às vezes
ele falava pra mulher, “olha, eu vou pra tal lugar”, às
vezes, nem pra mulher. E já chegava com o paneiro cheio
de castanha: “andando por aí, achei uma castanheira
em tal lugar”, não, ele já sabia daquela castanheira há
muitos anos, deixou cair tudo pra ir lá buscar. Mas isso
rolava muito entre os antigos…
“Seu” Edilson, comunidade do Abuí.
A maneira mais eficaz e mais radical de se impedir a concorrência
é dificultar que outras pessoas conheçam e tenham acesso aos
locais em que se trabalha. Quando muita gente passa a frequentar
um lugar antes conhecido por poucas pessoas, se costuma dizer
que “estragaram o lugar” ou “o lugar está estragado”. Este tipo
de afirmação é bastante comum na região para se referir a
diversos lugares pouco conhecidos há alguns anos ou décadas e
que foram “popularizados”:
É o seguinte, se, por exemplo, eu levo o Edilson este
ano lá, aí no outro ano, que o Edilson já sabe, ele
não vai me esperar e já vai levar outro, aí no outro
ano que vier, aí ele não vai esperar o Edilson e vai
levar esse aqui, aí no outro ano que vem esse aqui já
não vai esperar e vai levar outro, assim que está lá…
Está uma bagunça que…
Eliézio, comunidade do Abuí.
268
Aí fica bagunçado… Nesse sentido, que o parceiro está
falando. Sendo só um ou dois que sabem, que conheça,
aí, vamos supor, se os outros não soubessem, quando ele
fosse daqui, ele ia lá e a castanha estava lá.
“Seu” Almerindo, comunidade Moura.
Para evitar que outros acessem alguns de seus pontos de trabalho,
os extrativistas do Alto Trombetas desenvolveram diversas
tecnologias e modos de circular pelos lugares que procuram
não deixar vestígios e pistas a outros castanheiros. O caminhar
e o navegar devem ser sempre sutis: sem fazer muita zoada,
cortando somente os galhos e o mato que realmente atrapalham
a passagem, o que implica no uso moderado do terçado.
Esse procedimento, como implica em andar pela vegetação
densa, requer corpos atentos com os espinhos, formigas e insetos
que picam, como as temidas abelhas com ferrão, as cabas.
Quando se transita pelos igapós e igarapés pouco frequentados,
costuma-se navegar com cascos e botes pequenos e instáveis
pelo meio da vegetação submersa. O caminhar também requer
passos calculados; a velocidade da caminhada não aparenta ser o
mais relevante. Mais importante é evitar quebrar galhos e alterar
menos possível o entorno. Esse conjunto de procedimentos
também define o modo de relação com o ambiente; nunca se
faz trilhas ou caminhos marcados nos castanhais para se chegar
a castanheiras específicas e nem nas passagens nos igapós e
igarapés. Aparentemente, no caso do caminhar, com a ausência
de trilhas demarcadas, são as castanheiras que ditam o rumo da
caminhada, e a ordem das castanheiras que serão visitadas pode
ser diferente quando se caminha e se coleta no mesmo lugar mais
de uma vez na safra. Essa característica dificulta a locomoção
daqueles que não conhecem e não possuem intimidade com os
lugares em questão:
Seja pra onde a gente conhece, mas aonde mais ou
menos a gente calcula que a gente dá conta de andar,
nós não fazemos caminho. E onde esse pessoal que
vem de fora anda, ali perto do lago onde eu morava,
tem um senhor que não é dali; você tinha gosto de
andar na estrada dele. Tanto faz se em terra, como
na água, sua canoa não esbarrava tanto no mato,
só naqueles paus mesmo que tinha que esbarrar, mas
era tudo limpo. Cabeceiras fundas assim, grandes;
ele fazia as estradas, ele era o castanheiro lá. Eu ia
no fim dela tranquilo. E nós daqui do Trombetas já
não temos esse costume.
“Seu” Edilson, comunidade do Abuí.
No contexto do extrativismo onde imperam tais técnicas,
tecnologias e modos de relação com o ambiente, além dos
conhecimentos sobre as castanheiras e sobre outros seres vivos
que lá habitam, se dá muito valor, quando se fala em entender a
mata, à capacidade de se orientar com perspicácia sem caminhos
delimitados, de se locomover por atalhos e chegar de forma rápida
e sem muito trabalho onde se necessita. O sistema de orientação
que utilizam para circular nesses lugares sem o auxilio de
caminhos ou trilhas delimitados é composto por elementos muito
diversificados e que em alguns casos se apresentam sobrepostos
entre si, como por exemplo: os contrastes paisagísticos – morros,
enseadas, várzeas, igapós, pés de serra, as baixas; os poucos
caminhos ou estradas que dão acesso para algumas pontas de
castanha; algumas castanheiras específicas e outras árvores,
geralmente fruteiras de grande magnitude; as cabeceiras de
lagos e igarapés:
São as árvores, as pontas de terras, as bocas de
cabeceiras; quantas cabeceiras a gente passa pra chegar
no ponto que a gente quer, quantas pontas a gente passa
pra chegar naquele lugar que a gente quer; inclusive,
pra ali por onde nós vamos com o E., acontece isso com
nós. Tem vezes que erramos, “mas nós passamos tantas
cabeceiras, tantas pontas, a ponta tal, nós ainda não
passamos, está pra frente…”, é assim que nós fazemos.
Boca de cabeceira é o que a gente mais usa, vamos
conferindo as bocas das cabeceiras. Pelas enseadas, que
a gente chama curva, vai conferindo e aí quando, por
exemplo, passam três, quatro, “olha rapaz, já passamos
as três pontas ou as três enseadas, já está próximo de
onde a gente tem que chegar”; porque nós não temos
costume, como o pessoal aí de fora que vem pra cá, pra
esses nossos matos, eles têm o costume de cortar mato,
fazer o caminho deles.
“Seu” Edilson, comunidade do Abuí.
Esses conhecimentos relacionados ao extrativismo, além de
configurarem um modo específico e peculiar de relação com
o ambiente, acabam por constituir também o modo de vida
dessa população e suas formas particulares de uso e ocupação
territorial de modo geral.
Desde que chegaram ao rio Trombetas, os quilombolas
estabeleceram uma convivência de natureza não predatória
com as castanheiras e com seus ambientes e fazem da relação
com elas um dos aspectos importantes de seu modo de viver.
As castanheiras nunca são derrubadas e não há qualquer
tipo de controle ou seleção visando maior produtividade ou
salientar alguma característica específica, tal como acontece
com os vegetais cultivados. Decerto, tais atitudes moldaram
uma relação de boa convivência que perdura há mais de
duzentos anos e que nos últimos anos tem sido ameaçada pelos
empreendimentos hidrelétricos, madeireiros e minerários que
vêm assolando a região da bacia do Trombetas. Por ser de baixo
impacto, o extrativismo da castanha, sem dúvida, contribuiu e
contribui de modo fundamental para a preservação ambiental
do território quilombola.
O conjunto de histórias, práticas e conhecimentos que compõem
o extrativismo da castanha, brevemente descritos neste ensaio,
reiteram a intimidade e os vínculos de longa duração dos
quilombolas com este território, já há muito evidenciado pelas
fontes orais e documentais. Isto não deixa dúvida de que os órgãos
estatais devem atuar como parceiros e ajudá-los a terem seus
direitos territoriais resguardados, assim como também proteger o
ambiente e contribuir para a manutenção do modo de vida dessa
população. O entender as castanheiras, animais, matas, lagos e
269
carlos penteado
igarapés é algo constituinte do modo de ser, conhecer e viver
dos quilombolas do Alto Trombetas, como bem explica as belas
palavras de “Seu” Tinga da comunidade Mãe Cué, com as quais
encerro este ensaio:
Então a vida do negro – do branco ele descobre coisas
pelos estudos, o negro descobre coisas pela natureza;
andando, trabalhando, igual a causa da onça, da cobra
grande, da visagem; o que é a visagem? Ele diz, é uma
visão da natureza. A natureza, ela fala, ela grita, é a
natureza. A terra ela grita, ela espoca, ela quebra; tudo
através da natureza. No caso, a madeira: a madeira
quando ela esbarra uma pra outra, quando vão conversar,
ela grita “ahhhhhhh”, aquilo lá é uma alegria dela, sei
lá, uma conversa dela, ela tem que esbarrar em um galho
com outro; estão se comunicando. E fora disso, estão
cantando, se divertindo através da própria, olha como
elas estão ali agora, mas espia só como elas estão, estão
cantando, olha! E aí? Olha aí como elas estão, olha as
folhas delas como estão; sorrindo, porque, dá o vento nela
e aí ela se alegra; se não dá o vento nela, ela fica triste ali
olhando, igual a nós, quando estamos com fome. Quando
estamos com fome, nós não temos prazer, quando a gente
enche a barriga, dá pra conversar, dá pra brincar!!!
BIBLIOGRAFIA
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271
rogério assis
MICROPEÇAS
SOBRE GÊNERO
E CAÇADA JUNTO
AOS ZO’É
Leonardo Viana Braga
NINGUÉM SE COMPARA A TIKARUK
Gemidos rompem um momento de quase absoluto silêncio.
Realizam incentivos. As crianças ali presentes, meninos e
meninas, projetam-se em direção ao animal. Estão munidas
de ímpeto e euforia além dos gravetos secos transformados em
armas com as quais elas riscam o ar. Em segundos é abatida
a solitária borboleta, cuja desatenção fez cruzar o caminho de
pequenos assassinos. Dedos em pinça exibem o ser de um azul
cintilante e que havia pouco pintava os tons de verde da floresta
em um voo cambaleante. Na boca dos adultos os gemidos dão
lugar a palavras e risadas de celebração, enquanto ao lado o
jovem iniciando mantém pela eternidade daqueles segundos sua
postura indiferente ao acontecido.
Presenciei essa cena em uma caminhada pelas picadas abertas
pelos Zo’é na floresta. Recorrente em outros encontros com essa
borboleta do gênero Morpho, a falta de moderação das crianças
me chamou a atenção. Não pelos perigos impostos pelo animal,
mas pela diferença em relação ao comportamento dos demais ali
presentes. Os gemidos dos adultos pareciam indicar menos dor
do que nostalgia. E o ar do jovem, por sua vez, uma necessidade
de se manter distante. Que tipo de atitude vislumbravam os
adultos que se divertiam com o resultado final da ação daquelas
crianças? Por que aquele jovem não partia em direção à borboleta
e tampouco incentivava as crianças?
Logo em meu primeiro campo junto aos Zo’é, garotos me
descreveram as características da vida de um caçador de acordo
com suas fases da vida. Diziam-me que os meninos pequenos
começam treinando com seus arcozinhos atirando em moitas sem
buscar de início flechar qualquer animal. Quando começam a
crescer já flecham animais como gafanhotos e lagartos; meninos
maiores os ajudam correndo pelas roças e cercando o animal para
que aqueles consigam flechá-lo. Posteriormente, quando estão
começando a se tornar jovens, tentam matar pássaros e macacos,
caso estes apareçam perto das casas. Até essa fase dificilmente
saem dos limites das clareiras para caçar; isso depende de serem
274
suficientemente hábeis para flechar animais de pequeno porte,
macacos, cotias, etc. Em seguida, quase adultos, passam então
a ir para a mata acompanhados normalmente pelo pai, que os
ensina a caçar animais maiores. Vão se tornando cada vez mais
aptos a matar animais como queixadas, caititus, e até mesmo
uma anta. No futuro, quando começarem a envelhecer, estando
quase velhos, voltarão a caçar animais menores, até parar de
caçar, restringindo-se a atividades mais brandas.
Se os limites entre a clareira e a mata evidenciam aspectos
da maturação do caçador, esses limites também podem ser
observados de acordo com diferentes modalidades de caçada, se
assim se pode dizer. Bem perto das clareiras, ou mesmo dentro
das roças, é possível avistar estruturas montadas sobre o chão
com folhas de palmeiras. As chamadas tokej são usadas como
espécie de esconderijo. O caçador entra nessas tocaias de folhas e
se trancafia lá, às vezes por horas, dependendo do surgimento da
caça. Aberturas circulares são feitas mais ou menos na altura do
peito de um adulto, por onde é possível atirar as flechas. As tocaias
são montadas perto de árvores frutíferas na mata ou de pés de
mandioca na roça. Aves como mutuns, jacus, jacamins, além de
cotias, roedor que não possui faro muito apurado, aproximam-se
para comer quando são em geral abatidos. Todo homem a partir de
certa maturidade já caça sozinho nas tocaias, e é o tipo de caçada
no qual os homens mais velhos irão investir quando estiverem
perdendo seu preparo. Esses homens em geral são encarregados
de buscar lenha para alimentar as fogueiras que ficam acesas
todo o dia, sejam as usadas para preparar os alimentos ou as para
aquecer as redes durante a noite. Também são responsáveis pela
pesca de pequenos peixes presentes nos igarapés próximos das
clareiras. É nessa fase de suas vidas que eles se ocupam bastante
do aprendizado de meninos já crescidos. Os velhos podem levar
seus filhos pequenos ou netos para dentro da tocaia e, juntos,
irão dar as primeiras diretrizes para o futuro caçador. Além disso,
os meninos pequenos também se engajam nessas pescarias nas
cercanias. Esses são praticamente os primeiros movimentos de um
menino caçador fora dos limites da clareira.
Outra forma de caçar são as esperas noturnas. Estas são realizadas
somente por homens adultos. Quando a noite já caiu, vai-se da
clareira rumo às árvores que não estejam muito longe. Normalmente
estas já são conhecidas pelos caçadores que costumam voltar
para esperar roedores como pacas e capivaras. Estes sim têm um
faro muito apurado, e a espera em tocaias não é conveniente. Na
bita, nome dado à ação de esperar em cima das árvores, o homem
pode subir até mais ou menos cinco metros de altura com seu
arco e suas flechas apenas tentando escutar os sons ao seu redor.
Quando percebe a presença de uma paca ou capivara, que como os
demais animais caçados em tocaia vêm procurar frutas no pé das
árvores, o caçador se concentra para, no momento certo, acender
sua lanterna e focar no rosto do animal. O clarão da luz em meio
à escuridão da floresta atordoa a caça por alguns segundos, tempo
suficiente para o caçador preparar o tiro e tentar flechar o alvo.
A bita é também uma forma de caçar mais recorrente na vida de
um homem conforme vai ficando mais velho.
A bita e a tokej, enquanto formas de esperar a caça, podem ser
pensadas em contraposição a outras duas formas de caçada: ywy
pe e jupit. A primeira ywy, “terra”, “chão”, pe, “caminho”, é o
modo de caçada próprio para caçadores com muita disposição.
Exige longas caminhadas, engajamentos de até dez horas pela
mata em um único dia. Inclui a busca por animais terrestres
como porcos, antas, veados, tamanduás, além de macacos que
vivem em árvores mais baixas como macacos-prego, poroaçus.
Esses animais possuem bom faro e audição, e por isso são
vistos como animais que pensam muito bem ou são espertos.
Dificilmente se aproximam das clareiras. Daí a exigência das
longas caminhadas. Todavia os caçadores não andam a esmo.
Primeiro porque os Zo’é se dividem internamente em grupos
de famílias que possuem cada um suas fatias do território.
Dentro desses domínios estão seus caminhos de caçada (cf.
Havt, 2001). Estes levam para regiões nas quais esses animais
habitam com maior regularidade. Os caminhos nem sempre são
visíveis para quem não está acostumado com a mata. As picadas
em determinados momentos se desfazem, e o caçador segue
pela mata fechada de acordo com algum sinal que evidencie
a presença da caça. Isso é necessário uma vez que os animais
também percebem os rastros deixados pelos humanos. Mas isso
não evita possíveis vacilos dos animais. Esses podem chegar
muito perto do caçador sem perceber a presença deste último
que, por sua vez, ao notar o animal, embrenha-se correndo pela
mata contra galhos que lhe riscam a pele, pedras, espinhos e
gravetos que perfuram seus pés, esperando ser por algum
momento mais rápido que o animal e o flechar no lugar ideal.
Os Zo’é dizem que os animais terrestres devem ser acertados
entre as costelas e os macacos, na parte frontal do peito, sempre
visando o coração. Sempre que um homem está contando uma
história sobre os feitos caçadores é possível vê-lo fazer gestos
muito peculiares: estica os braços e estrala os dedos como se
estivesse atirando e, em seguida, dependendo do animal, bate
com a mão fechada nas próprias costelas, ou com as pontas dos
dedos na cavidade torácica.
Por sua vez, jupit, “subir”, é como os Zo’é chamam os cercos
feitos no alto das árvores. Macacos-aranha e guaribas vivem em
árvores muito altas, e nem sempre é possível acertá-los do chão.
É comum, portanto, que os caçadores subam em árvores próximas
àquelas onde avistam essas caças, ou onde imaginam que elas
estejam, uma vez que esses animais também possuem maneiras
de se esconder na copa das árvores. Esse tipo de caçada não é
fácil para um só caçador tampouco para um caçador já velho.
A jupit, como as longas caminhadas, é feita em geral por pessoas
no auge de sua forma física.
