Artigo: Groove e escrita na Toccata em Ritmo de Samba nº. 2 de Radamés Gnattali
Autor(es): Fabiano Araújo Costa
Fonte: RJMA – Revista de estudos do Jazz e das Músicas Audiotáteis, Caderno em Português, nº 1, Abril 2018
Publicado por: Centre de Recherche International sur le Jazz et les Musiques Audiotactiles (CRIJMA), Institut
de Recherche en Musicologie (IReMus), Sorbonne Université
Stable URL: https://www.nakala.fr/nakala/data/11280/7ebd0ad3
A Revue d’études du Jazz et des Musiques Audiotactiles (RJMA) é uma revista acadêmica multilíngue, on-line de
publicação anual. Este número da RJMA apresenta-se na forma de quatro ‘Cadernos’, contendo, cada um, todos
os artigos em uma língua, respectivamente francês, italiano, português, inglês. Cada Caderno é identificado pelo
acrônimo RJMA seguido do título da revista na língua correspondente.
Os Cadernos são disponíveis on-line em: http://www.iremus.cnrs.fr/fr/publications/revue-detudes-du-jazz-etdes-musiques-audiotactiles.
O Caderno em Português da RJMA nº 1 foi produzido em parceria com o [eMMa] – Núcleo de Estudos em
Música e Musicologia Audiotátil, Universidade Federal do Espirito Santo (UFES, Brasil), no âmbito do Projeto
de pesquisa MBPAT 6751/2016.
Como citar este artigo:
ARAÚJO COSTA, Fabiano, “Groove e escrita na Toccata em Ritmo de Samba nº. 2 de Radamé Gnattali”, trad. de
Patrícia de S. Araújo, RJMA – Revista de estudos do Jazz e das Músicas Audiotáteis, Caderno em Português, nº 1,
CRIJMA – IReMus – Sorbonne Université, Abril, 2018, p. 1-23. Disponível em:
https://www.nakala.fr/nakala/data/11280/7ebd0ad3.
Groove e escrita na Toccata em Ritmo de Samba nº 2 de
Radamés Gnattali
Fabiano Araújo Costa
A Toccata em Ritmo de Samba nº 2 (1981) do compositor brasileiro Radamés Gnattali (19061988) foi escrita originalmente para integrar o ciclo intitulado 3 Concert Studies for Guitar, publicado
em 19901, figurando assim ao lado das peças Toccata em Ritmo de Samba nº 1 (1950) e Dansa
Brasileira (1958)2. Essa partitura para violão solo foi escolhida como material de especulação
groovêmica pelo grupo de música instrumental Baobab Trio (piano, violão e pandeiro)3, e originou
assim, a faixa “Toccata em Ritmo de Samba nº 2”4, gravada em 2012, a qual – para além do
arranjo, da reestruturação da forma original, e da adição de partes de improvisação – introduz
uma consideração fundamental no nível da fenomenologia audiotátil: o groove foi “incorporado”
à obra escrita através do medium tecnológico de gravação e reprodução fonográfica. Naturalmente,
tal observação nos conduz à questão sobre a natureza desta “incorporação” do groove a uma
obra escrita, no quadro das músicas audiotáteis, que pode ser assim formulada: como os sistemas
operacionais audiotátil (ligado ao groove) e visual (ligado à escrita)5, categorizados pela TMA6,
cooperam entre si no processo de constituição e de reconhecimento coletivo da experiência
estética formativo-musical audiotátil?
Neste artigo perseguimos o fio dessa questão com a ajuda de duas noções que derivam da
TMA: (1) a subsunção mediológica; e (2) o lugar interacional-formativo, para analisar o caso específico de
tratamento de reelaboração audiotátil 7 da obra Toccata em Ritmo de Samba nº 2 (1981) de Radamés
Gnattali, tal como a encontramos na gravação realizada em 2012 pelo grupo Baobab Trio. O
primeiro conceito foi evocado no contexto do artigo nº 3 deste número da RJMA8, onde expõese a ideia de que os idiomas das músicas audiotáteis são altamente dependentes da composição
particular da mistura visual/audiotátil, ou melhor, do grau de subsunção do medium visual pelo
1
Três Estudos de Concerto para Violão Solo. Radamés Gnattali, 3 Concert Studies for Guitar, produced by Gennady
Zalkowitsc, Heildelberg, Chanterelle 728, 1990.
2 “Unlike the 10 Studies, all written as the outcome of one single compositonal intention in the year of 1967, the 3 Concert Studies
were composed from 1950 until 1981 and were played as isolated concert pieces. It was Gnattali’s wish, however, to give them a ‘unifiyng
gesture’ by publishing all of them together as a small cycle under the title ‘Concert Studies’” (Gennady Zalkowitsc, “Introduction”,
in 3 Concert Studies for Guitar.... p. iii).
3 Fabiano Araújo (piano), Wanderson Lopez (violão), Edu Szajnbrum (pandeiro). Destacamos dentro desta
abordagem analítica nossa posição como insider e como participante do processo formativo da gravação de 2012.
Entretanto, nosso procedimento encontra seu fundamento na “transcrição étmica” (cf. Vincenzo Caporaletti, “An
Audiotactile Musicology”, RJMA – Revista de estudos do Jazz e das Músicas Audiotáteis, nº 1, 2018, p. 1-17.), que
reformula a problemática ético/êmico em nível antropológico, permitindo a comparação entre o nível neutro
efetivamente inscrito na gravação e os testemunhos, com as fontes escritas e audiotáteis implicadas.
4 Baobab Trio, “Toccata em Ritmo de Samba nº 2”, Baobab Trio, Tratore, 2012. Disponível em formato free streaming
em https://goo.gl/8TgQsH.
5 Ver Infra nota 15.
6 Reconduzimos ao artigo V. Caporaletti, “Uma musicologia audiotátil...”, p. 2-11.
7 Esta expressão é utilizada em V. Caporaletti “Milhaud, Le Bœuf sur le toit, e o Paradigma Audiotátil”, in: Manoel A.
Corrêa do Lago (Org.), O Boi no Telhado - Darius Millhaud e a música brasileira no modernismo francês, Rio de Janeiro,
Instituto Moreira Salles, 2012, p. 229-28 [p. 5], para indicar uns dos processos de reintrodução de valores audiotáteis
na obra escrita.
8 Ver Fabiano Araújo Costa, “Música popular brasileira e o paradigma audiotátil: uma introdução”, RJMA – Revista de
estudos do Jazz e das Músicas Audiotáteis, Caderno em Português, nº 1, 2018, p. 1-19 [p. 15].
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audiotátil e vice-versa9. O segundo conceito é nossa contribuição original à TMA, e concerne a
dimensão intersubjetiva, interacional e sistêmica da experiência estética musical audiotátil.
Abordamos, neste propósito, o problema fenomenológico implicado pela conjuntura onde dois
ou mais músicos se encontram em uma situação onde buscam juntos dar uma forma artística a
diferentes materiais e realidades culturais, pessoais e musicais10.
A articulação desses conceitos (que serão apresentados em detalhe mais adiante) nos
permite, do ponto de vista da análise, vislumbrar a cooperação entre o sistema operativo
audiotátil e o sistema visual/escrito no processo de constituição e reconhecimento mútuo da
experiência musical formativa. Nessa perspectiva de análise, são considerados os fatores
contextuais socioculturais e históricos, mas também os modos segundo os quais os critérios
estéticos de prevalência audiotátil, emergentes no lugar interacional-formativo, subsumem a lógica
visual da partitura escrita. Essa abordagem busca uma compreensão dos processos criativomusicais de características inter- e transculturais, que, no quadro das músicas brasileiras, são
identificados na perspectiva das amalgamações entre o “erudito” e o “popular”, a “brasilidade” e
as “influências estrangeiras”, a “modernidade” e a “tradição”11. Sempre considerando a partitura
original de Gnattali, os esboços de arranjo, a transcrição da gravação e os testemunhos dos
membros do grupo, a análise apoia-se sobre a premissa de que a situação contextual poïética
audiotátil em questão refere-se ao processo de subsunção mediológica que emerge como critério
artístico sob a forma de um lugar interacional-formativo.
