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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MARIA VISCONTI SALES “Não nos calaremos, somos a sua consciência pesada; a Rosa Branca não os deixará em paz” A Rosa Branca e sua resistência ao nazismo (1942-1943) Belo Horizonte 2017 MARIA VISCONTI SALES “Não nos calaremos, somos a sua consciência pesada; a Rosa Branca não os deixará em paz” A Rosa Branca e sua resistência ao nazismo (1942-1943) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre em História. Área de concentração: História e Culturas Políticas. Orientadora: Prof.a Dr.a Heloísa Maria Murgel Starling Co-orientador: Prof. Dr. Newton Bignotto de Souza (Departamento de FilosofiaUFMG) Belo Horizonte 2017 943.60522 V826n 2017 Visconti, Maria “Não nos calaremos, somos a sua consciência pesada; a Rosa Branca não os deixará em paz” [manuscrito] : a Rosa Branca e sua resistência ao nazismo (1942-1943) / Maria Visconti Sales. - 2017. 270 f. Orientadora: Heloísa Maria Murgel Starling. Coorientador: Newton Bignotto de Souza. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Inclui bibliografia 1.História – Teses. 2.Nazismo - Teses. 3.Totalitarismo – Teses. 4. Folhetos - Teses.5.Alemanha – História, 1933-1945 -Teses I. Starling, Heloísa Maria Murgel. II. Bignotto, Newton. III. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. IV .Título. AGRADECIMENTOS Onde você investe o seu amor, você investe a sua vida1 Estar plenamente em conformidade com a faculdade do juízo, de acordo com Hannah Arendt, significa ter a capacidade (e responsabilidade) de escolher, todos os dias, o outro que quero e suporto viver junto. É preciso uma análise constante das companhias que escolhemos para nós – a nossa própria e a de outros seres humanos. Estamos fadados a viver conosco mesmos, mas também vivemos entre homens, pois o mundo é plural. E nesse mundo plural, sou extremamente feliz pelos outros que escolhi viver junto. Sem eles essa dissertação não seria possível e não poderia deixar de agradecê-los aqui. Em primeiro lugar, agradeço a minha mãe, por sempre ser o meu exemplo e o meu porto seguro, por me ajudar de todas as formas possíveis e por virar o mundo de cabeça para baixo para me ver bem. Mãe, espero ser tão boa como você quando crescer. Ao Tiago, que esteve comigo em todos os passos desse processo, desde o comecinho do mestrado, e que permaneceu como o meu ponto de apoio todo esse tempo. Obrigada por trazer paz para a minha cabeça e segurar a minha mão nesse caminho. Obrigada por ser meu companheiro, por sair comigo para tomar sorvete quando a minha ansiedade não me deixava fazer nada, por me ouvir reclamar sempre das mesmas coisas, por estar ao meu lado em todas as milhares de crises de enxaqueca, por apoiar todas as minhas escolhas e por me ajudar a tirar o caos da minha cabeça e colocar na mesa de trabalho. Obrigada por me fazer tão feliz. Você é a minha casa. Preciso agradecer muito aos meus orientadores, Heloísa e Newton, por serem tão solícitos e, principalmente, pacientes com toda a minha insegurança, meus medos e a minha ansiedade constante. Heloísa, especialmente, obrigada por ver um potencial em mim que nem eu mesma via, obrigada por sempre dizer que eu ia longe. Mais ainda, obrigada por me mostrar que minha insegurança era visível na minha escrita e que eu precisava parar de ter medo de mim mesma. Vocês dois tornaram possível muito mais do que uma dissertação, mas sobretudo o crescimento da minha confiança em mim mesma. Ao Vinicius Liebel, que surgiu na minha vida como apenas um professor em um minicurso que eu fui na cara e na coragem na USP assistir, e que, ao longo desses dois anos se tornou um grande amigo, ouvinte e co-orientador. Obrigada por me acalmar, me ajudar e me 1 MUMFORD & SONS. “Awake my soul”, 2009. mostrar que “levar o trabalho a sério não significa sofrer pelo trabalho”. Obrigada por ler meus textos, por criticar, por fornecer leituras e diálogos que me ajudam tanto a crescer. Você sempre renova minha esperança nessa escolha profissional, na ideia de que as coisas se encaixam e que as pessoas certas se encontram para se ajudar. Sem o seu apoio e sua presença no background, eu não teria chegado até o fim – e você sabe bem disso. Agradeço ao Luiz Arnaut pelas leituras atentas e referências fundamentais. Ao Bruno Vinicius, que literalmente segurou a minha mão no último ano e fez questão de me ajudar sempre que eu pedi. Você foi um grande presente de 2016, dar uma disciplina e um minicurso com você abriu os meus horizontes e espero contar sempre com a sua amizade e companheirismo acadêmico-profissional. Obrigada pelas leituras, pela atenção e pelo cuidado que você tem comigo. Aqui também entra o Fernando Garcia, com quem dei um minicurso sobre Holocausto, uma das poucas pessoas que sempre me motivou a estudar o que eu estudo. Obrigada pelas inúmeras referências, por todos os livros, conversas e troca de experiências. Você sempre me ajuda muito e só um agradecimento aqui não faz jus a isso. Para Maíra Nascimento, Stella Gontijo, Daniela Chain, Marcela Coelho, Gabriel Bueno, Isabela Dornelas, Lidia Generoso, Camila Figueiredo: amigos de toda hora, meu muito obrigada. Agradeço especialmente e profundamente a Ana Murta e ao Átila Freitas, por me darem força quando eu precisei, me ouvirem, me aconselharem e aguentarem meus choros. Obrigada pela sessão de correções dessa dissertação, por tornarem essa tarefa menos desgastante e mais feliz. Átila, eu honestamente não sei o que seria de mim sem as conversas de horas que temos que me mostram sempre que os problemas são mais leves quando temos com quem compartilhá-los. Obrigada por emendar todos os furos do meu barco sempre. Mateus Frizzone e Rodrigo Paulinelli, eu amo vocês. Obrigada por me deixarem ter certeza de que vocês estão sempre perto de mim e por acompanharem todos os meus dramas e inseguranças. Obrigada pelo apoio, carinho e cuidado de sempre. Às minhas amigas do Estúdio Bowie, Carol e Renata, obrigada pelos dias de pole-terapia, por torcerem pelo meu sucesso e por aliviarem o estresse do meu dia a dia. Para minha amiga de mais de dez anos, Natália Balbino, um agradecimento não seria suficiente para expressar tudo o que você representa para mim. Obrigada por voltar para minha vida e por estar ao meu lado me ouvindo sempre que preciso. É um privilégio ter sua companhia por tantos anos. Agradeço muito a Carol e Juliana Avelin por serem as melhores amigas que eu poderia ter, por terem me acolhido em Belo Horizonte e por terem ficado ao meu lado durante todos esses anos. Às amigas de papos de cabelo que viraram papos sobre a vida: Julia Lery, Raquel Prado, Natália Almeida e Camila Coelho, obrigada pelo apoio constante e diário. Obrigada por serem um grupo seguro para falar sobre tudo, por serem minhas terapeutas e minhas doses diárias de afeto e de companheirismo. Não imagino mais minha vida sem vocês. Raquel merece um agradecimento especial não só pelas traduções dos documentos dessa dissertação, mas