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Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-graduação em História Entre o direito e a política: a trajetória de advogados e a causa dos direitos humanos (Rio Grande do Sul/1964-1982) Dante Guimaraens Guazzelli Porto Alegre, janeiro de 2018 2 Dante Guimaraens Guazzelli Entre o direito e a política: a trajetória de advogados e a causa dos direitos humanos (Rio Grande do Sul/1964-1982) Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do título de doutor em História Orientadora: Profª. Drª. Carla Simone Rodeghero Porto Alegre, janeiro de 2018 3 4 Dante Guimaraens Guazzelli Entre o direito e a política: a trajetória de advogados e a causa dos direitos humanos (Rio Grande do Sul/1964-1982) Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do título de doutor em História Orientadora: Profª. Drª. Carla Simone Rodeghero Banca Examinadora: ________________________________________________________________ Virginia Susana Vecchioli (PPG-Ciência Sociais/UFSM) ________________________________________________________________ Tatyana de Amaral Maia (PPG-História/PUCRS) ________________________________________________________________ Caroline Silveira Bauer (PPG-História/UFRGS) ________________________________________________________________ Luiz Alberto Grijó (PPG-História/UFRGS) Porto Alegre, janeiro de 2018 5 À Lizabel Barcellos Guazzelli e Honório Campos Peres, que viveram esta história mas não chegaram a vê-la no papel Para a Carinho, por estar sempre perto e por tudo Para o Martim, pequeno deus da guerra que virá 6 Agradecimentos Inicialmente, gostaria de agradecer a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em especial ao Programa de Pós-Graduação em História pela oportunidade de poder realizar a pesquisa, que me proporcionou trocas e aprendizados através dos professores e colegas, o que foi fundamental para a execução da Tese. Mais do que nunca devemos lutar para que este espaço de pesquisa e conhecimento público resista aos ataques que vem passando. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa à qual fui agraciado entre novembro de 2013 e fevereiro de 2015. Da mesma forma, a meus colegas e alunos das Escolas Municipais de Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos e Porto Alegre-EPA (a “Escola da Resistência”) pelo companheirismo, apoio, discussões e por serem exemplo de lutas contra o ataque a direitos humanos, como o direito à educação, realizados por governos inescrupulosos que atacam a educação pública. Aos colegas de orientação que, no Seminário, leram e discutiram o texto de qualificação. Em uma área como a História, na qual dispomos de poucos momentos de debate e trocas, este espaço foi vital para o desenvolvimento de minha pesquisa. Aos professores Lucia Grinberg e Fabiano Engelmann pela participação na banca de qualificação e colocações que permitiram fazer crescer minha Tese. Da mesma forma, agradeço às contribuições dos professores Virginia Vecchioli, Tatyana Maia, Caroline Bauer e Luiz Alberto Grijó que se dispuseram a participar da banca de defesa. Aos Arquivos e Acervos que possibilitaram as pesquisas, em especial àqueles servidores das entidades culturais do Estado do Rio Grande do Sul que, mesmo com ataques constantes da administração, mantém abertos e vivos os espaços. Neste sentido fica meu muito obrigado especial a Patrícia Coser, do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, e Carlos Roberto da Costa Leite, o Beto, do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa por me auxiliarem nas visitas. Devo um agradecimento especial à Sulamita Cabral, presidenta do IARGS, Maria Cristina Carrion Vidal de Oliveira, Secretaria-Adjunta da OAB/RS, e Clara Luz, funcionária da OAB/RS, sem as quais não poderia acessar acervos fundamentais para meu trabalho. Sem vocês, esta Tese não seria possível. Agradeço também a gentileza de Ricardo “Kadão” Chaves que cedeu sua fotografia para o trabalho e a Rafael Guimaraens, pelo empréstimo dos exemplares do Jornal Informação. 7 Aos amigos e familiares pelo apoio, ajuda e por me possibilitar momentos nos quais pensei em outras coisas além da tese, em especial aos meus pais, Bicó e Teli, por tudo. Fica um agradecimento especial ao Chico e Emanuel, que em determinado momento ajudaram nas pesquisas. Aos senhores Schüsseln e Kaninchenmann pela inspiração e filosofia. Agradeço também à família de Eloar – que também é a minha –, que sempre mostraram interesse pela pesquisa e me auxiliaram sem grandes intervenções nos rumos do trabalho. Isto permitiu diminuir ao máximo os “curto-circuitos” entre a história e a memória familiar. Agradeço também à Heloiza Villeroy, Denise Broda, Ana Eni Machado Millan, Nereu Lima e Honório Campos Peres pela disponibilidade em conceder as entrevistas. Devo profunda gratidão a Omar Ferri e Werner Becker que permitiram que eu estudasse suas trajetórias sem colocar nenhuma restrição ou limite. Muito obrigado pela oportunidade. Agradeço muito também à minha orientadora, Carla Simone Rodeghero, que foi fundamental para minha pesquisa e amadurecimento como historiador. Sou muito grato por estes dez anos de orientação, aprendizado e parceria. Muito obrigado! Finalmente, gostaria de agradecer a Caroline Rafaela Heck, minha esposa. Em diversos momentos foste minha Pedra de Gibraltar e jamais teria conseguido nada sem tua presença, auxílio, constantes revisões e compreensão neste trabalho – que terminou depois do que devia... Te amo. 8 Isso é uma reconstrução. Tudo, cada detalhe é uma reconstrução. É uma reconstrução agora, em minha cabeça, enquanto estou deitada estendida em minha cama de solteiro, ensaiando o que deveria ou não deveria ter dito, o que deveria ou não deveria ter feito, como deveria ter feito meu jogo. Se algum dia eu sair daqui... Vamos parar nesse ponto. Pretendo sair daqui. Isto não pode durar para sempre. Outros pensaram essas coisas, em tempos difíceis antes deste, e estavam sempre certos, conseguiram sair de uma maneira ou de outra, e não durou para sempre. Embora para eles tenha durado todo o para sempre que tinham.1 O Conto da Aia – Margaret Atwood 1 ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017, p. 163. 9 Prefácio Isto é uma reconstrução: assim como o relato da aia encontrado em uma fita nos tempos pós-Gilead de Margaret Atwood, esta tese é uma reconstrução. Uma reconstrução que se iniciou em meados de 2012, quando resolvi novamente tentar a seleção de doutorado, e queria entender, através da trajetória de “advogados de presos políticos”, como os direitos humanos passaram a ser uma causa de grupos de esquerda. A reconstrução daquele momento tinha a ver com a compreensão de um projeto de uma esquerda democrática que tinha como utopia os direitos humanos em suas mais diferentes esferas – direitos individuais, políticos, econômicos, sociais e culturais – que havia surgido no final da década de 1970 e que, em 2012 estava em seu ápice. Vivia-se no Brasil um período fértil em medidas que buscavam combater a desigualdade social, racial, de gênero e de orientação sexual em diversos aspectos, mesmo que de forma incompleta e não tão efetiva. Além disso, em 2012 via-se que as marcas da ditadura civil-militar deixadas na sociedade brasileira estavam, mais do que nunca, à vista. Eram realizadas ações por parte do Estado brasileiro que visavam resolver algumas questões, o que era o caso da Comissão de Anistia que, além de reparar financeiramente as vítimas da violência estatal, reconhecia sua responsabilidade e promovia iniciativas que visavam o direito à memória e à verdade em relação à ditadura. Naquele ano, foi iniciado talvez o maior empreendimento governamental: a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Mesmo que sem responsabilizar judicialmente os culpados e com diversas limitações, a CNV intentava registrar oficialmente todas as violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura. A partir dela, o tema tomou dimensões públicas, sendo frequentes as manchetes nos grandes jornais que debatiam suas “descobertas” – muitas delas já conhecidas por estudiosos, militantes e pelo público envolvido no tema. E eu estava inserido neste contexto: havia, no ano anterior, participado do projeto “Marcas da Memória – História Oral da Anistia no Brasil”, e estava, junto de outros colegas, escrevendo um livro com financiamento de edital da Comissão da Anistia que objetivava narrar a ditadura no estado através de textos e imagens da época.2 Em 2013 eu participaria da curadoria de exposição com imagens da abertura 2 RODEGHERO, Carla Simone; GUAZZELLI, Dante Guimaraens; DIENSTMANN, Gabriel. Não calo, grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013. 10 política no estado e, em 2014, faria curadoria assistente da exposição de abertura do Museu dos Direitos Humanos do Mercosul.3 Este ambiente motivava e inspirava a reconstrução inicial de minha tese. Mas no meio do caminho tinha um golpe... e as ações do Estado em direção a uma utopia dos direitos humanos foram interrompidas. Com estas mudanças minha reconstrução não fazia mais sentido e passei a questionar o porquê de realizar a tese. 2016 foi um ano de reflexões e do amadurecimento de uma nova visão pessoal sobre minha pesquisa. Passei a encarar de uma forma diversa o golpe de 1964, por exemplo, vendo-o como um movimento que não se interrompeu nos primeiros momentos da ditadura. Cheguei, assim, a uma nova reconstrução partindo da percepção da Aia de que “isto não pode durar para sempre”. Nesta perspectiva busco entender como outros “em tempos difíceis antes deste (…) conseguiram sair de uma maneira ou de outra”, mostrando que “não durou para sempre”. Passei a ver a trajetória de “meus” advogados de forma diferente, buscando entender de que maneiras eles resistiram e conseguiram sair da ditadura. 3 RODEGHERO, Carla Simone; GUAZZELLI, Dante. Guimaraens; DIENSTMANN, Gabriel. Desculpe a Confusão: estamos de mudança! – A redemocratização nas ruas entre 1975 e 1988. Porto Alegre, 2013. (Exposição); SANTOS, Márcio Tavares dos; GUAZZELLI, Dante Guimaraens; MATZEMBACHER, F.; REOLON, M.. Deus e sua obra no sul da América: a experiência dos direitos humanos através dos sentidos. Porto Alegre, 2014. (Exposição) 11 Resumo A pesquisa busca analisar a trajetória dos advogados gaúchos Eloar Guazzelli, Werner Becker e Omar Ferri durante a ditadura civil-militar brasileira relacionando-as com a emergência da causa dos direitos humanos. Estes advogados ficaram reconhecidos pela sua atuação na defesa de presos políticos e por suas atividades como criminalistas. Devido ao seu trabalho, durante a ditadura eles surgiram no espaço público denunciando e atacando as violências e o arbítrio cometidos pelo Estado, o que fez com que eles ganhassem notoriedade na cena política, relacionando sua atuação com a causa dos direitos humanos. Este reconhecimento levou-os a iniciarem uma carreira política e candidatarem-se a cargos eletivos, o que aconteceu na eleição de 1982: Guazzelli e Ferri lançaram candidatura à deputado federal e Becker à vereador em Porto Alegre. Isto foi auxiliado pela atuação destes advogados dentro de entidades classistas, como o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS) e a seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RS), que, ao longo da ditadura, passaram a criticar publicamente o regime. Desta forma, o trabalho procura mostrar os diferentes meios nos quais os personagens transitaram com o intuito de reconstruir o processo no qual conquistaram seu reconhecimento como advogados e militantes de esquerda. Palavras-chave: trajetória; advogados; direitos humanos; ditadura civil-militar. 12 Abstract The research seeks to analyze the trajectory of the lawyers Eloar Guazzelli, Werner Becker and Omar Ferri during the Brazilian civil-military dictatorship, relating them to the emergence of the cause of human rights. These lawyers were recognized for their role in the defense of political prisoners and for their activities as criminalists. Due to their work, during the dictatorship they appeared in the public scene denouncing and attacking the violence and arbitration committed by the State, which caused them to gain notoriety in the political scene, relating their action to the cause of human rights. This recognition led them to start a political career and to stand for elected positions, which happened in the 1982 election: Guazzelli and Ferri launched candidacy for the federal deputy and Becker to the councilor in Porto Alegre. This was aided by the work of these lawyers within class entities, such as the Rio Grande do Sul Lawyers Institute (IARGS) and the Rio Grande do Sul branch of the Brazilian Bar Association (OAB / RS), which, throughout the dictatorship, publicly criticize the regime. In this way, the research tries to show the different means in which the characters have transited with the intention to reconstruct the process in which they have gained their recognition as advocates and militants of the left. Keywords: trajectory; lawyers; human rights; civil-military dictatorship. 13 Lista de imagens Imagem 1: Jornal do Dia, Porto Alegre, ano XIX, nº 5412, 20 de setembro de 1966, pp. 8-9. Omar Ferri acompanhando cliente que depôs na CPI. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (http://memoria.bn.br/DocReader/098230/64871). .... 144 Imagem 2: Zero Hora, Porto Alegre, 21 de agosto de 1969, primeiro caderno, p. 31. Reportagem com Maria Klein, mãe de Julinho. No alto à direita, fotografia do assaltante no hospital. Fonte: Acervo de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. ............................................................................................................... 177 Imagem 3: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 34. Reportagem de Ademar Vargas de Freitas com uma uma fotografia de Guazzelli no julgamento de Bassani. No alto à esquerda o logotipo criado pela Zero Hora para ilustrar o caso. Fonte: Acervo de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. ............................................................................................................................ 181 Imagem 4: Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano VI, nº 1622, 20 de março de 1975, capa. Ao centro fotografia de Conselheiros da OAB/RS aguardando audiência com o Governador para tratar das prisões. Fonte: Acervo de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. .......................................................................... 213 Imagem 5: Lilia Celiberti e Omar Ferri denunciam o sequestro. Fotógrafio: Ricardo Chaves (publicado com a autorização do artista). .......................................... 255 Imagem 6: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 269, 6 de janeiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 9. Na fotografia, Lilia Celiberti recebendo os conselheiros da OAB/RS Marcus Melzer, José Mariano Beck e o advogado Omar Ferri. Fonte: Centro de Documentação do Jornal do Brasil. .................................................. 265 Imagem 7: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 275, 10 de janeiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 7. Na fotografia do alto, Werner Becker e Justino Vasconcelos (à esquerda) acompanham Luiz Cláudio Cunha (ao centro) em depoimento. Fonte: Centro de Documentação do Jornal do Brasil. ............................. 271 Imagem 8: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, pp. 26-27. Na fotografia do alto, está, em primeiro plano, Flávio ouvindo seus advogados Eloar Guazzelli e Carlos Frederico Barcellos Guazzelli. À esquerda dos advogados está a filha de Eloar, Julieta, e à direita, a colega de escritório 14 Ana Eni Machado Milan. Fonte: Acervo de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. ................................................................................................. 307 Imagem 9: Propaganda eleitoral de Eloar Guazzelli na campanha de 1978. Fonte: Acervo familiar.................................................................................................. 317 Imagem 10: Propaganda eleitoral dos candidatos Eloar Guazzelli e Fernando do Canto de 1982 [Documento PP 2094]. Fonte: Acervo do Núcleo de Publicidade e Propaganda do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. ................................ 354 Imagem 11: Propaganda eleitoral dos candidatos Omar Ferri, Antenor Ferrari e Caio Lustosa de 1982 [Documento 1987.38.4.7/ PP 2042]. Fonte: Acervo do Núcleo de Publicidade e Propaganda do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. .......... 357 Imagem 12: Propaganda eleitoral de Werner Becker de 1982. Fonte: Acervo do Núcleo de Publicidade e Propaganda do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa ...................................................................................................................................... 358 15 Lista de abreviaturas e siglas ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados ACRIERGS – Associação dos Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul AGETRA – Associação Gaúcha dos Advogados Especialistas em Direito do Trabalho AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul AI – Ato Institucional APOF – Acervo Pessoal Omar Ferri Arena – Aliança Renovadora Nacional CEJUR – Centro de Estudos Jurídicos (CEJUR) CPM – Código Penal Militar CPPM – Código de Processo Penal Militar (CPPM) CCJ – Comissão de Constituição e Justiça CSN – Comissão de Segurança Nacional CEV/RS – Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul CJP/SP – Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo (CJP/SP) CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito CC – Comitê Central do PCB CLAMOR – Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul DOPS – Departamento de Ordem Política e Social ESG – Escola Superior de Guerra (ESG) FBC – Fundação Brasil Central IEPES – Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais do MDB IARGS – Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul IPM – Inquéritos Policiais-Militares LOJM – Lei de Organização Judiciária Militar (LOJM), LSN – Lei de Segurança Nacional (LSN - Decreto-Lei 314/67) MDB – Movimento Democrático Brasileiro MJDH – Movimento de Justiça e Direitos Humanos OAB – Ordem dos Advogados do Brasil OAB/RS – Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul 16 PCB – Partido Comunista Brasileiro PDC – Partido Democrata Cristão PDS – Partido Democrático Social PDT – Partido Democrático Trabalhista PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PP – Partido Popular PRC – Partido Revolucionário Comunista PT – Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista Brasileiro PUC – Pontifícia Universidade Católica PVP – Partido por la Victoria del Pueblo SIJAU – Secretariado Internacional de Juristas por la Amnistia en el Uruguay SJM – Setor Jovem Metropolitano STF – Supremo Tribunal Federal STM – Superior Tribunal Militar UDN – União Democrática Nacional 17 Sumário Introdução ....................................................................................................................... 20 Fontes e metodologia ...................................................................................... 30 História oral e relatos biográficos ................................................................... 32 Memória, proximidade e subjetividade .......................................................... 39 Revisão Bibliográfica ..................................................................................... 42 Capitulo I – Os advogados, a ditadura e os direitos humanos: trajetórias entre o direito e a política ......................................................................................................................... 49 I.1. A justiça durante a ditadura civil-militar .................................................. 51 I.2. Os advogados de presos políticos durante a ditadura civil-militar brasileira ........................................................................................................................ 58 I.3. Eloar Guazzelli, Werner Becker e Omar Ferri e o mundo do direito no Rio Grande do Sul ................................................................................................ 70 I.4. Os advogados, a OAB e os direitos humanos .......................................... 76 I.5. Os advogados e a política ......................................................................... 89 Capítulo II - Reconstrução e resistência: a atuação dos advogados Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker entre os anos 1964 e 1973.............................................. 100 II.1. O Golpe e os golpes de 1964 ................................................................ 100 II.1.1. O golpe anticomunista de Eloar Guazzelli ................................... 101 II.1.2. O golpe antitrabalhista de Omar Ferri .......................................... 103 II.1.3. O golpe antissindicalista de Werner Becker ................................. 107 II.2. O comunista, o brizolista e o ermitão político: os advogados e seus grupos ........................................................................................................... 110 II.3. Políticos no meio de advogados I: comunistas no IARGS e na OAB/RS nos primeiros anos de ditadura (1964-1966)................................................ 118 II.4. “...bem como o tratamento dispensado a presos políticos”: a CPI do caso das mãos amarradas e a denúncia da repressão............................................ 130 II.5. O Capitão do Povo contra os gorilas robôs: Eloar e a repressão judicial nos primeiros anos ....................................................................................... 145 18 II.6. O grego dos bolsos de ouro e a assassina do disco: as “ações de repercussão” nos primeiros anos de advocacia de Omar Ferri após o golpe 149 II.7. Políticos no meio dos advogados II: comunistas no IARGS e na OAB/RS em 1967 e 1968 ............................................................................................ 153 II.8. O cotidiano da defesa de presos políticos ............................................. 157 II.9. Werner Becker e os brigadianos subversivos ....................................... 161 II.10. Políticos no meio dos advogados III: comunistas no IARGS e na OAB/RS nos “anos de chumbo” (1969 a 1971) ........................................... 163 II.11. Julgamentos do ano: atuação de Eloar Guazzelli no “caso do Julinho” e no “crime da mala” ...................................................................................... 170 II.12. Políticos no meio dos advogados IV: comunistas no IARGS e na OAB/RS em 1972 e 1973 ............................................................................ 184 II.13. Os terroristas estão sendo julgados: as ações armadas no banco dos réus ............................................................................................................... 187 Capítulo III – Consagramento e lutas em tempos de mudança: a atuação dos advogados entre os anos 1974 e 1977 ............................................................................................ 192 III.1. Advogados no meio da política (I): o IARGS e o conselho seccional da OAB/RS em 1974 e 1975 ............................................................................ 192 III.2. A prisão de comunistas em 1975 e a atuação da OAB e Eloar Guazzelli ...................................................................................................................... 208 III.3. Velhos e jovens comunistas no meio dos advogados ........................... 221 III.4. Advogados no meio da política (II): as entidades classistas dos advogados entre 1976 e 1977 ....................................................................... 224 III.5. Desculpa, mas eu sou um cara muito conhecido em Porto Alegre, entende? – a atuação de Werner Becker em diferentes áreas ...................... 236 Capítulo IV – Advogados nos holofotes: a atuação dos advogados em 1978 e 1979 ... 241 IV.1. Advogados no meio da política (III): as entidades classistas dos advogados nos anos 1978 e 1979 ................................................................. 241 IV.2. Os advogados e una pareja y dos hijos: o caso do sequestro dos uruguaios ...................................................................................................... 252 IV.3. Lia Pires, o advogado do status quo .................................................... 290 19 IV.4. “O Grande Júri”: Eloar e o “Caso do Flávio” ...................................... 292 IV.5. O “Advogado dos Direitos Humanos”: a eleição de 1978 .................. 312 Capítulo V – Reconhecimento e um novo tempo: a atuação dos advogados entre 1979 e 1982 .............................................................................................................................. 323 V.1. O Velho Guazzelli vai a Brasília: o mandato de Eloar Guazzelli na Câmara dos Deputados e a “terrível moléstia” (1979-1982) ....................... 323 V.2. Omar Ferri e os primeiros anos do MJDH ............................................ 336 V.3. Advogados no meio da política (IV): as entidades classistas dos advogados entre os anos 1980 e 1982 .......................................................... 340 V.4. Três homens e um destino: a eleição de 1982 ....................................... 346 Considerações finais ..................................................................................................... 363 Bibliografia ................................................................................................................... 368 Anexo – composição da diretoria do IARGS e do Conselho Seccional da OAB/RS (1964-1982) .................................................................................................................. 379 20 Introdução Porto Alegre, primavera de 1982. Depois de dezesseis anos de forçada polarização partidária, vivia-se no Rio Grande do Sul uma eleição com diversas siglas diferentes: PDS, PMDB, PDT e PT disputavam os votos dos gaúchos em uma eleição que trazia uma singularidade na história eleitoral brasileira – aquele eleitor que votasse, em um de seus seis votos, em um partido diferente, anularia sua escolha. Esta nova regra fazia parte de um conjunto de medidas que a ditadura utilizou para enfraquecer a oposição: além de dividir o antigo MDB com a reformulação partidária (já que se viu dividido em quatro partidos, enquanto que a Arena mantinha-se una no PDS), impedia a coligação entre partidos, além da “fidelidade partidária” imposta citada acima. 4 Apesar de ter sido uma manobra do governo, o fim do bipartidarismo foi saudado por diversos setores do MDB, que viram a oportunidade como uma forma de melhor acomodar os diferentes matizes presentes da oposição.5 O que se percebeu nas eleições é que estas medidas do governo deram frutos, uma vez que a oposição dividiuse – tendo seus partidos digladiando-se pelos votos daqueles que queriam o fim do regime –, enquanto que o PDS reinava solitário como campeão da situação. Nessa concorrência pelos votos contrários à ditadura, cada partido buscava criar uma imagem que lhe rendesse vantagens. O pequeno e radical Partido dos Trabalhadores apresentava-se como um partido de oposição “novo”, que apontava para uma “nova” esquerda brasileira, trazendo entre seus candidatos representantes do “novo sindicalismo” – personificado pelo líder sindical e candidato ao governo do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra – e daqueles que haviam lutado na clandestinidade – como era o caso do candidato ao Senado, Raul Pont. Já o PDT, sob a liderança do ex-exilado Leonel Brizola, e tendo como candidato ao governo gaúcho Alceu Collares, buscava vincular-se ao passado anterior ao golpe, evocando o Trabalhismo do antigo PTB e um 4 Em 27 novembro de 1979 foi extinto o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). A partir deste momento organizaram-se seis: o Partido Democrático Social (PDS), sucessor da ARENA; o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB); o Partido Popular (PP), que reunia membros da ARENA e do MDB; o Partido dos Trabalhadores (PT); o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em 1981 foi lançado pelo governo o “Pacote de Abril” que proibia as alianças partidárias e vinculava os votos em todos os níveis (o voto seria considerado nulo se não fosse feito no mesmo partido). O PTB não concorreu no Rio Grande do Sul na eleição de 1982, pois não havia obtido registro no estado, enquanto que o PP já estava extinto e seus membros participavam do PMDB. 5 KINZO, Maria D’alva Gil. Oposição e autoritarismo – gênese e trajetória do MDB (1966-1979). São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 208. 21 projeto que havia sido derrubado em 1964. Finalmente, o PMDB queria mostrar-se como legítimo defensor da democracia durante o período das trevas do arbítrio, ou seja, como o Partido do MDB: por esta razão escolheu os líderes da antiga legenda, Pedro Simon e Paulo Brossard, como candidatos a governador e senador, respectivamente. Nas eleições de 1982 houve uma grande preocupação do PMDB em manter a unidade das oposições para impedir que os objetivos do governo fossem alcançados. Por esta razão, pode-se considerar, concordando com o cientista político César Figueiredo, o PMDB “como sendo uma grande frente democrática, viés com ideológico de centroesquerda”.6 No caso gaúcho, havia uma preocupação grande em relação ao PDT, uma vez que este partido contava com considerável popularidade no estado. De acordo com Rhuan Trindade que estudou a rivalidade entre PMDB e PDT nas eleições de 1982 no Rio Grande do Sul, os dois partidos de oposição mais destacados, além de terem o inimigo em comum, o PDS, vão colocar-se um em oposição ao outro, diferenciando-se através da produção de expedientes que ao mesmo tempo são contrastantes com relação ao outro e constroem a imagem que o partido quer transmitir de si mesmo.7 Como mencionado acima, neste enfrentamento, o PMDB utilizava-se “da ‘memória’ do MDB e do seu histórico de lutas por direitos políticos e sociais ao longo da ditadura militar como forma de angariar votos nas eleições de 1982”.8 Assim, poderíamos dizer que três modelos disputavam o voto do eleitor oposicionista: um que apontava para o futuro (PT), outro para o passado anterior ao golpe (PDT) e um terceiro para um passado mais próximo (PMDB). E para reforçar esta imagem de (P)MDB, a agremiação buscou colocar em suas fileiras “verdadeiros campeões da democracia” – como os candidatos ao Piratini e ao Senado,.9 Partindo desta exigência, três nomes encaixavam-se perfeitamente: Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker. Os três tinham trajetórias que apontavam neste sentido: eram advogados que defenderam os opositores à ditadura na Justiça Militar, além de terem atuado de forma decisiva em episódios que denunciavam as violências FIGUEIREDO, César Alessandro Sangrillo. A relação dos PC’s com o MDB-PMDB no cenário da transição e as eleições de 1982 no RS. Porto Alegre, UFRGS, 2009, p. 88. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. 7 TRINDADE, Rhuan Targino Zaleski. A divisão das oposições e as oposições divididas: a rivalidade PDT x PMDB na campanha eleitoral de 1982 no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, UFRGS, 2011, p. 33. Monografia de conclusão de curso em História. 8 Idem, p. 50. 9 Quanto ao resultado das eleições, a oposição perdeu duas batalhas amargas: o governo do estado e a vaga no Senado. Já na Câmara dos Deputados e na Assembleia Legislativa riograndense a oposição obteve a maioria das cadeiras, divididas entre o PMDB e o PDT. Idem, pp. 52-53. 6 22 cometidas pelo regime. Atendiam, assim, a um requisito importantes para o (P)MDB: haviam se oposto à ditadura em meios legais, legítimos e “abertos”. Além disso, suas atuações estavam sendo ressignificadas a partir de uma nova causa que emergia naqueles anos no Brasil: os direitos humanos. A visibilidade que estes advogados tiveram neste momento deveu-se, primeiramente, a um contexto nacional favorável a eles: havia outros advogados com o mesmo perfil em diferentes regiões do país que também tiveram visibilidade e que se aventuravam em campanhas eleitorais. Por outro lado, a candidatura dos três advogados aqui analisados foi resultado de uma longa trajetória pessoal durante a ditadura que permitiu que eles construíssem uma reputação – “um nome” nas palavras de Werner Becker – entre os opositores da ditadura, ao mesmo tempo que se constituíam como advogados reconhecidos nos meios jurídicos.10 Intento nesta tese analisar a trajetória dos três advogados, buscando ver a construção desta “reputação” e, através disso, notar o fortalecimento da causa dos direitos humanos por parte das esquerdas brasileiras.11 Eloar Guazzelli iniciou seu trabalho com presos políticos logo após o golpe, defendendo militares que haviam tentado organizar a resistência.12 É provável que estes militares procurassem-no porque era vinculado à esquerda – militava no Partido Comunista Brasileiro (PCB) –, além de ter certo reconhecimento na área do direito criminal. Sua fama como criminalista cresceu após ele transferir-se de Vacaria para Porto Alegre, em 1963, devido a defesas que tiveram destaque em casos de crimes “comuns” muito divulgados na imprensa da época. A partir do momento em que começou a atuar na Auditoria Militar, Guazzelli acabou especializando-se na área, sendo um nome apontado para aqueles que estavam respondendo a processos nessa alçada. 13 10 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guazzelli no dia 25 de setembro de 2012 em Porto Alegre. 11 Parto da conceituação proposta pelos historiadores Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis Filho, na série de livro As esquerdas no Brasil, que afirmam que de esquerda seriam todas as forças e lideranças que são inspiradas pela mudança em busca de igualdade e, no caso brasileiro, são críticas do liberalismo, “visto como fonte e força de conservação da Ordem Tradicional”. Da mesma forma que os autores, opto pelo termo esquerdas buscando dar evidência à pluralidade e diversidade das tendências políticas deste campo. FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. “Apresentação”. FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil volume 3 – Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 11-12. 12 Verbete Eloar Guazzelli. In: ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro: FGV, 2010. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo 13 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011. Dissertação de Mestrado em História. 23 Sua atuação como defensor de presos políticos possivelmente o levou a ser o responsável pelo relatório solicitado pelo Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS) para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul referente ao “caso das mãos amarradas” e ao tratamento dado aos presos políticos no estado em 1966. Em 11 de março daquele mesmo ano, o ex-sargento Manoel Raymundo Soares tinha sido preso por agentes da repressão próximo ao Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre. Soares, que estava em Porto Alegre para militar contra a ditadura, passou vários meses entre celas e sessões de tortura, enquanto sua mulher Elizabeth Chalupp Soares buscava, através de habeas corpus no Superior Tribunal Militar, obter sua liberdade. Após ser retirado da Ilha do Presídio, o ex-sargento foi levado ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS/RS) e, entre 13 e 19 de agosto, sofreu diversas torturas, que culminaram com sua morte por afogamento no Lago Guaíba. No dia 24 de agosto, o corpo, com as mãos amarradas às costas, foi encontrado por agricultores próximo à Ilha da Pintada, nos arredores de Porto Alegre.14 A partir deste momento, o caso ganhou grande repercussão na sociedade gaúcha, levando à abertura de um inquérito no Tribunal de Justiça pelas mãos do promotor Cláudio Tovo e de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa – na qual também atuaram, de forma menos intensa que Eloar, Omar Ferri e Werner Becker.15 Através deste caso, foram feitas denúncias aos tratamentos dados aos presos políticos, sendo avaliada a situação pela qual os mesmos passavam no DOPS/RS e na Ilha do Presídio. As investigações do Ministério Público e da CPI levaram, entre outras medidas, ao fechamento do aparelho repressivo paralelo, conhecido como Sobre o “caso das mãos amarradas” ver: BAUER, Caroline. Avenida João Pessoa, 2050, 3º andar: terrorismo de Estado e ação da polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, UFRGS, 2006, p. 161-173. Dissertação de Mestrado em História; ROSA, Susel Oliveira da. Estado de exceção e vida nua: violência policial em Porto Alegre entre os anos de 1960 e 1990. Campinas: UNICAMP, 2007, pp. 79-117. Tese de Doutorado em História; CABRERA, Carlos Artur Gallo. A política na balança e o caso das mãos amarradas: um estudo de caso sobre Política e Justiça no Brasil pós-Ditadura Civil-Militar (1964-85). Porto Alegre: UFRGS, 2010. Monografia de Conclusão de curso em Ciência Política; RODEGHERO, Carla Simone; GUAZZELLI, Dante Guimaraens; DIENSTMANN, Gabriel. Não Calo, Grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, pp. 55-60. No cinquentenário foi lançado o livroreportagem: GUIMARAENS, Rafael. O sargento, o marechal e o faquir. Porto Alegre: Libretos, 2016. 15 COMISSÃO Parlamentar de Inquérito que investiga as circunstâncias da morte do ex-sargento do Exército nacional Manoel Raymundo Soares, bem como o tratamento dispensado a presos políticos. Relatório. Atas da Comissão Parlamentar. Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Dezembro de 1967. Disponível em http://www2.al.rs.gov.br/memorial/Publica%C3%A7%C3%B5eseDocumentosHist%C3%B3ricos/tabid/3 607/Default.aspx 14 24 “Dopinha”, que funcionava em uma casa localizada na Rua Santo Antônio em Porto Alegre, na qual eram realizadas torturas.16 Ao longo das décadas de 1960 e 1970, Eloar continuou seu trabalho com presos políticos, sendo procurado por militantes de diversas organizações, como mostrei em minha dissertação de mestrado17, além de participar de processos criminais que tiveram ampla repercussão na imprensa. Durante este período ele também atuou em entidades de classe, como a OAB/RS e o IARGS. Ao mesmo tempo, ele era procurado por órgãos da imprensa alternativa, como o Jornal Informação e o Coojornal, para pronunciar-se quando estes periódicos se propunham a relatar denúncias da repressão.18 Essa atuação pode ter sido determinante para o lançamento da candidatura de Guazzelli para deputado federal em 1978 através do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Foi eleito e lançou nova candidatura em 1982, pelo PMDB. A primeira candidatura de Eloar, no ano de 1978, deu-se em um contexto em que o MDB passou a ser visto como um instrumento para a oposição à ditadura. Isto ocorreu a partir da eleição de 1974, que foi considerada como “um plebiscito em que os eleitores votavam antes contra o governo do que na oposição”.19 Este caráter plebiscitário se manteve nas eleições seguintes. Após este pleito, a ditadura tentou barrar o crescimento do MDB através de manobras como a chamada Lei Falcão, que limitava a participação dos candidatos na televisão e no rádio. Apesar disso, o partido oposicionista consolidou-se como um veículo da insatisfação da população. Nas eleições de 1978, por exemplo, cresceu o número de votos na legenda do partido. O MDB também aumentou sua base, que passou a contar com setores mais radicais.20 Podemos ver neste momento que o MDB se inseria em um novo ethos das esquerdas: 16 BAUER, Caroline. Avenida João Pessoa, 2050, 3º andar: terrorismo de Estado e ação da polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, UFRGS, 2006, p 83. Atualmente há um projeto em andamento com o intuito de transformar a casa em um espaço de memória. 17 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011. Dissertação de Mestrado em História. 18 Dois exemplos disso são matérias destes jornais que tratam de violências realizadas pela repressão: “Guazzelli e o Dops”. In: Jornal Informação, Porto Alegre, nº 8, 9 de setembro de 1976, p. 2; TUBINO, Najar; SCHIMDT, Caco. “Um delegado acima da lei”. In: Coojornal, Porto Alegre, Ano IV, nº 40, abril de 1979, p. 29. 19 MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1986). Bauru: EDUSC, 2005, p. 228. 20 REIS, Eliana Tavares dos. Contestação, engajamento e militantismo: da “luta contra a ditadura” à diversificação das modalidades de intervenção política no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, UFRGS, 2007. Tese de doutorado em Ciência Política; FIGUEIREDO, César Alessandro Sangrillo. A relação dos PC’s com o MDB-PMDB no cenário da transição e as eleições de 1982 no RS. Porto Alegre, UFRGS, 2009, p. 88. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. 25 era dado espaço às novas causas que surgiam (como os direitos humanos, a luta pela anistia, a redemocratização, a luta contra a carestia e o “novo sindicalismo”) e procuravam-se lançar candidatos que as representassem. Talvez tenha sido por esta razão que surgiram candidatos que atuaram na defesa de presos políticos.21 Já Werner Becker iniciou sua atuação na defesa de presos políticos, segundo ele próprio, devido a necessidades profissionais. Ele, que já trabalhara em diversas áreas profissionais, havia perdido seu emprego como jornalista após o golpe por sua militância no Sindicato dos Radialistas, e viu no curso interrompido de Direito uma possibilidade de obter sustento. Enquanto ia à busca do diploma, ele iniciou sua atividade profissional como “solicitador”, o que permitia que ele atuasse em causas. Ainda segundo Becker, a defesa de presos políticos, algo que era rejeitado pela maioria dos advogados, mostrou-se como uma área em que aquele jovem advogado poderia crescer e obter reconhecimento. Ele, em entrevista concedida a mim, afirmou que esses casos davam grande notoriedade, já que a imprensa dava maciça cobertura à Auditoria Militar.22 Ele acabou também sendo reconhecido como especialista nestes casos, o que levou os jornalistas Luiz Cláudio Cunha e João Baptista Scalco a procurálo quando se viram envolvidos no caso do “sequestro dos uruguaios”.23 Através de sua notoriedade nestes casos, ele foi procurado pelo PMDB para lançar candidatura a vereador em Porto Alegre em 1982. 24 Em novembro de 1978, os militantes uruguaios do Partido por la Victoria del Pueblo (PVP), Lilián Celiberti, seus dois filhos menores e Universindo Díaz foram sequestrados por agentes repressivos uruguaios e brasileiros em sua residência em Porto Alegre.25 Esta ação, denominada Operação Zapato Roto, fazia parte da Operação Condor, uma organização conjunta das ditaduras do Cone Sul durante a década de 1970 para reprimir os opositores além das fronteiras dos países. 21 Além dele, os advogados de presos políticos Modesto da Silveira, Marcelo Cerqueira (no Rio de Janeiro) e Airton Soares (em São Paulo) também candidataram-se a deputado federal no pleito de 1978. MARTINS, Paulo Emílio; MUNTEAL, Oswaldo; SÁ, Fernando (orgs). Os advogados e a ditadura de 1964: A defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2010. 22 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guazzelli no dia 25 de setembro de 2012 em Porto Alegre. 23 CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor – O seqüestro dos uruguaios: uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, pp. 207-216. 24 “Personagens das Diretas Já contam o que mudou em duas décadas”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 23 de agosto de 2008. Disponível em http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/noticia/2008/08/personagens-dasdiretas-ja-contam-o-que-mudou-em-duas-decadas-2137077.html 25 FERRI, Omar. Seqüestro no Cone Sul: o caso de Lílian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981; CUNHA. Op. cit.; BAUER. Op. cit., pp. 229-241 26 Os uruguaios ficaram incomunicáveis e passaram por diversas sessões de torturas nas dependências do DOPS/RS até 17 de novembro. Nesse dia, os jornalistas Luiz Claudio Cunha e João Baptista Scalco, da sucursal gaúcha da Revista Veja, receberam uma denúncia anônima sobre o sequestro e foram ao endereço de Universindo e Lilián. Lá, eles encontraram Lilián e foram interrogados por dois agentes da repressão. Posteriormente, os sequestrados foram entregues clandestinamente à repressão uruguaia. A partir deste momento, os jornalistas iniciaram um trabalho investigativo junto com o advogado Omar Ferri que denunciou as ações. O caso teve grande repercussão e levou à liberdade da família sequestrada e a um processo de responsabilização dos envolvidos. A atuação do advogado Omar Ferri foi fundamental: assim como os jornalistas, ele fora informado sobre o sequestro. Logo após o rapto, ele passou a atuar em nome dos uruguaios, tomando papel de protagonista no evento. Omar Ferri iniciou sua carreira de advogado em meados da década de 1950 em sua cidade natal, Encantado, no interior do Rio Grande do Sul.26 Lá também iniciou sua atuação política partidária, sendo eleito vereador pelo PTB em 1958. Em 1962, passou a ser procurador da Fundação Brasil Central (FBC), vinculando-se ao Governo Jango.27 Por ocasião do Golpe, Omar Ferri foi expurgado de seu cargo na Fundação Brasil Central e, após um período de clandestinidade, transferiu-se para Porto Alegre, onde passou a advogar. 28 Durante um breve período após o golpe, Ferri, que era suplente pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), assumiu a cadeira de deputado estadual devido a uma onda de cassações entre os membros de seu partido, até ser ele também “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8. Disponível em http://www.tjrs.jus.br/site/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_ gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v4n8/index.html 27 A Fundação Brasil Central (FBC) foi uma entidade criada em 1943, durante o Estado Novo, que tinha como objetivo a integração das regiões Centro-Oeste e Norte do país. Entre as diversas iniciativas destaca-se a expedição Serrador-Xingu realizada pelos irmãos sertanistas Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas. Sobre a FBC ver MACIEL, Dulce Portilho. “Estado e território no Centro-Oeste brasileiro (1943-1967). Fundação Brasil Central (FBC): a instituição e inserção regional no contexto sócio-cultural e econômico nacional”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs). Anais do XXVI Simpósio Nacional da ANPUH – Associação Nacional de História. São Paulo: ANPUH-SP, 2011. Disponível em www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308191538_ARQUIVO_ANPUH.2011Trabalhocompleto.pdf 28 Apesar de ter apoiado o golpe, a Ordem dos Advogados do Brasil, em meados de 1964, decidiu que os advogados cassados poderiam continuar atuando profissionalmente. MATTOS, Marco Aurélio V. L. de. Os cruzados da ordem jurídica: a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 1945-1964. São Paulo: Alameda, 2013, p. 129. 26 27 cassado. Nos anos seguintes, tentou concurso de promotor público, no qual não foi aprovado, segundo o próprio, por razões políticas.29 Passados estes eventos, Ferri dedicou-se totalmente à advocacia, especializandose em direito criminal e trabalhista, além de atuar na defesa de presos políticos na Auditoria Militar de Porto Alegre. Por esta razão, foi procurado por defensores dos direitos humanos para atuar em nome dos uruguaios sequestrados pela ditadura brasileira. A partir deste momento, Ferri passou a militar diretamente no Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), criado em 1979. Em 1982, Omar Ferri lançou candidatura à Câmara Federal pelo PMDB. No caso do “sequestro dos uruguaios” Omar Ferri e Werner Becker tiveram uma postura ativa na denúncia das conexões repressivas criadas pelas ditaduras latinoamericanas, em especial a Operação Condor, além de mostrar ao grande público as violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura civil-militar brasileira. Esse breve relato sobre os três advogados indica que eles participaram da luta contra o arbítrio e repressão da ditadura através de sua atividade profissional. Ao mesmo tempo, ao envolver-se em casos de maior repercussão e fazer denúncias em meios públicos, como na CPI que foi criada na Assembleia Legislativa para investigar o sequestro dos uruguaios e na imprensa, estes advogados estavam dando contornos políticos à sua atividade profissional. Fazendo tais denúncias, eles extrapolaram o ofício do defensor e contribuíram para a criação de uma opinião pública contrária ao regime e aos seus métodos. Por terem auxiliado no fortalecimento dos movimentos de oposição ao regime, Guazzelli, Becker e Ferri surgiam como bons nomes para candidaturas em um momento no qual a insatisfação com a ditadura estava crescendo e sendo canalizada nos partidos de oposição. Escolhi esses três advogados para a presente pesquisa devido ao fato de que eles ressignificaram sua atuação profissional dando-lhe contornos políticos (através da denúncia do arbítrio e das violações dos direitos humanos), e, em especial, utilizaram-se dela em suas campanhas eleitorais durante a abertura democrática. Da mesma forma, ao analisar a trajetória desses advogados é possível perceber uma mudança das esquerdas brasileiras ocorrida ao longo da década de 1970: estava em “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 18. Disponível em http://www.tjrs.jus.br/site/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_ gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v4n8/index.html 29 28 curso, neste período, uma guinada dela em direção à defesa das liberdades democráticas, em especial os direitos humanos. Através das trajetórias de Guazzelli, Becker e Ferri podemos perceber o crescimento da legitimidade do tema dos direitos humanos na sociedade. No final da década de 1970, o Direito deixou de ser visto pelas esquerdas brasileiras como uma ferramenta para a manutenção da ordem burguesa e passou a ser encarado como uma arma que poderia ser usada contra o arbítrio. Ao mesmo tempo, estes setores encamparam os direitos humanos como uma de suas principais bandeiras de luta. Ao analisar a visibilidade pública que estes advogados foram adquirindo ao longo da ditadura, poderemos perceber esta transformação. As trajetórias destes três advogados específicos permitem focar em diferentes aspectos deste processo, como buscarei mostrar na tese. Devido aos diferentes perfis, cada um deles vivenciou o golpe de 1964 de forma diversa e ao longo da ditadura, teve caminhadas distintas derivada, cujas análises possibilitam ver um quadro mais amplo sobre as relações existentes entre direito, política e oposição no período. Mesmo que outros advogados gaúchos tenham realizado ações semelhantes – muitas delas citadas nesta tese – penso que através das trajetórias de Guazzelli, Becker e Ferri é possível um estudo mais complexo destas relações. A escolha destes três advogados está baseada tanto nos diferentes matizes ideológicos quanto nos caminhos diversos que eles trilharam até chegar na eleição de 1982. Assim, com esta pesquisa proponho abordar a trajetória dos advogados Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker durante a ditadura civil-militar, buscando a repercussão pública de sua atuação profissional e a participação de cada um no espaço público realizando denúncias, através de jornais ou de organizações profissionais, como a Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul (OAB/RS) e o IARGS. O estudo dessas atuações particulares ajudará a perceber os significados dados pelas esquerdas ao Direito ao longo da ditadura. A partir destas considerações iniciais, apresento as questões que norteiam a pesquisa. Inicialmente buscarei saber como foi a atuação destes advogados durante a ditadura. Como suas vidas foram transformadas pelo Golpe? Como iniciaram suas atuações como advogados em casos políticos? Como eles foram adquirindo notoriedade? Partindo da cobertura feita pela imprensa sobre a atuação dos advogados buscarei abordar a visibilidade que estes advogados adquiriram nos casos políticos. 29 Durante os primeiros anos da ditadura, Guazzelli e Ferri participam como defensores de casos referentes a criminosos “comuns” que tiveram grande difusão na imprensa gaúcha, o que auxiliou a sedimentar seus nomes como “grandes criminalistas”. Estes casos encaixam-se no que Boris Fausto denominou de “grandes crimes”, que seriam definidos como casos “que se destacam pela exuberância sangrenta, por envolver paixões amorosas, pela importância dos protagonistas, ou por tudo isso junto”. 30 Foram apontados por Ferri e colegas de escritório de Guazzelli como momentos importantes para a construção do “nome” dos advogados como criminalistas os processos referentes aos réus Terezinha de Castro Maxwell, Savas Panayotis Kitrinopopoulos (defendidos por Omar Ferri), Idalino Bassani e Julio Xavier de Melo, que tramitaram na segunda metade da década de 1960, e o radialista Flávio Alcaraz Gomes, no final da década de 1970 (defendidos por Eloar Guazzelli). Como era a cobertura dos grandes jornais gaúchos, como Zero Hora e Correio do Povo, aos crimes políticos? Como retratavam a atuação dos mesmos advogados? Ao longo da década de 1970, surgiram no Rio Grande do Sul e no Brasil, jornais de menor porte que buscavam apresentar-se de uma forma diferente daquela feita pelos grandes veículos de comunicação, abordando de assuntos que não eram tratados pela grande imprensa, além de dar novos enfoques a tema presentes no debate da época. Ao conjunto desses jornais e revistas dá-se o nome de “imprensa alternativa” ou “nanica”. No Rio Grande do Sul, este grupo teve como principais representantes os jornais Pato Macho (que circulou de abril a julho de 1971), Informação (que circulou de 1975 a 1977) e Coojornal (que circulou entre 1975 e 1982).31 Como eram retratados os advogados e seus casos nesses jornais? Em que situações sua atuação era associada à defesa dos direitos humanos? Como já foi apontado, estes advogados tomaram parte em grandes acontecimentos, como o “caso das mãos amarradas” e o “caso do sequestro dos uruguaios”. Como foi esta participação? Quais os contornos políticos dados por eles a essas participações? O discurso dos direitos humanos foi articulado nestes eventos? Se sim, como? FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês – carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letra, 2009, p. 39. 31 STRELOW, Aline do Amaral Garcia. “Jornalismo alternativo no Rio Grande do Sul”. In: Revista PJ:Br Jornalismo Brasileiro, São Paulo, Edição 05, 2005. Disponível em http://www.eca.usp.br/pjbr/arquivos/ensaios5_d.htm. 30 30 As organizações de advogados, como a OAB e os Institutos de Advogados, durante a ditadura passaram da condição de apoiadores do golpe a posições contrárias ao regime. Qual o papel exercido por estes advogados dentro das entidades profissionais? No final da década de 1970 surgiram organizações de direitos humanos, como o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, no qual Ferri militou. Como se deu a participação dele na organização? Finalmente, abordarei as campanhas eleitorais de Guazzelli, Becker e Ferri. Como surgiu a possibilidade de cada um deles lançar sua candidatura? Como era utilizada a atuação deles como advogados dentro destas campanhas? Ao mesmo tempo, pretendo analisar a utilização do discurso dos direitos humanos por parte dos candidatos. De que forma os direitos humanos são articulados por eles durante a campanha eleitoral? Qual seria o público que eles buscavam atingir? Assim, o objetivo geral de meu trabalho é analisar as trajetórias dos advogados Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker buscando ver as mudanças de sentido que suas atuações tiveram ao longo da ditadura civil-militar, e as condições que possibilitaram que elas passassem a ser apresentadas e vistas como “defesa dos direitos humanos”. Para alcançá-lo irei à busca dos seguintes objetivos específicos: analisar como os órgãos da imprensa porto-alegrense retratavam a atuação dos advogados, tanto em crimes “políticos” quanto em crimes “comuns”; mostrar a participação dos advogados em entidades profissionais, como a OAB/RS, e como era utilizada a defesa de presos políticos; explorar a atuação dos advogados em casos de denúncia da ditadura civil-militar brasileira, como o “caso das mãos amarradas” e o ” “sequestro dos uruguaios”; analisar como se deram as campanhas eleitorais de Guazzelli, Ferri e Becker no final da década de 1970 e no início da década de 1980 e como estas se relacionavam com a defesa de presos políticos. Fontes e metodologia Para responder a estas questões analisarei diversas fontes que me permitem apreender momentos relevantes da atuação destes advogados durante a ditadura civilmilitar. Uma parte da documentação que me auxilia nessa busca são os periódicos de circulação estadual e nacional da época, como Zero Hora, Correio do Povo, Folha da Manhã, Folha da Tarde e Jornal do Brasil que acompanharam julgamentos nos quais 31 Guazzelli, Ferri e Becker foram defensores.32 Neste ensejo, buscarei tanto os “crimes políticos” – isto é, aqueles que se referiam a opositores da ditadura e que tramitavam na Justiça Militar – quanto os “crimes comuns”, em especial casos de grande comoção na sociedade sul-rio-grandense. A análise destes dois tipos de casos permite-me ver como estes advogados foram retratados pela imprensa desde o início da ditadura, o que lhes possibilitou a construção de uma imagem de, por um lado, opositores da ditadura, e, por outro, de criminalistas reconhecidos. Também examinarei a cobertura jornalística de dois eventos de denúncia da ditadura, o “caso das mãos amarradas” e o “sequestro dos uruguaios”, nos quais os advogados tiveram participação – Eloar Guazzelli no primeiro e Omar Ferri e Werner Becker no segundo. Outra fonte são os jornais alternativos, em especial em sua cobertura dada aos dois casos acima mencionados e na forma como os advogados citados foram retratados. Além disso, através da imprensa também procurarei ver as questões que eram levantadas durante as campanhas eleitorais e como estes candidatos apresentavam-se. Para tanto, também serão analisados os materiais de campanha, que podem ser encontrados no setor de publicidade do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. Ainda sobre os dois supracitados casos, analisarei documentos que se encontram no Memorial do Legislativo – os documentos referentes às CPIs dos dois casos – e no Acervo da Luta Contra a Ditadura do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) – em especial o Acervo Pessoal de Omar Ferri (APOF), que conta com diversos documentos referentes ao “sequestro dos uruguaios”, como reportagens, anotações, relatórios, fotografias, correspondências e panfletos. Abordarei da mesma forma as atas dos Conselhos da OAB/RS e do IARGS, focando na forma como os advogados inseriam-se nesta entidade. Além disso, nas atas pode-se ver também como estas agremiações posicionaram-se durante a ditadura. As atas são o resultado de escolhas feitas grupos dirigentes das entidades e, desta forma, representam uma imagem que a instituição buscava passar. A presença ou não de determinados assuntos mostra, assim, 32 Em determinado momento de minha pesquisa, o principal acervo de imprensa do Rio Grande do Sul, Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, passou por diversos cortes financeiros e de pessoal que levaram à diminuição dos horários de visitação, o que também ocorreu com outras instituições culturais do Governo do Estado como o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. As pesquisas nestes valiosos acervos mantêm-se por iniciativas dos funcionários, que conseguem abrir janelas em suas atribuições. Esta situação dificultou muito minha pesquisa. Busquei contornar este obstáculo com a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, ainda que de forma incompleta, uma vez que este acervo possui poucas publicações de circulação no Rio Grande do Sul no período abordado. 32 o posicionamento que as organizações tinham em determinado contexto. Finalmente, utilizarei entrevistas de história oral concedidas pelos advogados e por pessoas próximas a eles durante este período.33 Buscarei nestas entrevistas a forma como eles articulam estes acontecimentos e dão sentido à sua trajetória. Através da análise da participação dos advogados nestes meios, em todas as fontes, intento observar a partir de que momento o tema dos direitos humanos passou a ter mais força. Assim, a comparação entre os casos “das mãos amarradas” e do “sequestro dos uruguaios” pode ser prolífica, já que parto da hipótese de que no segundo exemplo terá mais força a questão dos direitos humanos. Nas fontes mencionadas buscarei ver momentos das trajetórias dos advogados, notando as relações que eles criaram nos contextos em que se inseriram e como elas foram articuladas para dar visibilidade e notoriedade à defesa de presos políticos, e, em segundo momento, à defesa dos direitos humanos. História oral e relatos biográficos Uma vez que utilizo como fontes entrevistas de história oral e relatos biográficos, faz-se necessária uma reflexão a respeito da memória. No caso específico deste trabalho, esta problematização é vital, visto que sou neto de um dos advogados estudados. Dois pontos de partida para reflexões de historiadores a respeito da memória provêm de pensadores de fora do âmbito da história. A primeira é proposta pelo filósofo Henri Bergson, que vincula as lembranças ao momento da rememoração. Isto é, toda memória, ainda que indício de um passado, está articulada ao presente da ação de lembrar.34 Já o psicólogo social Maurice Halbwachs vê a dimensão social da memória: para ele, esta é um fato social e está vinculada aos grupos.35 Toda memória seria coletiva. A memória individual é, para Halbwachs, derivada da intersecção dos diferentes grupos aos quais pertencemos ao longo da vida. Estas contribuições têm grande impacto na história, em especial na história oral, uma vez que fazem que, por um 33 Em razão de ser neto de Eloar, optei por utilizar outra estratégia para abordar a memória de seus filhos, solicitando que realizassem um texto construído a partir de um questionário prévio. Os textos me permitiram uma distância e objetividade que provavelmente a entrevista de história oral com meu pai e tios não alcançasse. 34 BERGSON, Henri. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 35 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. 33 lado, pensemos na memória articulada com o presente da rememoração e, por outro, a vinculemos aos grupos nos quais foi “gestada”. Ao trabalhar diretamente com história oral, pesquisadores começaram a propor novas teorizações a respeito da memória. Este é o caso do sociólogo Michael Pollak que parte de premissas propostas por Halbwachs, como ver na memória algo social. Há, no entanto, uma grande diferença entre os dois: enquanto que Halbwachs vê estabilidade na memória coletiva, Pollak procura analisar os processos pelos quais a memória dos grupos passa na construção de um discurso unificado que contribui para a identidade. Os interesses do sociólogo são, assim, os conflitos, as disputas e as coerções que ocorrem neste processo.36 Existem, para ele, dentro dos grupos, pessoas que são mais autorizadas a falar sobre a memória coletiva: estes seriam os “guardiões da memória”, que apresentariam um relato mais articulado, derivado de um trabalho realizado ao longo dos anos, que permitiu ressaltar determinados elementos que são importantes para a identidade coletiva, criando uma “memória oficial”.37 Estas reflexões auxiliam-me a pensar nos relatos de meus entrevistados: de início, pude perceber que os advogados não formam um grupo unificado, e, desta forma, não “lembram juntos” dos eventos, isto é, aparentemente não fazem parte da mesma memória coletiva. Por outro lado, suas atuações durante a ditadura tomaram um papel importante na formação de suas identidades, tanto do ponto de vista profissional quanto político, o que pude perceber em minhas impressões das entrevistas que realizei com dois advogados, Omar Ferri e Werner Becker.38 Analisando as entrevistas de Omar Ferri, pude notar que os relatos da atuação dele na Auditoria Militar sempre acabavam levando ao “caso do sequestro dos uruguaios”, no qual ele teve participação de destaque. As reiteradas menções ao sequestro dos uruguaios podem justificar-se pela dimensão que este caso teve, tanto POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, vol. 2, n. 3, 1989, p. 4. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/43.pdf 37 POLLAK, Michael. “Memória e Identidade Social”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, vol. 5, n. 10, 1992, pp. 5-7. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/104.pdf . 38 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 25 de setembro de 2012, em Porto Alegre; BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 24 de maio de 2013, em Porto Alegre; BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre 3 de junho de 2017; BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre; FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre; FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre; FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 9 de junho de 2017; FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 36 34 publicamente quanto em sua trajetória: a partir dele, Ferri ganhou grande notoriedade, o que o levou a lançar candidatura a deputado federal em 1982. Este evento é central na formação de sua identidade, pois em sua narrativa este é o momento em que ele, que já havia se oposto à ditadura em outros momentos, foi protagonista de um caso de denúncia das atrocidades cometidas pelo regime. Percebi, também, que há uma disputa de narrativas dentro do caso, em especial entre o advogado e o jornalista Luiz Claudio Cunha. Ainda reconhecendo sua importância no desenrolar dos acontecimentos, Ferri faz questão de frisar incorreções do livro de Cunha e queixou-se do destaque maior dado ao jornalista na imprensa.39 Isto mostra que o protagonismo no caso ainda é alvo de contestação, mesmo que de forma sutil. Por outro lado, em alguns momentos em que narra acontecimentos de embate contra a ditadura, Omar Ferri passa a narrar no plural: quando questionado sobre a quem se referia, ele afirma tratar-se do Movimento Justiça e Direitos Humanos (MJDH).40 Neste momento ocorre na fala do advogado a modificação do modo de rememoração, como apontado por Pollak e Heinich.41 A partir disto, ficou claro a qual grupo Ferri pertence, e que suas memórias fazem parte de um projeto de rememoração coletivo, do qual ele constitui um dos guardiões da memória. 42 Outra contribuição a respeito da memória da história oral vem do historiador Alessandro Portelli. Ele aponta para a multiplicidade das memórias, isto é, a memória de um grupo “não é um todo sólido”, mas apresenta divisões decorrentes de fatores 39 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, pp. 10-11; FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 40 Movimento Justiça e Direitos Humanos é uma organização criada em Porto Alegre no final da década de 1970 por militantes dos Direitos Humanos como Jair Krischke e Omar Ferri e que tem participação ativa em casos de defesas dos Direitos Humanos. 41 POLLAK, Michael e HEINICH, Natalie. El testimonio. In: POLLAK, Michael. Memoria, olvido, silencio: la producción social de identidades frente a situaciones limite. La Plata/Buenos Aires: Al Margen, 2006, p.94. 42 Idem, p. 79. O MJDH vem desenvolvendo diversas iniciativas de memória nos últimos anos. Entre outros produtos, destaca-se uma exposição (Movimento de Justiça e Direitos Humanos – Onde a Esperança se Refugiou, instalada na Usina do Gasômetro em Porto Alegre entre os dias 25 de abril e 5 de maio de 2013) e um projeto de história oral, que resultou no livro Memórias da Resistência e da Solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua Conexão Repressiva, no qual está presente o relato de Ferri. PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enríquez. Memórias da Resistência e da Solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua Conexão Repressiva. Porto Alegre: Ed ASF-Brasil, 2013. 35 sociais, culturais e ideológicos. 43 Portelli aponta ainda que ao recordar, o indivíduo já interpreta o evento que está narrando.44 Verena Alberti afirma que a história oral deve preocupar-se com os fatos relatados e suas representações construídas por aqueles que rememoram.45 A rememoração é, ao mesmo tempo, um relato de uma ação e uma ação; o historiador deve levar em conta este fato ao proceder sua análise.46 Assim, é importante notar os momentos em que os relatos dos advogados foram feitos. Dispomos de uma entrevista com Eloar Guazzelli publicada em outubro de 1991. Podemos notar no tom do advogado uma falta de esperança que pode relacionar-se com o momento em que o país vivia: começavam a surgir denúncias e escândalos sobre a administração de Fernando Collor, primeiro presidente eleito diretamente pelo voto popular em décadas. Nas entrevistas de Omar Ferri, apesar de estarem afastadas temporalmente por quase uma década – uma delas foi realizada em 2004 por Márcia de la Torre e Carine Medeiros Trindade para a Revista Justiça & História do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul e as outras realizadas por mim entre 2013 e 2017–, pode-se notar uma proximidade no tom de descrença na política praticada no país, demonstrando que sua contrariedade com o governo que se iniciava no início dos anos 2000 ainda estava presente na década de 2017. Já no caso de Becker, sua crítica maior ao momento em que a entrevista foi realizada (entre 2012 e 2017) referia-se às injustiças sociais ainda presentes no Brasil e à forma como elas ainda estavam presentes no Judiciário. Ao mesmo tempo, esta falta de esperança e crença em relação à política nas falas de Guazzelli e Ferri é um indício de algo importante a respeito destes personagens: os dois engajaram-se na política partidária e, em algum momento, não obtiveram sucesso. Depois de eleito em 1978 pelo MDB, Eloar Guazzelli não teve sucesso em sua reeleição, já pelo PMDB, em 1982. Os filhos de Eloar ainda frisam que acontecimentos ocorridos no final da década de 1970 e no início da década de 1980 acabaram por desiludi-lo em relação à política.47 Já Ferri lançou candidatura em 1982 pelo PMDB, no PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política, luto e senso comum”. In FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, p. 128. 44 PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos. In: Tempo. Rio de Janeiro: UFF, n. 2, dezembro de 1996, p. 2. 45 ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004, pp. 40-1. 46 Idem, pp. 36 e 114. 47 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017; GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017. 43 36 qual também não foi eleito; posteriormente elegeu-se vereador pelo PSB, em 1985, reelegendo-se em 1988 pelo PDT, lançando nova candidatura em 1992, porém sem êxito. Assim como Guazzelli, sua postura também foi marcada por experiências pessoais na política partidária. Finalmente Becker foi vereador em Porto Alegre entre 1982 e 1988 pelo PMDB. É interessante notar que a própria forma como os dois narram a “saída da política” é semelhante: após não obter sucesso na eleição, Eloar relata que achava “que tinha sido cassado por quem tem este direito: os eleitores. Nunca mais quis saber de política”48; da mesma forma para Omar “uma eleição não-vitoriosa já é um aviso de que basta. Não concorro duas vezes à coisa alguma. ”49 Apesar de não apresentar o mesmo sentimento que seus colegas, em entrevista concedida ao jornal Zero Hora em agosto de 2008, Werner Becker acaba refletindo a respeito de sua relação com a política partidária de forma semelhante: “Sou apaixonado pela grande mulher que é a política. Mas ela não quer nada comigo. ” 50 Os três advogados em questão, usando as palavras de Bourdieu, investiram nas instituições partidárias citadas: isso consistia tanto em serviços prestados e obediência ao partido quanto em investimentos psicológicos. Com a derrota, é provável que os partidos não se interessassem mais por eles, o que os levou a uma exclusão do seio partidário, que pode ser percebida como “uma falência (...) ao mesmo tempo social e psicológica”.51 No caso de Guazzelli, esta sensação de “bancarrota” foi dupla: como relatou em entrevista o antigo militante comunista de Porto Alegre, Honório Peres, os advogados gaúchos vinculados ao PCB haviam organizado um grupo – denominado por ele como Centro de Estudos Jurídicos (CEJUR) – através do qual atuavam politicamente em diferentes meios, como o IARGS, a OAB e o MDB.52 A trajetória pública de Eloar “Eloar Guazzelli: A defesa como uma razão de vida”. In: Jornal da OAB/RS, Porto Alegre, Outubro de 1991, p. 14. 49 “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 9. 50 “Personagens das Diretas Já contam o que mudou em duas décadas”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 23 de agosto de 2008. 51 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 193 52 PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre. Esta vinculação entre advocacia e política feita por membros do PCB durante a ditadura também pode ser vista em DORA, Denise Dourado. Advocacia em tempos sombrios: De como um grupo de advogados enfrentou o regime militar de 1964. Rio de Janeiro: FGV/Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, 2011, pp. 57-58. Dissertação de Mestrado em História, Política e Bens Culturais. 48 37 durante a ditadura foi marcada por este projeto coletivo: sua forte atuação nas entidades de advogados e no MDB mostram isso. Ainda segundo Peres, em 1982 houve uma divisão no grupo, representada pela candidatura do também cejurista e amigo próximo de longa data de Eloar Antônio Pinheiro Machado Neto. A derrota eleitoral levaria a um sentido de falência e de ressentimento em relação a seu antigo correligionário.53 Isto também explica o fato de seu relato parecer “menos coletivo” do que o de Ferri: enquanto que este ainda tem uma relação com o grupo do qual é “guardião da memória”, Guazzelli viu-se isolado daquele projeto coletivo com o qual havia contribuído. É digno de nota que em nenhum dos relatos que mencionamos até aqui seja muito forte a questão da luta pela memória e a verdade referente ao período ditatorial: talvez isto se deva ao fato de que, apesar deles terem enfrentado a ditadura e sofrido perseguições, nenhum deles ficou marcado por uma militância pela memória. Gostaria de esboçar os sentidos que cada um destes advogados deu à sua atividade em seus relatos. Pela breve entrevista concedida em 1991, pode-se notar que Eloar via no Direito uma forma de ir contra o poder, de arranhá-lo, uma vez que o via como fonte de corrupção. Sua trajetória de vida e suas escolhas são apresentadas sob este prisma. Um exemplo disso é o fato dele mencionar como seus primeiros trabalhos um caso político e a defesa de pessoas pobres.54 A defesa de presos políticos seria, assim, o clímax de sua história. Nas entrevistas e textos memorialísticos realizados para esta entrevista percebi que diferentes pessoas se relacionam de forma intensa com a imagem de Eloar, atribuindo à trajetória do advogado significados diversos. Nereu Lima, que estagiou e atuou em alguns casos com Guazzelli durante a década de 1960 frisa uma dimensão mais pública dentro da classe, destacando a presidência no IARGS e sinalizando que ele teria criado uma escola de advocacia criminal seguida no estado. 55 Ana Eni Machado Milan, que atuou no escritório a partir do final da década de 1960 vincula a trajetória do advogado a uma advocacia autônoma e à defesa dos direitos humanos, às quais não 53 A narrativa dos filhos de Eloar vai também neste sentido: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 8; GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, pp. 11-12. 54 “Eloar Guazzelli: A defesa como uma razão de vida”. Op. cit., p. 14 55 LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em dia 8 de agosto de 2013. 38 tinham uma relação direta com uma atividade política partidária.56 Finalmente o filho Carlos Frederico Guazzelli aponta para uma concepção de que a atuação profissional e a posterior atividade política e parlamentar estavam “naturalmente” relacionadas.57 As diferentes visões sobre Eloar tem a ver com as biografias de cada entrevistado. Nereu desde a década de 1970 foi atuante no IARGS e na OAB/RS, chegando a ser presidente do Conselho Seccional, além de ter participado da fundação da Associação dos Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul (ACRIERGS) – a qual tem como presidente de honra Eloar Guazzelli. Ana Eni seguiu com o escritório após a morte de seu colega em 1994. Já Carlos Frederico em meados da década de 1990 passou a ser defensor público, estando à frente da Defensoria Pública durante o governo de Olívio Dutra e, posteriormente, membro da Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul (CEV/RS). Os significados diversos dados por cada um dos advogados devem-se, assim, a uma intencionalidade de apresentar-se como “herdeiro” da trajetória de Eloar. Já Werner Becker na entrevista que me concedeu fez questão de ressaltar as permanências da ditadura, apontando as semelhanças entre a Justiça Militar naquele período e a Justiça comum atual. Para ele, aquele tribunal era uma farsa como qualquer outro, pois ele se define como advogado “como um padre que não acredita em Deus: não acredita em Deus, mas reza suas missas”. 58 Em relação à sua atuação durante a ditadura civil-militar, ele compara sua situação à de um homem negro que era contratado pelo hotel de luxo do Rio de Janeiro Copacabana Palace para posar em seus ambientes para a imprensa, provando assim que aquele não era um ambiente racista: nas palavras de Werner Becker, “eu era o negro do Copacabana. Nunca mais entrou negro (...). Então eu era para provar (...) que os processos eram legítimos”. 59 Sua fala é marcada por um tom irônico ao rememorar, apresentando momentos anedóticos e cômicos. De certa forma ele busca sempre vincular-se à alcunha pela qual ficou 56 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. Anotações sobre conversa com Ana Eni Machado Milan, realizada em 8 de setembro de 2017 em Porto Alegre, a respeito da trajetória de Eloar Guazzelli entre os anos 1974 e 1982. Porto Alegre, 2017. 57 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017. 58 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 24 de maio de 2013, em Porto Alegre. 59 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 25 de setembro de 2012, em Porto Alegre. 39 conhecido (da qual aparentemente não gosta), Bruxo, pois ele dá sempre um viés absurdo, mágico aos eventos que conta.60 Omar Ferri, por sua vez, dá à sua atuação de advogado de presos políticos um sentido mais coletivo, mostrando que ele havia sido um dos que se opuseram à ditadura. Ao mesmo tempo, é possível que as entrevistas concedidas já tenham a marca do projeto memorial empreendido pelo MJDH. Há uma clara distinção na forma como foi vista a atuação de defesa de presos políticos nestes dois relatos: enquanto que Ferri reforça a dificuldade desta atuação, apontando para perseguições e ameaças sofridas, Becker afirma que a atuação lhe trouxe prestígio e diversas recompensas, menosprezando os possíveis perigos trazidos por esta atividade. Um ponto em comum nos relatos é o destaque dado ao seu protagonismo durante os eventos narrados. Memória, proximidade e subjetividade Para finalizar as reflexões introdutórias de minha tese, gostaria de refletir sobre minha relação com um dos “objetos” de estudo, Eloar Guazzelli: como já foi dito, sou neto dele e, especialmente por esta razão tomo parte de uma memória que tem em Eloar um personagem importante. O “Velho Guazzelli”, como era conhecido, é uma figura fundamental dentro da identidade de minha família. Ao sair de Vacaria, tornar-se advogado e, especialmente, “um homem de esquerda”, ele criou um modelo para a família. A partir dele, seus descendentes viram nele um exemplo, em especial aqueles membros que optaram pelo Direito ou por serem homens e mulheres “de esquerda”. Sua trajetória é, assim, reverenciada, o que pode ser percebido em um trabalho recente de Eloar Guazzelli Filho, meu tio e desenhista: em seu livro Apocalipse Nau, é feita referência a Eloar “pai”.61 Nesta memória familiar, a atuação dele durante a ditadura civil-militar é um fator central. Tanto a defesa de presos políticos quanto suas outras atividades são definidoras da memória e da identidade do grupo familiar.62 60 CUNHA. Op. cit., p. 211. GUAZZELLI FILHO, Eloar. Apocalipse Nau. São Paulo: Editora Nós, 2015. 62 Deve-se dizer que este fascínio sobre a figura dos advogados de presos políticos não é privilégio dos familiares. Recentemente foram feitos trabalhos voltados ao grande público que tratam do tema como o livro Coragem – a advocacia criminal nos Anos de Chumbo, de 2014 organizado pela seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, e o documentário Os advogados contra a ditadura: por uma questão de justiça o livro, de Silvio Tendler também de 2014. Outro indício deste fenômeno é o fato de haver na telenovela da Rede Globo Babilônia, uma personagem mencionada como defensora dos direitos humanos, tendo ela sido “advogada de presos políticos” durante o período da ditadura civil-militar brasileira. 61 40 Ao deixar clara minha relação busco mostrar em que meio me insiro. Penso que este é o primeiro passo rumo a um distanciamento crítico, condição necessária para o trabalho histórico.63 Como afirma o filósofo Paul Ricœur, em A memória, a história, o esquecimento, o “conhecimento histórico implica a correlação entre subjetividade e objetividade, na medida em que relaciona, por iniciativa do historiador, o passado dos homens de outrora e o presente dos homens de hoje”.64 Desse modo, “a implicação subjetiva constitui, simultaneamente, a condição e o limite do conhecimento histórico”, sendo que “não há verdade sem amizade”.65 A proximidade e a subjetividade que minha posição em relação aos objetos não impossibilita o trabalho histórico. Pelo contrário, como afirma o historiador Enrique Padrós, “a procura de objetividade na história implica a permanência de um componente subjetivo que é imanente a toda produção do conhecimento científico”.66 A subjetividade sempre está presente no trabalho do historiador. Ao tratar da “volta” da biografia histórica, a historiadora Vayy Pacheco Borges afirma que recentemente “os historiadores passaram a não mais acreditar em uma neutralidade na efetivação de qualquer trabalho e, assim, a relação sujeito-objeto, de uma forma geral, tornou-se fundamental”.67 Passou-se a aceitar a subjetividade existente no ofício do biógrafo e do historiador. A biografia histórica, nesta nova abordagem, tem como objetivo, não glorificar ou mitificar, como fazia a de inspiração positivista, mas sim compreender. A autora afirma que “entender uma pessoa é aceitá-la, é desculpá-la, é (quase) dela gostar”.68 Por outro lado, reconhecer a subjetividade da história não significa abandonar a busca pela objetividade. O historiador, ainda segundo Vavy Pacheco Borges, assim como o psicólogo e o psicanalista, deve procurar garantir sua objetividade pelo aperfeiçoamento constante de seu domínio das BORGES, Vavy Pacheco. “O 'eu' e o 'outro' na relação biográfica: algumas reflexões”. In: BREPOHL, Marion; MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia (org.). Figurações do outro. Uberlândia, EDUFU, 2009, p. 233. 64 RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 349. 65 Idem, p. 350. 66 PADRÓS, Enrique Serra. “Os desafios na produção do conhecimento histórico sob a perspectiva do Tempo Presente”. In: Anos 90. Porto Alegre, PPG em História- UFRGS, vol. 11, no. 19/20, jan/dez 2004, p. 209. 67 Idem, p. 228. 68 BORGES, Vavy Pacheco. “Desafios da memória e da biografia: Gabrielle Brune-Sieler, uma vida (1874-1940)”. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas, Ed. da UNICAMP, 2001, p. 299. 63 41 teorias e das técnicas de sua profissão, em uma longa, contínua e interminável formação. 69 Em busca da objetividade, o pesquisador, em especial aquele que está “próximo” de seu objeto, deve estar atento aos procedimentos fundamentais de sua disciplina, como o aprofundamento teórico, diálogo com a bibliografia e a crítica das fontes. Somente assim é possível que ele, ao invés de ser um “guardião da memória”, um memorialista, seja um estudioso da memória. Além disso, os pesquisadores que estudam as memórias de um passado sensível e traumático (como é o caso da memória do holocausto e das vítimas das ditaduras latino-americanas) devem ter em mente as advertências feitas por pensadores como o filósofo e linguista Tzvetan Todorov e a literata Beatriz Sarlo, que afirmam que há, por parte da memória, uma desconfiança, que pode chegar a se transformar em veto, em relação à análise.70 Da mesma forma, há uma tendência de “sacralizar” ou “banalizar” o passado. Em um caso, o passado fica isolado não se relacionando com o presente, enquanto que no outro, o presente seria a repetição do passado.71 Frente a estes movimentos, a historiadora Marieta de Moraes Ferreira afirma que para termos outra relação com o passado “em vez de uma militância pela memória, seria necessário pensar em um trabalho sobre a memória”.72 Estas questões permitem-me elaborar uma forma de aproximação e análise de meu objeto. Além de deixar clara minha relação, faz-se necessária uma problematização desta memória familiar. Com isto não pretendo fazer de minha tese um exercício de “auto psicanálise”, mas sim abordar esta memória da mesma forma que faço com as memórias dos outros advogados abordados. Afinal, há uma tendência da memória à sacralização, o que ocorre em relação aos advogados de presos políticos. Um exemplo disso é o fato de que os três advogados em entrevistas de caráter mais “público” do que aquelas realizadas para minha pesquisa (Jornal da OAB/RS, Memorial do Judiciário e Zero Hora), procuraram mostrar-se como “o que mais defendeu” presos políticos ou BORGES, Vavy Pacheco. “O 'eu' e o 'outro' na relação biográfica: algumas reflexões”. In: BREPOHL, Marion; MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia (org.). Figurações do outro. Uberlândia, EDUFU, 2009, p. 233. 70 TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000; SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 71 FERREIRA, Marieta de Moraes. “Oralidade e memória em projetos testemunhais”. In: LOPES, Antonio Herculano; VELLOSO, Monica Pimenta e PESAVENTO, Sandra Jatahy (orgs.). História e linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p. 199. 72 Idem, p. 200. 69 42 “um dos únicos defensores dos direitos humanos”.73 Uma vez que pretendo fazer uma pesquisa de história e não um livro memorialístico, trabalhar a memória de Eloar Guazzelli é algo vital para meus esforços. O estudo das três trajetórias permite-me aprofundar o assunto através da comparação. Por outro lado, este esforço de “estranhar o familiar”, de “desnaturalizar noções, impressões, categorias, classificações que constituíam” a sua visão de mundo é facilitado pelo que o antropólogo Gilberto Velho chama de “multipertencimento” presente dentro das sociedades contemporâneas.74 O antropólogo, assim como o historiador e qualquer outro indivíduo em nossa sociedade, pertence a diferentes grupos e redes ao longo da vida. (...) esse multipertencimento que permite ao antropólogo pesquisar sua própria sociedade e, dentro dela, situações com as quais ele tem algum tipo de envolvimento e das quais participa. O fato de não ser englobado por nenhum grupo exclusivo – somado às próprias características e à formação do antropólogo, que, em princípio, produz e valoriza uma certa distância – permite o movimento de estranhamento crítico diante do próximo. 75 O fato de pertencer a diferentes grupos, com diferentes memórias e identidades, permite-me “estranhar meu familiar”. Da mesma forma, a identidade que acesso ao pesquisar não é minha identidade de neto, e sim a de historiador, como tal devo proceder de forma mais rigorosa possível, atendo-me aos limites e posturas requisitadas pela comunidade historiográfica. Revisão Bibliográfica Irei me debruçar agora sobre a produção bibliográfica existente sobre a atuação de advogados durante a ditadura civil-militar, em especial no que se refere à defesa de presos políticos.76 Até recentemente este tema não havia sido fruto de análises: ainda "Personagens das Diretas Já contam o que mudou em duas décadas”. Op. cit.; “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. Op. cit., p. 7. Há indícios disto em “Eloar Guazzelli: A defesa como uma razão de vida”. Op. cit., p. 14-5. 74 VELHO. Gilberto. “O desafio da proximidade”. In: KUSCHNIR, Karina; VELHO, Gilberto (orgs.). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2003, pp. 15-18. 75 Idem, p. 18 76 Devido ao espaço, optei por abordar aqui bibliografia a respeito do tema dos advogados de presos políticos. Minha pesquisa ainda dialoga com algumas obras a sobre a justiça militar durante a ditadura civil-militar e sobre a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em relação a justiça militar dialogo com os seguintes trabalhos ALVES, Taiara Souto. Dos quartéis aos tribunais: a atuação das Auditorias Militares de Porto Alegre e Santa Maria no julgamento de civis em processos políticos referentes às Leis de Segurança Nacional (1964-1978). Porto Alegre: UFRGS, 2009. Dissertação de Mestrado em História; SILVA, Angela Moreira Domingues da. Ditadura e Justiça Militar no Brasil: a atuação do Superior 73 43 hoje é um assunto que merece uma maior abordagem. Mesmo assim, temos, atualmente, uma variedade de estudos sobre o assunto, tanto em trabalhos acadêmicos quanto naqueles de cunho memorialista. No ano de 2010 foram lançados no mercado brasileiro duas obras que prestam uma grande contribuição ao estudo da atuação dos advogados de presos políticos. Um deles foi o livro do cientista político Anthony W. Pereira, Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina.77 Nele o autor compara os regimes ditatoriais instaurados nesses países a partir da década de 1960, no que se refere à relação entre o Executivo e o Judiciário nestes períodos. Partindo disto, Pereira aponta para dois modelos mais polarizados, o Brasil, com uma repressão mais judicializada, e a Argentina, com uma extrajudicial, enquanto que o caso do Chile é intermediário entre os dois. Para o autor, esta forma de repressão só foi possível no Brasil porque houve grande cooperação e integração entre as elites judiciária e militar, o que não ocorreu nos outros países. Tribunal Militar (1964-1980). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2011. Tese de Doutorado em História, Política e Bens Culturais; D’ARAUJO, Maria Celina. Justiça Militar, segurança nacional e tribunais de exceção. Trabalho apresentado no 30º Encontro Anual da ANPOCS- GT08 – Forças Armadas, Estado e sociedade. De 24 a 28 de outubro de 2006, Caxambu, MG. Captado em: http://cpdoc.fgv.br/projetos/cfa21/arqs/anpocs2006/103.pdf; LEMOS, Renato. “Poder Judiciário e poder militar (1964-69)”. In: CASTRO, Celso; IZEECKSOHN, Vitor & KRAAY, Hendrik (org). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV/Editora Bom Texto, 2004; LEMOS, Renato. “Introdução – o General Juiz Peri Constant Bevilaqua”. In: LEMOS, Renato (org). Justiça Fardada: o General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004; MACIEL, Wilma Antunes. O capitão Lamarca e a VPR: Repressão judicial no Brasil. São Paulo: Alameda, 2006; MATTOS, Marco Aurélio V. L. de. Em nome da segurança nacional: os processos da Justiça Militar contra a Ação Libertadora Nacional (ALN) 1969-1979. São Paulo: USP, 2002. Dissertação de Mestrado em História; TORRES, Mateus Gamba. “A Justiça nem ao Diabo se há de negar”: A repressão aos membros do Partido Comunista Brasileiro na Operação Barriga Verde (1975-1978). Florianópolis, Universidade Estadual de Santa Catarina, 2009. Dissertação de Mestrado em História; TORRES, Mateus Gamba. Política, discurso e ditadura: O Supremo Tribunal Federal nos julgamentos dos recursos ordinários criminais (1964-1970). Porto Alegre: UFRGS, 2014. Tese de doutorado em História; WANDERLEY, Erika Kubik da Costa. A institucionalização da repressão judicial na Ditadura civilmilitar brasileira. Apresentação de trabalho no 5º Encontro da Associação Brasileira de Ciência política realizado em Belo Horizonte entre 27 a 29 de julho de 2006. Disponível em www.sinteseeventos.com.br/abcp/trabalho_ErikaWanderley.pdf. Sobre a OAB: MATTOS, Marco Aurélio V. L. de. Os cruzados da ordem jurídica: a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 1945-1964. São Paulo: Alameda, 2013; MOTTA, Marly. “‘Dentro da névoa autoritária acendemos a fogueira...’ – a OAB na redemocratização brasileira (1974-80)”. In: Revista Culturas Jurídicas, Rio de Janeiro, v. 3, nº 1, jan/jul 2008, p. 29. Disponível em http://legalcultures.com/en/pdf/vol3num1/motta.pdf; ROLLEMBERG, Denise. “Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a ditadura (1964-1974)”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; ROLLAND, Denis (orgs). Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 7. Disponível em http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/Memoria_opniao_e_cultura_politica.pdf. 77 PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 44 Tal integração e cooperação proporcionaram uma justiça mais lenta e mais pública, o que deu uma margem de manobra e mais espaço para a defesa atuar. Pereira ressalta o papel dos advogados brasileiros que se utilizaram deste espaço, podendo levar a justiça para interpretações menos conservadoras das leis de segurança nacional. Ele aponta para o fato de que os advogados brasileiros através de suas argumentações eram, em geral, bem-sucedidos, o que não ocorreu nos dois outros países. Neste mesmo ano foi lançada a obra coletiva organizada por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, Os Advogados e a Ditadura de 1964: A defesa dos perseguidos políticos no Brasil.78 Nela vemos contadas as trajetórias de 14 advogados e um procurador, além de quatro depoimentos de perseguidos e o um estudo sobre o arcabouço normativo utilizado. Estas trajetórias foram construídas através de entrevistas, em alguns casos sendo cruzados os dados com outros vindos de outro tipo de documentação. Este livro contribui muito para a compreensão da atuação dos advogados na Justiça castrense, possibilitando observar como se constituiu um grupo de especialistas neste campo. Nos depoimentos estão presentes as relações de troca e de ajuda existentes entre as pessoas engajadas nesta atuação, além das perseguições e obstáculos a ela. Por outro lado, os depoimentos ficaram restritos a advogados do Rio de Janeiro e São Paulo, o que não permite ver peculiaridades das realidades regionais. Em minha dissertação defendida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2011, A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979), busquei responder algumas questões sobre a atuação de Guazzelli nos processos políticos.79 Inicialmente, parti de questões relativas ao perfil dos clientes destes casos. Também procurei responder questões referentes ao cotidiano do advogado e suas argumentações. Através de entrevistas com antigos clientes e colegas, notei que existia uma relação mais próxima entre o advogado e aqueles clientes que estavam presos. Ao mesmo tempo, descobri que durante sua atuação, Eloar criou ligações com o aparato repressivo, que eram utilizadas para obter direitos como visitas, ou ganhos baseados em seus conhecimentos sobre os juízes. No que se refere às argumentações, Eloar lançava 78 MARTINS, Paulo Emílio; MUNTEAL, Oswaldo; SÁ, Fernando (orgs). Os advogados e a ditadura de 1964: A defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2010. 79 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011. Dissertação de Mestrado em História. 45 mão tanto de elementos jurídicos – legislação, jurisprudência – quanto de extrajurídicos – valores, ideias e imagens que ele pensava serem tidas como corretas pelos juízes. No mesmo ano de 2011, a advogada Denise Dourado Dora defendeu sua dissertação de mestrado em História, Política e Bens Culturais no Programa de Pósgraduação do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV), intitulada Advocacia em tempos sombrios: De como um grupo de advogados enfrentou o regime militar de 1964, na qual ela analisou a atuação dos advogados de presos políticos do Rio de Janeiro.80 A autora parte de entrevistas e depoimento dos defensores – além de dados vindos das pesquisas de Pereira e do livro Os advogados e a ditadura de 1964 – para responder questões referentes ao papel que eles tiveram durante a ditadura. Dora vê a defesa dos presos políticos como “advocacia política”, o que consistiu em uma forma de enfrentamento ao regime escolhida por alguns profissionais. Uma contribuição feita por Dora ao estudo da temática é a análise das estratégias realizadas pelos advogados fora dos tribunais. Ela aponta que os defensores aproveitavam espaços públicos para divulgar seus casos, desta forma denunciando a ditadura ao mesmo tempo em que traziam proteção a eles mesmos e seus clientes. Com esta estratégia foi possível aos advogados, também, construir uma reputação de combatentes da ditadura. Mais recentemente a historiadora Janaína de Almeida Teles iniciou uma pesquisa a respeito dos advogados de presos políticos de São Paulo. O primeiro resultado desta pesquisa é o artigo Em defesa da liberdade e da justiça: os advogados de perseguidos políticos de São Paulo nos anos 1970, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais em maio de 2013.81 Neste artigo ela buscou caracterizar o protagonismo dos advogados de presos políticos de esquerda e apresentar um panorama de sua atuação. Teles apresenta como estes defensores atuavam na Justiça Militar com o intuito de diminuir os sofrimentos dos presos ao mesmo tempo em que, ao denunciar as violências cometidas pelo regime, contribuíam para uma cultura dos direitos humanos. Apesar do caráter breve do estudo, uma vez que é um artigo, podem-se notar no 80 DORA, Denise Dourado. Advocacia em tempos sombrios: De como um grupo de advogados enfrentou o regime militar de 1964. Rio de Janeiro: FGV/Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, 2011. Dissertação de Mestrado em História, Política e Bens Culturais. 81 TELES, Janaína de Almeida. “Em defesa da liberdade e da justiça: os advogados de perseguidos políticos de São Paulo nos anos 1970”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, vol. 102, maio/2013. 46 trabalho da historiadora diversas contribuições, em especial na análise da rede de solidariedade criada entre advogados, presos e seus familiares e entidades de direitos humanos. No mesmo ano de 2013 foi publicado o livro Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar (1964-1985), organizado por Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz. 82 Este é o produto de um projeto das escolas de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro e de São Paulo e reúne entrevistas com trinta e quatro advogados de presos políticos, tendo como principal objetivo “relatar a experiência de cada advogado e as estratégias de defesa utilizadas”.83 A obra mostra que os advogados iam além dos procedimentos legais usando de criatividade e persistência com o intuito de salvar as vidas de seus clientes. Este trabalho contribui bastante com a temática, uma vez que, diferentemente do trabalho de Martins, Munteal e Sá, vemos o relato dos advogados na íntegra, o que permite levantar as mais diversas estratégias empreendidas por ele. Ao mesmo tempo o livro de Spieler e Queiroz não está limitado aos casos do centro do país, pintando um quadro mais amplo que o livro Os advogados e a Ditadura de 1964. Finalmente gostaria de apresentar um trabalho que não trata de advogados brasileiros: é a tese de doutorado em Antropologia Social de Virginia Vecchioli defendida no Programa de Pós-graduação do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulada “A luta pelo direito”: Engajamento militante e profissionalização dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina.84 Neste trabalho, Vecchioli busca analisar a formação do segmento da advocacia relacionada à promoção e defesa dos direitos humanos, tendo um recorte temporal que vai da década de 1930 até o início de 2000. A antropóloga intenta retratar como estes advogados foram convertendo-se em especialistas engajados na causa dos direitos humanos, portadores, assim, de um capital ao mesmo tempo de expertise e de militância. Através disso ela mostra a “força do direito” na construção da bandeira dos direitos humanos na Argentina. 82 SPIELER, Paula; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (coords). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 1964-1985. Curitiba: Edição do Autor, 2013. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/13745 83 Idem, p. 31. 84 VECCHIOLI, Virginia. “A luta pelo direito”: Engajamento militante e profissionalização dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 2006. Tese de doutorado em Antropologia Social. 47 Apesar das diferenças entre estes contextos – como veremos a seguir, na ditadura brasileira havia um espaço de atuação para os advogados, o que não ocorria na argentina –, este trabalho contribui bastante para a compreensão da participação dos advogados no fortalecimento da causa dos direitos humanos na América Latina do final da década de 1970. Nos dois casos vemos uma relação feita entre o campo do Direito, e mais especificamente os advogados, e os direitos humanos. Na Argentina, assim como no Brasil, teve papel importante neste processo a dimensão pública e política que os advogados fizeram de sua atividade profissional. *** A tese será dividida em cinco capítulos. No primeiro farei um debate a respeito de temas basilares da pesquisa, como o papel dos advogados de presos no Brasil, trajetória, o campo jurídico e o campo político. A este debate serão trazidos elementos a respeito das especificidades do caso brasileiro e sul-rio-grandense, já apontados por outros pesquisadores. Após este capítulo de caráter mais teórico, passarei aos capítulos que tratam mais diretamente da trajetória dos três advogados durante a ditadura. Optei por uma divisão cronológica por acreditar que sob este prisma é possível perceber as relações que estes advogados vão fazendo nos campos em que agem, notando as transformações ocorridas. Dividi, assim, em dois períodos: de 1964 a 1973 e de 1974 a 1982. No segundo capítulo abordarei o período inicial, buscando ver, inicialmente, o impacto do golpe na vida profissional e pessoal de Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker, mostrando as modificações que foram ocasionadas por ele. Serão analisadas, também, as repercussões públicas os casos dos advogados na Justiça Militar, da mesma forma que os casos “comuns” em que eles atuaram e que tiveram grande repercussão na imprensa. Outro ponto será a atuação de Guazzelli e dos advogados comunistas nas entidades de advogados e os contornos políticos dados a ela. Neste capítulo será abordada também a atuação de Guazzelli e do IARGS no “caso das mãos amarradas”. Em paralelo, analisarei como as entidades dos advogados gaúchos repercutiram estes casos e a possibilidade de cerceamento da defesa. No restante da tese analisarei o segundo período, que vai de 1974 a 1982, o qual, devido a riqueza de informações, optei por dividir em três capítulos. O terceiro trata dos anos entre 1974 e 1977, no qual abordarei a atuação das entidades classistas, em especial a atuação delas em episódios como o debate sobre a vinculação da OAB ao 48 Ministério do Trabalho e a prisão de comunistas em 1975, além de focar na presidência de Eloar no IARGS (1974-1975). No quarto capítulo, no qual abordo os anos de 1978 e 1979, analisarei casos rumorosos nos quais os Omar Ferri, Werner Becker e Eloar Guazzelli participaram: o caso das mãos amarradas e o processo envolvendo o radialista Flávio Alcaraz Gomes. Estes casos colocaram os advogados em grande evidência, trazendo diferentes retornos para eles. Tratarei também da campanha eleitoral de Eloar Guazzelli em 1978 que o levou à Câmara dos Deputados. No quinto capítulo, abordarei a atuação dos advogados nos anos de 1980 a 1982. Neste momento analisarei a experiência parlamentar de Eloar e a atividade de Omar junto ao MJDH, além de tratar dos debates presentes nas entidades classistas no período. Finalmente, será analisada a participação dos três advogados durantes o pleito de 1982. 49 Capitulo I – Os advogados, a ditadura e os direitos humanos: trajetórias entre o direito e a política Neste capítulo apontarei elementos que permitem reconstruir os campos nos quais os advogados fizeram suas trajetórias. Assim, apresentarei algumas questões sobre a justiça durante a ditadura civil-militar brasileira, o campo jurídico – focando no caso brasileiro e gaúcho –, o surgimento do tema dos direitos humanos e o campo político, abordando o caso brasileiro do final da ditadura. Parto do ponto de vista de que a atuação de Eloar Guazzelli, Werner Becker e Omar Ferri durante a ditadura, em especial a defesa de presos políticos, constituiu para parte de um “projeto”. Como o antropólogo Gilberto Velho afirma em seu livro Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas, o projeto é a “conduta organizada para atingir finalidades específicas”, que se dá dentro de um “campo de possibilidades como dimensão sociocultural, espaço para a formulação e implementação de projetos”.85 Ele pode sofrer diversas adaptações e alterações devido à interação com outros projetos. Desta forma, a trajetória de um indivíduo vai ganhando mais consistência a partir do “delineamento mais ou menos elaborado de projetos específicos”, sendo que a viabilidade de suas realizações depende do “jogo e interações com outros projetos individuais ou coletivos, da natureza e da dinâmica do campo de possibilidades”. 86 O projeto articula-se com a memória para dar significado à vida, e juntos atuam na constituição da identidade social: o projeto e a memória ordenam e dão sentido a uma trajetória de vida, o que atende à necessidade de dar sentido e significado a essa trajetória. 87 O projeto está sempre relacionado ao seu campo de possibilidades, sendo dinâmico e permanentemente reelaborado de acordo com as transformações ocorridas. Esta noção é muito útil para estudar as trajetórias desses advogados. Ao longo da ditadura, eles foram dando sentido à sua trajetória, relacionando a atividade profissional com a política. Em especial, ao final da década de 1970, eles articularam sua carreira profissional, em especial a defesa de presos políticos, com causas marcantes no período, como os direitos humanos. 85 VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 40. 86 Idem, p. 47. 87 Idem, p. 103. 50 Assim, a atuação em casos políticos pode ser vista inicialmente como parte de um projeto, no qual era atribuído um sentido político no exercício profissional. 88 Este projeto foi se transformando com o tempo, assumindo outros contornos e outros significados, como buscarei ver ao longo de minha pesquisa. Ao mesmo tempo, parto do conceito de trajetória, proposto pelo sociólogo Pierre Bourdieu em A ilusão biográfica: ele propõe a noção de trajetória “como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações”.89 Partindo disso, os acontecimentos são definidos como colocações e deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado. O sentido dos movimentos que conduzem de uma posição a outra (de um posto profissional a outro, de uma editora a outra, de uma diocese a outra etc.) evidentemente se define na relação objetiva entre o sentido e o valor, no momento considerado, dessas posições num espaço orientado.90 Para compreender uma trajetória, então, é necessário reconstruir os estados do campo no qual ela se desenrolou e, assim, “o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado (…) ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis”.91 Ao invés de mostrar os acontecimentos de uma vida como reflexos de um sentido maior, buscam-se as relações que levaram a estes acontecimentos e os espaços em que eles se dão. Partindo deste conceito, pretendo reconstituir os campos nos quais esses advogados atuaram e as relações entre eles e outros agentes. Procurarei, assim, mostrar os meios em que eles se inseriam e como isto influenciou as modificações de sentido dados à sua atuação profissional. Como afirma Mário Grynszpan ao tratar da trajetória de Tenório Cavalcanti, a análise de trajetórias individuais nos permitem avaliar estratégias e ações de atores em diferentes situações e posições sociais, seus movimentos, seus recursos, as formas como os utilizam ou procuram maximizá-los, 88 Deve-se ressaltar que esta atribuição de um sentido político a profissão não é privilégio da advocacia, podendo ser dado a outras profissões. 89 BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 189. 90 Idem, p. 190. 91 Idem, ibidem. 51 suas redes de relações, como se estruturam, como as acionam, nelas se locomovem ou as abandonam.92 O estudo de trajetórias permite-me ver como os advogados foram consolidando um “nome”, uma “reputação” ao longo da ditadura e, ao mesmo tempo, captando que elementos eram articulados com este fim. Além disso, possibilita reconstruir as redes nas quais eles se inseriam. Outra contribuição do campo biográfico que auxilia a compreensão da trajetória dos advogados é trazida pelo historiador Giovanni Levi. Ele afirma que a biografia é um campo privilegiado para se ver a relação entre a liberdade de escolha dos sujeitos e as normas. Essa liberdade não é absoluta, é “culturalmente e socialmente determinada, limitada, pacientemente conquistada”. Ela “continua sendo, no entanto, uma liberdade consciente que os interstícios inerentes aos sistemas gerais de normas deixam aos atores”. 93 Existe sempre a possibilidade de manipulação, de interpretação, de negociação dentro de um sistema normativo. As incoerências entre norma e prática permitem, assim, a liberdade de ação dos sujeitos, o que pode proporcionar a mudança social. Estas reflexões auxiliam minha pesquisa, uma vez que busco mostrar as colocações e deslocamentos que levaram aos significados dados à sua atuação durante a ditadura civil-militar. Estudando as trajetórias dos três advogados podem-se conhecer as possibilidades de ação que eles tinham e como estas se modificaram. Ao mesmo tempo, penso na atuação dos advogados de presos políticos como um exemplo de uma liberdade limitada, pacientemente conquistada, como será mostrada a seguir. Opto pela trajetória frente a outros tipos de análises biográficas, como a prosopografia, por exemplo, por ver nela a possibilidade de analisar todas as redes e relações realizadas ao longo do período analisado pelos personagens abordados. I.1. A justiça durante a ditadura civil-militar Uma diferença da ditadura civil-militar brasileira para as outras ocorridas em países como a Argentina e o Chile é a busca de legitimidade através de instituições democráticas. O objetivo do grupo que tomou o poder em 1964 no Brasil era ter uma fachada democrática, mantendo em funcionamento o legislativo e o judiciário. Estes GRYNSZPAN, Mário. “Os idiomas da patronagem: um estudo da trajetória de Tenório Cavalcanti”. In: Revista brasileira de ciências sociais, São Paulo, ANPOCS, n. 14, out., 1990, pp. 74-75. 93 LEVI, Giovanni. “Os usos da biografia”. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 179. 92 52 poderes foram sendo moldados pela ditadura através de expurgos e reestruturações, para atender aos seus anseios e interesses. De fato, estudos apontam que houve, no caso brasileiro, mais participação do judiciário na repressão aos opositores políticos do que na Argentina e no Chile.94 O regime conseguiu, através de seus procedimentos de legitimação, utilizar-se dessas fachadas legais, podendo reprimir sem afetar sua “legitimidade” democrática. Houve a preocupação por parte daqueles que tomavam o poder em 1964 em utilizar-se do Direito, uma vez que ele, segundo o sociólogo Pierre Bourdieu em O poder simbólico, “consagra a ordem estabelecida ao consagrar uma visão desta ordem que é uma visão do Estado, garantida pelo Estado”. O Direito “é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos”: através dele e de seu potencial de nomeação é possível serem criadas realidades que se tornam “oficiais” e instituídas. 95 Por esta razão, dias depois do golpe, foi promulgado o Ato Institucional que criou e instituiu um novo regime, mostrando o poder do Direito: através do poder de nomeação presente no Ato Institucional o regime era definitivamente criado, oficializando a nova situação do país. O dispositivo mantinha, assim, mesmo que por aparência, a ordem legal, uma vez que havia sido criado segundo a lógica do Direito. Assim, os golpistas, diferentemente de 1961, estariam do lado da “legalidade”. Por mais que esta “legalidade” fosse distorcida e deturpada pelos novos donos do poder, ela ainda proporcionava “legitimidade e ordem” para parte da parcela da sociedade civil que apoiou o golpe. Para dar “aparência de normalidade e legitimidade”, ao longo do regime foram conservados dispositivos democráticos, como “a manutenção do Congresso Nacional, de um partido de oposição moderada e de um Sistema Judiciário, a despeito de seu perfil ‘de exceção’”. 96 Ao mesmo tempo, foi construída “uma legalidade de exceção e 94 Anthony Pereira afirma que a proporção de processados em crimes políticos nos tribunais para a de mortos pelo Estado pela mesma razão na ditadura brasileira é de 23/1, enquanto no Chile é de 1,5/1 e na Argentina é de 1/71. PEREIRA, Anthony W. “Sistemas judiciais e repressão política na Brasil, Chile e Argentina”. In: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida.(orgs.) Desarquivando a Ditadura – memória e justiça no Brasil. Volume I. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2008, p. 206. 95 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 237 96 TELES, Janaína de Almeida. “Em defesa da liberdade e da justiça: os advogados de perseguidos políticos de São Paulo nos anos 1970”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, vol. 102, maio/2013, p. 289. Estes dispositivos tinham também como objetivo dar voz aos diferentes setores da sociedade que apoiavam o golpe e a ditadura. 53 uma grande estrutura administrativa e institucional que possuía relativa eficiência” para reprimir os opositores. 97 Para isto eram necessários bons juristas para fundamentar juridicamente seus atos de ditadura, pois por mais incompatíveis que fossem com o Estado de Direito e a ordem constitucional vigente; e também por isso procuravam dar roupagem institucional às normas e órgãos de repressão, regulamentando e burocratizando a perseguição política.98 Participaram deste processo de “fundamentação legal” diversos nomes consagrados no campo jurídico, em especial membros do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Um dos principais casos foi o então presidente da entidade Carlos Povina Cavalcanti que foi cedido para Comissão Geral de Investigações que, segundo Mattos, “referendou a perseguição inquisitorial contra os inimigos do novo regime conduzida pelos responsáveis pelos Inquéritos Policiais-Militares (IPM)”.99 A ditadura, desta forma, utilizou-se de expedientes jurídicos para impor o consenso, seja pela força ou por uma fachada de legitimidade.100 Segundo Maria Helena Moreira Alves em Estado e oposição no Brasil: 19641984, o Ato Institucional (AI) de 9 de abril de 1964 é considerado como marco inicial da atuação da Justiça Militar neste período, e representou “a necessidade de institucionalizar um novo aparato que apoiasse a ‘revolução’”.101 Através dele, o Executivo foi investido “de um poder soberano e incontrastável, rompendo o princípio da igualdade entre os três poderes”.102 Idem, ibidem. Estas inovações repressivas da ditadura partiam de uma “inércia institucional”, utilizando, inicialmente, estruturas e legislações já existentes. Um exemplo disso foi presença do DOPS, órgão criado durante o Estado Novo, na repressão. 98 SPIELER, Paula; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. "Advocacia e resistência: estratégias jurídicas de defesa de perseguidos políticos em meio à legislação repressiva da ditadura de 1964". In: SPIELER, Paula; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (coords). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 19641985. Curitiba: Edição do Autor, 2013, p. 35. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/13745 99 MATTOS, Marco Aurélio V. L. de. Os cruzados da ordem jurídica: a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 1945-1964. São Paulo: Alameda, 2013, p. 126. 100 Outro exemplo de proximidade entre o campo jurídico e a ditadura pode ser percebida no Supremo Tribunal Federal. Sobre isso ver: TORRES, Mateus Gamba. Política, discurso e ditadura: O Supremo Tribunal Federal nos julgamentos dos recursos ordinários criminais (1964-1970). Porto Alegre: UFRGS, 2014. Tese de doutorado em História. 101 MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru: EDUSC, 2005, p.65. 102 MATTOS, Marco Aurélio V. L. de. Em nome da segurança nacional: os processos da Justiça Militar contra a Ação Libertadora Nacional (ALN) 1969-1979. São Paulo: USP, 2002, p. 14 Dissertação de Mestrado em História. 