1. Quadro Teórico
1.1. O Processo de “Subsunção Mediológica”
Com a definição do princípio audiotátil (PAT) como medium cognitivo distinto do medium
cognitivo visual/escrito, a TMA considera que cada medium possui um sistema operativo e uma
lógica funcional inerentes que induzem seu próprio modo de conhecimento e de concepção da
realidade musical. Dessa distinção deriva o princípio da subsunção mediológica12, para o qual: “apenas
um medium formativo é responsável pela ordem cognitiva estabelecida: esta pode, entretanto,
subsumir outros media em sua lógica funcional própria”13.
Em suma, o princípio da subsunção mediológica contempla as possíveis relações de
prevalência/subordinação entre a visualidade e a audiotatilidade no processo formativo geral, no
qual, em termos mediológicos, sempre há o medium formante (o medium que explicita sua
capacidade formadora de experiência) e o meio formado subordinado.
Cabe aqui uma breve precisão sobre a terminologia específica que a TMA utiliza para
formalizar a relação de subsunção da audiotatilidade e da visualidade, e para designar, em cada
9 Considerando, no entanto, que a TMA concebe a visualidade e a audiotatilidade como ideal types, e no nível lógico e
teórico convém de mantê-los sempre distintos.
10 Ver F. Araújo Costa, Poétiques du “Lieu Interactionnel-Formatif” : sur les conditions de constitution et de reconnaissance mutuelle
de l’expérience esthétique musicale audiotactile (post-1969) comme objet artistique, Tese de Doutorado em Musicologia [sob
orientação de Laurent Cugny], Université Paris-Sorbonne, 2016; Id., “Écouter le ‘lieu interactionnel-formatif’:
émergences de la forme formante dans l’experience esthétique musical collective audiotactile” in: Béatrice RamautChevassus, Pierre Fargeton (dir.), Écoute multiple, écoute des multiples, Paris, Hermann, col. “GREAM/Esthétique”, (no
prelo).
11 Ver F. Araújo Costa, “Música popular brasileira e o paradigma audiotátil...”, p. 11-16.
12 Este conceito foi apresentado em V. Caporaletti, Esperienze d’analisi del jazz,, Lucca, LIM, 2007 p. 7, nota 5;
ampliado e discutido em Id., “Esperienza audiotattile e molteplicità della musica”, B@belonline/print – Rivista di
Filosofia, nº 8, 2010, p. 51-63, e aplicado em uma análise de estudo de caso concreto em Id., “Milhaud, Le Bœuf sur le
toit, e o Paradigma Audiotátil”, in: Manoel A. Corrêa do Lago (Org.), O Boi no Telhado - Darius Milhaud e a música
brasileira no modernismo francês, Rio de Janeiro, Instituto Moreira Salles, 2012, p. 229-288.
13 V. Caporaletti, Diaporama didático apresentado no curso Musicologia Generale A.A. 2014-2015, Università di
Macerata.
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contexto formativo (visual ou audiotátil), as instâncias do processo formativo (medium formante e
meio formado). Efetivamente, para a caracterização do medium formante, visa-se propriamente a
“capacidade formativa” de cada medium (a notação/teoria musical, de um lado, o sistema
psicossomático, de outro) entendida como o conjunto de aspectos cognitivos conexos aos seus
respectivos sistemas operatórios e lógicas internas específicas. Assim, de um lado, o medium
cognitivo formador da experiência visual será denominado precisamente de “matriz visual”,
enquanto reúne os aspectos cognitivos induzidos pelos princípios epistemológicos de
segmentação, homogeneização, repetibilidade uniforme, etc., e, de outro lado, o medium cognitivo
formador da experiência audiotátil, o PAT, reúne, por analogia, a maneira de interpretar e “agir”
sobre a realidade a partir de uma lógica orgânica, intuitiva, baseada na corporeidade, ou mais
precisamente, na “racionalidade corpórea”14.
Retornando à questão da subsunção mediológica, dois casos paradigmáticos devem ser
considerados: (1) aquele em que o medium formante audiotátil (o PAT) “audiotatiliza”, ou seja,
reduz à sua própria lógica funcional, a escrita musical de tradição ocidental15 (o meio formado); e
(2) aquele em que, ao contrário, o medium formante visual (a “matriz visual”) reduz a
racionalidade do corpo (o meio formado) à sua própria lógica epistêmica.
Tabela 1 – Modelos paradigmáticos do processo de “subsunção mediológica” em função do contexto formativo
Vale notar ainda que o princípio da subsunção mediológica confronta o problema da
dimensão formativa híbrida do contexto das músicas audiotáteis considerando que “o tipo de
lógica culturalmente preeminente subsume outras modalidades à sua própria lógica
representativa”16. Uma das aplicações desse princípio na análise musical consiste na delimitação
de fontes audiotáteis, fontes orais e fontes visuais de uma obra. Enquanto estas duas últimas são
estabelecidas a partir de “critérios de comunicação” (oralidade e a escritura), os media audiotáteis
(o princípio audiotátil [PAT] e a codificação neoaurática [CNA])17 são entendidos como “interfaces
mediológicas”18. Assim, quando a combinação PAT + CNA age como medium formador da
experiência, ela “pode subsumir, no interior das especificidades da formatividade audiotátil, em
14 A “racionalidade corpórea” conota uma capacidade cognitiva e formativa cuja referência às ciências cognitivas
encontra-se no paradigma da “cognição incorporada”, segundo a qual a cognição humana é considerada como
estritamente ligada à ação e à interação com o contexto no qual os agentes operam. Cf. F. Araújo Costa, Poétiques du
“Lieu Interactionel-Formatif”..., p. 132-135.
15 Como se sabe, a escrita da música não se reduz à notação ocidental, e, vale notar, as escritas musicais nas diversas
culturas possuem diferentes taxas de visualidade/audiotatilidade (cf. V. Caporaletti, “Razionalità dell’improvvisazione
| Improvvisazione della razionalità”, Itinera – Rivista di Filosofia e di Teoria delle Arti e della Letteratura, nº 10, 2015, p.
189-216 [p. 200]). Deve-se precisar que no âmbito deste artigo, fazemos referência à escrita musical ocidental
moderna em sua dupla especificidade de tecnologia semiográfica notacional ligada de maneira incontornável à teoria
musical da qual ela é expressão.
16 V. Caporaletti, “Milhaud, Le Boeuf sur le toit ...”, p. 248.
17 A questão da combinação PAT + CNA foi tratada no artigo F. Araújo Costa, “Música popular brasileira e o
paradigma audiotátil...”, p. 1-3.
18 Cf. V. Caporaletti, “Milhaud, Le Bœuf sur le toit ...”, p. 232, 247, 249.
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certas condições, as informações comunicadas através da notação”19. Isso porque em função da
consciência da CNA (que confere a qualidade textual autográfica dos valores musicais ativados
pelo PAT) o critério artístico emergente tem uma motivação cognitivo-expressiva audiotátil (no
caso, ligada à constituição de um groove ou de uma energia groovêmica) capaz de evocar as
fontes audiotáteis latentes na obra escrita. Trata-se, portanto, de uma operação distinta do
processo clássico de interpretação da partitura20, porque o groove gravado torna-se uma nova fonte
audiotátil em potencial.