por ser tão parecida comigo e por me ouvir sempre: você é a melhor! Não poderia deixar de agradecer aos alunos das disciplinas e dos minicursos que eu ofertei durante o meu mestrado, na UFMG e fora dela. Quando comecei a disciplina sobre Hannah Arendt em 2015, eu estava no auge da minha insegurança. Vocês me mostraram que o que eu digo tem relevância e que o que eu faço é importante. Vocês construíram boa parte da minha autoconfiança e me deram certeza que a vida acadêmica era o que eu queria, e que mais ainda, que era algo que eu tinha capacidade de fazer. Que ser professora era a minha vocação. E foi por vocês que eu consegui dar mais três minicursos e uma disciplina em conjunto. Obrigada aos alunos que me ouviram falar em todas essas aulas e que tiveram interesse no que eu tinha a oferecer. Obrigada aos meus alunos do minicurso na PUC, que me receberam tão bem e me fizeram sair com o coração quentinho. E principalmente, muito obrigada às alunas que se tornaram amigas, ou amigas que viraram alunas: Luiza Dias, Ana Ianeles e Karina Rezende. Obrigada ao meu professor de história do ensino médio, Jonas Ribeiro, que despertou em mim o interesse pelo passado e incentivou a minha escolha quando ninguém na escola incentivava. Cursar história mudou a minha vida, e ser professora mudou ainda mais. Obrigada por me mostrar que eu podia ser o que eu quisesse. Obrigada aos membros conselho editorial da Revista Temporalidades-UFMG de 2015, por embarcarem em uma jornada tão importante para a minha formação. Obrigada a FAPEMIG e a CAPES por me concederem bolsa durante o mestrado e fornecerem o auxílio financeiro necessário. Agradeço também aos amigos Natália Ribeiro, Allysson Lima, Luisa Saldanha, Bárbara Sica, Ana Clara Ferraz, Isadora Morais, Clycia Gracioso. Um agradecimento especial a minha psicóloga Gabriela Paschoalini, a quem eu procurei no comecinho do mestrado e que tem sido minha grande amiga todo esse tempo. Você é responsável por grande parte do me crescimento pessoal e intelectual e pelo meu amadurecimento. Obrigada por me mostrar que eu não posso controlar tudo e que sentir não é uma fraqueza. Você sempre vai ser muito importante para mim! A vida acadêmica pode ser muito tortuosa e solitária e eu fico imensamente feliz de poder estar entre todos vocês. Achei que não sobreviveria ao mestrado, mas vocês me deram força para continuar nessa escolha. Sigamos juntos para o que virá no futuro, com a certeza de que o companheirismo e a amizade tornam tudo mais leve. “Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós – a um tempo em que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito: Da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento – saudações!” (George Orwell, 1984) RESUMO A Rosa Branca foi um grupo de resistência não violenta que surgiu em Munique, na Alemanha de Hitler, entre os anos de 1942 e 1943. Seus membros eram os estudantes da Universidade de Munique Hans e Sophie Scholl, Alexander Schmorell, Christoph Probst, Willi Graf e o professor universitário Kurt Huber. Eles distribuíram panfletos como forma de disseminar a resistência ao Nacional-Socialismo e todos foram executados pela Gestapo por crime de alta traição. A forma de atuação panfletária se deu em duas fases: a primeira, em 1942, denominada Panfletos da Rosa Branca, e a segunda, em 1943, chamada de Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha. Enquanto na primeira fase esses jovens pregavam uma resistência não violenta e baseada no princípio de sabotagem a todos os mecanismos do Partido Nazista, a segunda fase buscava uma resistência mais ativa e integrada com outros grupos resistentes na Alemanha. Há uma radicalização nas intenções de ação entre 1942 e 1943 e um dos objetivos dessa dissertação é precisamente de detalhar mais profundamente as nuances dessa mudança de pensamento. Portanto, o presente trabalho busca uma análise da resistência proposta pelo Rosa Branca em suas duas fases de atuação e os principais conceitos presentes em seus escritos: liberdade, resistência e culpa. Na reflexão acerca do Estado totalitário e das possibilidades de ação em sua vigência, bem como de resistência a ele, articulam-se as teorias de Hannah Arendt, Zygmunt Bauman e Tzvetan Todorov. Será lançado um olhar sobre a memória produzida no pós-guerra sobre a Rosa Branca para a compreensão da dinâmica de resistir em um governo totalitário. Além disso, o objetivo também é o de narrar uma história acerca da vida desses estudantes e do caminho percorrido rumo à resistência. PALAVRAS-CHAVE: Rosa Branca; Panfletos; Totalitarismo; Resistência. ABSTRACT The White Rose was a group of non-violent resistance that emerged in Munich, in Hitler’s Germany between 1942 and 1943. Its members were students from the University of Munich Hans and Sophie Scholl, Alexander Schmorell, Christoph Probst, Willi Graf and university professor Kurt Huber. They distributed leaflets as a way of spreading resistance to National-Socialism, and all were executed by the Gestapo for a crime of high treason. The pamphleteering took place in two phases: the first, in 1942, called White Rose Leaflets, and the second, in 1943, called the Leaflets of the Resistance Movement in Germany. While in the first phase these young men preached a non-violent resistance based on the principle of sabotage of all the mechanisms of the Nazi Party, the second phase sought a more active and integrated resistance with other resistant groups in Germany. There is a radicalization in the intentions of action between 1942 and 1943 and one of the objectives of this dissertation is precisely to detail more deeply the nuances of this change of thought. Therefore, the present work seeks an analysis of the resistance proposed by the White Rose in its two phases of performance and the main concepts present in its writings: freedom, resistance and guilt. The theories of Hannah Arendt, Zygmunt Bauman and Tzvetan Todorov are articulated in the reflection on the totalitarian state and the possibilities of action in its duration, as well as of resistance to it. The memory of the White Rose that was created after the war will be observed to understand the dynamics of resisting during a totalitarian government. In addition, the goal is also to tell a story about the lives of these students and the road to resistance. KEYWORDS: White Rose; Leaflets; Totalitarianism; Resistance. SUMÁRIO Introdução A responsabilidade de dizer sim para o mundo ..........................................................................1 Homens no deserto ..................................................................................................................... 2 O historiador como pescador de pérolas .................................................................................... 6 Por uma história compreensiva .................................................................................................. 9 A resistência como responsabilidade pelo mundo .................................................................... 