97 54 Este aparato, que permitiu a Operação Limpeza, dizia respeito a medidas punitivas que visavam os apoiadores do regime anterior.103 Neste contexto, o Judiciário tinha uma posição paradoxal: ao mesmo tempo em que houve medidas de controle deste poder, tais como a suspensão de direitos de alguns de seus membros, ele preservava certa autonomia. Neste primeiro momento do regime, “o Judiciário exerceu um papel ativo no sistema político e interagiu complementar e contraditoriamente com as demais instituições – tanto as preservadas quanto aquelas criadas pela ditadura –, contribuindo decisivamente para a determinação da conjuntura política”.104 Tal característica do Judiciário, segundo o historiador Renato Lemos, (...) tem a ver com a sua identificação ao problema da legitimidade e pode ser explicado pela tentativa, feita pelas correntes que exerciam a direção política, de combinar a formalidade de certas estruturas democráticas com práticas e inovações institucionais consideradas necessárias à implantação de um novo modo de dominação, escorado no fortalecimento do Executivo.105 Inicialmente, os crimes políticos eram da alçada da Justiça comum, tendo como primeira instância a Justiça comum estadual e, como segunda, o Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto que cabiam à Justiça Militar crimes militares, cometidos por militares ou que diziam respeito à segurança externa do país, o que era previsto pela Constituição de 1946. Pesquisas recentes, porém, mostram que isto não era seguido à risca: devido a ambiguidades dentro da legislação, havia a possibilidade destes crimes serem da apreciação da Justiça Militar. 106 Como aponta a historiadora Ângela Moreira Domingues da Silva em sua tese de doutorado Ditadura e Justiça Militar no Brasil: a atuação do Superior Tribunal Militar (1964-1980), a justiça castrense passou a atuar em três frentes, como justiça da corporação – processando crimes militares –, como justiça 103 PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 117. “Operação Limpeza” é o nome dado a série de perseguições feitas logo após o Golpe com o intuito de retirar pessoas vinculadas ao governo deposto da administração pública. 104 LEMOS, Renato. “Poder Judiciário e poder militar (1964-69)”. In: CASTRO, Celso; IZEECKSOHN, Vitor & KRAAY, Hendrik (org). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV/Editora Bom Texto, 2004, p. 419. 105 Idem, p. 422-3. 106 Isto pode ser verificado nos seguintes trabalhos: ALVES, Taiara Souto. Dos quartéis aos tribunais: a atuação das Auditorias Militares de Porto Alegre e Santa Maria no julgamento de civis em processos políticos referentes às Leis de Segurança Nacional (1964-1978). Porto Alegre: UFRGS, 2009. Dissertação de Mestrado em História; SILVA, Angela Moreira Domingues da. Ditadura e Justiça Militar no Brasil: a atuação do Superior Tribunal Militar (1964-1980). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2011. Tese de Doutorado em História, Política e Bens Culturais. 55 do regime – julgando civis que foram alvo de IPM – e como justiça políticocorporativa.107 Esta última frente refere-se a casos em que os réus são militares que eram punidos em razão de suas posições políticas. Estas ambiguidades em relação aos locais de tramitação dos processos, unidas a outros fatores – como as eleições estaduais de 1965, nas quais os partidos vinculados ao Golpe obtiveram derrotas em estados como Minas Gerais e Guanabara – levaram a um novo Ato Institucional, o de número 2 (AI-2). Este almejava fortalecer novamente o Executivo e pode ser dividido em três tipos de medidas: “aquelas destinadas a controlar o Congresso Nacional, com o consequente fortalecimento do Executivo; as que visavam especialmente ao Judiciário e as que deveriam controlar a representação política”.108 Para as finalidades deste trabalho, debruçar-me-ei somente sobre as do segundo tipo. Para limitar o Judiciário, o AI-2 previa o aumento do número de ministros do STF e do Superior Tribunal Militar (STM), além de transferir para a Justiça Militar os crimes políticos, inclusive aqueles que já estivessem em tramitação na justiça comum.109 Segundo Maria Celina D’Araújo, este “era o começo de um aumento do raio de ação da Justiça Militar que só fará crescer com as constantes modificações nas leis de segurança nacional e nas constituições editadas nos anos de 1967 a 1969”.110 Estas medidas representavam o interesse de setores mais radicais dos militares, a chamada “linha dura”, que estavam descontentes com a possibilidade de recursos e habeas corpus que haviam sido concedidos pelo STF. Posteriormente, o governo lançaria mão de diversos instrumentos legais para reprimir a oposição, como a Constituição e a Lei de Segurança Nacional (LSN) em 1967 (Decreto-Lei 314/67), o Ato Institucional nº 5 (AI-5) de 1968 – que acabou com a possibilidade de habeas corpus para crimes contra a Segurança Nacional –, a Emenda Constitucional e a LSN de 1969 – que eram mais rigorosas que suas antecessoras. É digno de nota que, nos anos iniciais do regime, foi utilizada a Lei de Segurança Nacional de 1953, editada na democracia. Ainda foram decretados em 1969 o Código 107 Idem, p. 35. MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1986). Bauru: EDUSC, 2005, p. 111. 109 Neste momento a Justiça Militar organizava-se da seguinte forma: as primeiras instâncias da Justiça Militar eram as Auditorias, enquanto que a segunda era o Superior Tribunal Militar e a terceira o Supremo Tribunal Federal. Dentro da auditoria havia quatro juízes (três militares e um togado), um promotor e um advogado de ofício. 110 D’ARAUJO, Maria Celina. Justiça Militar, segurança nacional e tribunais de exceção. Trabalho apresentado no 30º Encontro Anual da ANPOCS- GT08 – Forças Armadas, Estado e sociedade. De 24 a 28 de outubro de 2006, Caxambu, MG. Captado em: http://cpdoc.fgv.br/projetos/cfa21/arqs/anpocs2006/103.pdf . Acesso em: 10 set. 2008. 108 56 Penal Militar (CPM), o Código de Processo Penal Militar (CPPM) e a Lei de Organização Judiciária Militar (LOJM), que previa os crimes cabíveis, regulava o andamento do processo e estruturava a Justiça Militar, respectivamente. 111 Deve-se notar que as transformações de estrutura e função pelas quais passou a Justiça Militar na ditatura estavam relacionadas a um projeto do governo. O projeto político do grupo que tomou o poder em 1964 tinha no seu centro a ideologia de Segurança Nacional, que era “um instrumento utilizado pelas classes dominantes, associadas ao capital estrangeiro, para justificar e legitimar a perpetuação por meios não-democráticos de um modelo altamente explorador de desenvolvimento dependente”. 112 Ele se inseria na chamada Doutrina de Segurança Nacional, elaborada por um grupo de militares, vindos da Escola Superior de Guerra (ESG).113 É interessante notar que a ideia de Segurança Nacional modifica-se, dependendo do contexto em que se encontra: no caso tratado, ela se inseria na óptica da Guerra Fria. 114 Porém, enquanto na Europa e nos EUA a Segurança Nacional era uma questão de tecnologia e de indústria militar, no Brasil ela se referia às Forças Armadas e a seu aparato repressivo. Como afirma Maria Celina D’Araújo, no Brasil “segurança nacional era uma questão de cadeias e prisões e não de tecnologia em escala”. 115 Como afirma Denise Dora, nesta concepção de Segurança Nacional buscava-se, através de diversos dispositivos, “eliminar o inimigo interno, e uma das formas encontradas para tal foi desclassificá-los como presos políticos e igualar a criminosos comuns, inclusive aplicando o mesmo tipo de tratamento violento”.116 No âmbito do aparato repressivo encontrava-se a Justiça Militar, estreitamente vinculada aos interesses do Estado. Isso merece reflexão, pois uma das funções do Direito é, como afirma a historiadora Wilma Maciel, “estabelecer limites para o poder 111 ALVES, Taiara Souto. Dos quartéis aos tribunais: a atuação das Auditorias Militares de Porto Alegre e Santa Maria no julgamento de civis em processos políticos referentes às Leis de Segurança Nacional (1964-1978). Porto Alegre: UFRGS, 2009, p. 45. Dissertação de Mestrado em História. 112 MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e oposição no Brasil (1964-1986). Bauru: EDUSC, 2005, p. 27. 113 A Escola Superior de Guerra foi criada em 1949, com a ajuda de militares estadunidenses e franceses e com o objetivo de formar um quadro de pessoal qualificado em questões referentes à segurança nacional. 114 D’ARAUJO, Maria Celina. Justiça Militar, segurança nacional e tribunais de exceção, pp. 6-12. Trabalho apresentado no 30º Encontro Anual da ANPOCS- GT08 – Forças Armadas, Estado e sociedade. De 24 a 28 de outubro de 2006, Caxambu, MG. Captado em: http://cpdoc.fgv.br/projetos/cfa21/arqs/anpocs2006/103.pdf. 115 Idem, p. 18. 116 DORA, Denise Dourado. Advocacia em tempos sombrios: De como um grupo de advogados enfrentou o regime militar de 1964. Rio de Janeiro: FGV/Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, 2011, p. 36. Dissertação de Mestrado em História, Política e Bens Culturais. 57 do Estado, criando distinção entre os três poderes”, fiscalizando a aplicação da lei, o que implica autonomia frente aos outros poderes.117 Esta autonomia foi profundamente afetada no caso da Justiça Militar, já que ela estava atrelada aos interesses do Executivo. Ao mesmo tempo, se comparada às ditaduras ocorridas na Argentina e no Chile, notamos que a Justiça Militar, no caso brasileiro, apresentava certa flexibilidade. Acredito, como sugere o cientista político Anthony Pereira, na “existência de um ‘espaço judicial’, ainda que bastante limitado, no interior do regime”, o que significa dizer que “os julgamentos em processos políticos não eram completamente caprichosos ou arbitrários”. 118 Segundo Spieler e Queiroz, ao criar uma legislação que permitia estes espaços, a ditadura sujeitou-se à “análise de seus atos à racionalidade jurídica, produto de uma cultura própria e razoavelmente hermética que muitas vezes impôs revezes imprevistos ao governo”.119 Este espaço de atuação, conforme Pereira, era extremamente dificultado por “uma espécie de consenso civil-militar quanto aos processos e às suas sentenças” que “colocava obstáculos formidáveis à atuação dos advogados de defesa nos tribunais brasileiros”.120 Da mesma forma, o livro Brasil: Nunca Mais afirma que a Justiça Militar brasileira acabou transgredindo a legislação criada pelo Executivo.121 Isto se devia ao fato de serem aceitos processos mal construídos, com lacunas documentais e, muitas vezes, baseando-se somente nas confissões obtidas através de violência. Além disso, a legislação brasileira era ampla e vaga, possibilitando o que Pereira denominou de “legalismo mágico”, isto é, havia uma profusão de leis que permitia que a qualquer momento um réu pudesse ser enquadrado em uma lei diferente.122 Os advogados, assim “tinham que lidar com todo este arsenal da legalidade de exceção na Justiça Militar, que 117 MACIEL, Wilma Antunes. O capitão Lamarca e a VPR: Repressão judicial no Brasil. São Paulo: Alameda, 2006, pp. 46-7. 118 PEREIRA, Anthony W. “O papel dos advogados de defesa ma Justiça Militar Brasileira, 1964-1979: redefinindo o crime político”. In: MARTINS FILHO, João Roberto (org). O golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: EduFSCar, 2006, p. 125. 119 SPIELER; QUEIROZ. Op. cit., p. 35. 120 PEREIRA, Anthony W. “O papel dos advogados de defesa ma Justiça Militar Brasileira, 1964-1979: redefinindo o crime político”. In: MARTINS FILHO, João Roberto (org). O golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: EduFSCar, 2006, p. 120. 121 ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 176- 84. 122 PEREIRA, Anthony W. “Sistemas judiciais e repressão política na Brasil, Chile e Argentina”. In: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida.(orgs.) Desarquivando a Ditadura – memória e justiça no Brasil. Volume I. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2008, p. 211. 58 sistematicamente desrespeitava a própria legislação e os direitos dos prisioneiros políticos”123. Comparada ao lugar ocupado pelo judiciário nas ditaduras dos países supracitados, a Justiça brasileira foi a mais lenta e a mais pública. Além disso, a ditadura brasileira utilizou-se de tribunais e leis já existentes, o que fazia com que mantivesse procedimentos que tinham sua base na democracia.124 Houve a preocupação dos golpistas em não substituir a ordem legal pré-existente, mesmo que só formalmente. Isto derivava de uma preocupação com a legitimidade política do regime.125 A Justiça militar, assim, cumpria um papel central nesta estratégia de legitimação “perante a opinião pública nacional e internacional”.126 Segundo Anthony Pereira, a ditadura brasileira utilizou-se tanto da repressão judicial porque podia fazer isso: aqui havia tribunais dispostos e confiáveis, o que não ocorreu na Argentina ou no Chile. “Quando os regimes recorrem à violência extrajudicial e a um ataque frontal à legalidade tradicional, isso em geral se deve ao fato de não terem conseguido manipular a lei e os tribunais em benefício próprio”.127 I.2. Os advogados de presos políticos durante a ditadura civil-militar brasileira Foi no contexto acima descrito que o advogado, um mediador entre seu cliente e os julgadores, atuou. Bourdieu afirma que ao ser judicializado um conflito é introduzida “uma distância neutralizante”, na qual há participação de terceiros que falam em nome dos conflitantes. 128 Pierre Bourdieu afirma que O campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflito directo entre partes directamente interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que TELES, Janaína de Almeida. “Em defesa da liberdade e da justiça: os advogados de perseguidos políticos de São Paulo nos anos 1970”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, vol. 102, maio/2013, p. 290. 124 PEREIRA, Anthony W. “Sistemas judiciais e repressão política na Brasil, Chile e Argentina”. In: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida.(orgs.) Desarquivando a Ditadura – memória e justiça no Brasil. Volume I. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2008, p. 204. 125 WANDERLEY, Erika Kubik da Costa. A institucionalização da repressão judicial na Ditadura civilmilitar brasileira. p. 6. Apresentação de trabalho no 5º Encontro da Associação Brasileira de Ciência política realizado em Belo Horizonte entre 27 a 29 de julho de 2006. Disponível em www.sinteseeventos.com.br/abcp/trabalho_ErikaWanderley.pdf 126 TELES, Janaína de Almeida. “Em defesa da liberdade e da justiça: os advogados de perseguidos políticos de São Paulo nos anos 1970”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, vol. 102, maio/2013, p. 292. 127 PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 284. 128 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p.227. 123 59 actuam por procuração e que têm de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer as leis escritas e não escritas do campo – mesmo quando se trata daquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei (em Kafka, o advogado é tão inquietante como o juiz). Na definição que frequentemente tem sido dada, de Aristóteles a Kojève, do jurista como “terceiro mediador”, o essencial está na ideia de mediação (e não de arbitragem) e no que ela implica, quer dizer a perda da relação de apropriação directa e imediata da sua própria causa: perante o pleiteante ergue-se um poder transcendente, irredutível à defrontação das visões do mundo privadas, que não é outra coisa senão a estrutura e o funcionamento do espaço socialmente instituído desta defrontação. 129 Os advogados, assim, constituem-se em terceiros que fazem a mediação entre o réu e um Estado neutro e imparcial, representado na figura do juiz. Ao entrar nesta disputa o indivíduo despossuído da competência jurídica vê-se em um meio no qual é estranho e inferior. O indivíduo deixa de estar entre iguais, passando a um meio de “doutos sábios” de uma lei inalcançável a ele, sendo mediado pelo defensor. No caso específico dos réus em casos políticos, essa estranheza apontada por Bourdieu é potencializada pelo clima inquisitorial e opressivo criado pela ditadura. Por esta razão, mais do que um mediador que traduzia as necessidades de seu cliente para o campo jurídico, o advogado funcionava como um elo entre o preso e o mundo, ampliando esta característica de mediação a outras esferas, como a afetiva e a política.130 Os advogados davam conforto e apoio aos familiares dos presos, por exemplo, dando esperança em um momento delicado. 131 Este apoio fortalecia as famílias e impulsionava-as à “ação constante, decidida e incansável das pessoas procurando por seus familiares e apelando para a compaixão das autoridades”. 132 Ao entrar em contato com os prisioneiros, os defensores ainda rompiam seu isolamento, dando “suporte aos presos e seus familiares nas suas diversas manifestações, protestos, 129 Idem, p.229. ALMEIDA, Maria Herminia Tavares de & WEIS, Luiz. “Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar”. In: SCHWARZ, Lilia Moritz (org). História da Vida Privada no Brasil. Vol. 4: Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 340. 131 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 89. Dissertação de Mestrado em História. 132 DORA, Denise Dourado. Advocacia em tempos sombrios: De como um grupo de advogados enfrentou o regime militar de 1964. Rio de Janeiro: FGV/Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, 2011, p. 76. Dissertação de Mestrado em História, Política e Bens Culturais. 130 60 greves de fome e denúncias de violações de direitos humanos”, fazendo, muitas vezes, a divulgação destas denúncias.133 Os advogados de presos políticos “serviram como interlocutores entre as autoridades do regime e seus opositores (a maioria jovens, às vezes armados), atuando como uma espécie de ‘oposição leal’ ao regime, quando esse papel estava extremamente cerceado aos representantes eleitos no Congresso Nacional”.134 Percebe-se o cunho político que acaba assumindo a atuação do advogado, já que a defesa de presos políticos era vista como uma forma de opor-se à ditadura. 135 Estes defensores formavam, como afirma Janaína Teles, “um conjunto ideológico relativamente heterogêneo”, indo desde liberais até comunistas. Logo após o golpe, criou-se uma rede de troca e ajuda, baseada no “respeito mútuo e troca de informações entre eles”, porém sem ser constituído um grupo organizado. 136 Para todos eles a atividade constituiu-se “como uma forma de enfrentamento ao regime militar de 1964-1985”: a defesa de presos políticos converteu-se em uma das formas de resistência à ditadura, pela qual um grupo pequeno de advogados optou.137 A entrada nesta área de atuação era diversa, dependendo do perfil de cada advogado. Havia também advogados consagrados, como Heleno Fragoso e Sobral Pinto, que foram atuar nesta área seguindo a tradição da advocacia liberal. 138 Outros eram jovens advogados de esquerda que, assim como Werner Becker e Omar Ferri, viram nesta atividade uma possibilidade de atuação profissional: conforme Janaína TELES, Janaína de Almeida. “Em defesa da liberdade e da justiça: os advogados de perseguidos políticos de São Paulo nos anos 1970”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, vol. 102, maio/2013, p. 292. 134 PEREIRA, Anthony W. “O papel dos advogados de defesa ma Justiça Militar Brasileira, 1964-1979: redefinindo o crime político”. In: MARTINS FILHO, João Roberto (org). O golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: EduFSCar, 2006, p 124. 135 ALMEIDA, Maria Herminia Tavares de & WEIS, Luiz. “Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar”. In: SCHWARZ, Lilia Moritz (org). História da Vida Privada no Brasil. Vol. 4: Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 341. 136 TELES, Janaína de Almeida. “Em defesa da liberdade e da justiça: os advogados de perseguidos políticos de São Paulo nos anos 1970”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, vol. 102, maio/2013, p. 292. 137 DORA, Denise Dourado. Advocacia em tempos sombrios: De como um grupo de advogados enfrentou o regime militar de 1964. Rio de Janeiro: FGV/Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, 2011, p. 16. Dissertação de Mestrado em História, Política e Bens Culturais. 138 Idem, p. 57. 133 61 Teles, este é o caso dos advogados paulistas. 139 Muitos dos presos buscavam estes advogados exatamente por sua vinculação política. 140 Denise Dora afirma que havia um incentivo por parte do Partido Comunista Brasileiro (PCB) a que seus militantes advogados se engajassem nesta atividade. Partindo do depoimento da advogada Flora Strozemberg, Dora aponta que o advogado Modesto da Silveira chegava a ter seus custos arcados pelo Partido, para desta forma poder dedicar-se exclusivamente à defesa de presos políticos das mais diferentes organizações.141 Pode-se dizer que os advogados comunistas viam na atividade profissional uma forte dimensão política: um exemplo disso foi a criação de um grupo de advogados do PCB durante a ditadura que buscava atuar politicamente através da atividade profissional. 142 É provável que o envolvimento destes advogados de diferentes matizes ideológicas na defesa de presos políticos esteja relacionado com as visões que eles tinham do sentido público e político da advocacia e do ideal de Estado. Advogados que vinham de uma tradição liberal, como é o caso de Sobral Pinto, provavelmente defendiam os presos políticos buscando liberalismo processual.143 Podemos afirmar que para eles, assim como alguns advogados de causas latino-americanos analisados por Stephen Meili, o Estado ideal é um Estado liberal, no qual todos têm direito a um julgamento justo.144 Já aqueles advogados identificados com as esquerdas se encaixam no segundo tipo apontado por Meili, no qual o Estado ideal, além de garantir um julgamento justo, envolveria também a justiça social.145 Na Justiça Militar o advogado acabava tendo diversos obstáculos no seu ofício. Um desses obstáculos era o fato de ter uma doutrina e prática que concediam aos juízes a possibilidade de julgar não se baseando em provas judiciais, e podendo utilizar-se de 139 TELES. Op. cit., p. 292. DORA. Op. cit, p. 44. 141 Idem, p. 57. 142 PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre. 143 Deve-se lembrar que Sobral Pinto, ao mesmo tempo que era ligado ao conservadorismo católico, havia se destacado como defensor de presos políticos desde a ditadura do Estado Novo. Sobre isto ver: DULLES, John W. F. Sobral Pinto – a consciência do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001; SOBRAL PINTO, Heráclito Fontoura. Por que defendo os comunistas. Belo Horizonte: Editora Comunicação, 1979. 144 MEILI, Stephen. “Latin American Cause-Lawyering Networks”. In: SARAT, Austin. & SCHEINGOLD, Stuart. (eds.) Cause Lawyering in the State in a Global Era. New York: Oxford University Press. Coll “Oxford socio-Legal Studies”, 2001, p. 322. 145 Idem, p. 323. 140 62 argumentação extrajudicial, tais como as ideias e valores dos réus. 146 Outro óbice para o trabalho da defesa era o fato do tribunal não se comportar de um modo triádico, com duas partes – defesa e acusação – e um juiz imparcial e neutro. O que acabava ocorrendo era que ele se comportava de forma diádica e inquisitorial, com os juízes e os promotores do mesmo lado. 147 Havia ainda a iminência de ataques por parte da repressão aos defensores. Muitas ameaças foram feitas aos advogados e às suas famílias, além de sequestros e prisões que tiveram como alvo figuras de destaque, como o decano dos defensores de crimes políticos, Heráclito Sobral Pinto, e o grande jurista Heleno Fragoso, entre outros. 148 Muitas vezes os órgãos de segurança buscavam intimidar e implicar politicamente os advogados “forjando uma identificação partidária com seus clientes”, baseada na relação de confiança e respeito que havia entre eles.149 Frente a isso, havia a preocupação de alguns advogados para que “não fossem identificados como advogados de uma dada organização, dando assim a impressão de serem financiados e vinculados a ela”.150 Neste contexto, os advogados procediam através de uma argumentação que visava “tirar lascas do consenso sobre a lei de segurança nacional, conquistando o reconhecimento de alguns direitos para seus clientes e deslocando os limites das interpretações legais nos tribunais”, para assim empurrar a “justiça militar para um maior liberalismo”.151 Ao mesmo tempo, eles não podiam nem proceder com muita agressividade nem com muita passividade, correndo o risco de alienar os juízes ou criar uma justificativa para uma pena mais rígida. 152 Por outro lado, segundo Paula Spieler e Rafael Queiróz, PEREIRA, Anthony W. “Sistemas judiciais e repressão política na Brasil, Chile e Argentina”. In: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida.(orgs.) Desarquivando a Ditadura – memória e justiça no Brasil. Volume I. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2008, p. 215. 147 Idem, p. 216. 148 MARTINS, Paulo Emílio; MUNTEAL, Oswaldo; SÁ, Fernando (orgs). Os advogados e a ditadura de 1964: A defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2010, pp.32-3, 51-2, 93-5. 149 TELES. Op. cit., p. 293. 150 GUAZZELLI. Op. cit, p. 89. Dissertação de Mestrado em História. Este fato também pode ser visto em SPIELER; QUEIROZ. Op. cit., p. 34. 151 PEREIRA, Anthony W. “O papel dos advogados de defesa ma Justiça Militar Brasileira, 1964-1979: redefinindo o crime político”. In: MARTINS FILHO, João Roberto (org). O golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: EduFSCar, 2006, p 120. 152 PEREIRA, Anthony W. “Sistemas judiciais e repressão política na Brasil, Chile e Argentina”. In: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida.(orgs.) Desarquivando a 146 63 muitos depoimentos de advogados de presos políticos apontam que, embora estivesse comprometida com a ditadura, a Justiça Militar constituiu um “espaço mais digno para o exercício da advocacia do que a Justiça Comum”. 153 Segundo alguns advogados que concederam entrevistas para o livro Advocacia em tempos difíceis, lá o advogado era melhor recebido e respeitado do que na Justiça Comum, quando os crimes políticos tramitavam por ela. Este fato seria exemplificado pelas vitórias dos defensores na Justiça castrense, as quais “eram muitas vezes mais fáceis de conseguir na Justiça Militar do que na Justiça Comum”. 154 Ao mesmo tempo, na corte militar os advogados tinham de proceder com muita habilidade, construindo um direito alternativo (segundo o advogado Alcyone Barretto) ou a advocacia-arte (conforme Mario Simas), uma vez que “os advogados e advogadas tiveram êxito ao utilizar estratégias não previstas em lei para evitar diversas mortes”. 155 A advogada Ana Eni Machado Milan afirma que Eloar Guazzelli definia-se como um “diletante do direito”, já que uma vez que tirava satisfação daquilo que fazia, “ia além do que era possível tecnicamente”, lançando mão de diferentes instrumentos, como a familiaridade com a auditoria, por exemplo.156 Deve-se lembrar que os procedimentos realizados pelos advogados de presos políticos não são privilégio desta área, sendo comuns ao trabalho do advogado. Até a edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), em dezembro de 1968, os advogados utilizavam o habeas corpus, que permitia a libertação dos presos. O habeas corpus consistia “em instrumento de garantia, não só do direito de ir-e-vir, mas da própria vida”, evitando interrogatórios sob tortura e conseguindo a liberdade dos presos políticos. 157 Depois de decretado o AI-5, os advogados tiveram de proceder com grande criatividade desde os primeiros momentos em que iniciavam os casos. Durante o período de incomunicabilidade dos presos, os defensores apresentavam petições simples, com o intuito de localizá-los: estes instrumentos, denominados informalmente como “habeas corpus de localização”, “obrigavam o juiz Ditadura – memória e justiça no Brasil. Volume I. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2008, p. 216. 153 SPIELER; QUEIROZ. Op. cit., p. 37. 154 Idem, ibidem. 155 Idem, p. 46. 156 GUAZZELLI. Op. cit., p. 95. 157 LEMOS, Renato. “Por inspiração de Dona Tiburtina: o general Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar”. In: Locus – Revista de História, Juiz de Fora, Departamento de História/ Núcleo de História Regional/Arquivo Histórico/EDUFJF, v. 9, nº 1, 2003, p. 119. 64 auditor a consultar o promotor de justiça encarregado do IPM e requisitar informações às autoridades sobre onde estaria preso determinado dissidente político”.158 Este procedimento foi muito importante, uma vez que ao impetrá-lo havia a demonstração de que aquele preso tinha advogado constituído e que este estava ciente que seu cliente estava desaparecido, evitando ou reduzindo, desta forma, a possibilidade de execução extrajudicial.159 “A localização dificultava o assassinato do preso, pois a autoridade competente, que já era identificada, teria que dar explicações sobre a morte. O habeas corpus foi, assim, fundamental em vários casos para salvar vidas”. 160 O habeas corpus, sob esta camuflagem, tinha como objetivo, também, identificar a motivação da prisão, se era política ou não, ao mesmo tempo em que pressionava o Superior Tribunal Militar (STM) a ter uma postura mais enérgica.161 Partindo da ideia contida no AI-1 de que “a revolução” era a fonte do poder, alguns advogados, libertar seus clientes, “impetravam” o habeas corpus diretamente com os generais comandantes do Exército.162 O fato deste ato ter sucesso mostra o surrealismo da situação jurídica vivida na ditadura, uma vez que não caberia ao Exército avaliar um pedido de habeas corpus. Este procedimento também permitia a divulgação internacional das prisões, possibilitando que os advogados as noticiassem para a imprensa internacional.163 Assim, os advogados conseguiram, além de evitar mortes e desaparecimentos, limitar o tempo de incomunicabilidade. Ao analisar as memórias de alguns advogados de presos políticos, nota-se que eles frisam que as argumentações da defesa em geral não eram políticas, e sim técnicas, muitas vezes sendo feitas somente “intervenções discretas e sempre no proveito imediato do cliente”.164 Pereira aponta para dois tipos de defesa nestes casos: a jurídica – que se baseava em elementos mais técnicos – e a mista – que inseria alguns elementos 158 TELES. Op. cit., p. 296. Por não serem motivadas por um mandato judicial, as prisões referentes aos crimes políticos eram realizadas como um sequestro, de forma totalmente fora da legalidade. 160 SPIELER; QUEIROZ. Op. cit., p. 42. 161 Idem, p. 43. 162 Os advogados Omar Ferri, Werner Becker, Mário Simas Passos e Idibal Pivetta alegam utilizado esta estratégia. FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre; BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 25 de setembro de 2012, em Porto Alegre; CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, pp. 63 e 75-6; SPIELER; QUEIROZ. Op. cit., p. 44-5. 163 SPIELER; QUEIROZ. Op. cit., p. 44. 164 BARANDIER, Antonio Carlos. Relatos – um advogado na ditadura. Rio de Janeiro: J. Di Giorgio, 1994, p. 19. 159 65 políticos. Apesar de procurar adequar suas estratégias ao tribunal em questão, na maioria dos casos optava-se pelo primeiro tipo. Esta linha de defesa derivava de duas questões: por um lado, uma defesa baseada na crítica da legitimidade do regime não traria bons resultados para seus clientes, e por outro, como afirma o advogado Marcello Alencar, havia uma percepção de que “os militares eram sensíveis à hierarquia das leis”.165 Uma vez que muitas das denúncias eram mal formuladas, havia um espaço para a crítica da defesa. Desta forma, muitas vezes os advogados focavam em questões processuais, como a “frequente violação dos prazos processuais, que tinha por efeito manter o acusado detido por tempo superior ao estabelecido nos mais duros códigos em vigor”. 166 Dentro desta linha de defesa os advogados ainda pediam a anulação do processo por “vício de procedimentos”, procurando “mostrar que as prisões haviam sido ilegais (...), que não haviam sido respeitados princípios do código de processo penal militar, prazos, etc.”, o que, eventualmente era acolhido pelos auditores.167 Outra argumentação recorrente era a anulação das confissões, já que eram obtidas através da tortura, sendo utilizado este espaço para denunciar as violências cometidas pelo regime.168 Em relação às provas os defensores apontavam para a ausência de evidências concretas que acusassem os réus. 169 Os advogados também se valiam de estratégias extrajurídicas. Um recurso era utilizar-se das contradições existentes dentro do sistema, que, por um lado, queria reprimir em nome da segurança nacional, e, por outro, tinha a preocupação de manter as aparências de legalidade. Assim, muitas vezes os advogados usavam a favor de seus clientes os atritos existentes entre a Justiça Militar e o aparato repressivo.170 Outro procedimento extrajurídico era buscar uma identificação com o juiz togado, que era civil e concursado, visto que muitas vezes os juízes militares acabavam seguindo a sua decisão. 171 165 MARTINS; MUNTEAL; SÁ. Op. cit., p. 115. LEMOS, Renato. “Introdução – o General Juiz Peri Constant Bevilaqua”. In: LEMOS, Renato (org). Justiça Fardada: o General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004, p. 29. 167 DORA. Op. cit., p. 74. 168 Para um exemplo ver: GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, pp. 104-7. Dissertação de Mestrado em História. 169 Idem, p. 75. 170 MARTINS; MUNTEAL; SÁ. Op. cit., pp. 78-81. 171 Idem, p. 54. 166 66 Os advogados também faziam uso de argumentos ligados ao imaginário anticomunista: eles tentavam desvincular o acusado, não de ideias comunistas, “mas principalmente das representações comuns que povoavam o imaginário anticomunista no Brasil desde princípios do século XX”. O defensor procurava “retratar o comunismo e os comunistas conforme o que se esperava ser a imagem que os Juízes faziam dessas idéias”.172 Assim, a defesa buscava mostrar no cliente características que pensava serem tidas como corretas pelos juízes, lançando mão de um discurso moralmente conservador como estratégia de defesa. Os advogados procuravam mostrar seus clientes como bons filhos e filhas, bons estudantes, ou até como patriotas com uma percepção equivocada da situação política.173 Além disso, procuravam mostrar o “potencial de reabilitação do acusado, desde vicissitudes relativas ao seu nível cultural e à sua personalidade, mas, sobretudo, à sua conduta, tendo em vista que os juízes consideravam relevantes estes aspectos nas suas decisões”.174 Eles também se utilizavam das imagens que os juízes e os tribunais tinham de si mesmos e do país. 175 Ao mesmo tempo, os advogados lançaram mão de estratégias fora das cortes, como publicizar seus casos e sua atividade profissional, o que, além de funcionar como uma forma de proteção tanto para os defensores quanto para os defendidos, divulgavaos como militantes da resistência democrática.176 Também funcionava como estratégia disseminar informações sobre a ditadura fora do Brasil, tanto através da comunidade jurídica internacional quanto através de entidades de exilados.177 Para isto lançavam mão de uma rede de contatos do qual participavam os familiares dos presos, organizações de defesa dos direitos humanos, entidades religiosas e a própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Esta rede, como veremos, foi crescendo ao longo da década de 1970. 178 TORRES, Mateus Gamba. “A Justiça nem ao Diabo se há de negar”: A repressão aos membros do Partido Comunista Brasileiro na Operação Barriga Verde (1975-1978). Florianópolis: UDESC, 2009, p. 148. Dissertação de Mestrado em História. 173 Exemplos disso podem ser vistos em DORA. Op. cit, pp. 66-67 e GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, pp. 99 e 102-3.. Dissertação de Mestrado em História. 174 TELES. Op. cit., p. 299. 175 PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 219. 176 DORA. Op. cit., p. 59. 177 Idem, pp. 52 e 78 178 Idem, pp. 84-85. 172 67 Partindo destes expedientes, os advogados “foram capazes de alterar os limites da interpretação jurídica com o passar do tempo, fazendo voltar atrás algumas das interpretações mais repressivas das leis de segurança nacional”. 179 Não houve na Argentina e no Chile a jurisprudência que houve no Brasil, na qual os advogados eram, em geral, bem-sucedidos. Os advogados conseguiram, segundo a avaliação de Anthony Pereira, resultados concretos no sentido de ter poupado os presos de um tratamento que poderia ter sido pior. Além disso, criaram precedentes que permitiram aos advogados e aos que os apoiavam condenar de forma precisa e minuciosa a legalidade do regime autoritário. Eles, no entanto, não contribuíram muito para a revisão do sistema judicial na transição para a democracia. 180 Por outro lado, a “flexibilidade” por parte da Justiça Militar possibilitou a sua própria manutenção. Como afirma Pereira, as próprias características do sistema de justiça militar que o tornavam flexível e sujeito à mudança de interpretação – oferecendo, assim, algum alívio aos prisioneiros políticos –, eram benéficas ao regime. Elas lhe permitiam coletar informações sobre opiniões existentes na sociedade, facilitavam a cooperação do sistema legal e abriam espaço para que o regime adaptasse suas leis de forma gradual [...]. Embora flexíveis e maleáveis nas margens, as instituições da ordem legal brasileira eram também “rígidas” em relação a suas características essenciais. 181 Tendo em mente estas características de flexibilidade nas bordas e de rigidez no “núcleo”, pode-se esclarecer um pouco mais a transição brasileira. Ainda de acordo com o mesmo pesquisador, Dos três casos [Chile, Argentina e Brasil, o último] (…) foi o que o que menos viveu justiça de transição após a transição democrática, em parte porque a legalidade autoritária – gradualista e conservadora – de seu regime militar envolveu a participação de boa parte do establishment jurídico e continuou a ser legitimada sob a democracia.182 PEREIRA, Anthony W. “Sistemas judiciais e repressão política na Brasil, Chile e Argentina”. In: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida.(orgs.) Desarquivando a Ditadura – memória e justiça no Brasil. Volume I. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2008, p. 217. 180 PEREIRA, Anthony W.. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 232. 181 PEREIRA, Anthony W. “O papel dos advogados de defesa ma Justiça Militar Brasileira, 1964-1979: redefinindo o crime político”. In: MARTINS FILHO, João Roberto (org). O golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: EduFSCar, 2006, p. 126-7. 182 PEREIRA, Anthony W. “Sistemas judiciais e repressão política na Brasil, Chile e Argentina”. In: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida.(orgs.) Desarquivando a Ditadura – memória e justiça no Brasil. Volume I. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2008, p. 219. 179 68 Vemos, assim, a característica paradoxal da Justiça Militar e dos advogados que nela atuavam, os quais ao mesmo tempo em que buscavam mais flexibilidade e faziam oposição ao regime, de certa forma, contribuíam para sua manutenção. Devido às conquistas proporcionadas pelos advogados aos presos políticos, esta atuação passou a ser vista de forma positiva pelos opositores da ditadura, o que possibilitou grande reconhecimento dos advogados no final do regime. A atuação destes advogados marcou suas trajetórias e teve “conseqüências na vida das pessoas que foram defendidas por eles nos processos judiciais”, o que acabou “também refletindo na história política e jurídica recente da sociedade brasileira.183 Porém, isto só foi possível devido a uma trajetória que cada defensor realizou entre o direito e a política, tendo desempenhado papel importante a emergência da causa dos direitos humanos por parte das esquerdas. Neste sentido é interessante trazer as reflexões sobre a atuação dos advogados e magistrados franceses durante o regime de Vichy, analisado por Liora Israël no artigo “Resistir pelo direito? Advogados e magistrados na Resistência francesa (1940-1944)”. 184 A autora parte de três figuras de resistências relativas ao direito: resistir apesar do direito, resistir à sombra do direito e resistir em nome do direito. No primeiro caso, aqueles profissionais do direito que se envolviam com a resistência o faziam fora da esfera legal, demonstrando uma ruptura com o legalismo.185 Como afirma a autora, estas “formas iniciais de resistência entre os magistrados e os advogados não se caracterizavam pela fundamentação no direito ou por práticas profissionais específicas”.186 Já no segundo caso – resistir à sombra do direito – a atuação se dava dentro das práticas profissionais dos advogados e magistrados. Segundo a autora, este tipo de resistência “induzia a um distanciamento complexo em relação à legalidade”, o que possibilitava atingir objetivos que o regime considerava como ilegais. 187 Esta modalidade de resistência demonstra a plasticidade do direito e de seus usos, inclusive em uma perspectiva de oposição ilegal ao poder instituído, a quem se atribui o papel de garantir esse mesmo direito. Resistir à sombra do direito, “encoberto” pelo respeito da forma jurídica e da instituição judicial, constituiu 183 DORA. Op. cit., pp. 17. ISRÄËL, Liora. “Resistir pelo direito? Advogados e magistrados na Resistência francesa (19401944)”. In: Prisma Jurídico, São Paulo, Uninove, v. 10, n. 1, jan./jun. 2011, pp. 61-92. 185 Idem, p. 68. 186 Idem, p. 70. 187 Idem, p. 72. 184 69 assim uma forma paradoxal de uso da forma jurídica como meio e não como fim.188 Através de um distanciamento instrumental do direito, os advogados e magistrados franceses utilizavam das possibilidades e espaços existentes dentro do aparato legal do regime de Vichy para lhe fazer resistência. Assim, as atividades dos profissionais poderiam converter-se em atos de resistência.189 Finalmente, a terceira forma de resistência relacionada ao direito – resistir em nome do direito – “consistiu na construção de uma legitimação jurídica da resistência, tanto no nível de suas instituições quanto no dos princípios legitimadores da política”. 190 Um fator que levou a esta modalidade de resistência foram disposições e decisões do governo de Vichy que ia de encontro a valores do ofício do advogado, como o direito de visita e sigilo da defesa. Isto levou a uma tomada de posição pública de enfrentamento ao regime por parte de grupos de advogados na defesa de seus direitos. Conforme aponta Israël, “tratava-se assim de fundar, nos termos do direito e da profissão, a legitimidade das formas de oposição ao regime”. 191 Outra forma, em geral mais acadêmica, que a resistência em nome do direito tomou foi a uma justificação jurídica da Resistência. Isto demonstra que estas atuações permitiram aos profissionais do direito “servir-se do mundo do direito de maneira subversiva”, mesmo que o ofício limite a ação a “uma estrutura de oportunidade localizada nas instituições detentoras do poder”.192 Para Israël a resistência judicial permite mostrar que os usos do direito deveriam ser compreendidos no cruzamento das situações de ação, das posições do atores e de seus objetivos – inclusive políticos. Essa formalização igualmente revelou capacidades de subversão interna da instituição judicial que foram por muito tempo ocultadas tanto na sociologia quanto nas representações comuns dessa instituição.193 A análise do caso dos advogados e magistrados franceses que fizeram resistência ao regime de Vichy é relevante a esta pesquisa uma vez que mostra diversos paralelos com as atuações de advogados durante a ditadura civil-militar brasileira, em especial com as trajetórias de Guazzelli, Becker e Ferri. 188 Idem, p. 72-3. Idem, p. 74. 190 Idem, p. 79. 191 Idem, p. 80. 192 Idem, p. 85. 193 Idem, ibidem. 189 70 Logo após a instauração da ditadura civil-militar com o golpe 1964, os advogados brasileiros que se opunham ao regime foram criando diferentes formas de resistência e enfrentamento que podem ser encaixadas no modelo proposto por Liora Israël. Alguns advogados romperam com o legalismo e lançam mão de estratégias que saem da esfera do direito, resistindo apesar do direito. Um exemplo foi atuação do advogado gaúcho Carlos Araújo, que, em sua entrevista ao projeto Marcas da Memória, apresenta diferentes formas deste tipo de resistência, tanto através do trabalho com sindicatos quanto no engajamento na luta armada.194 Já outros advogados, de uma forma ou de outra, acabaram atuando na defesa de presos políticos e, desta forma, resistindo à sombra do direito. Frente às violações cometidas pela ditadura, instituições como a OAB e o MDB levantaram-se e construíram uma resistência em nome do direito. Por terem optado por uma luta dentro dos limites institucionais, Ferri, Becker e Guazzelli acabaram inserindo-se nestes dois últimos modelos de resistência. I.3. Eloar Guazzelli, Werner Becker e Omar Ferri e o mundo do direito no Rio Grande do Sul Os advogados em foco aqui desenvolveram uma trajetória entre o direito e a política. Nestes meios eles interagiam com outros agentes com os quais concorriam ou cooperavam. Para minha análise, parto das reflexões feitas por Pierre Bourdieu a respeito do campo jurídico. Mesmo que, como afirma Fabiano Engelmann, “a transposição desse instrumental de análise para o caso brasileiro” seja complexa, uma vez que sua teorização tenha como base o caso francês, alguns conceitos realizados pelo autor me auxiliam a pensar nas interações de Guazzelli, Ferri e Becker no mundo do direito.195 O campo jurídico é definido por Bourdieu como “o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito” por aqueles agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de 194 ARAUJO, Carlos Franklin da Paixão. Entrevista concedida a Francisco Carvalho Junior e Dante Guimaraens Guazzelli para o Projeto Marcas da Memória: História Oral no Brasil em Porto Alegre no dia 11 de abril de 2011. 195 ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 18. 71 maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa [droite], do mundo social.196 Assim, o campo caracteriza-se tanto por uma divisão entre “profissionais” e “profanos” – ou seja, aqueles que não são investidos por esta competência – quanto por uma concorrência entre estes “profissionais” pelo monopólio de dizer o Direito. Desta forma, este campo pode ser “genericamente definido como o universo de interação dos bacharéis em Direito”, o que “implica num espaço socialmente instituído por ritos, símbolos, códigos, hierarquias e garantias legais legitimadas pelo Estado”.197 De acordo com Bourdieu, os discursos e práticas exercidos pelos agentes do Direito são definidos por uma lógica determinada por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna dos obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas. 198 O antagonismo entre os participantes do campo que possuem visões e interesses diferentes a respeito das interpretações “não exclui a complementariedade das funções e serve, de facto, de base a uma forma subtil de divisão do trabalho de dominação simbólica na qual os adversários, objetivamente cúmplices, se servem uns aos outros”.199 O cânone jurídico é de onde emana a autoridade deste meio, o que faz do campo um meio de interpretação. Esta interpretação faz com que o trabalho do juiz, mais do que uma execução fria da lei, crie novos significados para ela, criando algo novo a partir do cânone.200 Esta invenção que é a decisão do magistrado, ainda segundo Bourdieu, é fruto de uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das “regras possíveis”, e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa; o efeito jurídico da regra, quer dizer, a sua significação real, determina-se na relação de força específica entre os profissionais, podendo-se pensar que essa relação tende a corresponder (tudo o mais sendo igual do ponto de vista do valor na 196 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 212. ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 17. 198 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 211. 199 Idem, p. 219 200 Idem, p. 222-223. 197 72 equidade pura das causas em questão) à relação de força entre os que estão sujeitos à jurisdição respectiva.201 Não há, assim, uma decisão solitária de um juiz que vai em busca de uma leitura fria da lei, e sim um debate entre duas interpretações. Desta forma, pode-se ver que a flexibilização da legislação repressora vista na ditadura que teve participação ativa dos advogados é algo que faz parte do conjunto de práticas e normas do campo jurídico. Poder-se-ia supor que as decisões nos casos políticos mencionadas acima seriam frutos de um embate desigual entre advogados e representantes do Ministério Público Militar. Deve-se lembrar que, antes do golpe, a Justiça Militar era um espaço de pouca visibilidade, o que permite dizer que não era um local procurado por aqueles que buscavam reconhecimento no campo jurídico, enquanto que entre os advogados estavam criminalistas de certo reconhecimento. Uma questão importante para esta pesquisa no que se refere ao campo jurídico é a concorrência entre os agentes participantes, já que, segundo Bourdieu, a “prática jurídica define-se na relação entre o campo jurídico, princípio da oferta jurídica que se gera na concorrência entre os profissionais, e a procura dos profanos que são sempre em parte determinados pelo efeito da oferta”. 202 Existe, assim, uma disputa entre estes agentes – no caso aqui analisado, advogados –, pelos clientes e para isto eles se valerão de diferentes mecanismos e práticas. Analisando as trajetórias dos indivíduos aqui abordados podemos notar algumas estratégias para construir uma “reputação” de advogado: a defesa em casos de grande comoção na sociedade gaúcha que atrairiam as atenções da imprensa para a atuação dos advogados (como fizeram Guazzelli e Ferri), a militância em entidades da classe (o que é o caso de Guazzelli) e o acionamento de relações pessoais (o que seria o caso dos três). Ainda podemos ver a utilização de uma área “nova” e com pouca oferta de defensores, a defesa de civis na Justiça Militar, como forma de adquirir notoriedade, tanto no campo jurídico quanto no campo político, o que também ocorria no caso argentino analisado por Vecchioli.203 A proximidade entre atividade profissional e militância política vista no caso dos advogados de presos políticos é algo comum na história da advocacia brasileira, fazendo 201 Idem, pp.224-225. Idem, p.240. 203 VECCHIOLI, Virginia. “A luta pelo direito”: Engajamento militante e profissionalização dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 2006, p. 66. Tese de doutorado em Antropologia Social. 202 73 parte do padrão de advocacia encontrada no país.204 Como afirma Mattos, desde o Império os bacharéis em Direito estavam “eternamente divididos – isto é válido, ao menos, para a sua elite – entre as lides jurídicas e os negócios do Estado, entre os escritórios de advocacia e os gabinetes de governo”.205 No caso sul-rio-grandense, o historiador Luiz Alberto Grijó, em sua tese de doutorado Ensino Jurídico e Política Partidária no Brasil: a Faculdade de Direito de Porto Alegre (1900-1937), aponta que, a partir da segunda metade do século XIX, a elite começou “a valorizar os recursos propriamente culturais na luta política e a educação formal de seus líderes passa a ser muito mais valorizada que antes, mesmo que certos valores associados ao passado belicoso ainda se mantivessem em voga”, passando o diploma, em especial em direito, a ser um valor importante a ser cultivado.206 Neste momento, a oratória converte-se em grande trunfo que permite criar possibilidades de entrada no mundo político, tendo papel importante neste sentido os “duelos oratórios”.207 Analisando o campo jurídico brasileiro em seu livro Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito, o cientista político Fabiano Engelmann afirma que no Brasil não ocorre uma separação entre um polo de “práticos” e outro de “acadêmicos”, como ocorre no caso europeu: Na dinâmica brasileira, as disputas em torno da definição do direito legítimo de ser “aplicado” e as problemáticas consideradas “juridicamente legítimas” são definidas tradicionalmente no espaço do “mundo prático” da advocacia e das carreiras de Estado. 208 No Brasil, as disputas pelo “dizer o Direito” dão-se no espaço entre magistrados, promotores e advogados, uma vez que, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos e na Europa, não há uma autonomização profissional das faculdades de Direito em relação ao mundo dos “práticos”. Ao mesmo tempo há, no caso brasileiro, de acordo com Engelmann, “uma forte associação entre a origem social, o capital de relações sociais detido, a posse de título de 204 ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 149. 205 MATTOS, Marco Aurélio V. L. de. Os cruzados da ordem jurídica: a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 1945-1964. São Paulo: Alameda, 2013, p. 16. 206 GRIJÓ, Luiz Alberto. Ensino Jurídico e Política Partidária no Brasil: a Faculdade de Direito de Porto Alegre (1900-1937). Niterói: UFF, 2005, p. 111. Tese de doutorado em História. 207 Idem, p. 216. 208 ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 27. 74 bacharel e as chances de ascensão no mundo jurídico”.209 Analisando o caso dos advogados em foco, percebe-se que tanto Becker quanto Guazzelli vinham de setores abastados da sociedade gaúcha: o primeiro era sobrinho-neto de Dom João Becker, arcebispo de Porto Alegre, enquanto que o segundo era vindo de uma família de proprietários rurais de Vacaria.210 Já Omar Ferri vinha de uma família de descendentes de italianos de classe média: seu pai tinha sido escrivão em Ilópolis, então distrito de Encantado, no interior do Rio Grande do Sul.211 Nos três casos, como veremos a seguir, os advogados articularam redes de relações com o intuito de serem bem-sucedidos na advocacia gaúcha. Analisando o campo jurídico gaúcho, Engelmann aponta que havia uma polarização entre os juristas durante a década de 1990: de um lado havia bacharéis vinculados a “grandes famílias de juristas e políticos” que detinham “amplo capital social e posicionam-se nas carreiras jurídicas e na gestão das faculdades de Direito mais tradicionais”, enquanto que de outro havia um grupo, mais diversificado socialmente, que propunha uma visão alternativa de direito. 212 O primeiro grupo, o polo “tradicional”, estaria intrinsecamente relacionado “às reconversões de grupos familiares que persistem ocupando posições de destaque no campo jurídico e político ao longo de várias décadas”213, representa um pensamento conservador do direito e vincula-se ao direito público e às carreiras jurídicas. Já o segundo grupo propõe uma visão “alternativa” do direito, visto como instrumento para transformação social, e atua em áreas como a defesa de movimentos sociais, sindicatos e “direitos humanos”. 214 Este polo parte de uma perspectiva “crítica” da tradição jurídica – o que levaria a “novos” usos do direito e um engajamento do 209 Idem, p. 28 CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor – O seqüestro dos uruguaios: uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 208. Neste sentido, Werner era também sobrinho de Walter Becker, advogado muito atuante na política classista, havendo sido presidente do IARGS e conselheiro da OAB/RS. No caso de Eloar, ele era sobrinho de Samuel Guazzelli, líder da UDN em Vacaria, e primo de Sinval Guazzelli, que foi governador do Rio Grande do Sul eleito indiretamente de 1974 a 1978. Verbete Sinval Guazzelli. In: ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, pós 1930. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2010. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx 211 “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 2. Disponível em http://www.tjrs.jus.br/site/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_ gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v4n8/index.html 212 ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 12 213 Idem, p. 51 214 Idem, p. 119. 210 75 advogado em causas de movimentos sociais –, que é influenciada pela defesa dos presos políticos durante a ditadura. 215 Apesar desta nova postura em relação ao Direito relacionar-se com tendências internacionais do Direito vinculado a causas coletivas, no caso destes juristas “críticos” há uma concepção de advocacia na qual há o amálgama entre o discurso militante e o conhecimento técnico, que é influenciada pelo modelo construído pelos advogados de presos políticos ao longo da ditadura.216 Mesmo não sendo novidade uma estreita relação entre direito e política – o que é percebido também no caso do polo “tradicional” – há uma mudança, sendo transformado o espaço judicial em um lugar de “luta pelo reconhecimento de direitos”.217 A trajetória de militância destes advogados é combinada à expertise jurídica para ascender ao espaço jurídico; o “militantismo”, assim, constitui um compensador “da ausência de capital familiar”.218 Os estudos de Engelmann permitem-me pensar na forma como Guazzelli, Becker e Ferri colocavam-se no campo jurídico gaúcho. Partindo da ideia de dois polos opostos, a trajetória dos advogados em foco aqui permitiria mapear o continente que existe entre estas extremidades, uma vez que eles dialogaram com os dois grupos. Por um lado, em seus percursos, Guazzelli, Becker e Ferri aproximaram-se do grupo “tradicional”, que era hegemônico. Um exemplo disso é o fato de Eloar ter sido eleito presidente do IARGS, entidade que, além de ser como “um grande panteão dos advogados sul-riograndenses”, era local de grande participação dos “juristas conservadores”.219 Por outro, a defesa de presos políticos inspirou “jovens advogados” do final da década de 1970 e início de 1980, levando a uma compreensão “crítica” do Direito. Existe, assim, a relação direta entre esta defesa e a emergência da causa dos direitos humanos, em especial em juridicializar esta questão. ENGELMANN, Fabiano. “Internacionalização e ativismo judicial: as causas coletivas”. In: Lua Nova, São Paulo, CEDEC, número 69, 2006, p. 124. Esta influência fica clara na introdução da dissertação de mestrado da advogada Denise Dora, que é, segundo Fabiano Engelmann, uma das expoentes deste polo. Ver DORA. Op. cit., p. 9; ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 157. 216 ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006., p. 150. 217 Idem, p. 150. 218 ENGELMANN, Fabiano. “Internacionalização e ativismo judicial: as causas coletivas”. In: Lua Nova, São Paulo, CEDEC, número 69, 2006, p. 132; ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 151. 219 ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 60 215 76 I.4. Os advogados, a OAB e os direitos humanos Penso que houve, neste período, um processo, realizado por parte dos “profissionais do direito”, de construção da causa dos direitos humanos como algo da esfera do Direito. Bourdieu afirma que “nada é menos natural do que a ‘necessidade jurídica’”, isto é, o sentimento de injustiça que leva alguém a buscar “seus direitos” é construído por agentes do direito.220 Quer isto dizer que a passagem do agravo despercebido ao agravo percebido e nomeado, e sobretudo imputado, supõe um trabalho de construção da realidade social que incumbe, em grande parte, aos profissionais: a descoberta da injustiça como tal assenta no sentimento de ter direitos (entitlement) e o poder específico dos profissionais consiste na capacidade de revelar os direitos e, simultaneamente, as injustiças ou, pelo contrário, de condenar o sentimento de injustiça firmado apenas no sentido da equidade e, deste modo, de dissuadir da defesa judicial dos direitos subjetivos, em resumo, de manipular as aspirações jurídicas, de as criar em certos casos, de as aumentar ou de as deduzir em outros casos.221 Mais do que construir uma imagem como “defensores dos direitos humanos”, os advogados aqui abordados, motivados por interesses políticos e éticos, ajudaram a criar o conceito de “direitos humanos” como algo a ser exigido do Estado juridicamente. Pode-se, assim, dizer que os advogados constituíram “os interesses pré-jurídicos dos agentes em causas judiciais” e transformaram “em capital a competência que garante o domínio dos meios e recursos jurídicos exigidos pela lógica do campo”.222 Ironicamente, essa judicialização foi facilitada também pelo contexto da ditadura civilmilitar brasileira, que, como vimos, utilizou-se bastante da esfera judicial e do campo jurídico. A emergência da “causa dos direitos humanos” está vinculada, ao mesmo tempo, ao encolhimento do campo estatal para as elites civis contrárias ao regime. Este grupo de advogados articulado com grupos religiosos e políticos fortaleceu fora do espaço estatal esta causa coletiva durante a ditadura civil-militar, a qual “prossegue após a transição sendo redefinida de diversas maneiras. ” 223 Frente ao surgimento da defesa dos direitos humanos como uma causa no Rio Grande do Sul, Engelmann afirma que, em um primeiro momento, este movimento era 220 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 231. Idem, p. 232. 222 Idem, p. 233. 223 ENGELMANN, Fabiano; MADEIRA, Lígia Mori. “A causa e as políticas de direitos humanos no Brasil. In: Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 75, Set./Dez. 2015, p. 625. 221 77 mais “político do que jurídico”. Ele se refere, principalmente, a mobilização em torno do “caso do sequestro dos uruguaios”.224 Apesar disso, vemos uma dimensão jurídica neste evento, uma vez que houve um processo de investigação com forte atuação dos advogados Omar Ferri e Werner Becker, além da participação ativa da seccional gaúcha da OAB, que organizou uma Comissão para acompanhar o caso. Posteriormente, esta seria uma das primeiras seções da entidade a criar uma Comissão de Direitos Humanos, batizada com o nome do patrono dos defensores de presos políticos, Sobral Pinto.225 Os advogados de presos políticos se relacionam com a questão da advocacia de causas (causelawyering), em especial a causa dos direitos humanos. Para isto parto das reflexões vindas da ciência política, propostas por Stephen Meili, Yves Dezalay, Bryant Garth, Fabiano Engelmann e Lígia Madeira.226 Apesar de tratar-se de um movimento característico dos anos 1990, podemos ver vários traços em comum com o trabalho dos advogados aqui analisados. A advocacia de causas está relacionada com o militantismo e, no caso brasileiro, tem como uma de suas origens a defesa de presos políticos. O desenvolvimento da advocacia de causas, e desta forma o engajamento político pelo direito, envolve a análise das estratégias dos movimentos sociais na apropriação do espaço judicial, o papel dos juristas na tradução e formalização das “causas políticas” na linguagem das disputas no interior do Judiciário e a conciliação da atuação profissional com o militantismo político.227 Conforme aponta Meili, a advocacia de causas no Brasil é caracterizada por uma relação forte com movimentos sociais, utilização do sistema jurídico para diminuir as desigualdades e violências da sociedade, além do uso das mídias, que consideram mais efetivas que os tribunais. 224 228 Podemos ver que estas características são compartilhadas ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 154. 225 Idem, p. 155. 226 MEILI, Stephen. "Cause lawyers and social movements: a comparative perspective on democratic change in Argentina and Brazil". In: SARAT, Austin. et SCHEINGOLD, Stuart. (eds.) Cause Lawyering Political Commitments and professional Responsabilities. New York: Oxford University Press, coll. “Oxford Socio-Legal Studies”, 1998, pp. 307-33.; DEZALAY, Y. & GARTH, B. “Las paradojas de um imperalismo de la virtud cívica: de la internacionalización de los derechos humanos a la profesionalización del activismo jurídico”. In: SANTAMARIA, A.& VECCHIOLI, V.(org.) Derechos humanos en América latina: Centro de Estudios Políticos e Internacionales-CEPI/ Ed. Un del Rosário: Bogotá, 2008; ENGELMANN, Fabiano. “Internacionalização e ativismo judicial: as causas coletivas. Revista Lua Nova: revista de cultura e política, São Paulo, CEDEC, n. 69, 2006; ENGELMANN, Fabiano; MADEIRA, Lígia Mori. “A causa e as políticas de direitos humanos no Brasil. In: Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 75, Set./Dez. 2015, pp. 623-637. 227 ENGELMANN, Fabiano. “Internacionalização e ativismo judicial: as causas coletivas. In: Revista Lua Nova: revista de cultura e política, São Paulo, CEDEC, n. 69, 2006, p. 126. 228 MEILI, Stephen. "Cause lawyers and social movements: a comparative perspective on democratic change in Argentina and Brazil". In: SARAT, Austin. et SCHEINGOLD, Stuart. (eds.) Cause Lawyering 78 pelos advogados de presos políticos; um exemplo disso é a utilizada que eles faziam da impressa para denunciar as violências cometidas pelo regime. Para os advogados de causas o judiciário é visto mais como uma extensão do poder executivo e militar do que um defensor dos direitos individuais.229 As motivações para os advogados de causas são, para Stephen Meili, divididas em duas categorias: o desejo pessoal e moral de combater injustiças e um sentido público de seus papéis na transição democrática.230 Meili aponta para duas modalidades pelas quais assumem a advocacia de causas latino-americana: a primeira utiliza formas tradicionais de advocacia (como litígio e lobby, por exemplo), enquanto que a segunda rejeita estas práticas tradicionais e foca-se em estratégias não-convencionais centradas nas comunidades e indivíduos com o objetivo de empoderar os cidadãos.231 Este tipo de advocacia de causas em geral se denomina como “direito alternativo”, “novo direito”. Dentro desta diferenciação podemos notar que os advogados de presos políticos acabavam, em geral, utilizando os métodos mais tradicionais. O autor também chama a atenção para a importância das redes formadas pelos advogados de causas latino-americanos. Estas redes funcionam como troca de informações entre advogados e forma de pressão nos atores governamentais. 232 Para Meili, o surgimento destas redes se dá quando estão presentes as seguintes condições: os canais domésticos dos governos são ineficientes; os ativistas acreditam que as redes auxiliarão na causa; e, finalmente, conferências e outras formas de contato criam arenas para promover e fortalecer as redes. 233 Isto faz surgir um padrão bumerangue (boomerang pattern): quando os canais com os atores estatais estão bloqueados, os movimentos e organizações ignoram o aparato estatal e buscam aliados internacionais ou transnacionais para fazer pressão.234 Stephen Meili aponta para três tipos diferentes de redes formadas por advogados de causas latino-americanos. O primeiro tipo são as redes ad hoc ou contatos voltados a um determinado tipo de crise. Estas redes são o tipo mais informal apontado pelo autor Political Commitments and professional Responsabilities. New York: Oxford University Press, coll. “Oxford Socio-Legal Studies”, 1998, pp. 492-493. 229 Idem, p. 496. 230 Idem, p. 501. 231 MEILI, Stephen. “Latin American Cause-Lawyering Networks”. In: SARAT, Austin. & SCHEINGOLD, Stuart. (eds.) Cause Lawyering in the State in a Global Era. New York: Oxford University Press. Coll “Oxford socio-Legal Studies”, 2001, p. 308. 232 Idem, p. 307. 233 Idem, p. 310. 234 Idem, ibidem. 79 e acabam criando ligações muito específicas, não criando elos mais fortes entre os participantes.235 Por outro lado, alguns advogados de causas que adquirem mais notoriedade podem estabelecer vínculos mais frequentes e duradouros com outros advogados e organizações.236 De qualquer forma, estes contatos são mais focados em casos individuais do que em causas mais amplas.237 O segundo tipo abordado por Meili são as redes informais, que são mais organizadas que os contatos ad hoc, mas ainda não são formalmente ligadas a redes e movimentos internacionais. 238 Finalmente existem as redes organizadas formalmente, que são criadas e compostas por grupos de advogados especializados em um tema ou causa. 239 Como já apontamos, foi criada entre os advogados de presos políticos brasileiros uma rede informal que proporcionava troca de informações e auxílios mútuos. Além disso, muitos advogados participavam de grupos como o CLAMOR (Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul), vinculado à Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo.240 Este grupo fazia parte de uma rede latino-americana que buscava o combate às violações aos direitos humanos na América Latina. A partir de contatos com o grupo Clamor que Omar Ferri participou do caso do “sequestro dos uruguaios”.241 Uma diferença entre os advogados de causas diz respeito à relação entre caso e causa. Alguns advogados acabavam ficando mais vinculados aos casos, ou seja, em questões imediatas vinculadas a indivíduos ou comunidades, enquanto que outros estão mais ligados a causa, e, desta forma, focam na construção e manutenção das redes.242 Meili aponta que isto acaba gerando conflito entre os advogados de causa, o que estaria relacionado com o conceito de causa. Para alguns o caso é a causa: sua atuação em prol da causa se daria na defesa dos direitos de uma comunidade ou indivíduo dentro de um processo. Nesta situação as 235 Idem, p. 313. Idem, p. 313-4. 237 Idem, p. 314. 238 Idem, ibidem. 239 Idem, p. 315. 240 FRAGA, Guilherme Barboza. A Solidariedade não tem fronteiras: o Grupo Clamor e a rede de Direitos Humanos na resistência às Ditaduras do Cone Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2012. Monografia de conclusão de curso de licenciatura em História. 241 Idem, p. 73. 242 MEILI, Stephen. “Latin American Cause-Lawyering Networks”. In: SARAT, Austin. & SCHEINGOLD, Stuart. (eds.) Cause Lawyering in the State in a Global Era. New York: Oxford University Press. Coll “Oxford socio-Legal Studies”, 2001, p. 321 236 80 redes acionadas em geral são feitas a partir de contatos e o trabalho feito pelo advogado não é tão diferente de processos não vinculados a causas.243 Penso que a atuação dos advogados de presos políticos pode se enquadrar nesta categoria. Já para outros advogados o caso é um meio para promover um ideal mais amplo do que interesses de grupos individuais; estes advogados geralmente estão vinculados a redes organizadas formalmente.244 Como frisa Meili, esta categorização não é estanque e muitas vezes os advogados, ao longo de suas trajetórias, modificam seu modo de atuação. Outra diferença entre os advogados de causas é a forma como eles encaram as regras jurídicas (rule of law). Para advogado de causa mais tradicionais as regras jurídicas (rule of law) são um meio para atingir uma finalidade: o fim da desigualdade. Desta forma as regras jurídicas (rule of law) não seriam um fim em si mesmo, mas um instrumento. Já para advogados do “direito alternativo” que utilizam estratégias não tradicionais, as regras jurídicas (rule of law) são uma forma de reforçar o poder do Estado e, assim, devem ser evitadas e confrontadas. Para alguns advogados as redes constituiriam uma forma de empurrar as democracias latino-americanas para além das regras jurídicas (rule of law). Estas posturas se manifestam ainda nas atitudes dos advogados em relação ao papel do Judiciário na América Latina.245 Novamente penso que os advogados de presos políticos se enquadram na categoria mais “tradicional” de advocacia de causas. Passarei agora a um breve histórico a respeito dos direitos humanos, em especial no Brasil. Como afirma o jurista Emílio García Méndez em seu artigo Origem, sentido e futuro dos direitos humanos: reflexões para uma nova agenda, os direitos humanos, diferentemente do que apontam alguns autores, não são “naturais” e sim frutos de luta, e, desta forma, históricos.246 Apesar de podermos ver em momentos anteriores raízes dos direitos humanos, eles são fruto de uma conjuntura específica do final do século XVIII, no qual, segundo a historiadora Lynn Hunt, tomam parte tanto questões racionais quanto emocionais.247 Para ela, os direitos humanos só puderam florescer em um meio 243 Idem, p. 322. Idem, ibidem. 245 Idem, p. 323. 246 GARCÍA MÉNDEZ, Emílio. “Origem, sentido e futuro dos Direitos Humanos: reflexões para uma nova agenda”. In: Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, Sur – Rede Universitária de Direitos Humanos, v. 1, n.1, 2004, pp. 6-19. 247 HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 24 244 81 em que ideias de autonomia e de empatia, no qual há tanto o domínio de si quanto o reconhecimento “de que todos os outros são igualmente senhores de si”.248 Para Hunt, os romances epistolares do século XVIII possibilitaram esta mudança: “a leitura dos romances criava um senso de igualdade e empatia por meio do envolvimento apaixonado com a narrativa”, no qual todos os leitores, independentemente de sua origem social, identificavam-se com o destino dos personagens, em geral oprimidos pela sociedade.249 Com esta nova concepção de autonomia e individualidade o corpo passou a ser sagrado e o castigo físico questionado. A exibição pública dos castigos começou a ser vista como “um ataque à sociedade” que “brutalizava o indivíduo”. 250 Este contexto possibilitou que fossem feitas a Declaração da Independência estadunidense, de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa, de 1789, que inauguram de fato os direitos humanos. Porém, como aponta a historiadora Samantha Quadrat em seu artigo A emergência do tema dos direitos humanos na América Latina, apesar das declarações francesas e estadunidenses tratarem do tema, até a primeira metade do século XX as discussões sobre o assunto estavam voltadas mais para questões como direitos de estrangeiros, e, eventualmente, de minorias étnicas e religiosas.251 Durante o século XIX, a questão dos direitos humanos, em especial os direitos civis e políticos, ficou eclipsada pelo surgimento do nacionalismo, do socialismo e do comunismo. Enquanto que o nacionalismo buscava direitos para os povos, através do socialismo e do comunismo houve a afirmação de que somente os direitos civis e políticos não seriam suficientes para acabar com a opressão: era necessária principalmente a igualdade social e econômica.252 Havia uma desconfiança por parte dos comunistas em relação à bandeira dos direitos humanos representados na Declaração francesa. Marx representa esta tendência em seu ensaio de 1843 “Sobre a questão judaica”: segundo Hunt, neste trabalho Marx apontaria que a “liberdade” afirmada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão “só dizia respeito ao homem como 248 Idem, p. 28. Idem, p. 39. 250 Idem, p. 98. 251 QUADRAT, Samantha Viz. “A emergência do tema dos direitos humanos na América Latina”. In: FICO, Carlos; FERREIRA, Marieta de Moraes; ARAUJO, Maria Paulo; QUADRAT, Samantha Viz et all (orgs). Ditadura e Democracia: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2008, p. 364. 252 HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 198. 249 82 um ser isolado, não como parte de uma classe ou comunidade”, o que deixaria clara a dimensão egoísta destes direitos.253 Esta situação modificou-se somente com o final da Segunda Guerra Mundial: como aponta García Mendez, a conceituação que temos foi definida após o Holocausto, quando se fez necessário um maior rigor em relação a sua conceituação e defesa. 254 Deste movimento surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas de 1948. Conforme aponta o historiador Solon Viola, a partir deste momento temos a ideia dos direitos humanos divididos em gerações: a primeira é relacionada ao conceito de liberdade e refere-se aos direitos civis e políticos; a segunda à igualdade e aos direitos econômicos e sociais; e a terceira à fraternidade e aos direitos coletivos, aos direitos dos povos.255 Segundo Lynn Hunt, nas décadas de 1950 e 1960 a questão dos direitos humanos ficou em segundo plano frente às lutas anticoloniais e de independência.256 Ao mesmo tempo, segundo García Mendez, durante a Guerra Fria o debate em torno dos direitos humanos ficou polarizado da seguinte forma: o bloco capitalista defendendo os direitos civis e políticos e o bloco soviético os sociais e econômicos.257 Como afirma Quadrat, Enquanto a União Soviética sustentava que boas condições econômicas eram fundamentais na discussão dos direitos humanos, os Estados Unidos defendiam a supremacia dos direitos civis e políticos. Tal antagonismo acompanhou todas as discussões que visavam o estabelecimento de pactos e tratados internacionais relativos aos direitos humanos. Durante a bipolaridade da Guerra Fria, qualquer denúncia de violações dos direitos humanos era vista com uma única finalidade: desacreditar a imagem de um dos dois lados – o que acabava por dificultar a sua apuração.258 253 Idem, p. 200. GARCÍA MÉNDEZ, Emílio. “Origem, sentido e futuro dos Direitos Humanos: reflexões para uma nova agenda”. In: Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, Sur – Rede Universitária de Direitos Humanos, v. 1, n.1, 2004, p. 7. 255 VIOLA, Solon Eduardo Annes. Direitos humanos e democracia no Brasil. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2008, p. 56. Viola aponta que recentemente os movimentos sociais sinalizaram para uma quarta geração de direitos humanos, relacionada aos direitos intersubjetivos. 256 HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 208. 257 GARCÍA MÉNDEZ, Emílio. “Origem, sentido e futuro dos Direitos Humanos: reflexões para uma nova agenda”. In: Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, Sur – Rede Universitária de Direitos Humanos, v. 1, n.1, 2004, pp. 10-11. 258 QUADRAT, Samantha Viz. “A emergência do tema dos direitos humanos na América Latina”. In: FICO, Carlos; FERREIRA, Marieta de Moraes; ARAUJO, Maria Paulo; QUADRAT, Samantha Viz et all (orgs). Ditadura e Democracia: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2008, p. 365. 254 83 Este antagonismo levou a um paradoxo por parte do bloco capitalista: sob o suposto objetivo da defesa da democracia e dos direitos humanos, os Estados Unidos realizaram intervenções militares e apoiaram golpes, como no caso brasileiro.259 Partindo desta divisão entre os blocos, pode-se pensar como as esquerdas brasileira, em especial a de viés marxista, encaravam os direitos humanos até meados da década de 1970: mesmo que houvesse uma crítica em relação às posturas da União Soviética por diferentes grupos, pode-se perceber que eles partilhavam desta mesma conceituação. Como afirma o historiador Jacob Gorender em sua clássica análise das organizações de esquerda durante a ditadura, Combate nas trevas, nos anos 1960 a esquerda radical “procurava justificativas para a violência incondicionada”. 260 Havia por parte das esquerdas brasileiras, neste momento, uma valorização da violência revolucionária, o que vai de encontro a uma defesa dos direitos humanos individuais.261 Conforme apontam Célia Costa e Juliana Gagliardi, “no início dos anos 1970, os direitos humanos constituíam um campo de atuação quase exclusivo dos movimentos cristãos”. Segundo as autoras, figuras como o deputado federal do MDB Lysâneas Maciel eram outsiders ao “padrão da esquerda marxista”, uma vez que militava dentro da institucionalidade em prol dos direitos humanos.262 Luciano Oliveira sustenta que “até inícios dos anos 70, o tema dos direitos humanos estava longe de frequentar, para dizer o mínimo, o temário da cultura política de esquerda”.263 Para ele, a entrada desta luta no vocabulário das esquerdas deu-se graças ao acontecimento do horror superlativo: o contato destes grupos com a violência e repressão estatal. Esse acontecimento – no sentido forte da palavra –, somado a outros eventos cuja abordagem não vem ao caso aqui fazer, foi, no meu modo de ver, um dos responsáveis por uma reavaliação feita por essa geração de alguns postulados da tradição marxista na qual ela se 259 VIOLA, Solon Eduardo Annes. Direitos humanos e democracia no Brasil. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2008, p. 15. Em uma linha semelhante seguiu o Conselho Federal da OAB que, a partir de 1962, começou a tomar uma postura de enfrentamento ao governo de João Goulart sob a defesa do “Estado de Direito” supostamente ameaçado pelo então presidente. MATTOS, Marco Aurélio V. L. de. Os cruzados da ordem jurídica: a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 1945-1964. São Paulo: Alameda, 2013, pp. 111-116. 260 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 78. 261 QUADRAT, Samantha Viz. “A emergência do tema dos direitos humanos na América Latina”. In: FICO, Carlos; FERREIRA, Marieta de Moraes; ARAUJO, Maria Paulo; QUADRAT, Samantha Viz et all (orgs). Ditadura e Democracia: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2008, p. 372. 262 COSTA, Célia; GAGLIARDI, Juliana. “Lysâneas, um autêntico do MDB”. In: Estudos Históricos, CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, v. 1, nº 37. janeiro-junho de 2006, p. 202 263 OLIVEIRA, Luciano. “Direitos humanos e cultura política de esquerda”. In: Revista Lua Nova, São Paulo, CEDEC, nº 27, 1992, p. 152. 84 inseria, assim como o ponto de partida para uma nova maneira de encarar um objeto axiológico anteriormente ignorado quando não simplesmente desdenhado: o direito. 264 Assim, o discurso democratizador do governo mostrou-se vazio e “os direitos humanos passaram de proposta reguladora do Estado militar a bandeira de lutas em favor da emancipação, travadas contra uma ordem ética, econômica e politicamente injusta”. 265 Ao mesmo tempo, deve ter havido, por parte das esquerdas brasileiras, uma revisão do conceito da revolução, uma vez que esta, assim como afirma no documento fundador do golpe, “legitima-se por si mesma”, não estando limitada por uma legislação. 266 Vemos na segunda metade da década de 1970 uma guinada das esquerdas brasileiras em relação a movimentos de “resistência e luta democrática”, que se baseavam em uma (...)conjuntura de resistência, que incluía uma plataforma de luta pelas liberdades democráticas e uma política de alianças que ia na direção de setores mais moderados da oposição, tendo como objetivo ampliar o movimento da sociedade civil contra a ditadura militar. 267 Decorrente da derrota dos grupos que haviam optado pela luta armada no fim anos 1960 e início dos 1970, surgiu um novo posicionamento político de esquerda, não mais relacionado ao enfrentamento e à radicalidade, sendo informado “política e simbolicamente por um outro ethos: a luta pelos direitos humanos, contra o arbítrio e contra o autoritarismo”. 268 Assim, o movimento dos direitos humanos está vinculado a dois fenômenos presentes nas esquerdas brasileiras a partir do final da década de 1970: a luta pelo fim da ditadura e uma nova concepção por parte das esquerdas.269 Esta nova orientação em relação aos direitos humanos foi percebida também entre os partidos comunistas da Europa Ocidental, que, a partir de inícios da década de 1970, “substituíram ‘a ditadura do proletariado’ nas suas plataformas oficiais pelo avanço da democracia e endossaram explicitamente os direitos humanos”, passando a 264 Idem, p. 151. VIOLA. Op. cit., p. 49. 266 Ato Institucional, de 9 de abril de 1964. Disponível em http://www.planalto.gov.br//CCIVIL_03/AIT/ait-01-64.htm 267 ARAUJO, Maria Paula Nascimento. “Lutas democráticas contra a ditadura”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão & FERREIRA, Jorge. As esquerdas no Brasil. Vol. 3. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 323. 268 Idem, p. 332. Deve-se ressaltar que o PCB já vinha buscando atuar dentro da institucionalidade desde a década de 1940, e, desta forma, não se enquadra perfeitamente neste padrão apontado. 269 ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 153. Pode-se mencionar ainda um terceiro fator, relacionado aos dois citados: a derrota das tentativas de luta armada realizadas no final dos anos 1960 e 1970. 265 85 defender, além da segunda, a primeira geração de direitos.270 É interessante notar que, ao adotar a bandeira dos direitos humanos como um todo (tanto os direitos individuais como os coletivos), as esquerdas acabaram por lutar “no terreno do inimigo”, isto é, em uma área que era defendida pelo bloco capitalista. No caso brasileiro, bandeiras como direitos humanos, luta contra o arbítrio e o autoritarismo foram fundamentais para os movimentos que surgiram neste período. Juliana Carlos aponta diversos movimentos que representam esta modificação, porém ressalta que o movimento pela Anistia foi um dos primeiros nesse sentido. Este movimento, iniciado em 1975, “representou um centro aglutinador de pessoas insatisfeitas ou atingidas, direta ou indiretamente, pelos atos de exceção do regime militar”.271 A partir desta luta foram levantadas bandeiras mais amplas e deu-se “grande visibilidade à temática dos direitos humanos vinculando fortemente a luta pela conquista da anistia à luta pela democracia e pelo respeito aos direitos dos brasileiros”.272 Ao lutar pelo fim da ditadura e denunciar a tortura, este movimento criticava a base do regime e exigia a restauração da democracia, marcando “o nascimento dos movimentos brasileiros de direitos humanos”.273 Este movimento em direção a uma luta democrática contra a ditadura foi marcado pela presença de advogados, em especial aqueles que defendiam os perseguidos pelo regime. Os advogados acabaram convertendo-se em “interlocutores dos presos políticos com o Estado e a sociedade civil, colaborando para que os presos saíssem da sua condição de isolamento”, auxiliando os perseguidos e suas famílias tanto na questão emocional quanto em seus atos e manifestações contra o regime.274 Ao mesmo tempo, estes advogados, devido à sua atuação profissional na Justiça Militar, emergem durante a ditadura no espaço público denunciando e atacando as violências e o arbítrio cometidos pelo Estado.275 Como já foi mencionado, era uma 270 HUNT. Op. cit., p. 209. CARLOS, Juliana de Oliveira. A anistia e a luta pelos direitos humanos no Brasil. In: Cadernos AEL, Campinas, UNICAMP, Vol. 13, n. 24-25, 2008, p. 182. 272 Idem, ibidem. 273 Idem, p. 186. Sobre o movimento pela anistia ver: RODEGHERO, Carla Simone. “Pela “pacificação da família brasileira”: uma breve comparação entre as anistias de 1945 e de 1979". In: Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, v. 34, nº 67, jan/jun 2014, pp. 67-88. 274 TELES. Op. cit., p. 292. 275 Um exemplo desta prática de denúncia no estado do Rio Grande do Sul por parte dos advogados é a participação dos advogados e de suas entidades – como o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS) e a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RS) – em eventos de grande repercussão como o “caso das mãos amarradas” e o “caso do sequestro dos uruguaios”. 271 86 prática dos advogados a publicização de seus trabalhos, levando a uma vinculação com a resistência democrática.276 Isto era possibilitado ainda pela rede de solidariedade criada pelos advogados em prol dos perseguidos políticos, o que mobilizou a opinião pública e empurrou os limites da política institucional e refreou o aparato repressivo, “a despeito da impossibilidade de alterar a política repressiva global da ditadura”. 277 Eles procuravam mostrar-se, desta forma, mais do que defensores de partes individuais: usavam de seu ofício para lutar em favor da redemocratização. É curioso notar que este processo realizado tem paralelo com um movimento realizado por advogados franceses do final do século XVIII quando militavam contra a tortura e o castigo corporal: lá também eram utilizadas estratégias jurídicas em prol desta campanha.278 Assim, os advogados, aliados às entidades de direitos humanos, aos presos e seus familiares, conseguiram estabelecer “uma rede de solidariedade que, pouco a pouco, conseguiu sensibilizar a sociedade civil e impor desgastes à ditadura”, além de romper o isolamento criado pela ditadura e denunciar as violências da repressão brasileira no exterior.279 Neste processo de fortalecimento dos direitos humanos foi de vital importância a participação de organizações criadas ao longo da década de 1970, como é o caso da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo (CJP/SP) e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) de Porto Alegre. 280 Estas entidades conseguiram congregar diversos militantes realizando uma campanha de apoio aos perseguidos pela ditadura brasileira e dos países vizinhos, além de denunciar as violências e torturas cometidas pelos regimes. Uma marca destas organizações foi a presença de setores progressistas da Igreja Católica: enquanto que o MJDH não contava com o apoio da estrutura da Igreja, mas sim com a colaboração de setores mais progressistas, a CJP/SP surgiu de uma iniciativa do cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, que buscou organizar a Comissão com militantes de diferentes posições políticas e religiosas. 281 Ao mesmo tempo, nas duas entidades vemos a forte presença de advogados: é o caso de Omar Ferri, defensor de presos políticos que participou ativamente do MJDH. 276 DORA. Op. cit., pp. 59. TELES. Op. cit., p. 302. 278 HUNT. Op. cit., p. 106. 279 TELES. Op. cit., p. 296. 280 QUADRAT. Op. cit., p. 380-1; VIOLA. Op. cit., p. 17. 281 VIOLA. Op. cit., p. 112 e 122. 277 87 Além de militar nos emergentes movimentos de direitos humanos, os advogados de presos políticos foram responsáveis por promover mudanças dentro de suas entidades profissionais, como a OAB. Como afirma a historiadora Marly Motta em seu estudo sobre a entidade, desde sua fundação em 1930, a OAB sempre procurou equilibrar, em permanente tensão, as suas duas faces: a de corporação profissional dos advogados, voltada para a defesa de interesses particulares, e a de instituição, comprometida com as demandas mais gerais da sociedade.282 Como aponta o historiador Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos em seu livro a respeito da atuação do Conselho Federal da entidade entre 1945 e 1965, durante este período houve variações entre momentos em que a entidade tinha um caráter mais corporativo e outros em que tomavam posturas mais políticas.283 No final do Estado Novo, nota-se a Ordem com uma postura mais ativa no cenário político nacional, enquanto que na década de 1950 ela age de forma mais classista, devido a questões mais práticas relacionadas ao ofício do advogado que estavam em debate naquele momento. Já no início da década de 1960, a OAB voltou a atuar fortemente no cenário político, inicialmente durante o episódio da Legalidade, no qual o Conselho Federal inclinava-se para uma solução de compromisso.284 Posteriormente, a entidade coloca-se na oposição ao governo de João Goulart, apoiando, em seguida, o golpe.285 A partir da década de 1970, “a Ordem foi uma das principais construtoras da abertura democrática, mas igualmente foi por ela construída”: ao ter papel ativo na redemocratização, ela acabou criando uma imagem de defensora da democracia e dos direitos humanos.286 Porém, como vimos acima, este não foi o posicionamento da entidade desde o início da ditadura. Denise Rollemberg aponta que a Ordem atuou de forma homogênea como instituição, passando “do pólo de apoio integral ao golpe (...), identificando-se com uma cultura política de direita, para uma posição de crítica explícita e contundente ao regime”. 287 MOTTA, Marly. “‘Dentro da névoa autoritária acendemos a fogueira...’ – a OAB na redemocratização brasileira (1974-80)”. In: Revista Culturas Jurídicas, Rio de Janeiro, v. 3, nº 1, jan/jul 2008, p. 29. 283 MATTOS, Marco Aurélio V. L. de. Os cruzados da ordem jurídica: a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 1945-1964. São Paulo: Alameda, 2013, pp. 228-229. Sobre a postura da entidade durante estas duas décadas ver os capítulos I e II do livro de Mattos. 284 Idem, p. 110. 285 Idem, pp. 111-132. 286 MOTTA. Op. cit., p. 29. 287 ROLLEMBERG, Denise. “Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a ditadura (1964-1974)”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; ROLLAND, Denis (orgs). Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 7. Disponível em http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/Memoria_opniao_e_cultura_politica.pdf. 282 88 Os advogados de presos políticos pressionaram a entidade para modificar sua posição em relação ao golpe e à ditadura, passando de apoio a oposição. Segundo Mattos, já em 1964 começaram a surgir dentro do Conselho Federal vozes que se levantavam contra as violações às prerrogativas dos advogados no exercício de sua profissão, sem afetar, porém, a relação próxima que a entidade tinha com os novos donos do poder.288 Neste processo de modificação de postura da OAB, teve papel central a mobilização contra as prisões de advogados de presos políticos, no final da década de 1960, entre eles membros do Conselho Federal, como Sobral Pinto, e de associações internacionais de juristas, como Heleno Fragoso.289 Estes acontecimentos forçaram a Ordem a tomar uma postura de oposição ao regime e de defesa das prerrogativas da classe. Neste momento há também o afastamento de juristas inicialmente envolvidos com o golpe em relação à ditadura, com é o caso de Afonso Arinos, Adauto Lucio Cardoso e Aliomar Baleeiro. A ruptura definitiva com o regime ocorreu a partir da eleição de José Cavalcanti Neves para a presidência da organização, em 1971.290 Neste momento, a Ordem firmou posição no campo da luta pela redemocratização, além de clamar pelo restabelecimento do habeas corpus – que havia sido retirado nos casos contra a segurança nacional através do AI-5 – e respeito à pessoa humana, entre outros direitos violados pelo regime. Conforme Spieler e Queiroz, esta mudança de postura foi construída “a partir do posicionamento de advogados e advogadas que, a cada dia, sentiam-se mais limitados nas suas possibilidades de atuação profissional”: devido a cerceamentos na prática da advocacia por parte do governo, a OAB foi chamada a tomar uma postura de oposição à ditadura e de defesa dos direitos humanos.291 A partir das gestões de Caio Mário (1975-77) e de Raymundo Faoro (1977-79), a Ordem assumiu posturas mais conciliatórias, buscando um diálogo com o governo, porém sem deixar de fazer denúncias em relação a violências cometidas pela repressão, além de encampar uma pauta mais social, defendendo a liberdade sindical. Desta forma, a OAB passou a participar mais ativamente na defesa dos direitos humanos, 288 MATTOS, Marco Aurélio V. L. de. Os cruzados da ordem jurídica: a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 1945-1964. São Paulo: Alameda, 2013, pp. 127-130. 289 DORA. Op. cit., p. 55. 290 ROLLEMBERG. Op. cit., p. 30. 291 SPIELER; QUEIROZ. Op. cit, p. 33. 89 aproximando-se das novas entidades.292 Posteriormente, na gestão de Eduardo Seabra Fagundes (1979-1981), a Ordem voltaria a ter uma postura mais combativa, o que levou à ataques, como o atentado à bomba à sua sede que mataria a funcionária Lyda Monteiro da Silva.293 Pode-se perceber que este fortalecimento do movimento dos direitos humanos no Brasil deu-se através de diferentes entidades e atores sociais e da articulação entre eles. Foram criadas diferentes entidades que teceram redes formais e informais: este é o caso da rede de solidariedade criada pelo Grupo Clamor, analisado pelo historiador Guilherme Fraga, dentro da qual atuaram diferentes advogados. 294 Deve-se notar que estas redes muitas vezes partiam de relações que foram criadas entre advogados de presos políticos. Muitas das entidades, como a CJP/SP e o MJDH, tinham como um dos objetivos auxiliar o surgimento de novos grupos e a formação de redes em prol da liberalização e da redemocratização.295 Além disso, estas entidades influenciaram a criação de Comissões de direitos humanos nas Assembleias Legislativas e nas seccionais da OAB, buscando difundir uma cultura democrática e de defesa dos direitos humanos. No caso do Rio Grande do Sul, o MJDH participou da criação das Comissões tanto no legislativo estadual quanto na OAB/RS.296 Ao mesmo tempo, através delas, os movimentos de direitos humanos brasileiros conseguiram contatar outros grupos da América Latina, sendo possível, por exemplo, contrapor a Operação Condor de forma articulada nos diferentes países.297 I.5. Os advogados e a política Durante a década de 1970 houve uma aproximação do MDB como a causa dos direitos humanos através dos parlamentares que ficaram conhecidos como “autênticos”. Estes parlamentares tinham origens diversas, mas tinham uma afinidade ideológica e se destacavam “por se posicionarem contra a inércia parlamentar dominante no 292 VIOLA. Op. cit., p.141. MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 173. 294 FRAGA, Guilherme Barboza. A Solidariedade não tem fronteiras: o Grupo Clamor e a rede de Direitos Humanos na resistência às Ditaduras do Cone Sul. Porto Alegre, UFRGS, 2012. Monografia de Conclusão de Curso de História. 295 VIOLA. Op. cit., p. 137. 296 Idem, p. 146. 297 QUADRAT. Op. cit., p. 381. 293 90 Congresso”.298 Na legislatura que vai de 1971 a 1974 este grupo foi muito importante no fortalecimento da luta contra a ditadura. Entre os “autênticos”, que correspondiam um número entre 13 e 20 deputados, havia uma divisão de trabalho, cada deputado responsável por um assunto, e o tema dos direitos humanos cabia ao advogado Lysâneas Maciel.299 Este deputado era muito atuante no tema, denunciando as violações aos direitos humanos cometidas pela ditadura, e chegou a propor, em seu segundo mandato, uma CPI sobre os direitos humanos.300 Após pronunciar em defesa dos deputados gaúchos cassados Amaury Müller e Nadyr Rosetti, Lysâneas foi cassado em 1º de abril de 1976. 301 A atuação de Lysâneas e dos parlamentares “autênticos”, “começou a mudar a face do Congresso”, transformando “o Parlamento em um campo legítimo de luta pelo retorno à democracia, preenchendo o vazio programático que dominava o Congresso no período pós-golpe”.302 Partindo disso, os militantes dos direitos humanos no Brasil alargaram suas demandas, passando a defender os direitos dos presos comuns e das camadas baixas da população, eternos alvos da violência estatal. É interessante notar que este rumo não foi compartilhado nos outros países da América Latina. Como aponta Quadrat, o caso brasileiro, no qual houve uma generalização do tema para questões como a violência policial, a questão homossexual e a racial, não é padrão para outros países nos quais, em alguns momentos, os direitos humanos ficaram restritos às violações cometidas durante as ditaduras.303 Ao mesmo tempo, a atuação de Guazzelli, Becker e Ferri durante a ditadura deuse em contato com o campo político, que pode ser definido por Bourdieu, como (...) o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de “consumidores”, devem escolher, com probabilidades de mal-entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar de produção.304 COSTA, Célia; GAGLIARDI, Juliana. “Lysâneas, um autêntico do MDB”. In: Estudos Históricos, CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, v. 1, nº 37. janeiro-junho de 2006, p. 205. 299 Idem, p. 209. 300 Idem, p. 206 e 209. 301 Idem, p. 209. 302 Idem,, p. 206. 303 QUADRAT. Op. cit., pp. 382-384. 304 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 164. 298 91 No campo político a ideia de concorrência é importante para entender as tomadas de posição de um grupo, já que elas são atos que ganham “sentido relacionalmente, na diferença e pela diferença, do desvio distintivo”.305 Podemos pensar, assim, que a inserção dos advogados no MDB/PMDB deu-se dentro de um contexto de concorrência pelo voto da oposição: o partido buscava mostrar-se como um “campeão da democracia” e desta forma buscava nomes que representassem a luta contra a ditadura. Becker, Guazzelli e Ferri traziam um capital pessoal de “notoriedade” 306 , isto é, eles tinham um capital de notoriedade como advogados que se opuseram ao regime, de “defensores dos direitos humanos”. Este capital, que foi “produto de uma acumulação lenta e contínua” ao longo da ditadura, ao mesmo tempo era mesmo profissional e político, o que é comprovado nas candidaturas tanto de Eloar pelo MDB, quanto em 1982, quando os três foram candidatos. Isto mostra que havia, naquele contexto, entre o direito e a política certa “porosidade” que permitia que um advogado utilizasse facilmente de sua trajetória profissional para alçar uma candidatura a cargo político.307 As trajetórias de Becker, Guazzelli e Ferri no final da ditadura que levaram aos lançamentos de suas candidaturas em 1982 não são casos isolados e têm paralelo com os militantes abordados pela historiadora Marieta de Moraes Ferreira no artigo “Vozes da oposição: ditadura e transição política no Brasil”.308 Nele a autora aborda “indivíduos que tiveram atuação política em espaços institucionalizados”, seja no parlamento, organizações dos movimentos sociais, entre outros.309 O que une estes personagens é o fato de que a partir da concretização do processo de abertura política e do restabelecimento das regras eleitorais democráticas, eles não conseguiram garantir seus espaços políticos e foram em sua grande maioria derrotados nos diferentes pleitos que disputaram. Essa perda de espaço se tornou mais visível a partir da eleição de 1982, que contou com a participação de ex-exilados retornados ao país graças à anistia, e que funcionou como um divisor de águas no quadro políticoeleitoral do Rio de Janeiro e do Brasil.310 305 Idem, p. 172. Idem, p. 190-191. 307 Devo esta noção à brilhante contribuição do professor Luiz Alberto Grijó durante a defesa da tese. 308 FERREIRA, Marieta de Moraes. Vozes da oposição: ditadura e transição política no Brasil. In: SEMINÁRIO 40 ANOS DO GOLPE: ditadura militar e resistência no Brasil, Rio de Janeiro, 2004. Anais... Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. p. 183 - 191 309 Idem, p. 183. 310 Idem, p. 183-4. 306 92 Os indivíduos abordados pela autora têm trajetórias variadas e tiveram uma forte atuação na oposição entre 1970 e 1985 e, em sua maioria, lançaram candidaturas que foram malsucedidas em 1982. Segundo Marieta de Moraes Ferreira, estas “vozes da oposição” foram alçadas à esfera pública devido a um vazio político derivado das cassações e exílio dos líderes das esquerdas. Eles haviam tido um passado de militância política em organizações de esquerda, não tiveram envolvimento direito com a luta armada, optaram pela atuação em espaços legais para lutar pela redemocratização e, mesmo aqueles que já tinham uma militância partidária anterior, não “tinham uma prática como profissionais de política partidária legal”.311 Dentro das trajetórias analisadas pela historiadora destaca-se, para os propósitos desta pesquisa, a figura do advogado de presos políticos Modesto da Silveira: ele, que foi colega de legislatura de Eloar Guazzelli, também foi derrotado em 1982. Um aspecto que, segundo Ferreira, afetou as trajetórias analisadas foram as mudanças ocorridas no final dos anos 70, com o fim do bipartidarismo e a volta dos exilados. Isto mudou o quadro da oposição, que antes estava no mesmo partido com um mesmo objetivo (o combate à ditadura), e então ficou distribuída em um “leque amplo de opções partidárias”.312 Era como se as antigas palavras de ordem se tivessem tornado anacrônicas. Tratava-se agora de elaborar novos projetos, mais específicos e voltados para as novas demandas de uma sociedade que saía da ditadura. E muitos daqueles que contribuíram para que isso acontecesse não puderam cumprir esse novo papel.313 Assim os depoimentos abordados no texto mostram que, se as mobilizações do final dos anos 1970 (como a eleição de 1978 e a campanha pela Anistia) são elaborados pelos personagens como momentos de entusiasmo e esperança, as eleições de 1982 denotam desalento e desapontamento por parte dos depoentes. 314 Segundo Marieta de Moraes Ferreira, suas explicações para o fracasso em 1982 relacionavam-se principalmente com manipulações e falta de recursos.315 Isto aproxima-se das explicações dadas por Omar Ferri para justificar as derrotas eleitorais de ativistas: “para lutar era conosco o negócio; agora para fazer política, não era tão fácil assim”.316 Apesar 311 Idem, p. 186. Idem, ibidem. 313 Idem, ibidem. 314 Idem, p. 187-9. 315 Idem, p. 189. 316 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 23 de maio de 2013. 312 93 disso, para os personagens abordados por Ferreira, “o caminho seguido em 1982 ainda é visto como o mais correto, mesmo que tenha custado o sacrifício pessoal de militantes que assistiram à vitória de suas bandeiras, mas perderam seu lugar”.317 Para analisar os significados dados pelos militantes analisados, a historiadora parte da noção de “tesouro perdido” desenvolvida por Hannah Arendt em sua análise sobre o engajamento dos intelectuais franceses na Resistência durante a Segunda Guerra. Este “tesouro”, que era a “experiência compartilhada de um engajamento que permitirá àqueles intelectuais uma vivência de liberdade e iniciativa”, foi perdido logo após a vitória da Resistência e o fim da união entre diferentes setores; “o desaparecimento do tesouro é consumado pelo esquecimento que atinge os atores e as testemunhas daquele momento especial”.318 Situação semelhante ocorreu com estes militantes: ao final da ditadura o projeto que unia acabou e um novo contexto com diferentes exigências surgiu. Neste momento, “a experiência do engajamento político que tinham partilhado nos anos anteriores, em prol da luta pela liberdade, contra o arbítrio, perdeu o seu sentido e todos viram-se levados a retornar às suas vidas comuns e a seus assuntos pessoais”.319 Neste quadro, o papel das lideranças na luta pela democracia acabou sendo minimizado ou esquecido, “como se a derrota eleitoral em 1982 tivesse apagado as luras anteriores”. 320 Conforme aponta a historiadora, O capital político acumulado por estes últimos nos anos de ditadura foi dissolvido ou absorvido por outros. Sua crença em que seu papel de “guardiães da democracia” seria reconhecido no futuro, e sua opção pela manutenção de uma frente de esquerda para vencer as últimas batalhas contra a ditadura, afinal de contas, os impediram de se preparar para os novos tempos.321 A atuação de Ferri, Becker e Guazzelli em um determinado momento se deu dentro de um partido: o PMDB. Este partido estava reconstruindo sua imagem e neste momento estes três advogados pareciam boas opções para candidaturas. Segundo o historiador Serge Berstein, o partido é “o lugar onde se opera a mediação política”, ou seja, é onde os problemas e interesses deixam de estar no nível 317 FERREIRA, Marieta de Moraes. Vozes da oposição: ditadura e transição política no Brasil. In: SEMINÁRIO 40 ANOS DO GOLPE: ditadura militar e resistência no Brasil, Rio de Janeiro, 2004. Anais... Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p. 189. 318 Idem, p. 190. 319 Idem, ibidem. 320 Idem, ibidem. 321 Idem, ibidem. 94 do cotidiano e passam para o político.322 Por ser o espaço no qual se articulam as necessidades ou aspirações, a “mediação política assume o aspecto de uma tradução”.323 Segundo a historiadora Lucia Grinberg, que estudou a ARENA, os partidos não são uma coisa, a despeito do senso comum e de muitas análises acadêmicas e jornalísticas apontarem neste sentido.324 A autora parte da perspectiva de Michel Offerlé de que “os partidos são grupos fundados para intervir no mercado político, suscetíveis de produzir efeitos diferenciados e de ser objetos de investimentos e usos sociais diversificados”. 325 Ela aponta, neste sentido, que um aspecto fundamental para as pesquisas sobre os partidos é “o de verificar como os agentes sociais interessados servem os partidos e como se servem deles”.326 Ao tratar da questão do nascimento dos partidos, Berstein aponta para duas origens: a primeira, no qual o partido é uma instituição parlamentar, criado por políticos com objetivo mais eleitorais. Partidos que tem esta origem acabam tendo uma relação direta com os grupos parlamentares e os períodos eleitorais.327 Já um segundo tipo seriam aqueles partidos que tem uma origem externa aos parlamentos, sendo resultado da articulação de grupos da sociedade.328 De qualquer forma, deve-se frisar a historicidade dos partidos, que surgem em um determinado momento histórico para responder determinados problemas da sociedade. Assim parte-se da ideia de que um partido não nasce fortuitamente, da decisão de seus criadores, e só tem chance de sobreviver se responder de uma maneira ou de outra a um problema fundamental colocado para a sociedade contemporânea, o que faz com que haja adequação entre a imagem que ele transmite de si mesmo e as aspirações mais profundas de uma parte importante da população que aceita, como solução para os problemas que ela percebe, a mediação que ele lhe propõe.329 Depois de nascido, o partido tem vida própria e cria os meios para durar. Ele pode virar o depositário de uma cultura política que origina uma tradição, que pode ser transmitida a gerações.330 A cultura política permite ao partido alcançar a inércia do político, que é a aquisição de uma força considerável que permite sobreviver ao BERSTEIN, Serge. “Os Partidos”. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Editora FGV, 1996, p. 60. 323 Idem, p. 61 324 GRINBERG, Lucia. Partido Político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), 1965-1979. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009, p. 24. 325 Idem, p. 24. 326 Idem, p. 25. 327 BERSTEIN. Op. cit.,, pp. 64-5 328 Idem, p. 65. 329 Idem, pp. 67-8. 330 Idem, p. 69. 322 95 desaparecimento das condições que o geraram.331 Para Serge Berstein, além da mediação política, o partido funciona como fator de integração de uma comunidade ideológica, proporcionando uma sociabilidade política, e faz a seleção das elites políticas.332 Ao analisar a questão da política profissional, Grinberg parte das noções propostas por Bourdieu e Offerlé que, baseados em Weber, destacam a autonomia da política em relação a outros campos. Desta forma os políticos são vistos, portanto, não como marionetes, mas como homens que se dedicam à representação política, entendida como um objeto de estudo específico, que não pode ser reduzido aos interesses econômicos.333 Característicos do século XX, os políticos profissionais são um tipo particular de empreendedores políticos, que atuam e participam do processo de constituição do campo político.334 Grinberg parte da noção de Offerlé a respeito da consolidação da democracia que diz que, em primeiro lugar, “a democracia representativa deve ser entendida como um regime em que a representação se faz através de partidos políticos”, e, em segundo lugar, a “democracia representativa não é necessariamente uma consequência lógica da mobilização dos indivíduos, mas o resultado do trabalho de mobilização feito pelos políticos profissionais”. 335 Sobre o MDB, parto das reflexões feitas por Maria D’Alva Gil Kinzo no livro Oposição e autoritarismo – gênese e trajetória do MDB (1966/1979). A autora se propõe a estudar a oposição dentro do arcabouço institucional criado pelo regime. 336 Ao criar o sistema bipartidário, através do AI-2, a intenção do governo era de criar um grande partido de apoio ao governo e um pequeno de oposição, mantendo, desta forma, alguns mecanismos da democracia representativa.337 Este sistema híbrido, que combinava procedimentos constitucionais a poderes arbitrários do Executivo, foi criado visando manter uma imagem frente à opinião pública internacional e atender a interesses vindos dos diferentes grupos civis e militares envolvidos no golpe de 1964.338 331 Idem, ibidem. Idem, pp. 92-3. 333 GRINBERG. Op. cit., p. 43, 334 Idem, p. 44. 335 Idem, ibidem. 336 KINZO, Maria D’alva Gil. Oposição e autoritarismo – gênese e trajetória do MDB (1966-1979). São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 9. 337 Idem, p. 15. 338 Idem, pp. 17-20. 332 96 Logo após sua criação, o MDB teve diversos obstáculos, começando pelo fato de que não era nada atraente fazer parte do partido da oposição.339 Devido a sua origem arbitrária, o MDB teve sua organização e estrutura feita de cima para baixo, sendo organizado a partir dos parlamentares da oposição, o que criou dificuldades em sua inserção inicial nas bases regionais e locais.340 Até 1974, o MDB sofria dois preconceitos: entre o eleitorado do interior ele era visto como um partido subversivo e comunista, enquanto que entre as esquerdas urbanas era visto com descrédito – com exceção do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que sempre esteve militando no MDB. 341 Conforme resume o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, no contexto inicial, “muitos achavam que apoiar o MDB era prestar um serviço aos militares”.342 A distinção deve ser feita aos membros do PCB, para os quais o “MDB se ajustava bem à estratégia estabelecida” para o enfrentamento da ditadura que sinalizava para a necessidade de construção de “uma frente democrática para tornar possível a derrota da ditadura, envolvendo todos os setores da oposição”.343 Como afirma Marieta de Moraes Ferreira, o MDB era visto, inicialmente, com desprezo por parte de setores radicais da oposição. Apesar disso, surgiu dentro do partido uma ala radical, conhecida como “autêntica”, o que gerava tensões com setores mais moderados do partido. 344 A partir das eleições de 1974, o MDB passou a ser visto de forma mais ampla como um meio de expressar a insatisfação com o regime, e, assim, sua estrutura foi ampliada. 345 A escolha dos candidatos do partido era feita a partir de suas convenções, tanto estaduais quanto municipais, as quais também escolhiam os membros das diretorias municipal, estadual e nacional.346 Em alguns estados existiam departamentos e setores diversos. No caso do Rio Grande do Sul, havia o Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais (IEPES), que promovia debates sobre os problemas 339 Idem, p. 29. Idem, p. 37. 341 Idem, p. 40. 342 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “O MDB e as esquerdas”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil volume 3 – Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 , p. 286. 343 Idem, p. 291. 344 FERREIRA, Marieta de Moraes. Vozes da oposição: ditadura e transição política no Brasil. In: SEMINÁRIO 40 ANOS DO GOLPE: ditadura militar e resistência no Brasil, Rio de Janeiro, 2004. Anais... Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. p. 184. 345 KINZO, Maria D’alva Gil. Oposição e autoritarismo – gênese e trajetória do MDB (1966-1979). São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1988,p. 41 346 Idem, p. 47. 340 97 socioeconômicos do país, modelo que, posteriormente, foi levado para outros estados. 347 Eliana Tavares dos Reis, em sua dissertação Juventude, Intelectualidade e Política: Espaços de Atuação e Repertórios de Mobilização no MDB dos Anos 70, vê o IEPES e os Setores Jovens do MDB do estado (em especial o Metropolitano e o de Santa Maria), “como veículos de demarcação de identidades (aproximação/exclusão) no interior da juventude e do partido” os quais acabaram “cristalizando grupos de identificações e de mobilizações políticas”.348 Como o MDB tinha uma estrutura precária, os núcleos do partido contavam com bastante autonomia. Isto permitiu que grupos de esquerda utilizassem da organização do MDB para promover ações políticas.349 Até 1974, a escolha dos candidatos do MDB era mais simples, uma vez que não havia tanta procura pelo partido. A partir deste momento, quando o MDB passa a se tornar mais interessante para as esquerdas, a escolha passa a ser mais complexa.350 Um fator que acabava determinando uma candidatura era a capacidade de um postulante representar diferentes áreas do estado ou setores específicos da sociedade civil, com o apoio de associações profissionais, sindicatos ou movimentos de bairros, por exemplo.351 Isto certamente explica a candidatura de Eloar Guazzelli em 1978 uma vez que provavelmente ele contava com o apoio de membros de organizações como a OAB e de militantes do PCB. Uma vez que o fator que unia os membros do partido era fazer oposição à ditadura, havia no MDB uma ampla gradação de posições políticas, indo desde conservadores até membros das esquerdas.352 Este é o exemplo do PCB, que participou do MDB desde sua fundação e chegou a eleger alguns candidatos, como foi o caso de Guazzelli. 353 Esta variedade de posicionamentos criava divergências dentro do MDB em relação a como a entidade deveria desempenhar seu papel. É consenso entre as análises sobre o MDB o fato de o partido abrigar duas correntes principais. A maioria dos parlamentares do partido pertenciam a um grupo mais moderado, enquanto havia um setor minoritário que era mais radical, que foi 347 KINZO. Op. cit., p. 49; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit., p. 295. REIS, Eliana Tavares dos. Juventude, Intelectualidade e Política: Espaços de Atuação e Repertórios de Mobilização no MDB dos Anos 70. Porto Alegre: UFRGS, 2001, p. 11 Dissertação de Mestrado em Ciência Política. 349 KINZO. Op. cit., p. 54. 350 Idem, p. 50. 351 Idem, p. 51. 352 Idem, p. 55-6. 353 Idem, p. 56. 348 98 denominado de diferentes formas: imaturos, autênticos, neo-autênticos, tendência popular. 