Voltando ao objeto da nossa análise, podemos agora considerar duas categorias da
textualidade musical da Toccata em Ritmo de Samba nº 2: de um lado, (1) a textualidade visual, onde o
medium diz respeito à reificação da música de Gnattali em forma de partitura, através do medium
notacional semiográfico, que fixa à música atributos abstratos como nota, altura, duração, e toda
uma série de valores de ordem sintática e teleológica, e que pressupõe um quadro ontológico da
obra musical onde o compositor é o criador e o instrumentista o executante da obra; e de outro
lado, (2) a textualidade audiotátil, que se refere à reificação do evento musical sob a forma de
fonofixação de valores como o groove, o drive, o swing, a energia propulsiva e depulsiva, e as
participatory discrepancies 21, não capturados pelo medium notacional e semiográfico. A Tab. 2 ilustra a
distinção entre as duas textualidades aqui visadas.
Tabela 2 – Duas textualidades distintas
Estabelecida essa distinção mediológica podemos agora especificar a questão colocada no
início desta problematização: como os sistemas operativos audiotátil e visual/escrito cooperam
no processo formativo da gravação “Toccata em ritmo de samba, nº 2” (2012) enquanto texto
audiotátil?
19
“subsumir no interior das próprias peculiaridades formativas, em certas condições, registros transmitidos através
da notação, portanto não orais” (Ibidem).
20 Deve notar que no nível da percepção e da gestão de estruturas temporais na experiência audiotátil, a subsunção
do sistema operativo audiotátil sobre o sistema visual traduz-se pelo argumento da subsunção do sistema de esquemas de
ordem sobre o sistema de esquemas de relação de ordem (tais como estas duas noções são formuladas por Michel Imberty)
na TMA, onde os esquemas de relação de ordem correspondem ao modo de cognição por critérios paramétricos da teoria
musical, da visualidade ; enquanto que o esquemas de ordem corresponde ao modo de cognição por critérios
energéticos/complexos/dinâmicos (audiotáteis) do groove (cf. F. Araújo Costa, Poétiques du “Lieu InteractionelFormatif” ..., p. 144-145).
21 Cf. Charles Keil, “Participatory Discrepancies and the Power of Music”, Cultural Anthropology, nº 3, 1987, p. 275284.
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1.2. Emergências do “Lugar Interacional-Formativo”
Um aspecto importante do processo formativo-artístico da referida gravação é que esta
consiste em um processo coletivo, onde três músicos com seus respectivos instrumentos (piano,
violão e pandeiro) trabalham sobre uma peça concebida para violão solo. O complexo de
interações que conduziram a este texto audiotátil específico nos convida a considerar que o
fenômeno de subsunção mediológica resulta de uma certa regra consensual que emerge de uma
situação contextual de sintonia de critérios artístico-formativos audiotáteis, que idealizamos como
lugar interacional-formativo (LIF).
Alguns aspectos do LIF:
1) a experiência estética do LIF, enquanto formatividade artística, consiste em um
processo dinâmico de produção, invenção e de julgamento de uma regra artística
compartilhada em tempo real;
2) o LIF é um estado de uma performance musical coletiva em tempo real
(improvisada e extemporânea) notadamente de músicas de linguagem formativa
audiotátil;
3) este estado da performance se distingue como fenômeno de reconhecimento recíproco
de uma regra artística;
4) o LIF é a situação contextual ambicionada pelas poéticas do LIF, que demanda a
interpretação da “forma formante interpessoal”22;
5) o LIF é a situação contextual que permite e convida à interpretação mútua da “forma
formante interpessoal”;
6) o LIF é portanto uma situação que, uma vez estabelecida e reconhecida entre os
performers, é conduzida por uma atividade subjacente de formatividade artística
audiotátil e interpessoal, que orienta o curso da obra musical em direção à sua
exemplaridade; mas esta orientação é inevitavelmente associada às “condições
constritivas” da pluralidade de spuntos 23 , o que faz deste lugar um lugar não
determinado mas determinante, um lugar liberador e produtor de suas próprias
determinações;
7) finalmente, o LIF é uma situação que se constitui como um fenômeno intersubjetivo
através das interações musicais.
Um fator importante a ser ressaltado é que nesse cenário os músicos se encontram no
plano de tentativas à propiciação da emergência do lugar interacional-formativo, durante a
performance24. Podemos seguir Alessandro Bertinetto25 quando este estabelece uma relação entre
a interação e a temporalidade através das categorias de interação vertical e interação horizontal.
Segundo esse autor, a interação do tipo vertical é aquela que se dá no plano da sucessão de
eventos, isto é, a interação dos participantes da performance com a tradição histórica da prática
musical, e com o que os outros atores estão construindo no momento, ou seja, concerne a
experiência pessoal e histórica dos atores em relação à constituição da situação. A interação do
22
A noção de forma formante é capital em nossa discussão, e ela foi evocada no artigo nº 1 deste número da RJMA,
podendo ser aprofundada também a partir de outras referências da nota 8. Considerando os limites deste artigo, nos
contentaremos com a ideia que o Sujeito se faz forma formante quando ele se reconhece como artista fazendo,
inventando e obedecendo a obra enquanto se faz. Em uma palavra: ele se faz obra. A forma formante interpessoal seria a
emergência da regra consensual.
23 Cf. F. Araújo Costa, “Pluralité de spuntos et formativité audiotactile : un regard sur l’improvisation collective”,
Itinera – Rivista di filosofia e teoria dell’arte, nº 10, 2015, p. 216-233, DOI: https://doi.org/10.13130/2039-9251/6661.
24 Cf. ulteriormente F. Araújo Costa, “Écouter le ‘lieu interactionnel-formatif’...”.
25 Cf. Alessandro Bertinetto, Eseguire l’inatteso. Ontologia della musica e improvvisazione, Roma, ll glifo, ebook, 2016, § 4.0,
posição 4188.
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tipo horizontal consiste na experiência interpessoal na sincronia do presente da situação, ela se dá
portanto entre os performers, simultaneamente e em tempo real.
A essa altura, é importante distinguir a situação verbal, pré-fixada, e a situação emergente no
curso da performance, esta última sendo aquela que se aproxima do que chamamos de lugar
interacional-formativo. Consideramos a situação emergente, portanto, aquela que se configura como
lugar interacional-formativo, e como forma formante interpessoal. Assim, chegamos à distinção de duas
instâncias da dialética entre a iniciativa pessoal de cada músico e a situação contextual: de um lado, a
posição emergente que considera a situação como produção criativa da parte da iniciativa
humana, e constituída como lugar interacional-formativo enquanto forma formante interpessoal; e, de
outro, a posição determinista que reduz a iniciativa ao puro e simples produto histórico da
situação, esta última entendida como programa poético 26.
***
Nossa análise partirá de um exame preliminar da composição de Gnattali, considerando sua
natureza formativa de tipo visual/escrita, e os parâmetros implicados nessa estética, isto é, os
aspectos formais da partitura prescritiva, mas também os aspectos contextuais pertinentes, como
a relação de Gnattali com as música e os músicos audiotáteis. Em seguida, examinaremos a
releitura da Toccata nº 2 tal como esta foi gravada pelo Baobab trio. Como veremos, essa
reelaboração produziu uma forma groovêmica – isto é, uma forma regida por valores estéticos
audiotáteis – com toda a liberdade e limitações que especificam este modelo de formatividade,
mas, ainda, com os traços singulares de uma artisticidade groovêmica e interacional de orientação
musical brasileira, mais especificamente do samba, do choro e de suas variações.
2. Toccata em Ritmo de Samba nº 2 (1981)
2.1. Escrita e Referências Audiotáteis de Gnattali
No plano formal, a partitura original da Toccata nº 2 apresenta uma organização ternária AB-A com uma coda (Tab. 3). A seção A é fortemente marcada por acordes dissonantes, traços
rítmicos africanos e frases irregulares. A seção B se distingue pela forma contrastante de um
samba-canção tendendo ao rubato. Na estrutura da seção A identificamos quatro subseções: Aa,
Ab, Ac e Ad (Tab. 3 e 4).
