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IPA – InstItuto Porto Alegre dA IgrejA MetodIstA Diretor Geral Robson Ramos de Aguiar CoNSaD – Conselho Superior de administração Paulo Borges Campos Jr. (Presidente), Aires Ademir Leal Clavel (VicePresidente), Esther Lopes (Secretária). titulares: Afranio Gonçalves Castro, Augusto Campos de Rezende, Jonas Adolfo Sala, Marcos Gomes Tôrres, Oscar Francisco Alves Jr., Valdecir Barreros Suplentes: Nelson Custódio Fér reitora Anelise Coelho Nunes Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação stricto sensu Edgar Zanini Timm Conselho edItorIAl Anelise Coelho Nunes (Presidente) Edgar Zanini Timm (Vice-Presidente) Alessandra Peres Caroline Dani Jose Clovis de Azevedo Maristela Padilha Marlis Morosini Polidori Ágata Cristina Silveira Pamplona (Assistente Editorial) Rodrigo Ramos Sathler Rosa (Editor Executivo) edItorA unIversItárIA MetodIstA IPA Rua Cel. Joaquim Pedro Salgado, 80 Prédio A – Sala A001 – Rio Branco Porto Alegre/RS CEP: 90420-060 Tel.: (51) 3316-1249 Organizadores Clemildo Anacleto da Silva Claiton Prinzo Borges Jorge Luiz Ayres Gonzaga João Paulo Rodrigues Aço Luciene Maldonado Marilene Santos da Silva Priscila Vieira Bastos Antigos e novos PArAdigmAs UmA AbordAgem interdisciPlinAr nA constrUção do conhecimento EDITORA UNIVERSITÁRIA METODISTA Porto Alegre 2016 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Antigos e novos paradigmas: uma abordagem interdisciplinar na construção do conhecimento / organizado por Clemildo Anacleto da Silva et al. – Porto Alegre: Editora Universitária Metodista IPA, 2016. 180 p. ISBN: 978-85-99738-54-2 1. Educação. 2. Interdisciplinaridades. 3. Formação de Professores. I. SIlva, Anacleto da (Org.) CDD 370.1 CDU 37.012 Bibliotecária responsável: Ana Paula R. Gomes Goulart CRB 10/1736 AFILIADA À Editora Metodista Rua do Sacramento, 230, Rudge Ramos 09640-000, São Bernardo do Campo, SP Tel: (11) 4366-5537 E-mail: editora@metodista.br www.metodista.br/editora Capa: Cristiano Freitas Editoração eletrônica: Maria Zélia Firmino de Sá Revisora: Magda Georgia da Silva Sumário APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 7 CRIACIONISMO E DARWINISMO: PARA ALÉM DA MÚTUA EXCLUSÃO ............ 13 INTRODUÇÃO AO PARADIGMA FILOSÓFICO MARXISTA: PRINCÍPIOS DO MATERIALISMO HISTÓRICO DIALÉTICO .................................................. 31 INTERDISCIPLINARIDADE: A EMERGÊNCIA DE UM PARADIGMA ..................... 57 INTERDISCIPLINARIDADE E INOVAÇÃO, SABERES E POSSIBILIDADES NA EDUCAÇÃO ........................................................................................ 75 FORMAÇÃO DE PROFESSORES, MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS E ENSINO MÉDIO ...................................................................................... 91 LEITURA, FORMAÇÃO DOCENTE E EMANCIPAÇÃO HUMANA ..................... 107 NOVAS CONDIÇÕES DA ESPIRITUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE ....... 121 DIVERSIDADE HUMANA E INCLUSÃO ......................................................... 143 O OLHAR A PARTIR DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA ................... 161 SOBRE OS AUTORES ................................................................................ 177 APRESENTAÇÃO Quando cheguei para fazer meu mestrado em Ciências da Religião, pensei que iria me aprofundar sobre os ensinamentos de todos aqueles teóricos que tinha estudado na graduação. Nos primeiros dias de aula, chegava sempre com uma bolsa cheia de livros e, no decorrer dos debates, ia sacando aqueles autores com o intuito de participar de forma mais efetiva justificando minhas teses fundamentadas em autoridades, até aquele momento, incontestáveis para mim. No entanto, para minha supressa, o professor da disciplina deixava que eu expusesse todos aqueles pensamentos de pesquisadores, professores, cientistas e autoridades americanas e europeias para, logo em seguida, contestar e desmontar o pensamento ou tese de cada um. Confesso que no início achei estranho e me sentia desconfortável, chegava com toda vontade de participar e pensava que estava dando uma grande contribuição; porém, aos poucos, vi meus fundamentos indo por água abaixo. Conforme o semestre foi chegando ao fim, também foram diminuindo os livros que trazia para sala de aula. Tive uma grata surpresa. Descobri que eles não serviam mais, ou melhor, que esses autores não eram autoridades inquestionáveis, não davam a palavra final. O professor me mostrou que existiam produções, pensadores, pesquisadores e estudiosos na América Latina que explicavam e construíam pensamentos e saberes tão valiosos quanto os que vinham do Norte e da Europa. Para mim, essa experiência se constituiu em uma quebra de paradigma. Não somente pude perceber que aqui também fazemos ciência e produzimos conhecimento, mas também, e principalmente, percebi que a forma como pensamos na América Latina é diferente da maneira como norte-americanos e europeus pensam. Assim, mais uma vez percebi, que a forma como pensamos determina a maneira como produzimos conhecimento ao mesmo tempo em que o conhe7 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO cimento produzido por outro influencia a maneira como enxergamos e vivenciamos o mundo, nossa existência e nossa prática. Com isso não estou defendendo que o conhecimento produzido nessas regiões não tenha valor ou serventia, pelo contrário, defendo que ambos os conhecimentos se complementam. Foi através desse conhecimento que formei minhas convicções; no entanto, aprendi que, como dizia Descartes, “por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que eu pudesse imaginar a menor dúvida.” (Discurso do método, quarta parte). Assim, fui compreendendo que seria necessário descolonizar o pensamento. Por muito tempo olhamos para o Norte e para Europa. A filosofia ocidental, por exemplo, nos ensinou que os opostos se excluem. Nesse conceito está contida a ideia segundo a qual os diferentes não podem conviver no mesmo espaço. Os antagônicos foram apresentados como fatores de desintegração. A realidade desmente essa teoria. A sociedade é composta por diferentes pessoas, grupos, culturas, pensamentos etc. A harmonia, desarmonia, diferença, desordem, integração, desintegração formam a unidade a partir desses tensionamentos. Muitos outros paradigmas foram aceitos como indubitáveis. Desta forma, fomos levados a crer, por exemplo, que o pensamento científico poderia ser desenvolvido sem preocupação com a ética; que o pensamento dos povos tradicionais não era considerado conhecimento válido e que o conhecimento religioso não tinha nenhuma contribuição a dar. Além de ter sido necessário rever essas posições, atualmente entendemos que a produção do conhecimento não pode deixar de levar em consideração alguns paradigmas que, em princípio, não estão presentes na forma tradicional de se fazer pesquisa. O que assistimos agora é um outro movimento. Creio que podemos denominá-lo de novos paradigmas. Thomas Kuhn, em seu livro Estrutura da Revolução científica, entendia que um paradigma poderia ser descrito como um conjunto de regras, valores, crenças e teorias que serviam de modelo para uma comunidade científica no seu objetivo de resolver proble8 APresentAção mas. Nesse sentido, podemos também pensar que o paradigma é uma maneira de enxergar e interpretar a realidade. O paradigma direciona nossos pensamentos, estabelecendo um padrão que julgamos ser suficiente para desvendar ou interpretar determinado fato. Às vezes um paradigma anula ou substitui completamente o outro. No entanto, devemos reconhecer que nem todo paradigma se estabelece anulando o anterior. Assim, em alguns casos, utilizamos o termo paradigma apenas para designar uma mudança de rumo, a aplicação de uma nova metodologia ou uma nova racionalidade que permitem interpretar e resolver determinado problema de maneira diferente. Portanto, é a partir desse viés que apresentamos a discussão a respeito dos paradigmas. A análise dos paradigmas, contida nesse livro, resgata percepções que perpassam por várias áreas. Para além do conceito tradicional de paradigmas, os textos aqui tratados levam em conta uma racionalidade estruturada na realidade latino-americana. Os autores pensam os problemas sociais a partir de metodologias e teorias que levam em consideração questões relacionadas a discussões sobre gênero, negritude, cultura africana e afro-brasileira, a ideia de inclusão, a religiosidade, a espiritualidade, a interdisciplinaridade e a complexidade. Entendemos que essas ferramentas de análise também se constituem em paradigmas que estão, muitas vezes, ausentes do paradigma dominante de caráter cartesiano. Portanto, é a partir dessa perspectiva que os autores deste texto entendem, por exemplo, que o paradigma marxista, materialista dialético contribui significativamente para solucionar problemas, interpretar a realidade e promover a emancipação humana. Ainda nos dias atuais, fazer ciência é sinônimo de produção de um conhecimento que leva em conta uma metodologia na qual o conhecimento religioso e a espiritualidade estão fora de qualquer cogitação. Entendemos que essa dimensão da vida humana não pode ser esquecida, colocada de lado ou relegada a algo sem importância. Em uma visão interdisciplinar da realidade, a religião e a espiritualidade são fatores que constituem parte integrante do corpo social, bem como do indivíduo. 9 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO A teoria da complexidade leva em consideração o encadeamento de relações que vai dar origem ou formar um sistema. A unidade e a multiplicidade estão presentes ao mesmo tempo no indivíduo e na realidade como um todo. Esse binômio pode ser aplicado também no que se refere à discussão a respeito do conhecimento, ou seja, faz-se necessário abandonar a ideia de uma verdade única para se abrir para pluralidade e multiplicidade de opiniões. A discussão milenar realizada pelos pré-socráticos volta agora na teoria da complexidade. Assim, devemos ainda concordar com o filósofo Heráclito quando afirmava que a unidade se dá por meio dos opostos. Tanto a visão do especialista que se debruça no particular, no individual, em uma parte específica quanto a da totalidade enfrentam dificuldades para explicar a realidade de forma satisfatória. De acordo com Edgar Morin (em sua obra sobre o Método, distribuído em cinco volumes), o ideal é a junção ou a contribuição dessas duas possibilidades. De fato, a realidade não pode ser compreendida somente a partir da totalidade nem somente a partir da singularidade. Essas duas realidades estão presentes nas coisas e nos fatos visto que a realidade é resultado do estabelecimento de relações. A ordem advinda da repetição e da regularidade, segundo Morin, já não é suficiente para entendermos as relações. A desordem é item importante nessa análise e ela se manifesta no acaso. Ora, o acaso é um tema estudado pela Filosofia, mas também é uma parte importante da religião. Há alguns fatos da existência que estão fora do controle humano. Muitas vezes esses fatos tornam-se espaço da fé, da espiritualidade, da religião. Nem tudo que acontece ao ser humano tem uma explicação lógica. A parte dedicada ao acaso pode encontrar uma explicação na religião. Há coisas que fogem ao controle do ser humano, tanto em sua vida individual quanto aos fenômenos naturais. Nesse sentido, a religião oferece uma forma de explicação. É verdade que essa explicação tem sido acusada de não adotar critérios racionais e científicos visto que seus conhecimentos são resultados de experiência de fé. Não se trata de afirmar que a religião tem um método de análise e instrumental investigativo de caráter científico, mesmo porque ela não se constitui como uma ciência, mas sim como um objeto de estu- 10 APresentAção do de uma ciência. Na verdade, queremos chamar atenção para o fato de que aspectos da vida humana não foram levados em consideração quando se tratava de discutir ou produzir conhecimento científico. No entanto, precisamos também entender que a racionalidade esteve muito presa ao conceito importado do mundo científico europeu que baniu do pensamento científico tudo aquilo que pudesse expressar sentimento, emoção ou religiosidade. Rubem Alves, em seu livro sobre Filosofia da Ciência, vai mais além. Segundo ele, o pensamento científico é o desenvolvimento ou metamorfose do senso comum. A proposta desse texto é, dessa forma, mostrar que outras possibilidades de análises da realidade são possíveis. Mais ainda, a produção do conhecimento não pode se fixar, de forma rígida, a um método que não leva em conta o contexto e as relações sociais em que o problema de pesquisa está imerso. A complexidade da realidade e dos problemas que analisamos se dá pelo fato de que a realidade não é simplesmente um conjunto de coisas. O mundo aparece para o ser humano como uma série de eventos que estão em relação uns com os outros. Além disso, esses eventos desencadeiam outras relações formando uma rede. Assim, uma situação que parece ser particular, única, individual na verdade faz parte de uma cadeia de inter-relações. Clemildo Anacleto da Silva 11 CRIACIONISMO E DARWINISMO: PARA ALÉM DA MÚTUA EXCLUSÃO Fleming Salvador Pedroso Norberto da Cunha Garin Edgar Zanini Timm INTRODUÇÃO Desde sua publicação original, em 1859, a teoria evolucionista de Charles Darwin vem provocando críticas e embates no mundo das ideias e, entre tantas, a sua própria primazia. É reconhecido que Alfred Russel Wallace (1823-1913) enviou a Darwin em 1850 um manuscrito baseado em sua pesquisa: “Sobre a tendência de as variedades se afastarem indefinidamente do tipo original”, na qual apresentava suas ideias de uma teoria da evolução muito semelhantes às de Darwin (PAVERO; SANTOS, 2014). Este fato, entre outros na ciência, é ilustrativo de como muitas vezes se desenvolveram historicamente as ideias de teorias científicas. Elas vêm sendo construídas e compartilhadas por uma coletividade científica de pesquisadores e filósofos, que já estão sensibilizados com uma espécie de “saber de base” e que, em um dado momento, um membro expoente dessa comunidade a defende com maior visibilidade e ou competência, seja em artigos científicos, livros ou palestras. Assim foi também a primazia da teoria da relatividade entre o físico Albert Einstein (1879-1955) e o matemático David Hilbert (18621943) (ISAACSON, 2015). A obra do naturalista inglês, intitulada “A origem das Espécies” (Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida), que a priori seria o objeto de maior interesse das ciências biológicas, influenciou as ci13 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO ências como um todo e incrementou um novo processo reflexivo no mundo das ideias desencadeando implicações teológicas e filosóficas nas religiões bíblicas que adotavam a visão de criação da vida literalmente conforme a narrativa que se encontra no livro de Gênesis (1.1-31; 2.4-25). Foi no campo teológico que a teoria da evolução encontrou um significativo número de críticos. Antropologistas cristãos empenharam-se em procurar rebater as ideias de Darwin já à época e, de lá para cá, o embate criacionismo e evolucionismo tem sido uma das maiores discussões nos debates tradicionais envolvendo religião e ciência. (BAUMER,1977). A incompatibilidade entre criacionismo e darwinismo vem se constituindo no denominador comum de posições extremas: a negação da evolução em favor da criação e a negação da criação em nome da evolução (MACDOWELL, 2011). Parece, assim, haver uma mútua exclusão entre essas duas concepções fundadas em paradigmas diferentes. DARWINISMO E EVOLUÇÃO Para ajudar a entender a importância do tema deste capítulo, no domínio literário, foi realizada uma pesquisa de frequência das publicações no indexador Google acadêmico com os termos darwinismo (Darwinism ou Darwinian) e criacionismo (Creationism) como palavras associadas, tanto em português como em inglês, no período compreendido entre janeiro de 2012 até março de 2016. Os resultados, em número de indicadores acadêmicos encontrados para o termo Darwinismo + Criacionismo, foi de 291 e Darwinism/Darwinian + Creationism, de 5.370. Supondo que exista uma alta aderência entre as palavras indexadoras e considerando somente a ocorrência quando as duas estiveram associadas, houve neste período de aproximadamente quatro anos, na soma de duas línguas, em torno de 6.000 ocorrências indexadas, o que equivale a quatro publicações por dia. Imagina-se que este número seja ainda maior se consideramos outras línguas não indexadas por esse sistema proposto, bem como as indexações não acadêmicas. Pode-se dizer que “darwinismo versus criacionismo” continua despertando interesses e, portanto, trata-se de um tema atual, não só 14 criAcionismo e dArWinismo: PArA AlÉm dA mÚtUA eXclUsão pela importância científica, mas em especial pelo crescente interesse no debate entre ciência e religião. Quando se trata, por exemplo, de ensinar nas escolas essa temática em nações de natureza criacionistas, como os EUA, os ânimos exacerbam-se a ponto de gerar uma “guerra de cultura”, e há casos em que a solução desse conflito vai parar nos tribunais de Justiça (LAATS; SIEGEL, 2016). Isso tudo ainda existe, mesmo que na contemporaneidade haja um esforço para a superação do antagonismo entre ciência e religião. Cada vez mais religiosos procuram entender a importância da ciência no desenvolvimento dos seres humanos contribuindo, assim, com pesquisas e tecnologia para sua evolução. Por sua vez, cientistas estão demonstrando vivo interesse pelos mecanismos da fé. Há, inclusive, aqueles que abrem espaço em seus estudos e publicações para prestar atenção à dimensão religiosa do ser humano. O contemporâneo físico austríaco Fritjof Capra é um destes cientistas que mostra, em suas publicações e palestras, um profundo interesse pelo intangível do ser humano e sua relação com o todo. Já Albert Einstein admirava-se com essa possibilidade de encontro entre ciência e transcendente, como fica bastante evidenciado em sua obra “Como vejo o mundo”. Para o presente capítulo usaremos indistintamente os termos darwinismo, teoria da evolução, evolucionismo. Vamos começar relembrando alguns dos princípios básicos da teoria da evolução das espécies, trazendo algumas considerações históricas. Darwin, no século XIX, em função de suas pesquisas de campo e estudos realizados, desenvolveu um entendimento de que populações de seres vivos evoluíam gerando novas espécies, em função da variabilidade de pequenas características já existentes entre os indivíduos, cujos fatores ambientais favoreciam, uns em detrimentos de outros, em um tempo consideravelmente longo, o que o cientista chamou de seleção natural e luta pela vida. Esta sua observação foi alicerçada nos seguintes princípios: da variação, em que indivíduos da mesma população apresentam variações quanto à morfologia, à fisiologia e ao comportamento; da hereditariedade, em que as características dos pais são vistas nos descendentes; e da seleção, na qual se constata sobrevivência e reprodução dos mais adaptados (DARWIN, 1859). 15 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Com o passar dos anos, a teoria da evolução recebeu aperfeiçoamentos de novas descobertas científicas, como a Lei de Mendel, que explica como se processa a herança através da genética, e as descobertas do ácido desoxirribonucleico (DNA) com suas bases bioquímicas – os genes – com as possibilidades de mutação (HUXLEY, 2010). Com este novo apoio, surge então o neodarwinismo ou teoria moderna/sintética da evolução, termo este introduzido por Julian Huxley, em 1942, que passou a incluir, além da seleção natural, as mutações e a recombinação gênica. Surge, assim, a ideia de a possibilidade da influência do ambiente ser aliada ao potencial de mudança dos genes. Nesse aperfeiçoamento, o neodarwinismo foi, aos poucos, incorporando analogias em diversas ciências e campos das atividades humanas, além das intrinsicamente ligadas desde sua origem (biologia, paleontologia, arqueologia e antropologia, entre outras), com sua interpretação da vida sendo trabalhada também no mundo das ideias da filosofia e da teologia. De forma semelhante, surgiram implicações em âmbito físico-químico, sociocultural, neural-mental (como nosso corpo gera a consciência), da psicologia evolutiva, da inteligência artificial/informática, da economia entre outras (BAUMER,1977; MESOUDI, 2016; RIVERO, 2016; YNAI; LERCHER, 2016). O fenômeno também se observa na sociologia com o estudo sobre o chamado darwinismo social. Exemplificando essa influência, podemos apresentar a situação do darwinismo físico-químico como uma maneira reducionista de entender a seleção natural como derivadas das “forças” da termodinâmica/física básica dos elementos químicos e as que têm primazia nas transformações da vida (seleção natural das formas complexas); assim a teoria da evolução seria baseada em leis secundárias (SPITZER, et al., 2015; PROSS, 2016). Todavia, no que se refere ao darwinismo neural, entende-se que entre a diversidade das redes neurais primariamente determinadas pela genética e no nível mais superior do sistema nervoso (o cérebro), já próximo ao nascimento no caso do ser humano, iniciam suas experiências pela competição dos estímulos do mundo externo e interno do corpo - processos de seleção. O conjunto de neurônios e 16 criAcionismo e dArWinismo: PArA AlÉm dA mÚtUA eXclUsão as demais células de suas unidades funcionais que responderem com mais frequência e efetividade a esses estímulos serão os circuitos selecionados e, por sua vez, poderão ser mais e mais ampliados por redes vizinhas ou novas redes, constituindo-se, em analogia, uma reprodução bem sucedida em detrimento de outras. A organização de redes funcionais cerebrais assim selecionada foi chamada, por Edelman (1993), de darwinismo neural, cuja consequência em âmbito cognitivo, na medida em que a complexidade das redes celulares atinge um nível crítico na capacidade de processar diferentes estímulos. Este processo possibilita a emergência da consciência primária e até mesmo de desvios que poderiam também estar associados à psicopatologia das doenças mentais (EDELMAN, 1993; ALMEIDA; EL-HANI, 2006; FAUCHER, 2015; NEISSER, 2015; PORTERA; SUSTAR, 2015). Para exacerbar o potencial crítico dos defensores radicais do criacionismo, as ideias com interpretações particulares dos genes (neodarwinismo), como as que entendem que os nossos genes são replicadores egoístas, comandam a formação das estruturas dos nossos corpos como máquinas gênicas e com o potencial de dominar as nossas mentes (DAWKINS, 2007). Ainda nessa linha de pensamento, é possível constatar um aumento no número de publicações que implicam estudos sobre os nossos genes em determinadas habilidades cognitivas, na moral e na espiritualidade. Assim, supõe-se que nossas escolhas pessoais são originadas de “forças biológicas” que nos predispõem, até mesmo, as nossas opções em matérias de crença e de fé. O neodarwinismo entende isso como uma vantagem evolutiva: indivíduos mais resilientes em relação às dificuldades do mundo físico e psíquico e propensos ao altruísmo são mais “imunes” ao estresse e às doenças (HAMER, 2004; BRUCE, 2007; HAMER, 2004). A predisposição genética ao desenvolvimento de uma postura frente ao transcendente é matéria controversa em meio teológico e exige deste um aprofundamento maior na questão da conversão religiosa. Assim, se a religião já se valia de dispositivos das ciências do comportamento humano individual e em sociedade, como a psicologia, a psicanálise e a psiquiatria (e, até mesmo, a parapsicologia), agora tem o convite da biologia e da neurologia para 17 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO acessar, num diálogo interdisciplinar, suas novas descobertas sobre a condição humana. “Nogare (1979), em relação às implicações científicas e religiosas do darwinismo, separa o debate em pelo menos três questões quanto à evolução: o fato, o mecanismo e o sentido. O fato já é admitido pelos meios científicos desde o século XIX e, nos dias de hoje, enquanto teoria é admitida mesmo entre as religiões bíblicas. Podemos assim entender: existe uma teorização, está aí, é atraente, possui fundamentos que dão o que pensar.” Quanto ao mecanismo da evolução (teoria explicativa), observa-se que já não há consenso, mesmo entre cientistas. A teoria de Darwin, reforçada pela descoberta dos mecanismos da herança genética, vem recebendo críticas nas áreas da biologia e da paleontologia e, neste sentido, tem unido criacionistas que estão em busca de bases científicas para suas ideias juntamente com darwinistas dissidentes. Estes entendem que mutações gênicas ao acaso não podem ter sido a única explicação para a evolução da vida, pois a teoria sintética da evolução, no estado atual, é insuficiente para explicar como algumas espécies evoluíram de forma tão rápida em determinados períodos seguidos de outros de relativa estabilidade, bem como se observa a falta de fósseis de formas intermediárias entre espécies (JOHNSON, 2008). Nesse contexto, surge a teoria do design inteligente. Para muitos é ainda uma pseudociência e não sendo considerada nem mesmo uma nova ideia sobre a criação, como referem Andrade e Barbosa (2013): A ideia de design, não é algo recente, como sabemos. É possível encontrá-la no Timeu, de Platão, sob a figura do demiourgós, deidade que cria o kosmos segundo um projeto, um modelo ideal e eterno. Esta ideia foi retomada diversas vezes ao longo da história. (ANDRADE; BARBOSA, 2013. p. 711). Defensores do design inteligente entendem que a diversidade e a complexidade biológica se deram por concepção de uma inteligência superior (podendo ser Deus ou mesmo inteligências extraterrestres). Ainda, defendem que a existência da vida na Terra requer uma enorme harmonização de variáveis e que, assim sendo, seria impossível que a vida fosse fruto apenas do acaso. A implicação direta dessas ideias para 18 criAcionismo e dArWinismo: PArA AlÉm dA mÚtUA eXclUsão ciências são as mesmas que provar a existência de Deus e, portanto, o design inteligente seria mais teologia do que ciência (ANDRADE; BARBOSA, 2013). Pelo exposto até aqui é possível nos perguntarmos se podemos, ao falar de evolução da vida, ter presente somente a perspectiva da tradição darwinista. Parece-nos que, embora a expressão evolução/ evolucionismo esteja na história da ciência associada a Darwin, ela tem outras perspectivas de entendimento em outras áreas do conhecimento. A seguir veremos como essa questão da evolução da vida também é de interesse da teologia. CRIACIONISMO E EVOLUÇÃO Bastante controversa em algumas comunidades científicas e religiosas, a ufologia, em uma de suas teorizações, trabalha com a ideia de que a vida no planeta teria sido projeto de inteligências extraterrestres (mesmo que sobre o sentido desse projeto a ufologia não saiba ainda manifestar-se com clareza). Dada a imensidão do cosmos atestada pela ciência e muitas citações encontradas no texto bíblico sobre a grandeza da obra de Deus e o seu poder sobre todo o universo (todos os universos e suas possibilidades de efetivação, diria a física quântica), observa-se o interesse de religiosos pela discussão sobre a possibilidade de a vida não estar restrita ao planeta: o argumento reside na afirmação de que tal descoberta não diminuiria em nada o poder do Criador, pelo contrário, só o atestaria ainda mais. O Vaticano, inclusive, já se manifestou sobre isso, como se lê numa entrevista concedida por um de seus religiosos cientistas1, diretor do observatório astronômico do Vaticano, padre José Gabriel Funes, em 2008, o qual enfatizou que “não se pode limitar a ação criadora de Deus”. Segundo a matéria publicada, ele afirmou que “Deus pode ter criado seres inteligentes em outros planetas do mesmo jeito como criou o universo e os homens”: Como existem diversas criaturas na Terra, poderiam existir também outros seres inteligentes, criados por Deus”, disse o diretor do observatório conhe1 Vaticano admite que possa haver vida fora da Terra. Matéria publicada em 13/05/08 pelo portal http://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2008 19 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO cido como Specola Vaticana. “Isso não contradiz nossa fé porque não podemos colocar limites à liberdade criadora de Deus”, acrescentou Funes, em entrevista ao jornal L’Osservatore Romano, órgão oficial de imprensa da Santa Sé. Na entrevista ao jornal do papa, o padre Funes, jesuíta argentino de 45 anos de idade, cita São Francisco ao dizer que possíveis habitantes de outros planetas devem ser considerados como nossos irmãos. “Para citar São Francisco, se consideramos as criaturas terrestres como ‘irmão’ e ‘irmã’, por que não poderemos falar também de um ‘irmão extraterrestre’?”, pergunta o padre. “Ele também faria parte da criação. (VLAHOU, 2008, paginação irregular). Na interpretação dada pela matéria, há a concordância do religioso com alguma ideia de evolução: “Na opinião do astrônomo do Vaticano, pode haver seres semelhantes a nós ou até mais evoluídos em outros planetas, ainda que não haja provas da existência deles” (grifo nosso): É possível que existam. O universo é formado por 100 bilhões de galáxias, cada uma composta de 100 bilhões de estrelas, muitas delas ou quase todas poderiam ter planetas”, afirmou Funes. “Como podemos excluir que a vida tenha se desenvolvido também em outro lugar?”, acrescentou. “Há um ramo da astronomia, a astrobiologia, que estuda justamente este aspecto e fez muitos progressos nos últimos anos. (VLAHOU, 2008, paginação irregular, grifo nosso). No que tange a questão do sentido/propósito da evolução, reside aqui maiores divergências entre criacionistas e darwinistas. Neste enfoque, surgem pelo menos três possibilidades: a evolução não tem sentido, é fruto apenas do acaso; o sentido é apenas imanente, explicado pelas leis da natureza; e, por último, a evolução tem um sentido que é, ao mesmo tempo, imanente e transcendente (NOGARE,1979). Para Macdowell (2011), a reflexão filosófica aprofundada sobre o sentido da evolução, considerando a natureza e o alcance dos vários tipos de saber, coloca em evidência a inconsistência tanto do darwinismo como do criacionismo tradicional e mostra que a oposição entre evolução e criação é um falso dilema: Se o criacionismo, que nega a evolução em nome da criação, são posições ideológicas, resultantes de uma compreensão inadequada do que é a criação, mas, se é tão clara a relação de compatibilidade entre criação e evolução, donde 20 criAcionismo e dArWinismo: PArA AlÉm dA mÚtUA eXclUsão vêm os contínuos conflitos entre os negadores da evolução ou da criação que se verificaram desde o século XIX até os dias de hoje? A resposta já foi dada por toda a exposição anterior. Trata-se sem dúvida de uma falta de clareza a respeito do método de cada um dos saberes em jogo e, por conseguinte, das próprias noções básicas envolvidas. (MACDOWELL, 2011, p. 119). Assim, considera-se que nas trajetórias do ser humano ocidental, desde o século XIX, tem aparecido esse dilema entre uma compreensão científica e uma compreensão bíblica sobre a origem da vida. Neste sentido, o dilema pode ser considerado falso, pois se desfaz diante do estudo científico da narrativa bíblica que se reporta à criação da humanidade (Gn 1.1-31; 2.4-25). Como diz Zilles (1995), trata-se de um dilema aparente: O velho dilema criação ou evolução é apenas aparente. Como tal, está hoje superado em definitivo. A questão é bem outra: não se trata de escolher entre criação e evolução, mas de determinar seu mútuo relacionamento. Os dois conceitos referem-se a problemas diferentes, se bem que ambos abranjam a realidade sensível do cosmos na sua totalidade. Criação é algo muito mais radical e qualitativamente mais total. Fala-nos do começo absoluto de todas as coisas. Para evoluir é preciso haver algo que evolua; para criar, é preciso não haver nada, pois criação diz começo absoluto. (ZILLES, 1995, p. 14). A ideia da criação, na perspectiva bíblica, implica uma postura de fé em que a criação é um ato a priori absoluto de Deus. Essa implicação trabalha com princípios inexplicáveis, porque se reportam àquilo que, se por um lado são imanentes à condição humana no mundo, também a transcendem. A evolução que viria a posteriori da criação, depende, nessa perspectiva apontada por Zilles (1995), de uma natureza preexistente e presentifica um estado em potencial da natureza criada. Aristóteles, em sua teorização do Ato/Potência pode, resguardado o contexto metafísico de sua ideia, ajudar a exemplificar essa questão. A criação aponta para o início (o imperativo divino do fiat lux: faça-se a luz!), o ponto alfa de onde tudo passa a ter existência (o ponto zero da teoria do big-bang). A evolução aponta para o fim, o ponto ômega no qual a criação se realizará em sua plenitude (CHARDIN, 1966). Isso implica que criação não seja um ato dado, já 21 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO passado, mas um ato que ainda é, que ainda está acontecendo, que não tem fim, uma realidade aberta: “Uma concepção evolutiva do mundo, como a teilhardiana, parece expressar mais e melhor a contínua atividade criadora de Deus, uma vez que o mundo não foi criado em estado de acabamento pleno” (ZILLES, 1995, p. 22). A narrativa criacionista da Bíblia não tem a pretensão de explicar, nos termos da ciência ocidental tradicional, a forma como céus, terra, águas, plantas, espécies animais e seres humanos foram criados. As narrativas que nela encontramos são explicações etiológicas (GOTTWALD, 1988), que precisam ser entendidas dentro do contexto de sua constituição. Tratando dos autores bíblicos do Gênesis, Zilles (1995, p. 28) observa que “os autores não se preocupam em descrever-nos como, mas que e porque o homem foi criado por Deus. A partir dessas considerações vemos que a alternativa criação ou evolução é postiça”. EVOLUÇÃO DA VIDA: PONTO DE CONVERGÊNCIA DE INTERESSES ENTRE CIÊNCIA E TEOLOGIA O dilema é inconcebível uma vez que, em vão, acirra apaixonados embates de cientistas defendendo um processo evolutivo natural sem intervenção de uma vontade transcendente (darwinismo biológico) e de religiosos desprovidos de uma análise crítica pelo viés da narrativa etiológica bíblica demonizando os defensores do darwinismo tradicional ou de suas vertentes mais contemporâneas. Tanto teologia como ciência poderiam reconhecer suas fragilidades e limites e buscar, por meio de suas diferentes disciplinas, uma aproximação interdisciplinar. Ao falar sobre a criação como um ato da vontade divina, a teologia, por um lado, não explicita a forma como isso acontece, pois não é essa a sua função e, por outro, isso é impossível de se explicar visto que pertence à dimensão transcendental: é uma questão de fé, e a fé não necessita, para ser sentida, de explicação nos moldes tradicionais da ciência moderna ocidental. Cientistas, por sua vez, numa perspectiva bem tradicional de fazer ciência, ao descortinarem detalhes da evolução biológica e cósmica, não conseguem entender o ponto 22 criAcionismo e dArWinismo: PArA AlÉm dA mÚtUA eXclUsão inicial, o começo de tudo ou a razão a dar sentido ao que está aí como acontecimento inegável, porque isso lhes foge às ferramentas que utilizam. Cientistas que se alinham ao paradigma de defensores da tradição darwinista são capazes de descrever uma história da evolução natural no planeta. Sua ciência pode alcançar a evolução do cosmos, mas falta o instrumento para atingir o ponto alfa: o início da criação, o elemento primordial do qual tudo tem seu início. Se da ciência de tradição newtoniana-cartesiana herdamos a postura da explicação e do como funciona, é na filosofia que encontramos a pergunta, pela episteme, dessa explicação e pelo sentido desse funcionamento. A teologia comparece a essa reflexão interdisciplinar com a pergunta pelo sentido de todos os sentidos. O que se observa, porém, é que muitas vezes religiosos e cientistas céticos construíram verdadeiros fronts de batalhas. O confronto foi ampliado, segundo Zilles (1995), corroborado por uma crítica cujo propósito era atingir uma camada mais popular: Ernst Haeckel (1834-1919) criticou os textos bíblicos sobre a criação com ironia maléfica e simplificou os problemas científicos. Essas críticas de Haeckel, cujas obras têm caráter popular, geraram um clima de muita desconfiança nas esferas intelectuais no concernente à narração bíblica do Gênese, segundo a qual Deus formou o homem do barro da terra e lhe inspirou a alma. (ZILLES, 1995, p. 8). Enquanto o objeto da ciência se constitui em demonstrar como os fenômenos se estabelecem, o objeto da teologia, ao se debruçar sobre a narrativa bíblica, se constitui no oferecimento de uma proposta religiosa de desenvolvimento da fé. Uma fé esclarecida pela razão e uma razão fortalecida pela fé; anseio antigo de conciliação entre fé e razão pode ser novamente trabalhado desde que não postule uma condição de subserviência de uma em relação à outra. Ciência e religião não precisam ser antagônicas. Há que se respeitar o fato de terem objetos de atenção distintos, além de modos de construção, validação e expressão de conhecimentos também diferenciados. O propósito, contudo, pode ser um: melhorar a condição humana no mundo. Tanto ciência quanto teologia podem caminhar juntas em seus esforços, na construção de repostas para suas orientações e interesses 23 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO de estudos considerando as naturezas de suas respectivas pesquisas. A complexidade que experimentamos na contemporaneidade está a demandar posturas investigativas mais flexíveis, menos propensas à absolutização de métodos e validação de conhecimentos. Isso, naturalmente, não deve afastar o rigor na pesquisa, mas a sensibilidade na atenção para aquilo que não pode ser mensurado e nem expresso pelo instrumental de que tradicionalmente a ciência vem se valendo. PARA ALÉM DA MÚTUA EXCLUSÃO Na perspectiva de uma ciência e uma teologia não antagônicas, mas parceiras na comunhão de propósitos e contribuindo para a melhoria da condição humana no mundo, pode ser útil refletir sobre estas observações publicadas na entrevista concedida pelo religioso cientista, o padre Gabriel Funes, já citado anteriormente: Segundo o cientista, estudar o universo não afasta, mas aproxima de Deus porque abre o coração e a mente e ajuda a colocar a vida das pessoas na “perspectiva certa”. Padre Funes diz ainda que teorias como a do Big Bang e a do evolucionismo de Darwin, que explicam o nascimento do universo e da vida na Terra sem fazer relação com a existência de Deus, não se chocam com a visão da Igreja. “Como astrônomo, eu continuo a acreditar que Deus seja o criador do universo e que nós não somos o produto do acaso, mas filhos de um pai bom”, afirma. “Observando as estrelas, emerge claramente um processo evolutivo, e este é um dado cientifico, mas não vejo nisso uma contradição com a fé em Deus”. (VLAHOU, 2008, paginação irregular, grifo nosso). A concepção de que há uma força criadora não elimina a concepção de desenvolvimento infinito enquanto um estado de evolução permanente (CHARDIN, 1966). Assim, é necessário ver que se constitui equívoco imaginar que o criador foi apenas uma causa primeira. A criação também precisa ser concebida como dinâmica e não esgotada num gesto primeiro. Nessa perspectiva entende-se que não houve apenas um momento primeiro de criação e depois o criador teria se retirado da trajetória do universo. O criador, na perspectiva de um criacionismo que não se mostra antagônico à ideia de evolução dos seres vivos, continua criando de modo presente e permanente. Assim perspectivado o entendimento, resulta a compreensão de que criação 24 criAcionismo e dArWinismo: PArA AlÉm dA mÚtUA eXclUsão e evolução coexistem. A criação evolui, mas essa evolução não significa que algo foi criado e deixado à sua própria sorte, sendo, então, desde aquele gesto inicial, somente objeto de apreciação (para ver no que vai dar) do criador. A criação, nessa perspectiva de entendimento, não é um ato já praticado e, portanto, findo, de Deus. Isso seria menosprezar seu potencial criador. A criação não foi, ela é, está acontecendo. A constatação do movimento do universo, seus corpos, suas plurais dimensões, a exploração espacial por tecnologias avançadas, o anseio por saber se estamos solitários no cosmos ou se temos nele vizinhos ou parentes distantes, a superação das doenças pelo avanço da medicina a prolongar a vida sobre a face da terra, os avanços nos direitos humanos, tudo parece indicar a existência não apenas de um progresso material, mas também moral, de uma evolução: estamos inventando formas alternativas de tornar melhor nossa condição humana no mundo. Assim, essas invenções podem ser vistas como evolução, em nossa luta por melhor nos adaptarmos aos tempos que correm e por sobrevivência da humanidade e do planeta. Deus, como causa transcendente, não pode ser imaginado como primeira numa corrente de causas segundas. Seria errôneo. É preciso superarmos a ideia de Deus-primeiro-elo-numa-cadeia, pois ele está presente a cada elo. É transcendente e imanente e, por isso, age de dentro do próprio curso da evolução, através e nas causas segundas. (ZILLES, 1995, p. 23). Entre as dificuldades enfrentadas pelas pessoas para construir (ou reconstruir) uma compreensão da temática da criação encontrada na narrativa bíblica, reside no fato de que muitas instruções catequéticas de formação religiosa fazem uma interpretação literal do texto bíblico. Zilles (1995) aborda essa questão focando o conflito de ensinamentos: o homem formado do barro ou evoluindo de outras espécies: Tais conflitos são, às vezes, apoiados pela instrução religiosa superficial dos manuais de religião. Na catequese o jovem cristão aprende literalmente que Deus formou o homem de barro (Gn 2.4-7). Com facilidade associamos a ação de Deus com a do oleiro. Mas nas aulas de biologia, os professores ensinam que o homem descende dos primatas. E o jovem, consciente ou inconscientemente, 25 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO encontra-se diante do dilema: existe, pois, incompatibilidade entre a ciência natural e a Bíblia? (ZILLES, 1995, p. 24). No entendimento do religioso cientista ao qual já nos referimos neste texto, “estudar astronomia [fazer ciência] não leva necessariamente ao ateísmo”: É uma lenda achar que a astronomia favoreça uma visão atéia do mundo”, disse o padre. “Nosso trabalho demonstra que é possível fazer ciência seriamente e acreditar em Deus. A Igreja deixou sua marca na história da astronomia.” Diretor da Specola Vaticana desde 2006, padre Funes lembrou na entrevista que astrônomos do Vaticano fizeram importantes descobertas como o “raio verde”, o rebaixamento de Plutão e trabalhos em parceria com a Nasa, por meio do centro astronômico do Vaticano em Tucson, nos Estados Unidos. (VLAHOU, 2008, paginação irregular, grifo nosso). A narrativa bíblica não pretende demonstrar, nos moldes científicos tradicionais, como aconteceu a criação, mas sim que houve uma criação oriunda de uma vontade transcendente anterior ao gesto criativo e que se torna imanente à criação uma vez feito esse gesto. A sequência numérica dos dias de criação expressa uma intenção artística de demonstrar uma organização, uma prioridade de atos, mas não que isso represente um conhecimento ou o estabelecimento de um fato passível de ser mensurado pela ciência positiva. Como diz Zilles (1995): Sabemos que algum dia o homem entrou na história. Mas ele entrou tão silenciosamente que não percebemos os vestígios de seus primeiros passos. Não sabemos como, quando e onde nasceu o primeiro homem. Em todo o caso a revelação divina silencia este problema. Debruçarmo-nos sobre o livro do Gêneses para buscar tais respostas seria inútil. (ZILLES, 1995, p. 32). As narrativas bíblicas da criação, encontradas no livro de Gênesis (1.1-31; 2.4-25), tratam de etiologias sobre a formação do mundo, dos seres vivos e, de forma especial, do homem e da mulher. Assim como não é sua preocupação o estabelecimento de cronogramas, também não se pode deduzir dessas narrativas o material e o modo como os elementos do cosmos e os seres foram criados. Essas etiologias se 26 criAcionismo e dArWinismo: PArA AlÉm dA mÚtUA eXclUsão constituem em informações de fé, de que foram criados num determinado momento por uma vontade superior. Como outras etiologias, apontam para a compreensão que os autores do texto de Gênesis tinham sobre as origens do mundo dentro de uma concepção compatível aos conhecimentos do seu tempo (GOTTWALD, 1988). CONCLUSÃO Podemos, da nossa parte, indicar que a questão não é de escolher maniqueisticamente entre darwinismo ou criacionismo afirmando que um está certo porque o outro está errado, pois se referem a tentativas de resolver problemas de formas diferentes, mas mutuamente relacionados, e se tornam saberes inconsistentes quando separados. Na tentativa de se valer de ambos, por exemplo, um estudante não precisa acreditar na evolução a fim de compreender seus princípios e provas, ele pode ser totalmente educado no pensamento científico moderno e, ainda sim, manter-se com suas crenças religiosas ou culturais (LAATS; SIEGEL, 2016). Afinal, são perguntas diferentes que ciência e religião fazem e, por isso mesmo, as respostas que elas dão são também diferentes. Seus modos de construção, validação e expressão de conhecimentos sobre o que existe, como existe e o sentido dessa existência são diferentes, mas nem por isso precisam ser antagônicos a disputarem a primazia sobre a visão da vida. Teorizações sobre a origem, a evolução e o sentido da vida podem ser refletidas de modo interdisciplinar, pois as grandes questões existenciais do ser humano continuam com respostas provisórias: quem somos? de onde viemos? como viemos? por que viemos? para onde vamos? Assim, precisam ter lugar, na reflexão, diferentes modos de construção de conhecimento. Nessa compreensão, que leva a questão sobre o criacionismo e darwinismo para além da mútua exclusão, a perspectiva interdisciplinar que nos permite conhecer, compreender, sentir e expressar pela aproximação dialógica das disciplinas e saberes nos parece ser um bom caminho. Porque a evolução da vida interessa a muitas áreas do saber e sua reflexão não pode ficar restrita maniqueisticamente ao molde tradicional do falso dilema criacionismo versus evolucionismo. 