354 A presença dos dois grupos era vantajosa para a entidade: a maioria moderada dava um aspecto confiável ao partido, enquanto que a atuação dos “autênticos” dava ao MDB credibilidade como partido de oposição.355 Rodrigo Patto Sá Motta frisa que “o grau maior ou menor de radicalismo verbal contra o regime militar não correspondia necessariamente a uma eventual filiação esquerdista”.356 De acordo com o autor, alguns dos discursos mais agressivos em relação à ditadura eram de “democratas radicais” enquanto que os comunistas, “muitas vezes assumiram atitudes conciliatórias e moderadas, tendo em vista o projeto de fortalecer a frente democrática contra o regime militar”.357 Motta ainda reforça que a filiação ao grupo dos “autênticos” não tinha a ver com uma filiação ideológica às esquerdas, mas a uma “atitude aguerrida e corajosa num contexto de extrema repressão”.358 A partir do momento em que o MDB passou a ser um canal para manifestação da oposição à ditadura, o governo começou a rever a questão do bipartidarismo. Esta manobra buscava acabar com o MDB sem fragmentar a ARENA.359 A ditadura alcançou seus objetivos uma vez que, enquanto eram ventilados estes planos de reformulação partidária em 1978 e 1979, diversos setores emedebistas já estavam articulando novos partidos.360 No caso do Rio Grande do Sul, setores vinculados ao trabalhismo vinham organizando, desde 1977, um “novo PTB” após a volta de Brizola, enquanto que o Setor Jovem Metropolitano e a Tendência Socialista do MDB vinham mobilizando-se junto de grupos trotskistas a fundação de um novo Partido, que seria o PT.361 Desta forma, em 1979 o MDB encontrava-se dividido entre aqueles que defendiam a criação de novos partidos e os que propunham a manutenção de uma frente única.362 Mesmo com os clamores de união, com o fim do bipartidarismo a oposição se fragmentou. Porém, conforme aponta Kinzo, mesmo que tivesse o objetivo de fracionar 354 Idem, p. 57 Idem, p. 58. 356 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit, p. 288. 357 Idem, p. 288. 358 Idem, p. 290. 359 KINZO. Op. cit., p. 205. 360 Idem, p. 207. 361 RODEGHERO, Carla Simone; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e irrestrita: a história de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011, pp. 184-9; REIS, Eliana Tavares dos. Op. cit., pp. 181-4. 362 KINZO. Op. cit., p. 207. 355 99 a oposição, “não deixava de ser uma medida liberalizante, que permitiria melhor acomodação das diversas correntes ideológicas”.363 Em dezembro de 1979 era fundado o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que, mesmo não mantendo o mesmo nome por uma manobra do governo, buscava uma identificação com o MDB. Conforme aponta Maria D’Alva Kinzo, o novo sistema partidário “não coincidiu com a instauração de um novo regime”364, o que levou o governo a lançar medidas que visavam dividir a oposição e manter a liberalização sobre controle, o que foi o caso do Pacote de Novembro. Apesar destas manobras, “o processo de liberalização continuava seu curso a passos lentos, e as eleições de 1982 refletiam com exatidão esse novo período”: diversos políticos afastados haviam retornado à vida pública, a oposição obtinha diversas vitórias e o PMDB conservava sua posição majoritária na oposição.365 Posteriormente o PMDB lideraria a campanha das Diretas Já, em 1984, e conseguiria eleger de forma indireta o moderado Tancredo Neves, em 1985, com uma chapa formada pelo antigo arenista José Sarney. Com a morte de Neves antes da posse, Sarney, o último presidente da ARENA, foi o primeiro presidente civil em mais de 20 anos.366 363 Idem, p. 208. Idem, p. 210. 365 Idem, p. 213. 366 Idem, p. 216. 364 100 Capítulo II - Reconstrução e resistência: a atuação dos advogados Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker entre os anos 1964 e 1973 Este capítulo abordará a trajetória dos advogados Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker entre os anos 1964 e 1973. Optei por tratar dos acontecimentos em que eles se envolveram a partir de uma estrutura cronológica; desta forma, estão intercalados diferentes eventos que ocorreram simultaneamente. Inicialmente buscarei refletir sobre a forma como cada um deles viveu e registrou o golpe de 1964 e sobre os grupos nos quais eles se inseriram durante estes anos iniciais da ditadura. Serão abordadas, posteriomente, as repercussões de processos de crimes políticos “comuns” nos quais os três advogados envolveram-se, a atuação deles em entidades classistas e as dimensões políticas que elas assumiram, bem como o funcionamento da Comissão Parlamentar de Inquérito criada na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em que investigou o assassinato do ex-sargento Manoel Raimundo Soares, bem como o tratamento dado aos presos políticos. Intento, com todos estes eventos, ver a forma como eram apresentadas a imagem de Guazzelli, Ferri e Becker. A partir da análise destes acontecimentos buscarei mostrar como começou a ser construída, por parte dos advogados, uma “reputação” como advogados e militantes de esquerda. II.1. O Golpe e os golpes de 1964 Os alemães e o cachorro dedicavam-se a uma operação militar que tinha um nome divertido e de fácil explicação, uma empresa humana raramente descrita em detalhe, cujo nome apenas quando relatado como notícia ou reportagem, dava a muitos entusiastas de guerra uma espécie de satisfação pós-coital. Na imaginação dos fãs do combate, são as carícias divinamente desanimadas que se seguem ao orgasmo da vitória. Chama-se de “operação de limpeza”. Kurt Vonnegut – Matadouro 5 Parto do pressuposto que o golpe civil-militar de 1964 foi percebido de forma diferenciada por cada pessoa, dependendo de sua posição política e social, profissão, além de entre outros fatores. Ao mesmo tempo, considero que o golpe e a ditadura que ele instaurou afetaram a vida de muitas pessoas, modificando o cotidiano, 101 interrompendo planos e forçando mudanças. Nas vidas de Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker é perceptível o impacto que o golpe teve. O golpe e a ditadura que o seguiu tinham como um dos fatores de mobilização e legitimação a oposição a um governo que existia no Brasil. Assim, antes de mais nada era uma reação a um governo que, segundo o discurso dos golpistas, iria instaurar uma “ditadura sindicalista”, na qual haveria a participação de grupos comunistas. O golpe, como procurarei demonstrar, teve dimensões anticomunista, antitrabalhista e antissindicalista, que podem ser representadas na trajetória de cada um dos personagens aqui retratados. II.1.1. O golpe anticomunista de Eloar Guazzelli Dos três personagens aqui abordados, Guazzelli certamente foi o menos afetado pelo golpe e pela instauração da ditadura civil-militar. Diferentemente de Ferri e Becker, ele não foi diretamente perseguido pela repressão. Isto fez de Eloar uma exceção, inclusive dentro dos advogados comunistas: Antônio Pinheiro Machado e Júlio Teixeira, por exemplo, foram presos nos primeiros momentos do golpe. A justificativa muitas vezes apontada pela memória familiar é de que ele não havia sido preso devido a intervenção de lideranças conservadoras de Vacaria, cidade natal de Eloar e na qual ele havia residido até 1963. De acordo com tal narrativa, o cacique político vacariano teria impedido a prisão de Eloar e de outros potenciais presos da cidade ao afirmar que “de meus comunistas cuido eu”. Da mesma forma, deve-se lembrar que seu tio, Samuel Guazzelli, era uma liderança política da cidade, e seu primo, Sinval Guazzelli, vinha firmando-se como jovem político da UDN no cenário do estado. Nesta narrativa, pode-se perceber algumas questões importantes a respeito da relação entre a repressão e a resistência. Há a necessidade de justificar o fato de Eloar não ter sido preso: afinal, por que ele teria saído incólume de um sistema repressivo tão implacável? Outros advogados comunistas haviam sido presos. Por que não Eloar? Existia a possibilidade de surgirem suspeitas a respeito da retidão político-ideológica dele, dando a entender que o fato de não ter sido alvo de uma perseguição direta poderia constituir um estigma, um atestado de culpa frente a seus correligionários. É possível inferir que Eloar sentia este potencial estigma, esta culpa; isto explicaria seu engajamento na defesa de presos políticos. Pode-se traçar um paralelo com a análise de Elisabeth Jelin sobre a questão das vozes dos sobreviventes do aparato repressivo argentino dentro da memória da 102 resistência.367 Como afirma a autora, mesmo que estas vozes tivessem sido escutadas, especialmente no âmbito do julgamento de ex-comandantes das juntas militares em 1985, su posición en la escena pública no había sido muy sencilla o fácil (...). El hecho de haber sobrevivido al horror generaba en muchos un halo de sospecha. A menudo, rondaba la pregunta acerca del por qué.368 De acordo com Jelin, havia suspeita e desconfiança em relação aos sobreviventes, derivada das razões de seu “privilégio”: teria sido colaboração, delação, traição? 369 Ao mesmo tempo, a explicação dada traz elementos importantes para analisar o funcionamento da repressão. Ele não havia sido preso devido a relações pessoais e familiares vinculadas a uma liderança conservadora. Pode-se pensar que esta narrativa afetava menos a imagem de Eloar enquanto um resistente: ele não havia sido preso por ter sido “fraco” frente à repressão, mas sim devido a uma peculiaridade das elites vacarianas. Seu pertencimento a uma família “tradicional” da cidade o teria ajudando. Este pertencimento à elite não é privilégio de Guazzelli, mas pode ser visto em outros casos analisados a seguir. O impacto do golpe na vida pessoal de Eloar foi sentido mais de forma subjetiva, através do medo do anticomunismo. Isto pode ser percebido através das narrativas presentes na memória familiar sobre o golpe de 1964: dentro dela, este período é lembrado como um momento de temor, de medo de uma vinculação com o comunismo ou com símbolos relacionados a este. Há uma anedota familiar que narra que logo após o golpe, Lizabel, a esposa de Eloar, escondeu livros, discos ou imagens que tivessem alguma relação com a União Soviética, como discos do Coro do Exército Vermelho ou um retrato do cosmonauta Iuri Gagarin. Mais do que um simples relato, esta narrativa mostra como este momento foi assimilado pela memória familiar: o golpe foi um momento de perseguição, de temor, que está relacionado diretamente à Guerra Fria. Uma vez que o golpe mostrava-se como anticomunista e antissoviético, havia a preocupação de desvincular-se dos símbolos do “outro lado da cortina de ferro”. Ter símbolos da cultura soviética era, assim, um JELIN, Elizabeth. “Víctimas, familiares y ciudadanos/as: las luchas por la legitimidad de la palavra”. In: Cadernos Pagu, Campinas, n. 29, julho-dezembro de 2007, pp. 37-60. 368 Idem, p. 51. 369 Idem, p. 51. De acordo com a autora, houve uma mudança disto a partir de 2004, com a eleição de Néstor Krischner, momento em que os sobreviventes passam a ter uma posição mais central dentro desta narrativa. 367 103 indicativo de “ser comunista”. E “ser comunista” era ser alvo de prisões. Este caso mostra o clima de “caças as bruxas” que se instaurou imediatamente após o golpe. Provavelmente o fato de não ter sido atingido por esta “inquisição” levou Guazzelli a engajar-se logo no início do regime na defesa de perseguidos pela ditadura. Já que ele não havia sido preso, tinha o dever de envolver-se na defesa daqueles que o foram. II.1.2. O golpe antitrabalhista de Omar Ferri Já Omar Ferri, nas entrevistas que concedeu, destaca sua forte atuação política partidária antes do golpe. Ele havia iniciado sua militância no PTB, seguindo os passos de seu pai. Havia ingressado na Ala Moça do partido, além de participar da corrente trabalhista no movimento estudantil da PUC do Rio Grande do Sul.370 De acordo com suas entrevistas, o jovem Ferri era muito atuante na política de sua cidade natal, Encantado. Em 1956, ao mesmo tempo em que iniciava sua prática profissional, era secretário do Prefeito da cidade, mostrando que estas duas atuações andavam lado a lado.371 Suas falas sobre este período denotam que Omar era uma liderança dentro do PTB encantadense, sendo reforçado por ele que, quando lançou candidatura a vereador em 1958, não fazia campanha para si, mas para seus correligionários de cada região específica do município.372 Ferri reforçou ainda que, apesar disso, foi o vereador mais votado, sendo eleito com 804 votos de um total de 8780 votantes.373 Sua atuação como jovem político trabalhista é reforçada pela menção à sua transferência a Brasília para trabalhar na Fundação Brasil Central (FBC), em julho de 1963, durante o governo de João Goulart. Ele havia passado em uma prova para o cargo e, de acordo com sua entrevista, havia trabalhado na administração da entidade, muito próximo à presidência da fundação.374 Durante esse período ele afirma ter transitado em diversos meios políticos, realizando um trabalho “de político da época”, mesmo sendo, segundo o próprio, de “pequena expressão”.375 370 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 23 de maio de 2013, p. 26. 371 “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 3. 372 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 23 de maio de 2013, p. 26. 373 O que é comprovado pela documentação do TRE RS http://www.trers.gov.br/upload/40/Municipais_Encantado19591.PDF 374 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre. 375 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 9 de junho de 2017. 104 De acordo com o relatado por Ferri ao Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul, ele foi levado ao cargo de procurador desta fundação para auxiliar seu presidente, Pedro Tassis Gonçalves: [Gonçalves], vendo que estava rodeado por adversários – a rigor, por inimigos – políticos, e falando com alguns políticos importantes do Rio Grande do Sul, alguns Deputados Federais, lembrou-se de mim. Ele, então, pediu que um deles fizesse um contato comigo para ver se eu aceitava sair de Encantado para ir para Brasília. Obviamente, aceitei ser Procurador.376 Durante o período no qual foi procurador da FBC, Omar Ferri viajou a Cuba, entre dezembro de 1963 e janeiro de 1964, por ocasião do quinto aniversário da revolução. Este convite, que o impediu de estar presente no nascimento de seu filho, surgiu de estudiosos cubanos que haviam sido auxiliados pela Fundação, anos antes.377 Em sua volta ele teria dado “duas entrevistas meio pesadas contra as forças conservadoras e até contra o próprio Exército Brasileiro, chamado por mim de reacionário e contrário aos interesses do povo brasileiro”.378 Nestas ocasiões ele teria afirmado que, diferente do brasileiro, o Exército cubano estava identificado por as aspirações nacionalistas e sociais do povo.379 O impacto da viagem à ilha caribenha deuse principalmente por Omar ver lá algo que imaginava que poderia acontecer também no Brasil. Nesta narrativa, Ferri se apresenta como jovem político trabalhista inserido em um projeto maior, relacionado ao nacionalismo desenvolvimentista. Fosse em Encantado ou em Brasília, ele estava envolvido com a causa trabalhista. Além disso, em seus relatos, o advogado reforça seu protagonismo nesta luta, reforçando seus atos e posicionamentos. Na eleição de 1962, Omar Ferri candidatou-se a deputado estadual, na qual ficou com a 44ª colocação do PTB, com 4954 votos, sem se eleger, portanto.380 É digno de nota que esta eleição só surge de forma passageira ou indireta em sua narrativa, em especial quando ele menciona que, em alguns momentos após o golpe, ele, enquanto “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 4. 377 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 23 de maio de 2013, p. 17. 378 “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p.5 . 379 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 9 de junho de 2017. 380 TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DO RIO GRANDE DO SUL. Resultado verificado no pleito de 7 de outubro de 1962. Porto Alegre, 1962, p. 18. Disponível em http://www.trers.jus.br/upload/42/Resultados_RS_1962.PDF.PDF 376 105 suplente, assumia na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. O silêncio a respeito deste fato talvez se deva a uma sensação de derrota em um momento em que sua carreira política vinha ascendendo. Neste contexto é possível que sua indicação ao FBC tenha surgido visando aplacar tal frustração. Com um histórico de proximidade ao governo Goulart e de visita a Cuba, não seria de estranhar que ele fosse perseguido logo após o golpe de 1º de abril de 1964. Omar Ferri relatou que durante os meses anteriores ao golpe, em Brasília sentia-se “uma anormalidade no ar, na atmosfera política” que inevitavelmente levaria a um golpe. Durante o golpe ele teria voltado a Porto Alegre em um voo da FAB e presenciado o comício realizado em frente à prefeitura, que teria ocorrido em 1º de abril, ao lado de Terezinha Irigaray, esposa do prefeito Sereno Chaise.381 De acordo com ele, neste momento, em especial a partir da fala de encerramento de Sereno, “se sentiu que o golpe tinha levado a melhor”. 382 O relato de Ferri sobre o golpe é interessante devido a dois fatores principais: inicialmente, a percepção que ele, enquanto trabalhista e participante do governo de João Goulart, tinha da “anormalidade no ar”: pode ser uma visão teleológica do fato, porém em outras fontes é possível perceber estes ventos carregados na política nacional. 383 Por outro lado, em sua narrativa ele dá a entender que logo após o golpe, havia uma percepção de “normalidade” por parte dos trabalhistas: ele cita que Chaise teria dito que as pessoas presentes no comício deveriam “voltar tranquilos para casa” e que a primeira-dama municipal teria dito que “agora tudo vai se acalmar e o Sereno vai continuar a administrar”.384 Algo semelhante seria a reação da sogra de Omar, que, segundo ele teria dito naquele momento “graças a Deus, terminou tudo”, ou seja, teriam terminado os confrontos.385 Frente a estas duas declarações, Ferri teria rebatido de forma a afirmar que, de acordo com sua visão, naquele momento é que “tudo” iria “começar”. 381 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre. Sobre o golpe em Porto Alegre ver: RODEGHERO, Carla S.; GUAZZELLI, Dante G.; DIENSTMANN, Gabriel. Não calo, grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, pp. 31-33. 382 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre. 383 Isto é possível de ser visto nas charges analisadas por Rodrigo Patto Sá Motta. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. 384 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre. 385 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 23 de maio de 2013, p. 3. 106 Mesmo assim, quando questionado sobre sua impressão da duração do golpe, ele afirmou que achava, naquele momento, que “não duraria um ano”. Pelo que se depreende das movimentações realizadas pelos trabalhistas no exílio, havia uma ideia de que logo o contexto mudaria e eles voltariam ao poder.386 Esta perspectiva dá uma dimensão da experiência vivida no golpe, pelo menos naquele dia 2 de abril. Logo esta visão por parte dos trabalhistas mudaria devido à perseguição. Omar afirma que naquele ponto ele já percebia que haveria perseguições aos trabalhistas no governo. Mesmo assim, ele retornou a Brasília nos dias seguintes. De acordo com a documentação trazida por ele e mencionada em diferentes entrevistas, ele foi expurgado da FBC no dia 20 do mesmo mês. Apesar de achar que ele tinha “pouca expressão” para que a repressão se preocupasse com ele, Ferri apontou que passou os meses seguintes ao golpe clandestino no Rio de Janeiro e em São Paulo.387 Ele acabaria por voltar ao Rio Grande do Sul devido a questões familiares, fixando-se em Porto Alegre, onde atuaria como advogado e, eventualmente, como deputado. Assim, nos seus relatos, o golpe representa a quebra de uma emergente carreira política. Ele realizara investimentos neste sentido há anos, e já estava colhendo os frutos deste trabalho. Isto é perceptível na própria forma como Ferri fala, que é marcada por uma impostação e oratória características de alguém preparado para os palanques. De acordo com Ferri, em um determinando momento houve um Golpe Militar e acho que quem pensava como eu caiu em desgraça política. Eu não me adaptei nunca ao tipo de política que era necessário que se fizesse ao tempo da ditadura ou pós-ditadura.388 A ideia de quebra de um projeto de carreira está presente em um diálogo relatado à Comissão Estadual da Verdade: Ferri relatou que o Cel. Bermudez, Secretário de Segurança do Rio Grande do Sul, o havia questionado sobre como ele poderia defender os “subversivos”. A isto Ferri respondeu que “eu sou advogado[,] tenho um 386 RODEGHERO, Carla S.; GUAZZELLI, Dante G.; DIENSTMANN, Gabriel. Não calo, grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, pp. 49-52. 387 “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 6; FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 23 de maio de 2013, pp. 17-18. 388 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 23 de maio de 2013, p. 26. 107 diploma e tenho que trabalhar na minha profissão pra sobreviver[,] porque eu fui expurgado pelo seu Governo”.389 Com a ruptura representada com a saída da FBC, ele se transferiu para Porto Alegre “pelado, com dois filhos, três filhos, empregada, sogra e aluguel. E eu pelado”, ou seja, sem recursos financeiros.390 Ferri afirmou, em outra entrevista, que o expurgo ou a cassação “muda completamente a vida, o estilo de vida, a atmosfera familiar”, que o atingido “sofre o baque de uma mudança radical”.391 Nesta situação, Omar Ferri iniciou seu trabalho na capital com a ajuda de colegas que o abrigaram em seu escritório, atuando principalmente no direito trabalhista, no criminal, civil e administrativo. Ainda buscando novas fontes de renda após o golpe, Ferri inscreveu-se no concurso para o Ministério Público. Porém, após refletir sobre impacto que teriam em sua vida privada as transferências, optou por desistir. Assim, ele entrou em contato com o secretário do concurso, o promotor Dante Gabriel Guimaraens, e fez a desistência formal.392 Depois, ao encontrar outros candidatos, descobriu que sua inscrição, assim como a deles, havia sido impugnada, devido a razões políticas. Ferri recorreu, mas não obteve sucesso. II.1.3. O golpe antissindicalista de Werner Becker Apesar de contar com somente vinte e nove anos, Werner Becker já havia tido uma carreira profissional variada antes do golpe. Ele iniciou o curso de Direito, mas abandonou-o, indo trabalhar como secretário do deputado petebista Temperani Pereira, na Assembleia Legislativa e posteriormente, a partir de 1959, na Câmara dos Deputados.393 Ele afirma não ter gostado de viver no Rio de Janeiro e ter voltado a Porto Alegre, atuando no gabinete do prefeito Loureiro da Silva: isto está relacionado, CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 72. 390 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre. 391 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 23 de maio de 2013, p. 26. 392 “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 18. Como indica o nome Guimaraens é meu avô materno. A menção a ele é feita principalmente através de minha avó, Nair, que também é de Encantado e iniciou sua carreira como professora no distrito de Ilópolis, o qual a família de Ferri residia. 393 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre 3 de junho de 2017. 389 108 também, com seu primeiro casamento e ao nascimento de seu primeiro filho.394 Becker estava, assim, vinculado a um setor do trabalhismo crítico de Brizola: Loureiro da Silva, por exemplo, deixou o PTB devido a dissidências com este líder indo para o Partido Democrata Cristão (PDC).395 Nos anos seguintes, Werner deixou de trabalhar na política partidária e passou para a publicidade e, posteriormente, para o rádio e televisão. 396 No Diário de Notícias de Porto Alegre de 8 de março de 1964 era anunciada uma reformulação do “Grande Jornal Ipiranga”, noticiário da TV Piratini, Canal 5, filiada à Rede Tupi.397 Entre as inovações apontadas, surge o nome do redator Werner Becker. Conforme já mencionado, ele havia iniciado o curso de Direito no final da década 1950, mas abandonou-o por não ter interesse na área. Neste momento, foi estudar filosofia, mas, como Becker afirmou, “nos classificados não estavam precisando de filósofos”, e, por possuir contatos no jornalismo, acabou iniciando esta carreira.398 Assim, Werner Becker iniciava o ano de 1964 como um jovem profissional em uma nova área de atuação: a televisão. Ao mesmo tempo, ele era vice-presidente do Sindicato dos Radialistas, em uma chapa em que Lauro Hagemann era o presidente. Durante seu mandato, em setembro de 1963, Hagemann e Becker teriam organizado a primeira greve dos radialistas. Após a greve, ele entrou com um processo na justiça contra seus empregadores por não lhe darem aumento: Werner afirma que este foi um momento em que viu que poderia gostar de advogar.399 Em 1965, ele passaria a atuar na Rádio Gaúcha; posteriormente, seria afastado do trabalho por suas posições políticas, mas sem ser demitido, já que possuía mandato sindical. E foi neste momento de “limbo” profissional que ele iniciou seu trabalho como solicitador acadêmico, enquanto retomava o curso de Direito.400 Para ele, esta situação 394 Idem. Idem. Apesar disto, ele afirmou que o prefeito Loureiro apoiou a Campanha da Legalidade .Por esta razão que Becker teria presenciado a gravação do célebre discurso de Brizola na Rede da Legalidade. 396 Idem. 397 "O Grande Jornal Ipiranga do Canal-5 em Nova Fase". In: Diário de Notícias, Porto Alegre, 8 de março de 64, Segundo Caderno, p. 5. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/093726_04/27917 398 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 25 de setembro de 2012, p. 3 399 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre 3 de junho de 2017. 400 Idem. 395 109 demonstrava o caráter “artesanal”, “semi-legalizado” da repressão nestes primeiros momentos: ao mesmo tempo que o impediam de trabalhar, não podiam demiti-lo.401 Foi então que Becker foi preso, devido, “como diz o Candido Norberto, ‘por causa de uma bofetada privada’”.402 Ele teria tido discussões com o responsável pela perseguição política na imprensa, quando teria pedido para diminuir as demissões, visto que estas afetavam a vida das pessoas.403 Após a demissão de um colega, o sindicalista, ao ver o algoz andando na Rua da Praia, no Centro da capital, atingiu-o nas costas. Como Becker relatou à Comissão Estadual da Verdade, Eu cheguei pelas costas dele, dei uma porrada e um joelhaço no... na fenda, entende e pegou bem porque ele se retorceu e gritou covarde, pelas costas , eu digo vem cá mas torturador tem ética agora, e foi que bom aí tudo bem, aí eu fui preso.404 A narrativa de Werner Becker traz uma dimensão mais cômica e irônica sobre os acontecimentos. Este caso, por exemplo, poderia ser relatado de uma forma a mostrá-lo como um resistente, alguém que se impôs, fisicamente até, ao arbítrio e à repressão. Ele poderia ter reforçado o caráter coletivo de sua agressão: ele, como representante de uma categoria, frente às injustiças ia de encontro ao agente da repressão. Apesar de trazer alguns elementos disto, ele opta por pintar o caso com cores picarescas, tratando como “uma bofetada privada”, dada pelas costas. Ao mesmo tempo, Werner Becker ressaltou esta dimensão “privada” da agressão pois ela foi a motivadora de sua prisão. A agressão, de acordo com ele, deveria ser resolvida em uma esfera privada e não na pública. Assim, ele foi preso sem motivo, segundo Becker, junto de seu colega e amigo, Ibsen Pinheiro. Sobre a prisão, ele relatou dois episódios que refletem o tom da narrativa de Becker. Ele contou não ter sofrido torturas. Ao ser preso, ameaçou seus algozes: “Olha, vocês se me baterem, quem toca a mão em mim, eu quando sair daqui eu vou dar um tiro na cabeça. E se baterem encapuzado, eu vou dar um tiro em ti! [referindo-se a um torturador]” daí o cara disse “Mas por que em mim?” Eu disse: “porque eu te sorteei, tá. Agora te fode, bate que tu vai morrer, quando me tirarem daqui dentro”.405 401 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 25 de setembro de 2012, p. 6. 402 Idem, p. 6 . A fala do então deputado Cândido Norberto teria sido aparentemente em discurso na ALERS. 403 Idem, p. 5 ; CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 65. 404 CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 65. 405 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 25 de setembro de 2012, p. 5. 110 Em outro momento, Becker e Pinheiro ouviram em uma cela próxima um uruguaio preso por contrabando clamando pela presença de um advogado, que teria recebido a resposta de Ibsen afirmando que havia dois. 406 Posteriormente eles foram soltos, sob protestos de Werner, já que “não me explicaram porque eu fui preso, e agora eu vou ser solto[,] eu não sou fechecler o que é isso? (...) vão achar que eu estou dedurando alguém e tal que história é essa?”.407 De forma mais explícita do que no caso de Guazzelli, percebe-se no relato o temor da vinculação à traição. Da mesma forma que a memória familiar do advogado vacariano, Becker afirma que foi liberado da prisão por ter “muitas relações”, ou seja, a partir de seus contatos.408 Nestes relatos, Becker busca mostrar o caráter intermediário da repressão no momento. Por outro lado, vemos duas características muito frequentes na narrativa do advogado: ao mesmo tempo em que ele ressalta a dimensão cômica, ele se mostra como alguém de temperamento explosivo. Comparando seu relato com os relativos de Eloar e Omar, temos que o golpe foi um momento no qual o jovem estava buscando encaixar-se na vida profissional. II.2. O comunista, o brizolista e o ermitão político: os advogados e seus grupos Ao mesmo tempo em que cada um deles viveu o golpe de forma diversa, estes advogados realizaram suas trajetórias inseridos em grupos, sejam eles de outros advogados ou não, que buscavam atuar nos meios jurídico e/ou político. Esta inserção acabou definindo a diferença como cada um deles atuou ao longo do período analisado. Isto explica, por exemplo, a razão de Eloar ter mais participação no período analisado neste capítulo, em especial no âmbito jurídico. Além de já estar advogando no momento do golpe, ele participava de um grupo de comunistas que buscavam atuar nos meios profissionais com propósitos políticos. Tratava-se da chamada frente intelectual do PCB existente em Porto Alegre entre 1947 e 1960, analisada pela historiadora Eliane 406 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 25 de setembro de 2012, p. 5. 407 CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, pp. 65-66 408 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 25 de setembro de 2012, p. 6 111 Garcia.409 Estes “intelectuais” não eram somente escritores e artistas, mas também profissionais que tinham algum tipo de diploma universitário – como médicos, engenheiros e advogados.410 O partido objetivava que estes militantes se dedicassem à atividade política nos meios profissionais, sociais e comunitários em que circulassem cotidianamente, certamente aproveitando para fins políticos os conhecimentos, amizades, (sic)e influências que já dispunham.411 Conforme apontei em outro momento, Eloar fazia parte, assim, “de um projeto coletivo, no qual a atividade profissional era um espaço utilizado para fins políticos”.412 Segundo o advogado comunista Honório Peres relatou em entrevista à esta pesquisa, com este intuito, os advogados comunistas organizaram, antes do golpe, um comitê, que buscava coordenar estas atividades.413 O grupo – que seria chamado de Centro de Estudos Jurídicos e Sociais (CEJUR) e chegou a contar com estatutos – foi a base para a atuação dos advogados comunistas, em especial no Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS) e na seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RS).414 Ainda segundo ele, “através do CEJUR, a gente fazia tudo”, sendo que aquelas atividades, tinham, no final, um cunho político. Para Honório, os comunistas acabavam sendo políticos atuantes “no meio dos advogados. E conhecidos como comunistas” por parte dos outros colegas.415 Como exemplo desta atuação da frente intelectual, pode-se perceber a presença de advogados vinculados ao PCB na diretoria do IARGS desde meados da década de 1940, muitas vezes próximos de consagrados juristas católicos analisados por Engelmann.416 409 GARCIA, Eliane Rosa. A ação legal de um partido ilegal: o trabalho de massa das frentes intelectual e feminina do PCB no Rio Grande do Sul (1947-1960). Porto Alegre, UFRGS, 1999. Dissertação de Mestrado em História. 410 Idem, p. 108. 411 Idem, p. 109. 412 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 18. Dissertação de Mestrado em História. 413 PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre 414 Idem. Inicialmente, na entrevista, Peres não tinha lembrança do nome oficial dado ao grupo, chegando ao termo CEJUR, o qual não consegui verificar em outras fontes. Desta forma utilizarei CEJUR e cejuristas para me referir aos advogados do PCB que atuavam em sintonia com o mesmo projeto políticoprofissional. 415 Idem. 416 ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006, pp. 72- 74. Em 1944 e 45, Júlio Teixeira foi presidente da entidade em uma diretoria que contava ainda com os comunistas Carlos Aveline (como suplente em 1944) e Paulino de Vargas Vares (2º orador em 1944 e 2º secretário em 1945); em 1947, sob a presidência de Armando Dias de Azevedo, Paulino de Vargas Vares foi novamente 2º secretário; em 1949 e 1950 Teixeira foi 1º VicePresidente em uma chapa presidida por Octavio Abreu da Silva Lima; em 1952, quando Itiberê de Moura foi Presidente, Eloar Guazzelli foi 2º orador, o que ocorreu também nos dois anos seguintes, sob a 112 Por pertencerem a um partido ilegal, os pecebistas precisavam criar outras estratégias para atuar politicamente. Assim, quando foi dado o golpe, os advogados comunistas já vinham utilizando espaços do campo jurídico para fins políticos, o que não ocorria com advogados vinculados ao trabalhismo, por exemplo. Como afirma o historiador Rodrigo Patto Sá Motta ao analisar a participação do PCB no MDB, As esquerdas marxistas-leninistas tinham uma larga tradição de militância clandestina e, com a extinção do pluripartidarismo, mantiveram suas organizações funcionando sem grandes alterações. Suas estruturas peculiares permitiram que continuassem a manter ações coordenadas, enquanto outros grupos encontravam mais dificuldade para subsistir em meio a repressão.417 Uma forma de atuação política dos advogados comunistas dava-se desde que o partido havia sido posto na ilegalidade, em 1947, através dos meios jurídicos, o que é uma diferença para advogados vinculados ao trabalhismo, como Ferri, que tinham a possibilidade de concorrer a cargos. Assim, os comunistas já estavam adaptados para a nova realidade construída a partir de 1964. Esta é uma explicação para a maior presença de Eloar nos documentos analisados aqui: enquanto que Werner e Omar buscavam, antes de mais nada, organizar sua vida, o comunista, além de já ser advogado, estava inserido em uma rede que empregava meios que estavam mais adaptados à nova realidade. Peres aponta o advogado Júlio Teixeira como líder do grupo: ele “botava a turma para frente”, isto é, organizava e mobilizava os comunistas.418 Além disso, Teixeira “tinha um prestígio muito grande entre todos os advogados”, independente de posicionamento político-ideológico, o que permitia a sua inserção nas entidades classistas.419 Isto era amplificado pela proximidade entre Júlio Teixeira e Justino Vasconcelos, que foi presidente do IARGS, na década de 1960, e da OAB/RS na década presidência de Caio Brandão de Mello; entre 1956 e 1959, Ajadil de Lemos foi presidente, tendo como 2º Vice-Presidente Júlio Teixeira. Nos anos 1958 e 1959, Antonio Pinheiro Machado Netto foi 2º orador; e, no biênio 1960/1961, quando a entidade foi liderada por Walter Tschiedel, Teixeira foi 1º Vice-Presidente e Pinheiro Machado Netto foi orador. Deve-se ressaltar que os comunistas não eram os únicos “políticos no meio dos advogados” presentes no IARGS: um exemplo é a participação de Armando Temperani Pereira (PTB) na direção de 1944 e 1945, de Tarso Dutra (PSD) em 1945 e Paulo Brossard de Souza Pinto (PL) em 1951 e 1956. MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz (org). Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul - 60 anos de existência. Porto Alegre: IARGS, 1986, pp. 74- 80. 417 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “O MDB e as esquerdas”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil volume 3 – Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 291 418 PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre 419 Idem. Esta inserção de Teixeira fica clara no fato dele ter sido presidente do IARGS entre 1944 e 1945. 113 seguinte. Mesmo não pertencendo à ideologia, Vasconcelos era, segundo Peres, “muito fiel, muito correto com os comunistas, sabe. Tinha um respeito muito grande pelo Júlio [Teixeira]”. 420 Mostrarei, ao longo deste capítulo, como é perceptível esta relação entre Justino Vasconcelos e os comunistas, nas atas do IARGS e da OAB/RS. Honório ressaltou que durante a prisão de advogados comunistas em meados da década de 1970, Justino manteve o conselho estadual da OAB/RS em sessão permanente, além de interceder em nome dos detidos frente a autoridades.421 Vasconcelos acabou constituindo um aliado tático dos advogados comunistas: com isto, os comunistas tinham um espaço de atuação, ao mesmo tempo em que Justino construía uma imagem de resistente à ditadura. Podemos ver, assim, que a relação de proximidade entre alguns advogados atuantes nas entidades classistas com os advogados comunistas é análoga à existente entre os setores moderados e os “autênticos” do MDB, A partir da mobilização feita pelo CEJUR, alguns advogados, como Teixeira, Antônio Pinheiro Machado Neto e Eloar, eram destacados para atuar nas entidades dos advogados.422 Peres frisou que a atividade de Guazzelli nestes meios tinha estreita relação com isto: Eloar teria sido, por exemplo, designado pela organização para atuar na CPI das mãos amarradas.423 Ao ser questionada sobre o período em que Eloar havia sido presidente do IARGS, a ex-colega de escritório Heloiza Villeroy, afirmou na entrevista que me concedeu que não gostava muito daquele ambiente elitista, que considerava muito cheio de “frescuras”, mas entendia que o advogado “se sentia na obrigação de ir lá, de falar, de dizer alguma coisa diferente”.424 Honório Peres afirmou ainda, em sua entrevista, que não lembrava de haver oposição por parte de outros advogados à atuação de comunistas nestas entidades, uma vez que eles eram advogados prestigiados.425 Por outro lado, Heloiza menciona que quando Eloar foi eleito presidente do IARGS, havia “um casal lá que ficou indignado”.426 Há indícios que este casal seria Érico Maciel Filho (que havia sido 420 Idem. Justino Vasconcelos foi apontado por Peres e Werner Becker como um advogado ideologicamente vinculado a um catolicismo conservador. 421 Idem. 422 Idem. 423 Idem. 424 VILLEROY, Heloiza. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 11 de junho de 2013. 425 PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre. 426 VILLEROY, Heloiza. Op. cit. 114 presidente) e Olga Bragança Maciel, que haviam perdido a eleição para a chapa do comunista. É provável que esta aversão mostrada se desse por Eloar ser comunista e, ao mesmo tempo, ser parte de um grupo rival dentro da entidade. Como mostrarei, a atuação dos advogados comunistas deu-se em interação com outros grupos de advogados. Ao mesmo tempo, Eloar atuou junto a colegas de escritório em sua atividade profissional. No início da ditadura, ele contava com o auxílio de Nereu Lima, que, assim como seu irmão Jarbas em Vacaria, iniciou no escritório de Guazzelli como office boy, passando a secretário e, posteriormente, solicitador acadêmico.427 Próximo do final da década de 1960, a banca de Guazzelli passou a contar com as advogadas Ana Eni Machado Milan, Heloiza Villeroy e Amanda Soler Machado, além da secretária Denise Broda.428 Villeroy e Machado posteriormente saíram do escritório e, no início da década de 1970, o filho de Eloar, Carlos Frederico, passou a atuar lá. Não é possível, assim, separar a atuação do advogado comunista destas duas redes nas quais ele se inseria. Como mostrei na seção anterior, Omar Ferri estava inserido, no momento do golpe, na vida político-partidária, atuando como “um político de pequena expressão”, nos termos utilizados por ele.429 Assim, nos anos iniciais da ditadura ele participava de um grupo de brizolistas vinculados à Ala Moça do PTB que se encontrava diariamente na Rua dos Andradas, no centro de Porto Alegre.430 A atuação deste grupo nos primeiros anos da ditadura era marcada por esta dimensão política vinculada a lideranças trabalhistas, na qual não havia interface com os meios jurídicos. Daí que os acontecimentos narrados por ele nos anos iniciais da ditadura estejam, que estão relacionados com sua atuação política. Ao narrar seus embates com a 427 LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em dia 8 de agosto de 2013, pp. 1-2. 428 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 87. Dissertação de Mestrado em História; VILLEROY, Heloiza. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 11 de junho de 2013. Curiosamente Eni e Heloiza chegaram ao escritório de Eloar devido a atuações em casos políticos anteriores no interior do estado. 429 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 9 de junho de 2017. 430 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 9 de junho de 2017; PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enríquez. Memórias da Resistência e da Solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua Conexão Repressiva. Porto Alegre: Ed ASF-Brasil, 2013, p. 118. 115 repressão ele afirma ter sido preso duas vezes; em ambas havia uma relação com a figura de Leonel Brizola.431 Uma delas estava relacionada à sua atividade como “pombo-correio”: militantes trabalhistas iam ao Uruguai como mensageiros entre líderes trabalhistas no exílio e políticos no Brasil.432 Ferri reforça que ele foi, muitas vezes, pombo-correio de Brizola, contando ainda hoje com bilhetes e cartas manuscritas pelo político gaúcho.433 Em uma destas vezes, ele foi parado na volta ao Brasil, em Santa Vitória do Palmar, e ficou detido lá por três dias, até que um amigo interviu a seu favor frente a um coronel que comandava a região.434 O outro caso derivou de um almoço em uma churrascaria deste grupo de “alucinados brizolistas” contrários à ditadura, em setembro de 1965.435 Em determinado momento, um dos convivas, Egídio Maroco, pediu ao garçom uma cachaça “a lá Brizola” – que seria uma cachaça “de culhão roxo” –, o que foi escutado, em mesa contígua, por um informante do DOPS.436 Ao final do almoço, o grupo foi abordado pelos agentes deste órgão e foram, com seus carros, para a prisão.437 Na manhã do dia seguinte, Omar, uma vez que tinha uma audiência importante, “libertou-se” a si mesmo da detenção. Em liberdade, ele mobilizou políticos oposicionistas, fato que lhe possibilitou libertar seus companheiros dois dias depois.438 Além destas prisões, houve ainda uma tentativa de prisão, realizada logo após o golpe. Na entrevista concedida ao Memorial do Judiciário, ele afirma que o motivo foi ter intermediado o repasse de verbas para a construção de casas populares em Caxias do Sul ainda durante o governo de João Goulart. Após o golpe, um coronel, na provável tentativa de encontrar uma transação ilícita, teria procurado o advogado do Banco do Brasil em Caxias, Renan Falcão de Azevedo, com o objetivo de prender Ferri. Neste momento, Ferri estava assumindo na Assembleia Legislativa, após uma onda de “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, pp. 6-7. 432 RODEGHERO, Carla S.; GUAZZELLI, Dante G.; DIENSTMANN, Gabriel. Não calo, grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, pp. 50- 51. 433 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 9 de junho de 2017. 434 Idem. 435 Idem; FERRI, Omar. Seqüestro no Cone Sul – o caso de Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 20. 436 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 9 de junho de 2017. 437 Idem. 438 Idem. 431 116 cassações. Quando perguntado quem era Omar Ferri, Azevedo “abriu o jornal e mostrou que eu estava assumindo na Assembleia Legislativa. O Coronel voltou para Brasília e nunca mais se interessou por mim. Quer dizer, passei em brancas nuvens”.439 Assim, neste primeiro momento da ditadura civil-militar, Omar Ferri, assim como outros políticos trabalhistas, buscava reorganizar sua vida profissional e política. Ele mencionou em entrevista concedida a mim que seu grupo de “alucinados brizolistas” tinha no horizonte a volta do líder trabalhista e a retomada do poder. Assim, provavelmente, a inserção no meio jurídico com propósitos políticos ainda não era algo que motivasse grandes investimentos, já que ele imaginava que logo voltariam a atuar na política formal. Partindo das três figuras de resistências relativas ao direito propostas por Liora Israël, Ferri encontrava-se, nos anos iniciais da ditadura, mais vinculado a uma resistência apesar do direito: sua resistência era mais vinculada à dimensão política do que jurídica.440 Ao longo do período analisado aqui, a atuação do advogado vai se transformando em, inicialmente, uma resistência à sombra do direito, através da defesa de presos políticos, por exemplo, e, finalmente, em uma resistência em nome do direito – através das denúncias e de sua atuação na OAB, analisada na parte final desta tese.441 Ao mesmo tempo, como Omar Ferri afirma, ele ainda não possuía uma “solidez profissional”, como os advogados comunistas tinham.442 Como havia dirigido sua atenção para a atividade política partidária, ele não era, ainda, visto como um “advogado de maior representatividade, de maior presença na vida jurídica do Estado”.443 Ainda de acordo com seu relato, Ferri iria galgar “estágios” até atingir este patamar, o que seria representado, por exemplo, pelo caso do sequestro dos uruguaios. 444 Em relação a partidos, Werner Becker gosta de afirmar que “passei por vários partidos e várias mulheres, não achei muita diferença em nenhum” e que ele não tem “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 6. 440 ISRAËL, Liora. “Resistir pelo direito? Advogados e magistrados na Resistência francesa (19401944)”. In: Prisma Jurídico, São Paulo, Uninove, v. 10, n. 1, jan./jun. 2011 p. 70. 441 Idem, p. 72-4. 442 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 23 de maio de 2013, p. 18. 443 Idem, ibidem. 444 Idem, ibidem. 439 117 nenhum compromisso com a coerência.445 Baseado na frase atribuída à Groucho Marx – “não participo de um clube que me aceite” – ele define-se como um “ermitão político”.446 Desta forma, Becker gosta de salientar sua radical independência política em relação a partidos, um traço que o distingue, pelo menos neste período, de Eloar e Omar. Apesar de sua vinculação inicial com políticos como Temperani Pereira (PTB) e Loureiro da Silva (PDC), não é possível ver uma vinculação maior de Becker com um grupo político, formal ou informal. Ao mesmo tempo, ele aponta para sua rede de relações, que lhe possibilitava a inserção em diversas situações. A defesa de presos políticos surgiu, aliás, através de relações de amizade: ele iniciou nesta área através de uma indicação feita pelo seu amigo e advogado Carlos Araújo.447 Por mais que esta atuação lhe trouxesse também retornos políticos ou de reconhecimento com a oposição, Werner buscava nela especialmente um espaço profissional. Outra pessoa próxima a Werner Becker é Ibsen Pinheiro: os dois haviam trabalhado juntos em diversos momentos, haviam sido demitidos, presos e iniciado escritório de advocacia juntos.448 Becker aponta para a afinidade com diversas pessoas da imprensa. Por esta razão ele chegou a colaborar com uma iniciativa deste grupo, o jornal Pato Macho.449 Sua colaboração tinha um caráter humorístico, ficando voltada a anedotas e frases cômicas, relacionada com seu anterior trabalho como redator da Televisão Piratini. Para Werner esta publicação era o “embrião do MDB jovem”, ou seja, daquele grupo que levaria o partido a posições mais às esquerdas.450 Ele também fez questão de reforçar sua proximidade pessoal e profissional com Eloar: em diferentes 445 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 25 de setembro de 2012, p. 18. 446 Idem, p. 17. 447 Idem, p. 8. Carlos Araujo era filho do também advogado comunista Afrânio Araújo, que tinham escritório no mesmo prédio de Becker. O escritório de Araujo era especializado em direito do trabalho e, de acordo com Becker, por esta razão, optaram por não assumir a defesa de presos políticos, indicando clientes para o jovem defensor. Sobre a atuaçâo do escritòrio de Afrânio Araújo durante a ditadura ver: ARAUJO, Carlos Franklin da Paixão. Entrevista concedida a Francisco Carvalho Junior e Dante Guimaraens Guazzelli para o Projeto Marcas da Memória: História Oral no Brasil em Porto Alegre no dia 11 de abril de 2011. 448 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 25 de setembro de 2012, p. 18 449 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre 3 de junho de 2017. 450 Idem. 118 momentos ele narra situações em que os dois advogados se ajudaram em casos.451 Guazzelli chegou a representar Becker em um processo.452 De qualquer forma, este jovem advogado, assim como Ferri, estava buscando ingressar nos meios jurídicos e sua atuação não estava inserida em um coletivo, como acontecia com Eloar. Estas diferenças entre os perfis e os grupos aos quais pertenciam os três advogados que são objeto do trabalho vão determinar as diferentes trajetórias que cada um deles irá tomar no primeiro período analisado. Guazzelli, por já estar advogado e, ao mesmo tempo, participar de um grupo que já buscava atuar politicamente em entidades da classe teve uma participação mais ativa neste momento do que Ferri e Becker. Mesmo assim, é possível perceber os movimentos profissionais feitos por estes últimos. II.3. Políticos no meio de advogados I: comunistas no IARGS e na OAB/RS nos primeiros anos de ditadura (1964-1966) Frente às mudanças que ocorriam logo após o golpe de 1964, as entidades dos advogados apresentavam posturas ambivalentes. Nos anos iniciais da ditadura tanto o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS) quanto a seccional riograndense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RS) em suas reuniões variavam de momentos de apoio ao novo regime a outros de críticas, em especial no que se refere ao tratamento dado a advogados. Devido a menor número de participantes, no registro das reuniões do IARGS esta dualidade acabou ficando mais aparente do que na OAB/RS. Ao mesmo tempo, nos primeiros anos da ditadura há indícios de que o Instituto assumiu posturas críticas mais fortes do que a Ordem, sendo a participação do IARGS no caso das mãos amarradas o acontecimento que melhor indica esse posicionamento. De qualquer forma, é clara a proximidade entre as duas instituições, uma vez que elas possuem características complementares: a OAB/RS é uma entidade corporativa, que busca garantir e regulamentar o exercício da advocacia, enquanto que o IARGS tem um caráter cultural. Por ter esta dimensão, nas reuniões do Instituto eram tratados temas relacionados ao contexto nacional e internacional, o que é ressaltado pelo fato dele ser filiado ao Internacional Bar Association, órgão consultivo da ONU. 451 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre 16 de julho de 2017, pp. 17-8. 452 Idem, p. 23. 119 Durante este período foi discutido nas sessões do Instituto o relatório da comissão Warren (relativo ao assassinato do presidente estadunidense John F. Kennedy), o apartheid na África do Sul, a situação dos presos políticos de Cuba, entre outros temas.453 A partir das atas, percebe-se que há um posicionamento conservador e moderado da entidade frente a estes temas. Esta postura fica ressaltada pelo fato de que a proposta de criação de um departamento feminino feita por uma das poucas advogadas presentes não é levada adiante. 454 Conforme já apontado o IARGS é uma agremiação mais restrita que a Ordem, ficando reservada a uma elite dos advogados. A relação entre as agremiações se dá, ainda, pelo fato de que o Instituto foi criado em 1926 com a intenção de auxiliar na constituição da Ordem. Finalmente, há que se considerar que muitos membros do Conselho Estadual da OAB/RS acabaram militando também no IARGS e vice-versa: um exemplo é o caso de Justino Vasconcelos, que foi eleito presidente do IARGS em 1968 e da OAB/RS durante a década de 1970. Eloar Guazzelli foi ativo membro do Instituto após o golpe, e, a partir de 1966, passou a fazer parte do Conselho Estadual da Ordem, inicialmente como membro indicado pelo IARGS e, posteriormente, como conselheiro eleito.455 Conforme apontou Honório Peres, havia uma indicação para os advogados do PCB atuarem ativamente em seus espaços classistas.456 Com este intuito advogados como Eloar Guazzelli, Antônio Pinheiro Machado Neto e Julio Teixeira participavam das entidades citadas. A participação de Teixeira, que é apontado por Peres como líder do grupo,457 no IARGS é um caso exemplar disso: de acordo com as atas, em praticamente todas as reuniões em que está presente ele se pronuncia e participa de alguma atividade. Julio Teixeira já havia sido presidente da organização entre 1944 e 1946. As atividades e manifestações dos comunistas nestes espaços variavam de algumas com cunho político para outras relacionadas ao funcionamento e organização dos sodalícios. Imagino que para terem mais força dentro das entidades era importante que os comunistas participarem ativamente delas. “Sessão ordinária do dia 6 de maio de 1964”; “Sessão ordinária do dia 13 de maio de 1964”, p. 2; “Ata da sessão ordinária de 12 de maio de 1965”; “Ata da sessão ordinária do dia 24 de novembro de 1965”. In: In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 454 “Sessão ordinária do dia 6 de maio de 1964”. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 455 “Reunião de 4 de outubro de 1966”, p. 1; “Apuração das eleições para biênio 1969/1971, dia 16 de dezembro de 1968”, p. 1. In: OAB/RS, Livro de Atas do Conselho – 10 – 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 456 PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre. 457 Idem. 453 120 Tratarei aqui da presença de debates e manifestações das entidades no que se refere a questões políticas e jurídicas da ditadura. Conforme já mencionei, Guazzelli foi mais atuante nestas entidades do que Ferri e Becker, e por isso está mais presente nestas análises. Ao mesmo tempo, a atuação de Eloar nestes espaços deve ser vista como parte da estratégia de um grupo: os advogados comunistas reunidos no CEJUR. Com este objetivo analisarei também a participação de outros advogados deste grupo, como Antônio Pinheiro Machado Neto e Júlio Teixeira. Isto ocorre nos dois anos iniciais da ditadura, momento em que Guazzelli não é, ainda, atuante no Instituto. Nas duas sessões seguintes ao golpe civil-militar é possível ver o posicionamento dúbio do IARGS. Na primeira sessão do Instituto após o 1º de abril, foi proposta por membros uma manifestação de aplauso às autoridades federais que anunciam o propósito de acelerar o retorno do País às norma(i)s tradicionais de procedimento em matéria penal, e restabelecimento na sua plenitude, de processo democrático legislativo e a reafirmação das prerrogativas do Poder Judiciário; propõe também, se aprovada, divulgar pela imprensa e dar ciência ao sr. Marechal Presidente da República e ao Senhor Ministro da Justiça.458 Nesta passagem percebe-se a preocupação de saudar o novo regime, ao mesmo tempo em que se frisa o restabelecimento das instituições democráticas, o que indica uma postura mais complexa que a de simples apoio. Por um lado, eles utilizavam da imagem criada pelos golpistas, que afirmavam estarem defendendo a democracia de uma possível “ditadura sindicalista”. Por outro, pode-se ver nesta saudação que, pelo menos do ponto de vista retórico, havia um compromisso da entidade com a defesa do Estado democrático de direito, em especial no que se refere aos advogados. Nas reuniões seguintes, alguns membros fazem outras menções neste sentido. Por outro lado, após o golpe também são mencionadas nas atas do Instituto diversas prisões por motivações políticas de seus membros do Instituto, entre eles dois ex-presidentes (Júlio Teixeira e Ajadil de Lemos).459 Frente às prisões o Instituto se portou de forma ambígua, apoiando os advogados presos, mas, ao mesmo tempo, tirando qualquer carga política que tal apoio pudesse ter. Nos meses seguintes ao golpe, as prisões de advogados membros da agremiação eram motivo de acalorados debates, “Sessão ordinária do dia 29 de abril de 1964”. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 459 “Sessão ordinária do dia 6 de maio de 1964”; “Sessão ordinária do dia 13 de maio de 1964”; “Sessão ordinária do dia 27 de maio de 1964” In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. Ajadil de Lemos foi vice-prefeito da capital, cassado junto com o prefeito, Sereno Chaise. 458 121 que giravam, pelo que se percebe nas atas, em torno da possibilidade de manifestação do Instituto. Um exemplo disso foi uma proposta feita em 13 de maio pelo advogado Dirceu Camargo referente à prisão de dois ex-presidentes. De acordo com a ata, Após amplo debate a respeito no qual participaram todos os membros presentes, o dr. Dirceu Camargo, a pedido, retira a sua proposta e manifesta o seu pezar pela impossibilidade de o Instituto não poder levar o seu apoio moral a um colega.460 Apesar de não ser mencionada no documento em que consistiria a proposta, pode-se supor tratar-se de alguma manifestação mais premente que Camargo solicitava que o sodalício fizesse. A ausência do conteúdo da proposta provavelmente deve-se, por um lado, à natureza da fonte, que visa a sintetizar os temas abordados na reunião. Por outro lado, pode-se dever ao temor da entidade do registro comprometê-la politicamente em um momento em que ocorria uma caça às bruxas. Na sessão do dia 27 do mesmo mês, Serafim Machado propunha que o IARGS convocasse a classe para “debater e examinar juridicamente a prisão de dois expresidente do Sodalício por motivos políticos”. 461 Frente a isto, outro membro sugere o contato com o Chefe de Polícia para uma palestra. De acordo com a ata, Encerrados os debates ficou decidido que a presidência tome os contátos [sic] preliminares com as autoridades, a fim de, se necessário, convocar uma sessão extraordinária.462 De acordo com o livro de atas, esta palestra acabou não ocorrendo. A passagem mostra que ao mesmo tempo que alguns membros buscavam problematizar a prisão dos ex-presidentes, a presidência da entidade, neste momento, tentava contemporizar a situação. É interessante notar que, no dia 8 de julho, é mencionado que o presidente do IARGS congratulava-se pela “presença do dr. Julio Teixeira, ex-presidente do Sodalício e do dr. Antônio Pinheiro Machado Neto, que agradecem e prometem maior assiduidade”.463 Sabendo que a razão das faltas dos advogados comunistas foi a prisão política, poderia afirmar-se que o ato de mencioná-los seria uma forma de manifestar seu apoio a eles. “Sessão ordinária do dia 13 de maio de 1964”, fl. 2. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 461 “Sessão ordinária do dia 27 de maio de 1964”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 462 Idem, ibidem. 463 “Sessão ordinária do dia 8 de julho de 1964”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 460 122 As mesmas prisões foram registradas nas reuniões da OAB/RS, porém as atas indicam que, inicialmente, não houve a mesma relutância por parte do presidente desta entidade em demonstrar que havia visitado advogados “presos [e que] tiveram os direitos cassados, levando-lhes a sua palavra de conforto”.464 Posteriormente, foi feita a menção de que, na “ocasião da prisão pela terceira vez do colega dr. Julio Teixeira” a Ordem entrou em contato com o Secretário do Interior do estado e com o Chefe de Polícia, sendo feita uma convocação para uma sessão extraordinária do Conselho Estadual para tratar do caso.465 A reunião acabou não ocorrendo pois Teixeira foi solto antes de sua realização. É provável que a atuação da Ordem tenha auxiliado na soltura do advogado. A referência que esta era a terceira prisão dele aponta para uma possível linha argumentativa do presidente do Conselho Estadual frente às autoridades: qual seria, afinal, a utilidade desta prisão frente às outras já realizadas? Em algumas sessões do Conselho Estadual da OAB advogados buscavam deixar registrado em ata que haviam assumido a defesa de determinado preso político ou haviam sido chamados ao DOPS.466 Esta foi uma estratégia utilizada por alguns advogados com o objetivo de defender-se de uma possível prisão ou sequestro durante seu ofício. Em 1964, eram debatidos no IARGS os impactos que o novo regime e seu Ato Institucional (AI-1) traziam ao judiciário e ao ofício do advogado; estes serão temas recorrentes nos anos seguintes. Assim, na reunião de 27 de maio, foi debatida a questão do “retorno à normalidade” após a edição do AI-1.467 Ainda tratando do tema, no dia 19 de agosto foi criada uma Comissão para tratar sobre a independência do judiciário após os afastamentos trazidos pelo Ato e foi sinalizado que, se o parecer apontar a violação, seria feito um “protesto, em nota “Ata da sessão extraordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 26 de maio de 1964”. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 9 - 1963-1965. Porto Alegre, 1966. 465 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 1º de setembro de 1964”, p. 2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 9 - 19631965. Porto Alegre, 1966. 466 Foi o caso do advogado Antonio Pinheiro Machado Netto (em 11 de dezembro), ao defender o capitão Alfredo Daudt, e do Conselheiro Jerônimo da Silva Ribeiro (em 20 de julho), que havia sido convocado ao DOPS. “Ata da Sessão Extraordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grandedo Sul, realizada no dia 11 de dezembro de 1964”, p. 1; “Ata da Sessão Ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 20 de julho de 1965”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 9 - 1963-1965. Porto Alegre, 1966. 467 “Sessão ordinária do dia 27 de maio de 1964”, fls. 2. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 464 123 pública, manifestando ao mesmo tempo a sua solidariedade ao Tribunal de Justiça do Estado pela agressão de que foi alvo”.468 Esta Comissão elaborou um parecer que apontava que o AI-1 não podia ser “interpretado no sentido de suprimir a garantia de vitaliciedade dos magistrados, e de autorizar, em relação a eles, a demissão ou qualquer medida indicadas no parágrafo 1º do art. 7º do referido diploma”: o parecer foi aprovado com somente três votos contrários (um deles de Osvaldo Vergara, presidente da OAB/RS).469 Apesar desta decisão que demonstra uma postura crítica da entidade frente às arbitrariedades da ditadura, não é mencionada em ata a nota pública em apoio ao judiciário. Percebe-se, assim, a dualidade da entidade no início da ditadura: ela mostrava indícios de crítica sem fincar um posicionamento mais firme. Nas atas das sessões da OAB sul-rio-grandense, o AI-1 é percebido devido a seus efeitos na carreira de determinado profissionais. Foi o caso de Floriano Maya D’Ávila, que após ter seu mandato de deputado federal cassado em maio de 1964 e ser aposentado no Ministério Público estadual em outubro do mesmo ano, solicitava, em abril do mês seguinte, o cancelamento de seus impedimentos de advogar.470 Em 1965, nota-se a forte presença do debate a respeito dos impactos da ditadura no funcionamento do judiciário a partir do desenvolvimento da implementação da repressão judicial. Neste debate, os advogados comunistas, em especial Antônio Pinheiro Machado Neto e Julio Teixeira, são muito atuantes. Assim, em 9 de junho Pinheiro Machado propõe que se desenvolvam conferências buscando que o IARGS participe “ativamente nos problemas jurídicos e políticos que empolgam a Nação” principalmente “no momento reformas e modificações no Superior Tribunal Federal”.471 Nos meses seguintes, foram realizadas diversas palestras tratando das mudanças que estavam sendo ventiladas naquele momento. Na reunião do IARGS do dia 28 de julho, foi feito um relato pelo consócio Laury Duval Koch sobre a invasão que sofreu em seu escritório por supostos agentes federais da Guanabara, que levaram documentos, títulos e processos. Estes homens, “Sessão ordinária do dia 19 de agosto de 1964”, fls. 1-2. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 469 “Sessão ordinária do dia 11 de novembro de 1964”, fl. 2. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 470 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 6 de abril de 1965”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 9 - 1963-1965. Porto Alegre, 1966. 471 “Sessão ordinária do dia 9 de junho de 1965”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 468 124 segundo o advogado, “investiram com afronto e armados o seu escritório levando alguns documentos sem man dado [sic] judicial”. 472 Após debate foi proposto pelos membros que o Instituto, a Associação e a Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul, tomem providências a respeito, levando protestos veêmentes aos órgãos competentes e para a opinião pública atrávés das imprensas faladas e escrita, dizendo que autoridades federais invadem com violência desrespeitando as garanti-as constitucionais, já que parece praxe a invasão de escritórios de advogados por parte dêsses agentes federais.473 Após abordar a omissão da OAB/RS, foi constituída uma Comissão para tratar do caso – na qual estava presente o advogado comunista Afrânio Araújo – e uma proposição assinada pelos membros que levem o assunto ao conhecimento do Sr. Presidente da República, ao Sr. Presidente da Ordem dos Advogados do - Brasil ao Ministro da Justiça, o seu total repúdio pelos lamentàveis incidente que vêm ocorrendo em nossa capital.474 Apesar destas posturas enérgicas, a proposta de Júlio Teixeira de que isto entrasse na Ordem do Dia da sessão seguinte foi riscada à caneta na ata, o que indica que não foi aprovado seu registro. Na sessão de 3 de agosto do Conselho gaúcho da OAB, foram apontadas as medidas tomadas pela entidade, em parceria com o IARGS, no caso: o presidente havia entrado em contato com as autoridades responsáveis que informaram as razões dos atos.475 De acordo com o mencionado em ata, os atos embasavam-se nas leis 4.405 de setembro e 4.485 de outubro de 1964, relativa a créditos abertos no Ministério da Justiça e Negócios Interiores e concessão de isenção de impostos e taxas, respectivamente.476 Aparentemente, a invasão e a apreensão de documentos dizia respeito à antiga atividade de Koch na área da contabilidade, à qual, de acordo com o registrado em ata, ele não se dedicava havia sete anos.477 Frente a isto, a Ordem decidia “Sessão ordinária do dia 28 de julho de 1965”, fl. 2. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 473 Idem, ibidem. 474 Idem, ibidem. 475 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 3 de agôsto de 1965”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 9 - 1963-1965. Porto Alegre, 1966. 476 Idem, p. 2. Sobre esta legislação ver: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4485-19novembro-1964-377619-publicacaooriginal-1-pl.html e http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/19601969/lei-4405-15-setembro-1964-376579-publicacaooriginal-1-pl.html. 477 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 3 de agôsto de 1965”, p. 2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 9 - 1963-1965. Porto Alegre, 1966. 472 125 por entrar em contato com o Ministério Público e registrar nota sobre o assunto na imprensa local, além de destacar um advogado para acompanhar o caso.478 As duas entidades indignaram-se mais em relação a este caso do que às citadas prisões de seus membros ocorridas no ano anterior. Isto pode derivar do momento em que cada caso ocorreu, indicando que mais de um ano após o golpe haveria mais segurança para criticar as arbitrariedades do regime. Ao mesmo tempo, o ataque foi a um advogado em seu local de trabalho e durante o exercício de sua função, o que fez com que as organizações se sentissem mais legitimadas para ter esta postura. Finalmente, penso que o posicionamento político-profissional dos envolvidos acabou afetando esta postura mais enérgica: enquanto que Teixeira, por exemplo, era reconhecidamente comunista, Koch trabalhava no direito de empresas e, posteriormente, foi associado à Escola Superior de Guerra. Na sessão do dia 20 de outubro, o IARGS discutiu mudanças relacionadas à composição do STF e à atribuição à Justiça Militar dos crimes contra a segurança nacional. Assim, uma semana antes da edição do Ato Institucional número 2 (AI-2), que trata destas questões, a organização estava tratando de temas que iriam modificar seu ofício. Novamente os cejuristas Júlio Teixeira e Antônio Pinheiro Machado Neto tomaram a frente e fizeram propostas de comissões que tratassem dos temas. Em relação ao aumento de número de ministros do STF, a comissão era contrária a esta iniciativa, e resultou manifestar o Instituto sua solidariedade ao pronunciamento do Ministro Ribeiro da Costa, Ministro Presidente do STF, tendo em vista o princípio da independência e harmonia dos poderes, conforme reza a Constituição, ficando reservado ao próprio Supremo Tribunal Federal a iniciativa da elevação do número de seus membros.479 Já no tema da competência exclusiva dos crimes políticos à Justiça Militar, O Instituto em Plenário discordou com a medida que se pretende, não só por motivos de ordem material, já que o número de Auditorias Militares espalhadas pelo País não atinge ao número de 20, como também, em face da norma constitucional contrária a tribunais de exceção, que representa uma verdadeira conquista nos direitos fundamentais da humanidade.480 Logo em seguida, foi passada a palavra a Teixeira que, após apresentar fatos de sua vida pública, afirmou que a experiência que viveu lhe temx [sic] demonstrado que, nos regimes de exceção, é muito fácil, uma vez exacerbados os poderes dos 478 Idem, pp. 2-3. “Sessão ordinária do dia 20 de outubro de 1965”, fl. 1. IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 480 Idem, fls. 2. 479 126 Tribunais Militares, a extensão a qualquer cidadão de acusações pretensamente consideradas como delitos políticos e que, nessas condições, justificava seu voto contrário às pretensões do Executivo Federal por verdadeiramente perigosa e inoportuna em relação às liberdades individuais.481 Este debate sugere que as iniciativas do governo circulavam na sociedade e que, frente a elas, o IARGS não se absteve de pronunciar-se. Estas medidas eram vistas pelos membros da agremiação como nocivas ao judiciário e ao Estado de Direito, como uma hipertrofia do Executivo, que se impunha ao Judiciário, além de representarem o desenvolvimento de um Estado de exceção. Aqui podemos notar, ainda, a utilização política deste espaço por parte dos advogados comunistas. Um indício de um uso criativo das sessões do IARGS pode ser encontrado na ata do dia 24 de novembro do mesmo ano, quando Júlio Teixeira trata do Relatório Warren, concernente ao assassinato de John Fitzgerald Kennedy. O advogado afirmou que este documento deixa dúvida em matéria judiciária, eis que o mesmo exclui o delito de crime político. O ínclito presidente da nação do norte, na opinião do consócio Julio Teixeira, homem de pensamento livre e defensor dos direitos civis, foi morto por questões políticas, nada mais.482 Assim, Teixeira frisa o caráter político do caso, apontando que Kennedy foi morto em um estado racista e conservador, o Texas. Pode-se ver, neste discurso, proferido menos de um mês após o aumento do raio repressivo da ditadura, uma forma velada de tratar da situação do Brasil. Kennedy é, assim, representado como um homem morto pelo conservadorismo. Em 1966, os registros das atas demonstram que os questionamentos às arbitrariedades do novo regime estavam presentes nos debates tanto do Conselho da OAB/RS e quanto do IARGS. Ocorreram casos neste ano que levaram as agremiações a posicionarem-se em relação à ditadura de forma mais efetiva do que nos anos anteriores. A culminância disso será a atuação de Eloar Guazzelli como representante do IARGS na Comissão Parlamentar de Inquérito promovida pela Assembleia Legislativa riograndense a respeito do caso das mãos amarradas e do tratamento dado aos presos políticos. Em relação a uma crítica mais ampla à ditadura, nota-se que, ao longo do ano, há a discussão dos impactos jurídicos e políticos que o Executivo vinha tomando. Frente a 481 Idem, ibidem. “Sessão ordinária do dia 24 de novembro de 1965”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 482 127 isto eram chamados a se pronunciar notórios juristas do Estado, como Ruy Cirne Lima, por exemplo.483 Destaca-se, ainda, a reunião do dia 15 de junho, no qual é debatido o artigo de Pontes de Miranda “Constituição de 46 não existe mais”, colocado na ata integralmente. Nele, o jurista criticava as alterações impostas pela ditadura e afirmava que “a democracia nasceu para exprimir a opinião públicax [sic] unificada; hoje, procura-se esse ídolo problemático e desdemocratiza-se”.484 Buscando inserir o Instituto neste debate, foram propostas palestras com o jurista e personalidades que vinham se contrapondo ao regime, como o advogado Sobral Pinto, o ministro do STF Álvaro Ribeiro da Costa e o ministro do STM Gal. Olímpio Mourão Filho. Em 15 de fevereiro, por sua vez, foi ressaltado na reunião do Conselho da OAB/RS que uma das prerrogativas dos advogados era a possibilidade de examinar os inquéritos policiais e a comunicação com os presos, direito que estava sendo cerceado.485 Nas reuniões seguintes, as menções aos ataques aos advogados, em especial àqueles que participavam ativamente da Ordem, ficaram mais frequentes, indício que o AI-2 havia possibilitado o aumento da repressão. Na reunião do Conselho da Ordem do dia 3 de maio de 1966 são mencionadas as primeiras medidas que o sodalício, junto com o Instituto, tomou frente à prisão de Antônio Pinheiro Machado Neto e Rafael Perez Borges.486 Inicialmente o presidente da Ordem sul-rio-grandense afirmou que, ao lado de seu vice-presidente e membros do IARGS, havia tomado “providências junto ao Sr. Secretário do Interior e Justiça, no sentido de que sejam resguardadas as prerrogativas dos advogados presos recentemente”, o que foi rebatido pelo conselheiro Jerônimo da Silva Ribeiro solicitando que a OAB/RS “tomasse uma atitude mais atuante e enérgica”.487 Neste momento, Eloar Guazzelli afirmou que os advogados mencionados não estão recebendo o tratamento a que têm direito, de acordo com as prerrogativas da classe, o que foi confirmado pelos cons. Pedro Pacheco de Souza e Pedro Dario “Ata da sessão extraordinária do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 11 de abril de 1966”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 484 “Ata da sessão extraordinária do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 15 de junho de 1966”, fl. 2. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 485 “Reunião de 15 de fevereiro de 1966”. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho – 10 – 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 486 Enquanto que a prisão de Pinheiro Machado provavelmente devia-se por ele ser do PCB, Rafael Perez Borges era um advogado vinculado ao PTB, tendo feito parte de diversas administrações do partido, destacando-se sua atuação como presidente da Caixa Econômica Federal no Rio Grande do Sul entre 1962 e 1964, durante o governo de João Goulart. 487 “Reunião de 3 de maio de 1966”, p. 1. n: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho – 10 – 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 483 128 Bernaola Lairihoy, havendo sido proposto fosse feita uma visita ao Gal. Justino Alves Bastos, Comandante do IIIº Exército, para ser com ele discutida a possibilidade de melhor tratamento. Propôs o cons. Aristides Dutra Boeira que se providenciasse junto às autoridades, para que os advogados presos fossem alojados de logo em sala especial de Estado Maior, com tratamento adequado.488 Nota-se que a questão principal debatida aqui não foi a prisão dos advogados de fato, e sim o fato de esta não estar respeitando o direito que os advogados tinham a uma cela especial. Assim como anteriormente ocorreu no IARGS, no conselho da Ordem o debate se deu em torno das prerrogativas da classe. Ao mesmo tempo, vemos, pela primeira vez, a atuação de Guazzelli: pelo que se depreende do texto, ele havia estado na presença dos presos, o que indica que ele já poderia estar trabalhando na defesa de presos políticos e, por isto, pronunciou-se. Por este motivo deve ter sido escolhido pelos comunistas para fazer a intervenção e não, Júlio Teixeira, por exemplo. Teixeira aproveitou a situação para comunicar que os elevadores do edifício onde mantém seu escritório de advocacia têm sido constantemente guardados pela polícia. Por isso, pedia providências ao Conselho, no sentido de ver cessada essa medida constrangedora, não por si, mas por seus colegas com escritório no mesmo edifício, visto ficarem os clientes esquivos com aquela medida.489 Nesta passagem, o advogado busca mostrar que o seu ofício e de seus colegas estavam sendo tolhidos pela polícia, que o perseguia. A perseguição afetava também o exercício de seus colegas advogados que, diferentemente dele, não eram comunistas e, logo, não mereciam tal tratamento. Teixeira, ainda, deixava registrado que vinha sofrendo constrangimentos, registro que poderia ser uma garantia no caso dele ser preso. As prisões de Pinheiro Machado e Perez Borges também foram tratadas na reunião do dia 18 de maio do IARGS. Inicialmente é mencionada uma carta do advogado comunista, agradecendo às manifestações da entidade durante sua prisão e, em outro momento, Rafael Perez Borges toma a palavra e “agradece as providências tomadas pelo Sodalício quando de sua prisão por elementos da DOPS. Não sendo membro efetivo do Instituto, o dr. Rafael Perez Borges, agradeceu o apoio moral dispensado pela Casa”.490 Em outro momento é proposta uma comissão permanente para tratar da questão da prisão provisória especial para os advogados. 488 Idem, ibidem. “Idem, p. 2. 490 “Ata da sessão do dia 18 de maio de 1966”, fls. 1 e 2. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 489 129 A respeito das medidas tomadas pelo Instituto neste caso, o presidente Justino Vasconcelos afirmou que, no dia 29 de abril, quando foi notificado da prisão do membro Antônio Pinheiro Machado Neto, em companhia do dr. Eloar Guazelli, foi visitá-lo, bem como ao dr. Rafael, ambos recolhidos à DOPS. No dia 2 de maio, no Rio, procurou o Ministro da Justiça, a quem informou sobre o ocorrido solicitando providências, no sentido de respeitar-se o Estatuto da Ordem dos Advogados. Disse, ainda, o sr. presidente, que ao retornar do Rio, visitou o dr. Rafael, já transferido para o Quartel da Polícia Militar e, pelo vice-presidente Ladislau Ronhelt, foi informado das providências por êle tomadas visando ao respeito às prerrogativas da classe.491 Há uma grande diferença nas posturas dos presidentes do Instituto em relação às prisões de advogados nestes primeiros anos de ditadura. Como vimos, em 1964 o presidente Ivânio da Silva Pacheco, apesar de visitar os membros do Instituto presos, procurou não enfatizar seu apoio nas atas, enquanto que Vasconcelos, dois anos depois, fez o contrário, registrando em atas os detalhes de sua atuação nos casos. Isto, em certa medida, deveu-se aos contextos políticos diferentes e, provavelmente às personalidades dos homens que estavam à frente da instituição. Em 1964 não se percebe sendo articulada a demanda por prisão especial dada aos advogados, o que já ocorre em 1966. Algo semelhante é percebido nas atas das reuniões do Conselho da OAB/RS. Na reunião de 5 de julho de 1966, Antônio Pinheiro Machado Neto, solicitou providências em relação à violação dos direitos dos advogados, sendo aprovado por unanimidade um parecer no sentido de se oficiar à Secretaria de Segurança que a violação dos direitos doa [sic] advogados constituía abuso de poder, passível de sanção penal, havendo o cons. Urbano Ferreira de Souza votado em conformidade também com o aditivo proposto pelo cons. Paulo do Couto e Silva, de que se procedesse à ação penal contra o autor do abuso de autoridade.492 Nota-se aqui que, além de ser contatada a Secretaria de Segurança, é mencionada a possibilidade de ação contra as autoridades envolvidas, uma postura que não havia sido ventilada em ocasiões anteriores. O contato com o secretário foi realizado pelo presidente Dante Sfoggia, que, com isto organizou uma reunião de autoridades policiais com membros do Conselho da Ordem dos Advogados [...] a fim de serem discutidos problemas 491 Idem, p. 2. “Ata da sessão do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Rio Grande do Sul, realizada no dia 5 de julho de 1966”, p. 3. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho – 10 – 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 492 130 referentes ás (sic) prerrogativas dos advogados, no exercício da profissão.493 Podemos ver que a crítica feita ao tratamento dado aos advogados teve impacto no Conselho da Ordem gaúcha, sendo levada às autoridades competentes. A partir de outubro de 1966, Eloar Guazzelli passou a compor o Conselho Estadual da OAB/RS. Ele foi indicado pelo Instituto para o quarto de vagas reservadas à entidade.494 As últimas reuniões do IARGS realizadas no ano de 1966 foram dedicadas à análise do projeto de nova Constituição colocada adiante pela ditadura.495 II.4. “...bem como o tratamento dispensado a presos políticos”: a CPI do caso das mãos amarradas e a denúncia da repressão O momento em que as instituições, em especial o IARGS, tomam publicamente uma posição mais crítica ao regime foi durante o caso das mãos amarradas, em especial na Comissão Parlamentar de Inquérito. Conforme já tratado, a morte e o aparecimento do corpo do ex-sargento do Exército Manoel Raymundo Soares tiveram grande impacto na sociedade porto-alegrense. O caso teve grande repercussão na imprensa porto-alegrense: jornais como o Correio do Povo, Fôlha da Tarde e Zero Hora deram, desde o surgimento do cadáver, muito espaço em suas edições, em geral em grandes manchetes nas páginas principais. Analisando as edições que vão de fins de agosto até dezembro de 1966, momento em que o promotor Paulo Claudio Tovo encaminhou seu relatório à procuradoria-geral e o caso deixou de ter tanta relevância, são perceptíveis posicionamentos diversos por parte dos três jornais. O Correio do Povo deixa o caso restrito à seção policial, e em poucos momentos são vistas manchetes na capa e contracapa; na Fôlha da Tarde o episódio tem mais repercussão, muitas vezes povoando a fronte do jornal; é na Zero Hora, porém, que o caso é mais explorado, estando quase que diariamente presente na capa ou na contracapa. Percebe-se, assim, uma tendência que será observada em outros casos do “Ata da sessão do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Rio Grande do Sul, realizada no dia 2 de agosto de 1966”, p. 2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho – 10 – 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 494 “Reunião de 4/10/1966”. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho – 10 – 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 495 “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 16 de dezembro de 1966”; “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 19 de dezembro de 1966”; “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 30 de dezembro de 1966”. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 493 131 período: o Correio, voltado a um público mais conservador e tradicional, não dava tanto espaço a este tipo de matéria quanto seu “irmão”, a Fôlha da Tarde; já a Zero Hora deu uma cobertura mais “sensacionalista” ao caso, o que estava de acordo com o perfil do periódico na época. Esta postura fica clara no editorial do dia 8 de setembro escrito em resposta a acusações do governo; o jornal afirmava que estava dando “à morte do sargento Manoel Raymundo Soares, o ‘sensacionalismo’ que o caso merece”, e assim cumprindo papel de imprensa democrática.496 Esta postura, porém, não ficou restrita ao presente caso, conforme veremos em coberturas posteriores feitas pelo tabloide, O caso motivou investigações tanto da polícia e Ministério Público quanto da Assembleia Legislativa, com grande repercussão na imprensa. A denúncia do bárbaro crime andava lado-a-lado com a crítica aos métodos utilizados pela repressão, encarnada principalmente no DOPS. A crítica ao regime ficou muito clara no próprio tema focado na CPI, que acrescentava às circunstâncias da morte de Soares “o tratamento dado aos presos políticos”. A comissão buscava, mais do que tratar do caso do ex-militar, apresentar as atrocidades cometidas pela repressão, o que é perceptível pela presença de diversos relatos de ex-presos e presas. Conforme afirmou o deputado emedebista Paulo Brossard em um de seus diversos pronunciamentos na Assembleia durante o caso, “a violência contra o ex-sargento é apenas um elo da sucessão de arbitrariedades e violências de uma polícia que mata, de uma polícia que já a esta altura está no banco dos réus”.497 Por esta razão houve a participação na CPI dos advogados Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker. Apesar de Guazzelli ter sido mais atuante, de forma direta ou indireta, os outros advogados também se fizeram presentes. A CPI tinha, desta forma, uma dimensão política mais enfatizada do que na investigação policial-judicial: a grande presença de parlamentares do MDB e as tentativas do governo estadual de impedir sua atuação demonstram isto.498 Uma vez que muitos de seus correligionários haviam passado pelas mãos da repressão é possível que “O sensacionalismo”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 8 de setembro de 1966, primeiro caderno, Editorial, p. 2. 497 “CPI quer saber se Brigada deteve homem desaparecido”.In: Zero Hora, 17 de setembro de 1966, primeiro caderno, p. 10. 498 Deve-se frisar que, apesar de iniciativas do governo estadual, havia a presença de deputados arenistas, o que possibilitou a existência da Comissão. (“ARENA não abandonará comissão de inquérito”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 24 de setembro de 1966, primeiro caderno, p. 10.) 496 132 estes deputados, em especial os emedebistas, já tivessem uma ideia anteriormente concebida a respeito do aparato repressivo. Isto também valeria para o advogado Eloar Guazzelli, indicado pelo Instituto para acompanhar a visita da Comissão à Ilha das Pedras Brancas (ou “Ilha Presídio” e “Ilha da Morte Lenta”, como anunciado nas manchetes da época) e ao DOPS. Como um advogado comunista que já vinha atuando em casos políticos, não seria forçoso afirmar que ele já conhecia estes ambientes, pessoalmente ou por relatos. A participação do IARGS na CPI buscava atender a um de seus objetivos, que seria “corrigir distorções e aperfeiçoar as nossas instituições”.499 A escolha de Guazzelli como representante explica-se pela proximidade do advogado em relação ao tema. É possível ver neste ato um posicionamento da agremiação: ao escolher um advogado comunista, ao invés de um moderado, por exemplo, ela já devia esperar um determinado posicionamento. Assim, a participação na Comissão seria um momento em que a entidade iria, mais uma vez, fincar um posicionamento frente à ditadura. Já da perspectiva dos cejuristas, era muito importante explorar este novo espaço. Provavelmente o fato de Eloar não carregar o estigma da prisão dava-lhe um atributo desejável, não se mostrando “parcial”. Ao mesmo tempo, não encontrei, na documentação vinda da imprensa e em outras fontes, indícios sobre a atuação da OAB/RS na CPI.500 Guazzelli mencionou que havia um representante da entidade na visita do dia 2 de setembro à Ilha das Pedras Brancas e ao DOPS. Este foi, porém, o único rastro deste tripulante anônimo da lancha do DEPRC. Este fato deve-se a uma orientação da Ordem rio-grandense, que não quis comprometer-se com a questão em análise. Por outro lado, é possível que, pela proximidade existente entre as duas organizações, tenha havido uma “divisão de tarefas”, ficando o Instituto responsável por este assunto. Uma dúvida que surge ao se observar o relatório elaborado por Eloar é o fato dele datar de 14 de setembro, quase duas semanas após a realização da visita, no dia 499 GUAZZELLI, Eloar. [Relatório ao IARGS sobre visita à Ilha Presídio e ao DOPS], p. 1. In: TRIBUNAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. Apelação cível nº 2001.04.01.085202-9/RS [Ação cível de Elisabeth Challupp Soares contra a União]. Porto Alegre, 2001, p. 1277. 500 Infelizmente a íntegra do processo da CPI não está disponível no Memorial do Legislativo do Rio Grande do Sul. Nesta instituição é possível analisar alguns documentos (como as atas e o relatório), que podem ser acessados na internet (http://www2.al.rs.gov.br/memorial/PesquisaAcervo/ProcessosHist%C3%B3ricos/tabid/6417/Default.asp x ) . Existem duas cópias do processo da CPI que estão no Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul e na Justiça Federal do Rio Grande do Sul, porém, nos dois casos, a maior parte dos documentos está inutilizada devido a cópias danificadas. Afortunadamente para minha pesquisa, o relatório de Guazzelli é uma das poucas laudas que é possível a leitura. 133 dois do mesmo mês. É provável que neste período Guazzelli tenha discutido com outros membros e o presidente do IARGS, além dos participantes da CPI, a respeito do que seria conveniente registrar. Assim, em 2 de setembro Guazzelli, junto de representantes da CPI e da OAB/RS, uma comissão de delegados de polícia e da imprensa, tomou um barco do DEPRC rumo à dita ilha. Após uma minuciosa descrição da “bela e caprichosa” geografia da ilha, o advogado afirma que “o homem valeu-se do capricho da natureza para tornar mais crua a segregação, mais gritante o isolamento, mais sem horizonte a reclusão”.501 No relatório apresentado por Guazzelli, a descrição do presídio aponta que as celas não eram nem insalubres por falta de ar ou de luz, mas sim pela umidade e “pelo frio penetrante, mesmo às primeiras horas de uma tarde de pleno sol”.502 Apesar de contar com apenas onze presos naquele momento (nenhum deles por crime político), o comandante havia informado que o presídio já teria abrigado quase duzentos; é de questionar como caberiam “no pouco mais de uma dezena de celas”, descritas pelo advogado.503 Porém, o foco principal da crítica à utilização da Ilha do Presídio está no estado dos onze detentos. Eles, que foram questionados pelos visitantes a respeito do presídio, estavam “todos maltrapilhos, a maioria dê-lhes, semi-nus, vestindo apenas cuecas ou calções rôtos e alguns abrigando os ombros com velhos e sujos sacos de aniagem”.504 De acordo com Guazzelli, os detentos eram “marginais”, isto é, haviam infringido diversas leis, em geral contra o patrimônio, o que teria levado as autoridades policiais a mantê-los separados da sociedade naquele local ermo. O que era apontado pelo advogado era de que estas autoridades nada puderam informar[...] quanto à existência ou não de processos regulares encaminhados à Justiça, sendo certo, pelo que me foi dado verificar que, na quase totalidade daqueles detentos, inexiste qualquer formação de culpa referente aos delitos que lhes são atribuídos pela polícia.505 501 GUAZZELLI, Eloar. [Relatório ao IARGS sobre visita à Ilha Presídio e ao DOPS], p. 1. In: TRIBUNAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. Apelação cível nº 2001.04.01.085202-9/RS [Ação cível de Elisabeth Challupp Soares contra a União]. Porto Alegre, 2001, p. 1277. 502 Idem, p. 2. 503 Idem, ibidem. 504 Idem, pp. 2-3. 505 Idem, p. 3. 134 Além disso, ele aponta que este isolamento extrajudicial já contava, em alguns casos, vários meses, infringindo a legislação.506 Ainda de acordo com Eloar, o grau de marginalização dos presos era tamanho que “todos revelam uma quase incapacidade absoluta de secomunicar [sic], pelo menos nessa primeira e única – entrevista”.507 Com dificuldades, segundo o advogado, eles informavam que eram bem tratados, alimentados, tinham cama para dormir (apesar de Eloar ressaltar não ter indício de colchão, forro ou coberta), dispunham de relativa liberdade, “podendo circular pela ilha, fora do ‘presídio’. Embora quase nús, não queixam de falta de roupa de uso pessoal”.508 Eloar apontou no relatório que sua impressão era de que os detentos estavam reduzidos a condições sub-humanas que os impedem de comunicar-se, não têm qualquer esperança de serem ouvidos, nada reivindicam da sociedade da qual se marginalizaram e que os marginaliza sempre mais.509 O quadro assim pintado pelo advogado mostra um ciclo vicioso, no qual aquele indivíduo que não se enquadrava na sociedade é por ela excluído, sendo nestas margens do Guaíba um local onde este paradoxo é levado ao extremo. O representante do IARGS afirmava que era chocante que nada se fazia “para tentar a recuperação ou obter uma decisão da Justiça”.510 Nesta descrição há ainda a presença de um jovem, no qual Guazzelli percebe traços de doença mental, que foi enviado para a ilha pela família, chefiada por um alto funcionário do Estado.511 Esta menção mostra que a confusão entre o público e o privado por setores da elite brasileira estava presente durante a ditadura civil-militar. Além do absurdo de uma família enviar seu filho para um local destes, um servidor público utilizava-se de um espaço público destinado a outro fim para resolver suas questões familiares. Em relação aos objetivos da CPI na visita à prisão insular, Guazzelli apontava que: naquele momento não havia lá nenhum preso político, mas que alguns já haviam passado por lá (o que era o caso do ex-sargento); que Manoel Raymundo Soares havia 506 Idem, p. 4. Idem, p. 3. 508 Idem, ibidem. 509 Idem, ibidem. 510 Idem, p. 4. 511 Idem, pp. 3-4. 507 135 sido encaminhado ao DOPS em 13 de agosto daquele ano; e, finalmente, que o presídio poderia vir a receber mais presos.512 Já em relação a seus próprios objetivos, Guazzelli afirmava que o “presídio” da ilha é um excrescência no sistema jurídico penal, autêntico tumor de superfície, concentrando as mazelas do arbítrio, na esquivança que lhe é íncita por natureza, à fiscalização dos órgãos judiciários.513 Esta prisão mostrava, para ele, a “ineficácia das (…) leis que punem os delitos de responsabilidade e até os comuns praticados à sombra do poder”, já que não cumpria sua função de ressocialização do indivíduo.514 Como o ex-sargento havia sido entregue ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) antes de sua morte, o grupo decide, após a visita à Ilha das Pedras Brancas, ir a este local. Lá, os membros da imprensa são barrados, porém, de acordo com Guazzelli, os jornalistas conseguem entrar no DOPS após a intervenção do presidente da CPI. Este dado registrado pelo advogado está em discordância com o que foi publicado pelos jornais da época.515 Após uma descrição do edifício do Palácio da Polícia, no qual estava o DOPS, Guazzelli concentrou-se em determinadas “celas especiais” do segundo andar. O advogado afirmou que custava a crer que em uma “construção relativamente moderna” pudesse abrigar autênticos calabouços mediavais[sic], que nada mais são as citadas celas especiais, muito além do calabouço definido pelos léxicos, pois, não são apenas “lugares sombrios”, senão que de negrura total eabsoluta (sic).516 É interessante notar que a imagem empregada pelo advogado para qualificar estes espaços de tortura, “calabouço medieval”, será frequente em outros espaços de crítica à ditadura. Era utilizada uma percepção existente na sociedade a respeito do período da Idade Média como um momento de crueldade e arbitrariedade. Um exemplo são as charges do período, que usavam as imagens de torturadores como carrascos 512 Idem, p. 4. Idem, ibidem. 514 Idem, ibidem. 515 Zero Hora, Porto Alegre, 3 de setembro de 1966, primeiro caderno, página central; Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 3 de setembro de 1966, p. 8. 516 GUAZZELLI, Eloar. [Relatório ao IARGS sobre visita à Ilha Presídio e ao DOPS], p. 5. In: TRIBUNAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. Apelação cível nº 2001.04.01.085202-9/RS [Ação cível de Elisabeth Challupp Soares contra a União]. Porto Alegre, 2001, p. 1281. 513 136 medievais com capuzes.517 Esta representação contrastava com a imagem que a ditadura queria pintar de si mesma, como um regime moderno e eficiente. Guazzelli afirma que elas não apresentavam nada de anormal, à primeira vista, a (…) não ser, seis pequenos orifícios, de mais ou menos, polegada e meia cada um, localizados no alto da parede lateral de cada cubículo. Tais furos servem para canalização do ar e uma vez interrompida a corrente elétrica, (cujo interruptor se encontra do lado de fora, no corredor) faz-se a escuridão mais completa, como tivemos oportunidadede [sic] testar. É que os canos condutores de ar, através – das citadas perfurações, são torcidos na parte externa das paredes de sorte que, entra o ar, de forma precária é verdade, mas de luz, nem o menor raio, uma fímbria, o menor ponto ou partícula sequer.518 Estas celas, de acordo com o advogado, estavam completamente vazias, com a exceção de uma, que tinha um colchão. De acordo com “um militar que nos foi apresentado como Coronel Rieth, Superintendente do Departamento” a escuridão total que ficava nas celas era uma criação sua sob orientação do FBI estadunidense e destinava-se “à ação psicológica sôbre os detentos” para obter confissões.519 Na opinião do superintendente, o Departamento teria optado por meios psicológicos para obter confissões, ao invés de utilizar da violência. 520 No relatório Eloar rebate este dado sobre a forma como agia o DOPS, utilizando como base as informações de “um colega nosso estêve vinte e oito dias, numa dessas celas”, provavelmente referindo-se a Pinheiro Machado.521 Além disso, ele ressaltou que Manoel Raymundo Soares havia sido mantido por cinco meses ali sem que o STM soubesse deste fato, o que constituía uma infração do direito.522 De acordo com o representante do IARGS, estas celas 517 Para ver exemplos destas charges ver RODEGHERO, Carla Simone; GUAZZELLI, Dante Guimaraens; DIENSTAMANN, Gabriel. Não calo, grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editoral, 2013; GUAZZELLI, Dante Guimaraens. “A cidade não cala, ri cidade: representações sobre a cidade em charges produzidas no Rio Grande do Sul durante a Ditadura Civil-Militar”. In: Revista Latino-Americana de História, São Leopoldo, Vol. 2, nº 7, setembro de 2013, pp. 362-80. Conforme apontado por Rodeghero, Guazzelli e Dienstmann, “As referências a períodos antigos e distantes eram um recurso utilizado pelos chargistas para tratar da repressão no presente de forma velada, o que não impedia que seus leitores – ou uma parcela deles – soubessem que se tratava de eventos contemporâneos” (RODEGHERO, Carla Simone; GUAZZELLI, Dante Guimaraens; DIENSTAMANN, Gabriel. Caderno Pedagógico. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, p. 12. Parte integrante da obra Não Calo Grito: Memória Visual da Ditadura Civil-Militar no Rio Grande do Sul). 518 GUAZZELLI, Eloar. [Relatório ao IARGS sobre visita à Ilha Presídio e ao DOPS], p. 5. In: TRIBUNAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. Apelação cível nº 2001.04.01.085202-9/RS [Ação cível de Elisabeth Challupp Soares contra a União]. Porto Alegre, 2001, p. 1281. 519 Idem, ibidem. 520 Idem, ibidem. 521 Idem, ibidem. 522 Idem, ibidem. 137 não constituem instrumentos de ação psicológica ao abrigo de nossa legislaçãol [sic] de nossa tradição cultural, de nosso patrimônio jurídico. São, isto sim, aberrantes instrumentos de coação, pela violência que encerram em si mesmas e que atingem a pessoa humana na sua integridade física, moral e psíquica.523 Nesta passagem Guazzelli utiliza dois elementos diferentes para criticar a existência das ditas celas. Por um lado, elas não estariam de acordo com o “caráter brasileiro”, ferindo suas leis, instituições jurídicas e culturais: as celas seriam uma aberração inspirada em modelos estrangeiros. Ao mesmo tempo, estes métodos modernos somente violentariam o indivíduo, sem ter sucesso algum além do ataque à integridade da pessoa. Estas práticas buscavam obter confissões que embasassem somente “a acusação e condenação, apresentando a julgamento não um homem, mas um farrapo, com o famoso ‘reo cofidente habemus’”.524 Com esta declaração, o advogado une à sua denúncia uma dimensão corporativa, já que aponta que estes métodos estavam sendo usados para atrapalhar a defesa dos acusados. O relatório descrito foi entregue ao presidente do Instituto na sessão do dia 14 de setembro, quando foi criada uma comissão composta por Ivanio Pacheco, Marcus Melzer e Francisco Talaia O’Donnel para a análise do documento. Neste mesmo momento, Guazzelli repassou um ofício para o presidente “dizendo ter recebido uma carta anônima, para que a presidência fique a par dos acontecimentos futuros”.525 Na sessão da semana seguinte, esta comissão elaborou um parecer, que serviu como base para um documento enviado ao Procurador Geral do Rio Grande do Sul José Barros de Vasconcelos, no qual o presidente do IARGS, Justino Vasconcelos, partia das observações feitas por Eloar e exigia que fossem tomadas algumas medidas.526 Na introdução do documento, é afirmado que se dirigia ao Procurador Geral, a quem é eminente membro do vitalício do Conselho Superior (…) deste Instituto, e encabeça o intimorato Ministério Público, a cuja vocação humanista se deve, também, o fechamento da velha cadeia da volta do Gazômetro.527 523 Idem, p. 6. Idem, ibidem. 525 “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 14 de setembro de 1966”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 526 “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 21 de setembro de 1966”. In: IARGS. Livro de Atas 09 – 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 527 Idem, fl. 1. 524 138 A referência à Casa de Correção destruída em 1962 visava sensibilizar o procurador e lembrá-lo de que era sua missão tornar o sistema penitenciário do estado mais humano. Era possível a ele solucionar o problema ora em exame, a um só tempo legal e jurídico, social e humano, criado pela ilegalidade de tratamento a presos, inclusive políticos, e pela presença de cárceres espúrios, na paisagem [...] liberal do Rio Grande.528 Esboçando um quadro muito próximo daquele desenhado por Guazzelli do presídio da Ilha das Pedras Brancas, Justino Vasconcelos afirma que aquele presídio era fora da lei e degradava o corpo e o espírito dos detentos, sendo mais grave ainda o fato de estarem presos sem justificativa jurídica, o que era um abuso de autoridade.529 Baseando-se também no relato de Eloar sobre as instalações do DOPS, o presidente do IARGS escreveu que este órgão desprezava a “dignidade da pessoa humana, ainda quando culpada”, violava a legislação vigente, afrontava “a vocação cristã e o caráter de nosso povo” e ia contra a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, ao de encontro à presunção de inocência e submeter os presos a tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.530 Esta é uma das principais diferenças dos dois documentos analisados aqui: apesar de tratar de ataques à “dignidade da pessoa humana”, Guazzelli não chega a utilizar em seu relatório a expressão “direitos do homem” nem faz menção à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Isto leva pensar que a denúncia das violências cometidas pela repressão esteve, para Eloar, em um plano diferente do que para outros advogados, como Justino. Esta diferença pode ser explicada pela visão que os comunistas tinham neste momento sobre os “direitos do homem”/“direitos humanos”. Como vimos anteriormente, havia uma desconfiança em relação a esta noção por parte da esquerda marxista, que a via como uma causa mais próxima do “lado ocidental da cortina de ferro”. Ao mesmo tempo, Justino Vasconcelos vincula os “direitos do homem” a valores cristãos, o que mostra que estes conceitos se aproximavam mais de grupos religiosos. Outra questão apontada pelo presidente do IARGS era relativa à prisão de diplomados, em especial bacharéis em Direito. Como apontei, este tema vinha sendo 528 Idem, fls. 1-2. Idem, fls. 2. 530 Idem, fls. 3. 529 139 amplamente debatido na agremiação. Vasconcelos afirmou para o procurador geral que a presença de diplomados ou ministros de confissão religiosa nas celas descritas atentaria contra a legislação vigente. Já no caso de advogados, “maior a injúria”, uma vez que cabia a esta classe a prisão em “sala especial de Estado Maior”.531 Conforme Justino Vasconcelos, “é evidentemente inadmissível a prisão de advogados em cela da Divisão de Ordem Política e Social ou na Ilha do Presídio”, o que, como apontei acima, havia ocorrido naquele ano.532 O documento termina fazendo novo apelo para o procurador geral para intervir neste caso. Ele afirma que “não é com métodos e processos totalitáriso [sic] que se constrói o regime democrático”, já que quando o poder público age com violência arbitrária, o que periclita é tôda a ordem jurídica, porque envenenando a fonte da própria autoridade. A tortura hoje, de um só, amanhã será o campo de concentração de muitos, e o fantasma das atrocidades contra um, testemunha o irretorquível a história, passará, fatalmente, a rondar todos os lares, ateando o ódio que não para senão sobre os escombros mortos.533 Assim, Vasconcelos utilizava a imagem democrática que a ditadura buscava passar para evitar que as violências continuassem a ocorrer. Há no texto duas questões que já constavam no relatório de Eloar Guazzelli. Primeiramente, a ideia de que a violência do poder público deve ser evitada, já que deslegitima a autoridade. E, em segundo, a percepção de que o ataque a integridade física, moral e psíquica de um indivíduo abria uma possibilidade perigosa, que feria a toda a sociedade. Há, no entanto, elementos novos, como a menção aos campos de concentração, cuja história faz parte da construção da noção de direitos humanos. Vasconcelos conclui da seguinte forma: Não permita, pois, V. Exa., continuem os atos [...] aqui denunciados a praticar-se, para irrisão nossa, exatamente sob a égide de leis penais impregnadas da mais pura concepção democrática e cristão, de sagrado respeito à dignidade da pessoa humana. Não permita V. Exa. continue a ignorar-se que as leis penais escritas susrgiram [...] como reação ao arbítrio do poder político, para [...] tutelar o criminoso contra os excessos, não menos criminosos, no [...] exercício do direito de punir.534 531 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 533 Idem, fls. 3-4. 534 Idem, fls. 4. 532 140 Neste trecho percebe-se que é feito um clamor aos valores democráticos e cristãos, além de ser mencionada a legislação. O presidente valia-se de uma imagem que tanto o Ministério Público quanto o regime gostariam de manter perante ao público. A mobilização do IARGS no caso das mãos amarradas teve cobertura da imprensa. Em 20 de setembro, dia anterior à reunião na qual foi feito o ofício ao procurador geral, o jornal Zero Hora abordou o relatório de Guazzelli, que, de acordo com o periódico, condenava “em termos jurídicos, os dois locais”.535 Na reportagem era mencionada a comissão que iria “sugerir ao Instituto quais as providências cabíveis para eliminar as aberrações apontadas no documento de Guazzelli”.536 Além disso, foram transcritos dois trechos do relatório que descreviam as instalações insalubres e cruéis do presídio da Ilha e das celas do DOPS. Já no dia 30, foi publicada no mesmo jornal uma pequena reportagem intitulada “Advogados acham que ilha é ilegal” na qual são apresentadas as decisões do IARGS feitas até aquele momento.537 É dito que, na última reunião do IARGS, havia sido lido e aprovado por unanimidade o ofício a ser mandado ao procurador geral do Estado, salientando que a existência destas prisões contraria os textos legais e constitucionais vigentes.538 A matéria finaliza informando que na sessão havia ocorrido uma palestra de Érico Maciel Filho sobre Direitos e Garantias Individuais e o projeto de nova constituição. Percebe-se que a atuação de Eloar Guazzelli estava relacionada diretamente com a orientação de dois grupos: os advogados comunistas do CEJUR e do IARGS. Os dois buscaram, a partir da CPI, denunciar as atrocidades que vinham sendo cometidas pela repressão e, para isto, o conhecimento anterior de Eloar dos aparatos repressivos foi vital, uma vez que já vinha atuando na defesa de presos políticos. É claro que eles tinham objetivos um tanto distintos: enquanto o Instituto buscava uma defesa das garantias e direitos de sua classe, é provável que os comunistas intentassem uma crítica ao regime como um todo. Mesmo assim naquele momento, os comunistas e o IARGS eram aliados. “Advogados: Presídio é uma “excrescência””. In: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de setembro de 1966, primeiro caderno, página central. 536 Idem, ibidem. 537 “Advogados acham que Ilha é ilegal”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de setembro de 1966, primeiro caderno, p. 6. 538 Idem, ibidem. 535 141 A participação de Becker e Ferri durante o caso é bem menos expressiva que a do advogado comunista. No relatório da CPI é mencionada uma carta enviada por Werner Becker.539 Não consegui descobrir o teor da carta, tanto devido ao estado dos documentos do processo, quanto pelo fato do advogado não lembrar. Aparentemente quando escreveu ele ainda não atuava como advogado. Mas esta referência mostra o impacto que o caso e a CPI tiveram entre os opositores da ditadura: pessoas como Becker, que tinham sofrido e viam o que a repressão estava fazendo, buscavam compartilhar suas experiências. Quando questionei sobre se havia participado das movimentações referentes ao caso das mãos amarradas, Omar Ferri respondeu que não tinha atuado de forma muito ativa, e que não lembrava muito do episódio.540 Porém, nos relatos sobre suas defesas durante a ditadura, ele narra atuação como defensor de dois personagens que estão relacionados às denúncias ocorridas, durante um momento em que havia uma Comissão de Inquérito sobre as torturas presidida pelo deputado Airton Barnasque.541 Apesar de algumas imprecisões, a descrição feita por Ferri encaixa-se aos acontecimentos da CPI instaurada em 1966. É interessante notar que ele os vincula com um momento de denúncia à repressão e não com o caso das mãos amarradas. Omar Ferri atribui a eles, portanto, um caráter mais amplo e genérico da luta contra a ditadura.542 Isto se encaixa na linha condutora de sua memória sobre o período, que é marcada pelos momentos de enfrentamento às arbitrariedades da ditadura. O relato é concluído com um diálogo entre o advogado e o Secretário da Segurança Pública do estado, Cel. Washington Bermudez, no qual ele afirma que a ditadura havia tirado seu trabalho.543 539 ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIO GRANDE DO SUL. Relatório dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito constituída com a finalidade de investigar as causas da morte do ex-sargento Manorl Raymundo Soares e apurar a forma de tratamento dispensado a presos políticos. Porto Alegre, 1967, p. 1. Disponível em http://www2.al.rs.gov.br/memorial/LinkClick.aspx?fileticket=4ZxVPvUukgw%3d&tabid=3607 540 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre, em 23 de maio de 2013, p. 19. 541 Isto está presente no relato feito por ele para a Comissão Estadual da Verdade: CEV/RS. Depoimento Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 70-72. 542 É provável que Ferri vinculou este caso a uma data posterior devido ao fato de que em sua ficha no DOPS publicada em seu livro a defesa de Carboni está presente em uma informação não comprovada de 1971. FERRI, Omar. Seqüestro no Cone sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 24. 543 CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 72. 142 Ferri, em sua narrativa, menciona dois casos de presos políticos que defendeu durante o mesmo período: o de uma jovem que havia sido presa e estuprada por integrantes do DOPS e o de Luiz Carlos Carboni, preso na pensão em que residia com coquetéis molotov, que teriam ocorrido no início da década de 1970. 544 Comparando com dados vindos de outras fontes, pode-se afirmar que, na verdade, estes casos ocorreram durante a CPI, provavelmente em setembro de 1966. Carboni, que ficou conhecido na imprensa como o “Homem Nu” devido às circunstâncias em que foi preso em início de setembro de 1966, foi relacionado com a morte do ex-sargento, possibilitando uma linha investigativa que afirmava que ele havia sido assassinado por seus correligionários.545 Esta linha seria deixada de lado tanto pelos parlamentares quanto pela investigação promovida pela polícia e Ministério Público. De acordo com Ferri, ele havia sido contratado pelo pai de Carboni para localizá-lo e soltá-lo. Ao solicitar uma entrevista com o Cel. Bermudez para isto, o militar o questiona sobre o fato de ele ter defendido uma jovem “subversiva”. Segundo Ferri, a denúncia feita por ela teria sido veiculada somente pelo católico Jornal do Dia.546 Partindo das informações vindas da imprensa e do relatório da CPI, percebe-se que a repercussão desta denúncia foi maior do que foi registrado pelo advogado. O jornal Zero Hora, por exemplo, dedicou as páginas centrais de sua edição, nas quais era transcrito relato feito pela jovem aos parlamentares, sendo dado mais espaço do que no Jornal do Dia.547 Esta jovem veio a público após ter sido mencionada em outro depoimento feito aos parlamentares e seu testemunho era repleto de grande carga dramática. Ela, que era funcionária federal, afirmou que estava acompanhada “por pessoa de minha confiança” que a havia orientado a quem se dirigir; a jovem julgava, naquele momento, que “só as garantias da CPI e da opinião pública poderão talvez salvar minha FERRI, Omar. Seqüestro no Cone Sul – o caso de Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 24-5. Devido ao teor das revelações, optei por não revelar o nome da cliente de Ferri. 545 GUIMARAENS, Rafael O sargento, o marechal e o faquir. Porto Alegre: Libretos, 2016, pp. 173-6. 546 CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 72. A matéria em questão trata-se de “Morte do Sargento – CPI investiga também no Rio”. In: Jornal do Dia, Porto Alegre, ano XIX, nº 5412, 20 de setembro de 1966, pp. 8-9. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/098230/64870 e http://memoria.bn.br/DocReader/098230/64871. 547 “Jacuí: moça violada depõe na CPI”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de setembro de 1966, primeiro caderno, página central. 544 143 vida”.548 Ela relatou que em agosto de 1964 havia sido presa pelo DOPS e detida durante setenta dias, nos quais foi torturada, estuprada e ameaçada de morte. Do estupro vieram doenças venéreas e uma gravidez; os seus reiterados pedidos de interrupção da gestação foram-lhe negados pelos médicos que a atenderam. A funcionária federal afirmou que agradecia a recusa feito pelos médicos uma vez que amava seu filho.549 À moça ainda havia sido feita a proposta de ser delatora, a qual foi recusada. Quando ameaçou denunciar em juízo as violências que havia sofrido, o delegado do DOPS aconselhou-a “a ‘não prejudicar minha reputação’, revelando coisas que deveriam ficar esquecidas e que poderiam ser motivo de ‘muitos aborrecimentos’ se reveladas”.550 Apesar de ter sido ouvida na Auditoria, até o momento do depoimento na CPI não havia sido julgada. Na ocasião ainda relacionou nomes de torturados e de seus algozes. 551 Após descrever tentativas de denunciar seu caso, a jovem finalizou o testemunho afirmando que Êste depoimento é uma tentativa desesperada. Confio em que a atual CPI justifique suas finalidades punindo os autôres de tantas atrocidades e protegendo aqueles que vêm a público denunciá-los. Temos que, pelo próprio cargo que ocupam, às autoridades policiais cumpre proteger, e não assassinar os cidadãos. Finalizo, pedindo a M. D. Comissão Parlamentar de Inquérito garantias não só de liberdade como de vida.552 Pode-se imaginar o impacto que este depoimento teve na sociedade portoalegrense: havia ali uma moça, mãe de dois filhos pequenos, que narrava de forma intensa violências cometidas contra ela. Um exemplo disso é o fato de ter sido mencionado que as provas que eram usadas contra ela (suas “unhas malcuidadas” e produtos químicos) eram provenientes de limpeza realizada em seu apartamento.553 Menções a tortura, estupro, doenças venéreas e aborto chocavam uma sociedade 548 Idem, ibidem. Conforme pode-se ver na fotografia da reportagem do Jornal do Dia, a pessoa era, de fato, Omar Ferri. “Morte do Sargento – CPI investiga também no Rio”.”. In: Jornal do Dia, Porto Alegre, ano XIX, nº 5412, 20 de setembro de 1966, p. 8. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/098230/64870 549 “Jacuí: moça violada depõe na CPI”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de setembro de 1966, primeiro caderno, página central. 550 Idem, ibidem. 551 Idem, ibidem.. “Morte do Sargento – CPI investiga também no Rio”. In: Jornal do Dia, Porto Alegre, ano XIX, nº 5412, 20 de setembro de 1966, p. 9. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/098230/64871. 552 “Jacuí: moça violada depõe na CPI”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de setembro de 1966, primeiro caderno, página central. 553 “Morte do Sargento – CPI investiga também no Rio”.. In: Jornal do Dia, Porto Alegre, ano XIX, nº 5412, 20 de setembro de 1966, p. 9. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/098230/64871. 