No que concerne o estilo de escrita para violão brasileiro de concerto depois dos anos
1950, especialistas como Fabio Zanon consideram Gnattali como um dos compositores mais
fecundos e originais, sua música exibindo ostinatos intrincados e agudos e uma alternância
inteligente entre escrita rítmica e virtuosidade melódica. Tais características são bem presentes
tanto na Toccata nº 1 quanto na Toccata nº 2, onde a escrita propõe uma inflexão do samba muito
mais audacioso, ágil e sinuoso do que a do samba de 1940 27. É particularmente notável, na
Toccata nº 2, a referência à percussão e rítmica africanas evocadas pelo samba, especialmente na
26
Cf. F. Araújo Costa, Poétiques du “Lieu interactionnel-formatif” ..., p. 196-197.
Cf. Fabio Zanon, “Radamés Gnattali III”, Programa : O Violão Brasileiro. Nossos Compositores, Rádio Culura FM de
São Paulo, Maio 2006, Disponível online: https://goo.gl/mfh2tz. Consultado em 11/06/2016. Para um estudo mais
detalhado sobre as obras para violão de Gnattali, e especificamente sobre o ciclo de Três Estudos de Concerto cf.
Valdemar A. Silva, Três Estudos de Concerto para Violão de Radamés Gnattali: peculiaridades estilísticas e suas implicações com
processos de circularidade cultural, Dissertação de Mestrado em Música [sob orientação de Magda de Miranda Clímaco],
Universidade Federal de Goiás, 2014; Ricieri C. Zorzal, Dez Estudos para Violão de Radamés Gnattali: estilos musicais e
propostas técnico-interpretativas, Dissertação de Mestrado em Música [sob orientação de Mário Ulloa], Universidade
Federal da Bahia, 2005; e Bartolomeu Wiese Filho, Radamés Gnattali e sua obra para violão, Dissertação de Mestrado em
Música [sob orientação de Turíbio Santos], Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 1995.
27
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GROOVE E ESCRITA NA TOCCATA EM RITMO DE SAMBA Nº 2 DE RADAMÉS GNATTALI
subseção Aa (Ex. 1), onde Gnattali lança mão de uma escrita que explora a sonoridade dos
acordes buscando um efeito de ressonância à maneira dos tambores do candomblé afro-brasileiro.
Exemplo 1 – Trecho da partitura de Toccata em Ritmo de Samba nº 2
28
– Seção A (Aa, Ab, Ac, Ad)
28
Essa partitura corresponde à edição 3 Concert Studies..., p. 8-9. Notamos que nos c. 2 e 4, a segunda colcheia seria na
verdade uma semicolcheia como é o caso nos c. 8, 10 e 47.
RJMA – Revista de estudos do Jazz e das Músicas Audiotateis, Caderno em Português, nº 1, 2018
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Tabela 3 – Forma original da Toccata em Ritmo de Samba nº 2
2.2. Reformulação das problemáticas da Toccata em Ritmo de Samba nº 2 em
perspectiva audiotátil
Para reformular a problemática da Toccata em Ritmo de Samba nº 2 em perspectiva audiotátil,
nosso primeiro objetivo consistirá na busca das fontes e referências audiotáteis nas quais Gnattali
se inspirou para evocar o “ritmo de samba” em sua dimensão profunda, isto é, nos fatores
ligados ao swing e ao groove29. Nossa tese é que apesar da lógica composicional de Gnattali na
Toccata nº 2 se situar em uma perspectiva primordialmente visual, ele já dispunha de uma intuição
dos valores audiotáteis.
O primeiro argumento é o de que o autor da Toccata tinha como referência os valores
audiotáteis oriundos da maneira de tocar dos músicos de choro e do samba urbano do Rio de
Janeiro, tais como os “pianeiros”30; e de violonistas como Aníbal Augusto Sardinha, o “Garoto”
(1915-1955), e Raphael Rabello (1962-1995). No início dos anos 1920, Gnattali conheceu o
célebre pianista e pianeiro Ernesto Nazareth (1863-1934), que tocava no Cine Odeon. Segundo o
musicólogo Henrique Cazes31, o jovem Radamés Gnattali havia conhecido a música de Nazareth
através de suas partituras, antes de escutá-lo tocar. No começo dos anos 1930, para garantir seus
meios de sobrevivência, Gnattali se viu obrigado a procurar trabalho como pianeiro, tocando com
as orquestras de dança. Nessa mesma época ele teve contato com os pianeiros cariocas que se
encontravam na sede da editora Casa Vieira Machado. Enquanto no caso da música de Ernesto
Nazareth, Gnattali tinha as partituras como referência, no caso dos pianeiros da rua do Ouvidor,
acontecia o contrário: Gnattali era solicitado pelos músicos para transcrever aquilo que tocavam
afim de que suas músicas fossem editadas e vendidas sob a forma de partitura. Discutiremos mais
adiante a referência “pianeirística” na música de Gnattali, na análise da subseção Ab.
29
Cf. V. Caporaletti, Swing e Groove. Sui fondamenti estetici delle musiche audiotactile, Lucca, LIM, 2014, e F. Araújo Costa,
Poétiques du “Lieu interactionnel-formatif” ..., p. 153-160.
30 Em linhas gerais, o termo “pianeiro” demarca, no Brasil, uma distinção sociocultural opondo-se a “pianista”.
Neste sentido, estuda-se piano para tornar-se um “pianista”, que toca nas salas de concertos e nos salões da
sociedade. No entanto, em função dos distanciamentos que marcam o perfil sociocultural e econômico da sociedade
carioca nesta época, os músicos não encontravam oportunidade de trabalho a não ser nos clubes com as orquestras
de dança, no cinema, nas lojas de piano, etc. Estes, eram os “pianeiros”. Dentre nomes conhecidos de pianeiros e
pianeiras do início do século XX, além do muito célebre Ernesto Nazareth, encontramos nomes como José Barbosa
da Silva “Sinhô” (1888-1930); Chiquinha Gonzaga (1847-1935); Aurélio Cavalcanti (1874-1915); J. F. Fonseca Costa
“Costinha” (circa 1860-circa 1940); Carlos T. de Carvalho “Corujinha” (circa 1878-circa 1922); Luiz Sampaio “Careca”
(1886-1953). Para uma discussão mais aprofundada cf. Robervaldo Linhares Rosa, Como é bom poder tocar um
instrumento. Pianeiros na cena urbana brasileira, Goiânia, Cânone Editorial, 2013.
31 Henrique Cazes, Choro. Do Quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 37.
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GROOVE E ESCRITA NA TOCCATA EM RITMO DE SAMBA Nº 2 DE RADAMÉS GNATTALI
Enfim, observamos que, em vários casos, Gnattali compunha música com um intérprete
específico em mente, referenciando esses músicos com uma dedicatória no cabeçalho da peça. A
motivação dessas dedicatórias era muitas vezes uma homenagem de reconhecimento, como é o
caso da maioria das dedicatórias do ciclo Dez Estudos para Violão Solo (1967)32, e em outros casos
uma referencia explícita ao estilo e técnica do intérprete, muitas vezes resultante de uma
colaboração direta, como ocorreu com o Concerto nº 2 para Violão e Orquestra (1951), dedicado a
Garoto33. No caso das peças do ciclo Três Estudos de Concerto para Violão Solo, a Dansa Brasileira, de
1958, é dedicada ao violonista Laurindo de Almeida (1917-1995); e a Toccata em Ritmo de Samba nº
2, escrita em 1981, é dedicada ao violonista Waltel Branco (1929-). A mais antiga, a Toccata em
Ritmo de Samba nº 1, escrita em 1950, não possui dedicatória. Talvez por ser a primeira peça de
concerto para violão escrita pelo autor. De todo modo, a referência a Garoto é a mais provável
visto que uma ano depois este seria o intérprete explicitamente visado no Concerto nº 2. Neste
sentido, vê-se como algo bastante significativo que Gnattali tenha composto para violonistas
brasileiros que, assim como ele mesmo, tinham um contato estreito com a cultura e os valores
estéticos audiotáteis, e que tenha experimentado o ritmo, e mesmo incluído a palavra “samba”
em sua peça inaugural de violão de concerto, em uma época em que um tal aporte musical era
praticamente inconcebível em uma sala de concerto no Rio de janeiro34.