16 Capítulo Um Um mundo onde tais coisas são possíveis ............................................................................... 24 Autores de milagres ................................................................................................................. 25 A ilha dos Scholl ...................................................................................................................... 28 Movimentos de juventude ........................................................................................................ 31 Windlicht .................................................................................................................................. 38 Quinta Columna ....................................................................................................................... 40 A vida sob a suástica ................................................................................................................ 47 Compreender o totalitarismo .................................................................................................... 54 As duas fases da resistência da Rosa Branca ............................................................................ 61 Capítulo Dois Panfletos da Rosa Branca ....................................................................................................... 69 Como o “sim” para o Nazismo se transformou em um claro “não” ......................................... 71 O começo da ação panfletária ................................................................................................... 78 Panfletos como atuação política ............................................................................................... 84 A responsabilidade essencial pelo Outro .................................................................................. 87 “Cada nação merece o governo que tolera” .............................................................................. 93 “Ninguém pode ser absolvido: cada indivíduo é culpado” ..................................................... 100 “O sentido e a finalidade da resistência passiva é derrubar o Nacional-Socialismo” ............. 108 “Não nos calaremos, somos a sua consciência pesada; a Rosa Branca não os deixará em paz!” .................................................................................. 116 Liberdade, culpa e resistência ................................................................................................ 122 Capítulo Três Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha ......................................................... 126 O ponto sem retorno ............................................................................................................... 127 “Decidam-se antes que seja tarde demais!” ............................................................................ 155 “Levanta, meu povo, já ardem as chamas!” ............................................................................ 159 “Todos os alemães serão sacrificados ao mensageiro do ódio e do desejo de extermínio” .... 173 Capítulo Quatro Não nos esquecer de lembrar ................................................................................................ 181 “Humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao falar disso” ................. 183 “Hoje vocês nos mandam para a forca, mas amanhã vocês é que serão os enforcados” ........ 187 “Seja forte – sem concessões” ................................................................................................ 195 “Vocês vão entrar para a História” ......................................................................................... 205 Sentenças do Tribunal do Povo .............................................................................................. 222 “Acho que vivemos com a convicção firme de termos feito a coisa certa. Eles que estavam errados” .................................................................................................................................. 232 “Corajosa e magnífica juventude! Vocês não terão morrido em vão, não serão esquecidos” ....................................................... 238 Conclusão O fardo de nossos tempos ...................................................................................................... 242 Referências bibliográficas Fontes ..................................................................................................................................... 248 Bibliografia ............................................................................................................................ 252 Introdução A responsabilidade de dizer sim para o mundo “Não sei como reagiria se um estranho batesse à minha porta e me pedisse para sacrificar a mim mesmo e a minha família para salvar a vida dele. Tal dilema me foi poupado. Tenho certeza, porém, de que se me recusasse a abrigá-lo, seria plenamente capaz de me justificar com os outros e comigo mesmo argumentando que, pelo número de vidas salvas e perdidas, despachar o estranho foi uma decisão inteiramente racional. Tenho certeza também, de que sentiria aquela vergonha irracional e ilógica mas por demais humana. E no entanto tenha certeza igualmente de que, não fosse por essa vergonha, a decisão de despedir o estranho iria, me corroer até o fim dos meus dias” “É a proverbial perplexidade dos historiadores, que repetidamente se queixam de, por mais que tentam, não conseguir entender o mais espetacular episódio deste século, cuja história eles escreveram com tanta competência e que continuam a escrever com cada vez mais detalhes” (Zygmunt Bauman. Modernidade e Holocausto) 1 “Eis o que é característico do herói: ele pode saber que seu ideal é irrealizável [...], mas, como o deseja mais do que tudo, investirá todas as suas forças para persegui-lo”1 Homens no deserto O totalitarismo sempre foi uma temática que me intrigou profundamente. Quando comecei a estudar com mais atenção o regime nazista, constantemente me questionava como aquilo havia sido possível. Como a Alemanha permitiu Hitler? Com o tempo, fui percebendo que a questão não era sobre a Alemanha e sua possível passividade. A verdadeira, e terrível pergunta, era: como o mundo permitiu Hitler? Tenho cada vez mais convicção que o totalitarismo é um tema que toca a todos nós enquanto seres humanos, e que, ainda hoje, mais de 70 anos depois, não cessou os seus ensinamentos e continua provocando muita angústia em quem se aventura a estudá-lo. As palavras do historiador Saul Friedländer constantemente ecoam em minhas reflexões: “décadas aumentaram nosso conhecimento dos eventos em si, mas não a nossa compreensão deles. Não possuímos hoje em dia nenhuma perspectiva mais clara, nenhuma compreensão mais profunda do que imediatamente após a guerra”.2 Se isso é de fato verdade (e acredito que seja), qual é a relevância de continuar falando sobre o assunto? O