144 católica e conservadora que via a mulher como um ser frágil e que deveria ser protegido. Ao denunciar, buscava-se deixar claro que as atrocidades não respeitavam valores cristãos. Imagem 1: Jornal do Dia, Porto Alegre, ano XIX, nº 5412, 20 de setembro de 1966, pp. 8-9. Omar Ferri acompanhando cliente que depôs na CPI. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (http://memoria.bn.br/DocReader/098230/64871). 145 Provavelmente por esta razão, alguns dias depois, o Cel. Berdumez reuniu a imprensa para apresentar a ficha do DOPS relativa à jovem citada, buscando mostrá-la como uma terrorista e subversiva.554 Ele afirmava, assim, que ela era militante católica e comunista, vinculada à Juventude Comunista do PCdoB, que havia fabricado coquetéis molotov, tinha sido infiltrada na Juventude do PTB, além de já ter sido interna do Hospital São Pedro devido a impulsos suicidas. Esta tentativa de desacreditar a testemunha é um indício de que tinha tido impacto na opinião pública a sua denúncia. Por tal motivo o depoimento da jovem teve um espaço destacado no relatório da CPI. Após apresenta-lo, o relatório das investigações legislativa informa que contra ela, assim como contra torturados, não havia sido instaurado processo, “o que evidencia que eram simplesmente suspeitas. E se fossem responsáveis por algum ato subversivo? ”.555 A CPI, por ampliar seu tema para além do caso do ex-sargento, constituiu, assim, um espaço privilegiado para os advogados denunciarem as torturas e violências cometidas pela ditadura civil-militar. Mesmo não tendo sido efetiva em seus objetivos de responsabilização de autoridades ou interrupção das práticas de tortura, a comissão foi bem-sucedida ao expor os métodos violentos utilizados pelo aparato repressivo da ditadura. Este foi um momento em que a expertise jurídica uniu-se à militância política. Guazzelli e Ferri usavam de sua posição como advogados para denunciar o regime de terror e violência instaurado naqueles dois anos. Este seria um embrião da causa dos direitos humanos enquanto uma luta das esquerdas no campo jurídico. II.5. O Capitão do Povo contra os gorilas robôs: Eloar e a repressão judicial nos primeiros anos Em 11 de abril de 1966, nas primeiras páginas do jornal Zero Hora, era anunciado que a Justiça Militar, a partir daquele dia, estaria “funcionando a todo vapor”: em nove processos iriam ser julgados “cinqüenta denunciados por crimes de “A ficha de Dona______”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 24 de setembro de 1966, primeiro caderno, p. 10; ”Berdumez: Meia Verdade é Parte do Jôgo Comunista Jornal do Dia, Porto Alegre, ano XIX, nº 5415, 24 de setembro de 1966, p. 8. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/098230/64926 . 555 ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIO GRANDE DO SUL. Relatório dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito constituída com a finalidade de investigar as causas da morte do ex-sargento Manorl Raymundo Soares e apurar a forma de tratamento dispensado a presos políticos. Porto Alegre, 1967, p. 4. Disponível em http://www2.al.rs.gov.br/memorial/LinkClick.aspx?fileticket=4ZxVPvUukgw%3d&tabid=3607 554 146 subversão e contra a economia popular”.556 Entre eles estavam militares, como o excoronel Pedro de Arbues Martins Alvarez, e sindicalistas, como o metalúrgico caxiense Bruno Segalla e o ex-vereador e o líder tranviário Lúcio Olímpio do Amaral Vieira, respondendo a acontecimentos ocorridos durante o golpe de 1964.557 Deve-se ressaltar que estes processos eram apresentados nas páginas iniciais dos periódicos locais, muitas vezes sendo dado destaque nas capas, o que não se manterá nos anos seguintes: os julgamentos da Justiça Militar passarão a frequentar as seções dedicadas às Forças Armadas ou as páginas policiais. Isto pode ser explicado pela forma como cada um destes presos políticos eram apresentados pela imprensa: os julgados por crimes políticos neste momento inicial da ditadura eram retratados por veículos da imprensa como “subversivos” vinculados ao governo deposto, ou seja, pessoas que haviam sido importantes em outra conjuntura, enquanto que no momento seguinte serão retratados como “terroristas”, como “marginais” destinados a páginas internas dos periódicos. Dentre destes processados no período inicial da ditadura, destacava-se o excoronel Pedro Alvarez, devido a sua participação na resistência ao golpe. Ele, que além de ser militar havia sido vereador na capital, deputado estadual e chefe de relações públicas da Refinaria Alberto Pasqualini no governo de Goulart, durante a resistência ao golpe fez um discurso inflamado na rádio no qual atacava os “gorilas”, militares conspiradores. Por isto, seu nome e sua imagem estampavam as manchetes e as capas dos jornais locais e constavam em notas de jornais do centro do país, que acompanharam seu caso até sua soltura, em dezembro de 1967.558 Nas reportagens em diversos momentos foi mencionado que Eloar atuava como defensor do ex-coronel, o que não ocorreu com outros processados que, pelos dados coletados no Acervo Profissional de “Subversão na justiça hoje”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 11 de abril de 1966, primeiro caderno, p. 3. Idem, ibidem. 558 “A sombra da subversão”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1966, primeiro caderno, capa; “Coronéis não julgam Alvarez”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1966, primeiro caderno, p. 9; “Osvino é testemunha de Alvarez” . In: Zero Hora, Porto Alegre, 13 de abril de 1966, primeiro caderno, p. 5; “Procurador confirmou condenação de Alvarez”. In: Diário de Notícias, Porto Alegre, Ano XLIII, nº 239, 15 de dezembro de 1967, p. 3; “Condenação é uma honra para ex-coronel”. In: Jornal do Brasil, Rio de janeiro, Ano LXXVII, nº 176, 27 de outubro de 1967, 1º caderno, p. 16; “Ex-coronel gaúcho está fazendo uma greve de fome”. In: Correio de Manhã, Rio de Janeiro, Ano LXVII, nº 22879, 4 de novembro de 1967, 2º Caderno, p. 10; "Coronel condenado apela ao STM”. In: Correio de Manhã, Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1967, Ano LXVII, nº 22913, 1º Caderno, p. 5; “STM absolve ex-coronel condenado no R. G. do Sul por discurso subversivo”. In: In: Jornal do Brasil, Rio de janeiro, Ano LXXVII, nº 218, 16 de dezembro de 1967, 1º caderno, p. 15; “STM absolve coronel que foi ao comício”. In: Correio de Manhã, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1967, Ano LXVII, nº 22915, 1º Caderno, p. 8. 556 557 147 Eloar Guazzelli, também foram defendidos por eles, mostrando o destaque dado pela imprensa a Alvarez. Segundo o ex-militar registrou em seu livro de memórias, o julgamento atraiu muito público: “lotou a auditoria e ainda havia o povo, na rua, impedindo a entrada. Não tinha lugar e muita gente ficou aguardando o resultado do lado de fora. Aquilo durou horas”.559 No processo movido contra Alvarez eram elencadas como testemunhas de acusação militares e civis que atuavam dentro da estrutura da ditadura. 560 A promotoria buscava mostrar que o ex-coronel “é vivo e inteligente, temperamental e agressivo, sempre disposto a pisar a lei”, e seus atos em 1º de abril de 1964 não eram fruto de “lealdade, fidelidade ou obediência ao governo que fugia e que se desmoronava”.561 Frente a isto, seu advogado, Eloar Guazzelli, buscava desvincular as imagens de subversivo criadas sobre o ex-coronel pela promotoria e divulgadas na imprensa, partindo da linha da defesa de que seu cliente havia simplesmente defendido um governo que estava instituído.562 De acordo com Nereu Lima, ex-estagiário do escritório de Guazzelli, que estava presente no julgamento, naquele caso “havia cartas marcadas. Apesar de todo o esforço e de toda a capacidade do doutor Eloar, já se sabia que o resultado” seria de condenação.563 A repressão deveria, assim, enquadrar Alvarez, o que, segundo o próprio, trouxe dificuldades: ele deveria ser julgado por alguém de patente mais alta e a maioria dos oficiais nestas condições não queriam comprometer-se com a condenação, ALVAREZ, Pedro. O Capitão do Povo – memórias de um militar nacionalista. Porto Alegre: Já Editores, 2011, p. 133. 560 “A sombra da subversão”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1966, primeiro caderno, capa; “Coronéis não julgam Alvarez”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1966, primeiro caderno, p. 9; “Osvino é testemunha de Alvarez” . In: Zero Hora, Porto Alegre, 13 de abril de 1966, primeiro caderno, p. 5. 561 “Procurador confirmou condenação de Alvarez”. In: Diário de Notícias, Porto Alegre, Ano XLIII, nº 239, 15 de dezembro de 1967, p. 3. 562 Esta linha de defesa, como mostrarei, foi utilizada em outros processos posteriores semelhantes. Em minha dissertação de mestrado analisei habeas corpus feitos por Guazzelli do mesmo período em processos em que respondiam outros militares, no qual foi empregada a mesma argumentação. GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, pp. 96-100. Dissertação de Mestrado em História. 563 LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em dia 8 de agosto de 2013, p. 3. 559 148 muitas vezes devido a relações pessoais.564 Segundo ele foram escolhidos oficiais de conduta duvidosa, a maioria tendo participado de roubos de material.565 De acordo com Pedro Alvarez, após a sentença de condenação de 14 meses de prisão: não tive dúvidas, dei um passo à frente e disse assim: – Para mim, é uma honra ter sido condenado por um conselho composto de ladrões como vocês! E aí fui aplaudido. Uma de minhas filhas, a Angela, entre lágrimas, declarou, dirigindo-se aos juízes: – Este julgamento foi uma farsa! Vocês receberam ordens para condenar meu pai, que é um homem honrado e idealista. Vocês são uns patifes, sem personalidade e vontade própria. Foram votos de robôs!566 Estas manifestações foram tanto registradas por Nereu Lima quanto pela imprensa, que chegou a estampar em manchetes as palavras do condenado.567 Nos dias seguintes, quando já se encontrava preso, Alvarez fez greve de fome “para chamar a atenção da opinião pública para as torturas no Exército”. 568 Na reportagem do Correio da Manhã sobre o assunto, o objetivo foi mencionado como o de quebrar a incomunicabilidade a qual se encontrava; nota-se, aqui, a presença de Eloar buscando este objetivo. 569 Após a sentença, o advogado recorreu ao STM utilizando, novamente, a argumentação “de que ninguém pode ser punido por ter defendido o governo deposto, que era legalmente constituído”.570 A corte absolveu Alvarez por sete a cinco.571 ALVAREZ, Pedro. O Capitão do Povo – memórias de um militar nacionalista. Porto Alegre: Já Editores, 2011, pp. 132-3. Esta demora na escolha dos oficiais julgadores do caso é mencionada na imprensa: “Coronéis não julgam Alvarez”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1966, primeiro caderno, p. 9. 565 ALVAREZ, Pedro. O Capitão do Povo – memórias de um militar nacionalista. Porto Alegre: Já Editores, 2011, p. 133. 566 Idem, ibidem. 567 “Condenação é uma honra para ex-coronel”. In: Jornal do Brasil, Rio de janeiro, Ano LXXVII, nº 176, 27 de outubro de 1967, 1º caderno, p. 16. 568 ALVAREZ, Pedro. O Capitão do Povo – memórias de um militar nacionalista. Porto Alegre: Já Editores, 2011, p. 149. 569 “Ex-coronel gaúcho está fazendo uma greve de fome”. In: Correio de Manhã, Rio de Janeiro, Ano LXVII, nº 22879, 4 de novembro de 1967, 2º Caderno, p. 10. 570 “Coronel condenado apela ao STM”. In: Correio de Manhã, Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1967, Ano LXVII, nº 22913, 1º Caderno, p. 5. 571 “STM absolve ex-coronel condenado no R. G. do Sul por discurso subversivo”. In: In: Jornal do Brasil, Rio de janeiro, Ano LXXVII, nº 218, 16 de dezembro de 1967, 1º caderno, p. 15; “STM absolve coronel que foi ao comício”. In: Correio de Manhã, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1967, Ano LXVII, nº 22915, 1º Caderno, p. 8 564 149 Apesar de ter defendido outros presos em casos semelhantes neste momento, penso que o caso de Pedro Alvarez, destaca-se no trabalho de Guazzelli à repercussão. Assim como no caso da CPI do caso das mãos amarradas, seu nome era associado a um caso de enfrentamento da ditadura; Eloar vinha, portanto, destacando-o como um defensor disposto a atuar nestes casos.572 II.6. O grego dos bolsos de ouro e a assassina do disco: as “ações de repercussão” nos primeiros anos de advocacia de Omar Ferri após o golpe Um dos primeiros casos que Omar Ferri afirma ter auxiliado na sua carreira em Porto Alegre foi o referente ao grego Savas Panayotis Kitrinopopoulos. Em 10 de junho de 1966, Savas foi detido no Aeroporto Salgado Filho vindo de Buenos Aires a caminho do Rio de Janeiro com 32 barras de ouro, sendo fichado por contrabando. 573 De acordo com o advogado em entrevista concedida para esta pesquisa, seu nome foi indicado para o caso por um delegado da Polícia Federal, que havia trabalhado anteriormente em Encantado e era seu amigo.574 Instituído como advogado, Ferri encaminhou pedido de habeas-corpus ao juiz da 1ª Vara Criminal no dia 12, apresentando a documentação necessária e ainda mostrando jurisprudência que afirmava que não era crime entrar com ouro no país.575 Como não teve sucesso na primeira instância, ele recorreu ao Tribunal Federal de Recursos, indo à Brasília e contatando diretamente um dos ministros responsáveis para explicar o caso.576 Na decisão, de acordo com Ferri, ele iniciou perdendo, mas acabou vencendo por 4 a 3. Este caso trouxe muita visibilidade ao advogado, já que, pela excentricidade, foi alvo de cobertura de diversos meios da imprensa. 572 Curiosamente, Alvarez apareceu em diversas fotografias do enterro do ex-sargento, sendo sua presença um indício da politização do ato fúnebre. GUIMARAENS, Rafael. O sargento, o marechal e o faquir. Porto Alegre: Libretos, 2016, p. 179. 573 “Contrabandista Pilhado Pela Alfândega com 32 Quilos de Ouro Ocultos no Corpo”. IN: Correio do Povo, 11 de junho de 1966 , Noticiário, p. 5. 574 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre. 575 ““Habeas-corpus” para o grego que trazia ouro”. In: Correio do Povo, 12 de Junho de 1966, Noticiário, p. 5; FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre. 576 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre. O Tribunal Federal de Recursos era uma instituição criada pela Constituição de 1946 que foi substituída pela Carta de 1988 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). 150 O exemplo principal disso foi a reportagem “O homem dos bolsos de ouro”, feita por Jayme Copstein após a soltura de Savas.577 A reportagem partiu de uma entrevista concedida pelo grego no escritório de Omar Ferri e ressalta a excentricidade do caso. Conforme o título aponta, é feita uma relação entre o caso e o filme 007 contra Goldfinger, lançado no Brasil em janeiro de 1965, e que ainda estava nas telas de cinemas da capital. O guarda aduaneiro é retratado pelo jornalista como James Bond disfarçado e Savas, Goldpocket, o Homem dos bolsos de ouro.578 Além disso, ao narrar as peripécias do grego no período em que esteve confinado na Penitenciária Estadual, Copstein chega ao ponto de comparar o contrabandista com uma criança que teria feito uma travessura.579 Finalmente, quando questiona sobre a razão de Savas ter trazido as barras de ouros de forma suspeita, a própria reportagem justifica por um medo relacionado às suas vivências durante a Segunda Guerra como preso em um campo de trabalho nazista.580 Assim foi criada uma imagem do grego como um simpático Zorba “contrabandista” com um passado triste e um olhar que reflete “lembranças poéticas das montanhas de sua terra natal”.581 Conforme se pode perceber, Copstein retratou o caso transformando-o em uma história digna dos grandes estúdios hollywoodianos da época, em que estão presentes ouro, intriga internacional e campos de prisioneiros nazistas. Dentro desta trama, Ferri é descrito como “Sherlock Holmes, sem nariz grande, violino ou cachimbo” que andava disfarçado de bacharel em direito.582 Ao comparar Omar Ferri com o detetive, busca-se mostrá-lo como um defensor engenhoso e astuto. Em diferentes momentos da reportagem, o advogado é mencionado como um bom advogado, que havia se esforçado em busca da liberdade do cliente.583 Aliás, o jornalista, ao analisar o caso, parte da argumentação do defensor, de que a entrada no país com ouro não constituiria contrabando. Se considerarmos que ele era um advogado em busca de espaço profissional, a reportagem elogiosa em um periódico de prestigio provavelmente o COPSTEIN, Jayme. “O homem dos bolsos de ouro”.In: Revista do Globo, Ano XXXVIII – Nº 927, 2ª quinzena de Julho de 1966 , Porto Alegre, pp. 62-64. 578 Idem, p. 62. 579 Idem, p. 63. De acordo com a reportagem, Savas teria sido bem recebido pelos presos pois eles achavam que ele seria parente do Cel. Dastro Dutra, antigo administrados considerado por eles como “bondoso”. 580 Idem, p. 64. 581 Idem, ibidem. 582 Idem, ibidem. 583 Idem, p. 63. 577 151 auxiliou muito. Pode-se apontar este curioso caso como um importante “estágio” galgado por Ferri. Outro caso apontado por Omar Ferri como importante para a sua construção de seu “nome” como advogado criminal foi o caso conhecido na época como “o crime do Disco”, no qual ele atuou junto com o deputado emedebista Pedro Simon e com Luís Bilibio Ribeiro. Segundo ele, este Foi um crime muito comentado, estampado nas paginas [sic] dos jornais todos os dias, principalmente, porque, um ano ou dois anos antes, uma mulher, Nina Gualdi (sic) matou um Promotor Público, marido dela, e ela ia prestar solidariedade a essa outra senhora.584 Na análise dos jornais da época em que ocorreu o “crime do disco” não foi encontrado este apoio dado pela poetisa e atriz Nina Gualdi à Terezinha de Castro Maxwell, autora do crime. Porém, existem relações entre os casos: nos dois temos um advogado/deputado do MDB atuando (no caso de Gualdi, Lamaison Pôrto) além de ter sido um homicídio cometido por uma esposa contra seu marido. Como veremos, a ampla cobertura do “crime do disco” teve uma dimensão machista muito destacada, especialmente nas primeiras reportagens e no jornal Zero Hora. No domingo 13 de agosto de 1967, no pacato bairro do Menino Deus, enquanto as famílias comemoravam o “Dia do Papai”, Terezinha de Castro Maxwell matou seu marido, Carlos Felippe Maxwell, com seis tiros, em uma discussão derivada da compra de um disco com a canção Dominique, sucesso do momento.585 Devido ao motivo absurdo, o caso chamou a atenção da sociedade. De início, a perseguição à assassina foragida e os boatos da vizinhança tomaram conta da crônica policial da capital. Na Zero Hora do dia 14 de agosto, por exemplo, Terezinha é mostrada como uma mulher histérica enlouquecida enquanto que Carlos aparece como razoável. A cobertura deste periódico foi marcada por um sensacionalismo maior do que outros, como Correio do Povo e Fôlha da Tarde, nos quais o caso é mostrado de forma mais resumida, muitas vezes sendo dado espaço à ré.586 A Zero Hora deu significativo “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 14. O crime de Nina Gualdi ocorreu em 1964 e seu julgamento foi em dezembro de 1965. 585 “Mulher presenteou marido com 6 tiros”. IN: Zero Hora, Porto Alegre, 14 de agosto de 1967, primeiro caderno, p. 19. 586 “Assassina do marido prêsa na casa dos pais em Estrêla”. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 15 de Agôsto de 1967, primeiro caderno, Noticiário/ Crônica Policial , p. 5; “Assassina do marido na 2ª DP”In: Correio do Povo, Porto Alegre, 16 de Agôsto de 1967, primeiro caderno, Noticiário/ Crônica Policial, p. 5; “Decretada a prisão da assassina do marido”. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 19 de Agôsto de 1967, primeiro caderno, Noticiário / Crônica Policial; ““Crime do Disco”: julgamento adiado para dezembro”In: Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 21 de novembro de 1968, primeiro caderno, p. 40; ““Crime 584 152 espaço ao crime, mostrando, a partir de relatos da vizinhança, a rotina do casal, que é retratada como infeliz e cheia de discussões. Segundo o periódico, o casamento só se mantinha por conta do “temperamento tolerante do marido, que era muito estimado pelos seus amigos”.587 Terezinha é apresentada como desequilibrada mentalmente, sendo mencionado que ela passou por hospital psiquiátrico. O fato dele também ter sido tratado por este tipo de moléstia é vinculado à sua mulher. É dito que ela levaria uma “vida alegre” com “amiguinhos” jovens e estudantes. Percebe-se que, de antemão, este jornal buscou mostrar a motivação do crime totalmente vinculada à esposa, deixando de lado as acusações de violências anteriores cometidas pelo marido. Logo que Terezinha foi presa, surgiram nas matérias as menções aos advogados, dando indícios da linha que a defesa iria tomar. Conforme relatou Ferri, em entrevista concedida ao Memorial do Judiciário, Não tinha defesa – [Terezinha] matou pelas costas –, mas lutamos para diminuir a pena de todas as formas: violenta emoção, muita briga entre o casal, aquelas coisas todas. No fim, ela foi condenada a cinco ou seis anos, não recordo, consegui diminuição da pena. Foi um bom Júri. 588 Uma das “formas”/argumentos utilizadas foi a de legítima defesa. Partindo do relato da ré, que, diferentemente das versões iniciais publicadas nos jornais, era indicado que o assassinato tinha resultado de uma discussão acalorada em que ela sentiu-se ameaçada com uma faca de pão pelo marido e, assim, vitimou-o para defender sua vida.589 Posteriormente, partindo de laudos psiquiátricos, a defesa adicionou a tese da irresponsabilidade da ré no momento do crime.590 Assim, em 17 de dezembro de 1968 Teresinha Maxwell foi condenada a quatro anos e oito meses de prisão no Tribunal do do Disco” tem júri marcado para hoje”. In: Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 17 de dezembro de 1968, primeiro caderno, p. 48; ““Crime do Disco”: 4 anos de cadeia para criminosa”. In: Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 18 de dezembro de 1968, primeiro caderno, p. 44 587 “Mulher presenteou marido com 6 tiros”. IN: Zero Hora, Porto Alegre, 14 de agosto de 1967, primeiro caderno, p. 19. 588 “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, pp. 14-5. 589 “ASSASSINA DO MARIDO NA 2ª DP”. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 16 de Agôsto de 1967, primeiro caderno, Noticiário/ Crônica Policial, p. 5. Nesta matéria o delegado da 2ª Delegacia de Polícia reforçava que Terezinha, não havia sido presa em uma prisão destinadas à “meretrizes”. Nota-se que mesmo considerada uma assassina, ela não deixava de ser uma “mulher correta” que não deveria estar próxima de “mulheres da vida”. 590 “Loucura armou a mão assassina”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de agosto de 1967, Caderno Policial, página central; “Terezinha matou o marido e agora enfrenta o Júri”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 18 de dezembro de 1968, p. 35. 153 Júri, em uma sessão que durou até a madrugada do dia seguinte.591 Apesar de negarem as teses de “legítima defesa e defesa putativa”, os jurados aceitaram a argumentação de “responsabilidade diminuída por perturbação mental”, reduzindo a pena da ré.592 A presença de Ferri neste caso tão rumoroso provavelmente deu grande impulso à sua carreira na advocacia. Pode-se afirmar que a atuação neste caso trazia outro tipo de retorno além dos benefícios financeiros imediatos: de acordo com o que pode ser percebido nas reportagens, a acusada não possuía muitos recursos. Além disso, o julgamento no Tribunal do Júri trazia um desgaste diverso de julgamentos comuns, se estendendo muitas horas além do normal. Ao engajar-se neste caso, Omar divulgava-se como um advogado criminalista, colocando-se no meio jurídico. A utilização destes “grandes casos” também era feita por deputados estaduais do MDB, como Simon e Lamaison Porto: aparenta indicar nestes casos o estabelecimento de relações entre os meios jurídicos e políticos. Os advogadospolíticos colocavam-se na esfera pública como defensores preocupados com os direitos dos indivíduos. No caso da “assassina do disco”, por exemplo, Simon e Ferri eram apresentados como os advogados de uma mulher perturbada e humilde, que não tinha mais ninguém por ela. Imagino que isto, além de divulgar seus nomes, davam popularidade a suas figuras. Veremos adiante que estas relações serão aprofundadas por Eloar Guazzelli nos anos seguintes. II.7. Políticos no meio dos advogados II: comunistas no IARGS e na OAB/RS em 1967 e 1968 Seguindo as posições tomadas em 1966, no ano seguinte, o Instituto levou adiante algumas medidas que apontavam para uma crítica em relação à ditadura. A diferença é que, na nova conjuntura em poucos momentos em que as críticas foram realçadas. Um exemplo é a repetição de proposta de palestras com personalidades jurídicas que se contrapunham ao regime.593 Foi realizada, em 12 de julho, uma palestra com o ““Crime do Disco”: 4 anos de cadeia para criminosa”. In: Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 18 de dezembro de 1968, primeiro caderno, p. 44. 592 Idem, ibidem. 593 “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 10 de maio de 1967”. In: IARGS. Livro de Atas 07 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 591 154 Ministro do STF, Evandro Lins e Silva.594 Ele, que havia participado ativamente do governo deposto, chegado ao STF por indicação de João Goulart, proferiu conferência sobre, segundo a ata da sessão, “aspectos da advocacia”.595 Este ministro era reconhecido como um dos mais liberais e combativos em relação à ditadura, postura que o levou a ser aposentado pelo regime em janeiro de1969.596 Outro indício foi o slogan escolhido para os cartazes da Semana do Advogado – “Pense no Direito, na Justiça, na Democracia” – que vinculavam à democracia a atuação dos advogados, que vinham sofrendo cerceamentos.597 Por outro lado, a entidade recebeu o Ministro da Educação, Tarso Dutra, para tratar da questão da educação básica do país.598 Isto é mais um exemplo que mostra a dualidade do posicionamento destas organizações durante este período. O Instituto discutiu o novo aparato legal criado pela ditadura, como a Lei de Segurança Nacional e a Lei de Imprensa, e suas implicações.599 Guazzelli foi destacado para, junto de René Ávila, elaborar parecer: o desenrolar disto não foi mencionado em atas subsequentes.600 Este debate também se fez presente no Conselho da OAB/RS no pedido feito pelo deputado federal emedebista Pedro Horta para que a entidade pleiteasse a aprovação de um projeto de lei que revogava a nova Lei de Segurança Nacional.601 Em 1967 percebem-se nas atas do Conselho Estadual da Ordem menções a prisões de advogados, tanto no Rio Grande do Sul (nos quais apresentavam medidas tomadas pela entidade) quanto no Paraná (onde foram mencionados votos de solidariedade).602 Neste sentido, há o caso da prisão do advogado Dalmir Franklin de “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 12 de julho de 1967”. In: IARGS. Livro de Atas 07 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 595 Idem, ibidem. 596 Verbete Evandro Lins e Silva. In: ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, pós 1930. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2010. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx. 597 “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 26 de julho de 1967”. In: IARGS. Livro de Atas 07 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 598 “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 12 de setembro de 1967”. In: IARGS. Livro de Atas 07 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 599 “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 28 de junho de 1967”. In: IARGS. Livro de Atas 07 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 600 “Ata do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 26 de julho de 1967”. In: IARGS. Livro de Atas 07 1964-1967. Porto Alegre, 1968. 601 “ 4/4/67”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 602 “Reunião 2/5/1967”, p. 1; “7/11/1967”, p. 3; “5/12/1967”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 594 155 Oliveira, sobre a qual Eloar Guazzelli solicitou ao presidente que tomasse medidas para aliviá-la.603 É apontado nas atas que, em uma reunião junto no Conselho Federal, o presidente da OAB/RS, Alter Cintra de Oliveira, fez uma lista de proposições relacionadas à conjuntura nacional, a qual finaliza com um “apêlo ao Presidente da República, Câmara e Senado em favor da anistia aos crimes políticos”.604 Além disso, durante este ano houve debates referentes a mudanças no Estatuto da OAB propostas pelo Congresso, o que era visto pelo Conselho como algo que iria contra as bases da advocacia. Não são percebidos nas atas das sessões de 1968 do IARGS ecos da onda de manifestações de oposição à ditadura civil-militar que ocorriam em diversos espaços em Porto Alegre e no Brasil como um todo.605 Como demonstrei, nos primeiros anos o Instituto constituiu um local onde reverberaram as críticas ao regime, chegando ao seu volume máximo no ano de 1966 e com a participação da entidade na CPI das mãos amarradas. Depois deste momento, estas vozes críticas foram diminuindo, o que foi visto em 1968. Curiosamente este ano foi escolhido pelas Nações Unidas como o “Ano Internacional dos Direitos Humanos”. Frente a isto, o IARGS fez movimentos buscando realizar um ciclo de conferências sobre o tema, o qual abriria com uma palestra do advogado de presos políticos Heráclito Sobral Pinto, o que acabou não ocorrendo.606 Este ano acabou sendo mais marcado por questões internas do sodalício, em especial a “28/12/1967”, p. 3 In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 1966-1968. Porto Alegre, 1969. “Ata da sessão ordinária do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil – 18/8/67”, p. 3. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 605 Sobre o ano de 1968 em Porto Alegre ver: SCHMIDT, Benito Bisso & ANTONIOLLI, Juliano, “Flávio Koutzii: um olhar sobre as sensibilidades da geração 68 em Porto Alegre”. In: Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, Uberlândia, UFU, vol. 6, Ano VI, nº1, p. 2, janeiro/fevereiro/março de 2009. Disponível em http://www.revistafenix.pro.br/artigos18.php; RODEGHERO, Carla Simone; GUAZZELLI, Dante Guimaraens; DIENSTMANN, Gabriel. Não Calo, Grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, pp. 71-75 e 107-10. Já sobre o caso brasileiro ver: RIDENTI, Marcelo. Breve recapitulação de 1968 no Brasil. In: GARCIA, Marco Aurélio e VIEIRA, Maria Alice (org.). Rebeldes e contestadores: 1968-Brasil, França e Alemanha. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo: 2008, p. 55-60; RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro – artistas da revolução do CPC à era da TV. São Paulo: Editora UNESP, 2014; ABREU, Alzira Alves de. “Quando Eles Eram Jovens Revolucionários – Os guerrilheiros das décadas de 60/70 no Brasil”. In: VIANNA, Hermano. Galeras Cariocas – territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, pp. 181-205. 606 “Ata da sessão extraordinária do dia 14/3/1968”, fl. 1. OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 1966-1968. Porto Alegre, 1969. Além disto, foi criado pela OAB/RS neste ano um concurso de trabalhos de estudantes de direito sobre o tema. “4/6/1968, p. 4”. OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 19661968. Porto Alegre, 1969. 603 604 156 construção da Casa do Advogado. Houve também a distribuição de honrarias a expresidentes, entre eles o comunista Júlio Teixeira.607 Já a seccional rio-grandense da OAB acabou repercutindo mais do que o IARGS a ebulição que ocorria neste ano. Uma das questões presentes era, novamente, menções às autoridades que vinham atacando advogados no cumprimento de seu dever.608 Apesar do assunto estar presente nas atas estes eventos, não se percebe um posicionamento mais enérgico da entidade frente a estas violações. Este é o caso de um processo apreciado pelo Conselho Estadual, no qual um advogado havia sido agredido e maltratado por uma autoridade militar. Devido à demora na tramitação, no momento em que foi apreciado, já não restavam muitas medidas a serem tomadas pela Ordem, o que Eloar Guazzelli lastimou e fez com que fosse registrado na ata.609 Ao mesmo tempo, estavam presentes questões referentes à repressão existente naquele ano no Brasil. Foi o caso de confrontos entre estudantes e policiais ocorridos no país, que foi debatido na reunião do dia 9 de abril. Na ocasião, foi aprovada por maioria simples (nove votos contra sete) a seguinte manifestação: O Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, reunindo em sessão ordinária decidiu, manifestas as suas apreensões em face dos últimos acontecimentos entre estudantes e forças policiais, pelas suas implicações na ordem jurídica, entendendo que os problemas da mocidade brasileira não podem ser resolvidos pela violência, cumprindo assegurar a todos o livre exercício das garantias constitucionais, como exemplo a ser dado aos moços na luta pelo aprimoramento da pratica da Democracia.610 Vê-se nesta nota uma postura de questionamento aos métodos utilizados na resposta às mobilizações dos jovens que se opunham à ditadura. Pouco menos da metade dos conselheiros presentes se opôs a esta demonstração de crítica. Algo semelhante ocorreu quando foi trazida ao Conselho uma proposta de manifestação contrária a uma Portaria da Secretaria da Segurança do Rio Grande do Sul que obrigava a identificação de passageiros de taxi. Apesar do conselheiro Telmo Rovira Martins ter intentado fazer com que a OAB/RS se posicionasse contra esta “Ata da sessão do dia 14 de agosto de 1968”, fl. 1. OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 19661968. Porto Alegre, 1969. 608 “ 9/4/1968”, p. 1; “10/5/1968”, p. 4; “4/6/1968”, pp. 2-3. OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 609 “10/5/1968”, p. 4. OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 610 “9/4/1968”, p. 2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 607 157 medida que iria “contra a liberdade de locomoção”, o Conselho absteve-se de pronunciar-se.611 Este Conselho, por outro lado, não se privou de manifestar oposição às tentativas do governo federal de subordinar a Ordem ao Ministério do Trabalho, o que, para eles, iria contra as prerrogativas da classe.612 Esta medida, que vinculava diretamente a entidade dos advogados a administração, não teria sucesso posteriormente.613 Houve, no final deste ano, a eleição do Conselho Estadual para o biênio 1969/1971.614 Nela, Júlio Teixeira e Eloar Guazzelli foram eleitos membros para o Conselho Estadual; Teixeira foi o quinto mais votado, com 1489 votos, demonstrando que era reconhecido pelos seus colegas, e Guazzelli ficou na décima sétima posição.615 II.8. O cotidiano da defesa de presos políticos Uma vez que a partir de 1969 houve um aumento no número de processos de crimes políticos tramitando na Justiça Militar, acho importante neste ponto do capítulo fazer uma reflexão a respeito do cotidiano da defesa de presos políticos. Esta área de atuação surgiu de forma diversa para cada um destes advogados. Como já apontado, devido ao seu posicionamento político e ao fato de já ser um advogado mais estabelecido, Guazzelli iniciou esta atividade logo no início da ditadura. Conforme Omar Ferri, “Naquela época eles [as pessoas perseguidas pela repressão] procuravam evidentemente advogados de maior representatividade, de maior presença na vida jurídica do Estado”, o que poderia ser o caso de Eloar, e não de Werner ou Omar.616 Porém, ao longo deste período inicial os dois últimos advogados irão assumir este tipo de defesas. Omar Ferri afirmou que iniciou esta atuação a partir de pessoas perseguidas que vinham do interior, em casos variados, o que se deu a partir de seus contatos anteriores, uma vez que sua atuação na advocacia, até então não se dava na capital. 617 “11/6/1968”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 1966-1968. Porto Alegre, 1969. “19/3/1968”, p. 2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 613 “12/11/1968”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 614 “Ata de apuração final das eleições do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Rio Grande do Bul: biênio 1969/1971”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 10 - 1966-1968. Porto Alegre, 1969. 615 Idem, ibidem. 616 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 23 de maio de 2013, p. 18. 617 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no dia 28 de fevereiro de 2013 611 612 158 Werner Becker credita sua entrada neste tipo de atividade à indicação feita pelo colega e amigo Carlos Araújo.618 Este, que tinha um escritório no mesmo edifício que Becker, perguntou-lhe se poderia defender um companheiro preso relativo a um caso da Petrobrás. De acordo com Becker, em entrevista, Então ninguém queria pegar este troço, todo mundo tinha medo. Como advogado fui o primeiro. E eu pensei o seguinte: “Eu estou na merda mesmo, o que vou fazer. O pior que vão fazer é me prenderem, e se prenderem me dão comida, então...” [...] Para tu ver. E eu absolvi o cara.619 Percebe-se na passagem que o advogado mostra sua entrada na defesa de presos políticos devido a questões contingenciais, como ele não ter muito espaço para atuação profissional. Em geral, as pessoas que acionavam os advogados eram os familiares dos presos políticos, que buscavam nos escritórios informações sobre seus filhos.620 A advogada Heloiza Villeroy, em entrevista concedida para esta pesquisa, afirmou que estas pessoas, devido à aflição e ao terror que passavam, chegavam ao escritório “como chegava num dentista para tratar de um dente... sem anestesia”.621 Assim, procurava-se, no escritório, trazer algum tipo de conforto a eles nesta situação tão dramática.622 Foi apontado pela secretária Denise Broda que, no escritório de Eloar, o dia mais movimentado pelas famílias eram segundas e sextas-feiras, devido às visitas aos presos nos finais de semana.623 As idas ao DOPS ou a outros locais da repressão eram planejadas e avisadas. Werner Becker afirmou que deixava “de sobreaviso” seus colegas de escritório quando ele ia a estes espaços, para o caso de não voltar.624 No escritório de Eloar havia um procedimento similar: em geral, o advogado e as advogadas iam sozinhos a estes locais, para ter, assim, alguém fora que pudesse denunciar eventuais prisões.625 618 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no dia 25 de setembro de 2012, p. 8. 619 Idem, p. 9. 620 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 90. Dissertação de Mestrado em História. 621 VILLEROY, Heloiza. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 11 de junho de 2013. 622 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 89. Dissertação de Mestrado em História. 623 Idem, p. 90. 624 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no dia 24 de maio de 2013. 625 VILLEROY, Heloiza. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 11 de junho de 2013. 159 Chama a atenção que algumas advogadas, como Heloiza e Eni, fossem ao DOPS, devido à possível violência contra mulher. Eni, por exemplo, afirmou que Eloar havia feito esta observação antes de ela iniciar seu trabalho na equipe. 626 Ela relatou, em audiência para a CEV/RS, “que eu achava que por ser mulher, por eu seu corajosa, por eu ser maliciosa, que eu podia ajudar na defesa dos presos políticos”. 627 Villeroy afirmou que, por estarem atuando nesta área, elas provavelmente eram vistas como “cangaceiras”, isto é, mulheres que não aceitariam as violências, e, desta forma, não chegaram a sofrer ameaças.628 Nestes locais, uma forma de constrangimento aos advogados era, segundo as colegas de escritório de Guazzelli, o “chá-de-banco”, isto é, a espera demorada e intencional realizada pelos agentes da repressão.629 Nestes momentos buscava-se, ainda, passar com presos torturados próximos aos advogados, para assim coagir os defensores.630 Heloiza mencionou que também dava para notar nos telefones do escritório, ao erguer o fone, o som de gravadores – indicando que as ligações eram vigiadas – ao que ela respondia “Bom dia!”.631 É interessante que ela rememora este fato como algo divertido da época, atribuindo certa leveza à forma como eram tratados acontecimentos como este. Conforme apontei no capítulo anterior, ao trabalhar na Justiça Militar, os advogados tinham que proceder com muita destreza e, em alguns momentos, astúcia. Werner e Omar apontam neste sentido ao narrar o caso de um habeas corpus impetrado diretamente ao comandante do III Exército. Omar afirmou que, quando defendia o político trabalhista Romeu Barleze, decidiu, para proceder a soltura dele, fazer “um habeas corpus com tudo, todo o formalismo de habeas corpus, ao General Justino Alves Bastos comandante do terceiro 626 MILAN, Ana Eni Machado. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no dia 23 de agosto de 2011; CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 87. 627 CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 87. 628 VILLEROY, Heloiza. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 11 de junho de 2013. 629 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 94. Dissertação de Mestrado em História. 630 VILLEROY, Heloiza. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 11 de junho de 2013. 631 Idem. 160 (sic) Exército”.632 Isto permitiu que, dias depois, fosse libertado o preso, que iria, clandestinamente para o exílio.633 Becker afirma que se baseou no princípio do Ato Institucional que afirmava que a “revolução” legitimava-se a si mesma; assim ele decidiu, quando defendia o exministro Almino Afonso, solicitar o habeas à fonte “revolucionária” do Estado, que aceitou o pedido através de um ofício. Assim, de acordo com ele, Levo esse ofício lá na DOPS que ele [o comandante] mandou soltar. Agora tu imagina, eu não paguei custos nem nada: “Proceda-se a soltura.” Ah, sempre tinha um atrito entre a repressão civil e os militares, sempre tem, faz parte, tem entre a polícia e o exército.[...] Eu levei lá e o delegado da DOPS olhou e diz: “Ah, ele não tem competência.” Eu digo: “olha, eu não sei, eu estou de office boy”[...] E eu sai da DOPS [...], não sei se lotação, ônibus ou bonde, fui para o escritório, não tinha carro. E no escritório estava o [preso]Almino Afonso. O cara pensou melhor.634 Isto mostra, além da astúcia do advogado, a tensão que existia dentro dos diferentes setores da repressão, em especial entre civis e militares. Werner ressalta, mais uma vez, o caráter “artesanal” da repressão, ao mesmo tempo que reforça sua esperteza e habilidade para lidar com estas situações. Está presente uma característica muito frequente na narrativa de Becker, que é a de apresentar um relato no qual ele obtêm êxito através de sua astúcia. Estes casos ainda denunciam o desconhecimento que havia, por parte dos responsáveis pela repressão, dos ritos legais. Isto, de acordo com Heloiza Villeroy, era muito comum e dificultava o trabalho dos advogados.635 Ela afirmava que, mesmo assim, Guazzelli conseguia obter sucesso em diversos casos por ser muito habilidoso e conhecer os juízes “de dentro para fora”.636 Nereu Lima, em sua entrevistam aponta que uma das argumentações utilizadas por Eloar era relacionada à desqualificação por vícios de origem, isto é, procedimentos equivocados realizados na instauração do processo que “contaminavam todos os demais CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 76. 633 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 9 de junho de 2017. 634 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no dia 25 de setembro de 2012, p. 8. 635 VILLEROY, Heloiza. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 11 de junho de 2013. Ela afirmou que, questões básicas do processo jurídico, como o fato de a defesa encerrar as argumentações ou os réus não deverem estar algemados nos julgamentos. 636 Idem. 632 161 atos processuais que dele dependiam”.637 Werner exemplificou esta linha de argumentação ao narrar que conseguiu a absolvição de Carlos Araújo, Marco Aurélio Garcia e Flávio Koutzii em um caso devido ao fato de não existir, nos autos, nenhuma prova, já que ela havia sido juntada, equivocadamente, em outro processo.638 Para Nereu, todo o aparato legal criado para instituir a repressão judicial buscava “dar uma roupagem, um formalismo que costumava dizer assim, com uma frente de catedral e fundos de bordel”, isto é, tentar dar uma legitimidade ao mesmo tempo que enquadrava a oposição.639 Werner aponta para sentido semelhante ao afirmar que os advogados estavam na corte castrense para mostrar que, uma vez que existiam processos “legais”, “havia democracia”.640 Ainda segundo este advogado, com intuito de provar que os processos eram “legais”, dava-se muita repercussão a eles na mídia.641 Ao mesmo tempo, a divulgação na mídia dos casos e das absolvições dava “proteção social” aos advogados, além de promover os defensores. Becker ironicamente afirma que deve sua carreira de advogado à ditadura.642 De outro lado, Nereu aponta que, mesmo com esta característica paradoxal dos advogados de presos políticos, este era um espaço de luta contra a ditadura.643 II.9. Werner Becker e os brigadianos subversivos Em agosto de 1969 ia ocorrer, segundo a Fôlha da Tarde, “o maior processo instaurado no Estado, depois do movimento de 1964”, no qual eram julgados trinta e sete oficiais da Brigada Militar, defendidos por sete advogados, entre eles, Werner Becker, que representava o tenente-coronel Emílio João Pedro Neme.644 O processo era “composto de cinco volumes, com quase 1.500 páginas”, tendo como réus “dez 637 LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em dia 8 de agosto de 2013, p. 16. 638 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no dia 25 de setembro de 2012, p. 12 639 LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em dia 8 de agosto de 2013, p. 6. 640 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no dia 25 de setembro de 2012, p. 9. 641 Idem, ibidem. 642 Idem, ibidem. 643 LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em dia 8 de agosto de 2013, p. 6 644 Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 14 de agôsto de 1969, primeiro caderno, p. 30. 162 coronéis, entre os quais um ex-comandante da Milícia Gaúcha, o cel. Venância Batista; cinco tenentes-coronéis; cinco majores; onze capitães e seis primeiros tenentes”.645 Este caso teve certa repercussão devido ao número de envolvidos e à natureza do “crime” acusado. Em relação à cobertura dada pela imprensa, diferentemente de outros casos analisados aqui, a Fôlha da Tarde acabou dando um espaço maior ao processo do que a Zero Hora: enquanto que este periódico fez uma abordagem resumida, a Fôlha descreveu diversos detalhes do caso.646 Os brigadianos eram réus pois, segundo a denúncia, “antes da revolução de 64, pregavam abertamente a subversão da ordem política e social vigente, a mudança radical do regime e outras teses marxistas”, além de propor a necessidade da criação de “grupos de onze”, “inclusive nas unidades da Brigada Militar”.647 De fato, estes oficiais estavam sendo julgados pois, durante o golpe haviam se colocado à disposição do gal. Ladário Pereira Teles, comandante do III Exército, fiel à João Goulart, indo contra as orientações do comandante da Brigada Militar, Otávio Frota. Devido ao tamanho do processo e ao número de réus arrolados, o julgamento teve dois dias de duração, havendo suspensão dos trabalhos para as refeições. A acusação utilizou os argumentos vindos da denúncia, pedindo condenação para cinco réus, absolvição para doze e, para os vinte restantes, “justiça, sustentando estar em dúvida se o fato a êles imputado era crime ou não, face às circunstâncias do momento”.648 A defesa, composta por vários advogados, organizou uma linha argumentação na qual eles atuavam em cooperação. Assim, foi apontado que, no momento do golpe, cabia aos réus “atenderem à convocação do Exército”, limitando-se a dar “apoio moral” às autoridades então instituídas, não sendo seu dever “aderir ao movimento revolucionário, porque ser revolucionário é um direito e não um dever”.649 Neste sentido, a reportagem afirmou que Werner Becker afirmou que “os fatos imputados não estão provados e, provados que fôssem, não são criminosos”: de acordo com ele o STM já havia decidido neste sentido ao afirmar que “os atos praticados em 31 de março e 1.o de abril de 64, em defesa do governo do ex-presidente João Goulart, então legalmente 645 Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 15 de agôsto de 1969, primeiro caderno, p. 14; Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 14 de agôsto de 1969, primeiro caderno, p. 30; Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 15 de agôsto de 1969, primeiro caderno, p. 14; “Subversão: 37 oficiais julgados”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 15 de agosto de 1969, primeiro caderno, p. 21. 647 Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 14 de agôsto de 1969, primeiro caderno, p. 30. 648 Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 15 de agôsto de 1969, primeiro caderno, p. 14 649 Idem, ibidem. 646 163 constituído, não são criminosos”.650 Foi acrescentado, pelo advogado Hilário Peruffo Neto, que, após “vitoriosa a revolução, todos êles se renderam à nova ordem jurídica por ela instalada no Brasil, num total e completo respeito”.651 Pode-se ver que aqui ocorreu a coordenação de esforços dos defensores de presos políticos, mencionada no capítulo anterior. Os argumentos utilizados apontaram que, na época em que o crime ocorreu, os atos não eram considerados desta forma. Ao mesmo tempo, o caso provavelmente auxiliou a carreira no Direito de Werner Becker, uma vez que divulgou seu nome em um jornal de grande circulação. 652 Nos anos seguintes, como veremos na sequência, ele foi representado como defensor dos “terroristas” e “subversivos” que frequentavam as manchetes policiais dos jornais riograndenses. II.10. Políticos no meio dos advogados III: comunistas no IARGS e na OAB/RS nos “anos de chumbo” (1969 a 1971) No ano de 1969 percebe-se no Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul algo semelhante ao visto no ano anterior: a entidade acabou mais voltada a questões referentes à construção da Casa do Advogado e à organização do II Congresso Estadual dos Advogados, realizado junho daquele ano, do que a discussões políticas mais gerais. A menção ao contexto nacional nas atas deste ano deu-se na referência à ascensão do Gal. Emílio Garastazu Médici à presidência da república.653 Foram feitas congratulações e homenagens a ele por pronunciamentos e por medidas tomadas, as quais, segundo o Instituto, resguardariam os direitos individuais, “banindo-se de uma vez por todas, o emprego de torturas em acusados de crimes comuns ou políticos”.654 Ironicamente, o governo Médici ficou marcado como “os anos de chumbo” devido ao aumento da repressão e das torturas. No período, foi constante a atuação dos comunistas Eloar Guazzelli e Júlio Teixeira, que em diversos momentos, atuaram como oradores em solenidades 650 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 652 Ironicamente, seu nome, na matéria do dia do julgamento foi escrito de maneira equivocada o que foi corrigido no dia seguinte. 653 “Ata da sessão do dia 15 de outubro de 1.969; “Ata da sessão do dia 10 de dezembro de 1.969”. In: IARGS. Livro de Atas 1967-1972. Porto Alegre, 1973. 654 “Ata da sessão do dia 10 de dezembro de 1.969”, fl. 2. In: IARGS. Livro de Atas 1967-1972. Porto Alegre, 1973. 651 164 promovidas pela entidade.655 Ao final deste ano, foram realizadas eleições para o biênio seguinte: nelas Justino Vasconcelos foi reconduzido ao cargo de presidente e Eloar elegeu-se orador.656 No início de 1969, Eloar Guazzelli e Júlio Teixeira foram empossados novamente como membros do Conselho Estadual da OAB/RS e eleitos para duas comissões importantes: Guazzelli na de Ética e Disciplina e Teixeira na de Defesa e Assistência.657 Isto mostra que os comunistas continuavam investindo nestes espaços de atuação. No caso do Conselho da Ordem sul-rio-grandense encontramos nas atas de 1969 o registro de posturas próximas às tomadas no ano anterior, as quais apontavam para arbitrariedades da ditadura ao mesmo tempo em que prestava certas homenagens aos seus próceres. Nas atas vemos críticas a prisões de advogados, tanto no Rio Grande do Sul quanto em outros estados, sendo mencionadas medidas tomadas pelo Conselho.658 Destaca-se a menção à prisão do jurista e advogado de presos políticos Heleno Fragoso: neste caso foi decidido o envio de ofício aos ministros da Justiça e do Exército, “comunicando a violação ocorrida”.659 Por outro lado, foram prestados tributos a pessoas vinculadas ao regime: foi feito voto de congratulações a um ex-conselheiro que assumia a Chefia da Casa Civil da Presidência e homenagem póstuma ao marechal Costa e Silva.660 Pelo que se pode notar, a Ordem não foi tão efusiva em suas demonstrações quanto o Instituto, mantendo uma postura mais fria em relação ao novo chefe da nação. Além disso, foram “Ata da sessão do dia 11 de agôsto de 1.969”; “Ata da sessão do dia 13 de agôsto de 1.969”. In: IARGS. Livro de Atas 1967-1972. Porto Alegre, 1973. 656 “Ata da sessão do dia 10 de dezembro de 1.969”. In: IARGS. Livro de Atas 1967-1972. Porto Alegre, 1973. 657 “Ata da sessão extraordinária do dia 1º/II/69”. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 11 - 19681970. Porto Alegre, 1971. 658 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – em 24 de junho de 1969”; “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – em 26 de agôsto de 1969”. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 11 - 1968-1970. Porto Alegre, 1971. 659 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – em 24 de junho de 1969”, p. 2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 11 - 1968-1970. Porto Alegre, 1971. 660 ““Ata da sessão extraordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – em 28 de outubro de 1969”, p. 1; ““Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – Em 18 de dezembro de 1969”, p 2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 11 - 1968-1970. Porto Alegre, 1971. 655 165 encontrados registros de iniciativas do Conselho Estadual da Ordem que buscavam permitir aos advogados intervir nas mudanças que estavam ocorrendo no país.661 Em 1970 houve uma retomada, por parte do IARGS, de uma postura crítica à ditadura. Esta reorientação estava relacionada com um posicionamento mais radical do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), que, neste ano, passou a ter na presidência Miguel Seabra Fagundes. Em seu discurso de posse, “A legalidade democrática”, Seabra Fagundes denunciava a violência promovida pelo regime naquele momento.662 Antes da posse do IAB, já era sugerido por Júlio Teixeira que o presidente do IARGS, Justino Vasconcelos, comparecesse à solenidade e visse a possibilidade de ser lançado um um manifesto de repúdio à onda de violência que abala o Brasil e, de modo geral, a América Latina. Nesse documento, [...] dever-se-ia também apontar para a necessidade de ser acelerado o processo de redemocratização do País, pois só o Estado de Direito, na sua plenitude, poderá desarmar [...] os espíritos. A proposição foi aprovada por unanimidade de votos, ficando o Sr. Presidente autorizado a assinar’ o manifesto que se fizesse, em nome [do] Instituto.663 Chama a atenção a diferença deste trecho em relação à postura passiva da mesma entidade nos anos anteriores: enquanto que naqueles momentos a violência do regime não estava registrado nas atas, em 1970 ela se fará presente em diversos momentos. Considerando que era, em linhas gerais, o mesmo grupo que estava presente nestes anos na agremiação com o mesmo líder, Justino Vasconcelos, pode-se sugerir que o que estava mudando era a opinião pública em relação às violências do regime. Assim, em 1970, foram feitas diversas menções, nas atas do Instituto, aos métodos violentos utilizados pela ditadura. Exemplos disso são os anexos às atas que continham matérias da imprensa com discursos de Dom Vicente Scherer e Seabra Fagundes e Assim em 26 de agosto foi sugerida a participação de advogados “nos trabalhos de reforma constitucional” e, em 28 de outubro, a coleta das “aspirações e as reivindicações da classe” para serem “encaminhadas ao novo Presidente da República, Gen. EMÍLIO GARRASTAZÚ MÉDICI”. “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – em 26 de agôsto de 1969”, p. 1; “Ata da sessão extraordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – em 28 de outubro de 1969”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 11 - 1968-1970. Porto Alegre, 1971. 662 Verbete Seabra Fagundes”. In: ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro: FGV, 2010. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/miguel-seabra-fagundes 663 “ Ata nº 1/70 – de 8 de abril de 1970”, pp. 4-5. In: IARGS. Livro de Atas 1967-1972. Porto Alegre, 1973. 661 166 editorial do Jornal do Brasil que denunciavam violências e arbitrariedades cometidas pelo Estado que haviam sido debatidos nas sessões.664 Houve, também, a denúncia, por parte de Eloar a respeito dos ataques feitos aos advogados derivados da legislação criada pela ditadura, como a nova Constituição, Lei de Segurança Nacional e o Código de Processo Penal Militar (que regulava os processos políticos).665 Para ele, este aparato legal permitia que as autoridades fossem contra a lei que regia a Ordem dos Advogados.666 Foi debatida em outra sessão a questão do cumprimento de dispositivo constitucional no caso dos presos políticos.667 Apesar de não ter mais explicações sobre os assuntos tratados, provavelmente estas duas menções diziam respeito aos direitos dos presos e advogados atacados pelos dispositivos, como a questão da comunicabilidade. Em outros momentos, o Instituto propunha a criação de cursos voltados aos Direitos Humanos ao mesmo tempo em que reforçava a necessidade deste tema ser mais abordado nos currículos de Direito.668 As menções críticas ao regime nas atas mostram que o IARGS, em 1970, fez um questionamento maior da ditadura civil-militar e de seus atos. Ao perceber que se abriam espaços, os comunistas Júlio Teixeira e Eloar Guazzelli aproveitavam-nos para realizar suas denúncias. Por outro lado, vemos que isto ocorria paralelamente a elogios aos governantes feitos pela entidade. Nas atas do Conselho Estadual da OAB/RS em 1970 percebe-se, como nos anos anteriores, que as denúncias de violações da ditadura conviviam com indícios de sua proximidade com o poder. Assim, na sessão de 31 de março daquele ano vemos diversos conselheiros denunciando arbitrariedades cometidas contra advogados em todo o país.669 Os comunistas Eloar Guazzelli e Antônio Pinheiro Machado Neto aproveitaram este espaço para denunciar violações de prerrogativas da classe: enquanto que Guazzelli apontava que o advogado Darcy Von Hoonholtz não estava em cela especial, Pinheiro Machado, “Ata nº 3/70 – de 29 de abril de 1970”; “Ata Nº 8 / 70 – de 11 de junho de 1.970”; “Sessão de 2.9.70 – Ata nº 12”. In: IARGS. Livro de Atas 1967-1972. Porto Alegre, 1973. 665 “Ata Nº 3/70 – de 29 de abril de 1970”, p. 4. In: IARGS. Livro de Atas 1967-1972. Porto Alegre, 1973. 666 Idem, ibidem. 667 “Ata Nº 16 / 70 – de novembro de 1.970”, p. 3. In: IARGS. Livro de Atas 1967-1972. Porto Alegre, 1973. 668 “Ata Nº 3/70 – de 29 de abril de 1970”, p. 3; “Ata da 1ª Conferência de Direito Internacional Público – sessões ordinárias de 23 de julho de 1.970”, p. 1. In: IARGS. Livro de Atas 1967-1972. Porto Alegre, 1973. 669 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – Em 31 de março de 1970”, p. 1-2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 11 - 1968-1970. Porto Alegre, 1971. 664 167 através de ofício, informava que seu domicílio havia sido invadido sem amparo legal.670 O presidente Alter Cintra de Oliveira afirmou que iria tratar destes temas logo quando se reunisse com o ministro da Casa Civil.671 Posteriormente, devido a diversas prisões de advogados, solicitadores e estagiários inscritos na Ordem em diferentes locais do estado, foi convocada uma sessão extraordinária no dia 3 de novembro.672 Frente a isto, o presidente Alter Cintra de Oliveira informou que, ao lado do líder do Instituto Justino Vasconcelos, havia marcado uma reunião com o comandante do III Exército, Gal. Breno Borges Fortes, na qual tratariam destes temas.673 A sessão, que também tratou de violências ocorridas contra advogados de outros estados, não foi encerrada, sendo mantida desta forma até que a situação dos detidos tivesse uma solução.674 Nas duas situações vemos a dualidade dos posicionamentos da Ordem sul-riograndense neste período: tinham uma relação estreita com o regime, embora o criticassem. Percebe-se também que os defensores dos presos políticos levavam seus processos para o Conselho Estadual procurando assim resguardar direitos mínimos a seus clientes. Este é o caso de Guazzelli ao tratar de Von Hoonholtz, que era seu cliente. A Ordem permitia vantagens aos advogados, que tiravam proveitos desta posição da proximidade com o Executivo. A postura paradoxal da entidade, que mantinha boas relações mas criticava a ditadura, possibilitava um espaço para aqueles que sofriam a repressão – fossem defensores, como Guazzelli, ou perseguidos, como Pinheiro Machado – para que eles denunciassem e obtivessem algum retorno. Em 1970 houve, ainda, outras menções nos registros da Ordem que indicam mudanças no contexto político do país. Uma delas é uma proposta, aprovada por unanimidade, de incentivo a criação “dos Conselhos Estaduais na Defesa dos Direitos da Pessoa Humana”, mostrando comprometimento da entidade com o tema.675 Foi tratado também o apoio da seccional à candidatura de José Cavalcanti Neves para a 670 Idem, ibidem. Idem, p. 3. 672 “Ata da sessão extraordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – realizada em 03 de novembro de 1970”. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 11 1968-1970. Porto Alegre, 1971. 673 Idem, p. 2. 674 Idem, ibidem. 675 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – realizada em 4 de agôsto de 1970”, p. 3. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 11 - 1968-1970. Porto Alegre, 1971. 671 168 presidência do Conselho Federal.676 O apoio a Cavalcanti Neves levou à renúncia de dos conselheiros federais João Campos Duha, Otto Gil de Andrade e Arthur Pôrto Pires, segundo a ata, redigida em termos injuriosos.677 Como vimos, será na presidência de Cavalcanti Neves que a Ordem terá uma reorientação de sua postura, colocando-se em oposição à ditadura. O ato dos dois conselheiros mostra que este reposicionamento da entidade não foi totalmente pacífico dentro da classe. No caso do IARGS, não se percebe em 1971, último ano da presidência de Justino Vasconcelos, a mesma crítica presente no ano anterior.678 Nas atas, mais resumidas que nos anos anteriores, os debates presentes no ano anterior sumiram: pouco foi discutido sobre a situação política nacional ou internacional e sobre questões jurídicas. O Instituto, aparentemente, preocupou-se sobretudo com a organização do III Congresso Estadual dos Advogados, que se realizou entre 23 e 26 de junho daquele ano, com o tema “Deveres e prerrogativas do advogado”. No início de 1971 tomavam posse os conselheiros estaduais da OAB.679 Novamente Júlio Teixeira e Eloar Guazzelli estavam entre eles e eram destacados para comissões permanentes: o primeiro para Comissão de Ética e Disciplina e o segundo para Comissão de Fiscalização.680 Não se constata, nas atas da OAB/RS deste ano, a presença de denúncias ou o acompanhamento de prisões ou violações de pessoas registradas na Ordem, como ocorreu no ano anterior. Uma exceção à essa regra foi o processo do comunista Antônio Pinheiro Machado Neto referente à invasão de sua residência, que, provavelmente, havia sido oficiada no ano anterior.681 Em relação a isto o Conselho Estadual decidiu que o processo deveria ser “remetido ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados, a fim de se dar conhecimento do fato ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa 676 Idem, p. 2. “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul – realizada em 22 de setembro de 1970”, p. 2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 11 - 19681970. Porto Alegre, 1971. 678 IARGS. Livro de Atas 1967-1972. Porto Alegre, 1973. 679 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 3 de fevereiro de 1971”. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 680 Idem, ibidem. 681 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 24 de setembro de 1971”, p. 3; “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 19 de outubro de 1971”, p. 4. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974 677 169 Humana”.682 Posteriormente, o Conselho Federal enviaria o caso para à Comissão Internacional de Direitos Humanos.683 Estão presentes nos registros, sim, pedidos do Conselho Federal para participação de reuniões do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, do Conselho paraense da OAB clamando pela volta do habeas corpus e manifestações de apoio do vereador Glênio Peres ao posicionamento da OAB em relação à extinção da pena de morte.684 Há, ainda, uma comunicação da OAB baiana informando não terem a menor procedência as notícias veiculadas pela imprensa, sôbre a recusa dos advogados baianos no patrocínio da defesa de réu recentemente condenado à pena de morte.685 Provavelmente a passagem refere-se ao processo de Theodomiro Romeiro dos Santos, militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, que havia sido condenado à pena capital em março de 1971, tendo a pena reformada para prisão perpétua no mesmo ano pelo STM.686 Estas menções são indício das movimentações que ocorriam naquele momento em relação a uma oposição aos métodos utilizados pela ditadura, entre eles o aparato legal. Pode-se ver que, neste ano, o conselho sul-rio-grandense da Ordem acabou repercutindo posturas críticas ao regime mais do que tomando à frente de iniciativas nessa direção. Pode-se ver, ao mesmo tempo, indícios da nova orientação que o Conselho Federal estava tomando ao lutar contra a pena de morte e pelo fortalecimento de organizações de defesa dos “direitos da pessoa humana”. Neste ano, como em outros, percebe-se momentos de defesa dos direitos dos advogados, de maior celeridade da justiça e em prol de mudanças no judiciário.687 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 24 de setembro de 1971”, p. 3. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 19711973. Porto Alegre, 1974. 683 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada aos 12 (doze) dias do mês de julho do ano de mil novecentos e setenta e dois (1972)”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 684 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 20 de julho de 1971”, p. 2; “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 30 de novembro de 1971”, p. 2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 685 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 20 de abril de 1971”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 686 O caso de Theodomiro é abordado em LEMOS, Renato. “Poder Judiciário e poder militar (1964-69)”. In: CASTRO, Celso; IZEECKSOHN, Vitor & KRAAY, Hendrik (org). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV/Editora Bom Texto, 2004. 687 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 20 de julho de 1971”, p. 6; “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 19 de outubro de 1971”, pp. 3-4; “Ata da 682 170 Ressalto, aqui, a possibilidade, sugerida pela comunista Júlio Teixeira, de mulheres ingressarem na Magistratura, sugerido por ele no momento em que foi tratada da participação de um conselheiro em um concurso para juízes.688 Esta passagem mostra duas questões importantes a respeito do campo jurídico e da atuação dos advogados nele. O fato de ser vedada às mulheres esta carreira jurídica, assim como em outras, mostra o conservadorismo que ainda existia nos meios jurídicos. Pela presença já percebida de algumas mulheres em espaços como o IARGS, poderia dizer-se que, neste sentido, a advocacia era uma carreira mais aberta. Analisando a presença de professoras de Direto nestes ambientes, é possível que a docência nesta área também o fosse.689 Ao mesmo tempo, o fato de Teixeira posicionar-se favorável a entrada de mulheres na magistratura mostra que os comunistas poderiam ser um elemento que impulsionaria o campo no sentido de posturas mais progressistas. II.11. Julgamentos do ano: atuação de Eloar Guazzelli no “caso do Julinho” e no “crime da mala” Como já mencionei, alguns casos do Tribunal do Júri ganharam grande destaque e popularidade, trazendo salas lotadas nos julgamentos e dando muita visibilidade aos advogados e promotores que atuavam neles. Exemplos disso foram dois casos em que Eloar Guazzelli atuou nestes anos: os homicídios cometidos pelo ladrão de bancos Júlio Xavier de Mello, o “Julinho”, e pelo comerciante Idalino Bassani, conhecido na época como “o crime da mala”. A dimensão foi tamanha que os jornais apresentaram reportagens extensas antes mesmo dos respectivos julgamentos. Nos casos que analisarei agora, o jornal Zero Hora explorou de forma mais pormenorizada os processos, dando contorno melodramáticos e publicando matérias com os envolvidos dias após o veredito. Dos outros jornais analisados, o Correio do Povo tratou dos casos de forma rápida e resumida enquanto que a Fôlha da Tarde explorou mais os julgamentos. Uma vez que as sessões se sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 30 de novembro de 1971”, pp. 1-2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 688 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada em 30 de novembro de 1971”, pp. 1-2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 689 Este foi o caso das advogadas e professoras de nível superior Olga Bragança Maciel, Betty Borges Fortes, Ecilda Gomes Haensel e Gilda Russomano. A última, aliás, teve uma carreira brilhante, sumindo a docência desde meados da década de 1950, e foi a primeira mulher gaúcha a ocupar uma tribuna da ONU, em 1968, e a única presidenta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 171 estendiam até horas mais avançadas na madrugada, a Fôlha, por ser vespertino, era o único que podia debruçar-se melhor nos acontecimentos ocorridos no Tribunal do Júri. No final de 1968 os jornais porto-alegrenses mostravam a busca que a polícia fazia ao assaltante Júlio Xavier de Mello, conhecido como Julinho, e seu bando. 690 Julinho, que respondia a trinta e dois processos, era mostrado como um jovem criminoso que – tal qual Steve McQueen na película popular da época Crown, o magnífico –, vinha conseguindo livrar-se de forma ardilosa de seus algozes em várias ocasiões. Assim, ao lado de esforços da polícia, era divulgado que Julinho e sua namorada eram vistos em sessões dos animados cinemas da Rua dos Andradas, no centro da capital.691 Ao mesmo tempo, surgiam relatos de pessoas próximas a ele, que mostravam outras dimensões do assaltante. A capa da Zero Hora de 12 de dezembro de 1968 retratou o drama da “mãe do bandoleiro”, que afirmava que preferia “meu filho morto a continuar nesta situação”, além de falar que a irmã de Julinho havia tentado suicídio “por sentir vergonha da situação”.692 Já na edição do dia seguinte, o assaltante e “melhor amigo de Julinho” Teonísio da Cunha Mello, o Sarará Paulista, afirmava que não haviam cometido todos os crimes a eles atribuídos, como o tiro que atingiu um comissário de polícia, e que seu amigo “é evangélico e teme a Deus. Bom no volante, rápido nas decisões. É por isso que sempre consegue escapar”.693 Na tarde de 12 de janeiro de 1969, após uma espetacular perseguição que iniciou no bairro Partenon, passou pelo Cemitério Batista e terminou no bairro Menino Deus, Julinho alvejou o cabo da Brigada Militar Domingos Luís Dalla Costa e foi preso. 694 Além disso, foi encontrada uma seringa “com entorpecentes” na mala que o criminoso 690 A repercussão que Julinho tinha é confirmada pelo promotor do caso anos depois. FREITAS, Ademar Vargas de. “Promotor defenderá a sociedade. Idalino será absolvido? Talvez”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 15 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24 691 ““Julinho” não está hospitalizado, continua roubando”. In: Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 7 de dezembro de 1968, primeiro caderno, p. 20; “ “Gang” de Julinho ameaça matar homem que a apontou”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 19 de dezembro de 1968, primeiro caderno, p. 33; “Roubo e violência”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 31 de dezembro de 1968, Suplemento Especial, p. 11. 692 “O drama da mãe de Julinho”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de dezembro de 1968, primeiro caderno, capa. 693 “Quem é Julinho, segundo Sarará, seu melhor amigo”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de dezembro de 1968, primeiro caderno, p. 25. 694 ““Julinho” escapa do cemitério para ser prêso no Menino Deus”. In: Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 13 de janeiro de 1969, primeiro caderno, p. 38. 172 trazia.695 Uma vez que encerrava uma busca que vinha sendo acompanhada de perto, este acontecimento teve grande espaço na imprensa local, a qual apresentou uma descrição detalhada das ações com diversas fotos das pessoas e locais envolvidos. Da mesma forma, o julgamento teve grande cobertura da imprensa, sendo dado espaço para as argumentações da acusação, feita pelo promotor José Cândido dos Santos, e da defesa de Nereu Lima e Eloar Guazzelli. De acordo com os jornais, a sessão teve audiência lotada, o que não teria mudado nas doze horas e dez minutos de duração.696 Nereu confirmou esta informação na entrevista que me concedeu, contando que havia, antes do julgamento, “filas e filas aqui na praça da matriz”, em frente ao Tribunal do Júri, e que “a segurança era redobrada em razão de ser considerado um dos maiores ladrões de automóveis do brasil”. 697 A acusação procurou desmontar a tese de legítima defesa e apontou que as narrativas da infância e juventude de Julinho buscavam “comover os jurados com um ‘romance contado quase que em capítulos’”.698 Por outro lado, o promotor admitia a “irresponsabilidade parcial do réu de personalidade psicopática” e pedia que os jurados “não julgassem o réu pela sua fama de bandoleiro, mas, tão sòmente [sic] pelo assassinato do cabo Dalla Costa”.699 A reportagem da Fôlha da Tarde, que se debruçou mais sobre o julgamento, acabou dando mais espaço aos defensores. Ao mostrar a presença do jovem “acadêmico” Nereu Lima, por exemplo, foi feita pelo periódico uma contraposição entre ele e o réu, os dois pertencentes à mesma geração, vivendo, na mesma cidade, “em mundos diferentes”.700 É interessante lembrar que se vivia, em 1969, um momento em que a juventude apresentava uma certa “efervescência’, o que marcou a chamada “geração de 68”: era um momento em que jovens do mundo todo, incluindo a capital gaúcha, revoltavam-se contra padrões comportamentais, culturais, políticos e econômicos pré-estabelecidos. Poderia-se ver nesta comparação que a Fôlha marcava “Morte na caçada aos foragidos”. In: Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 13 de janeiro de 1969, primeiro caderno, p. 37; ““Julinho” usa entorpecentes”. In: Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 13 de janeiro de 1969, primeiro caderno, p. 39. 696 “Julinho condenado a oito anos de prisão”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 19 de agosto de 1969, primeiro caderno, p. 29 697 LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em dia 8 de agosto de 2013, p. 14. 698 ““Julinho” sorriu ao ser condenado”. In: Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 19 de agosto de 1969, primeiro caderno, p. 36. 699 Idem, ibidem. 700 Idem, ibidem. 695 173 dois padrões para os jovens do período: de um lado, o ajustado Nereu, o estudante de Direito, de outro o desajustado Júlio. Esses padrões conflitantes foram reforçados pela argumentação do jovem defensor que partia da ideia de que Julinho vivia, desde sua infância e juventude, “em total desajustamento”.701 A Nereu coube, ainda, desqualificar o inquérito, base da argumentação de José Cândido, “apontando-o como prova dirigida, pois apresentava omissões flagrantes para melhor caracterizar a culpa de ‘Julinho’”.702 O advogado buscava, dessa forma, criar uma empatia entre o réu e os jurados, mostrando-o como alguém a quem não haviam sido dadas outras oportunidades. Ao criticar o inquérito, ele fazia, assim, uma crítica aos métodos utilizados pela polícia para enquadrar Mello. Já havia neste contexto, como mostrei, denúncias relativas a tais procedimentos, em especial em relação aos presos políticos. É provável, então, que ao tratar do tema, Lima buscasse relacioná-las ao caso. A descrição da exposição de Eloar feita pela Fôlha da Tarde foi detalhada e elogiosa, afirmando que o próprio promotor definiu a defesa como sendo de “torrencial veemência”. O jornal afirmava que o advogado conhecendo os autos de memória, fêz com que todos o ouvissem em silêncio, inclusive o representante do Ministério Público, que em reconhecimento da força da palavra do defensor, foi à réplica.703 A argumentação de Guazzelli foi, ainda segundo a publicação, no sentido de apresentar o réu como bandido famoso, procurado vivo ou morto, que ao defrontar-se com o cabo Dalla Costa, viu nêle todos aqueles que o queriam não simplesmente prender, mas também tortura-lo, como aconteceu em outras oportunidades.704 Nota-se, neste trecho, que a arguição do advogado buscava vincular a reação do réu às violências que ele havia sofrido por parte de figuras de autoridade ao longo da sua vida. Julinho era, assim, uma presa encurralada, que, em sua defesa, partia para o ataque. Novamente podemos traçar que havia um paralelo entre este caso e as denúncias de violências cometidas pela repressão contra os presos políticos. Apesar da reportagem da Fôlha da Tarde não tratar nestes termos, vemos aqui que Lima e Guazzelli partiam de conceitos dos direitos humanos para realizar a defesa de Júlio Xavier de Mello. 701 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 703 Idem, ibidem. 704 Idem, ibidem. 702 174 Percebe-se, neste caso, uma estreita relação entre a militância de Eloar Guazzelli na denúncia das violências cometidas pela ditadura civil-militar com “cunho político” e sua atuação como defensor de “criminosos comuns”. Assim como havia feito no relatório realizado no caso das mãos amarradas, o advogado questionava os métodos utilizados pela polícia, em especial a utilização de torturas. Vemos assim que havia uma preocupação de denunciar as violências da repressão por parte de Eloar, tanto em “crimes políticos” quanto em “crimes comuns”. Estabelece-se aqui, desta forma, uma relação entre as atividades política e jurídica do comunista. Além disso, pode-se ver, em 1969, um esboço do movimento de ampliação do conceito de direitos humanos, que, no final da década de 1970 e na década de 1980 vai abarcar a luta contra a violência policial. De acordo com a Zero Hora, o veredito que condenou Julinho a oito anos de pena deixou, para a maioria do público presente, “muitas dúvidas”.705 Se levarmos em conta o fato que a decisão foi de quatro a três a favor da condenação, podemos considerar que a argumentação dos defensores causou impacto no Júri. O réu ainda permanecia com popularidade já que, grande parte da audiência do julgamento “acompanhou ‘Julinho’ até a viatura que o levaria de volta à Penitenciária Estadual.706 Por esta razão que, no dia 20 de agosto de 1969, dois dias após o julgamento, foi publicada na Zero Hora uma entrevista com Julinho, na qual ele mostrava sua versão.707 Na reportagem, ilustrada com fotografias do condenado bem vestido, de óculos escuros e sorrindo, ele rebate vários pontos trazidos à tona pela imprensa. Um deles é o fato, segundo Julinho, de não ter relações com entorpecentes: “Nunca fui viciado. Cuido do meu corpo, pois o considero um automóvel. ‘Envenenado’ corre mais, mas em breve a máquina está inutilizada”.708 Segundo ele, foi um comissário que havia colocado a seringa em seus pertences. Ele também afirmava que em muitos dos processos nos quais estava incriminado ele não tinha participado, e seu nome só estaria presente neles pois seus pais não lhe ajudavam e ele não tinha dinheiro para advogado.709 “Julinho condenado a oito anos de prisão”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 19 de agosto de 1969, primeiro caderno, p. 29. 706 Idem, ibidem. 707 “São as acusãções de um condenado”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de agosto de 1969, primeiro caderno, p. 29. 708 Idem, ibidem. 709 Idem, ibidem. 705 175 Além disso, Julinho denunciava as torturas que sofreu ao longo de suas prisões.710 No mesmo sentido foi o testemunho de Maria Klein, mãe de Julinho, em matéria publicada no dia 21 do mesmo mês. Na entrevista ela detalhava as torturas que seu filho tinha sofrido nas mãos da Brigada Militar. Maria afirmava que no quartel da corporação, o torturaram, quebrando-lhe duas costelas e deslocando sua coluna. Isto, segundo dona Maria, consta no processo em poder dos advogados de defesa. Depois de um oficial urinar em seu rosto, “Julinho” foi obrigado a assinar um depoimento no qual êle declarava que atirara no cabo Dallacosta antes do militar usar sua arma. A esta altura, dona Maria começa a chorar e continua: – “Obrigaram-no ainda a assinar uma declaração no qual êle havia caído no quartel da Brigada Militar e se ferira, pois entrega-lo na Penitenciária Estadual daquele jeito não era possível”. Finalmente dona Maria diz “que não abandonou seu filho, quem o fêz foi seu marido, que, inclusive, disse que ‘Julinho’ teria feito um pacto com o diabo”.711 Vemos, nas duas matérias realizadas após o veredito, que tanto o relato de Julinho quanto o de sua mãe estavam marcados pela argumentação da defesa baseada nas arbitrariedades cometidas pela polícia. Ao mesmo tempo, estas matérias são um indício que existia, na sociedade da época, uma concepção de que não era correto este tipo de comportamento por parte de policiais mesmo contra “bandoleiros” como Julinho. Nereu afirmou, em entrevista concedida a mim, que este caso foi “paradigmático” dentro da carreira profissional de Eloar, constituindo um modelo que seria seguido por outros profissionais.712 Este modelo de Eloar seria, para Nereu, a base para uma “escola” entre os advogados criminalistas gaúchos, que partia de uma visão sociológica e humanista e que buscava “lutar para dentro da lei, estabelecer a construção de uma prova favorável ao réu, ao defendido. Mas dentro, digamos, utilizando, os chamados meios lícitos, meios éticos”.713 Da mesma forma foi um momento de consagração de sua carreira: Então ele iniciou [a defesa de Julinho], quer dizer ele já tinha um nome consagrado. Só que o Eloar tem uma característica, ele tinha uma característica que é importante que se ressalte. Ele não era digamos, não era um homem bajulador, nunca foi (...), por ter essa forma dele muito reservada. Havia outros profissionais que eram 710 Idem, ibidem. “As graves acusações da mãe de “Julinho””. In: Zero Hora, Porto Alegre, 21 de agosto de 1969, primeiro caderno, p. 31. 712 LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em dia 8 de agosto de 2013, p. 15. 713 Idem, pp. 5 e 16 711 176 chamados “profissionais de mídia”, não é, eram famosos de mídia. Mas nem sempre digamos, o produto refletia o conteúdo real. Então ali o Eloar teve oportunidade, ao natural, de ter a sua consagração profissional, de ter o seu reconhecimento de seu nome como criminalista. Foi uma trajetória ali ascendente.714 Por ter esta cobertura dada pela imprensa à sua defesa, houve neste julgamento, então, um momento de consagração do nome de Guazzelli como um advogado criminalista. Como mostrarei a seguir, a repercussão dada ao advogado será aumentada no caso de Idalino Bassani, no “crime da mala”. Neste caso, foram feitas reportagens com o advogado, além de mostrá-lo, através de fotografias, em ação. 714 Idem, pp. 14-15. 177 Imagem 2: Zero Hora, Porto Alegre, 21 de agosto de 1969, primeiro caderno, p. 31. Reportagem com Maria Klein, mãe de Julinho. No alto à direita, fotografia do assaltante no hospital. Fonte: Acervo de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. 178 Se, no caso de Julinho, o que chamou a atenção do público foi a notoriedade dele como criminoso, no processo de comerciante Idalino Bassani, o destaque deu-se de uma forma diversa. Este ficou conhecido na época como o “crime da mala”, pois o réu, em determinado momento, carregou o corpo neste tipo de volume. Em 2 de março de 1968, Idalino Bassani enforcou o comerciante português Abílio Simões, de quem estava comprando um bar na avenida Farrapos, em Porto Alegre, colocou o corpo em uma mala e jogou-o no Rio Jacuí da ponte do Saco da Alemoa, sendo encontrado dois dias depois próximo à Ilha das Flores.715 Após ter sido considerado como suspeito, Idalino buscou um padre e confessou tudo. Inicialmente, o crime foi enquadrado como latrocínio (homicídio com objetivo de roubo), mas a defesa, feita por Eloar Guazzelli, conseguiu a desqualificação para homicídio simples, indo o julgamento para Tribunal do Júri.716 O julgamento ocorreu em 16 de abril de 1971 e teve, novamente, o embate entre os vacarianos José Cândido dos Santos, na promotoria, e Guazzelli, na defesa. Este julgamento foi muito divulgado na época, sendo considerado pela imprensa como “o julgamento do ano” de 1971, da mesma forma que o outro confronto dos conterrâneos, no caso Julinho.717 Novamente nota-se que a Zero Hora dá um espaço muito maior ao caso do que outros jornais: nos dias anteriores e posteriores ao julgamento foi publicada uma série de reportagens realizadas por Ademar Vargas de Freitas que contava inclusive com um logotipo: um desenho estilizado de uma fotografia de Bassani carregando a mala sobre a ponte na reconstituição e os dizeres negritados “crime da mala/ julgamento do ano”.718 Nestas reportagens foram apresentadas de forma folhetinesca as biografias dos dois comerciantes, ambos caracterizados como católicos imigrantes (a vítima vinda de Portugal e o algoz de uma colônia em Nova Bassano) que buscavam a capital gaúcha para encaminhar suas vidas.719 A forte presença da religiosidade na vida dos envolvidos no crime é algo que se fez presente em toda a cobertura que o jornal deu ao caso. O assassino é apresentado “Júri Popular poderá decidir o destino de Bassani”. In: Fôlha da Tarde, Porto Alegre, 10 de março de 1971, primeiro caderno, p. 33. 716 ““Está decidido, Idalino enfrentará o júri”. In: Fôlha da Tarde, 18 de março de 1971, Primeiro Caderno, Polícia, p. 35. 717 FREITAS, Ademar Vargas de. “Promotor defenderá a sociedade. Idalino será absolvido? Talvez”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 15 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24 718 FREITAS, Ademar Vargas de. “Terceiro personagem poderá aparecer hoje entre as testemunhas”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24 719 “Quarta-feira de cinzas: Abílio atende o telefone. Êle morrerá”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 22; “Idalino levou 18 dias e confessou todo o crime”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 23. 715 179 como “supercatólico, solteiro” e virgem que gostaria de ter sido padre, o qual era apontado pelo sacerdote da prisão como um exemplo a ser seguido.720 De acordo com estas reportagens, a família da vítima seguia os moldes tradicionais e católicos portugueses, sendo frequentes as menções a visões premonitórias da morte de Abílio. 721 Além disso, foram feitas entrevistas com o promotor e o advogado e relatados detalhadamente todos os ritos e procedimentos do julgamento.722 Na matéria produzida com o promotor é mencionado que nem acusação nem defesa revelariam detalhes de suas estratégias: “como dois bons guerreiros, os dois estão guardando as armas mais importantes para o dia da luta”. 723 Na matéria, José Cândido dos Santos abstinha-se de manifestar-se sobre possíveis linhas que empregaria, ao mesmo tempo em que não descartava o sucesso da argumentação da defesa. Do outro lado, nota-se que Eloar já apontava vários pontos de sua defesa. 724 Ele indicava que seguiria a linha de legitima defesa e que tinha laudo do Instituto Psiquiátrico Forense de que seu cliente estava em surto no momento em que assassinou Abílio. Guazzelli afirmava, baseado na confissão de Bassani, que havia um terceiro homem na cena do crime e que esta pessoa, que estaria entre as testemunhas, levaria à absolvição.725 O advogado ainda criticava a polícia, afirmando que se “Idalino Bassani não tivesse confessado espontaneamente, o crime, provavelmente ficaria insolúvel. Como o caso Kliemann.”726 “Quarta-feira de cinzas: Abílio atende o telefone. Êle morrerá”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 22; “Bassani vai a júri com fé”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24; “Em 22 minutos, Idalino contou todo seu crime”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 17 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 21. 721 “Quarta-feira de cinzas: Abílio atende o telefone. Êle morrerá”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 22; FREITAS, Ademar Vargas de. “Viúva não perdoa Bassani: “esse homem arruinou a minha vida””. In: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de abril de 1971, Primeiro Caderno, página central. 722 FREITAS, Ademar Vargas de. “Promotor defenderá a sociedade. Idalino será absolvido? Talvez”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 15 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24; FREITAS, Ademar Vargas de. “Terceiro personagem poderá aparecer hoje entre as testemunhas”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24; “Bassani vai a júri com fé”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24; “Nesta sala, Bassani ouvirá a sentença”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 25. 723 FREITAS, Ademar Vargas de. “Promotor defenderá a sociedade. Idalino será absolvido? Talvez”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 15 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24 724 FREITAS, Ademar Vargas de. “Terceiro personagem poderá aparecer hoje entre as testemunhas”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24 725 “Nesta sala, Bassani ouvirá a sentença”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 25. 726 FREITAS, Ademar Vargas de. “Terceiro personagem poderá aparecer hoje entre as testemunhas”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24. 720 180 Mais do que o representante do Ministério Público, Eloar utilizou-se da matéria para promover sua defesa, criando na opinião pública dúvidas sobre o caso, o que auxiliaria seu cliente. Ao mesmo tempo, reforçou a imagem de Idalino como um jovem católico que não fugiu à responsabilidade e se entregou de forma voluntária. Ao mencionar o assassinato não resolvido de Margit Kliemann, esposa do deputado estadual Euclydes Kliemann, ocorrido em área nobre da capital em 1962, Guazzelli, de forma indireta, ainda levantava suspeitas sobre a capacidade da polícia local.727 A questão do terceiro homem é um exemplo da utilização que Eloar fez da imprensa, em especial do jornal Zero Hora. Em diversos momentos é ressaltado pela publicação que tanto a defesa quanto a família de Abílio acreditavam na participação de um terceiro homem na trama que resolveria alguns mistérios.728 A diferença é que o advogado anunciava que este terceiro homem estaria presente entre as testemunhas, o que o jornal, assim como em novelas, utilizava para prender a audiência lançando a questão: “Quem é? Na sexta-feira [dia do julgamento] se saberá”.729 Nesta passagem, vemos que o tabloide e o advogado auxiliavam-se mutuamente, criando, ao mesmo tempo, expectativa para o julgamento e dúvidas sobre o nível de culpa de Idalino. O fato desse homem não ter se apresentado durante o julgamento levou o repórter Ademar Vargas de Freitas a questionar, dias depois em manchetes garrafais “Mas aonde estará êsse terceiro personagem?”.730 Na reportagem, ilustrada com uma fotografia de Eloar de costas atuando no júri, há uma recapitulação do caso, levantando os mistérios que restavam do mesmo. 727 Este acontecimento foi alvo de um livro-reportagem que renovou os debates sobre o caso. DE GRANDI, Celito. Caso Kliemann - A história de uma tragédia. Porto Alegre: Literalis, 2010. 728 “Idalino levou 18 dias e confessou todo o crime”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 23; FREITAS, Ademar Vargas de. “Terceiro personagem poderá aparecer hoje entre as testemunhas”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 24; “Nesta sala, bassani ouvirá a sentença”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 16 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 25. 729 “Idalino levou 18 dias e confessou todo o crime”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 12 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 23. 730 FREITAS, Ademar Vargas de. “Mas aonde estará êsse terceiro personagem?”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 34. 181 Imagem 3: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 34. Reportagem de Ademar Vargas de Freitas com uma uma fotografia de Guazzelli no julgamento de Bassani. No alto à esquerda o logotipo criado pela Zero Hora para ilustrar o caso. Fonte: Acervo de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. 182 Assim, em 16 de abril de 1971, a sala do Tribunal do Júri foi inundada por interessados em assistir ao “julgamento do ano” que ocuparam as 484 cadeiras vermelhas presentes, em uma sessão que chegou até “altas horas da madrugada”, segundo o Correio do Povo.731 Enquanto que o conservador Correio do Povo noticiou os resultados de forma sóbria e resumida, nas matérias da Fôlha da Tarde e da Zero Hora há uma descrição minuciosa dos detalhes do evento, focando principalmente na postura de Idalino Bassani e de Angelina Ventura Simões, a viúva, que trazia nos olhos “um pedido de justiça”, como afirmou a Fôlha.732 As performances dos “guerreiros” vacarianos também foram retratadas, apontando para as principais linhas argumentativas empregadas. No caso da defesa, percebe-se que, frente ao que já havia sido publicado nos dias anteriores, não houve novidades.733 De acordo com o jornal Zero Hora, após o veredito de quatro anos de internação no Manicômio Judiciário, houve salva de palmas por parte da plateia.734 Isto mostra que, mais do que um ato da justiça, o julgamento transformou-se em um evento, em uma novela na qual as pessoas tomavam partido de um dos lados. A empatia era possibilitada pelo fato de que nenhum dos envolvidos era “marginal”, isto é, profissional do crime: a vítima e o assassino eram pessoas comuns, humildes, católicos que buscavam uma vida melhor. Como já mencionei, dias depois do final do júri ainda eram publicadas matérias, nas quais se fazia uma reflexão sobre o caso ou se mostrava o drama da família enlutada.735 “Idalino Bassani Condenado a Quatro Anos de Internamento no Manicômio”. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 18 de abril de 1971, primeiro caderno – Noticiário/ Crônica Policial, p. 5; “No tribunal, extensas filas para assistir a um grande júri”. In: Fôlha da Tarde, 17 de abril de 1971, Primeiro Caderno, Polícia, p. 30; “Em 22 minutos, idalino contou todo seu crime”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 17 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 21. 732 “Idalino Bassani Condenado a Quatro Anos de Internamento no Manicômio”. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 18 de abril de 1971, primeiro caderno – Noticiário/ Crônica Policial, p. 5; “Em 22 minutos, idalino contou todo seu crime”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 17 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 21; “No tribunal, extensas filas para assistir a um grande júri”. In: Fôlha da Tarde, 17 de abril de 1971, Primeiro Caderno, Polícia, p. 30. 733 “Idalino Bassani Condenado a Quatro Anos de Internamento no Manicômio”. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 18 de abril de 1971, primeiro caderno – Noticiário/ Crônica Policial, p. 5; “Em 22 minutos, idalino contou todo seu crime”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 17 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 21; “No tribunal, extensas filas para assistir a um grande júri”. In: Fôlha da Tarde, 17 de abril de 1971, Primeiro Caderno, Polícia, p. 30. 734 “Viúva de Abílio só que “justiça de deus” agora”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 19 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 36. 735 FREITAS, Ademar Vargas de. “Mas aonde estará êsse terceiro personagem?”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de abril de 1971, Primeiro Caderno, p. 34; FREITAS, Ademar Vargas de. “Viúva não perdoa Bassani: “esse homem arruinou a minha vida””. In: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de abril de 1971, Primeiro Caderno, página central. 731 183 Nesta trama, o advogado e o promotor constituíam dois narradores que buscavam através de sua verve sensibilizar os jurados e o público, para um dos lados. Esta dimensão do Tribunal do Júri foi criticada por Omar Ferri em entrevista concedida ao Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul. Para ele, “O Júri é um processo enganador. No Júri, o advogado quer ser vitorioso, custe o que custar. Essa é a lei, (sic) e a justiça que vá às favas”.736 De qualquer forma, assim como no caso anterior, este foi um momento de reconhecimento e consagração de Eloar. Comparando os dois casos apresentados, percebe-se que houve crescimento na cobertura dada a eles, tendo o “crime da mala” ganhado mais destaque do que o processo de Júlio Xavier de Mello. No caso do julgamento de Idalino, exploraram-se mais as argumentações das partes, dedicando matérias exclusivas para o promotor e para o advogado. Como mostrei, Guazzelli aproveitou de forma sagaz este espaço. Os casos analisados permitiram ao advogado a divulgação de seu nome enquanto grande criminalista de Porto Alegre, consolidando-o no campo jurídico. Houve uma evolução na própria postura de Eloar que, no “crime da mala”, mostrava-se mais como um “profissional midiático”. Ao mesmo tempo, nas arguições dele estão presentes críticas aos métodos utilizados pela polícia, o que é mais perceptível no caso de Julinho. É possível ver paralelos nestas atuações e naquelas de defensor de presos políticos e no seio das entidades de classe: em ambas as situações, se fez presente a denúncia da violência estatal.737 Como mostrado aqui, Eloar havia denunciado as violências da repressão política em situações como o caso das mãos amarradas de forma semelhante a feita no caso de Julinho, o que também ocorria em sua participação no IARGS e na OAB/RS. Guazzelli, desta forma, consolidava-se como um advogado criminalista identificado com a luta contra as violências e o arbítrio. “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 15. 737 Um exemplo de denúncia de torturas feitas por Eloar Guazzelli na Justiça Militar pode ser visto em minha dissertação de mestrado. GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, pp. 106-109. Dissertação de Mestrado em História. 736 184 II.12. Políticos no meio dos advogados IV: comunistas no IARGS e na OAB/RS em 1972 e 1973 Em 26 de abril de 1972 tomava posse uma nova diretoria do IARGS, saindo da presidência Justino Vasconcelos e entrando Érico Maciel Filho.738 A nova diretoria, que era composta por diversos membros que tinham ingressado na entidade em 1971, representou um grupo diferente daquele que havia estado à sua frente durante os anos anteriores. Outro ponto a destacar é que os advogados comunistas, que antes eram bem atuantes na entidade, neste biênio não militaram ali. Durante estes dois anos, não está presente nas atas nenhuma discussão sobre situação política do país: de acordo com elas, não houve questionamentos tampouco apoios mais declarados à ditadura. Posicionamentos da entidade frente a questões do contexto político e jurídico, que antes eram comuns, nesta gestão são vistos como contrários aos estatutos do Instituto. Um exemplo é a proposição de solidariedade ao Ministro do STF Aliomar Baleeiro, que no final de 1972, pronunciou-se contra as restrições feitas ao judiciário pela ditadura: frente a isto o Presidente manifestou que esta era “uma matéria anti-estatutária”.739 Isto também ocorreu com demandas que políticos da ARENA faziam ao sodalício. Outra característica deste biênio foi uma participação feminina mais expressiva. Já nas atas do Conselho Estadual da OAB/RS percebe-se, nestes anos, um posicionamento de crítica da entidade frente às violações cometidas pela ditadura civilmilitar, em especial àquelas relacionadas a advogados. Este foi o caso do advogado de Carazinho, Felisbino Ribeiro Barlette, preso no DOPS devido a acusações que havia feito contra o delegado local. Ele foi libertado devido à atuação dos conselheiros Pedro Lairihoy e Eloar Guazzelli.740 Pelo que pode-se depreender deste e de outros casos semelhantes, os conselheiros citados acabavam assumindo a defesa dos advogados “Ata da sessão do dia 26 de abril de 1972”. In: IARGS. Livro de Atas 1972-1974. Porto Alegre, 1975. “Ata da sessão ordinária do dia 14 de dezembro de 1972”, p, 2. In: IARGS. Livro de Atas 1972-1974. Porto Alegre, 1975. 740 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 23 de maio de 1972” , p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 19711973. Porto Alegre, 1974. Aparentemente houve, neste caso, também a intervenção do MDB, partido ao qual Barlette era filiado. “Advogado permaneceu 36 horas no xadrez”, In: Zero Hora, Porto Alegre, 14 de março de 1972, primeiro caderno, p. 27. 738 739 185 detidos.741 Além disso, foram divulgadas iniciativas do Conselho Federal relacionadas à temática dos direitos humanos.742 Em sete de fevereiro de 1973, foi empossado novo conselho estadual da Ordem rio-grandense, no qual Justino Vasconcelos foi eleito presidente e Eloar Guazzelli, vicepresidente, ficando no cargo até dia 28 do mesmo mês, e Júlio Teixeira novamente estava participando da Comissão de Ética e Disciplina. 743 Na solenidade, Alter Cintra de Oliveira, que estava deixando a presidência, ressaltou, entre as medidas realizadas em sua administração, o problema de transição institucional que estamos vivendo e apontou a necessidade de se restabelecer o “habeas corpus” em sua forma tradicional, de assegurar-se a independência do Poder Judiciário e de pacificar-se a família brasileira por um decreto de anistia ou, pelo menos, permitindo-se a revisão das punições impostas na fase inicial da revolução de 1964. DEFESA DA CLASSE. A Ordem nunca se omitiu de dar assistência moral e profissional a advogados injustamente presos ou processados, zelando para que seus direitos e garantias fossem plenamente assegurados e respeitados.744 Nesta passagem, vemos várias questões e debates que estavam presentes nos anos anteriores, como a luta pelo restabelecimento do habeas corpus em crimes contra a Segurança Nacional e a defesa e apoio a advogados presos, além de mencionar atitudes tomadas pela entidade. Além disso, o excerto indica que a mudança de posicionamento do Conselho Federal da OAB estava influindo na postura do conselho da OAB/RS. Há, nas atas referentes ao ano de 1973, uma continuidade nesta ativa atuação da Ordem rio-grandense em relação às violências cometidas pela ditadura. Um exemplo é o relato feito pelo advogado Rui Goethe da Costa Falcão, defendido por Eloar na Justiça “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 28 de junho de 1972”, pp. 1-2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 19711973. Porto Alegre, 1974. Há, ainda, o processo de Luiz Paulo de Pilla Vares que pedia que fosse isento de multa por não ter participado da eleição da OAB do ano de 1970, uma vez que ele estava preso por motivos políticos. A justificativa foi aceita “sem votos discrepantes”. “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 23 de maio de 1972”, pp. 5-6. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 742 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grande do Sul, realizada aos 12 (doze) dias do mês de julho do ano de mil novecentos e setenta e dois (1972)”, pp. 1-2. n: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 743 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, na Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia sete (07) de fevereiro de 1973”; “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, na Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 28 de fevereiro de 1973”. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 744 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, na Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia sete (07) de fevereiro de 1973”, pp. 3-4. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. Sobre esta interpretação da Anistia ver: RODEGHERO, Carla Simone. “Pela “pacificação da família brasileira”: uma breve comparação entre as anistias de 1945 e de 1979". In: Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, v. 34, nº 67, jan/jun 2014, pp. 67-88. 741 186 Militar, que agradecia pela “a assistência que lhe está sendo prestada pela ORDEM DOS ADVOGADOS”. 745 Conforme já apontei, levar o caso ao conselho da OAB/RS era uma estratégia para garantir a integridade dos presos políticos, como havia feito Antônio Pinheiro em 11 de dezembro de 1964 quando assumiu a defesa do capitão Alfredo Daudt.746 Nesta mesma sessão, é tratado ainda o caso “da morte de um jovem detido na DOPS” – que provavelmente se tratava de Luiz Alberto Pinto Arébalo, agregado do delegado Pedro Seelig, morto nestas dependências.747 O conselheiro Júlio Teixeira, que havia sido destacado para realizar um parecer, indicava que o caso deveria ser remetido ao presidente Cavalcanti Neves e “seu representante junto à Comissão dos Direitos Humanos”.748 Existem em 1973, como nos anos anteriores, menções ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.749 Júlio Teixeira propôs, neste sentido, que fossem criadas comissões de direitos humanos nos conselhos estaduais da Ordem, o que, como apontei, já havia sido proposto nos anos anteriores.750 Estas comissões só viriam a ser criadas na década de 1980. Na última sessão do Conselho da Ordem de 1973, o presidente Justino Vasconcelos “congratulou-se com a eleição do Conselheiro ELOAR GUAZZELLI, para a Presidência do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul”.751 A eleição contou com duas chapas, a de situação, liderada pelo presidente Érico Maciel Filho, e a de “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, na Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 28 de fevereiro de 1973”, fl.2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 19711973. Porto Alegre, 1974. 746 “Ata da Sessão Extraordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio Grandedo Sul, realizada no dia 11 de dezembro de 1964”, p. 1. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho 9 - 1963-1965. Porto Alegre, 1966. 747 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, na Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 28 de fevereiro de 1973”, fl.3. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 19711973. Porto Alegre, 1974. Este caso teve repercussão na sociedade gaúcha, levando, neste mesmo ano, à criação de uma CPI por parte da Assembleia Legislativa m 1973. Sobre isto ver: http://acervomemorial.al.rs.gov.br/index.php/comissao-parlamentar-de-inquerito-fim-de-esclarecer-osfatos-relacionados-com-morte-do-menor-luiz-alberto-pinto-arebalo ; RODEGHERO, Carla Simone; GUAZZELLI, Dante Guimaraens; DIENSTMANN, Gabriel. Não Calo, Grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, p. 94 748 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, na Seção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 28 de fevereiro de 1973”, fl.3. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 19711973. Porto Alegre, 1974 749 “Ata da sessão ordinária do conselho – 14/73 – realizada no dia 9 de outubro de 1973”, fl. 2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 750 “Ata da 16ª sessão ordinária do Conselho, realizada em 27 de novembro de 1973”, fl.2. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 751 “Ata da 17ª sessão ordinária do Conselho, realizada em 18 de dezembro de 1973”, fl.4. In: OAB/RS. Livro de Atas do Conselho - 12 - 1971-1973. Porto Alegre, 1974. 745 187 oposição, liderada por Guazzelli. O pleito foi acirrado e envolveu mais associados do que os anteriores: enquanto que em outros anos houve menos de cinquenta votantes, em 1973 cento e quarenta membros votaram. 752Além disso, a diferença entre as chapas não foi muito grande: 74 votos para chapa de Guazzelli contra 66 para a de Maciel Filho. A existência das duas chapas e de uma eleição concorrida mostram as lutas internas existentes no campo jurídico e indicam que o IARGS constituía um espaço onde elas ocorriam. É possível que a postura política mais forte do grupo formado por Justino Vasconcelos fosse uma forma de diferenciação frente a outros grupos, como aqueles que estiveram à frente do IARGS em 1972 e 1973. A aliança de Vasconcelos com os advogados comunistas auxiliava o líder classista nesta distinção, colocando-o em setores críticos da ditadura.753 Já os comunistas, como demonstrei, aproveitaram estas oportunidades para politizar estes espaços. A presidência do IARGS era, assim, importante. Podemos pensar que, para Eloar, esta eleição era o resultado das ações produzidas por ele, nos diferentes meios jurídicos. II.13. Os terroristas estão sendo julgados: as ações armadas no banco dos réus Conforme Werner Becker apontou em entrevista, os casos na Auditoria Militar davam aos advogados visibilidade, tanto entre setores das esquerdas quanto na imprensa.754 De fato, mostrei esta repercussão da imprensa nos casos vinculados a militares e brigadianos “subversivos” julgados por resistência feita contra o golpe. No final da década de 1960, houve diversas dissidências dentro das esquerdas brasileiras que, em sua maioria, propunham a revolução armada. Porém, somente uma parcela deste grupo acabou levando adiante ações armadas, as quais iniciaram em 1969 e foram duramente reprimidas. No Rio Grande do Sul, vincula-se o surgimento desta prática à volta do militante Edmur Péricles Camargo, em maio de 1969.755 Ele já havia vivido no estado na década de 1950, quando era militante “Ata da sessão ordinária do dia 14 de dezembro de 1973”. In: IARGS. Livro de Atas 1972-1974. Porto Alegre, 1975. 753 Isto fica claro na menção ao nome de Eloar no discurso de encerramento da gestão de Justino no IARGS. “Ata da sessão do dia 26 de abril de 1972”. In: IARGS. Livro de Atas 1972-1974. Porto Alegre, 1975. 754 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 25 de setembro de 2012, p. 9 755 RODEGHERO, Carla S.; GUAZZELLI, Dante G.; DIENSTMANN, Gabriel. Não calo, grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, p. 84. 752 188 do PCB, e no final dos anos 1960 buscou criar aqui um novo foco de luta, uma vez que no centro do país as organizações estavam sendo fortemente reprimidas.756 Assim, no segundo semestre de 1969 e no início de 1970 foram organizadas diversas ações, como assaltos a banco e a tentativa de sequestro do cônsul estadunidense, Curtiss Carly Cutter, em abril de 1970. 757 Após este fato, houve, com a vinda de agentes do centro do país, um incremento da repressão, que inicialmente voltou-se contra os grupos armados, como VPR, VARPalmares, M3G e FLN. Posteriormente, o foco repressor voltou-se contra organizações que não chegaram a realizar ações armadas, como a AP, a FBT, o PCdoB, o POC, e o PCB.758 Na cobertura dada na imprensa a ênfase recaiu mais sobre os processos relacionados às ações armadas do que àqueles de organizações que não realizaram estas práticas.759 Isto ocorria provavelmente porque estes atos violentos eram vistos como “terroristas” e, assim, acabariam por justificar, aos olhos de setores conservadores, a repressão. Desta forma havia um interesse de divulgá-los. Um exemplo de tal interesse é o processo que será abordado agora: nele temos diversos réus que eram membros dos grupos VPR, VAR-Palmares e M3G e respondiam por crimes como assalto a banco e tentativa de sequestro.760 O processo iniciou em meados de 1970, sendo realizadas diversas audiências, nas quais foram tomados os depoimentos dos réus e das pessoas envolvidas, o que foi registrado pela imprensa. 761 756 Idem, ibidem. RUSCHEL, Davi Arenhart. Entre risos e prantos: as memórias acerca da luta armada contra a ditadura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, UFRGS, 2011. Dissertação de mestrado em História. 758 RODEGHERO, Carla S.; GUAZZELLI, Dante G.; DIENSTMANN, Gabriel. Não calo, grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, p. 95. 759 Esta constatação foi feita a partir do seguinte procedimento: foram levantadas, a partir de informações provenientes do Projeto Brasil: Nunca Mais e do Acervo Profissional de Eloar Guazzelli, as datas dos julgamentos na Auditoria Militar e, posteriormente, foram consultados jornais que circulavam no estado. O que percebe-se é que os julgamentos dos grupos “não-armados” (como AP, POC e FBT) quase não obtiveram cobertura da imprensa, ao contrário dos grupos armados, abordados aqui. 760 Nos processos contavam ainda militantes de organizações que não haviam aderido à luta armada, mas que haviam ajudado, de alguma forma, o antigo companheiro Edmur. “Ouvidos Ontem na Justiça Militar Mais Oito Integrantes do “M3G””In: Correio do Povo, 24 de julho de 1970, primeiro caderno,, p. 20. 761 “TERRORISTAS DE EDMUR JÁ FALAM À JUSTIÇA MILITAR”. In: Zero Hora, 21 de julho de 1970, primeiro caderno, p. 33; “MAIS SEIS PRESOS DEPÕEM NA AUDITORIA MILITAR”, Zero Hora, 22 de julho de 1970, primeiro caderno , p. 7; “Na Justiça, mais terroristas confessam tudo”. In: Fôlha da Tarde, 22 de julho de 1970, primeiro caderno, Polícia, p. 38; “Ouvidos Ontem na Justiça Militar Mais Oito Integrantes do “M3G””In: Correio do Povo, 24 de julho de 1970, primeiro caderno,, p. 20; “EDMUR SERÁ QUALIFICADO SÒMENTE EM AGÔSTO”. In: Zero Hora, 24 de julho de 1970, primeiro caderno , p. 5; “EDMUR VOLTA AO SUL”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 20 de outubro de 1970, primeiro caderno, p. 35. 757 189 Entre os diferentes denunciados, nas matérias sobressaiam-se dois: Edmur – muitas vezes chamado por seu apelido no centro do país, Gauchão – e Ignez Maria Serpa, também conhecida pelo codinome de Martinha. Tal ênfase já havia aparecido nas reportagens do período em que as ações foram realizadas. Enquanto que o negro de grande porte Edmur encarnava o comunista que vinha ao estado cometer crimes, Martinha era a moça de classe média branca que havia se “perdido”.762 Por estas razões, muitas vezes as fotografias dos dois estampavam as capas dos periódicos vinculados ao termo “terrorista”. Mesmo que através de eufemismos, nos registros da imprensa dos depoimentos feitos em juízo foi mencionado que muitos réus afirmavam ter sofrido coação e maus tratos por parte da polícia.763 Trata-se de um indício de que que os presos utilizavam do espaço da Justiça Militar para denunciar as violências da repressão como já foi constatado na pesquisa do Brasil: Nunca Mais. Nestas matérias já surgiam, também, os nomes dos advogados que estavam à frente das defesas: vemos aqui um momento em que, entre outros, Eloar, Werner e Omar atuaram conjuntamente no caso.764 Às nove horas de 14 maio de 1973, após três anos de depoimentos e investigações, iniciava-se o julgamento de dezoito réus vinculados às principais ações armadas realizadas por organizações de esquerda em Porto Alegre. 765 Analisando os nomes dos réus percebe-se que alguns deles haviam sido tirados do processo, como Edmur, pois haviam sido banidos do território nacional em troca de embaixadores e cônsules sequestrados; outros eram julgados à revelia, pois estavam exilados fora do país. Isto mostra os caminhos pelos quais as esquerdas acabaram optando frente à repressão. Na edição do dia seguinte de Zero Hora, foram dadas duas páginas inteiras ao julgamento, apresentando muitas fotografias dos “terroristas”, além de descrever as 762 A partir da análise destas reportagens, nota-se que existia uma ideia de que Edmur era o grande responsável pelas ações, o que fica claro na manchete da Zero Hora do dia 21 de julho de 1970: “TERRORISTAS DE EDMUR JÁ FALAM À JUSTIÇA MILITAR”. In: Zero Hora, 21 de julho de 1970, primeiro caderno, p. 33 763 “Mais seis presos depõem na auditoria militar”, Zero Hora, 22 de julho de 1970, primeiro caderno , p. 7; “Na Justiça, mais terroristas confessam tudo”. In: Fôlha da Tarde, 22 de julho de 1970, primeiro caderno, Polícia, p. 38; “Edmur será qualificado sòmente em agôsto”. In: Zero Hora, 24 de julho de 1970, primeiro caderno , p. 5. 764 Há ainda a presença do advogados Serafim Machado, que havia atuado com Eloar no IARGS, e Caio Lustosa, que posteriormente atuará junto ao movimento ambientalista e indígena. 765 “Terroristas estão sendo julgados”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 15 de maio de 1973, primeiro caderno, p. 28 e 29; “Julgamento condena e absolve em Porto Alegre”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIII, nº 38, 16 de maio de 1973, 1º Caderno, p. 17. 