27 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO REFERÊNCIAS ALMEIDA, A.M.R.; EL-HANI, C.N. 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Apresentamos o Materialismo Histórico como instrumento de análise dos processos de desenvolvimento humano e o Materialismo Dialético como instrumento de construção metodológica deste processo. Alertamos, porém, que há limites nesse trabalho, pois o pensamento marxista está contido em alargada bibliografia. A intenção é elaborar uma aproximação com as concepções organizadas por Marx, Engels e seus seguidores, sem ter a pretensão de dar conta da gama quase infinita de possibilidades de compreensões deste paradigma que é um importante instrumento de análise e compreensão da história humana. Inicialmente, procuramos entender de que maneira o “Materialismo Dialético” se insere como concepção filosófica e enquanto pensamento humano em suas origens históricas. Na subdivisão do texto, elencamos primeiramente os principais momentos do curso histórico humano, chegando a expressar, na sequência, os elementos filosóficos que provocaram as principais formulações teóricas do marxismo. Por 31 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO fim, anunciamos as contribuições de seu pensamento para interrogar e buscar resoluções para as problemáticas de nosso tempo. O CURSO DOS MODOS DE PRODUÇÃO Nos primórdios da associação humana em prol da apropriação da natureza, daquilo que se fazia necessário à sobrevivência, não havia divisão social do trabalho nem a acumulação de excedente. O processo de obtenção de alimentos a partir da caça e da coleta era a base da subsistência. Todos os indivíduos participavam dessas atividades. O resultado do trabalho era partilhado no grupo e gerava o sentimento de solidariedade. Nesse contexto, a propriedade da terra e dos recursos naturais não era concebida como bem privado, mas posse da coletividade. Decorrente do processo de desenvolvimento ao longo da história, os seres humanos na sua relação com a natureza e com seus pares elaboraram instrumentos tecnológicos, possibilitando o melhor aproveitamento dos recursos naturais. O domínio do fogo, a domesticação de plantas e animais, por exemplo, tornam-se fundamentais à produção de excedente e sedentarização humana. A geração de excedentes culmina na divisão social do trabalho e, em consequência, origina diferentes funções sociais. Grupos ou indivíduos que não produzem diretamente a sua subsistência precisam que outros a supram. Assim, por exemplo, guerreiros, caçadores, sacerdotes e xamãs passam à dependência do trabalho alheio. (ENGELS, 1934). Na antiguidade, com o surgimento dos grandes aglomerados humanos, fruto do desenvolvimento tecnológico e da sedentarização, as relações sociais e de produção se complexificam. Este processo se dá principalmente no “Crescente Fértil” que se situa entre o rio Tibre e o rio Eufrates (atuais territórios do Irã, Iraque, Palestina) e no Egito (no nordeste da África), Delta do Nilo até a Núbia. A divisão do trabalho se acentua e a posse dos recursos naturais é concentrada especialmente na figura do monarca. A terra passa a ser o centro do processo produtivo, presa nas mãos do rei/imperador, que a distribui conforme sua conveniência. Em decorrência da expansão territorial que se faz necessária vistas ao aumento do consumo de recursos 32 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico naturais, as populações conquistadas são tornadas escravas. Então, a base da produção material assenta-se sobre o trabalho escravo. Populações que foram conquistadas, além de perder os recursos naturais necessários à subsistência, também passaram a trabalhar para seu conquistador. O escravo era tido como propriedade de seu senhor. Posteriormente, surge na Europa Ocidental o feudalismo. Sua organização produtiva continua fundamentada na propriedade privada da terra, concentrada nas mãos do senhor feudal. O senhor feudal concedia uma pequena fração de terra e o servo trabalhava nela. Em troca, o servo dava ao senhor feudal parcela de sua produção. Ao mesmo tempo entregava-lhe parte majoritária do seu tempo e de seu trabalho. O servo não possuía mais a condição de escravo, entretanto estava preso à terra e dela não poderia se dissociar. O servo tinha segurança de ter terra para trabalhar e retirar precariamente o seu sustento. O feudalismo se caracteriza pela não produção de excedente para trocas mercantis, apenas o necessário à segurança alimentar e ao fausto do senhor feudal. Na sequência, o evento das Cruzadas que se caracterizou, por um lado, na busca de expansão do Cristianismo e na tentativa de conquista da Terra Santa e, por outro, representava o primeiro movimento de expansão europeia, visando a conquista de novas terras para a nobreza e o incremento do comércio com o Oriente Médio. Esse fenômeno expansionista europeu tem seguimento com as grandes navegações, estruturando a fase mercantilista, no plano econômico, tendo como expressão cultural e ideológica o movimento renascentista, com a retomada do Humanismo, a afirmação do racionalismo idealista e a reforma protestante. Esta etapa constitui-se na gênese do capitalismo contemporâneo, o que Marx (1982) denomina de fase da acumulação primitiva. Essa fase de acumulação cria condições para a burguesia mercantil reorientar os investimentos para a esfera da produção, desencadeando o início da revolução industrial no século XVIII. A produção de mercadorias em grande quantidade de excedente e sua circulação se tornam o objetivo da burguesia (outrora mercantil e, agora, industrial). O acesso às matérias primas, aos mercados consumidores e à mão de obra barata são os elementos 33 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO estruturantes do capitalismo associados ao seu fundamento ontológico que é a acumulação incessante e progressiva. “As condições de produção são simultaneamente as de reprodução. Nenhuma sociedade pode reproduzir continuamente [...] sem converter parte de seus produtos em meios de produção”. (MARX, [s.d.], p. 619). A dinâmica de reprodução do capital provoca o processo de fragmentação do modo produtivo, a coisificação do homem e a alienação1 que separa o trabalhador do objeto de trabalho, ocultando as relações sociais e culturais decorrentes das relações de produção. Marx coloca o trabalho humano no centro dos processos produtivos e desvela o seu caráter negativo em função do processo exploratório exercido pelo capital na expropriação de mais valia2. MARX E A CONSTRUÇÃO DA COMPREENSÃO DA REALIDADE Marx constrói o processo de análise para revelar o que está por trás dos fenômenos do cotidiano. As causas das desigualdades implícitas nas relações sociais, os matizes que levam à naturalização deste 1 2 34 Trabalho alienado é quando o homem não se percebe como produtor das riquezas geradas por intermédio de seu trabalho, não se identifica com seu próprio trabalho e nem enquanto membro da espécie humana. Dissocia o objeto criado pelo tempo disponibilizado por seu trabalho na elaboração de determinada mercadoria ou produto e, no contexto atual, também na prestação de serviços da sociedade urbana. Segundo Marx: “a alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição a ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil e antagônica”. (MARX, 2001, p. 112). Nesse sentido, ultrapassar o trabalho alienado é condição que possibilita a superação de um sistema que impede o desenvolvimento do ser humano. Na teoria de Marx o capital é a doutrina da mais valia. Notadamente, a doutrina afirma que o valor de um produto é dado pela mão-de-obra incorporada a ele. É o quantitativo excedente de trabalho. É a parte do valor da força de trabalho dispendida por um determinado trabalhador na produção e que não é remunerado pelo patrão. O trabalhador recebe em pagamento a quantidade de dinheiro suficiente para se sustentar – às vezes um pouco mais e outras um pouco menos –, mas mesmo que produza mais do que se lhe paga, recebe apenas uma recompensa pequena e insuficiente. (MARX, 2008, p.198-199). introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico desequilíbrio entre os humanos, a busca da essência fenomenológica da realidade e o desvelamento do onthos do modo capitalista de produção constituem o foco epistemológico e metodológico do materialismo histórico elaborado por Marx e Engels. Contudo, Karl Marx não é o primeiro filósofo da corrente de pensamento materialista. Na Antiguidade Clássica Grega, a filosofia já afirmava a materialidade da realidade percebida pelos indivíduos. As primeiras especulações humanas estavam relacionadas à natureza das coisas. Conforme Abrão (2004), os primeiros filósofos percebiam a compreensão do mundo e da realidade não mais como uma construção mítica. As especulações filosóficas se manifestavam na seguinte linha reflexiva: [...] Diante do espetáculo cotidiano da natureza, o homem manifesta sentimentos variados – medo, resignação, incompreensão, admiração e perplexidade. E são precisamente esses sentimentos que acabam por levá-los à filosofia. O espanto inicial traduz-se em perguntas intrigantes: o que é essa natureza, que apresenta tantas variações? Ela possui uma ordem ou é um caos sem nexo? Em suma o que é physis? A palavra grega physis pode ser traduzida por natureza. Mas seu significado é mais amplo. Refere-se também à realidade, não aquela pronta e acabada, mas a que se encontra em movimento e transformação, a que nasce e se desenvolve. (ABRÃO, 2004, p. 24). Podemos depreender que os primeiros filósofos já se preocupavam com as questões ligadas a natureza das coisas e das interações que os indivíduos elaboravam. Em suas proposições não separavam a relação que os seres humanos construíam com a natureza e com os outros membros da coletividade. A natureza e as coisas nela inseridas possuíam sentidos dados pelos homens nas suas atividades do cotidiano e na relação de transformação dessa natureza em proveito do próprio desenvolvimento humano. Cristaliza-se, assim, a não dissociação entre a realidade da matéria constitutiva da natureza, a interação centrada no trabalho humano e a construção da cultura. Outra contribuição fundamental ao pensamento filosófico elaborado por Marx está articulada a compreensão de movimento preconizado pelo filósofo Heráclito de Éfeso (540-480 A.C.). Este atribui ao movimento o fundamento da realidade que está em constante transformação. 35 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Para ele, o mundo explica-se não apesar das mudanças de seus aspectos, muitas vezes contraditórios, mas exatamente por causa dessas mudanças e contradições. Por isso, em um de seus fragmentos diz: “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei”. Em outras palavras, todas as coisas opõem-se umas às outras, e desta tensão resulta a unidade do mundo. (ABRÃO, 2004, p.31). A realidade em movimento, a transformação permanente do real, a contradição como força propulsora do movimento, a oposição e a tensão como integrantes dos processos de unidade são sínteses de Heráclito, retomadas pela concepção dialética transformada por Marx em ciência das relações. Essa oposição, esse combate, é uma guerra, e não como pretendia Anaximandro, o equilíbrio das forças iguais. Tampouco é a harmonia dos contrários assegurada, como entender dos pitagóricos, pela justa medida imposta por um ente supremo. Para Heráclito, a harmonia nasce da própria oposição: “O divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões contrárias como de arco e lira”. (ABRÃO, 2004, p. 31). A dialética marxiana se relaciona, em boa parte, com as contribuições de Heráclito. Atribui-se a ele a alegoria de que não é possível banhar-se no mesmo rio duas vezes, pois na segunda vez o rio não será o mesmo e a pessoa também não será mais a mesma. A filosofia marxista se fundamenta em dois princípios: a relação entre a materialidade inerente à natureza e à existência humana e os processos de movimento que se desenvolvem na história da humanidade. Marx articula a explicação das estruturas sociais e do progresso humano em duas dimensões imbricadas, ou seja, a relação nos processos de interação dos indivíduos com a natureza e com os outros sujeitos sociais, isto é, a sociedade, e o próprio processo dialético de transformação destas relações – naturais e sociais – que se dão pelo movimento, pela oposição, pelas contradições inerentes ao desenvolvimento humano. Mandel (2015) expressa a dialética como “tudo muda, tudo está em perpétuo movimento”. Este movimento não é somente nas “coisas” inanimadas da natureza. É também presente nas relações sociais e de produção. Evidencia, dessa maneira, o caráter de transformação 36 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico inerente ao processo de desenvolvimento histórico das sociedades. Portanto, a dialética (lógica do movimento) estuda as leis dos movimentos e as formas que este movimento adota. IDEALISMO A filosofia grega após construir especulações fundamentadas na natureza e nas interações humanas elabora outra concepção crucial que traz à tona a centralidade do ser humano: o antropocentrismo. A tríade de filósofos que representam esta concepção é constituída por Sócrates, Platão e Aristóteles. Nesse período socrático ou antropológico, segundo Marilena Chauí (2005, p. 40) ocorre uma intensa e profícua relação entre a prática da democracia e o desenvolvimento e florescimento do pensamento filosófico centrado no homem. Entretanto, devemos destacar que na Antiguidade Clássica, era somente considerado cidadão da pólis, onde se fazia democracia, o homem nascido em Atenas, filho de pai e mãe atenienses, maior de dezoito anos e que possuísse propriedade fundiária. A filosofia socrática põe o homem no centro do mundo. Deixa de lado as explicações no plano mítico. Ultrapassa os problemas restritos à natureza e suas explicações, e posiciona o humano como interlocutor de seu lugar no mundo e das relações que elabora neste novo contexto de compreensão da realidade. Nessa corrente filosófica, o que interessa é o homem e suas ações. Tais ações estão relacionadas ao exercício da cidadania e devem objetivar a felicidade humana alicerçada na virtude. Contudo, para Platão, em específico, existe o mundo das ideias e o mundo das aparências. O mundo das ideias é a expressão da perfeição e está intimamente relacionado à depuração que a razão realiza sobre o mundo das aparências. O mundo das aparências é uma cópia imperfeita do mundo das ideias. A filosofia platônica, bem como a socrática, procura a essência das coisas. Segundo Chauí: [...] Aquilo que uma coisa, uma ideia, um valor é realmente em si mesmo chama-se essência. Sócrates procurava a essência real e verdadeira da coisa, da ideia, do valor. Como a essência não é dada pela percepção sensorial e sim encontrada pelo trabalho do pensamento, procurá-la é procurar o que o pen- 37 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO samento conhece da realidade e da verdade de uma coisa, de uma ideia, de um valor. Isso que o pensamento conhece da essência chama-se conceito. Sócrates procurava o conceito, e não a mera opinião que temos de nós mesmos, das coisas, das ideias e dos valores. (CHAUÍ, 2005, p. 42, grifo nosso). Prossegue a autora definindo as características e diferenças preconizadas por Sócrates e Platão em relação à opinião (doxa) e o conceito partindo do seguinte questionamento: Qual a diferença entre uma opinião e um conceito? A opinião varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de época para época. É instável, mutável, depende de cada um, de seus gostos e preferências. O conceito, ao contrário, é uma verdade intemporal, universal e necessária que o pensamento descobre, mostrando que é a essência universal, intemporal e necessária de alguma coisa. (CHAUI, 2005, p. 42). Nesse caso, Sócrates e Platão colocam o real, o verdadeiro e o concreto no plano das ideias. Para exemplificar, podemos citar a alegoria do “Mito da Caverna”. Nesta narrativa, Platão deixa clara a sua concepção de que a realidade apreendida pelos sentidos é permeada de imperfeições e somente a depuração fundamentada no pensamento racional constrói a possibilidade de compreensão do fenômeno em sua complexidade. Portanto, existem dois mundos: o mundo das percepções apreendidas pelos sentidos humanos e o mundo das ideias elaborado pelo pensamento humano. O mundo real e concreto é o mundo das ideias. O mundo vivenciado pelos homens é o mundo das aparências e não reflete completamente a realidade. Aqui, como veremos, é o ponto substantivo ultrapassado por Marx em sua concepção filosófica. Para Marx, a realidade não é um mundo de imperfeições no sentido de não acessá-la. Para Marx é justamente este mundo que proporciona a compreensão da realidade social vivenciada pelos seres humanos. A CONTRIbUIÇÃO MARXIANA: A DIALÉTICA INVERTIDA DE HEGEL Hegel é o filósofo predecessor de Marx que fornece importantes elementos à filosofia contemporânea. Para Hegel, a filosofia não 38 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico está dissociada da história dos seres humanos. A filosofia é fruto dos processos de desenvolvimento humano desde os primórdios da construção da hominização até a organização complexa evidenciada nas chamadas grandes civilizações. Hegel retoma a análise centrada na dialética. Como vimos anteriormente, o processo dialético é fundamentado no incessante movimento das coisas. Nicola Abbagnano apresenta a dialética da seguinte maneira: Esse termo, que deriva de diálogo, não foi empregado, na história da filosofia, com significado unívoco, que possa ser determinado e esclarecido uma vez por todas; recebeu significados diferentes com diversas inter-relações, não sendo redutíveis uns aos outros ou a um significado comum. Todavia é possível distinguir quatro significados fundamentais. (ABBAGNANO, 2014, p. 315). Não vamos problematizar as quatro possibilidades interpretativas do conceito. Entretanto, devemos citá-las para que possamos perceber, mesmo que rapidamente, as suas concepções evidenciando a articulação da concepção de Marx a partir dos escritos de Hegel. Segundo Abbagnano são concebidas da seguinte maneira: 1º, D. (Dialética) como método de divisão, para Platão, a Dialética é uma técnica particular da investigação conjunta, da colaboração de dois ou mais sujeitos, tomando o procedimento socrático de perguntar e responder, é uma obra de homens que “vivem juntamente”; 2º, D. como lógica provável, para Aristóteles, expõe a Dialética como procedimento racional não demonstrativo; parte de premissas prováveis, o que parece aceitável a todos; 3º, D. como lógica, na perspectiva dos estóicos, a dialética é vista como lógica em geral, a parte que não é retórica, mas a ciência da “discussão correta” com perguntas e respostas. (ABBAGNANO, 2014, p. 315-317) 4º D. como síntese dos opostos, no idealismo romântico, em Hegel, nas palavras de Abbagnano: Seu princípio foi apresentado pela primeira vez por Fichte em Doutrina da ciência, em 1794, como “síntese dos opostos por meio da determinação recíproca” [...]. Mas para Hegel a D. é “a própria natureza do pensamento” (Enc., § 11), visto ser a resolução das contradições em que se enreda a realidade finita, que como tal é objeto do intelecto. A D. é “a resolução imanente na qual a unilateralidade e a limitação das determinações intelectuais se expres- 39 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO sam como são, ou seja, como sua negação. Todo finito tem a característica de suprimir-se a si mesmo. A D. constitui, pois, a alma do progresso científico e é o único princípio através do qual a conexão imanente a necessidade entram no conteúdo da ciência; nela também está, sobretudo, a elevação verdadeira e não extrínseca acima do finito” (ibid., § 81) [...]. (idem, p. 317-318). Hegel percebeu que a dialética como instrumento de compreensão da realidade já estava inserida no pensamento de Heráclito e Proclo na Antiguidade Clássica Grega. Na seqüência, Abbagnano afirma que a dialética consiste, primeiramente, na exposição de um conceito “abstrato e limitado”, de onde se extrai, secundariamente, na passagem para o seu oposto, algo “finito”. Em terceiro, a partir da síntese das duas determinações anteriores, preserva “o que há de afirmativo na sua solução e na sua transposição”. Hegel nomeia estes três momentos como intelectual, dialético e especulativo ou positivo racional, respectivamente. (ABBAGNANO, 2014, p. 318). Mas a D. não é só o segundo desses movimentos, especialmente em seu resultado positivo e em sua realidade substancial. De fato, pela identidade entre racional e real, a D. é não só a lei do pensamento, mas a lei da realidade, e seus resultados não são conceitos puros ou abstratos, mas “pensamentos concretos”, ou seja, realidade propriamente ditas, necessárias, determinações ou categorias eternas. Toda a realidade move-se dialeticamente e, portanto, a filosofia hegeliana vê em toda parte tríades de teses, antíteses e sínteses, nas quais a antítese representa a “negação”, “o oposto” ou “outro” da tese, e a síntese constitui a unidade e, ao mesmo tempo a certificação de ambas [...]. (idem). Marx rejeita a dialética percebida a partir da concepção idealista, ou seja, de que haja um universo paralelo em que o mundo das ideias seja a expressão da perfeição, e o mundo real em que os indivíduos estão inseridos seja mera cópia distorcida da realidade. Marx parte do princípio de Hegel no qual a transformação das sociedades humanas dá-se ao longo da história. No entanto, Hegel concebia as sociedades como cópias imperfeitas do mundo das ideias. Marx demonstra que a assertiva de Hegel está correta no sentido de utilizar a dialética como método de compreensão da realidade. Porém, evidencia que Hegel inverteu o processo. Compreendeu-o de maneira inversa, de cabeça para baixo. 40 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico No prefácio da segunda edição de “O Capital”, Marx faz a crítica ao idealismo de Hegel, o que ele chama de mistificação da dialética: Para Hegel o processo de pensamento – que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de ideia – é o criador do real, e o real é apenas a sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado. (MARX, [s.d.], p. 16). Desta maneira, o filósofo da dialética do concreto, destaca que não existe um mundo ideal no plano das ideias. O que ocorre é a interação dos seres humanos na concreticidade da realidade vivenciada. Os indivíduos concebem o mundo conforme o processo dialético de transformação da realidade vivida. O desenvolvimento humano ao longo da história é a chave para a compreensão da realidade presente. Marx explica sua relação com a obra de Hegel: “critiquei a dialética hegeliana, no que ela tem de mistificação, há quase trinta anos, quando estava em plena moda”. (MARX, 1982, p. 16). Mas afirmou ser discípulo de Hegel quando este era desprezado pelos meios cultos alemães. Referenciou-se nele para produzir o primeiro volume de “O Capital”. E, completa, afirmando sua convicção teórica: Confessei-me, então, abertamente discípulo daquele grande pensador, e no capítulo sobre teoria do valor, joguei várias vezes, com seus modos de expressão peculiares. A mistificação por que passa a dialética nas mãos de Hegel não o impediu de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional dentro do indivíduo místico. (MARX, 1982, p. 16-17). Marx demonstra reconhecimento ao trabalho elaborado por Hegel. A posição de que a realidade não se consolida a partir das ideias inatas que os seres humanos possuem das coisas fica clara em uma passagem de “Para a Crítica da Economia Política”: O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias 41 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. (MARX, 1985, p. 129-130). A realidade material corresponde ao desenvolvimento das forças produtivas em determinado momento histórico, quando a forma correspondente de apropriação e distribuição da riqueza constitui relações de poder e engendram os elementos materiais, espirituais e simbólicos que orientam as relações sociais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (MARX, 1985, p.129-130). No campo filosófico esta é a pedra fundamental da compreensão da realidade. Marx, utilizando o método dialético, demonstra as profundas mudanças sociais ocorridas na organização produtiva das sociedades, bem como na construção de sentidos e significados dados pelos humanos a esta organização. Ele coloca o homem na história como protagonista do seu próprio desenvolvimento e não como mero receptor de dádivas externas. Os seres humanos deixam de ser meros “produtos da história” e passam a ser o resultado dos movimentos históricos desenvolvidos ao longo do processo civilizatório e, ao mesmo tempo, protagonistas deste. Não se pode confundir a obra de Marx com a leitura dogmática e empobrecida produzida por uma determinada ortodoxia, simplificadora do marxismo para ajustá-lo a objetivos políticos de curto prazo. Ao fazer a análise do capitalismo e suas formas de aniquilamento do indivíduo, Marx resgatou também a infinita capacidade do ser humano de mudar as relações existentes, de transformar e recriar o mundo, criando cultura ao produzir sua existência em relação dialética com a natureza, onde “tudo que é produzido pelos humanos pode ser transformado pelos humanos”. Assim, a complexidade do conhecimento, do humano como um ser 42 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico integral, a liberdade e a justiça são colocadas como possibilidades de realização humana, historicamente construídas. A complexidade da realidade e a dimensão subjetiva da relação do sujeito que conhece e a realidade como objeto de conhecimento expressa-se na filosofia da práxis. Na dialética do real, teoria e prática interpenetram-se, constituindo-se no jogo do confronto pensamento e realidade. A história constitui o movimento da prática, a teoria em confronto com o real, interfere nele, mas transforma-se com ele. No entanto, esse não é um movimento mecânico, previsível, pré-determinado, pois o “homem individual” e o “homem coletivo” conformam-se na práxis. Todavia, o indivíduo singular é essência do coletivo. Na sua leitura de Marx, Gramsci afirma: “daí ser possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele [homem] é o ponto central”. (GRAMSCI, 1981, p. 40). Para Marx, a teoria, as concepções e ideias não existem a priori, mas são o resultado da práxis. Daí a crítica ao idealismo da filosofia hegeliana. Para exemplificar as diferenças centrais entre idealismo e materialismo histórico, podemos colocar como singelo exemplo o seguinte diálogo entre um filósofo idealista e outro marxista. Eis o diálogo: Em determinada discussão filosófica é realizado o seguinte encadeamento de ideias: – Estás vendo aquela porta? Pergunta o filósofo idealista. – Sim, estou vendo. Responde o filósofo marxista. – Em que lugar ela se encontrava antes de ser uma porta? Interpela o idealista. – Estava na madeira. Fala o materialista. – E onde estava antes de ser uma madeira? Indaga o idealista. – Era uma árvore. Responde o materialista. – E antes de ser uma árvore, o que era? Questiona o idealista. – Era um fruto. Continua respondendo o materialista. – E antes de ser fruto o que era? Perguntou mais uma vez o idealista. – Era a semente que floresceu e deu origem a árvore. Disse o materialista. 43 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Então, o idealista conclui: – A porta estava como potência em todos esses elementos da natureza. Na madeira, na árvore, no fruto e na semente. Porém, como porta estava somente na ideia do homem. Estava inata no mundo das ideias. Ao que respondeu o materialista: – Perfeito. Estava na “ideia do Homem”. Mas somente se manifestou como ato de criação quando o homem necessitou transformar a realidade em benefício próprio. Somente quando o homem necessitou fechar a “porta” da “caverna” é que ele elaborou o conceito de porta. Aqui, deve-se destacar que a concepção marxista de compreensão da realidade não exclui do processo a atividade: o trabalho humano. Pelo contrário, é a necessidade de transformar a realidade vivida que faz com que os seres humanos desenvolvam instrumentos tecnológicos e, acima tudo, conceitos que expressem a realidade. Não existe dicotomia no nível epistemológico de apropriação da realidade, na articulação da materialidade expressada na natureza e da representação desta realidade na consciência humana. É esta interação entre homem e natureza e suas organizações e representações sociais que realmente perfazem a realidade concreta. A crítica que se realiza ao idealismo é a instrumentalização das ideias como representação do real desprovendo, desta maneira, as articulações dos interesses dos indivíduos e de seus grupos sociais. Alguns intérpretes do idealismo e, em particular, os teóricos do liberalismo, reduzem a existência humana a uma realidade dada a priori. Realidade esta que não comporta o movimento histórico do desenvolvimento humano, e em que as posições sociais são estáticas e não contemplam a possibilidade de mudança. Devemos destacar que na contemporaneidade, procurou-se associar o paradigma marxista a completa inoperância da vontade humana em seu destino. Concebeu-se erroneamente a interpretação distorcida de que o Materialismo Histórico e seu Método Dialético reduzem a condição humana: a coisificação de existência humana. Contudo, Marx é muito claro na crítica às visões mecanicistas e deterministas. Em uma de suas teses sobre Feuerbach afirma que: 44 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico A teoria materialista de que os homens são produto de suas circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produtos de circunstâncias diferentes e de educação modificada, esquecem que as circunstâncias são modificadas precisamente pelo homem e que o próprio educador precisa ser educado. (MARX e ENGELS, [s.d.], p. 208). Na verdade, o marxismo como paradigma científico não inibe, mas ao contrário, pressupõe um ser humano livre, com capacidade de, pelo conhecimento, transformar e romper com as formas de dominação socialmente construídas. A sua abordagem filosófica desce para a compreensão do modo de produção. Marx revela seu compromisso ao denunciar que a filosofia tradicional alemã preocupou-se, unicamente, em interpretar o mundo, mas agora é necessária uma filosofia para transformar o mundo capitalista e seus mecanismos de opressão. Na sua análise da realidade capitalista evidenciou os grilhões da exploração do trabalho – única “mercadoria” que sobrou para o trabalhador vender. À luz de suas concepções é possível perceber, hoje, na chamada sociedade contemporânea, que os seres humanos não vendem mais sua força de trabalho. Na atualidade, os seres humanos são a própria mercadoria a ser comprada. A coisificação é produto do modo de produção capitalista. Para corroborar esta afirmação podemos considerar que na sociedade atual, a produção de mercadorias, produtos e serviços tornaram-se tão dinâmicas e automatizadas, que a necessidade de circulação alcançou outro patamar, ou seja, a automatização elevou a níveis nunca antes vistos a produção material. Assim sendo, a necessidade de circulação de mercadorias e serviços se posicionou em uma nova dimensão em que os seres humanos não são mais somente os consumidores individualistas da produção capitalista. Eles passam a ser também o próprio produto capitalista. São reduzidos a consumidores e produtores e suas percepções tornam-se individualistas, imediatistas, mascarando a compreensão da dinâmica da produção, das relações de trabalho e de consumo. Na contemporaneidade, a exacerbação do individualismo, que objetiva o aumento do consumismo, é um dos eixos fundamentais do capitalismo, sendo levado ao extremo. A exploração do trabalho é alçada a níveis profundos. O processo de expropriação de mais valia 45 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO cresce acentuadamente. Os fenômenos tecnológicos se desenvolvem com uma rapidez extraordinária. Entretanto, o fruto deste desenvolvimento não é distribuído. No atual estágio da forma de reprodução do capital se trabalha mais tempo (produção de mais valia) e o retorno material é cada vez menor, em decorrência da extração de mais valia. A percepção da realidade torna-se cada vez menos compreendida. Conforme Marx sinalizou no “Manifesto Comunista” (1996), e tão bem destacou Marshall Berman (1986) na sua obra: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Marx e Engels (1996, p. 13) dizem que as forças do capital não podem se perpetuar sem revolucionar, transformando constantemente os seus instrumentos de produção e, consequentemente, as relações de produção e, na extensão, todas as relações da sociedade. Marx, em sua análise histórica do desenvolvimento do capitalismo aponta as possibilidades da ação humana na sua superação: Todas as relações firmes, sólidas com sua série de preconceitos e opiniões antigas e veneráveis, foram varridas, todas tornaram-se antiquadas antes que pudessem ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrada é profano, e o homem é, finalmente, compelido a enfrentar de modo sensato suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes. (MARX e ENGELS, 1996, p. 13-14). É certo que o modo capitalista de produção no século XXI não é mais o mesmo do contexto do século XIX, quando Marx produz sua obra. A ciência e as tecnologias contribuíram significativamente para absorver o trabalho humano no aparato técnico, dissimulando a apropriação do trabalho, virtualizando a inteligência humana, o que é expresso como conhecimento agregando valor à mercadoria. O instrumental teórico elaborado por Marx, atualizado com os teóricos que deram continuidade a sua contribuição, permite a inserção na realidade das relações capitalistas atuais, a compreensão da continuidade da exploração do trabalho e do uso dos recursos naturais na produção e na centralização da riqueza, acentuando progressivamente os problemas sociais e ambientais. Entretanto, na perspectiva marxiana, essas condições não são uma fatalidade histórica, algo que possa ser naturalizado, mas são condições criadas pelo ser humano que podem ser dialeticamente transformadas por ele. 46 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico MARX E O FIO CONDUTOR DA HISTóRIA: O TRAbALHO O fio condutor das análises realizadas por Marx e Engels é fundamentado nas relações de produção e de como se organiza o trabalho humano. No início do texto, de maneira sucinta, descrevemos as organizações humanas centradas na formatação do modelo produtivo pertinente a cada grande período histórico. Nesse processo, o trabalho é atividade inerente à condição humana. Todos os humanos ao longo de sua existência – história individual e coletiva – realizam interações com a natureza e com outros. Todos nós realizamos atividades de transformação da natureza em benefício próprio ou coletivo. O ato de interagir com a natureza e com outros homens, objetivando a melhoria individual e coletiva, não é um esforço que significa sacrifício, penalidade, desgaste físico e emocional. O trabalho não possui conotação negativa no seu ato intrínseco de realização humana O que causa estas mazelas é o fato dos humanos, no exercício do trabalho, serem explorados por outros humanos. Ao transpormos este fenômeno para os grupos sociais, temos a exploração de uma classe social sobre a outra. Na Antiguidade Clássica, havia a exploração da aristocracia sobre os escravos, no feudalismo, da nobreza aos servos e, na modernidade, do capitalista sobre o trabalho assalariado. A ação do trabalho se transformou em atividade fatídica, na qual o trabalhador não se enxerga como criador e possuidor do que produz. O trabalho torna-se uma atividade sem sentido e significado estando, portanto, somente a serviço da exploração e da concentração de riquezas, como analisou Marx (1982), na produção de mais valia e no acúmulo de capital. Imperiosamente o trabalho é um processo no qual participam o homem e a natureza, onde o primeiro age, impulsiona, regula e controla esse intercâmbio. O ser humano coloca em movimento “as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana”. (idem, p. 202). Ao atuar dessa forma sobre a natureza externa, transforma-a, potencializando mudanças em sua própria natureza. (idem). 47 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Neste processo interativo, o trabalho modifica a natureza, realizando mudanças no próprio homem, no seu modo de compreender o mundo. Tal processo possibilita, em movimento dialético, a reelaboração do vivenciado e do construído, em um processamento contínuo de transformação da natureza e da geração de sentidos e significados nesse processo criativo. No findar do processo de trabalho, o resultado já existia idealmente na imaginação do trabalhador: há um porque teleológico anterior à operação práxica transformadora da realidade. [O homem] não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente na mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais. (MARX, 1982, p. 202). Esta concepção demonstra que as críticas a sua análise filosófica e aos desdobramentos metodológicos são em muitos aspectos empobrecidas de fundamentação. A primeira crítica que se faz é que na formulação socialista de Marx o homem torna-se um objeto fruto da mecanização, da produção e do cerceamento da liberdade individual. Contudo, Marx concebe uma sociedade onde o homem se realiza no trabalho – não no trabalho centrado na exploração –, de transformação da natureza em um ato de extrema criatividade em processo ininterrupto. Há neste movimento um constante processo dialético de mudança tanto no plano da produção material como nas representações significativas que podem tensionar na transformação societária. O poder do marxismo continua intacto, ao contrário de muitas ideias políticas de Marx que obedeciam, mais que à análise, aos sonhos de igualdade. A última parte da concepção expressa por Marx deixa claro que a crítica feita a ele não se substantiva no sentido de suas concepções levarem a coisificação do homem como mera engrenagem social. Nela o autor deixa evidente a dimensão da fruição obtida pelo homem no ato de realizar o seu trabalho, ao 48 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico mesmo tempo em que encaminha esta fruição, e os sentimentos de realização do homem ao plano de sua espiritualidade. Dessa forma, a individualidade é elemento fundante na condição humana. Entretanto, esta individualidade não pode ser confundida com o individualismo extremo utilizado como instrumento indutivo do capitalismo, no sentido de transformar o homem em mercadoria e consumidor subalterno do próprio produto do seu trabalho. Com isso, podemos afirmar que as concepções que norteiam os princípios marxistas podem evidentemente caminhar em direção da construção de um modelo de humanismo centrado na autonomia e emancipação dos sujeitos, social e individual. Nesse sentido, mesmo não sendo análises propostas por Marx em seus escritos, podemos depreender que questões atuais como as do feminismo, de gênero, de etnia, de orientação sexual, da inclusão de portadores de necessidades especiais e outros excluídos pelo capital, não podem ser compreendidas, nem tratadas na sua integralidade sem a matriz humanista marxiana, pois elas demandam uma compreensão científica do funcionamento do capitalismo em sua dimensão ontológica. Esses grupos sociais somente podem ter voz e vez ultrapassando as barreiras culturais e produtivas do sistema capitalista. A expressão amplamente discutida de “socialismo ou barbárie” parece cada vez mais próxima de nossa realidade. Conseguimos produzir alimentos em maior quantidade que o consumo, mas morrem milhares de pessoas de fome todo dia no mundo. Produzimos mais e o tempo de trabalho cada vez é maior proporcionalmente. Trabalhamos a semana toda e levamos trabalho no fim de semana para casa. Possuímos redes de comunicação extremamente rápidas, porém, estamos cada vez mais distantes da realidade. Vivemos mais e nossa qualidade de vida imaterial é cada vez menor. Esses antagonismos do capitalismo são expressos no contexto atual por István Mészáros em sua obra “O Poder da Ideologia”. Nela, o autor problematiza a assertiva de Habermas, segundo a qual Marx possuiria um viés produtivista. Mészáros (2004) destaca que um aspecto arriscado na argumentação de Habermas é o fato de absolutizar a “utopia procedimental” como exclusiva arena admissível da crítica social. Nas palavras de Habermas o “controle sobre a natureza externa” seria “em si mesmo libertador”. 