Tanto as distâncias que um caçador pode ir sozinho ou
acompanhado quanto essas modalidades aqui apresentadas
estão diretamente ligadas ao tipo de animal caçado. Mas a vida
de um caçador é marcada pelo abatimento de um animal em
especial: o queixada. Ao matar seu primeiro queixada, um jovem
passa por rituais que efetivam o reconhecimento de que ele
atingiu as habilidades necessárias para caçar sozinho, e poderá
ser então reconhecido como adulto pleno. Hoje todos aqueles
275
homens que são vistos como bons caçadores ou que já foram
grandes caçadores passaram por esse ritual, e depois do primeiro
mataram muitos outros queixadas. O abatimento de uma anta
também é significativo. Mesmo os homens já experientes são
valorizados quando matam uma, algo que fica claro no momento
de distribuição da infinidade de carne fornecida pelo animal.
Essa espécie de trajetória ideal da vida de um caçador serve
de base para pensarmos casos particulares, situações em que
as ações dos caçadores evidenciam os critérios esperados para
qualificá-los como caçadores ou não. Dois jovens entre os Zo’é
chamam a atenção como exemplos de caçadores. O primeiro
deles está no auge de sua forma. Aos 12 anos já havia matado
sua primeira anta, e hoje, aos 22, caça sozinho sem grandes
problemas, já tendo passado pelo ritual de iniciação após ter
matado seu primeiro queixada. Chama a atenção o fato de os
Zo’é quase sempre usarem ele como exemplo quando querem
falar de alguém que está no ápice de sua vida como caçador.
Uma anedota pode ilustrar outro caso interessante.
Durante minha segunda viagem aos Zo’é, estava produzindo dados
de genealogia, e eu ainda não havia conhecido pessoalmente
todas as pessoas. Eu perguntava para as pessoas com quem eu
estava tendo mais contato sobre uma família que dificilmente
vinha até o posto da Funai. Quando comecei a perguntar sobre
os filhos do casal que compõe essa família, falavam-me sobre o
filho mais velho, na época com 13 anos. Ao perguntar com quem
o menino se parecia, querendo me remeter aos seus aspectos
físicos, seu tio, uma das pessoas que conversavam comigo,
disse-me: “Ninguém se compara a Tikaruk”. Em seguida, o
homem começou a enumerar os feitos caçadores do menino, a
quantidade de macacos, de caititus e até mesmo um veado, que
ele já havia matado. Também, disse que o menino já ia caçar
muito longe, alcançando os limites da Terra Indígena no rio
Erepecuru, e virando noites sozinho. Ficou claro para mim que a
pergunta gerou um equívoco, pois aquele homem me respondeu
de acordo com os critérios que lhe interessavam na possível
comparação. Consenso ou não quanto às condições do menino, o
276
fato é que esse equívoco evidenciou alguns critérios importantes
para entender a posição esperada para um homem entre os Zo’é.
Por outro lado, é possível também trazer algumas anedotas
que por contrariedade podem reforçar esses valores caçadores.
Em minha segunda ida a campo, eu estava conversando com
dois jovens sobre caçada, perguntando se já haviam matado seu
primeiro queixada e/ou outros animais. Um deles disse que sim,
mas relatou suas dificuldades para conseguir a façanha. Contou
que os seus convivas ouviram uma vara de queixadas passando
perto da clareira onde viviam, e os homens correram em direção
aos porcos. O jovem disse que, por ainda ser inexperiente,
estava muito assustado com a braveza dos animais, que faziam
muito barulho. Quando alcançaram os porcos ele focou em um
dos queixadas, que ao perceber sua presença se voltou contra o
jovem e o atacou. O jovem mal teve tempo de preparar seu arco
e, quando percebeu, o queixada estava passando por baixo de
suas pernas. Com medo, o jovem subiu em uma árvore esperando
o animal se acalmar e fugir. Ao contar sobre seu medo, todos
caímos na risada, e eles me disseram que o medo fazia com que
o jovem não soubesse matar o animal.
No posto da Funai, a janela da cozinha é como o ponto de
encontro para uma boa conversa com os Zo’é. Durante todo
dia pessoas aparecem para observar o que se está fazendo na
casa, e para bater papo. Em uma dessas situações, um jovem
acompanhado de outro rapaz me contou sobre seu primeiro
encontro com uma anta. Dizia que havia ido colher castanha
e andava pela mata um tanto distraído. Quando de repente
avistou uma anta que, dada sua proximidade, parecia ainda
mais distraída que ele. Mas em segundos, quando ela percebeu
a presença do jovem caçador, disparou em retirada, com uma
velocidade que sempre impressiona os Zo’é, que fazem com
que a pessoa que está ouvindo a história fique ainda mais
impressionada de imaginar que um animal com tal tamanho
possa correr tanto. O jovem, que nunca havia encontrado um
animal como aquele, rapidamente começou a disparar seu
arco. Mas sua posição não era nada privilegiada, e as flechas
certeiras atingiram as nádegas do animal e não as costelas.
Fato que gerou novas gargalhadas, agora na janela da cozinha.
Hoje, os protagonistas dessas duas últimas histórias já são vistos
como bons caçadores, saem regularmente para a mata, e em geral
obtêm sucesso em suas empreitadas. Mas nesses e em outros casos
o fato de saber matar, jukie, é sempre tido como critério crucial
para o sucesso na vida de um homem. Em muitas conversas,
quando se pergunta sobre os feitos caçadores de uma pessoa, os
Zo’é justificam o insucesso com expressões como “os queixadas
foram embora”, “ele ainda não viu queixada”, “ele tem medo”
ou “ele não sabe matar”. Todavia, esses casos enumerados acima
condizem com histórias de jovens que, por mais que tenham tido
dificuldades no início de sua vida como caçador, hoje caçam
normalmente e possuem seu reconhecimento.
Uma vez um caçador já experiente me disse que quando um
jovem não quer ir caçar o pai lhe fala com ênfase:
– Ekwa ma’ereketrajukie!.
Algo como:
– Vá obter alguma coisa para matar!
Eu nunca presenciei um homem dizendo isso para seu filho ou
para quem quer que seja. No entanto, eu sempre pensei no porquê
de esse tipo de cobrança ser quase impossível de acontecer no
caso de alguns homens.
Entre os Zo’é, assim como em outras populações tupi-guarani,
mas também de certa forma por todo o norte do Brasil, é comum
se dizer que um homem azarado está panema (cf. DaMatta,
1976; Garcia, 2010). Para os Zo’é, mais do que designar um
simples azar, panen parece significar uma distância desejada
ou não. Por diferentes motivos os caçadores podem passar bons
períodos sem encontrar caça: devido ao contato indesejado
com sangue menstrual, por ter um parente ou ele mesmo estar
doente, etc. Assim, são feitos procedimentos rituais para atrair
novamente os animais, ou simplesmente o caçador se resguarda
esperando que esse momento de exceção passe. Nesses casos,
portanto, caçadores já experientes sofrem pela impossibilidade
de caçar, mas cumprem com a moderação desejada para evitar
consequências graves para si ou para seus parentes. Isso porque
para os Zo’é, e não só (cf. Gallois, 1988; Lima, Tânia Stolze,
1996; Garcia, 2010), a caçada é vista como uma espécie de guerra
contra os animais. O estado atual da vida é fruto de um estado
mítico anterior em que homens e animais se comunicavam entre
si e, mais importante do que as possibilidades de comunicação,
guerreavam entre si. Hoje, muitas doenças são vistas como
consequências de agressões enviadas pelos animais, como
mostra de sua vingança guerreira. Ser moderado é, portanto, um
fundamento da relação com os animais, ou seja, é preciso avaliar
as possibilidades certas de ser agressivo ao se tentar abater uma
caça (cf. Gallois, 1988; Garcia, 2010).
Entretanto, se o panen assola a vida de caçadores ativos, chamo
a atenção para casos em que o panen não parece uma exceção na
vida de determinados homens, mas sim uma situação constante.
Entre os Zo’é, alguns homens adultos e jovens são exemplos
de pessoas panen. Diz-se que não sabem caçar, que têm medo
de ir sozinhos para a mata, ou mesmo que nunca tentaram se
aventurar nas caçadas. São qualificados, portanto, pelo medo,
pela preguiça e pelo não saber. Mas mesmo que não cacem,
alguns deles normalmente participam da coleta de castanha,
açaí, bacaba, pescam e trabalham nas roças. Essas características
fazem com que muitas vezes seu comportamento seja comparado
ao das mulheres de maneira bastante genérica, que em relação
aos caçadores são vistas como fracas e moles. Parece haver,
portanto, também para os Zo’é, uma relação intrínseca entre a
ideia de panen e as distinções de gênero, que geram valorações
específicas na definição de comportamentos ideais, como já
vem sendo notado há muito tempo na literatura americanista
(cf. Clastres 2003 [1974]; Lima, Tânia Stolze, 2011; Lima,
Edilene Coffaci, 2014).
Em suma. Vemos que a caçada é importante no reconhecimento
da maturidade de um homem, e que a distância dos animais
caracterizada pelo panen é importante delimitador dos
277
rogério assis
comportamentos esperados. É possível termos alguma ideia do
que os adultos esperavam ao incentivar aquelas crianças ao
ataque à borboleta: uma falta de moderação que não era mais
recomendada nem mesmo aos adultos. Por sua vez, por minha
convivência com a família que protagonizava aquela cena inicial,
vim a saber que o jovem aparentemente indiferente à cena estava
em intensa introdução na vida de caçador. Como em outros
casos enumerados acima, ele também foi tomado algumas vezes
como exemplo de potencial bom caçador, dado os seus feitos
até o momento; sendo fundamental para tal reconhecimento a
combinação entre moderação e matar, esta última ação sendo
entendida como consequência clara de não ter medo, preguiça e,
por efeito, saber como abater o animal.
PISA E AS “COISAS”
A criança na tipoia não é capaz de saber o que se passa.
A mulher com a tipoia sabe dos riscos que podem correr.
A tipoia permite que a mulher empunhe o arco e suas flechas.
Os caminhos de caçada e coleta na mata são invadidos por
esses atores que compõem uma cena de exceção: a mulher,
seu filho, a tipoia, o arco e a flecha. Exceção que traduz uma
condição de necessidade, pois não há homens para buscar a
carne e as castanhas. Ela vai concentrada, atenta; as onças
sempre estão espreitando.
Imaginação do pesquisador diante de uma história tão
interessante: caçar é uma atividade eminentemente masculina!
Por isso, está presente de várias formas durante a vida de um
homem. Mas qual o lugar das mulheres na caçada? O exemplo
dessa mulher citada acima, e as dissensões com relação ao que
ela fazia ou era capaz de fazer, instigou-me a pensar quais os
limites do acontecimento chamado caçada.
A primeira vez que ouvi falar dessa história eu havia pedido
para um Zo’é de aproximadamente uns cinquenta anos para que
me ajudasse na pronúncia dos nomes das pessoas já falecidas.
A intenção era registrar em áudio a pronúncia de um Zo’é que
provavelmente havia conhecido a maioria das pessoas, pois eu
queria saber os nomes corretamente para depois enviar para a
linguista responsável pela formulação da grafia da língua zo’é.
É certo que o trabalho despertou o interesse de outras pessoas,
inclusive pessoas mais velhas, que ajudaram muito. Mas o
interessante da conversa eram os desvios cometidos por meu
colaborador: a cada nome que lhe despertava alguma lembrança
interessante o homem sempre tinha uma história para contar,
contrariando a pressa do pesquisador de uma maneira que os
indígenas primordialmente dominam. Um desses casos, portanto,
foi o de Pisa abyt, uma mulher caçadora.
O homem me dizia que Pisa não tinha alguém que trouxesse
comida para ela. Com seu filho pequeno, era obrigada a ir para
a mata coletar castanha e até mesmo caçar. Em geral, procurava
caçar cotias em tocaias, mas chegava também a procurar macacos
nas picadas da floresta. Diz o homem que ela matou macacosaranha, e até mesmo uma onça. Intrigado com o que ele tinha me
dito, conversei com um segundo homem. Ao dizer em detalhes o
que o primeiro havia contato, o segundo homem se voltou nervoso,
dizendo que o primeiro havia mentido, e que a mulher não tinha
sido capaz de matar macacos e onças. Contudo, confirmou que
realmente a necessidade de buscar comida a levou a fazer algo por
si e pelo seu filho, que seguia com ela ainda bebê.
Mais do que confirmar a veracidade dos fatos em torno da história
dessa mulher, interessou-me as reações do segundo homem, que
parecia menos constrangido com as prováveis mentiras do que
com o fato de uma mulher fazer o que é típico de um homem.
A reação do segundo homem me despertou ainda mais o interesse
por pensar a importância das mulheres nas caçadas.
Ir caçar também parece ser critério importante no
reconhecimento da maturidade de uma mulher zo’é. Assim
como os meninos, as meninas durante a infância pouco saem
das clareiras; divertem-se nos igarapés próximos ou na mata
quando as famílias transitam de uma clareira para outra.
É também na clareira que iniciam sua vida de trabalho,
279
ajudando desde muito cedo suas mães e demais mulheres
com quem convivem, buscando água no igarapé, ajudando na
produção de farinha de mandioca, no preparo da carne e outros
alimentos. Entre os Zo’é, muitos casamentos são arranjados
na tenra idade, e quando as meninas atingem a puberdade é
quase certo quem será seu primeiro marido. É nesse momento,
em que uma menina passa a conviver junto de seu marido –
seja este se mudando para a casa de seu sogro, ou ela indo
para casa de seu esposo – que a caçada parece começar a
fazer diferença diretamente na vida de uma mulher. Em geral,
as meninas púberes se casam com um homem mais velho e,
normalmente, um caçador já casado com outras mulheres mais
velhas. O fato de esse homem conviver com outros homens
em plena atividade de caçador, ou de ter outras mulheres com
filhos ou não, é decisivo para o engajamento da nova esposa
na caçada; vale lembrar que crianças pequenas, sobretudo
recém-nascidos, não devem sair da clareira, pois seu cheiro
atrai animais e outros seres perigosos.
Isso diz respeito, portanto, ao que poderia ser chamado de
parcerias de caçada. Assim como as distâncias percorridas
para além da clareira, e as formas de caçada próprias aos Zo’é,
como caçadas terrestres, cercos no alto das árvores, e caçadas
de espera, as parcerias realizadas por um homem são também
expressão de sua maturação como caçador. As jovens esposas
participam de maneira direta das caçadas terrestres, nas quais
se procuram porcos, antas e outros animais, e também dos cercos
aéreos feitos contra macacos-aranha e guaribas. Em terra, as
jovens esposas, ainda sem filhos, acompanham seus maridos
nas longas caminhadas. Da mesma forma que os homens, elas
imitam o som dos animais, batem com galhos contra os troncos
das árvores, etc., visando enganar o animal para que seu
marido possa flechá-lo. Além disso, não é incomum ver essas
jovens meninas trazendo para a casa a carga abatida na mata.
Nos cercos feitos no alto das árvores, as mulheres cumprem
papel semelhante, ajudando a emboscar o animal, contribuindo
para ludibriá-lo desde o chão.
280
Esses cercos aéreos podem envolver mais gente do que os
caçadores e suas jovens esposas. Às vezes um simples translado
de uma família de uma clareira a outra pode desencadear em
um cerco caso encontrem um bando de macacos no meio do
caminho. Entretanto, é durante o inverno, quando as chuvas
permitem que os animais estejam gordos, sobretudo macacosaranha, que se realizam arranjos entre famílias aliadas produtiva
e politicamente, que migram para os limites da terra indígena
onde se encontra fartura de caça (cf. Havt, 2001).
Certa vez eu estava hospedado na casa de um homem reconhecido
como importante liderança entre os Zo’é. Ele já era casado com
uma mulher de mesma faixa etária, e havia mais ou menos três
anos se casara com mais duas jovens esposas. Em uma manhã
ele saiu para caçar com estas enquanto eu fiquei com as demais
pessoas de sua clareira; basicamente seu grupo se constitui de
mais três famílias além da sua, dentre as quais fazem partem
pelo menos quatro homens em condição de caçar, incluindo
seu irmão e sobrinho. No fim da tarde, ele retornou e iniciamos
uma conversa sobre a caçada do dia; ele havia matado três
macacos-aranha. Em dado momento eu questionei porque ele
não tinha ido com os homens ao invés de suas jovens esposas.
Ele disse que os maridos não gostam de deixar suas esposas na
clareira enquanto estão sozinhos na mata, por diversos motivos,
enfatizando que sempre que se tem esposas jovens elas são
parceiras preferenciais para as caçadas diárias, o que vim a
confirmar também em outras situações.
É possível dizer que as mulheres possuem valor privilegiado na
caçada. A parceria com as mulheres não advém apenas de uma
necessidade, como se fossem substitutas na falta de um ou mais
homens para acompanhar o caçador. Mais do que necessidade,
as mulheres jovens e sem filhos parecem ocupar o lugar da
preferência como parceiras de caçada.
No entanto, no caso das parcerias entre caçadores e suas
jovens esposas, uma questão parece unânime: uma mulher
não matará o animal, mas se restringirá a ajudar no cerco ou
a enganar aquele. Em um de meus campos muitas pessoas
estavam doentes, e por isso, alguns homens se sentiam
panen, em um estado caracterizado pela distância dos
animais, que pode ser traduzido pelo azar na caçada. Isso
me despertou o interesse sobre o assunto, e comecei a pensar
nas possibilidades de mulheres serem consideradas panen.
Então perguntei para uma jovem, já casada e com filhos, se
mulheres tinham panen. Ela me respondeu enfaticamente que
não. Perguntei por que não. E ela disse que mulheres não
matam a caça. O que, de certa forma, confirmou algo que não é
uma novidade para a discussão em torno das causalidades do
panema: matar como diagnóstico certeiro para a constatação
desse estado (cf. DaMatta, 1976).