190 ações e objetivos dos grupos.766 Apesar disso, não há muita exposição das argumentações da acusação e da defesa: menciona-se que o promotor pedia aos “juízes que levassem em consideração o fato de que a maioria dos réus já está reintegrada na sociedade”; sobre a defesa afirmavam que os advogados “pediram absolvição”.767 Esta menção telegráfica à arguição da defesa deixa mais claro o objetivo da divulgação dos casos: mais do que registrar o que havia ocorrido na 1ª Auditoria ao longo daquela segunda-feira, 14 de maio, buscava-se mostrar o que ocorria com quem se opusesse à ditadura. Por outro lado, na sentença foram absolvidos sete réus e condenados onze, dos quais sete já haviam cumprido as penas.768 É provável que isto tenha ocorrido devido ao fato de que os “terroristas mais perigosos” do grupo já estivessem banidos do Brasil. Além disso, deve-se lembrar que estas pessoas já haviam sido presas, sendo a sentença somente uma “formalidade”. Mesmo que de forma rápida, a menção aos advogados Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker neste processo contribuía para fixá-los dentro das esquerdas como pessoas identificadas com a resistência contra a ditadura, como defensores de presos políticos. Ao mesmo tempo, reforçava seu “nome” enquanto advogados atuantes dentro do campo jurídico porto-alegrense. Como procurei mostrar ao longo deste capítulo, em diversos momentos estes advogados fizeram movimentos que atendiam às suas inserções nestes dois campos, o jurídico e o político. Nos anos iniciais da ditadura civil-militar, cada um deles procurou adequar-se profissional e politicamente neste novo contexto. Por já estar atuando na advocacia e pertencer a um grupo que já vinha militando politicamente “no meio de advogados”, Eloar acabou adaptando-se melhor nestes primeiros anos. Já para Werner e Omar, este foi um período de dificuldades e da busca de uma inserção em uma nova realidade. Frente a isto, a defesa de presos políticos constituiu um novo espaço profissional que possibilitava um engajamento político. Outra forma de buscar uma maior visibilidade nos meios jurídicos foi a atuação em casos de grande repercussão na imprensa. O fato de os três terem, de uma forma ou de outra, participado do movimento de denúncia à ditadura ocorrido durante o caso das mãos amarradas “Terroristas estão sendo julgados”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 15 de maio de 1973, primeiro caderno, p. 28 e 29 767 Idem, ibidem. 768 “Julgamento condena e absolve em Porto Alegre”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIII, nº 38, 16 de maio de 1973, 1º Caderno, p. 17. 766 191 mostra, por um lado, a dimensão que o evento teve, e, de outro, o comprometimento dos advogados abordados com a resistência. Notam-se também neste período as diferenças na representação dos perseguidos políticos por parte da imprensa, inicialmente focando em personalidades vinculadas ao governo deposto e posteriormente tratando-os de “terroristas”. Veremos, nos próximos capítulos, que isto irá se modificar no período posterior. Dentro deste contexto de meados da década de 1970 e início da década de 1980 os advogados estudados passarão por momentos de reconhecimento e consagração bem como de questionamento, por parte dos campos político e jurídico. 192 Capítulo III – Consagramento e lutas em tempos de mudança: a atuação dos advogados entre os anos 1974 e 1977 Entre os anos 1974 e 1977 percebem-se modificações no contexto da ditadura que irão possibilitar que, nos anos seguintes, os advogados Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker tenham seus nomes projetados de forma mais pública. Nestes anos percebe-se que seus “nomes” estavam consolidados enquanto profissionais que “lutavam contra a ditadura” e foram vinculados a uma causa emergente nas esquerdas brasileiras: os direitos humanos. No período, Guazzelli e os advogados comunistas do CEJUR manterão seus fortes laços com as entidades classistas, o que fica claro em dois momentos: a presidência de Eloar no IARGS (1974-1975) e a prisão de militantes do PCB (em março de 1975). Mostrarei a interação dos cejuristas com advogados de diferentes matizes políticos e propostas de ação. Serão anos em que os debates políticos estarão presentes de forma decisiva dentro das organizações. Ao mesmo tempo, surgirão novos militantes de esquerda que passarão a conviver com os pecebistas dentro dos círculos dos advogados. III.1. Advogados no meio da política (I): o IARGS e o conselho seccional da OAB/RS em 1974 e 1975 O período iniciado em 1974 marca uma diferença no posicionamento das entidades classistas em relação à ditadura civil-militar. Se antes já haviam críticas e denúncias às violências e arbitrariedades do regime, elas eram feitas de forma mais interna e não eram fortemente publicizadas. A partir deste ano esta postura irá modificar-se, estando estes advogados no meio da política, isto é, os membros das organizações foram a público expressar suas contrariedades em relação à ditadura. Conforme afirmei na seção anterior, em 1974 Eloar Guazzelli foi eleito presidente do IARGS na eleição mais votada e disputada (entre as analisadas neste trabalho). A disputa foi marcada por uma chapa de situação, encabeçada pelo advogado e professor Érico Maciel Filho, e uma de oposição, presidida por Eloar. A escolha de seu nome para presidência derivava da construção de seu “prestígio” como advogado criminalista, além de sua atuação nas entidades classistas. Nos anos anteriores, através de diferentes eventos, Guazzelli foi consolidando seu 193 “nome”. Conforme apontou o advogado comunista Honório Peres em entrevista concedida a esta pesquisa, Eloar era um nome que ampliava o apoio para além das bases dos comunistas, especialmente dentro dos meios jurídicos.769 Além disso, diferentemente de Júlio Teixeira e Antonio Pinheiro Machado Neto – comunistas que também participavam das entidades dos advogados –, Guazzelli não tinha uma vinculação explícita com o PCB e não foi preso durante a ditadura, não sendo, assim, um “notório comunista”. 770 Os advogados comunistas buscaram, desta forma, um militante que não estivesse “queimado” e não fosse facilmente reconhecido pela repressão, o que é semelhante ao apontado por Rodrigo Patto Sá Motta sobre a participação do PCB no MDB.771 De acordo com Carlos Frederico Guazzelli, filho de Eloar, em texto elaborado para esta pesquisa, a composição da chapa era “verdadeira obra de engenharia política” que expressava “cuidadosa elaboração” por parte de Júlio Teixeira e Justino Vasconcelos.772 Ainda de acordo com Carlos Guazzelli, buscava-se vencer Érico Maciel Filho que, além de ser professor de Direito Internacional Público da UFRGS, tinha o apoio de “expressivos nomes do mundo jurídico estadual, em geral, de extrato políticoideológico conservador”. Assim, a escolha dos (...) integrantes da chapa seguiu criteriosamente o objetivo de abarcar amplamente o espectro político-ideológico do universo dos advogados do estado, exprimindo a variedade de sua origem e atuação profissional.773 Poderia-se dizer que havia interesse de ganhar este espaço tanto por parte dos advogados comunistas quanto por parte de Justino Vasconcelos. Conforme aponta 769 PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre 770 Júlio Teixeira e Antônio Pinheiro Machado Netto haviam sido deputados eleitos pela sigla na Constituinte Estadual de 1947. 771 Conforme o autor, o “PCB que aderiu ao MDB estava bastante enfraquecido” pelas divisões ocorridas ao longo da década de 1960, “e, além disso, não podia entrar em peso no partido, pois os quadros comunistas mais conhecidos e experientes estavam ‘queimados’ por serem facilmente identificados pelos órgãos de repressão”. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “O MDB e as esquerdas”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil volume 3 – Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 292 772 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Nota sobre a composição da Diretoria do IARGS - Gestão 1974/76 [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 1. Um indício da atuação de Teixeira na elaboração da chapa é o ofício de Carlos Alberto do Amaral que consta na ata da sessão do dia 24 de maio de 1974 no qual ele afirmava que o comunista havia feito-lhe o convite para participar da chapa de oposição. “Ata da sessão ordinária do dia 24/05/74”, p. 2. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 773 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Nota sobre a composição da Diretoria do IARGS - Gestão 1974/76 [texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 2 194 Carlos Guazzelli, ao lançar-se esta chapa havia a intenção de reaproximar o IARGS da OAB/RS, presidida por Vasconcelos naquele momento.774 Pelo que se pode perceber nas atas, houve um afastamento das entidades entre 1972 e 1973, o que indica que não havia uma proximidade entre o presidente da seccional sul-rio-grandense da OAB com Érico Maciel Filho. Carlos Frederico reforça a forte presença de professores universitários na chapa, vinculados aos grupos conservadores dos “juristas católicos”, como o 1º VicePresidente, Antonio de Almeida Martins Costa, professor de Direito Civil na UFRGS e pertencente a uma família tradicional no campo jurídico.775 Também eram vindos da academia Galeno Vellinho de Lacerda – responsável pelo Instituto de Processo Civil e também considerado como católico por Carlos –, Paulo Pinto de Carvalho – professor de Direito Penal e Procurador de Justiça escolhido para 2º secretário – e Antônio Fabrício Leiria – escolhido para Diretor do Instituto de Direito Penal. 776 Ainda neste espectro estava o 2º Vice-Presidente, Ruy Brasileiro de Azambuja, caracterizado por Carlos como “homem católico, de perfil conservador e moderado”. 777 Conforme já apontado em outros biênios, percebe-se também a presença de advogadas na diretoria do IARGS: Ilsa Joanna Brans (responsável por Promoções Culturais) e as professoras Ecilda Gomes Haensel (Promoções Sociais) e Betty Borges Fortes (diretora do Instituto de Direito Internacional Público). Mesmo estando presentes, nota-se que às mulheres cabiam algumas tarefas que poderiam ser consideradas como “femininas”, como Promoções Culturais e Sociais, o que demonstra que, mesmo que elas estivessem presentes, ainda estavam em número menor e em funções que poderiam ser vistas como “menos importantes”. Carlos Frederico ainda 774 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 1. Um exemplo dos laços reatados pelas entidades é o convite para a posse de Eloar no IARGS, registrado em ata. “Ata da 1ª sessão extraordinária do conselho seccional, reali-zada em 9 de abril de 1974”, fls. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 775 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Nota sobre a composição da Diretoria do IARGS - Gestão 1974/76 [texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 2; Fabiano Engelmann analisa o caso da família Martins Costa: ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006, pp. 59-61. 776 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Nota sobre a composição da Diretoria do IARGS - Gestão 1974/76 [texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 2. Com o intuito de aprofundar as diferentes áreas do Direito, o IARGS se dividia em diferentes “Institutos”, tendo a frente um diretor. No biênio 1972-1973 o nome destas divisões foi alterado para “Diretorias”, voltando, em 1974, a ter a antiga alcunha. 777 Idem, ibidem. 195 ressalta a presença de “jovens advogados de empresa, René Isoldi Ávila (Instituto de Direito Tributário) e Sérgio da Fontoura Juchem (Instituto de Direito do Trabalho) ”.778 Na diretoria ainda constam dois nomes relacionados com o meio político que seriam muito atuantes nos anos seguintes nas entidades classistas, em especial durante o caso do sequestro dos uruguaios. Um deles é Otávio Caruso Brochado da Rocha que havia sido professor e deputado federal pelo PTB e MDB. Temos também a presença de Marcus Melzer, notável liberal-conservador, que fora Deputado Estadual Constituinte em 1946, eleito pela União Democrática Nacional [UDN](…), indicado para Diretor do Instituto dos Direitos do Homem.779 Finalmente, ainda segundo Carlos Frederico Guazzelli havia a presença de advogados comunistas: Clóvis Goulart Ponzi, Promotor de Justiça, escolhido para 1º Secretário, e Paulino de Vargas Vares, diretor do Instituto de Direito Previdenciário. 780 Deve-se ressaltar que os nomes presentes na diretoria já vinham e continuariam a atuar nas entidades classistas. A “engenharia política” da composição da chapa era, assim, formada por advogados e advogadas que já estavam inseridos nestes meios. O arranjo orquestrado permite ainda perceber os diferentes grupos de advogados com os quais os comunistas se relacionavam. Algo que chama a atenção é a proximidade entre os comunistas e o grupo hegemônico dentro do campo jurídico gaúcho, os “juristas católicos”. Porém, esta parceria não era nova, datando de meados da década de 1940. Assim, mesmo com ideais radicalmente diferentes, pode-se ver com certa naturalidade esta aliança. Isto, porém, não ocorria de forma pacífica. Conforme afirma Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, filho de Eloar, em texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa, havia questionamentos sobre a chapa por parte de advogados conservadores vinculados a Érico Maciel Filho que estariam “muito admirados do ‘casamento’ do Antônio Martins Costa com um comunista”. 781 Em 1943, por exemplo, o pai de Antônio, José Luiz de Almeida Martins Costa, junto de outros advogados católicos 778 Idem, p. 3. Idem, ibidem. 780 Idem, ibidem. Consultado por telefone sobre a participação destes advogados no CEJUR, Honório Peres não confirmou a participação de Paulino Vargas Vares. Infelizmente não possuo mais dados sobre o posicionamento político de Vares, sabendo somente que, durante a década de 1940, ele foi vinculado à Esquerda Democrática da UDN. Ele era pai de Luiz Pilla Vares, militante do POC que posteriormente fundou o PT. BERTASSO, José Otávio. A Globo da Rua da Praia. São Paulo: Editora Globo, p. 51. 781 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 1. Érico Maciel Filho havia dado uma palestra sobre “Garantias e Direitos Individuais”, durante a mobilização do IARGS no “caso das mãos amarradas”. 779 196 inspirados pelo professor da Faculdade de Direito Armando Câmara, haviam defendido o padre Leonardo Fritzen no polêmico processo de queixa-crime iniciado pelo escritor Érico Veríssimo, através dos advogados Júlio Teixeira, Paulino de Vargas Vares, Valdir Borges e Temperani Pereira.782 Porém, devido à presença constante de comunistas no IARGS, poder-se-ia afirmar que a oposição existente entre os juristas católicos e os comunistas não fosse, em 1974, como era trinta anos antes. Este “espanto” estava relacionado, principalmente, com a disputa eleitoral, uma vez que os eleitores do IARGS, por sua característica elitista, deviam pender para um posicionamento mais conservador. Assim, ao acusar Eloar de comunista, buscava-se desacreditá-lo. 783 A eleição foi extremamente disputada, Guazzelli vencendo com uma margem de pouco mais de 5 por cento dos votos.784 Ao relatar sobre a posse de Eloar na presidência em 18 de abril de 1974, Cesar Guazzelli aponta que o “clima não foi bom”, derivado da postura de Érico Maciel Filho e de sua esposa, Olga Bragança Maciel, que, durante o ato, se demitiram da entidade, o que também foi relatado por Heloiza Villeroy.785 Este fato está registrado na ata da sessão: logo após ter sido empossada a nova diretoria e entregues os balancetes e prestação de contas, Érico Maciel Filho fez também a entrega dos pedidos de demissão dele próprio e da Prof. Olga Bragança Maciel, comunicando que se iria retirar i- 782 O padre, que era professor do Colégio Anchieta havia classificado o livro O Resto é Silêncio como venenoso para a juventude, acusando-o de ter levado o filho de Getúlio Vargas ao suicídio. A polêmica causou grande impacto na sociedade porto-alegrense proporcionando que, segundo José Otávio Bertasso, “pela primeira vez em muitos anos, explicações didáticas de democracia e de direitos humanos” viessem a público. O caso, como pode-se ver na composição dos advogados envolvidos, acabou dividindo os meios jurídicos ficando de um lado, renomados juristas católicos, como Martins Costa, Ruy Cirne Lima e Câmara, e de outro advogados vinculados a setores políticos mais “a esquerda”. BERTASSO, José Otávio. A Globo da Rua da Praia. São Paulo: Editora Globo, pp. 47-52. Sobre o assunto ver: TRINDADE, Fernando Casses. A polêmica entre Érico Veríssimo e o Pe. Leonardo Fritzen, S.J.. Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UFRGS. Porto Alegre, IFCH/UFRGS, ano XI/XII, 1983/1984, p. 35-98; MONTEIRO, Lorena Madruga. “O resto não é silêncio: A polêmica de Érico Veríssimo com Pe. Leonardo Pritzen. SJ e a bipolarização do “campo” intelectual na Porto Alegre dos anos 1940”. In: Anais do I Seminário Nacional Sociologia & Política – Sociedade e Política em Tempos de incerteza. Curitiba: UFPR, 2009. 783 Existem indícios de que se teria, durante a disputa, acusado Eloar de ser comunista a autoridades. 784 A chapa de Guazzelli fez aproximadamente 52,86 % (74 votos) enquanto que a de Maciel aproximadamente 47,14 % (66 votos). Curiosamente Cesar registrou que o “pai ganhou meio fácil!”. GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 1 785 Idem, ibidem; VILLEROY, Heloiza. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 11 de junho de 2013. 197 mediatamente do Plenário, o que efetivamente fez, acompanhado de sua Exma. Esposa, a Prof. Olga Bragança Maciel.786 Pelo que se percebe na ata, esta atitude abrupta do casal não foi acompanhada por outros membros da antiga diretoria.787 Carlos Guazzelli afirmou que, frente a esta quebra na cerimônia, seu pai teria feito um discurso de improviso abordando sua vinculação e identidade enquanto advogado.788 De acordo com a ata, Eloar, em seu discurso, teria afirmado que buscaria continuar as realizações da instituição de forma “coerente com a sua posição de advogado que é, único título que pretende ostentar,” objetivando “os ideais da classe, que são, fundamentalmente, os da defesa intransigente do Direito e da Justiça”.789 Esta identificação de Eloar Guazzelli com a advocacia é um tema recorrente em diversas narrativas sobre ele. Na entrevista concedida ao Jornal da OAB/RS, a advocacia é apresentada como um sentido dado por Eloar à sua trajetória de vida.790 Para Ana Eni Machado Milan, por exemplo, Eloar Guazzelli era e tinha como objetivo de vida ser um “advogado autônomo”.791 Em linha semelhante ao tratar do significado da presidência do IARGS para seu pai, Carlos Frederico afirma que Sabendo-se o elevado sentido por ele conferido à função do advogado – ofício quase sacerdotal, na sua visão, impregnada de idealismo – pode-se aquilatar o valor que atribuiu à sua condução à Presidência do “Ata da 1ª sessão ordinária e solene do Instituto, em 1974, para relatório e posse da atual diretoria e da eleita para o biênio 1974-1976, respectivamente, com prestação de contas e transferên-cia de tesouraria e caixa, em 18 de abril de 1974”, fl. 2. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 787 A tensão existente durante a eleição ainda se fez presente na ata da sessão do dia 24 de maio de 1974, quando foi lido o ofício do secretário Carlos Alberto do Amaral. Durante a campanha, ele havia encaminhado ao presidente Érico Maciel um ofício no qual a chapa oposicionista apresentava propostas: este ofício havia sido inserido no relatório da gestão junto de comentários sobre o mesmo por parte do expresidente. “Ata da sessão ordinária do dia 24/05/74”, pp. 2-4. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 788 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 1 789 “Ata da 1ª sessão ordinária e solene do Instituto, em 1974, para relatório e posse da atual diretoria e da eleita para o biênio 1974-1976, respectivamente, com prestação de contas e transferên-cia de tesouraria e caixa, em 18 de abril de 1974”, fl. 2. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. É digno de nota que, na relação de sócios do IARGS presente no livro Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul: 60 anos de existência, de 1986, na biografia abaixo de seu nome consta somente que ele era advogado criminalista e havia sido presidente da entidade, não sendo feitas menções ao seu mandato de deputado federal ou ter sido conselheiro da OAB/RS, o que ocorre com outros sócios. Esta “falha” pode ter sido derivada de um afastamento dele em relação à instituição, porém indica uma intencionalidade de se apresentar com o único título de advogado. MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz (org). Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul - 60 anos de existência. Porto Alegre: IARGS, 1986, p. 578. 790 “Eloar Guazzelli: A defesa como uma razão de vida”. In: Jornal da OAB/RS, Porto Alegre, Outubro de 1991, p. 14. 791 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. Anotações sobre conversa com Ana Eni Machado Milan, realizada em 8 de setembro de 2017 em Porto Alegre, a respeito da trajetória de Eloar Guazzelli entre os anos 1974 e 1982. Porto Alegre, 2017, p. 2. 786 198 órgão cultural da classe, ainda mais nos duros tempos da ditadura militar.792 A presidência no IARGS ganha, assim, um significado de consagração e prestígio da trajetória de Eloar no campo profissional, o que não foi privilégio deste cejurista. Neste biênio há também a homenagem a Júlio Teixeira que recebeu a comenda de “Advogado Emérito” no final de 1975.793 Ao mesmo tempo, percebe-se que, nas narrativas dos filhos e de sua colega de escritório, a passagem de Guazzelli à frente desta entidade acabou sendo lembrada mais pelo fato dele ter estado neste cargo do que por posições e atitudes que ele tomou ali.794 Aparentemente, a presidência no IARGS teve mais significado como um título de reconhecimento e consagração, o que é indicado por sua ausência em diversas sessões.795 Guazzelli não presidiu nenhum dos trabalhos entre a sessão de dezesseis de outubro de 1974 e a dez de dezembro de 1975, na qual houve a eleição para a nova diretoria. Neste período o 2º Vice-presidente, Ruy Brasileiro de Azambuja, exerceu a presidência, com exceção das reuniões dos dias vinte e três de julho e quinze de outubro de 1975, que ficaram a cargo do 1º Vice-presidente Antônio de Almeida Martins Costa. Além disso, percebe-se que Guazzelli, enquanto presidente do IARGS, foi mais ativo no primeiro ano de seu mandato, o que é percebido também em outras documentações. Além de ecos da disputa pela direção, nas primeiras sessões de 1974, são frequentes as menções a cumprimentos à nova diretoria. Analisando as gestões anteriores vê-se que as homenagens de autoridades do judiciário, legislativo, executivo, além de comandantes militares que eram corriqueiras nos anos anteriores também estão presentes aqui.796 Chamam a atenção duas menções feitas na sessão do dia cinco de 792 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 1 793 “Ata da sessão ordinária do dia 05.11.75”, fls. 2. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. Esta homenagem tinha significado especial, uma vez que, como mostrarei, naquele ano Júlio Teixeira havia sido preso. 794 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. Anotações sobre conversa com Ana Eni Machado Milan, realizada em 8 de setembro de 2017 em Porto Alegre, a respeito da trajetória de Eloar Guazzelli entre os anos 1974 e 1982. Porto Alegre, 2017; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 1; GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 1 795 IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 796 “Ata da sessão ordinária do dia 24/05/74”, fl. 1; “Ata da sessão ordinária do dia 05/06/74”, fls. 1-2. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 199 junho, os cumprimentos do presidente do conselho da OAB/DF, Sigmaringa Seixas, e do juiz da 1ª Auditoria da 3ª Circunscrição da Justiça Militar, Dorvalino Tonin.797 Os dois citados estão relacionados com os processos políticos: enquanto que Tonin era o civil que julgava os casos da Auditoria fixada em Porto Alegre, Sigmaringa Seixas era um advogado de presos políticos com forte atuação junto ao Superior Tribunal Militar. 798 A presença deste advogado à frente daquele conselho seccional mostra que a eleição de Guazzelli no IARGS não foi um caso isolado: era, sim, um indício de que aquele era um momento em que os defensores de presos políticos começavam a obter o reconhecimento por parte de seus colegas. Já no caso do juiz, indica que houve uma relação de respeito por parte dele em relação aos advogados. Em diversos momentos Becker e Ferri reforçaram uma distinção a Dorvalino Tonin, sobre o qual afirmavam que estaria “cumprindo ordens”.799 Um ponto muito debatido neste ano de 1974 foi a questão da vinculação da Ordem dos Advogados do Brasil ao Ministério do Trabalho, o que estava em debate desde 1968. Através do Decreto nº 74.000 de 1º de maio de 1974, a Ordem, junto de outras entidades classistas, passou a ser vinculada ao Ministério do Trabalho. 800 Na sessão do dia vinte e quatro de maio, Eloar propôs que o IARGS fizesse coro ao posicionamento da OAB/RS contrário ao decreto presidencial. De acordo com a ata, após debates e manifestações generalizadas do plenário (...), ficou decidido que o Sodalício se solidarize com o Conselho da OAB pela manutenção dos atuais Direitos dos advogados, expressos na Constituição e que se oficiasse nesse sentido ao Sr. Presidente do Conselho Federal, da OAB, no Rio de Janeiro, bem como ao Sr. Presidente do Conselho Seccional.801 A menção aos debates e manifestações pode indicar que a oposição à medida não era um ponto pacífico entre os membros do IARGS, da mesma forma que o posicionamento final não foi registrado como uma decisão unânime. Ainda que, como “Ata da sessão ordinária do dia 05/06/74”, fls. 1-2. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 798 MARTINS, Paulo Emílio; MUNTEAL, Oswaldo; SÁ, Fernando (orgs). Os advogados e a ditadura de 1964: A defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2010, pp. 121-33 799 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 28 de fevereiro de 2013, em Porto Alegre; BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 24 de maio de 2013, em Porto Alegre. 800 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 136. 801 “Ata da sessão ordinária do dia 24/05/74”, fl. 5. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 797 200 apontam Marly Motta e André Vianna no volume 5 da História da Ordem dos Advogados do Brasil, mesmo setores jurídicos vinculados à ditadura estavam mobilizando-se para barrar esta medida. Estes indícios permitem refletir sobre os posicionamentos dos integrantes da diretoria do Instituto.802 Poder-se-ia especular que houvesse, dentro do amplo leque de posicionamentos presentes na diretoria do Instituto, membros que fossem tão veementemente contrários à subordinação da Ordem ao Executivo Federal, ou que temessem represálias vindas da ditadura. O Decreto 74.000 também foi alvo de discussões no conselho seccional da OAB. Na ata da sessão do dia trinta e um de maio de 1974, por exemplo, foi amplamente discutido o tema, sendo proposto, pelo conselheiro vitalício Alter Cintra de Oliveira, que, frente à medida, fosse feita “referência expressa ao fato de ser a ORDEM DOS ADVOGADOS o único organismo, dos referidos no Decreto 74.000, com representação obrigatória na Comissão dos Direitos Humanos”, o que foi aprovado por unanimidade.803 Ao frisar esta característica da Ordem, o conselheiro buscava ressaltar sua necessária independência, uma vez que era um fiscal dos direitos humanos. Na mesma reunião, Júlio Teixeira sugeriu a convocação de uma conferência dos presidentes de subseções da OAB/RS para discutir a matéria, o que foi realizado no dia treze de junho.804 Foi registrado na ata da reunião um manifesto no qual os presidentes das subseções do estado repudiavam o decreto e solidarizavam-se com o Conselho da OAB/RS e seu presidente no combate ao instrumento legal. 805 No documento foi reforçado que a entidade vinha exercendo permanente vigilância sobre a preservação das instituições jurídicas e sobre a defesa dos direitos da pessoa humana, sendo uma das mais importantes de suas atribuições que lhe foram delegadas pela própria 802 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 136. Um exemplo da mobilização entre advogados conservadores é o caso de Miguel Reale que, mesmo tendo sido ideólogo do Integralismo e colaborado com a ditadura civil-militar, realizou um parecer contrário ao Decreto anexado o memorial feito pela OAB. “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 28 de agosto de 1974”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976; MOTTA; DANTAS. Op. cit, p. 138. 803 “Ata da sessão extraordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Rio Grande do Sul, realizada em 31 de maio de 1974”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 804 Idem, fls. 2; “Ata da reunião de Presidentes de Subsecções da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul, realizada em 13 de junho de 1974”. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 805 “Ata da reunião de Presidentes de Subsecções da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul, realizada em 13 de junho de 1974”, fls. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 201 civilização, ao longo dos Séculos, fazendo dos direitos fundamentais do ho-mem patrimônio inalienável de toda a humanidade.806 Como em outras manifestações, os presidentes das subseções frisavam a necessidade de liberdade e autonomia do advogado, o que valia também para a Ordem. De acordo com o documento, a legislação não dava à OAB as mesmas disposições legais de outras entidades, o que garantia a ela a independência “para que ela atinja seus objetivos de órgão de colaboração com os Poderes Executivo, Legislador e Judiciário, na defesa dos Direitos Fundamentais da pessoa humana e da Constituição”.807 Foi mencionado, ainda, que o IV Congresso dos Advogados do Rio Grande do Sul, que iria realizar-se entre vinte e três e vinte e cinco de outubro daquele ano, trataria, entre outros, do tema da independência da advocacia e da Ordem.808 A declaração dos presidentes das subseções da OAB/RS tinha, assim, como objetivo, mostrar a importância dos advogados e de sua entidade na defesa e garantia dos direitos humanos, o que já havia sido frisado pelo conselheiro Alter Cintra. A sessão teve, além disso, a função de mobilizar a classe através dos representantes das diversas regiões do estado. Sobre este assunto o IARGS, liderado por Guazzelli, teve participação ativa nos meses seguintes. De acordo com os Anais da Assembleia Legislativa, em dezenove de julho, a entidade, através de Eloar e Ruy Azambuja, convocou uma reunião com o objetivo de confeccionar um protocolo destinado ao Conselho Federal da OAB e ao público em geral pedindo a revogação do Decreto.809 A elaboração, que tinha a participação ainda do presidente da OAB/RS Justino Vasconcelos, foi presidida pela professora Rosah Russomano e contou com pareceres de diversos professores de Direito, como Rui Cirne Lima e Paulo Alberto Pasqualini.810 No documento, incluído integralmente nos Anais da Assembleia por iniciativa do deputado do MDB Carlos Santos, era apontado o caráter sui generis da Ordem, garantido pela Constituição e balizado no parecer do Consultor Geral da República Adroaldo Mesquita da Costa, referente ao decreto semelhante encaminhado em 1967.811 Em tom próximo foram as manifestações de José Mariano de Freitas Beck e Eloar Guazzelli em sessão solene realizada no dia cinco de agosto na Assembleia 806 Idem, ibidem. Idem, fls. 4. 808 Idem, fls. 5. 809 ALRS. Anais agosto 1974. Porto Alegre, 1974, p.2. 810 Idem, ibidem. 811 Idem, p.3. 807 202 Legislativa por ocasião da Semana do Advogado.812 Conforme o deputado João Carlos Gastal registrou na sessão do dia seis de agosto na ocasião, os dois advogados precisaram com clareza, com proficiência a necessidade da independência do advogado e da independência da corporação que os representa. Essa foi a tônica dos pronunciamentos e ambos deram, nos seus pronunciamentos, a significação da profissão de advogado e o fizeram com rara felicidade, o que aliás é perfeitamente compreensível dada a cultura, a inteligência e o brilho desses dois extraordinários advogados do Rio Grande do Sul.813 Em sua manifestação, o deputado aprofundou-se no exame do discurso proferido por Mariano Beck realizado por escrito. Provavelmente por ter sido feita de improviso, não houve maiores menções, nos Anais da Assembleia, ao conteúdo da declaração de Guazzelli. De acordo com a citação feita por Gastal, Beck afirmou que Examinai a história de todos os povos e vereis que sempre que ocorrem sombrias fases de oclusão das liberdades públicas, lá está o bacharel, o advogado, o jurista, combatendo o cesarismo. Entre a advocacia e a tirania há uma irredutível incompatibilidade Todos os regimes que se instalaram ou se instalam sem o beneplácito do povo, que é fonte de todo o poder legitimo, procuraram sempre através de métodos subrepícios ou ostensivos, não importa – calar a voz do advogado e de suas instituições de classe.814 Há, na fala de Mariano Beck, uma vinculação direta da atuação do advogado com a luta contra o autoritarismo, o que estava relacionada à independência deste profissional e de suas entidades classistas. Em linha semelhante foi o encerramento do deputado Gastal, líder da bancada do MDB, que homenageava os advogados de todo o mundo que lutavam “pela lei, pelo direito, pela liberdade e pela democracia”.815 Estes trechos registrados em ata mostram que Beck e Gastal apontavam de forma sutil que a vinculação da OAB ao governo federal era uma forma de reprimir e 812 Idem, p. 21. De acordo com o verbete presente no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas, José Mariano de Freitas Beck havia sido secretário em diversos governos do PTB no Rio Grande do Sul durante as décadas de 1950 e 1960, foi deputado estadual eleito em 1954 e suplente em 1958. Após a ditadura ele filiou-se no MDB e foi eleito em 1966, sendo cassado pelo AI-5. A partir das análises dos livros de atas do IARGS e da OAB/RS, percebe-se que, em paralelo a sua carreira política, ele atuava em meios jurídicos, integrando o IARGS e, no ínicio da década de 1970, o conselho seccional da OAB/RS. Verbete Mariano Beck. In: ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro: FGV, 2010. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo; “Ata da sessão extraordinária do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, realizada no dia 18 de abril de 1966”. In: IARGS. Livro de Atas 07 – 1964-1967. Porto Alegre, 1967; “Ata da sessão do dia 22 de maio de1968”,fls. 4 . In: IARGS. Livro de Atas – 19671972. Porto Alegre, 1972; “Ata da sessão ordinária do dia 16 de novembro de 1972”, fls. 3. In: IARGS. Livro de Atas – 1972-1974. Porto Alegre, 1974. 813 ALRS. Anais agosto 1974. Porto Alegre, 1974, p. 22. Infelizmente não foi possível encontrar nenhum registro “direto” da sessão solene somente menções a ela, nas Atas das sessões regulares da Assembleia Legislativa e da imprensa. 814 Idem, p. 22. 815 Idem, ibidem. 203 restringir a ação dos advogados contra a ditadura. Como apontei, os defensores de presos políticos e as entidades da classe vinham pronunciando-se publicamente contra a ditadura. Além disso havia por parte das organizações uma visão de que a advocacia era um ofício que garantia direitos e liberdades democráticas. Uma vez que os advogados eram profissionais diferentes de outros, sua entidade classista tinha que ter um estatuto diverso. De acordo com o Jornal do Brasil de sete de agosto de 1974, foi no mesmo sentido a manifestação de Guazzelli.816 A publicação mencionou somente o discurso do presidente do IARGS, citando trechos nos quais ele reforçava o papel dos advogados e a necessidade da independência da OAB. De acordo com a nota, Guazzelli teria dito que a figura do advogado, moldada na luta histórica pela justiça, “se afirma como necessidade da existência da própria justiça brasileira, para atendermos, cada vez mais, os reclamos, nunca tão exigidos, da defesa da dignidade da pessoa humana” e, para preservá-la, era “ fundamental a existência da OAB como um órgão que defenda o advogado e contribua para que os sistemas e as instituições se aperfeiçoem, preservando, sempre, a dignidade da pessoa humana”.817 Ainda, conforme o periódico, Eloar teria afirmado o seguinte: - Existe um tipo de mascarado de violação legal, que é a dos que se colocam, através do poder, acima da lei, exercendo arbítrio e violência intoleráveis e insuportáveis e, contra isso, o advogado deve lutar, com a armadura de sua toga e a arma de sua palavra – disse o Sr. Eloar Guazzelli – acrescentando que “embora o advogado se aproxime da figura de Dom Quixote, deve lutar e não se acovardar diante das armas que o cercam e das cadeias que não permitem entrevista seu cliente.”818 Guazzelli teria finalizado afirmando que “Não podemos nos atrelar a quem quer que seja, e tenho certeza que triunfaremos nessa luta com a voz da razão, com os ensinamentos juridicos e com o respeito que existe, e deve existir, pela cultura jurídica do Brasil”(...).819 Vemos que nestas passagens o deputado e os advogados vinculam à profissão conceitos como democracia, liberdade e dignidade humana. Beck e Guazzelli ressaltam a dimensão de enfrentamento ao autoritarismo que os advogados assumiam. Eles são unânimes na visão de que o atrelamento da entidade máxima dos advogados ao Ministério do Trabalho era um cerceamento desta atividade. “Presidente do IAB gaúcho abre Semana do Advogado e defende autonomia da OAB”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIV, nº 121, 7 de agosto de 1974, 1º Caderno, p. 20. 817 Idem, ibidem. 818 Idem, ibidem. 819 Idem, ibidem. 816 204 Através das passagens pode-se notar que Eloar, em diversos momentos, foi mais incisivo em seu discurso, reforçando que naquele momento a advocacia era, mais do que nunca, uma profissão necessária. De acordo com o Jornal do Brasil, ele também apontou, em sua fala, para cerceamentos que ocorriam em relação a eles, como a incomunicabilidade aos réus. Em entrevista, Nereu Lima fez questão de me recomendar que pesquisasse um discurso de improviso realizado por Eloar na Assembleia Legislativa quando estava na presidência do IARGS.820 Mesmo não tendo obtido uma resposta com a confirmação por parte do advogado, é possível indicar que esta seria a fala em questão.821 Para Lima, a manifestação do advogado foi “um primor assim, em todos os sentidos: sentido ideológico, sentido de oratória, algo assim, que marcou aquela fase”.822 Naquele momento, o jovem Nereu Lima era sócio do IARGS há dois meses. 823 Ele, que havia sido estagiário e iniciado sua carreira no escritório de Guazzelli, estava iniciando uma atuação nas entidades classistas, chegando a ser presidente do conselho seccional e conselheiro federal da OAB nas décadas de 1980 e 1990. Além dos pronunciamentos sobre este assunto, a presidência de Guazzelli no IARGS foi marcada por uma vinculação com a temática do Direito Penal e Penitenciário, área na qual ele atuava. Um exemplo foi a criação, em vinte e quatro de abril de 1974, do Instituto de Penalogia e Direito Penitenciário, dedicado a esta área.824 Na mesma área foi a promoção de um curso de extensão de Altos Estudos sobre Legislação Penal, organizado por Antônio Leiria (diretor do Instituto de Direito Penal e Processual Penal) em parceria com o professor Luiz Luisi, do curso de Direito da Faculdade de Cruz Alta, provavelmente realizado durante o ano de 1974. 825 Carlos Guazzelli destacou este curso como “principal realização” da gestão de Eloar: no curso 820 LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em dia 8 de agosto de 2013, p. 2. 821 Entrei em contato com Nereu Lima após a entrevista para obter a confirmação, mas acabei não tendo resposta. Por outro lado, minhas pesquisas nas Atas do IARGS e na imprensa me levaram à conclusão de que este seria o discurso. 822 Idem, ibidem. 823 “Ata da sessão ordinária do dia 05/06/74”, fls. 2-3. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 824 “Ata da sessão ordinária do dia 24/04/74”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 825 “Ata da sessão ordinária do dia 16/10/74”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 205 foram trazidos ao estado, “os principais penalistas do país, além do professor Giuseppe Bettiol, mestre do humanismo penal italiano, de renome internacional”.826 A temática dos direitos humanos esteve presente nas entidades durante estes anos de forma indireta e não relacionada à atuação de Eloar Guazzelli. 827 Na sessão do dia vinte e três de julho de 1975, Ecilda Haensel solicitou que fosse registrada em ata a sua estranheza por não ver constar na Comissão encarregada de examinar o projeto de Código Civil, os nomes que havia propos-to em sessão anterior. O Dr. Amadeu Weinmann aproveitou para manifestar sua desconformidade como [sic] fato de, ainda em reunião de diretoria ter sido aprovado a inclusão de Colegas mulheres na referida Comissão, especialmente na parte de Direito de Família, decisão esta não cumprida pelo Instituto. Justifica a necessidade da participação de mulheres na elaboração legislativa e mais, sugere que a mulher a integrar seja, preferencialmente, desquitada – para representar esta parcela da mulher brasileira que busca solução a situações de fato existentes.828 Este trecho mostra os limites que ainda existiam à presença das advogadas nos meios jurídicos. Como já apontei, o IARGS contava com algumas sócias na diretoria, porém em colocações que podem ser vistas como subalternas. Mesmo estando presentes neste ambiente, não houve a preocupação da representatividade feminina em temas relevantes às mulheres, como foi apontado por Weinmann. E, no momento em que uma delas sugere nomes para composição da Comissão que trata de temas relacionado às mulheres, suas propostas são deixadas de lado. Percebe-se, nestes anos, que as organizações classistas mantêm uma relação com a política partidária. Assim, de acordo com a ata, em vinte e cinco de julho de 1974, o vice-presidente da OAB/RS, Pedro Lairihoy, dava conhecimento ao conselho de que iria 826 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 1. 827 Na primeira sessão do conselho da OAB/RS em 1974 foi mencionado um ofício do Conselho Federal que convidava a presidência da seccional para a V Conferência Nacional de Advogados que se realizaria entre 11 e 17 de agosto daquele ano com o tema “o advogado e os direitos do homem”. Outro exemplo é a menção feita na sessão do IARGS do dia 10 de julho de 1974 ao convite feito ao ex-presidente Ivânio Pacheco para participar da Comissão dos Direitos Humanos do Instituto dos Direitos do Homem. Na semana seguinte, Ecilda Haensel anunciou na sessão do Instituto iniciativas da Secretaria de Educação e Cultura do Governo do Estado do Rio Grande do Sul para a promoção dos direitos humanos: seriam divulgados na Rede Estadual e em repartições públicas cópias da “Declaração Universal dos Direitos do Homem, que o Instituto fará publicar”, ainda colocando à disposição da entidade “ a Revista do Ensino, para que os membros do IARGS contribuíssem com artigos, e, que, possivelmente se faria inaugurar um monólito, em uma das praças da Capital, contendo a Carta dos Direitos do Homem”. “Ata da 1ª sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul, realizada em 26 de março de 1974”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976; “Ata da sessão ordinária do dia 10/07/1974”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976; “Ata da sessão ordinária do dia 17/07/74”, fls. 2. In: IARGS. Livro de Atas 19741976. Porto Alegre, 1976. 828 “Ata da sessão ordinária do dia 23/07/75”, fls. 2. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 206 candidatar-se para Deputado Estadual pelo MDB.829 Mesmo não obtendo sucesso na empreitada, esta candidatura de um membro destacado do sodalício pelo partido de oposição pode indicar que a OAB começava a ser vista como um meio que ia contra a ditadura.830 Na mesma época, apoiar o MDB passou a ser visto como estratégia de luta contra a ditadura, o que não acontecia antes. Na ata da sessão do dia vinte e oito de agosto de 1974 é mencionada a candidatura de Caio Mário da Silva Pereira para o Conselho Federal da OAB, além de constar o afastamento de Sobral Pinto do Conselho Federal.831 Durante estes anos ainda são percebidos indícios de consagração e reconhecimento dos cejuristas. Um exemplo é a concessão da medalha Osvaldo Vergara, que era concedida a autoridades e personalidades do meio jurídico, a Júlio Teixeira por seu “desempenho de cargos no Conselho Seccional”.832 No final de 1974, tanto Eloar Guazzelli quanto Júlio Teixeira foram eleitos com uma votação expressiva para o Conselho Seccional. 833 Eloar faria parte da Comissão de Ética e Disciplina, enquanto que seu conterrâneo e colega de faculdade, Raymundo Faoro, foi indicado como representante gaúcho para o Conselho Federal.834 Uma questão presente neste biênio foi a mobilização da OAB/RS em relação a arbitrariedades e violências cometidas contra advogados. Na primeira sessão de 1974, no dia nove de abril, foi feito, por parte do conselheiro Marcus Melzer, um relatório da sessão do Conselho realizada no dia dois, ficando Guazzelli responsável pela confecção de “parecer sobre o assunto” e a Ordem por “contato com as autoridades competentes”.835 Não foram feitas maiores descrições do conteúdo do assunto, porém, de acordo com Marly Motta e André Vianna, na ata desta reunião do Conselho Federal foi registrado que dois advogados da Guanabara haviam sido presos ilegalmente em “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 25 de julho de 1974”, fl. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 830 Pedro Dario Lima Lairihoy fez 3.893 votos, ficando com a 63ª votação do MDB de 72 candidatos. TRE/RS. [Resultados eleições gerais 1974]. Porto Alegre, 1974. Disponível em www.trers.gov.br/upload/28/_Gerais_Resultados_RS1974.PDF 831 “Ata da sessão ordinária do Conselhol, realizada em 28 de agosto de 1974”, fl. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 832 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 8 de outubro de 1974”, fl. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 833 “Ata dos trabalhos realizados pela junta apuradora, para apuração geral da eleições para o Conselho Seccional, realizados em 29 (vinte e nove) de novembro de (1974)”. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 834 “Ata da primeira sessão do Conselho, realizada em 03 de fevereiro de 1975”, fls. 2. OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 835 “Ata da 1ª sessão extraordinária do Conselho Seccional, reali-zada em 9 de abril de 1974”, fls. 1. OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 829 207 seus escritórios, sem mandato judicial ou identificação, além de ser mencionados “apelos ‘aflitos’ de mães e pessoas que haviam sido presas e cujo paradeiro era ignorado”.836 Estas prisões, de acordo com os historiadores, tinham como objetivo “amedrontar os advogados que defendiam presos políticos (...) e ter acesso a documentos protegidos pelo sigilo legal”.837 O fato de Eloar ter ficado responsável pelo parecer leva a crer que o relatório de Melzer tratava deste debate. É provável que a falta de registros posteriores sobre esse tema se deva ao fato de que no mês seguinte, a Ordem sul-rio-grandense, junto do IARGS, iria engajar-se mais com outro ataque da ditadura: a vinculação da entidade ao Executivo federal. Já no dia sete de maio do mesmo ano era solicitado, pelo coronel Hans Ger Haltenburg, presidente do Conselho Permanente de Justiça da 1ª Auditoria da 3ª Região Militar, presença do presidente da OAB/RS no ato de inquirição do Bacharel CLAUDIO ANTENOR SCHUCH, indiciado no Inquérito Policial Militar, instaurado por detemrinação [sic] do General – Comandante do III Exército, atendento ao requerido pelos sedizentes ofendidos, em razão das suas funções , Major ATTILA ROHSETZER, Tenentes LUIZ OTÁVIO LOPES CABRAL e RUY ALBERTO IBAÑEZ, e, of. 76 E/5 RP do Comandante do III Exército, agradecendo a presença desta Presidência no aludido ato de inquirição.838 Schuch estava respondendo por ter acusado os três militares no processo indenizatório em nome de Elizabeth Chalupp Soares, viúva de Manoel Raymundo Soares, de terem matado o ex-sargento.839 A presença do presidente da OAB/RS dava-se em razão do advogado estar respondendo por ato cometido durante o exercício da profissão. Na ata da sessão do dia vinte e oito de agosto de 1974 constam duas reclamações por parte de conselheiros: enquanto que Aldo Leão Ferreira dissertava “sobre a tragédia 836 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 136. 837 Idem, ibidem. 838 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul, realizada em 7 de maio de 1974”, fls. 3. OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976 839 “Advogado quer reabrir o caso ‘mãos amarradas’”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano LXXXVIII, nº 232, 26 de novembro de 1978, 1º Caderno, p. 26. Ao longo do processo Claúdio Antenor Schuch e o Tenente Mário Ranciaro foram defendidos, em momentos diferentes, por Sobral Pinto (que impetrou um habeas corpus em seus nomes em dezembro de 1974) e por Eloar Guazzelli e seu filho Carlos Frederico Guazzelli (que assumiram o caso em 1978). Acervo Eloar Guazzelli, Pasta nº 350, caixa 40. 208 em que se transformou o Forum de Porto Alegre”, Pedro Lairihoy comentava “as arbitrariedades policiais, exigindo que sejam tomadas providências pela OAB/RS”.840 Mesmo que as referências tenham ficado, no laconismo da ata, com um ar tanto aleatório e estranho, vemos a busca dos conselheiros em manifestar-se contra a realidade imposta a eles. III.2. A prisão de comunistas em 1975 e a atuação da OAB e Eloar Guazzelli Em março de 1975, em decorrência de investigações relacionadas com Rio de Janeiro e São Paulo, foram feitas, em Porto Alegre, prisões de militantes do PCB. Elas mostram que “o propalado projeto de abertura do governo não impediu prisões, atentados e assassinatos políticos” e que este projeto “era, portanto, extremamente relativo, ambíguo e, mais do que tudo, incerto”.841 Mateus Gamba Torres aponta que esta onda repressiva em direção aos comunistas devia-se ao fato de que, em meados dos anos 1970, as organizações de esquerda armada já haviam sido reprimidas, restando ainda “o pacífico Partido Comunista a ser combatido”.842 Além disso, ainda de acordo com este autor, esee grupo foi considerado pela ditadura como “um dos setores responsáveis pela derrota governamental nas eleições de 1974”.843 Rodrigo Patto Sá Motta afirma que “o PCB foi o único grupo organizado de esquerda que se ligou ao MDB desde o início”: havia a avaliação da entidade da necessidade de “construir uma frente democrática para tornar possível a derrota da ditadura, envolvendo todos os setores da oposição. Assim, o MDB foi encarado como espaço privilegiado para o estabelecimento da almejada frente democrática”, havendo a orientação “Ata da sessão ordinária do conselho, realizada em 28 de agosto de 1974”, fls. 3. OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976 841 ARAUJO, Maria Paula Nascimento. “Lutas democráticas contra a ditadura”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão & FERREIRA, Jorge. As esquerdas no Brasil. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 324-5. 842 TORRES, Mateus Gamba. “A Justiça nem ao Diabo se há de negar”: A repressão aos membros do Partido Comunista Brasileiro na Operação Barriga Verde (1975-1978). Florianópolis: UDESC, 2009,p. 15. Dissertação de Mestrado em História. 843 Idem, p. 14 No caso do Rio Grande do Sul, os pecebistas haviam apoiaram as candidaturas de Dulphe Pinheiro Machado, irmão de Antônio Pinheiro Machado Netto, para deputado federal e de Fernando do Canto para deputado estadual, que elegeu-se com 24.962, sendo o 14º mais votado da legenda. Já Pinheiro Machado, com 16.966 votos, não teve sucesso, ficando com a 25ª colocação do MDB. TRE/RS. [Resultados eleições gerais 1974]. Porto Alegre, 1974. Disponível em www.trers.gov.br/upload/28/_Gerais_Resultados_RS1974.PDF 840 209 da “maior parte de seus militantes para a atividade legal dentro do MDB, partido a que deveriam filiar-se e ajudar a construir”.844 Segundo Maria Alice Rezende de Carvalho, durante a década de 1960, o Partido Comunista buscava dar “primazia à luta política pela restauração das liberdades democráticas, articulando-se uma frente anti-regime mais ampla do que a coalização nacionalista do período precedente”.845 Esta orientação originava-se de uma visão de que a ditadura era “caracteristicamente fascista”, o que levava à defesa da “adoção de uma estratégia antifascista” em diversos documentos da entidade.846 Dentro desta prática encaixava-se, também, o incentivo à atuação em espaços como a OAB, o que é provável que a onda repressiva buscava atacar, já que um dos alvos no Rio Grande do Sul foi o advogado Júlio Teixeira. As prisões de Porto Alegre foram executadas por agentes do DOI-CODI (Departamento de Operações de InformaçãoCentro de Operações de Defesa Interna) do III Exército, localizado em um quartel na rua Luiz Afonso entre a Avenida João Pessoa e a rua Lima e Silva, no bairro Cidade Baixa.847 Durante o caso, o conselho estadual da OAB e seu presidente, Justino Vasconcelos, tiveram forte atuação na divulgação das violações que os comunistas estavam sofrendo. Assim, de acordo com a ata da sessão do dia 18 de março de 1975, Vasconcelos fez um relatório sobre as prisões dos advogados Fernando Barcelos de Almeida e José Gay da Cunha, passando, a seguir, a um depoimento prestado por Benilda de Vargas Nunes, companheira de Hilário Gonçalves Pinha (que era conhecido no momento pelo nome falso de Francisco Penha Rodrigues ou Niwton/Milton que, de acordo com ela, seria seu “apelido”).848 O registro em ata do relato de Benilda, que estava grávida de quatro meses, é extremamente detalhado. Ela narrou em 10 páginas o que lhe ocorreu no momento da MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “O MDB e as esquerdas”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil volume 3 – Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 291. 845 CARVALHO, Maria Alice Rezende de. “Breve história do ‘comunismo democrático’ no Brasil”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil volume 3 – Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 274. 846 Idem, ibidem. 847 MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS publicações, 2007, p. 159; GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 2. 848 “Ata da sessão do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul, realizada em 18 de março de 1975”, fls. 1 e 4. OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976 844 210 prisão de seu companheiro. Inicialmente, ela conta que alguns homens armados chegaram a sua casa querendo falar com “Niwton”; que invadiram e renderam seu cônjuge, que estava no banheiro.849 Estes homens, segundo Nunes, revistaram a casa e “empurraram o Niwton para cima da cama; depois eu vi um tipo de uma cinta que davam uma lambada nele”, mostrando que ainda em sua casa Hilário havia sido violentado.850 Depois disso, mesmo com os pedidos do comunista, os invasores levaram o casal para outro local, em carros separados.851 Benilda contou aos conselheiros que para que ela não visse aonde estava indo haviam colocado “umas borrachinhas nos olhos”, o que lhe deu mal-estar e ânsia de vômito. Posteriormente, trocaram as borrachinhas por um capuz. 852 Quando tentou deixar o nariz e a boca de fora do capuz ela foi ameaçada: “Aí eu disse assim: eu vou vomitar. Não tu – guenta [sic] aí só um pouquinho que nós temos [sic] perto, tu não vai – querer sujar todo o meu carro, menina!”.853 A partir do momento que chegaram ao destino, Benilda Nunes afirmou que não viu mais seu companheiro.854 Lá, iniciou-se o interrogatório, buscando, inicialmente saber sobre a relação dos dois. Neste momento ela afirma que começou “a fazer ansia [sic]” e foi levada, encapuzada para o banheiro: no caminho ela afirma que ergueu “um pouquinho assim” do capuz e pode ver “que tinha um sujeito deitado numa caminha baixa”.855 Em seu relato, Nunes afirmou que conseguiu ver ainda uma outra senhora com “uma saia bege, de olhos vendados, com um capuz preto, também não sei quem era; eu até pensei que fosse a esposa do Adair”.856 Nestas passagens vemos que se registraram as situações que a moça vivenciou quando esteve detida, reforçando o caráter de denúncia que tinha no depoimento. De acordo com a ata, no interrogatório buscaram-se informações sobre as atividades de Francisco/Hilário e do cotidiano do casal, intentando saber os contatos que o comunista tinha com outros correligionários.857 No relato de Benilda há a menção a alguns subterfúgios realizados: ela afirma que, em dado instante, “eu me enrolei prá 849 Idem, fl. 1. Idem, fls. 2. 851 Idem, ibidem. 852 Idem, ibidem. 853 Idem, ibidem. 854 Idem, fls. 3. 855 Idem, ibidem. 856 Idem, ibidem. Adair Moreira de Castilhos era outro militante do PCB preso nesta operação. 857 Idem, ibidem. 850 211 [sic] lá, me enrolei prá [sic] cá”, dando a entender que não quis dar todas as informações que a repressão buscava.858 Posteriormente, Benilda foi colocada em uma sala em que havia um homem falando com seu companheiro acusando-o de que ele “não servia nem pra ser comunista”. Ela teria sido questionada pelos algozes se “Milton” seria comunista, ao que Nunes respondeu que isso pra mim é novidade, eu nem sei o que é comunista, não entendo nada disso, tou por fora de tudo, daí então eles queriam saber de onde é que vinha o material, pra onde o Milton levava, onde faziam reunião, tudo isso eu não sei de nada, disse pra eles que eu não sabia.859 Na sequência Benilda foi levada para outra sala aonda [sic] um sujeito carrasco me disse assim: nega desgraçada tu vai falar a verdade ou tu não vai?... Eu disse assim: o que eu sei é isso e mais do que isso eu não posso dizer porque eu não sei, eu so[sic] inocente de tudo. Disse ele assim: se você não falar a verdade... pra quanto é que você espera esse filho? – eu disse assim: pra fins de julho ou agosto. Eles me disseram assim: pois então tu vais parir antes, porque eu aperto a tua barriga com uma borracha. Daí então além dessa ameaça ele me fez outra ainda: que eu não lembro nem o que é, era um negócio assim sobre calor ou quente, foi uma coisa assim que ele me falou. Daí eu fiquei firme, eu disse pra ele: o Sr. é quem sabe porque se o Sr. é pai e a sua mulher é mãe, eu acho que ela deve sentir o que eu tou sentindo agora pelo meu filho. E ele pegou e me deu uma bofetada assim e outra assim, assim no rosto.860 Neste trecho vemos o que Benilda, que estava grávida de quatro meses, teve de passar durante o interrogatório. Após a saída do “sujeito carrasco”, ela contou ao conselho da OAB/RS que passou mal novamente e uma médica veio e que, enquanto lhe atendia, tentava convencê-la a contar tudo.861 Em resposta, Benilda questionou: tu me diga uma coisa, o que é comunista que eles falaram. Ela disse assim: Comunista são bandidos, eu disse assim: mas... eu não sabia disso, eu me fiz assim bem de ignorante, mas como se eu não soubesse, né.862 Nunes provavelmente utilizava-se de uma imagem que seus algozes tinham dela: ela seria uma moça simples, que, sem saber, havia sido seduzida por um comunista. Ela afirma que “se fez” de ignorante, o que denota sua sagacidade, ao mesmo tempo em que dá a entender que ela sabia o que era um comunista. 858 Idem, fls. 4. Idem, fls. 5. 860 Idem, fls. 5-6. 861 Idem, fls. 6. 862 Idem, ibidem. 859 212 Posteriormente, Benilda teve uma nova crise, ao que surgiu outro médico que deu-lhe água e colocou-a deitada, “mas sempre com os olhos vendados”.863 Depois ela comeu, recebeu alguns medicamentos e chegou a dormir.864 Passadas algumas horas, ela pode voltar, acompanhada de uma moça.865 Um pouco depois de chegar em casa, Benilda recebeu a visita de uma filha de Adair Castilhos, que informou a ela que também haviam sido presos outros militantes e levou-a para a casa de seus pais.866 Após o relato, os conselheiros perguntaram para Nunes sobre a sua prisão, em especial o local em que esteve presa.867 O fato de o Conselho ter ouvido e registrado integralmente em ata o depoimento mostra que o interesse da entidade não estava somente em relação aos advogados presos. Benilda e seu companheiro não eram advogados e mesmo assim as circunstâncias de sua prisão/sequestro foram documentadas, em especial as ameaças e violências em relação à moça. A presença ativa dos cejuristas na entidade provavelmente influenciou esta decisão. Terminado o relato, o tema foi debatido pelo Conselho, sendo decidido, “à unanimidade de votos, manter-se em sessão permanente até que se esclareça definitivamente o assunto”, o que permitia que os atos do presidente e dos conselheiros tivessem mais autoridade e efetividade.868 Também se deliberou por unanimidade a publicização de uma nota na imprensa local e nacional sobre o assunto, na qual era reforçada a ilegalidade das prisões, uma vez que realizadas de forma violenta, sem identificação de seus perpetradores e desrespeitando direitos dos advogados.869 A sessão foi suspensa e reaberta no dia seguinte, 19 de março, às nove horas da manhã, o que marca uma mudança já que as sessões do conselho eram realizadas sempre após as 18 horas.870 Neste dia o conselho impetrou via telegrama um habeas corpus no STM em favor dos advogados presos: na redação era mencionado o temor em relação à segurança pessoal de Fernando Barcelos de Almeida, José Gay da Cunha e Honório Peres que haviam sido presos “por grupos não identificados” e levados com 863 Idem, ibidem. Idem, fls. 7. 865 Idem, fls. 8. 866 Idem, ibidem. 867 Idem, fls. 9. 868 Idem, fls. 10. 869 Idem, ibidem. 870 Idem, fls. 11. 864 213 violência “para destino desconhecido”, uma vez que nem a Secretaria de Segurança do Rio Grande do Sul nem a Polícia Federal informavam o paradeiro.871 Imagem 4: Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano VI, nº 1622, 20 de março de 1975, capa. Ao centro fotografia de Conselheiros da OAB/RS aguardando audiência com o Governador para tratar das prisões. Fonte: Acervo de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. 871 Idem, ibidem. Neste mesmo dia houve o falecimento do professor Armando Câmara, que, de acordo com Luiz Alberto Grijó, é apontado como tendo “uma posição central na geração católica”: em sua homenagem foi aprovado luto de três dias. Ficou registrado em ata que o presidente do Conselho não iria comparecer ao sepultamento do jurista “eis que estava empenhado na defesa dos colegas presos”, o que é um indício do esforço feito por Justino Vasconcellos neste caso. GRIJÓ, Luiz Alberto. Ensino jurídico e política partidária no Brasil: a Faculdade de Direito de Porto Alegre (1900-1937). Niterói: UFF, 2005, p. 278. Tese de Doutorado em História. 214 As mobilizações da OAB foram registradas na imprensa. Um exemplo é a capa da Folha da Manhã do dia 20 de março de 1975, na qual aparecem manchetes a respeito do caso, além de uma fotografia de conselheiros da entidade quando da visita ao governador Sinval Guazzelli para tratar do assunto.872 Na edição é mencionado que o presidente da OAB/RS, Justino Vasconcelos, os conselheiros Mauro Cunha, Luís Fernando Borges e conselheiro federal Godoy Bezerra haviam saído otimistas da reunião de uma hora com o governador, pois, segundo Justino, Sinval Guazzelli estava tão preocupado quanto eles.873 O periódico ainda mencionou dois habeas corpus impetrados por Justino: um como advogado em nome dos três advogados antes mencionados, além de João Batista Aveline, Francisco Penha Rodrigues (Hilário Pinha) e Adair Castilhos – no qual foram reproduzidas integralmente as razões usadas pelo defensor – e outro enquanto presidente da OAB/RS em nome de seus sócios.874 Ainda são mencionados dois telegramas: um de Justino, endereçado ao senador Daniel Krieger, da Arena, que era conselheiro vitalício da OAB/RS, pedindo a ele que se preservasse o Rio Grande do Sul “de tais atentados”; e outro de Eugênia Cunha, mulher de José Gay Cunha, para o ministro da Justiça, Armando Falcão, solicitando o paradeiro do preso e mostrando a situação de desespero em que estava a família.875 O periódico ainda mostrou as iniciativas do Sindicato dos Jornalistas e da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), que se mobilizaram em relação às prisões dos jornalistas João Batista Aveline e Aníbal Bendati.876 Na Folha da Manhã constou, também, a nota oficial do III Exército, na qual assumia a responsabilidade pelas prisões e informava que eram relacionadas à repressão ao PCB.877 A mesma matéria fez referência ao debate ocorrido no Senado: na tribuna o emedebista Paulo Brossard denunciou as prisões, sendo aparteado por Krieger que 872 Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano VI, nº 1622, 20 de março de 1975, capa. Matéria semelhante, porém mais sintética, foi publicada no Jornal do Brasil. "III Exército explica que prisões no Sul têm relação com atividades do PCB”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIV, nº 342, 20/03/1975 1º Caderno, Polícia, p. 22 873 “Guazzelli ouviu representantes da OAB e prometeu tomar medidas adequadas depois de informado”. In: Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano VI, nº 1622, 20 de março de 1975, p. 8. 874 “Justino Vasconcellos encaminhou um pedido de habeas corpus em nome de seis pessoas presas”. In: Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano VI, nº 1622, 20 de março de 1975, p. 8. 875 Idem, ibidem. 876 “Jornalistas enviam nota ao ministro”. In: Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano VI, nº 1622, 20 de março de 1975, p. 8. 877 “Nota do III Exército sobre as prisões em Porto Alegre”. In: Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano VI, nº 1622, 20 de março de 1975, p. 8. 215 questionou a inocência dos presos. O arenista afirmou que entre eles havia um que “participou da Intentona Comunista e da guerra civil [sic] na Espanha em defesa dos comunistas”, ao que Brossard replicou apontando para a ilegalidade das prisões. 878 No dia 20 de março a sessão da OAB foi reaberta, sendo o primeiro registro em ata a proposta de telegrafar para o STM informando que “a autoridade coatora das prisões dos advogados ali referidos é o Comandante do III Exército que, através – de notícia vinculada na imprensa local, assumiu a res-ponsabilidade das prisões”.879 Em matéria da Folha da Manhã de 21 de março, Justino afirmava que a nota do III Exército era tranquilizadora, uma vez que, sob sua responsabilidade, “os presos terão, evidentemente, resguardada sua incolumidade física e respeitados os direitos individuais, garantidos pela Constituição e pela Declaração dos Direitos do Homem”.880 O presidente da OAB/RS, além de reivindicar os direitos humanos, buscava, assim, responsabilizar publicamente o Exército pelo que pudesse acontecer aos presos. Na reportagem ele ainda fez questão de exigir o tratamento adequado para os advogados, que, de acordo com a legislação, tinham direito à prisão em sala de Estado Maior, além de frisar que a incomunicabilidade prevista na Lei de Segurança Nacional de 1969 havia sido revogada por decreto do mesmo ano.881 Na matéria ainda foi mencionado que familiares dos presos foram à sede da OAB/RS em busca de informações que não obtinham de outra forma e que Delly Salazar Peres, esposa de Honório, foi chamada para depor na Auditoria.882 O periódico ainda narrou o embate travado na Assembleia Legislativa entre os deputados Lélio Souza, do MDB, e Cel. Pedro Américo Leal, da Arena.883 Na reportagem foi mencionado que durante o debate, que durou por mais de duas horas, o emedebista denunciava as ilegalidades das prisões enquanto que o deputado-militar 878 Idem, ibidem. A proposta foi aprovada por unanimidade. “Ata da sessão do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul, realizada em 18 de março de 1975.”, fls. 12. OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 880 “A OAB pretende pedir uma audiência ao III Exército”. In: Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano VI, nº 1623, 21 de março de 1975, p. 8. 881 Idem, ibidem. 882 Idem, ibidem. A prisão de Honório Peres, ocorrida em sua casa, acabou envolvendo toda a família. Um exemplo disso foi a forma como a experiência foi narrada para o Projeto Marcas da Memória – História Oral da Anistia no Brasil, contada em “duas vozes” por ele e Delly. PERES, Honório Campos; PERES, Delly. Entrevista realizada por Dante Guimaraens Guazzelli Projeto Marcas da Memória: História Oral no Brasil em Porto Alegre no dia 4 de maio de 2011. 883 “Na Assembléia, o MDB denunciou e a Arena justificou as prisões”In: Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano VI, nº 1623, 21 de março de 1975, p. 8. 879 216 defendia de forma fervorosa as prisões, criticando o comunismo.884 Em apoio a Souza, seu correligionário, Waldir Walter, trouxe para o debate a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, afirmando que Uma prisão deve ser efetuada ressaltando a dignidade do ser humano, da pessoa que está enfrentando esta prisão. Nenhuma pessoa, nenhum cidadão pode ser humilhado a não ser em razão de um regime autoritário e totalmente fora da lei.885 Nota-se que, enquanto os deputados Lélio Souza e Waldir Walter buscavam articular conceitos vinculados aos direitos humanos e às normas legais vigentes das prisões, Pedro Américo Leal repetia o que dizia a nota do III Exército, além de reproduzir um anticomunismo, chegando a afirmar que os comunistas deveriam ir “para a Rússia e fique por lá tomando vodka e andando com patins nas estepes geladas”.886 A sessão foi reaberta no dia 1º de abril, quando Justino Vasconcelos fez um relato do que presenciou quando da visita a um dos advogados presos, o Doutor HONÓRIO PEREZ, bem como o que lhe haviam relatado os Doutores JOSÉ GAY DA CUNHA e FERNANDO BARCELOS DE ALMEIDA atinentes a suas prisões, revelando p que, ao contrário das declarações do Exmo. Sr. DORVALINO TONIN, DD. Auditor de Guerra, os presos não estavam recolhidos a apartamentos, mas sim a cubículos de dimensões reduzidíssimas e com aparelhos sanitários a nível do assoalho, a exemplo daqueles existentes em Colégios públi-cos.887 Mesmo já tendo obtido informações sobre os presos, o presidente da OAB/RS estava firmemente envolvido com a garantia dos direitos dos advogados presos. Neste dia ocorreram debates mais cotidianos do conselho seccional da OAB/RS, como o anúncio da nova diretoria do Conselho Federal (com Caio Mário da Silva como presidente e o jurista e advogado de presos políticos Heleno Fragoso como vicepresidente), e o relatório de um projeto de lei que previa o salário mínimo para os advogados.888 Diferentemente de seus correligionários, Júlio Teixeira não foi preso de forma ilegal, apresentando-se na Polícia Federal e, posteriormente, ficando sob a responsabilidade dela. Conforme aponta Carlos Guazzelli, Teixeira tinha “grande 884 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 886 Idem, ibidem. 887 “Ata da sessão do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul, realizada em 18 de março de 1975.”, fls. 13. OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 888 Idem, fls. 14 e 15. 885 217 prestígio e exercia considerável influência” nas entidades classistas: a análise das atas do IARGS e da OAB/RS realizadas aqui o demonstram .889 Para evitar o sequestro deste advogado, Honório Peres afirma que Justino teria obtido a possibilidade do “Velho Júlio” apresentar-se no Departamento de Polícia Federal.890 Carlos Frederico narra de forma semelhante, complementando que Eloar, enquanto presidente do IARGS, teria auxiliado nesta iniciativa.891 Ainda segundo ele, devido a relações do presidente do IARGS com o militar que estava à frente da Polícia Federal Gaúcha, Cel. Maxen de Castro, “de quem as citadas lideranças dos advogados gaúchos obtiveram a garantia da preservação da integridade, física e moral, de seu colega” e, assim, uma prisão em condições dignas para Teixeira.892 Durante este período, Ana Eni Machado Milan afirmou que, por ter melhores relações na Polícia Federal, ela prestou assistência a Júlio Teixeira.893 De acordo com a advogada, seu trabalho foi mais próximo de um apoio emocional; ela contou ainda que, nas conversas com Teixeira, aprendeu muito sobre Direito Civil.894 Assim, na sessão do dia 9 de abril, foi relatada, por parte de Justino Vasconcelos, a apresentação do Conselheiro Doutor JÚLIO TEIXEIRA à Polícia Federal, fato que ocorreu no dia oito (8) à tarde, assistido por sua Excelência o Senhor Presidente, Informou, ainda, da visita de hoje, acompanhado do Excelentíssimo Senhor Doutor MANOEL AUGUSTO DE GODOY BEZERRA, DD. Represen-tante desta Seccional no Egrégio Conselho Federal da ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, ao Conselheiro JÚLIO TEIXEIRA.895 Nota-se neste trecho que houve uma preocupação em registrar o apoio dado a Teixeira, ao mesmo tempo em que se frisou que tanto o presidente da OAB/RS quanto o conselheiro federal haviam estado com o advogado comunista no cárcere. Da mesma forma, declararam-se como defensores de Júlio Teixeira o ex-presidente da OAB/RS Dante Sfoggia, ex-presidente do IARGS Walter Tschidel, Walter Becker, René Ávila, 889 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 2. 890 CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 87. 891 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 2. 892 Idem, ibidem. 893 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. Anotações sobre conversa com Ana Eni Machado Milan, realizada em 8 de setembro de 2017 em Porto Alegre, a respeito da trajetória de Eloar Guazzelli entre os anos 1974 e 1982. Porto Alegre, 2017, p. 1. 894 Idem, ibidem. 895 “Ata da sessão extraordinária do Conselho realizada no dia 09 de abril de 1975”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 218 Anísio Freitas, Archimedes Almeida, Fernando Dias, além de Eloar, na condição de presidente do Instituto.896 Vasconcelos chegou a propor a suspensão da prestação de compromisso da diretoria da OAB/RS na Assembleia devido à prisão de Júlio Teixeira, o que foi rejeitado pelo Conselho afirmando que “o momento não é de retração, recolhimento, e sim de exaltação da figura do advogado, sem prejuízo do sentimento que nutre pela prisão daquele Conselheiro”.897 Nesta sessão ainda foi registrada a solidariedade da subseção de Santiago no caso das prisões.898 Já na sessão do dia seis de maio foram anotadas manifestações das subseções de Santa Maria, São Borja e Rosário do Sul e da Seção do Ceará, e no dia 3 de junho, do Piauí, todas em apoio a Teixeira.899 Em três de junho também foi feita uma homenagem do Conselho ao advogado comunista “em face do transcurso do seu 65º aniversário natalício, ocorrido em 30 de abril do corrente ano”, o que leva a crer que neste momento ele já estava em liberdade.900 As declarações acima mostram a dimensão de prestígio que os advogados comunistas tinham nas entidades dos advogados. Tanto a mobilização da presidência quanto as manifestações de apoio e solidariedade comprovam o reconhecimento e importância que eles, em especial Júlio Teixeira, tinham entre os advogados. Honório Peres, que até então não tinha atuado em entidades classistas, afirmou em depoimento prestado à CEV/RS que posteriormente foi presidente da Caixa de Assistência dos Advogados e secretário-geral da OAB/RS para pagar “o que devia para Ordem (…), fiz com muita vontade (…), porque realmente a ordem nos tirou do pior”.901 896 Idem, ibidem. Guazzelli estava, naquele momento, em licença do Conselho Seccional da OAB/RS. “Ata da sessão do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Rio Grande do Sul, realizada em 18 de março de 1975.”, fls. 12. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 897 “Ata da sessão extraordinária do Conselho realizada no dia 09 de abril de 1975”, fls. 2-3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 898 “Idem, fls. 2. 899 “Ata da sessão ordinária do Conselho realizada no dia 6 de maio de 1975”, fls. 2; “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Secção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 3 de junho de 1975”, fl. 1 In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 900 “Ata da sessão ordinária do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Secção do Rio Grande do Sul, realizada no dia 3 de junho de 1975”, fls. 3 In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 901 CEV/RS. Depoimento - Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”. Porto Alegre, 2014, p. 87. Peres esteve à frente da entidade no início da década de 1980. “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 14 de abril de 1.981”, fls. 3. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 219 A defesa dos advogados comunistas fez com que o Conselho Seccional da OAB sul-rio-grandense se colocasse publicamente no embate contra a ditadura, denunciando as arbitrariedades e violências cometidas pela repressão. Por mais que, antes deste episódio, pudessem ser vistas nas atas algumas manifestações de oposição ao regime, elas não saíam da sala de reuniões e não tomavam o caráter de uma postura da instituição. Aqui, percebe-se uma mudança de orientação da entidade: a OAB/RS ia a público e em defesa de todos os presos e não somente dos advogados. Além de clamar pelo respeito de procedimentos legais, ela também articulava suas demandas aos direitos humanos. Este seria o início de uma atuação que engajaria a Ordem nas lutas pelas liberdades democráticas. Posteriormente, alguns dos presos responderiam processo na Justiça Militar, sendo defendidos por Eloar Guazzelli.902 No processo ressalta-se a figura de Hilário Pinha devido às violências sofridas em diferentes sessões de tortura, tanto em Porto Alegre quanto em São Paulo. Por ser importante dirigente do PCB, ele foi transferido clandestinamente para o centro do país quando foi descoberta sua real identidade, passando por várias violências que levaram a quatro costelas fraturadas e a redução a 20% de sua capacidade intestinal.903 Neste momento, a companheira de Pinha, Benilda, acionou o advogado, que conseguiu o retorno do preso a Porto Alegre, onde passou por diversas cirurgias no Hospital Militar.904 Carlos Guazzelli afirma que “a atuação de Eloar, logrando sua remoção para Porto Alegre e procedendo à sua defesa, foi decisiva, também, para a 902 Os processos foram analisados por mim em minha dissertação de Mestrado e em artigo: GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (19641979). Porto Alegre: UFRGS, 2011, pp. 81-7 e 104-10; GUAZZELLI, Dante Guimaraens. “Os mutilados na Tribuna - as argumentações de Eloar Guazzelli em crimes políticos durante a abertura política (19751979)”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. Anais do XXVI simpósio nacional da ANPUH - Associação Nacional de História. São Paulo: ANPUH-RS, 2011. Disponível em www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300849085_ARQUIVO_mutiladosnatribuna.pdf 903 MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS publicações, 2007, p. 158; GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 3. De acordo com Mitchell, durante o processo Eloar teria entrado em contato com seu primo, o governador Synval Guazzelli, para pedir uma sindicância sobre o caso, a qual teria informado que os ferimentos de Pinha teriam ocorrido pois ele havia se atirado várias vezes no estrado da cama. MITCHELL, José. “Ex-preso mutilado responsabiliza União por torturas”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 118, 4 de agosto de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 8. 904 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 3. Devido a seu estado crítico, Hilário Pinha já havia passado por procedimentos na capital paulista. Carlos Frederico afirma que, enquanto respondia o processo em liberdade, o comunista foi para a União Soviética, “onde foi submetido a minuciosa revisão médica – que confirmou o acerto da conduta dos cirurgiões brasileiros”. 220 recuperação, junto à companheira e o filho pequeno”.905 O papel da jovem é reforçado por Denise Broda, que narra o processo como “um sofrer” de Benilda que, enquanto Pinha estava detido, ficou “a ver navios”, sozinha com uma criança pequena, já que nem ela nem o companheiro tinham parentes na capital.906 Broda lembra que o processo foi muito difícil, especialmente para a companheira, que “ia muito no escritório”: de acordo com a secretária ela era muito dedicada a Hilário e “ao acompanhamento do processo”.907 No processo, Eloar descreve as torturas e toda a via crucis pela qual passou Hilário Pinha, que havia sido resgatado da morte pelos “abnegados, ilustres e eficientes médicos militares”. Conforme escrevi em outra oportunidade, Guazzelli buscava “trazer à tona todas as agruras que a repressão impunha àqueles que divergiam do regime corrente” em um contexto “marcado por críticas ao regime e a repressão, exemplificado pelos movimentos derivados das mortes do jornalista Wladimir Herzog e do sindicalista Manoel Fiel Filho”.908 Este intuito foi possibilitado por uma documentação vinda dos médicos militares “que o receberam na capital paulista, praticamente moribundo”.909 Como afirmou José Mitchell, Hilário “entrou com ação de responsabilização contra a União, pelas torturas sofridas”, através do escritório de Eloar Guazzelli, iniciada por ele, porém levada adiante por seu filho, Carlos Frederico, quando Eloar assumiu a deputância, em 1979.910 O processo, que recebeu especial cobertura do jornalista da sucursal gaúcha do Jornal do Brasil, era uma ação declaratória que visava responsabilizar a União pelas torturas sofridas por Pinha entre 17 e 24 de abril de 1975.911 905 Idem, ibidem. BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 907 Idem. 908 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. “Os mutilados na Tribuna - as argumentações de Eloar Guazzelli em crimes políticos durante a abertura política (1975-1979)”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. Anais do XXVI simpósio nacional da ANPUH - Associação Nacional de História. São Paulo: ANPUH-RS, 2011, pp. 11 e 13. 909 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 3. 910 MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS publicações, 2007, p. 159. 911 MITCHELL, José. “Ex-preso mutilado responsabiliza União por torturas”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 118, 4 de agosto de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 8. José Mitchell já havia contado o caso no ano anterior: “Polícia gaúcha apura denúncia de torturas”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVII, nº 309, 15 de fevereiro de 1978, 1º Caderno, Nacional, p. 9. 906 221 Em 1981, o juiz da 2ª Vara Federal, Osvaldo Martins Alvarez deu ganho de causa a Hilário, o que foi confirmado com a decisão definitiva no ano seguinte.912 Assim, conforme Carlos Guazzelli, foi obtido “o reconhecimento da responsabilidade civil da União Federal pelas lesões corporais graves a ele infligidas durante sua prisão”.913 José Mitchell afirma que Hilário Pinha foi o primeiro preso político brasileiro a ganhar, de forma definitiva, uma ação de responsabilidade contra a União por torturas sofridas na prisão, antes mesmo da decisão final de caso semelhante e de maior repercussão, o do assassinato do jornalista Vladimir Herzog em São Paulo.914 Ao mesmo tempo, o processo possibilitou a denúncia da tortura e dos torturadores envolvidos. No final de 1982, Hilário, agora representado por Luiz Goulart Filho, entrou com uma ação indenizatória, obtendo o ganho cinco anos depois, sendo, naquele momento, um dos poucos a receber esta reparação.915 III.3. Velhos e jovens comunistas no meio dos advogados Percebe-se a partir de 1974 a presença de um jovem advogado no IARGS, o qual viria a ser muito presente na vida política nas décadas seguintes: Tarso Fernando Herz Genro. Ele havia solicitado o ingresso na sessão do dia cinco de junho de 1974, sendo aceito por unanimidade como sócio no dia dez de julho do mesmo ano.916 A presença de Genro marca a entrada neste âmbito de um grupo de jovens vinculados às esquerdas vindos do centro do estado, o chamado “pessoal de Santa Maria”. O grupo era articulado entorno da liderança de Adelmo Genro Filho, irmão de Tarso, e tinham origens no grupo Ala Vermelha do PCdoB.917 De acordo com a “Juiz condena a União por torturas a preso político no DOPS gaúcho há 6 anos”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXXI, nº 238, 2 de dezembro de 1981, 1º Caderno, Nacional, p. 7; “Justiça condena a União por tortura a preso político”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXXI, nº 347, 25 de março de 1982, 1º Caderno, Nacional, p. 5. 913 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 3. 914 MITCHELL, José. Segredos à direita e à esquerda na ditadura militar. Porto Alegre: RBS publicações, 2007, p. 159. 915 “O Sul tem nova ação”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXXII, nº 254, 18 de dezembro de 1982, 1º Caderno, Nacional, p. 5; “Hilário Pinha: a vitória final”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXXVI, nº 358, 5 de abril março de 1987, 1º Caderno, Nacional, p. 20. Na matéria de 1987 é mencionado que a viúva de Manoel Raymundo Soares, Elisabeth Chalupp Soares, também era uma das exceções. 916 “Ata da sessão ordinária do dia 05/06/74”, fls. 2; “Ata da sessão ordinária do dia 10/07/1974”, fls. 2. In: IARGS. Livro de Atas 1974-1976. Porto Alegre, 1976. 917 REIS, Eliana Tavares dos. Juventude, Intelectualidade e Política: Espaços de Atuação e Repertórios de Mobilização no MDB dos Anos 70. Porto Alegre: UFRGS, 2001, p. 115. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. 912 222 cientista política Eliana Tavares dos Reis, a principal característica reivindicada pelo grupo é a preocupação intelectual como dimensão organizadora de uma percepção política e ideológica que, por sua vez, se sustenta pela tentativa de associar uma postura indistintamente intelectual, cultural e filosófica como componentes indispensáveis da ação política.918 Este grupo reuniu-se dentro do Setor Jovem (SJ) do MDB santa-mariense, o que constituiu um fator homogeneazeador do grupo.919 Outro espaço de atividade do grupo foi o periódico Seminário de Informação Política, de Ijuí, que, em julho de 1976, transferiria-se para a capital com o nome Jornal de Informação.920 A publicação buscava ter “uma perspectiva de ‘combate à ditadura’, ‘defesa do socialismo’ e da ‘democracia’”. 921 Isto é perceptível nos anúncios do periódico no qual estão presentes escritórios de jovens advogados, em especial trabalhistas, que, ao longo das décadas de 1980 e 1990, iriam consolidar-se como grandes escritórios ao mesmo tempo que seriam fortemente atuantes no PT.922 O “pessoal de Santa Maria” defendia o fortalecimento do MDB como Frente Ampla, postura que manteriam após a reorganização partidária, relacionando-se com o IEPES e seu líder, André Forster.923 Apesar disso, na avaliação de Eliana Tavares dos Reis “o grupo manteve sempre no seu itinerário uma forte identificação interna entre seus membros e uma coesão nas suas estratégias”, buscando, principalmente, uma diferenciação com outros grupos já estabelecidos presentes no MDB, como os trabalhistas, os autênticos e os comunistas.924 Em alguns momentos, nota-se a relação entre os comunistas vinculados ao CEJUR e este grupo. Em primeiro lugar, eles compartilhavam com os pecebistas a concepção do MDB enquanto uma Frente Ampla e de sua necessidade para a redemocratização do país. Um indício desta proximidade é a nota do jornal Informação intitulada “Guazzelli e o Dops”, no qual se afirma que o advogado conseguiu uma 918 Idem, p. 117. Idem, p. 118. 920 Idem, pp. 121-4. 921 Idem, p. 126. Posteriormente o grupo fecharia o periódico, passando a atuar como sucursal do Movimento. 922 Jornal Informação, Porto Alegre, nº 8, 9 de setembro de 1976, p. 8. 923 REIS, Eliana Tavares dos. Juventude, Intelectualidade e Política: Espaços de Atuação e Repertórios de Mobilização no MDB dos Anos 70. Porto Alegre: UFRGS, 2001, p. 129. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. Eles entrariam no PMDB, formando a Tendência Popular e, clandestinamente, o Partido Revolucionário Comunista. 924 Idem, pp. 130 e 141. 919 223 absolvição em Bagé desqualificando a confissão obtida no DOPS.925 Eloar teria afirmado que conhecia o Departamento “porque era advogado de uns subversivos, segundo a polícia” e que sabia “o que é uma confissão no Dops e isso não serve para provar nada, pois lá um homem diz o que for preciso para salvar o que resta de sua vida”.926 Em entrevista, Honório Peres mencionou a aproximação de Tarso Genro em relação aos advogados cejuristas no momento em que ele se instalou na capital gaúcha. Peres fala que neste momento Tarso teria sido indicado para fazer parte do grupo dos comunistas, o que teria sido influenciado por seu pai, Adelmo Simas Genro, identificado como “comunista”.927 De acordo com Peres, “Eu convidei ele para participar do CEJUR, mas ele não veio. Ele era independente. Ele queria ser o líder”.928 Na entrevista é perceptível uma postura “ranzinza” em relação à figura de Tarso Genro, derivada, principalmente, do advogado não ter se vinculado de forma orgânica ao CEJUR, buscando atuar de forma mais autônoma. Vendo a trajetória do “pessoal de Santa Maria” faz sentido que eles buscassem uma maior independência em relação a outros grupos, mas isto foi visto com maus olhos pelos “velhos” comunistas. No caso de Peres, estas reservas mantiveram-se até o momento da entrevista: apesar de mencionar que estava fazendo campanha para a reeleição de Tarso para governador, ele o descreve de forma muito desconfiada e cética. Mesmo assim, Genro e o “pessoal de Santa Maria” tinham algumas aproximações com os advogados do PCB. Genro, por exemplo, iria utilizar os meios jurídicos para consolidar seu “nome” no meio político, tanto como advogado “de “Guazzelli e o Dops”. In: Jornal Informação, Porto Alegre, nº 8, 9 de setembro de 1976, p. 2. Idem, ibidem. 927 PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre. É digno de nota que o nome de Tarso surgiu de forma espontânea na entrevista, uma vez que esta foi realizada próxima da eleição de 2014, na qual ele concorria pelo PT contra José Ivo Sartori (PMDB). O peemedebista também foi citado por Peres, uma vez que havia obtido o apoio do PCB em sua eleição no final da década de 1970. 928 Idem. Omar Ferri também queixou-se da independência de Genro, quando narrou que havia sugerido que ele assumisse a presidência de um diretório do PMDB, ao que ele respondeu que sairia do partido “liderado por um Simon, um burguesão!”. Neste momento Tarso Genro e seu grupo haviam formado o Partido Revolucionário Comunista (PRC) e estavam indo para o PT. FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 31; REIS, Eliana Tavares dos. Juventude, Intelectualidade e Política: Espaços de Atuação e Repertórios de Mobilização no MDB dos Anos 70. Porto Alegre: UFRGS, 2001, p. 132 Dissertação de Mestrado em Ciência Política. OSÓRIO, Pedro Luiz da Silva. Partido Revolucionário Comunista (PRC) : trajetória e contribuições para o PT. Porto Alegre: UFRGS, 2012. Tese de Doutorado em Ciência Política. 925 926 224 esquerda” quanto nos espaços classistas, como o IARGS.929 Conforme consta na ata da OAB/RS de dez de março de 1981, ele havia participado da chapa vencida na eleição realizada no ano anterior, junto de nomes como Índio Vargas, Justino Quintana e Luiz Goulart Filho, conseguindo entrar no Conselho Seccional no final de 1982, por indicação do Instituto.930 III.4. Advogados no meio da política (II): as entidades classistas dos advogados entre 1976 e 1977 Na primeira sessão de 1976 do IARGS, assumiu a presidência Ruy Rodrigo Brasileiro de Azambuja, que havia sido o 2º Vice-Presidente no biênio anterior e, como vimos, comandado a maioria das sessões de 1975.931 É digno de nota que, entre as autoridades da mesa, consta na ata a presença de Justino Vasconcelos, como presidente da OAB/RS, e o “Doutor Comendador Júlio Teixeira”.932 Estas menções indicam que neste biênio a relação entre as entidades manteve-se próxima, ao mesmo tempo em que evidencia o prestígio que Teixeira tinha, que não havia sido maculado pela prisão do ano anterior. Mesmo os comunistas não estando tão ativos no biênio 1976-1977, neste momento entram no IARGS nomes vinculados a eles. Um exemplo é o advogado Adelmo Simas Genro, que foi aprovado para ser sócio em dezenove de maio de 1976.933 Já em 1977, o advogado e poeta comunista Deburgo de Deus Vieira solicitou para fazer 929 Ao longo da década de 1980 o escritório de Tarso Genro foi consolidando-se como defensores de sindicatos em ações trabalhistas ao mesmo tempo em que ele continuou participando das entidades classistas, chegando a ser Vice-Presidente do IARGS no biênio 1986/1987, e membro do Conselho Seccional da OAB/RS em 1983/1984. MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz (org). Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul - 60 anos de existência. Porto Alegre: IARGS, 1986, pp. 85 e 95. 930 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 10 de março de 1.981”, fls. 2. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982; IARGS. “Ata do Conselho Superior do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul de 15/10/82”. In: Maço de documentos avulsos. 931 “Ata da sessão solene do dia 28 de abril de 1976, do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul”. In: IARGS. Livro de Atas 1976-1978. Porto Alegre, 1978. 932 Idem. 933 “Ata da Assembléia Geral Ordinária do dia 19 de maio de 1976”. In: IARGS. Livro de Atas 19761978. Porto Alegre, 1978. Ele, que era pai de Tarso Genro e de Adelmo Genro Filho, havia sido vereador e vice-prefeito de Santa Maria pelo PTB, é identificado por Honório Peres como relacionado ao CEJUR e Sergio Weibert como comunista. PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre. REIS, Eliana Tavares. Juventude, Intelectualidade e Política: Espaços de Atuação e Repertórios de Mobilização no MDB dos Anos 70. Porto Alegre: UFRGS, 2001, p. 116.(Dissertação de Mestrado em Ciência Política. 225 parte do Instituto.934 Ainda neste ano entrariam para o sodalício os não-cejuristas Caio Lustosa e Leônidas Xausa, que teriam forte atuação política nos anos seguintes.935 A proximidade entre a Ordem e o Instituto é perceptível em alguns momentos desta gestão. Um exemplo é a solicitação da OAB/RS, registrada na ata do IARGS da Assembleia Geral Ordinária de dezenove de maio de 1976, de que se formasse uma comissão conjunta para “elaborar estudos sobre o novo Código de Organização Judiciária”, o que foi aprovado.936 Ainda em 1976, Justino Vasconcelos, então presidente da OAB/RS, foi indicado para a medalha Oswaldo Vergara. 937 No ano seguinte, a Semana do Advogado seria organizada através de parceria entre as entidades.938 Nestes anos percebe-se a presença de alguns debates e ações do Instituto que se relacionam com os anos anteriores. A temática dos direitos humanos ainda estava presente, sendo que Marcus Melzer ficou com a presidência do Instituto respectivo.939 Já a sessão do dia trinta de junho de 1976 foi marcada por dois registros dignos de nota: o debate, trazido por Ecilda Haensel, sobre a possibilidade da criação da Justiça Agrária, e o evento promovido pelo Instituto sobre o Bicentenário da Independência dos Estados Unidos, que contaria com as palestras dos senadores Teotônio Vilela, da Arena, e Paulo Brossard, do MDB.940 Esta promoção foi elogiada pelo “elevado grau” das falas dos senadores em ata pelo conselheiro da seccional gaúcha da Ordem Jorge Krieger de Mello, o que mostra a proximidade entre as entidades nestes anos.941 “Ata da reunião do dia quinze de junho de mil novecentos e setenta e sete”. In: IARGS. Livro de Atas 1976-1978. Porto Alegre, 1978. Ele era membro do PCB (havia sido candidato pela legenda em 1947) e, de acordo com Peres, participava do CEJUR. “VIEIRA, Deburgo de Deus”. In: MARÇAL, João Batista; MARTINS, Marisângela. Dicionário ilustrado da esquerda gaúcha – Anarquistas, Comunistas, Socialistas e Trabalhistas. Porto Alegre: Libreto, 2008, p. 140; PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre. 935 “Ata da reunião do dia seis de julho de mil novecentos e setenta e sete”, fl. 1; “Ata da reunião do dia dezesseis de novembro de mil novecentos e setenta e sete”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 1976-1978. Porto Alegre, 1978. Lustosa ficaria identificado com os movimentos ambientalista e de defesa dos povos indígenas e Xausa, que havia sido expurgado da UFRGS em 1969, teria forte presença na OAB/RS. 936 “Ata da Assembléia Geral Ordinária do dia 19 de maio de 1976”. In: IARGS. Livro de Atas 19761978. Porto Alegre, 1978. 937 “Ata da sessão ordinária do dia 18 de agosto de 1976”. In: IARGS. Livro de Atas 1976-1978. Porto Alegre, 1978. 938 “Ata da reunião do dia vinte e dois de junho de mil novecentos e setenta e sete”. In: IARGS. Livro de Atas 1976-1978. Porto Alegre, 1978. 939 “Ata da Assembléia Geral Ordinária do dia 19 de maio de 1976”. In: IARGS. Livro de Atas 19761978. Porto Alegre, 1978. 940 “Sessão ordinária do dia 30 de junho de 1976”. In: IARGS. Livro de Atas 1976-1978. Porto Alegre, 1978. 941 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada no dia 16 de julho de 1976”, fls. 3 In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 934 226 Dando prosseguimento ao curso desenvolvido na gestão anterior, Luiz Luisi participou de dois eventos relacionados com direito penal: em 1976 ele representou o IARGS em Curso de Especialização em Ciências Penais na UFRGS e, no ano seguinte, organizou simpósio sobre reforma penal.942 Foi ainda registrado em ata que Luisi havia manifestado “da sua insatisfação com a recente Portaria do Ministério da Justiça impondo censura prévia às publicações vindas do exterior, constituindo autêntico retrocesso inadmissível”.943 Durante os anos 1976 e 1977 percebe-se uma presença mais ativa dos comunistas na Ordem do que no Instituto. Na ata da sessão extraordinária do dia dezesseis de julho de 1976, por exemplo, Júlio Teixeira foi escolhido como presidente de uma das Comissões de Ética e Disciplina, além de integrar a comissão que escolhia os ganhadores da Medalha Osvaldo Vergara.944 Entre os homenageados estavam o governador e o vice, Synval Guazzelli e Amaral de Souza, da Arena, e os emedebistas João Carlos Gastal (presidente da Assembleia Legislativa) e Paulo Brossard.945 Como apontei, os dois parlamentares haviam se pronunciado publicamente nos anos anteriores em prol de demandas dos advogados: Gastal no embate ao Decreto 74.000 e Brossard, além de participar de eventos organizados pelas entidades dos advogados, na denúncia das prisões dos comunistas em 1975. Na eleição do Conselho Seccional, realizada em novembro de 1976, Eloar Guazzelli foi eleito junto de seus companheiros de gestão no IARGS Ruy Rodrigo Brasileiro de Azambuja, Antonio Martins Costa Neto, Marcus Melzer e Otávio Caruso da Rocha, além de Leônidas Xausa, enquanto que o decano dos advogados comunista, Júlio Teixeira, foi indicado pelo Instituto.946 Justino Vasconcelos foi reconduzido ao cargo de Presidente, Paulino Vargas Vares foi eleito Vice-Presidente e George Tenório Noronha como 1º Secretário, Guazzelli ficou destacado para a Comissão de Seleção e “Ata da sessão ordinária do dia 18 de agosto de 1976”; “Ata da reunião do dia vinte e nove de junho de mil novecentos e setenta e sete”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 1976-1978. Porto Alegre, 1978. 943 “Ata da reunião do dia vinte e nove de junho de mil novecentos e setenta e sete”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 1976-1978. Porto Alegre, 1978. 944 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada no dia 16 de julho de 1976”.In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 945 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada no dia 3 de agosto de 1976”, fls. 4.In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 946 “Ata da sessão extraordinária do Conselho realizada no dia 1º de fevereiro de 1977”.In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 942 227 Prerrogativas e Teixeira na Comissão de Ética e Disciplina.947 Percebe-se ainda a presença dos jovens Nereu Lima e Tarso Genro, indicados para substitutos. 948 Já o consagrado Raymundo Faoro foi eleito para o Conselho Federal e, na sessão seguinte, ficou registrado em ata que Vasconcelos “informou os entendimentos a que procedeu no Rio de Janeiro, por convocação do Conselho Federal, visando à eleição da candidatura” do escritor para presidente do Conselho Federal.949 Em 1º de abril de 1977, Faoro disputou com o baiano Josaphat Marinho, que também era conhecido por sua atuação “fora dos meios jurídicos”: enquanto que o gaúcho era conhecido por sua obra, Marinho foi senador entre 1963 e 1971, sendo um dos fundadores do MDB. 950 A eleição foi apertada, sendo que Faoro foi eleito em segundo escrutínio por 13 a 11 votos: a escolha teria sido feita pois o Conselho teria optado por uma figura menos vinculada à política partidária.951 A vitória seria registrada na ata da sessão do dia cinco de abril, sendo afirmado que Justino Vasconcelos “comunicou que o novo Presidente do Conselho Federal eleito foi o Doutor RAYMUNDO FAORO, para cuja eleição esta Seccional envidou os melhores esforços”.952 947 Idem, fls. 2. Na última sessão de 1976, Vasconcelos havia renunciado ao cargo, assumindo em seu lugar Walter Becker; na ocasião foi feito um voto de louvor por parte do Conselho a Justino. “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada no dia 27 de dezembro de 1976”. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 948 “Ata da sessão extraordinária do Conselho realizada no dia 1º de fevereiro de 1977”, fls. 3.In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. Ainda como substituto consta Luiz Lopes Burmeister, advogado trabalhista que havia sido presidente da Associação Gaúcha dos Advogados Especialistas em Direito do Trabalho (AGETRA), em 1973. Nesta entidade percebe-se a presença de jovens advogados trabalhistas vinculados às esquerdas, como Genro, que seria presidente em 1978. O escritório de Burmeister e Luiz Carlos Calachi Moraes estão entre os anunciantes do Jornal Informação, o que mostra sua identificação com o grupo o “pessoal de Santa Maria”. http://www.agetra.adv.br/historia/; http://www.oabrs.org.br/noticia-8982-lamachia-prestigia-aniversario40-anos-da-agetra; Jornal Informação, Porto Alegre, nº7, 2 de setembro de 1976, p. 9; Jornal Informação, Porto Alegre, nº8, 9 de setembro de 1976, p. 9; Jornal Informação, Porto Alegre, nº10, 23 de setembro de 1976, p. 8; Jornal Informação, Porto Alegre, nº14, 21 de outubro de 1976, p. 8; Jornal Informação, Porto Alegre, nº23, 27 de fevereiro de 1977, p. 12. 949 “Ata da sessão extraordinária do Conselho realizada no dia 1º de fevereiro de 1977”, fls. 3; “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 22 de março de 1977”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980 950 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 159. 951 Idem, p. 160. Motta e Dantas mencionam que Elio Gaspari teria ainda vinculado a escolha por Faoro ter uma imagem mais amena em relação ao regime, uma vez que ele teria votado favoravelmente ao arquivamento do caso de Stuart Angel no Conselho de Defesa da Pessoa Humana, o que foi rebatido por José Cavalcanti Neves afirmando que Faoro não estaria presente na sessão. 952 “Ata da sessão ordinária do Conselho Seccional, realizada no dia 05 de abril de 1977”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. Ainda sobre a participação dos comunistas, o conselho seccional realizou sessão extraordinária em desagravo ao advogado comunista Walter Graeff de Carazinho, por ter sido ofendido por um juiz. “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 4 de outubro de 1977”. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 228 Percebem-se nas atas de 1976 e 1977 registros de posicionamentos públicos da OAB/RS em relação à defesa dos advogados. Um exemplo é a menção na ata de sete de dezembro de 1976 da visita do Presidente Justino Vasconcelos a Curitiba, “quando efetivou a defesa de um advogado inscrito nesta Seccional, obtendo a cconcessão [sic] de Habeas-Corpus redigido pelo Dr. AMADEU WEIMMANN”.953 Outra questão semelhante foi o debate, realizado em diversas sessões de 1977, a respeito da entrada de advogados nos Cartórios, que vinha sendo impedidos.954 Nas atas destes anos há, ainda, a menção de posturas políticas de oposição à ditadura, mesmo que de forma sutil. Este é o caso da ata da sessão do dia sete de dezembro de 1976, na qual consta o requerimento do Conselheiro Walter Tschiedel de “um voto de pesar pelo passamento do Bacharel e ex-Presidente da República, Dr. JOÃO BELCHIOR MARQUES GOULART: - aprovado, por unanimidade”, o que denota um respeito pelo governante deposto e falecido no exílio.955 Já na ata sessão de seis de dezembro de 1977, ficou registrado que o conselheiro Paulo Pinto de Carvalho havia visitado o cidadão brasileiro , Sr. FLAVIO KOUTZII, preso político, na cidade de La Plata, encontrado em boas condições físicas e psíquicas. O Conselheiro WALTER TSCHIEDEL relatou que o Presidente do Conselho Federal em sua última visita a Porto Alegre, manifestou sua decisão de encontrar fórmula que permita a prestação de assistência não só aos presos políticos, mas também às suas famílias.956 Nesta passagem vemos um esboço da campanha pela volta de Flávio Koutzii, que seria lançada formalmente em março de 1979.957 Junto da mobilização pelo retorno de Flávia Schilling, que estava no Uruguai, seria uma marca da campanha pela Anistia no Rio Grande do Sul.958 Nelas o papel dos familiares, em especial das mães dos presos, foi importante, o que provavelmente fez com que fosse feito o registro de Tschiedel. “Ata da sessão ordin´ria [sic] do Conselho, realizada no dia 07 de dezembro de 1976.”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 954 “Ata da sessão ordinária do Conselho Seccional, realizada no dia 05 de abril de 1977”, fls. 2; “Ata da sessão ordinária do Conselho realizada em 5 de julho de 1977”, fls. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 955 “Ata da sessão ordin´ria [sic] do Conselho, realizada no dia 07 de dezembro de 1976”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 956 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 6 de dezembro de 1977”, fls. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 957 RODEGHERO, Carla Simone; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e irrestrita: História de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011, p. 169. 958 RODEGHERO, Carla Simone; GUAZZELLI, Dante Guimaraens; DIENSTMANN, Gabriel. Não Calo, Grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, p. 140. 953 229 Nesta passagem, pode-se perceber, assim, o surgimento da figura das famílias dos presos políticos na cena pública, envolvidos na luta pela Anistia e pelo esclarecimento dos crimes cometidos pela ditadura. Ao mesmo tempo, as atas destes anos indicam a presença de debates na OAB/RS, os quais que apontam para tensões existentes entre as diferentes visões políticas dos conselheiros. Foi o caso do extenso debate referente à proposta do conselheiro Walter Tschiedel, registrada na ata de sete de dezembro de 1976, de voto de louvor ao Ministro do STF João Leitão de Abreu “relativo à proibição de cidadãos submetidos a processo criminal ficarem impedidos de se candidatarem a postos eletivos no País e que fosse dada pela OAB/RS, ampla divulgação daquele voto”.959 Assim, Walter Tschiedel propôs louvor ao voto vencido do Ministro do STF, o que recebeu a aprovação dos conselheiros Leônidas Xausa e Pedro Lairihoy, reforçando “a injustiça da decisão em virtude de preceito Constitucional de que todos se presumem inocentes, enquanto não houver condenação transitada em julgado”.960 Já o conselheiro Walter Becker fez proposta contrária, apontando que o artigo nº 145 da Lei nº 4.215/63, que dispunha sobre o Estatuto da OAB, proibia “tais manifestações”, ressaltando que havia diferença entre a “atuação do integrante do Conselho, como advogado e como Conselheiro”.961 Como o tido artigo proibia os órgãos da Ordem de discutirem assuntos de natureza pessoal, política ou religiosa, percebe-se que Becker apontava que este tema não era uma questão de constitucionalidade e sim política e, desta forma, fora da alçada do Conselho “Ata da sessão ordin´ria [sic] do Conselho, realizada no dia 07 de dezembro de 1976”, fls. 1-2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. Em setembro daquele ano, no Tribunal Superior Eleitoral, Leitão de Abreu havia votado contrário à inelegibilidade de candidatos que tivessem algum processo iniciado baseando-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, vencendo naquela instância. Porém, no final daquele ano, foi derrotado no STF quando tentou derrubar o dispositivo da Emenda Constitucional nº 5 que permitia esta manobra. O gaúcho de Cachoeira do Sul, João Leitão trabalhou no Governo do Rio Grande do Sul durante os governo de Walter Jobim (1947-1951) e de Ildo Meneghetti (1963-1967), posteriormente contribuindo com peças jurídicas para a ditadura civil-militar (como no Ato Institucional nº 2 e 12). Em 1969, assumiu como chefe de Gabinete Civil da Presidência da República do Governo Médici (1969-1974). Em 1974, assumiu como Ministro no STF, pronunciando votos contrários aos interesses da ditadura, como no caso do deputado baiano do MDB Francisco Pinto e o caso mencionado aqui. “Verbete João Leitão de Abreu” In: ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro: FGV, 2010. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo. 960 “Ata da sessão ordin´ria [sic] do Conselho, realizada no dia 07 de dezembro de 1976”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 961 Idem, ibidem. 959 230 Seccional.962 A seguir, Justino Vasconcelos propunha que o voto fosse publicado no órgão oficial da OAB/RS, “Valorização”.963 O Conselheiro George Tenório Noronha mesmo que “ressaltando o apreço pelo eminente ministro prolator do voto”, foi contrário às propostas de Vasconcelos e Tschiedel, frisando, como Becker, as conotações políticas que iam de encontro ao artigo 145.964 Na mesma linha foi Paulo Pinto de Carvalho, afirmando que, “a seu ver, seria, pelo menos, uma deselegância por parte deste Conselho, uma vez que não se pode esquecer os votos vencedores e, ainda, que toda questão jurídica envolve questão política, como já disse o grande RUI BARBOSA, em Haia, em 1907”, ao que foi retorquido por Lairihoy que afirmou que era preciso ter coragem relembrando o caso DREYFUS, sendo retrucado pelo Conselheiro PAULO PINTO DE CARVALHO, esclarecendo que coragem jamais lhe faltava, porém, esqueciam-se os votos vencedores e o Acórdão 965 Seguindo a linha de Carvalho, Marcus Melzer declarou que se fosse publicado o voto, deveria “ser publicado também o Acórdão”.966 Posteriormente, ficou registrado que o Conselheiro Anísio Freitas julgou “que o assunto é eminentemente político e portanto não deve ser aprovada a proposição”, Justino Vasconcelos era “inteiramente favorável à proposição, por tratar-se de um ex-Conselheiro desta Casa”, Archimedes Antônio da Silva Almeida afirmava que “não podemos nos pronunciar pela aprovação, fazendo a distinção entre as figuras do Conselheiro e do Advogado” e Xausa e Melzer reforçavam suas posições. 967 Finalmente foi passada para a votação, coordenada por Paulino de Vargas Vares na presidência interina, sendo aprovada, por onze votos a sete “a proposição do Conselheiro WALTER BECKER, contrária ao voto de louvor- e a publicação requeridos”.968 Optei por mostrar de forma mais pormenorizada este debate pois penso que ele retrata algumas questões relevantes sobre a seccional gaúcha da OAB neste período. “Anexo II – Lei nº 4.215 de 27 de abril de 1963 que dispõe sobre o Estatuto de Ordem dos Advogados do Brasil e regula o exercício da profissão do advogado”. In: MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 329. 963 “Ata da sessão ordin´ria [sic] do Conselho, realizada no dia 07 de dezembro de 1976”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976. 964 Idem, ibidem. 965 Idem, ibidem. O “Caso Dreyfus” foi um caso envolvendo um oficial do exército francês judeu acusado injustamente de ser espião. 966 Idem, ibidem. 967 Idem, ibidem. 968 Idem, fls. 3. 962 231 Inicialmente, chama a atenção o fato de que um “voto de louvor” tenha gerado tanto debate, enquanto o de pesar a João Goulart, também proposto por Tschiedel na ocasião, foi anotado sem indício de problematização. Além disso, o registro perpassou três das seis laudas da ata, o que é impressionante quando se tem em mente que, em média, as atas da entidade aqui analisadas tinham entre três e quatro páginas. No debate vemos Tschiedel, Xausa, Lairihoy e, em certa medida, Vasconcelos, buscando aprofundar uma posição da Ordem sul-rio-grandense contra a ditadura em uma luta na esfera jurídico-política. Já Becker, Noronha, Carvalho, Freitas e Almeida questionam o caráter político do voto de louvor, o que, em outros casos semelhantes, não ocorreu. É digno de nota, neste sentido, o trecho em que Paulo Pinto de Carvalho e Pedro Lairihoy confrontam-se sobre a distinção entre o jurídico e o político, ao que Lairihoy traz o “caso Dreyfus” como exemplo de momento em que foi necessária a coragem para se opor ao um meio jurídico corrompido pela política. Ao comparar as situações o conselheiro está fazendo, de forma sutil, uma crítica ao sistema jurídico da ditadura, mostrando que este também era um momento de desvirtuamento do judiciário. O que este rastro deixado na ata mostra é que o voto a Leitão de Abreu motivou uma discussão na qual podemos ver além da conciliação promovida pela “engenharia política” que unia advogados de setores diversos. Vale lembrar que Paulo Pinto de Carvalho participou da gestão de Eloar no IARGS e Walter Becker, Anísio Freitas, Archimedes Almeida, junto com Walter Tschidel, haviam se colocado como advogados de Júlio Teixeira no ano anterior. Este foi um momento em que os conselheiros fizeram questão de se posicionar. Se na prisão dos comunistas em 1975 o Conselho da OAB/RS colocou-se publicamente em nome das normas legais, aqui vemos que este tipo de posicionamento não era nem unânime nem pacífico. Comparando os casos nota-se que haviam semelhanças: se no ano anterior Justino Vasconcelos buscou defender direitos constitucionais, lutando contra a forma ilegal das prisões, em 1976 os defensores do voto de louvor ao Ministro baseavam-se na questão da presunção da inocência. Ao mesmo tempo é gritante o silêncio de comunistas como Teixeira e Guazzelli, que optaram por não se pronunciar na discussão. Uma discussão análoga está registrada na ata da sessão do dia sete de junho de 1977 motivada pela “leitura, pelo Conselheiro George Tenório de Noronha, de telex 232 recebido, do Conselho Federal, solicitando pronunciamento desta Seccional referente à solução do problema relativo à atual situação política do País, através de uma assembleia constituinte”, ao que foi constituída uma comissão formada por Ruy de Azambuja, Leônidas Xausa e Walter Tschiedel.969 Esta solicitação do Conselho Federal estava relacionada à reunião dos presidentes de secções que se realizaria em doze e catorze daquele mês e dizia respeito a busca de uma postura, por parte do recém-eleito presidente Raymundo Faoro, em relação à ditadura. De acordo com Marly Motta e André Dantas, logo após a eleição, o Conselho Federal encarregou os conselheiros Marcos Heusi (DF) e Sergio Bermudes (ES) de realizar um parecer sobre o “Pacote de Abril”, imposto pela ditadura que afetava diversas áreas. O parecer gerou um debate acalorado e foi considerado muito duro pelos outros conselheiros, sendo arquivado. Ao final da reunião dos presidentes foi feita a Declaração de São Paulo, na qual se clamava pela restauração do habeas corpus e do respeito dos direitos humanos e, nos meses seguintes, Faoro passa a negociar com o Senador Petrônio Portela estas questões. 970 Logo após a menção da leitura do parecer, o conselheiro George Tenório de Noronha fez ver a inconveniência da aprovação do pronunciamento, em face da insinceridade dos protestos e infiltração de elementos suspeitos em todos os setores, estudantil, religioso, etc…, minoria só interessada em agitar, radicais que nada constroem, concluindo contrariamente pela oportunidade do pronunciamento.971 De forma semelhante, Archimedes Almeida esclareceu a inegável conotação política da medida; que minoria aproveitam até a visita da Primeira Dama dos Estados Unidos, aqueles mesmos que bradavam “ americanos, GO HOME” e, finalmente, enquanto negro não for gente nos EEUU, não nos serve a Democracia Americana.972 Nota-se que os dois conselheiros acima, após denunciar o caráter político da medida, traziam um discurso anticomunista. No caso de Noronha percebe-se a menção a termos como “infiltração”, “radicais” e “agitar” que denotam sua origem militar e seu “Ata da sessão ordinária do Conselho realizada em 7 de junho de 1977”, fls. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 970 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 161-3. 971 ““Ata da sessão ordinária do Conselho realizada em 7 de junho de 1977”, fls. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 972 Idem, ibidem. 