Na época da composição da Toccata nº 2, peça que era ainda mais carregada com elementos
rítmicos afro-brasileiros, Gnattali estava muito próximo do jovem virtuoso violonista Raphael
Rabello, o qual o considerava como seu “pai musical”35. Os dois haviam gravado um álbum em
duo de piano e violão com composições de Garoto36. Neste contexto, Rabello, que tocava violão
de 7 cordas, construiu um estilo profundamente marcado pelo refinamento da linguagem do
choro tradicional, desenvolvido através de sua interação com Gnattali, ao passo em que ele
mesmo oferecia às composições deste último autor uma interpretação que tendia fortemente à
subsunção da escrita do compositor pelos seus próprios critérios de músico audiotátil. Pode-se
notar essa tendência através das duas interpretações da Toccata nº 2 gravadas por ele, Rabello. Na
primeira (Visom, 1987)37, percebe-se que o critério visual orienta o objeto musical em maior
proporção, enquanto na segunda gravação (Série Música Viva TB0C6, 1995)38 é perceptível a
subsunção do critério visual pelo princípio audiotátil.
Dito isto, é valido relembrar que se por um lado, Radamés Gnattali exibia uma lógica
formativa de prevalência “visual/escrita”, por outro lado consideramos também referências de
cunho formativo audiotátil. Veremos em seguida que esses traços de audiotatilidade foram
evocados na releitura do Baobab trio.
32
Cf. Ricieri C. Zorzal, Dez Estudos para Violão de Radamés Gnattali..., p. 21-22.
Em entrevista transcrita concedida a B. Wiese Filho (Id., Radamés Gnattali e sua obra para violão..., p. 96-100), o
violonista Luiz Otávio Braga afirma enfaticamente que a obra para violão de Gnattali “é forjada nas matrizes urbanas
brasileiras, onde o compositor e violonista Aníbal Augusto Sardinha (o Garoto) ocupa lugar de destaque”, e que este
último servia de referencial constante a Gnattali. (Ibid. p. 96-97). Braga afirma ainda que os elementos afetivos, de
habilidade técnica e gestuais relativos ao músico ao qual Gnattali dedicava determinada obra, eram aspectos
majoritários para a abordagem das peças (Ibid., p. 97).
34 Cf. Fabio Zanon , “Radamés Gnattali III”, Programa : O Violão Brasileiro. Nossos Compositores...
35 Cf. entrevista de Raphael Rabello à Fernanda Canaud, transcrita em, Fernanda Chaves Canaud. Interpretação da Obra
Pianística de Radamés Gnattali através do Conhecimento da Música Popular Urbana Brasileira. Dissertação de Mestrado em
Música [sob orientação de Mirian Daulesberg], Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 1991; Id. O
Virtuosismo e o “swing” revelados na revisão fonográfica de Flor da noite e Modinha & baião de Radamés Gnattal. Tese de
Doutorado em Música [sob orientação de Silvio Mehry], Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), 2013
36 Radamés Gnattali e Raphael Rabello, Tributo à Garoto, Funarte, PA 82001, 1982. Disponível online em:
https://goo.gl/6srA1W.
37 “Toccata em Ritmo de samba nº 2”, Raphael Rabello, Rafael Rabello interpreta Radamés Gnattali [sic], Visom, LPVO006, 1987. Disponível online em: https://goo.gl/ujZH4A.
38 Raphael Rabello, “Toccata em Ritmo de Samba nº 2”, Armandinho e Raphael Rabello, Brasil Musical, Série Música
Viva, TB0C6, Rio de Janeiro, 1995. Disponível online em: https://goo.gl/QG756h.
33
RJMA – Revista de estudos do Jazz e das Músicas Audiotateis, Caderno em Português, nº 1, 2018
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FABIANO ARAÚJO COSTA
3. “Toccata em Ritmo de Samba nº 2” (2012)
3.1. A “forma groovêmica” da versão do Baobab trio
O caso de Raphael Rabello – onde pode-se notar a recuperação de valores audiotáteis da
Toccata – valores esses encontrados originalmente no próprio estilo de Rabello –, nos permite
dizer que Gnattali percorreu um duplo caminho: o de recuperar e codificar semiograficamente a
ideia criativa dos músicos audiotáteis, e o de oferecer a oportunidade de se operar integralmente a
subsunção mediológica audiotátil na música assim escrita. Entretanto, contrariamente ao caso da
gravação de Rabello, a versão do Baobab trio apresenta certas particularidades dentre as quais a
primeira reside no fato de este ser um trio de violão, pandeiro e piano. Uma instrumentação
privilegiada para o samba, mesmo para o estilo tradicional, mas não necessariamente de fácil
solução para uma versão da Toccata, concebida para violão solo.
Em relação a essa particularidade, se em um contexto formativo visual a passagem de uma
instrumentação a outra se faz a partir de procedimentos tais como a reorquestração, onde uma
obra é destinada a um novo medium instrumental pela via exclusiva da notação musical39. No caso
do Baobab trio, a passagem se faz majoritariamente por procedimentos que a TMA identificou
como “reelaboração audiotátil”. Esse entendimento nos leva a concluir que o grupo tenha
encontrado soluções criativas de ordem formal e técnica para reelaborar a peça de Gnattali a
partir do processo de extemporização sobre os modelos implícitos ou explícitos (o samba, o choro,
o candomblé, etc.) na partitura.
Paralelamente, deve-se considerar a questão em torno do estabelecimento do LIF, onde são
constituídos e reconhecidos mutuamente os critérios de artisticidade da música, especialmente
em função do groove e do swing, da produção de energia propulsiva e depulsiva, e das participatory
discrepancies.
Em relação à fenomenologia das músicas audiotáteis, considera-se dois níveis de atividade
do PAT: (1) o nível primário macrogroovêmico, onde é possível analisar o fenômeno musical de
“superfície” possível de ser recuperado com o recurso da notação musical e que concerne ao
domínio da improvisação e da extemporização; e (2) o nível secundário, microgroovêmico onde são
elaboradas as instâncias psicocinéticas no nível microrrítmico do swing e do groove.
Na presente análise, vamos nos ocupar do nível macrogroovêmico da gravação de 2012
através da transcrição descritiva da reelaboração operada pelo Baobab trio, fixada pelo medium
fonográfico. Levantamos assim três eixos da elaboração macrogroovêmica nesta música: (1) as
zonas mais fiéis à partitura escrita; (2) as zonas de extemporização; e (3) as zonas de improvisação.
A distinção entre improvisação e extemporização é, com efeito, fundamental para maior clareza
na compreensão do funcionamento das músicas audiotáteis em geral e, no presente caso, aquelas
de orientação musical brasileira como o choro e o samba. Em suma, pode-se dizer que, no
quadro das músicas audiotáteis, a improvisação é considerada como o fenômeno que se
caracteriza por sua função propriamente logocêntrica, de ação modificadora, de afirmação da
subjetividade, com ênfase sobre o êxito formal do processo de elaboração do material. A
extemporização, por sua vez, do ponto de vista estrutural, consiste na instanciação sonora de um
“modelo figural” ou de um “modelo gerador” 40 , que pode se realizar com o critério da
modificação do groove característico dos esquemas de interpretação e acompanhamento do
solista no jazz, no samba, no choro, etc41.
39
V. Caporaletti, “Milhaud, Le Bœuf sur le toit, e o Paradigma Audiotátil...”, p. 272.
Ver Bernard Lortat-Jacob, “Improvisation: le modèle et ses réalisations” in: Id. (dir.), L’improvisation dans les musiques
de tradition orale, Paris, Selaf, Poche, 1987, p. 45-59 ; V. Caporaletti, I processi improvvisativi nella musica. Un approccio
globale, Lucca, LIM, 2005, p. 48-50 ; et cf. F. Araújo Costa, Poétiques du “Lieu Interactionnel-Formatif” ..., p. 164-68.