49 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Entretanto, a verdade é que Marx originou a ideia de “socialismo ou barbárie” opondo-se da maneira mais nítida possível ao simplista “viés produtivista” a ele atribuído. Isso foi continuado por Engels e Rosa Luxemburgo, que diagnosticaram, no mesmo espírito, a relação entre os desenvolvimentos produtivos e as tendências destrutivas do “avanço” capitalista. (MÉSZÀROS, 2004, p. 90). A redução da filosofia marxista a mero sistema produtivo com controle social em que as liberdades individuais são a tônica das organizações societárias se tornou uma leitura rasa do Materialismo Histórico. A redução das análises de Marx às experiências do século XX é uma simplificação das complexidades da sociedade humana. Neste aspecto não podemos negar a finalidade ideológica de tal abordagem. Se o trabalho é a essência da atividade humana, esta atividade não se configura negativa na existência humana. Contudo, o direito ao trabalho passa a ser negado a uma significativa parcela da humanidade. Na realidade, até na parte mais privilegiada do sistema do capital o desemprego em massa, a mais grave das doenças sociais, assumiu proporções crônicas, sem que a tendência a piorar tenha fim à vista. Somente no capitalismo avançado da Europa Ocidental existem bem mais que vinte milhões de desempregados; há pelo menos mais uns dezesseis milhões em outros “países de capitalismo avançado”. Todos esses números ameaçadores estão registrados na forma de cifras oficiais imensamente subestimadas (ou cinicamente falsificadas). (MÉSZÁROS, 2011, p. 225). Esta afirmativa do cientista mostra a dimensão de um dos paradoxos do capitalismo. Se o trabalho segundo Marx é uma das formas de realização humana no plano material e espiritual, nas crises do capitalismo o emprego é a primeira presa do capital. Como o trabalho produtivo é exercido pelos seres humanos, estes são sempre as primeiras vítimas do capitalismo. O capitalismo e suas forças produtivas necessitam de legitimação. Ela advém da eficiência e da certeza de que o sistema resolverá suas contradições, que devem ser mascaradas no plano ideológico. Na visão dos ideólogos da classe dominante, isto é absolutamente inconcebível. Sua viabilidade incontestada e incontestável – por ser um sistema “tecno-burocrático”, supremamente eficiente – legitima automaticamente o modo de 50 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico produção e o controle capitalista para muito além de seus limites históricos. O sistema é seguro – prossegue a fábula autocomplacente – porque a “empresa moderna” libera os benefícios “em abundância sempre crescente”. (MÉSZÁROS, 2004, p. 515). Mészáros descortina, assim como fez Marx, o antagonismo e o paradoxo que o capitalismo possui em sua essência. A concepção de não distribuição das riquezas produzidas pelo trabalho humano, mas sim a sua acumulação. Demonstra o processo de exclusão umbilicalmente ligado à acumulação de capital e a produção de mais valia. Desnuda a ideologia da igualdade social em um sistema econômico que tem em sua gênese, a acumulação classista das riquezas em prol do benefício limitado de um grupo social que se sustenta no autoritarismo e não na autonomia dos indivíduos. Esse sistema nega a humanidade quando hierarquiza a condição humana e incentiva a exploração do homem pelo homem. (MÉSZÁROS, 2004, p. 515). Slavoj Zizek na sua obra intitulada “Em defesa das causas perdidas” discute as questões atuais da sociedade humana. Expõe análises das condições da contemporaneidade e procura desvelar aspectos das experiências do socialismo real. Na introdução ele faz um alerta que irá nortear toda a sua discussão: Este livro está despudoradamente comprometido com o ponto de vista “messiânico” da luta pela emancipação universal. Não admira, portanto, que, para os partidários da doxa “pós-moderna, a lista de Causas Perdidas defendidas aqui deva parecer um espetáculo de horrores com seus piores pesadelos, um depósito de fantasmas do passado a cujo exorcismo dedicaram suas energias [...]. (ZIZEK, 2011, p. 24). Entre estes exorcismos estão, sem dúvida, as experiências do socialismo real, mas acima de tudo a análise de que o capitalismo não é o fim da história, não é a última possibilidade humana. O marxismo, como ciência, tem uma contribuição atual e indispensável para uma compreensão crítica do capitalismo e para visualizar as possibilidades de sua superação. O pensamento filosófico elaborado por Marx e Engels faz a crítica às estruturas fundantes do capitalismo. Evidencia suas contra51 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO dições, suas possibilidades e limitações históricas. Segundo Mandel, o processo da sociedade sem classes divide-se em três etapas. A etapa de transição do capitalismo para o socialismo; a etapa do socialismo que se caracteriza pela sociedade sem classes e o comunismo, que se caracteriza pela aplicação integral do princípio “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” pela supressão da divisão social do trabalho, pela supressão hierárquica entre trabalho manual e intelectual e pelo desaparecimento da separação entre cidade e o campo. (MANDEL, 2015, p. 140). [O] ideal comunista […] constitui a única solução para os cadentes problemas com que a humanidade está confrontada. Consagrar a vida à sua realização, é mostrar-se digno da inteligência e da generosidade dos melhores filhos da nossa espécie, dos mais intrépidos pensadores, dos mais corajosos combatentes pela Emancipação do Trabalho, ontem como hoje. (MANDEL, 2015, p. 141). Para além de suas abordagens científicas do real, cuja abstração dá-se a partir do materialismo histórico, desnudando as relações de dominação no capitalismo, Marx legou o ideal igualitário do socialismo científico. Segundo Hobsbawm (2007b), o poder do marxismo enquanto ciência continua intacto. Contudo a sua utopia comunista, acima enfatizada por Mandel, apesar de sua generosidade, obedecia menos a suas análises científicas e mais aos seus sonhos igualitários. Sua elaboração rigorosa do conhecimento e da compreensão da sociedade humana é ainda uma das principais vertentes dos ideais de justiça, inclusão e igualdade. Nenhuma elaboração científica depositou uma crença tão grande na capacidade do ser humano em transformar as suas condições de existência, afastando todo tipo de opressão e discriminação. Nenhuma corrente de pensamento contemporâneo, que se alinha a projetos de promoção da pessoa humana, poderá ignorar a corrente marxiana, pois desta emana uma potência libertária inédita, alicerçada na crença da capacidade humana de transformar e produzir a sua emancipação. CONSIDERAÇõES FINAIS O solidarismo e o coletivo em oposição ao individualismo produzido pelo capital são as possibilidades futuras de sobrevivência da 52 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico humanidade e de seu planeta. Entretanto, as experiências nesta direção, ocorridas no século XX, não se constituíram em referências. Tanto o chamado socialismo real, como a social democracia, foram experiências empobrecedoras da riqueza epistemológica e humanizante do marxismo. Nestes casos, a versão política do marxismo pouco contribuiu para desnudar a barbárie capitalista. Ambas as experiências, com forma, conteúdo e amplitudes diferentes, adotaram práticas capitalistas deformadoras, com altos custos para os ideais libertários. Na concepção libertária do ser humano de Marx, está implícita a resistência da humanidade a todas as formas de opressão, aos avanços do capitalismo selvagem atual – que não mede esforços na submissão exaustiva da natureza –, que beira o caos ecológico, sanitário, econômico e cultural, migrando na direção contrária do que é concebido como sistema sustentável de relação com a natureza. Atualizar o arsenal teórico marxista com base na realidade vigente, no exame da prática, é crucial para obter respostas concretas aos desafios do presente, de ajudar a carregar o fardo do tempo histórico, que cai com força absoluta sobre as costas dos trabalhadores e de todos os excluídos e discriminados. A libertação e emancipação só são possíveis através do trabalho livre, solidário e associado a formas coletivas de organização social. O fio condutor da história é o trabalho do homem sobre a natureza social e física. Os avanços até agora acumulados só serão usufruídos com a superação do caráter hegemônico do metabolismo socioeconômico do capital. Marx e Engels (1996), em “O Manifesto Comunista”, destacam a possibilidade concreta do desenvolvimento social e produtivo que supere o modo de produção capitalista: A ação histórica irá conduzir à ação pessoal inventiva; condições de emancipação historicamente criadas conduzirão a condições fantásticas; e a organização de classe gradual e espontânea do proletariado conduzirá a uma organização da sociedade especialmente planejada por estes inventores. A História futura resolve-se, aos olhos deles, na propaganda e na realização prática de seus planos sociais. (MARX e ENGELS, 1996, p. 59). Os desdobramentos das concepções marxianas sobre o conhecimento do real e a análise do capitalismo, apesar dos seus críticos, 53 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO não foram superados neste início do século. Continuam sendo possibilidades epistemológicas e metodológicas para a produção de conhecimento que desvele o caráter das relações sociais, econômicas e culturais que caracterizam as formas de produção e apropriação da riqueza no século XXI. Segundo Eric Hobsbawm (2007a), os processos de expansão do capitalismo trouxeram inúmeros contextos de desumanidade que caracterizam o modo de produção vigente. Os processos de globalização, de democracia e as expressões correntes do terrorismo não fogem a esfera de influência da reprodução do capital e da exploração do trabalho que ocorrem em escala planetária. Desta maneira, nestes tempos nebulosos de perda da humanidade e de processos coerentes que levem ao desenvolvimento humano, a filosofia e as análises de Marx e Engels, e seus continuadores, tornam-se ferramentas fundamentais para um conhecimento crítico e transformador desta realidade complexa. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 6 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. ABRÃO, Bernadete Siqueira. História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2004. BERMAN, Marshall. tudo que é sólido desmancha no Ar: a aventura da modernidade. São Paulo, 1986. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 13 ed. São Paulo: Ática, 2005. ENGELS, Friedrich. A origem da Família, da Propriedade Privada e do estado. Rio de Janeiro: Alba, 1934. GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da história. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. HOBSBAWN, Eric. globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007a. ______. no século XIX, Marx previu a globalização. Entrevista. Entrevista publicada no Jornal EL País. Barcelona, 13 de novembro de 2007. 2007b. Disponível em: El País.com. Acesso em: 17 maio. 2016. 54 introdUção Ao PArAdigmA FilosÓFico mArXistA: PrincÍPios do mAteriAlismo histÓrico diAlÉtico MANDEL, Ernest. Introdução ao Marxismo. 2 ed. Porto Alegre: Renascença, 2015. MARX, Karl. Para a Crítica da economia Política. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Org: José Arthur Giannotti. 3 ed. São Paulo: abril Cultural, 1985. ______. o Capital: crítica da economia política. Livro primeiro Vol. I. 7 ed. São Paulo: Difel, 1982. ______. Miséria da Filosofia. São Paulo: Martin Claret, 2008. ______. Manuscritos Econômicos Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. o Manifesto Comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. MARX Karl; ENGELS, Friedrich. obras escolhidas. v. 3. São Paulo: Alfa Omega, [s.d.]. MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital: rumo a uma teoria de transição. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2011. ______. o Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004. ZIZEK, Slavoj. em defesa das Causas Perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011. 55 INTERDISCIPLINARIDADE: A EMERGÊNCIA DE UM PARADIGMA Jorge Luiz Ayres Gonzaga Jonas Tarcísio Reis INTRODUÇÃO Pensar um paradigma pressupõe idear algo que se padroniza e passa a ser adotado em larga escala. Um conjugado de realizações científicas que se dissemina amplamente por um determinado período histórico em campo científico específico, orientando a promoção investigativa, no seu decurso valorativo e método. É geralmente partilhado por um expressivo número de pesquisadores. É um modelo, uma forma específica – epistemologicamente pensando – de se conceber e inquirir o mundo cientificamente. É a formatação de um conjunto de procedimentos consagrado na forma de uma referência, de um princípio norteador, constituindo um marco epistemológico e científico. Assim é que concebemos o instituto da interdisciplinaridade. Este texto pondera a interdisciplinaridade como instrumento de compreensão e análise da realidade. Foi desenvolvido utilizando princípios da pesquisa bibliográfica. Privilegiou artigos, livros e ensaios científicos em torno da temática. As etapas percorridas foram: A) a leitura e a apreensão dos constructos basilares que giram em torno do tema; B) a elaboração da estrutura em subtemas, tomados como unidades de apresentação. Este conjunto de ideias pode auxiliar na construção de novas reflexões acerca do desafiador debate do paradigma da interdisciplinaridade, sem pretender esgotar o tema ou dar conta de todos os matizes científicos existentes na sua abordagem. Na atualidade, discute-se muito a contribuição da interdisciplinaridade para a compreensão da realidade. Assim, nos propomos a 57 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO refletir sobre o dar sentido ao real tomando a totalidade do objeto – compreendido em seu contexto – e, também, esta realidade a partir de parte da totalidade. Também procuramos reflexionar acerca dos contextos sociais em que a interdisciplinaridade se insere como instrumento de construção do conhecimento. A sua estruturação como paradigma de conhecimento se dá após uma série de avanços do ser e fazer científico do homem. Inicialmente, fazemos uma retomada dos principais paradigmas predecessores à interdisciplinaridade. Em primeiro lugar, lembramos brevemente a superação do pensamento medieval fundamentado na metafísica da relação direta entre o conhecimento e a vontade divina. Depois, a sobrelevação da concepção centrada nas ciências empíricas demandadas pela nova organização social capitalista. Também procuramos levantar reflexões sobre os conceitos de disciplinaridade, interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade como elementos na esfera metodológica e as implicações ontológicas enquanto mecanismos que possibilitam transformações no ser humano que, consequentemente, se exprimem nas relações materiais e sociais. CAMINHOS RUMO à INTERDISCIPLINARIDADE Os gregos buscaram – na Antiguidade Clássica – superar as explicações mitológicas, centralizadas em como se poderia esclarecer a construção do cosmos, ou seja, em uma cosmologia na explicação da formação do universo e, em particular da Terra, em que o homem1 está inserido. Estas especulações foram realizadas pelos filósofos denominados de pré-socráticos. Posteriormente, miram as reflexões filosóficas no homem, na forma como se situa no mundo. A esta concepção dá-se o nome de antropocentrismo e é fundamentada nas formulações preconizadas por Sócrates. (ABRÃO, 2004; REZENDE, 2005). Saiu do debate do princípio da formação da natureza, partindo para questionamentos sobre a finalidade última dos seres humanos; o que é felicidade; qual a relação entre o individual e o coletivo; entre os seres humanos e a natureza, com os problemas espirituais 1 58 Tem-se aqui a compreensão de ser humano como a dimensão do gênero feminino e masculino. Costumeiramente, em nossa literatura, é usual a denominação de “homem” abrangendo os dois gêneros. interdisciPlinAridAde: A emergÊnciA de Um PArAdigmA e o desconhecido. A partir desta nova perspectiva de percepção da realidade, os filósofos gregos elaboraram um sistema de construção do conhecimento da realidade ancorado na filosofia. No período posterior – denominado Idade Média – todo o conhecimento humano ocidental estava subordinado às concepções professadas pela Igreja Católica. Grande parte dele quando não alinhado aos dogmas católicos era considerado produto herético, subitamente desprezado. Com o advento da mudança de modo de produção do sistema feudal (característico da Idade Média) para o sistema emergente do capitalismo – perpassando, na transição, pelo Mercantilismo, Grandes Navegações, Renascimento, Humanismo e a Reforma Protestante –, a jovem ordem centrada na produção e venda de produtos fundamentou uma nova percepção e construção do conhecimento na Idade Moderna. A forma de produção capitalista passou a orientar e fundamentar a análise da realidade e a organização social. O sistema de manufatura e de produção em grande escala substituiu o modelo de subsistência (norteador do sistema feudal). O período regrado pela luz solar deu lugar à otimização de todo o tempo possível. O espaço rural cedeu ambiente ao da fábrica e o mais importante: a elaboração de todo o processo de produção característico do sistema artesanal concedeu lado à manufatura, à produção fragmentada dos produtos usados pelos indivíduos. Neste momento é que ocorre a ruptura fundamental. A elaboração do conhecimento passa a ser de maneira fracionada, orientada para o ganho na produção fabril e industrial sob a égide do aumento da produção e diminuição dos custos e dos preços de venda. Nesse contexto, exige-se a liberdade de produção e de laboração do conhecimento para o incremento da fabricação de mercadorias. O conhecimento e a ciência não seguem mais o tempo estático do período feudal. As mudanças devem ocorrer com celeridade. A produção de mercadorias não pode mais parar. O tempo não pode ser regido pela duração do brilho solar. Deve ser regrado na energia elétrica e no relógio moderno. A ciência se adapta ao modelo produtivo emergente e rapidamente hegemônico: o capitalismo. Todas as invenções tecnológicas se desenvolvem na perspectiva de acelerar 59 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO os processos produtivos. Deve-se conhecer em toda a especificidade possível o objeto. Todas as minúcias devem ser compreendidas. Surge o paradigma cartesiano. Nesse contexto, retomamos brevemente Descartes. A base de suas concepções, como qualquer processo de desenvolvimento histórico, está fundamentada no paradigma anterior que era o balizador das interpretações do mundo na Idade Média, ou seja, a necessidade do conhecimento estar articulado às questões de âmbito da teologia católica. Descartes procura ultrapassar questões metodológicas para elaborar a compreensão da realidade, isto é, do conhecimento de maneira objetiva e que possa ser comprovada de maneira inconteste. O paradigma elaborado a partir dos estudos de René Descartes, filósofo da Modernidade, pode ser sintetizado em quatros princípios. Seu método é descrito da seguinte maneira: primeiramente, acolher apenas como verdadeiro aquilo que se conhecesse como tal, evitando cuidadosamente a precipitação, com juízos claros sem a menor possibilidade de levantar dúvidas. Segundo, “o de dividir cada uma das dificuldades [...] em tantas parcelas quanto possíveis e necessárias fossem para melhor resolvê-las” (DESCARTES, 1983, p. 37-38). Em terceiro lugar, a condução do pensamento por ordem, desde os objetos mais “simples” até o conhecimento dos mais “compostos”, “e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns dos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais”, para ter certeza de nada omitir. (idem). Este método construiu um instrumento metodológico que contribuiu inexoravelmente para o desenvolvimento do conhecimento e, portanto, das ciências. O método cartesiano, mesmo possuindo o autor à expressão da religiosidade formal, acaba por retirar da Igreja Católica e deposita nas mãos dos homens a possibilidade de construção do conhecimento o mais próximo da realidade e com explicações plausíveis e entendíveis à parcela significativa da sociedade. Aloca a metodologia utilizada em consonância com a linguagem matemática, que em sua essência é regida por leis mais estáveis e demonstráveis. É neste contexto que se estabelece a prevalência das disciplinas2 como conhecemos hoje no centro das elaborações científicas. A disci2 60 Na raiz latina, disciplina é sinônimo de instrução, ensino, ciência. interdisciPlinAridAde: A emergÊnciA de Um PArAdigmA plinarização proporcionou a observação dos objetos em suas especificidades. Articulada à nova modelagem da organização produtiva, assumiu a hegemonia no sistema epistemológico. Tratando da disciplinarização do conhecimento científico, Léo Peixoto Rodrigues afirma que: A disciplinarização, na modernidade, teve início com a primeira e grande diferenciação entre conhecimento filosófico e conhecimento científico, a partir do século XVIII, com o gradativo aumento dos trabalhos experimentais e empíricos. A ciência, entendida como ciência da natureza, somente solidificou sua autonomia a partir do século XIX, período em que uma rica e sinuosa história do conhecimento, quer do ponto de vista epistemológico, quer do ponto de vista institucional, produziu um vigoroso processo de diferenciação (disciplinarização) do conhecimento. (RODRIGUES, 2007, p. 23). Rodrigues (2007, p. 27) prossegue sua análise relacionando a disciplinarização não somente às questões epistemológicas e metodológicas. Diz ele que a autonomia das variadas disciplinas que foram emergindo ao longo da história propiciou, em fins do século XIX e na primeira metade do século XX, inúmeras transformações na estrutura social, especialmente às vinculadas ao mundo do trabalho. Isso deu raiz ao fenômeno chamado hiperespecialização. Desta maneira, fica evidente – e não poderia ser diferente – a importância da disciplinarização, que além de se constituir em um processo epistemológico e metodológico da construção do conhecimento, foi fator de alavancagem do capitalismo industrial em prol do avanço dos processos produtivos. É neste momento que a disciplina deixa de lado sua concepção ontológica no sentido de construir processos de transformação humana, para se solidificar em metodologia ao serviço do metabolismo capitalista. A hiperespecialização do conhecimento científico deu origem às disciplinas tradicionais, mas não ocorreu sozinha. Sua dinâmica de desenvolvimento também esteve ligada a elaborações epistemológicas e aspectos político-institucionais. (RODRIGUES, 2007, p. 34). A aplicação da abordagem indutivista-dedutivista, que tem permeado toda ciência moderna, calcada muito mais numa episteme de análise (quebra, repartição) do que numa episteme de sínteses (unificação, organização, composição), 61 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO levou o conhecimento disciplinar a confrontar-se com as próprias fronteiras de cada disciplina, isto é, fronteiras inter (do latim: entre, no meio de, junto a) disciplinares. Eis aí uma primeira aproximação do sentido etimológico do termo “interdisciplinar” [...]. (RODRIGUES, 2007, p. 34). Podemos afirmar que a própria necessidade de conhecer a totalidade do objeto é a condição essencial para sua compreensão em sua utilidade e finalidade social. A particularidade isolada não constrói sentido nem significado aos seres humanos, porque não se declara na realidade concreta vivida. A fragmentação, a especificação que é uma parte importante dos processos inerentes à construção do conhecimento não se basta em si mesma. Precisa necessariamente ser sintetizada como conhecimento significativo pelo sujeito cognoscente. Vejamos, para esclarecer melhor, um exemplo. Peguemos um dos ícones nas sociedades da indústria capitalista moderna: o veículo automotivo de passeio. Quando olhamos um veículo, o vemos em sua totalidade estética, como se apresenta aos nossos sentidos (no caso, a visão). Neste momento, inicia-se o processo de análise do objeto. A partir do nosso conhecimento elaborado ao longo de nossa existência, o decompomos (o automóvel) e percebemos a cor, as formas, a estética, o tamanho, a largura, a altura, enfim, todas as características que possui articuladas àquelas que já conhecemos do conceito de veículo. Obtemos informação sobre a marca, o motor, a potência, o ano de fabricação, o conforto interno, as facilidades tecnológicas embutidas no seu processo de fabricação, etc. Este objeto específico que é apresentado ao indivíduo está no plano externo ao sujeito, porém, quando é foco de análise, surge uma síntese que é realizada internamente pelo sujeito. Isso é o conhecimento, reelaboração de apreciações realizadas em sínteses com sentido e significado específicos. O objeto não é mais somente uma coisa externa ao sujeito, é interna em sua consciência e ganha significados com a finalidade de uso individual e coletiva. Foi a síntese que ficou relegada a um segundo plano no modelo de produção capitalista por dois motivos: primeiro, a primazia de alcançar processos produtivos altamente desenvolvidos e que culminassem na produção de mercadorias e serviços. Segundo, na elaboração de procedimentos de alienação que distanciam o trabalhador do fenô62 interdisciPlinAridAde: A emergÊnciA de Um PArAdigmA meno produtivo. O modo de produção capitalista teve dois ganhos: a aceleração dos processos produtivos e a elaboração de instrumentos de alienação. Porém, devemos destacar que os mecanismos completos da construção do conhecimento e de sua apropriação ficaram sob a tutela da burguesia e de grupos intermediários da sociedade que defendem esse modelo exploratório do trabalho humano. Esta máxima se expressou no modelo produtivista metodológico consolidado no Taylorismo-Fordismo. Entretanto, o próprio capitalismo assumiu outras conformações organizacionais ao longo de sua evolução. A fragmentação decorrente do Taylorismo-Fordismo não serve mais aos interesses do capital. Na atualidade, a configuração do modo de produção capitalista não se fundamenta mais no modelo reprodutivista do trabalhador na linha de produção. A linha de produção está automatizada, são as máquinas e os robôs que realizam as atividades de produção. Os trabalhadores estão nos terminais informatizados operando o sistema. Interferem de maneira incisiva somente para solucionar problemas, que não são de resolução técnica, mas sim de ordem procedimental com vistas a melhorar o fluxo normal programado. Bianchetti e Jantsch (1995) destacam que a construção do conhecimento não é um processo a-histórico. Nesse sentido, não está dissociado dos processos de desenvolvimento material e espiritual da humanidade. [...] Chamamos a atenção para o fato de que a construção histórica de um objeto implica a constituição do objeto e a compreensão do mesmo, aceitando-se, com isso, a tensão entre o sujeito pensante e as condições objetivas (materialidade) para o pensamento. (JANTSCH e BIANCHETTI, 1995, p. 11-12). A compreensão da realidade, portanto, não é algo dado a priori pelo pensamento humano. Esta realidade é acima de tudo fruto da intervenção humana na natureza e nas relações sociais. A materialidade não se configura de maneira absoluta em suas características substantivas, mas tem sentido e significado produzidos pelos indivíduos. A matéria somente possui sentido em sua relação intrínseca com os humanos, no decurso do processo de desenvolvimento histórico. No exemplo supracitado do saber acerca de determinado veículo, percebemos que o indivíduo analisou o objeto em suas especificidades 63 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO e realizou a síntese no plano mental. Assim, fica evidente a relação entre o material inanimado (no exemplo, o veículo) e o sujeito cognoscente. Entretanto, esta relação entre objeto e sujeito somente acontece pela necessidade que o indivíduo possui de utilizar em benefício próprio e coletivo o objeto elaborado. A relação histórica do homem com o objeto se insere no desenvolvimento humano, na história da humanidade. Conforme Frigotto (1995) e Etges (1995), a interdisciplinaridade não se esgota como instrumento metodológico em si mesmo. Não é somente um instrumento de compreensão da realidade. Vai além de um processo epistemológico. É, sobretudo, ontológico, ao passo que a construção do conhecimento está ao serviço dos seres humanos. Está à disposição do desenvolvimento humano e da construção de possibilidades de elevação da qualidade de vida do ser humano. Segundo Frigotto (1995): Na medida em que o conjunto das ciências sociais e humanas (para reiterar uma redundância) tem como objeto de conhecimento a compreensão e a explicitação da produção da existência social dos homens, não há razões de ordem ontológica e epistemológica para cindir-se autonomamente esta ou aquela prática social. O que pode ocorrer e de fato ocorre, é que sob as relações de produção humanas capitalistas efetivam-se diferentes processos de alienação e de cisão. Mas esta alienação se dá no plano do conjunto das práticas sociais e atinge, ainda que de forma diversa, todos os homens. Como bem evidencia Marx, na sociedade de classes o “humano se perde”. (FRIGOTTO, 1995, p. 27). Como central, observa-se a interdisplinaridade enquanto componente do desenvolvimento humano no plano histórico. Assim sendo, o conhecimento somente se fundamenta na utilidade em sua totalidade e em seu contexto social. Não tem validade social como instrumento metodológico particular estritamente. Apenas possui serventia no processo ontológico de construção de possibilidade de transformação do ser. [...] A cultura e a prática moderna capitalista, entretanto, interpôs uma nova mediação entre o homem e mundo: o trabalho. Ele cristaliza, materializa suas estruturas ao assumir a materialidade ou externalidade do mundo, ou ele se materializa efetivamente, superando o mero desejo. (ETGES, 1995, p. 56). 64 interdisciPlinAridAde: A emergÊnciA de Um PArAdigmA Desta maneira, o conhecimento somente possui sentido e significado pela ação humana, ou seja, pelo trabalho. O trabalho é o instrumento de relação do homem com a natureza e com os outros seres humanos. Por ele o homem transforma não só o mundo, mas torna-se humano. É por ele que os indivíduos se apropriam da realidade de maneira interdisciplinar, ou seja, em sua totalidade. Em consequência, o humano se desenvolve de modo integral, em todas as frentes, de forma, digamos, interdisciplinar. Concluindo, o autor afirma que: [...] O conhecimento é a unidade efetiva do exterior e do interior. Ora, este processo de interiorização do exterior posto é um ato de deslocamento, um ato de transposição de um contexto para o outro, numa palavra um ato interdisciplinar. Neste sentido, a interdisciplinaridade é, em primeiro lugar, uma ação de transposição do saber posto na exterioridade para as estruturas internas do indivíduo, construindo o conhecimento. (ETGES, 1995, p. 73, grifos nossos). Mas é no contexto da sociedade moderna que a interdisciplinaridade se faz imprescindível, como instrumento potencializador das práticas. Não exclusivamente como mecanismo epistemológico, mas acima de tudo para a readequação do processo produtivo da era da flexibilização. O modo hodierno do capitalismo flexível é analisado por Harvey (2013). Segundo o geógrafo marxista: O acesso ao conhecimento científico e técnico sempre teve importância na luta competitiva; mas, também aqui, podemos ver uma renovação de interesse e de ênfase, já que, num mundo de rápidas mudanças de gostos e necessidades e de sistema de produção flexíveis (em oposição ao mundo relativamente estável do fordismo padronizado), o conhecimento da última técnica, do mais novo produto, da mais recente descoberta científica, implica a possibilidade de alcançar uma importante vantagem competitiva. O próprio saber se torna uma mercadoria-chave, a ser produzida e vendida a quem pagar mais, sob condições que são elas mesmas cada vez mais organizadas em bases competitivas [...] (HARVEY, 2013, p. 151). A disciplinarização, mesmo no processo produtivo inerente ao capitalismo, não está apta a dar conta das demandas deste. Neste sentido, outros instrumentos de construção do conhecimento se fazem necessários, tanto no sentido epistemológico como metodológico. Observemos, a seguir, alguns desdobramentos centrais. 65 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO MULTIDISCIPLINARIDADE, TRANSDISCIPLINARIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE Surgem na modernidade, além do conceito de disciplina, os conceitos de multidisciplinaridade, transdisciplinaridade e interdisciplinaridade. Estes constructos estão inseridos em pleno processo de discussão e de acréscimos de propostas interpretativas. Mesmo que de forma sucinta, podemos destacar as compreensões sinalizadas por Alain Maingain e Barbara Dufour. Segundo os autores: A multidisciplinaridade trata de uma questão por justaposição de contribuições disciplinares, sem que os parceiros no processo tenham previamente fixado objetivos comuns. A titulo de exemplo, é frequentemente o caso no quadro de exposições sobre um tema, um país..., em que secções se sucedem, para ilustrar diferentes aspectos, sem serem articulados segundo uma finalidade integradora bem estabelecida. (MAINGAIN e DUFOUR, 2002, p. 63). A multidisciplinaridade consiste no estudo de um determinado objeto sobre diferentes ângulos, visões. Mas não há necessariamente um acordo programado previamente acerca dos métodos e conceitos que serão utilizados. Recorre-se a informações de várias disciplinas para estudar um determinado assunto sem a preocupação de interligá-las entre si. Dessa forma, cada disciplina contribui com as informações próprias do seu campo do saber, impedindo assim a relação entre os vários conhecimentos. Segundo Japiassú (1976), a multidisciplinaridade se caracteriza por uma ação simultânea de uma gama de disciplinas em torno de uma temática comum. Essa atuação, no entanto, ainda é muito fragmentada, na medida em que não se explora a relação entre os conhecimentos disciplinares e não há nenhum tipo de cooperação entre as disciplinas. A multidisciplinaridade é um conjunto de disciplinas trabalhadas ao mesmo tempo sem que apareçam as relações entre elas. Ocorre uma sobreposição dos saberes no estudo do elemento analisado. A multidisciplinaridade foi de extrema importância para acabar com um ensino especializado, concentrado em uma única disciplina, rumo à tentativa de um pensamento horizontalizado entre as disciplinas. A 66 interdisciPlinAridAde: A emergÊnciA de Um PArAdigmA multidisciplinaridade institui o início do fim da hegemonia da especialização do conteúdo. Agora vamos à transdisciplinaridade. O prefixo “trans” sugere a transgressão das fronteiras, fixadas para cada componente curricular e a recusa em dividir o mundo e os seus fenômenos em fragmentos disciplinares. A partir dos fenômenos do mundo real, a estratégia transdisciplinar constrói seus próprios conteúdos e métodos. Através da transdisciplinaridade é possível produzir o conhecimento que inclui não apenas uma visão racional a respeito da realidade, da vida, mas que contempla como conhecimento tudo aquilo que sentimos, pensamos e refletimos através das nossas múltiplas dimensões. Por exemplo, trabalha-se um tema único em todas as disciplinas de forma paralela por meio de seminários, encontros, palestras, congressos, etc. Na transdisciplinaridade, nenhum saber é mais importante que o outro, todos são igualmente imperiosos. Há um pensamento organizado que ultrapassa as próprias disciplinas e os conteúdos trabalhados não abrangem necessariamente nenhuma disciplina. Tomada no sentido mais lato e independentemente do domínio envolvido (científico, profissional, escolar, cotidiano...), a transdiciplinaridade refere-se à transferência, de um campo disciplinar a outro, de conceitos, modelos teóricos, processos, instrumentos de análise, esquemas cognitivos, técnicas, ferramentas, competências... (MAINGAIN e DUFOUR, 2002, p. 196-197). A ideia de transdisciplinaridade veio para superar o conceito de disciplina, que se configura pelos departamentos do saber em diversas matérias, nela não existem fronteiras entre as disciplinas. Ela considera que embora cada um dos campos guarde suas especificidades, há entre eles um intercâmbio permanente, formando novos campos. Já a interdisciplinaridade pressupõe a integração. Resulta uma verdadeira interação entre duas ou mais disciplinas. “Sob este aspecto, ela constitui uma prática integradora com vistas à abordagem de certos problemas na sua particularidade”. (MAINGAIN e DUFOUR, 2002, p. 69). Isso confere nova significação às análises e sínteses desenvolvidas na apropriação da realidade. A interconexão das disciplinas em função de um contexto particular é de um projeto determinado: tal é o traço mais específico de um processo interdiscipli- 67 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO nar. As disciplinas são solicitadas e integradas em vista a construir um modelo original, em resposta a uma problemática particular. É o que ressalta da maior parte das declarações ou tentativas de definição relativas à interdisciplinaridade. (MAINGAIN e DUFOUR, 2002, p. 70, grifos nossos). A visão interdisciplinar é possível em todos os fenômenos que se apresentam. Sempre que estamos nos apropriando da realidade estamos praticando a interdisciplinaridade. Todas as vezes que utilizamos nossos saberes acumulados ao longo de nossa história e da história da humanidade, os mobilizamos para resolvermos uma situação concreta que nos é interposta. Tal situação está caracterizada como problema que devemos superar e inferir um novo conhecimento a partir desta interação entre o indivíduo e seu contexto. De forma semelhante, na perspectiva sinalizada por Harvey (2013) de superação do modelo Taylorista-Fordista, um novo paradigma surge para ultrapassar o cartesianismo, interferindo na realidade do cotidiano. Emerge o paradigma da complexidade, sistêmico. A partir desta concepção, por exemplo, Edgar Morin assevera que: As grandes recomposições sofrem enormes atrasos justamente onde ainda reina a redução e a compartimentação. Mas a Cosmologia, as ciências da Terra, a ecologia, a Pré-história, a nova História permitem articular, uma as outras, as disciplinas até então isoladas. Permitem responder, cada qual em sua área e a sua maneira, ao imperativo de Pascal. [...] É nessa mentalidade que se deve investir, no propósito de favorecer [...] a realização da ligação dos conhecimentos. (MORIN, 2000, p. 32-33). Sob este aspecto, o conhecimento fragmentado levado ao extremo no processo de disciplinarização, é reavaliado para seguir no sentido de contextualização do conhecimento, de seu devir no movimento de transformação social, de desvelamento da complexidade fenomênica da realidade. ORIGENS DA INTERDISCIPLINARIDADE NO CAMPO EDUCACIONAL bRASILEIRO Na superação da disciplinaridade (onde as práticas educativas são centralizadas, e cada disciplina é abordada de modo fragmentado 68 interdisciPlinAridAde: A emergÊnciA de Um PArAdigmA e isolado das demais)3, a interdisciplinaridade possibilita movimento mais dialógico, fazendo conexões entre as diferentes áreas do conhecimento, entre diferentes perspectivas. No campo educacional, por exemplo, em meados da década de 1960 na França e Itália principalmente, surge o movimento da interdisciplinaridade. Nessa época, os movimentos estudantis reivindicavam um novo estatuto de universidade e escola. Não aceitavam que os grandes problemas da época fossem resolvidos por uma única disciplina ou área do saber e buscavam a solução dos problemas através da articulação das disciplinas. O início das primeiras discussões sobre a interdisciplinaridade ocorre por meio de um dos principais precursores do referido movimento, Georges Gusdorf. Em 1961, ele apresenta à UNESCO um projeto de pesquisa para as ciências humanas. O projeto previa a diminuição da distância teórica entre as ciências humanas. Objetivava um novo movimento, não de negação às especializações científicas, mas de complexificação das análises acerca dos problemas científicos da circunscrição das humanas. Mais tarde, essa ideia é retomada por um grupo de estudiosos, que patrocinados pela UNESCO, tem seu trabalho publicado em 1968. Deste grupo fizeram parte muitos estudiosos de universidades europeias e americanas, de diferentes áreas do conhecimento. Nessa caminhada, segundo Paviani (2005), em alguns congressos internacionais que também tiveram apoio da UNESCO nomes como François Guattari e Jean Piaget fizeram parte. A origem da interdisciplinaridade está nas transformações dos modos de produzir ciência e de perceber a realidade e, igualmente no desenvolvimento dos aspectos políticos-administrativos do ensino, e da pesquisa nas organizações e instituições científicas. Mas, sem dúvida, entre as causas principais estão a rigidez, a artificialidade e a falsa autonomia das disciplinas, as quais não permitem acompanhar as mudanças no processo pedagógico e a produção de conhecimento novos. (PAVIANI, 2005, p. 14). 3 Devemos relembrar que o processo disciplinar de elaboração do conhecimento – e neste sentido nos referimos à elaboração do conhecimento nos aspectos epistemológico e pedagógico – tinha o objetivo de intervenção direta no processo produtivo em função de resolução de demandas específicas do metabolismo social e econômico, e ao mesmo tempo de domesticar o indivíduo para inseri-lo de maneira que não percebesse a realidade concreta das relações de produção e otimizasse a alavancagem capitalista. 69 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO No final da década de 1960, a interdisciplinaridade chegou ao Brasil e logo exerceu influência na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN, Lei nº 5.692/1971. (BRASIL, 1971). Desde então, sua presença no cenário educacional brasileiro tem se intensificado e, mais ainda, com a nova LDBEN, Lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996) e com os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN. (BRASIL, 1999). Segundo Fazenda (2013), podem-se dividir os primeiros estudos das questões da interdisciplinaridade no Brasil em: 1970: construções epistemológicas da interdisciplinaridade. Em busca de uma explicitação filosófica procurava-se a definição de interdisciplinaridade. 1980: explicitações das contradições epistemológicas decorrentes dessa construção, em busca de uma diretriz sociológica, tenta-se explicitar um método para a interdisciplinaridade. 