A parceria com as mulheres e a importância de matar como
marca de distinção das atividades masculina e feminina na
caçada podem permitir certa relativização do entendimento do
que seja a caçada, pensando a definição de seus limites como
acontecimento. A meu ver, isso necessariamente passa pela
compreensão da expressão ma’ereket, “obter coisa”, utilizada
pelos Zo’é como tradução de nossa ideia de caçar.
O estranhamento com a história de Pisa abyt surge com o fato
de que matar, jukie, é uma atividade aparentemente restrita aos
homens. Mas a relação com o animal na caçada, e a valoração
proveniente desse acontecimento, não parece se restringir ao
ato de matar. Na caçada, é preciso levar em consideração a
hostilidade entre homens e animais, o que caracteriza a caçada
como uma espécie de guerra assentada em agressões e vingança
de parte a parte. Muitos trabalhos sobre populações ameríndias
vêm enfatizando o fato de os animais serem considerados como
potencialmente humanos (cf. Descola, 1986; Lima, Tânia Stolze,
1996; Viveiros de Castro, 2002). E penso que, no caso dos Zo’é,
o fato de designarem a caça como ma’e, “coisa”, parece estar
conectado a esse jogo de hostilidade enfatizado por esses autores,
traduzido nos perigos atuais em cada caçada de os humanos
reconhecerem a humanidade dos animais.
É nesse sentido que ma’ereket, “obter coisa”, não inicia na saída
para mata, e nem termina quando o caçador chega com a caça
morta. Antes de ir para e depois de voltar da mata o caçador deve
cumprir vários procedimentos para manter o reconhecimento da
caça como “coisa”: ele toma banhos para que não tenha cheiro
de presa-inimigo; quando se abate uma anta, corta-se seu rabo,
que é esfregado nos dedos das mãos e dos pés enquanto se imita o
animal para enganar e atrair novas antas; introduz em seu próprio
ombro uma garra de gavião-real, como forma de negociar com
esse animal visto como cuidador de macacos-aranha e guaribas,
e para caçar tão bem quanto ele; “lustra-se” o arco para que fique
bonito, eficiente, e realizam-se outras ações rituais para controlar
a distância dos animais, para que não tenha panen; cozinha-se
a carne do animal para também tirar a sua subjetividade, etc.
Além disso, sonhos prévios à ida para a mata funcionam como
indícios do que virá, sendo assim possível que o sonho também
seja meio do caçador controlar seu próprio futuro. Não só os
seus sonhos, mas também o de parentes e pessoas próximas, por
exemplo: se alguém próximo sonha com rede de fios de castanha
é sinal que aparecerá uma onça pintada; se é rede de algodão,
então será onça parda. Tipos de ações já notadas pela literatura
estudiosa do tema (cf. Lima, Tânia Stolze, 1996; Garcia, 2010;
Lima, Edilene Coffaci, 2014; Descola, 2006 [1993]).
Esses são alguns poucos exemplos das ações e acontecimentos
que giram em torno do que nós chamaríamos como caçada.
Levando em consideração as formulações feitas pelos Zo’é,
ora esse acontecimento pode ser restringido à ação de matar,
delegando o lugar dos homens, ora ser ampliado, incorporando as
mulheres e outras pessoas no processo de manutenção do animal
como “coisa”. E é nesse ponto de alargamento da compreensão
do que seja a caçada, por meio da participação de outros atores
que não só os caçadores, como as mulheres, que sugiro que seja
fundamental um entendimento apurado da caçada por meio da
correlação entre diferenças de gênero e processos de maturação.
Quem já encontrou uma cintilante borboleta-azul em meio à
opaca floresta sabe que sua cor é de chocar os olhos. Mas na
281
realidade, o tom azul dessas borboletas de tipo Morpho não é natural, as escamas são pardas
ou ocres, e a luz ao penetrar nos alvéolos cheios de ar que atapetam as escamas produz as
tonalidades azul-turquesa que dão seu efeito impressionante. O caso de Pisa abyt, como uma
exageração das cores com que o pesquisador pode olhar para um caso, desperta algumas
questões para pensarmos a caçada como modus vivendi próprio aos Zo’é, e também a outras
populações que vivem em condições socioambientais semelhantes (cf. Garcia, 2010) ou
não. Se é possível afirmar que os Zo’é têm um modo de vida eminentemente caçador,
é preciso mensurar a importância de homens e mulheres para a definição desse modo.
Por mais que histórias de mulheres que caçam possam causar estranheza aos Zo’é e, por
efeito, ao pesquisador, é preciso olhar com atenção a essas metamorfoses das relações
sociais que nos parecem tão óbvias.
BIBLIOGRAFIA
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ensaios. São Paulo: Cosac & Naif, 2003 [1974], p. 117-143.
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282
rogério assis
rogério assis
ALGUNS MODOS
ZO´É DE FAZER
COLETIVOS E
LIDERANÇAS
Dominique Tilkin Gallois
Para introduzir os modos como os Zo’é caracterizam hoje seus
chefes1, procuro inicialmente aproximar dois tipos de assertivas
em torno da chefia ameríndia, considerando de um lado
afirmações de indigenistas e jornalistas engajados na divulgação
da fragilidade dos grupos indígenas sob proteção do Estado, e,
do outro, reflexões de etnólogos que se debruçaram sobre as
formas de “ação política”2 entre povos ameríndios, históricos ou
contemporâneos. Na sequência, darei atenção às formulações
dos Zo’é, quando explicitam transformações na atuação de suas
lideranças. A confrontação dessas conceituações em torno das
competências e habilidades de chefes é, de fato, inescapável
quando se quer abordar a situação dos Zo’é, um pequeno
grupo que foi até recentemente taxado de “isolado” na região
do Cuminapanema, norte do Pará. Ali, afluíram jornalistas do
mundo inteiro, que continuam visitando a área desde o final dos
anos 1980, reiterando ter encontrado um dos últimos exemplares
de sociedades primitivas do planeta.
1.
2.
3.
4.
286
IMAGENS DA FRÁGIL
HARMONIA PRIMITIVA
O que nos interessa nas descrições elaboradas pelos jornalistas
que visitaram os Zo’é, mesmo que impressionistas ou
sensacionalistas, é justamente a caracterização do que seja
um “povo primitivo”. Veremos que, nessas reportagens – e
nas concepções indigenistas que as informam – é o sentido
evolucionista do termo que se destaca. Os Zo’é são primitivos
porque podem deixar de sê-lo. É contra essa evolução que uma
certa tradição sertanista “à moda antiga”3 advogava, justificando
ações de proteção que visavam manter o isolamento desses
grupos, a favor da preservação de sua vida “harmônica”. E não
deve nos surpreender que a percepção de tal harmonia seja
sempre caracterizada por uma série de ausências. A mais citada,
evidentemente, é a carência tecnológica, já que vivem na “idade
da pedra”. Importante considerar que, acoplada à simplicidade
material, as necessidades seriam necessariamente diminutas.4
Pesquisa desenvolvida com apoio do CNPq. Agradeço os comentários de Antenor Vaz e de Fabio Ribeiro, com quem mantive ao longo desses anos instigantes
discussões em torno das questões de que trata esse artigo. Espero que o texto reflita meu respeito por ambos e a densidade dos meus aprendizados com
os indigenistas da Funai, mesmo que não acate sempre suas sugestões. Agradeço também ao meu orientando Leonardo Viana Braga, pela leitura e pelo seu
entusiasmo na pesquisa junto aos Zo’é.
Formulação que adoto de Sztutman (2009: 17).
Refiro me aqui à uma certa tradição sertanista, que foi praticada entre os Zo’é nos anos 1980 e 1990 e entre outros grupos então “isolados” e hoje considerados
como “recém-contatados”. Essa tradição foi analisada por Antonio Carlos de Souza Lima em diversos trabalhos e especialmente num texto em que parte de
escritos de Roquette-Pinto para caracterizar aspectos importantes das ideias relativas à proteção fraternal, como cunhada por Rondon e seus aliados, e as bases
das ações de governo para os índios no Brasil daquele período. Estão nele presentes: a) uma classificação implícita dos índios (os que ainda o são, os que estão
corrompidos, os que deixaram de sê-lo [...]); b) um ponto de vista moral e ético, em que a sociedade e o Estado, conquistadores do território brasileiro e dos povos
nele habitantes, são os responsáveis pela dívida da conquista; c) uma separação suposta entre brasileiro e índio, uma das bases ideológicas da tutela; d) uma
definição do papel das ações de governo de proteger sem dirigir nem aproveitar; e) a meta da evolução espontânea como o desejável, e o certo de acontecer, caso
deixados à sua própria sorte [...]. Há também um pressuposto, presente ainda hoje, que deve ser relativizado: o de que as populações indígenas “sempre viveram
independentes” (2002: 13).
As descrições parecem indicar que as reduzidas necessidades são consequência da precária capacidade de produção, uma certa inversão em relação às
considerações de Sahlins (2007) sobre a “afluência primitiva”. Para os funcionários da Funai dos anos 1980 e 1990, ainda guiados pela tradição sertanista acima
mencionada (Souza Lima, 2002), a aquisição de novas tecnologias pode desequilibrar não apenas a harmônica vida social – em que todos sabem produzir as
mesmas coisas com as mesmas tecnologias – mas também a igualdade entre os produtores. O que explica o trauma desses agentes da Funai diante do interesse
aguçado dos Zo’é pela obtenção de armas de fogo, que esses logo apontaram como muito mais eficazes que arcos e flechas e que se transformaram em bens de
prestígio e portanto de disputa entre grupos e entre lideranças.
Mas há sobretudo um conjunto de traços negativos, recorrentes
na descrição das relações sociais e políticas, marcadas pela
inexistência de hierarquias e de chefes, de que não precisariam
para resolver conflitos, dada a inexistência de rivalidades.5
Na formulação de um jornalista do “The Sunday Telegraph”
(2008): “[...] the Zo’e lives a stone age existence, they have
no need for clothes, no concept of ownership and disputes”.
Já, segundo o jornalista Rogério Assis (2013): “os caçadores,
os idosos, os pais e as mães de muitos filhos gozavam de certo
prestígio no grupo social, mesmo assim não existiam lideranças
na figura de um cacique ou de um pajé. As rivalidades eram
temporárias e sempre resolvidas verbalmente, não havia disputas
que resultassem em lutas corporais”. Passaram-se 20 anos, mas
as apreciações de visitantes no Cuminapanema continuaram
reiterando a imagem de uma sociedade sem chefes e por isso
pacífica, lançada pela “Revista Manchete” no final dos anos
1980: “Não se percebe entre eles nenhum tipo de liderança.
Cada um faz o que quer e todos cumprem suas tarefas... não
vimos nenhum tipo de disputas... os donos do poturu parecem
não ter cacique ou pajé. Mas a estrutura social garante uma
rotina organizada onde tudo que precisam é providenciado de
maneira certa” (Berman, 1989). Essa dificuldade em perceber
ações de liderança, por parte dos jornalistas que passavam pela
área zo’é, era consequência direta das informações fornecidas
pelos agentes da Funai, que direcionavam o olhar e a apreciação
dos visitantes para alguns mecanismos de igualdade entre todos:
todo homem caça e constrói sua casa, toda mulher cuida dos
filhos e processa alimentos, cada um faz exatamente o mesmo
que todos sabem fazer. Com certeza, antes como hoje, todos se
engajam na produção, mas o que cada um faz certamente não
é avaliado de forma uniforme. Mesmo assim, as informações
5.
6.
repassadas pelos agentes indigenistas aos visitantes construíam
a imagem de uma indistinção generalizada, que só poderia se
manter pelo fato da inexistência de personagens com destaque
especial. Segundo Cartagenes (2009): “A cultura Zo’é não
reconhece chefes nem xamãs, e os ‘yü’ poderiam ser vistos
apenas como diluídas lideranças nucleares; de qualquer forma,
sustentáculos do modo de ser cultural dos Zo’é, e de seu difuso
modelo de poder coletivamente pulverizado”. Por esse motivo,
os agentes da Funai não só impediam estadias nas aldeias – para
evitar que os Zo’é sintam desejo pelas roupas, alimentação,
etc. – como vetavam aos visitantes qualquer distribuição de
presentes ou a doação de objetos assiduamente pedidos pelos
índios, sob alegação de evitar a “desigualdade” entre membros
da comunidade. Tratava-se, portanto, de impedir a sobreposição
de uma figura ou grupo familiar sobre o outro. O lema era: ou
todos recebem as mesmas coisas, ou ninguém recebe nada.
Neste modelo indigenista da preservação da harmonia primitiva,
que dispensa o exercício da liderança,6 qualquer transformação
é vista com suspeita; o aparecimento de novas práticas sendo
sempre provocado pelo contato com o “exterior”, perigo que se
procura afastar ou mitigar. Assim, no caso Zo’é, os indigenistas dos
anos 1980 e 1990 temiam, sobretudo, a atuação dos missionários
evangélicos fundamentalistas que, por ocasião de suas visitas
e encontros, promoveriam transformações capazes de alterar
o sistema político zo’é. “Estas ‘visitas sociais’ às escondidas,
à revelia de quaisquer possibilidades de controle do órgão
indigenista, promovem focos de tensão e instabilidade do equilíbrio
político interno Zo’é, na medida em que insistem numa assimetria
inexistente em sua cultura, atribuindo deferências de ‘chefia’
ou promovendo doações a indivíduos específicos” (Cartagenes,
2006). O primeiro problema, portanto, diz respeito ao modo como é
“Sin líderes políticos ni religiosos, recurren al consenso para tomar decisiones y resolver conflictos. No tienen cacique ni tuxaua ni chaman. Si siquiera se rijen
por un consejo de ancianos. Existe une única figura de liderazgo, pero es temporal: dura lo que dura el conflicto para el cual el que fue designado. Son los iu.
Algo como palo, baston ou viga” (Abril, 2010).
Os diários dos chefes da Frente Zo’é evidenciam a opção radical em negar a existência de formas de liderança entre os Zo’é: nesses registros, mantidos por
sucessivos representantes da Funai na área na década dos anos 1990, os termos “chefe” e “chefia” são usados exclusivamente para se referir aos agentes do
Estado, não aparecendo nenhuma menção a chefes, líderes ou representantes indígenas.
287
figurada a “indução” de figuras de chefe supostamente inexistentes
no modo tradicional, reiterando a imagem do “selvagem inocente
e manipulado”, como faziam os jesuítas portugueses no século
XVII, quando avaliavam as alianças dos Tamoios com os franceses
(Perrone-Moisés & Sztutman, 2010: 405). Além de negar aos
ameríndios a capacidade de criar novas formas de ação na interface
com o mundo não indígena, essa modalidade da contaminação
era sobretudo problemática, no caso Zo’é, porque cabia apenas à
“chefia” da frente de proteção da Funai decidir quem manipulava,
com total ausência de reflexão sobre os efeitos da própria atuação
nas relações entre os Zo’é e entre estes e os agentes do Estado.
Mas, afinal, quem seria contaminado e em que consistiria
exatamente tal perversão da harmonia primitiva? Como se
pode verificar nas citações dos jornalistas, os indigenistas
haviam identificado pelo menos duas instâncias de decisões,
pois mencionavam a existência de um “conselho de anciãos”
e também da posição de “liderança nuclear”, ou “jy”.
Personagens identificados nessas descrições, mas logo
anulados enquanto figuras de chefia, na medida em que tais
posições – e a possibilidade de desponte enquanto personagens
diferenciados – seriam subjugadas pela busca de “consenso”
e pela “pulverização” do poder. Como se verá adiante, tal
tradução da figura do “jy” ou mesmo do papel dos anciões é
radicalmente distinta das exegeses elaboradas pelos próprios
Zo’é. Por ora, vejamos em que poderia consistir tal indução de
formas alienígenas de chefia, que podem nos iluminar sobre um
aspecto significativo da liderança indígena: a capacidade de
constituir e, portanto, de representar um coletivo.
Tanto as práticas sertanistas à moda antiga, como as práticas
indigenistas mais recentes, sensíveis à capacidade de agência
dos próprios índios, trazem necessariamente consigo o
aparecimento de uma figura ambígua: a de “representante”.
A famosa fórmula cadê o chefe? explicita – em todos os períodos
da história – uma real necessidade para a relação colonial.
7.
288
Estabelecer uma interlocução com o representante do “povo”,
da “comunidade”, de uma “parcialidade” enfim, de alguma
“unidade”. E as respostas indígenas, não menos famosas, são
sempre as mesmas: ao invés de indicar “um” chefe, apresentam
uma multiplicidade de personagens importantes. Como indica
o estudo de Sztutman, a partir de fontes coloniais, “entre os
antigos Tupi, para o desconsolo dos colonizadores e cronistas,
essa representação não se fazia senão de forma efêmera,
circunstancial” (2009: 33).7 Mas a história das relações coloniais
também evidencia que modalidades de representação estavam
presentes, e que era a partir dessas modalidades próprias que os
índios procuravam dialogar com as formas de chefia percebidas
entre os colonizadores. Não é estranho, portanto, que poucos anos
depois do estabelecimento de relações regulares com o posto
da Funai (e com agentes percebidos como gerentes dos bens
contidos nesse posto), os Zo’é tenham desenvolvido a observação
e comparação entre suas formas de liderança e as atitudes dos
“representantes” da Funai. No final dos anos 1990, Havt foi
testemunha desse processo de “contaminação”, mas às avessas.