41 Cf. V. Caporaletti, I processi improvvisativi nella musica.
40
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GROOVE E ESCRITA NA TOCCATA EM RITMO DE SAMBA Nº 2 DE RADAMÉS GNATTALI
3.2. Exposição do Tema
Subseção Aa
Como, na versão gravada pelo Baobab trio, a estrutura formal da partitura de Gnattali é
subsumida pelas estruturas groovêmicas? Na versão gravada pelo trio, foi possível perceber, em
nível de superfície, que a subseção Aa é composta pelas unidades temáticas GAa, Aa1 e Aa2. O
mais importante nessa parte é a unidade GAa, que é dotada de uma notável capacidade de
articulação groovêmica e que foi gerada e explorada pelos músicos a partir da parte original Aa,
escrita por Gnattali. Esse elemento foi entendido pelo grupo como modelo figural, do ponto de
vista estático, e como modelo gerador, do ponto de vista dinâmico42. Efetivamente, é a partir do
ostinato dos três primeiros compassos em 2/4 da partitura original (enquanto faz referência a
elementos da percussão afro-brasileira, em particular aos atabaques do candomblé) que o grupo
construiu a unidade GAa: unidade macrogroovêmica reconhecida artisticamente pelos músicos
como lugar interacional-formativo. Os elementos de Aa da partitura (cf. Ex. 1) foram reorganizados
em GAa (Ex. 2) sob a forma de uma sequência, no nível da acentuação estrutural da pulsação, de
3 + 4 + 3 colcheias, seguida do início da unidade Aa1 (cf. Ex. 1), que completa o compasso com 5
colcheias (cf. Ex. 2).
Com o objetivo de constituir o groove encontrado como unidade formal, os músicos do
grupo decidem repetir esta unidade GAa várias vezes antes de passar à unidade Aa1 que se segue
na partitura. Para isso, eles criaram uma figura cromática descendente típica do violão de 7 cordas
do choro, e que foi executada com um intervalo de quarta justa entre o piano e o violão. No
plano da superfície macrogroovêmica, nota-se que o piano e o violão mantêm a sequência 3 + 4
+ 4 + 5 colcheias sobre o compasso em 2/4, enquanto a parte do pandeiro resulta de uma
organização 3 + 5 + 3 + 5 colcheias, sempre no nível de superfície.
Exemplo 2 – Unidade macrogroovêmica GAa, constituída e reconhecida mutuamente pelo Baobab trio como LIF
(Transcrição de Fabiano Araújo Costa) (Violão [abrev. Gtr.] transposto) 43
Segundo o percussionista do grupo, Edu Szajnbrum, seu critério era “realizar a função de
condução rítmica, tentando valorizar os apoios e a dinâmica da melodia”. Szajnbrum nos
informou também sobre um importante traço técnico que diz respeito à execução de seu
instrumento.
42
Cf. supra nota 40.
Mídia audiovisual do Ex. 2 disponível online em: https://www.nakala.fr/nakala/data/11280/1b3e7eb0. (Cf.
também Ex. 2a disponível online em: https://www.nakala.fr/nakala/data/11280/d44a94cb.
43
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FABIANO ARAÚJO COSTA
A função de distribuição dos acentos alternados, isto é, lá onde há a necessidade de colocar os acentos que às
vezes são tocados com o polegar e depois com a ponta dos dedos, esta função foi muito demandada na primeira
parte do tema, onde nós fizemos um ostinato com a primeira frase do tema44.
Ao menos dois pontos devem ser observados nessa abordagem. Em primeiro lugar, uma
das finalidades que o grupo procura atingir nesse processo de releitura consiste na adição de uma
pulsação contínua (continuous pulse): fator constitutivo, por excelência, da fenomenologia do ritmo
audiotátil. No plano musical, é justamente a pulsação contínua que permite a reformulação das
subdivisões da figura métrica, onde irá se constituir o modelo operativo audiotátil do
samba/choro diante do ostinato solicitado pela partitura escrita de Gnattali. Deve-se notar que o
exercício idiomático do groove GAa provoca de maneira sistêmica o alargamento do compasso,
mantendo no entanto o início do groove no primeiro tempo do compasso.
A segunda observação diz respeito ao uso da técnica da inversão, no pandeiro, como fator
de diversificação audiotátil da norma tradicional do samba/choro. Essa técnica dialoga com suas
próprias raízes africanas, ao mesmo tempo que ela permite a execução dos acentos indicados na
partitura de Gnattali (conferindo sentido à conquista das fontes audiotáteis da Toccata).
A propósito desta última observação, deve-se notar que Edu Szajnbrum é um pandeirista
carioca 45 que fez parte da escola estilística de Marcos Suzano, que desenvolveu o estilo chamado
“pandeiro amplificado”, cujo estilema característico de sua sonoridade é, precisamente, a técnica
de inversão dos dedos. O estilo de Marcos Suzano foi objeto de estudo da tese de doutorado de
Brian Potts, defendida em 2012 na Universidade de Miami, Estados Unidos. A partir de
entrevistas com Suzano, Potts nos oferece uma preciosa interpretação sobre a relação entre a
“técnica de inversão” e os ritmos do candomblé:
This bottom-heavy sound, enhanced by the low-pitched tuning of his pandeiro, showed similarities to the
candomblé drum patterns he had studied with Carlos Negreiros, which he endeavored to recreate on the
pandeiro. Because it is not a traditional candomblé instrument, Suzano’s effort to incorporate the pandeiro in
this way was unique. In time, he found that the use of traditional pandeiro technique presented difficulties
when dealing with the driving syncopations of the rum, the lowest drum of candomblé. [...] Suzano felt that he
needed “a different position”, and attempted to lead candomblé patterns with his fingertips. By doing so,
Suzano could play the syncopations of the rum with his thumb, which allowed him to propel these rhythms in
a forceful manner. This inversion of technique permitted him the ability to recreate these patterns on the
pandeiro in a stylistically accurate fashion. As he viewed candomblé as the heart of all Afro-Brazilian
rhythms, he began to use his inverted technique across all Brazilian genres, including samba, choro, baião,
and maracatu, emphasizing the low-frequency syncopations in each of these styles 46.
44
Edu Szajnbrum, Entrevista pessoal, janeiro 2015.
Cf. as participações de Szajnbrum no cenário musical carioca entre os anos 1980 et 1990, como: Aquarela Carioca
(https://goo.gl/NKtW7p), e Orquestra de Música Brasileira, dirigida por Roberto Gnattali
(https://goo.gl/VMr4Qi).
46 “Essa sonoridade profunda e impactante, reforçada pela afinação grave do som do pandeiro de Suzano mostrou
semelhanças com os modelos do tambor de candomblé. Suzano estudou esses modelos com o mestre Carlos
Negreiros, e procurou recriá-los com o pandeiro. Como o pandeiro não é um instrumento tradicional do candomblé,
o esforço de Suzano para incorporar tais modelos o conduziu à criação de uma maneira singular de tocar o
instrumento. Progressivamente, o músico constatou que a utilização da técnica do pandeiro tradicional apresentava
dificuldades quando ele tentava produzir o drive da síncope do tambor rhum do candomblé. [...] Suzano notou a
necessidade de encontrar “uma posição diferente” e tentar conduzir os modelos do candomblé com os dedos. [...]