969 233 vínculo com a Ideologia de Segurança Nacional , enquanto que a manifestação de Almeida ficou um tanto confusa. Após estes pronunciamentos é mencionado na ata que Anísio Freitas, Rovílio Breda, Walter Tschiedel, Sérgio Juchem e os comunistas Júlio Teixeira e Eloar Guazzelli colocaram-se favoráveis ao parecer, “em face de julgarem necessária a volta do Estado de Direito, do respeito aos Direitos Humanos e, ainda, assegurar-se em sua plenitude o instituto do “ habeas-corpus””.973 Já Luiz Luisi fez questão de pormenorizar seu voto: inicialmente ele afirmou que a “matéria em discussão não é política no sentido estrito, mas institucional”, o que permitia, para ele que o conselho se manifestasse, porém, divergia no mérito da questão. Ele se posicionava contra a ideia de que “a convocação de uma Assembléia possa se constituir a panacéia para todos os males nacionais” pois achava que “o que se faz necessário não é entregar o destino de cada um de nós, e do País, a uma Assembléia que pode vir a ser constituída por uma maioria reacionária incapaz de refletir os mais autênticos anseios da coletividade”.974 Assim, para Luisi, a correta posição é lutar para que se organize constitucionalmente a nação, tendo como princípio e fim o homem, a inviolabilidade da pessoa humana. Não um Estado omisso, garantidor dos “Direitos Humanos” de uma plutocracia de multinacionais. Mas um Estado atuante voltado para a efetiva relativa de todas as potencialidades da pessoa humana, assegurando-lhe, em termos concreto, os seus direitos, desde os mais elementares como a garantia da integridade corporal e da vida física, da alimentação e do vestuário, isto é, libertando o homem do medo e da fome, até os hierarquicamente mais significativos como os direitos à educação, à cultura ou participação na vida política, etc… Mais importante que a vontade de maiorias transitórias é a dignidade axiologicamente prioritária do homem enquanto pessoa, isto é, fim em si mesmo. No entanto, o aplauso é integral ao pronunciamento do Conselho Federal, quanto reivindica a plenitude do Habeas-corpus. Realmente, a exclusão do Habeas no concernente aos delitos contra a segurança nacional é totalmente injustificada. O Estado dispõe de uma Justiça especial, bem aparelhada, e sem excesso de serviço com competência para processar e julgar tais crimes. E a aplicação das normas comuns do processo penal militar fornece os meios para a correta proteção, neste momento da vida brasileira, das instâncias de segurança das instituições políticas e sociais. Por fim entendo que a convocação fazer-se [sic] é a da inteligência brasileira, isto é dos estudiosos de matéria política e institucional, bem como dos que têm uma experiência vivida destes problemas, e sejam realmente sérios e capazes, para que se achem em 973 974 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 234 termos realmente viáveis, e não demagógicos e de compromisso, as soluções para a nossa problemática constitucional.975 A partir do voto do conselheiro é mencionado, por primeira vez, o principal teor da proposta feita pela comissão: esta bradava pelo restabelecimento do habeas corpus, pelo respeito ao Estado de Direito e os direitos humanos e chamava para uma Assembleia Constituinte. Luisi, ao mesmo tempo, buscou deixar bem clara sua posição, demonstrando que se opunha à situação política daquele momento, porém achava que uma constituinte naquele momento não seria adequada. Nota-se, também, que ele reforça a necessidade dos direitos humanos, visto como algo que garantiria tanto direito à alimentação, integridade física, saúde, educação, cultura e participação política, ou seja, em todas suas dimensões. Percebe-se aqui que direitos humanos não são vistos simplesmente como os de primeira ou segunda geração, mas uma união deles. Neste sentido é digna de nota a contraposição que ele faz entre a defesa destes direitos e dos direitos de “uma plutocracia de multinacionais”, o que dá uma dimensão de denúncia da situação econômica do período. Isto referia-se, provavelmente, a uma desconfiança em relação a defesa dos direitos humanos que era levada adiante pelo governo do presidente Jimmy Carter, o que seria, de acordo com esta visão, uma camuflagem para uma nova intervenção dos interesses econômicos estadunidenses no Brasil. Em seguida, houve a manifestação de Marcus Melzer que era contrário à proposta, já que era “de natureza genuinamente política, matéria sobre a qual o Estatuto, no art° 145, veda pronunciamento da Ordem”, afirmando que careciam os conselhos da Ordem “de credencias para falar pela classe sobre matéria estranha à sua competencia legal, como a de que ora se cogita, e que, de resto, por polêmica e controvertida, não é pacífica em seu seio”.976 Percebe-se que o conselheiro, diferentemente de Noronha e Almeida, buscou explicitar sua opinião de forma mais abalizada, sem recorrer a um discurso mais ideológico. Estas características de Melzer, como apontarei nas páginas seguintes, o colocarão em trincheiras um tanto inusitadas para um conservador que havia sido ex-deputado da UDN. Ao final do debate foram feitas duas votações: a preliminar, para decidir se era válida ou não a discussão da matéria pela Ordem, foi “aprovada por 12 votos contra 3, 975 976 Idem, fls. 3-4. Idem, fls. 4. 235 estes dos Conselheiros George Tenório de Noronha, Archimedes A.S. Almeida e Marcus Melzer” e a segunda Quanto ao MÉRITO, igualmente foi aprovada a redação da Comissão por 11 votos contra 4, estes dos Conselheiros George Tenório de Noronha, Archimedes A. S. Almeida, Marcus Melzer e Luiz Luisi, em parte, devendo os Senhores Conselheiros oferecer subsídios para complementá-la e melhorá-la.977 Nota-se, assim, que houve um questionamento por parte de alguns conselheiros mais conservadores sobre a possibilidade da Ordem se pronunciar sobre o assunto por considerá-la uma demanda “política”. O Conselho Seccional já vinha se pronunciando publicamente em temas “políticos”, uma vez que se partia da ideia de que a entidade deveria defender a princípios democráticos e legais. Aqui, para os três conselheiros, esta argumentação não cabia. Comparando os dois debates tratados, vemos que Anísio Freitas, que havia sido contrário ao voto de louvor a Leitão de Abreu em 1976, no ano seguinte pronunciou-se favorável ao parecer, assim como provavelmente fizeram Walter Becker e Paulo Pinto de Carvalho.978 Ao mesmo tempo, é digno de nota que a proposta da comissão consta na ata de forma indireta, através das argumentações dos conselheiros, em especial o voto de Luisi. Pode-se depreender, portanto, que o parecer de Azambuja, Xausa e Tschiedel defendia a volta do Estado de Direito, o respeito aos direitos humanos, a restauração do habeas corpus para todos os crimes e uma Assembleia Constituinte. Vê-se que os “direitos humanos”, em 1977, já estavam entre as principais demandas por parte da Ordem. A partir da argumentação de Luisi pode-se deduzir que os direitos humanos – já não mais denominados como “direitos do homem” ou “da pessoa humana” – eram vistos além dos direitos civis, como o de julgamento justo e inviolabilidade do corpo, chegando aos políticos, econômicos e culturais. A enfática adesão dos comunistas Teixeira e Guazzelli à proposta deveria estar relacionada com a postura do PCB neste momento. Conforme aponta a historiadora Anita Leocádia Prestes em Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (1958-1990), o Comitê Central do partido em dezembro de 1977 lançou uma Resolução Política que defendia “a necessidade de desenvolver a campanha pela Constituinte “livre e democraticamente eleita””.979 977 Em maio do ano seguinte, a Idem, fls. 4-5. Dos onze que votaram a favor, apenas seis se pronunciaram. 979 PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (19581990). São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 212. 978 236 Comissão Executiva do PCB lançaria uma nota na qual clamava novamente por uma Assembleia Constituinte, que deveria ser precedida por algumas medidas, como anistia ampla e irrestrita, fim da legislação de exceção e restabelecimento do habeas corpus, além da liberdade partidária e sindical.980 III.5. Desculpa, mas eu sou um cara muito conhecido em Porto Alegre, entende? – a atuação de Werner Becker em diferentes áreas Uma questão reforçada por Werner Becker em entrevista concedida para esta pesquisa é o fato de seu “nome” ser “conhecido em vários setores” da sociedade portoalegrense, o que significa que era atuante em outras áreas que não somente a advocacia.981 Conforme Becker relatou em entrevista, Porque que eu fazia muita coisa, entende? Assim, e que tinha repercussão. Desculpa, mas eu sou um cara muito conhecido em Porto Alegre. Entende? (…) Eu tinha uma vida, assim de noite, intensa. Sei lá, um pouco até do folclore da cidade, algumas histórias minhas, não sei...982 Assim, ele vincula a construção de seu reconhecimento não somente a atividade profissional com os crimes políticos. Um exemplo da construção de seu “nome conhecido” é a menção a ele na coluna social do Jornal do Brasil, na coluna “Hóspedes da cidade”, na qual é mencionado que Becker estava no Hotel Ambassador.983 Este registro mostra que o advogado era alguém conhecido e sua viagem era, de alguma forma, digna de menção. Uma área apontada por ele neste sentido foi sua atuação no Grêmio Foot-ball Porto Alegrense. Ele afirmou, na mencionada entrevista, que “era muito conhecido no Grêmio”, chegando a atuar como “advogado do Grêmio também”.984 Werner Becker, por exemplo, defendeu o lateral-esquerdo Everaldo em 1972. O jogador, tricampeão com a seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970, deferiu um soco no árbitro José Faville Neto durante o jogo contra o Cruzeiro em dezoito de outubro de 1972 pelo campeonato brasileiro. De acordo com a matéria do Jornal do Brasil de vinte e um de 980 Idem, p. 215. A Anita Prestes autora reforça a contrariedade de Luiz Carlos Prestes em relação a uma Constituinte em um horizonte próximo, algo semelhante a postura de Luiz Luisi. Idem, pp. 215-6. 981 BECKER. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 11. 982 Idem, p. 12. 983 “Hóspedes da cidade”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIII, nº 52, 30 de maio de 1973, 1º Caderno, p. 13. 984 BECKER. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 11. 237 outubro, Everaldo havia chegado na delegacia “com um sorriso forçado no rosto e visivelmente constrangido pelo assédio da imprensa” e foi conduzido para a sala do delegado.985 A ênfase na inadequação do jogador em relação à situação reforça uma característica frequentemente mencionada sobre ele: a simplicidade e a humildade.986 Ao mesmo tempo, conforme é relatado no Jornal, foi Werner quem falou com a imprensa, mostrando a imagem de um advogado atuante.987 No mesmo clube, Becker esteve à frente, em 1980, do Departamento de Xadrez, que promoveu naquele ano duas exibições com enxadristas soviéticos.988 Em vinte e quatro de agosto, o dissidente Viktor Korchonoi havia inaugurado o departamento disputando quarenta partidas simultâneas e, em seis de novembro, o campeão mundial Anatoli Karpov iria jogar em vinte tabuleiros.989 De acordo com a matéria do Jornal do Brasil de seis de novembro, esta seria a primeira vez que um campeão mundial de xadrez iria jogar no país.990 Nas reportagens do periódico sobre a vinda de Karpov, o nome de Werner Becker estava sempre presente. Nas entrevistas concedidas para esta pesquisa, Werner reforçou em diversos momentos sua proximidade com figuras de diferentes espectros políticos. Ele afirmou que defendeu “desde o Carlos Lacerda, até a dona Neuza Brizola. Ou seja, eu acho que eu sou o único brasileiro que foi no enterro do Lacerda e do Brizola”.991 Aliás, menção à proximidade com o golpista Carlos Frederico Lacerda, de quem reforça o afastamento ideológico, é algo que é frequente em seus relatos. “Everaldo depõe em sigilo”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXII, nº 184, 21 de outubro de 1972, 1º Caderno, Esporte, p. 24. 986 Um exemplo é a matéria: http://globoesporte.globo.com/rs/futebol/times/gremio/noticia/2014/09/familiares-e-amigos-mantembrilho-do-idolo-everaldo-eterna-estrela-gremista.html 987 “Everaldo depõe em sigilo”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXII, nº 184, 21 de outubro de 1972, 1º Caderno, Esporte, p. 24. 988 “Karpov vem ao Brasil pela 1ª vez”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 198, 23 de outubro de 1980, 1º Caderno, Esporte, p. 24; “Karpov se exibe em P. Alegre”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 212, 6 de novembro de 1980, 1º Caderno, Esporte, p. 22; “Karpov faz exibições no Sul mas vem ao Rio só para passear”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 213, 7 de novembro de 1980, 1º Caderno, Esporte, p. 23. 989 “Karpov vem ao Brasil pela 1ª vez”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 198, 23 de outubro de 1980, 1º Caderno, Esporte, p. 24. 990 “Karpov se exibe em P. Alegre”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 212, 6 de novembro de 1980, 1º Caderno, Esporte, p. 22. 991 BECKER. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 25 de setembro de 2012, em Porto Alegre, p. 13. 985 238 Becker afirma que ele o conheceu através do dono de um tabelionato que ficava no mesmo prédio de seu escritório, que o convidou para participar da sucursal da financeira presidida por Lacerda.992 De acordo com o advogado Aí ele [Carlos Lacerda] veio aqui uma, duas vezes, a gente se conheceu. Eu era bem mais moço, claro. E ele tomou-se de amores para mim, comigo. E sempre que vinha a Porto Alegre ligava e dizia: “Olha, convida o Werner”. Então eu virei advogado também do Carlos Lacerda..993 Provavelmente foi por esta proximidade que Werner atuou com o ex-político em um caso, em 1973, quando defendia o jornalista esportivo Cid Cabral. 994 Ele respondia processo movido pelo presidente da Federação Gaúcha de Futebol, Odacir Franca, que o acusava de calúnia por tê-lo chamado, em sua coluna, de “rábula de fim de linha”.995 Na matéria do Jornal do Brasil foi mencionado que “A sustentação da defesa foi feita pelo amigo do bacharel e diretor da Novo Rio, Sr. Carlos Lacerda”.996 Luiz Cláudio Cunha conta em seu livro sobre o sequestro dos uruguaios que, no início da década de 1970, Werner “tinha lugar cativo na mesa mais ilustre da intelligentsia nativa, que se remontava toda quinta-feira para um papo-cabeça e um santo almoço no Pagoda, endereço nobre da cozinha chinesa no início da avenida Protásio Alves”.997 Este era o grupo do periódico Pato Macho, do qual, como mencionei no capitulo anterior, o advogado fazia parte. Becker relaciona o periódico com setores do MDB, com o qual ele também tinha relações. Em 1975, Werner Becker concedeu uma entrevista ao jornal O Fluminense sobre as atividades da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), afirmando que a organização havia cometido três delitos.998 Segundo o 992 BECKER. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 10. Ele comentou que neste mesmo prédio ficava, ainda, o escritório de Carlos Araújo. 993 Idem, p. 10. De acordo com Werner, isto ocorreu durante o período em que o político esteve envolvido com a construção da Frente Ampla, entre 1966 e 1967. 994 “Lacerda no Sul defende jornalista. In: In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIII, nº 193, 18 de outubro de 1973, 1º Caderno, Nacional, p. 15. 995 Idem, ibidem. 996 Idem, ibidem. 997 Além do advogado, fazia parte dos convivas “o filósofo e jornalista Ruy Carlos Ostermann, o crítico de cinema e publicitário Hiron (Goida) Goidanich, o cronista esportivo e mandarim colorado Ibsen Pinheiro, o jornalista José Onofre e um promissor colunista da provícia chamado Luis Fernando Veríssimo, que se entrincheirava em um eloqüente silêncio do começo ao fim da ágape”. CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 208. 998 “Advogado gaúcho fala da situação da TFP”. In: O Fluminense, Niterói, Ano XCVIII, nº 2002, 18 e 19 de maio de 1975, 1º caderno, p. 2. Em meados deste ano a organização foi alvo de críticas e denúncias, em especial no Rio Grande do Sul, o que levou a criação de uma CPI na Assembleia Legislativa. Verbete Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Familia e Propriedade. In: ABREU, Alzira Alves de et al. 239 advogado, a TFP realizava atividade política fora dos partidos, o que era proibido pela lei eleitoral, agredia publicamente Estados e chefes de Estado de países com os quais o Brasil tinha relações diplomáticas, além de pregar a volta da monarquia.999 Prosseguindo na sua argumentação , o advogado Werner Becker diz que também “causa surpresa que a atividade delituosada (sic) TFP não tenha recebido ainda a investigação e a repressão das autoridades policiais e judiciárias que zelam pela segurança nacional”. E que “causa mais espanto ainda essa omissão, quando prestigiosos líderes militares brasileiros têm advertido nos últimos tempos, contra a subversão, quer de direita, quer de esquerda, não fazendo nenhuma diferença em sua periculosidade”.1000 Assim, além de apontar para as ilegalidades do grupo, Becker comparou o tratamento dados a grupos de esquerda e de direita, mostrando a leniência que eram tratados os conservadores. Aparentemente, a reportagem teve impacto nas fileiras da TFP, uma vez que na edição do dia seguinte foram respondidas as acusações por parte de membros. 1001 Porém, o que é importante para esta pesquisa é o fato de Werner Becker ter sido procurado pelo periódico para se pronunciar sobre o assunto. Segundo a matéria, ele era “um dos advogados mais conhecidos em Porto Alegre”, demonstrando que sua reputação estava, neste momento, consolidada, em especialmente no que se refere aos crimes políticos.1002 Werner Becker vincula, assim, o seu reconhecimento às suas ações em diferentes espaços, o que o distingue de Guazzelli e Ferri. A advocacia era uma entre as outras esferas que faziam ele ser um “cara conhecido”, como a vida boêmia e o Grêmio Football Porto-Alegrense. Os anos iniciais da abertura consistituíram um período em que ocorreram mudanças dentro do contexto político que levariam os advogados de perseguidos políticos, como Becker, Ferri e Guazzelli, a ganhar grande repercussão pública. No caso Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro: FGV, 2010. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo; “ “CPI contra a TFP é aprovada no Sul”. In: O Estado de São Paulo, São Paulo, 4 de junho de 1975, 1º Caderno, p. 4. 999 “Advogado gaúcho fala da situação da TFP”. In: O Fluminense, Niterói, Ano XCVIII, nº 2002, 18 e 19 de maio de 1975, 1º caderno, p. 2. 1000 Idem, ibidem. 1001 “Câmara e Senado acham que TFP é caso de polícia”. In: “Advogado gaúcho fala da situação da TFP”. In: O Fluminense, Niterói, Ano XCVIII, nº 2003, 20de maio de 1975, 1º caderno, p. 2 1002 “Advogado gaúcho fala da situação da TFP”. In: O Fluminense, Niterói, Ano XCVIII, nº 2002, 18 e 19 de maio de 1975, 1º caderno, p. 2. 240 de Becker, seu reconhecimento também estava relacionado à sua atividade em outras áreas, como a vida noturna e o Grêmio Football Porto-Alegrense. As entidades dos advogados, em especial a OAB/RS, foram espaços onde estas transformações ficaram mais latentes. Percebe-se, também, que foram estes anos que os direitos humanos começaram a ganhar mais legitimidade dentro da luta contra a ditadura. Conforme mostrei, a partir da prisão dos comunistas em março de 1975, a organização lançou-se publicamente na defesa de perseguidos políticos, independente de serem sócios ou não. De acordo com a análise dos debates presentes nas atas, esta mudança de postura não será um ponto pacífico por parte de todos os membros do Conselho, gerando atritos que ficarão mais evidentes nos anos seguintes. Começaram a circular nestes meios também jovens militantes de esquerda, como Tarso Genro, que passarão a disputar com os cejuristas. 241 Capítulo IV – Advogados nos holofotes: a atuação dos advogados em 1978 e 1979 Durante os anos de 1978 e 1979, os advogados aqui abordados estiveram em maior evidência em casos de grande repercussão na imprensa. Um exemplo é o caso do sequestro dos uruguaios no qual Omar Ferri teve papel de protagonismo e Werner Becker também. Nestes anos, a OAB/RS seguiu a postura que vinha tendo nos anos anteriores, posicionando-se publicamente contra a ditadura civil-militar, o que é representado por sua atuação no caso do sequestro. Eloar Guazzelli, nestes anos, atuou em um “grande crime” – o caso de Flávio Alcaraz Gomes – e foi eleito deputado federal, em 1978, levando ao extremo sua combinação entre atividade profissional e atuação política. IV.1. Advogados no meio da política (III): as entidades classistas dos advogados nos anos 1978 e 1979 Durante os anos 1978 e 1979 o IARGS seguiu liderado por Ruy Rodrigo Brasileiro de Azambuja, porém agora com Otávio Caruso da Rocha como 1º vicepresidente, Alfredo Emygdio Outeiro como 2º vice-presidente e Amadeu Weinmann como secretário, ainda contando, entre outros, com Nereu Lima como 1º Vogal. 1003 Na sessão do dia trinta e um de maio de 1978 anunciou-se que naquele momento iniciava uma nova fase do Instituto, que iria debruçar-se mais em apresentações com temas jurídicos de interesse de seus sócios.1004 A partir desta nota percebe-se o Sodalício voltando-se definitivamente para atividades culturais, como palestras e eventos, deixando de lado as intervenções públicas, que haviam ocorrido na década de 1960. 1005 As menções feitas nas atas e pautas destes anos a questões políticas são muito rápidas e, “Ata da reunião de posse da diretoria biênio 1978/1980, dia vinte e seis de abril de mil novecentos e setenta e oito”, fl. 1. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. Neste mesmo dia foi anunciada a II Jornada Ítalo-Brasileira de Direito Agrário que seria uma parceria do Instituto com a Faculdade de Direito de Cruz Alta e de Santo Ângelo. 1004 “Ata do dia trinta e um de maio de mil novecentos e setenta e oito”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. 1005 Na documentação do IARGS entre 1978 e 1982 percebe-se a presença de outros documentos além das atas. Há, também, pautas (que aparentemente foram feitos anteriormente às sessões) e expedientes (registros dos principais pontos abordados visando a confecção das atas), ambos datilografados. Diferentemente dos anos anteriores, as atas entre 1980 e 1982 não foram reunidas em livros encadernados, sendo entregues pelas funcionárias para minha pesquisa em pastas, o que denominei aqui como Maço de documentos avulsos. Além destes anos, no Maço ainda constam documentos de 1979. 1003 242 em geral, são solicitações externas que não geraram grandes manifestações ou debates registrados. 1006 Assim, de acordo com a pauta da sessão de cinco de julho de 1978, o Instituto dos Advogados do Brasil solicitou a colaboração para anteprojeto de Constituição. O IAB, que estava sob a presidência de Eduardo Seabra Fagundes, tinha uma postura “mais combativa” que a Ordem que, neste momento, buscava uma negociação e diálogo com o governo.1007 Por outro lado, o IARGS organizou em 1979 a Primeira Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil, que contou, entre os palestrantes, com Marcello Caetano, sucessor do ditador António Salazar no Estado Novo português, o que mostra o caráter conservador da entidade.1008 Uma questão que gerou grande debate interno nestes anos estava relacionada aos conselheiros seccionais indicados pelo IARGS. Em dezoito de outubro de 1978 foi anunciado que Archimedes Almeida, Luiz Fernando Borges da Fonseca, Sergio Roberto da Fontoura Juchem, George Tenório de Noronha, João Pedro dos Santos e Paulo Pacheco Prates seriam os representantes do Instituto no Conselho Seccional da Ordem no biênio 1979-1980.1009 Na ata sessão do dia oito de novembro, foi registrado que Ecilda Haensel, após falar “de pé” sobre a ecologia na América Latina, pediu que se considere a mulher como em igualdade com o homem em todos os misteres intelectuais, salientando a conveniência e oportunidade de se introduzir nomes de ilustres colegas para comporem o Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, como ainda a Diretoria deste Instituto.1010 Conforme já mencionei, mesmo que houvesse advogadas presentes nas nominatas das diretorias do Instituto, elas não estavam, em geral, em posições de comando ou de maior importância. Nesta fala, Haensel deixa claro seu descontentamento por isto, em especial no que se refere aos conselheiros da Ordem 1006 Um exemplo foi o convite do escritor Josué Guimarães para instalação do Centro Brasil Democrático, ao que foram enviadas desculpas pelo não comparecimento. “Pauta do dia 05.julho.78”; “Ata da reunião do dia dois de maio de mil novecentos e setenta e nove”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. 1007 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, pp. 171-173. 1008 “Ata da sessão do dia trinta de maio de mil novecentos e setenta e nove”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. Caetano, após sua deposição na Revolução dos Cravos, em 1974, buscou abrigo no Brasil, e passou a lecionar em universidade no Rio de Janeiro. 1009 “Expediente da reunião ordinário do dia 18.10.78”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. 1010 “Ata da sessão de 08 de novembro de 1978”, fls. 1-2. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. 243 gaúcha indicados pelo Instituto. Pelo que se deduz da manifestação anotada em ata, houve um movimento por parte de sócias, provavelmente a oradora tratada, para romper esta barreira de gênero que havia dentro das entidades dos advogados. Esta mobilização, infelizmente, ficou somente no registro de Ecilda Haensel. Já na sessão do dia doze de dezembro, foi minutada a renúncia do secretário Amadeu Weinmann, sobre a qual o presidente Ruy Rodrigo de Azambuja aventou se teria sido “uma das causas, a eleição” para o conselho seccional da OAB “do Dr. George Tenório de Noronha”, que ainda não havia tomado posse, comunicando que recebeu do Doutor Noronha à sua apresentação, dispondo-se a convocar o Conselho Superior para conhecimento do fato, e providenciar a respeito. [O presidente Azambuja] Diz também, que tais casos devam ser discutidos e resolvidos dentro da casa, nada de transpor a sala de reuniões.1011 Pelo que é possível depreender da passagem, a escolha de Noronha não foi pacífica e levou a atritos entre os membros da diretoria. Conforme apontei acima, George Tenório era uma figura conservadora que havia se oposto, em dois momentos, a posturas mais oposicionistas por parte da OAB/RS. As posições deste conselheiro tomarão uma dimensão mais pública nos dias seguintes à data desta sessão. Assim, a escolha dos representantes do IARGS não motivou resistência somente de Ecilda Haensel. Aliás, após a manifestação do presidente, a advogada tomou a palavra afirmando que iria levar uma moção ao VIII Congresso dos Advogados “propondo critérios para a escolha de membros da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção Rio Grande do Sul e da Diretoria deste Instituto, para serem incluídas as mulheres”.1012 Percebe-se, nestes anos, a presença dos comunistas do CEJUR no IARGS. O membro mais frequente nas sessões foi Clóvis Goulart Ponzi, em especial em 1978.1013 Neste ano, ainda constam menções a Eloar Guazzelli. Na Pauta do dia cinco de julho são citados ingressos oferecidos ao Instituto para um coquetel em prol da candidatura de “Ata da sessão do dia doze de dezembro de mil novecentos e setenta e oito”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. 1012 Idem. 1013 “Ata do dia doze de julho de mil novecentos e setenta e oito”; “Ata do dia treze de setembro de mil novecentos e setenta e oito”; “Ata do dia vinte de setembro de mil novecentos e setenta e oito”; “Ata do dia dezoito de outubro de mil novecentos e setenta e oito”; “Ata do dia primeiro de novembro de mil novecentos e setenta e oito”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. Além de Ponzi, ainda frequentavam as sessões do IARGS nestes anos, de forma esporádica, os comunistas Fernando Barcelos de Almeida e Júlio Teixeira. 1011 244 Eloar.1014 Já na ata do dia doze do mesmo mês é registrado que na Semana do Advogado daquele ano, ele teria inaugurado seu retrato na Galeria dos ExPresidentes.1015 A partir da menção constante da presença de Tarso Genro, percebe-se ainda que os velhos comunistas conviviam no Instituto com a presença constante do jovem advogado e militante.1016 A temática dos direitos humanos apareceu na documentação do IARGS destes anos de forma mais indireta que nos anos anteriores, como se viu em menções ao livro As agressões aos direitos humanos e a defesa dos cidadãos, de Carlos Frederico Barcellos Guazzelli e Marco Túlio de Rose.1017 Em documentos de 1978 e 1979 do IARGS encontraram-se registros referentes à impressão e lançamento da publicação.1018 Além disso, foi registrado na ata da reunião do dia dez de outubro de 1979 que, entre as comemorações do 50º aniversário do Instituto, estava prevista uma exposição filatélica sobre a problemática Internacional dos Direitos Humanos.1019 Em dez de dezembro de 1979 foi eleita a gestão do IARGS para o biênio 19801981, sendo escolhido Otávio Caruso da Rocha como presidente, Antônio José Leiria 1º vice-presidente, João Pedro dos Santos 2º vice-presidente, Isaac Ianhorn 1º secretário e Irisi Gonçalves Dias da Costa 2ª secretária.1020 Os cejuristas Fernando Barcelos de Almeida e Clóvis Ponzi estavam na nominata, como tesoureiro e presidente do Instituto de Direito Penal, respectivamente. Já Marcus Melzer ficou como presidente do Instituto dos Direitos Humanos e Tarso Genro do Instituto de Direito Sindical. Durante os anos 1978 e 1979, o Conselho Seccional da OAB/RS teve intensa mobilização, tanto em questões internas da categoria quanto na intervenção na esfera “Pauta do dia 05.julho.78”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. “Ata do dia doze de julho de mil novecentos e setenta e oito”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. 1016 Idem; “Ata da reunião ordinária do dia 11.outubro.78”; “Ata da sessão do dia 22 de novembro de 1978”; “Ata da sessão do dia quinze de março de mil novecentos e setenta e nove”; “Ata do dia treze de junho de mil novecentos e setenta e nove”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. 1017 A obra continha os trabalhos “O exercício e a existência dos Direitos Políticos”, de Marco Túlio de Rose, e “Os Direitos Humanos, a Ordem Pública e a Segurança Nacional”, de Carlos Frederico Barcellos Guazzelli, vencedores do 2º Concurso Estadual de Ensaios Jurídicos, realizado em 1974 pelo Instituto, Livraria do Advogado e Centro Acadêmico André da Rocha, da Faculdade de Direito. ROSE, Marco Túlio de; GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. As agressões aos direitos humanos e a defesa dos cidadãos. Porto Alegre: Coojornal, 1978, 55 p. 1018 “Expediente da reunião do dia 16.agosto.78”; “Ata do dia vinte e três de agosto de mil novecentos e setenta e oito”; “Ata do dia treze de setembro de mil novecentos e setenta e oito”; “Ata do dia treze de junho de mil novecentos e setenta e nove”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980; “Expediente da reunião do dia 04.abril.1979”. In: IARGS. Maço de documentos avulsos. 1019 “Ata da reunião do dia dez de outubro de mil novecentos e setenta e nove”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. 1020 “Ata de eleição”. In: IARGS. Livro de Atas 1978 – 1980. Porto Alegre, 1980. 1014 1015 245 pública. No que se refere à luta da categoria em relação à vinculação das entidades classistas ao Ministério do Trabalho colocada no Decreto 74.000, na ata de catorze de fevereiro de 1978 é registrado que o presidente do Conselho Federal, Raymundo Faoro, comunicou ao presidente da OAB/RS Justino Vasconcelos de que o Senhor Presidente da República aprovara parecer no sentido de a Ordem não ser vinculada a qualquer outro Órgão Público, tendo , assim chegado a bom termo a campanha deflagrada pela O.A.B. RS, no dia seguinte ao da publicação do malsinado decreto Lei 74.000 de 1974.1021 No mesmo dia foi publicado no Diário Oficial da União o parecer do consultorgeral da República que desvinculava “definitivamente a Ordem de qualquer órgão governamental, e resolvendo, deste modo, o problema da autonomia da entidade”.1022 Como mostrei, esta mobilização foi realizada logo após a edição do Decreto pela Ordem e pelo Instituto gaúcho. Esta menção é, assim, o resultado da organização dos advogados. Ao mesmo tempo, ela reflete uma característica da presidência de Faoro que era o diálogo e a negociação com a ditadura. O fim deste imbróglio, como indicaram Marly Motta e André Dantas, seria um efeito da “busca de ‘consenso’” por parte de Faoro “rumo a uma efetiva abertura democrática”.1023 Na ata da sessão extraordinária de onze de dezembro de 1978 foi feita a consulta do Conselho Seccional sobre o apoio à candidatura de Eduardo Seabra Fagundes para presidência do Conselho Federal, o que foi decidido favoravelmente por unanimidade, sendo a decisão reiterada na sessão do dia vinte e dois de março de 1979.1024 Na ata da sessão de três de abril foi registrado que Seabra Fagundes havia sido eleito e convidara Júlio Teixeira para a Comissão Coordenadora da VIII Conferência da OAB”.1025 Como mencionei, Eduardo Seabra Fagundes havia sido presidente do Instituto dos Advogados do Brasil e, nestes anos, tinha tomado posições mais firmes do que Faoro em relação à ditadura. Assim, a escolha por Seabra Fagundes reflete uma escolha “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 14 de fevereiro de 1978”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1022 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 166. 1023 Idem, ibidem. 1024 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 11 de dezembro de 1.978”, fl. 1; “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 22 de março de 1.979”.In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1025 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 3 de abril de 1.979”, fls. 2.In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. Eduardo Seabra Fagundes venceu o pleito por 23 votos a 2. MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 172. 1021 246 do Conselho Federal da Ordem por uma postura mais combativa em um novo contexto. Conforme Marly Motta e André Dantas, Se a posição “mais bem comportada” de Faoro, na expressão de seu antecessor, correspondeu, em boa medida, às incertezas quanto aos limites presentes e às perspectivas futuras do processo da distensão em curso, a combatividade que se esperava da Ordem ao eleger Seabra Fagundes se relacionava com a expectativa de que, vencidas as estreitas veredas, o caminho rumo à abertura poderia ser trilhado, não com menos riscos, mas certamente com mais clareza em relação aos objetivos a serem alcançados.1026 Enquanto que Faoro representava uma tentativa de consenso e diálogo com o regime por parte da entidade dos advogados, seu sucessor indicava que ela buscaria, neste momento, um maior embate. As menções ao novo presidente do Conselho Federal nas atas citadas acima mostram que, mais uma vez, o Conselho Seccional sul-rio-grandense da Ordem apoiava o candidato que vencia as eleições. E mais uma vez o nome apoiado pelos gaúchos era um candidato que buscava colocar a entidade na oposição à ditadura. A referência feita ao comunista Teixeira mostra, por um lado, seu prestígio dentro da Ordem nacional, e, por outro, a preocupação da diretoria da seccional gaúcha em demonstrá-lo. Nos anos de 1978 e 1979 continua-se a ver a presença da atuação da seccional na defesa de advogados, como no caso de arbitrariedades e violências contra advogados no Rio Grande do Sul e em outros estados.1027 Além destes debates, ainda vemos nas sessões da OAB/RS registros de violências e tortura praticadas no estado. 1028 Na ata da sessão de três de julho de 1979, por exemplo, houve um pronunciamento de Subseções sobre anteprojeto de lei sobre a incolumidade física das pessoas presas ou detidas, mostrando o comprometimento da organização com a luta contra a tortura.1029 1026 Idem, p. 173. Em 1978 foi o caso dos registros, em 27 de junho, de arbitrariedades de um juiz contra um advogado, em Lagoa Vermelha, em 5 de setembro, da agressão de um policial a um advogado em Venâncio Aires. Em 6 de novembro de 1979 foi registrado que o conselheiro Nereu Lima foi à Polícia Federal para providenciar a liberação de advogado Francisco Mariano Ricoldi, preso por um juiz de Minas Gerais, além do desagravo ao advogado Hermeto Rocha do Nascimento. “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 27 de junho de 1978”, fl. 1; “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 5 de setembro de 1978”, fls. 4; “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 06 de novembro de 1.979”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1028 Este foi o caso do relatório, registrado na ata de 6 de março de 1979, enviado pela subsecção de Cruz Alta “sobre denúncia de torturas e violências praticadas por agentes policiais daquela cidade”. “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 6 de março de 1.979”, fls. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1029 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 03 de julho de 1.979”, fls. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1027 247 Também foram tratadas questões referentes aos espaços destinados aos advogados, como as condições precárias dos parlatórios de Penitenciárias.1030 Em 1979, houve um conflito envolvendo a sala destinada aos advogados no Tribunal Regional do Trabalho. Na ata da sessão de dezessete de abril foi registrado que na inauguração do espaço, na qual estava presente o presidente da OAB/RS e outros conselheiros, um grupo de advogados, “invocando a qualidade de sócios da AGETRA, desacataram frontalmente não só o Presidente do Conselho, mas também o TRT 4ª. Região”.1031 Mesmo não sendo explicitada a razão, depreende-se, a partir do relato feito pelos conselheiros, que teria a ver com a qual instituição caberia a administração da sala. Ao mesmo tempo, foi registrado na ata que conselheiros mencionaram, confirmando que já estava “ficando insuportável o atrito entre a OAB-RS e a AGETRA” e que “as divergências entre os sócios as AGETRA” já vinham “se acentuando há mais de quatro anos”, o que foi confirmado por Saul Calvette, primeiro presidente da associação.1032 Na ata desta sessão nota-se o impacto do quiproquó, uma vez que os debates se estenderam por quatro laudas, gerando duas notas, uma para o presidente do TRT e outra voltada ao público.1033 Mesmo com os confrontos, foi registrado que o presidente Justino Vasconcelos manteve “uma atitude digna, elegante e britânica”.1034 Este evento mostra a tensão que havia entre alguns advogados trabalhistas e a Ordem, o que, provavelmente, tinha uma relação com as disputas existentes dentro do campo jurídico. Os advogados reunidos na AGETRA eram, em geral, jovens politicamente vinculados às esquerdas, que buscavam, a partir da agremiação, intervir no campo jurídico e, desta forma, concorriam com os consagrados conselheiros da OAB/RS. A sala disputada foi inaugurada em sessão extraordinária do Conselho Seccional no dia catorze de agosto. Na cerimônia, Júlio Teixeira, que falou em nome da OAB/RS, “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 1º de agosto de 1978”, fls. 4. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1031 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 17 de abril de 1.979”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. Para saber mais sobre a Associação Gaúcha dos Advogados Especialistas em Direito do Trabalho (AGETRA) ver nota 948 na página 227. 1032 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 17 de abril de 1.979”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1033 Idem, fls.1-5. 1034 Idem, fls. 2. 1030 248 tratou da necessidade da sala para os advogados trabalhistas, e além de abordar a figura de Dante Sfoggia, que foi homenageado no nome da sala,1035 o conselheiro Concluiu, dizendo que “Cabe, agora a nós, advogados que estamos vivendo dias de intensa luta pelo restabelecimento da plenitude do Estado de Direito em nosso País, concorrermos com o melhor de nossos esforços para manter o prestígio da Justiça do Trabalho e para darmos o exemplo de fraternidade e solidariedade em torno de idéias grandes e que, pela sua grandeza e importância, deixem de longe as nossas inevitáveis e sempre nocivas imperfeições pessoais”.1036 Percebe-se que, em sua conclusão, Teixeira vinculou a necessidade de fraternidade e solidariedade entre os advogados com a luta contra a ditadura, o que é significativo uma vez que os advogados que se manifestaram contra a Ordem também estavam na oposição ao regime. Um recado mais direto aos manifestantes foi dado por João Antônio Pereira Leite, que falava em nome do TRT. Ele trouxe, em seu discurso, a menção ao advogado trabalhista Afrânio Araujo, afirmando que ele, assim como Sfoggia, era um exemplo de tolerância.1037 Esta referência não foi gratuita, uma vez que Araujo era pai do presidente da AGETRA, Luiz Heron. Há, nas atas do Conselho Seccional da OAB/RS em 1978 e 1979, diversas referências aos comunistas. Um exemplo é o voto de congratulações proposto pelo conselheiro Sérgio Juchem a Eloar Guazzelli “por sua brilhante vitória nas eleições para Deputado Federal”, ao que foi informado pelo presidente Justino Vasconcelos “que já remetera ofício de congratulações em nome do Egrégio Conselho Seccional”. 1038 Já na sessão de seis de março de 1979, consta a solicitação de Hilário Gonçalves Pinha feita em trinta de janeiro “de um advogado para patrocinar [s]ua causa, contra o poder Público, em face de torturas sofridas em dependências do DOI-CODI e DOPS”, que causa estranheza, pois quem levaria adiante o caso era seu advogado na Justiça Militar, Eloar Guazzelli.1039 Ainda na reunião de seis de março, os comunistas Honório Peres e Walter Graeff, além de Tarso Genro, estavam entre os conselheiros substitutos, e foi “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 14 de agosto de 1.979”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1036 Idem, fls. 2. 1037 Idem, fls. 3. 1038 “Ata da sessão extraordinária do conselho, realizada em 21 de novembro de 1.978”, fls. 4. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1039 Idem, fls. 3. Como mostrei, Pinha e sua companheira que estava grávida haviam sido presos em março de 1975 e, após, ele passou por diversas sessões de torturas. Analisarei o processo de indenização será analisado posteriormente nesta tese. 1035 249 proposto um voto de louvor a Paulino de Vargas Vares, pela sua atuação como vicepresidente.1040 Em 1979, ainda vemos a consagração de dois advogados vinculados à defesa de presos políticos por parte do Conselho Seccional da Ordem. Na sessão de vinte e seis de junho, Sobral Pinto, entre outros nomes, foi indicado para a Medalha Oswaldo Vergara, além de ser mencionado que ele proferiria uma palestra sobre o Estado de Direito na sede da OAB/RS no dia nove de julho.1041 Já em vinte e sete de dezembro, Luiz Armando Dariano foi indicado de forma unânime para receber a comenda Oswaldo Vergara.1042 Apesar do tratamento de temas políticos ser proibida pelos estatutos, nestes anos, os mesmos se fizeram presentes no Conselho da OAB/RS. Um exemplo foi a sugestão de Júlio Teixeira, registrada na ata de catorze de março de 1978 e aprovada por unanimidade, de que o discurso da seccional gaúcha na VII Conferência Nacional dos Advogados seja relativo “ao retorno pleno do Estado de Direito”.1043 Ao mesmo tempo, a OAB/RS procurava manter uma boa relação com as autoridades da ditadura, o que fica claro na visita feita pelo candidato ao governo do Estado em vinte e sete de julho de 1978, Amaral de Souza, que abordou a questão da transição política.1044 Para debater o projeto de Lei de Segurança Nacional, encaminhado ao Congresso Nacional no dia dezessete de outubro de 1979, foi realizada uma sessão extraordinária do Conselho da OAB/RS no dia seguinte.1045 Inicialmente, o presidente Justino Vasconcelos informou ao Conselho sobre a declaração que faria à imprensa sobre o projeto do governo, passando a sugestões dos conselheiros, havendo grande discussão entre eles.1046 O Conselho Seccional da OAB/RS estava envolvido nestes temas, o que é comprovado pelo fato de ter sido chamada uma sessão extraordinária no dia seguinte ao 1040 Idem, fls. 5. “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 26 de junho de 1.979”, fls. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1042 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 27 de dezembro de 1.979”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. Dariano havia sido advogado de ofício da Auditoria Militar de Porto Alegre e destacou-se na defesa de presos políticos. 1043 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 14 de março de 1978”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1044 “Ata da sessão extraordinária do conselho, realizada em 27 de julho de 1978”. fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1045 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 18 de outubro de 1.978”. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1046 Idem, fl. 1. 1041 250 envio do projeto ao Congresso. Vemos, também, as diferentes posições dos conselheiros em relação ao assunto: enquanto que Marcus Melzer solicitava, naquele momento, somente a exclusão da urgência, Otávio Caruso da Rocha pedia um repúdio ao projeto. Júlio Teixeira surgia, neste contexto, como uma figura mediadora na Ordem gaúcha. Vemos que a maior parte do Conselho não concordava com uma manifestação pública contrária ao projeto do governo, mostrando que não estavam tão dispostos ao enfrentamento direto à ditadura neste assunto, mesmo que se opusesse ao projeto de Lei. De acordo com Marly Motta e André Dantas, o Conselho Federal da Ordem “se manifestou contra a versão revista da LSN, cujos dispositivos continuavam a ser fonte de poder arbitrário, como aquele que os presos fossem mantidos incomunicáveis por oito dias (antes eram 10)”.1047 Havia, assim, uma sintonia do Conselho Seccional com o Federal. Um tema que esteve presente nas atas de 1979 foi a questão da Anistia, motivado pelo envio pela ditadura do projeto de lei em junho. De acordo com a ata, na primeira sessão após o encaminhamento, Júlio Teixeira propôs um ofício ao Presidente da Ordem, Seabra Fagundes, que reafirmasse “as posições deste Conselho Seccional, inclusive já anteriormente manifestadas em sucessivos Congressos, no sentido de apoiar e aplaudir o pronunciamento público, emitido em nome dos advogados brasileiros”: a proposta foi aprovada por unanimidade.1048 Provavelmente, o pronunciamento público mencionado devia estar relacionado à Declaração de Florianópolis, confeccionada na Reunião de Presidentes das Seccionais realizada entre trinta de maio e dois de junho, “cujo parágrafo inicial deixou clara a posição da Ordem a favor da “anistia ampla, geral e irrestrita e sem gradualismo”, como “preliminar indispensável” para recompor o pacto social e pacificar o país”.1049 O Conselho Federal reuniu-se, em vinte e quatro de julho, para debater a anistia a partir do parecer do conselheiro José Paulo Sepúlveda Pertence.1050 Ainda de acordo com os autores, o projeto de lei não foi votada no Congresso, “sendo aprovada por decurso de prazo em dezembro”. MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 170. 1048 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 03 de julho de 1.979”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1049 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 175. 1050 Idem, p. 177. 1047 251 No documento nota-se uma das principais críticas da OAB ao projeto do governo: ao mesmo tempo que em não anistia os condenados por crimes tipificados na Lei de Segurança Nacional, beneficia os agentes do Estado que reprimiram violentamente, sob a tolerância ou estímulo do regime, segundo o parecer. 1051 Na sessão em que foi apresentado o parecer ao Conselho Federal, apenas um conselheiro, Godoy Bezerra foi contrário, afirmando que seria uma “colocação política”, além de denunciar as manifestações no Conselho como “revanchistas” promovidas por “agentes da agitação” que “transformariam a OAB em ‘cenáculo de pantomimas’”. 1052 Isto mostra que, assim como no Conselho gaúcho, havia na cúpula nacional vozes que não concordavam com as posturas que a Ordem vinha tomando. Na reunião foram acrescentadas três resoluções aditivas, entre as quais destaca-se a primeira, que buscava estender a anistia aos ex-dirigentes sindicais que sofreram restrições devido a medidas interventoras.1053 Ao confrontar o parecer do Conselho Federal da OAB com o projeto aprovado notamos que somente este ponto foi acrescentado na redação da lei, o qual, posteriormente, sofreu veto presidencial. 1054 Na primeira sessão do Conselho da Ordem sul-rio-grandense após a aprovação da Lei de Anistia, foi mencionada a mobilização ao retorno dos vereadores da Câmara de Porto Alegre cassados em 1977, Marcos Klassmann e Glênio Peres. Assim, foi registrado o telegrama do vereador do MDB Cleon Guatimozim sobre a volta dos cassados para a Casa legislativa após a Lei de Anistia.1055 De acordo com a ata, durante a sessão foi sugerido pelo conselheiro Flávio Ramos que a Ordem “se pronunciasse a respeito da reintegração dos Vereadores anistiados pela nova Lei, ao que o Presidente 1051 CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Parecer para o Processo C.P. nº 2164/79 – Projeto de Lei de Anistia. Rio de Janeiro, 1979. 1052 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 177. 1053 CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Parecer para o Processo C.P. nº 2164/79 – Projeto de Lei de Anistia. Rio de Janeiro, 1979, p. 12. 1054 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/Mensagem_Veto/anterior_98/vep267-L6683-79.pdf. Este parecer voltou ao debate público no ano de 2010, durante a argumentação do ministro relator da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, no qual a OAB buscava saber se crimes praticados por militares e policiais — como a tortura e desaparecimento — durante a ditadura estão cobertos pela lei de anistia. Em seu voto, o ministro Eros Grau afirmou que a percepção de que a Lei de Anistia de 1979 beneficiava os agentes do Estado estava presente no parecer da entidade, o que colocava a “OAB de hoje contra a OAB de ontem”. (http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf153.pdf) Através da análise do documento podemos notar que, como afirma o então presidente da OAB Cezar Britto, "o parecer atacava a Lei de Anistia porque ela excluía aqueles acusados de subversão e dava a entender que os torturadores estavam beneficiados”. (http://www.conjur.com.br/2008-nov16/leia_parecer_oab_1979_favor_anistia_ampla) 1055 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 4 de setembro de 1.979”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 252 informou ser somente possível dar o apreço da OAB-RS aos mandatos populares”.1056 A fala anotada de Justino Vasconcelos mostra os limites que ainda havia para as posições da Ordem. Ainda sobre a legislação, na ata da sessão de seis de novembro de 1979, foi registrado que o conselheiro Nereu Lima propôs uma moção de protesto ao novo Código de Menores (Lei 6.667 de 10 de outubro de 1979) que permitia a detenção de menores por até 5 dias. 1057 A moção foi aprovada por unanimidade, ficando o conselheiro também autorizado “a levar a mesma moção, para ser submetida ao Congresso Nacional de Direito do Menor, ora em andamento nesta Capital”.1058 De acordo com a ata da reunião de quatro de dezembro de 1979, Júlio Teixeira sugeriu que fosse convocado o IX Congresso dos Advogados do estado para discutir o anteprojeto da Constituição.1059 Na ata da sessão seguinte, de vinte e sete do mesmo mês, vemos que a proposta vingou, uma vez que ficou registrado que em dezembro do ano seguinte seria realizado o IX Congresso dos Advogados do Rio Grande do Sul. Este evento, intitulado Congresso Pontes de Miranda, teria como objetivo “elaborar e discutir anteprojeto de constituição, como colaboração da Classe, à próxima Assembléia Nacional constituinte”.1060 É provável que esta iniciativa tenha tido relação com a conferência das seccionais, realizada em outubro de 1979 em Belém, que, entre outros temas, tratava da convocação de uma Assembleia Constituinte, o que mostra mais uma vez a sincronização dos debates do Conselho da OAB/RS com a direção nacional.1061 IV.2. Os advogados e una pareja y dos hijos: o caso do sequestro dos uruguaios Durante estes anos o Conselho Seccional da Ordem esteve também envolvido em um caso que marcou a abertura no Rio Grande do Sul: o sequestro dos uruguaios Universindo Diaz e Lilián Celiberti e seus filhos Camilo e Francesca. Universindo e Lilián eram militantes do Partido Por la Victória del Pueblo (PVP), que haviam entrado 1056 Idem, fls. 4. “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 06 de novembro de 1.979”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1058 Idem, ibidem. 1059 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 04 de dezembro de 1.979”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1060 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 27 de dezembro de 1.979”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1061 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 177. 1057 253 clandestinamente no Brasil com o intuito de denunciar as violações aos direitos humanos ocorridas na ditadura uruguaia.1062 Em 12 de novembro de 1978 eles foram sequestrados por uma operação que envolvia as repressões uruguaia e brasileira que buscavam prender militantes da organização que atuavam no Brasil, e que posteriormente seriam levados ilegalmente para o Uruguai. Através de um ardil, Lilián conseguiu fazer com que seus algozes a levassem novamente para o apartamento onde morava na rua Botafogo, na capital gaúcha. Em Porto Alegre, Celiberti entrou em contato com seus correligionários e, de forma cifrada, conseguiu avisar sua situação e organizar uma armadilha para a repressão. Assim, na tarde de 17 de novembro, embora os agentes repressivos dos países vizinhos esperassem outro membro do PVP, deram de cara com os jornalistas Luiz Cláudio Cunha e João Batista Scalco, da sucursal da Editora Abril em Porto Alegre, que haviam sido avisados do caso por militantes que viviam em São Paulo. A astúcia de Lilián permitiu a denúncia do caso. Além de Cunha, correligionários de Lilián e Universindo entraram em contato com Jan Rocha, jornalista inglesa da BBC radicada em São Paulo e integrante do grupo CLAMOR.1063 Ao saber do caso, ela pensou em Omar Ferri, que havia conhecido pouco antes, por ocasião de um caso político no qual o advogado atuara em São Paulo.1064 Por uma das coincidências presentes no caso, Jan era casada com Plauto Rocha, que havia estado escondido com Ferri logo após o golpe na capital paulista. 1062 1065 Nota-se que a Uma vez que o caso foi abordado em diversas obras, optei por focar aqui a atuação dos advogados Omar Ferri e Werner Becker, além do Conselho da OAB/RS. Para um aprofundamento sobre o caso ver os livros de Omar Ferri e Luiz Cláudio Cunha, protagonistas do acontecimento: FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981; CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009. Para uma análise histórica do caso ver a dissertação de Ramiro dos Reis: REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012. Dissertação de Mestrado em História. Partindo da dissertação, Reis produziu uma história em quadrinhos e um livro paradidático: REIS, Ramiro José dos; COSTA, Rafael. Tchau Yano: Operação Condor em Porto Alegre. Porto Alegre: Editora Deriva, 2015 (disponível em http://pt.calameo.com/books/00219014836f4e549cb33); REIS, Ramiro José dos. Operação Condor nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: EST Edições, 2016. 1063 Em diversas entrevistas Ferri reforça que uma inverdade presente em seu livro foi a referência à ligação, atribuída a outro membro do CLAMOR, Luiz Eduardo Greenhalgh. Na época, ele não divulgou que a ligação havia sido feita por Jan para não atrapalhar sua carreira como jornalista. FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 21; “Entrevista: Dr. Omar Ferri”. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 19. 1064 “Depoimento 12 – Jan Rocha”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 191. 1065 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p .18. 254 entrada de Omar no caso tem a ver com sua carreira política anterior ao golpe, em especial sua relação com o mencionado companheiro de “desgraça política”. A trajetória de Ferri vai marcar sua participação no caso, sendo articulada tanto por seus apoiadores quanto por seus críticos. IV.2.1. Omar Ferri entra em cena Ferri comenta que, quando recebeu a ligação de Rocha naquela sexta-feira de primavera, estava preparando-se para o julgamento de um cliente, Delaro Severino.1066 Depois do expediente, ele decidiu passar no apartamento do Menino Deus onde Universindo e Lilián moravam e, não encontrando ninguém lá, deixou um bilhete informando de sua visita; ele voltaria no dia seguinte, encontrando a mesma situação.1067 Como Ferri chegara lá depois de Cunha e Scalco, a armadilha dos agentes repressivos já tinha sido desmontada.1068 Na segunda-feira, 20 de novembro, após o julgamento de Severino, o advogado foi abordado pelos jornalistas José Mitchell, da sucursal do Jornal do Brasil, e Ernani Quaresma, de O Globo, que haviam pego o bilhete no apartamento e buscavam mais informações sobre o ocorrido.1069 Nos dias seguintes, o caso foi denunciado na imprensa, ao mesmo tempo em que o advogado buscava informações sobre o ocorrido em diferentes esferas.1070 Uma vez que os órgãos de segurança apontados responderam a isto com silêncio, parecia uma confissão de culpa; Ferri afirma que pensou naquele momento que havia “acertado na mosca”.1071 No dia 22 chegou à capital gaúcha Lilia Celiberti, mãe de Lilián, que se dirigiu ao jornal Zero Hora, sendo recebida pelo jornalista Milton Galdino, que chamou Ferri para auxiliá-la.1072 Foi organizada uma entrevista coletiva e, assim, nos jornais do dia 23 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 35. 1067 Idem, p. 36. 1068 REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 138. Dissertação de Mestrado em História. 1069 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 38; REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 139. Dissertação de Mestrado em História. 1070 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 41; REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 139. Dissertação de Mestrado em História. 1071 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 1072 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 10; REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 120. Dissertação de Mestrado em História 1066 255 de novembro viam-se estampadas fotografias de doña Lilia, ao lado de Ferri, clamando pelos seus netos, até então não mencionados pelas notícias sobre o caso. 1073 Isto teve grande repercussão na sociedade gaúcha: de acordo com Omar Ferri, em seu livro, as “palavras” da madre y abuela “ecoavam por todo o Rio Grande”.1074 Imagem 5: Lilia Celiberti e Omar Ferri denunciam o sequestro. Fotógrafio: Ricardo Chaves (publicado com a autorização do artista). Nos dias seguintes, Lilia Celiberti e Omar Ferri realizaram um périplo em Porto Alegre buscando informações sobre seus netos e sua filha, até que duas ligações vieram a indicar que a primeira batalha, a libertação de Camilo e Francesca, tinha vingado. 1075 Inicialmente, um telefonema anônimo, de alguém que devia favores a Ferri, anunciou 1073 REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 120. Dissertação de Mestrado em História 1074 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 46. 1075 REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 121. Dissertação de Mestrado em História. 256 que as crianças já estariam a salvo com o avô.1076 No dia 25 eles receberiam a ligação de Homero Celiberti, pai de Lilián, confirmando que seus netos estavam com ele.1077 Conforme Omar Feri relatou para o livro Memórias da resistência e da solidariedade, após ouvir a notícia de seu marido, Lilia Celiberti sorriu, e, ao mesmo tempo em que sorria ela também chorava. Então foi um momento de comoção. (…) Uma coisa... Um profundo grito saído das entranhas de um coração amargurado, de uma avó desesperada, ecoou de tal forma, com força tamanha e de tão irresistível, que desmantelou a estrutura do sequestro, e as Forças Conjuntas, muito valentes até então, tiveram que se recolher à sua covardia e à sua insignificância e entregar as crianças para os legítimos avós.1078 A primeira vitória desta mobilização devia-se, principalmente, às ações realizadas tanto por Lilián quanto por sua mãe. Conforme aponta Ramiro dos Reis, “se a tática de Celiberti teve sucesso ao tornar público o sequestro, foi a pressão exercida por dona Lilia, juntamente com Omar Ferri, a OAB-RS e o MJDH, que evitou que o fato deixasse de repercutir na mídia”.1079 Procurarei mostrar, nas páginas a seguir, como Ferri, em conexão com a OAB/RS e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), contribuiu para que a denúncia deste caso tivesse sucesso. No final de novembro de 1978, o caso já obtinha ampla repercussão na sociedade brasileira. De acordo com Ramiro dos Reis, naquele momento a participação do advogado já era parabenizada, tanto pelo CLAMOR quanto pelo Secretariado Internacional de Juristas por la Amnistia en el Uruguay (SIJAU).1080 Posteriormente, o SIJAU enviaria para Porto Alegre o jurista Jean-Louis Weill para comparar o caso com outros semelhantes e sensibilizar as autoridades e instituições sobre o respeito aos direitos humanos.1081 Omar Ferri acompanhou a visita de Weill na capital gaúcha, estando presente em sua reunião com o governador Synval Guazzelli. FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 46. Esta seria a segunda ligação anônima de Faustina Severino para a casa do advogado: na primeira ela teria alertado para o perigo que as crianças corriam. 1077 “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 121. 1078 Idem, ibidem. 1079 REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 121. Dissertação de Mestrado em História. 1080 Idem, pp. 139-40. 1081 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 63. 1076 257 Antes de sair do país, o jurista francês denunciou o caso e acusou o DOPS e o delegado Pedro Seelig como responsável.1082 Em decorrência do impacto da denúncia do caso, no final de novembro também houve a primeira intimação para Ferri depor na Polícia Federal. 1083 De acordo com o advogado, nesta instituição seria travada uma verdadeira guerra, sendo questionados pelos inquisidores sobre sua atuação política, em especial sua relação com Leonel Brizola. Em seu livro, o advogado conta a intimidação que passou e mostra que “poderia vir a tornar-se réu quem na verdade ocupava a função de acusador”, gerando uma sensação de opressão que era compartilhada por Luiz Cláudio Cunha.1084 Ao longo do caso, Ferri seria alvo de diversas pressões, através de telefonemas e cartas anônimas, além de ser seguido.1085 As ameaças chegaram até a casa de Omar, o que, de acordo com seu livro, levou a uma reunião familiar na qual sua esposa Maria Helena pediu para rever a participação do advogado no caso.1086 Ferri, na ocasião, demonstrou à família que “não tinha intenção de afrontar ninguém, muito menos o DOPS ou a Polícia Federal, mas que considerava como meu dever a luta pela verdade. Mais do que um dever, um direito. O direito que cada um de nós tem de servir à causa da Justiça”.1087 A fala fez com que seus entes queridos o apoiassem nesta luta. IV.2.2. A OAB/RS entra em cena De acordo com Omar, no final de novembro, o presidente em exercício do Conselho Seccional da OAB/RS, Paulino de Vargas Vares, colocou a entidade em solidariedade ao advogado.1088 Em diferentes entrevistas, Ferri contou que ele teve cautela logo após a aproximação da Ordem: ao mesmo tempo que via no grupo dirigente 1082 REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 140. Dissertação de Mestrado em História. 1083 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 49-50. 1084 Idem, p. 56. 1085 Idem, p. 152; “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 126-7. O advogado ainda relatou para Ramiro dos Reis um assalto ocorrido na Praça XV, no centro da capital, no qual o objetivo seria deixá-lo nu, com a intenção de desmoralizá-lo. Ele acusou o DOPS da ação o que não foi desmentido. REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, pp. 140-1. Dissertação de Mestrado em História. Um rastro da perseguição sofrida por Ferri é um bilhete, que consta no Acervo Particular Omar Ferri do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura – Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1. 1086 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 83-4. 1087 Idem, p. 84. 1088 Idem, p. 57. 258 uma postura conservadora e não crítica à ditadura, seu grupo havia perdido na disputa da eleição anterior para o Conselho Seccional.1089 Ele afirmou também que, antes de responder à proposta de apoio da Ordem, Ferri reuniu-se com os líderes da chapa vencida, Alceu Loureiro Ortiz e Luiz Heron Araújo, para debater a questão.1090 Isto permite entender melhor a posição de Omar Ferri na política interna das entidades dos advogados: ele pertencia ao grupo de Luiz Heron que, em abril de 1979, se manifestara contra a diretoria da OAB/RS no TRT. A partir do relato pode-se apresentar dois grupos rivais dentro da OAB: um hegemônico, liderado por Justino Vasconcelos, e outro reunido em torno de Alceu Loureiro Ortiz e Luiz Heron Araújo, que viria a ser presidente da AGETRA no mesmo ano.1091 Com o aval de seus correligionários, Ferri foi convidado para ir à reunião do Conselho Seccional do Conselho ...a convite do Paulino de Vargas Vares, fui recebido pelo Justino Vasconcelos: “Bah, vamos tornar a ser amigos”, eu disse brincando para ele. [e Vasconcelos respondeu:] “Mas nós nunca fomos inimigos!” e ele sorria, eu também, rimos. Aí a OAB, daquele momento em diante começou a lutar junto com o movimento, conosco, junto com jornalistas, em completa consonância com a Assembleia Legislativa. Também reuniões da OAB saiam praticamente, eram reuniões diárias; a OAB criou uma comissão que visitaria a família no Uruguai; uma outra comissão pra dar um parecer aqui sobre o Sequestro. Então a OAB teve na linha de frente nessa luta em favor das liberdades individuais, principalmente com o objetivo de esclarecer o Sequestro.1092 Em entrevista concedida para esta pesquisa, Omar Ferri reforça que o apoio da OAB/RS foi essencial, assim como o dos jornalistas e da Assembleia Legislativa: “ninguém, desse triunvirato lutador, sozinho podia fazer nada”; eles “formaram uma frente única contra os sequestradores, contra o crime, contra o sequestro, contra a violação da nossa soberania, contra a ofensa dos nossos direitos”. 1093 De acordo com Ferri, Paulino de Vargas Vares entrou em contato com o presidente da OAB, Raymundo Faoro, informando-o sobre seus objetivos em relação ao 1089 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 24. 1090 Idem, ibidem; FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 1091 Além destes nomes, Ferri afirma que de seu grupo faria parte também Luiz Carlos Madeira, que seria o presidente da OAB/RS no biênio 1985-1986. 1092 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 25. A aproximação de Omar Ferri com a Ordem foi tanta que ele ficou como Conselheiro substituto, assumindo em diferentes períodos em 1979 e 1980. 1093 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 259 caso, e obtendo seu aval. 1094 Assim, na sessão de cinco de dezembro de 1978, Paulino de Vargas Vares, na condição de presidente interino e com o apoio do presidente do Conselho Federal Raymundo Faoro, propôs que o Conselho Seccional atuasse ao lado de Omar Ferri no caso do sequestro dos uruguaios. 1095 Após manifestações de apoio de diversos conselheiros, a proposta foi aprovada, “tendo os Conselheiros GEORGE TENÓRIO DE NORONHA e GUILHERME FLORES DA CUNHA se abstido de votar, enquanto não se souber detalhes a respeito do assunto”.1096 Já na ata da sessão extraordinária do dia 19 de dezembro de 1978, consta, além de telegrama com manifestações de apoio em relação à iniciativa da entidade, a mensagem do presidente da Ordem.1097 Na mensagem, Faoro delegava ao presidente da OAB/RS, Justino Vasconcelos, a constituição da Comissão que iria para o Uruguai, que deveria realizar-se após o Natal, e afirmando que não prosperariam “maliciosas informações” que visavam dividir e abalar a confiança da classe em seus legítimos dirigentes eleitos.1098 Assim foram organizadas duas Comissões: a primeira – formada por Otávio Caruso da Rocha, Marcus Melzer, José Mariano Beck, além de Ferri – iria viajar para o Uruguai em busca de informações sobre o caso enquanto que a segunda – liderada por Marcus Melzer e composta por Rovílio Breda, Nereu Lima e Paulo Pinto de Carvalho – ficaria responsável pela investigação do caso.1099 De acordo com Omar Ferri, no final de dezembro, a segunda Comissão enviava um relatório para Faoro indicando que os uruguaios haviam sido “coercitivamente” transladados para o país vizinho, além de apontar a presença de Orandir Portassi Lucas, o Didi Pedalada, na ação.1100 Percebe-se que a variedade de vozes presentes no Conselho Seccional que procurei mostrar, até aquele momento estava, aparentemente, em uníssono coral Devido a sua presteza Omar, em seu livro, define Vares como alguém “dotado de raro sendo de objetividade e despido do academicismo bacharelesco, vício que em muitos casos obscurece o raciocínio lógico dos advogados”. FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 57. 1095 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 5 de dezembro de 1.978”, fls. 4. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1096 Idem, fls. 5. 1097 Este é o caso da manifestação da Câmara de Vereadores de Santa Maria que enviava seu apoio. “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 19 de dezembro de 1.978”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1098 Idem, fls. 1-2. 1099 Idem, fls. 2. Na semana seguinte seria aprovado, em sessão extraordinária, o primeiro documento da comissão presidida por Melzer. “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 27 de dezembro de 1.978”, fls. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1100 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 57. 1094 260 validando o apoio à luta de Omar Ferri. Conforme apontou o advogado em entrevista concedida para esta pesquisa, a única opinião dissonante só iria elevar seu volume às vésperas da viagem da comissão para o Uruguai, no início de janeiro de 1979.1101 Em três de janeiro de 1979, o 1º Secretário George Tenório de Noronha, na qualidade de Presidente da OAB/RS, foi à imprensa criticar as iniciativas da entidade em relação ao caso, em especial a Comissão que viajou para o Uruguai. 1102 Noronha, que também era coronel do Exército reformado, questionava os trabalhos da Comissão já que “seu trabalho foi parcial e em sua maioria é composta de esquerdistas”, afirmando ainda que “80 por cento dos advogados da OAB” eram desta ideologia.1103 Ele qualificava todo o caso como “fofoca” e afirmava que seriam “suspeitos” os advogados Mariano Beck e Otávio Caruso, “já que são cassados” e que o advogado Omar Ferri é interessado no caso, pois defende a cidadã uruguaia. “De todos os quatro [que compunham a Comissão que foi ao Uruguai] – concluiu – somente Marcus Melzer merece confiança, pois é um homem de centro e muito equilibrado”.1104 No mesmo dia, Paulino de Vargas Vares, vice-presidente que estava de férias, além de manifestar à imprensa sua posição, reassumiu a presidência e convocou uma reunião extraordinária para o dia quatro de janeiro para deliberar sobre o imbróglio ocasionado pela fala de Noronha que, apesar de convocado, não compareceu. 1105 Na ata da sessão consta o telegrama enviado por Vargas para a Comissão no Uruguai, informando que havia retomado a presidência “reprovando publicamente” o pronunciamento de Noronha, o que também havia sido feito por Faoro.1106 A seguir foi destacada uma Comissão, formada por Leônidas Xausa, Walter Becker e Archimedes Almeida, para confeccionar uma nota pública que manifestava a opinião do Conselho sobre o assunto.1107 A nota desautorizava e repudiava o pronunciamento de Noronha, visto como de caráter pessoal “em completo divórcio com as decisões unânimes adotadas pelo Conselho”, além de o considerar 1101 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 1102 “Presidente interino da OAB/RS é contra Comissão e apóia decisão do governo”. In: Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano X, nº 2786, 4 de janeiro de 1979, p. 25. 1103 Idem, ibidem. 1104 Idem, ibidem. 1105 “Presidente lamenta”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 269, 4 de janeiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 9; “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 4 de janeiro de 1.979”. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1106 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 4 de janeiro de 1.979”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1107 Idem, fls. 2. In: OAB/RS. 261 insólito (…)já que, tendo se omitido de participar das deliberações sobre a matéria, manifesta-se, agora, de modo isolado, intempestivo e impróprio, confundido a opinião pública e tentando comprometer a missão nobremente desempenhada, no Uruguai, pelos advogados gaúchos, que representam oficialmente toda a ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, por delegação do Presidente do Conselho Federal.1108 A abstenção de Noronha pode ser um silêncio deste tipo de fonte, derivado de uma intencionalidade por parte da entidade, que teria excluído a discussão buscando mostrar uma união. Por outro lado, em entrevista Omar confirma que Noronha não havia se oposto em sessões.1109 A manifestação do Conselho seguia afirmando que as declarações do militar reformado/conselheiro caracterizavam “grave lesão a elementares deveres de ética e lealdade, pessoais e funcionais, que o incompatibilizam profundamente com o Conselho Seccional da Ordem, com o Conselho Federal e a própria Classe dos Advogados”.1110 Era feito também moção de censura a ela, “contando que sentimentos de honra possam conduzi-lo à única solução digna para o episódio” – provavelmente a renúncia, uma vez “que perdeu a confiança do Conselho”.1111 O Conselho reforçava “sua ampla e irrestrita solidariedade” nas duas Comissões do caso “cujos Membros continuam no desempenho de um encargo que se constitui em imposição da consciência cívica e jurídica da Nação”.1112 Finalmente, rechaçava a ideia de que os advogados seriam em maioria aderentes a esta ou àquela ideologia. A Ordem não tem como objetivo – e isso é corolário de suas tradições de respeito à pessoa humana – vigiar ou impor formas de pensamento ao cidadão, que é livre para adotar seus próprios princípios e ideais políticos (…).1113 Vale reforçar que a manifestação acima foi escrita por dois conselheiros, Walter Becker e Archimedes Almeida, que, como mostrei, haviam sido aliados de George Noronha em debates acalorados envolvendo posturas oposicionistas da OAB/RS. O fato de eles, junto de Xausa, terem feito a nota mostra que havia uma percepção por parte dos conselheiros de que o coronel reformado “teria ido longe demais”. 1108 Idem, ibidem. FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 1110 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 4 de janeiro de 1.979”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1111 Idem, ibidem. 1112 Idem, ibidem. 1113 Idem, fls. 2-3. 1109 262 Após a reunião, o Conselho foi a público anunciar sua posição em relação ao pronunciamento de George Tenório de Noronha. Mesmo que criticando a postura assumida pelo conselheiro, Justino Vasconcelos frisava que a renúncia era questão de “foro íntimo”, ainda que, conforme aponta a matéria do Jornal do Brasil, o presidente Faoro tenha afirmado que esperava que o conselheiro tivesse “a dignidade de se afastar” da entidade.1114 Nesta linha foi a entrevista dada pelo conselheiro Eloar Guazzelli, então deputado federal eleito, publicada na Folha da Manhã no dia 6 de janeiro.1115 Ele afirmava que havia conhecido George Noronha quando era militar e fazia parte do Conselho da Auditoria Militar de Porto Alegre. Guazzelli afirmou que, quando o reencontrou no Conselho da OAB/RS ficou surpreso, uma vez que não tinha passado pelo período obrigatório de dois anos após sair do Exército.1116 Eloar reforçou que ele havia entrado no Conselho Seccional “pela porta dos fundos” que seria pela indicação do IARGS, o que “leva a crer que Noronha tenha entrado de uma maneira misteriosa e alheia aos estatutos da classe”.1117 Na verdade, o coronel reformado havia sido eleito para os biênios 1975-1976 e 1977-1978, sendo indicado pelo Instituto para o biênio seguinte, que não havia tomado posse.1118 A escolha deste bacharel para uma das vagas do Conselho foi motivo de tensões e conflitos dentro do Instituto, gerando aparentemente, conforme apontei acima, uma renúncia da diretoria. Comparando a fala de Guazzelli com as atas do IARGS, pode-se constatar que a trajetória de Noronha dentro das entidades classistas não foi tão “misteriosa”, sendo fruto de imposição por parte da repressão. O deputado eleito seguia afirmando que “o bacharel em questão não possui representatividade alguma junto a classe de advogados gaúchos”, além de possuir o “malveso de rotular as pessoas e revelou, com sua manifestação, um visível propósito “OAB/RS repudia declarações”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 270, 5 de janeiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 8. 1115 “Para Eloar Guazzelli fala de Noronha foi ato de usurpação”. Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano X, nº 2788, 6 de janeiro de 1979, p. 15. 1116 Idem, ibidem. 1117 Idem, ibidem. 1118 “Ata da primeira sessão do Conselho, realizada em 03 de fevereiro de 1975”, fls. 2. OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 13 – 1974 1975 1976. Porto Alegre, 1976; “Ata da sessão extraordinária do Conselho realizada no dia 1º de fevereiro de 1977”.In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. É curioso que Guazzelli qualifica as vagas do IARGS como “porta dos fundos” uma vez que ele havia entrado no Conselho Seccional desta forma indicado para no biênio 19671968. Esta tática também foi utilizada pelos comunistas Antônio Pinheiro Machado Netto e Júlio Teixeira. MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz (org). Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul 60 anos de existência. Porto Alegre: IARGS, 1986, pp. 92-3. 1114 263 de desprestigiar o Conselho da Ordem”.1119 Eloar afirmava que George Noronha não “tinha condições alguma de julgar Mariano Beck ou Caruso da Rocha” que, diferentemente do coronel reformado, tinham “currículos e serviços incomuns ao Estado, como advogados e políticos”.1120 Para Guazzelli, Noronha buscava iniciar um movimento que levaria a uma intervenção da ditadura na OAB, além de dizer que a presença deste “na instituição se justifica e se explica, apenas, como mais uma das conseqüências do estado de exceção vigente no país, desde 1964”. Ele finalizou afirmando que O arbítrio a que fomos submetidos criou uma espécie de casta, de homens intocáveis e acima da lei. Noronha nos aparece como sendo um dos escudos destes super-homens e que está dentro da Ordem para defender iniquidades. Eu até esperava que esta pessoa saísse general. Como isto não aconteceu, ele se daria muito bem como executivo de alguma multinacional. Sei, apenas que o que não pode fazer, é se investir de representante da classe e defender idéias contrários [sic] a lei. Acredito, aliás que isto se enquadra num caso de usurpação.1121 Há na entrevista de Eloar Guazzelli diversas questões relevantes para pensar a atuação da Ordem e de sua relação com a ditadura. Um dos pontos é a indicação de que Noronha seria alguém infiltrado pelo regime na entidade – contando, assim, com a benevolência de alguns membros das agremiações classistas em liberalizar certas exigências para sua presença. Seguindo a lógica, talvez paranoica, de Guazzelli, o coronel reformado buscou, através de suas ações como presidente em exercício, dar um “golpe de Estado” na entidade, que, como procurei mostrar, vinha tomando posições mais críticas em relação à ditadura. Eloar Guazzelli aproveitou a situação, ainda, para expor sua visão sobre a ditadura, mostrando que havia uma proteção à repressão e aos seus agentes, além de vinculá-la aos interesses do capitalismo internacional.1122 Ao afirmar que Noronha poderia tanto estar à frente de uma grande empresa quanto nos altos cargos do Exército, ele sugere a existência de uma promiscuidade entre o grande capital e os donos do poder na ditadura. É possível, assim, que o deputado tenha utilizado do espaço promovido “Para Eloar Guazzelli fala de Noronha foi ato de usurpação”. Folha da Manhã, Porto Alegre, Ano X, nº 2788, 6 de janeiro de 1979, p. 15. 1120 Idem, ibidem. 1121 Idem, ibidem. 1122 George Noronha ainda iria responder as acusações dos presidentes dos Conselhos da Ordem, reafirmando suas opiniões, além de dizer que Faoro teria sido “ingrato” uma vez que sua eleição no Conselho teria sido garantida pela campanha realizada pelo coronel reformado. “Coronel diz estar estarrecido”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 271, 6 de janeiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 7. 1119 264 pelo debate para se manifestar politicamente, acenando com uma postura que buscaria levar para a Câmara. Já Omar Ferri, em seu livro, afirma que as atitudes do coronel reformado “eram dirigidas por alguém que estava diretamente interessado em nos desmoralizar em Montevidéu. Constituíam apenas a parte de uma trama em que ele atuava como marionete”.1123 Há, por parte destes advogados, duas visões diferentes, mas não excludentes, sobre a fala de Noronha: enquanto que Eloar a relaciona com a presença da repressão na sociedade brasileira, Omar vincula ao caso específico do sequestro. Pode-se afirmar que a diferença nas falas está relacionada à imagem pública que cada um tinha construído até aquele momento, Guazzelli ficando mais vinculado à defesa de presos políticos em geral e Ferri dos uruguaios. Nas duas perspectivas, George Tenório de Noronha era visto como uma peça – “escudo” ou “títere” – de algo maior. Apesar do constrangimento provocado pelas declarações de George Noronha, a Comissão da OAB/RS foi para o Uruguai, acompanhada dos jornalistas José Mitchell do Jornal do Brasil, Pedro Maciel e Olívio Lamas da Veja, José Antonio Zulian de O Globo, Henrique Lago da Folha de São Paulo e Ênio Staub da Folha da Manhã.1124 Raymundo Faoro intercedeu junto ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil para que pedisse à diplomacia uruguaia que auxiliassem a delegação.1125 A intervenção do presidente da Ordem acabou não sendo frutífera e a missão brasileira não foi recebida por nenhuma autoridade, além de não poder entrar em contato com Lilián e Universindo.1126 Mesmo assim, eles “colheram importantes relatos do menino Camilo, os quais, apesar de não terem serventia jurídica, foram fundamentais para o esclarecimento do caso”.1127 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 76. 1124 Idem, ibidem. 1125 REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 146. Dissertação de Mestrado em História. 1126 Idem, ibidem; FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 78-9. 1127 REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 146. Dissertação de Mestrado em História. 1123 265 Imagem 6: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 269, 6 de janeiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 9. Na fotografia, Lilia Celiberti recebendo os conselheiros da OAB/RS Marcus Melzer, José Mariano Beck e o advogado Omar Ferri. Fonte: Centro de Documentação do Jornal do Brasil. No Uruguai, a Comissão e os jornalistas sofreram constrangimentos, sendo espionados, além de sofrerem ameaças às suas integridades feitas por telefone a Faoro.1128 Ferri reforçou, em seu livro, que as pressões se deviam, também, à composição: O Dr. Melzer era o Presidente da Comissão e, como tal, assumia posições de magistrado. O Otávio Caruso, hábil pensador, com pendores para o jogo da diplomacia. O Mariano, com sua objetividade Idem, p. 147; FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 78-80. 1128 266 e coragem, formava comigo a linha de frente. Éramos, portanto, peças importunas no jogo, que precisavam ser anuladas.1129 É interessante notar que todos os componentes deste, parafraseando Omar, “quarteto lutador” haviam sido, em algum momento, políticos com atuação partidária: enquanto que Melzer fora deputado da UDN, Caruso da Rocha, Mariano Beck e Ferri, tinham atuaram no PTB. Omar Ferri afirmou que considerava, inicialmente, Marcus Melzer “sumamente conservador para estar do nosso lado naquela época”.1130 A estranheza em relação à presença do ex-udenista Melzer foi compartilhada por setores conservadores, como visto na fala de Noronha.1131 Como procurei mostrar aqui, nos debates realizados em sete de dezembro de 1976 e sete de junho de 1977, o conselheiro havia se oposto a um posicionamento mais crítico da OAB/RS em relação à ditadura, no qual era aliado de Noronha. Em outros momentos, como em sua participação no caso do sequestro, Marcus Melzer fez parte de barricadas de resistência à ditadura, constituindo, como afirmou Cunha, “um campeão dos direitos humanos na ditadura”.1132 Ferri, neste sentido, reforçou no livro Memórias da resistência e da solidariedade, que o conselheiro Melzer, personagem que nós não podíamos ter a mínima confiança num cidadão (…) se revelou um cidadão decente, corajoso, que eu passei a admirá-lo, de um caráter irreversível, porque para ele, acima de tudo, estava o direito da nossa luta, a conquista da justiça, da liberdade e da democracia. E ele lutou firme, inclusive contra ex-companheiros da UDN, demonstrando a dignidade de um personagem quando luta. Eu fiquei encantado por este cidadão. Marcus Melzer.1133 Em entrevistas concedidas para esta pesquisa, Ferri fez declarações semelhantes, da mesma forma que Carlos Frederico Guazzelli em conversas FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 83. 1130 “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 123. 1131 Luiz Cláudio Cunha conta em seu livro que o diretor do DOPS teria questionado Marcus Melzer afimando: “Ora, logo o senhor, um homem da sua reputação, defendendo essa gente que não passa de subversiva, que é capaz até de matar!... O senhor me desculpe, Dr. Melzer!”, ao que foi respondido pelo conselheiro que “quando o senhor tiver a minha idade, com certeza só terá compromissos com a verdade!”. CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 216. 1132 Idem, ibidem. 1133 “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 123. 1129 267 informais.1134 Estas referências mostram que, ao longo da ditadura, surgiu um consenso sobre as arbitrariedades do regime que extrapolou o campo político das esquerdas, especialmente nos meios jurídicos. Marcus Melzer, mesmo afinado politicamente com os setores que tomaram o poder em 1964, foi notando as violações da legalidade e dos direitos cometidas pelo Estado brasileiro e procurou combatê-las. Sem personagens como Melzer e Sobral Pinto a resistência nos meios jurídicos não teria sido tão bemsucedida. No momento em que pôs seus pés no solo brasileiro, Omar Ferri foi intimado para depor novamente na Polícia Federal, ainda no início de janeiro. 1135 O advogado compareceu acompanhado pelo presidente da Ordem gaúcha, Justino Vasconcelos, e foi inquirido pelo delegado Edgar Fuques.1136 Mais uma vez o passado de Ferri, em especial sua relação com Brizola, foi trazido à tona pelos interrogadores.1137 Neste caso também foram questionadas as declarações feitas pelo advogado contrárias às ações da polícia, ao que Vasconcelos retrucou que ele não precisaria responder.1138 Em seu livro, Ferri afirma que Luiz Cláudio Cunha e João Batista Scalco também haviam passado por constrangimentos semelhantes.1139 Em diversos momentos do livro o autor afirma que, enquanto os jornalistas tinham suas palavras desacreditadas pelas autoridades, as informações trazidas por ele eram consideradas “duvidosas, pois eu nada mais era do que um perigoso subversivo, defensor de terroristas e opositor do sistema. Ou – conforme a versão do Delegado Marco Aurélio – estava em busca da fácil notoriedade”.1140 Durante a CPI, instaurada no final de março de 1979, por exemplo, o deputado da Arena, Cícero Viana, afirmava que o caso todo seria uma montagem, preparada e ordenada à guisa de revanchismo político pelo advogado Omar Ferri, conhecido militante de esquerda, defensor permanente de envolvidos em terrorismo, atos de subversão, e sempre pronto para desfechar ataques contra organismos de segurança, 1134 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre; GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Nota sobre a composição da Diretoria do IARGS - Gestão 1974/76 [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017. 1135 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 82. 1136 Idem, p. 110. 1137 Idem, ibidem. 1138 Idem, p. 111. 1139 Idem, ibidem.. 1140 Idem, p. 108. 268 especialmente contra homens como o delegado Pedro Seelig, um dos baluartes no combate ao terrorismo e à subversão.1141 Outro deputado da situação que participou da CPI, Jarbas Lima, afirmava que o testemunho de Omar seria “suspeitíssimo”, pelas mesmas razões.1142 Além das ameaças e perseguições, o que se nota é que havia, por parte das autoridades, uma intensa e vigorosa campanha para desabonar as falas e ações daqueles envolvidos na apuração dos fatos, o que também ocorreu no incidente de Tenório de Noronha, que era confrontado pela mobilização da imprensa, da OAB e, posteriormente, da CPI da Assembleia Legislativa.1143 Com o intuito de ouvir os relatos da viagem ao Uruguai foi chamada a sessão extraordinária do Conselho da OAB/RS no dia dez de janeiro de 1979. Na ata constam, inicialmente, diversos telegramas e ofícios de personalidades e entidades recriminando a postura de George Tenório Noronha e oferecendo apoio, mostrando que a atitude da Ordem tinha respaldo em outros setores.1144 Há o registro de um ofício de Sobral Pinto sugerindo que o Conselho Seccional solicitasse a abertura de inquérito junto ao presidente General Geisel, evidenciando uma tática deste defensor: o contato direto com autoridades.1145 Na correspondência ainda consta a solidariedade da OAB de São Paulo “pela posição assumida no caso da FLÁVIA SCHILLING, brasileira que se encontra presa no Uruguai”, o que indica que a Missão àquele país também deve ter tratado deste tema.1146 Na sessão de seis de março, consta novo ofício desta seccional, solidarizando-se pela postura tomada pela OAB/RS no caso de Flávia e do sequestro.1147 Juntada aos documentos da Comissão consta uma carta do advogado de Flávia, Décio Freitas, 1141 Idem, p. 142. Idem, p. 157. 1143 A presença destes trechos no livro procurava, também, mostrar de que lado estava o autor, o que era o objetivo da “apresentação” feita pelo DOPS no início do livro, o que será analisado posteriormente nesta tese. 1144 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 10 de janeiro de 1.979”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. Além das menções feitas na ata, na documentação específica da Comissão Especial constam, por exemplo, telegramas de Júlio Teixeira e do Instituto dos Advogados do Brasil e carta do advogado J.T. Barbosa. OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil – correspondência geral, de solidariedade à OAB-RS. Porto Alegre, 1979. [Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27]. 1145 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 10 de janeiro de 1.979”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1146 Idem, ibidem. 1147 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 6 de março de 1.979”, fls. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1142 269 datada de seis de fevereiro de 1979, oferecendo apoio à OAB na questão do sequestro, o que também acena neste sentido.1148 Em relação ao objetivo principal da reunião de dez de janeiro, foram relatadas pelo presidente da Comissão, Marcus Melzer, as conclusões da missão. Ele procedeu a leitura do relatório e concluiu afirmando que: Lilián e os menores haviam ficado “detidos em dependências da Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul”; a identificação de Camilo envolveu Pedro Seelig “na remoção coativa”; os uruguaios deixaram o Brasil através de “atos coercitivos, ao arrepio da lei, praticados por agentes da autoridade pública, em abuso de poder”; a ação havia sido feita com o objetivo de que as crianças ficassem como reféns, o que, de acordo com o relatório, mesmo que fosse um “ procedimento inadmissível em país onde vige o Estado de Direito”, era comum no Uruguai; além da apuração da responsabilidade, o governo brasileiro deveria “exigir do Uruguai a restituição ao Brasil das vítimas da violência, como é das normas do Direito das Gentes, do respeito à Soberania Nacional e do acatamento à hierarquia das autoridades brasileiras”; e, finalmente, A recusa das autoridades uruguaias em receber a Comissão da OABRS, harmonizando-se com outros indícios colhidos em Montevidéu, levam a ponderar que depoimentos prestados pelos presos, antes da sua restituição ao Brasil, com os menores, carecem de credibilidade.1149 Após a leitura, foi proposto pelo conselheiro Leônidas Xausa que o Conselho o adotasse, o que foi unanimemente aprovado.1150 Melzer afirmou ainda que, partindo dos dados colhidos no país vizinho, havia reunido com o Secretário da Segurança, Cel. Rubem Moura Jardim, para tratar do caso, em especial a identificação de Seelig.1151 IV.2.3. Werner Becker e os jornalistas No início de janeiro de 1979 também houve os primeiros depoimentos oficiais de Luiz Cláudio Cunha e João Batista Scalco para a Polícia Federal. Neste contexto OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil – correspondência geral, de solidariedade à OAB-RS. Porto Alegre, 1979. [Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27] 1149 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 10 de janeiro de 1.979”, fl. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. O relatório também encontra-se na caixa referente à Comissão: OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil. Porto Alegre, 1978. [Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27]. 1150 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 10 de janeiro de 1.979”, fl. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1151 Idem, ibidem. 1148 270 surgiu publicamente, junto dos jornalistas, seu advogado, Werner Becker. De acordo com Cunha, no momento em que denunciaram o sequestro, foi recomendado aos jornalistas que buscassem o auxílio de um advogado, o que foi patrocinado pelo Sindicato dos jornalistas.1152 A esposa de Luiz Cláudio, Maria Jandyra, conhecia Werner e sua atuação na Justiça Militar e o indicou para ele.1153 Atuando em nome do Sindicato dos Jornalistas, Becker representou outros jornalistas no caso, além de Scalco e Cunha.1154 A entrada do advogado no caso deveu-se, principalmente, ao fato de ele já possuir “um nome” como defensor de presos políticos, ou seja, já reconhecido nesta expertise.1155 Werner inicialmente intercedeu em favor de Luiz Cláudio nos primeiros dias do ano, quando a polícia o dava por “desaparecido” e garantiu, ao governador Guazzelli, sua presença em depoimento à Polícia Federal.1156 Assim, em nove de janeiro, o advogado, além de Justino Vasconcelos, acompanhava o jornalista quando esteve diante Orandir “Didi Pedalada” Lucas pela primeira vez após sua visita ao apartamento da rua Botafogo.1157 CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 211. 1153 Idem, ibidem; BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, pp. 21-2. O advogado, em sua entrevista, contou que a partir do caso sua relação com o casal ficou muito próxima, chegando a ser padrinho de uma das filhas de Luiz Cláudio e Maria Jandyra. 1154 “CPI vai convocar Coronel que advogado acusa pelo seqüestro”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 53275, 31 de maio de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 16; OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil. Porto Alegre, 1978 [Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27]. 1155 Isto é reforçado pela apresentação que Luiz Cláudio Cunha faz do advogado em seu livro. Lá, além de mostrar as diferentes esferas da sociedade porto-alegrense em que o advogado atuou, narra uma anedota de uma defesa de presos políticos, bem ao estilo de Werner. CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 20811. 1156 Idem, p. 212; BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 22. 1157 CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 212; Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 275, 10 de janeiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 7. 1152 271 Imagem 7: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 275, 10 de janeiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 7. Na fotografia do alto, Werner Becker e Justino Vasconcelos (à esquerda) acompanham Luiz Cláudio Cunha (ao centro) em depoimento. Fonte: Centro de Documentação do Jornal do Brasil. 272 Nos dias seguintes, Becker denunciaria a quebra do sigilo da sindicância por parte do deputado arenista Cícero Viana, que teria tido acesso à mesma em um momento em que isto era vedado.1158 Frente à ativa participação de Werner, o advogado dos policiais, Oswaldo de Lia Pires, teria questionado o fato dos jornalistas, que eram testemunhas, terem advogado, fazendo assim insinuações sobre a culpabilidade deles.1159 A resposta de Becker, de acordo com entrevista concedida a esta tese, foi a afirmar que “quando a Polícia é a ré a testemunha tem que ter advogado”.1160 No final de janeiro de 1979, o advogado dos jornalistas solicitou a retirada dos documentos de seus clientes, buscando “resguardar a idoneidade dos jornalistas e testemunhas”, afirmando que “caso não fossem extraídos os documentos, as testemunhas passariam a figurar como réus”.1161 Para Ferri, isto deixava claro que a sindicância tinha a nítida intenção de transformar os denunciantes em denunciados. A continuar dessa forma, em breve o Luís Cláudio, o Scalco, eu e até o próprio Werner Becker poderíamos posar como réus. Sim, porque, numa espécie de processo kafkiano, os processados pela sua condução inacreditavelmente inverteram sua finalidade, numa manobra que acabaria caindo no absurdo.1162 De acordo com o livro Seqüestro no cone sul, a linha argumentiva do representante das testemunhas seguia afirmando que a sindicância, que deveria “apurar atividades ilícitas de funcionários”, objetivava levantar “a vida pregressa dos jornalistas e advogados” e que os “documentos e depoimentos em nada contribuem na busca da verdade sobre os policiais do DOPS que estão envolvidos”.1163 Em fevereiro de 1979, Werner surgiria novamente ao lado de Luiz Cláudio Cunha em fotografias que mostravam o jornalista depondo na Polícia Federal.1164 Neste momento, partindo de conversas e contatos com o delegado da Polícia Federal Egar 1158 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 278, 13 de janeiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 8; Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 281, 16 de janeiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 8. 1159 CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 212; BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 22. 1160 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 22. Esta resposta também está em CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 212. 1161 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 100. 1162 Idem, ibidem. 1163 Idem, ibidem. 1164 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 302, 6 de fevereiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 7. 273 Fuques, Becker afirmava à imprensa “ter chegado à convicção de que ‘as ligações da polícia do Estado com a polícia uruguaia são extremamente íntimas’”.1165 Estas passagens mostram que Werner “e suas bruxarias” acrescentaram uma nova dimensão jurídica que Ferri e os conselheiros talvez não pudessem dar. Além de dar guarida aos jornalistas, ele atuou ao lado deles na investigação. Um exemplo é o requerimento de março de 1979, no qual o advogado, em nome dos jornalistas, solicitava ao governador em exercício, deputado Carlos Giacomazzi, uma lista com os nomes dos funcionários do DOPS.1166 Este pedido levaria a um confronto entre o governador e os agentes de segurança, uma vez que o delegado do DOPS enviou a lista sem a cópia das identidades funcionais e, assim, sem maiores utilidades para a investigação. Mesmo sem as fotografias, a lista levaria Ferri e os jornalistas à Faustina Severino.1167 IV.2.4. Últimas manifestações da OAB/RS no caso A interlocução com o governo foi o intuito da sessão extraordinária do dia dezoito de janeiro, na qual esteve presente o governador Sinval Guazzelli para discutir o caso do sequestro e foi decidido pela divulgação de uma nota do Conselho.1168 A manifestação afirmava que, mesmo tendo pelo governador admiração e apreço, o Conselho lamentava “não poder aplaudir, como era do nosso desejo, as últimas declarações e medidas adotadas pelas autoridades estaduais, relativas ao chamado caso do seqüestro de cidadãos estrangeiros”.1169 A nota seguia afirmando que, pelas denúncias veiculadas e o apelo do advogado – “que se viu impedido de exercer a profissão” – a Ordem havia atuado no assunto, e, “de imediato, se apercebeu da existência de pressões dificilmente identificáveis, a entorpecer a marcha das apurações, insistindo na minimização da ocorrência que, na realidade, está comovendo o País”. 1170 1165 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 297, 1º de fevereiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 8. No mesmo mês há a menção, no Jornal do Brasil, de que o advogado iria entrar com uma ação penal por constrangimento ilegal em nome dos jornalistas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 306, 10 de fevereiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 7. 1166 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 324, 2 de março de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 7; FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 100. 1167 Idem, p. 123-4; CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 265-6. 1168 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 18 de janeiro de 1.979”. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1169 Idem, fl. 1. 1170 Idem, ibidem. 274 A Ordem afirmava que para combater isto era necessária uma Comissão de Alto Nível, composta pela entidade, Ministério Público e Associação Riograndense de Imprensa (ARI), uma vez que a opinião pública era de que a Secretaria de Segurança Pública não era imparcial para tratar do tema. A nota finalizava afirmando que “só esse trabalho investigatório feito por órgão acima de qualquer suspeita – mesmo decorrente de coleguismo – poderá desagravar a honra do nosso Governo. E a sua honra é a nossa honra. É a honra do Rio Grande”. 1171 Mesmo que dialogando com o governador, a Ordem, na nota, exigia uma postura enérgica em relação ao caso. A manifestação mostra que ela refletia os temores de setores da sociedade que temiam pela impunidade aos perpetradores do crime. Há registros de que nas sessões seguintes, no Conselho houve repercussões das ações levadas adiante pela Ordem. A sessão extraordinária de vinte e três de janeiro, por exemplo, foi presidida pelo presidente Raymundo Faoro, que agradeceu o trabalho do Conselho e da Comissão enviada a Montevidéu.1172 É datada de janeiro de 1979, ainda, uma carta de diversos jornalistas que consta nos documentos da Comissão Especial da OAB/RS sobre o sequestro.1173 Já na reunião de 1º de fevereiro, é mencionada carta datada de trinta e um de janeiro da AGETRA assinada pelo presidente Luiz Heron Araújo, que dava à Ordem completa e irrestrita solidariedade no caso, mostrando que este foi um momento de trégua entre setores rivais da classe que, nos meses seguintes, envolveriam-se no incidente relativo à sala dos advogados no TRT.1174 Na carta há a crítica a George Tenório Noronha e Manoel Gastal, presidente regional da Arena que havia apoiado publicamente o militar reformado.1175 1171 Idem, fl. 2. O pedido da Ordem pela Comissão de Alto Nível também foi registrado por Omar Ferri: FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 88. 1172 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 23 de janeiro de 1.979”. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1173 Constam entre eles, o Presidente da ARI, Ciro Castilho Machado (representando o Sindicato dos Jornalistas), João Batista Aveline, Ibsen Pinheiro, Pedro Flores (presidente da Associação dos Reporteres fotográficos e cinematográficos do Rio Grande do Sul), Lauro Hagemann, Cid Pinheiro Cabral, Divino Fonseca, Elmar Bones, Glênio Peres. OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil – correspondência geral, de solidariedade à OAB-RS. Porto Alegre, 1979.[Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27.] 1174 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 23 de janeiro de 1.979”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980; OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil – correspondência geral, de solidariedade à OAB-RS. Porto Alegre, 1979.[Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27.] 1175 OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil – correspondência geral, de solidariedade à OAB-RS. Porto Alegre, 1979.[Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27.] Heráclito de Sobral Pinto também criticou-o publicamente, afirmando que Gastal “estava enganado ‘ao supor que a finalidade da Ordem é só cuidar da seleção, disciplina e defesa 275 De acordo com o livro de Ferri, a AGETRA auxiliaria a ele e a Mariano Beck na busca que levaria a mais um personagem da trupe que rendeu os jornalistas no apartamento da rua Botafogo, Janito Jorge dos Santos Kepler.1176 Ainda de acordo com a obra, este agente seria instalado “no escuso cenário do sequestro” posteriormente pelas “denúncias feitas por Luís Carlos Cunha e Werner Becker à Polícia Federal”.1177 Na mesma ata de 23 de janeiro de 1979 há a manifestação do presidente do IARGS, Ruy Rodrigo Brasileiro de Azambuja, informando que, em relação à indicação de George Tenório Noronha ao Conselho Seccional, que o mesmo “declinou da investidura, conforme carta de 12/12/78”.1178 Estes registros mostram que as manifestações do coronel reformado foram repudiadas por diversos setores da categoria. Ainda na sessão do dia 1º de fevereiro foram unificadas as duas Comissões relativas ao sequestro – uma que investigava no Uruguai e outra em Porto Alegre –, foi proposta uma representação ao Ministério Público, além de distribuição de nota sobre a posição da OAB/RS.1179 No dia vinte e dois do mesmo mês foi chamada uma sessão extraordinária para analisar a sugestão de Raymundo Faoro para oficiar a Assembleia Legislativa “sobre a conveniência de, logo no início de seus trabalhos, instaurar-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito, relativa ao caso chamado do ‘seqüestro dos uruguaios’”. 1180 Após debater a questão, o Conselho optou por não fazer a iniciativa, o que mostra que havia, por parte da Ordem, certa cautela em suas ações. Em 13 de março, após a decisão de arquivamento da sindicância pelo Conselho Superior de Polícia referente ao envolvimento de agentes brasileiros no caso, o Conselho, a partir dos dados trazidos pelo presidente da Comissão da OAB/RS Marcus Melzer, decidiu pela confecção de uma nota manifestando sua posição. 1181 Nela a da classe’”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 306, 10 de fevereiro de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 7. 1176 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 86. 1177 Idem, ibidem. 1178 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 23 de janeiro de 1.979”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1179 Idem, fl. 3; OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil – fusão das duas comissões. [Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27]. 1180 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 22 de fevereiro de 1.979”. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1181 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 13 de março de 1.979”. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. Além da nota, ouve um pronunciamento do presidente Justino Vasconcelos datado do mesmo dia, no qual ele critica a postura do Conselho 276 Ordem afirmava que, ao realizar esforços por parte de sua Comissão criada para tratar do caso, “coletou provas claramente indicativas da existência de crime, cuja gravidade impunha, à Polícia do Rio Grande, medidas enérgicas e imediatas, na apuração das circunstâncias em que se consumou” e que os óbices que surgiam à investigação dos fatos fizeram que a entidade sugerisse ao governador que “organizasse Comissão de Alto Nível, mesmo ainda porque alegada a participação, no seqüestro, de pessoas integrantes do próprio organismo policial gaúcho”.1182 Para a entidade, o arquivamento da sindicância provava o acerto do pedido da OAB/RS: o ato do Conselho Superior de Polícia, segundo a nota, “além de injurídica, representou profundo e injusto agravo à própria instituição policial”.1183 A manifestação concluía que, felizmente, em boa hora, o Poder Legislativo, que instituiu Comissão Parlamentar de Inquérito, composta de representantes de ambos os Partidos, para investigar os fatos delituosos, em toda a sua amplitude, paralelamente ao procedimento judicial em andamento, e o Chefe do Poder Executivo que, no uso de sua competência, determinou a abertura do inquérito. A OAB-RS – a quem só interessa colaborar para que seja feita justiça e se restaure o império da lei – lamenta a resolução do Conselho Superior de Polícia e louva as da Egrégia Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul e do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado.1184 A declaração do Conselho representou, assim, uma continuidade no posicionamento que o sodalício vinha tomando no caso. Nesta sessão ainda foi aprovada, por unanimidade, a proposta de Melzer de que a OAB/RS colaborasse com a CPI.1185 Na ata da Assembleia Geral da OAB/RS de vinte e sete de março de 1979, ficou registrado que Omar Ferri havia feito um relato sobre o caso até então e a participação da entidade nele.1186 Nesta ocasião ainda foram feitos votos de louvor e homenagens a Raymundo Faoro, Justino Vasconcelos e Marcus Melzer, além de “desagravo a Superior de Polícia. OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil – fusão das duas comissões. [Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27]. 1182 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 13 de março de 1.979”, fls. 2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1183 Idem, ibidem. 1184 Idem, fls. 2-3. 1185 Idem, fls. 3. 1186 “Ata da Assembléia Geral, realizada em 27 de março de 1.979”, fls. 1-2. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 277 desconsiderações pelo mencionado Conselheiro sofridas”, que teria sido insultado em um incidente ocorrido no momento de instalação da CPI.1187 A partir desta sessão, a presença do caso nos registros das sessões do Conselho da OAB/RS passou a ser mais eventual.1188 Com a instauração da CPI, em fins de março, deve ter havido a conclusão, por parte da Ordem sul-rio-grandense, de que ela deveria deixar as investigações a cargo do legislativo, que teria mais autoridade para tal. IV.2.5. A fundação do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) Em março de 1979 foi criado o MJDH por um “grupo de abnegados” liderados por Jair Krischke, Celso Gaiger e Pe. Albano Thrink.1189 Esta entidade, ainda de acordo com Ferri em seu livro, veio a preencher uma lacuna, pois a Ordem dos Advogados tinha suas atribuições restritas, em virtude de seus objetivos específicos, e a Comissão de Justiça e Paz do Rio Grande do Sul se mostrava inoperante e habitualmente arredia no exame de problemas que envolvessem contestadores de regimes militares.1190 Augustino Veit, em depoimento prestado ao livro Memórias da resistência e da solidariedade, afirmou que o MJDH surgiu a partir da mobilização de setores católicos para a formação da Comissão de Justiça e Paz (CJP) no Estado.1191 De acordo com ele, durante um Seminário de fundação da CJP, o cardeal da Arquidiocese de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, negou a participação de integrantes vistos por ele como “comunistas”, o que fez os militantes formarem uma entidade fora da Igreja Católica, o MJDH.1192 1187 Idem, fls. 2. O caso foi motivo de manifestação em apoio a Marcus Melzer por parte do Conselho. OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil – fusão das duas comissões. [Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27]. 1188 Na ata da sessão de 3 de abril, existem duas menções ao caso, vindas de fora da entidade: um ofício da “Igreja Luterana, solidarizando-se com a OAB-RS pelo trabalho que vem desempenhando no caso”, e o registro de declarações de advogado a jornal de Lagoa Vermelha sobre sequestro, que, de acordo com a ata, não merecia ser contradita. Em 8 de maio há o registro em ata das congratulações da Assembleia Legislativa do Paraná à seccional sul-rio-grandense da Ordem por sua atuação no caso na “defesa da liberdade dos Direitos do Homem e da Soberania Nacional”. “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 3 de abril de 1.979”, fls. 2 e 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 08 de maio de 1.979”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1189 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 173. 1190 Idem, ibidem. 1191 “Depoimento 8 – Augustino Veit”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 135. 1192 Idem, ibidem. 278 Ferri, em diversas entrevistas, afirma que foi convidado para a assembleia de fundação da organização que se realizou na loja de Jair Krischke, momento em que conheceu este que seria seu companheiro de lutas futuras.1193 Questionado sobre a relação com outras entidades, Ferri afirmou que o MJDH acabou fazendo parte de uma rede, na qual podem-se colocar a OAB/RS e o CLAMOR, e que o advogado, por transitar nestes meios, acabava servindo de elo entre eles.1194 Na ata da sessão de oito de maio do Conselho da OAB/RS consta um ofício de Gaiger datado de três de abril, no qual comunicava “voto de total apoio e de aplausos, do MOVIMENTO DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS, à OAB-RS, pela atitude tomada no caso do seqüestro dos uruguaios”.1195 Confrontando as datas, pode-se ver que este voto deve ter sido proposto em uma das primeiras reuniões da entidade, mostrando a intenção de diálogo do Movimento com a Ordem. Uma das principais participações do MJDH no caso do sequestro foi relativo ao depoimento do ex-soldado uruguaio Hugo Walter Garcia Rivas. Ele, que havia participado do sequestro, desertou em dezembro de 1979 e, em abril de 1980, estava disposto a depor através de pagamentos, o que foi obtido pelo jornal Zero Hora.1196 Ferri afirma, em seu livro, que sua participação inicial no evento foi para checar as informações.1197 Garcia Rivas também buscava, através de seu testemunho, asilo político para ele e sua família, o que o MJDH conseguiu obter na Noruega através da Cruz Vermelha. 1198 O depoimento – que foi realizado em maio do mesmo ano na sede do MJDH com a presença de Ferri, Luiz Goulart Filho, Carlos Alberto Kolecza, Paulo Maciel, Nora Helena Tatsch, Jacques Alfosin e Jair Krischke – permitiu o levantamento de diversas informações sobre a operação que levou ao sequestro na rua Botafogo, o que foi “Depoimento 7 – Omar Ferri” In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 135; FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 1194 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 1195 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 08 de maio de 1.979”, fl. 1. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1196 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 185. 1197 Idem, p. 187. 1198 Por ter pertencido a órgãos repressivos, não foi possível obter proteção junto ao Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, pp. 155-6. Dissertação de Mestrado em História. 1193 279 fundamental “para a posterior condenação dos envolvidos no lado brasileiro e para o esclarecimento do sequestro do lado oriental”.1199 Ferri aponta em seu livro que neste período Garcia Rivas falou também a diversas entidades, como a OAB e o SIJAU.1200 As informações, porém, só foram publicizadas no momento em que o ex-soldado deixou o país.1201 Havia a preocupação de proteger esta fonte, “pois se tratava do primeiro (e único, até o momento) relato de um protagonista direto do comando repressivo binacional”.1202 IV.2.6. A CPI e o Ato de solidariedade aos uruguaios “e tantos quantos tenham sido violados em seus direitos individuais” Ainda no final de março de 1979, Omar Ferri junto de Luiz Cláudio Cunha, do fotógrafo Ricardo Chaves, além de outros jornalistas, reconheceram a escrivã do DOPS Faustina Severino como a mulher “oscura de pelo redondo” que Camilo Celiberti afirmava ter cuidado dele e de sua irmã quando estavam detidos no local.1203 Depois de seguir a pista nos meses anteriores, eles chegaram ao nome através de uma das coincidências do caso: ela era irmã de Delaro Severino, que havia sido cliente de Omar nos meses anteriores. Por esta razão, a escrivã havia dado telefonemas anônimos que auxiliaram na investigação no início do caso. Após seu reconhecimento por Camilo, ela foi chamada a depôr na CPI, falecendo dias depois em circunstâncias misteriosas. Em seu velório, estavam presentes autoridades civis e militares de primeiro escalão, o que causou surpresa tanto da imprensa quanto da diplomacia uruguaia, sendo visto como uma admissão de culpa.1204 A imagem de Faustina é de que ela seria “o calcanhar de Aquiles”, para Ferri, ou o “elo 1199 Idem, p. 156. FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 188. 