Em seus esforços para formular um entendimento
a respeito dos Kirahi [não indígenas] com quem
vêm se relacionando, os Zo’é estão construindo uma
comparação e uma graduação dos jy-Funai [...].
Pela observação das atitudes de servidores e funcionários
e seus resultados, identificam como jy aqueles que
percebem serem chamados ou referidos como “chefe”.
A comparação dá-se, portanto, por uma interpretação
que os leva a considerar como jy os chefes kirahi. Tal
interpretação faz-se já incorporando uma característica
associada ao jy kirahi que não é mencionada quando se
fala dos jy zo’é, isto é, o mandar e o ser obedecido. Como
uma espécie de desdobramento lógico, mas também
pela observação das posturas, atitudes e discursos
Havt 2001:191.
Em outro estudo, Sztutman e Perrone-Moisés ressaltam o quanto Anchieta “mostrava-se atônito diante dessas formas de organização política, em que todos e
ninguém pareciam ter autoridade” (2010: 420).
DE QUE CHEFES
ESTAMOS FALANDO?
Afinal, de quais segmentações, de que “grupos nucleares”
estamos falando? A etnografia disponibilizada pelos registros dos
funcionários da Funai é pobre, limitando-se a listas de indivíduos
rogério assis
Há, obviamente, “chefes” entre os Zo’é. Pessoas com posições
diferenciadas que eles também procuram identificar entre
os brancos, mas que não desejam necessariamente imitar,
considerava Havt naquela época. No passar dos anos e das
experiências com as “chefias” que se sucederam no posto
do Cuminapanema, os Zo’é continuaram entendendo tais
figuras de chefes kirahi ao seu modo, ou seja, prosseguem
identificando múltiplos chefes, nem sempre acertando suas
escolhas em acordo com a hierarquia definida pelo órgão
estatal. Pois analisam disposições para a distribuição de
bens, atitudes de comando, mais do que posições abstratas de
autoridade ou de representatividade. Podem, portanto, acatar a
explicação de um funcionário quando este justifica não poder
lhes dar nada, pois para essa decisão, “depende dos chefes em
Brasília”, julgando se tratar de um chefe fraco ou mesmo, ruim.
Ao mesmo tempo, irão considerar como “chefe” toda pessoa
que consegue, por disposição pessoal, assumir autonomia na
tomada de decisões, especialmente, mas não só, no que diz
respeito à distribuição de bens “dos brancos”. Chegamos a um
ponto sensível, que diz respeito à generosidade esperada de
um chefe, à sua capacidade de obter e de fazer circular bens.
Mas não apenas bens, ou apenas conhecimentos, pois veremos
que se trata sobretudo de uma indicação da capacidade de
gerenciar relações com o exterior. Antes de detalharmos esse
aspecto fundamental na ação política indígena, precisamos nos
defrontar com um outro problema na conceituação da chefia
ameríndia na tradição sertanista da “proteção fraternal” – ou,
de forma mais geral, colonial – da chefia ameríndia, voltando
mais uma vez às descrições operadas pelos que reconheceram
entre os Zo’é as feições da comunidade primitiva.
agrupados em torno de figuras masculinas, denominadas “chefes
de família”. Para além das listas, essas unidades sempre aparecem
subsumidas, nos documentos dos indigenistas, pela referência
a uma unidade genérica: “o povo zo’é”. Teríamos então de um
lado núcleos iguais entre si e, do outro, “o conjunto” dos Zo’é,
este idealmente representado pela figura de um “conselho dos
anciões”. Dois tipos de unidade consideradas como dadas,
preexistentes ao surgimento de seus líderes. Nessa concepção, não
só a unidade social antecede seu representante como dispensaria
a necessidade de chefes, se considerarmos a busca de consenso
e equilíbrio entre partes equivalentes, pressuposto indispensável
à ideia de harmonia primitiva. Pode-se então imaginar a aversão
dos sertanistas à moda antiga, à ação política zo’é, que faz surgir
múltiplos chefes ao mesmo tempo que são criadas novas unidades,
nunca equivalentes entre si. A recusa de reconhecimento de tais
lideranças, que despontavam – como também eram rapidamente
substituídas por novas figuras – ao longo dos 20 anos da proteção
radical (de 1990 a 2010 aproximadamente), decorria da ideia de
que esses chefes se imporiam aos grupos sociais preexistentes,
como apêndices desnecessários.
Ora, o que nos ensina a antropologia é que se deve sempre
procurar não comunidades com ou sem chefes (numa leitura
simplificada da oposição “sociedades com estado” e “sociedades
sem estado”, proposta por Clastres), mas a articulação entre
formação de coletivos e formas de liderança. Não há um
sem outro, aliás, não há coletivo sem antes haver um chefe.
Portanto, como todos os ameríndios, os Zo’é sempre tiveram
chefes, com diversificadas competências para a liderança e,
portanto, capazes de fazer surgir variados tipos de coletivos.
Como mostra Sztutman a partir de sugestões de Strathern, a ação
política entre povos ditos “primitivos” – sejam os antigos Tupi
ou grupos contemporâneos, melanésios ou ameríndios –, “não
seria possível pensar a constituição de unidades sociopolíticas
sem pensar também e simultaneamente a constituição de certos
‘personagens’, ‘homens capazes de conter outros homens’”
8.
290
(Sztutman 2009: 18). Para completar sua demonstração, e fugir
assim da conceituação do poder em termos ocidentais, Sztutman
recorre à formulação certeira de Latour, para quem “isso que
chamamos de política poderia ser pensado como simplesmente a
arte de compor associações e criar coletivos, tendo em vista que as
associações compostas se dão sempre entre atores heterogêneos;
o social, o sociopolítico sendo sempre algo que resulta e não
aquilo que já está dado que faz a si mesmo” (Idem: 19).
COMO OS ZO’É QUALIFICAM
O “PODER” DE SEUS CHEFES
Outro problema a enfrentar, voltando à caracterização das formas
políticas zo’é pelos indigenistas e singelamente replicada pelos
jornalistas, diz respeito ao pressuposto da “inexistência de
assimetrias” (cfr. Cartagenes, acima citada) que é comumente
acoplada à figura clássica dos “chefes sem poder”, por sua vez
associada à tomada de decisões por consenso num não menos
clássico “conselho de anciões”. Essa caracterização parece ter
vindo de uma leitura apressada da obra de Pierre Clastres, e
não resiste à etnografia. Pois, como já esboçamos acima, a chefia
ameríndia não é uma posição vazia a ser preenchida, um “papel
social” prefigurado para representar um coletivo preexistente.
Nem a soma dessas posições deveria necessariamente se manifestar
na forma de um “conselho”, constituído pela junção de pessoas
equivalentes, capazes por esse motivo de operar consensos.
O que está em jogo, ao contrário, é o “processo de diferenciação
interna entre as pessoas”, “a constituição de figuras especiais”
que revela “uma certa economia de prestígio e um processo de
magnificação” (Sztutman, 2009: 20, 24-25), fazendo aparecer
homens importantes,8 ou homens-esteio como dizem os Zo’é.
Assim, a pergunta certa, como sugere Sztutman, é “Como certas
pessoas se tornam chefes, líderes políticos e o que significa
isso?” (Idem: 20). Significa em primeiro lugar que devamos
Cf. Godelier & Strathern (1991) e Descola & Lory (1982). Para uma aproximação entre os big men melanésios e os homens importantes entre os Zo’e, ver Havt (2001).
atentar para a qualidade do “poder” em jogo, que não diz
respeito ao monopólio da violência, mas à capacidade de agir, de
impulsionar outros a agir, enfim, à capacidade de fazer aparecer
e movimentar coletivos. Para tanto, devemos verificar quais são
os termos utilizados pelos Zo’é para designar formas de liderança
e as diferenças que esses termos indicam nos modos de operar.
Indagados, em 2012, a respeito desses modos de atuação,
jovens líderes zo’é me respondiam sempre apontando duas
habilidades: a primeira sendo que “jy fala duro”, ou ainda
que é quem “manda trabalhar” e a segunda é que “jy tem de
refletir (pensar muito) para depois conhecer”; para destacar a
capacidade de reflexão, destacavam que “alguns se dizem jy
mas só brincam”, porque “não sabem pensar” e, portanto, não
são chefes (jy rowã). Além dessas competências, é significativo
observar como, no contexto de reuniões com a equipe da
Funai – visando organizar, por exemplo, a distribuição de
equipamentos nas aldeias ou a organização de expedições
de vigilância – os Zo’é se esforçavam em designar um “jy” –
aqui, um representante – para cada aldeia.9 Mesmo que eles
indiquem sempre jovens lideranças com reconhecido prestígio,
essa equiparação entre todos (um líder-representante por aldeia
ou grupo local) não resistia à diferenciação. Comentavam logo
que de toda essa longa lista de “jy” apenas dois – às vezes
três – seriam efetivos “jy”. É interessante ressaltar que esses
poucos chefes jovens e com prestígio eram também descritos
como “Funai ijy”, o que significa que sua competência incluía
“cuidar da Funai”. Para caracterizar o modo operatório dessas
lideranças, dizia-se que eles “cuidam para que crianças não
roubem (as coisas da Funai)”. Mas não só. Cuidar da Funai é
também orientar a equipe do posto, oferecendo as informações
solicitadas a respeito dos movimentos das famílias, etc., mas
sobretudo explicitando os interesses dos Zo’é – ora em nome de
seus grupos locais ora em nome de um coletivo mais amplo. Nas
reivindicações enunciadas por esses jovens jy-representantes, a
autoridade é marcada pela referência a esse coletivo, em nome
do qual eles enunciam os interesses de todos: “Zo’é reko rahyi”
ou, em português “o que Zo’é quer”. Argumentavam inclusive
que os chefes-que-só-brincam só sabem falar em nome próprio.
A acuidade na observação das motivações da Funai, por parte dos
jovens representantes que mais se destacavam nos anos de 2011 e
2012, lhes permitia propor aos coordenadores do órgão indigenista
uma negociação como essa: “Se Funai dá bacia, panela, rede,
cuia, mosquiteiro, roupa, sandália, bacia, se Funai dá, aí Zo’é não
anda mais. Também tem de dar lona. Não pode dar roupa rasgada.
Mais importante é bok [espingarda]. Se tem bok, ai não anda”.
Onde “andar” significa continuar se deslocando até os núcleos
ocupados por castanheiros, fora da Terra Indígena, ou até os
Tiriyó, ao norte da TI.10 De fato, há vários anos, os Zo’é “andam”
para obter os bens que aprenderam a conhecer frequentando o
posto da Funai e que esta não lhes disponibilizava. Na negociação,
o jovem chefe estabelece uma comparação, quando diz “não
pode dar roupa rasgada... o mais importante é a espingarda”.
Na negociação, reconhecem que não é a Funai quem dá roupa
rasgada, mas os castanheiros ou mesmo os vizinhos Tiriyó, que vez
ou outra também lhes cedem uma espingarda velha. Em outros
discursos como esses, jovens lideranças expressaram claramente
que preferem “não andar”, e que por isso continuariam a “cuidar
da Funai”, onde cuidar inclui, como vimos, evitar transtornos no
posto, mas sobretudo orientar esse parceiro privilegiado para que
as relações de qualidade possam perdurar.
9.
Os registros dessas listas de jy-representantes de aldeias em meus cadernos, em 2011 e 2012 evidenciam não só uma certa flutuação, como dificuldades em indicar
apenas um por aldeia. Além disso, a lista das aldeias tendia sempre a aumentar, toda vez que era preciso ressaltar o desempenho de mais um líder. Já, quando
a indagação remetia claramente à fundação das aldeias, quando se utiliza o qualificativo jet, “dono”, desapareciam as dificuldades de ambos os lados – Funai e
índios – pois remetia não ao reconhecimento da capacidade de liderança, mas apenas ao ato de fundação de um local de moradia.
10.
Cabe destacar aqui o significativo papel dos missionários da MNTB, bem como pastores Tiriyó do Suriname, no incentivo às “andanças” dos Zo’é, tanto rumo ao
sul como rumo ao norte (ver texto de Ribeiro, neste volume). No entanto, deve ficar claro que a iniciativa do movimento e das caminhadas sempre foi de autoria
dos líderes zo’é.
291
rogério assis
ALGUMAS CONTINUIDADES NAS
TRANSFORMAÇÕES DA CHEFIA ZO’É
No rol dos equívocos colocados pela caracterização dos Zo’é
como uma sociedade sem chefes (nem xamãs),11 já mencionei o
trauma que os funcionários da Funai ressentiam pelas mudanças
induzidas pelo “contato”. Será necessário voltar, mais uma vez,
a essa questão, na medida em que a caracterização da atuação
dos atuais jovens chefes, pelos próprios Zo’é, parece indicar que
houve recentemente uma drástica alteração nos padrões de chefia.
Veremos, no entanto, que se pode entender tal transformação de
outra forma, se levamos em conta elementos da ação política
que raramente são levados em consideração: as modalidades de
enunciação dos feitos dos grandes homens, não apenas em forma
retrospectiva, mas também prospectiva.
Mas vejamos quais elementos foram interpretados como uma
ruptura advinda dos efeitos do “contato”. Desde pelo menos
2008, um pequeno número de jovens líderes reivindica para
si a denominação de “jy”, justificando tal prerrogativa tanto
em atos como em palavras. Entre suas ações memoráveis,
encabeçaram destemidas expedições rumo sul (onde buscavam
encontrar kirahi moradores dos campos gerais) e rumo ao norte
(atendendo convite de Tiriyó moradores da aldeia Boca do
Marapi, aliados a alguns Trio evangelizados de aldeias situadas
no Suriname), em busca dos objetos que a Funai lhe recusava:
roupas, panelas, espingardas. Durante três anos, cada um desses
jovens jy encabeçou pelo menos uma, ou sucessivas expedições,
despistando os agentes da Funai, e voltando com pouco objetos,
que procuravam esconder dos indigenistas. Mas, no entanto,
também voltariam com doenças, que se transformaram em
11.
Não abordarei aqui esse outro equívoco, que poderia ser analisado pelo
mesmo viés: procuravam-se xamãs, quando se deveria antes verificar se
há xamanismo. Xamanismo obviamente há, moldando diversos regimes de
relações entre humanos e não humanos (pois a potência xamânica não é
atributo reservado aos humanos). Entre os Zo’é tais relações são mediadas por
homens e mulheres com capacidades “especiais” e se manifestam através de
pelo menos dois tipos de intervenções: a de pessoas “com pajé” que vingam e
curam agressões, a dos velhos que “sonham” e trazem notícias dos mortos.
293
epidemias e geraram desentendimentos entre grupos familiares,
acusando-se mutuamente pelo contágio. Começaram então
as negociações acima mencionadas: caso recebessem da
Funai os objetos que iam buscar longe, parariam de “andar”.
As expedições diminuíram, mas não cessaram completamente.
Devemos nos perguntar se esses líderes interromperiam mesmo
suas andanças pelos caminhos que eles abriram em busca de
novos lugares e recursos desejados por seus seguidores.
E assim voltamos à pergunta posta acima: o que faz determinados
líderes “grandes homens”? Quais são os feitos desses jy,
rememorados e transmitidos até hoje? A partir de pesquisa
realizada no final dos anos 1990, Havt enumera um certo
número de “homens importantes”12, cujas “iniciativas e ações
pioneiras na promoção da ocupação configuram-se em exemplos
que são seguidos” (2001: 188). As indicações convergiam
sempre quando os interlocutores da antropóloga identificavam
“homens adultos, plenamente maduros, reconhecidos por serem
detentores destacados – em comparação a outros homens – de
conhecimentos relativos: 1) aos saberes atribuídos aos antigos;
2) às histórias acumuladas de trocas entre os grupos locais;
3) à capacidade de transmitir conhecimentos e distribuir
adequadamente alimentos e bens de maneira geral” (Idem).
Teríamos pelo menos neste último elemento uma clara
continuidade entre a ação dos líderes mais velhos e a dos jovens jy
atuais: são provedores e são capazes de transmitir conhecimentos.
12.
Basta lembrar a ênfase com a qual esses jovens identificam um
jy como alguém que “sabe pensar para conhecer”, ou, dito de
outra forma alguém que “se preocupa” em gerir relações para
obtenção desses saberes. Teríamos, atualmente, uma mudança
no teor dessas preocupações e no conhecimento a transmitir?
Vejamos o que me diziam, em 2012, homens e mulheres, jovens
ou mais velhos, a esse respeito. Alguns,13 enfáticos, me diziam
que agora, os velhos (taimi) não seriam mais chefes, apenas os
jovens (ta’an). Outros explicitavam que os velhos não conhecem
nem falam das coisas hoje necessárias aos Zo’é: “não pensam
nisso, não falam disso... nem sabem o que é pilha, alguns achavam
que pilha é o enfeite labial do branco... quando viram machado
pela primeira vez, não sabiam o que era, tentavam quebrar pedra
com ele e jogavam fora”. Os autores desse tipo de comentário
concluíam sempre que um jy deve se preocupar em obter as coisas
dos brancos. E novamente comparavam: “agora, os velhos ficam
parados, não andam, não vão buscar nada”. Outros ainda destacam
que os jovens trabalham (kiapiruhu),14 ao passo que os velhos – de
novo o mesmo elemento do diagnóstico – “ficam parados”.