1990: construção de uma nova epistemologia, a própria da interdisciplinaridade, em busca de um projeto antropológico, construção de uma teoria da interdisciplinaridade. (idem, p. 56). Fazenda (2013) esclarece, ainda, sobre a primeira produção significativa a respeito da interdisciplinaridade no Brasil apresentada no livro “Interdisciplinaridade e patologia do saber” escrito por Hilton Japiassú no ano de 1976. Nesse livro, Japiassú apresenta os principais questionamentos sobre interdisciplinaridade e anuncia pressupostos fundamentais para uma metodologia interdisciplinar na circunscrição da educação. Ziani (2000, p. 61) afere que a interdisciplinaridade incide basicamente de uma transformação capital perante à problemática do conhecimento, substituindo uma acepção fragmentária por uma unitária do ser humano. “Para tanto, a formação do professor é fundamental, embora saiba que o fato do professor ter uma fundamentação teórica consistente não lhe garante uma prática coerente”. (idem). Paviani (2005) explica que a interdisciplinaridade não pode ser vista como um aglomerado de disciplinas ou mera colaboração entre professores. Deve haver um exame nas questões referentes às implicações epistemológicas e metodológicas, sem o qual se torna apenas um modismo e justaposição de disciplinas. Um dos objetivos da interdisciplinaridade é reunir várias disciplinas a partir de um mesmo objeto, criando situações-problemas 70 interdisciPlinAridAde: A emergÊnciA de Um PArAdigmA em projetos elaborados coletivamente, por via da complexidade e a disponibilidade em resolver os problemas periféricos (as partes do todo) pertinentes ao processo interdisciplinar. Estas disciplinas são interligadas e possuem relações definidas a fim de promover avanços com a produção de novos conhecimentos. Adota-se, para isso, uma perspectiva teórica e metodológica comum, há uma integração dos resultados obtidos e os interesses próprios de cada disciplina são preservados. “A interdisciplinaridade não dilui as disciplinas, ao contrário, mantém sua individualidade. Mas integra as disciplinas a partir da compreensão das múltiplas causas ou fatores que intervêm sobre a realidade”. (BRASIL, 1999, p. 89). A interdisciplinaridade como eixo da formação dos profissionais da educação busca dar melhor qualificação, relacionar de forma real os conhecimentos científicos e os populares e subsidiar os saberes disciplinares para o melhor entendimento e desenvolvimento dos sujeitos sociais. Para que haja interdisciplinaridade, não podemos eliminar as disciplinas, mas torná-las comunicativas entre si, em um processo histórico e cultural. Devemos tornar necessária a atualização quanto às práticas do processo de ensino-aprendizagem na linha de um pensamento que prima pela totalidade, pela compreensão do todo. Daí a ocorrência de que nenhuma disciplina consegue sozinha explicar um fato da realidade. É buscar compreender os elos existentes entre as áreas do conhecimento: é inovar, criar, renovar. CONSIDERAÇõES FINAIS Mesmo no sistema capitalista excludente, o paradigma fragmentador perde espaço, pois se torna “ineficiente” segundo os preceitos do aperfeiçoamento dos processos produtivos e de intervenção na realidade. No modo de produção capitalista atual, a compreensão da realidade em sua totalidade está subordinada ao mercado de consumo e não à percepção da realidade concreta que permeia a existência humana como um todo. Arraigada na perspectiva de que o uso do conhecimento deveria ser vinculado à sua prática instrumental (metodológica), como ferra- 71 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO menta de potencializar os processos produtivos, a disciplinarização ficou centrada nos mecanismos de análise, relegando a síntese a um plano secundário. Assim, a disciplinarização inserida no capitalismo teve duas finalidades concretas: por um lado incrementar a construção do conhecimento necessário ao desenvolvimento de métodos e processos produtivos objetivando a fabricação de mercadorias, e por outro lado edificar instrumentos ideológicos de mascaramento da realidade e dos antagonismos do processo produtivo, ou seja, da exploração do trabalho pelo capital. Esta dupla face e utilização da disciplinarização represaram os processos de sínteses e de re-totalização dos objetos analisados e submetidos ao conhecimento humano. A produção material visando à satisfação das necessidades de sobrevivência e desenvolvimento humano esteve atrelada aos interesses de classe. O modelo disciplinar e fragmentado não responde mais às exigências do tempo atual. A fragmentação do conhecimento elaborado pelos seres humanos privilegiando os processos produtivos, não foca na existência espiritual do ser, não contemplam mais as necessidades do sujeito social. O capitalismo cada vez mais sente a urgência de manipular a realidade para poder completar seu ciclo de acumulação. Estimula ao extremo o egoísmo e o individualismo objetivando o consumismo exacerbado em circuito contínuo de exploração do trabalho. Leva os indivíduos a processos de alienação da realidade retirando assim, todo sentido da existência humana. Coisifica os seres humanos e contingencia sua vida ao plano imediato necessário ao consumo. Constrói instrumentos ideológicos de mascaramento da realidade utilizando para esta finalidade o próprio conhecimento. Reduz o conhecimento a mero instrumento metodológico de desenvolvimento de processos produtivos não contemplando a necessidade humana de se realizar pelo trabalho, em outra dimensão que não a da exploração do capital, mas sim da realização criativa dos indivíduos na relação interativa com a natureza e com os outros seres humanos. Nesta dimensão ontológica, a interdisciplinaridade não se esgota como instrumento metodológico, mas se efetiva no processo de transformação humana. Consequentemente, a interdisciplinaridade é uma necessidade relacionada à realidade concreta, histórica e cultural que se constitui 72 interdisciPlinAridAde: A emergÊnciA de Um PArAdigmA como um problema ético-político, econômico, cultural e epistemológico. Ético por pressupor uma nova configuração de relação humana, à revelia do individualismo, notadamente debitária do coletivismo. Política como forma orgânica de se relacionar no mundo e produzir mudanças em prol da coletividade enquanto totalidade. Cultural, abrindo-se à modificação do modo de organização e transmissão do acumulado humano. Econômico, exigindo a integração e cooperação como meios de superar a fragmentação da vida e do metabolismo da produção, das trocas e do consumo de bens vigente. Fundamentalmente epistemológico, porque se apresenta como problema de um sujeito que busca o conhecimento, que tem uma forma específica de construir determinadas ideias, práticas e realidades. Poderíamos fazer a seguinte proposição: o ser humano é interdisciplinar. Trata-se, nessa expressão, de reconhecer que o homem pensa e produz através do trabalho no intercâmbio com a natureza. Para isso lança mão de todos os recursos disponíveis, sejam eles culturais, tecnológicos e/ou científicos. Tal realização tem o objetivo de dar conta da complexidade dos problemas interpostos na consecução do sociometabolismo humano. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. 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Santa Cruz do Sul, RS Vol.8, n. 2 (jul./dez. 2000), p. 55-64. 74 INTERDISCIPLINARIDADE E INOVAÇÃO, SABERES E POSSIBILIDADES NA EDUCAÇÃO Luciene Maldonado Ensina-se um saber, forma-se um indivíduo. (Bernard Charlot) INTRODUÇÃO É consenso em nossa sociedade que a Educação exerce uma grande influência na vida dos indivíduos. Todavia, a educação e as instituições de ensino mantém (re)organizando-se na tentativa de acompanhar essa sociedade globalizada e dinamizada que vivemos e, assim, continuar a serem reconhecidos pela sua importância social e humana. Embora exista esse reconhecimento, é de conhecimento que as instituições de ensino continuam a enfrentar grandes desafios. Certo sentimento de fracasso educacional se faz em um coro coletivo, que acaba ecoando como se fora em um espaço vazio, de que as instituições não atendem as necessidades do alunado e o ensino não recebe a estima que merece e, portanto, se faz urgente e necessária sua reforma. Frente a essa realidade, vemos estudiosos trabalhando em prol de uma Educação que atenda às necessidades do indivíduo e da sociedade. Assim, a inovação e o debate interdisciplinar se tornam discussões em voga nas instituições. A interdisciplinaridade e a inovação se apresentam, muitas vezes, como uma questão atual no desenvolvimento do trabalho educacional, 75 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO embora, não exista ainda uma reflexão consensual capaz de elucidar os problemas epistemológicos e metodológicos que enfrentam cotidianamente as instituições de ensino, sejam essas em qualquer nível. Dessa forma, a Educação no Brasil necessita cada vez mais de ações que corroborem com a formação dos alunos na sua integralidade1, auxiliando-os a tomadas de decisões e criticidade frente ao mundo tão dinâmico. E igualmente, com as vidas dos professores, auxiliando-os a decisões mais democráticas, auxiliando-os na dialética do ensinar e aprender. Encontramos, todavia, uma realidade nada admirável na Educação brasileira. Problemas de evasão escolar, baixo rendimento, escolas com aspectos de prisão, ausências e falta 2 de professores, sucateamento, fechamento arbitrário de escolas3, entre tantos outros. Surge a ideia de que “romper paradigmas” é a saída para alguns. O que se procura fazer é seguir um modelo ou se inspirar em outra forma de escola. Mas, mudar a escola por mudar não é inovar. Um rompimento de paradigmas deve mexer com a estrutura, com o dia a dia, com o ensinar, com o aprender, com as relações. Romper os paradigmas requer muito trabalho, muito aprendizado. E muito conflito. É um eterno (re)- construir. Diante dessa realidade, ainda vemos surgirem propostas muito atraentes que propõem transformações no modo de ser de uma escola – e essas transformações são possíveis quando ocorrem de forma ampla e interdisciplinar, envolvendo as formas de gestão, de currículo e formação de professores e do processo de ensino e aprendizagem. Com isso, para que uma transformação ser considerada uma inovação, os sujeitos devem acompanhar a mudança. Huberman (1973, p. 70) nos fala sobre o sujeito inovador, 1 2 3 76 O termo integral usado no texto segue a ideia de um ensino na sua integralidade, que atenda e auxilie o aluno na compreensão do mundo, nos cálculos matemáticos, nas línguas, História, Filosofia, Cidadania, Sociologia, Geografia entre outros, enfim, que seja integral para atender a sua integralidade de aprendizagem. Ao se referir sobre ausência de professores refere-se àqueles que se ausentam dos dias de aula, o professor faltoso que por qualquer razão desconsidera sua presença importante. E sobre a falta de professores, observa-se falta de alguns desses profissionais na escola, como por exemplo, professores em Libras. Fechamento arbitrário que aqui se refere trata dos últimos episódios ocorridos no país, em especial no estado de SP, com o fechamento de escolas sem nenhuma participação popular. interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção (...) o grande inovador é descrito como qualquer um que veja em redor de si um mundo coerente cujas reações pode prever. Esse homem tem confiança na avaliação que ele próprio faz de sua experiência; ele vê o mundo que o cerca aplaudi-lo, se alcançar seus objetivos; ele sente grande necessidade de autonomia, de êxito, de ordem; aspira a auxiliar outros e deseja receber auxílio. A pesquisa acadêmica, no campo das organizações escolares, tem se debruçado, cada vez mais, na ideia de escola como espaço de aprendizagem, que compreende igualmente a educação integral, a socialização, entre outros estudos. É uma organização de trabalho pedagógico caracterizada pela construção coletiva por parte de seus profissionais, de projetos e práticas em que a vivência passa pela participação ativa nos processos de tomada de decisões. Pode, enfim, em uma relação de ensino interdisciplinar, encontrar a inspiração nas questões científicas, filosóficas, epistemológicas que os impulsiona aos desafios dessa sociedade tão líquida e complexa. Desse modo, os professores e gestores passam a ser considerados agentes criativos e inovadores nas atividades pedagógico-didáticas, curriculares e organizacionais para a transformação da escola e do sistema escolar. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012). A seguir vamos tratar sobre a interdisciplinaridade e a inovação utilizando, como aporte, um texto da autora, resultado de um trabalho acadêmico4. INTERDISCIPLINARIDADE (SAbERES) Trazemos ao diálogo o papel da interdisciplinaridade na gestão escolar a partir dos pressupostos de uma prática de gestão democrática e inovadora, que considera o gestor também um agente educacional (LUCK, 2010), com o compromisso de gerir os desafios contemporâneos da educação: administrativos, pedagógicos, pessoais e legais, o que exigirá dos gestores uma série de competências que vão além da capacidade de administrar uma instituição, seja ela qual for. 4 Parte deste capítulo é extraída do texto de dissertação de mestrado da autora, defendida em jan. 2016 que trabalhou com a pesquisa sobre Gestão escolar e práxis transformadoras, na Linha de Pesquisa sobre Formação, Políticas e Práticas na Educação. FACED/PUCRS. 77 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Nos últimos anos tem havido consideráveis debates sobre a educação brasileira, travados por educadores e gestores nas universidades e instituições de ensino, sobre a importância da gestão democrática voltada para a melhoria da educação. Segundo Libâneo (2013), estudos relacionados à administração escolar não são novos, há consideráveis interesses voltados à área desde os pioneiros da educação nova (década de 1930). Contudo, “frequentemente estiveram marcados por uma concepção burocrática, funcionalista, aproximando as características da organização escolar à organização empresarial” (LIBÂNEO, 2013, p. 119). Portanto, visando superar o enfoque exclusivo da administração, busca-se, assim, um movimento coletivo e dialético, interdisciplinar que considere as dimensões humana e educacional da gestão. E ao falarmos em gestão escolar, no que se refere a administrar uma instituição educacional, o mais desafiador da equipe gestora é tomar decisões de forma democrática, que resultem em processos educacionais de qualidade. Enquanto que, de modo geral, a administração de empresas visa o lucro, os resultados na Educação traduzem-se em qualidade de ensino, comprometimento com gestão de pessoas e processos, resultando em outros processos educacionais, os quais não são facilmente mensurados dada a sua complexidade. A Interdisciplinaridade, neste caso, é uma ação de finalidades educativas, é marcada por propósitos políticos claros e por um investimento que o conduz a valorizar o bem cultural (Trindade, 2012). É um instrumento capaz de mobilizar a atividade dos sujeitos, que tem em conta não só as suas necessidades e interesses, mas a importância de revelar, de fazer descobrir outras necessidades e outros interesses. De acordo com Lück (2009), cria-se certa perspectiva, um tanto quanto burocratizada e hierarquizada do sistema de ensino e das escolas de modo geral, a qual é orientada pelo estabelecimento de uniformidade do sistema de ensino, acabando por formar padrões não de resultados, mas sim, como aponta Demo (1994), de formas de desempenho que desconsideram a necessidade de criatividade, iniciativa e discernimento em relação às dinâmicas sociais e interpessoais. E sabemos que uma gestão nesse modelo ou reproduz ações e métodos de gestão ou estão fadadas ao fracasso gerando uma eterna troca de cadeiras. 78 interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção Desse modo, compreende-se que a gestão educacional precisa ter uma perspectiva de superação dos enfrentamentos cotidianos e a adoção de meios e métodos estratégicos para solução dos problemas. Pressupõe implantar as mudanças necessárias nas escolas para promover espaços e processos de aprendizagens de qualidade que orientem sua práxis. Corrobora Libâneo (2010) quando diz que é papel da organização e da gestão educacional promover condições, meios e recursos necessários ao bom funcionamento da instituição e do trabalho em sala de aula, também promover a participação das pessoas no trabalho, fazendo a avaliação dos processos tendo como referência os objetivos da aprendizagem e, por fim, garantir a aprendizagem de todos. E um método interdisciplinar na sua composição e ações é fundamental para uma gerência mais dinâmica, democratizada e comprometida. A gestão escolar constitui, assim, uma dimensão considerável na educação uma vez que, por meio dela, observa-se a escola e os processos educacionais. Cabe ressaltar que a gestão escolar é uma dimensão, um enfoque de atuação, um meio e não um fim em si mesmo, considerando que o objetivo final da gestão é a aprendizagem efetiva e significativa dos alunos. A implicação da ação gestora está relacionada a desenvolver, nos e com os alunos, as competências5 interdisciplinares que a sociedade demanda entre as quais se evidenciam: pensar criativamente; analisar informações e proposições diversas, de forma contextualizada; expressar ideias com clareza, tanto oralmente como por escrito; empregar a matemática para resolver problemas; ser capaz de tomar decisões, dentre outras competências necessárias para a prática de cidadania responsável e, sobretudo, consciente (Giroux,1988), que se traduz, segundo Paro (2007), em garantir que os alunos aprendam sobre o seu mundo e sobre si mesmos em relação a esse mundo; construam conhecimentos úteis e aprendam a trabalhar com informações de complexidades gradativas e contraditórias da realidade social, econômica, política e científica, como condição para o exercício dessa cidadania. Dessa forma, há um processo democrático sendo estabelecido, conforme Lück (2008, p. 80): 5 “Competências são as qualidades, capacidades, habilidades e atitudes relacionadas a esses conhecimentos teóricos (que seriam os saberes) e práticos” (LIBÂNEO, 2013, p. 82). 79 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO O processo participativo na gestão educacional se realiza em vários contextos e ambientes que manifestam sua peculiaridade e seus efeitos específicos, e que se espraiam também para outros espaços e ambientes, demandando que todos sejam igualmente envolvidos nesse processo. Nesta perspectiva, a forma interdisciplinar da gestão pode inovar o conceito de escola apoiando-se na sinergia de elementos elencados na práxis do processo educacional. Essa demanda faz com que o sentido ou conceito de educação e de escola se torne mais complexo. O aluno, por exemplo, não aprende exclusivamente na sala de aula, mas no espaço da escola como um todo. O aprendizado é amplo, se encontra na maneira em que a escola é organizada e como funciona, nas ações que promove, assim como no modo como as pessoas naquele ambiente se relacionam e como a escola se relaciona com a comunidade, nos exemplos de ações e nas atitudes expressas em relação às pessoas, aos problemas educacionais e sociais, entre outros aspectos. Uma gestão interdisciplinar compreende-se uma ação ampla de participação de pais e professores, de formação de conselhos e comissões que se reúnem para discussão abrangente do Projeto Pedagógico e da realidade da escola. Havendo assim, uma mudança de paradigmas, há um rompimento com o habitual, com o comum. Mudanças que podem ser entendidas de formas e olhares variados (FREIRE E SHOR,1986). Mas todos convergem a um mesmo ponto: qualidade nos processos de ensino e aprendizagem. Possui o objetivo pedagógico da aproximação: aproximar as experiências e os alunos em todas as fases de desenvolvimento. Essa prática é, ainda, uma novidade às experiências existentes e consiste em uma identidade própria, com experiências consistentes à construção do conhecimento e à aprendizagem. A gestão, nesse caso, é fundamental, pois se trata de uma ação democrática, voltada para o desenvolvimento de uma educação de qualidade no qual o êxito acontece dentro da ética do companheirismo. Ética que implica relação interpessoal, dialógica e solidária (FREIRE, 1996). O trabalho participativo e interdisciplinar propõe trazer uma série de ações e reflexões a respeito do ato de educar. Em um processo de formação no qual se pretende orientar os diversos segmentos 80 interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção para o exercício de um trabalho participativo e cidadão, a gestão visa uma ação articulada com a comunidade escolar, interna e externa, trabalhando na perspectiva da construção conjunta da satisfação e corresponsabilidade na elaboração de um projeto que rompa com os paradigmas tradicionais em vez de trabalhar de forma verticalizada. Salienta ainda Freire (2000, p.84): A experiência que possibilita o discurso novo é social. Uma pessoa ou outra, porém, se antecipa na explicitação da nova percepção da mesma realidade. Uma das tarefas fundamentais do educador progressista é, sensível à leitura e à releitura do grupo, provocá-lo bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão do contexto. No intuito de repensar a lógica da interdisciplinaridade educacional na busca de metodologias que consideram a dimensão humana dos envolvidos nos processos educacionais, na perspectiva do entendimento de que o aprender se dá de diferentes formas e tempos e que essas individualidades precisam ser respeitadas, compreende-se o importante papel de uma gestão crítica e reflexiva (GIROUX,1988). É necessário que a gestão esteja próxima da realidade em que está inserida e consciente a respeito de suas crenças, culturas, modos de se relacionar etc. Precisa conhecer os sujeitos envolvidos nos processos de aprendizagem de forma a articular tempos e espaços de diálogo entre as partes, no intuito de construir, de forma democrática, um espaço profícuo para o estabelecimento de relações saudáveis para a circulação do saber, para que o ensino e a aprendizagem aconteçam da melhor forma possível, em uma práxis transformadora. O projeto de gestão interdisciplinar (administrativo e pedagógico) deve primar pela construção de uma escola participativa, entendida pela comunidade em geral como uma experiência necessária, um espaço de acolhimento e criação, construído e sustentado a partir da participação de todos. INOVAÇõES (POSSIbILIDADES) Atualmente, quando se trata sobre Educação, há um vasto campo de teorização. Alguns, por serem do mundo acadêmico e não da área da educação, portanto não “alertados”, falam do fracasso da educação, 81 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO e há outros que afirmam que do jeito que tá, não dá. Na Educação, há outras formas de pensar a educação, como há outras maneiras de escolarizar, de aprender, assim como de ser aluno e professor. Isso está sendo muito discutido nas Universidades. Quando um novo paradigma educacional vai sendo construído, o movimento se faz amplo e todos os sujeitos envolvidos nesse processo farão mudanças. (PERRENOUD, 1995). Novos modelos surgem na busca de construir um novo paradigma na educação, na busca de se ofertar uma educação mais emancipadora, na qual o aluno e o professor possam agir de maneira mais livre no processo de ensino e aprendizagem. Atribui-se à escola ser compreendida como um espaço no qual os sujeitos que nela atuem possam compartilhar e aprender, transmitir, receber conhecimentos, ter vivências e experiências. Aprender a lidar com diversidade, compreender a pluralidade, a cidadania, conhecer sobre a economia, já que a educação em nosso país ainda procura formar pessoas para o mercado de trabalho. Assim nos aponta Libâneo (2010, p. 21) que: O estudo da ciência, a arte, da cultura, as trocas de experiências, a resolução de dilemas, o entendimento de autonomia e responsabilidades, de conhecer direitos e deveres, construir a dignidade humana, compreender cidadania, aprender a apropriar da ciência e tecnologia em prol de sua vida, trabalho e, sobretudo, seu crescimento pessoal. Conforme nos apontam Bertrand e Valois (1994), o caráter dinâmico e inovador de uma organização educativa se estabelecem na relação dialética entre a escola e a sociedade bem como entre a reflexão e as práticas pedagógicas. Assim, vemos uma crescente proposição da democratização da escola, que nos aponta para o estabelecimento de um sistema de relacionamento e de tomada de consciência no qual todos, que dela participem, tenham as mesmas condições de contribuir a partir de seus potenciais. Desse modo, aponta Charlot (2005, p. 91): O ensino é a transmissão de um saber, mas se essa transmissão pode tomar uma via direta, a via magistral, ela pode também se operar pela via indireta, aquela da construção do saber pelo aluno. As pedagogias novas insistem sobre 82 interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção o papel ativo do aluno como condição de acesso ao saber, o papel do professor como sendo menos o de comunicar seu saber que o de acompanhar a atividade do aluno, de lhe propor uma situação potencialmente rica, de lhe ajudar a ultrapassar obstáculos, de criar outros novos para que ele progrida. O modelo subjacente é aqui, enfim, aquele da aprendizagem, mais no sentido que este termo toma no mundo do artesão do que aquele da comunicação de uma mensagem. Em outros termos, há uma prática do saber e o ensino deve formar para essa prática, e não apenas se contentar em expor conteúdos. Aprofundando-se a análise, aliás, pode-se aplicá-la igualmente no ensino magistral: quando “ministra um curso”, o educador pratica o saber diante dos alunos e supõe que estes, seguindo-o passo a passo, aprendem a pensar. Neste sentido, todo ensino digno desse nome se pretende também formação. Não podemos falar em pedagogia de transformação 6, inovação ou em mudanças efetivas no ato e no agir pedagógico se os pares da educação não tiverem a certeza de que a escola e os professores existem para formar sujeitos preparados para lidar com o mundo globalizado, além das ciências ou da arte (DELORS, 2003). Um mundo que está em transformação constante requer saberes, atuações, entendimentos, compreensões constantes. Tudo é imprevisível porque tudo está em movimento; essa dinâmica se faz necessária também no processo de ensino e aprendizagem. Quanto à mudança, é preciso saber diferir entre mudança e inovação. Para Huberman (1973), a primeira resulta em adaptações de algo que já existe. Já a segunda é, de algum modo, mais deliberada, voluntária e planificada do que espontânea. Enquanto processo voluntário, a inovação nos conduz à descoberta mais eficaz do meio, visando alcançar fins específicos. No entanto, da mesma forma que diferimos o conceito de mudança e inovação, há outros conceitos sobre o termo inovação. O professor Clayton Christensen, de Harvard, se inspirou no conceito de “destruição criativa”7 para criar o conceito sobre Inova6 7 De acordo com Vasconcellos (2008) Pedagogia de Transformação, “a educação para assumir o caráter transformador (não de mera constatação e classificação), antes de tudo, deve estar comprometida com a aprendizagem (e desenvolvimento) da totalidade dos alunos”. Termo cunhado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter em 1939 para explicar os ciclos de negócios. Segundo ele, o capitalismo funciona em ciclos, e cada nova revolução (industrial ou tecnológica) destrói a anterior e toma seu mercado. (Christensen et al, 2009, p.67) 83 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO ção Disruptiva. É aquela que ocorre quando um produto ou serviço cria um novo mercado e desestabiliza os concorrentes que antes o dominavam, utilizando de algo mais simples, mais barato do que o que já existia (CHRISTENSEN et al., 2009) ou algo capaz de atender a um público que antes não tinha acesso ao mercado. Em geral, começa servindo um público modesto até que abocanha o segmento. Houve uma inovação. Frente a esse dinamismo que a globalização impulsiona e que já discorremos a respeito, o conceito de inovação traduz bem por apresentar suas variáveis. As instituições de ensino formal ou não formal 8, de modo geral, estão encarando problemas na arena social de um jeito basicamente novo, criando soluções dimensionáveis, sustentáveis, capazes de transformar o sistema habitual. A partir das características básicas desse método, ainda em Christensen et al. (2009), surge o novo conceito que é a “inovação catalítica”. Fundada no modelo de inovação disruptiva, a inovação catalítica causa reviravolta em um setor ao trazer alternativas mais simples, porém satisfatórias, a um grupo subatendido. A diferença é que a inovação catalítica é voltada para geração de mudanças sociais. Desse modo, a inovação catalítica é um subgrupo da inovação disruptiva e se distingue pela ênfase básica na mudança social, geralmente em escala nacional. (CHRISTENSEN et al., 2009). Esses conceitos de inovação, mesmo compreendendo ser de uma área de empreendedorismo, um tanto distinta da educação que aqui tratamos, podem ser muito bem empregados quando falamos sobre o rompimento de paradigmas na educação que visa uma interferência e mudança social. Assim, entendemos que o conceito de inovação catalítica pode ser muito bem implantado quando nos referimos sobre a pedagogia da transformação, quando nos referimos sobre ressignificação do espaço público escolar e este é uma possibilidade, um conceito para definir uma escola inovadora. 8 84 Ensino formal utilizado no texto refere-se ao ensino convencional público ou privado, e ensino não formal refere-se ao ensino em ONGs, centros comunitários, entre outros. interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção Dessa forma, em concordância com essa afirmação, o processo de inovação deve perdurar e ser amplamente utilizado na Educação; do contrário, o sistema de ensino frequentemente é tentado a mudar as aparências para não alterar a essência, aumentando as resistências no entendimento de novas práticas e formas de gestão, de processo pedagógico e metodológico (HUBERMAN, 1973). Transformações que caracterizam novas realidades sociais, políticas, econômicas, culturais apontam mudanças consideráveis nas áreas da Ciência e Tecnologia – o que caracteriza uma revolução tecnológica sem precedentes – impondo à Educação acompanhar essa dinâmica com a utilização das tecnologias educacionais. A difusão da informação, de forma instantânea, está em consonância com o processo de globalização, com as mudanças de paradigmas da ciência e do conhecimento como cita Libâneo (2013), influindo na pesquisa, na produção de conhecimentos e nos processos de ensino e aprendizagem. Com isso, há um agravamento da exclusão social, aumentando a disparidade econômica e social entre os incluídos e excluídos frente às novas formas de conhecimento. Ao falarmos de inovação, numa prática de gestão escolar, devemos interpretar as propostas políticas que as intencionam, as peculiaridades que as envolvem. Em muitos casos, há um paradoxo existente quando a mudança é entendida como inovação e é feita quando os personagens envolvidos não estão convencidos em fazê-la. Ou, o que é mais comum, quando esta mudança é imposta de maneira vertical, vindo de cima a decisão, sem que haja um entendimento ou consenso de sua necessidade. Mudanças assim implementadas não garantem a qualidade da prática nem o desenvolvimento institucional e individual. Não criam identidade. O que acaba por ocorrer é uma mudança superficial ou fragmentada em setores ou campos. Como afirma Gómez (2001), as mudanças que ocorrem por meio de determinações externas acabam por não provocar modificações valiosas, mas, na melhor das hipóteses, condições e processos de socialização escolar. A Educação, as escolas, os gestores, os professores vêm sendo instigados constantemente a repensar seus papéis frente às transfor- 85 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO mações que caracterizam o processo imprevisível de integração e (re) estruturação do capitalismo mundial. Os avanços tecnológicos, a nova estrutura do sistema de produção, os novos paradigmas econômicos afetam a organização do trabalho, como nos afirma Libâneo (2013), que repercute na qualificação profissional e, consequentemente, no sistema Educacional. Conforme nos aponta Moll (2009), a discussão sobre a proposta de educação integral não é simples e implica toda uma discussão de cunho legal e jurídico para torná-la real, consistente e exequível. Implica também um consenso em relação ao conceito estabelecido sobre Educação Integral quanto ao entendimento do termo e às definições necessárias que a contemplam – como: espaço, tempo, formação de docentes e alunos, articulação com os diferentes saberes, relação entre a escola e a comunidade na qual está inserida, a formalidade e informalidade de educação nos espaços escolar. São questões relevantes e que merecem uma reflexão sobre o papel a ser exercido na gestão escolar que impacta na vida de cada personagem no contexto do debate. Portanto, as inovações na educação devem ser vistas com mais atenção e com olhos menos céticos pelos pares – não podemos cair no discurso que inovar é modismo – que qualquer ação pode ser inovação. Não é esse o caminho a percorrer. Olhar projetos inovadores é perceber que a Educação não se encerra em si mesma, pelo contrário, ela deve seguir se movimentando, em ação constante para acompanhar o dinamismo e a imprevisibilidade da sociedade e do mundo (PERRENOUD, 1995). Igual como nos afirma Freire (2000, p. 30): Não haverá cultura nem história sem inovação, sem criatividade, sem curiosidade, sem liberdade sendo exercida ou sem liberdade pela qual, sendo negada, se luta. Não haveria cultura nem história sem risco, assumido ou não, quer dizer, risco de que o sujeito que o corre se acha mais ou menos consciente. Não há uma intencionalidade em dizer que inovação é sempre o que deve ocorrer, o que se pretende dizer é que inovação é, no léxico da palavra, uma nova ação. Desse modo toda ação que gerar uma reflexão dará possibilidades para uma nova ação. 86 interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção E inovações, como a de dialogarmos em uma Ágora democrática, sobre uma escola justa, ou como nos diz Dubet (2008), uma escola menos injusta. Uma escola que corra o risco de mudanças e mesmo assim não se amedronte frente a inúmeras (re)ações que surgirão no processo de transformação. Pensar em uma escola menos injusta nos remete a pensar numa justiça escolar, a qual, no intuito de incluir, exclui. Que no intuito de igualdade ocorre a desigualdade. Assim, perfeitamente, discorre Dubet (2008, p. 11): Tudo parece a priori muito simples: a igualdade meritocrática das oportunidades permanece a figura cardinal da justiça escolar. Ela designa o modelo de justiça permitindo a cada um concorrer numa mesma competição se que as desigualdades da riqueza e do nascimento determinem diretamente suas oportunidades de sucesso e de acesso a qualificações escolares relativamente raras. Hierarquizando os alunos unicamente em função de seu mérito, espera-se que a igualdade das oportunidades elimine as desigualdades sociais, sexuais, étnicas e outras, que caracterizam todos os indivíduos. Esse tipo de igualdade está no centro da justiça escolar nas sociedades democráticas, isto é, nas sociedades que consideram que todos os indivíduos são livres e iguais em princípio, mas que também admitem que esses indivíduos sejam distribuídos em posições sociais desiguais. Dizendo de outra maneira, a igualdade das oportunidades é a única maneira de produzir desigualdades justas quando se considera que os indivíduos são fundamentalmente iguais e que o mérito pode justificar as diferenças de remuneração, de prestígio, de poder... que influenciam as diferenças de performance escolar. Além disso, construção do saber está intrinsecamente ligada à formação do indivíduo que, por sua vez, está correlacionada ao modelo de Educação e ensino que se pretende ter. Por último, a transmissão do saber não está isenta das contradições que, porventura, surgirão no processo de transformação. Suas referências e relação com o passado acabam por condicioná-la a uma ação educativa do presente - a inovação, e isso é fato histórico. CONCLUSÃO A partir das teorias, dos conceitos e das questões apresentadas, aponta-se a importância de se repensar a interdisciplinaridade e a inovação como ferramentas para uma Educação mais emancipadora, mais crítica e, sobretudo, mais humanizada. 87 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO É necessário muito mais do que coragem para transformar ações em inovações interdisciplinarmente educativas, em um sistema de ensino que (re)considere as múltiplas dimensões existentes no processo educativo. É preciso comprometimento e muita ousadia, além de uma constante persistência, porque as ações inovadoras e interdisciplinares provocam mudanças reais, não somente na estrutura física de uma instituição como nos sujeitos envolvidos, levando-os a aprender com a própria prática. Se, todavia, há o desejo de que esses sujeitos sejam protagonistas de seu aprendizado e conhecimento, ajustes são necessários para novas demandas de aprendizagem. Dessa forma, tem-se que começar modificando a forma pela qual é entendida a educação e seus processos de aprendizagem, além da própria estrutura institucional. Não são somente intenções entre os pares que farão mudanças nas ações, mas diálogos e embates teóricos interdisciplinares que farão os atritos ocorrerem e isso é o movimento necessário para começar uma inovação de práticas e intenções para uma educação transformadora, em qualquer nível de ensino. A interdisciplinaridade tem um papel muito importante nessa dinâmica de inovações, pois integra e auxilia no pensamento promovido pelos métodos educativos, superando as visões descritivas e explicativas na busca da compreensão do mundo. Que ao integrar, contextualizar e situar esses conhecimentos, possibilite abrir os meios para uma compreensão das múltiplas inter-relações existentes entre os sujeitos. É um processo amplo de construção de conhecimento, considerado inovador por estar em permanente processo de construção. Portanto, inovação e a interdisciplinaridade são duas ferramentas importantes na construção de ações que promovam novos conteúdos e práticas educativas, novas redes de comunicações, melhor distribuição e uso dos espaços educativos e melhor planejamento de gestão, do pedagógico e didático. Para que dessa forma haja uma educação inovadora que possibilite a construção de uma metodologia interdisciplinar ativa, que considere o conhecimento como ação cotidiana e não somente como um processo obrigatório de ensino e aprendizagem. Uma educação que venha superar uma visão cartesiana 88 interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção sobre o conhecimento, que consiga potencializar o valor do saber na formação dos sujeitos com uma ética de vida que guie suas atuações cotidianas e, sobretudo, procurando formar bons sujeitos abertos às diferenças, ao diálogo e ao desconhecido. REFERÊNCIAS BERTRAND, Yves; VALOIS, Paul. Paradigmas educacionais: escola e sociedades. Instituto Piaget. Lisboa: Horizontes pedagógicos, 1994. CHARLOT, Bernard. relação com o saber, formação dos professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005. CHRISTENSEN, Clayton; HORN, Michael; JOHNSON, Curtis. Inovação na sala de aula: como a inovação de ruptura muda a forma de aprender. Porto Alegre: Artmed, 2009. DELORS, Jacques...[et al.]. educação um tesouro a descobrir – relatório para a unesCo da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI. 8ª Ed. – São Paulo: Cortez. Brasília, DF: MEC: UNESCO, 2003. DEMO, Pedro. educação e qualidade. 5ª Ed. Campinas,SP: Papirus, 1994. (Coleção Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico) DUBET, François. o que é uma escola justa?: A escola das oportunidades. São Paulo: Cortez, 2008. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: os saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura) FREIRE, Paulo. 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LÜCK, Heloisa. A gestão participativa na escola. 3. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. Série: Cadernos de Gestão. LÜCK, Heloisa. Concepções e processos democráticos de gestão educacional. 4.Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. Série: Cadernos de Gestão. LÜCK, Heloisa... [et al.]. A escola participativa – o trabalho do gestor escolar. 8 Ed. Petrópolis, RJ:Vozes, 2010. MOLL, Jaqueline. Caminhos da educação integral no Brasil. Editora Penso, Porto Alegre, 2011. PARO, Vitor Herique. gestão escolar, democracia e qualidade de ensino. São Paulo: Ática, 2007. 120 p. PERRENOUD, Philippe. ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Portugal: Porto Editora, 1995. TRINDADE, Rui. o Movimento da educação nova e a reinvenção da escola. 1ª Ed. Universidade do Porto, 2012. VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Avaliação da aprendizagem: práticas de mudança por uma práxis transformadora. 9ª Ed. São Paulo: Libertad, 2008. 