1201 REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 156. Dissertação de Mestrado em História. 1202 Idem, ibidem. 1203 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 123-7; CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, pp. 265-8; REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 142. Dissertação de Mestrado em História. É digno de nota, ainda, o relato cinematogrático do livro de Luiz Cláudio Cunha de como os fotógrafos Ricardo “Kadão” Chaves e Olívio Lamas conseguir obter uma fotografia da esquiva Faustina. CUNHA. Op. cit., pp. 268-70. 1204 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 126; CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, pp. 278-80; REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 143. Dissertação de Mestrado em História. 1200 280 mais fraco”, para Jair Krischke, e a conclusão majoritária é de que por esta razão ela acabou sendo morta pela repressão.1205 A CPI foi marcada por “fogo cerrado”, segundo as palavras de Ferri, devido à atuação de deputados arenistas Jarbas Lima (relator da CPI) e Cícero Viana, exdelegado de polícia classificado pelo advogado como “dedo-duro confesso”.1206 Estes parlamentares buscaram desconstruir as versões que apontavam para o sequestro, além de buscar desacreditar os testemunhos de Ferri e dos jornalistas. O papel de Jarbas Lima em certa medida contrastava com de seu irmão, Nereu, que havia atuado em uma das Comissões da OAB/RS sobre o caso. Quando questionado sobre a diferença entre os irmãos Lima durante o caso do sequestro, Ferri afirmou que o parlamentar tinha tido uma “atuação deprimente” e não tinha nenhuma crítica ao trabalho do conselheiro.1207 Os irmãos, que haviam iniciado no Direito como estagiários do escritório de Eloar Guazzelli estavam em pólos opostos: Nereu auxiliando os trabalhos investigativos da Ordem e Jarbas buscando dar guarida aos agentes da repressão na CPI.1208 Frente a uma ação destes deputados, a Ordem acabou pronunciando-se na sessão extraordinária de vinte e sete de abril de 1979.1209 De acordo com o documento, Marcus Melzer havia trazido o assunto e, após debates, foi confeccionada uma manifestação que afirmava que a entidade foi chamada a atuar no caso do sequestro dos uruguaios pelos reclamos de um advogado tolhido de prestar os seus serviços profissionais e pela revelação de indícios de prátiva (sic) delituosa de agentes da autoridade pública articulados com agentes estrangeiros, em ofensa à ordem jurídica, à soberania nacional e à própria Declaração Universal dos Direitos do Homem.1210 Assim, ela considerou que “no momento em que a matéria mereceu trato regular e legal, a Ordem considerou atingido o seu principal objetivo”, afastando-se do caso, não deixando “de colaborar, quando solicitada, quer pela Assembléia Legislativa, quer FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 126; REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 143. Dissertação de Mestrado em História. 1206 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 129 e 139. 1207 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 1208 Jarbas havia atuado junto do advogado em Vacaria,“herdando” esta banca quando Eloar transferiu-se para Porto Alegre; já Nereu, como mostrei no capítulo anterior, tinha trabalhado com Guazzelli durante a década de 1960. LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 8 de agosto de 2013, em Porto Alegre, p. 1. 1209 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 27 de abril de 1.979”, fls. 2-4. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1210 Idem, fls. 2. 1205 281 pelo Poder Judiciário, quer pelo Ministério Público, como também pelas autoridades administrativas”.1211 Neste sentido a entidade manifestava que havia indícios de que “não fossem a ação desenvolvida pela Ordem e a ampla divulgação da imprensa, esta, num trabalho meritório e elogiável, o assunto teria caído em silêncio tumular” e que, com o desenrolar das investigações, começaram “a surgir afrontas tendentes a esmaecer a seriedade dos esforços daqueles que cumpriram o seu dever legal e moral no esclarecimento dos fatos e apuração das responsabilidas, acionando os órgãos com-petentes”.1212 A nota seguia levantando falas e ações de diferentes personalidades e entidades que apontavam no sentido da necessidade de se chegar ao âmago dos fatos. A manifestação finalizava renovando as conclusões da Comissão que viajou ao Uruguai, de que enquanto perdurar a atual situação de constrangimento, não merecem qualquer credibilidade as declarações das vítimas e seus famíliares perante autoridades uruguaias. A Ordem pautou e pauta o seu comportamento na estrita observância das normas legais que a regem, fiel aos princípios que a estruturam e infensa a quaisquer tentativas que pretendam comprometer a isenção de sua conduta”. 1213 A nota da OAB/RS deve referir-se a provas trazidas à CPI pelo deputado arenista Cícero Viana, em especial um depoimento de Lilia Celiberti, no qual a mãe da sequestrada desmentia as denúncias levadas adiante até ali pelo “triunvirato lutador”, além de afirmar que havia sido constrangida pela ação dos jornalistas.1214 Além de questionar as acusações do deputado, a entidade, através da declaração novamente colocava-se no debate público sobre o tema. Posteriormente, seria solicitado pelos deputados do MDB presentes na Comissão a identificação por parte do deputado da pessoa que colheu as declarações da mãe de Lilián. Como Cícero Viana negou-se a dar o nome, Werner Becker orientou os jornalistas Pedro Maciel e Olívio Lamas a não comparecerem à CPI. De acordo com a carta enviada pelo advogado ao presidente da CPI, deputado Nivaldo Soares, os jornalistas ficariam em posição “assimétrica” dentro da CPI, uma vez que não se sabia 1211 Idem, ibidem. Idem, fls. 3. 1213 Idem, fls. 3-4. 1214 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 139-41. 1212 282 quem teria obtido o depoimento: a presença deles daria-se no momento em que se soubesse seu nome.1215 Na carta ainda era questiondada a “legitimidade da presença de membro” da Comissão que não trazia a público esta informação.1216 De acordo com matéria veiculada no Jornal do Brasil, Werner Becker teria falado com os outros membros da CPI que “enquanto o Deputado Cícero Viana nega-se a colaborar com a CPI, da qual é membro, ‘os jornalistas ficam sob ameaça, agora, de serem conduzidos à Assembléia sob vara, quem sabe até num camburão. Isto é lamentável’”. 1217 Através desta tática, o advogado buscava pressionar a CPI para resolver o problema gerado pelo suposto documento de Viana e ao mesmo tempo, atacava seus métodos. Em dezessete de setembro de 1979 foi entregue por Jarbas Lima o relatório da CPI, no qual ele apontava para a inexistência de delito, desqualificando a documentação trazida pelos jornalistas, Ferri e pela OAB, lançando suspeitas sobre eles e sobre Lilián e Universindo.1218 No livro Seqüestro no cone sul, o advogado afirma que o documento foi feito encomendado a Manoel da Braga Gastal, presidente regional da Arena, e carecia “dos pré-requisitos de independência e de imparcialidade”.1219 Em resposta, Omar enviou uma carta ao presidente do Conselho Federal da Ordem, Eduardo Seabra Fagundes, no dia 20 de setembro. Ele afirmava que A invencível dificuldade nacional da busca da verdade se fez notar em caráter mais concreto nesse caso do sequestro. Esse circunstanciamento prova a falta de responsabilidade daqueles que têm obrigação de apurar a verdade e esclarecer os fatos. Devemos chamar a atenção dos homens de bem deste país para que se inicie quanto antes um movimento em busca da verdade nacional.1220 1215 BECKER, Werner. [Carta ao dep. Nivaldo Soares, de 30 de maio de 1979], fls. 2. In: OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil. Porto Alegre, 1978. [Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27]. 1216 Idem, ibidem. Entre os documentos da Comissão da OAB consta ainda uma carta de Becker a Marcus Melzer, explicando suas razões. BECKER, Werner. [Carta ao pres. da Comissão Especial Marcus Melzer de 31 de maio de 1979], fls. 2. In: OAB/RS. Processo n° 7423/78 – Comissão Especial da OAB/RS, para tratar do sequestro de uruguaios, no Brasil. Porto Alegre, 1978. [Memorial OAB/RS – Caixa Diversas 27]. 1217 “CPI vai convocar Coronel que advogado acusa pelo seqüestro”In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 53275, 31 de maio de 1979, 1º Caderno, Nacional, p. 16. 1218 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 153-56; REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 153. Dissertação de Mestrado em História. 1219 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 158. 1220 Idem, p. 160. 283 Percebe-se a menção recorrente à questão da verdade, vinculada às violências perpetradas pela ditadura, ao mesmo tempo em que mostrava que a “busca” e a “apuração” era dificultada pelos agentes da repressão. Posteriormente, Ferri afirmava que, na opinião do relatório “as provas deliraram como deliraram por ocasião da CPI da morte do menor Carlos Pinto Arébalo”, agregado de Pedro Seelig, que havia sido morto no DOPS em 1973.1221 Ao vincular as duas CPIs, o advogado buscava chamar a atenção para a impunidade em relação a este tipo de crime. Ainda na carta de Ferri era mencionado que tanto o inquérito como a CPI trataram mais de investigar os antecedentes das testemunhas oculares do crime e do advogado das vítimas. Nossos depoimentos foram verdadeiros interrogatórios, buscando o nosso descrédito e acusando o MDB de promover politicagem. (...) Longo e vazio é o relatório. (...) Não aliciei testemunhas. Isso seria indignidade. Quero ter sempre minha tez erguida. Não envergonharei minha mulher, nem meus filhos. Esse relatório é uma sucessão de falsidades. Não lutei em favor da subversão. Continuo lutando em favor da verdade tão sorrateiramente escamoteada pelo relatório. Luto pelo direito. Luto pela justiça. Chamar-me, no relatório, de suspeitíssimo é inconcebível maldade e sórdida estupidez. O relatório além de moleque, é leviano e muito pior, capacho de uma odiosa e repressiva situação política.1222 Além de questionar o relatório, Ferri buscou na carta denunciar as intenções dos parlamentares da Arena durante os trabalhos da Comissão. Ele também respondia às acusações de Jarbas Lima sobre sua atuação no caso, afirmando que não havia influenciado os testemunhos de Lilia e Camilo e defendendo sua imagem, que era pintada como a de um “suspeitíssimo subversivo”. 1221 Idem, ibidem. O caso do sequestro lançou uma onda de denúncias sobre o delegado, tendo o Coojornal realizado matéria na qual entrevistou, entre outros, Eloar Guazzelli, que afirmava que Seelig ““Depois que ele obtinha as informações, fazia camaradagens para os presos: levava televisão, proporcionava jogos. Tornava-se amigo e até protetor de alguns presos, define o advogado de presos políticos e hoje deputador federal Eloar Guazzelli.” TUBINO, Najar; SCHIMDT, Caco. “Um delegado acima da lei”. In: Coojornal, Porto Alegre, Ano IV, nº 40, abril de 1979, p. 29. 1222 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 161. 284 Devido a estas características, o relatório de Lima foi rejeitado em 1º de outubro, e foi pedido novo documento ao deputado Ivo Mainardi (MDB).1223 O novo relatório, mais sucinto, afirmou que Pedro Seelig, Orandir “Didi Pedalada” Lucas e Janito Kepler haviam participado dos delitos. 1224 O documento ainda qualificava de “velha e surrada técnica policial de governos ditatoriais” a tentativa de transformar as testemunhas em réus, o que ocorreu em diversos momentos no caso.1225 Em doze de novembro de 1979, quando o sequestro completou um ano, foi organizado pelo MJDH um ato público no plenário da Assembleia Legislativa em solidariedade aos uruguaios “e tantos quantos tenham sido violados em seus direitos individuais”.1226 Este evento contou com a participação de diversas personalidades vinculadas ao caso e à luta pelos direitos humanos em geral, em especial os pais de Lilián Celiberti, os jornalistas, conselheiros da OAB/RS e deputados envolvidos na CPI.1227 Inicialmente, foi realizado um painel que contou com as falas de Luiz Cláudio Cunha, do conselheiro da OAB/RS José Mariano Beck, dos deputados Carlos Giacomazzi e Nivaldo Soares, de Jair Krischke, do rev. Jaime Wright e do jurista JeanLouis Weill.1228 Em seguida, passou-se para um culto ecumênico no qual foram colocadas lado-a-lado passagens da Bíblia e a Declaração dos Direitos Humanos.1229 1223 Idem, p. 162; REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 154. Dissertação de Mestrado em História. 1224 O relatório ainda afirmava que João Antonio Silveira de Castro, Oswaldo Biaggi de Lima e Patrocinio Lugo Acosta tinha realizado falso testemunho. O primeiro foi o advogado que havia negado sua relação com Janito Kepler e os últimos afirmado que os uruguaios tinham utilizado um ônibus em Bagé a caminho do Uruguai. FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 162; REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, pp. 154-5. Dissertação de Mestrado em História. 1225 REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 155. Dissertação de Mestrado em História. 1226 “Expediente para reunião do dia 07 novembro.1979”. In: IARGS. Maço de documentos avulsos. Além do Instituto, consta o convite, feito por Mariano Beck, aos membros do Conselho da OAB/RS. “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 06 de no-vembro de 1.979”, fls. 3. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1227 Entre os nomes citados por Ferri vale a menção de Jean-Louis Weill, reverendo Jaime Wright, Celso Gaiger, os conselheiros da OAB/RS José Mariano Beck, Marcus Melzer e Rovílio Breda (da OAB), os deputados Carlos Giacomazzi, Ivo Mainardi, Romildo Bolzan e Nivaldo Soares, Luiz Cláudio Cunha, João Batista Scalco, e os vereadores Marcos Klassmann, Antonio Cândido e Glênio Peres. FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 179. 1228 Idem, p. 179-80. 1229 Idem, p. 180. Em entrevista o advogado afirmou que quem havia idealizado esta passagem foi o ver. Jaime Wright. FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre 285 No ato denunciava-se que “nem todos os homens nascem livres e nem iguais em dignidade e direitos” e que “a extrema pobreza generalizada é o triste e doloroso fruto desta discriminação e adquire na vida real rostos muito concretos”.1230 Os torturados, mortos e desaparecidos da América Latina também foram lembrados, afimando-se que por conta das ditaduras ela “tornou-se um dilúvio de sofrimento por causa das prisões, detenções, exilamentos (sic) e desaparecimentos”.1231 Em seu livro Ferri afirma que todos os presentes rezavam de mãos dadas, mãos luteranas, mãos presbiterianas, mãos católicas, cristãs, judias, episcopais e até mãos marxistas – todas porém iguais na forma, irmãs na expressão, maduras na crença de um mundo melhor, de compreensão de amor, de igualdade – sem tortura, sem injustiça, sem sevícia, sem humilhação. Por isso todas suplicavam pelo fim da barbárie, dos sequestros, dos assassinatos (...).1232 Nesta passagem percebe-se que havia, por parte dos participantes, uma visão ampla de direitos humanos no qual a defesa da integridade física e direitos civis andavam juntas à justiça social e econômica. Este trecho mostra que, além dos direitos humanos terem adquirido uma relevância enquanto causa, eles eram percebidos também como a luta por uma sociedade igualitária e como um elo entre diferentes crenças religiosas e posições políticas. IV.2.7. Seqüestro no Cone sul: a “visão pessoal” de Omar Ferri e sua repercussão No final de outubro de 1981, próximo dos três anos do sequestro dos uruguaios, Omar Ferri publicou seu livro Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Inicialmente, o livro foi lançado na sede da OAB/RS em vinte e oito de outubro, sendo feita uma sessão de autógrafos no final da primeira semana da Feira do Livro de Porto Alegre, em seis de novembro às 19 horas.1233 Entre os presentes ao lançamento do livro constavam os pais de Lilián Celiberti, Lilia e Homero.1234 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 181-2. 1231 Idem, p. 182. 1232 Idem, p. 184. 1233 “Livro relata o sequestro de uruguaios”. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 29 de outubro de 1981, 1º Caderno, Nacional, p. 6; Folha da Tarde, 29 de outubro de 1981. Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura/ AHRS. 1234 REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 145 (Dissertação de Mestrado em História). 1230 286 Antes de sair, já veiculavam na imprensa as denúncias que o autor colocaria em sua obra, o que motivou ameaças de processos por parte de agentes da repressão citados.1235 Em resposta, o deputado Cícero Viana, que havia sido alvo de críticas do advogado, afirmava que estaria escrevendo obra negando a versão de sequestro intitulada “Omar Ferri e os Terroristas do Cone Sul”, o qual, aparentemente, nunca existiu além da nota no Jornal do Brasil.1236 Já o livro de Ferri, publicado com uma tiragem de três mil exemplares, teve boa recepção do público. De acordo com o jornal Zero Hora, antes mesmo da sessão do dia seis, o autor já era visto na Feira do Livro fazendo dedicatórias para leitores.1237 De acordo com recortes de jornal presentes no Acervo Particular Omar Ferri, Seqüestro no cone sul constava em segundo lugar na categoria não-ficção em duas listas de mais vendidos da Feira, figurando ao lado de outras obras memorialísticas e de análise sobre a ditadura.1238 Conforme apontam matérias analisadas, naquele momento havia grande preferência “pelos livros políticos e polêmicos”, o que fazia com que articulistas afirmassem que um livro como o de Omar Ferri, que era “atual”, entrava “em detalhes à base de farta documentação” e fazia “novas denúncias envolvendo policiais gaúchos”, tinha tudo para “estourar na Feira”.1239 Mais próximo do final de ano, o livro seria lançado também em São Paulo, sendo alvo de comentários da imprensa do centro do “Advogado conta em seu livro como foi o sequestro de Lilian Celiberti no Sul”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XCI, Edição 200, 25 de outubro de 1981, 1º Caderno, Nacional, p. 8; Folha de São Paulo, 29 de outubro de 1981, 1º Caderno, Nacional, p. 6. 1236 “Livro nega sequestro de uruguaia”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XCI, Edição 206, 31 de outubro de 1981, 1º Caderno, p. 4; REIS, Ramiro José dos. Operação condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2012, p. 152 (Dissertação de Mestrado em História). 1237 “Foi o primeiro grande dia de vendas na praça”: In: Zero Hora, 4 de novembro de 1981. Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura/ AHRS. 1238 Idem; Folha da Tarde, 9 de novembro de 1981. Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1 Acervo da Luta Contra a Ditadura/ AHRS. As obras eram Brasil Pós-Milagre, de Celso Furtado, 1964 – A conquista do Estado, de René Dreifuss e Guerra é Guerra Dizia o Torturador, de Índio Vargas, que figuravam ao lado de Henfil na China, de Henfil e Anedotário da Rua da Praia, de Renato Maciel Sá Junior. 1239 “Foi o primeiro grande dia de vendas na praça”: In: Zero Hora, 4 de novembro de 1981. Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura/ AHRS; Folha da Tarde, 9 de novembro de 1981. Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura/ AHRS. Em resenha do jornal Estado de São Paulo, é mencionado que a série “Depoimentos” da Editora Mercado Aberto iniciada pelo livro de Ferri abordaria “temas atuais e polêmicos”. “Livros” In: Estado de São Paulo, 24/12/81. Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura/ AHRS. 1235 287 país que, além de abordar o tema do livro, tratavam das polêmicas promovidas por agentes da repressão citados.1240 De acordo com a Folha de São Paulo, a obra era uma “síntese da massa de informações diariamente divulgada pelos meios de comunicação, dando-lhe um ordenamento lógico e conferindo à narrativa um desdobramento natural das várias fases do episódio”.1241 Em carta convidando Eduardo Seabra Fagundes para escrever o prefácio, Omar Ferri define assim seu livro: Quanto a exposição da matéria, considerei que ela deveria ser apresentada exatamente como aconteceu e como foram, após, surgindo fatos e personagens, para, só ao final, contar a história pura. A visão é minha. É pessoal. Acho que a narrativa é um pouco apaixonada e isto se deve porque eu sou assim, mas é honestíssima.1242 Este trecho define bem a estrutura geral do livro: ele é escrito do ponto de vista de Ferri, sendo narrados os eventos e informações obtidas com o desenrolar da trama. Desta forma somente ao final do livro é apresentado ao leitor o que ocorreu a Universindo, Lilián, Camilo e Francesca. Ao mesmo tempo, o livro não é fruto simplesmente do testemunho do advogado: ele baseia-se em farta documentação que dava conta dos mais de dois anos de envolvimento no caso, que, em diversas passagens, eram citadas literalmente. Conforme Ferri informou a Seabra Fagundes, considerei que não deveria esconder fatos ou ser condescendente com um ou outro figurão. Coloquei a verdade em primeiro lugar. A não ser, um ou outro “verniz literário”, que ilustrou a narrativa, dentro de uma lógica absoluta, tudo pode ser devidamente comprovado por 9 pastas de recortes de jornais e 5 pastas de documentos e demais bibliografia de livros e publicações.1243 Esta preocupação com a documentação derivava do contexto do lançamento do livro. Mesmo que já houvesse uma abertura para discussão e atuação política, em 1981 vivia-se em plena ditadura e aqueles que eram mencionados como torturadores pela “Sequestro de uruguaios no livro do advogado”. In: Folha de São Paulo, 15 de dezembro de 1981. Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura/ AHRS; “Livros” In: Estado de São Paulo, 24/12/81. Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura/ AHRS. 1241 “Livro relata o sequestro de uruguaios”. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 29 de outubro de 1981, 1º Caderno, Nacional, p. 6. 1242 FERRI, Omar. [Carta] 13 de maio de 1981 [para] FAGUNDES, Eduardo Seabra, fl. 1. Agradecimento por pelo prefácio escrito. Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura/ AHRS. 1243 Idem, ibidem. Esta documentação posteriormente foi doada para o Acervo da Luta Contra a Ditadura, constituindo a maioria dos documentos do Acervo Particular Omar Ferri, que ainda conta com os originais do livro e de recortes com a repercussão. 1240 288 obra ainda atuavam profissionalmente. Ferri podia ser alvo de processos e ataques: para combatê-los devia proteger-se com suas fontes. A forte base na documentação também tinha a ver com o objetivo que Omar Ferri tinha ao escrever a obra. Quando questionado sobre isto, no livro Memórias da resistência e da solidariedade, ele afirmou que Eu quis registrar esse fato, porque eu achei muito importante, porque, depois da Operação Condor, foi o único processo em que houve uma manifestação do Poder Judiciário condenando os envolvidos nesse fato do sequestro. Quer dizer, eles mentiram tanto, a Polícia Federal se serviu para fazer crimes de falsidade ideológica (…). Tudo mentira da Polícia Federal! E eu disse isto aí [no livro], que é mentira. Outra coisa, vocês já se deram conta que, na Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa, o relator disse que não houve crime, se não há crime não têm culpados, e pediu o arquivamento. Foi preciso que o MDB, ou PMDB na época, não aprovasse o relatório e indicasse um Deputado Estadual, que por sinal era Promotor Público e se chamava Ivo Mainardi, para fazer o relatório final em nome da Assembleia Legislativa. Foi um Promotor Público, e que concluiu na existência dos crimes de sequestro, não é? Então esta é a razão do livro. O livro eu... Eu retratei no livro o que aconteceu naquela época.1244 Esta passagem mostra que Seqüestro no cone sul tinha uma dimensão jurídica: uma vez que a responsabilização dos fatos não alcançou a repercussão que ele e outros envolvidos pensavam que deveria ter, Ferri, colocando todos os fatos e documentos, lançava para a esfera pública o julgamento. Por esta razão em vários momentos do livro sua argumentação assemelha-se a de advogado que, em um julgamento, buscava restituir a verdade e a justiça. E para isto era vital esta documentação. No livro, também, Ferri procurava mostrar quem ele era e de que lado ele lutava. Um exemplo disso é a seção inicial do livro “O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) ‘confidencialmente’ apresenta o autor”.1245 Neste trecho há os dados presentes em sua ficha do DOPS, à qual ele teve acesso durante o caso, contrapostos a “comentários irônicos” do autor.1246 Nesta e em outras passagens do livro, Ferri procura “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 134. 1245 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 13-32. 1246 “Livro relata o sequestro de uruguaios”. In: Folha de São Paulo, 29 de outubro de 1981, 1º Caderno, Nacional, p. 6. 1244 289 apresentar-se como um ferrenho e bravo opositor da ditadura, inclusive sendo visto pela repressão uruguaia “com muito respeito e certo temor”.1247 Assim, a obra tinha, ainda, uma dimensão política: a partir dela, Omar Ferri afirmava-se num contexto de abertura, como alguém que resistiu e lutou contra a ditadura. É possível que a publicação objetivasse, também, reconstruir sua carreira política interrompida pelo golpe, constituindo um investimento para a concretização de uma candidatura no ano seguinte. O livro, ao mesmo tempo, gerou questionamento por parte de setores das esquerdas durante a campanha eleitoral de 1982. Conforme recorte do Coojornal presente no APOF, o periódico estampava uma fotografia do advogado na convenção do PMDB abraçando Sinval Guazzelli, com os dizeres “e dizer que Ferri em seu livro ‘Seqüestro no Cone Sul’ chamou o ex-governador de covarde e omisso”.1248 Omar afirmou, em entrevista, que aquela foto foi o registro de um momento específico em que os dois estavam próximos em um palanque, no qual estavam todos os candidatos do partido.1249 Percebe-se, porém, em Seqüestro no cone sul, que Synval é inicialmente definido como “um verdadeiro magistrado” que “cumpria o protocolo com a nobreza que lhe era peculiar”.1250 Em diversos momentos, Ferri não questiona as intenções de Guazzelli em denunciar e punir os envolvidos com o caso: o ex-governador estaria “inflamado e disposto a denunciar a trama”, sendo, posteriormente, tolhido em suas intenções por setores militares.1251 Assim, a imagem que o advogado pinta é a de “um Governador que, embora honesto, não tinha pulso nem firmeza para decidir sobre problemas que diziam respeito à Polícia”, o que não ocorre com seu sucessor Amaral de Souza.1252 Omar chega a afirmar que “dependendo da conotação que se empresta à FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 194. Além destas passagens esta imagem é clara também em um discurso de Pedro Simon transcrito no livro. Idem, p. 216. 1248 “As Imagens que revelam detalhes de uma campanha”. In: Coojornal, Porto Alegre, setembro de 1982. Acervo Particular Omar Ferri/Série 2/ Caixa 1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura/ AHRS 1249 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 1250 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 64. 1251 Idem, p. 65. O principal evento apontado por Ferri para a mudança de orientação do governador foi uma visita de 20 minutos do Comandante do III Exército “feita em mangas de camisa” no dia 27 de dezembro de 1978. Idem, p. 73. 1252 Idem, p. 88. Semelhante imagem pode ser vista nas páginas 73, 90, 93 e 104. 1247 290 palavra amigo, eu inclusive me considerava amigo do Governador, desde os tempos de Assembléia Legislativa, amizade que até hoje prezo”.1253 Uma vez que em 1981, Guazzelli estava no Partido Popular (PP) e, assim, não indicava que iria dividir palanque com Ferri, estes excertos levam a pensar que o advogado via no governador um adversário leal, diferentemente de Jarbas Lima, Cícero Viana e Amaral de Souza. A menção ao convívio dos dois como parlamentares antes do golpe sugere que Sinval estivesse vinculado, para Omar, a uma outra forma de fazer política, na qual o debate e as visões de mundo divergentes não impossibilitavam a camaradagem e a lealdade. Isto explica o fato dele ter, em entrevista concedida para esta pesquisa, criticado a forma como Luiz Cláudio Cunha representou Sinval Guazzelli, em especial a afirmação do jornalista de que o político teria sido responsável pela chamada Lei Falcão.1254 IV.3. Lia Pires, o advogado do status quo Na ata da sessão do dia 1º de julho de 1980 do Conselho da seccional gaúcha da Ordem, o conselheiro Mário Chaves, referiu-se a debate na televisão ocorrido no dia anterior entre o conselheiro substituto Omar Ferri e Oswaldo de Lia Pires, tratando do sequestro dos uruguaios.1255 Chaves afirmava que Lia Pires havia feito manifestações evidentemente inadequadas (…) de que a “OAB desserviu a Justiça” ao colher o depoimento do uruguaio Hugo Walter Rivas, dia 12 de maio último, em São Paulo, imputação feita por igual, ao Presidente do Conselho Federal e aos Presidentes das Secções de São Paulo e do Rio Grande do Sul.1256 Como vimos, este advogado representou os policiais durante o caso, sendo o antagonista jurídico de Ferri, Becker e dos conselheiros da OAB/RS. Durante a CPI, 1253 Idem, p. 64. Ferri afirma que fez esta minfestação publicamente. FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, pp. 10-11. A passagem em questão é: CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor: o seqüestro dos uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 121-6. 1255 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 1º de julho de 1.980”, fls. 2. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. [Atas de]1980. Porto Alegre, 1981. Ferri, naquele momento, era conselheiro substituto de Leônidas Xausa, assumindo o cargo entre 17 de abril e 4 de junho de 1979 e a partir de 22 de fevereiro de 1980. “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 17 de abril de 1.979”, fl. 1; Relatório de 22/2/1980. In: OAB/RS. ATAS do Conselho – [Livro] 14 – 1977 1978 1979. Porto Alegre, 1980. 1256 Sobre o assunto o Conselho apontaria para voto de solidariedade, proposto por Archimedes Almeida, aos Presidentes do Conselho Federal e das Seccionais citadas, além de aguardar a visita do Presidente da Ordem para outras medidas cabíveis. “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 1º de julho de 1.980”, fls. 2-3. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. [Atas de]1980. Porto Alegre, 1981. 1254 291 conforme o livro Seqüestro no cone sul, “o advogado Lia Pires abria seu arsenal jurídico, fornecendo munição aos representantes da ARENA”; por estes serviços prestados, ele receberia, em vinte e cinco de julho de 1979, a Ordem do Mérito Militar.1257 Oswaldo de Lia Pires era um dos principais criminalistas do estado e provavelmente o mais popular. Tanto Omar quanto Werner, quando questionados sobre este advogado, afirmaram que ele era brilhante, mesmo fazendo ressalvas sobre seu tipo de atuação.1258 Ferri disse que sempre teve “uma dúvida de interpretação jurídico-moral com relação ao tipo de advogado que é o Lia Pires”: ele mencionou que este defensor utilizava todo um instrumental e obtinha “vitórias fantásticas”, porém, em alguns casos, seu sucesso levava a “lesões imerecidas” à outra parte. 1259 Já Werner Becker afirmou que ele era o “advogado da direita, (…) da polícia”.1260 Assim, percebe-se que Oswaldo de Lia Pires acabava colocando-se em um espectro oposto ao dos personagens estudados nesta tese. Diferentemente de conservadores como Marcus Melzer e Sobral Pinto, por exemplo, que, em sua batalha por uma legalidade acabaram lutando ao lado de militantes da esquerda, este advogado tomou a defesa da repressão, o que, certamente, deu-lhe publicidade como criminalista. Este caso acabou dando grande visibilidade aos advogados envolvidos, mesmo que de forma diferenciada: enquanto que Ferri, Becker e conselheiros como Justino Vasconcelos, Mariano Beck e Marcus Melzer ganhavam reconhecimento como advogados comprometidos com os direitos humanos, Lia Pires consolidava sua imagem como criminalista identificado com setores dominantes. Werner afirmou que Eloar Guazzelli teria “mais cultura jurídica” enquanto que Oswaldo de Lia Pires “tinha mais imagem. Porque como era advogado da polícia, das classes dominantes e tudo e tal, ele ganhava muito mais manchetes”, o que lhe daria mais visibilidade no Tribunal do Júri.1261 Comparando os advogados, Becker afirmou: No júri os dois ficavam de dois metros. O Lia no júri era fabuloso, era fabuloso. Os dois. (…) FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 129 e 196. 1258 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 23; FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de agosto de 2017, em Porto Alegre. 1259 Idem. Omar pensa que este foi no caso Daudt, mesmo inocentado, o cliente de Lia Pires, Antônio Dexheimer, teria recebido uma “condenação moral”. 1260 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 23. 1261 Idem, ibidem. 1257 292 Eu até acho que para júri o Lia era melhor que ele. Para júri. Mas para o resto da advocacia criminal, eu sou mais o teu avô. Eu não to querendo equilibrar nem nada. É que o Lia era fabuloso no júri. Além do que, tinha a áurea da cobertura de imprensa. Tinha a áurea.1262 Deve-se frisar que a comparação entre estes advogados foi feita por Becker de forma espontânea, não sendo proposta por minha pergunta. É possível que ele tenha feito este paralelo por estar concedendo uma entrevista para o neto de Eloar. Porém, pode ser um indício de algo apontado por Nereu Lima quando afirmou que havia, na advocacia criminal porto-alegrense das décadas de 1960 e 1970, “duas escolas” que seguiam “posturas profissionais, estrategias de trabalho e defesa” diferentes: “uma liderada pelo Eloar Guazzelli e a outra não interessa nominar”.1263 A colega de escritório de Guazzelli, Ana Eni Machado Milan, apoiou a ideia de que existiam duas linhas de advogados criminalistas no estado, estando Eloar de um lado e Oswaldo de Lia Pires, um advogado mais vinculado a setores conservadores, de outro.1264 Haveria, assim, dois padrões de advocacia criminalista, que, além de posturas e procedimentos profissionais, diziam respeito a uma dimensão política. Teria uma rivalidade entre estes dois advogados, o que corresponderia a diferentes visões jurídicas e ideológicas.1265 Mas, além disso, Oswaldo de Lia Pires representava o inverso dos advogados aqui trabalhados: enquanto que eles buscassem com o direito combater as desigualdades, Lia Pires contribuía para a manutenção do status quo. IV.4. “O Grande Júri”: Eloar e o “Caso do Flávio” Um evento que marcou fortemente a trajetória de Eloar Guazzelli foi sua atuação – no ano de 1979 – como defensor do radialista Flávio Alcaraz Gomes, que respondia a processo pelo homicídio da estudante de sociologia Maria José Alberton Silva e tentativa de homicídio ao médico Paulo Eduardo Peixoto de Freitas. Conforme apontou Idem, ibidem. Werner Becker utiliza a imagem de que os dois advogados “ficavam com dois metros” pois ambos, mesmo sendo de pouca estatura, “cresciam” no tribunal. 1263 LIMA, Nereu. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em dia 8 de agosto de 2013, p. 4. Como já mencionei no capítulo anterior, esta escola, de acordo com Lima, seguiria uma linha sociológica e humanista, usando “os chamados meios lícitos, meios éticos”. Idem, p. 16. 1264 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. Anotações sobre conversa com Ana Eni Machado Milan, realizada em 8 de setembro de 2017 em Porto Alegre, a respeito da trajetória de Eloar Guazzelli entre os anos 1974 e 1982. Porto Alegre, 2017, p. 2 1265 Werner Becker confirma a rivalidade mas afirma que os advogados não deixavam-na transparecer, trocando cortesias quando se encontravam. BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 23. 1262 293 seu filho Carlos Frederico Guazzelli, “este rumoroso processo foi um dos mais difíceis da longa carreira de criminalista de Eloar e, certamente, aquele que lhe causou mais desgosto e frustração”.1266 Percebe-se, assim, que este processo impactou muito Eloar, sendo um momento de tensão entre seus objetivos profissionais e sua imagem pública enquanto advogado vinculado a setores das esquerdas. O crime aconteceu nos primeiros minutos do domingo onze de abril de 1976: Flávio Alcaraz Gomes e sua esposa Maria Clara chegavam a sua residência na Avenida Sinke, no Morro Santa Teresa em Porto Alegre, e encontraram defronte à casa, uma Brasília estacionada na contra-mão, com dois ocupantes, o médico e a estudante.1267 Flávio e Maria Clara ficaram assustados por aquela presença, e a esposa pediu para que se retirassem, o que iniciou uma discussão entre ela e o médico Freitas. Neste momento, Flávio buscou em sua casa sua espingarda calibre 12 ameaçando ligar para a polícia. 1268 Em determinado momento foi efetuado um disparo que acertou Maria José, que estava no banco do passageiro, ao que Freitas teria gritado “Flávio, mataste uma moça!”e arrancado em direção ao Hospital de Pronto Socorro.1269 Enquanto que Freitas levava a vítima para o Hospital de Pronto Socorro, Gomes foi tentar descobrir o que havia acontecido com a menina no Correio do Povo, jornal em que trabalhava; em seguida, ele se apresentou à polícia às cinco horas do domingo com a arma do crime. Cesar Augusto Guazzelli, filho de Eloar, contou que, no mesmo dia, Flávio esteve com o advogado.1270 Por uma coincidência, Cesar convivia há anos com o médico Paulo Freitas, já que, desde o colégio, haviam seguido a mesma trajetória, mesmo o último sendo dois anos mais velho.1271 Por esta razão, Cesar Guazzelli acabou 1266 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 4. 1267 “Grande júri será hoje”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 28 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5986, 1º Caderno, Polícia, p. 30. 1268 “Jornalista acusado de matar estudante vai a julgamento em P. Alegre”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, Edição 143, 29 de agosto julho de 1979, 1º Caderno, p. 14. 1269 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 2; “Radialista gaúcho recebe 12 anos por morte de moça”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, Edição 144, 30 de agosto julho de 1979, 1º Caderno, p. 19. 1270 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 2. De acordo com Cesar e Ana Eni, o caso chegou até Guazzelli através de Antônio Pinheiro Machado Netto, que era próximo de Flávio. GUAZZELLI, Dante Guimaraens. Anotações sobre conversa com Ana Eni Machado Milan, realizada em 8 de setembro de 2017 em Porto Alegre, a respeito da trajetória de Eloar Guazzelli entre os anos 1974 e 1982. Porto Alegre, 2017, p. 1 1271 Eles haviam estudado no Colégio de Aplicação da UFRGS, feito o Curso de Medicina na Universidade e estavam fazendo residência em Neurologia e Neurocirurgia com a orientação de Mário Ferreira Coutinho. GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 2. 294 ouvindo as versões que, com exceção das interpretações, “mais ou menos” coincidiam.1272 Uma questão interessante apontada pelo filho de Guazzelli foi que o advogado, aparentemente, não gostava do radialista, pois ele teria, em seus programas da Rádio Guaíba, pegando “muito no pé de alguns clientes do pai, acusados de homicídio”, como os casos de Matias Nagelstein e do “Crime da Passarela”.1273 Cesar afirma que nestes casos “Flávio foi um algoz muito pertinaz. O pai nunca gostou da imprensa em geral e tinha muita raiva destes rompantes em busca de ‘justiça’” que havia nestes momentos.1274 Ironicamente, Flávio Alcaraz Gomes, como apresentarei, seria alvo deste mesmo tipo de situação. De acordo com seu filho Carlos Frederico, Eloar detestava a cobertura da imprensa nos processos do que chamava “crimes de jornal”; a postura invariavelmente sensacionalista e conservadora dos veículos de imprensa, amplificando a versão policial e acusatória dos fatos e espicaçando o sentimento punitivista de seu público, não apenas o irritavam muito, como, sabia ele muito bem, ajudavam a distorcer os julgamentos, formando opiniões condenatórias que, frequentemente, se cristalizariam nas decisões futuras de juízes, júris e tribunais (…). 1275 Esta visão de seu filho é retrospectiva e, desta forma, provavelmente marcada pela experiência do “Caso do Flávio”. Porém há indícios de que, de fato, houvesse este sentimento por parte de Eloar, já que ele já vinha atuando neste tipo de casos desde a década de 1960. Apesar de obter notoriedade e divulgar sua atividade profissional, ele notava que, além de enfrentar a promotoria, ele tinha que combater imagens sobre os envolvidos que vinham sendo construídas, de forma ativa ou passiva, pelo público em geral. Um exemplo é a queixa, publicada no jornal Zero Hora dias antes do julgamento, “da enorme divulgação dada ao crime, em razão da importância das pessoas implicadas direta ou indiretamente”, afirmando que “se fosse um João e uma Maria qualquer, esse caso nunca teria chegado a Júri Popular, podendo ser resolvido por um 1272 Idem, ibidem. Idem, ibidem. Estes dois casos ocorreram durante a década de 1970: no primeiro Nagelstein, que era vereador em Bagé, matou um adversário político; já o segundo um estudante matou um amigo no Parque Moinhos de Vento, em Porto Alegre, em uma discussão. Mesmo tendo repercussões na imprensa, optei por não abordá-los nesta Tese por uma questão de espaço. 1274 Idem, ibidem. 1275 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 5. 1273 295 júri singular”.1276 O advogado afirmava, na entrevista, que em um caso seu recente semelhante no qual havia representado uma pessoa mais humilde não teria ido à Juri Popular. Ele finalizava afirmando que Muitas vezes (…) a sociedade faz um julgamento antecipado de um acusado, com base quase sempre na imagem das pessoas envolvidas. Entretanto, esse julgamento também, seguidamente muda, conforme os rumos que o julgamento começa a tomar. 1277 Percebe-se neste trecho que Eloar buscaria no julgamento trazer elementos que pudessem mudar o “veredito” popular em relação ao caso. Ao pronunciar-se, ele intentava, também, sensibilizar o público para uma visão diversa do caso. Nos mais de três anos que separaram o fato e o julgamento, em vinte e oito de agosto de 1979, o tema era frequente nas manchetes dos jornais do estado e do centro do país, que estampavam manifestações da sociedade portoalegrense em relação ao caso. De acordo com o Jornal do Brasil, logo após o crime, os colegas de Maria José, revoltados, “publicaram vários ‘a pedido’ nos jornais de Porto Alegre, reclamando justiça, enquanto muros no bairro Auxiliadora eram pixados com dizeres ‘Flávio Alcaraz Gomes, Assassino’”.1278 Além disso, teriam sido encomendadas por colegas missas mensais para a jovem até o julgamento.1279 Carlos Frederico afirma que “as dificuldades com que a defesa se defrontou, desde o início, foram imensas e crescentes, o que foi aos poucos se refletindo no ânimo de Eloar, ao longo dos vários anos em que o processo tramitou”.1280 Uma questão era a “gravidade do fato”, “morte de uma jovem universitária, de aproximadamente 25 anos” “O júri do ano: uma batalha judicial no Palácio da Justiça”. In: Zero Hora, Porto Alegre, Ano XVI, nº 5984, 26 de agosto de 1979, 1º Caderno, Polícia, p. 44. A vítima, Maria José Alberton Silva, era de uma família influente na cidade, sendo seu irmão, Roberto Geraldo Coelho Silva, promotor público aposentado e professor de Direito da PUCRS. “Familiares de Maria José rompem o silêncio na véspera do julgamento”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 28 de agosto de 1979, 1º Caderno, Polícia, p. 31; GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 5. 1277 “O júri do ano: uma batalha judicial no Palácio da Justiça”. In: Zero Hora, Porto Alegre, Ano XVI, nº 5984, 26 de agosto de 1979, 1º Caderno, Polícia, p. 44. 1278 “Defesa do radialista que matou a universitária arrola dois senadores e ministro”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVI, Edição 128, 14 de agosto de 1976, 1º Caderno, p. 20. O grafite é uma paródia do nome de seu programa de rádio nomeado “Flávio Alcaraz Gomes, Repórter”. Outra alcunha que acabou popular foi a de chama-lo de Flávio “Alcatraz” Gomes, trocadilho com a famigerada prisão californiana. Carlos Frederico menciona que “dois dias depois do fato, muros e paredes das áreas centrais apareceram pichadas contra Flávio”. GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 4 (grifo no original). 1279 “Radialista será julgado por morte”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, Edição 142, 28 de agosto julho de 1979, 1º Caderno, p. 16. 1280 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 4. 1276 296 em um crime violento causado por uma circunstância absurda.1281 O fato de ela ser irmã de um promotor reconhecido deu, segundo o filho do advogado, “especial empenho da instituição em sua acusação e condenação” contribuindo “para que a instituição fizesse da condenação de Flávio uma questão de honra”.1282 Ele ainda aponta que “neste tipo de ação penal, envolvendo figuras públicas” membros do Ministério Público revelavam “grande interesse e afã em acusa-las, em vista da notoriedade e prestígio, pessoal e institucional, acarretados em função da repercussão midiática dos casos”.1283 Havia, também, uma “antipatia do réu”, um jornalista e radialista do maior grupo de comunicações do estado da época (Grupo Caldas Junior) “e que expressava, em seus programas e reportagens a opinião conservadora prevalente, inclusive na defesa da ditadura”.1284 Assim, ainda de acordo com o filho de Eloar, tanto aqueles que se opunham quanto seus apoiadores, voltaram-se contra o jornalista, o que levou os empregadores a afastarem-no da apresentação de programas.1285 Segundo Carlos Frederico, esta dimensão ideológica influenciou a cobertura jornalística não apenas pela pré-disposição condenatória da chamada “opinião pública” (leia-se: a opinião publicada), seja pela antipatia despertada pelo réu junto aos seus colegas, tanto os jovens repórteres esquerdistas, quanto os colunistas reacionários, pelas razões acima expostas (…).1286 A cobertura foi amplificada ainda pela disputa dentro do campo jornalístico do estado, uma vez que Flávio Alcaraz era uma figura de destaque do grupo jornalísitico hegemônico do estado (Caldas Júnior).1287 Assim, seu concorrente, o jornal Zero Hora, fez uma cobertura minuciosa e detalhada do caso e criando um logotipo especial e descrevendo, por exemplo, cada uma das catorze horas e meia de julgamento.1288 1281 Idem, ibidem. (grifo no original). Idem, p. 5 (grifo no original). 1283 Ele ainda afirma que esta “postura (…) só tem-se acentuado, como demonstrado pelo comportamento de promotores e procuradores nas ‘operações’ que, desgraçadamente, ocupam o cenário político de nosso país, nos últimos anos”. Idem, ibidem. 1284 Idem, p. 4 (grifo no original). 1285 Idem, pp. 4-5. 1286 Idem, p. 6. 1287 Idem, ibidem. 1288 Diferentemente de seus concorrentes que faziam breves notas, Zero Hora dedicou diversas páginas das edições dos dias anteriores ao julgamento para apresentar o caso, explicar os ritos, entrevistar analistas. Enquanto a Folha da Manhã dedicou página inteira e a Folha da Tarde duas laudas, Zero Hora esmiuçou o evento em seis páginas. Como apontou Carlos Frederico Guazzelli, “por ironia, alguns anos depois, quando Flávio iniciou o cumprimento da pena que lhe foi imposta, foi imediatamente contratado pelo grupo RBS”. GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6 (grifo no original). 1282 297 Mesmo tendo em mente que este periódico fosse um “jornal de crime”, conforme mostrei anteriormente, a dimensão dada era influenciado por esta questão. O impacto do caso foi tamanho que jornais do centro do país, como o Jornal do Brasil, dedicou considerável espaço ao processo, além do néofito Jornal da República. Esta publicação, que tinha Raymundo Faoro como diretor-presidente e Mino Carta como redator-chefe, tinha a pretensão de ser um contraponto à esquerda aos grandes jornais e analisou o julgamento em seus primeiros números. Nas matérias do jovem períódico do centro do país sobre o caso pode-se perceber a predisposição destes setores à condenação de Alcatraz Gomes, em especial na coluna de Sérgio Becker sobre o veredito. Um indício disto seja do fato do jornalista, diferentemente dos outros meios de comunicação analisados aqui, deixou de mencionar o partido pelo qual Eloar, advogado de Flávio, havia sido eleito, omitindo, assim, a vinculação do advogado à oposição.1289 Além destes empecilhos, ao assumir o caso, Eloar Guazzelli teve de confrontar pessoas próximas e “admiradores seus, que não escondiam a contrariedade em vê-lo defender homem tão detestável”: “foram tempos duros, em que se ressentia, inclusive, não sem alguma razão, do apoio da família e de amigos”.1290 No momento em que ele assumiu o caso, ele já tinha construído uma reputação entre setores oposicionistas, a qual, de acordo com alguns, não estava em consonância com a defesa de Alcaraz Gomes. De acordo com os filhos do advogado, esta era a opinião da esposa de Eloar, Lizabel: Carlos afirma que ela “nunca gostou de Flávio e não era partidária de sua decisão em assumir sua defesa”.1291 Conforme Cesar, A mãe tinha muita raiva do Flávio, achava ele um boçal, arrogante e prepotente. Ela nunca suportou gente como ele, e as coisas com o pai foram muito estremecidas sobre isto. Numa conversa (…) a mãe disse que não se importava que o pai fosse o advogado, mas nunca suportaria o Flávio nem achava que ele tivesse motivos para cometer o crime, querendo ou não dar o tiro. Sair para a rua armado sem ser provocado era uma amostra da estupidez do sujeito.1292 1289 Durante a cobertura da atuação de Guazzelli e Faoro nas prisões dos sindicalistas presos feita por este jornalista em parceria com Nunzio Briguglio, por exemplo, é mencionada a filiação partidária do parlamentar. BECKER, Sérgio; BRIGUGLIO, Nunzio. “A greve só cessa no interior”. In: Jornal da República, ano I, nº 16, 13 de setembro de 1979, 1º Caderno, Trabalhadores, p. 6 1290 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6. 1291 Idem, ibidem. (grifo no original). 1292 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 3. 298 Com todas estas adversidades, Eloar abraçou o caso, “com o mesmo ânimo com o qual se dedicava às defesas criminais a ele confiadas”, conforme Carlos Frederico afirma.1293 Este “ânimo” era motivado, ainda de acordo com seu filho, por “postura ‘contracorrente’ do advogado, que tanto lhe agradava e servia de estímulo”.1294 Depreende-se que Eloar via no caso mais uma situação para colocar-se à prova, como advogado, defendendo alguém, como teria manifestado no julgamento, “que eu, particularmente, muitas vezes não concordava”. 1295 Poderia-se até dizer que, mesmo aparentemente “detestando” a postura da imprensa nos “crimes de jornal”, Guazzelli via nela um incentivo à sua ação como advogado. Durante os anos em que o processo correu, o caso acabou consumindo muito do cotidiano do escritório. Em relação ao comprometimento de Eloar no caso, Denise Broda, secretária do escritório, afirmou que este “foi um processo que ele se dedicou assim, Meu Deus do Céu!”. Conforme ela narrou em entrevista: Deu muito trabalho. (…) [O caso] ocupou muito o escritório. Eles iam muito lá. Ia com ele sempre muito o [jornalista] Cândido [Norberto], o Cândido era amigo do Flávio. (…) Eles ficavam muito tempo lá no escritório. Meu Deus! As reuniões com o cliente Flávio não se comparavam com as reuniões com outros clientes.1296 Ela afirmou que enquanto que as sessões com outros clientes demandavam por volta de trinta minutos, Alcaraz Gomes geralmente ocupava uma tarde.1297 Denise vincula esta discrepância à dimensão do caso e, especialmente, às perícias que foram levantadas para o caso, buscando fundamentar a alegação da defesa de que o disparo havia sido acidental, questões que ocuparam “muitas horas” do cotidiano do escritório.1298 Quando questionada sobre a presença do radialista no escritório, Broda afirmou que ele era, “no geral, de um bom convívio, para escritório. (…). Falava direito, educadamente” com ela: O Flávio era boa-praça. Quando ele ia lá, conversava. Ele conversava muito comigo em função dele ter conhecido meu pai, em função de rádio. (…) Então a gente brincava muito, conversa outras coisas que 1293 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6. 1294 Idem, ibidem.. 1295 “Flávio condenado a 12 anos por homicídio e tentativa de morte”. In: Folha da Tarde, Porto Alegre, Ano XLIV, nº 105, 29 de agosto de 1979, p. 46. No momento do julgamento Eloar já era deputado federal pelo MDB o que justifica o fato de mencionar sua contrariedade com as posições de Flávio. 1296 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1297 Idem. 1298 Idem. 299 não do processo. (…) Com o Cândido [Norberto] também. [Flávio Alcaraz Gomes ] era um cara atencioso, educado – claro, prepotente, uma figura. Mas era um cara, um cliente bom de atender, de receber, de ficar, às vezes, um bom tempo na sala de espera. (…) Era uma sala pequena, tu tem que ficar conversando, tem que atender, tem que dar cafezinho, oferecer água (…) e ele era uma pessoa agradável de atender. Mas tu sabia que ele era o Flávio, aquela figura. 1299 No relato de Denise fica claro que, apesar da cordialidade e educação, havia uma diferenciação em relação ao tratamento de Flávio, do que se depreende que tinha uma tensão em relação a este cliente. Esta dimensão é reforçada pela colega de escritório, Ana Eni Machado Milan, que contou que o jornalista criava atritos, afirmando que estava promovendo Eloar, o que, segundo ela, não seria correto, uma vez que o escritório já era muito conhecido na capital.1300 O processo é lembrado por Broda como muito arrastado, muito longo, “como todo processo dessa natureza”.1301 Em diversas matérias constam que o processo foi adiado em diversos momentos sob pedido da defesa: isto era visto pela imprensa, em geral, como uma estratégia para, conforme sugeriu o Jornal da República, buscar um “esquecimento” o que, de acordo com o periódico, “não adiantou”.1302 Frente aos atrasos, amigos da vítima novamente compraram espaços em jornais nos quais questionavam a demora.1303 De acordo com Zero Hora, em vinte e um de agosto de 1979, o advogado e deputado federal Guazzelli, “aproveitando que hoje será votado o Projeto de Anistia pelo Congresso Nacional, solicitou o adiamento do júri”.1304 Como apontou sarcasticamente a matéria publicada no jornal Zero Hora no dia do julgamento, agora só mesmo uma desculpa muito forte como um problema de ordem médica por parte do advogado de defesa ou de seu constituinte, poderá determinar novo adiamento, uma vez que os recursos legais que poderiam ser usados já foram esgotados. 1305 1299 Idem. GUAZZELLI, Dante Guimaraens. Anotações sobre conversa com Ana Eni Machado Milan, realizada em 8 de setembro de 2017 em Porto Alegre, a respeito da trajetória de Eloar Guazzelli entre os anos 1974 e 1982. Porto Alegre, 2017, p. 1 1301 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1302 “Lotação total para o júri do radialista”. In: Jornal da República, São Paulo, Ano I, nº 2, 28 de agosto julho de 1979, 1º Caderno, p. 10. 1303 Idem, ibidem. 1304 “Julgamento de Flávio foi adiado novamente”. In: Zero Hora, Porto Alegre, Ano XVI, nº 5979, 21 de agosto de 1979, 1º Caderno, Polícia, p. 37. 1305 “Grande Júri será hoje”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 28 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5986, 1º Caderno, Polícia, p. 30. 1300 300 Assim, pareceres anexados e compromissos no Parlamento eram vistos como chicana pela cobertura da imprensa, sendo que em somente uma matéria analisada foi mencionado que a acusação também havia solicitado transferência do julgamento.1306 Partindo das matérias dos jornais, pode-se ver que, inicialmente, havia a busca por levantar depoimentos de personalidades demonstrando as qualidades de Alcaraz Gomes. Foram arrolados, por exemplo, os depoimentos dos senadores Paulo Brossard (MDB) e João Calmon (Arena) e do ministro do Tribunal Federal de Recursos.1307 Werner Becker contou em entrevista que ele teve substalecimento de Guazzelli para substituí-lo nesta audiência.1308 Foram ouvidas, também, figuras conhecidas na sociedade portoalegrense, como o já citado jornalista e advogado Cândido Norberto, que depôs em vinte e cinco de agosto de 1976. Antes de seu depoimento, ele “denunciou ter sido através de cartas e bilhetes, pressionado a não depor em favor do réu”, que foram entregues ao tribunal.1309 Além disto, a matéria afirma que o testemundo foi presenciado por “cerca de 70 pessoas – a maioria colegas e amigas da vítima” e “transcorreu em ambiente de tensão”.1310 A pressão durante o caso não era somente sentida pelo réu, suas testemunhas e o advogado. A família de Eloar passava por diversos questionamentos. Conforme Cesar Augusto, “o danado era no dia a dia ter que confrontar conhecidos ou não que estavam indignados com o fato. Telefonemas anônimos” com ameaças. Ele afirma que “foram dias xaropes, dando explicações sobre o papel da advocacia de defesa etc.”. 1311 A tensão esteve muito potencializada durante o julgamento. Além de buscar levantar as qualidades de Alcaraz Gomes, a defesa apresentou-o como alguém que cometeu o crime “por sentir-se ameaçado” naquelas “Não existem mais lugares para assistir grande júri”. In: Zero Hora, Porto Alegre, Ano XVI, nº 5985, 27 de agosto de 1979, 1º Caderno, Polícia, p. 29. 1307 “Defesa do radialista que matou a universitária arrola dois senadores e ministro”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVI, Edição 128, 14 de agosto de 1976, 1º Caderno, p. 20; “Defesa de radialista que matou universitária recorre a Senadores e Ministro”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVI, Edição 140, 26 de agosto de 1976, 1º Caderno, p. 15. 1308 BECKER. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 18. 1309 “Defesa de radialista que matou universitária recorre a Senadores e Ministro”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVI, Edição 140, 26 de agosto de 1976, 1º Caderno, p. 15. 1310 “Defesa de radialista que matou universitária recorre a Senadores e Ministro”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVI, Edição 140, 26 de agosto de 1976, 1º Caderno, p. 15. 1311 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 3. 1306 301 circunstâncias.1312 Conforme Flávio teria afirmado ao Júri, ele havia comprado a arma logo após o sequestro do jovem Alexandre Möeller, ao ser informado que havia planos para sequestrarem seus filhos: por esta razão ele teria ameaçado o jovem casal de forma despropositada.1313 A argumentação do advogado intentava retratar Flávio como “um homem enfurecido pelo próprio medo de atentados contra si e seus familiares”.1314 A caracterização do defensor teve certo êxito, uma vez que este trecho é a descrição que o jornal fez do radialista. Ia nesta linha o reforço ao papel exercido no trágico fato pela discussão pelo jovem médico na trama; o jornal afirmava, neste sentido que era “pelo menos estranhável a posição da acusação não arrolando o acompanhante da vítima como testemunha no júri popular do dia 28”.1315 Percebe-se nestes trechos que o advogado obtinha algum sucesso em suas ações em relação à “opinião publicada”. Conforme mencionou Denise Broda, mesmo que a estratégia fosse algo “entre eles, os advogados”, a secretária percebia que a questão da perícia tinha um papel de destaque na defesa do caso.1316 A edição de vinte e seis de agosto de 1979 do jornal Zero Hora apontava que a defesa do “deputado federal, hábil criminalista” iria debruçar-se neste aspecto, partindo de um laudo de Antônio Carlos Vilanova, da Escola de Polícia de Brasília (EPB), que apontava para a acidentalidade do disparo.1317 Conforme a matéria, a condução da defesa no julgamento do crime será traçada por um exame conjugado de toda a prova dita material. Segundo Guazelli (sic), este comportamento foi o mesmo seguido pelo professor Antonio Carlos Vilanova para concluir pela “provável acidentalidade do disparo”. Os estudos do criminalista do Distrito Federal que resultaram no parecer favorável à defesa, basearam-se, segundo Guazelli, numa orientação doutrinária chamada de “Criminalística “Tribunal gaúcho decide que assassino de universitária enfrentará o júri popular”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, Edição 111, 28 de julho de 1978, 1º Caderno, p. 30. 1313 “Ao ser interrogado pelo juiz, réu responsabilizou o médico”. In: Folha da Tarde, Porto Alegre, Ano XLIV, nº 105, 29 de agosto de 1979, p. 47. Alexandre Möeller era um adolescente filho de um dono de revendedora de automóveis que foi sequestrado em 1974. O caso, que teve grande repercussão na imprensa, e, curiosamente contou com a atuação de três personagens mencionados nesta tese: o delegado Pedro Seelig, que descobriu o paradeiro dos sequestradores, Eloar Guazzelli e Omar Ferri, que defenderam os réus no processo subsequente. Em seu livro, Ferri menciona o caso em dois momentos FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, pp. 28-9 e 107. 1314 “O júri do ano: uma batalha judicial no Palácio da Justiça”. In: Zero Hora, Porto Alegre, Ano XVI, nº 5984, 26 de agosto de 1979, 1º Caderno, Polícia, p. 44. 1315 Idem, ibidem. 1316 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1317 “Defesa tem um laudo provando que o disparo teria sido acidental”. In: Zero Hora, Porto Alegre, Ano XVI, nº 5984, 26 de agosto de 1979, 1º Caderno, Polícia, p. 44. Na edição havia uma reportagem de quatro páginas – mais do que soma da cobertura da Folha da Manhã e da Folha da Tarde – o que mostra amplitude dado pelo periódico ao caso. 1312 302 Dinâmica”, cujos ensinamentos estão alicerçados num estudo conjugado das provas consideradas materiais.1318 Durante o julgamento a defesa e acusação debateram-se muito neste quesito, colocando as teses dos peritos gaúchos do Instituto Médico Legal (IML) e do Instituto de Criminalística (IC) contra a do especialista do centro do país. Havia, assim, um embate em teorias e visões forenses. Era, também, a “disputa de talentos pelos observadores” entre Guazzelli e Amadeu Weinmann, advogado contratado pela família da vítima para auxiliar a promotoria.1319 Eles já haviam estado nos mesmos lugares (Eloar na defesa e Amadeu na acusação) no “Crime da Passarela”, o qual, conforme lembrou Guazzelli ao jornal Zero Hora, havia obtido a desclassificação da acusação.1320 O “Caso do Flávio” era a arena de confrontos de advogados e peritos, que tinha como cenário a disputa por grupos jornalísticos. Neste contexto, esperava-se que o momento ápice do processo, o julgamento, tivesse causado grande impacto na sociedade porto-alegrense, o que de fato ocorreu. Relembrando o processo, Denise Broda disse que “no julgamento então, pelo amor de deus, foi aquele auê! Foi um auê em Porto Alegre, o julgamento do Flávio”.1321 O Jornal da República apontou em linha semelhante afirmando que “como nos grandes espetáculos, os convites credenciais já estavam esgotados” um dia antes de sua realização.1322 Para dar conta, foi organizado entre a segurança do Palácio da Justiça e a Brigada Militar um esquema onde havia três filas para preencher os 281 lugares disponíveis: uma destinada à imprensa, uma para advogados e estudantes de Direito e, finalmente, uma para os “populares” que desejavam ver o julgamento, de acordo com a Folha da Tarde do dia do julgamento, vinte e oito de agosto.1323 Mesmo assim, entre 500 e 2 mil pessoas, de acordo com o jornal, compareceram ao Palácio da Justiça para 1318 Idem, ibidem. “O júri do ano: uma batalha judicial no Palácio da Justiça”. In: Zero Hora, Porto Alegre, Ano XVI, nº 5984, 26 de agosto de 1979, 1º Caderno, Polícia, p. 44; “Grande júri será hoje”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 28 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5986, 1º Caderno, Polícia, p. 30. 1320 “Defesa tem um laudo provando que o disparo teria sido acidental”. In: Zero Hora, Porto Alegre, Ano XVI, nº 5984, 26 de agosto de 1979, 1º Caderno, Polícia, p. 44. 1321 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1322 “Lotação total para o júri do radialista”. In: Jornal da República, São Paulo, Ano I, nº 2, 28 de agosto julho de 1979, 1º Caderno, p. 10. 1323 “Flávio Gomes será julgado hoje”. In: Folha da Tarde, Porto Alegre, Ano XLIV, nº 104, 28 de agosto de 1979, p. 42. 1319 303 tentar assistir ao Júri, o que ocasionou confusões que fizeram com que o rito, que iniciaria as 14 começasse somente duas horas depois.1324 De acordo com o jornal Zero Hora, A Praça da Matriz, ontem, viveu um de seus dias tumultuados. Palco de muitas manifestações públicas, de origem político-social, o grande largo que liga os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário do Estado – a partir das 12h começou a ficar cheio de gente. Na maioria jovens. Para os menos avisado até poderia parecer que alguém estava procurando organizar uma manifestação, como já aconteceu, até há pouco tempo, quando muitas pessoas terminaram invadindo a Catedral Metropolitana, que também fica no mesmo largo. Ontem, porém, a intenção era invadir o Palácio da Justiça, onde, às 14h, deveria ser iniciado o julgamento de Flávio Alcaraz Gomes.1325 Nota-se que o jornal comparava a mobilização com o julgamento com as manifestações de oposição promovidas por estudantes e trabalhadores que, a partir de 1977, faziam-se presentes nas ruas do centro da capital, atingindo um ápice em agosto e setembro de 1979.1326 Assim como nas mobilizações políticas, os moradores e trabalhadores dos prédios iam às janelas e sacadas para ver a movimentação.1327 Baseado nas emoções que a imagem de Flávio gerava é inclusive provável que muitos militantes de esquerda que fossem às ruas pelas liberdades democráticas e Anistia tenham ido ver o campeão da ditadura ser julgado. De acordo com a cobertura da Zero Hora, o evento tomou de fato proporções sensacionais, sendo registradas as presenças de figuras como a poetisa Nina Gualdi e a “conhecida Terezinha Morango”.1328 Ainda de acordo com o periódico algumas pessoas Enquanto o Jornal do Brasil afirmava que era 500, a Zero Hora calculava em 2 mil. “Jornalista acusado de matar estudante vai a julgamento em P. Alegre”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, Edição 143, 29 de agosto julho de 1979, 1º Caderno, p. 14; “O Grande Júri começou: houve até tumulto no Palácio da Justiça” In: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, pp. 26-27. 1325 “O Grande Júri começou: houve até tumulto no Palácio da Justiça” In: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, p. 26. A menção ao episódio envolvendo a Catedral Metropolitana refere-se à vigília pela Anistia realizada naquele local em agosto de 1979. RODEGHERO, Carla Simone; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e irrestrita: História de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011, pp. 241-4. 1326 Gabriel Dienstmann afirma que, entre a metade de agosto e meados de setembro de 1979, as manifestações de rua eram quase diárias, motivadas pelas mobilização pela Anistia e as mais de trinta greve que ocorriam simultaneamente na capital. DIENSTMANN, Gabriel. A luta pela democracia em foco: fotojornalismo e movimentos sociais no Rio Grande do Sul (1977-1979). Porto Alegre: UFRGS, 2016, p. 204. Dissertação de Mestrado em História. Sobre isto ver também: RODEGHERO, Carla Simone; GUAZZELLI, Dante Guimaraens; DIENSTMANN, Gabriel. Não Calo, Grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, pp. 159-214. 1327 “O Grande Júri começou: houve até tumulto no Palácio da Justiça” In: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, p. 26. 1328 Nina Gualdi, provavelmente devido às opiniões do radialista sobre seu caso de homicídio ocorrido na década anterior, manifestava que era inimiga de Flávio e que gostaria de vê-lo punido pela sociedade. Já Terezinha Morango era um personagem peculiar porto-alegrense, sendo identificada como torcedora 1324 304 tentaram enganar agentes de segurança dizendo-se advogados ou familiares da vítima ou entrar pela entrada lateral.1329 O jornal apontava que, enquanto que estudantes de Direito, advogados e duas primas de Maria José não conseguiram entrar, algumas mulheres tinham livre acesso à sala onde ocorria o Júri.1330 Esta situação fez um estudante de quarto ano de Direito na PUCRS entrevistado pela Zero Hora afirmar que as pessoas queriam “apenas assistir à condenação do réu, como se o Tribunal de Justiça fosse um circo uma arena romana”.1331 De acordo com a Folha da Tarde, houve quem esperarasse até a madrugada para entrar.1332 Estes trechos mostram a comoção que havia na cidade em relação ao caso. Todos queriam ver o julgamento, em especial à condenação do radialista, e disputavam um lugar para ver o paladino dos conservadores pagar pelo que havia feito. De acordo com as descrições do Júri, este ambiente de turba alvoroçada foi levado para o Palácio de Justiça, apesar das ameaças do juiz Luiz Carlos Castelo Branco dos Santos de interromper o rito se houvessem perturbações: Em todos os locais, inclusive no plenário da Vara do Júri a maior parte das pessoas manifestava-se pela condenação do réu chegando, inclusive, a desrespeitar as recomendações do Juiz, promovendo manifestações quando o advogado da defesa fazia qualquer referência que destacasse os valores morais e sociais do acusado.1333 De acordo com outro registro de Zero Hora, quando Eloar afirmou que Flávio era “um velho, um excelente pai de família” provocou risos no público.1334 Em outro momento, após o promotor Amaro Borges Moreira não ter tido êxito em auxiliar o advogado no manuseio da espigarda teria se dito “Dá pro Flávio que ele sabe”, o que símbolo do Internacional. “O Grande Júri começou: houve até tumulto no Palácio da Justiça” In: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, p. 26; “Promotor foi quem atraiu maior parte da atenção popular”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 32. 1329 “Mais de suas mil pessoas queriam entrar mas só existiam 281 lugares”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, p. 29. 1330 “Familiares da vítima foram impedidos de assistir ao júri”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, p. 29; “Promotor foi quem atraiu maior parte da atenção popular”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 32. 1331 “Familiares da vítima foram impedidos de assistir ao júri”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, p. 29. 1332 “Flávio condenado a 12 anos por homicídio e tentativa de morte”. In: Folha da Tarde, Porto Alegre, Ano XLIV, nº 105, 29 de agosto de 1979, p. 46. 1333 “Promotor foi quem atraiu maior parte da atenção popular”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 32. 1334 “Preocupação da defesa: tentar provar que o disparo foi acidental”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 33. 305 provocou também gargalhadas da audiência.1335 Além disso, fotografias da jovem vítima foram passadas no plenário por familiares, aumentando a sede por vendeta da plateia.1336 Estes trechos mostram que, de fato, os presentes já traziam para o Palácio da Justiça um veredito. Uma das linhas seguidas pela defesa, que iniciou por volta da uma hora e quarenta e cinco minutos já do dia vinte e nove, foi trabalhar com a imagem do réu como um profissional com diversos serviços prestados para a sociedade gaúcha, ressaltando seu trabalho com correspondente de guerra.1337 Ao mesmo tempo, Eloar buscou mostrar o réu como alguém assustadiço, afirmando que inclusive o médico Paulo Freitas temia por assaltos naquelas redondezas.1338 O advogado reforçava que por suas opiniões polêmicas, Flávio estava em “permanente sobressalto de ser atacado”.1339 Ele também buscou desmentir o depoimento do jovem namorado, apontando para contradições de sua versão.1340 Porém, a principal estratégia de Guazzelli foi desfazer a tese da acusação através do confronto da perícia, o que acabou concentrando as atenções do julgamento. Ele baseava-se, para isto, no laudo de Antônio Carlos Vilanova, que apontava para acidentalidade, além de atacar os dados trazidos pela polícia.1341 Conforme o jornal Zero Hora, o defensor teria afirmado: Não estamos querendo criticar ou agir com safadeza para com os peritos daqui, pois se quiséssemos poderíamos citar que, enquanto que nos laudos consta que os cabelos da vítima eram loiros, no auto de necropsia consta que eram pretos. O que desejamos é agir com justiça.1342 1335 Enquanto que o Jornal da República registrou que a frase teria sido proferida por um assistente da acusação, Zero Hora afirmava que o promotor havia dito. BECKER, Sérgio. “O radialista gaúcho é condenado a 12 anos”. In: Jornal da República, São Paulo, Ano I, nº 4, 30 de agosto julho de 1979,1º Caderno, p. 11; “Preocupação da defesa: tentar provar que o disparo foi acidental”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 33. 1336 “Promotor foi quem atraiu maior parte da atenção popular”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 32. 1337 “Preocupação da defesa: tentar provar que o disparo foi acidental”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 33. 1338 Idem, ibidem. 1339 “Flávio condenado a 12 anos por homicídio e tentativa de morte”. In: Folha da Tarde, Porto Alegre, Ano XLIV, nº 105, 29 de agosto de 1979, p. 46. 1340 “Preocupação da defesa: tentar provar que o disparo foi acidental”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 33. 1341 “Iniciado com atraso, júri termina hoje”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, p. 28 1342 “Preocupação da defesa: tentar provar que o disparo foi acidental”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 33. 306 Esta passagem exemplifica a argumentação seguida em relação aos peritos e seus laudos. O trecho é especialmente interessante para demonstrar o tipo de retórica usada por Eloar, uma vez que no momento que ele afirma que não quer apontar erros nos trabalhos dos especialistas dos Institutos gaúchos, ele de fato o faz. Posteriormente, ao inquirir os peritos do IML e do IC, o advogado “mostrou porque é considerado um grande profissional” uma vez que “tentou confundir os cinco peritos e quase conseguiu”, já que obteve respostas que lançaram dúvidas sobre os pareceres. 1343 Conforme registrou o jornal Zero Hora, “Eloar Guazzelli tentou confundir os peritos e quase conseguiu, pois muitos leigos que assistiam ao júri chegaram a ficar impressionados com a falta de conhecimento de alguns dos técnicos” ao questionar, de acordo com o periódico, pontos cujo conhecimento lhes fugia.1344 Mesmo assim, como apontou Sérgio Becker de Jornal da República, de “nada valeu” a estratégia da defesa para qualificar o crime como acidental: o réu foi condenado a oito anos de prisão pelo homicídio de Maria José Alberton Silva e mais quatro pela tentativa de homicídio ao médico Paulo Eduardo Peixoto de Freitas, somando, assim, doze anos de reclusão.1345 De acordo com o periódico, “Houve quem gritasse ‘boa’ entre os 500 assistentes do júri. E algumas senhoras, ligadas à família da jovem Maria José, tiveram que ser retiradas, chorando, pouco depois da sentença”.1346 Já o jornal Zero Hora registrou que no momento da leitura da sentença o “pequeno grupo, amigos e familiares do réu, viu-se oprimido pelos gritos de satisfação e aplausos da maioria dos presentes”, enquanto que o Jornal do Brasil afirmou que neste momento grande parte do público gritavam “assassino, assassino”. 1347 “Legistas do IML e peritos do IC tiram dúvidas”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 35. 1344 “Iniciado com atraso, júri termina hoje”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, p. 28. As colocações de Guazzelli poderiam ser influenciadas pela teoria seguida por Antonio Carlos Vilanova, que propunha uma visão em que os dados vindos das diferentes áreas eram analisados como um todo e não em suas especificidades. 1345 BECKER, Sérgio. “O radialista gaúcho é condenado a 12 anos”. In: Jornal da República, São Paulo, Ano I, nº 4, 30 de agosto julho de 1979,1º Caderno, p. 11. 1346 Idem, ibidem. 1347 Promotor foi quem atraiu maior parte da atenção popular”. In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 32; “Radialista gaúcho recebe 12 anos por morte de moça”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, Edição 144, 30 de agosto julho de 1979, 1º Caderno, p. 19. 1343 307 Imagem 8: Zero Hora, Porto Alegre, 29 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5987, 1º Caderno, Polícia, pp. 26-27. Na fotografia do alto, está, em primeiro plano, Flávio ouvindo seus advogados Eloar Guazzelli e Carlos Frederico Barcellos Guazzelli. À esquerda dos advogados está a filha de Eloar, Julieta, e à direita, a colega de escritório Ana Eni Machado Milan. Fonte: Acervo de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. 308 O “Grande Júri”, como ficou conhecido pelos jornais, acabou assumindo uma dimensão catártica para a sociedade porto-alegrense. Partindo das passagens descritas, nota-se que havia no caso elementos que o aproximavam dos charivari, fenômeno presente na Europa da Idade Média até o século XIX, no qual membros da comunidade, em geral jovens, promoviam arruaças contra pessoas de comportamento considerado condenável.1348 George Minois afirma que “esses procedimentos primitivos, humilhantes ridicularizam cruelmente uma pessoa que se encontra, assim, no ostracismo” e que os alvos do charivari levavam “com elas os vícios e os pecados da comunidade, facilmente eliminados”. 1349 Assim, diferentes setores da sociedade viam na condenação de Flávio Alcaraz Gomes diferentes características que desejavam ser extirpadas: enquanto que uma parcela mais conservadora o via como o assassino de uma jovem bela e bem nascida, grupos da oposição o representavam como a violência e a hipocrisia das classes dominantes. Este contexto não era fértil para uma tese como a do disparo acidental.1350 Cesar Augusto Guazzelli conta que sua então esposa, sua irmã e uma prima foram ao Júri, enquanto que ele ficou na casa da família, respondendo “da forma mais ‘educada’ possível” a telefonemas anônimos.1351 Segundo ele, Até as meninas ao final do júri foram chamadas de “assassinas”! Depois foi como uma catarse, passou tudo. Com o próprio Freitas tive uma conversa bem franca, ele falou que achou justa a pena, não tinha raiva do pai. Por sinal, ao longo deste tempo todo ele nunca me tratou mal.1352 Neste trecho há a percepção, por parte do filho de Eloar, que a execração pública ao réu atingiu não somente o advogado, mas também aqueles que lhe eram próximos, o que, aparentemente, não era realizado pelo médico namorado da vítima. Por outro lado, no relato de Cesar existe a ideia de que este clima cessou após o julgamento. O processo, no entanto, teria impactos mais profundos da vida de Eloar. 1348 MINOIS, George. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003, pp. 169-70. Idem, pp. 171 e 173. 1350 Carlos Frederico aponta que, “apesar de tudo, a defesa obtivera algum êxito, ao retirar da acusação a imputação de homicídio qualificado”. GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6. 1351 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 3. 1352 Idem, ibidem. 1349 309 Imediatamente após a sentença, o advogado entrou com recurso pedindo a anulação do Júri e solicitando a submissão a novo julgamento.1353 Carlos Frederico aponta que, “embora não tenha alcançado o resultado principal desejado”, a defesa “conseguiu a redução da pena pelo homicídio tentado, de quatro para dois anos”. 1354 Os advogados, posteriormente, iam colocar novo recurso no STF, pedido nova diminuição de pena, “Flávio, no entanto, provavelmente movido pela angústia de iniciar logo o cumprimento da pena, preferiu desistir do recurso, apresentando-se para cumpri-la”, indo para o Presídio Central de Porto Alegre, em “cela individual, na parte administrativa do estabelecimento, onde passou a trabalhar, inclusive”.1355 Posteriormente o escritório recebeu “uma carta lacônica” de Alcaraz Gomes “comunicando-lhe que dispensava seus serviços”.1356 Denise Broda, Ana Eni Machado Milan e Carlos Frederico Guazzelli, que conviviam com o advogado no escritório, deram respostas diversas quando questionados sobre o impacto que o processo teve em Eloar Guazzelli. A secretária afirmou que, mesmo o processo tendo sido arrastado e longo e, por isso, ter sido desgastante, não percebeu “que ele tivesse ficado chateado, triste, desgastado, nada, não”.1357 Já os advogados tiveram outra visão, afirmando que este caso abalou o advogado. Para Ana Eni, a repercussão foi oposta do esperado por Flávio: o invés de trazer boa visibilidade para o advogado e seu escritório, houve muito desgaste, derivado das posturas do cliente, contrárias à orientação do advogado.1358 Conforme apontou Carlos Frederico, que na época era colega de escritório de seu pai, “à medida que o processo tramitava e seu desfecho negativo se anunciava, Eloar foi sendo tomado por um misto de amargura, angústia e impotência”.1359 O advogado, quando questionado pela reportagem do Jornal da OAB/RS sobre grandes frustrações em sua profissão, afirmou que “Pena foi de 12 anos mas a defesa já apresentou recurso”In: Zero Hora, Porto Alegre, 30 de agosto de 1979, Ano XVI, nº 5988, 1º Caderno, Polícia, p. 30-1. 1354 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6. 1355 Idem, p. 7 (grifo no original). 1356 Idem, ibidem. 1357 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1358 Ela afirmou que no “Crime da Passarela”, houve situação semelhante. GUAZZELLI, Dante Guimaraens. Anotações sobre conversa com Ana Eni Machado Milan, realizada em 8 de setembro de 2017 em Porto Alegre, a respeito da trajetória de Eloar Guazzelli entre os anos 1974 e 1982. Porto Alegre, 2017, p. 1 1359 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6. 1353 310 A derrota que mais marcou minha vida foi por ocasião do caso envolvendo o radialista Flávio Alcaraz Gomes. Levei a defesa a um ponto de me estressar. Tive uma poliomielite e fiquei afastado do escritório por um ano. Hoje há um entendimento técnico-jurídico de que ele não poderia receber a pena que lhe foi imposta. Isto tudo aconteceu em função da antipatia que ele gozava em alguns meios. Aquela situação me desgostou profundamente.1360 Nota-se que mais de dez anos após o processo, o caso ainda assombrava Eloar. Na passagem ele faz questão de apontar que, devido a seu envolvimento, chegou a ter problemas de saúde. A derrota é, ao mesmo tempo, vinculada à “antipatia” de “alguns meios”. Conforme Carlos Frederico, o caso todo trouxe profundo desgosto em Eloar, dado seu grande envolvimento emocional com a defesa de réu que, ao final, demonstrou-se indigno de sua dedicação. De qualquer sorte, sendo ele como era, advogado por ofício e devoção, não agiria de modo diferente.1361 No relato percebe-se que o filho também reforça que o desgaste do advogado tinha a ver com um comprometimento que não teve resultados efetivos. Se, inicialmente, a ideia de estar nadando “contra a corrente” era encarada como um desafio por Eloar, ao final o defensor via-se extenuado e, principalmente, com a sensação de que o esforço havia sido desperdiçado por alguém “indigno”. Estes trechos contêm alguns elementos importantes em relação à memória familiar de Eloar. Inicialmente, como se pode ver nas narrativas dos filhos, devido a sua dimensão, o caso envolveu a família de uma forma singular.1362 O caso também ficou marcado na memória familiar: eu, por exemplo, cresci ouvindo meu pai falar sobre o processo, as linhas da defesa – em especial a questão da acidentalidade do disparo – e sobre o cliente, toda vez que escutava Alcaraz Gomes no rádio (o que ocorria muito). Isto mostra que o processo foi um evento determinante para a identidade dos descendentes do advogado. Ele representa uma perspectiva dada à atuação profissional de Eloar: a do direito de defesa como parte dos direitos humanos. Os relatos dos filhos do advogado vão neste sentido: como já citei, Cesar afirmou que durante o caso ele acabava tendo que dar “explicações sobre o papel da advocacia de defesa” e Carlos “Eloar Guazzelli: A defesa como uma razão de vida”. In: Jornal da OAB/RS, Porto Alegre, Outubro de 1991, p. 14. 1361 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6. 1362 Um exemplo são as fotografias do júri, na qual aparecem, além de Eloar e seu filho (que atuava na assistência), sua filha Julieta ao fundo. Isto fez com que minhas pesquisas nos jornais se assemelhasse ao ato de abrir um álbum de família. 1360 311 disse que mesmo o cliente sendo “indigno” seu pai teria feito a defesa já que era “advogado por ofício e devoção, não agiria de modo diferente”. 1363 O “Caso do Flávio” também mostra os limites do projeto de Eloar Guazzelli, que buscava articular a advocacia com a militância política. Aqui, sua atuação como advogado criminalista entrou em conflito com sua imagem enquanto militante da esquerda. Possivelmente surgia-lhe o questionamento de como poderia um defensor de presos políticos – alguém que lutava contra a ditadura em prol dos direitos humanos –, atuar na causa de um radialista que matou com uma espigarda de cano curto uma jovem que estava com seu namorado em frente à casa de réu. Mesmo que Eloar e sua família tenham encontrado uma justificativa que se encaixasse em um conceito de direitos humanos, uma parte considerável dos militantes de esquerda provavelmente não entendiam esta razão. Isto mostra, também, que a percepção sobre os direitos humanos ainda estava sendo construída e em disputa. Enquanto que o caso era um desafio para o advogado criminalista, para Eloar enquanto “homem de esquerda” representava um potencial estigma. Este processo criou, assim, uma tensão para Guazzelli: ele era um notório criminalista – que rivalizava com Lia Pires em grandes casos – ou um deputado que buscava lutar pelas liberdades democráticas? Sua “frustração”, “desgosto”, “amargura” provavelmente derivava de uma percepção pública que confrontava estas duas dimensões. Chamo a atenção, neste sentido, para o fato de que entre todos os casos em que o advogado não obteve sucesso, este foi o que mais lhe marcou. Nos “crimes de jornal” analisados anteriormente, “Crime da Mala” e o “Caso do Julinho”, nos quais ele também não obteve a absolvição, de alguma forma Guazzelli teve algum tipo de ganho profissional, enquanto que no analisado aqui, não. Além disso, percebe-se que, ao longo de sua carreira profissional, foi neste processo que foram registradas ameaças e constrangimentos por parte da memória familiar. 1363 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 3; GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6. Sobre o assunto, Carlos afirmou que “cabe lembrar, a propósito, a jocosa resposta que dava quando lhe manifestavam a estranheza, ou mesmo a contrariedade por assumir causas antipáticas como esta: dizia então que só não defendia o diabo por dois motivos – primeiro, porque este não o tinha procurado; e segundo, porque “deus nosso senhor não havia reaberto o caso”. Idem, ibidem. 312 IV.5. O “Advogado dos Direitos Humanos”: a eleição de 1978 Em 1978, Eloar Guazzelli lançou candidatura a deputado federal pelo MDB. Questionada sobre isto, a colega de escritório Ana Eni Machado Milan afirmou que naquele momento ele já havia construído um “nome” devido às suas qualidades, sendo reconhecido por advogados do centro do país como Técio Lins e Silva, Modesto da Silveira e Rosa Cardoso.1364 Mesmo assim, afirmou que recebeu este fato com “surpresa”, uma vez que não via em Eloar aspirações a cargos parlamentares: para ela, Guazzelli era e tinha como objetivo de vida ser um “advogado autônomo”, o que não se encaixaria com uma carreira política.1365 Já a secretária Denise Broda afirmou em entrevista que não lembrava como havia surgido a possibilidade de Guazzelli concorrer no pleito: “Um dia ele era candidato”.1366 Quando questionada, a secretária afirmou que não tinha recordações de personalidades do MDB presentes no cotidiano do escritório, mas sim pessoas como Júlio Teixeira e Honório Peres.1367 Assim percebe-se que a candidatura de Eloar estava inserida na estratégia do PCB de utilizar os espaços legais, em especial o MDB, para militar politicamente. Ele teria sido escolhido, pois seu nome alcançaria um apoio mais espraiado indo além das bases comunistas, conforme já mencionado por Honório Peres.1368 Há, assim, uma visão corrente de que a candidatura de Eloar foi, mais do que vontade pessoal, uma decisão do PCB, que via nele uma possibilidade de eleição. Cesar Augusto afirma que ele e seu irmão Carlos Frederico foram “chamados pelo Pinheirinho [Antônio Pinheiro Machado Neto] para uma conversa no escritório dele”, na qual expunha que a “eleição do pai seria bem possível pelo prestígio profissional, pela importância na Ordem dos Advogados, pela defesa de perseguidos políticos de todos os matizes etc.”, o que possibilitaria aumentar a votação além da obtida por Dulphe 1364 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. Anotações sobre conversa com Ana Eni Machado Milan, realizada em 8 de setembro de 2017 em Porto Alegre, a respeito da trajetória de Eloar Guazzelli entre os anos 1974 e 1982. Porto Alegre, 2017, p. 2. 1365 Idem, ibidem. 1366 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1367 Idem. 1368 PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre. 313 Pinheiro Machado no pleito anterior.1369 Carlos Frederico afirma que Eloar havia recusado convite a lançar candidatura em 1974, mas que A intensa pressão emocional decorrente da defesa de Flávio [Alcaraz Gomes] fez com que Eloar, em 1978, aceitasse a candidatura a deputado federal pelo MDB (…). A perspectiva do exercício do mandato oferecia uma espécie de alívio à angústia crescente que sentia, em face do anunciado desenlace desfavorável da causa.1370 Mesmo que buscasse no pleito uma “fuga” em relação ao caso de Alcaraz Gomes que estava em andamento, Cesar Augusto afirma que, durante a campanha, “a questão do Flávio não ajudou em nada!”, mostrando que a antipatia de setores oposicionistas em relação ao radialista acabou respingando na empreitada eleitoral de Eloar.1371 Carlos Frederico afirma que a eleição apresentava-se como “uma consequência natural dos esforços expendidos, ao longo de quase quatro décadas, como advogado e cidadão, na defesa dos direitos humanos e das prerrogativas da cidadania”.1372 Há, assim, um conflito de imagens sobre a concretização da candidatura entre Eni (“surpresa”) e Carlos (“consequência natural”), o que é derivado dos sentidos dados à trajetória profissional de Eloar. A advogada a vinculava a um projeto de “advocacia autônoma”, logo dentro dos espaços jurídicos, o que não tinha necessariamente a ver com a política partidária. Já o filho a colocava como parte de uma luta que, naquele momento, transferia-se de um meio jurídico para outro político. Nos dois casos, estas perspectivas estão relacionadas com uma “herança” diferente requisitada por cada um deles: Eni, a questão da advocacia, e Carlos, uma visão política da profissão.1373 Cesar Augusto narrou que, após a conversa com Antônio Pinheiro Machado Neto, os irmãos saíram “convencidos e até com certo entusiasmo, mas o compromisso era dobrar Dona Lizabel, o que não era exatamente uma coisa fácil. Mas deu para 1369 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 3. 1370 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 8 (grifos no original). 1371 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 5. 1372 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 8. 1373 Isto está diretamente vinculado às trajetórias dos dois advogados após a morte de Eloar, em 1994: Enquanto que Ana Eni seguiu com o escritório, Carlos Frederico passou a atuar exclusivamente como defensor público, sendo Defensor Público Geral no governo de Olívio Dutra (1999-2002) e membro da Comissão Estadual da Verdade, entre 2012 e 2014 Curiosamente, Denise Broda trabalhou em ambas as frentes, inicialmente no escritório e, posteriormente, como secretária do gabinete de Carlos na Defensoria Geral. 314 convencê-la”.1374 Esta passagem mostra que a campanha envolveu a família e as pessoas próximas: assim ele narrou contatos familiares em busca de apoio, envolvendo tanto a família de Eloar, em Vacaria, quanto à de sua esposa, em Santiago, o que esbarrava em questões ideológicas.1375 No que se refere à família, a questão da relação com seu primo, o então governador Sinval Guazzelli, é algo frequente dentro das narrativas sobre a campanha. O filho de Eloar afirmou que Sinval “obviamente não se meteu ou deu palpites”. 1376 Na imprensa há registros que buscam frisar esta desvinculação entre os primos. Em nota do jornal Tribuna da Imprensa de 16 de novembro de 1978, é narrado que “Arena percebendo que” Eloar estaria muito forte, arranjou uma maneira maquiavélica de tentar queimá-lo. Espalhou pelo Estado esta recomendação do governador: - “Sinval acha que se deve votar nele”. Não pegou.1377 No mesmo dia foi publicada no Jornal do Brasil uma matéria acompanhando o governador no dia na eleição.1378 Nela, Sinval defendeu o fim dos partidos, afirmando a “viabilidade futura da criação do Partido Comunista no Brasil, desde que adote o eurocomunismo “que defende o pluripartidarismo e o jogo democrático”, além clamar pela extinção da Lei Falcão.1379 Além de mencionar o PCB, os jornalistas questionaram o político “sobre possível voto ao seu primo-irmão, Eloar Guazzelli, candidato a deputado federal pela Oposição”, ao que ele respondeu que “é ‘um primo a quem muito estimo, sendo meu compadre e padrinho da minha filha mais moça. Mas ele é do MDB e eu da Arena’”.1380 Estes trechos mostram que havia a preocupação de ambos os lados para se desvincular os parentes políticos. Tanto o arenista quanto o emedebista evitavam que suas imagens fossem coladas uma a outra, procurando expor as diferenças ideológicas dos dois. Ainda assim, é possível que, mesmo no MDB, o sobrenome tenha ajudado em 1374 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 4. 1375 Idem, ibidem. Um exemplo apontado pelo filho de Eloar foi em relação ao apoio do MDB de Vacaria, que mesmo tendo uma parceria com um candidato a deputado estadual (que era marido de uma prima), “os votos de Vacaria e arredores – Esmeralda, Ipê, Bom Jesus etc. – não eram favas contadas” pois ficariam divididos, por um acordo com o diretório de Lagoa Vermelha, com Eloy Lenzi. 1376 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 4. 1377 “Plantão”. In: Tribuna da imprensa, Rio de Janeiro, Ano XXVIII, nº 8907, 16 de novembro de 1978, 1º Caderno, p. 3. 1378 “Guazzelli crê em pluralismo que poderá incluir até o PC”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 222, 16 de novembro de 1978, 1º Caderno, Política e Governo, p. 16. 1379 Idem, ibidem. 1380 Idem, ibidem. 315 seu sucesso. Poderia haver, por parte do eleitorado, uma inclinação a votar em um candidato que imaginassem que tivesse uma proximidade com o poder. É provável que sua escolha como candidato também passasse por esta possibilidade.1381 Há indícios de que a campanha foi articulada principalmente pelos membros do PCB: Cesar aponta Eloar como “dobradinha” na campanha Fernando do Canto, para deputado estadual, e Lauro Hagemann, para vereador em Porto Alegre, que eram identificados com a organização.1382 Ele também afirma que havia sido feita uma intervenção para uma parceria com o candidato a deputado estadual André Forster.1383 Ele era o principal coordenador do Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais do MDB (IEPES), que “foi, sem dúvida, o canal de maior visibilidade de engajamento da “esquerda gaúcha” na década de 70”.1384 De acordo com a cientista política Eliana Tavares dos Reis, este candidato contava na sua campanha com o engajamento de uma série de lideranças jovens que reconhecem na sua proposta a melhor tradução das aspirações oposicionistas e nas suas posições uma interpretação adequada para a passagem à democracia e desta ao socialismo.1385 Além dos IEPES, a autora aponta o Setor Jovem Metropolitano (SJM) e o Setor Jovem de Santa Maria como outros grupos de “lideranças jovens” dentro do MDB. Ela ainda afirma que estes grupos reivindicavam uma singularidade dentro do partido de oposição, “logo buscando o caráter de ‘novidade’ em relação às interpretações de quadros partidários já estabelecidos na arena política (trabalhistas, autênticos, comunistas, etc.)”, avaliando de forma crítica as posturas e ações dos “velhos” militantes. 1386 Em relação à parceria entre Guazzelli e Forster, Cesar Augusto narra: Mas não sei porque cargas d’água impingiram no pai uma dobradinha com o André Forster, que tinha muita inserção na esquerda. Ele não teve a menor consideração com o velho: num dos primeiros encontros políticos mais importantes, o Forster apareceu com o Clóvis Grivot, que também era candidato a federal...1387 1381 Curiosamente, em 25 de maio de 1979 o Jornal do Brasil publicou uma reportagem com jovens da família de Sinval Guazzelli e Tarso Dutra que havia optado por militar no MDB. “MDB gaúcho atrai preferência de descendentes de arenistas”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 49, 25 de maio de 1979, 1º Caderno, Política e Governo, p. 4. 1382 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 4. 1383 Idem, ibidem. 1384 REIS, Eliana Tavares dos. Juventude, Intelectualidade e Política: Espaços de Atuação e Repertórios de Mobilização no MDB dos Anos 70. Porto Alegre: UFRGS, 2001, p. 64. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. 1385 Idem, p. 85. 1386 Idem, p. 141. 1387 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 4. 316 Esta passagem mostra que a aproximação de Eloar com a jovem liderança não era orgânica, e sim um arranjo, que, aparentemente, não teve muito futuro. Carlos Frederico ainda afirma que seu pai costumava dizer que “...a candidatura é boa, já o candidato não sei...”. Abstraído o tom de blague, esta era uma boa síntese do significado político de sua candidatura: Eloar preenchia um vazio, à esquerda, na nomenclatura apresentada ao eleitorado gaúcho pelo MDB, como um nome inegavelmente identificado com as posições do humanismo socialista e democrático.1388 Comparando os trechos com as interpretações de Reis, nota-se que havia, nos setores de esquerda emedebista, uma disputa pelo mesmo eleitorado. Um exemplo são os “a pedido” dos dois candidatos inseridos no Coojornal¸ publicação voltada a um público posicionado “à esquerda”.1389 Os comunistas e a “juventude” do MDB buscavam preencher este “vazio à esquerda” de “humanismo socialista e democrático”, o que criava entre eles tensões, o que está presente na fala de Cesar Augusto. Conforme Cesar Augusto, “A campanha centrou na questão dos presos políticos, e o lema era ‘O Advogado dos Direitos Humanos’”.1390 Assim, a Tribuna da Imprensa apresentava Eloar como “famoso advogado de 308 presos e perseguidos políticos” que “recebeu o apoio de alguns dos setores mais avançados do Estado: Universidade, jornalistas, dirigentes sindicais, cassados”.1391 Ana Eni Machado Milan afirmou que a campanha de 1978 foi uma “campanha fácil”, e que escritório se manteve em funcionamento mesmo com a integração dos advogados com a campanha eleitoral.1392 Denise Broda narrou que o escritório seguiu em funcionamento neste momento e afirma que, ao final do expediente, quem estava lá ia para o comitê, que também era localizado no centro da capital, realizando “tudo que se faz numa campanha, indo para rua mesmo... era uma farra! Aquela campanha foi 1388 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 8. 1389 Coojornal, Porto Alegre, Ano III, nº 33, setembro de 1978, p. 16. 1390 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 5. 1391 “Plantão”. In: Tribuna da imprensa, Rio de Janeiro, Ano XXVIII, nº 8907, 16 de novembro de 1978, 1º Caderno, p. 3. 1392 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. Anotações sobre conversa com Ana Eni Machado Milan, realizada em 8 de setembro de 2017 em Porto Alegre, a respeito da trajetória de Eloar Guazzelli entre os anos 1974 e 1982. Porto Alegre, 2017, p. 2. 317 maravilhosa de se fazer. Muito boa, muito boa mesmo”.1393 Ela lembra de ser um período de muito trabalho e diversão passado ao lado de amigos.1394 Imagem 9: Propaganda eleitoral de Eloar Guazzelli na campanha de 1978. Fonte: Acervo familiar. Ao saírem os resultados da eleição do dia 15 de novembro já se ia indicando que Eloar Guazzelli seria eleito, o que se confirmou nos dias seguintes. 1395 Conforme relatou Cesar Augusto, o pai teve votos em todos os municípios do Rio Grande do Sul e fez 39.901 votos! Saiu na frente do Eloy Lenzi – dividindo quase ao meio os votos de Vacaria –, do Aldo Fagundes e do Carlos Santos, todos eles deputados e reeleitos! Atraiu votos de todas as tendências da 1393 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1394 Idem. 1395 “Votação de Simon é maior que a de Brossard” In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 226, 20 de novembro de 1978, 1º Caderno, p. 6; TRE-RS. Resultados das eleições gerais de 1978. Porto Alegre, 1978. Disponível em www.tre-rs.gov.br/upload/27/_Gerais_Resultados_RS1978.PDF 318 esquerda, de muitos advogados e também pela novidade de alguém fora da política.1396 Carlos Frederico credita a “surpreendente” votação de alguém que “não era um ‘político profissional’, com base regional ou social definida” a duas fontes: “aproximadamente metade dos votos” de simpatizantes e militantes do PCB e outra parte votos trazidos por sua personalidade política própria: em primeiro lugar os advogados, dados seu prestígio profissional e sua liderança classista; e ainda estudantes, intelectuais, ativistas sociais, entre os quais desfrutava de grande reputação como o “advogado dos direitos humanos” – slogan usado na campanha.1397 Para analisar estas questões pode-se, com objetivos ilustrativos, comparar a conquista de Eloar com o desempenho no pleito anterior de candidatos com perfis semelhantes: em 1974, Dulphe Pinheiro Machado, com o apoio do PCB, obteve 16.966 votos para deputado federal e o conselheiro da OAB/RS Pedro Lairihoy 3.893 concorrendo para deputado estadual, ambos pelo MDB.1398 A grande diferença entre estas votações indica que, além de angariar votos simpáticos aos comunistas e ao posicionamento das entidades dos advogados, Guazzelli conseguiu avançar em outros setores que se identificavam com sua trajetória. A referência ao lema “advogados dos direitos humanos” por parte dos filhos dele mostra que naquele momento a causa vinha ganhando legitimidade e vinculava-se a uma luta legal contra a ditadura, a defesa de presos políticos. A vitória de Eloar não foi um caso isolado: conforme aponta Daniel Aarão Reis Filho, em 1978 O PCB comemorava, uma vez que apoiara as campanhas vitoriosas de vários deputados federais: Roberto Freire, em Pernambuco; Alberto Goldman, em São Paulo; Modesto da Silveira e Marcelo Cerqueira, no Rio de Janeiro; Jackson Barreto em Sergipe; e Eloar Guazelli, no Rio Grande do Sul.1399 1396 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 5. Segundo os dados do TRE-RS, a quantidade de votos obtidos por Eloar no pleito foi exatamente a mencionada por seu filho, o que rendeu ao advogado a 15ª das 18 cadeiras conquistadas pelo MDB gaúcho. TRE-RS. Resultados das eleições gerais de 1978. Porto Alegre, 1978, p. 23. Disponível em www.tre-rs.gov.br/upload/27/_Gerais_Resultados_RS1978.PDF 1397 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 8. 1398 TRE/RS. [Resultados eleições gerais 1974]. Porto Alegre, 1974. Disponível em www.trers.gov.br/upload/28/_Gerais_Resultados_RS1974.PDF 1399 REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 397. 319 Além da proximidade com o “Partidão”, Guazzelli ainda compartilhava com os cariocas citados o fato de ter atuado na defesa de presos políticos. Esta questão também influenciou a reeleição de Airton Soares em São Paulo, o que mostra que esta atuação tinha grande repercussão entre os opositores da ditadura.1400 Após a eleição, diversos órgãos da imprensa fizeram um balanço sobre os resultados: uma das principais características apontadas era o aumento da bancada dos chamados autênticos, à qual, de acordo com diversas publicações, Guazzelli veio a constituir.1401 Eloar e os também advogados de presos políticos Modesto da Silveira, Marcelo Cerqueira e o reeleito Airton Soares, entre outros, se enquadravam na classificação por terem explorado “temas populares” nas campanhas.1402 O advogado e Waldir Walter eram “os novos parlamentares comprometidos com a luta popular” da bancada gaúcha, que se somariam a Alceu Collares, Getúlio Dias, Lidovino Fanton, Odacir Klein, Eloy Lenzi – considerados autênticos pois haviam sido eleitos em 1970 –, Rosa Flores, João Gilberto e Jorge Uequed – neoautênticos, já que eleitos por primeira vez em 1974.1403 Uma questão frequente nos perfis do novo parlamentar é, além da menção ao seu parentesco com o ex-governador, o fato de ter se destacado “defendendo presos políticos”, sendo “eleito pelos setores mais radicais da Oposição”.1404 Em matéria publicada em jornais do grupo Diários Associados no dia 9 de dezembro, Eloar Guazzelli e outros nomes da nova bancada autêntica são apontados como pessoas “que fizeram notícia devido a seu trabalho em prol do respeito aos direitos humanos”.1405 Estas menções apontam em direção semelhante daquela indicada pelos filhos do 1400 MARTINS, Paulo Emílio; MUNTEAL, Oswaldo; SÁ, Fernando (orgs). Os advogados e a ditadura de 1964: A defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2010, p. 106 1401 “‘Autênticos’ ampliam a bancada”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 226, 20 de novembro de 1978, 1º Caderno, Eleições, p. 9; “RS: Fogaça, 4 mil cabos eleitorais!” In: Movimento, Rio de Janeiro, edição 177, 20 a 26 de novembro de 1978, p. 6; “O crescimento dos autênticos”. In: Movimento, Rio de Janeiro, edição 178, 27 de novembro a 3 de dezembro de 1978, p. 2; “Chico Pinto, um destaque”. In: Diário de Natal (RN), 9 de dezembro de 1978, 1º Caderno, Política, p. 7; “Partidos mudam bases para se adaptar para novo Congresso”. In: Diário do Paraná, Curitiba, 9 de dezembro, 1º Caderno, Nacional, p. 4. 1402 “‘Autênticos’ ampliam a bancada”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 226, 20 de novembro de 1978, 1º Caderno, Eleições, p. 9. 1403 “RS: Fogaça, 4 mil cabos eleitorais!” In: Movimento, Rio de Janeiro, edição 177, 20 a 26 de novembro de 1978, p. 6. 1404 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 232, 26 de novembro de 1978, Caderno Especial “O retrato do novo Congresso”, Eleições, p. 3. 1405 “Chico Pinto, um destaque”. In: Diário de Natal (RN), 9 de dezembro de 1978, 1º Caderno, Política, p. 7; “Partidos mudam bases para se adaptar para novo Congresso”. In: Diário do Paraná, Curitiba, 9 de dezembro, 1º Caderno, Nacional, p. 4. 320 advogado, mostrando que a defesa de presos políticos e sua vinculação aos direitos humanos teve papel relevante no seu sucesso eleitoral. Na mesma linha segue a matéria com Eloar feito pelo jornalista Rafael Guimaraens publicada no jornal Movimento do final de dezembro de 1978, que fazia parte de série intitulada “Novo MDB”, no qual eram tratados “os mais significativos e autênticos candidatos, eleitos pelo povo para representa-lo em Brasília”. 1406 No perfil, nota-se a intenção de apresentar o “estreante” que venceu “vários ex-secretários estaduais que não se sentiram nada constrangidos em usar e abusar da máquina administrativa do governo” para setores oposicionistas de fora do estado.1407 A nota iniciava a breve biografia afirmando que Eloar, primo do governador do Estado, iniciou-se em atividades políticas no movimento estudantil, aluno de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Chegou a ocupar cargos de direção no Centro Acadêmico André da Rocha, na época disputado pela esquerda com a qual Eloar se identificava, e também pelos jovens do Partido Libertador (PL), liderado por Paulo Brossard. Participou das campanhas pela queda da ditadura de Vargas e fim do Estado Novo, pela Anistia e pela Constituinte de 45/46.1408 No trecho, além da menção a seu parente famoso, percebe-se que se vincula Eloar à “esquerda” e campanhas do final do Estado Novo, sem evidenciar sua filiação, o que mostra que, se havia a busca de identificá-lo como “homem de esquerda”, a menção ao PCB ainda era algo muito perigoso para ser divulgado. Um exemplo disso é a reportagem de O Cruzeiro publicada em 26 de dezembro, que denunciava a infiltração do PCB em diversos setores, em especial no MDB, onde os autênticos estariam “a reboque de contestação e da radicalização dos propósitos do comunismo internacional na escalada do poder”.1409 A matéria identificava diversos parlamentares do grupo, entre eles Eloar, que teriam sido eleitos pelos comunistas. Esta comparação mostra a complexidade do contexto político daquele momento: enquanto características como “defensores de presos políticos”, “esquerda” e “direitos humanos” eram distinções positivas, “comunista” consistia ainda um estigma do qual se fugia. Erving Goffman afirma que o estigma é uma característica vista como indesejável pelo grupo que poderia fazer com que seu portador deixasse de ser considerado uma GUIMARAENS, Rafael. “Qualquer quebra da unidade será suicídio”. In: Movimento, Rio de Janeiro, edição 181, 18 a 24 de dezembro de 1978, p. 9. 1407 Idem, ibidem. 1408 Idem, ibidem. 1409 BANDEIRA FILHO¸ F. “Esquerdas recebem instruções: Infiltração no Exército e na Imprensa”. In: O Cruzeiro, Rio de Janeiro, nº 2453, 26 de dezembro de 1978, p. 23. 1406 321 “criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída”.1410 Ser “comunista” seria um estigma desacreditável, utilizando a tipologia proposta por este autor, uma vez que era passível de “encobrimento”. A matéria de O Cruzeiro buscava, assim, desmascará-los. Na matéria de Guimaraens foi mencionado que, durante a ditadura, Eloar havia defendido presos políticos, acreditando “que já defendeu mais de 300 presos políticos, conseguindo 90% de absolvições ou penas reduzidas”.1411 Em relação às suas posturas que teria no Parlamento, “repete o pensamento do senador gaúcho eleito, Pedro Simon: O MDB não deve se atrelar ao governo”, posicionando “claramente contra a ditadura, sem deixar de dialogar. Só que o diálogo deve partir de um fortalecimento do Senado e da Câmara dos Deputados, legitimando sua independência do governo e reduzindo a hipertrofia do poder executivo”.1412 Eloar ainda reforçava “que qualquer proposta de redemocratização deve ser precedida da luta pela anistia, sem a qual não é possível falar em constituinte e liberdades democráticas plenas”, e mesmo que o governo “dê restrita”, o deputado afirmava que continuaria “lutando pela anistia que a maioria da população quer: ampla, geral e irrestrita”.1413 Além de afirmar que os senadores “biônicos” eram um “excremento do sistema”, Guazzelli frisava que “Toda e qualquer quebra da unidade [da oposição] será um suicídio”.1414 O perfil, além de mostrar quem era o novo deputado, procurava apontar para o que ele buscaria trabalhar em seu mandato: o combate contra o governo e a luta pela redemocratização. Ao mesmo tempo, Guazzelli destacava a questão da unidade da oposição como fundamental para o sucesso. No debate sobre a extinção dos partidos, Eloar, diferentemente de seu primo arenista, posicionava-se ao lado do grupo que via a manutenção da oposição unida como requisito básico para a redemocratização. Este posicionamento será algo recorrente em suas ações no Congresso. Os anos de 1978 e 1979 foram de intensa atividade e visibilidade dos advogados aqui estudados. Omar Ferri e Werner Becker foram lançados à esfera pública por suas 1410 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro, LTC Editora, 1988, p. 12. 1411 GUIMARAENS, Rafael. “Qualquer quebra da unidade será suicídio”. In: Movimento, Rio de Janeiro, edição 181, 18 a 24 de dezembro de 1978, p. 9. 1412 Idem, ibidem. 1413 Idem, ibidem. 1414 Idem, ibidem. 322 participações no caso de denúncias que teve, provavelmente, mais repercussão no estado: o sequestro dos uruguaios. Como procurei mostrar, a atuação dos advogados unia a militância contra o regime ao ofício profissional, o que trouxe para eles reconhecimento entre setores da oposição. Este evento marcou profundamente suas trajetórias, em especial a de Ferri, que muitas vezes organiza suas narrativas sobre a ditadura ao redor dele. A mobilização a partir do sequestro também foi um ponto de clímax para os posicionamentos da OAB/RS contrários à ditadura. Como procurei mostrar, estas posturas têm a ver com a atuação de conselheiros como Justino Vasconcelos, José Mariano Beck, Marcus Melzer, além dos cejuristas, e muitas vezes causavam atritos dentro do Conselho Seccional, o que pode ser visto no incidente relacionado com George Tenório Noronha. Nestes anos vemos, também, a presença de opositores ao grupo hegemônico no Conselho da OAB/RS, liderados por Afrânio Araújo e concentrados na AGETRA. Enquanto que em alguns momentos havia a cooperação – como no caso do sequestro dos uruguaios – em outros fica clara a disputa existente entre as facções – como no imbróglio envolvendo a sala do TRT. Já Eloar viveu, entre 1978 e 1979, dois momentos que evidenciam o sucesso e os limites de seu projeto de amálgama entre atividade profissional e militância política. Houve a consagração de sua trajetória com sua vitória no pleito de 1978, alcançando uma cadeira como deputado federal. Por outro lado, entre 1976 e 1979, seu envolvimento no Caso de Flávio Alcaraz Gomes lançava suspeitas sobre sua imagem de resistente da ditadura ao defender um defensor da ditadura que matou uma jovem por uma razão estúpida. Estes eventos possibilitarão que, nos anos seguintes, os advogados sigam reconhecidos dentro das esquerdas gaúchas, o que possibilitará o lançamento de suas candidaturas em 1982. 323 Capítulo V – Reconhecimento e um novo tempo: a atuação dos advogados entre 1979 e 1982 Após o envolvimento nos eventos ocorridos em 1978 e 1979, a repercussão pública dada a Eloar Guazzelli, Werner Becker e Omar Ferri foi sendo potencializada, o que levou às suas candidaturas na eleição de 1982. Percebe-se que o contexto político dos anos iniciais da década de 1980 estava em transformação com o qual os advogados interagiam. Analisarei neste capítulo derradeiro como isto ocorreu através da atuação de Eloar na Câmara dos Deputados, as primeiras ações de Omar no MJDH, além dos debates ocorridos dentro das entidades dos advogados. Finalmente, será abordada a eleição de 1982, vendo as escolhas do PMDB, o lançamento das candidaturas, as campanhas e os resultados finais. V.1. O Velho Guazzelli vai a Brasília: o mandato de Eloar Guazzelli na Câmara dos Deputados e a “terrível moléstia” (1979-1982) Cesar Augusto afirmou que “O mandato de deputado começou antes de ele ser diplomado”, uma vez que para eram necessárias “providências antes da mudança” para Brasília. 1415 Estas questões foram facilitadas por um contato inicial com o reeleito Rosa Flores, que Ficaria entre os mais ligados ao pai, todos do assim chamado “grupo autêntico”, cujo líder maior era o Pedro Simon. O pai já conhecia o [Alceu] Collares, o Carlos Santos e outros mais antigos. Os mais próximos seriam Jorge Uequed e Odacir Klein, mas ele ficou “popular” na bancada.1416 Ele ainda apontou que a transferência afetou a vida familiar: enquanto que alguns membros foram para a capital, outros ficaram em Porto Alegre, o que foi o caso de Carlos e Cesar.1417 O filho de Eloar afirma que mesmo que tivessem levado pessoas próximas e reativado contato com antigos amigos e familiares que estavam na região central do 1415 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 5. 1416 Idem, ibidem. Carlos Frederico reforça também a inserção de seu pai entre os “autênticos”. GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 10. 1417 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 5. 