que podemos aprender de novo, hoje, sobre os horrores do totalitarismo? O que eu, como historiadora, quero buscar com tudo isso? Aprendemos que o historiador sempre tenta responder um questionamento interno quando se interessa por um tema, e que não existe história objetiva: temos motivos pessoais, políticos e sociais que nos levam a pesquisar o que pesquisamos. Por mais que pessoalmente não me veja fazendo outra coisa, eventualmente retorno a esse questionamento: o que eu estou tentando responder, internamente, individualmente, com tudo isso? O que a minha consciência busca com esse conhecimento? Creio que seja uma lição sobre o que eu mesma, enquanto membro da espécie humana, seria capaz de fazer em condições extremas. Uma lição sobre o mito “eles maus” e “nós bons”. Como lembra Primo Levi,3 existe uma tentação em virar o rosto ao falar sobre os campos de extermínio e os terríveis ensinamentos do século XX. Meu trabalho tem sido de evitar essa 1 TODOROV, Tzvetan. Em face ao extremo. Campinas, SP: Papirus, 1995, pp. 14-15. FRIEDLÄNDER, Saul, 1992 apud SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2003, p. 50. 3 LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 3ª edição, 2016. 2 2 tentação e justamente de tentar compreender tudo isso – mesmo sabendo que essa é uma tarefa infinita e em constante renovação. Tenho feito um esforço para não esquecer Kolyma e Auschwitz, porque, como destaca Todorov, preferimos esquecer “por medo de ver que o mal dos campos não é estranho à espécie humana; é esse medo também, que nos faz preferir as (raras) histórias em que o bem triunfa”.4 Aqui o leitor encontrará uma dessas “raras histórias em que o bem triunfa”, ainda que tragicamente. Em um caminho tortuoso e conflitante, muitas vezes angustiante, me propus a estudar um grupo de resistência ao nazismo. Tentei, por meio deste texto, apresentar um grupo de pessoas com ideais políticos complexos e que até hoje são extremamente romantizados pela literatura de maneira geral. E isso me serviu menos para mostrar que era possível dizer não, e mais para enxergar com maior clareza como era difícil fazer essa escolha. Cabe a nós resistir ao mal; no entanto, raras são as vezes em que temos a força necessária para tanto. Três autores me auxiliaram majoritariamente como aporte teórico durante todo o percurso, no ofício de tentar falar sobre o totalitarismo enquanto sua manifestação histórica no regime nazista, e enquanto categoria conceitual. A voz da filósofa Hannah Arendt ressoará ao leitor em todas as páginas deste texto. Foi através dela que me debrucei sobre esse tema tão difícil e doloroso, e é por meio dela que aprendo todos os dias que a nossa tarefa deveria ser a de tornar o mundo mais humano. Menos otimista que ela, mas que possivelmente concordaria com grande parte de suas proposições, está o sociólogo Zygmunt Bauman. Esse intelectual extremamente lúcido me apresentou um mundo que não está livre dos perigos de um novo totalitarismo. Foi a partir dele que abri os olhos para práticas cotidianas da sociedade moderna e para os desafios diários que podem nos guiar à prevalência do bem sobre o mal. Por fim, o filósofo e linguista Tzvetan Todorov, que foi, talvez, a união entre as leituras de Arendt e Bauman. Nem otimista e nem pessimista, e, por vezes, trazendo verdades extremamente duras, ele me fez entender o poder de nossas escolhas no mundo coletivo e de como o agir é imperativo. A aliança destes três autores é o pano de fundo de todo esse trabalho e espero ter feito jus, de alguma forma, a seus ensinamentos. O título desse primeiro momento da introdução, Homens no deserto, se refere a uma analogia feita por Hannah Arendt quando diz que o mundo é um deserto. Para ela, cabe aos homens5 mudar a sua história e o seu próprio destino. A liberdade se dá na ação e essa ação se 4 TODOROV. Em face ao extremo, p. 173. É importante esclarecer ao leitor que particularmente não gosto da utilização dos termos homem e homens para tratar da humanidade, já que são termos que intrinsecamente excluem as mulheres - e nesta dissertação há a 5 3 baseia no princípio de que a cada nascimento temos um novo início. O totalitarismo se choca com a pluralidade humana e com a imprevisibilidade própria dos acontecimentos. Sendo assim, para entender a política de nossos tempos, precisamos falar do totalitarismo, uma vez que ignorá-lo “é como nunca ter vivido no mundo que é o nosso mundo”.6 Arendt nos lembra que não devemos escapar do mundo em que vivemos, sequer temos que nos habituar a esse mundo. Temos que nos reconciliar com ele e tentar transformá-lo em um lugar mais humano e mais justo. Podemos fazer isso porque somos seres de ação, porque não perdemos nossa capacidade individual de agir: nascemos com o duplo dom da liberdade e da ação. O moderno crescimento da ausência-de-mundo, a destruição de tudo que há entre nós, pode ser também descrito como a expansão do deserto [...]. Em última análise, o mundo humano é sempre o produto do amor mundi do homem, um artifício humano cuja potencial imortalidade está sempre sujeita à mortalidade daqueles que o constroem e à natalidade daqueles que vêm viver nele [...]. E das condições específicas de nosso mundo contemporâneo, que nos ameaça não apenas com o nada, mas também com o ninguém, talvez surja a pergunta: por que existe alguém em vez de ninguém?7 O objetivo desta dissertação se insere em uma tentativa de resposta à pergunta de Hannah Arendt: “por que existe alguém em vez de ninguém?”. O mundo moderno do deserto é constantemente ameaçado pelo Ninguém, esse Ninguém que não tem responsabilidade, não tem culpa, não tem consciência e não tem arrependimento. Arendt tenta dar algum sentido às tempestades de areia do mundo contemporâneo. As tempestades de areia são os regimes totalitários, com toda sua opressão, terror e desumanidade. Se concebermos como Hannah Arendt que a política se baseia na pluralidade humana e na coexistência e associação de homens diferentes,8 podemos entender como foi possível a existência de homens de ação em meio ao deserto. Logo, me propus a estudar um grupo de homens de ação em meio à tempestade de areia totalitária, no deserto de nossos tempos. Durante o regime nazista de Adolf Hitler, a Rosa Branca, um grupo de Munique composto por cinco estudantes e um professor universitário expressou sua indignação por meio de panfletos. Foram produzidos seis panfletos no total, que pregavam inicialmente a resistência não violenta por meio da sabotagem aos mecanismos do Partido Nazista. Estes atores políticos presença constante e forte de uma resistente mulher. Portanto, em todos os momentos que utilizo os homens, é única e exclusivamente porque Hannah Arendt utiliza esses termos. O leitor perceberá que tais conceitos só aparecem no texto quando a teoria de Arendt está sendo colocada. Espero deixar claro ao longo da escrita minha percepção sobre a importância da participação feminina, e de como o mundo é habitado por seres humanos, e não por homens exclusivamente. 