90 FORMAÇÃO DE PROFESSORES, MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS E ENSINO MÉDIO Margareth Fadanelli Simionato INTRODUÇÃO Estamos vivendo em meio a um período que nos convoca a muitas interpretações. Estamos em meio a mudanças paradigmáticas, movimentos culturais e também a refutação ou reavaliação crítica do projeto pedagógico da modernidade em seus modos de pensar, produzir e agir assim como das polarizações, dicotomias que se construíram ao longo dos tempos, a saber: bem/mal, fato/imaginação, real/virtual, secular/sagrado, público/privado, científico/senso comum, cultura de certezas/cultura de incertezas, dentre tantas outras. Essa visão fragmentada levou a uma concepção de Educação na qual a prática pedagógica se restringia à reprodução do conhecimento, restrita à sala de aula física, num ambiente austero de silêncio e disciplinado. Nesse sentido, a formação de professores tanto no Brasil quanto em outros países do mundo tem sido diretamente influenciada por essas diversas interpretações que também influem nos movimentos de organização e reorganização social do Estado. Essa formação deveria refletir um projeto de nação definido pelas forças políticas que estão no poder, com base em concepções ideológicas. A contradição que se coloca é que, em geral, temos uma formação de professores proposta para um tempo pretérito. Diversas interpretações advém desse tempo de (in)certezas em que ainda estamos vivendo, em que a racionalização da vida tem se tornado inaceitável e desumana. A 91 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO educação contribui em muito para que possamos entender esses movimentos, numa compreensão dialética da realidade social e, nesse contexto, a formação de professores tem um papel muito importante para fomentar esses processos de organização social. Buscando caminhos... A educação é um processo de humanização sendo que a sociedade em geral a considera como necessária, importante e fundamental. A organização dos processos produtivos com base taylorista/fordista implicou na adoção de uma organização da educação que atendesse a demandas educativas oriundas de uma concepção de preparação para o trabalho mediado apenas pelas formas de fazer, excetuando-se a concepção ontocriativa do trabalho. Essas bases materiais favoreceram à adoção de práticas pedagógicas conservadoras em todas as suas modalidades, com base nos modelos condutivistas, privilegiando a separação entre pensamento e ação, pautadas na divisão social do trabalho. A pedagogia desenvolvida para dar conta dessa proposta fundamenou-se nas teorias condutivistas que privilegia a memorização de conteúdos, a repetição de movimentos e tarefas e o ensino individualizado, nunca comprometida com a criação de práticas que estabelecessem a relação entre aluno e conhecimento, em que o aluno se tornasse sujeito de sua aprendizagem (Kuenzer, 2008). Neste cenário, os professores ocupam uma posição estrategicamente central e sensível nas sociedades contemporâneas, especialmente no que se refere às dimensões do desenvolvimento e da mudança social. Ao mesmo tempo em que essa posição é estratégica, o papel desempenhado pelos professores é extremamente complexo, contraditório, permeado de incertezas. Há necessidade de ressignificar este papel para novos tempos e espaços sociais. Tais definições não acontecem de forma isolada, também sofrem influência direta das formulações e concretizações de políticas para a formação de professores. Essas influências ocorrem em diferentes contextos nacionais, configurando-se como um fenômeno mundial. A partir da Constituição Federal, a Lei nº 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) apresenta que a organização da educação brasileira está constituída em duas 92 FormAção de ProFessores, mUdAnçAs PArAdigmÁticAs e ensino mÉdio etapas: educação básica (educação infantil, ensino fundamental e médio) e educação superior. Nesta legislação, a finalidade da educação básica é desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e lhe fornecer meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Em se tratando do ensino médio, torna-se consensual a percepção de que é nessa etapa da educação básica que se concentram os debates mais controversos, seja em função dos problemas de acesso e permanência, seja pela discussão da sua identidade de qualidade social da educação ofertada ou ainda pela formação de seus professores. As problemáticas hoje discutidas que afetam o ensino médio são resultados das descontinuidades da educação pública para o país, da falta de planejamento e de um projeto de democratização tardio e ainda complexo. A proposta contida neste capítulo não é a de discutir todas essas questões que perpassam a atual qualidade do ensino médio ofertada nas escolas públicas, mas sim a de fomentar a discussão sobre a qualidade social da formação de professores para o ensino médio levada a efeito nas instituições de ensino superior do país e seus atravessamentos paradigmáticos. SITUANDO A DISCUSSÃO SObRE A FORMAÇÃO DE PROFESSORES Entre o “dito” pelas legislações, diretrizes, normativas e demais aparatos que orientam a formação de professores e o “feito” na materialidade dos espaços dessa formação e seus desdobramentos no chão de escola nem sempre há uma clara correspondência ao proposto. Essa tensão dialética se renova e se alimenta a partir das contradições entre uma pedagogia que atenda às necessidades do capital e uma pedagogia que promova o desenvolvimento humano e a cidadania. Como essas tensões se constituem e como se materializam nos cursos de formação (enquanto os professores exercem sua docência no cotidiano escolar, mais precisamente no chão de escola do ensino médio), é o que buscamos discutir no decorrer deste artigo. Tem-se claro que, conforme Silva e Muñoz (2012, p. 41): “Nenhum sistema educacional vai assumir que tem por objetivo piorar o ser humano. Parece-me contraditório se 93 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO isto se apresentasse como meta a ser alcançada.” A presente questão não se coloca dessa forma, explicitamente, mas se pode pressupor que ao não atender as condições básicas para uma educação de qualidade1 não estão os governos “piorando” o ser humano? Os organismos internacionais nunca antes formularam tantos documentos orientadores em que a formação de professores estivesse no centro das preocupações. Esses documentos influenciam as formulações das políticas públicas, indicando caminhos para sua estruturação. Exemplo disso está em 2005, quando a OCDE2 publicou um estudo sob o título Teachers Matter: attracting, developing and reatining effective teachers, traduzido no Brasil, em 2006, sob o título Professores são Importantes: atraindo e desenvolvendo e retendo professores eficazes. (OCDE, 2006). Nesse documento, a OCDE apresenta a situação que muitos países filiados enfrentam com a dificuldade de “recrutar” professores qualificados e aponta para o grande número de aposentadorias nos próximos cinco a dez anos. Apresenta como fato consolidado que “[...] os papéis dos professores estão mudando, e esses profissionais precisam de novas habilidades para atender às necessidades de populações de estudantes mais diversificados e para trabalhar de maneira eficaz com novos tipos de equipes nas escolas e em outras organizações.” (OCDE, 2006, p. 3, grifos meus). Chama-se a atenção para duas palavras grifadas, pois a linguagem utilizada no documento explicita a orientação para a formação de professores, que vem sendo difundida por esses organismos. A urgência e a necessidade do desenvolvimento e da qualidade da educação afirmadas, nesse caso, são contraditas pelo tom da linguagem utilizada, pois o uso de marcadores textuais como “habilidades” e “eficaz” no pequeno excerto demonstra a concepção de formação do professor prático-executor, que subjaz a essa proposta. Por outro lado, fazem alertas importantes, tais como o fato de que os atuais professores estão em contato com os futuros professores, fazem parte de uma nova geração de docentes e que seu entu1 2 94 Tripé da qualidade na educação que se traduz por valorização do magistério, condições de trabalho, formação inicial e continuada. Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção siasmo e disposição atual exercem fortes influências sobre a decisão de atuação ou não como docentes, por parte desses professores em formação. O documento aponta, ainda, para o envelhecimento da força de trabalho docente, mostrando que, em média, 25% dos professores de séries iniciais do Ensino Fundamental e 30% dos professores que atuam nas séries finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio têm mais de 50 anos de idade. Tais dados corroboram a indicação de um grande número de aposentadorias apresentado no início do documento. Ao mesmo tempo em que isso se configura como um problema, também abre novas oportunidades, pois configura-se como: [...] a oportunidade sem precedentes para a maioria dos países [...] uma oportunidade única para promover mudanças substanciais na força de trabalho docente e beneficiar-se delas [...] possibilidade de liberação de recursos para o desenvolvimento, uma vez que a força de trabalho mais jovem implica menores pressões orçamentárias. (OCDE, 2006, p. 19). Paralelamente a essa oportunidade, a proposição de uma formação com perfis e finalidades definidas, de acordo com as orientações propostas, promove uma visão pragmatista e utilitarista da educação. Aponta também para as preocupações com a necessidade de melhoria das condições de trabalho docente, tanto no que se refere ao ambiente de trabalho quanto às políticas de carreira docente. Avançando na análise, chama a atenção o perfil de professor proposto no documento, que vem ao encontro desta visão de educação, em que: Os perfis docentes devem englobar amplo conhecimento da disciplina a ser lecionada; habilidades pedagógicas; capacidade para trabalhar de maneira eficaz com uma ampla variedade de estudantes e colegas, contribuindo com a escola e com a profissão; e capacidade para continuar seu desenvolvimento. (OCDE, 2006, p. 13). Observa-se que a apropriação do conhecimento sócio-histórico em sua materialidade dialética não está proposta, mas sim o desenvolvimento de um trabalho eficaz através da formação de habilidades e competências, adequadas ao trabalho de natureza capitalista. Ainda, a orientação pautada na eficácia e no saber fazer fundamenta a concepção do professor como o prático, retomando noções da racionalidade 95 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO técnica e privilegiando a prática pela prática. Esse perfil conota uma orientação para um modelo de formação que se apoia em uma abordagem mais próxima de uma concepção técnico-instrumental pautada na formação humana, tendo o trabalho como princípio educativo. Este perfil proposto pela OCDE é resultado da proposição de diretrizes comuns, possíveis de serem aplicadas aos sistemas públicos de países após a análise desses sistemas em diferentes realidades nacionais. A valorização da relação instrumental com o saber, na perspectiva de adequação com o mercado de trabalho, na qual a escola está a serviço da economia, vai de encontro à proposta de formação omnilateral do humano que supera o conhecimento estrito da técnica, mas propõe a apropriação de seus fundamentos científicos e históricos, na perspectiva de trabalho, em seu sentido histórico e ontológico. Esses embates adentram a escola e a sala de aula do Ensino Médio, onde, se o professor não tiver uma formação pedagógica que promova seu compromisso social com os alunos e que rompa com a visão imposta pelo capital, sua prática não refletida favorecerá que coadune com os princípios do ensino por competências, meramente instrumental. Nas últimas décadas do século XX e no início do século XXI, assistimos a uma expansão quantitativa da educação escolar, a ampliação de práticas formativas fomentadas pela implementação da reforma educacional deflagrada a partir e por força da Lei 9394/96 e suas posteriores regulamentações. Em meio a isso, pesquisadores, educadores e demais envolvidos com a educação voltam suas preocupações para a construção de novas formas de pensar e agir no campo da formação profissional do professor que atenda a essa nova sociedade, que está diretamente ligada a novas formas de organização do trabalho pedagógico, (VEIGA, 2002). Esse embate, através do qual a OCDE propõe diretrizes para formação de professores e um “modelo” para formação de professores, torna-se inadequado, pois conforme Kuenzer (1999, p. 166), estes são: [...] modelos que se diferenciam, dadas as concepções de educação e de sociedade que correspondem às demandas de formação dos intelectuais (dirigentes e trabalhadores) em cada etapa de desenvolvimento das forças produtivas, em que se confrontam finalidades e interesses que são contraditórios. (KUENZER, 1999, p.166) 96 interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção Conforme a autora, os projetos de formação respondem a configurações distintas, sendo que uma delas se origina nas mudanças ocorridas no mundo do trabalho e nas relações sociais e a outra se origina a partir de diferentes posições assumidas pelos grupos que ocupam o poder, conforme também orientações emitidas pelos organismos multilaterais. Para compreender as atuais políticas para a formação de professores da Educação Básica e Profissional é necessário que se compreenda essas configurações na tentativa de construir consensos: “se há projetos pedagógicos contraditórios, consequentemente não existe uma única proposta de formação de professores, mas propostas que se diferenciam a partir das formas históricas de organização e gestão do trabalho, visando atender a divisão social e técnica que o trabalho assume em cada regime de acumulação. (KUENZER, 2011, p. 670) A possibilidade de entender a docência como atividade complexa, que exige uma preparação cuidadosa, ou seja, a multiplicidade de saberes e conhecimentos que estão em jogo na formação, demanda outra formação do professor que atua no ensino médio. Veiga (2008, p. 14) agrega mais uma característica da docência que está ligada à inovação: “[...] quando rompe com a forma conservadora de ensinar, aprender, pesquisar e avaliar; reconfigura saberes, [...] explora novas alternativas teórico-metodológicas; [...] procura a renovação da sensibilidade.” Para a autora, a formação para a docência implica compreender seu papel de tal maneira que proporcione o aprofundamento científico-pedagógico necessário para que o professor entenda a escola e seus revezes como uma instituição social, permeada por incertezas, que requer uma prática social crítica e reflexiva. A docência implica a consciência do inacabamento, da coletividade, da emancipação da adoção de uma opção política e epistemológica. Também é relevante considerar, na condição docente, a importância das experiências familiares e anteriores a essa formação, assim como o tempo em que ficamos assistindo um professor desenvolver seu ofício enquanto estamos na condição de aluno. Conforme Tardiff (2002, p. 20), o professor é o único profissional constantemente exposto ao exercício de sua profissão, em que, “[...] antes mesmo 97 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO de ensinarem, os futuros professores vivem nas salas de aula e nas escolas – e, portanto, em seu futuro local de trabalho – durante aproximadamente 16 anos (ou seja, em torno de 15 mil horas) [...] tal imersão é necessariamente formadora [...].” Para Fernández Enguita (2004), existem poucas profissões (e questiona se realmente existe outra) em que a atividade realizada pelo profissional em relação ao serviço recebido pelo cliente é tão coextensiva quanto na educação. Chama a atenção para o fato de que não se passa todo esse tempo com outros profissionais, na relação de serviço, seja o dentista, o médico, o engenheiro etc. São sutilezas da profissão docente que passam despercebidas, mas que possuem enorme significado na representação da docência. Essa exposição coextensiva a práticas de professores, vivenciando suas atuações, sendo influenciados por sua cultura docente, propicia a construção de saberes sobre a docência que marcarão fortemente as futuras atuações docentes em suas estreias como professores. Esses saberes construídos são diversos tendo em vista o tipo das práticas a que cada um foi exposto. Dito de outra forma, a convivência com professores que desenvolvem boas práticas docentes leva à construção de saberes neste sentido, assim como a exposição a práticas docentes repetitivas e memorísticas, que carecem de criatividade, podem contribuir para a construção de saberes sobre a docência neste outro sentido. Marcelo (2002a, [s.p.]) faz algumas colocações pertinentes ao questionar: “Como vemos a profissão docente e seus sinais de identidade no momento atual? [...] Podemos identificar dimensões que permitam, de forma constante, identificar o docente e distinguir sua cultura e identidade de outros profissionais?” O autor identifica quatorze constantes que podem dar pistas para as respostas a essas perguntas: • milhares de horas com os alunos não são gratuitas: a socialização prévia; as crenças sobre o ensino dirigem a prática profissional; • o conteúdo que se ensina constrói identidade; fragmentação do conhecimento docente: alguns conhecimentos valem mais do que outros; • aprende-se a ensinar ensinando: o valor do conhecimento prático; 98 interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção • • • • • • • o isolamento: cada qual é senhor em sua aula; os alunos e a motivação profissional; a carreira docente: aquele que sai da sala de aula não volta; tudo depende do professor, os docentes como artesãos; o docente como consumidor: fast-food na sala de aula; a competência não reconhecida e a competência ignorada; o que se faz com essas geringonças: desconfiança ante as tecnologias; • a influência incompleta dos docentes; começar a ensinar: quanto mais difícil melhor. Ele considera cada uma dessas constantes como o desafio de desenvolver processos que ajudem a situar a profissão docente como uma “profissão do conhecimento”, comprometida com o direito de aprender dos alunos. Não se trata, portanto, de esperar que as mudanças batam à porta da escola. Nem tampouco de introduzir computadores nas aulas como sinal externo de ultramodernidade. A docência como profissão precisa rever-se e reconstruir-se, para “[...] continuar cumprindo os compromissos morais que veio desenvolvendo: assegurar o direito de aprender de todos os meninos e meninas, adultos e adultas.” (MARCELO, 2009a, [s.p.]). O que temos, em nossa realidade atual, são cursos de licenciatura, em sua maioria segmentados em torno de áreas de conhecimento distintas, por vezes com uma considerável carga horária destinada à formação específica no campo de conhecimento específico em detrimento do campo de conhecimentos pedagógicos. Com isso, escancara-se um dos grandes problemas na formação do professor do ensino médio: a articulação necessária entre conhecimentos da docência e conhecimentos específicos da área. Esse professor, nessa formação, precisa dominar o conteúdo específico de sua disciplina e, além disso, construir e desenvolver habilidades e competências3 necessárias para o enfrentamento do desafio das situações do cotidiano escolar. Além disso, precisa articular tais conhecimentos na perspectiva formativa, contextualizada e interdisciplinar proposta nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio 4 articulando trabalho, 3 4 Utiliza-se aqui o termo competências por ser o que consta no texto legal. Parecer CNE/CEB nº 5/2011. 99 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO ciência e cultura como conceitos fundantes da vida cidadã. O trabalho é tomado como princípio educativo, não subordinado a uma lógica econômica, mas compreendido como práxis humana: não porque sob o modo de produção capitalista ele se transforma em mercadoria e aliena o homem de sua própria produção; mas porque, sob a dimensão civilizatória do próprio capitalismo, este tende a revolucionar permanentemente os meios de produção. Deste modo, não é o trabalho concreto nem o trabalho alienado o princípio educativo, mas o trabalho como elemento da atividade geral e universal que, no seu estado mais avançado guarda o momento histórico objetivo da própria liberdade concreta. (RAMOS, 2004, p. 51) No estudo realizado por Gatti (2010), a autora analisou currículos e ementas de três cursos de formação de professores que são considerados os que contêm a maior carga horária na educação básica, sendo eles: Letras, Matemática e Ciências Biológicas. A amostra dos cursos contemplou todas as regiões do país, por dependência administrativa e tipo de instituição, totalizando em média 30 cursos de cada uma das licenciaturas analisadas. A pesquisadora encontrou grande dissonância entre o proposto nos projetos pedagógicos dos cursos e as ementas das disciplinas, não refletindo a concepção proposta no documento com o conhecimento abordado nas disciplinas. Nos cursos de Língua Portuguesa e Ciências Biológicas, mais de 50% da carga horária foi dedicada à formação específica na área, restando em torno de 10,5% de carga horária para formação para docência. Na licenciatura de Matemática, esses percentuais são mais equilibrados. Já no caso dos estágios, estes não apresentam especificações claras nos projetos pedagógicos dos cursos, não estando clara a existência ou não de convênios com escolas ou redes escolares, assim como se observaram poucas articulações entre as disciplinas que trabalham conteúdos específicos (da área disciplinar) com os conteúdos pedagógicos (voltados para a docência). Ainda neste estudo, os dados revelam irrisória carga horária para disciplinas que contemplem estudos relacionados aos sistemas educacionais, sendo pouco abordados os aspectos ligados a currículo, gestão escolar e ofício docente. Parte dessas licenciaturas oferece uma especialização precoce em recortes do conhecimento específi100 interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção co da área que poderiam ser abordados em programas de formação continuada ou em cursos de pós-graduação. Dito de outra forma, essas licenciaturas preconizam a formação de outro profissional que não a do professor. O que precisamos é formar professores em cursos de licenciatura que estabeleçam aproximações com a realidade e com as condições materiais e objetivas das escolas em que ensinarão. Que possam trabalhar com o aluno real, com o jovem e suas juventudes em seus protagonismos e contradições, não idealizando situações propostas por um currículo elaborado em outro momento histórico. Tanto o acadêmico em formação quanto o aluno da escola básica precisam estar no centro das decisões políticas. É preciso que os futuros professores tenham acesso a informações, que sejam capazes de selecionar, criticar e usá-las adequadamente. O ensino vinculado à prática, em qualquer campo do conhecimento das licenciaturas, não apenas à prática na escola, mas também à prática em laboratórios, que é fundamental para que o futuro professor aprenda a lidar com equipamentos mais elaborados e sofisticados. Por outro lado, é preciso também que aprenda a improvisar quando as escolas não dispuserem desses equipamentos. A capacidade de improvisação não pode significar resignação diante da situação precária em que se encontram muitas das escolas públicas no Brasil, mas deve potencializar a exigência de melhores condições de trabalho. Um ensino significativo na escola requer transformações nas relações e posturas de professores e alunos. Nesse aspecto, a Universidade tem um papel fundamental tanto na elaboração de seus currículos quanto na formação e aperfeiçoamento de seus docentes. A desvalorização da docência, em todos os níveis de ensino, é um fator que desestimula os jovens a se iniciarem e a prosseguirem na carreira. Políticas mais efetivas nesse sentido precisam ser implementadas e, com rapidez, no caso brasileiro. PROFESSORES DO ENSINO MÉDIO: qUE FORMAÇÃO SOb qUAL PARADIGMA... Há um movimento considerável na qualificação e elevação da formação dos professores, o que reforça a necessidade de rever o 101 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO tipo de formações em licenciaturas que está sendo ofertado aos professores. Também há movimentos tanto no sentido de formulação quanto no sentido de articulação de políticas públicas de formação docente. De acordo com Moehlecke (2012, p.44), “algumas políticas recentes vêm convergindo para a redefinição e o fortalecimento do ensino de nível médio”, sendo que dentre elas podemos citar o Fundo de Manutenção e desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, (FUNDEB); o Programa Brasil Profissionalizado, que promove subsídios para a integração do Ensino Médio à Educação Profissional, o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica, conhecido como PARFOR5. Essas políticas visam “construir para esse nível de ensino, uma nova concepção e uma nova organização curriculares, mais atentas às mudanças em nossa sociedade e às demandas de seu público diversificado.” (MOEHLCKE, 2012, p.45). Em 2009, o MEC apresentou o Programa Ensino Médio Inovador, com subsídios técnicos e financeiros aos estados com o objetivo de, a partir das propostas inovadoras no âmbito curricular e pedagógico, fomentar as necessárias mudanças no EM no sentido de reorganizar curricularmente a escola, flexibilizando currículos, incentivando atividades integradoras e interdisciplinares articuladas aos eixos que constituem o EM, o trabalho, a ciência e a cultura. Para Kuenzer (2011, p. 673), esses programas são ainda recentes e precisam ser avaliados “no que tange a sua efetividade, em termos de impacto das ações na qualidade do trabalho escolar, uma vez que a qualificação individual do professor não necessariamente resulta em melhoria dos indicadores de qualidade do trabalho da escola media.” Esses programas e projetos apontam para um movimento importante no que tange à formação de professores no Brasil, que de acordo com Kuenzer (2011, p. 672) “a política de formação só tem sentido quando integrada a estruturação da carreira docente, a po5 O PARFOR tem por objetivo induzir e fomentar a oferta de educação superior, gratuita e de qualidade, para professores em exercício na rede pública de educação básica para que estes profissionais possam obter a formação exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB e contribuam para a melhoria da qualidade da educação básica no País. 102 interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção lítica salarial que assegure a dignidade do professor e a garantia de condições adequadas de trabalho.” A autora também chama a atenção para o fato de que em que pese à intenção de promover a licenciatura ao status de curso com identidade, em substituição ao caráter de complementaridade do bacharelado, o que se verifica é que o modelo anterior não foi completamente superado, mantendo-se mediante estratégias de organização curricular. (KUENZER, 2011, p. 674). A formação do professor que atua no Ensino Médio precisa articular diferentes campos que compõem a docência, tais como: os conhecimentos científico-tecnológicos, os saberes da docência e os conhecimentos sobre o mundo do trabalho aliados a uma formação em pesquisa e incursões pela prática docente. Somente assim os cursos de formação de professores estarão preparando para a realidade social concreta com que nos deparamos no dia a dia do chão de escola do ensino médio. Porém, cabe aqui finalizar essa seção retomando o que Mezaros nos alerta quando se trata de reformas ou mudanças nos velhos sistemas de formação dos professores: Apenas a mais ampla das concepções de educação nos pode ajudar a perseguir o objetivo de uma mudança verdadeiramente radical, proporcionando instrumentos de pressão que rompam a lógica mistificadora do capital. Essa maneira de abordar o assunto e, de fato, tanto a esperança quanto a garantia de um possível êxito. Em contraste, cair na tentação dos reparos institucionais formais – `passo a passo`, como afirma a sabedoria reformista desde tempos imemoriais - significa permanecer aprisionado dentro do círculo vicioso institucionalmente articulado e protegido dessa lógica autocentra do capital. ( MEZAROS, 2008, p. 48) CONSIDERAÇõES FINAIS Promover uma formação inicial aos professores que atuam no Ensino Médio requer que esta deixe de ser compreendida como algo desvinculado da realidade social. Isso requer inovação no planejamento dos percursos formativos e das ações a serem realizadas pelos professores, assim como ousadia para mudar e subverter o instituído. Avançar nesta perspectiva implica abandonar enfoques idealizados de formação e analisar as tensões pessoais, políticas sociais e ideológicas 103 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO encontradas no trabalho diário da docência e suas relações com a práxis humana. Com isso, abandona-se a inútil busca do “modelo” do professor ideal que pretende definir o que o professor deve ser e o que deve pensar, como era proposto no paradigma tradicional. O paradigma da complexidade é um desafio à Educação de possibilitar ao aluno um processo de ensino e aprendizagem holístico, resgatando o ser humano como um todo, mais do que habilidades e competências – uma Educação que propicie a visão da totalidade, propondo uma ação docente alicerçada na aliança de três abordagens – a visão sistêmica/holística que resgata o ser humano em sua totalidade, a abordagem progressista que tem como pressuposto central a transformação social e o ensino com pesquisa que considera o aluno e o professor como pesquisadores e produtores dos seus próprios conhecimentos. A qualidade social do ensino somente será alavancada quando um conjunto de fatores for acompanhado com muita atenção pela sociedade e pelos organismos responsáveis pela educação no país. Esta qualidade somente se efetivará quando houver uma verdadeira valorização dos profissionais do magistério a partir de políticas públicas que englobem a formação inicial, as condições de trabalho, o salário, a carreira e a formação continuada. A formação do professor precisa estar pautada em consistentes aspectos teórico-conceituais, na dimensão política de sua ação, no saber ensinar e na dimensão pedagógica da sua própria ação alicerçada em propostas formativas nas quais o professor analise o trabalho sobre práticas efetivas na perspectiva de uma formação através da ação-reflexão-ação. Um grande desafio que possibilite ao aluno um processo de ensino e aprendizagem holístico, retomando o que Comenius já propunha em sua Didactica Magna: ensinar tudo a todos, uma educação omnilateral, resgatando o ser humano como um todo. Compreender que o conhecimento não é algo acabado nem definitivo. Conforme as leis da Física Quântica, mesmo os objetos são relativos, dependendo do olhar do observador, ou ainda como Heraclito de Efeso já nos alertava sobre a mudança, volatividade: tudo se move, tudo escorre 104 interdisciPlinAridAde e inovAção sAberes e PossibilidAdes nA edUcAção – panta rhei; assim como não podemos nos banhar no mesmo rio duas vezes, pois nem a água nem nós somos mais os mesmos. Uma formação proposta a partir do paradigma da complexidade para uma Educação que propicie a visão da totalidade, que tem como pressupostos centrais a transformação social e o ensino com pesquisa, que considere o aluno e o professor como pesquisadores e produtores dos seus próprios conhecimentos. Dito de outra forma, uma formação que esteja conectada com as atuais mudanças na realidade social especialmente no mundo do trabalho, que exija aprofundamento nos conhecimentos específicos e uma sólida formação geral pedagógica e aliada a uma formação que articule ciência, cultura e trabalho. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Lei 9394/96 de 20 de dezembro de 1996. lei de diretrizes e Bases da educação nacional. Disponível em <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis /L.9394.htm>. Acesso em: 10 jun. 2013. BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP). Censo escolar da educação Básica 2012. Disponível em: www.inep.gov.br Acesso em 09 jun 2013. FERNANDEZ ENGUITA, Mariano. educar em tempos Incertos. Porto Alegre: Artmed, 2004. FRIGOTTO, Gaudêncio. Sujeitos e conhecimento: os sentidos do ensino médio. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria. ensino médio: ciência, cultura e trabalho. Brasília: MEC, SEMTEC, 2004 GATTI, Bernardete A. Formação de professores no Brasil: características e problemas. educação e sociedade. V.31, n.113, out-dez. 2010, p. 1355-1379. KUENZER, Acácia Zeneida. A formação de professores para o Ensino Médio: velhos problemas, novos desafios. educação e sociedade. Campinas, v. 32, n. 116, p. 667-688, jul.-set. 2011 Disponível em http://www.cedes.unicamp. br. Acesso em 10 jun 2013. KUENZER, Acácia Zeneida. As Políticas de Formação: a constituição da identidade do professor sobrante. educação e sociedade. Campinas, v. 20, n. 68, p. 163-183, dez. 1999. 105 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO MARCELO, Carlos. Los Comienzos en la Docência: um profesorado com buenos princípios. Profesorado, Granada, v. 13, n. 1, 2009a. Disponível em: <http://redalyc.uaemex. mx/src/inicio/HomRevRed.jsp?iCveEntRev=567>. Acesso em: 02 jun. 2013. MEZAROS Istvan. A educação para além do capital. São Paulo. Boi Tempo, 2008. MOEHLECKE, Sabrina. O ensino médio e as novas diretrizes curriculares nacionais: entre recorrências e novas inquietações. revista Brasileira de educação. V. 17 n.49 jan-abr. 2012. (p.39-58) TARDIFF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. OCDE. Professores são importantes: atraindo, desenvolvendo e retendo professores eficazes. São Paulo: Moderna, 2006. RAMOS, Marise N. O projeto de ensino unitário de ensino médio sob os princípios do trabalho, ciência e da cultura. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria. ensino médio: ciência, cultura e trabalho. Brasília: MEC, SEMTEC, 2004. SILVA Clemildo A. MUÑOZ, Manuel A. D. diversidade na educação, respeito e inclusão. valores éticos e comportamentos pro-sociais. Porto Alegre. EDIPUCRS- Editora Universitária Metodista IPA, 2012. VEIGA, Ilda P.A. Prefácio. In: SHIGUNOV NETO, Alexandre; MACIEL, Lizete S.B. Reflexões Sobre a Formação de Professores. São Paulo: Papirus, 2002. P. 7-10. 106 LEITURA, FORMAÇÃO DOCENTE E EMANCIPAÇÃO HUMANA Emanoel Rodrigues Almeida Ingrid Vanessa de Oliveira Clemildo Anacleto da Silva INTRODUÇÃO A leitura e a formação docente são processos decorrentes da materialidade histórica. Os diferentes modos de produção (primitivo, tributário, escravagista, feudal) dos bens materiais necessários à reprodução do ser social condicionam a leitura e a formação docente, determinando-as. Esta determinação ocorre também no modo de produção capitalista. Nele, a leitura e a formação docente mantêm uma relação de dependência ontológica e autonomia relativa com o capital. O que significa dizer que tanto a leitura quanto o processo de formação docente exalam as características do modo de vida capitalista. No entanto, a leitura e o processo de formação docente mantêm, ao mesmo tempo, uma relação de autonomia relativa quanto ao modo de produção capitalista. Nestas circunstâncias de autonomia relativa, a leitura e o processo de formação docente são atos que apontam para o horizonte da emancipação humana, portanto para além dos limites da produção capitalista. No Brasil, especificamente no contexto da educação tecnicista e contra hegemônica1, percebe-se claramente a relação de dependência 1 Na obra História das ideias pedagógicas, Dermeval Saviani caracteriza, com precisão, estes dois momentos históricos da educação brasileira: a tecnicista e a contra-hegemônica. Segundo o autor, o período de 1969-1980 marca a pedagogia tecnicista no Brasil. Contrapondo-se à pedagogia tecnicista surge, no Brasil, o que Saviani denomina de ensaios contra-hegemônicos que compreendem o período de 1980 a 1991. 107 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO ontológica e autonomia relativa que a leitura e a formação docente mantêm em relação ao modo de produção capitalista. Ficou-nos claro que, predominantemente, as práticas tecnicistas prevaleceram em detrimento das práticas histórico-críticas de educação. O paradigma tecnicista marcou predominantemente a leitura e a formação docente. Tal paradigma tornou-se hegemônico. Todavia, não se pode negar a existência de práticas de leitura e formação docente fundamentada por um paradigma de educação histórico-crítico, portanto contra-hegemônico. Isto posto, esse texto tem por objetivo apresentar a leitura e a formação docente como atos históricos decorrentes da emancipação humana. A EMANCIPAÇÃO HUMANA COMO CONDIÇÃO ObjETIVA PARA A PROMOÇÃO DA LEITURA E DA FORMAÇÃO DOCENTE Esta parte do trabalho remeterá à emancipação humana como condição primeira para a leitura e para a formação docente. A partir da concepção de que o indivíduo se encontra em uma condição impossibilitada de agir conscientemente na sociedade capitalista é que apresentaremos a emancipação humana como condição possível para uma formação total, a qual compõe o indivíduo em sua totalidade com a realidade. A leitura, por estar relacionada com o processo formativo do homem, deve compor em sua função social a integralização do indivíduo com o mundo real. Contudo, em conformidade com o pensamento de Tonet (2012), no âmbito do capitalismo, o homem não é determinado a pensar, porque da mesma forma que há uma divisão de classes, há também uma fragmentação das ações humanas, logo, o grupo que é composto pela maioria da sociedade não está determinado a pensar. Consequentemente, o sujeito é formado para pensar ou para praticar o trabalho improdutivo, as duas formações não se dinamizam entre o sujeito singular, uma se contrapõe à outra. Do mesmo modo que a leitura recebe subordinações da ordem social capitalista, a formação docente é fragilmente atingida por esse processo uma vez que está implicada com a condição de formar su- 108 leitUrA, FormAção docente e emAnciPAção hUmAnA jeitos para uma economia de mercado. O ensino docente, por estar orientado por grupos hegemônicos, assume um caráter de reprodutor das condições que vigoram no âmbito social. Por sua vez, a formação do educador enfrenta o embate entre reproduzir a conjuntura desumana ou transformar o corpo social por meio da emancipação dos homens, já que, como explicita Tonet [...] “Para o capital, dada a sua lógica, sua reprodução é a questão mais importante, mesmo que isso signifique a destruição da humanidade”. (TONET, 2012, p. 62). Sob essa perspectiva, a formação docente necessitaria tomar outra postura diante da função social que exerce entre os homens; tal atitude teria como embasamento a emancipação humana. A emancipação do homem consiste em formar um raciocínio inovador, que exerça uma direção para a superação do sistema que vigora. Emancipar não liberta o ser para uma democracia sustentada no mesmo processo das relações de classes; a emancipação constrói no homem o desejo incessante de modificar o meio em suas bases para que todos façam parte da transfiguração do corpo social. É sob essa égide que trabalharemos leitura e formação docente como processo de emancipação humana na sociedade contemporânea. LEITURA E FORMAÇÃO DOCENTE SOb O ENFOqUE DA EMANCIPAÇÃO HUMANA Nesta parte do trabalho, trataremos da leitura e da formação docente como atos decorrentes da emancipação humana. Toda produção do conhecimento é reflexo das relações entre grupos sociais e seus respectivos períodos históricos, bem como a formação docente, que é resultante das determinações da ordem classista. Leitura e formação do educador assumem um papel social e são determinantes nas relações dos sujeitos. O trabalho é a gênese da interferência do homem com o corpo social e para o sujeito efetivar-se como um ser racional, este elabora e utiliza mecanismos para validar sua existência na sociedade. No desdobramento da história da humanidade, tornar-se humano significa adquirir conhecimentos, refletir sobre o elemento investigado e a agir racionalmente no campo social. Isto é, racionalizar-se denota 109 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO explorar um fenômeno e agir sobre este de modo consciente. Formar-se integralmente permite ao indivíduo a compreensão dos fenômenos humanos em sua essência e a atuação ciente do ser sobre o que se apresenta. A formação integral não consiste em dividir a formação humana em produção prática e produção intelectual. Logo, o homem necessita fazer-se conhecedor absoluto da construção dos saberes que fundamentam a lógica da sociedade. A formação absoluta constrói o homem em sua totalidade, que reflete e participa do meio. Os grupos humanos, formados sob a égide capitalista, são determinados a cumprir, de acordo com sua condição no meio, uma função no corpo social. Os indivíduos compreendem os fenômenos de maneira compartimentada e não verificam a essência que arquiteta a sociedade, e sua formação, construída perante o discurso da aprendizagem total, dá-se na concepção de que eles necessitam adquirir habilidades para conviver no campo social e conquistar seu espaço neste corpo, compactuando (consciente ou inconscientemente) com a reprodução da sociedade. No sistema capitalista, a formação absoluta do ser omite a estrutura que conserva as condições da atual sociedade. Com isso, formam-se homens pensantes e mão de obra trabalhista. Tonet acentua que: Curiosamente, mas não por acaso, na sociedade burguesa, essa formação integral também inclui a preparação para o trabalho. Quando, porém, essa formação é desnudada dos elementos superficiais e ideológicos, deixa ver que ela nada mais é do que a formação de mão de obra para o capital. (TONET, 2007, p. 77). A finalidade da ordem capitalista não está de acordo com o bem comum do conjunto social, mas privilegia um grupo seleto deste meio. A divisão de classes justifica a formação que é prestigiada como ideal para os homens, uma vez que evidencia seu propósito primário (formar para o desenvolvimento econômico) e despreza os saberes constituidores de transformação da organização social. A educação, neste contexto de ordem hegemônica, potencializa a estrutura construída pelo capital e seu papel social é de [...] “apropriação dos conhecimentos, habilidades e valores necessários para se tornarem membros do gênero humano” (TONET, 2007, p. 80). 110 leitUrA, FormAção docente e emAnciPAção hUmAnA Logo, atende aos anseios das classes hegemônicas. A função social da educação, resultante da condição ascendente do capital, consiste em tornar limitada a ação dos seres sobre o campo social. Dessa forma, cada sujeito tem seu espaço na sociedade e a educação auxilia neste processo de encontro do ser com seu lugar no âmbito da sociedade. A tônica do discurso feito sobre a educação na organização capitalista dá-se sobre o respaldo de que o sujeito necessita ser formado para interagir com a sociedade que se movimenta de acordo com o desenvolvimento econômico. De tal modo, deve-se agregar o indivíduo através do instrumento educativo. Isto requer capacitá-lo para que o sujeito possa operar em diversos setores da sociedade, realizando um trabalho produtor gerador de mais valia. Verifica-se que a formação integral, na lógica do capital, limita a instruir o homem para as diversas práticas laborais dos setores econômicos da sociedade. Com tal característica, a evidência da produção de mais valia surge como estímulo para uma educação integral que esteja de acordo com os fundamentos do progresso financeiro. Tonet expressa que a educação no contexto do capital é uma “mediação para reprodução social e terá, sendo esta uma sociedade de classes, suas funções sociais voltadas predominantemente para a reprodução das relações dominantes desta forma de sociabilidade”. (TONET, 2007, p. 32). A concepção do autor intensifica o entendimento de que o instrumento educativo é o meio que mantém as relações sociais ativas e efetiva, de maneira intensa, a estrutura estabelecida. É o intermédio que atinge em curto prazo, um número alto de sujeitos que efetuam a preservação do contexto. A formação docente é desencadeada a partir do movimento educacional que vigora na sociedade. Logo, pretende-se, também, que a formação do educador esteja de acordo com os propósitos de desenvolvimento de uma sociedade alicerçada pelos princípios econômicos. A natureza do mundo, bem como a essência do homem, é compreendida por meio do raciocínio humano, que dinamiza o entendimento racional dos elementos em decorrência da sua evolução. É no alicerce do exercício do trabalho que o conhecimento científico dos objetos construídos e em construção é fundado, por sua vez, o caráter 111 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO do trabalho é resultado de um pensamento racionalizado já que o homem exerce uma interação com a natureza. Alves (2000) recorda que [...] “O espaço se racionaliza sob a exigência da organização” (ALVES. 