Uma das habilidades mais significativas nos comentários dos
Zo’é acerca de seus jy é a disposição para capturar e fazer
circular conhecimentos. A capacidade de buscar e de colocar
esses conhecimentos em movimento, vem a ser o aspecto mais
relevante nos relatos acerca de trajetórias de personagens
importantes, tanto hoje como no passado.15
O “caráter marcante das trajetórias de homens importantes” (Havt, 2001: 188) inclui em especial a abertura de novos caminhos, ou seja, a capacidade de
encontrar locais apropriados para a ocupação, levando em conta os saberes e atuação dos seus ancestrais; rememora-se também a determinação em ir ao
encontro de estranhos. Quando Havt perguntava quem eram os jy passados e atuais “os falecidos Tamiri, Sarakut, Towari, Sihe, Dyby uhu, Bikut, etc., como os
também mencionados Biri, Tehun, Keapu são referências constantes” (Idem). Note-se que esses líderes foram inclusive identificados pelos Zo’é como cabeças
de grupos locais, no momento da identificação da terra indígena; os diagramas e croquis que resultaram desse levantamento (Gallois & Havt, 2008) parecem
ter sido considerados durante algum tempo pelos indigenistas da Funai, quando queriam identificar os “chefes verdadeiros” – ou seja, os mais velhos – e assim
desautorizar os jovens líderes que começavam a despontar em meados dos anos 2000.
13.
Um dos meus interlocutores, nessas conversas sobre formas de liderança, foi Biri, um dos “homens importantes”, reconhecido na década de 1990. Seu depoimento
não destoava em nada dos interlocutores mais jovens ao atestar que os chefes, hoje, são apenas os mais jovens.
14.
Os jovens usam normalmente o enunciado “trabalham muito!” em português, algumas vezes reforçando pela formulação kiapiruhu, na língua Zo’é, que, no entanto,
tem um sentido ao mesmo tempo mais restrito (de trabalhar na roça) e mais amplo (nos diversos contextos em que vem sendo aplicado atualmente).
15.
Em acordo com Havt “avaliando dados conhecidos de trajetórias, recentes como a de Tamiri e Sarakut, ou mais antigas – como Tamesi, Towari, etc. – percebese, juntamente com a implementação de ações de ocupação, iniciativas diversas e multidirecionadas de aproximação ou renovação de laços com outros grupos
locais. Da promoção dessas iniciativas resultariam oportunidades de acumular e/ou fazer-se depositários dos conhecimentos trocados em contextos de encontro e
convívio” (2001: 190).
294
Mas de que conhecimentos se trata? Estariam os Zo’é dizendo
que, hoje, interessa apenas saber onde e como obter as desejadas
mercadorias dos brancos, saber como lidar com os agentes
da Funai, com as comunidades no entorno da terra indígena?
Ouvi, de alguns jovens líderes, muitas afirmações nesse
sentido. São de fato esses assuntos que, como dizem, os fazem
pensar, os preocupam. E para tanto remetiam à comparação com
figuras importantes no passado, como Siherabyt, um ancestral a
quem todos os mais velhos se referem quando apontam a origem
de seus saberes e práticas. “Sabemos isso, porque Sihet contou”.
“Não sabemos disso, Sihet não disse nada a respeito”. E os
jovens, hoje, enfatizam: “o tempo de Sihet acabou”, “não nasci
no tempo de Sihet”, “Sihet não pensa nisso, em panelas e redes
dos kirahi, não sabia [da existência] dessas coisas”. Apontam que
os mais velhos, outrora líderes reconhecidos, não aprenderam
a fazer circular conhecimentos sobre os objetos dos brancos,
sobre os lugares onde podem acessá-los, ao contrário dos jovens
que se mobilizaram para aprender a respeito. Razão pela qual,
como me disse um dos jovens líderes: são eles hoje que sabem
“recolocar [em pé] os Zo’é”. Essa formulação é importante,
pois remete ao movimento da cosmologia zo’é, em que não há
criação (ex-nihili), mas sempre recriação da humanidade, que é
reerguida. Assim, uma figura importante – por vezes confundida
com a de um “criador” (no sentido cristão) – é Nipuhan, que
reergueu os Zo’é após o dilúvio e o incêndio que derrubou uma
das humanidades anteriores, e que é também rememorado por
transmitir um conjunto de saberes e práticas reportadas até
hoje como “ensinadas por Nipuhan” ou “aprendidas no tempo
de Nipuhan”. O mesmo ocorre com Siherabyt, que poderia ser
entendido com outro recriador, na medida em que definiu um
rumo e transmitiu conhecimentos à atual geração dos mais velhos
entre os Zo’é, depois de um período de conflitos com inimigos.
E o mesmo para cada um dos velhos que eram, a seu tempo,
16.
homens-esteio, e que orientaram seus grupos familiares em
buscas e apropriações de lugares e conhecimentos, num passado
mais recente. É sobretudo significativo o modo como esses ciclos
são enunciados, seja na forma retrospectiva – seguindo a prática
do discurso reportado, em que se identifica sempre a fonte de
algum conhecimento – como também prospectiva. É o que me
diziam os jovens: não nasceram no tempo de Siherabyt, tempo
que se esgotou, nasceram no tempo da Funai. E por isso,
no futuro, os saberes sobre a Funai e sobre os kirahi serão
reportados a eles. No futuro, os jovens dirão: conforme os dizeres
de Te. ou de To., que nos ensinaram, aprendemos sobre isso.
Explicaram inclusive que, quando os velhos de hoje morrerem,
falar-se-á também de tudo que esses ensinaram. De fato, hoje,
já se reportam a destacados homens maduros como Bi. e Kw.,
quando mencionam os saberes e práticas que esses velhos
legaram aos jovens. E aqui, a lista é infindável: caminhos e
lugares de inimigos, caminhos e lugares adequados para roças
e para caçadas, cantos, artefatos... A capacidade de liderança é
por natureza aquela que será rememorada, na forma de relatos
sobre trajetórias, de movimentos de apropriação e circulação de
conhecimentos. Conhecimentos que não são necessariamente
excludentes: simplesmente, enfatiza-se através do discurso
reportado quem aprendeu e ofereceu determinado saber, que
continua em circulação até hoje.
Por todas essas razões, os Zo’é valorizam hoje seus jovens líderes,
capazes de trazer conhecimentos novos, em complemento aos
saberes dos antigos, que seguem valorizados e colocados em
prática, sob incentivo de seus detentores. Os mais velhos entoam
cantos,16 organizam festas, ensinam a respeito dos inimigos
e dos aliados de outrora. Os mais jovens se preocupam em se
apropriar objetos de saber, que eles tiveram a competência de
identificar em seus próprios movimentos. Tudo, enfim, é questão
de autoridade. Autoridade sobre saberes que, pouco importando
Cabe ressaltar que alguns jovens líderes, ao invés de excluir categoricamente os mais idosos da posição de jy, os definem como “jy de cantos”, ou seja, alocam a
competência de liderança e esse campo de saberes e práticas que os velhos movimentaram, ao longo de sua trajetória. Vale notar que algumas mulheres também
são designadas como jy de determinados cantos e saberes que souberam acumular e, sobretudo, disseminar, ao longo de sua trajetória de vida.
295
se são “tradicionais” ou “de fora”, são reconhecidamente
adquiridos por indivíduos com habilidades para a liderança,
sejam os jovens chefes de hoje ou os velhos de antigamente.
Um modo de construir liderança que segue o modelo até hoje
rememorado dos feitos dos grandes homens de que falam os relatos
“dos antigos”. Reconhecemos aí a capacidade de multiplicação
da chefia ameríndia, que possibilita a proliferação de formas de
liderança, nunca contidas em um mesmo formato, nem no tempo
nem no espaço. Os Zo’é configuram uma sociedade tradicional
e, portanto, não tradicionalista (cfr. Lenclud, 1987: 118). E por
esse motivo, por ora, eles não atribuem aos saberes “dos antigos”
um valor exclusivo para a definição de seus rumos de futuro.
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rogério assis
maria luísa lucas
A “VOLTA” DOS
RAWANA: NOTAS
SOBRE AS FESTAS
REGIONAIS ENTRE
OS HIXKARYANA
Maria Luísa Lucas
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu – assente sobre os mesmos pés (...).
Alberto Caeiro.
Os trabalhos em etnologia na região das Guianas, sobretudo
aqueles feitos por pesquisadores brasileiros, geralmente tocam,
de modo mais ou menos direto, em questões concernentes às
controvérsias envolvendo duas linhas de pesquisa opostas (e,
a meu ver, muitas vezes complementares), personificadas nas
figuras de Rivière e Gallois, respectivamente em seus livros
“O indivíduo e a sociedade nas Guianas (2001)” e “Redes de
relações nas Guianas (2005)”1. O que pretendo aqui, antes
que posicionar-me em um dos polos da querela, é direcionar
minhas atenções a um rendimento por vezes pouco explorado no
contexto das produções mais recentes. A saber, a importância e
as transformações contemporâneas das festas regionais que, no
âmbito das redes de relações que conectam coletivos dispersos,
configuram-se no contexto guianense como veículos de
intercâmbio de pessoas, bens, tecnologia e, sobretudo, relações.
1.
2.
3.
4.
5.
300
A temática das redes de relações nas Guianas, onde, acredito, as
festas possuem lugar central, foi explorada por muitos autores.
Assim, Dreyfus (1993) mostra como, pelo menos desde o século
XVII, essas populações participavam de complexas redes de
alianças matrimoniais e circulação de objetos2. Esse espaço
político de “comunicação social e ideológica” (Idem: 24) guianense
abrangeria, nesse sentido, tanto guerras intertribais como trocas
de bens, prisioneiros e mulheres. Dreyfus considera, porém, que
no século XIX a escravidão e a queda demográfica decorrente das
epidemias fizeram com que as redes do passado se transformassem
em apenas um “sistema residual” do que antes existia3.
De fato, o enfraquecimento de sistemas locais de interdependência
nas Guianas parece ter tido um caráter pan-regional no decorrer
do século XIX, como demonstram, por exemplo, ArveloJiménez & Biord (1994) para o Orinoco. Não acredito, contudo,
que a partir disso possamos inferir automaticamente sobre o
desaparecimento de tais sistemas ou tampouco considerar que
o que hoje observamos é apenas um resíduo do que havia no
passado. Penso, antes, que esse nunca deixou de ser um tema
importante para a região4 – suposição que, de alguma forma,
acredito ser confirmada pelos dados apresentados neste trabalho.
Por outro lado, é igualmente importante termos em mente que o
contato permanente com os brancos parece ter sido o catalisador,
nesses sistemas, de diversas transformações.
É sobre essas transformações que desejo tecer algumas
considerações. Para isso, abordarei as festas por serem
expressões privilegiadas dessas redes e de suas transformações5.
Ao final, seguindo esse caminho será possível refletir de modo
mais aprofundado sobre uma importante categoria guianense:
Esse último organizado pela autora, com a contribuição de seus alunos. Sobre esse debate, ver também Rivière e col. (2007).
A circulação de objetos e consequentemente de tecnologia é sugerida também pelos dados apresentados por Jácome (2011) e Guapindaia (2008) para as antigas
populações da calha do rio Trombetas e por Rostain (2010) para a costa.
Opinião semelhante a que tem Rostain (2008) sobre o desaparecimento dos centros de especialização regionais para a região costeira das Guianas.
Outro exemplo é o que demonstra Butt-Colson (1973) a respeito das trocas de cerâmicas, canções, cães, etc. entre os Akawaio e seus vizinhos.
Um esboço desse trabalho, em formato de pôster, foi apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 3 e 6 de agosto de 2014,
Natal/RN.
rawana, em Hixkaryana. É interessante que conheçamos, antes,
as informações que estão disponíveis sobre o passado por meio
das narrativas indígenas e outras informações etnográficas.
AS FESTAS ANTIGAMENTE
Basso (1977: 17) aponta como os grupos de língua Caribe são
conhecidos por suas festas comunitárias que envolvem uma
série de aldeias. Esses encontros, entretanto, geralmente não
estão ligados, como em outros contextos ameríndios, a rituais
funerários ou de iniciação. Servem, principalmente, como
momentos de troca entre grupos que residem distantes uns dos
outros6. Isso é semelhante ao que pude tomar conhecimento
a partir de narrativas hixkaryana sobre as festas no tempo
dos antigos, amynehran komo. Sabe-se que, antes do contato
permanente com os brancos, tais festas aconteciam entre aldeias
distantes que em determinadas épocas do ano reuniam-se em um
só assentamento para cantar, dançar e compartilhar alimentos
(Fock, 1963). Conta-nos M. Txekeryefu, da aldeia Torre:
Antigamente, existia o awekarà. Eles vinham, os
awekarà komo. Eram visitantes, pessoas que moram
longe (...). Eles tinham recebido o aviso: “venham
porque vai ter nosso banquete”. Tinha uma cordinha,
tumxemo, era de contar os dias pra quem não tinha
calendário. Servia para contar a vinda dos awekarà.
(...) Eles mandavam levar pras outras aldeias.
Era pra marcar o dia certo dos awekarà chegarem.
Quando amanhecia, eles puxavam: “passou um dia”
(...). Quando chegava ao final, eles sabiam: acabou.
Agora eles estão aqui, já chegaram”. (...) Na data
marcada eles apareciam, os awekarà. O dia certo era
marcado com vermelho, com urucum.
Cordas como a tumxemo eram encontradas entre outros grupos
Caribe da região (Chaumeil, 2005) e utilizadas sobretudo para
mensurar o tempo. No caso dos Hixkaryana, a corda-convite era
feita com enfeites de plumas e tantos nós quantos fossem os dias
até a data marcada para a festa, de modo que, a cada dia, um nó
era desfeito.7 Assim, os moradores das outras aldeias chegavam
no dia assinalado pela marca de urucum. Enquanto isso, o dono
da festa, aquele que a tinha convocado e era responsável por
providenciar o alimento para os convidados, já havia organizado
expedições para buscar a comida necessária. Os visitantes
vinham cantando e tocando seus instrumentos ainda dentro das
canoas, na chegada. Os anfitriões eram os tarymaxe komo,8 e
eles esperavam seus convidados na beira do rio, pintados com
tabatinga (kawawu). Nesse momento já estavam prontos para a
luta, que começava tão logo o anfitrião escolhesse seu oponente.
Entre os lutadores, havia os awekarà komo, os de fora, e os
txetxayeno komo,9 os da aldeia. Segundo Txekeryefu, quando uma
pessoa era derrubada, os outros diziam: “pronto, acabou, você
não precisa se vingar. Ele foi mais forte que você”. Ele relata
ainda que os lutadores arranhavam o antebraço, as coxas e a
panturrilha com as unhas do tatu-peba para ficarem fortes como
esses animais, que são capazes de derrubar uma pessoa.10
6.
Como de costume, algumas exceções são conhecidas. Para a região do Pará setentrional, onde se incluem os Hixkaryana, um exemplo é a festa do rapé (morí)
descrita por Frickel (1961) para os Katxuyana no rio Trombetas. Segundo o autor, tratava-se de um ritual sem “alegres músicas ou danças das festas normais; nada
de mulheres e por conseguinte, nada de gritaria, barulho, bebedeira e amores clandestinos” (Idem: 1-2). Em oposição às “festas normais”, objeto desse trabalho, a
festa do rapé era um ritual de cura e profilaxia. Entre os Hixkaryana, ouvi relatos do mesmo tipo de ritual no passado, coordenado pelos xamãs. O rapé, entretanto,
não figurou nessas narrativas. Os xamãs hixkaryana utilizavam, para o mesmo fim, defumações e pedras mágicas.
7.
Além de convite para festas as tumxemo eram também marcadores de passagem temporal na antiga contagem do tempo hixkaryana (Lucas, 2014a).
8.
Literalmente, “aqueles que estão para serem derrubados”, mas do ponto de vista dos que chegam para lutar (awekarà). A raiz da palavra, aryma, é também o verbo
utilizado para jogar, lançar, derrubar.
9.
Trata-se aqui de outra denominação para tarymaxe komo, mas desta vez não do ponto de vista dos awekarà.
10.
A presença de lutas entre grupos falantes de línguas Caribe é característica marcante daquelas populações que habitam hoje o Alto Xingu, assim como é também
ali que são mais frequentes os relatos de escarificações no corpo do lutador. Sobre esse assunto cf., por exemplo, Avelar (2010).
301
Tais lutas eram apenas parte das festas, que contavam também
com grandes refeições coletivas (carne de caça e frutas trazidas
anteriormente pelos homens e alimentos à base de mandioca
preparados pelas mulheres) e várias danças:
Dançavam [dentro do maya, a casa comunal].
Depois bebiam, comiam. Isso era a noite inteira, até
amanhecer. Era assim antigamente. Era bonito. Se você
estivesse lá para filmar, seria muito bom. Eram danças
muito bonitas de se ver. Tinha muitas músicas também.
Muitas músicas mesmo. Eles cantavam, cantavam,
cantavam, até amanhecer. Terminavam às cinco horas
da manhã. Iam, tomavam banho, porque esse era o
jeito que eles viviam. (...) Era bonita a nossa dança,
era como a dança que tem em Parintins.11 (...) Tinha
a nossa bebida, que era igual cerveja, chamada woku.
Eles bebiam e ficavam bêbados. (...) – Você bebe cerveja?