6 ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010, p. 163. 7 Idem, ibidem, pp. 266-269, grifos meus. 8 Idem, ibidem, pp. 144-145. 4 desejavam tirar Hitler do poder por meio de uma onda de revolta que se alastraria por toda a Alemanha e tal fim seria alcançado justamente através da circulação dessas ideias por meio de seus panfletos. Os irmãos Sophie (1921-1943) e Hans Scholl (1918-1943), Alexander Schmorell (1917-1943), Christoph Probst (1919-1943), Willi Graf (1918-1943) e o professor Kurt Huber (1893-1943) deram início às atividades da Rosa Branca em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial e, no ano seguinte, pagaram por isso com as próprias vidas. O objetivo principal dessa pesquisa é compreender este grupo, seus panfletos e os conceitos utilizados em seus escritos. Todos os membros da Rosa Branca foram encontrados pela Gestapo9 e executados por crime de alta traição, inclusive alguns dos membros das outras células que foram criadas em cidades vizinhas. Esse pequeno grupo e suas células em outras cidades deram a impressão à Gestapo de serem uma resistência muito mais organizada do que de fato eram. Muito foi dito sobre a Rosa Branca no pós-guerra, mas pouco esforço foi feito para tentar compreender a dinâmica desse grupo. Afinal, o que significa resistir ao Nacional-Socialismo? O que esses estudantes almejavam? Para quem seus panfletos se dirigiam? Quais eram seus objetivos? Qual foi a sua importância e qual foi a sua abrangência? Este trabalho pretende arriscar responder algumas dessas questões. A Rosa Branca é um grupo icônico na resistência alemã, sendo internacionalmente conhecido. Por esse motivo, quis examinar melhor a noção de heroísmo. Será que podemos considerá-los heróis? Encontrei, em Todorov, um conceito de heroísmo que está ligado à escolha e à ação humana. O herói, para ele, é o indivíduo que faz uma escolha onde todos os outros achavam que não seria possível escolher. Ele faz um gesto que sai do comum e “pensa que qualquer meta pode ser atingida, por menos que se seja dotado de uma vontade suficientemente forte”.10 Os heróis preferem agir, mesmo que essa ação esteja condenada ao fracasso desde o início, do que se deixarem levar pelas circunstâncias. Um ato de heroísmo pode ser visto como a existência de livre arbítrio e também de uma adequação entre a consciência interior e os atos para o mundo exterior. Essa visão de heroísmo se associa com a ideia de Hannah Arendt sobre a relação direta entre liberdade e ação. Os membros da Rosa Branca, com todas as ressalvas que serão apresentadas ao longo desta dissertação, se encaixam nesse contexto de heroísmo. Segundo Inge Scholl: 9 Abreviatura de Geheime Staatspolizei, Polícia Secreta do Estado. Foi criada a partir da Polícia Secreta Prussiana em 1933 e no ano seguinte assumiu o status de polícia política e assim permaneceu durante todo o regime nazista. 10 TODOROV. Em face ao extremo, p. 14. 5 Mas podemos chamá-los de heróis? Eles não fizeram nada de sobre-humano. Defenderam algo simples, lutaram por algo simples, pelos direitos, pela liberdade e pelo desenvolvimento livre do indivíduo: por uma vida livre. Eles não se sacrificaram por nenhuma ideia extraordinária, não perseguiram grandes objetivos; o que queriam era que pessoas como eu e você pudessem viver em um mundo humano. E talvez esteja aí sua grandeza: em terem lutado e arriscado suas vidas por algo tão simples, em terem tido forças para defender o direito mais básico com o sacrifício último.11 O heroísmo está ao lado da liberdade e da vontade e representa a coragem na esfera política, isto é, a capacidade de arriscar a vida para atingir um objetivo maior e ideal. O motivo pelo qual se morre e pelo qual se vive é a definição dessa coragem: se vivemos e morremos por ideais, somos heróis verdadeiramente. A morte está inscrita no destino dos heróis e eles agem mediante um imperativo moral. Isso significa, para Todorov, que a moral é onipresente no ser humano, e que os valores morais representam a vontade de continuar humano, e não de simplesmente continuar vivo. A importância da ação moral na esfera política é precisamente o desejo de manter a humanidade, e isso simboliza que a moral é uma dimensão da vida em conjunto. Como Hannah Arendt reiteraria, é melhor estar em desacordo com o mundo do que estar em desacordo consigo mesmo, e, portanto, agir moralmente implica em agir mantendo a sua humanidade. Um herói prefere morrer a fazer de tudo para sobreviver, porque sobreviver não tem relação com o mundo humano. O historiador como pescador de pérolas Como um pescador de pérolas que desce ao fundo do mar, não para escavá-lo e trazê-lo a luz, mas para extrair o rico e o estranho, as pérolas e o coral das profundezas do passado - mas não para ressuscitá-lo tal como era e contribuir para a renovação de eras extintas. O que guia esse pensar é a convicção de que, embora o vivo esteja sujeito à ruína do tempo, o processo de decadência é ao mesmo tempo um processo de cristalização, que nas profundezas do mar, onde afunda e se dissolve aquilo que outrora era vivo, algumas coisas ‘sofrem uma transformação marinha’ e sobrevivem em novas formas e contornos cristalizados que se mantêm imunes aos elementos, como se apenas esperassem o pescador de pérolas que um dia descerá até elas e as trará ao mundo dos vivos - como ‘fragmentos de pensamento’, como algo ‘rico e estranho’ e talvez mesmo como um perene Urphänomene.12 A metáfora dos vestígios do tempo, que Arendt toma emprestada de Walter Benjamin, lança luz sobre o trabalho do historiador com relação ao passado que ele busca compreender. 11 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 20. 12 ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 222. 6 A tarefa do historiador seria a de mergulhar nesse oceano em busca de pérolas, ou seja, em busca de algum conhecimento sobre o passado. Entretanto, ao retornar para a superfície (para o presente) com a pérola, o historiador descobre que ela está cheia de vestígios, de cascas: o passado sofreu uma “transformação marinha”. Ele não é mais o que foi. Por mais que se limpe a pérola, ela nunca mais será a mesma. Nunca apreendemos o passado tal como ele foi. Conseguimos, no nosso mergulho no oceano, descobrir vestígios desse passado e cabe a nós dar um significado às pérolas que pegamos, pois, se não dermos, elas permanecerão sem beleza e sem definição. A tentativa de narrar uma história representa precisamente o trabalho de limpar uma pérola e restituir a ela um valor e um sentido. O historiador, consciente de suas limitações quanto ao conhecimento do passado, busca compreendê-lo como um fragmento, rico e estranho para ele. Reinhart Koselleck também utiliza as analogias de mergulho ao passado para falar sobre o ofício do historiador: Quando o historiador mergulha no passado, ultrapassando suas próprias vivências e recordações, conduzido por perguntas, mas também por desejos, esperanças e inquietudes, ele se confronta primeiramente com