2000, p. 18). Assim, o pensamento científico é fundamentado na sistematização de uma dada sociedade. É na relação do processo de desenvolvimento da sociedade que está implicada a atividade entre ciência e trabalho. Sobre o exposto, afirma Neto [...] “subsiste uma relação intrínseca entre ciência e trabalho, pois todo processo de objetivação do trabalho presume certa compreensão da realidade que visa transformar”. (NETO. 2014, p. 41). Configura-se, portanto, a concreta finalidade para produzir-se ciência no meio social e a atribuição entre o campo científico e o exercício do trabalho, já que este fundamenta as relações sociais, e como princípio da ciência, o mesmo é complexificado com o propósito de metamorfosear o meio. Na atual conjuntura social, cujo movimento da sociedade tem seu trânsito em torno de um sistema que valoriza o capital, a ciência atua como ferramenta de reprodução do princípio capitalista. Desse modo, o pensamento científico fundado nesse ideal, despreza qualquer forma de aproximação entre essência do ser e sua existência com o meio. Acerca da reflexão, Neto expõe: “[...] Merece destaque que na Antiguidade [...] inexistia a profunda disjunção entre a ordem do ser e a ordem do pensamento, porque o conhecimento das coisas não estava desarticulado da realidade objetiva” (NETO. 2014, p. 60). O cunho científico na sociedade de classes desmembra o homem da sua essência com sua existência já que o ideal do modo de produção econômico é articular o sujeito ao processo de produção do capital. Haja vista que, nesse cenário, construir conhecimento demanda apenas conscientizar o indivíduo para o desenvolvimento das diversas atividades braçais. No contexto contemporâneo emerge uma construção do conhecimento fundamentada no imediatismo da atividade social. De acordo com esse princípio, a construção do conhecimento se desloca para o campo mecânico de sua produção uma vez que seu objetivo não destina transformar a realidade efetivada. Neto (2014) observa que: 112 leitUrA, FormAção docente e emAnciPAção hUmAnA A ciência mostrou seu caráter prático e de articulação com o mundo do trabalho, à medida que as investigações científicas passaram a colaborar na subversão da ordem produtiva existente e revolucionaram as relações de produção. (NETO. 2014, p. 61) De fato, a construção do conhecimento, detida no sistema de sociedade que vigora, converte as relações de trabalho para o desenvolvimento do capital e faz o movimento inverso da sua natureza ao desarticular o sujeito como parte integrante da sociedade, produtor de saberes estruturados com a prática social, compositor de uma essência, capaz de agir sobre os elementos constituídos na natureza. O processo de construção do conhecimento é decorrente da atividade leitora que se estabelece entre os homens. A ação leitora é uma atividade vinculada à construção dos saberes dos sujeitos, de modo que também propicia a ação consciente do mesmo no meio em que vive. Como descreve Lajolo (2000) quando expõe que a leitura é um decurso que deve ser vivenciado em um movimento torvelino, por conseguinte se parte da leitura para apreender o mundo, compreende-se a leitura segundo a concepção e apreensão do universo. Dessa maneira, a interferência do homem emerge como ato imprescindível, dado que a atividade leitora ascende como práxis no meio social. O homem, outrora inconsciente de sua essência e existência, surge inteirado de suas ações, capacitado a reverter sua realidade. O ato leitor dispõe de um caráter formativo e contribui para uma formação articulada com o meio. Para Freire (2000), o sentido da leitura está na conjuntura entre a natureza dos homens e sua vivência no meio social. Dessa forma, a acepção da leitura constitui-se sobre uma compreensão integral do ser com o objeto, do homem como agente das mudanças no âmbito social. Freire (2000) evidencia que: [...] aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, não numa manipulação mecânica de palavras, mas numa relação dinâmica que vincula linguagem e realidade. (FREIRE, 2000, p. 8) A ação leitora necessita instigar o ser para a mudança constante do contexto. Esse ato deve demonstrar o anseio pela autonomia dos 113 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO sujeitos, atores do modo de agir contra qualquer força totalitária que se impulsiona das desigualdades sociais. A leitura, nesse contexto, instiga a interferência do indivíduo na dinâmica social, na sua própria história, assim como na história dos outros seres sociais; é um ato que não enclausura os homens em verdades absolutas, das quais menosprezam a amplitude dos fatos. Surge, com as reflexões freireanas, uma educação como ação política, não neutra e como resultado dessa reflexão, uma prática leitora como significação de vivência de mundo e aprendizagem, que interfere diretamente na transmutação da sociedade. Freire advoga que a compreensão do contexto social pelos sujeitos praticantes da leitura é fazer-se existente e parte integrante do meio e da história dos homens, é viver e conviver em plenitude na sociedade. O ato de ler contribui com o homem para que este se identifique com a sua essência. Portanto, a compreensão da ação leitora, no ideário da emancipação dos homens, identifica o sujeito como ator independente, possuidor de um mecanismo que envolve ideários políticos e ideológicos. Emancipar os indivíduos de uma sociedade estruturada no conceito capitalista sugere a superação dessa estrutura para que haja efetiva autonomia dos seres sobre o corpo social, bem como avalia Tonet (2007, p. 78) “[...] Uma formação realmente integral supõe a humanidade constituída sob a forma de uma autêntica comunidade humana, e esta pressupõe, necessariamente a supressão do capital. Com a ordem capitalista suspensa, o sujeito se autoconstrói como componente absoluto da espécie humana, fixando-se articuladamente com o corpo social”. A emancipação humana decorre dos atos formativos do gênero humano, as leituras são consequências de valores políticos e econômicos, portanto acarretam um tipo de indivíduo que se pretende formar e este não é constituído para transformar o meio em que atua. Emancipar-se denota transfigurar ininterruptamente as relações sociais e para que este ato ocorra outra forma de trabalho é proposta, já que o trabalho é fundante das relações sociais. Tonet acentua que: Uma forma de trabalho que se caracteriza pelo domínio livre, consciente e coletivo dos produtores sobre o processo de produção e distribuição da ri- 114 leitUrA, FormAção docente e emAnciPAção hUmAnA queza. [...] O trabalho, voltado para o atendimento do capital, se transformará, nos limites que lhe são próprios, numa real explicitação das potencialidades humanas. (TONET, 2007, p. 78). O trabalho que Tonet apresenta como meio possibilitador da emancipação humana é o trabalho associado, difundido pela concepção de Marx, cuja modalidade de trabalho atuará como agente exterminador do capitalismo e propiciador de uma nova mentalidade humana. Esta forma de trabalho caracteriza-se por não ser uma simples cooperativa. Ela é muito mais do que isso e se caracteriza pelo controle livre, consciente, coletivo e universal dos trabalhadores sobre o processo de produção e distribuição de riqueza. (TONET, 2007, p. 46). De tal modo, o trabalho associado constrói relações humanas que efetiva a atuação do ser em conjunto com o meio e a ação de todos sobre os objetos da natureza. Ao estabelecermos um papel ativo para o docente, acentuamos que este, ao atuar consciente sobre o meio, também se transforma, já que identifica as determinações que se estabelecem na sociedade que consequentemente limitam a evolução do conhecimento do ser e faz com que este reflita sobre suas práticas. Portanto, o educador organiza em si, uma compreensão dialética. Uma formação docente que vislumbre a emancipação humana suprime o modelo de educação voltado para a influência das consciências, personalidade e comportamento dos sujeitos, uma vez que tal referência de educação impossibilita a realização da transformação do corpo social. Formar docentes emancipadores dos homens fundamenta-se em “[...] fazer a crítica desse saber e permitir a aquisição de um conhecimento de caráter revolucionário. [...] a figura do professor é, aqui, de suma importância, pois depende dele imprimir à sua atividade educativa esse caráter.” (TONET, 2012, p. 63). A formação docente deve manter o compromisso em habilitar professores aptos e comprometidos com a emancipação do indivíduo, já que estes fazem parte do trabalho produtivo que arquiteta o sistema que vigora. Formar docentes para emancipação humana requer sujeitos ativos no âmbito da educação, para exercer uma “[...] educação que se direcione para além da sociedade na qual está inserida” (MOREIRA & 115 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO MACENO, 2012, p.186). Logo, formar educadores executores de ações emancipativas aspira, do ambiente acadêmico, reflexões e conhecimentos que apreendam o princípio da problemática social de modo que estes se façam agentes de transformação da sua própria realidade. A emancipação vai para além do capital, a formação dos agentes educadores teria de desempenhar, na sociedade, condições efetivas para que os membros deste meio atuassem como revolucionários da ordem estabelecida. O processo de emancipação do homem se desencadeia pela captação do saber que se manifesta omisso “[...] o conhecimento científico, em suas duas modalidades inseparáveis, produção (pesquisa) e transmissão (educação), no interior da lógica do capital, também, guarda essa mesma contradição” (TUMOLO, 2012, p. 161). O capital se constrói sob a gênese discursiva de que todos que participam dessa ordem estão assegurados pela liberdade, autonomia esta que se limita aos anseios da ordem classista. É eminente, deste fato, o sentido para a emancipação, já que esta não favorece apenas a uma organização hegemônica, mas a um grupo uno. Dessa maneira, a emancipação dos homens objetiva uma organização humana que esteja além da exploração do homem pelo homem, introduzindo no espaço social o real sentido de interação dos seres, que é a relação participativa de todos. Em síntese, a leitura está relacionada aos modos produtivos que se acentuam na sociedade em razão dessa interação, a mesma exerce uma função formativa para a atividade que predomina na organização social. A formação do educador está marcada pelos processos estruturais de ordem hegemônica e, assim como a leitura, cumpre na sociedade a efetivação dos modos de produção que emergem da sua forma organizativa. A sociedade que surge na contemporaneidade é baseada na estrutura capitalista, que se fundamenta nos métodos econômicos. Tal estrutura, para manter-se e desenvolver-se, é arquitetada na exploração do homem pelo homem, reduzindo o ser racional a um genuíno executor de práticas trabalhistas. Ao estabelecer a exploração do ser como fundamento do progresso do âmbito social, origina-se a sociedade classista, que fragmenta 116 leitUrA, FormAção docente e emAnciPAção hUmAnA as atividades sociais bem como as relações existentes. A divisão de classes causa o efeito desagregador do conhecimento, classificando e instituindo homens pensantes e homens executores dos conhecimentos construídos socialmente. Desse modo, a formação do ser racional se desintegra do propósito integral e envereda para duas vertentes: uma formação para aquisição da cultura, e por consequência, efetivação da classe hegemônica, e outra formação para a aprendizagem de conhecimentos práticos, que agrega o indivíduo com os meios de produção econômicos, que, por conseguinte, determina o espaço ao qual este sujeito deve pertencer. Marx disponibiliza uma concepção que concretizaria a emancipação humana, que se respalda na real liberdade do ser, já que o acarretaria para práticas integrais com o seu meio e compõe uma aquisição do conhecimento que forma o homem para sua essência e existência. Para que haja a concretização da emancipação, Marx encontra, no trabalho associado, o recurso para que o homem mantenha uma relação com o corpo social, sem que haja exploração entre os seres. O trabalho associado excluiria os modos de produção capitalista pelo motivo de sua produção ser fundamentada apenas na necessidade dos sujeitos e não no acúmulo de bens. Desse modo, o homem seria livre para adquirir saberes conscientes a respeito da estrutura fundante da sociedade e se reconheceria como sujeito que transforma a esfera social. O trabalho associado agregaria o que o capitalismo fragmentou - o conhecimento cultural do saber prático - para que dessa maneira seja capaz formar o ser em sua totalidade. Conclui-se, portanto, que a emancipação ascenderia da extinção do capital, para que os conceitos que acarretam dessa concepção consigam transfigurar as relações sociais. Emancipar não liberta para a manutenção de uma ordem; emancipação humana evolui as relações para a metamorfose que constitui o ser. Não se emancipa em um âmbito anti-dialógico, fechado em suas estruturas, mas antagonicamente, emancipa-se em um espaço que as interações entre seres estejam em conformidade com os anseios de todos. A emancipação não estrutura bases internas, mas eterniza suas bases para que o cenário seja compreendido e modificado dinamicamente e constantemente com as ações humanas. 117 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO CONSIDERAÇõES FINAIS A leitura e a formação docente são atos historicamente determinados pela forma como os bens materiais são produzidos através do trabalho. No modo de produção capitalista, a produção dos bens materiais é feita sob a lógica do capital. Em tais circunstâncias, a leitura e a formação docente carregam, predominantemente, as marcas do capital. No âmbito do capitalismo, o trabalho é um meio de produção que corrompe o ser, em razão do seu caráter determinado, que limita as ações dos seres em seu próprio meio. O trabalho denota um sentido ambíguo na sociedade contemporânea. Todavia, das circunstâncias contraditórias da produção capitalista, surgem atos que apontam para uma produção dos bens materiais para além do capital, orientados pelo horizonte da emancipação humana. No contexto da emancipação humana, a leitura e a formação humana são atos que se articulam em função da formação humana e não de uma economia de mercado. Tal emancipação pressupõe a superação das estruturas da ordem classista, a suprassunção do capital. Logo, emancipar o homem é formar este para o seu desenvolvimento humano. Sobre a reflexão acima, é que surge outra acepção para leitura e formação docente que dá luz à emancipação humana, da qual vislumbra uma sociedade para além dos modos de produção capitalista. Uma forma de leitura que identifica a estrutura do objeto que arquiteta o corpo social, leituras que não limitem as concepções do sujeito, não definam um grupo ou um indivíduo singular, uma forma de produção do saber que não estabeleça um tipo de função que o homem deva desempenhar na sociedade. A formação docente elaborada sob a perspectiva da emancipação humana constituiria o docente integral, que dialoga sua condição de educador com os anseios do grupo social, para uma sociedade que se faça distante de obrigações para o desenvolvimento econômico, mas para a construção do homem em sua amplitude, que componha o meio como agente transformador. Com isso, a formação docente, sob o respaldo da emancipação humana, transfiguraria a sociedade para perspectivas distantes do capital. A investigação, como parte da 118 leitUrA, FormAção docente e emAnciPAção hUmAnA nossa formação, nos certifica na condição de cientistas que estão para além da prática pedagógica como reprodutora de uma sociedade estabelecida pelos grupos hegemônicos. Leitura e formação docente percorrem a história do homem. A leitura é fundada no trabalho; este, por sua vez, dinamiza as ações do indivíduo na natureza, racionalizando sua interação com o meio. O trabalho é descrito como fundante das relações humanas, com isso a partir dele é que se originam outros complexos humanos-sociais. As reflexões que ficam dessa investigação se alongam em quatro dimensões: a primeira em relação aos propósitos dos grupos hegemônicos com a produção do conhecimento e a formação docente. A segunda, relacionada com o sentido do trabalho na sociedade contemporânea, que não reconhece o homem como agente social, transformador do meio. A terceira dimensão centra-se na consciência da função social que exerce o docente em seu meio, já que este está limitado a um tipo de formação pragmática, de modo que tal sujeito se reduz a atender aos anseios dos grupos hegemônicos. E por último, o quarto aspecto está pautado na emancipação dos homens de forma a contemplar as pretensões de todos que compõem o corpo social. Para que isso ocorra, a formação daqueles que formam outros sujeitos tem de dialogar com o âmbito social, bem como formar esse agente social integralmente. Dessa forma, leitura e formação docente estão intrinsecamente interligadas. A leitura resulta em um tipo de conhecimento e este conduz conscientemente a formação do educador. A leitura, pelo seu caráter formador, induz o sujeito para dois cursos, para a reprodução e manutenção da sociedade que vigora ou a superação e transformação do meio social. REFERÊNCIAS ALIENDE, Felipe; CONDEMARÍN, Mabel. A leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. 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In: _______ trabalho, educação e Formação humana Frente à necessidade histórica da revolução. São Paulo: Instituto Lukács, 2012. TONET, IVO. Educação Numa Encruzilhada. In:______ educação Contra o Capital. Maceió: EDUFAL, 2007. 120 NOVAS CONDIÇÕES DA ESPIRITUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE Edgar Zanini Timm Norberto da Cunha Garin Clemildo Anacleto da Silva Diógenes Antônio Fogaça INTRODUÇÃO É comum observar, em expressões que tentam se referir à contemporaneidade, que ela caracteriza-se, entre outros aspectos, por plurais formas de viver e de manifestar a condição humana. Rápidas redes de conexões virtuais são formadas e revelam uma dessas formas, num contexto de instabilidade, efemeridade, insegurança e de medo do comprometimento, no qual se busca, paradoxalmente, esteios consistentes (Bauman 2001; 2006). Nota-se que entre esses esteios, o desejo de encontro com a transcendência, através da espiritualidade, tem se destacado. Contudo, percebe-se igualmente que os conceitos referentes a essa espiritualidade, mais do que esclarecer podem estar a constituir uma confusa massa amorfa na qual cabe e vale tudo. Nos dias que correm, a espiritualidade não se encontra mais, como antigamente, condicionada à religiosidade. O ser humano se dessacralizou num processo de materificação dos desejos. O narcisismo estético e a facilidade para se cambiar valores imperam. Assim, essa postura de “liberdade” também é colocada como sendo parte da dimensão da espiritualidade. Quase não há mais solidariedade, há atitudes de conveniência (me aproximo do outro, a ele me somo, por ele ser ou poder vir a ser útil para mim). Observa-se que a estética sobrepõem-se à ética, desessencializando o humano naquilo que é sua maior construção, como diz Roberto (2016): 121 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Para a maioria dos autores, a pós-modernidade é marcada como a época das incertezas, das fragmentações, do narcisismo, da troca de valores, do vazio, do niilismo, da deserção, do imediatismo, da efemeridade, do hedonismo, da substituição da ética pela estética, da apatia, do consumo de sensações e do fim dos grandes discursos. [...] Vive-se numa época de grande competitividade e de pouca solidariedade. Em nome dessa nova ideologia, os indivíduos se permitem agir passando por cima de valores fundamentais. A coisificação da vida e o predomínio dos interesses pessoais em detrimento do coletivo são bem característicos dessa fase em que vivemos. (ROBERTO, 2016). Está posto o consumo de sensações imediatas de bem-estar com prazeres fugazes como o meio mais rápido para ser feliz. A materificação transforma relações humanas em negócio, e como é da natureza deste, as relações tornam-se moeda de troca para se obter vantagens realizadas, preferencialmente, a curto prazo. Nesse cenário metamórfico e confuso de aspirações materialistas imediatas, aparece, paradoxalmente, a busca pela espiritualidade. A busca por essa dimensão humana, que se expressa nas subjetividades individuais e compartilhadas, muitas vezes verificada em espetaculares momentos de comoção coletiva como diante da morte de um grande líder e, por vezes, também em instantes particularíssimos de introspecção meditativa; está representada num sentimento simples, mas de enorme profundidade empática: saber que “eu estou aqui!”. Esse “eu” seria o transcendente que se aproxima e conforta ao se manifestar. Não tem sido simples discutir sobre espiritualidade. Conceituá-la implica manifestar uma subjetividade. Subjetividades são flexíveis e maleáveis de acordo com sentimentos, conhecimentos e posturas individuais. Em alguns entendimentos a ênfase é colocada na relação do transcendente com o humano, em outros a ênfase recai na relação do humano com o transcendente. No primeiro caso, a questão está totalmente nas mãos do transcendente, a iniciativa é dele, cabe ao humano esperar por sua atenção e decidir se retribui ou não tendo em vista no que essa relação pode lhe ser útil. No segundo, a preocupação está em descobrir como atrair a atenção do transcendente a fim de o humano usufruir das benesses do seu olhar. Entretanto, há tentativas de superar essas duas formas paradigmáticas de lidar com o transcendente. Müller (2004), que aponta para a dimensão de “viver segundo a dinâmica profunda da vida”, refere que: 122 novAs condiçÕes dA esPiritUAlidAde nA contemPorAneidAde Espiritualidade é uma expressão para designar a totalidade do ser humano enquanto sentido e vitalidade, por isso espiritualidade significa viver segundo a dinâmica profunda da vida. Isso significa que tudo na existência é visto a partir de um novo olhar onde o ser humano vai construindo a sua integralidade e a sua integração com tudo que o cerca. (MÜLLLER, 2004, p. 8). Trata-se, assim, de uma tentativa de ressignificar a noção de espiritualidade, inserindo-a no conceito maior de integralidade do ser humano, no qual já se encontram incluídas outras dimensões como a física e a mental. Pode-se, com isso, lidar com a espiritualidade como uma dimensão que não está restrita ao espírito do ser humano, mas que pode interagir organicamente com outras dimensões que, em seu conjunto, essencializam a condição humana. Em uma pesquisa realizada com docentes de uma instituição universitária confessional no Rio Grande do Sul, que estudou como docentes manifestam-se acerca da dimensão da espiritualidade em sua vida de professores, Timm e Garin (2014, p. 25) perceberam um esforço no momento de tentar conceituar espiritualidade. Um dos entrevistados manifestou que entende a espiritualidade como “dimensão não racionalizada da experiência da vida” (D 02). Outro relacionou espiritualidade com a liberdade interior do ser humano dizendo que espiritualidade “é a da plena liberdade e a da relação dos homens com seus espíritos” (D 10). Um outro participante da entrevista, entendendo que a espiritualidade está relacionada à orientação de cada pessoa, afirmou: “o sentido da vida que nos orienta” (D 04). Numa linha de pensamento semelhante, um participante disse que a espiritualidade é “como amor, paz, liberdade, plenitude de vida” (D 04). Outras noções apareceram nas entrevistas, aumentando o leque de entendimentos sobre o conceito de espiritualidade: “possibilidade que cada um tem de transcender a sua própria existência física” (D 11); “algo próximo a uma energia, algo que existe, a gente sente, a gente se emociona, a gente se arrepia, a gente se entristece, a gente fica contente, exatamente porque nós não somos únicos (D 22); está “na busca do equilíbrio entre o externo (mundo) e o interno (valores e crenças).” (D 14); “a plenitude e ao mesmo tempo a singularidade das pessoas” (D 16). 123 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Nos dizeres que compõem as manifestações dos docentes entrevistados, é possível identificar nesses conceitos que há, explicita ou implicitamente, o entendimento de que existe uma certa busca do ser humano por esta dimensão que lhe é própria, mas que nem sempre, podemos acrescentar, recebe uma atenção adequada. É possível constatar-se, atualmente, uma certa carência de espiritualidade. Contudo, não se trata mais de um único modelo, dominante, de espiritualidade, isto é, aquele oferecido nos moldes tradicionais de religiões. O ser humano contemporâneo é carente de espiritualidade visto que sua atenção maior está direcionada à materialidade da vida. Mesmo quando tenta enfrentar situações existenciais difíceis apela para substâncias bioquímicas como possibilidade de soluções que estão relacionadas com a sua espiritualidade. (DIAS; TIMM; GARIN, 2011, p. 72). Mesmo com o advento do mundo virtual, as pessoas sentem que continuam precisando enfrentar o mundo concreto, do olho no olho, real, e para lidarem com esse choque de realidade apelam, muitas vezes, para a espiritualização do o real: “Parece um contrassenso, mas não há como identificar, de outra maneira, o fato de que hoje vivemos alternada e simultaneamente em dois mundos: o físico e o dos bytes” (DIAS; TIMM; GARIN, 2011, p. 73). Boff (2006) constata que há um vazio que necessita ser respondido pela espiritualidade, que pode fazer alterações no interior da pessoa; e o classifica como uma “urgência da espiritualidade”. Segundo esse teólogo, o contexto atual representa um perigo e uma esperança no qual a espiritualidade se torna necessária: Quero situar o tema da espiritualidade no contexto dramático, perigoso e esperançador em que se encontra a humanidade, especialmente a humanidade humilhada e ofendida que vive no grande Sul. Nossa reflexão quer captar a urgência da espiritualidade e enfatizar sua premente atualidade em face dos mitos que circulam pela cultura – mitos da exterminação da espécie, da liquidação da biosfera, da ameaça do futuro comum, da Terra e da humanidade. (BOFF, 2006, p. 9). 124 novAs condiçÕes dA esPiritUAlidAde nA contemPorAneidAde Assim, é possível dizer-se que, num mundo em que tudo parece ser efêmero, rápido, urgente, descartável, cambiável e passível de ser comercializado (Deus, valores morais, relacionamentos etc.), desenvolver modos sadios de vivenciar a dimensão da espiritualidade pode ser a última instância de liberdade e de soberania do ser humano: à dimensão da espiritualidade, ele acorre em busca de alento para dotar sua existência com um sentido maior (DIAS; TIMM; GARIN, 2011). ESPIRITUALIDADE: bUSCA OU CONSTRUÇÃO Na trajetória do ser humano, o sentimento de pertença e de uma possível relação a algo maior tem sido expresso de diversas maneiras. Pode-se, de modo geral, agrupar as múltiplas expressões desse sentimento em duas vertentes: a busca e a construção. Na primeira, numa perspectiva religiosa (mas que não se restringe a uma religião específica), trata-se de buscar algo que já existe, estando lá, em algum lugar, pronto para ser alcançado; é preciso descobrir, usando um mapa, o caminho que leve ao seu alcance. Na segunda vertente, por exemplo, numa perspectiva filosófica existencialista (religiosa ou não), trata-se de construir uma condição na qual a pessoa aplica a relação de pertença e de relação valendo-se de suas vivências e experiências. A busca tem sido praticada, tradicionalmente, irmanando-se a um corpo institucionalizado de práticas rituais próprias de uma religião. E isso desde as mais antigas encontradas nos mitos, passando pela idade medieval até chegar as virtuais da contemporaneidade: iniciada em cavernas, montanhas, edificações sacrificiais, margens de rios e praias, passou para o recôndito de templos e mosteiros até alcançar formas midiáticas, digitais e eletrônicas, na internet, rádio e televisão etc. Profissionais da espiritualidade desenvolvem estratégias de convencimento utilizando-se de métodos, técnicas e táticas para responder ao legítimo anseio humano de obter respostas para questões existenciais do sentido da vida. Pajés, feiticeiros, curandeiros, profetas, místicos, mestres, messias, sacerdotes, gurus e, mais contemporaneamente, guias espirituais, têm se empenhado para manter vivas tradições, interpretar sinais e escrituras, fazer rituais, elaborar ensinamentos, estabelecer doutrinas e dogmas e transmitir conhecimentos aos seus iniciados. O aparato necessário para produ125 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO zir efeitos significativos é minuciosamente arquitetado para que as demandas espirituais dos seguidores não fiquem sem uma resposta. Em muitos casos, mesmo aderindo a uma determinada religião ou prática mística, não se tem a garantia de que as respostas darão conta de atender ao anseio. O líder religioso, entretanto, garante que a adesão e a prática, mesmo que sem a reflexão necessária e por si só o ato ritualístico (isto é, o cumprimento das suas obrigações religiosas) será suficiente para que um dia a pessoa alcance a iluminação e a salvação desejada. Religiões, seitas, igrejas, denominações e outros grupos formais que operam a dimensão da espiritualidade profissionalmente têm se colocado como detentores exclusivos do controle da oferta espiritual. Ao fazer o elogio de si próprias, partem da desautorização das demais. Entretanto, contemporaneamente, a busca pela espiritualidade extrapolou os limites das agências institucionais da fé. Não se trata de uma nova experiência, mas da descoberta de que a dimensão espiritual humana nunca foi exclusiva dessas agências. Livre, como é o ser humano, tem trabalhado respostas à sua dimensão espiritual em diferentes espaços que ele, humanamente, tem construído. Exemplos desses espaços contemporâneos podem ser encontrados na criação de plurais formas de relacionamento, em que a lente da esperança possa ser usada para a leitura do mundo: na profissão, na família, nos cuidados com a saúde, no cultivo da arte, na interação social e luta por dignidade da cidadania e condição humana bem como na prática clínica da fé mediante atendimento religioso. No exercício das mais variadas atividades profissionais, a dimensão da espiritualidade tem sido alimentada pela perspectiva de realização. Expectativas positivas criadas no ambiente de trabalho se tornam ingredientes fundantes de alegria, harmonia e equilíbrio gerando sentimentos de bem-estar na profissão e na vida. Na proporção em que o humano se expressa nessa construção, a dimensão da espiritualidade pode se robustecer e ser compartilhada, construindo possibilidades de novas realizações. Para ilustrar, é possível recordar aqui de uma pessoa, cuja profissão era a de engenheiro civil. Era recorrente, em conversas, ele dizer que a sua realização humana maior estava no seu 126 novAs condiçÕes dA esPiritUAlidAde nA contemPorAneidAde trabalho. Impressionante era a forma como esse profissional realizava os cálculos de fundações em um tempo que não havia computador: o trabalho precisava ser realizado com auxílio de uma régua de cálculo, inventada pelo inglês William Oughtred em 1622. Sua realização era de tal porte que nunca tirava férias. Dizia que não havia uma atividade mais recreativa, em sua vida, do que o seu trabalho. Nunca se soube que algum dos seus cálculos tenham sido errados. Outro espaço em que a dimensão da espiritualidade vem sendo trabalhada na direção de construir uma relação saudável consigo mesma, com o próximo e com o transcendente, verifica-se o que é experimentado na convivência familiar. Quando os relacionamentos consanguíneos, ou por afinidade, acontecem de forma positiva, a espiritualidade pode ser vivenciada pelo convívio de alegria e a perspectiva de construção conjunta de um futuro em comunhão de propósitos. A noção de pertencimento a um grupo, que carrega consigo marcas de tradições, alimenta a espiritualidade de seus membros: jantares de famílias costumam ser momentos de grande espiritualidade. Mesmo naqueles jantares nos quais há desentendimentos, estas ocasiões não deixam de estar impregnadas de espiritualidade visto que boa parte dos motivos que leva aos desentendimentos é justamente a luta por um pertencimento melhor qualificado. A prática esportiva nos cuidados que a pessoa desenvolve também pode sinalizar um espaço construído em que se verifica a expressão de uma espiritualidade. O respeito que a pessoa manifesta em relação à dádiva da vida pode aqui ser percebido. Cuidar de si nessa perspectiva espiritual implica, necessariamente, cuidar daquilo que se recebeu: se veio do transcendente é sagrado, se é sagrado precisa ser cuidado e se está sendo cuidado se agradece pelo que se recebeu. Expressões artísticas podem ser momentos plenos de manifestações de espiritualidade. No gesto, no olhar, nas palavras em que a alma do artista se expressa também pode ser expressa sua dimensão espiritual. Mais ainda, na mesma proporção em que a espiritualidade do artista se expressa, a espiritualidade do assistente pode estar sendo alimentada: no gesto do pintor e quem lhe serve de modelo ou para diante do seu quadro, no gesto do artista no palco ou na atitude atenciosa de 127 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO quem o assiste, no ato de fotografar ou de sua apreciação, no ritmo de quem canta e de quem ouve ou de quem dança etc. Expressões artísticas podem constituir espaços de comunhão na perspectiva de uma espiritualidade sadia. Alguém conhece um artista cuja arte não “brote” por seus poros? Quem não é do meio, às vezes não compreende como uma pessoa viva, com tanta intensidade, aquilo que faz. Não se pode dizer que o convívio social não seja, também, um espaço propício para a vivência da dimensão da espiritualidade, nem é necessário conviver por muito tempo com uma comunidade para compreender a intensidade dessa expressão. A forma de se relacionar, o jeito como cada um cuida do outro, das crianças, dos bens comuns podem constituir uma expressão viva de profunda espiritualidade sadia. Também nas organizações formais ou informais de luta por melhores condições de cidadania, pelo respeito à condição humana, pode ser construída, vivenciada e experimentada uma dimensão de espiritualidade sadia, mesmo sem a orientação profissional de uma denominação religiosa. Poderia se tratar aqui, por mais paradoxal que possa parecer, de um secularismo espiritual. A espiritualidade também pode estar presente na religiosidade. As fragilidades humanas costumam ser, aparentemente, mais expressivas para uns e menos para outros. Contudo, todas as pessoas são vulneráveis. De maneira mais expressiva, os momentos de fragilidade levam o ser humano a querer explicações e, para tanto, o recurso à transcendência pela adesão a uma religião parece ser o mais comum e, assim, a recorrência ao transcendente, representado por um Deus, uma Entidade, um Mestre etc. Um dos autores deste capítulo recorda-se de um episódio ocorrido quando ainda estava realizando seu estágio em Teologia. Ele lembra-se de que chegou à comunidade no início da noite de sábado e um dos líderes o apanhou na rodoviária, pois havia urgência de uma visita pastoral. Quando chegou ao casebre, iluminado por candeeiros e velas, encontrou a figura de uma moça bastante debilitada deitada em um catre, que sofria de uma hemorragia há mais de trinta dias. Sua história contemplava uma cansativa e ineficiente trajetória de tratamento com remédios, sob prescrição médica, mas também com muitos rituais de simpatias populares. Confuso, sem 128 novAs condiçÕes dA esPiritUAlidAde nA contemPorAneidAde saber bem o que fazer diante do quadro agudo, o seminarista sentouse à beira da cama e lhe disse que era necessário confiar em Deus, pois somente ele poderia ter uma resposta para o seu quadro. Impôs as mãos sobre a cabeça da moça e fez uma oração, sem ter clareza sobre o que aconteceria até o amanhecer. Na manhã seguinte, os familiares compareceram à igreja para testemunhar que a hemorragia havia cessado. Para ele, a espiritualidade daquela moça fora despertada pela fé na transcendência por meio do que lhe havia sido dito. Esses espaços contemporâneos, citados para exemplificar como pode ser encontrado, na criação de plurais formas de relacionamento, o exercício da dimensão da espiritualidade de um modo sadio, podem ser ilustrativos para evidenciar como o conceito de espiritualidade não se restringe mais à clausura, ao voto religioso, ao mosteiro, ao templo, ao lócus do rito institucional ou profissional do sagrado. ESPIRITUALIDADE E SAÚDE: PORqUE É POSSÍVEL VIVENCIAR UMA ESPIRITUALIDADE SAUDÁVEL No interesse que se observa pela dimensão da espiritualidade nos dias que correm, percebe-se uma notável atenção das pessoas para a possibilidade de relação entre espiritualidade e saúde. Não que essa atenção não estivesse presente também em outras épocas. Mas é justamente no final de um século que se caracterizou por uma grande secularização que se percebe atitudes dogmáticas e preconceituosas, notadamente aquelas tradicionais em ambiente acadêmico, sobre essa possível relação, se tornando mais flexíveis e com interesse no assunto. É possível constatar tal estado interessante como um dos sinais de mudança de paradigma, que abre espaço para um sentido mais complexo da condição humana na sociedade, na natureza, no cosmos. Entretanto, segundo Boff e Leloup (2007), essa inserção possui a doença como uma fratura e a cura como reintegração a esta condição. Nesse sentido, a dimensão do espírito ocupa lugar nessa totalidade, favorecendo uma expansão da vida em uma subjetividade e transcendência como forma de ser e de viver, disposta a novas experiências e conhecimentos. 129 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO As crenças e as experiências de natureza transcendental, tratadas tradicionalmente em meio religioso, têm influenciado diferentes concepções, organizações e modos de vida em sociedade, como se observa ao longo da história. No entanto, é na contemporaneidade que a dimensão da espiritualidade passou a se constituir como possibilidade de vivência e de discussão que não se restringe ao âmbito da religião, pois, observa-se, o interesse na temática vai além do contexto religioso. Há real interesse por suas possíveis bases neurobiológicas; tendo como explicação – embora sua característica seja a não explicação – as experiências significativas de totalidade e a consequente aceleração das vibrações dos neurônios quando em contato com atitudes de veneração (BOFF e LELOUP, 2007). Köenig (2012) afirma que o conceito de espiritualidade foi ampliado recentemente a fim de incluir conceitos psicológicos positivos, como significado e propósito, conexão, paz de espírito, bem-estar pessoal e felicidade. Assim, afirma que a espiritualidade se estabelece como parte complexa e multidimensional da experiência humana, permeada por aspectos cognitivos (que dizem respeito à busca pelo significado da vida) experienciais (que se referem a sentimentos de amor, paz interior e conforto) e comportamentais (que envolvem o modo como as crenças espirituais individuais e o estado espiritual interno são manifestados). Tais sentimentos se refletem na qualidade dos recursos internos da pessoa, na capacidade de receber e retribuir amor espiritual e nas formas como ocorrem as relações e conexões existentes consigo, com o meio, com a natureza e com aquilo que transcende. São plurais os entendimentos que se observam sobre uma possível relação entre espiritualidade e saúde, podendo se evidenciar, nessa relação, componentes positivos e negativos, como esperança, determinação, ânimo, apatia, ansiedade, medo. Há ocasiões em que a espiritualidade pode influenciar a tomada de decisão de uma pessoa ou de familiares, no que se refere ao seu estado de saúde piorar ou melhorar, quando se atribui tal possibilidade à vontade de Deus, de uma força transcendente, ou mesmo do seu destino. Segundo Boff e Leloup (2007), este “ponto Deus”, denominação dada à base neurobiológica da espiritualidade, se revela por fatores subjetivos de compaixão, solidariedade, respeito e dignidade que removem uma cultura pautada pelo racionalismo e materialismo, permitindo 130 novAs condiçÕes dA esPiritUAlidAde nA contemPorAneidAde que a experiência de Deus passe a ser sentida e não apenas pensada. Assim, é igualmente importante compreender o atual interesse de médicos em questões ligadas à espiritualidade. Segundo Gunderman e Wilson (2007), parte das questões reside em um conhecimento crescente de que a espiritualidade se estabelece como um aspecto essencial para a vida humana. Enquanto a modernidade disponibilizava um conjunto de valores ditos sólidos para um modo de vida dito sólido, no qual as pessoas podiam se orientar de um modo dito sólido, a atual modernidade líquida promoveu uma volatibilidade, uma instabilidade (BAUMAN, 2001; 2006). Assim, referências até então consideradas sólidas e, portanto, fundamentais, são substituídas por plurais e efêmeros sentidos de relacionamentos e de visões de mundo. A liquidez, segundo esse autor, pode proporcionar, inclusive, um sentimento nostálgico em relação à assim chamada solidez de outrora. Assim, esse sociólogo contemporâneo constata que, se por um lado a liquidez inibe a permanência prejudicial, por outro pode levar a uma efemeridade, fugacidade e descartabilidade em que o importante é estar sempre em movimento. Esse permanente estar-em-movimento também é capaz de se verificar, podemos observar, nos entendimentos atuais sobre possíveis relações entre espiritualidade e saúde. Interessa, assim, numa perspectiva positiva de entendimento da relação em tela, refletir sobre o conceito de que, como Boff e Leloup (2007) destacam, a vida não se encerra com a morte, mas se transfigura através dela. Que a fé pode conduzir o ser humano a sentir-se entregue a convicções espirituais que funcionam como fontes geradoras de vida e de cura, estabelecendo assim, sentidos para a dimensão da espiritualidade. ESPIRITUALIDADE NA COMPLEXIDADE: O RESPEITO à TOLERÂNCIA E à DIVERSIDADE, NA PRÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS A religião é um dos fatores estruturantes da sociedade e do ser humano. Numa perspectiva antropológica, pode-se observar que a religião é parte integrante do ser humano. Isso não significa que o 131 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO ser humano não possa existir sem religião. No entanto, ao contrário do que se pensava, o sentimento religioso e as religiões institucionalizadas têm crescido cada vez mais. As pessoas buscam a religião por diversos motivos. Em geral, a religião se apresenta como uma maneira de equilibrar inquietações internas do ser humano. Há quem busque a religião para superar e melhorar a sua própria essência, tornando-se um ser cada vez melhor, mais aperfeiçoado. Outros enxergam e experimentam na religião uma maneira de serem acolhidos, protegidos, amados e perdoados visto que a sensação de culpa e incompletude os persegue. Assim, a religião pode ser entendida como uma forma de organizar e enfrentar os dilemas e o peso da existência. Ao buscar uma religião, a pessoa encontraria sentido para a vida e respostas para as angústias do dia a dia. Embora a religião tenha todo esse significado, há quem enfrente e encontre sentido para a vida sem necessariamente recorrer a uma religião. Há pessoas que desenvolvem uma espiritualidade sem que seja necessário passar pela opção de uma tradição ou prática religiosa. Assim, pode-se observar que mesmo aqueles que não acreditam ou não têm religião, podem desenvolver uma espiritualidade. Por muito tempo o pensamento científico da modernidade expurgou do seu meio qualquer coisa relacionada à religião. No paradigma científico tradicional, o conhecimento religioso não tem valor como instrumento de análise visto se tratar de um conhecimento que é resultante da crença ou da fé. O conhecimento religioso, de fato, não é um conhecimento científico nos moldes tradicionais desse paradigma. No entanto, não se pode ignorar a possível contribuição que a religiosidade, a religião ou a espiritualidade podem proporcionar para um entendimento mais global do ser humano e da sociedade. Algumas áreas como sociologia, antropologia, filosofia, história, entre outras, já conseguem entender essa dimensão humana com mais aceitação e tranquilidade. No entanto, as ciências da saúde ainda recebem essa participação com muita desconfiança. (SILVA, 2008). A religião pode ser entendida a partir de múltiplos aspectos. Um deles é o da contribuição efetiva na constituição do modo da pessoa ser no mundo. Ela pode contribuir tanto para inclusão quanto para 132 novAs condiçÕes dA esPiritUAlidAde nA contemPorAneidAde exclusão. Pode contribuir, tanto para aperfeiçoar o ser humano quanto para torná-lo mais egoísta e fundamentalista. Nesse sentido, nota-se que um paradigma religioso que mais se aproxime de uma prática de inclusão alicerça-se em três fundamentos: respeito aos Direitos Humanos, promoção da tolerância e defesa da laicidade. Os Direitos Humanos garantem a liberdade de expressão e o respeito pelas diversas tradições religiosas. Além disso, defendem o direito que toda pessoa tem de professar ou não uma crença religiosa. A tolerância é o respeito dispensado a todos que possuem uma prática religiosa, seu direito de conviver no mesmo espaço e ser tratado de forma igualitária. A laicidade assegura a possibilidade de o Estado não estabelecer uma relação de privilégio com qualquer grupo religioso. (SILVA, 2009). A existência humana adquire sentido nas relações que o ser humano estabelece com a natureza e com outros. Essas relações podem sofrer modificações a partir da visão religiosa do indivíduo. Assim, a visão religiosa pode interferir diretamente na forma como o sujeito enxerga, entende, interpreta e expressa uma realidade. Constata-se, com isso, que valores religiosos contribuem de forma significativa para moldar comportamentos sociais. No entanto, é preciso reconhecer que valores religiosos como um fim em si mesmo não podem ditar a maneira como a sociedade deve se comportar. Se isso ocorrer podemos cair na tentação de confundir Estado e religião. É por esse motivo que se faz importante levar em consideração o tripé: direitos humanos, laicidade e tolerância. A complexidade da vida e das suas relações sociais nos convida a pensar a realidade a partir de múltiplas visões, sem preconceitos. Para tanto, a interdisciplinaridade tem se mostrado um salutar modo de construção de conhecimento. Assim, a religião, a fé ou a espiritualidade não podem ser deixadas de lado, eliminadas ou descartadas preconceituosamente. O ser humano com seus sentimentos, desejos, racionalidade, pensamento, linguagem, inventividade possui capacidade para desenvolver cultura. Nisso, sua experiência com o transcendente, quer se realize por meio das tradições religiosas ou por experiências individuais de espiritualidade, pode influir de modo significativo. 