[Eu:] – Um pouquinho. A gente também bebia assim.
Mas outros bebiam muito, e esses ficavam bêbados.
Dormiam. Outros dormiam no chão mesmo, estavam
bêbados por causa da nossa bebida, woku ymo12
M. Txekeryefu, aldeia Torre.
Dentre tais danças, destaca-se na literatura e nas narrativas
hixkaryana a do Yamo, estudada por Fock (1963) na década
de 1950 entre os Waiwai, vizinhos imediatos dos Hixkaryana
e seus tradicionais parceiros de troca. Fock (Idem: 170-172)
informa, baseando-se em relatos waiwai, que o Yamo era um
“festival de dança” que se prolongava por até dois meses,
com intervalos pequenos. Na primeira parte da festa, apenas
os homens participavam, com roupas de palha que deixavam
à mostra somente os pés e uma das mãos, que era usada para
tocar a flauta mahoà, interdita às mulheres. Na etapa seguinte a
flauta era substituída por um chocalho, e aí então era permitido
às mulheres participar oferecendo diretamente comida aos
11.
dançarinos e permanecendo no meio do círculo da dança,
observando uma importante separação por gênero.
A respeito desses instrumentos utilizados na ocasião das festas
encontrei atualmente, entre os Hixkaryana, os seguintes:
Txeryekra: flauta de bambu, geralmente
tocada em par por mulheres, sem digitadores,
com dois orifícios e uma extremidade fechada
e outra aberta.
Kosoyotxo: flauta feita de osso de
veado, com três orifícios de digitação e as
Aerofones
extremidades abertas.
(flautas)
Weryekye: flauta de madeira com quatro
orifícios de digitação alinhados no centro
do instrumento e as extremidades abertas.
Xakryekrye: flauta tocada na posição
transversal, com as extremidades fechadas e
dois orifícios de digitação em cada ponta.
Kwatxe: instrumento confeccionado com o
casco de tracajá limpo, é tocado por fricção.
Kamafura: espécie de tambor feito de
Instrumentos madeira da árvore karakru yohà (da qual se
de Percussão extraem sementes, regionalmente conhecidas
como morototó, usadas para artesanato)
recoberta por couro de preguiça, cutia, onça
ou porco do mato.
É importante salientar que, em relação a essas festas, observase a presença indispensável dos convidados. Existe um termo
bastante importante e amplamente difundido na região que
designa, de modo geral, os visitantes. No caso dos Hixkaryana,
diz-se rawana toda pessoa que sai de sua aldeia em direção a
Aqui Txekeryefu faz referência ao Festival Folclórico de Parintins, que acontece todos os anos no último final de semana de junho, movido pela rivalidade entre as
agremiações dos bois Caprichoso e Garantido e para o qual vários Hixkaryana se mobilizam para participar.
12.
Ymo é um sufixo para indicar grandeza (e, em alguma medida, periculosidade), sendo seu inverso txeko, ou simplesmente tye.
302
outra, seja para participar de uma festa, de uma reunião, para
encontrar seus parentes, etc. Dias Jr. aponta outras variações que
o termo apresenta nas Guianas:
A ocorrência dos cognatos pawanas encontra algumas
variações: entre os Akawaio, Tiriyó, Waiwai e Wayana,
o termo expressa o “não vizinho”, “não parente”,
“visitante” e “forasteiro”, respectivamente. Variações
podem ser notadas como pana entre os Aparai, pabanoton entre os Kamarakoto, pawanaton nos Pemon e
panary entre os Wajãpi. (...) Entre os Akawaio, (...) o
termo pode ser traduzido por “aqueles que vendem”;
(...) os Wayana utilizam-se do termo para falar dos
“Bush negroes” da República Guiana com quem
estabelecem relações de troca; Rivière (1969) menciona
o termo ipawana entre os Trio como parceiros de troca
distantes; Thomas (1972: 14) fala em pawanaton
(“gente comerciante”) usado pelos Pemon em suas
trocas comerciais com índios e não índios.
Dias Jr., 2005: 20.
No mesmo sentido de Rivière (1969), Grotti (2009: 173) indica
como ainda hoje o termo trio ipawana é utilizado para designar
parceiros formais de trocas, sobretudo os maroons que mantêm
contato frequente com os Trio do Suriname. De semelhante
maneira, Barbosa (2007: 97) também observa a atualidade do
termo para os Wayana e Apalai. Como afirma Dreyfus (1993:
24), trata-se de fato de um conceito “pan-guianense”, tanto em
relação à coisa designada quanto à palavra utilizada. Dias Jr.
observa, contudo, que enquanto em alguns grupos pawana pode
designar um parceiro formal de troca, entre os Waiwai o termo
é aplicado genericamente para pessoas de fora que estejam
por alguma razão presentes na aldeia e com quem se pode ou
não estabelecer alguma negociação.13 Acredito que entre os
Hixkaryana a palavra rawana funcione de modo semelhante ao
13.
14.
caso Waiwai, não designando necessariamente qualquer relação
ou parceria formal de troca, mas sublinhando apenas o caráter
estrangeiro daquele visitante. Em suma, é rawana quem vem de
fora. Guardemos essa reflexão.
MOVIMENTOS CENTRÍPETOS
Desde pelo menos o século XVII os Hixkaryana mantiveram
contato esporádico com padres jesuítas e capuchinhos que
estabeleceram, na foz do rio Nhamundá, próximo de onde hoje
se localiza a cidade de Faro, um polo missionário. As visitas
desses religiosos às aldeias nas cabeceiras, porém, não eram
frequentes. O contato com os brancos se intensificou apenas no
começo do século XX, com a chegada de extrativistas14 e alguns
viajantes. Mais tarde, no começo dos anos 1950, os Hixkaryana
entraram em contato com a mensagem cristã evangélica através
dos Waiwai, que são conhecidos na literatura por terem tomado,
desde o começo de sua conversão, uma postura evangelizadora,
buscando atrair para perto de si outros grupos da região (Howard,
2001). Além de “aceitar Jesus”, quiseram eles mesmos se
tornar missionários, de modo que empreenderam expedições
ao rio Nhamundá a fim de alcançar os Hixkaryana, como relata
Horyeharma, em Kassawá:
Vieram outros, que eram Waiwai. O nome dele era
Pywa. Ele era missionário (...), era alguém que tinha
ouvido antes um pouquinho. Tinha o filho dele também,
o nome dele era Yempu. Ele ainda era menino, um
jovem. Ele pregava e falava: “orem assim”. Ele falava:
“orem e falem só um pouquinho”. Meu pai e os outros
ouviam o que eles oravam: kiriwanyehe, kiriwanyehe,
kiriwanyehe, que significa “bom” [em Waiwai],
ohxe. Era assim que eles oravam, porque eles não
sabiam como fazer. Então eles só diziam kiriwanyehe,
É desse modo também que Hawkins (2002) traduz o termo em Waiwai apenas como “visitante”.
Sobretudo de pau-rosa (Aniba rosaeodora Ducke)
303
maria luísa lucas
kiriwanyehe, kiriwanyehe. Eles não diziam “o Senhor
é maravilhoso”, só diziam kiriwanyehe, kiriwanyehe,
kiriwanyehe. Eles cantavam também, tinha música
também. Eles estavam começando a ouvir. Eles estavam
começando a ouvir assim: “Jesus vem, Jesus vem”.
Era só isso. Porque eles não sabiam, eles cantavam só a
mesma coisa. Eles estavam começando a entender.
Com a investida, algumas famílias hixkaryana deixaram o rio
Nhamundá em direção a Kanashen, antiga base missionária
na Guiana. De acordo com Caixeta de Queiroz (2009), apenas
15 famílias nucleares permaneceram no Nhamundá após as
expedições dos Waiwai15. Vários descendentes daqueles que
seguiram essa migração permanecem vivendo com os Waiwai,
muito em razão da tendência uxorilocal de casamento.
É nesse contexto que em 1958 Desmundo,16 missionário do
SIL,17 subiu o rio Nhamundá. Em sua primeira viagem ele fez
contato com uma família que vivia na antiga aldeia Mutuma (ou
Mutum), no médio curso do rio, comunicando-lhes sua intenção
de trabalhar na área. Cerca de um ano mais tarde, Desmundo
voltou à região, mas tomou conhecimento que o chefe da família
que havia conhecido falecera. Assim, seguiu com os filhos desse
homem até a recém-aberta Kassawá, mais a montante, onde
encontrou em Candinho Kaywerye seu principal informante.
Desmundo iniciou então sua aprendizagem da língua visando
traduzir o Novo Testamento e, ao mesmo tempo, contatou
aldeias dispersas no território a fim de reunir os Hixkaryana
em Kassawá para evangelizá-los. Para isso, contou ainda com a
ajuda de sua esposa, Graça,18 que possuía formação em saúde
e realizou diversos atendimentos entre os Hixkaryana, que na
época sofriam com algumas doenças oriundas do contato com
15.
Apesar de parecer pouco, muitas pessoas que hoje estão na área hixkaryana
são descendentes daqueles que escolheram não sair de sua terra, já que se
tratava de uma população, na época, de pouco mais de cem pessoas.
16.
Desmond Derbyshire, a quem os Hixkaryana sempre chamaram Desmundo.
17.
Summer Institute of Linguistics.
18.
Grace Derbyshire.
305
brancos. Uma vez concentrados em Kassawá, os Hixkaryana
passaram a ouvir de Desmundo sobre as práticas que ele
considerava abomináveis, como a poligamia, o sexo fora do
casamento e a ingestão de bebida fermentada. Os Hixkaryana,
desde então, condenam esses comportamentos, ainda que não
seja raro tomar conhecimento de tais ocorrências. Algumas
outras práticas, porém, não estavam abertas a esse tipo de
negociação, onde podemos salientar a residência uxorilocal e,
de modo muito significativo, as festas regionais.
Kassawá tornou-se, com o passar do tempo, uma aldeia de
grandes proporções, onde vivem hoje quase quinhentas pessoas.
Todas os núcleos populacionais que estabeleceram contato com
Desmundo nessa época acabaram se mudando para a aldeia, o
que alterou também as festas pois, como vimos, era indispensável
para sua realização a presença de visitantes vindos de outras
aldeias. Howard (1993) descreve essas transformações para os
Waiwai do rio Anauá, da extinta aldeia Kaxmi, onde viveram
algumas famílias hixkaryana no passado. Segundo a autora,
que desenvolveu seu trabalho de campo na década de 1980, a
partir dos anos 1960 as festas comunitárias ganharam contornos
distintos em toda a região. Em primeiro lugar, elas passaram a
ocorrer nas datas cristãs do Natal e da Páscoa. O mais notável,
todavia, fora a “inversão cômica” (Idem: 229) decorrente da
ausência de visitantes de outras aldeias, consequência direta da
mudança no padrão de assentamento. Com a formação de grandes
aldeias e a impossibilidade de convidar pessoas que não sejam
corresidentes, os Waiwai passaram a improvisar, eles mesmos,
a condição de visitantes estrangeiros. O detalhe, contudo, é
que o fizeram por meio da performance de um comportamento
inadequado aos olhos dos próprios índios. Assim, os pawana
waiwai (as mesmas pessoas que vivem na aldeia durante todo o
ano, mas no período das festas se ausentam para caçar durante
vários dias e voltam como visitantes) não sabem o que é beiju ou
tapioca ou como estabelecer uma conversa em Waiwai. Toda a
situação é percebida com muito humor, e cabe aos Waiwai, nesse
momento, ensiná-los a se portar de modo apropriado.
306
De maneira parecida, o filme “Histórias de Mawary” (Caixeta de
Queiroz e col., 2009) mostra a festa de Natal da aldeia Mapuera,
na década de 1990. Nele podemos ver algo condizente com o que
Howard descreve em seu artigo: homens da aldeia chegando à
festa como visitantes e trazendo a caça que coletaram no mato.
Eles, contudo, não são capazes de falar de modo inteligível,
não sabem atirar flechas, se vestem de modo inadequado e não
sabem andar muito bem. Há, entre eles, um homem vestido
de garimpeiro, que também é um pawana. Eles se dirigem à
maloca de festas e tomam parte nas brincadeiras e na refeição
coletiva preparada especialmente para os visitantes. Segundo
Howard (1993: 253), essas são ocasiões marcadas pela alegria
(tahwore), manifesta pelo riso, pela jocosidade e pela beleza.
Acrescendo ainda que as festas em toda a região são também
os momentos por excelência em que aparecem os adornos
plumários, de sementes e certas peças de cestaria (Yde, 1965)
que não são utilizados no cotidiano, embora muitos deles
fizessem parte da indumentária no passado, como é o caso das
tangas femininas. Enfim, para a autora, a alegria e o humor
são estratégias waiwai no processo de socialização do exterior
(“waiwaização”), percebido pela “farsa” dos pawana, e quem
tem como objetivo central a domesticação da alteridade:
Vimos que os “estrangeiros” são representados
como abaixo da escala humana; eles mostram
muitas características “naturais”, animalescas.
Mas tais características traem um poder que, se
“domesticado” e controlado, canalizado pela troca,
tem a capacidade de reinfundir a sociedade waiwai
com forças geradoras indispensáveis
Howard, 1993: 259.
Em março de 2013 pude acompanhar a festa da Páscoa em
Kassawá. Sua descrição nos permite constatar que ela guarda
diversas semelhanças com aquilo que descreve Howard para
os Waiwai.
A partida dos caçadores
Na terça-feira anterior à páscoa, às cinco da manhã, um
dos tuxawas19 chamou todos da aldeia ao maya, construção
semelhante à antiga casa comunal e hoje utilizada para festas e
reuniões políticas. Ele fez isso com um grito grave e contínuo que
sempre é usado pelas lideranças para convocar grandes reuniões
coletivas. Chegando lá, havia duas mesas em cada extremidade.
Uma era destinada à refeição dos homens e outra à das mulheres.
Na dos homens havia muito mais comida que na das mulheres,
sobretudo beiju e farinha. Esse era o momento de reunir o alimento
daqueles que iriam para a mata conseguir a caça necessária para
a realização da festa. A distribuição das pessoas dentro do maya
está representada abaixo, onde os quadrados indicam as mesas
e as marcas em H e M a concentração de, respectivamente,
homens e mulheres em determinado local. Muito embora não
haja nenhuma restrição formal a respeito de qual porta deve ser
utilizada por cada grupo de pessoas ou um esquema de posições
rígido, todas as vezes que participei de atividades no maya era
mais ou menos essa a configuração.
(porta)
velhos
lideranças
H
H H
H
H
H
H
H
H
HHH
caçadores
M
M
M
M
M
(porta)
19.
jovens
H
H
M
M
O tuxawa começou então um longo discurso a respeito de quem
iria caçar. Esse era o momento em que aqueles homens que
desejavam ir para a mata deveriam se pronunciar. Aos poucos
alguns deles saíram de seus lugares e formaram uma fila a
seu lado, e ao todo 11 pessoas se dispuseram a acompanhá-lo.
O chefe dos pastores esclareceu que não iria porque ficaria para
coletar bacaba e buriti. Assim, após uma oração para agradecer e
abençoar o alimento, os caçadores começaram a comer a comida
disponível na mesa dos homens. Algumas mulheres buscaram
comida em sua mesa para distribuir para outras mulheres e
crianças. Na saída dos caçadores mais pessoas resolveram se
juntar ao grupo e havia aproximadamente 25 homens, contando
crianças e jovens. Muita gente acompanhou a partida dos
caçadores na beira do rio.
A chegada dos caçadores
Era quinta-feira, e desde o dia anterior as mulheres preparavam
muita farinha, beiju e bebida de goma (woknano). No começo da
tarde as esposas daqueles que tinha ido caçar foram chamadas
ao maya para levar a comida de seus maridos. Às cinco horas
da tarde foi a vez de chamar todas as mulheres: elas também
deviam levar comida. Já de noitinha, os caçadores chegaram
à beira do rio, dançando e cantando em pé nas canoas.
Todos desceram com suas caças nas mãos ou guardadas em
jamanxins improvisados com folhas de palmeira. Eles se
dirigiram à frente do maya e continuaram cantando músicas
diferentes das canções que me acostumei a ouvir na igreja.
Eram melodias com ritmo bem mais marcado e próximas das
poucas músicas que ouvi dos velhos quando conversamos
sobre os festivais de dança, como o yamo. Os caçadores então
dançaram em volta da construção e entraram em fila, guiados
Esse é o termo que os Hixkaryana usam em português para se referirem às lideranças políticas, grafando-o, porém, de acordo com o alfabeto convencionalizado
por Desmundo e largamente utilizado hoje pelos Hixkaryana.
307
pelo tuxawa. Nesse momento as mulheres estavam no centro
do maya com os alimentos que trouxeram, esperando os
homens. Eles chegaram, cantaram e dançaram em volta delas.
Alguns homens passaram os pedaços da caça que trouxeram,
ainda com sangue, nas mulheres, que se irritaram e gritaram.
Depois disso, os homens se organizaram em um grande
círculo. Era a hora de as mulheres oferecerem a eles a comida
preparada pelas mulheres. À tarde aconteceu mais um culto,
e nessa ocasião alguns pastores tiveram conversas particulares
com jovens que iriam se confessar no culto de domingo. À noite
que haviam trazido (beiju, bolo, pão, bolacha, refrigerante,
suco, bebida de goma). A maioria das bebidas, com exceção
do refrigerante, foi servida em panelas que as mulheres
levam à boca dos homens. As comidas eram guardadas em
sacolas plásticas, e as crianças que foram com seus pais
também estavam na fila. Nesse momento as músicas dos cultos
evangélicos começaram a tocar.