vestígios, que se conservaram até hoje, e que em maior ou menor número chegaram até nós. Ao transformar esses vestígios em fontes que dão testemunho da história que deseja apreender, o historiador sempre se movimenta em dois planos. Ou ele analisa fatos que já foram anteriormente articulados na linguagem ou então, com ajuda de hipóteses e métodos, reconstrói fatos que ainda não chegaram a ser articulados, mas que ele revela a partir desses vestígios. No primeiro caso, os conceitos tradicionais da linguagem das fontes servem-lhe de acesso heurístico para compreender a realidade passada. No segundo, o historiador serve-se de conceitos formados e definidos posteriormente, isto é, de categorias científicas que são empregadas sem que sua existência nas fontes possa ser provada.13 As fontes utilizadas nesta pesca de pérolas serão, portanto, essencialmente os seis panfletos da Rosa Branca, divididos em Panfletos da Rosa Branca, onde foram produzidos quatro panfletos em junho de 1942, e Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha, com os dois últimos panfletos tendo sido produzidos entre janeiro e fevereiro de 1943. Sendo essas as fontes principais, utilizarei uma série de outras fontes encontradas ao longo da pesquisa para uma maior compreensão do grupo. São elas: o rascunho do sétimo panfleto escrito por Christoph Probst que nunca chegou a ser distribuído; o livro-testemunho de Inge Scholl e as suas considerações sobre os objetivos da Rosa Branca; as sentenças do julgamento dos membros; as cartas de Sophie e Hans Scholl; os testemunhos de sobreviventes; as reações de 13 KOSELLECK, Reinhard. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC Rio, 2006, p. 305. 7 apoio internacionais; o discurso de Kurt Huber ao Tribunal do Povo14 e os interrogatórios da Gestapo.15 Ademais, a Rosa Branca será analisada como um grupo complexo e suas ações não serão pensadas apenas circunscritas na prática panfletária. Essa questão é especialmente importante na segunda fase, quando Hans Scholl e Alex Schmorell picharam em várias ruas de Munique as frases “Hitler assassino em massa”; “Abaixo Hitler” e “Liberdade”. A Rosa Branca também se encontrou mais de uma vez com Falk Harnack, membro da resistência de esquerda e associado a grupos maiores de resistência em Berlim, para discutir estratégias mais diretas de ação. O primeiro capítulo dessa dissertação apresenta uma visão panorâmica do objeto de estudo. Farei uma análise do contexto político e social do Nacional-Socialismo, além de inserir os conceitos básicos que permearão toda o trabalho, principalmente o de resistência. Também será contada a história da Rosa Branca, de seus membros e de suas ações. O segundo e terceiro capítulos são destinados à análise das duas fases dos panfletos da Rosa Branca. Cada panfleto será analisado individualmente, seus escritos sendo contrastados por estudos contemporâneos e posteriores ao nazismo. Será feita uma análise da própria resistência, dos objetivos da Rosa Branca, da linguagem dos panfletos, de sua abrangência, métodos de distribuição, propostas e, principalmente, de seus conceitos-chave: resistência, culpa e liberdade. O quarto capítulo pretende contar os últimos passos e os momentos finais destes resistentes. Ao aliar o maior número possível de fontes encontradas, tentei narrar uma história e dar voz a indivíduos que foram fundamentais para a resistência da Rosa Branca, mas que raramente são mencionados. O marco temporal deste trabalho são os anos de 1942 e 1943, anos em que os panfletos foram distribuídos. Entretanto, ao falar da história do grupo, o intervalo entre os anos de 19331941 também aparece. Ademais, por usar principalmente o livro de Inge Scholl, cuja primeira publicação se deu no começo dos anos 1950,16 será necessário abordar um pouco sobre o momento histórico dessa época. O aparato conceitual que liga à linha tempo são os conceitos de Modernidade e de totalitarismo. 14 Todas as fontes estão listadas nas referências bibliográficas. Os processos e interrogatórios da Gestapo são uma tradução para o inglês dos documentos originais em alemão. Nesta dissertação escolhi traduzir todos os trechos para o português, mantendo os fragmentos em inglês nas notas de rodapé. No entanto, julgo ser necessário frisar que, sem dúvida, parte do sentido original dos documentos se perdeu, visto que a tradução para o português é uma “tradução da tradução”. Precisamente por esse motivo, preservei os trechos em inglês, para sanar eventuais dúvidas de conteúdo que o leitor possa ter. 16 A primeira edição original em alemão foi intitulada Die Weisse Rose e publicada em 1952. A primeira edição em inglês, denominada Students Against Tiranny, foi publicada em 1970, e a segunda, em 1983. Utilizarei, como dito anteriormente, a primeira edição em português de 2013. 15 8 Por uma história compreensiva Reinhart Koselleck apresenta as noções de espaço de experiência e horizonte de expectativa como categorias para explicar a temporalidade da história. Entende a experiência como “o passado atual” e a expectativa como “futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto”. A experiência aparece como um olho mágico de uma máquina de lavar, “atrás do qual de vez em quando aparece esta ou aquela peça colorida de toda a roupa que está contida na cuba”.17 O tempo histórico se dá, então, entre a tensão desses dois conceitos. Para Koselleck, a Modernidade18 é concebida como um novo tempo histórico, uma vez que “as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então”.19 A humanidade, em função da marcha para o progresso tentava superar experiências que não podiam ser relacionadas a experiências anteriores e formulava expectativas que antes não existiam: “quanto menor o conteúdo de experiência, tanto maior a expectativa que se extrai dele. Quanto menor a experiência, tanto maior a expectativa – eis uma fórmula para a estrutura temporal da Modernidade, conceitualizada pelo ‘progresso’”.20 A Modernidade pós Auschwitz se mostra, para François Hartog, como uma experiência de tempo desorientada, com um passado que ainda não havia passado e um futuro totalmente incerto. Essa instabilidade se dá principalmente por que após o Holocausto21 não se podia mais falar que a sociedade ocidental marchava em direção ao progresso – na realidade, nem se podia mais falar de progresso da humanidade. Auschwitz mostrou que o homem não sabia lidar com 17 KOSELLECK. Futuro passado, pp. 309, 310, 311. Esse regime de historicidade da Modernidade é compreendido dentro da brecha (gap) temporal que tem início em 1789, com a Revolução Francesa, e que, para alguns autores termina com a queda do muro de Berlim em 1989. Ver mais em: HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. 19 KOSELLECK. Futuro passado, p. 314. 20 Idem, ibidem, p. 326. 