133 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO PERSPECTIVAS DE ESPIRITUALIDADE São diversos os sentimentos experimentados e os modos de se referir a essa dimensão muito humana que se quer somar aos esforços para ser feliz, que são feitos em outras dimensões da pessoa. Alguns se referem à espiritualidade como componente essencial do ser humano, outros como complementar, como um recurso a mais ou, ainda outros, como algo que inibe, condiciona ou prejudica o pleno desenvolvimento da dimensão racional e a promoção da saúde integral da pessoa. Há certas circunstâncias nas quais a espiritualidade é colocada em oposição ao conhecimento científico. Numa pesquisa realizada por Paula, Nascimento e Rocha (2009) na Escola de Enfermagem da USP, campus de Ribeirão Preto, SP, uma mãe expressou uma distinção que ela vê entre o poder do médico e o poder de Deus: Porque ele [referindo-se ao Pai 2] achava assim: “Se o médico falou, então tá falado”. Só que eu não penso assim. Eu acho que eles [referindo-se aos médicos] são limitados, não é? Têm um limite! Não são Deus! É lógico que tem uma previsão. Os médicos podem dizer: “Olha, pode acontecer isso, pode ser que aconteça isso”. Mas eles não podem dar uma certeza assim! (Mãe 2). (PAULA; NASCIMENTO; ROCHA, 2009, p. 103). Na resposta dessa mãe, verifica-se que o poder de Deus é contrastado com a fragilidade da ciência. Ela reconhece o saber médico, mas afirma que este é limitado: “eles não são Deus!”. Nessa constatação, espiritualidade e ciência não coincidem em poder, mas podem ser complementares. Na mesma pesquisa, outra mãe se reportou ao apoio que a espiritualidade religiosa, desenvolvida por uma igreja, ofereceu ao seu marido quanto à aceitação da enfermidade do filho: O meu marido vai ao grupo de oração na igreja, eu não. Ajudou bastante ele [referindo-se ao marido], sabe? Nossa, ele [referindo-se ao marido] tava entrando em parafuso no começo. Ele [referindo-se ao marido] não aceitava de jeito nenhum, quase ficou louco, mas lá na igreja ajudaram e ele [referindo-se ao marido] ficou bem melhor (Mãe 3). (PAULA; NASCIMENTO; ROCHA, 2009, p.104) 134 novAs condiçÕes dA esPiritUAlidAde nA contemPorAneidAde A espiritualidade desenvolvida em âmbito religioso e a espiritualidade desenvolvida no convívio comunitário de cidadania podem desempenhar uma função de amparo e de apoio às pessoas. Através de orações e de reuniões, pessoas têm se fortalecido diante de dificuldades, sejam estas de natureza reflexiva existencial ou material. Outra percepção do significado da espiritualidade pode ser construída quando a pessoa se encontra na iminência de sua finitude. Nesta circunstância, ela quer obter forças e esperanças para superar o mal-estar de se sentir diante do fim. Isso apareceu na pesquisa de Fogaça (2014) “Evento cardíaco e espiritualidade: perspectiva de relações”. Do registro das manifestações dos entrevistados, o autor citou de um participante: Outra coisa também que dá para dizer é que normalmente a gente se apega a alguma coisa e esse apego vem atrelado a uma esperança ou um sentimento de ajuda que fortalece a gente. Quer queira ou não, traz um alento, uma força de...vai que é por aqui. (FOGAÇA, 2014, p. 92). A esperança é o locus no qual se aloja a espiritualidade que aparece nas falas não religiosas. Diante das impossibilidades provocadas pela finitude, a pessoa quer uma tábua de salvação na qual possa agarrar-se ou um porto seguro para ancorar suas perspectivas. Entretanto, também é possível constatar, de maneira geral numa mirada panorâmica à contemporaneidade, o fato de que a percepção da aproximação da morte pode levar as pessoas a desenvolverem uma explicação da existência através da espiritualidade de matriz religiosa. É como se o transcendente estivesse em diálogo coloquial com o imanente. Esta interlocução aparece na resposta de uma entrevistada de Fogaça (2014) quando se reporta ao “recado de Deus”: Eu não tirava tempo para as coisas que agora eu acho importante. Eu entendi o recado de Deus. Era para mim dar uma freada, que a vida não era aquilo que eu tava fazendo, correndo, adoidada, trabalhando, desesperada e que eu tinha que frear e parar. Então, esse recado eu entendi e tô procurando fazer isso. (FOGAÇA, 2014, p. 94). 135 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Entre as constatações de Fogaça (2014), sobre a relação entre espiritualidade e morte, o pesquisador registrou: “a morte como uma inevitável conclusão conhecida por todos não é parâmetro de vida. Tampouco é condição de um percurso natural, mas sim, uma negação dos objetivos primeiros e últimos da existência”. Na sustentação dessa afirmação, ele ilustrou com a fala de um participante (E9) da pesquisa: “Eu acho que depois disso eu tenho que me conscientizar mais de viver bem. Mais leve, porque antes, talvez, eu preocupasse com o que não era importante” (FOGAÇA, 2014, p. 95). A proximidade da finitude conduz a pessoa à percepção da importância de valorizar sua imanência, sobretudo quanto à sua autenticidade, como refere Fogaça (2014, p. 99): “Abre-o à sua temporalidade e mostra a importância de uma existência autêntica e realizada”. O autor cita um dos entrevistados: “Quando eu voltei, não vou mentir, a gente diz: - Ah, não! Agora vou mudar minha vida. Mas eu consegui mudar minha vida depois que comecei a fazer reabilitação cardíaca. Porque os planos ficam diferentes, entende? A gente começa a ter mais espiritualidade” (E1). A proximidade da morte pode fazer com que a pessoa se volte para valores da espiritualidade. Isso aparece com ênfase na pesquisa em tela. O autor registrou do depoimento de uma participante (E4): No momento em que a gente se sente fragilizada, a gente procura esse lado da espiritualidade e a fé faz com que a gente... enfim, me fez ficar mais forte em relação à fé. Eu acredito muito em um ser superior. Em um Deus da vida. Em um sopro da vida. Deus nos dá a vida de graça, sem nos cobrar nada. Eu entendi o recado de Deus. (FOGAÇA, 2014, p. 97). Nesta mesma pesquisa, o autor escreveu que na perspectiva da espiritualidade, “relacionamentos sociais integrais e saudáveis são construídos sobre uma fundamentação de confiança e reciprocidade” e citou a fala de outro participante (E5) fundamentando esta noção de espiritualidade conectada com a dimensão social do ser humano: “e eu não estava em harmonia com meu espírito, nem com meu corpo, nem com a família e amigos” (FOGAÇA, 2014, p. 96). A espiritualidade é encarada, aqui, como um equilíbrio harmônico entre as diferentes dimensões do ser humano. 136 novAs condiçÕes dA esPiritUAlidAde nA contemPorAneidAde Outra perspectiva de espiritualidade pode ser inferida dos estudos da Logoterapia. Segundo Frankl (2010), encontrar uma motivação para viver, construir um sentido para a vida, alimenta a espiritualidade. A espiritualidade pode se constituir, dessa forma, na proteção da pessoa diante das vicissitudes do existir. Ela é um elemento significativo na garantia da integridade do ser humano, como afirma Silva (2015): Essa perspectiva integrada do sujeito, favorecendo sua capacidade protetiva, corrobora com a visão logoterápica da ontologia dimensional, onde as dimensões biológica, psicológica e espiritual se inter-relacionam a fim de garantir a integralidade do ser. (SILVA, 2015, p. 3). Enquanto reforço das determinações internas da pessoa, a espiritualidade atua como defensora diante de ataques constituintes do existir. Pela dimensão da espiritualidade, o sujeito pode ver sentidos para o seu viver que outrora não lhe apareciam. Pode se tornar um aspecto valioso na constituição sadia da pessoa, por implicar sentimentos referentes aos valores, à religião e, especialmente, à “vontade de sentido”. Através de emoções positivas, sonhos e arte, o conteúdo da espiritualidade se manifesta no ser humano e pode se caracterizar por uma espiritualidade de pessoas agnósticas e ateias (SILVA, 2015). É também nesta dimensão que a resiliência pode se manifestar e ser trabalhada na pessoa. Na pesquisa que Silva (2015) realizou, notou-se que a espiritualidade entre os ateus também é relacionada à religiosidade e aos valores: O que foi percebido em alguns discursos é a relação, muitas vezes estabelecida com religião ou religiosidade. No entanto, percebe-se, também, uma relação entre a espiritualidade e valores, principalmente nos discursos que relacionam ao sentido de vida [...]. (SILVA, 2015, p. 5). Observa-se que, mesmo não crendo em um ser superior, uma divindade, ateus também se reportam a uma certa religiosidade (no sentido de que colocam algo no lugar da divindade: a própria negação da divindade, o sentido da vida, o destino, o nada etc.). 137 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO [...] em alguns outros discursos, a vida em sociedade é outro aspecto que constitui sentido de vida, que pode-se relacionar com o conceito de valores experienciais, em que o sentido de vida pode ser percebido na relação do homem com o mundo, com outras pessoas e a natureza. (SILVA, 2015, p. 5). Assim, a alegria de encontros humanos fundados no respeito à alteridade e à convivência em comunidade, com senso de justiça, paz e contribuição social, pode ser entendida como uma manifestação de espiritualidade ateia. Em contraponto à espiritualidade ateia, a espiritualidade religiosa ancora-se na afirmação da existência de um ser superior que age como parâmetro e razão de ser do ser humano. Nessa perspectiva, destaca-se, no ocidente, a espiritualidade cristã que firma sua fé num Deus que se torna carne em solidariedade ao sofrimento humano e apresenta sua proposta de libertação. Segundo Zilles (2004) observa, uma noção que havia até a década de 1970, de que a fé cristã e a religiosidade na dimensão mais ampla desapareceriam face aos avanços da secularização se amparava no entendimento de que a ciência e a tecnologia seriam caminhos suficientes para o progresso da humanidade: Em meados do século XX, muitos temiam que o processo de secularização não só minaria as bases da fé, mas também eliminaria o espaço da religião. Apostava-se na ciência e na técnica como caminho para a solução de todos os problemas humanos. E tudo indica que o subconsciente espiritual se vingou. Nunca houve tamanha proliferação religiosa como na segunda metade do século XX. Tomou-se consciência não só dos limites da ciência e da técnica, mas que a religião brota de fontes profundas do homem. (ZILLES, 2004, p. 11). Para Zilles (2004, p. 11), “nos últimos anos, em alguns ambientes acadêmicos, percebe-se não só certa valorização positiva da religião, mas surge uma revitalização da vida religiosa, uma recuperação do sentido de Deus”. Cada vez mais se observam pessoas procurando igrejas, religiões orientais, terreiros de candomblé etc. Nota-se que a busca pela espiritualidade de matriz religiosa, em alguns espaços, torna-se uma ânsia quase desesperada. O termo espiritualidade, ligado à experiência histórica do judaísmo e do cristianismo, tem sua raiz na palavra espírito, que a relaciona 138 novAs condiçÕes dA esPiritUAlidAde nA contemPorAneidAde diretamente com Deus. Não se refere a uma parte do ser humano, mas à sua integralidade enquanto relacionada ao divino: Se examinarmos os múltiplos usos da palavra “espiritualidade” podemos encontrar o sentido fundamental da espiritualidade cristã e situá-la no contexto da revelação. Para o judeu-cristianismo, a palavra espírito, da qual deriva espiritualidade, não designa espírito do homem, mas o Espírito de Deus, o Espírito Santo. Quando a Bíblia fala do espírito do homem refere-se não a uma parte do homem, mas ao todo em sua relação com Deus. Desta maneira, a espiritualidade não é a exclusão da materialidade, mas a relação ou união do homem todo – corpo e alma – com o Espírito de Deus. (ZILLES, 2004, p. 13). A história do cristianismo, em seus primórdios no ano de 68 d.C, registra o entendimento de Inácio de Antioquia, discípulo do apóstolo Paulo e bispo de Antioquia da Síria, acerca da espiritualidade como vida espiritual: Em Inácio de Antioquia, a vida espiritual realiza-se na igreja, nas assembleias, lugar das orações, na eucaristia. Na vida individual, a espiritualidade consiste em revestir-se de Cristo, de sua paixão, morte e ressurreição. O martírio parece-lhe o caminho mais curto para encontrar Cristo. (ZILLES, 2004, p. 14). Nessa perspectiva, não era admissível uma experiência cristã longe da comunidade que representava o corpo de Cristo. Portanto, a espiritualidade se relacionava à ligação que a pessoa tinha com Cristo, inclusive no seu sofrimento. A convicção de que Ele espalhou o evangelho a todos bem como enviou o seu espírito indistintamente conferia ao cristão, por meio dessa confissão de fé, a certeza de uma relação segura com o transcendente. Como se percebe pelas discussões que são realizadas atualmente na Academia, no cotidiano, em meios religiosos ou não, há múltiplas possibilidades de compreensão acerca da espiritualidade e de sua vivência. Assim, podemos entender que não há uma única perspectiva de espiritualidade, mas plurais perspectivas. CONSIDERAÇõES FINAIS Contemporaneamente, o ser humano tornou-se ainda mais presa fácil de materialidades consumistas. Nesse aprisionamento, relações 139 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO não se estabelecem em patamares de valores morais consistentes, duradouros. Sente-se fragmentado, narcisista, valorizando a estética como alvo a ser conquistado num cenário em que tudo é passível de se tonar mercadoria de consumo, inclusive os próprios sentimentos. A significação de espiritualidade tem sido expressa como dinâmica profunda da vida apontando para a mais íntima das dimensões. Observa-se, entre outras expressões, que há quem diga que ela compreende o todo da pessoa. Outros entendem que se trata da dimensão não racional de cada um e outros que a consideram como uma liberdade interior ou a capacidade de transcender ao físico. No entanto, tal diversidade de entendimento no lugar de ser nefasta pode proporcionar um indicativo muito claro de que a problemática já se torna um traço característico da contemporaneidade: o ser humano continua com sede de ser mais do que aquilo que sua condição biológica lhe permite ser. A água que lhe foi dada pela ciência para saciar sua sede existencial, na forma de tecnologias e técnicas científicas, não saciou sua sede, pelo contrário, aumentou-a. O líquido que lhe fora dado para beber, pela “modernidade líquida” (Bauman, 2001), tem alimentado sua condição física e material, mas não alimenta sua dimensão espiritual de sentido existencial. A construção de sentidos para viver, vislumbrando motivações significativas e expectativas a serem bem trabalhadas, mostra-se como um importante componente de espiritualidade. Atua como elemento protetivo da pessoa diante de crises, especialmente as que dizem respeito à existência e sua continuidade. É notório que mesmo entre ateus e céticos, a espiritualidade possa constituir componente significativo, inclusive considerando a dimensão da religiosidade. Percebe-se, também, que a espiritualidade entre ateus e céticos pode se relacionar com a necessidade de estabelecer um sentido para a vida. Por outro lado, a espiritualidade religiosa está relacionada à fé em um Ser Superior, um Deus, uma entidade. Atualmente percebe-se que o interesse pela dimensão da espiritualidade vem crescendo e não apenas pela espiritualidade de matriz religiosa. Pode-se depreender disso que a predominância da ciência e da técnica, enquanto possibilitadora de respostas absolutas e de 140 novAs condiçÕes dA esPiritUAlidAde nA contemPorAneidAde conforto para a humanidade, está sendo questionada e chamada a contribuir num diálogo interdisciplinar, sem preconceitos, para a questão. É o que notamos nos sinais que vem sendo dados na emergência de um novo paradigma. Daí entendermos que são novas as condições da espiritualidade na contemporaneidade. REFERÊNCIAS BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BAUMAN, Z. Amor líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. BOFF, L. espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2006. BOFF, L.; LELOUP, Jean-Yves. espírito e saúde. Petrópolis: Vozes, 2007. DIAS, L.; TIMM, E. Z.; GARIN, N. C. A espiritualidade na construção das condições de bem-estar na docência. In: Ciência em Movimento. n. 26. 1º sem de 2011. Porto Alegre: Editora Universitária Metodista – IPA, 2011, p. 69-78. FOGAÇA, D. A. evento cardíaco e espiritualidade: perspectivas de relações. 2014. 131p. Dissertação de Mestrado. Centro Universitário Metodista, IPA. Porto Alegre, 2014. FRANKL, V. em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 29. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2010. GUNDERMAN, R. B.; WILSON, P. K. Spirituality in medicine. American College of radiology, p. 946-950, 2007. KÖENIG, H. G. Medicina, religião e saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade. Porto Alegre: L&PM, 2012. MÜLLER, M. C. Introdução. In: TEIXEIRA, E. F. B.; MÜLLER, M. C.; SILVA, J. D. T. (Orgs.). espiritualidade e qualidade de vida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 8-9. PAULA, E. S.; NASCIMENTO, L. C.; ROCHA, S. M. M. Religião e espiritualidade: experiência de famílias de crianças com insuficiência renal crônica. revista Brasileira de enfermagem, Brasília, 2009 jan-fev; 62 (1) disponível em www.scielo.br/pdf/reben/v62n1/15.pdf. Acesso em 18 fev. 2016. ROBERTO, G. L. Microcefalia não é pena de morte. Disponível em http://oglobo.globo.com/opiniao/microcefalia-nao-pena-de-morte-18705211#ixzz40cTh2zA6. Acesso em 19 fev. 2016. 141 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO SILVA, Clemildo Anacleto; RIBEIRO, Mario Bueno. Intolerância religiosa e direitos humanos. Mapeamentos de intolerância. Porto Alegre: Sulina, 2009. SILVA, Clemildo Anacleto. Religião como ação pedagógica de inclusão e exclusão. Ciência em Movimento. Porto Alegre, Ano X, n.19, p. 55-62, 2008. SILVA, L. B. Percepções acerca do sentido de vida e espiritualidade a partir do discurso do sujeito coletivo ateu. Anais do Congresso ANPTECRE. Curitiba, PR, v. 05, 2015, p. ST1106. Disponível em www2.pucpr. br/reol/index.php/5anptecre?dd99=pdf&dd1=15532. Acesso em 22 fev. 2016. TEIXEIRA, E. F. B.; MÜLLER, M. C.; SILVA, J. D. T. (Orgs.). espiritualidade e qualidade de vida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. TIMM, E. Z.; GARIN, N. C. vida de professor: a dimensão da espiritualidade. Porto Alegre: Centro Universitário Metodista - IPA, 2014, 70p. (Relatório de Pesquisa). ZILLES, U. Espiritualidade cristã. In: TEIXEIRA, E. F. B.; MÜLLER, M. C.; SILVA, J. D. T. (Orgs.). espiritualidade e qualidade de vida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 8-9. 142 DIVERSIDADE HUMANA E INCLUSÃO Marilene Santos da Silva Tudo poderia ser mais simples. Sofrimentos desnecessários, decorrentes do preconceito e da intolerância poderiam ser evitados. A vida nos traz tantos outros. Às vezes, nem é preciso muito, apenas ouvir e ser ouvido. (Lopes, 2009:363) INTRODUÇÃO Antes de introduzir o assunto “Diversidade humana”, faz-se necessário contextualizar sob qual perspectiva paira este capítulo. Discorrerei sobre o novo paradigma o qual estamos vivenciando no momento - a inclusão de pessoas com deficiência e sem deficiência nos distintos âmbitos sociais. Temas como preconceito, estigma e ética, os quais estão intrinsecamente relacionados com a questão da diversidade humana, também serão tratados neste capítulo. Pensar no tema diversidade é considerar uma gama de possibilidades haja vista que a espécie humana por si contempla essa característica: pessoas de tons de peles distintas, cabelos crespos, ondulados, lisos; pessoas com e sem deficiência, etnias distintas etc. O mundo contemporâneo debate-se no reconhecimento e na valorização das diferenças. Atualmente a sociedade tem se modificado para efetivar a construção de um novo paradigma - o da inclusão e da diversidade, tendo como eixo norteador os direitos humanos. Deseja-se que práticas e paradigmas como da segregação e integração sejam abandonados, pois estas ações não garantem às pessoas com deficiência, por exemplo, o direito a serem cidadãs. 143 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Sabemos que paradigmas anteriores (da segregação e integração, por exemplo) ainda podem ser constatados no dia a dia da nossa sociedade na atualidade, na medida em que direitos básicos como saúde, educação, acessibilidade, mobilidade não são garantidos a todos os cidadãos. O exemplo mais cruel de que ainda não vivemos em uma sociedade inclusiva pode ser constatado perante situações em que pessoas consideradas “anormais” são discriminadas por sua cor, sua sexualidade, por ter uma deficiência. O preconceito e o estigma são as barreiras que mais impedem que o novo paradigma, ou seja, da inclusão e diversidade, seja de fato algo natural na sociedade atual. Não podemos deixar de considerar que o panorama está mudando, as pessoas com deficiência estão deixando de ser invisíveis e, consequentemente, tornando-se cidadãs que trabalham, estudam, circulam em todos (ou quase todos) os espaços sociais. Mas precisamos avançar para impedir que o preconceito e a exclusão ainda sejam as barreiras que incapacitem as pessoas, consideradas “desviantes do padrão de normalidade”, a terem acesso a todos direitos previstos pela sociedade. O PASSADO NOS AUXILIANDO A COMPREENDER O HOjE A história da humanidade revela, desde os primórdios, a existência de pessoas com deficiência, com relatos sobre suas dificuldades na vida cotidiana em todos seus aspectos (sociais, culturais, educacionais, por exemplo). As pessoas com deficiência sempre foram marginalizadas e exclusas do processo social, pois a sociedade as via como incapazes e improdutivas. (Cardoso, 2008). Segundo Mazzota (2001), pode-se dizer que a questão da pessoa com deficiência passou, ao longo da história, da marginalização para o assistencialismo e deste para a educação, reabilitação, integração social e, mais recentemente, para a inclusão social. Esse percurso não ocorreu e nem ocorre de forma linear, pois essas diferentes posturas ainda convivem entre si e direcionam práticas e políticas públicas atuais: 144 diversidAde hUmAnA e inclUsão Historicamente as deficiências estavam ligadas à ideia de que suas limitações eram causadas por espíritos maus, demônios ou uma forma da pessoa pagar por pecados cometidos, indicando certo grau de impureza e pecado e de uma sociedade, o que reforçava a prática da marginalização, restando aos deficientes o destino de esmolar nas ruas e praças. Mazzota (2001, p.244): Com o surgimento do Cristianismo, a visão de homem modificou-se para um ser racional, ou seja, a criação e manifestação de Deus e, os deficientes passaram a ser vistos como merecedores de cuidados. (Mazzota, 2001). O sentimento de pena, zelo e cuidado difundido, principalmente, pela Igreja Católica, contribuiu para a mudança de postura, bem como de atitudes frente à diversidade humana que se apresentava à época. Atitudes mais perversas, como extermínio de crianças deficientes passaram a não ser mais frequentes. Ao invés do extermínio, abandono e crueldade, ações assistencialistas e de cuidado passaram a fazer parte do panorama dessa sociedade. As pessoas consideradas “desviantes do padrão de normalidade” para época não eram vistas como cidadãos. Atitudes de exposição à mendicidade e a shows de circos comprovam que eram vistas com desrespeito e preconceito. Somente no final do século XIII, o cenário de extermínio, exclusão e invisibilidade começa a tomar novas proporções. As práticas de caridade tomam uma nova proporção, ou seja, iniciam-se a construção de instituições que visavam oferecer serviço social às pessoas que precisavam de assistência de qualquer ordem. Propagam-se as instituições sócias como: hospícios, asilos, orfanatos. A atuação da Igreja Católica está intrinsecamente relacionada com a constituição dessas instituições cujo objetivo da criação e propagação era oferecer conforto espiritual àqueles que eram considerados possuidores de uma alma doente, anormal. O intuito era também obter novos adeptos à igreja (fiéis). Os principais alvos para fazerem parte das instituições religiosas eram: as pessoas com deficiência, doentes mentais, ou ainda, “os desajustados socialmente” (sujeitos que eram considerados pela sociedade como dignos de pena). A partir do século XVI, a sociedade começa a se preocupar com práticas de cuidado e saúde para com as pessoas com deficiência, por 145 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO exemplo. Nesse período, a deficiência desloca-se do contexto social para o médico. O saber médico começa a entender/explicar o que acontece com as pessoas deficientes ou com doenças mentais. Com o crescente número de pessoas com deficiência, não era mais possível negar a responsabilidade social e política em relação a este grupo de pessoas. Ao mesmo tempo em que o saber médico começa a se preocupar em entender o processo de adoecimento humano, bem como das deficiências, a sociedade mantinha-se excludente e segregadora e costumava isolar e estigmatizar as pessoas com deficiência e/ou com doenças mentais, pois se acreditava que essas pessoas não podiam conviver com as demais que eram consideradas normais. Talvez pelo receio do que se poderia acontecer com o convívio direto com pessoas sindrômicas, por exemplo. Não podemos deixar de considerar que o conhecimento sobre deficiências era escasso nesta época, portanto, o saber médico acreditava que o melhor a ser feito era deixar as pessoas com deficiência em instituições segregadoras. A partir do século XIX, a sociedade passou a defender que o melhor seria criar organizações separadas onde as pessoas com deficiência pudessem receber melhores atendimentos e com menos gastos sob um olhar médico, mas ainda não se pensava em colocar o deficiente na sociedade ou nas famílias. Surgem nesta época os famosos manicômios, onde as torturas com essas pessoas eram constantes. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) reconheceu que todos os seres humanos são iguais e possuem os mesmos direitos e deveres. Portanto, é necessário que a sociedade reconheça de fato as pessoas com deficiência, sabendo que essas precisam ser respeitadas e incluídas, eliminando toda a forma de preconceito e exclusão, que perpassa os termos pejorativos utilizados, como: “inúteis, coitadinhos, aleijados, retardados, loucos etc. O paradigma da inclusão de fato foi se constituindo a partir do século XX. Movimentos sociais foram os grandes percussores para estabelecer mudanças necessárias para mudar o panorama da segregração pela qual vivenciavam as pessoas consideradas diferentes, desviantes, por exemplo. Não se podia mais conceber que pessoas com deficiência não fizessem parte da sociedade como um todo. 146 diversidAde hUmAnA e inclUsão A década de 90 do século XX foi o marco da mudança paradigmática. Ela retirou a questão da deficiência de uma perspectiva meramente de atributos característicos da pessoa com deficiência (diagnóstico) para recolocá-la na dimensão das relações em que a deficiência é revestida de significações específicas conforme o contexto analisado (Classificação Internacional de Funcionalidade - CIF), ou seja, relacionando a deficiência com o contexto social no qual o sujeito está inserido e considerar também o quanto o ambiente pode atenuar ou agravar a deficiência. NOVOS PARADIGMAS... NOVAS FORMAS DE INTERPRETAR O MUNDO Segundo Mantoan (2003), paradigmas são conjuntos de regras, valores e crenças, algo que vai servir de modelo ou exemplo a ser seguido em determinada situação. Portanto, devemos contextualizar a sociedade para que possamos compreender as matrizes que conduzem o pensamento e condutas dos seres humanos em cada contexto específico. Os paradigmas estão contextualizados de acordo com a cultura, concepções de homem e de mundo. Como vimos anteriormente, os conceitos sobre diversidade humana vêm se modificando ao longo dos tempos, portanto revisitar a história nos permite compreender o hoje e nos abre possibilidades de reestruturar novas ações e paradigmas futuros. A trajetória histórica (Sassaki, 2006), a qual os princípios inclusivistas foram se efetivando, seguiram as seguintes fases: Exclusão: pessoas com deficiência e “fora do padrão” não tinham acesso à educação, trabalho, cidadania. Por vezes, eram exterminadas e/ou abandonadas à mendicidade. Segregação: surgem as instituições especiais para educar e “tratar” as pessoas ditas “anormais”. Hospitais e residências eram também utilizados como locais de educação especial. Integração: crianças e jovens mais aptos eram encaminhados às escolas comuns, classes especiais e salas de recursos e deveriam adaptar-se ao ambiente e não o contrário: o ambiente adaptar-se a elas. 147 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Inclusão: todas as pessoas sãs incluídas na sociedade. Os ambientes físicos e os procedimentos educativos são adaptados para acomodar a diversidade do alunado, por exemplo. A sociedade deve prever projetos de acessibilidade e mobilidade para adaptar o ambiente a todos os cidadãos: com e sem deficiência, assim como agir para quebrar as barreiras da intolerância e do preconceito frente às questões relacionadas à diversidade humana (gênero, etnia, deficiência). A sociedade atual vem se reformulando para se tornar inclusiva, ou seja, receptiva a incluir todas as pessoas (deficientes, negros, pobres, indígenas, pessoas com dificuldades emocionais etc.). Esta reformulação depende de aspectos como: cultura, meio social, políticas públicas voltadas aos direitos das pessoas excluídas, por exemplo. Os conceitos inclusivos foram sendo efetivados gradativamente na sociedade atual e suas raízes estão ligadas ao passado. Sassaki (2006, p.27) enfatiza que os conceitos inclusivistas foram se constituindo ao longo das décadas a partir de conceitos que hoje poderíamos chamar de pré-inclusivistas: os conceitos inclusivistas foram lapidados a partir de 1981 por todos quantos participaram, em todos os setores sociais, do dia-a-dia de pessoas com necessidades especiais resultantes, principalmente, de deficiências de vários tipos. Uma sociedade na qual se respeita a diversidade étnica e, ao mesmo tempo em que atende a maioria de suas necessidades, está dentro das características de uma sociedade inclusiva. De acordo com Sassaki (2006), a sociedade foi se estruturando para ações mais inclusivas e estas aconteceram na passagem do século XX para o XXI. Percebe-se que atualmente a sociedade, de forma geral, não consegue lidar com o fato de que somos diferentes, bem como não percebe o ser humano em sua totalidade, ou seja, procura-se sempre diferenciar o ser humano por sua condição física, emocional e intelectual ou por sua etnia, cor etc. Após apresentar o percurso histórico da trajetória da diversidade e da inclusão de pessoas com deficiência, veremos quais são os efeitos da exclusão que afetam as pessoas com deficiência e os considerados “desviantes do padrão da normalidade”. 148 diversidAde hUmAnA e inclUsão Uma das consequências da exclusão refere-se a um fenômeno social denominado estigma. Veremos como se constitui no contexto da deficiência: ESTIGMA Marcar alguém como diferente traz consequências sérias para a vida desse sujeito. Quando alguém é marcado como diferente, é difícil ser aceito não importa o quanto ele faça, isto não afasta o estigma, e o resultado disso é que perde a confiança em si mesmo. Com o tempo, começa a se sentir como estranho e não se enquadra na sociedade. Sentimentos de menos valia é algo que se percebe nas pessoas que são consideradas “diferentes”. As ideias de incapacidade, ineficiência, doença e improdutividade são comumente associadas às pessoas com deficiência. Goffman (1985) dedicou-se a pesquisar sobre estigma pelo qual pessoas excluídas da sociedade vivenciavam. De acordo com este autor e pesquisador, o conceito de estigma tem como referência: um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso (GOFFMAN, 1985, p.6). O estigma é definido como uma diferença indesejada, um atributo pejorativo que implica intolerância do grupo e é, atualmente, uma das prioridades de pesquisa pela OMS – Organização Mundial da Saúde (OMS, 2010). Apesar de ser amplamente aceita a evidência sobre as consequências do estigma, em níveis pessoais e de saúde pública, faltam pesquisas mais aprofundadas de como se lidar efetivamente com esses problemas. Neste contexto, a sociedade limita e delimita a capacidade de ação de um sujeito estigmatizado, marca-o como desacreditado e determina os efeitos maléficos que ele pode representar. Quanto mais visível for a marca, menos possibilidade tem o sujeito de tentar romper ou ocultá-la quando este se encontra nas inter-relações sociais. 149 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO A sociedade historicamente buscou, a partir de classificações, agrupar os seres humanos a partir de suas características biopsicossociais. Ao nos referirmos à eugenia contextualizada nos primórdios da humanidade, como “estatus quão”, precisamos fazer referência às questões ligadas ao estigma que estão intrinsecamente relacionadas às pessoas excluídas da sociedade (deficientes, doentes mentais, negros, indígenas etc.). Este estigma foi se constituindo ao longo dos séculos e precisa ser analisado a fim de compreendermos os processos de exclusão social dessas pessoas, bem como o sofrimento delas por “sentirem na pele” a rejeição por parte das pessoas consideradas normais e “aptas a viverem na sociedade.” As pessoas tendem a se aproximar dos seus iguais e, nesse movimento, alguns grupos são excluídos, por exemplo, as pessoas com deficiência. Estas ainda são alvos de preconceito, exclusão e estigma. A tendência do homem de excluir e segregar traz consequências sérias. O preconceito é uma forma de defesa do que nos é estranho. Todas as pessoas “diferentes” do “padrão de normalidade” que tentamos categorizar podem ser alvos de preconceito, como por exemplo, os leprosos, os doentes mentais, as pessoas sindrômicas. Esse conceito foi se constituindo como algo negativo, que deve ser evitado, um alerta sobre um status negativo ou malévolo. Percebe-se que o termo atualmente é mais utilizado para designar características de comportamentos ou rótulos, que permeiam a subjetividade do indivíduo e, por consequência, submetem o sujeito à discriminação social. Outro autor que se dedicou a pesquisar sobre o preconceito e o estigma em torno das pessoas estigmatizadas foi Andrew Solomon. Seu livro Longe da Árvore (2012) foi resultado de mais de dez anos de pesquisa sobre crianças, adolescentes e adultos à margem dos padrões sociais e biológicos considerados “normais”, aceitos (ou não) por suas famílias. Dentre as várias reflexões que este autor discorre em seu livro, temos a Eugenia como um movimento em busca da “perfeição humana”. Eugenia comercial busca eliminar a diversidade humana, como forma de padronizar as características humanas, ou ainda, busca a perfeição. Evoca-se um mundo destituído de variedade e vulnerabilidade. 150 diversidAde hUmAnA e inclUsão Alguns autores com Francis Fukuyama (apud Solomon, 2014) usam a expressão “futuro pós-humano” para retratar essa busca incessante pela eliminação da diversidade humana. (..) enquanto a medicina promete nos normalizar, nossa realidade social continua a ser uma miscelândia. Se o clichê é que a modernidade torna as pessoas semelhantes, à medida que cocares tribais e sobrecascas dão lugar a camisetas e jeans, a realidade é que a modernidade nos conforta com de uniformidades triviais mesmo quando permite que sejamos mais dilatados em nossos desejos e em nossas maneiras de realizá-los. (p.34) De uma forma desenfreada, deseja-se conquistar uma eugenia da raça humana. Em poucos anos, poderemos escolher como desejamos nossos filhos: com olhos azuis, altos, magros, sem deficiência, ou seja, “perfeitos”. O que essa prática geraria como consequência para a sociedade? Abortos de crianças “defeituosas”? Cirurgias corretivas para “eliminar” as marcas fenotípicas de crianças com síndrome de down? Extinção da diversidade humana? Este é um tema muito complexo e merece uma análise criteriosa, mas é importante destacar que atitudes eugênicas não condizem com o paradigma da inclusão. Outra séria consequência quando a sociedade exclui os sujeitos fora da normalidade diz respeito a um fenômeno social denominado como preconceito. PRECONCEITO Os preconceitos são gerados a partir de crenças generalizadas sobre as características pessoais (atributos) de grupos minoritários, que são consideradas negativas. Essas crenças geram, por vezes, a não aceitação das diferenças, como também podem desenvolver repulsa e até mesmo ódio. Costumamos dizer que ninguém nasce preconceituoso, mas com o passar dos anos, convivendo com outros seres humanos, passamos a ser. Silva (2009) enfatiza que a forma como a sociedade vê a pessoa estigmatizada, diferente, tem um impacto na forma como esse sujeito se comportará em seu meio: a maneira como o ser humano entende 151 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO e se comporta na sociedade tem a ver com a forma como ele próprio e seu mundo estão estruturados. Portanto, o ser humano compreende a realidade a partir de suas experiências, as quais estão contextualizadas no tempo e no espaço. Devemos conscientizar a todos sobre os males que são gerados pelo preconceito, e este trabalho deve se iniciar o mais cedo do possível. Desenvolver ações educativas na fase inicial da escolarização das crianças é a primeira estratégia a ser estruturada para se combater o preconceito e o estigma gerado em torno das pessoas consideradas desviantes, ou ainda, anormais. A literatura infanto-juvenil vem gradativamente ampliando suas publicações em torno do tema diversidade. Algumas obras destacam-se pela sutileza pela qual abordam temas como: constituição familiar, diversidade, relação étnico-racial, deficiências, a constar: Meu amigo down (Em casa, Na Rua, Na escola) - Cláudia Werneck (1995), um amigo diferente - Cláudia Werneck (1996), ninguém É Igual a ninguém, Regina Coeli Renno e Regina Otero (2008), Menina Bonita do laço de Fita, Ana Maria Machado (2000), tudo bem ser diferente, Todd Parr (2009). Filmes, documentários também podem contribuir para a difusão de uma nova forma de ver a diversidade humana. Projetos educacionais sobre diversidade devem ser realizados desde a educação infantil e seguir sendo executados até a universidade. Desta forma, temas como pessoas com deficiência, relações étnicos-raciais, sexualidade e gênero se tornarão naturais e amenizarão a intolerância e o preconceito com relação às pessoas consideradas ainda desviantes do padrão. Após verificarmos as ações excludentes, de extermínio e a busca por uma eugenia humana, serão explicitados os paradigmas que buscaram incluir todos os seres humanos em um contexto humanitário e de direitos. A INCLUSÃO SOCIAL: UMA PERSPECTIVA HUMANISTA Esse paradigma tem sua origem no século XX. Considera que a sociedade seja composta por todos e que o respeito às diferenças 152 diversidAde hUmAnA e inclUsão deve ser a norma a ser compartilhada. Portanto, cabe à sociedade eliminar as barreiras arquitetônicas, atitudinais para que as pessoas com deficiência possam ter acesso aos serviços, lugares, informações para seus plenos desenvolvimentos. Este pressuposto é que define o modelo social da deficiência. Conforme Lanna Junior (2010, p.14): o modelo social defendido pelo Movimento das Pessoas com Deficiência é o grande avanço das últimas décadas. Nele, a interação entre a deficiência e o modo como a sociedade está organizada é que condiciona a funcionalidade, as dificuldades, as limitações e a exclusão das pessoas. A sociedade cria barreiras com relação às atitudes (medo, desconhecimento, falta de expectativas, estigma, preconceito), ao meio ambiente (inacessibilidade física) e às instituições (discriminações de caráter legal) que impedem a plena participação das pessoas. A sociedade, como está organizada, exclui as pessoas que não se enquadram no padrão de normalidade vigente. Esses processos de exclusão ocorrem no trabalho, no transporte público, nos espaços de lazer etc. que não estejam adaptados para a diversidade humana. Sentir-se desigual pode ser evidência de que o tratamento que se recebe também é desigual em comparação às demais pessoas com as quais se convive nos ambientes sociais. Essa exclusão efetiva-se porque a sociedade ainda mantém padrões de classificações engessadas que enquadram as pessoas como normais e os que estão fora do padrão pré-estabelecido (os anormais). Rangel (2013, p.17), descreve como são percebidas pela sociedade as pessoas consideradas fora dos padrões: Podem ser-se desiguais os sujeitos considerados estranhos, por não corresponderem a modelos ou padrões tradicionalmente aceitos como ‘normais’. E por serem estranhos, porque não correspondem a esses padrões, sua proximidade causa resistências e, por isso tornam-se (com maior ou menor intensidade dessas resistências) perigosos, ameaçadores, por conseguinte, ‘marginais, ou seja, à margem dos espaços (ambientes, contextos, relações) reservados aos ‘normais’: um qualificativo que se constrói nos meandros das redes de poder. Ao considerar esse modelo, o foco deve ser a eliminação das barreiras didáticas, arquitetônicas e sociais que não estejam, neces153 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO sariamente, relacionadas à deficiência, mas às condições do ambiente, aos preconceitos, estereótipos e discriminações. MODELO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA O modelo social da deficiência, elaborado basicamente por entidades de pessoas com deficiência, aponta para as barreiras da sociedade (escola, empresa etc.) que impedem o desenvolvimento das pessoas e sua inserção social (inclusão escolar, inclusão profissional etc.). Essas barreiras se manifestam por meio de: seus ambientes restritivos; suas políticas discriminatórias e suas atitudes preconceituosas que rejeitam a minoria e todas as formas de diferenças; seus discutíveis padrões de normalidade; seus objetos e outros bens inacessíveis do ponto de vista físico; seus pré-requisitos atingíveis apenas pela maioria aparentemente homogênea; sua quase total desinformação sobre necessidades especiais e sobre direitos das pessoas que possuem essas necessidades; suas práticas discriminatórias em muitos setores da atividade humana (escolas, empresas, locais de lazer, transportes coletivos etc.): o desenvolvimento da pessoa não pode ser considerado como um dado biológico isolado, mas sim culturalmente delineado. Nesse particular, o modelo social, ao contrário do modelo clínico, tradicional e classificatório, enfatiza o papel do contexto social para o desenvolvimento e a aprendizagem do aluno, e, consequentemente, requer a melhoria da instituição escolar, para que identifique as potencialidades e necessidades educacionais dos alunos e ofereça respostas educativas adequadas a essas necessidades.