324 país, seus pais não chegaram a se adaptar bem ao local: “A mãe não gostava do apartamento e o pai não gostava de Brasília. Engraçado é que ele quase nunca viajava, talvez por isto tenha desatendido o eleitorado”.1418 Carlos Frederico sinaliza no mesmo sentido ao afirmar que Eloar “costumava ficar semanas, quando não, dois, três meses seguidos em Brasília, sem vir a Porto Alegre, onde também tinha um escritório de representação”, o que se justificava, para o filho, pois seu pai “não mantinha com tais setores os vínculos típicos da representação parlamentar a que se chama ‘profissional’ – por sua dependência, às vezes até mesmo exclusiva para com seus representados”.1419 O fato de Eloar ter se transferido para a capital de uma forma mais definitiva, com a esposa e familiares, e assim não “cultivando” suas bases de forma frequente durante o mandato é algo muito significativo na memória familiar. Esta atitude mostraria, como reforça Carlos, o fato de ele não ser um político “profissional” e não ter a dimensão que, com suas atitudes, seu eleitorado ficaria “desatendido”, como aponta Cesar. Nas narrativas dos filhos, da colega de escritório e da secretária estão presentes elementos que apontam para uma “inadequação” do advogado em relação à vida parlamentar. Em discursos na tribuna da Câmara, “nota-se uma preocupação grande de Eloar para ressaltar o fato de que ele não era um ‘político profissional’”, sendo afirmado que ele não havia tido atuação político-partidária anterior e que era “político por necessidade imperativa da minha contingência humana”.1420 Como afirmei em outro espaço, em pronunciamentos Guazzelli justifica sua atuação parlamentar naquele momento, comparando-a à do advogado, afirmando que o parlamento era um recurso ao qual o cidadão recorre, o qual “é um recurso semelhante àquele que o cidadão usa, confiando a um advogado o mandato [judicial], para que defenda seus interesses”.1421 Apesar de ser um ponto em comum entre as falas do advogado e de seus filhos, penso que aqui o sentido dado ao “não-profissionalismo” do político Eloar tem mais a ver com ele apresentar-se como uma novidade dentro do cenário político do que com 1418 Idem, p. 6. GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 9. 1420 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. “Estado e oposição na experiência parlamentar de Eloar Guazzelli (1979-1982)”. In: LEAL, Elisabete C.; POSSAMAI, Zita R. IX Encontro Estadual de História – Vestígio do passado: a história e suas fontes: anais. Porto Alegre: ANPUH/RS, 2008, p. 4. Disponível em http://eeh2008.anpuhrs.org.br/resources/content/anais/1212362388_ARQUIVO_EstadoeOposicaoEloar.pdf 1421 Idem, ibidem. 1419 325 desajuste com as práticas de parlamentares. Ao relacionar sua atuação profissional, o deputado buscava mostrar-se como um defensor que havia sido colocado lá para lutar pelos direitos contra a ditadura. Carlos Frederico qualifica o mandato de seu pai como “discreto, mas eficiente”, com uma atuação voltada a Comissões, como a de Segurança Nacional (CSN) e de Constituição e Justiça (CCJ), atuando em “projetos a áreas direitos humanos e da defesa da cidadania” através de “pareceres emitidos em projetos de lei que ameaçavam os direitos e garantias, individuais e coletivos”, além de propor alterações “de supressão de tipos penais e de diminuição de penas”.1422 Neste sentido vai a manifestação de Eloar enquanto membro da CCJ, registrada no Jornal do Brasil de 19 de abril de 1979, que avaliava como “‘viável’ como ponto de partida para futuras reformas constitucionais” a proposta de Djalma Marinho de retomar a Constituição de 1967.1423 Cesar Augusto afirma que o primeiro ano de seu pai na Câmara teria passado “meio em adaptação e sem muita inserção nas manobras legislativas”.1424 Eloar teria Um certo enfaro porque não conseguia tempo para falar no “grande expediente”, cuja inscrição era complicada e tinha muitas estranhezas. No gabinete ficava ouvindo o plenário e vibrava muito com quem era desaforado com o governo militar.1425 A falta de espaço e a burocratização que havia no Parlamento é também apontado por Denise Broda como algo que desmobilizou e desiludiu Eloar.1426 Narrando este momento, Cesar lembra que, quando foi visitar por primeira vez seu pai, em junho de 1979, foi levado para conhecer uma “atração que o pai descobrira em Brasília: a embaixada da União Soviética! (…) Enfim, vira e mexe e está o Partidão no meio”.1427 Com esta anedota o filho reforça, mais uma vez, a proximidade de Eloar com o PCB, o que era algo um tanto delicado naquele momento. Porém, os pronunciamentos de Eloar Guazzelli em 1979 acabaram girando em torno do tema da reforma partidária e de seu impacto na oposição. Ele, assim como 1422 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 9. 1423 “Deputado pede ao Governo para retomar Carta de 67”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 11, 19 de abril de 1979, 1º Caderno, Política e Governo, p. 3. Guazzelli afirmava que, naquele momento, a ideia de Assembleia Constituinte era “utópica”. 1424 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6. 1425 Idem, ibidem. 1426 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1427 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6. 326 deputados do MDB, defendia que o principal objetivo da reforma partidária era, como aponta Maria Helena Moreira Alves, instigar a divisão a oposição, enquanto que o partido do governo se mantinha unido.1428 O parlamentar, em seus discursos na Câmara, chamava a atenção da “necessidade de que as decisões do país fossem tomadas por representantes legítimos, e não por uma fração, o que era representado pelos militares” ao mesmo tempo em que reforçava, assim como havia feito na entrevista para o Movimento, a necessidade de unidade dentro da oposição.1429 Em jornais de dois de junho de 1979, por exemplo, repercutiram a crítica de Guazzelli à medida do governo: ele afirmava que com a reforma partidária o “povo brasileiro é colocado hoje diante de mais uma encruzilhada, sem poder decidir o seu futuro”, “que o Governo não tem autoridade para determinar a extinção dos partidos sem consulta do povo” e que para superar os obstáculos que a ditadura colocava deveriam ser realizados esforços pelo Congresso e pelo povo.1430 Da mesma forma, Rosa Flores frisava que o pluripartidarismo só auxiliaria na permanência da ditadura.1431 As declarações foram respostas a manifestações de lideranças da Arena de que a extinção dos partidos era apoiada por diversos parlamentares. Além de ser um confronto com a proposta do governo, as falas dos emedebistas expressavam um temor de setores do partido em relação à iminente fragmentação do mesmo. Neste mesmo contexto estava sendo debatida a Anistia e a volta de lideranças políticas do exílio, algumas das quais já vinham empreendendo ações para a construção de novos partidos. Um espectro rondava a oposição – o espectro de Leonel Brizola e do seu futuro partido. Assim, em 14 de agosto o Jornal do Brasil relatava tensões entre dois grupos dentro da bancada gaúcha do MDB na Câmara: um que buscava articular a criação do “PTB de Brizola” e outro que estabelecia “uma estratégia de ação político-partidária 1428 MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru: EDUSC, 2005, p. 322-3. 1429 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. “Estado e oposição na experiência parlamentar de Eloar Guazzelli (1979-1982)”. In: LEAL, Elisabete C.; POSSAMAI, Zita R. IX Encontro Estadual de História – Vestígio do passado: a história e suas fontes: anais. Porto Alegre: ANPUH/RS, 2008, p. 9. 1430 “Crítica à reforma”. In: Diário de Natal, Natal (RN), 2 de junho de 1979, 1º Caderno, p. 9. Semelhante declaração também foi mencionada em: “O fim dos partidos”. In: Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 2 de junho de 1979, 1º Caderno, p. 9; “Richa contesta Sarney: MDB não quer desaparecer”. In: Diário do Paraná, Curitiba, 2 de junho de 1979, 1º Caderno, Política, p. 3. 1431 “Richa contesta Sarney: MDB não quer desaparecer”. In: Diário do Paraná, Curitiba, 2 de junho de 1979, 1º Caderno, Política, p. 3. 327 antibrizolista”.1432 Além de ressaltar que o futuro da agremiação trabalhista dependia do apoio de Pedro Simon, a matéria registrava que na noite anterior os deputados Alceu Collares, Jorge Uequed, Rosa Flores, Odacir Klein, João Gilberto, Eloar Guazzelli, Eloy Lenzi, Waldir Walter, Julio Costamilan e Cardoso Fregapani – mais da metade dos 18 representantes – “estiveram discutindo a esperada presença do Sr. Leonel Brizola”.1433 Mesmo poupando-o até seu retorno ao país, este grupo estava irritado com críticas que o líder trabalhista havia feito ao MDB e propunha “continuar a luta pela manutenção do MDB”, e, se houvesse a extinção, faria esforços para a construção de um novo Partido de Oposição que reunisse os “autênticos”.1434 A divisão da bancada manteve-se após a votação da Lei de Anistia, em 29 de agosto. O jornal Movimento de início de setembro afirmava que “na pátria do trabalhismo, a situação ainda está longe de ser resolvida”, estando o MDB sul-riograndense dividido em três grupos. Um “já fechado com o PTB”, que contava com a participação dos deputados Getúlio Dias, Magnus Guimarães, Harry Sauer e Aluizio Paraguassu; um grupo que aguardava o posicionamento de Pedro Simon; e “resistindo ao PTB e dispostos e engajarem-se na proposta partidária que seja elaborada pelos autênticos” estavam os deputados João Gilberto, Odacir Klein, Waldir Walter, Jorge Uequed, Rosa Flores, Eloar Guazzelli.1435 Nos dias seguintes, o embate entre os partidários e os contrários a Brizola e sua nova organização seguiu, fazendo com que cada ato político fosse visto como uma vitória ou derrota. Armando Rollemberg, no Jornal da República, afirmava que havia a análise, por parte dos antipetebistas de que o trabalhista havia perdido “o primeiro round” da luta, considerando que sua chegada ao Brasil havia sido um “fiasco” pela pouca presença de deputados em seu palanque.1436 Este seria um sinal do pouco apoio ao projeto do PTB, o que faziam “os defensores da manutenção da frente emedebista – com exclusão dos adesistas – se sentiram vitoriosos”.1437 Na matéria era descrito o encontro no “cafezinho da Câmara”, no qual os deputados autênticos Fernando Lyra e Euclides Scalco conversavam com Eloar sobre a “MDB gaúcho articula ação antipetebista”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 128, 14 de agosto de 1979, 1º Caderno, Política e Governo, p. 3. 1433 Idem, ibidem. 1434 Idem, ibidem. 1435 MANZOLILLO, Vera; QUEIROZ, Antônio Carlos. “Quem está com Brizola”. In: Movimento, Rio de Janeiro, edição 218, 3 a 9 de setembro de 1979, p. 6. 1436 ROLLEMBERG, Armando. “Brizola perdeu o primeiro round”. In: Jornal da República, ano I, nº 14, 11 de setembro de 1979, 1º Caderno, Política, p. 2. 1437 Idem, ibidem. 1432 328 chegada de outro exilado, Miguel Arraes, que seria mais concorrida que a de Brizola.1438 Cesar Augusto contou que seu pai e família “prestigiaram a volta do Arraes, já num claro posicionamento anti-brizolista, que estava rompido com o Simon”.1439 Estas passagens mostram como todos os passos dos políticos naquele momento tinham significado e dimensão neste embate. A menção a Eloar tem a ver com discurso proferido por ele na Tribuna no qual saudava o retorno de Brizola e dos exilados, desejando que eles contribuíssem para a independência do país e “para sua libertação da fome, do atraso, da miséria e da doença”.1440 Ele frisava que aqueles que haviam ficado no Brasil e militado no MDB não curvaram as cabeças, mas tiveram muitas cabeças ceifadas, não só no sentido alegórico do termo, como ceifadas através do trucidamento, da tortura e do assassínio pelos famosos traumatismos cranianos inexplicáveis, dentro das sepulturas com nomes trocados.1441 A fala o parlamentar destacava o papel relevante que o MDB havia assumido na resistência à ditadura, destacando as ameaças e perigos que seus componentes sofreram. O discurso também articulou estes temas com a repressão aos bancários grevistas, o que será analisado posteriormente. No trecho há ainda à referência a descoberta de ossadas de mortos pela repressão política, no Cemitério de Perus, em São Paulo, nos meses anteriores. A iniciativa do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo (CBA-SP) levou à identificação dos restos mortais do desaparecido político Luiz Eurico Tejera Lisboa. Esta menção do deputado mostra a presença de uma dimensão que não foi contemplada pela Anistia de agosto de 1979, que é a luta do esclarecimento sobre os mortos e desaparecidos na ditadura. Carlos Frederico afirma que seu pai, que havia se aproximado de Ulysses Guimarães, abateu-se consideravelmente com as derrotas sofridas no jogo político, como a Lei de Anistia e a reorganização partidária. Enquanto que o primeiro caso é visto pelo seu filho como “imposição” do governo militar que contava com os votos de senadores biônicos, no segundo Eloar teria visto o “desfazimento de parte expressiva da frente de esquerda dentro do MDB, que Eloar julgava condição necessária para a derrota 1438 Idem, ibidem. GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6. Nos últimos anos de sua vida, minha avó me contou sobre esta viagem, na qual teria conhecido, no aeroporto, o sindicalista Luiz Inácio “Lula” da Silva. Com o intuito de registrar o momento histórico, Lizabel tirou sua primeira e única fotografia, que mostrou um Arraes desfocado e fora de quadro. 1440 “Exilados recebem votos de boas vindas: Câmara”. In: Diário de Natal, Natal (RN), 12 de setembro de 1979, 1º Caderno, p. 14. 1441 Idem, ibidem. 1439 329 da ditadura e o restabelecimento da democracia”.1442 É interessante notar que a preocupação com a unidade que Carlos aponta já estava presente na entrevista concedida ao jornal Movimento antes de assumir o cargo no Parlamento. A disputa entre os favoráveis e os contrários à extinção dos partidos teria, no final de outubro, um capítulo um tanto curioso. Naqueles dias os gabinetes de deputados emedebistas foram alvo de cartas apócrifas que denunciavam “manobras comunistas” de “doze deputados do MDB que teriam recebido ‘o apoio do Partido Comunista Brasileiro’ e por isso, no Congresso, aplicariam a ‘estratégia do partido que os elegeu’”, que, naquele momento, era a luta contra a extinção dos partidos.1443 Os deputados, que teriam a “pretensão de entregar nossa nação ao moribundo Leonid Brejnev” eram Freitas Diniz, Iranildo Pereira, Cristina Tavares, Roberto Freire, Jackson Barreto, Marcelo Cordeiro, Edgard Amorim, Eloar Guazzelli, João Gilberto Alberto Goldman e Marcelo Cerqueira.1444 As cartas causaram grande alvoroço no Congresso e foram identificadas com parlamentares vinculados à luta pela formação de novos partidos, em especial o “PTB de Brizola”.1445 Tanto partidários como contrários da reforma partidária criticavam-nas publicamente, vistas como “arma típica da repressão. É mais uma tentativa contra a unidade oposicionista” pelo suposto comunista João Gilberto.1446 Mesmo sem poder saber se as missivas realmente eram obra de militantes próPTB, seu conteúdo indica que “comunista” era um estigma, uma marca extremamente negativa, tanto que o vice-líder do MDB no Congresso, senador Gilvan Rocha, reforçava aos repórteres do Jornal do Brasil que seriam “minoria insignificante, se existirem” na oposição.1447 Esta declaração mostra que, ainda que desarmada pela exposição, as anônimas epístolas iam a um ponto nevrálgico: a presença do PCB no seio de um partido legal. Os comunistas eram ainda um fator que poderia desacreditar toda e qualquer ação. Outro debate presente no primeiro ano de Eloar Guazzelli na Câmara dizia respeito a sua atuação junto da mobilização de bancários grevistas presos. Como 1442 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 10. 1443 “O MDB e o ‘moribundo’”. In: Jornal da República, ano I, nº 56, 30 de outubro de 1979, 1º Caderno, Política, p. 5. 1444 Idem, ibidem. 1445 “Carta apócrifa denuncia comunismo no MDB”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 205, 30 de outubro de 1979, 1º Caderno, Política e Governo, p. 2. 1446 Idem, ibidem. 1447 Idem, ibidem. 330 mencionei, no pronunciamento feito após a Lei de Anistia, o deputado citou as prisões que, de acordo com legislação baixada pela ditadura em 1978, eram enquadradas na Lei de Segurança Nacional.1448 Na tribuna, Eloar destacava os trabalhadores que, além de não terem sido contemplados pela Lei de Anistia, sofriam pelos “dispositivos fascistas da Consolidação as Leis do Trabalho”, que destituía de seus sindicatos lideranças eleitas, como Olívio Dutra.1449 Para o deputado, a “Anistia que deveria ser ampla e irrestrita, mas que foi restrita e que não é ampla”, mostrava-se incapaz de conciliar a Nação, porque ela apenas disfarça o sistema, que premanece (sic) o mesmo, montado para a defesa de um capitalismo desumano e brutal, um capitalismo concentrador de rendas, um capitalismo que vem sendo disfarçado com algumas nuances de concessões liberais, como essa ameaça de revisão semestral dos salários.1450 Guazzelli parte, assim, da temática da Anistia para tratar da questão da perseguição aos trabalhadores, em especial aos bancários de Porto Alegre, a qual, conforme expliquei em outro estudo, “foi um ponto extremamente importante para este deputado, tendo lhe dedicado um discurso – além de diversas menções realizadas em outros”.1451 Neles, “a tribuna parlamentar (…) se equipara a um tribunal e Guazzelli demonstra sua experiência em casos políticos”, argumentando pelas lideranças presas, Olívio Oliveira Dutra, Luís Felipe Costa Nogueira, Ana Lúcia Valença de Santacruz Oliveira e Namir José de Oliveira Bueno.1452 De fato, o parlamentar, junto de seu antigo contemporâneo de Faculdade de Direito, Raymundo Faoro, assumiu a defesa das lideranças presas, conforme registrou o Jornal da República.1453 Como escreveram os jornalistas Sergio Becker e Nunzio Briguglio, Tarso Genro havia informado que no dia catorze de setembro ingressaria no STM “de pedido de habeascorpus (…), assinado pelo jurista Raymundo Faoro e pelo advogado (e deputado federal pelo MDB gaúcho) Eloar Guazzelli, em favor de 1448 MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru: EDUSC, 2005, p. 304. 1449 “Anistia”. In: CÂMARA DOS DEPUTADOS. Eloar Guazzelli- uma experiência parlamentar. Brasília: Centro de Documentação e Informação/ Coordenação de Publicações, 1981, p. 25. 1450 Idem, pp. 25 e 28. 1451 GUAZZELLI, Dante Guimaraens. “Estado e oposição na experiência parlamentar de Eloar Guazzelli (1979-1982)”. In: LEAL, Elisabete C.; POSSAMAI, Zita R. IX Encontro Estadual de História – Vestígio do passado: a história e suas fontes: anais. Porto Alegre: ANPUH/RS, 2008, p. 7. 1452 Idem, ibidem. 1453 BECKER, Sérgio; BRIGUGLIO, Nunzio. “A greve só cessa no interior”. In: Jornal da República, ano I, nº 16, 13 de setembro de 1979, 1º Caderno, Trabalhadores, p. 6; “Faoro e Guazzelli defenderão Dutra”. In: Jornal da República, ano I, nº 17, 14 de setembro de 1979, 1º Caderno, Trabalhadores, p. 6. 331 Dutra”.1454 De acordo com o mesmo periódico no dia seguinte, Raymundo Faoro defenderia o líder bancário “em conjunto com outro especialista de fama nacional, o criminalista Eloar Guazzelli, deputado federal pelo MDB gaúcho” e seguiria uma linha de defesa em “dois planos: o puramente criminal, e portanto defensivo, e o político em que a defesa terá possibilidades de passar à acusação da legislação que permitiu a punição ao líder bancário”.1455 Percebe-se que a atuação parlamentar de Guazzelli era marcada por uma dimensão jurídica, o que diz respeito tanto a seus pareceres com viés mais técnico quanto ao envolvimento em causas da luta contra a ditadura. Estar na Câmara não impedia que ele se envolvesse em casos como o de Olívio Dutra: pelo contrário, Eloar estar na Câmara dava mais destaque à resistência. O ano de 1980 inicia com os novos partidos criados após a extinção do bipartidarismo. De acordo com suas mobilizações e com os pronunciamentos realizados desde sua eleição, Eloar Guazzelli vincula-se ao pretendido sucessor da frente oposicionista, o PMDB.1456 No início do ano percebe-se, também, críticas suas às manobras do governo.1457 Porém, evento mais marcante deste primeiro semestre de 1980 na vida de Eloar foi o que ele chamou de “terrível moléstia”.1458 De acordo com Cesar Augusto, após o Carnaval de 1980, quando estava de férias com a família, Eloar “começou a sentir primeiramente problemas de visão, depois fala, daí comprometendo todos os movimentos”, o que foi diagnosticado como “uma polirradiculoneurite – conhecida como Síndrome de Guillain-Barré – uma afecção viral que compromete todos os nervos periféricos sem interferir nas funções cerebrais, e reversível ao cabo de três meses mais ou menos”.1459 Mesmo que tratável, a doença teve grande impacto na vida de Eloar: na BECKER, Sérgio; BRIGUGLIO, Nunzio. “A greve só cessa no interior”. In: Jornal da República, ano I, nº 16, 13 de setembro de 1979, 1º Caderno, Trabalhadores, p. 6 (grifo no original). 1455 “Faoro e Guazzelli defenderão Dutra”. In: Jornal da República, ano I, nº 17, 14 de setembro de 1979, 1º Caderno, Trabalhadores, p. 6. 1456 “Governo procura manter sua maioria na Câmara”. In:Diário do Paraná, Curitiba, 3 de janeiro de 1980, 1º Caderno, Política, p. 3; “A bancada do PMDB”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 313 , 17 de fevereiro de 1980, 1º Caderno, Política e Governo, p. 3. 1457 Foi o caso de sua entrevista na qual apresentava ressalvas sobre a indicação do novo Ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel “Oposicionista teme mumificação de Ministro”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 279, 14 de janeiro de 1980, 1º Caderno, Política e Governo, p. 4. 1458 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 6 1459 Idem, ibidem. 1454 332 entrevista para o Jornal da OAB/RS ele a vincula à pressão sofrida durante o ano anterior, em especial ao Caso de Flávio Alcaraz Gomes.1460 Cesar afirma que, inicialmente, seu pai não acreditava no diagnóstico, crendo tratar-se de um tumor e chegou a consultar secretamente outro médico, que acabou por confirmar o parecer inicial.1461 O filho afirma que no final Eloar “conformou-se com o tratamento, mas foi um tormento para enfermeiros, médicos e, sobretudo, para a mãe e para mim”.1462 O filho do deputado fez este comentário uma vez que ele era, naquele momento, neurocirurgião e, desta forma, assumiu uma postura mais técnica, tanto na época como em sua narrativa. Em seu relato a doença é vista de forma mais científica, ao mesmo tempo em que se depreende que ele havia assumido certas obrigações com a saúde do pai. Denise Broda afirmou que ele era um homem “absolutamente vaidoso”, preocupado com sua apresentação e que a moléstia “derrubou ele”.1463 Ela ressalta que o advogado era muito preocupado com sua imagem, até por uma questão profissional, já que era procurado para representar as pessoas: como a doença afetava os músculos da face, ele se questionava como poderia advogar se parecia “um monstro”.1464 Cesar reforça que a doença foi um marco que abalou muito Eloar, que declarava estar “inválido por conta de uma doença. As presenças em Brasília mais raras, e sem política miúda de corpo-a-corpo com eleitorado. Fatal para 1982!”.1465 Carlos Frederico afirma que a Sindrome de Guillain-Barré acentuou os “desgostos e desapontamentos” de seu pai, o que contribuiu para “a amargura que marcou seus últimos anos”.1466 O deputado e advogado via a “terrível moléstia” como algo que impossibilitava suas atividades profissionais e políticas. Em março, mesmo estando em recuperação, Eloar Guazzelli quis voltar a Brasília para votar na emenda Lobão, que propunha eleições diretas para governador em “Eloar Guazzelli: A defesa como uma razão de vida”. In: Jornal da OAB/RS, Porto Alegre, Outubro de 1991, p. 14. 1461 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, pp. 6-7. 1462 Idem, p. 7. 1463 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1464 Idem, ibidem. 1465 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 7. 1466 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 13. 1460 333 1982, indo para o Plenário da Câmara acompanhado de médico.1467 Cesar Augusto conta que ele era o acompanhante de seu pai, e que se envolveu em todo o procedimento para a viagem e explicações necessárias sobre a doença para correligionários que, como Simon e Brossard, queriam saber sobre o estado de saúde.1468 O filho narrou ainda que a votação foi atravancada por manobras de deputados arenistas com Nelson Marchezan e Hugo Mardini.1469 Ainda que sob o baque da “terrível moléstia”, percebe-se a presença de Eloar na Câmara nos anos seguintes, principalmente combatendo a legislação autoritária e denunciando injustiças, conforme apontou seu filho, Carlos Frederico. 1470 Um exemplo é seu pronunciamento, registrado pela imprensa em vinte e oito de junho de 1980, no qual denunciava homicídios e violências cometidas contra pequenos fazendeiros e posseiros por um fazendeiro no interior de Mato Grosso.1471 Em agosto de 1980, Eloar Guazzelli estaria envolvido em duas discussões relacionadas com projetos de lei da ditadura, a Lei de Estrangeiros e a que propunha a prorrogação dos mandatos de prefeitos. Em sua atuação contra a Lei de estrangeiros, encomendou parecer do IARGS que apontava para sua inconstitucionalidade.1472 Guazzelli fazia coro às críticas de Marcelo Cerqueira que afirmava que a xenofóbica lei proposta, baseada na Doutrina de Segurança Nacional, era “um novo acordo de príncipes para proteger os seus ducados dos males da democracia e da liberdade”.1473 O MDB prometia que, mesmo que fosse aprovada, iria questionar a constitucionalidade no STF.1474 Em março de 1981, Eloar frisava que, mesmo tendo sido aprovada nos moldes pelo governo, havia possibilidade da Lei de estrangeiros passar por alterações, o que “Informe JB”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXIX, nº 345, 22 de março de 1980, 1º Caderno, Política e Governo, p. 6. 1468 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 7. 1469 Idem, ibidem. 1470 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 9. 1471 “Questão de terras em MT”. In: Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 28 de junho de 1980, 1º Caderno, p. 10; “Guazelli denuncia mortes”. In: Diário de Pernambuco, Recife, 28 de junho de 1980, Caderno A, p. 2. 1472 “PMDB mostrou em vão toda a ilegalidade”. In: Tribuna da imprensa, Rio de Janeiro, Ano XXX, nº 9437, 6 de agosto de 1980, 1º Caderno, p. 9. 1473 “Lei do estrangeiro deve ser aprovado por decurso de prazo”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 119, 8 de agosto de 1980, 1º Caderno, Política e Governo, p. 4. 1474 Idem, ibidem. 1467 334 dependeria da habilidade da oposição.1475 Ele afirmava que este poderia ser um caminho para modificar a Lei de Segurança Nacional e a Lei de Menores “ambas definidas por aquele parlamentar, como ‘instrumentos violentos do arbítrio’”.1476 Ainda na matéria da Tribuna da Imprensa, Jorge Uequed concordava com o proposto por Eloar, frisando que só não se dialogaria com “propostas imorais” que fariam o “jogo do regime”, como as questões da prorrogação de mandato, voto distrital e voto vinculado.1477 Como mencionado por Uequed, uma manobra “imoral” levada adiante pelo governo para controlar a abertura foram as propostas de prorrogação de mandatos, realizadas mais de uma vez nestes anos. Em agosto de 1980, o líder do regime na Câmara, Nelson Marchezan, pressionava buscando passar a prorrogação de mandatos de prefeitos, ameaçando para a intervenção se isto não ocorresse.1478 Em sinal de protesto, o PMDB de Porto Alegre lançou uma nominata de précandidatos a prefeito, vice-prefeito e vereadores em 15 de agosto, na qual constavam “seus dois atuais representantes na Câmara, suplentes, sindicalistas, estudantes, economistas, professores, jornalistas e líderes comunitários”: Para denunciar a população o que consideram uma distorção no sistema político, os pemedebistas lançaram também pré-candidatos a prefeito e vice-prefeito da Capital, entre os quais os Deputados Ibsen Pinheiro, José Fogaça, Jairo Brum e Eloar Guazzelli e o advogado Omar Ferri. Em ato na sede regional provisória do Partido, na Assembléia Legislativa, os pré-candidatos lançaram um manifesto afirmando: “Tira a mão da urna, Figueiredo. O povo quer votar.”.1479 O diretório municipal do partido, para mostrar a contrariedade em relação às medidas do regime, escolheu nomes relacionados à resistência. A escolha de Guazzelli e Ferri mostra que, em 1980, eles tinham reconhecimento por entre setores oposicionistas da capital.1480 Nestes anos Eloar ainda atuaria dentro da política interna do PMDB, propondo, junto com Marcelo Cerqueira e Marcondes Gadelha, em setembro de 1980, que o “Gaúchos acham que tudo depende de habilidade”. In: Tribuna da imprensa, Rio de Janeiro, Ano XXXI, nº 9628, 23 de março de 1981, 1º Caderno, p. 3. 1476 Idem, ibidem. 1477 Idem, ibidem. 1478 “Congresso decide dia 4 se haverá eleições municipais”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 130, 16 de agosto de 1980, 1º Caderno, Política e Governo, p. 4. 1479 Idem, ibidem. 1480 Em janeiro de 1982, frente a uma proposta de prorrogação dos mandatos dos deputados, Eloar e outros parlamentares do PMDB ameaçavam renunciar se ela tivesse sucesso. “Deputados ameaçam renunciar”. In: Diário de Pernambuco, Recife, ano 157, n° 7, 8 de janeiro de 1982, 1º Caderno, p. 1. 1475 335 partido atuasse no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. 1481 Em dezembro de 1981 ele passaria a fazer parte da Executiva Nacional do PMDB.1482 Em dezembro de 1980 foi mencionada no Jornal do Brasil a presença de Eloar Guazzelli, entre políticos do PMDB, PP, PT e PDT, na festa de aniversário do jornal do PCB Voz da Unidade.1483 Esta menção mostra que havia ocorrido transformações desde outubro de 1979 – data do evento das cartas apócrifas – que apontam que publicamente o PCB estava deixando de ser o pária da política nacional. Em linha semelhante ia a matéria do Jornal do Brasil de três meses depois, em dezesseis de fevereiro de 1981, na qual era afirmando que dezesseis deputados federais, entre eles Guazzelli, eram vinculados ao PCB, o que tornava a “bancada comunista” maior do que a do PDT e do PT.1484 Em outra reportagem na mesma edição, afirmava-se que os pecebistas gaúchos apoiavam Simon, mesmo com sua oposição, pois viam nele uma “oposição consequente”.1485 Ainda em 1981, Eloar seria escolhido para fazer parte de Comissão, junto de Rosa Flores e Marcelo Cerqueira, que faria uma análise técnica sobre o caso do Riocentro, no qual, no dia 1º de maio de 1981, houve uma tentativa frustrada de atentado contra um ato da oposição.1486 O parecer, tornado público em junho de 1981, geraria grande confusão, pois afirmava que o caso já havia sido investigado pela imprensa e apontava para uma não apuração do caso, para não criar tensões para as eleições do ano seguinte. 1487 A situação foi potencializada por declarações de Cerqueira, que teria sido o autor de fato do documento, no mesmo sentido.1488 Conforme o Jornal do Brasil de doze de junho, Ulysses Guimarães buscou evitar conflitos entre a “esquerda ortodoxa” – provavelmente vinculada ao PCB e representada por Guazzelli, Cerqueira, Alberto Goldman e Marcelo Cordeiro – que não queria fazer “Secretário do PMDB anuncia a organização de 2 mil 300 diretórios do Partido”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 165, 29 de setembro de 1980, 1º Caderno, Política e Governo, p. 3. 1482 “Executiva será toda reeleita”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XCI, nº 242, 6 de dezembro de 1981, 1º Caderno, Política e Governo, p. 4. 1483 “DOPS paulista quer proibir festa de aniversário do jornal ‘Voz da Unidade’”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 247, 11 de dezembro de 1980, 1º Caderno, Política e Governo, p. 2. 1484 “PCB tem mais deputados que PDT e PT”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 312, 16 de fevereiro de 1981, 1º Caderno, Política e Governo, p. 2. 1485 “Simon terá apoio no Sul mesmo sem querer”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 312, 16 de fevereiro de 1981, 1º Caderno, Política e Governo, p. 2. 1486 “PMDB debate episódio do Riocentro”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XCI, nº 58, 5 de junho de 1981, 1º Caderno, Política e Governo, p. 4. 1487 “Riocentro: PMDB já faz críticas”. In: Alto Madeira, Porto Velho (RO),11 de junho de 1981, 1º Caderno, p. 9. 1488 QUEIRÓZ, Antônio Carlos. “O PMDB quase naufraga na calmaria da conciliação com o terror”. In: Movimento, Rio de Janeiro, edição 311, 15 a 21 de junho de 1981, p. 4. 1481 336 “de Riocentro dique intransponível” para a eleição seguinte, e a Tendência Popular do PMDB e o PT, que queriam o apuramento do caso.1489 Nos dias seguintes foi chamada uma reunião da cúpula do partido na qual a entidade mostrava-se contrária ao posicionamento de Cerqueira.1490 V.2. Omar Ferri e os primeiros anos do MJDH Durante o caso do sequestro dos uruguaios, Omar Ferri participou da fundação do MJDH, que nos primeiros anos da década de 1980, engajou-se em diversas lutas. Como mencionei na introdução, sua relação com a entidade era tão orgânica que em diversos momentos o advogado narra os acontecimentos no plural, ele fazendo parte de um grupo maior.1491 Ele reforça em suas entrevistas que o MJDH atuava em uma rede com várias entidades, das quais o advogado funcionava como ligação. Devido ao envolvimento com o caso de Universindo, Lilián e seus filhos, notase que houve repercussão da atuação de Omar Ferri e do MJDH em causas relacionadas com as ditaduras dos países vizinhos. Este foi o caso da denúncia, publicada no Jornal do Brasil de 29 de abril de 1980, do desaparecimento de um brasileiro e sua esposa em Corrientes, na Argentina.1492 Porém, o caso mais notório foi a atuação da entidade no caso do biofísico uruguaio Claudio Benech, que, “por ser comunista, estava preso” em Montevidéu.1493 A partir de contatos realizados entre militantes uruguaios e brasileiros, foi organizado um esquema de fuga. Benech teve a possibilidade de passar o Ano Novo de 1981 com sua família e aproveitou-se da oportunidade para fugir clandestinamente com sua mulher e filhos para a fronteira brasileira, no Chuí.1494 De acordo com o relato de Ferri, do lado “Ulysses tenta evitar conflito no PMDB”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XCI, nº 65, 12 de junho de 1981, 1º Caderno, Política e Governo, p. 2. 1490 “Ulysses esclarecerá confusão partidária”. In: Tribuna da imprensa, Rio de Janeiro, Ano XXXI, nº 9691, 16 de junho de 1981, 1º Caderno, p. 10; QUEIRÓZ, Antônio Carlos. “O PMDB quase naufraga na calmaria da conciliação com o terror”. In: Movimento, Rio de Janeiro, edição 311, 15 a 21 de junho de 1981, p. 4. 1491 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 21. 1492 “Brasileiros somem na Argentina”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXX, nº 21, 29 de abril de 1980, p. 6. 1493 “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 128. 1494 Idem, ibidem. 1489 337 brasileiro, foi organizada uma comitiva envolvendo vários militantes para ir ao encontro do perseguido e de sua família, com a desculpa de que, no outro dia, nós queríamos fazer uma verificação em relação à maré vermelha, que existiam lutadores pela natureza, cientistas, junto conosco, para examinar o que era essa tal de maré vermelha, e alardeamos lá no restaurante que tem do lado da Policia Federal, que era um grupo que foi tratar do problema da maré vermelha lá.1495 Na passagem percebe-se a relação que havia entre os diferentes movimentos que surgiam neste momento, como a luta contra as ditaduras e o movimento ambientalista. Assim, nas primeiras horas de 1981, o grupo aguardava ansioso pela chegada do carro dos uruguaios. Após as seis horas da manhã, quando os militantes já imaginavam que o plano havia falhado, ainda segundo Ferri, De repente, nós olhamos e vinha um carro devagarinho, passando pela fronteira, lá devagarinho, muito devagarinho. Quando ele atravessou a fronteira e nos viu, abriu a porta assim, e era o Benech, que disse: - En fin, la libertad! -. Assim. Foi um episódio fantástico! Nós deixamos nossas famílias aqui, não comemoramos o fim de ano nem nada, e fomos receber a família de um refugiado, coisa típica de filme assim, daqueles filmes meio misteriosos, de perseguição, lá sei eu! Essas coisas que acontecem nos cinemas aí. Mas eu fiquei tão comovido que vocês não podem imaginar...1496 Nos dias seguintes, houve a articulação do MJDH que possibilitou asilo político à família Benech por parte do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).1497 De acordo com Omar Ferri, ações como esta de solidariedade e resistência levaram jornalistas a proclamar Porto Alegre “a capital mundial dos direitos humanos”.1498 Tratando de outro campo de luta, o advogado contou em entrevista para esta pesquisa que, naquele momento, “Se havia uma luta que nós nos largávamos de corpo e alma era a luta dos sem-terra”, o que foi o caso da intervenção realizada pelo MJDH em Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta.1499 Lá, diversas famílias de sem-terra montaram acampamento, em dezembro de 1980, chegando a abrigar 600 famílias e 1495 Idem, p. 129. Idem, ibidem. Ao narrar o caso em seu livro, Ferri também relaciona este momento com “cenas de fugitivos nazistas”. FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 178. 1497 “Comissariado da ONU dá proteção a uruguaio que se refugiou no RG do Sul”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXX, nº 271, 6 de janeiro de 1981, p. 6. 1498 FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 175. 1499 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 29 de setembro de 2017. 1496 338 “transformando-se em um símbolo de resistência à ditadura”.1500 Lá foi realizada, em meados de 1981, uma operação para reprimir os acampados chefiada pelo coronel Sebastião Rodrigues de Moura, conhecido como Curió, que cercou o acampamento proibindo a entrada e saída, criando, nas palavras de Ferri, “espécie de campo de concentração”.1501 Ferri afirma que, frente à situação, inicialmente não se sabia “como fazer para levar a solidariedade para eles”, chegando, posteriormente, a hipótese de “impetrarmos um habeas corpus pedindo o salvo conduto para visitar os acampados”.1502 O juiz aceitou as argumentações de Celso Gaiger e Omar Ferri baseadas no direito de ir e vir e de que Encruzilha Natalino não podia ser transformada “em acampamento militar ou campo de concentração”, permitindo a visita ao acampamento do MJDH, da Comissão Pastoral da Terra e da Pastoral Universitária.1503 Ferri afirmou que o habeas corpus havia sido impetrado em nome de “pastores, padres, líderes, enfim, pessoas representativas da sociedade porto-alegrense e adjacências, de Seminários aqui, de São Leopoldo, etc”, e que, com a decisão, “o juiz, eu nunca me esqueço do nome dele - Ervandil Fagundes -, ele penetrou com a espada da justiça no coração podre da ditadura militar”.1504 Assim, foi feita uma comitiva com militantes de diferentes organizações que, em dois ônibus, foram para Encruzilhada Natalino.1505 Chegando lá, eles encontraram o coronel Curió – “o Imperador da Encruzilhada Natalino! O chefe-mor! O ditador! O homem dono do campo de concentração!”, nas palavras de Ferri – que demagogicamente disse que respeitaria a ordem do judiciário: “Tratou-nos na palma da mão, a fleuma do cretino inglês. A fleuma inglesa. Então, 1500 RODEGHERO, Carla Simone; GUAZZELLI, Dante Guimaraens; DIENSTMANN, Gabriel. Não Calo, Grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013, p. 184. 1501 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 29 de setembro de 2017. Curió, que foi lembrado por Ferri com a patente de major, ficou conhecido por sua atuação na repressão na região do Araguaia e em Serra Pelada. 1502 “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 130. 1503 “Juiz dá habeas para grupo visitar colonos em área controlada pelo CSN e SNI”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXXI, nº 136, 22 de agosto de 1981, 1º Caderno, p. 8. 1504 “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 130. 1505 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 29 de setembro de 2017; “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 130. 339 passamos um dia todo com eles lá, e depois retornamos a Porto Alegre, tudo bem, sem problema nenhum”. 1506 Dois militantes, Augustino Veit e Miguel Palaoro, ficaram no acampamento, e de madrugada, foram presos pelo major, porém soltos após a mobilização dos sem-terra que, do lado de fora da barraca do oficial, com foices e machados, bradavam o hino nacional.1507 Nos dias seguintes, foi formada nova missão, e Ferri impetrou novo habeas corpus, porém sem sucesso.1508 O advogado afirma que, naquele momento, “o juiz foi cerceado no seu direito de decidir de tal forma e com tamanhas pressões, que nós não conseguimos a liminar do salvo conduto e não conseguimos mais nenhum tipo de habeas corpus dali em diante”.1509 Mesmo assim, ele considerou que com o salvo conduto e o habeas corpus, “nós fomos os primeiros a derrotar o major Curió, o Palácio do Planalto, a ditadura militar e o dispositivo terrorista deste país”.1510 Omar Ferri ainda frisa a atuação dos advogados do MJDH no combate à violência policial. Assim, no Jornal do Brasil de 13 de novembro de 1982 contava a denúncia, feita por ele e Luiz Goulart Filho, da tortura de sete moradores de zonas pobres na Base Aérea de Canoas.1511 Ferri afirma que cotidianamente eles atuavam em casos em que havia torturas por parte de policiais e outros tipos de perseguições, impetrando mandados de seguranças e habeas corpus, fazendo com que houvesse momentos em que “gastava dois terços da minha atividade jurídica diária defendendo esses casos”.1512 Ele mencionou ainda a defesa de membros do grupo teatral Oi Nóis Aqui Traveiz e de Olívio Dutra, que “quando prendiam, levavam pra Polícia Federal, a gente ia em dois ou três lá”.1513 1506 Idem, ibidem. “Depoimento 8 – Augustino Veit”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 139. 1508 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 29 de setembro de 2017. 1509 “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 130. 1510 Idem, pp. 130-1. Este é o mesmo tom da matéria de Rafael Guimaraens sobre o assunto: GUIMARAENS, Rafael. "A primeira derrota do coronel Curió". In: Coojornal, Porto Alegre, nº 69, setembro de 1981, p. 8. 1511 “Advogados denunciam que sete civis são presos e sofrem torturas no Sul”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXXII, nº 219, 13 de novembro de 1982, 1º Caderno, Nacional, p. 19. 1512 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, pp. 20-1. 1513 Idem, p. 20. 1507 340 Há uma forte dimensão coletiva na narrativa de Omar Ferri sobre este período, conforme apontei. Quando questionado sobre quem eram as pessoas que atuavam em parceria, ele mencionou o advogado Luiz Goulart Filho e Jair Krischke, com outros defensores com quem ele tinha relações cujos nomes não foram mencionados.1514 O militante do MJDH Augustino Veit, no depoimento prestado ao livro Memórias da resistência e da solidariedade, apresenta os nomes dos componentes do MJDH como Rejane Brasil Filippi e, especialmente Luiz Goulart Filho: O Luiz Goulart é um professor meu, tanto no escritório dele como na faculdade Unisinos, ele deu aula na Unisinos, professor de Direito Penal, mas eu o ajudei muito, auxiliei muito em muitos habeas corpus, muitos mandados de segurança, eu ia ao escritório dele, até sábados pela manhã, nós ficávamos lá, eu o auxiliando para tirar gente da cadeia, aqueles que nós amparávamos, fazer ações em favor de pessoas que ocupavam terras e eram reintegradas em ações judiciais...1515 Percebe-se, assim como Ferri, que havia este caráter coletivo na atuação dos membros do MJDH. Há, nas entrevistas concedidas para esta pesquisa, uma especificidade, que é a referência ao advogado Luiz Goulart Filho, advogado que participou ativamente do MJDH durante a década de 1980 e que foi seu colega de escritório.1516 Mesmo que em outras entrevistas mencione, Ferri reforça este nome devido a minha presença: “Luizinho”, como era conhecido, era grande amigo de meu pai, chegando a ser padrinho de meu irmão.1517 Goulart funciona como um elo automático entre nós, sendo suas menções uma forma de aproximação utilizada inicialmente pelo entrevistado. V.3. Advogados no meio da política (IV): as entidades classistas dos advogados entre os anos 1980 e 1982 Entre os anos 1980 e 1981, percebe-se no IARGS, que tinha Otávio Caruso da Rocha na presidência, uma continuidade em relação à gestão anterior, debruçando-se mais para questões culturais. Mesmo assim, é possível notar a presença de questões 1514 Idem, ibidem. “Depoimento 8 – Augustino Veit”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 140. Rejane Brasil Filippi foi a primeira presidente da Comissão de Direitos Humanos Sobral Pinto da OAB/RS. 1516 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 29 de setembro de 2017. 1517 Luiz Goulart Filho morreu de forma trágica no início de 2003, ao resgatar um de seus filhos do mar. https://www.sul21.com.br/jornal/luiz-goulart-filho-presente/ 1515 341 políticas, como a leitura, feita em onze de junho de 1980 por Fernando Barcellos de Almeida, da Carta de Manaus, construída durante a VIII Conferência Nacional dos Advogados – na qual a OAB defendia os direitos dos trabalhadores e de livre expressão –, e o debate sobre a constituinte, realizado em vinte e um de maio de 1981.1518 Há ainda o pedido de Eloar Guazzelli, de dezesseis de julho de 1980, de parecer da entidade sobre a Lei dos estrangeiros, que seria elaborado por Justino Vasconcelos, Ruy Rodrigo Azambuja e Júlio Teixeira, o qual seria levado pelo parlamentar para a Câmara Federal.1519 Durante estes anos percebe-se a presença no IARGS de cejuristas, como Fernando Barcellos de Almeida e Júlio Teixeira, além do jovem comunista Tarso Genro, que seria indicado para o Conselho da OAB/RS pelo Instituto no final de 1982.1520 No ano de 1982, quando se iniciou a gestão presidida por Luiz Carlos Madeira, o Instituto voltou-se mais a debates relativos ao mundo jurídico. Como nos anos anteriores, o Conselho da OAB/RS ressoou mais questões políticas e sociais do que o Instituto. Um exemplo são as denúncias de desrespeito e violência policial, além da elaboração de manifesto em prol dos direitos dos advogados.1521 A OAB/RS ainda se posicionou em relação a violências cometidas por membros da polícia em manifestação ocorrida na Assembleia Legislativa em 1º de abril, criticando em ofício a forma como o governo do Estado havia lidado com o caso.1522 Em vinte e sete de agosto, uma bomba foi enviada para a sede da OAB no Rio de Janeiro, matando a funcionária Lyda Monteiro da Silva. No mesmo dia, o Conselho da seccional gaúcha reuniu-se e elaborou telegrama para o Presidente da República, manifestando seu repúdio e protesto e clamando por providências.1523 Além de decretar luto de oito dias, realizar missa em homenagem e telegrama à família, a OAB/RS confeccionou nota na qual afirmava que seu Conselho Federal havia sido “alvo da sanha criminosa dos que, cobertos pela clandestinidade, pretendem barrar o ascenso nacional IARGS. “Ata do dia onze de junho de mil novecentos e oitenta”, fls. 2; “Ata da sessão do dia vinte de maio de mil novecentos e oitenta e um” In: Maço de documentos avulsos. 1519 IARGS. “Ata do dia dezesseis de julho de mil novecentos e oitenta”. In: Maço de documentos avulsos. 1520 IARGS. “Ata do Conselho Superior do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul de 15/10/82”. In: Maço de documentos avulsos. 1521 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 19 de março de 1.980”; “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 09 de maio de 1.980”; “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 02 de setembro de 1.980”. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. [Atas de]1980. Porto Alegre, 1981. 1522 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 07 de abril de 1.980”, fls. 1-2. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. [Atas de]1980. Porto Alegre, 1981. 1523 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 27 de agosto de 1.980”, fl. 1. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. [Atas de]1980. Porto Alegre, 1981. 1518 342 em busca do estabelecimento do Estado de Direito e da plenitude democrática”; frente a isto propunha “campanha patriótica” para barrar “a ação dos inimigos da democracia”.1524 Em sessões seguintes a entidade receberia diversas manifestações de apoio e solidariedade, vindo de diferentes setores da sociedade.1525 De acordo com Marly Motta e André Dantas, “o atentado contra a OAB pode ser considerado um ponto de nãoretorno no processo de abertura (…). Apesar das minas explosivas que tornavam a caminhada mais arriscada, a estrada para a democracia estava aberta”.1526 O ato terrorista acabou por consolidar o consenso em relação á necessidade de redemocratização do país. Em dois de fevereiro de 1981, assumiu um novo conselho da OAB/RS, sendo escolhido como presidente José Mariano de Freitas Beck.1527 Como mostrei, este conselheiro havia se destacado nos anos anteriores como um dos partidários de um posicionamento mais ativo da Ordem em relação à luta contra a ditadura. Provavelmente por esta característica, foi alvo, naquele verão, de lançamento de bomba em sua casa de veraneio, no balneário de Atlântida.1528 Seguindo a postura de seu presidente, neste ano a Ordem sul-rio-grandense posicionou-se firmemente contra arbitrariedades e violências cometidas pelo Estado. Assim, na ata de sessão de dez de março, consta que o Conselheiro Leônidas Xausa, relatou fatos de “espancamento de presos em Uruguaiana”.1529 Já em sete de abril, foi registrada a fala do Conselheiro Walter Tschiedel sobre “denúncias de pessoas feridas e sem atendimento médico” na Ilha do Presídio, na qual conselheiros foram impedidos de 1524 Idem, fls. 2. “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 02 de setembro de 1.980”. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. [Atas de]1980. Porto Alegre, 1981. 1526 MOTTA, Marly Silva da; DANTAS, André Vianna. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5 – Da redemocratização ao Estado Democrático de Direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006, p. 185. 1527 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 3 de fevereiro de 1.981”, fls. 2. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 1528 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 26 de fevereiro de 1.981”, fls. 2. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 1529 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 10 de março de 1.981”, fls. 2. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 1525 343 entrar.1530 Foi realizada uma comissão que visitaria a Ilha.1531 Omar Ferri relata situação semelhante, na qual ele, Jair Krischke e José Fogaça haviam sido impedidos de desembarcar no presídio por funcionários armados de fuzis.1532 O atentado no Riocentro em trinta de abril 1981 foi debatido na sessão de cinco de maio, na qual o Conselho elaborou nota refirmando “a convicção de que o atentado partiu de grupos radicais, inconformados com a (…) luta pelos Direitos Humanos e pela restauração das franquias democráticas” e temendo que a impunidade levaria a mais atos terroristas, impedindo restabelecimento da “plenitude democrática”. 1533 Na mesma reunião houve a participação de representantes dos colonos de Ronda Alta que solicitavam o auxílio de advogados “para atendê-los nas suas reinvindicações e contra as ameaças feitas contra eles se não atenderem as determinações das autoridades”.1534 Devido à proximidade que havia entre as entidades naquele momento, é provável que a Ordem tenha encaminhado este pedido a Omar Ferri e o MJDH, que atuavam no caso. Na sessão do dia sete de julho, o Conselho emitiu nova nota pública afirmando que os atos terroristas de direita eram “produto de pensamento obscurantista” de “inimigos da implantação de um autêntico Estado de Direito”. 1535 Como as investigações tinham “lacunas e ilogismos” que geravam “perplexidade de ordem técnica”, a entidade clamava pela responsabilização, já que “a impunidade dos grupos geradores da violencia continuará a estimular o terrorismo”.1536 No mesmo encontro foram criadas a Comissão de Direitos Humanos Sobral Pinto e a Comissão de Problemas da Terra.1537 O Conselho da OAB/RS, em 1º de setembro de 1981, apoiou o conselheiro Leônidas Xausa em sua crítica ao artigo do conselheiro Manoel Gastal intitulado “Encruzilhada Natalino – QG da agitação”, no qual acusava de subversiva a “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 7 de abril de 1.981”, fls. 2. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 1531 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 14 de abril de 1.981”, fl. 1. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 1532 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 5. 1533 “Ata da sessão do Conselho, realizada em 5 de maio de 1.981”, fls. 1-2. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 1534 Idem, fls. 3. 1535 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 7 de julho de 1.981”, fls. 2-3. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 1536 Idem, ibidem. 1537 Idem, fls. 4. 1530 344 mobilização dos sem-terra.1538 Na sessão seguinte, em vinte e dois de setembro, o conselheiro Jayme Paz da Silva propôs nota, que foi aprovada por unanimidade, na qual a OAB/RS defendia, além da liberdade de imprensa, o retorno ao Estado de Direito e o direito dos trabalhadores, a reforma agrária como forma de combater as desigualdades sociais, econômicas e o êxodo rural.1539 Consta ainda que, na ocasião, Gastal renunciou à sua cadeira no Conselho, assumindo Ilsa Brans em seu lugar.1540 Na ata da sessão de três de novembro há a referência a ofício do MJDH “manifestando o desagravo à Secção Gaúcha da OAB, pelas calúnias e injúrias gratuitamente assacadas contra esta Seccional, nos termos da carta de renuncia (sic) do Conselheiro Manoel Braga Gastal, publicada pela imprensa”, o que evidencia a proximidade entre as entidades naquele momento.1541 Na primeira reunião do Conselho da OAB/RS de 1982 houve um debate acalorado, motivado por uma intervenção do conselheiro Nereu Lima para uma manifestação da entidade sobre a repressão ocorrida na Polônia.1542 Foi tão fértil a discussão que levou à confecção de um anexo de dezesseis laudas, nas quais os Conselheiros expuseram suas posições sobre a política brasileira e externa.1543 São dignas de nota as afirmações de que o Brasil viveria uma ditadura militar – por parte de Lima –, de que as torturas haviam sido introduzidas no país pelos Estados Unidos e de que talvez na Polônia não se tivesse “a severidade do que está sendo praticado aqui” – feita por Walter Tschiedel – e as intervenções de que não cabia fazer posicionamentos sobre a Polônia – de Júlio Teixeira – e de que o debate, por ser de natureza política, iria contra o estatuto da OAB – mencionado por Archimedes “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 1º de setembro de 1981”, fls. 2-3. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 1539 “Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 22 de setembro de 1981”, fls. 2-5. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 1540 Idem, fl. 1. 1541 “Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 3 de novembro de 1981”, fls. 2. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 2 - [Atas de]1981. Porto Alegre, 1982. 1542 “Ata nº 01/82 – Cons. - Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 09 de fevereiro de 1.982”, fls. 8-9. Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 3 - [Atas de]1982. Porto Alegre, 1983. 1543 “Separata da Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 09 de fevereiro de 1982, contendo os debates de conselheiros, em torno do pronunciamento pessoal do conselheiro Nereu Lima”. Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 3 - [Atas de]1982. Porto Alegre, 1983. 1538 345 Almeida.1544 Finalmente, o debate foi encerrado com Ajadil de Lemos, que falou que a Ordem poderia pronunciar-se em matérias políticas, desde que para o aprimoramento das instituições, e que, por tratar-se de questão de fora das fronteiras brasileiras, estava fora da alçada daquele espaço, o que levou à conclusão de que não cabia pronunciamento oficial.1545 Este debate é um indício de algumas questões presentes naquele contexto político. Nota-se pelas falas de Lima e Tschiedel que já havia um consenso sobre a natureza do regime vivido no país e de suas relações com os Estados Unidos. Diferentemente de outros momentos, eles já se sentiam seguros o bastante para que suas opiniões ficassem registradas em ata, o que mostra que a abertura estava em pleno funcionamento, permitindo certa liberdade nestes espaços. Há, também, a questão da possibilidade da Ordem pronunciar-se politicamente, temática muito presente nas discussões da entidade e que aqui foi plenamente respondida. Finalmente, percebe-se o posicionamento de dois veteranos conselheiros – Júlio Teixeira e Archimedes Almeida – que se opõem ao debate. Conhecendo a trajetória dos dois dentro destes espaços, pode-se afirmar que cada um deles tinha objetivos diversos: enquanto que o conservador Archimedes repete uma postura de contrariedade a este tipo de debate, o comunista Júlio provavelmente fez isto motivado pelas críticas ao mundo socialista implícitas na proposição de Nereu. Consta na ata da sessão do dia dois de março uma proposição de Júlio Teixeira, aprovada unanimemente, de que a OAB/RS se manifestasse ao Presidente General Figueiredo e o Ministro da Casa Civil sua contrariedade ao Pacote Eleitoral do governo e sua postura de “lobo para cordeiro” para com o povo, clamando pela Assembleia Nacional Constituinte.1546 Teixeira também propôs, na reunião de vinte e sete de abril, que fosse levado para o IX Conferência Nacional dos Advogados propostas de revogação do sistema social relacionadas a problemas do mercado de trabalho e da Lei de Segurança Nacional em função da campanha eleitoral.1547 1544 Idem, fls. 4-7. Idem, fls. 8-15. 1546 “Ata nº 02/82 – Cons. - Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 02 de março de 1982”, fls. 2-3. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 3 - [Atas de]1982. Porto Alegre, 1983. 1547 “Ata nº 04/82 – Cons.- Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 27 de abril de 1982”, fls. 3. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 3 - [Atas de]1982. Porto Alegre, 1983. Posteriormente, a Ordem promoveria debate com os candidatos a governador. “Ata nº 12/82 – Cons.- Ata da sessão ordinária do Conselho, realizada em 05 de outubro de 1545 346 Na última sessão de 1982, Júlio Teixeira registrou em ata as prisões sofridas por membros do PCB em reunião na sede do jornal Voz da Unidade em São Paulo, à qual não tinha frequentado por razões de saúde. 1548 Teixeira solidarizava-se com “seus companheiros presos” e registrava o seu protesto ante a violência policial com base em dispositivo da lei de segurança que é inconstitucional e violador dos princípios consagrados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres Fundamentais do Homem e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.1549 Na sessão, outros conselheiros defenderam o direito de reunião e pluralidade partidária, afirmando que o regime democrático chocava-se com a Doutrina de Segurança Nacional, e que a prisão era promovida pelo “mesmo segmento” que fez os atentados contra a OAB e o Riocentro.1550 Finalmente, Ajadil de Lemos fez elogios a Júlio Teixeira, que era paradigma, pois nunca havia mudado de postura profissional nem política, além de questionar as prisões.1551 Esta passagem é ilustrativa para mostrar como o contexto de 1982 era diverso dos anos anteriores no que se refere aos comunistas. Mesmo que a presença de Júlio Teixeira fosse constante nas entidades dos advogados, sua orientação política permanecia oculta, uma vez que era um fator desabonador de suas ações. Um exemplo foi a acusação de George Noronha da presença de “esquerdistas” no Conselho da OAB/RS em janeiro de 1979, o que lançaria descrédito nas ações da organização. O trecho acima é um rastro de que em 1982 o ambiente era outro: Teixeira podia manifestar suas convicções políticas e registrar sua solidariedade a “seus companheiros” de luta. Este é mais um indício de que o estigma dos comunistas cada vez mais caia por terra. V.4. Três homens e um destino: a eleição de 1982 Assim, Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker chegaram ao ano de 1982 com reconhecimento entre diferentes setores, o que os levou a lançaram candidaturas 1982”, fls. 2. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 3 [Atas de]1982. Porto Alegre, 1983. 1548 “Ata nº 16/82 – Cons.- Ata da sessão extraordinária do Conselho, realizada em 15 de dezenbro de 1982”, fls. 3. In: Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul. Pasta 3 [Atas de]1982. Porto Alegre, 1983. 1549 Idem, fls. 4. 1550 Idem, ibidem. 1551 Idem, fls. 4-5. 347 pelo PMDB. Inicialmente surgiu a questão do porquê a escolha deste partido, frente à variedade de alternativas na oposição: com a reorganização partidária, surgiram, além do PMDB, o PDT e o PT, passando para as razões que os levaram a lançar candidatura em 1982. V.4.1. O PMDB e as candidaturas Em relação a Guazzelli, a escolha é mais óbvia: conforme mostrei, deste 1978 ele vinha posicionando-se favorável à manutenção da unidade da oposição em uma frente oposicionista, o que ficou concretizado no “Partido do MDB”. Ele seguia, assim, a postura dos pecebistas gaúchos, que, de acordo com o Jornal do Brasil de dezesseis de fevereiro de 1981, viam no PMDB “a única oposição conseqüente e com respaldo das massas”, e desta forma apoiaria seu candidato, Pedro Simon, mesmo com sua contrariedade.1552 Naquele momento, o PCB passava por diversas lutas internas, derivadas de conflitos existentes entre grupos ligados a Luiz Carlos Prestes e a Giocondo Dias, que havia assumido a liderança da organização ao longo da década de 1970. Alzira Alves de Abreu afirma que “A luta ideológica foi-se aprofundando dentro do CC [Comitê Central], com duas posições nítidas, uma mais próxima do eurocomunismo e outra chamada de “ortodoxa”, que se identificava com as posições da União Soviética”.1553 Conforme apontou Maria Alice Rezende de Carvalho, para os comunistas, o encerramento dos anos 1970 conhecerá uma contradição: se, de um lado, assistia-se à ascensão da influência do PCB na política brasileira, a partir da sua atuação nas diversas frentes em que se travava a luta pela derrota política do regime militar, de outro lado, o retorno da direção do partido e a prescrição de uma “frente de esquerda” por Prestes abririam um novo ciclo de lutas internas (…). 1554 Anita Leocádia Prestes aponta que, no exílio, o cavaleiro da esperança vinha entrando em conflito com o Comitê Central (CC), o que chegou ao ápice com a volta das lideranças, após a Lei de Anistia.1555 Em março de 1980 Prestes, além de propor a saída revolucionária para o país, criticaria publicamente o CC no documento chamado “Simon terá apoio no Sul mesmo sem querer”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 312, 16 de fevereiro de 1981, 1º Caderno, Política e Governo, p. 2. 1553 Verbete PCB. In: ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro: FGV, 2010. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo 1554 CARVALHO, Maria Alice Rezende de. “Breve história do ‘comunismo democrático’ no Brasil”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil volume 3 – Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 277. 1555 PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (19581990). São Paulo: Editora Expressão Popular, 2012, p. 189-225. 1552 348 “Carta aos comunistas”, o que fez com que fosse destituído do cargo de secretário-geral do Partido, tendo Giocondo Dias assumido o posto.1556 Assim, a década de 1980 iniciava com duas principais posições dentro da cúpula comunista: de um lado, Prestes clamava por um posicionamento mais revolucionário e propunha uma frente de esquerda; de outro, Giocondo Dias e o CC defendiam que o “valor a ser preservado é a democracia”, o que seria realizado a partir de uma frente ampla ou democrática.1557 Mesmo com esta cisão, a matéria do Jornal do Brasil aponta que tanto prestistas quanto giocondistas sul-rio-grandenses estavam militando no PMDB.1558 As jornadas que levaram Omar Ferri e Werner Becker ao PMDB não foram tão diretas quanto a de Guazzelli, ocorrendo alguns desvios e sinalizações com outros partidos. Ferri, por exemplo narrou em diversos momentos que, durante o caso do sequestro dos uruguaios, tinha ido com José Mariano Beck em “uma reunião em Esteio, num seminário para refundar o PTB do Getúlio, do Jango e do Brizola”, porém, nos anos seguintes acabou engajando-se no PMDB.1559 Quando questionado das razões de não ter entrado inicialmente no PDT, inicialmente responde que “nem eu sei bem explicar”, porém depois afirmou que acabou ressentido com Leonel Brizola por ele não ter lhe auxiliado em casos relacionados com exilados uruguaios.1560 Além disso, ele afirma que discordou da pouca politização do retorno do líder trabalhista e de alianças que ele estaria fazendo, o que acabou criando um “valo” entre Omar e o PDT.1561 Omar ainda afirma que entrou no PMDB, pois era da opinião de que “se a gente vai se [...] fracionar nós vamos perder a 1556 Idem, p. 237-45; Verbete PCB. In: ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro: FGV, 2010. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo 1557 CARONE, Edgar. O P.C.B. (1964-1982) – Volume 3. São Paulo: DIFEL, 1982, p. 10. 1558 “Simon terá apoio no Sul mesmo sem querer”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 312, 16 de fevereiro de 1981, 1º Caderno, Política e Governo, p. 2 1559 “Depoimento 7 – Omar Ferri”. In: PADRÓS, Enrique Serra; VIVAR, Jorge Eduardo Enriquez. Memórias da resistência e da solidariedade: O Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. Porto Alegre: Ed. ASF-Brasil, 2013, p. 127. Ele também narra em FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul – o caso Lilian e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 83 e FERRI, Omar Ferri. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 3. 1560 FERRI, Omar Ferri. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de setembro de 2017, em Porto Alegre. 1561 Idem. Posteriormente ele entraria no PSB, no qual se elegeria vereador de Porto Alegre em 1988 e, durante o mandato, entraria no PDT. 349 força e nós temos uma missão: o restabelecimento da democracia. Eu era deste grupo”, mostrando que ele tinha uma preocupação semelhante à de Eloar e dos comunistas.1562 Há indícios da atuação do advogado no PMDB na imprensa em agosto de 1980, quando ele foi mencionado na lista de pré-candidatos a prefeito e vice-prefeito em Porto Alegre, o que mostra que ele estava ligado à organização poucos meses após sua fundação em janeiro daquele ano.1563 Posteriormente, em doze julho de 1982, o advogado foi destacado para defender o deputado estadual pemedebista Gabriel Mallmann em processo que ele respondia por críticas ao presidente general Figueiredo.1564 Já Werner Becker, antes da eleição de 1982, havia flertado com o outro partido de oposição, o PT. Ele afirma que participou da fundação do partido no estado, no qual ficou apenas três meses, devido ao que ele chamou de “sectarismo de militância”.1565 Becker afirma que sua “advocacia de subversivos” provavelmente aproximou-o dos fundadores da nova organização, porém a ação do partido levou rapidamente a seu “desligamento orgânico”.1566 Ao mesmo tempo, o advogado afirma que tinha “problemas” com Brizola anteriores ao golpe, o que o incompatibilizava com o PDT.1567 Para Werner o PMDB encaixava-se mais com sua concepção de “não ter compromisso com a coerência”: o partido seria “como uma geléia, como diz o Brizola, não dava para falar de uma disciplina interna do partido”.1568 Ele afirmou que neste partido “me senti bem. Porque ali eu nunca poderia dizer alguma heresia. No PMDB é impossível dizer uma heresia”.1569 A escolha também teria ocorrido “mais ou menos por osmose”, uma vez que Ibsen Pinheiro, por exemplo, era seu colega de escritório.1570 Anteriormente, Becker mantivera proximidade com setores do MDB tendo, por 1562 Idem. “Congresso decide dia 4 se haverá eleições municipais”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 130, 16 de agosto de 1980, 1º Caderno, Política e Governo, p. 4. 1564 “Deputado é enquadrado na LSN”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXXII, nº 85, 2 de julho de 1982, 1º Caderno, Política, p. 2. 1565 BECKER, com Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 10. 1566 Idem, pp. 13-4. Deve-se frisar que o termo “subversivo” não é utilizado pelo advogado com uma conotação negativa; muito antes pelo contrário ter sido defensor de “subversivos” é motivo de orgulho para ele. 1567 Idem, p. 13. 1568 Idem, p. 11. 1569 Idem, p. 14. 1570 Idem, ibidem. 1563 350 exemplo, citado sua conversa com o reempossado vereador Marcos Klassmann em matéria do Jornal do Brasil de trinta de agosto de 1979.1571 Houve, assim, uma variedade de razões para a escolha do PMDB por parte dos advogados. Mesmo que Guazzelli e Ferri tenham optado pelo partido pela questão da manutenção da unidade, nota-se que ressentimentos, recentes ou antigos, e relações pessoais foram relevantes na decisão. Algumas destas questões também surgiram no momento da escolha por lançar a candidatura em 1982. De acordo com matéria do Jornal do Brasil de dezesseis de fevereiro de 1981, o PCB gaúcho, ainda não tinha “um programa de atuação no plano eleitoral para o Legislativo” e “Nem mesmo o Deputado federal Eloar Guazzelli (PMDB) eleito em 1978 apesar de sua relutância em aceitar a candidatura imposta pelo Comitê Central, terá indicação para novo mandato na Câmara Federal”.1572 Assim, inicialmente, a candidatura de Eloar não era algo natural para o PCB e nem para o próprio parlamentar. Denise Broda afirmou que, devido às más experiências em Brasília, ele não tinha muito interesse concorrer novamente.1573 Carlos Frederico afirma que seu pai em diversos momentos manifestou à família o “desejo de encerrar a atividade parlamentar e retornar a Porto Alegre e à advocacia”, derivado do desgaste, físico e emocional, que havia sofrido no mandato.1574 De acordo com os filhos de Eloar, o lançamento da candidatura de 1982 teve duas questões principais. Em um primeiro nível, conforme aponta Carlos, houve a “pressão de companheiros e a insistência do próprio Pedro Simon, presidente do MDB gaúcho, a que se reapresentasse ao eleitorado”.1575 Porém, a principal motivação para o advogado foi, de acordo com dois filhos, Carlos e Cesar, o ressentimento e a rivalidade com seu “mais antigo e melhor amigo”, Antônio Pinheiro Machado Neto.1576 Conforme narrou Carlos Frederico, Guazzelli e Pinheiro Machado Neto eram amigos desde os tempos de Faculdade de Direito, na década de 1940 e, mesmo que, em determinado momento, morassem em diferentes cidades, tinham fortes relações, tanto 1571 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano LXXXVIII, nº 144, 30 de agosto de 1979, 1º Caderno, Política e Governo, p. 4. 1572 “Simon terá apoio no Sul mesmo sem querer”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XC, nº 312, 16 de fevereiro de 1981, 1º Caderno, Política e Governo, p. 2 1573 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1574 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 12. 1575 Idem, ibidem (grifo no original). 1576 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 8. 351 pessoais quanto políticas – uma vez que militavam no PCB.1577 A proximidade entre eles pode ser vista nesta tese, uma vez que eles atuavam em conjunto nas entidades classistas. Carlos Frederico ressalta que “Pinheirinho” era muito envolvido com a ação política que “se confundia com a própria vida”: com vinte e um anos, em 1946, ele foi eleito deputado estadual constituinte pelo PCB, sendo cassado e, de acordo com o filho de Eloar, perdendo seus direitos políticos.1578 Mesmo assim, continuou atuando politicamente, tanto no partido quanto nas entidades classistas e, até, na política esportiva, dentro do Esporte Clube Cruzeiro de Porto Alegre.1579 Além disso, ele havia coordenado as campanhas de seu irmão, Dulphe, em 1974 e de Eloar, em 1978, sendo um dos grandes mobilizadores da campanha. Durante o mandato de deputado, as relações entre os amigos “mantiveram-se normalmente (…), porém começaram a se deteriorar à medida em que se aproximava seu final”, uma vez que, de acordo com Carlos Guazzelli, “a anistia proposta pelo governo militar, embora limitada, abrangia situações como a de Pinheiro que, em decorrência, veio a recuperar seus direitos políticos”.1580 Ainda de acordo com o filho de Eloar, esta possibilidade, somada de indícios de que Guazzelli não tinha interesse em apresentar-se à reeleição, fez com que Pinheiro Machado empreendesse ações para o lançamento de sua própria candidatura.1581 Cesar Augusto afirma que, no início de 1982, “num encontro com o Pinheirinho em Porto Alegre, este manifestou abertamente o desejo de concorrer, e foi um tanto arrogante: “Agora é a minha vez”, teria dito”.1582 Provavelmente este ato tenha trazido à tona uma disputa latente que existia entre os dois advogados: conforme apontou Honório Peres em entrevista, Pinheiro Machado “sempre concorreu” com Guazzelli.1583 Ambos os filhos afirmam que esta atitude, vista como afrontosa por Eloar, atingiu sua vaidade, levando-o a alçar a candidatura, o que fez com que “vencer o ex- 1577 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 10. O filho de Eloar ainda cita do nome de Renan Falcão de Azevedo como a terça parte do “trio inseparável”. 1578 Idem, p. 11. 1579 Idem, ibidem. 1580 Idem, ibidem. 1581 Idem, ibidem. 1582 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 8. 1583 PERES, Honório Campos. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em 24 de outubro de 2014 em Porto Alegre. 352 amigo” se convertesse em “um objetivo secundário, mesmo que inconsciente”, como aponta Carlos.1584 Cesar Augusto afirma que o que afetou seu pai foi a sensação de ter sido “boi de piranha”, aberto o caminho, e na hora dos “louros” – a esperada abertura democrática ensejava todo tipo de expectativa – vinha justamente aquele que tinha insistido na entrada do pai na política afastá-lo da raia. Daí não deu certo, e o Pinheirinho insistiu em lançar-se candidato, e consequente ruptura.1585 A cisão entre os amigos representou também os conflitos intestinos do PCB: Pinheiro Machado alinhou-se aos prestistas “por identidade ideológica, ou porque a direção local não o apoiava” enquanto que Guazzelli representava a linha giocondista. Juarez Porto em matéria para o Jornal do Brasil, registrou que “mesmo ante a ameaça de comprometimento de suas aspirações políticas por insuficiência de votos” os pecebistas gaúchos iriam dividir-se.1586 Além dos ex-amigos, Fernando do Canto (para deputado estadual) e Lauro Hagemann (para vereador em Porto Alegre) – partidários do secretário-geral – concorreriam com Davi Oliveira (presidente nacional do setor jovem PMDB e candidato a deputado estadual) e Jorge Garcia (ex-presidente do DCE-PUCRS e candidato a vereador) – seguidores da linha do cavaleiro da esperança.1587 Enquanto que Fernando do Canto afirmava que venceria quem identificasse mais as aspirações populares, Lauro Hagemann afirmava que a separação não somava e tornava “tudo mais difícil; pelo jeito, só o tempo acabará com elas, talvez só a morte de Prestes reúna os comunistas”.1588 A matéria, em tom premonitório, finalizava afirmando que “A diversidade de candidatos de esquerda – além do PMDB também o PT e o PDT terão (sic) em suas nominatas representantes de outras tendências marxistas – provoca temores entre os candidatos”. 1589 Já Omar Ferri afirma que “queria ser candidato mesmo. Eu queria ser candidato e apresentei o meu nome, o partido aprovou e fui candidato a Deputado Federal”, mesmo que tenha sido advertido por Pedro Simon de que estaria apostando alto, 1584 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984) [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa]. Porto Alegre, 2017, p. 12. A rixa foi amplificada pelo fato de Pinheiro Machado ter influenciado Flávio Alcaraz Gomes a deixar de ser cliente de Guazzelli e transferindo-o para José Antonio Pinheiro Machado, seu filho. 1585 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 8. 1586 PORTO, Juarez. “PCB terá candidatos de duas tendências no Sul”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XCII, nº 25, 16 de março de 1982, 1º Caderno, Política e Governo, p. 3. 1587 Idem, ibidem. Não sei se por fidelidade, mas minha avó iria vota em Hagemann em todas as eleições em que ele concorreu. 1588 Idem, ibidem. 1589 Idem, ibidem. 353 aconselhando a concorrer para deputado estadual ou vereador. 1590 Ferri afirma que “eu tinha aquele negócio: eu fui massacrado em Brasília, me expurgaram, me cassaram, me tocaram para o Rio Grande do Sul com uma mão na frente e a outra atrás. Eu queria voltar para lá, e isso foi erro meu. Foi erro meu, foi egoísmo meu”.1591 Com o pleito, Ferri buscava voltar a um espaço que ele estava conquistando em 1964 e foi usurpado pela ditadura. A candidatura tinha, assim, um significado restaurativo. Werner Becker, por sua vez, afirma que lançou candidatura, pois devido à questão do voto vinculado, o partido necessitava de nomes que mobilizassem o eleitorado: “Eu já tinha um certo nome e tal e os votos, e aí eles me convidaram a ser candidato a vereador. E eu tinha muitas ligações com a imprensa”. 1592 Ele teria concorrido “para angariar votos para legenda. A pedido do Ibsen e por sugestão do Simon”.1593 A decisão por concorrer no pleito teve, assim, mais influência de questões pessoais do que opção pelo PMDB. Enquanto que Becker foi incentivado por pessoas próximas influentes, Ferri e Guazzelli foram levados à eleição por desafetos e ressentimentos. V.4.2. Campanha e resultados da eleição de 1982 A experiência da campanha de 1982 foi registrada de forma diferente para cada um dos advogados. Em comum nos relatos há o sentimento de inadequação com uma forma de fazer política com a qual eles não se identificavam. Como já citei, Denise Broda afirma que seu chefe falava que estava naquela eleição “porque tinha que estar”, por um compromisso com o partido: ele tinha “vontade nenhuma na segunda eleição (…). Tanto que deu no que deu. Para sorte dele”.1594 É nítida a diferença com que Broda narra as duas campanhas: enquanto que a primeira foi “uma farra”, a última foi “um compromisso” realizado com “vontade nenhuma”.1595 Cesar Augusto, por outro lado, afirma que seu pai tinha confiança “de sobra na reeleição, no que foi também muito incentivado pelos que o rodeavam”, entusiasmo 1590 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 30. 1591 Idem, ibidem. 1592 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 25 de setembro de 2012, em Porto Alegre, p. 14. 1593 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 8. 1594 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1595 Idem. 354 que, segundo ele, “não tinha razões fortes” devido à manobra de divisão realizada pela ditadura e no próprio “Partidão”.1596 Imagem 10: Propaganda eleitoral dos candidatos Eloar Guazzelli e Fernando do Canto de 1982 [Documento PP 2094]. Fonte: Acervo do Núcleo de Publicidade e Propaganda do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. Na documentação de propaganda eleitoral de 1982, presente no Acervo do Núcleo de Publicidade e Propaganda do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, 1596 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 8. 355 foram encontrados três panfletos de Eloar Guazzelli. Em um havia somente uma fotografia sua com seu nome, o nome do candidato a governador (Pedro Simon) e os dizeres “PMDB – vote para mudar”. Em um segundo, sua fotografia estava conjugada com as de Lauro Hagemann e Fernando do Canto e no verso constava um modelo da cédula com os candidatos junto de Simon e Brossard (candidato ao Senado Federal).1597 No último, Guazzelli aparece ao lado de Canto, com os dizeres: “VOTO ÚTIL E DEMOCRÁTICO É NO PMDB, único partido forte nacionalmente em condições de derrotar o partido do governo. Por um governo coalizão democrática. Pela autonomia sindical. Pela aplicação do estatuto da terra e pela reforma agrária. Pelo ensino público e gratuito, pela legalidade da UNE e UEE. Pela revogação da lei se Segurança Nacional e lei dos Estrangeiros. Contra a dominação econômica das Multinacionais. CONSTITUINTE LIVRE E SOBRERANA.1598 Nestes documentos percebe-se a relação entre os três candidatos, o que comprova o que outras fontes já apontavam. No trecho citado, os candidatos, de forma sintética, expõem suas propostas buscando uma identificação com eleitores vinculados às esquerdas. Os temas mencionados (movimento sindical, estudantil, luta pela terra, contra a legislação autoritária e pela constituinte) eram questões em voga naquele momento evidenciando que eles concorriam com o PT e o PDT por um eleitorado que, em outras eleições, havia eleito Guazzelli Ao mesmo tempo, eles buscavam diferenciar-se destes partidos ao mencionar a questão do voto útil e democrático e do governo de coalização. Assim, Canto e Guazzelli queriam mostrar-se como políticos que enfrentariam a ditadura e que, por pertencer a uma “oposição consequente”, poderiam obter melhores resultados para a redemocratização. Omar Ferri na entrevista concedida para essa entrevista reforçou que, mesmo que tivesse grande interesse, sua campanha acabou sendo afetada por ter sido feita com 1597 Documento 1987.38.4.85 [Propaganda política]. Núcleo de Publicidade e Propaganda/ Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. 1598 Documento PP 2094 [Propaganda política]. Núcleo de Publicidade e Propaganda/ Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. 356 poucos recursos financeiros.1599 Por isso não ganhou tanta visibilidade como tiveram outros candidatos que investiram mais fortemente em propaganda ou contavam com o apoio de um grupo organizado, como Guazzelli e os giocondistas do PCB.1600 Denotase nas falas de Ferri uma percepção de que na eleição de 1982 estavam presentes “novas regras” do jogo político, fazendo com que, para ser bem-sucedido, fossem necessários grandes investimentos econômicos. Quando questionado, Omar apontou para sua principal parceria neste pleito Antenor Ferrari, que concorria à reeleição para a Assembleia Legislativa.1601 Nos documentos encontrados no Núcleo de Publicidade e Propaganda do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa constam três propagandas de Ferri, uma delas sozinho. Nas outras está presente também o candidato a deputado estadual. Em uma delas é somente mostrado um modelo de cédula com os nomes e números dos candidatos do PMDB, com os dizeres “VOTO ÚTIL”, e eles faziam parceria com o jovem líder comunitário da capital, Sebastião Melo.1602 Finalmente, há um documento em que eles fazem “dobradinha” com Caio Lustosa, que concorria para vereador em Porto Alegre.1603 Enquanto que o deputado estadual havia ficado reconhecido por sua atuação no caso do sequestro dos uruguaios, Lustosa era um advogado conhecido por sua atuação nos emergentes movimentos ambientalista e pelos direitos indígenas. Além disso, ele atuou em casos políticos, como o processo dos “terroristas” analisados no capítulo anterior. Na propaganda, que tinha no verso um modelo da cédula com os nomes e números dos candidatos e de Simon e Brossard, constavam as fotos dos três postulantes à eleição proporcional com os dizeres “CONTRA O PODER DA POLUIÇÃO E A POLUIÇÃO NO PODER”.1604 Há a clara referência às lutas nas quais os candidatos engajaram-se: Ferri e Ferrari, que confrontaram a “poluição” das estruturas da ditadura no caso de Universindo, Lilián e seus filhos, e Lustosa, identificado com o 1599 FERRI, Omar Ferri. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de setembro de 2017, em Porto Alegre. 1600 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 27. 1601 FERRI, Omar Ferri. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 29 de setembro de 2017, em Porto Alegre. 1602 Documento 1987.38.4.181/ PP 1964 [Propaganda política]. Núcleo de Publicidade e Propaganda/ Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. 1603 Documento 1987.38.4.7/ PP 2042 [Propaganda política]. Núcleo de Publicidade e Propaganda/ Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. 1604 Idem, ibidem. 357 ambientalismo. Omar não tinha lembrança desta parceria, afirmando que, posteriormente, ele teria se afastado de Caio Lustosa por questões políticas. Imagem 11: Propaganda eleitoral dos candidatos Omar Ferri, Antenor Ferrari e Caio Lustosa de 1982 [Documento 1987.38.4.7/ PP 2042]. Fonte: Acervo do Núcleo de Publicidade e Propaganda do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. É muito provável que o caso do sequestro tenha tomado importante papel na campanha do advogado. Seu bem-sucedido livro Seqüestro no Cone sul, que mostrava a sua atuação na luta contra a ditadura, havia saído um ano antes. Como mencionei, o 358 livro também gerou questionamentos, uma vez que estava junto de Sinval Guazzelli na campanha. Werner Becker afirma que “eu não fiz campanha”, sendo auxiliado por amigos na imprensa, como Luis Fernando Veríssimo e Sergio Jockymann, que escreveram em seu apoio.1605 Ele reforça sua indiferença em relação ao pleito em diversos momentos: ele narrou que, nas últimas semanas, havia viajado para a Argentina. 1606 Em outro momento, disse que, em um comício feito para ele no qual não foi, um amigo, mesmo irritado com a atitude do advogado, fez o discurso em seu lugar “afirmando que ele era o Werner Becker”.1607 Sobre a campanha, o advogado afirma que Quer dizer, eu fui carregado. Minha campanha eleitoral é... Não é, eu achava uma hipocrisia e não me sentia bem. Eu sou muito cético para fazer um discurso político e empolgar as massas. Tenho muita pena das massas para dar esse ópio de empolgação para elas. Foi isso. Mas estou te dizendo, esse período de toda a minha vida se dava por acidentes.1608 Nota-se no trecho que a questão do acaso, algo recorrente nos relatos de Werner, o levou à campanha, na qual foi auxiliado por seus contatos pessoais. Imagem 12: Propaganda eleitoral de Werner Becker de 1982. Fonte: Acervo do Núcleo de Publicidade e Propaganda do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa 1605 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 25 de setembro de 2012, em Porto Alegre, p. 14. 1606 Idem, p. 15. 1607 BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 16 de julho de 2017, em Porto Alegre, p. 26. 1608 Idem, ibidem. 359 Questionando sobre parcerias ele lembrou-se de duas: a primeira, que chamou de “chapa chucrutes” era formada por ele, Ruy Carlos Ostermann (deputado estadual) e Siegfried Heuser (deputado federal), e em outra ele estava ao lado de Rospide Neto (estadual) e seu amigo Ibsen Pinheiro (federal).1609 Mas ele afirma que “não havia fidelidade nas chapas”, mencionando que também fez campanha com José Fogaça, que concorria para a Câmara.1610 Vemos sua parceria especialmente com pessoas que lhe eram próximas, como Ostermann e Ibsen. Durante a apuração de votos da eleição de quinze de novembro de 1982, José Mitchell em matéria publicada no Jornal do Brasil indicava que, com raras exceções como Carlos Araújo, as esquerdas gaúchas não teriam grande sucesso.1611 Em relação ao PCB, o jornalista afirmava que tanto os giocondistas quanto os prestistas corriam o risco de “não terem representantes na Câmara Federal ou Assembléia Legislativa”, excetuando Lauro Hagemann, que provavelmente seria eleito: “Nem Antônio Pinheiro Machado Neto (linha prestista) nem Eloar Guazzelli (candidato à reeleição), ambos do PMDB e considerados mais fortes, não conseguiram, ainda, percentuais que garantam sua eleição”.1612 As previsões do jornalista se concretizaram, uma vez que Eloar Guazzelli não se elegeu ficando com a 25ª posição do PMDB para a Câmara Federal com 14.141 votos, quatro colocações à frente de Antônio Pinheiro Machado Neto, com 9.548, assim como Fernando do Canto e Davi Oliveira, obtiveram, com 6.678 e 6.599 votos respectivamente, a 51ª e 52ª colocação do partido para a Assembleia Legislativa.1613 Lauro Hagemann de fato elegeu-se vereador com a 5ª melhor votação do PMDB com 5.512 votos.1614 De acordo com Carlos Frederico, “o resultado previsível se cumpriu”, ficando como consolo para Eloar ter feito mais votos do que de seu “desafiante, agora desafeto. E este foi o outro resultado negativo do episódio: o afastamento de amigos de quase 1609 Idem, p. 25. Infelizmente na única propaganda de Werner presente no Núcleo de Publicidade e Propaganda do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa ele está sozinho. 1610 Idem, ibidem. 1611 MITCHELL, José. “Paixão, o ex-guerrilheiro eleito”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ano XCII, nº 225, 19 de novembro de 1982, 1º Caderno, Eleições, p. 6. 1612 Idem, ibidem. 1613 TRE-RS. Resultados das eleições gerais de 1982. Porto Alegre, 1982, pp. 15 e 27. Disponível em www.tre-rs.gov.br/upload/7/_Gerais_Resultados_RS1982.pdf 1614 Já o prestista Jorge Garcia não obteve sucesso, obtendo 976 votos. TRE-RS. Resultados das eleições municipais de Porto Alegre de 1982. Porto Alegre, 1982, pp. 7-8. Disponível em www.trers.gov.br/upload/18/Municipais_Porto_Alegre1982.PDF 360 toda a vida”.1615 À derrota e ao fim da amizade “somaram-se, assim, ao desencanto com a atividade parlamentar, fazendo com que Eloar retornasse a Porto Alegre mais desgostoso”.1616 Cesar Augusto afirma, neste sentido, que A eleição de 1982 foi, a meu juízo, um dos maiores desgostos do pai; além da derrota eleitoral e consequente perda do mandato, somado a uma enorme desilusão com a sucessão governamental no Rio Grande do Sul, ele rompeu relações como seu mais antigo e melhor amigo, o Pinheirinho, se decepcionou com outros tantos ao longo da campanha, e culminou tudo com um câncer.1617 Assim, enquanto que a eleição de 1978 é lembrada como positiva e algo que permitia que Eloar se afastasse de fontes de tensão – em especial o caso Alcaraz Gomes – 1982 representa todas as frustrações – políticas, profissionais e pessoais – que ele vinha acumulando naqueles anos. A descoberta de um carcinoma pulmonar naquele momento foi algo que acabou aumentando a sensação de derrota em Eloar. Denise, como citei, afirmou que o advogado entrou desmobilizado na campanha, o que levou a um resultado esperado – “para a sorte dele”, pois estaria muito decepcionado pela experiência em Brasília.1618 Há, assim, uma inevitabilidade presente nos relatos das pessoas próximas a Guazzelli. Os dois filhos de Eloar apontam como principal característica da derrota o fato de que seu eleitorado – para Carlos Frederico formado por “militantes e simpatizantes do Partido Comunista, estudantes, ativistas sociais, lutadores pelos direitos humanos e advogados” – estaria pulverizado em diferentes candidatos e partidos.1619 Curiosamente, se somarmos as votações de Guazzelli, Pinheiro Machado e Omar Ferri (16.349) chegaríamos a um número (40.038) muito próximo da votação de Eloar em 1978 (39.901). Com esta votação, Ferri ficou com a 23ª posição dentro dos nomes do PMDB. Conforme já citado, sua análise do pleito é marcada por uma visão negativa das práticas necessárias para se obter sucesso. Comentando sobre o fracasso na reeleição de Eloar, 1615 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 12. 1616 Idem, ibidem. 1617 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 8. 1618 BRODA, Denise. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli, em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 2017. 1619 GUAZZELLI, Carlos Frederico Barcellos. Notas sobre as atividades de Eloar Guazzelli (1974/1984). [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 13; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. [Texto elaborado a partir de questionário para esta pesquisa] Porto Alegre, 2017, p. 8. Eles também apontam para singularidades da votação da região de Vacaria, na qual os apoiadores de 1978 estavam em outro partido (PDT) e Eloar concorria com seu primo Sinval pelos votos do PMDB. 361 Omar afirma que diversos “nomes de pessoas que foram íntegras, que exerceram seu mandato com, com… Tendo em vista o bem-estar social, o bem público” não se reelegeram “porque o cara tinha que ser meio caborteiro, meio sem-vergonha. Essa é a verdade”.1620 Ele analisa que sua decisão em concorrer em 1982 como “erro meu, foi egoísmo meu. Eu não tinha condições, não tinha dinheiro para ser candidato a Deputado Federal. Nem tinha nenhuma organização que me apoiasse. Eu só podia levar pauleira”.1621 Há aqui também a ideia de inevitabilidade do fracasso mas, diferentemente das pessoas próximas a Eloar que o vinculavam à sua atitude e ao novo contexto político, Omar o relaciona com sua falta de estrutura financeira e social. O advogado afirma ainda que a repercussão no caso do sequestro, por exemplo, não era traduzida em votos: “O que que traduzia em votos? Eu ter dinheiro, eu instalar comitês, eu dar dinheiro para Diretórios do PMDB no Interior”.1622 Ferri afirma que, mesmo tendo contatos com candidatos a vereador em diferentes cidades do estado, seu apoio não vingou, pois ele não podia, como outros, ajudá-los financeiramente.1623 Werner Becker foi o único dos três advogados-candidatos que teve sucesso na empreitada eleitoral: com 3.756 votos ficou com a 11ª e última cadeira do PMDB na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, na qual atuaria ao lado do pecebista Lauro Hagemann e do advogado Caio Lustosa.1624 Como citado acima, ele creditou seu sucesso ao auxílio dos amigos, o que fez com que sua entrada no legislativo municipal soasse, em sua narrativa, como um tanto acidental, sendo auxiliada por candidatos a deputado estadual e federal. O que se nota nesta eleição é que, se em 1978 havia pouca presença de candidatos que representassem posições políticas “à esquerda” e propusessem uma postura combativa à ditadura, em 1982 este quadro foi ampliado, tanto pelo retorno de exilados e anistiados políticos quanto pelo surgimento de novos nomes, como Omar Ferri e Werner Becker. Se no pleito anterior Eloar Guazzelli preenchia “um vazio à esquerda” dentro dos candidatos para a Câmara Federal, quatro anos depois ele 1620 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli no dia 23 de maio de 2013, em Porto Alegre, p. 27. 1621 Idem, p. 30. 1622 Idem, p. 31. 1623 Idem, ibidem. 1624 Lustosa ficou com a sexta melhor votação do partido, obtendo 4.609 votos. TRE-RS. Resultados das eleições municipais de Porto Alegre de 1982. Porto Alegre, 1982, p. 7. Disponível em www.trers.gov.br/upload/18/Municipais_Porto_Alegre1982.PDF 362 disputava este espaço com outros nomes, como o próprio Omar Ferri, Antônio Pinheiro Machado Neto, José Fogaça e Ibsen Pinheiro. Além disso, havia a concorrência com os candidatos pedetistas e petistas. A eleição de 1982 apresenta, assim, duas questões relevantes para este estudo: por um lado, mostra que a imagem dos advogados que haviam se contraposto à ditadura tinha relevância significativa para possibilitar uma candidatura; por outro, ela não garantia, como em 1978, o sucesso para cargos como deputado federal. Parafraseando Omar Ferri, naquele momento não bastava “lutar”, era necessário “fazer política”, o que “não era tão fácil assim” para eles.1625 Pode-se relacionar esta sensação por parte dos derrotados no pleito com a noção de “tesouro perdido” de Hannah Arendt apropriada por Marieta de Moraes Ferreira, mostrando que esta inadequação tinha a ver também como um novo contexto político no qual as lutas de resistência à ditadura tinha perdido a relevância. Percebe-se nos anos iniciais da década de 1980 o prosseguimento aos investimentos dos advogados na inter-relação entre atuação profissional e militância política, como pode ser visto nas ações de Omar Ferri no MJDH e de Eloar Guazzelli na Câmara dos Deputados. Um fenômeno importante diz respeito às transformações em relação aos comunistas, que durante muito tempo atuavam “nas trevas”: no início da década de 1980 saíram ao sol declarando sua identidade política. Algo semelhante ocorreu com aqueles que sofreram perseguições ao longo da ditadura por vinculações ao governo deposto em 1964. Como mostra a “apresentação” feita pelo DOPS no livro de Ferri, estas marcas passaram a ser medalhas que evidenciavam suas lutas contra a ditadura. Este meio permitiu que os três advogados tivessem repercussão pública suficiente para lançarem as candidaturas em 1982. As derrotas de Ferri e Guazzelli mostram, ao mesmo tempo, que as transformações também as dificultaram. 1625 Idem, p. 27. 363 Considerações finais Busquei através da pesquisa, demonstrar como a análise das trajetórias de Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker durante a ditadura civil-militar permite perceber as mudanças ocorridas dentro das esquerdas brasileiras. Da mesma forma, o trabalho me leva a tecer determinadas considerações. O primeiro balanço, ao final desta tese, se refere às potencialidades das fontes utilizadas na tese. Um conjunto documental explorado, provavelmente por primeira vez, foi o das atas do IARGS e da OAB/RS. Por meio delas foi possível mapear os debates presentes nas entidades e reconhecer as modificações ocorridas ao longo da ditadura. As atas apresentam peculiaridades, uma vez que são registros sintéticos de debates e discussões ocorridas nas sessões das entidades. Assim, é provável que determinadas propostas e debates fossem vistos como indignos de anotação por diversas questões, apontando para silêncios da fonte. Por outro lado, o fato de existir o registro mostra que determinado tema tinha relevância para os membros da organização, o que é um rastro do contexto histórico do período. Conforme apontei, no início da ditadura, o Instituto acabou destacando-se com uma postura mais crítica em relação à repressão, levando à sua participação na CPI do caso das mãos amarradas, enquanto que a OAB/RS não se posicionava de forma tão firme. Posteriormente, no final da década de 1970, a situação se inverteu, passando o IARGS a debruçar-se em questões internas e debates mais acadêmicos enquanto que a Ordem gaúcha tomou atitudes mais enérgicas e públicas, em especial após a prisão de membros do PCB em 1975 e em sua participação no caso do sequestro dos uruguaios. A presidência de Eloar Guazzelli do IARGS seguiu esta tendência, o que fez com que a entidade se posicionasse mais intensamente apenas na mobilização contra a vinculação da OAB ao Ministério do Trabalho. Estes movimentos ocorridos nas organizações, conforme procurei demonstrar, estão relacionados com a atuação de advogados comunistas, como Júlio Teixeira, Antonio Pinheiro Machado Neto e Eloar Guazzelli, e sua aliança com advogados de outros matizes ideológicos, como Justino Vasconcelos, que foi presidente do IARGS entre 1966 e 1971, e do Conselho da OAB/RS entre 1973 e 1975 e 1978 e 1981. A articulação entre eles foi percebida nos documentos analisados e possibilitou posturas 364 mais aguerridas das organizações. Devido à forte atuação de Eloar e dos comunistas nas organizações, acabei dando mais espaço, em minha narrativa, para estes advogados. Além das atas das entidades classistas, trabalhei com fontes da imprensa buscando como elas retrataram as atuações de Eloar Guazzelli, Werner Becker e Omar Ferri. Nos primeiros anos da ditadura, a atuação dos advogados, em especial nos “crimes políticos”, foi alvo de registros mais “telegráficos”, diferentemente dos “crimes de jornal” – casos rumorosos ou curiosos como o “crime da mala” e o caso de Savas Panayotis Kitrinopopoulos – que acabavam dando espaço maior à defesa na imprensa. No final da década de 1970 e início da de 1980, o quadro se modificou, com a imprensa garantindo mais visibilidade para as argumentações e estratégias dos defensores. Enquanto que em muitos casos apresentados no segundo capítulo – como os processos envolvendo o ex-coronel Pedro Alvarez, os membros da Brigada Militar e os militantes envolvidos em ações armadas – existem raras menções nos periódicos ao trabalho dos advogados, nos capítulos finais as matérias jornalísticas dão amplo espaço para os defensores. Isto mostra que, ao longo do período analisado, os “crimes políticos” e os advogados que atuavam neles passaram a ser vistos de maneira diferente pela imprensa. A advocacia de perseguidos políticos passou por uma ressignificação, sendo identificada com valores como os direitos humanos e a luta pelas liberdades democráticas. A candidatura e eleição de Eloar Guazzelli em 1978 é um indício desta transformação que permitiu a um advogado que nunca havia sido candidato a nenhum cargo eletivo chegar à Camara dos Deputados. Além das fontes mencionadas, utilizei entrevistas de história oral, depoimentos e outras narrativas memorialísticas relacionadas com as trajetórias de Eloar Guazzelli, Omar Ferri e Werner Becker. A atuação profissional e política durante a ditadura civilmilitar é um ponto central em suas narrativas, indicando que esse foi um período definidor de suas memórias e identidades. Deve-se ressaltar que eles dão significados diversos às suas trajetórias: Ferri focando em um sentido mais heroico enquanto que Becker mais cômico. No caso de Guazzelli, pude notar que os diferentes entrevistados deram ênfases diversas à imagem do advogado. Penso que isto se deu pois cada um deles se concentra em um determinado aspecto que está relacionado com a trajetória pessoal dos depoentes. 365 A partir do diálogo destas fontes busquei compreender como estes advogados interviram nos campos jurídico e político. Logo após o golpe de 1964, não havia, para Eloar e Werner, a possibilidade de atuar no campo eleitoral. Omar Ferri, por sua vez, chegou a assumir o mandato de deputado estadual pelo PTB em alguns momentos após a onda de cassação entre os trabalhistas. Mesmo assim, para ele e para outros “alucinados brizolistas” a principal estratégia estava vinculada à volta de Brizola e a uma provável derrubada da ditadura. Assim, naquele contexto, a advocacia foi uma área em que os três puderam atuar fora de eventuais perseguições vindas da ditadura, e a defesa de presos políticos deu a eles um espaço profissional que possibilitava uma dimensão política. Ao longo da ditadura, Guazzelli, Becker e Ferri foram reforçando este aspecto de sua profissão. Em alguns momentos houve tensões entre a busca de reconhecimento na área do direito e sua reputação na resistência à ditadura. O Caso de Flávio Alcaraz Gomes foi exemplar disso: enquanto que buscava colocar-se à prova como criminalista, o então deputado federal Eloar Guazzelli foi alvo de críticas por parte de seu eleitorado que não compreendia como ele defendia um cliente visto como “reacionário assassino”. Ao longo da ditadura, o projeto de inter-relação entre profissão e atividade política foi modificando-se e ganhando novos significados. Quando questionado sobre as causas que motivavam sua militância durante entrevista realizada para esta tese, Omar Ferri afirmou que, antes do golpe, “a nossa luta naquela época” era em prol das reformas, libertação econômica do Brasil e contra a invasão de interesses estadunidenses na América Latina, o que “era um reflexo da pregação de Brizola e da atmosfera política existente naquela época”.1626 Assim, ele estava inserido dentro das lutas e demandas do trabalhismo naquele contexto. De forma semelhante pensava o PCB de Eloar Guazzelli, que estava engajado no governo de João Goulart. Já no final da década de 1970 sua luta passou a ser contra a “ditadura militar, pela prevalência dos direitos humanos, pela evocação das liberdades, da democracia, nova constituição”, que modificariam o Brasil “fantasticamente”.1627 Esta fala denota uma mudança de perspectiva na qual os direitos humanos, “as liberdades” e a democracia formal passaram a ocupar um espaço que antes era preenchido basicamente por demandas econômicas. Ainda que a luta contra a desigualdade econômica 1626 FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 29 de setembro de 2017. 1627 Idem. 366 permanecesse entre as bandeiras das esquerdas, ela andava lado a lado com a defesa da democracia formal e dos direitos humanos. Conforme apontei, ao longo do período analisado, foram ocorrendo modificações no contexto, as quais levaram as esquerdas a abraçarem a causa dos direitos humanos, o que passou por uma revisão sobre o direito, em especial sobre o direito criminal. Um indício de “desconforto” de setores da esquerda foi o fato de que, durante a mobilização do IARGS no caso das mãos amarradas, o termo “direitos do homem” não ter sido utilizado por Eloar Guazzelli em seu relatório e sim pelo católico Justino Vasconcelos. Conforme procurei mostrar no Capítulo II, até 1973 mesmo que os termos direitos “do homem”/ “da pessoa humana”/ “humanos” surgissem dentro das atas da OAB/RS e do IARGS, eles não eram utilizados pelos comunistas presentes. Apesar de aparentemente não se utilizarem das expressões “direitos do homem”/“direitos humanos”, ao longo da década de 1960 estes advogados passaram a questionar a violência cometida pela ditadura, através da denúncia do “tratamento dispensado a presos políticos”, como ocorreu no caso das mãos amarradas. É provável que as denúncias estivessem vinculadas mais a uma luta pela derrubada da ditadura do que a busca pela promoção dos direitos humanos. Mesmo assim, posteriormente este questionamento foi levado ao tratamento dado aos “presos comuns” – como mostra a estratégia utilizada por Guazzelli no caso do assaltante de bancos Julinho – em um movimento que culminou em ações como a do MJDH no início da década de 1980 em defesa de agricultores sem-terra e de moradores de áreas pobres da zona metropolitana de Porto Alegre. São rastros desta caminhada realizada pelas esquerdas brasileiras que passaram a adotar a questão dos direitos humanos em sua totalidade. A partir das fontes analisadas, pode-se perceber assim que, no início da ditadura, a ideia de “direitos do homem”/ “da pessoa humana” estava vinculada aos direitos individuais, em especial a questão das prisões e tortura, e era acessada por setores conservadores que vinham questionando os métodos da ditadura. Mesmo que advogados como Eloar Guazzelli, fizessem coro a estas denúncias – talvez as extrapolando para os criminosos “comuns” –, eles não o faziam utilizando estes termos. Já no final da década de 1970 estas ações passaram a ser vistas pelas esquerdas como defesa dos “direitos humanos”. Mesmo que a questão do combate às violências e arbitrariedades da ditadura ainda estivesse no cerne da conceituação de direitos 367 humanos – o que se pode depreender do fato de um defensor de perseguidos políticos utilizar como slogan eleitoral de “advogado dos direitos humanos” – pode-se perceber que ela estava lado-a-lado do combate às injustiças sociais e econômicas, conforme a descrição de Ferri sobre o Ato de um ano do sequestro dos uruguaios. Neste momento as esquerdas de diferentes matizes estavam aliadas na mesma causa com grupos mais conservadores. O fato de Werner Becker, Eloar Guazzelli e Omar Ferri terem lançado candidatura em 1982 mostra a relevância política de suas atividades profissionais. Penso que elas passaram por um processo de ressignificação que as vinculou aos direitos humanos. É possível que, inicialmente, a atuação profissional dos advogados em casos políticos tenha sido vista como uma forma de resistência à ditadura; em meados da década de 1970 ela passou a ser encarada como “defesa dos direitos humanos”. Isso ocorreu concomitantemente a uma transformação nas esquerdas brasileiras que abdicaram da violência revolucionária e passaram a valorizar a democracia formal e os direitos humanos. Nesse quadro advogados como Ferri, Becker e Guazzelli passaram a ser vistos de uma nova forma. Esta tese permite compreender de forma mais detalhada as mudanças que levaram à formação do novo ethos da esquerda, vinculado à luta contra o autoritarismo e pelos direitos humanos. Ela contribui, desta forma, para compreender melhor a história dos direitos humanos no Brasil. Ao mesmo tempo, minha pesquisa apresenta as diferentes formas de crítica e resistência à ditadura civil-militar por parte de profissionais do direito, como a defesa de presos políticos e a atuação de entidades classistas. Isto permite compreender os diversos sentidos políticos dados à advocacia e ao direito. A tese ainda contribui na busca por recompor os campos jurídico e político nos quais os advogados atuaram, relacionando as atuações profissionais com conotação política com aquelas tidas como “comuns”. Finalmente, minha pesquisa busca mostrar as possibilidades de trabalhos de história que abordam temas próximos ao pesquisador. Procurei mostrar que um historiador pode analisar a trajetória de um familiar, por exemplo, devendo, sempre, seguir os procedimentos básicos da disciplina. Foi fundamental para isto a compreensão das dinâmicas existentes entre a história e a memória, e, principalmente, um trabalho sobre a memória familiar. 368 Bibliografia Acervos Pesquisados: Acervo do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS) Acervo Pessoal de Rafael Guimaraens Acervo Pessoal Omar Ferri (APOF) / Acervo da Luta Contra a Ditadura/Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) Acervo Profissional de Eloar Guazzelli Arquivo do Tribunal Federal da 4ª Região DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural/PUCRS Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Memorial da OAB/RS Memorial do Judiciário/RS Memorial do Legislativo Museu da Comunicação Hipólito José da Costa Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul Entrevistas de história oral: ARAÚJO, Carlos Franklin da Paixão. Entrevista concedida a Francisco Carvalho Junior e Dante Guimaraens Guazzelli para o Projeto Marcas da Memória: História Oral no Brasil em Porto Alegre no dia 11 de abril de 2011. 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Pedro Lairihoy; 2º Vice-pres: Rubens Sant’Anna; 1º Secr.: Oswaldo Bassis; 2º Secr.: Dirceu Camargo; Tesoureiro: René Ávila; Orador: Eloar Guazzelli; Dir. de Bibl.: Mario Bernardo Sesta. 1970-1971 Pres.: Justino Vasconcelos; 1º Vice-pres.: Júlio Teixeira. Pedro Lairihoy; 2º Vice-pres: Francisco Talaia O’Donnell; 1º Secr.: André José Simon; 2º Secr.: Paulo Kreitchmann; Tesoureiro: Oswaldo Bassis; Orador: Eloar 1628 Optei por apresentar somente os principais cargos da diretoria do IARGS. Também apresento os consócios atuantes e relevantes para esta pesquisa. 380 Guazzelli; Dir. de Bibl.: Apio Claudio Beltrão 1972-1973 Pres.: Érico Maciel Filho; 1º Vice-pres.: Olga Bragança Maciel. Maurício Steinbruck; 2º Vice-pres.: Gilda Maciel Russomano; 1º Secr.: Mauro Cunha; 2º secr.: Gladys da Rocha; Tesoureiro: Sylvio Remo Sirângelo; Orador: Aldo Ferreira; Dir. de bibl.: Isabella Ferlini. 1974-1975 Pres.: Eloar Guazzelli; 1º Vice-pres.: Júlio Teixeira; Nereu Antônio de Almeida Martins Costa; 2º Vice- Lima; Ecilda Haensel; pres.: Ruy Rodrigo de Azambuja; 1º Secr.: Amadeu Weinmann; Clóvis Ponzi; 2º secr.: Paulo Pinto de Tarso Genro; Luiz Luisi. Carvalho; Tesoureiro: José Baptista Neto; Orador: Hugo Ramirez; Dir. de bibl.: Lúcio Ivo do Couto. 1976-1977 Pres.: Ruy Rodrigo de Azambuja; 1º Vice- Júlio Teixeira; Adelmo pres.: Mauro Cunha; 2º Vice-pres.: Roberto Simas Genro; Deburgo Bier da Silva; 1º Secr.: Carlos Alberto de de Deus Vieira; Caio Oliveira; 2º secr.: Carlos Alberto do Amaral; Lustosa; Tesoureiro: Juracy Machado; Orador: Xausa; Marcus Melzer; Amadeu Weinmann; Dir. de bibl.: Aldo Ecilda Ferreira. 1978-1979 Leônidas Haensel; Luiz Luisi. Pres.: Ruy Rodrigo de Azambuja; 1º Vice- Nereu Lima; Archimedes pres.: Otávio Caruso da Rocha; 2º Vice- Almeida; Luiz Fernando pres.: Alfredo Emigdio Outeiro de Mello; 1º Borges da Fonseca; Secr.: Amadeu Weinmann; 2º secr.: Aldo Sergio Juchem; George Ferreira; Tesoureiro: Isa Brans; Orador: Tenório Noronha; Ecilda João Pedro dos Santos; Dir. de bibl.: Violeta Haensel; Clóvis Goulart de Campos. 1980-1981 Ponzi; Tarso Genro. Pres.: Otávio Caruso da Rocha; 1º Vice- Clóvis Goulart Ponzi; pres.: Antônio José Leiria; 2º Vice-pres.: Marcus Melzer; Tarso João Pedro dos Santos; 1º Secr.: Isaac Genro; Ainhorn; 2º secr.: Iris da Costa; Tesoureiro: Vasconcelos; Justino Júlio 381 Fernando Barcellos de Almeida; Dir. de Teixeira; Ruy Rodrigo de bibl.: Violeta de Campos. 1982-1983 Azambuja. Pres.: Luiz Carlos Madeira; 1º Vice-pres.: Ruy Rodrigo de Azambuja; 2º Vice-pres.: Jaime Paz da Silva; 1º Secr.: Orlando Vanin; 2º secr.: Cyl Paranhos de Lima; Tesoureiro: Fernando Barcellos de Almeida; Orador: Otavio Caruso da Rocha Dir. de bibl.: Iris da Costa. Composição do Conselho Seccional da OAB/RS (1964-1982)1629 Anos Presidência Destaque entre os conselheiros Advogados mencionados 1964 1965-1966 Oswaldo 1º secr.: Urbano Ferreira de Souza; Floriano Vergara 2º secr.: Jorge Muccillo; Afrânio Ávila. (desde 1955) Araújo; Júlio Teixeira. Dante Sfoggia Jayme Machado de Oliveira (vice- Antônio Maya pres.); Urbano Ferreira de Souza Pinheiro (1º secr.); João Carlos Silveiro (2º Machado Neto; secr.); Oswaldo Bassis (tesoureiro); Eloar Guazzelli. João Pompílio de Almeida; Marcus Melzer; Walter Becker; Aristides Boeira; Nery Luz; João Glashester; Paulo do Couto e Silva; Pedro Lairihoy; Jerônimo da Silva Ribeiro; Clóvis do Couto e Silva; Paulo Kreitchmann; Pedro Pacheco de Souza; Paulo Barbosa Lessa; Lelio Candiota de Campos . 1629 Devido a lacunas nas fontes, em determinados anos não foi possível obter todos os nomes dos conselheiros eleitos. 382 1967-1968 Alter Cintra de Edgar Vargas Serra (vice-pres.); Oliveira Silvio Remo Sirângelo (1º secr.); Mauro Cunha (2º secr.); Paulo Kreitchman Ferreira de (tesou.); Urbano Souza; Justino Vasconcelos; Jayme Machado de Oliveira; Emílio Rothfuchs Neto; Telmo Rovira Martins; Wilson Shumacher;; Dirceu Camargo; João Leitão de Abreu; Lélio Candiota de Campos; Érico Maciel Filho; Nery Luz; Francisco Talaia O’Donnel; Pedro Pacheco de Souza; Eloar Guazzelli; Marcus Melzer; Oswaldo Bassis; Pedro Lairihoy; René Ávila; Walter Becker. 1969-1970 Alter Cintra de Marcus Melzer; Pedro Lairihoy; Antônio Oliveira Francisco Talaia O’Donnell (vice- Pinheiro pres.); Osvaldo Bassis (1º secr.); Machado Neto; Emílio Rothfuchs Neto (2º secr.); Darcy René Ávila (tesou.); Camilo Hoonholtz. Martins Costa; Ajadil de Lemos; Walter Becker; Marcus Melzer; Justino Vasconcelos; Edgar Vargas Serra; Sylvio Remo Sirângelo; Mauro Cunha; Paulo Kreitchmann; Urbano Ferreira de Souza; Arnaldo Borsatto; Rubens Sant’anna; Pedro Lairihoy; Walter Tschiedel; Ladislau Rohnelt; Érico Maciel; Eloar Guazzelli; Júlio Teixeira. 1971-1972 Alter Cintra de Ladislau Oliveira Ronheldt (vice-pres.); Antônio Telmo Rovira Martins (1º secr.); Pinheiro Von 383 Luiz Fernando Borges da Fonseca Machado Neto; (2º secr.); Guilherme Schutz Felisbino (tesou.); Carlos de Souza Moraes; Barlette. Marcus Melzer; Osvaldo de Lia Pires; Rubens Sant’Anna; Luiz Behs; Francisco Talaia O’Donnel; Fernando Camargo Dias; Justino Vasconcelos; Plínio Paulo Bing; Paulo Kreitchmann; Osvaldo Bassis; Emílio Rothfuchs; Saul Rolla; Sylvio Remo Sirângelo; Pedro Lairihoy; Osvaldo Vergara; Dante Sfoggia; Eloar Guazzelli; José Mariano Beck; Malcus Melzer; Júlio Teixeira. 1973-1974 Justino Eloar Guazzelli (Vice-pres.); Pedro Rui Goethe da Vasconcelos Lairihoy (1º secr.); Luiz Behs (2º Costa Falcão; secr.); Roque Volkweiss (tesou.); Claudio Antenor Paulo Serra; Ladislau Rohnelt; Schuch. Alfredo Mello; Fernando Camargo Dias; Plínio Bing; Rubens Sant’Anna; Marcus Melzer; Osvaldo Bassis; Paulo Kreitchmann; Júnior; Jayme Guilherme Walter Deolindo Paz Flores Becker; Lima da da Luiz Silva; Cunha; Fernando Borges da Fonseca; Guilherme Schutz Filho; Mauro Cunha; Aldo Leão Ferreira; Rubens Sant’Anna; Paulo Serra;; Júlio Teixeira; Marcus Melzer; Aldo Ferreira. 1975-1976 Justino Guilherme Schutz (vice-pres.); 384 Vasconcelos George Tenório Noronha (1º secr.); Jayme Paz da Silva (2º secr.); Mauro Cunha Fernando Anísio (tesou.); Borges da Freitas; Luiz Fonseca; Paulo Serra; Guilherme Flores da Cunha; Luiz Behs; Caruso Pedro Lairihoy; Otávio da Rocha; Paulo Kreitchmann; Eloar Antonio Martins Rodrigo de Mariano Beck; Archimedes Melzer; Guazzelli; Costa; Ruy Azambuja; José Tito Monteiro; Almeida; René Marcus Ávila; Sergio Juchem; Walter Becker; Plínio Bing. 1977-1978 Justino Paulo de Vargas Vares (vice-pres.); Vasconcelos George Tenório Noronha (1º secr.); Jayme Paz da Silva (2º secr.); Anísio Rodrigo Freitas de (tesou.); Azambuja; Ruy Eloar Guazzelli; Guilherme Flores da Cunha; Walter Archimedes Martins Tschiedel; Almeida; Costa Neto; Antônio Leônidas Xausa; Paulo Kreitchmann; Marcus Melzer; Otávio Caruso da Rocha; João Pedro dos Santos; Pedro Lairihoy; César Dias Neto; Sérgio Juchem; Rovílio Breda; Luiz Fernado Borges da Fonseca; Sylo Soares; Luiz Luisi; Júlio Teixeira; Paulo Pinto de Carvalho; Walter 385 Becker; 1978-1981 Justino Paulino de Vargas Vares (vice- Nereu Lima Vasconcelos pres.); George Tenório Noronha (1º (cons. subst.); secretário); Eloar Guazzelli; Julio Tarso Genro Teixeira; Ruy Rodrigo de (cons. subst..); Azambuja; Antonio Martins Costa Walter Neto; Marcus Melzer; Graeff Otávio (cons. subst..); Caruso da Rocha; Leônidas Xausa; Honório Walter Tschiedel; Paulo Pinto de (cons. Carvalho; Walter Archimedes Almeida; Freitas; Rovílio Becker; Luiz Breda; Sérgio Ferri (cons. Beck; Luiz Fernando Borges da Soares; Fernando Borges da Luiz Fonseca; Sergio Juchem; João Pedo dos Santos. 1981-1982 José de Beck 1984) Mariano Archimedes Almeida (vice-pres.); Freitas Nereu Lima (1º secr.); Jayme Paz (até da Silva (2º secr.); Mercedes Rodrigues (tesou.); Pedro Lairihoy; Paulo Melzer; Kreitchmann; Bruno Marcus Hartz; Paulo Kreitchmann; Dyogenes Pinto; Any Danckwardt; Rejane Brasil Filippi; Walter Becker; Nelson Jobim; Otávio Caruso da Rocha; Nelcy Pedroso; Lucio Ivo do Couto; Walter Baethgen; Leônidas Caminha; Walter Diehl; Appio Claudio de Lima Armando Omar Flores da Cunha; José Mariano Sylo subst..); Anísio Dariano; Juchem; Luiz Luisi; Guilherme subst.). Fonseca; Peres Antunes; 386 Balthazar Gama Barbosa; José Luiz Martins Costa; Ruy Rodrigo de Azambuja; Justino Vasconcelos; Leônidas Xausa; Walter Tschiedel; Manoel Gastal; Ilsa Brans; Júlio Teixeira; Ajadil de Lemos.