21 O conceito Holocausto aparece como uma particularidade do genocídio nazista, para que ele não tenha o mesmo significado dos outros genocídios da história da humanidade. A palavra vem do grego e faz referência a algo queimado sendo oferecido aos deuses como sacrifício, e se popularizou após 1970 como a forma de denominar o massacre dos judeus pela Alemanha nazista, uma referência aos crematórios dos campos de extermínio. Alguns autores, como Giorgio Agamben, se recusam a usar o termo Holocausto para denominar o extermínio dos judeus, por não aceitarem a equiparação bíblica com o que aconteceu em Auschwitz, preferindo a utilização da palavra hebraica Shoah, que quer dizer calamidade. A insistência do conceito Holocausto nesse texto diz respeito a sua utilização por Zygmunt Bauman em sua proposta de tratá-lo como um fenômeno moderno, e pelo embasamento da extensa produção que consolida o Holocausto como um conceito aplicável. Como aponta Dominick LaCapra, mais importante do que a fixação por um termo ou outro, é a compreensão do caráter indizível do acontecimento dos campos de extermínio e a limitação de qualquer termo para a explicação do que aconteceu em Auschwitz. Para mais sobre a terminologia, ver: AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008; LACAPRA, Dominick. Representing the Holocaust: history, theory, trauma. Cornell University Press, 1994; DANZIGER, Leila. Shoah ou Holocausto: a aporia dos nomes. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, out. 2007. ISSN: 1982-3053. 18 9 a alteridade e, principalmente, mostrou que a morte não era a pior coisa que um homem poderia causar a outro homem. Sendo assim, podemos perceber uma crise na forma de lidar com as experiências e expectativas pós 1945. Não cabe aqui analisar se saímos do regime de historicidade moderno ou se estamos em uma pós-Modernidade, com um excesso de presentismo. No entanto, é relevante o questionamento: qual a importância de estudar o regime nazista, se tanto já se foi dito sobre ele? O que poderíamos acrescentar? Koselleck nos lembra que “aprendemos com o tempo, reunimos novas experiências. Portanto, também as experiências já adquiridas podem modificarse com o tempo. Os acontecimentos de 1933 aconteceram de uma vez por todas, mas as experiências baseadas neles podem mudar com o correr do tempo”.22 Todorov também alerta que a experiência do totalitarismo não se apagou com o tempo e que estudar o totalitarismo é fundamental para tirar lições para o nosso tempo contemporâneo. Para ele, “o totalitarismo ainda não morreu em todo lugar” e “os fatos não são transparentes. Para nos ensinar alguma coisa, precisam ser interpretados”.23 Pensando na Modernidade como o tempo histórico principal dessa dissertação e a definição de tempo histórico como a tensão entre espaço de experiência e horizonte de expectativa, é fundamental abarcar também o fazer histórico nesse tempo. O objetivo deste trabalho se insere em uma tentativa de articular os usos da história no presente, seguindo principalmente a linha de Pierre Rosanvallon de uma história filosófica do político.24 O historiador, para Rosanvallon, tem um compromisso político para com o seu tema, e nesse sentido, escrever historiografia é intervir no presente, retomando de certa forma à combatida e criticada “história magistra vitae”. Inserir o totalitarismo na Modernidade e estudá-lo como um evento que ainda não findou seus ensinamentos é uma atividade da história filosófica do político, buscando as permanências e as continuidades, para compreender como chegamos até aqui. Como Rosanvallon explica, “a história filosófica do político representa uma tentativa de dar um novo significado ao projeto de Fernand Braudel de uma história total”,25 no sentido de ser uma história preocupada com os processos, com a longa duração dos acontecimentos, não tanto com as mudanças, mas sim com as continuidades. Em uma espécie de ampliação e 22 KOSELLECK. Futuro passado, pp. 312-313. TODOROV. Em face ao extremo. p. 37. 24 ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010. 25 Idem, ibidem, p. 47. 23 10 renovação da escola dos Annales, a história filosófica do político busca ser compreensiva e interativa, entendendo os eventos no seu movimento. O mais importante desta empreitada, é o constante diálogo entre história e filosofia e o exame do passado para lançar luz sob o presente, já que “entender o passado e investigar o presente fazem parte de um mesmo processo intelectual”.26 Segundo Rosanvallon: O propósito desse empreendimento é romper com a divisão entre história política e filosofia política, de modo a alcançar um ponto de convergência entre ambas. As razões dessa ambição se radicam no pressuposto importante de que a história deve ser considerada um material de filosofia política e um objeto sobre o qual ela reflete. Hannah Arendt vai nessa direção em Entre o passado e futuro, ela observa que: ‘o próprio pensamento emerge de incidentes da experiência viva e a eles deve continuar vinculado, na medida em que são os únicos guias de quem é possível obter orientação’. Aqui emerge uma das principais marcas da filosofia política: ela pode ser caracterizada primariamente por sua relação necessária, intransponível e sempre problemática com as experiências e opiniões presentes em um dado momento na política real de uma comunidade em geral.27 O historiador do político, para Rosanvallon, vincula o seu processo acadêmico com a sua função cívica: ambas se tornam parte integrante de uma mesma experiência. Assim, conhecer o passado se converte em uma ação política, e a história filosófica do político se torna não só uma proposta metodológica, mas também uma ação em congruência com o político em si. O político é entendido por ele como tudo que envolve a vida em comum e que não tem a ver com a prática política; o político vai além das instituições, das ações do governo e do exercício de poder. Compreender o totalitarismo é compreender o mundo em que ainda vivemos e é entender as escolhas pessoais e a relação dessas escolhas com o mundo plural. O totalitarismo é um regime possível, porém não é um regime necessário: talvez essa seja a lição fundamental ao estudar a resistência. E, como argumenta Hannah Arendt, a compreensão é uma tarefa aliada ao pensamento e que nunca tem fim. Portanto, a escolha é precisamente a da produção de uma história compreensiva, uma história que não termina porque está sujeita aos movimentos da vida e do próprio presente, da sociedade que se modifica e revive suas experiências. A história filosófica do político aparece também como uma proposta que se encaixa no tema dessa dissertação pela sua profunda interdisciplinaridade. Aqui, nos ateremos significativamente às análises de uma filósofa e de um sociólogo para o entendimento do fenômeno do totalitarismo. Do ponto de vista da apreensão do político, a história só tem a 26 27 ROSANVALLON. Por uma história do político, p. 54. Idem, ibidem, p. 51. 