`(SANTOS[et al.], 2009, p.10) INCLUSÃO TOTAL Este paradigma consiste em não rejeitar a pessoa por sua deficiência independente da sua severidade. Desta forma, o conceito de rejeição zero vem revolucionando a prática das instituições assistenciais que costumavam excluir pessoas com limitações consideradas severas. Partindo do princípio da inclusão total, as instituições são desafiadas a desenvolverem programas e serviços para melhor atender as pessoas com deficiência. Essa tendência mundial tem por missão oferecer os mesmos direitos a todos e não o contrário: as pessoas tendo que se ajustar às instituições. 154 diversidAde hUmAnA e inclUsão CONSIDERAÇõES FINAIS Cada vez mais temos de encarar a diversidade como algo que nos dá a condição de sermos humanos, pois não existe ninguém que seja igual a alguém. Mesmo que sejamos sabedores deste pressuposto que nos rege enquanto humanos, não conseguimos aceitar a diferença, principalmente se estivermos perante sujeitos com comprometimentos cognitivos e neurológicos, por exemplo. A diversidade faz parte da condição humana e as diferenças possibilitam o enriquecimento das nossas experiências e conhecimentos, portanto, na atualidade temos que rever práticas a fim de minimizar a discriminação e o preconceito gerados em torno das pessoas consideradas “diferentes”. Consequentemente, precisamos compreender as peculiaridades de cada ser humano, em sua essência, sua forma de ser e de estar no mundo. Essa possibilidade de conviver com a diversidade precisa ser encarada como algo positivo, ou seja, que enriquece as interações sociais: o que não deve ser visto como positivo é o incentivo à desigualdade e exclusão. Considerar “diferente” aquele sujeito com deficiência ou qualquer outro atributo soa como redundante, pois, como vimos, todos somos diferentes! Ações inclusivas estão acontecendo no mundo inteiro como forma de conscientizar a população de que o natural é ter como princípio a diversidade humana. O panorama está mudando, mas ainda temos muito que avançar para que de fato nos tornemos um país inclusivo. As mudanças de conceitos requerem a desconstrução de verdades absolutas, ou ainda, encaminham para o aprofundamento de novos estudos, bem como da ampliação de reflexões que promovam novos fazeres. As ressignificações são necessárias para se conduzir a novos parâmetros, novos conceitos. O conhecimento deve caminhar na direção de explicar a vida real e, desta forma, contribuir para que os fatos sejam encarados com a maior naturalidade possível. Não há verdade absoluta, o ser humano deve estar aberto a aprender, reaprender e, se preciso, desvencilhar-se de saberes engessados. Devemos adaptar-nos a novas realidades e configurações sociais. Neste contexto, enquadra-se a atual realidade que se configura – a da diversidade humana, sobre 155 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO a qual precisamos nos sensibilizar com vistas à real necessidade de aprender a conviver com o outro. Uma convivência solidária e tolerante. “Conviver” significa “viver com” o outro, em total harmonia, ou seja, eliminando toda e qualquer barreira que remeta às fronteiras do preconceito e exclusão. Preconceito, como vimos, distancia os seres humanos de uma convivência harmônica, gera consequências devastadoras para inclusão de todos em uma sociedade democrática, além de instalar no sujeito excluído um sentimento de rejeição e menos valia que o incapacita, muitas vezes, para exercer seu papel de cidadão. Portanto, devemos desenvolver ações que combatam o preconceito a fim de quebrar com este ciclo que se instaura na humanidade há séculos. Ações devem ser realizadas desde muito cedo junto às nossas crianças (que, diga-se de passagem, não nascem preconceituosas, mas tornam-se, na medida em que convivem em uma sociedade excludente e intolerante), nos espaços escolares. Além das ações nas escolas, devemos ampliar o conhecimento sobre deficiências, doenças mentais, sexualidade humana, diferentes etnias a fim de esclarecer e informar a sociedade sobre estes temas, os quais ainda são pouco difundidos. A desinformação gera distanciamento, medo, exclusão, preconceito e intolerância. REFERÊNCIAS CIF (Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde). OMS, 2001 CARDOSO, Marilene da Silva. educação Inclusiva e diversidade: uma práxis educativa junto a alunos com necessidades especiais. Porto Alegre: Redes Editora, 2008. GOFFMAN, Ervin. estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada: Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1985. LANNA Júnior. história do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. São Paulo: [s.e.], 2010. LOPES, Denilson. Por uma nova invisibilidade. In: RANGEL, Mary (organizadora). A escola diante da diversidade. Rio de Janeiro: WAK Editora, 2013. MACHADO, Ana Maria. Menina Bonita do laço de fita. Editora Ática, 2000. 156 diversidAde hUmAnA e inclUsão MANTOAN, M. T. E. Inclusão escolar: O que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Moderna, 2003. MAZZOTA, Marcos José da Silveira. educação especial no Brasil – História e Políticas Públicas. São Paulo: Cortez, 2001. 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(Nelson Mandela) INTRODUÇÃO Apesar da proposta de uma educação antirracista no cotidiano escolar ser compreendida como um processo pedagógico voltado para a universalização da educação de modo cultural, que contemple a todos os educandos independentemente do grupo social pertencente, esta práxis acaba por ser um paradigma da diversidade ao começar a ser abordado como conteúdo nas instituições de ensino por conta da Lei nº 10.639/03, vislumbrando um ensino igualitário para todos. A Lei nº10.639/2003 veio para propor não somente novas práticas em sala de aula, mas também para tecer um novo olhar descolonizante, assim como outras possibilidades de pensar a diversidade. As questões raciais em relação ao sujeito negro brasileiro, seu percurso como cidadão, devem inicialmente ser compreendidas através da perspectiva de Edgar Morin (2003) que acredita que a descolonização em diferentes espaços sociais é algo complexo, ou seja, é aquilo que é tecido junto. Assim, na condição de educadora e constante investigadora empenhada com a ideia da descolonização no espaço escolar, tenho a possibilidade de ter um olhar que não se limita a de expectadora, mas ao lugar de problematizadora que busca novas alternativas para a igualdade racial na sociedade. 159 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Neste sentido, através da ruptura de olhares sobre os fatos históricos e acontecimentos humanos na sociedade como defende a perspectiva positivista de Durkheim (1969), a sociedade representa uma entidade genérica superior aos indivíduos; não consiste apenas na sua soma, é antes o resultado de um composto de indivíduos que adquire características próprias, com propriedades específicas. Como a formação do indivíduo se dá dentro do contexto social, ele pode ser considerado um produto da sociedade e é nesta corrente de pensamento que discorre este ensaio. LEI Nº 10.639/03 – HISTóRIA DA ÁFRICA E CULTURA AFRO-bRASILEIRA O Estado brasileiro desde o período Colonial, passando pelo Império e República, teve historicamente, no aspecto legal, uma postura permissiva diante da discriminação e do racismo que atinge a população afrodescendente brasileira. Essa postura permanece até os tempos atuais. Ultimamente o Estado tem reconhecido que há uma dívida histórica em relação aos dois grupos étnicos (negro e indígena) que compõem a base da formação cultural do povo brasileiro e que, por muito tempo e ainda hoje, sofrem as consequências das ações políticas perpetuadas por muitos anos. A situação na qual esses povos se encontram atualmente, sofrendo discriminações e exclusões, se deve a repetidas ações e omissões do Estado. Podemos afirmar que o Estado causou intencionalmente um prejuízo, levando com que essas populações convivessem ou competissem na sociedade de forma desigual. “O Ministério da Educação, comprometido com a pauta de políticas afirmativas do governo federal, vem instituindo e implementando um conjunto de medidas e ações com o objetivo de corrigir injustiças, eliminar discriminações e promover a inclusão social e a cidadania para todos no sistema educacional brasileiro”. (BRASIL, 2004, p.5). Nesse sentido, nos últimos governos, o Estado reconhece que há uma dívida histórica e por esse motivo tem tentado estabelecer políticas que reparem o prejuízo causado e reconheça o valor bem como a importância dessas etnias na formação cultural do povo 160 o olhAr A PArtir dA histÓriA e cUltUrA AFro-brAsileirA brasileiro. Portanto, essas leis têm como “objetivo corrigir injustiças, eliminar discriminações e promover a inclusão social e a cidadania para todos no sistema educacional brasileiro”. (BRASIL, 2004b, p.5). Moore (2007, p.27) corrobora com essa ideia quando afirma que: Relembrar a sociedade o processo verdadeiro por meio do qual se constituiu realmente a Nação traz também o desafio de se criar um terreno favorável para a implementação de medidas públicas tendentes a reduzir o impacto histórico cumulativo que teve a escravidão sobre aqueles brasileiros, hoje a metade da população, que se encontram confinados, em sua maioria, nas posições sociais de maior precariedade. Historicamente o Brasil voltou suas costas para o Continente Africano. Esse continente nunca foi visto como continente irmão com o qual pudéssemos aprender, partilhar ou trocar conhecimentos. A cultura brasileira ficou marcada por se constituir como cultura branca, cristã e patriarcal. Desta forma, por muito tempo, se pensou e se defendeu que não havia muito que aprender com outros povos, principalmente com os povos originários e, claro, com os povos trazidos contra sua vontade para trabalhos escravos. Agora é chegado o momento de reconhecer e reparar essas graves ações, construir novos parâmetros, novos modelos e novos paradigmas. O sistema educacional pode contribuir de forma muito positiva nesse processo, mesmo compreendendo que nossas escolas ainda continuam sendo espaços de discriminação e preconceitos. Nesse aspecto, elas refletem a tensão presente na sociedade. É no espaço educacional que podemos oportunizar o rompimento desse negacionismo racial, compreender sua historicidade e criar práticas educativas, utilizando-se de diálogos na construção de uma nova visão: “A escola, ao contrário do que se imagina, muitas vezes, se constitui em espaço de prática, divulgação e pregação de intolerância”. (SILVA, 2009, p.81). Assim, “se as próprias instâncias governamentais se preocupam atualmente em trabalhar, no interior dos currículos, temas voltados para a superação da discriminação e da exclusão étnico-raciais, deve-se considerar que estas mesmas instâncias reconhecem a existência da discriminação”. (SILVA JÚNIOR, 2002, p.31). Portanto, 161 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO como afirma Rocha (2005, p.201): “Pensar a educação hoje é pensá-la na perspectiva de construir uma sociedade capaz de assegurar direitos sociais, econômicos, políticos e culturais a todos os brasileiros.” Nesse sentido, o preconceito e discriminação étnico-racial não estão restritos apenas aos livros didáticos, estão presentes de fato nas relações sociais do dia a dia da população brasileira. Essa ação constante de discriminação resultou em uma certa ideia de que isso era normal ou que era parte da característica da cultura brasileira, o que, de acordo com Sergio Buarque de Holanda, acabou por gerar o “mito do homem cordial”. Em outro momento, passou-se a acusar os próprios discriminados. Era comum ouvir expressão como: “os próprios negros se discriminam ou tem preconceito contra si”. Ora, numa sociedade na qual determinada cultura é desvalorizada e ridicularizada, muitas vezes as próprias pessoas oriundas dessa cultura não querem ou têm vergonha de se associar a ela, ou ainda, se o fazem, fazem de forma não declarada. Houve e ainda há em nossa sociedade uma forte propaganda negativa de desmonte e destruição da cultura negra e indígena. Esse é o processo pelo qual passou os adeptos de religiões de matriz africana. Esse processo de negação da cultura, da etnia, da cor e mesmo dos traços físicos teve consequência na autoestima desses povos. Houve um processo histórico de ação permanente e continuado que enfatizou a inferiorização tanto dos negros quanto dos indígenas. Essa visão de mundo, estabelecida no passado, continua reverberando nos dias atuais. Usando como referência o pressuposto sociológico, a Lei nº 10.639/03 sintetiza um grande período de lutas e engajamentos do Movimento Negro Organizado – MNO. Esta lei federal fora sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinando assim a obrigatoriedade da inclusão do estudo da História e Cultura Afro-brasileira nos currículos das redes de ensino do país. Todavia, em 2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Deste modo, também foram promovidas alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) passando a apresentar dois novos artigos que impactam de alguma forma o ensino de História. 162 o olhAr A PArtir dA histÓriA e cUltUrA AFro-brAsileirA Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Parágrafo 1º - O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas sociais, econômica e política, pertinentes à História do Brasil. Parágrafo 2º - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira; Art.79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ``Dia Nacional da Consciência Negra´´. Nesta perspectiva, a educação antirracista de alguma forma começa a se fazer presente no espaço escolar, não somente a escravidão é abordada quando se fala no grupo social negro em sala de aula, sua cultura e o papel do negro na formação da sociedade brasileira, e é apresentada nos currículos escolares. Refletir, pensar, conhecer são palavras de ordem para esta nova geração de educandos que terá a oportunidade de conhecer uma história que antes era contada basicamente sob o prisma de configurações naturalizadas pela cultura ocidental que acabou por delinear nossa civilização. Nesse sentido, faz necessário entender que [...] a história é uma bola de ferro que bisnetos e bisnetas das vítimas da escravidão ainda arrastam pelos tornozelos. Seus efeitos nocivos continuam se fazendo sentir todos os dias. (MANZANO, 2016, p.22 ). A realidade brasileira no que se refere à população negra é um retrato das consequências históricas advinda da intervenção direta do Estado que causou prejuízos e desvantagens a uma população específica. Se tivermos acesso às estatísticas, verificaremos que, se não todos, mas a grande maioria dos índices relativos à população negra é apresentada de forma negativa em relação à população branca. Quando se observa as estatísticas relacionadas a vários itens sociais, percebe-se que a população negra está sempre em desvantagem em relação à população branca. Por exemplo: analfabetismo, renda média, distorção série-idade, distribuição de pobres e indigentes, violência, taxa de desemprego, perseguição religiosa. Em todos esses itens 163 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO a população negra aparece em desvantagem, às vezes com índices que são o dobro em relação à população branca.1 Essas desvantagens não podem ser vistas com normalidade. Não é apenas uma desigualdade decorrente e inerente ao sistema capitalista. É uma desigualdade que atinge um grupo especificamente. Assim, podemos concluir que há aqui o que se denomina de racismo institucional e racismo estrutural. Para mudar esses índices é necessário que conheçamos realmente a história do povo negro. A Lei nº 10.639/03 não é voltada exclusivamente para os alunos negros, mas para que todos se reconheçam nos temas históricos abordados em sala de aula. A Lei tem por objetivo fazer com que os atores sociais não sejam omitidos. Pretende também promover que a descolonização do imaginário sociocultural seja desvelada, visto que inconscientemente ou não, a imagem do negro nos livros didáticos não contribui para valorização dos antepassados. A descolonização sociocultural relaciona-se, consequentemente, com concepções estruturais da história brasileira, levando o negro a uma condição de sujeito inferior perante a sociedade. Nas relações do cotidiano, percebemos o racismo implícito, marcado na alma, no emocional... marca do colonialismo sociocultural. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão e o penúltimo a acabar com o tráfico de pessoas. Ao escravo era permitido trazer apenas seu corpo, sua memória, seus sonhos. Sua cultura foi sufocada. Suas danças e lutas acabaram se perdendo juntamente com sua história. Do século XIX ao início do XX, por exemplo, ocorreram perseguições policiais aos praticantes da capoeira; arte que atualmente é reconhecida como esporte nacional. (SOARES, 1998). Logo, pensar no ensino da história afro-brasileira sem pensar no passado e no presente não tem sentido transcendental algum. Lutar contra o racismo e a discriminação é uma transformação que vai muito além das palavras ou do pensamento do outro para com o sujeito negro, trata-se de levar em conta as condições socioeconômicas dos grupos historicamente marginalizados. 1 Alguns desses itens podem ser conferidos nos seguintes endereços:< http://www. ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf > e também em: http://www.mapadaviolencia. org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf. 164 o olhAr A PArtir dA histÓriA e cUltUrA AFro-brAsileirA Entendemos que todos os cidadãos são responsáveis pela vigilância ética e moral contra o racismo cotidiano. Ao nos posicionarmos contra o racismo, investimos também contra a intolerância e o preconceito. As ações racistas se encontram presentes nos locais de produção intelectual e reprodução do conhecimento, assim como nas instituições de ensino público e privado. Para Guimarães: [...] “raça” não é apenas uma categoria política necessária para organizar a resistência ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica indispensável: a única que revela que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de “cor” enseja são efetivamente raciais e não apenas de “classe”. (GUIMARÃES, 2002, p. 50) O educador, ao apresentar a história e cultura afro-brasileira em sala de aula, deve abrir espaço para inclusão da temática das relações raciais através de textos literários, revistas, jornais, explorando o cotidiano do aluno, realizando uma reflexão efetiva que realmente faça com que o educando compreenda o assunto que está sendo abordado. O professor, ao apresentar ao seu alunato aspectos históricos da construção do racismo no Brasil, assim como as teorias racistas do século XX, ideologias de branqueamento, aspectos sociológicos de discriminação racial na sociedade atual, realiza uma intervenção pedagógica que visa também auxiliar o educando na construção da sua identidade. O ENSINO DA HISTóRIA AFRO-bRASILEIRA E AFRICANA NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE O espaço escolar tem em sua função dar oportunidade ao aluno de ampliar suas experiências através da aquisição de conhecimento, respeitando a diversidade cultural de cada um de forma que se promova a alteridade. É um local de suma importância na preservação de aspectos culturais e também de sua disseminação, contribuindo diretamente na construção da identidade dos educandos. O ensino da história africana e afro-brasileira está presente na matriz curricular, porém de forma muito tímida e estereotipada, o que configura ainda a falta de referências negras no processo de aprendizagem. 165 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO Segundo Erickson (1998), a formação da identidade é um constante processo de construção, sendo a soma de vários elementos: cultural, religioso, familiar etc., e inicia antes do nascimento, na escolha do nome pelos pais, a projeção de sexo e carreira no futuro, por exemplo. O entendimento da identidade se dá da forma como o indivíduo percebe a si próprio, distinto em relação ao outro. É importante dizer que um elemento muito importante de uma identidade não é exclusivamente o eu (self) e sim como o sujeito percebe como o outro o vê. Similarmente, Hall (2001) diz que a identidade é um processo de construção em diferentes partes, ao longo do tempo, através de processos inconscientes e não algo inato e imutável. Neste processo de formação da identidade, a presença da cultura nacional e sua diversidade têm um papel muito importante, pois através da representação cultural o indivíduo busca novos elementos que o represente e o diferencie do outro diante da sociedade. “Não devemos falar da identidade como uma coisa inacabada, deveríamos falar de identificação e vê-la como um processo em andamento”. (HALL, 2001, p 38). Conforme Cavalleiro apud Costa, os pais e os adultos serão como fontes de definição do “verdadeiro” ou da “real” identidade, estes mostrarão à criança o que é permitido ou proibido sentir e fazer como ser psíquico autônomo. Nossa sociedade é permeada pelo preconceito, na qual historicamente a identidade do negro foi construída cheia de estereótipos negativos e, em contrapartida, a identificação positiva é atribuída ao branco. Cavalleiro afirma que nosso processo de socialização baseia-se em modelos precários de identidade e partindo da suposição de que estes podem ser interiorizados, diz que: Diante disso, cada indivíduo socializado em nossa cultura poderá internalizar representações preconceituosas a respeito desse grupo [negro] sem se dar conta disso, ou até mesmo se dando conta por acreditar ser o mais correto. (CAVALLEIRO, 2010, p 20) Mesmo com mais de dez anos desde sua implantação, tem sido um desafio colocar a Lei 10.639/03 em prática de maneira eficaz e adequada no cotidiano escolar brasileiro (SILVA & LIMA, 2012). O livro didático é um dos materiais que os professores mais utilizam e 166 o olhAr A PArtir dA histÓriA e cUltUrA AFro-brAsileirA para alguns alunos é o único material disponível de estudo em casa, mas, no entanto, a grande maioria desses livros ainda não contempla a heterogeneidade da demanda escolar e ainda pode ser um veículo sutil de preconceito. Tratando da diversidade cultural, étnica, social etc., ainda nos deparamos com versões unilaterais que supervalorizam a história sob o ponto de vista eurocêntrico e das classes sociais. Moura 2005 (citado por MUNANGA, 2005) destaca o aspecto observável nos livros que a historicidade do negro é relatada somente no contexto escravo, desvalorizando a sua luta no processo de abolição. Esta didática pode e deve ser abordada de novas formas, trazendo à tona a história sob a ótica do negro, o grande protagonista de sua luta por direitos e liberdade, evidenciando personagens ativos, como Dandara e Zumbi dos Palmares de forma que as crianças possam conhecer a importância dessas figuras no contexto passado e como e por que são referências até hoje. Além disso, muitas imagens dos materiais didáticos ainda trazem a figura do negro de forma caricatural ou estereótipos que remetem à inferioridade ou submissão. Seja de forma consciente ou inconsciente, estas representações ainda são muito presentes e, ao minimizarem a história do negro no processo histórico que constitui o Brasil, podem acarretar na criança uma imagem disforme, negativa e de inferioridade sobre a história do negro, refletindo em baixa autoestima e autor rejeição no caso da criança negra, podendo levá-la em busca de novos valores e representações vistas como universais com que possa se identificar. Em obras literárias que tivemos acesso, pudemos observar claramente outra imagem distorcida do negro: o embranquecimento nas figuras exibidas de autores como Castro Alves e Machado de Assis em comparação a fotografias da época. Há alterações não só na cor da pele, mas em seus traços naturais como cabelo, barba e nariz. Existe a necessidade de trabalhar em sala de aula estas questões de fenotipia, rompendo o paradigma de que beleza eurocêntrica representa exclusivamente o belo enquanto o africano e descendente representam o feio ou o exótico de forma que os alunos, ao problematizarem essa temática, respeitem e valorizem as diversidades. 167 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO A Comissão Nacional de Psicologia na Educação (PSINAED) assinala que o resgate da cultura negra não interessa somente aos alunos desta ascendência étnica, visto que pela miscigenação do povo brasileiro boa parte da população tem ascendências mistas e defende também a importância da educação étnico-racial a todos os alunos, principalmente aos que se declaram como brancos, pois ao receberem uma educação transpassada pelos preconceitos tiveram suas estruturas psíquicas construídas a partir desta realidade. AFRICANIDADES EM SALA DE AULA É inegável a presença de etnias afrodescendentes nosso país. No entanto, apesar dessa presença, a sua visibilidade ainda gera o negacionismo. Mesmo com criações de políticas que afirmem sua presença, o negro e sua cultura ainda são apresentados de forma negativa. Isso se deve, entre outras questões, à maneira como os livros didáticos têm representado e apresentado a História afro-brasileira e indígena. “Esta herança cultural africana constitui uma das matrizes fundamentais da chamada cultura nacional e deveria por este motivo ocupar uma posição igual às outras”. (MUNANGA, 2013, p.27). Estima-se que havia no Brasil, antes da colonização, cerca de cinco milhões de indígenas divididos por várias etnias e povos. Da mesma forma, cerca de três milhões e meio de africanos chegaram ao Brasil como escravos. Há quem fale em números maiores. “[...] Estima-se uma população em torno de, pelos menos, 15 milhões de africanos deportados para a costa brasileira e, consequentemente, o Brasil teve em pouco tempo a maior concentração de descendentes de africanos fora da África”. (TIRANDENTES; SILVA, 2008, p.30). Isso significa que as populações indígena e negra sempre foram maioria. No entanto, as culturas negra e indígena não foram bem vistas pela elite dominante do nosso país, razão pela qual, o Brasil estabelece uma política de introdução de povos, brancos, para dar uma “nova cara” e contrapor a cultura que estava posta. Vale ressaltar que os povos de etnia branca foram convidados, não foram trazidos como escravos e receberam vantagens; destacando a principal que era o recebimento de títulos de terras para trabalho. O tratamento dispensado a esses grupos foi diferenciado. 168 o olhAr A PArtir dA histÓriA e cUltUrA AFro-brAsileirA Por muito tempo afirmou-se, equivocadamente e propositalmente, que o Brasil era um país composto por uma população branca. O último censo do IBGE 2010 (Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística) demonstrou que 51% da população se declaram pretos ou pardos. Portanto, pela primeira vez se desmistificou essa ideia. O que significa que não há e nunca houve uma hegemonia. O que caracteriza e marca a identidade brasileira é a pluralidade étnica, a diversidade de povos e de cultura. A identidade é marcada pelas diferenças. Às vezes se faz necessário ressaltar a diferença a fim de que a identidade seja protegida, defendida ou reconhecida. Nesse sentido, não há nenhum problema em se perceber como diferente, o que não pode é tornar essa diferença algo que a qualifique como inferior ou superior. Mas é preciso lembrar que no Brasil “o processo de construção da identidade das vítimas do racismo passa absoluta e necessariamente pela aceitação do seu corpo, simbolizado pela cor da pele e também pela aceitação de sua história e cultura”. (MUNANGA, 2013, p.23). No entanto, embora haja uma maioria parda e negra, isso não se traduz em oportunidades ou presença no mundo do trabalho, tampouco no mundo acadêmico, no mundo político e nos postos de direção ou comando. Pelo contrário, a população negra é a que mais tem sofrido com a exclusão, pobreza, o desemprego e a violência. No passado, a miscigenação foi vista como algo perigoso e ameaçador. A diversidade cultural do povo brasileiro não pode ser vista como uma ameaça e sim como uma riqueza. É a troca cultural, o entrelaçamento de povos e a partilha de conhecimento que contribui para enriquecer cada vez mais a cultura brasileira. O aspecto positivo da miscigenação que aqui estamos defendendo, significa dizer que o povo brasileiro é um povo “misturado”. As culturas, as etnias, os fenótipos se misturam ou se combinam para dar origem ao povo brasileiro. No entanto, reconhecemos que há quem pense de forma diferente e, nesse sentido, entende que “a miscigenação constitui-se em uma política eugênica que, efetivamente, visa a eliminar o fenótipo adverso”. (MOORE, 2007, p.259). A escola e o currículo escolar não apenas apresentam uma reprodução contínua de desigualdade social através dos conteúdos 169 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO abordados, mas têm alusões basilares no processo. A construção do currículo escolar tem uma formatação arbitraria e assimétrica em relação às raças e classes sociais, entretanto, deveria ser baseada em valores como cidadania, justiça e ética. Assim, os educadores devem conhecer a diferença entre raça, etnia e relações étnico-raciais para poder abordar essa temática com propriedade. Raça: O termo, assim como assinala Munanga (2004), apresenta origem na palavra latina ratio, indicando sorte, categoria, espécie, que no latim medieval já adota outros sentidos, indicando descendência, linhagem. [...] a raça não é uma realidade biológica, mas sim apenas um conceito, aliás, cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raças estancas. Ou seja, biológica e cientificamente, as raças não existem. (MUNANGA, 2004, p. 19) No entanto, raça pode indicar segmentos sociais condicionados, em seu acesso aos recursos socialmente relevantes, por crenças coletivas negativadas e relacionadas à sua fenotipia, tais como características de cor de pele e cabelo. As crenças coletivas têm efeitos nas relações sociais, pois as pessoas se pensam desde um prisma racial, tratam-se na forma de insultos ou brincadeiras, possuem oportunidades de inserção social e estruturam suas expectativas de vida a partir dessas ideias. Daí advém o racismo, a discriminação e a intolerância. Essas crenças, embora marquem o cotidiano da maioria das pessoas, destoam do debate atual da Biologia, que afirma a variabilidade genética humana relacionada com a geografia continental, destacando que há mais diferenças entre os africanos do que entre os africanos e os europeus, por exemplo. No ponto de vista da História, o contexto atual exige ainda a compreensão dessa ideia, e não a sua negação. (MUNANGA, 2004) Etnia: diz respeito a grupos que possuem hábitos culturais em comum, maneiras de agir, de pensar e de sentir, idiomas, crenças religiosas, costumes, expressões artísticas, saberes e conhecimentos diversos. É, porém, uma classificação externa aos próprios grupos. 170 o olhAr A PArtir dA histÓriA e cUltUrA AFro-brAsileirA Relações étnico-raciais: designam práticas de interações socioculturais relativas aos pertencimentos étnicos e raciais. A educação das relações étnico-raciais tem por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira. (DCN, Resolução CP/CNE nº 1, 2004) Ao abordar essa temática, o professor não necessita apenas trabalhar com textos para realizar uma reflexão sobre intolerância e racismo, mas também diferentes atividades como: filmes, debates, pesquisa sobre a sua árvore genealógica, desenho caricatural/autorretrato do aluno; essas ações ajudam a trabalhar a identidade do educando, fazendo com que o aluno se reconheça nestas práxis pedagógicas que podem explorar territoriedade, cultura, economia e raça. Desse modo, silenciar a prática de discriminação na escola, por parte do corpo docente, visando não estereotipar e muito menos penalizar o grupo social negro, é uma atitude que ajuda a manter o preconceito neste espaço tão rico de saber. Segundo Guimarães: Quando uso os termos “raça” ou “raciais” refiro-me a formas de identidade social ou formas de classificação dos indivíduos em coletivos, baseadas em marcadores fisionômicos ou fenotípicos tais como cor da pele, textura do cabelo, formato do nariz ou dos lábios etc., que remetem, direta ou indiretamente, à noção de raça biológica, ainda que saibamos que estas não existem, de fato. (GUIMARÃES, 2005, p. 02) Abordar o multiculturalismo brasileiro em sala de aula não deveria ser visto como uma obrigação por parte do educador por conta da Lei nº 10.639/03, mas como algo normal já que a diversidade étnica geralmente é apresentada nos livros de História como combinação de apenas três raças: branca, negra e indígena, porém a primeira geralmente é apresentada como possuidora de um caráter ascendente perante os demais. (GUIMARÃES, 2002). Logo, é de suma relevância 171 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO refletir sobre os termos que legitimam a desigualdade em nosso país, enfatizando as questões de tratamento e oportunidade. Ao trabalhar as relações étnico-raciais nas escolas, é preciso observar atentamente os efeitos psicossociais do racismo, objetivando não somente a eliminação do preconceito em sala de aula, mas também fora dela, rompendo as barreiras e marcas que foram construídas historicamente pela sociedade sob formas de valores e crenças simbolicamente desiguais, desvalorizando negros e indígenas e superiorizando os brancos. Não podemos nos esquecer de que em 1968 o presidente Costa e Silva promulgou a Lei nº 5.465, de 03 de Julho de 1968, a qual instituía bolsas universitárias para filhos de “agricultores”, que na realidade se tratavam de filhos de fazendeiros. Esta lei vigorou até 1985. Portanto, é necessário apresentar o passado, a história de nosso país para que se possa compreender o presente. Art. 1º Os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, reservarão, anualmente, de preferência, de 50% (cinquenta por cento) de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e 30% (trinta por cento) a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio. (BRASIL, 1968). Portanto, africanidades em sala de aula vão muito além de desenvolver atividades pedagógicas que visem contemplar a Lei nº 10.639/03. Significa olhar a sociedade a partir da nossa história, ou seja, uma história africana, afro-brasileira e indígena. Ao descontruirmos estereótipos, trabalharmos as diferenças e o respeito à alteridade, estaremos contribuindo fortemente para a prática da cidadania dentro e fora do ambiente escolar. CONCLUSÃO Mesmo com o avanço destacado da Lei 10.639, os processos de discussão e de formação nas Instituições de Ensino Superior, bem como em todas as fases da educação desenvolvida no sistema educacional do país, devem ser contínuos na objetividade de aprofundar 172 o olhAr A PArtir dA histÓriA e cUltUrA AFro-brAsileirA a compreensão desta realidade e, acima de tudo, proporcionar que as mudanças sociais elaboradas a partir da concepção de igualdade de direitos, do acesso igualitário aos instrumentos de promoção da cidadania e do bem estar social possam estar à disposição deste grupo social que esteve alienado e marginalizado na produção material e imaterial da sociedade brasileira. Assim sendo, a discussão e o aprofundamento daquilo que está disposto na Lei 10639 é elemento fundamental de promoção do exercício da cidadania caracterizado pela inclusão social destes grupos e na construção de instrumento que caminhem na direção da igualdade social e que contribuam para obstaculizar concepções que se direcionem ao contrário, rumo à discriminação, a marginalização e ao preconceito. O trabalho de discussão dos temas ligados às questões étnico-raciais ainda são de extrema importância na sociedade atual brasileira. Ainda hoje percebemos, nos noticiários e no cotidiano, a discriminação racial explicitada de maneira velada ou não na sociedade brasileira. Continuam os reflexos dos processos de discriminação e de exclusão social nos grupos sociais originados nos processos de escravidão. Isto se expressa no acesso ao trabalho, à educação, à saúde, à cultura, ao lazer e nas relações sociais como um todo. Além deste aspecto podemos destacar o forte movimento migratório em direção ao Brasil de populações oriundas de países como Haiti, Angola, Sudão, entre outros, e que sofrem processos de discriminação social, sendo vistos em momentos de crise econômica como competidores desleais. Esta compreensão, a nosso juízo, esconde a concepção de hierarquização dos indivíduos no interior da sociedade moderna. É importante destacar que a inferioridade, tanto dos povos africanos quanto dos indígenas brasileiros, foi resultado de uma construção intencional para desqualificar esses povos quando comparados ao modelo de vida europeu. A noção, segundo a qual esses povos tiveram papel irrisório ou que foram meros coadjuvantes do processo histórico, foi criada a partir do contato dos europeus com os povos africanos e com os povos da terra da América Latina. 173 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 02 de maio de 2016. BRASIL. lei de diretrizes e Bases da educação. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. BRASIL. diretrizes Curriculares nacionais para a educação das relações Étnico-raciais e para o ensino de história e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004. Disponível em: <http://www. acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf> Acesso em: agosto de 2015. CAVALLEIRO, Elaine da S. do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2010. Conselho Federal de Psicologia. educação e relações étnico-raciais. Comissão de Psicologia na Educação. Disponível em: http://psinaed.cfp.org. br/educacao-e-relacoes-etnico-raciais/ Acesso em 19 de maio de 2016. 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Professor no Centro Universitário Metodista – IPA. diógenes Antônio Fogaça. Possui Licenciatura Plena em Educação Física e Técnico em Desporto pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Mestrado em Reabilitação e Inclusão pelo Centro Universitário Metodista-IPA. É integrante do Núcleo de Estudo em Educação, Espiritualidade e História de Vida (NEEEHV\IPA). Personal Trainer desde 1996, com experiência em Reabilitação e Cardiometabólica. edgar Zanini timm Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal de Pelotas, Graduação em Filosofia pela PUCRS, Mestrado em Educação e Doutorado pela PUCRS. Atualmente é professor titular do Centro Universitário Metodista – IPA. É integrante do Grupo de Pesquisa CNPq\IPA Educação e Inclusão e do Grupo de Pesquisa CNPQ\PUCRS Profissionalização Docente e Identidade-narrativas na primeira pessoa 177 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO (GRUPRODOCI) e coordena o Núcleo de Estudos em Educação, Espiritualidade e Histórias de Vida (NEEHV\IPA). emanoel rodrigues Almeida Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Professor do Centro de Educação da Universidade Estadual do Ceará. Fleming salvador Pedroso Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal de Santa Maria (1981), Especialista em Neurologia, Mestrado e Doutorado em Ciências Medicas: Pediatria com ênfase em Neurologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996 e 2000). Atualmente é professor de Neurociências no Centro Universitário Metodista, do IPA. Ingrid vanessa de oliveira Graduada em pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. joão Paulo rodrigues Aço Mestre em Ciências Sociais, Graduado em História. Professor do Centro Universitário Metodista – IPA jonas tarcísio reis Doutorando em Educação pela UNISINOS. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Educação Musical pela Universidade Feevale. Licenciado em Música pelo Centro Universitário Metodista IPA. Licenciado em Pedagogia pela Universidade Paulista (UNIP). Membro do Grupo de Pesquisa Educação e Trabalho da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Grupo de Pesquisa Educação e Inclusão do IPA. Sócio da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED). Docente da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre/RS. jorge luiz Ayres gonzaga Doutorando em Educação pela Unilasalle. Mestre em Reabilitação e Inclusão pelo Centro Universitário Metodista IPA. Licenciado em 178 o olhAr A PArtir dA histÓriA e cUltUrA AFro-brAsileirA História pela mesma instituição. Membro do Grupo de Pesquisa Educação e Inclusão do IPA. Professor da Rede Estadual de Ensino do RS. jose Clovis de Azevedo Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Licenciado e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do mestrado em Reabilitação e Inclusão do Centro Universitário Metodista IPA. Secretário de Estado da Educação do Rio Grande do Sul (SEDUC-RS) 2011-2014. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa Educação e Inclusão do IPA. Membro do Grupo de Pesquisa Educação e Trabalho da Universidade Federal do Paraná (UFPR). luciene Maldonado Doutoranda em Educação pela Escola de Humanidades da PUCRS, Mestra em Educação pela PUCRS, Licenciada em História. Pesquisadora bolsista da CAPES. Margareth Fadanelli simionato Doutora em Educação e Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Ufrgs, pesquisadora em educação na área de formação de professores, Educação Profissional, políticas públicas e gestão educacional. Integrante do Gruo de Pesquisa Trabalho, Movimentos Sociais e Educação – Ufrgs/Cnpq. Docente nos cursos de formação de professores do Centro Universitário Metodista IPA – Porto Alegre – RS. Marilene santos da silva Possui graduação em Pedagogia pela UFRGS, Especialização em Psicopedagogia pela PUCRS, Mestrado em Reabilitação e Inclusão pelo Centro Universitário Metodista-IPA. Atualmente é professora de Pós-graduação: Verbo Educacional. norberto da Cunha garin Possui graduação em Teologia pelo Instituto João Wesley (1972), Bacharel em Teologia, complementação pelo Instituto Metodista de Ensino Superior (1975), Licenciatura em Filosofia pela Universidade 179 ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS. UMA AbORDAGEM INTERDIScIPlINAR NA cONSTRUçãO DO cONhEcIMENTO de Passo Fundo (1974), Mestrado em Teologia pela Escola Superior de Teologia (1993) e Doutorado em Teologia pela Escola Superior de Teologia (2007). Atualmente é professor do Mestrado em Reabilitação e Inclusão e Pesquisador do IPA. Priscila vieira Bastos Especialista em Serviço Social e Educação Popular. Licenciada em Filosofia. Professora da Rede Estadual de Educação do RS e da Fundação de Educação e Cultura do Sport Clube Internacional. 180