Tocar as síncopes do rhum do candomblé com o polegar, que permitiu promover a propulsão de seus ritmos de uma
maneira energética. Essa inversão da técnica permitiu que ele pudesse recriar seus motivos no pandeiro com uma
precisão estilística. Como ele considerava o candomblé como o coração de todos os ritmos afro-brasileiros, ele
começou a utilizar sua técnica invertida em todos os gêneros brasileiros, sobretudo o samba, o choro, o baião e o
maracatú, colocando o acento de frequência grave sobre as síncopas de cada um desses estilos”. Brian J. Potts,
“Marcos Suzano and the Amplified Pandeiro: Tecniques for Non-Traditional Performance”, Open Acces Dissertations,
Paper 788, 2012, p. 33-34.
45
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GROOVE E ESCRITA NA TOCCATA EM RITMO DE SAMBA Nº 2 DE RADAMÉS GNATTALI
Uma vez precisados esses dados de pertinência audiotátil, podemos então considerá-los
para a análise do trecho transcrito no Ex. 3, que mostra como se articulam a co-presença
implícita de três níveis métricos que caracterizam o fenômeno de dissonância métrica 47 na maneira
de tocar percussão de Szajnbrum. Para este exemplo utilizamos um modelo de notação gráfica
(Fig. 1) que mostra os sons do pandeiro através da combinação de tipos de golpe, de dedilhado,
de comportamento da membrana e das micromodulações de altura/timbre do som.
Figura 1 – Grafia da transcrição do pandeiro
Exemplo 3 – Linha do pandeiro em GAa : dissonâncias métricas, extemporizações no nível das micromodulações de
altura/timbre, e no nível macro, com o uso de rulos. (Transcr. F. Araújo Costa) 48
Notamos também, na análise do Ex. 3, o jogo de extemporização em torno de três níveis de
altura do timbre da membrana do pandeiros, indicados por símbolos denotando o grave, o
médio, e o agudo. Sublinhamos que este jogo extemporizativo sobre as microvariações das
47
Cf. V. Caporaletti, “La fenomenologia del ritmo nella musica audiotattile: il tempo doppio”, Ring Shout–Rivista di Studi
Musicali Afroamericani, SIdMA, vol. 1, 2002, p. 77-112; Maury Yeston, The Stratification of Musical Rhythm, New Haven,
Yale University Press, 1976 ; Harald Krebs “Some Extension of the Concepts of Metrical Consonance and
Dissonance”, Journal of Music Theory, n. 31, 1987, p. 99-120; Harald Krebs, Fantasy Pieces: Metrical Dissonance in the Music
of Robert Schumann, New York, Oxford University Press, 1999; Christopher Hasty, Rhythm as Meter, New York &
Oxford, Oxford University Press, 1997.
48 Mídia audiovisual do Ex. 3 disponível online em: https://www.nakala.fr/nakala/data/11280/b9a0e1ea.
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FABIANO ARAÚJO COSTA
alturas é de fato o lugar do efeito sistêmico da constituição groovêmica profunda do LIF. Uma
vez encontrado o groove GAa como LIF, o grupo irá “habitá-lo” durante uma duração
equivalente a 16 compassos, à 100 bpm, após o que se seguirá uma zona mais fiel à partitura com
um jogo em uníssonos até a subseção Ab.
Subseção Ab
Na subseção Ab (Ex. 4), que, graças ao contorno melódico original de Gnattali, marca um
contraste com o caráter percussivo de GAa, observamos que, no início, o pandeiro extemporiza
sobre o modelo tradicional do samba-choro em 2/4, enquanto as figuras executadas pelo violão e
pelo piano são organizadas em 3/4.
Exemplo 4 – Subseção Ab com indicação da dissonância métrica entre o fraseado do violão (que segue a partitura) e as
linhas criadas pelo piano e pelo pandeiro. Em destaque, o efeito de feedback métrico entre o pandeiro e o par
violão/piano. (Transcr. de F. Araújo Costa) (Violão [abrev. Gtr.] transposto) 49
Em seguida, notamos que o pandeiro, manifestando um modo de interação por feedback
perceptivo50, organiza o groove do samba em 3/4, e assim, participa de maneira inusitada da
construção da dissonância métrica entre o piano e o violão, o que produz, por sua vez, um tipo de
trama de feedback métrico51.
Nesta subseção, o violão segue mais fielmente a composição original. A intervenção do
piano, no entanto, pode ser entendida como uma elaboração extemporizativa de algumas fontes
audiotáteis da peça original, o que resultou em uma sonoridade que pode ser percebida como
“pianeirística”. Esse específico modelo de extemporização foi fundado sobre o modelo da partitura
e também sobre os modelos típicos da linguagem do choro, como o contraponto cromático
ascendente no início do segundo compasso.
49
Mídia audiovisual do Ex. 4 disponível online em: https://www.nakala.fr/nakala/data/11280/84df72a8.
V. Caporaletti, “La fenomenologia del ritmo nella musica audiotattile : il tempo doppio ...”, p. 79.
51 Cf. Ibidem.
50
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GROOVE E ESCRITA NA TOCCATA EM RITMO DE SAMBA Nº 2 DE RADAMÉS GNATTALI
De fato, neste caso, a fonte audiotátil pianeirística encontra-se nas obras de piano de
Gnattali, especialmente a Brasiliana nº 7 (para saxofone tenor e piano), cuja escrita da parte de
piano no IIIº movimento/Choro (cf. o extrato da Fig. 2), pode ser compreendida como uma
herança da experiência de Gnattali como pianeiro e particularmente como transcritor dos
pianeiros (como notado no § 2.2, acima).
Figura 2 – Extrato da partitura da Brasiliana nº 7, para saxofone tenor e piano, IIIº movimento/Choro, que serviu
como referência de sonoridade “pianeirística” de Gnattali, para as extemporizações do piano
Subseção Ac
Apesar de ser uma zona de maior fidelidade à partitura escrita, a subseção Ac da versão do
Baobab trio (Ex. 5) evoca a forma groovêmica do breque, tradicional do samba de partido alto e
do choro, que irá exercer a função de preparação idiomática para a subseção seguinte, cujo
caráter mais tradicional é projetado pela frase em anacruse escrita por Gnattali (Ex. 5 c. 20).
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Exemplo 5 – Subseção Ac indicando as convenções escritas, permitindo evocar o modelo do breque, no idioma do
samba de partido alto e do choro. (Transcr. Fabiano Araújo Costa) (Violão [abrev. Gtr.] transposto) 52
Subseção Ad
A subseção Ad – que na partitura de Gnattali é constituída de uma linha melódica no
registro agudo do violão – exigiu, no contexto da releitura do trio, um modelo extemporizativo
rítmico-harmônico, que foi conduzido pelo piano. O pianista e o violonista esboçaram uma grade
harmônica com um ritmo harmônico de dois acordes por compasso. A Fig. 3 mostra o rascunho
que continha o código de cifragem utilizado pelos músicos, e o Ex. 6 mostra a transcrição da
extemporização do piano, cujo modelo figural corresponde ao início de Odeon, de Ernesto Nazareth
(Fig. 4), e cujo modelo gerador da extemporização encontra-se na maneira de tocar do pianeiros.
Entretanto, essa zona de extemporização para o piano dura apenas três compassos, uma vez que o
grupo é novamente requisitado pela escrita de Gnattali, não sem executá-lo a duas vozes e em
intervalos de terça – um procedimento também ligado ao idioma do samba e do choro.
Figura 3 – Rascunho da grade harmônica e das convenções para o piano, criados para a subseção Ad
52
Mídia audiovisual do Ex. 5 disponível online em: https://www.nakala.fr/nakala/data/11280/3816ab94.
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GROOVE E ESCRITA NA TOCCATA EM RITMO DE SAMBA Nº 2 DE RADAMÉS GNATTALI
Figura 4 – Primeiros compassos da partitura de Odeon de E. Nazareth, 1909, Ed. Bevilacqua & C.
Exemplo 6 – Subseção Ad com a extemporização rítmico-harmônica do piano e a extemporização do pandeiro. Violão
[abrev. Gtr.] transposto. (Transcr. de F. Araújo Costa)53
53
Mídia audiovisual do Ex. 6 disponível online em: https://www.nakala.fr/nakala/data/11280/2cfcaa3b.