Antes das sete da manhã houve mais uma refeição no maya.
Alguns homens iriam sair para coletar frutos rio acima, e por
isso não haveria outra refeição coletiva à tarde. Os homens
voltaram no fim do dia, com os frutos que coletaram dispostos
também em jamanxins improvisados. Fomos para o maya e
esperamos a reunião e entrada dos homens. Quando todos eles
chegaram, dançaram em volta do maya. O que seguiu foi muito
semelhante à recepção dos caçadores. Após a distribuição dos
frutos as mulheres voltaram pra casa para preparar com eles as
bebidas de goma.
A caça que os homens trouxeram, que estava amontoada, foi
então organizada em círculo de acordo com o número de famílias
que havia se disposto a contribuir com a festa no preparo dos
alimentos. Um professor indígena chamou uma a uma as famílias
no microfone, geralmente pelo nome do homem. Cada um pegou
seu pedaço de caça e foi para casa.
Sexta-feira de Páscoa
Pela manhã, todos comemos juntos no maya, onde a disposição
das mesas e das pessoas foi a mesma daquela mostrada na figura.
Enquanto as pessoas chegavam os cantores se ocupavam com
músicas da igreja, e algumas meninas dançavam as mesmas
coreografias executadas nos cultos. Quando todos já estavam
presentes o chefe dos pastores fez uma oração e os diáconos e
suas esposas distribuíram a comida para cada grupo. Novamente,
havia mais comida na mesa dos homens. No fim da refeição
todos recolheram suas panelas e voltaram para suas casas.
Ainda pela manhã houve um culto na igreja, bastante similar
aos que acontecem normalmente. Depois, outra refeição coletiva
ocorreu, mas dessa vez com a caça trazida no dia anterior e
308
houve outra refeição coletiva.
Sábado de Páscoa
No fim da tarde, houve outra refeição coletiva, mas havia bem
menos comida que nos outros dias, sobretudo na mesa das
mulheres. Por volta das oito da noite começou um culto em
que não houve pregação, apenas música. Essa era uma ocasião
esperada com grande entusiasmo. Praticamente todas as pessoas
da aldeia foram divididas em categorias (homens, mulheres,
professores, pastores, diáconos, merendeiras da escola, agentes
de saúde, etc.), muitas delas sobrepostas. Cada grupo de pessoas
foi então à frente e cantou uma música que escolheu no vasto
repertório de canções cristãs em Hixkaryana. O microfone
ficava com uma dessas pessoas e as outras seguiam a música.
A celebração prosseguiu até meia-noite.
Domingo de Páscoa
No domingo, a música começou antes das seis da manhã, e
a refeição coletiva foi logo em seguida. Depois houve o culto
com o testemunho daqueles que haviam conversado com os
pastores na sexta-feira. Nessa ocasião, menos que uma descrição
detalhada dos pecados cometidos, as pessoas frisaram o modo
pelo qual Satanás as enganou. Como em todos os domingos, após
a ceia aconteceu outro culto. Depois de mais uma refeição, foi
organizado um torneio de pênaltis com premiação (50 e 30 reais
para os dois primeiros lugares) e um jogo de futebol. No fim
do dia, na última refeição coletiva, já quase não havia comida.
Depois que todos comeram o que restava, o tuxawa organizou
uma dança tímida com alguns homens e crianças, na volta para
casa. O dia acabou com mais um culto, muito parecido a todos
os demais, e se encerraram assim as comemorações da Páscoa.
O que notamos, a partir dessa breve descrição, é que a música e
a dança, agora presentes nos cultos que se repetem diariamente,
permanecem sendo fundamentais nas festas. A continuidade
com o passado torna-se ainda mais evidente, porém, na chegada
dos caçadores, quando aqueles que se ausentam da aldeia e
retornam como visitantes20 dançam em volta das mulheres com
a caça que trouxeram e depois são alimentados por elas (como
vimos, algo muito similar ao que Fock descreveu para o festival
yamo). Além disso, as refeições coletivas continuam sendo parte
central da festa, e mesmo quando a comida já se encontrava
escassa, todos se reuniam para partilhá-la. Porém, como vimos no
argumento de Howard da “farsa dos visitantes”, a concentração
de grupos dispersos em grandes assentamentos fez com que as
festas passassem por uma transformação importante em relação
ao passado ao não contarem mais com os convidados que chegam
de outras aldeias (e, ainda, ao aconteceram nas datas cristãs do
Natal e Páscoa). Esses visitantes performados, contudo, muito
provavelmente indicam o valor dos rawana para os povos da
região, antes que sua desaparição.
Desejo contribuir um pouco com esse debate apresentando
configurações recentes das festas regionais entre os Hixkaryana
que, a meu ver, apontam para a importância dos visitantes em
toda a região, ao mesmo tempo que chamam a atenção para mais
uma faceta de suas transformações.
MOVIMENTOS CENTRÍFUGOS
E CONFERÊNCIAS CRISTÃS
Como vimos, antes do contato permanente com os missionários
evangélicos os Hixkaryana viviam dispersos ao longo de seu
território em pequenas aldeias. A concentração desses grupos
em Kassawá, empreendida no fim dos anos 1950, permaneceu
inalterada até algumas décadas atrás. Nos últimos 20 anos, porém,
núcleos residenciais distribuídos em “bairros” de Kassawá
iniciaram um movimento de dispersão na área, fundando aldeias
de pequenas proporções na parte mais baixa do rio. Hoje existem
dez dessas novas aldeias, várias delas com pouco mais de 20
pessoas. As causas apontadas para esse deslocamento são várias,
onde podemos citar desde a morte de um parente até o acesso
mais fácil à cidade.21
As informações disponíveis sobre essas aldeias (Lucas, 2014b)
indicam que há hoje, no rio Nhamundá, modos diferentes de
viver em comunidade, com variadas configurações possíveis.
Por exemplo, enquanto em Kassawá quase 500 pessoas vivem
em um só assentamento, empenhando-se em diversos tipos de
relações com agentes não indígenas (missionários, enfermeiros,
funcionários da Funai, da Seduc/AM, etc.) e reunindo-se
apenas em determinadas ocasiões como cultos, conferências
cristãs, festas e trabalhos coletivos, percebemos que, apesar
da maior proximidade com a cidade, essas relações não são as
mesmas no cotidiano das aldeias recentes, onde além de ser
menor a circulação dos brancos, as pessoas estão espacial e
relacionalmente mais próximas umas das outras, mantendo entre
si certo contato diário que faz com que a socialidade em Kassawá
20.
Ainda que essa condição não fique tão evidente na descrição da festa da Páscoa, ao conversar com os Hixkaryana soube que, no Natal, quando a festa é maior e os
preparativos duram mais tempo (os caçadores podem sair da aldeia com quase um mês de antecedência), o caráter de estrangeiro dos que chegam é mais marcado.
21.
Uma vez que tais aldeias se localizam, ao contrário de Kassawá, fora das áreas encachoeiradas do rio Nhamundá.
309
e nas demais aldeias seja, para quem toma conhecimento desses
contextos, evidentemente diferente em cada um dos casos.
Apesar de esse ser um tema fascinante, interessa-nos aqui uma
consequência direta dessa dispersão.
Nos últimos anos, entre os Hixkaryana,22 as festas do Natal
e da Páscoa têm sido feitas também nas aldeias pequenas.
A cada vez uma delas é escolhida como anfitriã da celebração,
recebendo diversos visitantes dos assentamentos vizinhos e
sendo responsável por alojá-los e alimentá-los. Ao final de cada
comemoração é combinado onde acontecerá a próxima festa.
Dessa forma, desvinculam-se da comemoração em Kassawá ao
mesmo tempo que, com isso, recebem rawana de outras aldeias.
Nesses casos, os visitantes não são, como nas grandes aldeias,
performados. De fato, aqueles que chegam cantando em suas
canoas vêm, como no passado, de aldeias vizinhas. Ao mesmo
tempo, não participam mais das lutas ou bebem caxiri.
Empenham-se, agora, em participar das refeições coletivas, das
orações e das danças e músicas nos cultos e na casa de festas.
Outro tipo de encontro desenvolvido mais recentemente é
igualmente capaz de articular continuidade e inovação no que
diz respeito ao tema das festas regionais entre os Hixkaryana:
trata-se das conferências cristãs.23 No período em que estive em
Kassawá, a comunidade estava muito envolvida na organização
de uma conferência que aconteceu em julho de 2013, o CONPLEI
regional. O CONPLEI (Congresso Nacional de Pastores e Líderes
Evangélicos Indígenas) é uma organização interdenominacional
que se caracteriza por promover a articulação de indígenas
evangélicos que vivem no Brasil por meio de diversos encontros
e congressos. Fundada na década de 1990, a organização está
ligada à “terceira onda missionária”, que foi assim definida por
Paulo Nunes, representante do CONPLEI:
22.
Por que terceira onda? Porque nós indígenas
acreditamos que a primeira onda foi o estrangeiro
trazendo o evangelho para o Brasil, e que chegou
também até nós indígenas. Depois, com essas restrições,
a igreja nacional, que nós denominamos a segunda
onda missionária, eles também se levantaram e
continuaram levando o evangelho pra nós. E com
a retirada da primeira e da segunda onda a gente
precisava se levantar, e Deus mesmo nos levantou hoje,
numa terceira onda missionária pra nós pregarmos a
palavra de Deus pro nosso povo indígena no Brasil.24
O último congresso nacional do CONPLEI aconteceu em 2012,
em um centro de conferências na Chapada dos Guimarães,
Mato Grosso. Segundo a organização do evento, indígenas de
81 etnias e 15 países estavam presentes, dentre eles alguns
pastores hixkaryana. A organização empenha-se ainda na
manutenção do abrigo “O Coração do Pai”, que, em parceira com
a ONG Hakani e os proponentes do Projeto de Lei nº 1057/2007,
visa retirar das comunidades indígenas crianças em situação
de “risco social”, o que, para eles, resume-se às crianças com
alguma possibilidade de serem mortas por infanticídio.
Há, ainda, conferências regionais do CONPLEI, como a que
aconteceu em Kassawá. Ligados à “terceira onda missionária”,
esses encontros são propostos pelos próprios indígenas a fim de
reunir, durante alguns dias, grupos que estejam mais ou menos
próximos. O “mini-CONPLEI”, como também é conhecido,
acontece em diversas regiões do país, autonomamente. No caso
do evento em Kassawá, embora não tenha podido acompanhá-lo,
participei de seus preparativos. Dentre eles, a construção de uma
nova casa para os visitantes, a arrecadação de pelo menos uma saca
de farinha por cada família da aldeia (somando, aproximadamente,
E também entre os Waiwai (Oliveira, comunicação pessoal).
Para mais informações sobre os eventos do CONPLEI, como as conferências nacionais e os mini-CONPLEI e uma etnografia detalhada de uma conferência bíblica
no Alto Içana, ver Xavier (2013).
24.
Disponível em: <http://youtu.be/ojHbmGHsKYk>, acessado em 29 abr. 2015.
23.
310
maria luísa lucas
80 sacas de 60 litros)25, as campanhas de doação de dinheiro e
mantimentos feitas pelos tuxawas e pastores e a confecção de
camisas personalizadas para os grupos de cantores de cada aldeia
do rio Nhamundá. O tema da conferência era o trecho bíblico Lucas
23: 44-49,26 e sobre essa passagem foi composta pelo menos uma
canção, que era sempre executada nos cultos a fim de que todos a
conhecessem bem na época do evento.
Após a realização do mini-CONPLEI, soube que estiveram
presentes na conferência representantes de aldeias Waiwai,
Katxuyana, Kahyana, Tunayana, Arara e Tiriyó. As centenas
de pessoas reunidas para esse encontro deslocaram-se até a
aldeia anfitriã por terra,27 rio ou até mesmo em voos fretados. As
conferências são também um desses momentos em que alguns
tipos de adornos aparecem. Além disso, é nessa época que são
produzidas grandes quantidades de pulseiras, cintos e colares
de miçangas (compradas nas cidades próximas ou trazidas como
produto de troca pelos missionários) que são usados, vendidos
e trocados, especialmente entre os jovens. Existe, ainda, uma
grande preocupação em registrar esses encontros com fotografias,
vídeos e arquivos de áudios. Vários desses registros produzidos
pelos próprios Hixkaryana com celulares e câmeras digitais são
utilizados posteriormente como material para a confecção de
DVDs em Nhamundá ou Parintins. Com encarte customizado e
fragmentos de apresentações de músicas e danças, esses DVDs
ganham grande circulação entre as aldeias, de modo que diversas
vezes, à noite, o gerador das casas é ligado apenas para que esses
vídeos sejam reproduzidos na televisão.
Assim como no caso das festas do Natal e Páscoa nas aldeias
pequenas, nas conferências e encontros cristãos a aldeia anfitriã
também é responsável por alojar e alimentar os visitantes.
25.
Trata-se, contudo, de um contingente muito maior de pessoas,
muitas delas vindas de regiões relativamente distantes, como os
Trio do Suriname, o que faz com que a realização de tais encontros
mobilize toda a aldeia durante meses. Em ambas comemorações,
porém, vemos que tanto as refeições coletivas quanto o uso dos
termos de parentesco fazem parte de um interminável processo de
consanguinização desses visitantes. No último caso, assim como
nos cultos cotidianos, todos são chamados rowtà komo, “meus
irmãos”. A adoção dessa linguagem cristã é já um indicativo
de como rawana, enquanto categoria nativa, é uma noção em
constante transformação.
RAWANA: UMA CATEGORIA
EM CONSTANTE TRANSFORMAÇÃO
Durante a festa da Páscoa descrita anteriormente, houve um
momento emblemático em relação ao que foi discutido aqui.
Em uma das refeições coletivas o animador da festa que narrava
ao microfone tudo o que acontecia pediu para que eu levantasse e,
com muito entusiasmo, me apresentou como visitante, ressaltando
o fato de que era uma antropóloga e havia vindo de longe para
participar da festa em Kassawá. Em suas palavras em português
misturadas ao Hixkaryana, uma “presença ilustre”. A situação
se tornou peculiar quando fizeram o mesmo com os missionários.
Mesmo vivendo lá há anos (uma das missionárias mora na aldeia
há mais de uma década), eles também se levantaram e foram
apresentados como visitantes.
Acredito que esse episódio salienta tanto a indispensabilidade
dos visitantes nas festas e, por conseguinte, sua importância para
os Hixkaryana, quanto uma de suas caraterísticas fundamentais.
Na época, cerca de R$ 16000,00.
“Já era quase a hora sexta, e, escurecendo-se o sol, houve trevas sobre toda a terra até a hora nona. E rasgou-se pelo meio o véu do santuário. Então, Jesus
clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto, expirou. Vendo o centurião o que tinha acontecido, deu glória a Deus, dizendo:
Verdadeiramente, este homem era justo. E todas as multidões reunidas para este espetáculo, vendo o que havia acontecido, retiraram-se a lamentar, batendo nos
peitos. Entretanto, todos os conhecidos de Jesus e as mulheres que o tinham seguido desde a Galileia permaneceram a contemplar de longe estas coisas”.
27.
Existe um caminho que liga, com alguns dias de caminhada, a aldeia waiwai de Mapuera a Kassawá.
26.
312
A exemplo do que aconteceu com os missionários, é rawana
aquele que vem de fora, e, no caso dos brancos, não importa há
quanto tempo estejam na aldeia: seu caráter de estrangeiro será,
em determinados momentos, sempre lembrado.
Procurei, ao longo dessa exposição, abordar as festas regionais
na região dos Hixkaryana sob a ótica daquelas pesquisas que
buscam compreender como as Guianas encontram-se em relação
por meio de extensas redes de trocas. Percebemos o alcance
dessas redes, por exemplo, quando analisamos as conferências
cristãs, que são capazes de mobilizar um grande contingente de
pessoas que vivem em locais distantes espacialmente.
A importância das festas entre os Hixkaryana pode ser percebida
na narrativa dos próprios índios e na sua permanência, ainda
que transformada, mesmo após a conversão ao cristianismo. Em
uma das danças que participei, o tuxawa da aldeia me procurou
e disse que eu deveria registrar o que via em fotos e vídeos, pois
aquela era a “cultura de verdade dos Hixkaryana”. Acredito que
a partir daí podemos suspeitar também porque as festas são as
ocasiões em que os adornos corporais aparecem de modo mais
evidente, sempre acompanhados por um discurso que explica,
para os visitantes leigos como eu, que assim era como os antigos
Hixkaryana se vestiam cotidianamente no passado.
Se pensarmos nas festas como momentos de trocas de objetos, de
pessoas e, sobretudo, de relações, devemos ter em mente também
que, a cada celebração, os próprios Hixkaryana podem ser ou
receber visitantes, estando ou não em suas próprias aldeias, ou
seja, participando de um jogo que é, no limite, sobre trocas de
perspectivas. Assim, vimos que após a concentração em grandes
aldeias, as festas passaram a acontecer nas datas cristãs e os
rawana, então indisponíveis, começaram a ser encontrados
dentre os próprios moradores. Meu objetivo maior aqui foi
apresentar, por meio de dados etnográficos preliminares, uma
28.
nova configuração das festas entre os Hixkaryana, observada
a partir das conferências cristãs e das comemorações que
recentemente passaram a ocorrer nesses novos assentamentos
envolvidos no movimento de dispersão que está ainda em curso
em toda a região. Em ambos os casos o que se pode perceber é o
“ressurgimento” dos rawana, visitantes que de fato vêm de outras
aldeias para as comemorações, não sendo mais imprescindível
que sejam performados por meio da reclusão na mata e o retorno
como estrangeiros.