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Seção B e transição para a zona de improvisação
A macroestrutura formal construída pelo Baobab trio segue o modelo do jazz moderno,
qual seja: Exposição do tema – Improvisação – Re-exposição do tema. Entretanto, tendo de um lado as
particularidades idiomáticas do samba tradicional e do choro, e de outro as exigências formais da
partitura de Gnattali, a organização dessa macroforma demandou uma reelaboração da
arquitetura da composição em função de critérios audiotáteis de ordem groovêmica. Por
exemplo, depois da passagem pela seção B, onde o piano e o violão executam frases em
alternância e em estilo choro-canção quasi rubato, o grupo retoma o potente groove GAa e
adiciona a ele o breque do fim da subseção Ac para, em seguida, preparar o terreno para as
improvisações. A Tab. 4 mostra a arquitetura da primeira exposição temática.
Tabela 4 – Macroestrutura formal resultante da elaboração audiotátil da Toccata em Ritmo de Samba nº 2 (1981) na
gravação “Toccata em Ritmo de Samba nº 2” (2012)
Dispomos aqui de um exemplo de prevalência da formatividade audiotátil diante das
condições impostas pela estrutura formal desta unidade de transição. Assim, como podemos
observar na transcrição desta passagem (Ex. 7), o groove GAa é executado duas vezes. Essa
repetição é uma condição sine qua non para o groove, embora uma única repetição tenha sido
suficiente para o acúmulo de energia no breque, que prelude naturalmente a subseção Ad, e que
prepara idiomaticamente o terreno dos “chorus” improvisados. Ocorre que as unidades rítmicas
do ostinato não chegam a completar o compasso em 2/4. Como vimos mais acima, elas formam
uma sequência métrica 3 + 4 + 4 + 5 colcheias (Ex. 2), e portanto produzem uma energia
psicocinética depulsiva derivada do alargamento da métrica. Assim, na medida em que a ocorrência
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GROOVE E ESCRITA NA TOCCATA EM RITMO DE SAMBA Nº 2 DE RADAMÉS GNATTALI
do breque acontece na terceira unidade da sequência métrica, carregando consigo a função de
realizar a projeção do groove de samba tradicional na seção de improvisação (a qual, por
exigências de ordem idiomática, deve começar com uma frase em anacruse), a métrica da terceira
unidade acaba por se ajustar à forma de cinco colcheias de modo que a primeira tesis do
compasso do breque em 2/4 seja entendido logo depois da semicolcheia que comporta o acorde
A7 marcando o breque (Ex. 7).
Exemplo 7 – Breque antecipando a seção de improvisação. Violão [abrev. Gtr.] transposto54. (Transcr. Fabiano Araújo
Costa)
A seção de improvisação
A seção de improvisação foi construída sobre a grade harmônica modificada de Ad, como
mostra o manuscrito da Fig. 5. Como observado anteriormente, a subseção Ad se encadeia
naturalmente ao breque (do fim de Ac) evocado para o fechamento do groove GAa.
Figura 5 – Grade harmônica criada para a seção de improvisação, a partir da modificação da grade da seção Ad
Em que a grade harmônica dos solos foi modificada em relação à Ad? E qual foi o critério
para a modificação? Notamos, de início, que os cinco primeiros compassos de Ad foram
respeitados e que as modificações se encontram em seguida, seja no nível do ritmo harmônico,
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audiovisual do Ex. 7 disponível online em: https://www.nakala.fr/nakala/data/11280/f5e661a0..
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seja no nível do tipo de acordes e encadeamentos empregados. De fato, a harmonia de Ad
continuaria originalmente com dois compassos de G#7, dois compassos de G7, e dois
compassos de C7/Bb chegando finalmente em uma tríade de A. A escrita de Gnattali conferiu a
esta passagem uma sonoridade contrastante em relação aos compassos precedentes, sobretudo
em função do uso de convenções rítmicas com os acordes dissonantes e uma sequência de frases
descendentes com as escalas alteradas.
Entretanto, a sonoridade vislumbrada para a seção da improvisação valorizaria muito mais
a sonoridade tradicional do choro, impulsionada pela informação sugestiva do breque e da
sequência “Odeon”. O critério de modificação da grade harmônica de Ad (ou melhor, da
continuação da harmonia depois do quinto compasso da seção), foi a produção de uma
progressão de acordes em que o groove e a referência ao choro constituíram o modelo rítmicomelódico das extemporizações que, projetadas no nível da lógica (e da dialógica) da improvisação,
contribuíram para a emergência de novas regras artísticas na forma daquilo que entendemos aqui
como LIF.
A harmonia – que é, na verdade bastante simples – faz continuar o movimento cromático
inicial do baixo (| Dm C#º | Dm/C Bø |), seguindo a mesma proporção de quatro acordes,
porém com um ritmo harmônico depulsivo, de apenas um acorde por compasso (| Bb7 | A7 |
Ab755 | G7 |). Depois desses seis compassos de movimento descendente nos baixos (dos quais,
quatro com acordes de sétima da dominante), a harmonia retorna à tônica menor sobre o dó (|
Cm | G7 | Cm |) durante três compassos. Em seguida, retorna à tônica menor de ré com uma
brevíssima retomada do ritmo harmônico propulsivo de dois acordes por compasso, seguido
imediatamente pela dominante que prepara a repetição de todo o ciclo (| Bb7 A7 | Dm | A7 |).
Os solos de piano e violão (que não serão analisados no âmbito deste artigo) são alternados a
cada chorus de doze compassos, criando uma imagem de diálogo entre os instrumentos, que não
se distancia muito do fraseado idiomático tradicional do choro.
A saída da parte dos solos foi convencionada com a retomada de Ad pelo violão através da
frase anacrústica escrita por Gnattali. Ao fim dos 18 compassos de Ad o trio começa a
reexposição do Tema.
Reexposição do Tema
Para a Reexposição, o trio prescinde do groove GAa, seguindo ao invés disso a forma Aa
originalmente escrita. A subseção Ab é idêntica à da Exposição, mas Ac perde os dois últimos
compassos para a retomada sólida de GAa pelo piano e violão, introduzida por um breque do
pandeiro. Este último reaparece extemporizando como solista no limite dos efeitos polirítmicos
de uma bateria de Escola de Samba, dialogando com o ostinato do bloco piano/violão durante 12
compassos até a convenção final.
***
Este artigo visou dois objetivos:
1) refletir sobre como o sistema operativo audiotátil e o sistema visual
cooperam no processo de constituição e de reconhecimento mútuo da
experiência musical formativa;
2) identificar critérios de prevalência audiotátil criados em um contexto poético
musical transcultural (nesse caso: cultura de tradição musical ocidental
escrita, popular, brasileira urbana, afro-brasileira, jazzística, etc.) no Brasil,
por músicos brasileiros audiotáteis.
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Notado G#7.
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GROOVE E ESCRITA NA TOCCATA EM RITMO DE SAMBA Nº 2 DE RADAMÉS GNATTALI
Vale observar que para identificar esses critérios consideramos notadamente a distinção
entre as situações convencionadas entre os músicos (arranjo verbal ou fixado, por exemplo), e as
situações emergentes no curso da performance, com a combinação das duas situações endereçadas à
emersão das fontes audiotáteis, dispersas na cultura e na memória, mas que são colhidas e
incorporadas de modo pré-consciente (através do PAT), e logo em seguida interpretados
enquanto forma artística (através da CNA) em um “lugar interacional-formativo” pronto a se
constituir, a ser reconhecido, e a ser cristalizado.
Fabiano Araújo Costa
fabiano.costa@ufes.br
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, Brasil
Fundação Capes, Brasil
Tradução de Patrícia de Souza Araújo
Núcleo de Estudos em Música e Musicologia Audiotátil [eMMa – UFES]
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