O caráter dessa reaparição, porém, deve ser lido com cautela.
Em primeiro lugar, de maneira alguma podemos imaginar que
os rawana, enquanto tais, sumiram sequer temporariamente do
universo hixkaryana. Se por um lado eles estavam presentes
em todas as festas, por outro, como categoria, não é possível
que desaparecessem, pois marcam a presença indispensável de
estrangeiros com quem se pode, potencialmente, estabelecer
algum tipo de troca.28 Em segundo lugar, tal ressurgimento
não carrega consigo qualquer grau de incorruptibilidade.
Ao contrário, vimos que os rawana de hoje são diferentes
daqueles de antigamente em diversos aspectos, assim como
também são as festas. Mais do que reforçar a dicotomia
passado e presente por meio da enumeração exaustiva
dessas transformações com o passar do tempo, interessame aqui como a categoria nativa rawana, da forma que ela
aparece no pensamento e na prática hixkaryana, pode indicar
como essa é uma noção chave capaz de conjugar através da
história continuidade e inovação. Por exemplo, podemos nos
perguntar em que medida ao dizer que “somos todos irmãos”
os Hixkaryana estão, como no passado, buscando “domesticar”
(Howard, 2002) seus estrangeiros como faziam por meio
do compartilhamento de comida e da consubstancialidade.
Por outro lado, não é possível fechar os olhos para o fato de que,
E aqui poderíamos sem grandes problemas relacionar tal discussão com a importância da alteridade no universo ameríndio, tal como esquematizada por Viveiros
de Castro (2002a) a partir de sua leitura atenciosa de uma série de etnografias amazônicas. Tal empreitada, porém, excederia os limites desse trabalho.
313
atualmente, os cultos cristãos são parte importante das festas, em
que pregações sobre Deus e as armadilhas de Satanás, figuras
antes ausentes na vida dos Hixkaryana, são sempre lembradas.
Em resumo, meu argumento é que os Hixkaryana lidam há muito
tempo em seu cotidiano com a tensão, própria ao pensamento
ameríndio, entre alteridade e identidade29. Esse não parece,
contudo, ser um problema em busca de solução ou uma
contradição latente. Nessa direção, acredito que rawana, como
uma categoria nativa indispensável, resiliente mas em constante
transformação, pode ser uma lição oferecida a nós pelos próprios
Hixkaryana para que pensemos sobre questões contemporâneas
a respeito da região das Guianas e alhures, sem que com isso
seja necessário optar de forma irredutível entre abordagens
excludentes que enfatizam ou a continuidade ou a ruptura em
suas análises.
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29.
314
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315
carlos penteado
OS AUTORES
DENISE FAJARDO GRUPIONI doutora em Antropologia Social
pela Universidade de São Paulo, realizou pós-doutorado nesta
mesma universidade de 2008 a 2011, onde exerceu atividade
docente e de pesquisa com apoio da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo. Tem experiência na área de
Etnologia Indígena, com ênfase em Antropologia das Guianas,
e pesquisas etnográficas entre os Tiriyó e Katxuyana no Norte
do Pará e fronteira com o Suriname. É coautora do livro “Povos
Indígenas no Amapá e Norte do Pará” (2009/ 2a edição) e autora
do livro “Arte Visual dos Povos Tiriyó e Katxuyana: Padrões de
uma Estética Ameríndia” (2009). É sócia-fundadora do Iepé
- Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, onde coordena o
Programa Tumucumaque desde 2006.
DOMINIQUE TILKIN GALLOIS docente do Departamento
de Antropologia e coordenadora do Centro de Estudos
Ameríndios - CEstA da Universidade de São Paulo. Possui
doutorado em Ciência Social (Antropologia Social) pela
Universidade de São Paulo (1988). Tem experiência na área
de Antropologia, com ênfase em Etnologia e História Indígena,
atuando principalmente nos seguintes temas: tradições orais
e cosmologias ameríndias, políticas indígenas, patrimônio
cultural e conhecimento tradicional. Desenvolve atividades de
assessoria direta a comunidades indígenas no Amapá e norte
do Pará, colaborando com órgãos públicos e organizações não
governamentais em programas de formação indígena.
EURÍPEDES ANTÔNIO FUNES professor do Departamento de
História da Universidade Federal do Ceará. Cursou Mestrado na
Universidade Federal Fluminense, Doutorado na Universidade
de São Paulo e Pós-Doutorado na Universidade Estadual de
Campinas. Publicou “Goiás de 1800 a 1850 – um período de
transição da mineração a agropecuária”. É coautor do livro
“História e Memórias de Três Fronteiras: Brasil, Peru, Bolívia”.
Tem publicado vários capítulos de livros e artigos sobre
comunidades mocambeiras na Amazônia brasileira. Desenvolve
no momento estudos no campo da História Ambiental.
FABIO AUGUSTO NOGUEIRA RIBEIRO doutorando pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade de São Paulo e atual Coordenador da Frente
318
de Proteção Etnoambiental Cuminapanema da Coordenação
Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Fundação
Nacional do Índio. Realiza pesquisas etnográficas e atividades
indigenistas junto aos Zo’é e aos povos indígenas isolados no
norte do Pará e no Amapá.
FRANÇOIS-MICHEL LE TOURNEAU doutor pela universidade
de Marne la Vallée em Ciências da Informação Geográfica
(1999). Atualmente é pesquisador titular do Centre National
de la Recherche Scientifique (França), lotado no Instituto dos
Altos Estudos da América latina (IHEAL). Coordenou diversos
projetos voltados para a o desenvolvimento territorial sustentável,
os usos e representações do território em populações tradicionais
e identidades indígenas emergentes. Tem experiência na área
de geografia, atuando principalmente nos seguintes temas:
Amazônia, sistemas de informação geográfica, sensoriamento
remoto, populações tradicionais e indígenas.
IGOR SCARAMUZZI Possui Bacharelado e Licenciatura
em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho (2001) e mestrado em Antropologia
Social pela Universidade de São Paulo (2008). Atualmente
é doutorando em Antropologia Social pela Universidade
Estadual de Campinas desenvolvendo pesquisa sobre o
extrativismo da castanha-do-pará com ênfase na produção
e transmissão de conhecimentos no âmbito dessa atividade
entre os quilombolas do Alto Trombetas, em Oriximiná, no
Estado do Pará. Desde 2004, atua como consultor de projetos
que envolvem educação, cultura/patrimônio e terra/meio
ambiente para populações indígenas e tradicionais.
ISABELLE TRITSCH POSSUI graduação em Agronomia (2009)
e doutorado em Geografia (2013) pelo CIRAD - Universidade
da Guiana Francesa. A sua tese trata da governança territorial
e do manejo dos recursos naturais no território dos povos
indígenas Wayãpi e Teko da Guiana francesa. Atualmente
é pós-doutoranda no Centre National de la Recherche
Scientifique (Paris, França). Trabalha principalmente na
Amazônia nos seguintes temas: dinâmicas agrárias, direitos
fundiários, áreas protegidas e desenvolvimento local.
JULIA FRAJTAG SAUMA é pós-doutoranda no Programa de Pósgraduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com
financiamento do Programa Nacional de Pós-Doutorado da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes). A autora finalizou o seu doutorado na University
College London em fevereiro de 2014, com a tese “The Deep
and the Erepecuru: tracing transgressions in an Amazonian
Quilombola territory” (“O Fundo e o Erepecuru: o traço das
transgressões em um território quilombola na Amazônia”)
baseada em quase dois anos contínuos de pesquisa de campo
com os “Filhos do Erepecuru”, remanescentes de quilombos
do município de Oriximiná.
LEONARDO VIANA BRAGA mestrando do Programa de Pósgraduação em Antropologia Social da Universidade de
São Paulo e membro do Centro de Estudos Ameríndios –
CestA da USP. Bacharel em Ciências Sociais pela Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo. Por meio de pesquisa de Iniciação Científica esteve
vinculado à pesquisa temática “Redes Ameríndias: geração e
transformação de relações nas Terras Baixas sul-americanas”,
financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo e realizada por pesquisadores do antigo Núcleo de
História Indígena e do Indigenismo da USP. Sua pesquisa junto
aos Zo’é enfatiza a aprendizagem, o gênero, e a maturação da
pessoa, articulados sobretudo pelos aspectos da caçada.
LÚCIA MENDONÇA MORATO DE ANDRADE Coordenadora
Executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo desde 2002.
Mestre em Antropologia Social pelo Departamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo em 1992. Autora dos
livros “Terras Quilombolas em Oriximiná: pressões e ameaças”
(CPI-SP, 2010) e “Terra de Quilombo: Herança e Direito”
(CPI-SP, 2005). Coordena as atividades da Comissão Pró-Índio
de São Paulo junto aos quilombolas de Oriximiná desde 1989.
LUCIANA GONÇALVES DE CARVALHO possui doutorado em
Ciências Humanas-Antropologia (2005) pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Docente do Programa de Antropologia
e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará,
onde tem projetos de pesquisa e extensão em andamento
sobre memória, trabalho e conhecimentos tradicionais em
comunidades rurais, ribeirinhas e extrativistas, vinculados ao
grupo de pesquisa Diversidade Cultural, Território e Novos
Direitos na Amazônia. Recentemente, coordenou a elaboração
de relatórios antropológicos dos territórios quilombolas Moura,
Jamari-Último Quilombo e Ariramba para o Incra, e o Inventário
de Referências Culturais dos Quilombos de Oriximiná.
LUDIVINE ELOY POSSUI graduação em Agronomia pelo
AgroParisTech (2001), mestrado em Geografia e prática do
desenvolvimento – Universidade de Nanterre Paris X (2002)
e doutorado em Estudos das Sociedades Latino-americanas
pelo Instituto de Altos Estudos da América latina (IHEAL,
2005). Atualmente é pesquisadora do Centre National de la
Recherche Scientifique (Montpellier, França) e pesquisadora
colaboradora no Centro de Desenvolvimento Sustentável
da Universidade de Brasília. Tem experiência na área de
agronomia e geografia, com ênfase em desenvolvimento
agrícola, manejo dos recursos naturais e políticas ambientais.
Trabalha principalmente no Cerrado e na Amazônia.
LUISA G. GIRARDI é doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, pelo qual
realiza pesquisa etnográfica entre os Katxuyana no Trombetas
(Pará). É bacharel em Ciências Sociais (2008) e mestre em
Antropologia (2011) pela Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Entre 2012 e
2014, fez parte da equipe do Programa Tumucumaque do Iepé Instituto de Pesquisa e Formação Indígena.
MARIA LUÍSA LUCAS graduada em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de Minas Gerais (2011). Obteve o
Mestrado em Antropologia Social pelo Museu Nacional
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014), onde
defendeu a dissertação “Antes a gente tinha vindo do jabuti”:
notas etnográficas sobre algumas transformações entre os
Hixkaryana no rio Nhamundá/AM. Atualmente cursa o
doutorado na mesma instituição.
319
ROBERTA PEIXOTO RAMOS é formada em Política
Internacional pela Universidade de Middlesex, com mestrado
em Desenvolvimento da América Latina pela Universidade de
Londres e atualmente cursa o doutorado na London School of
Economics and Political Science no departamento de Políticas
Públicas pesquisando o tema de acesso a recursos genéticos,
conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios.
Trabalha com consultoria e pesquisa na área de acesso e repartição
de benefícios (ABS) e é colaboradora no projeto pioneiro de
desenvolvimento de protocolos comunitários no Brasil.
RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ Professor Associado de
Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual
de Campinas (1991) e doutor em Letras e Ciências Humanas
pela Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense (1998).
A partir de seu doutorado, vem atuando junto ao povo Waiwai
desde 1994. De 2000 a 2004, coordenou o grupo de trabalho
para identificação e delimitação da Terra Indígena TrombetasMapuera. De 2008 a 2012, coordenou o grupo de trabalho
para a identificação e delimitação da TI Katxuyana-Tunayana.
STÉPHANIE NASUTI possui mestrado em estudos das sociedades
latino-americanas pelo Instituto de Altos Estudos da América
latina (2005) e doutorado em Geografia pela Universidade
Paris 3 (2010). Atualmente, realiza pós-doutorado no Centro
de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília
Tem experiência na área de geografia e em ciências ambientais.
Está envolvida em vários projetos de pesquisa no Brasil e na
França, voltados para o estudo da vulnerabilidade e adaptação
da população às mudanças do clima; as mobilidades ruraisurbanas; os direitos fundiários; e o desenvolvimento territorial
nas regiões da Amazônia e do Semiárido brasileiro.
VICTOR ALCANTARA E SILVA bacharel em Ciências Sociais
pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012) e
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade de São Paulo desde 2013, com projeto
na área de etnologia ameríndia. Trabalha com os Waiwai
desde 2010.
320
A Comissão Pró-Índio de São Paulo é uma organização não
governamental fundada em 1978 que atua junto com índios e
quilombolas para garantir seus direitos territoriais, culturais
e políticos, procurando contribuir com o fortalecimento da
democracia, o reconhecimento dos direitos das minorias étnicas
e o combate à discriminação racial. A parceria da CPI-SP com os
quilombolas de Oriximiná iniciou-se em 1989 e se concretiza por
meio da assessoria às organizações quilombolas, da promoção
de atividades de capacitação, do desenvolvimento de ações
conjuntas de incidência e da busca de alternativas de manejo
sustentado dos territórios quilombolas.
CONSELHO DIRETOR
Carlos Fernando da Rocha Medeiros, Flávio Jorge Rodrigues da Silva,
Lúcia Helena Vitalli Rangel e Paulo Roberto David de Araújo
CONSELHO CONSULTIVO
Ana Lúcia Amaral, Dalmo de Abreu Dallari, Eurípides Antônio Funes,
Girolamo Domenico Treccani, Lux Boelitz Vidal, Manuel Mindlin Lafer,
Orlando Sampaio Silva e Rodrigo Barbosa Ribeiro.
COORDENADORA EXECUTIVA
Lúcia M. M. de Andrade
ASSESSORA DE COORDENAÇÃO
Carolina Kaori Ikawa Bellinger
O Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena é
uma organização sem fins lucrativos, fundada em 2002, com o
objetivo de contribuir para o fortalecimento cultural e político e
para o desenvolvimento sustentável das comunidades indígenas
que vivem no Amapá e norte do Pará, proporcionando-lhes
assessoria especializada e capacitação técnica diversificada,
para que se organizem e possam enfrentar, de forma articulada,
os desafios crescentes que se colocam hoje às suas comunidades
e organizações, para a defesa de seus direitos e interesses.
CONSELHO DIRETOR
Maria Bernadette Arantes Nogueira Franceschini (Presidente),
Dominique Tilkin Gallois (Tesoureira), Lúcia Hussak van Velthem
(Secretária)
CONSELHO EDITORIAL
Denise Fajardo, Dominique Tilkin Gallois, Luis Donisete Benzi
Grupioni, Lúcia Hussak Van Velthem, Lux Boelitz Vidal
COORDENADOR EXECUTIVO
Luis Donisete Benzi Grupioni
COORDENADOR EXECUTIVO ADJUNTO
Décio Horita Yokota
COORDENADORA DO PROGRAMA TUMUCUMAQUE
Denise Fajardo
ASSESSOR DE PROGRAMAS
Otávio de Camargo Penteado
EQUIPE DO PROGRAMA TUMUCUMAQUE
Andréia da Silva Vaz, Evandro Batista Antunes Bernardi,
Jeciane Fonseca de Souza, Marina Minari
ASSISTENTE ADMINISTRATIVA
Kelly Cristina Viera dos Santos
ASSESSORIA ANTROPOLÓGICA AO PROGRAMA TUMUCUMAQUE
Lúcia Hussak Van Velthem
Rua Padre de Carvalho 175 - São Paulo - SP - Brasil - 05427-100
Email: cpisp@cpisp.org.br
www.cpisp.org.br
Rua Professor Monjardino, 19 - São Paulo - SP – Brasil - 05625-160
Email: sede-sp@institutoiepe.org.br
www.institutoiepe.org.br
321
carlos penteado
Este livro, que o Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena
e a Comissão Pró-Índio de São Paulo ora trazem a público, trata dos
povos indígenas e quilombolas que vivem no interflúvio formado
pelos rios Nhamundá, Trombetas e Erepecuru, ligados principalmente
ao município de Oriximiná, mas também a Óbidos, Faro e Nhamundá,
na divisa do estado do Pará com Amazonas.
Que povos são esses, que relações permeiam sua história, como vivem,
são informações que não se encontram com facilidade. Contribuir
para preencher tal lacuna é o propósito deste livro que reúne artigos
de 18 autores que aceitaram o convite para disponibilizar ao público
os conhecimentos gerados em recentes estudos sobre tais povos.
A ideia deste livro nasceu no contexto da “articulação indígenaquilombola” que se iniciou em setembro de 2012, quando o Quilombo
Abuí recebeu mais de 170 convidados para um reencontro histórico:
o “1º Encontro Índios e Quilombolas de Oriximiná”, que representou um
marco nas atuais e resignificadas relações entre índios e quilombolas.