11 ganhar com essa aliança interdisciplinar – e foi como historiadora do político que eu pude perceber que esta união não só era possível, como determinante. Pensando precisamente na proposta de que o totalitarismo não cessou seus ensinamentos para nós e de que precisamos refletir sobre as continuidades, me deparei com o livro Modernidade e Holocausto de Zygmunt Bauman. Nele, o autor apresenta a ideia de que o Holocausto não está tão longe de nós e de que não pode ser visto como “um quadro na parede”, tão diferente do resto da mobília. Entendo que toda a sua análise serve também para o próprio fenômeno do totalitarismo: o perigo ainda existe e ainda corremos o risco de cometer os mesmos erros. Além de um evento traumático, o Holocausto foi de difícil compreensão em termos tradicionais, pois abalou as estruturas do pensamento e da moralidade humana - abalou até a própria ideia de humanidade. O evento, segundo Bauman, era visto como um desvio no curso da história: como algo inédito, quase patológico, que deveria ser estudado como um câncer em meio a uma sociedade civilizada e que nunca mais voltaria a acontecer. Esse evento também foi tratado apenas como um fenômeno da história judaica, sendo abordado quase que exclusivamente em datas comemorativas. O Holocausto era visto como uma tragédia dos judeus, não uma tragédia da humanidade, e, embora não se discuta que foi realmente uma tragédia dos judeus, Bauman argumenta que: Mesmo assim, o Holocausto não foi simplesmente um problema judeu nem fato da história judaica apenas. O Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é um problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura. A autocura da memória histórica que se processa na consciência da sociedade moderna é por isso mais do que uma indiferença ofensiva às vítimas do genocídio. É também um sinal de perigosa cegueira, potencialmente suicida.28 A proposta do sociólogo é a de inserir o Holocausto, enquanto fenômeno embasado em uma política racial, no contexto da sociedade moderna, trabalhando com as ideias de burocracia, organização, eficiência e obediência. Para ele, como para Hannah Arendt, não compreendemos o Holocausto e justamente por não o compreendermos, não apreendemos suas lições e não estaremos atentos aos sinais de alerta caso algo similar venha a acontecer novamente. Bauman entende que todos os elementos que tornaram possível o fenômeno do nazismo e o Holocausto 28 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 12, grifos meus. 12 ainda estão presentes em nossa sociedade e que, portanto, a possibilidade de um outro Holocausto ainda está no horizonte. O sociólogo afirma que o Holocausto foi tanto um produto, quanto um fracasso da civilização moderna e que a Modernidade teve um papel ativo na produção desse genocídio. Um produto, devido aos elementos da Modernidade que o tornaram possível (e que, segundo ele, só foi possível da forma como se deu devido a esses elementos); e um fracasso, pois foi contra a ideia de que o homem marchava em direção ao progresso e solapou os ideais de liberdade e igualdade defendidos desde a Revolução Francesa. Bauman apresenta uma análise do genocídio tipicamente moderno, que seria um genocídio com propósito, com um objetivo. O que seria, então, a singularidade e a normalidade do Holocausto? Singular porque não é equivalente a nenhum outro genocídio da história da humanidade, por ser um genocídio moderno, por se ligar à burocracia, à ordem, à obediência, à responsabilidade flutuante: um genocídio sistemático, organizado, mecânico. Como não recordar o caso do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, onde ele dizia repetidamente que estava “apenas cumprindo ordens”, que “pessoalmente não tinha nada contra os judeus” e que esse “era apenas seu trabalho”?29 Ao mesmo tempo, sua normalidade está no fato de que o Holocausto aconteceu devido a fatores ordinários da vida moderna, aos quais geralmente não se presta muita atenção: “neste segundo sentido de sua singularidade, só a combinação de fatores é rara e incomum, mas não os fatores combinados. Separadamente, cada fator é normal”.30 O sobrevivente de Auschwitz Primo Levi reitera que esses fatores não são numerosos e que individualmente cada fator é insuficiente, mas, em conjunto, cada um é indispensável31. Bauman apresenta o genocídio moderno como a visão de um jardineiro que precisa eliminar as ervas daninhas para manter o jardim sempre bonito: Alguns jardineiros odeiam as ervas daninhas que estragam seus projetos – uma feiura no meio da beleza, desordem na serena ordenação. Outros não são nada emocionais: trata-se apenas de um problema a ser resolvido, uma tarefa a mais. O que não faz diferença para as ervas: ambos os jardineiros as exterminam. Se indagados e com tempo para refletir, os dois concordariam que as ervas devem morrer não tanto pelo que são, mas pelo que deve ser o belo e organizado jardim. A cultura moderna é um canteiro de jardim. Define-se como um projeto de vida ideal e um arranjo perfeito das condições humanas. [...] O genocídio moderno, como a cultura moderna em geral, é um trabalho 29 É neste sentido que Hannah Arendt propõe o conceito de banalidade do mal; um mal que não tem raízes, baseado na ausência de pensamento e, portanto, na ausência de culpa e responsabilidade. Ver em: ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 30 BAUMAN. Modernidade e Holocausto, p. 118. 31 LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. 13 de jardineiro. [...] Se o projeto de um jardim define o que é erva daninha, há ervas daninhas em todo jardim. E ervas daninhas devem ser exterminadas. Eliminá-las não é uma tarefa destrutiva, mas criativa. Que não difere em essência de outras atividades que se somam para a construção e manutenção de um perfeito jardim. Todas as visões da sociedade como um jardim definem parte da população como ervas daninhas. Que, como quaisquer ervas daninhas, devem ser segregadas, contidas, impedidas de proliferar, removidas e mantidas fora dos limites da sociedade; se todos esses meios se revelarem insuficientes, elas devem ser mortas.32 A visão do jardineiro toca em uma ferida ainda aberta da sociedade moderna. Em 1933, as ervas daninhas eram os judeus, que atrapalhavam a formação de um jardim ariano perfeito. Entretanto, nos dias atuais essa visão não foi extinta. As ervas daninhas da atualidade são árabes, muçulmanos, refugiados, imigrantes, negros, LGBTs, mulheres, deficientes físicos, judeus, entre outros. São pessoas que ferem o que a sociedade moderna entende como uma estrutura bonita e sadia e, para que essa definição de ervas daninhas se torne um processo de extermínio, não é preciso muito. É necessário apenas que haja uma aliança entre a ideologia (um novo projeto de sociedade) e a burocracia. Isso, até o presente momento, só aconteceu uma vez, na Alemanha nazista. Para impedir que ocorra de novo, fundamentalmente, só há uma esperança: o próprio ser humano. Bauman alerta, então, para a relevância de estudar, lembrar e falar sobre o Holocausto, tarefas fundamentais para colocarmos em cheque a nossa ideia de sociedade moderna e pacífica. Segundo ele: O que é insustentável é o conceito da nossa história – europeia – como ascensão da humanidade sobre o animal que há no homem e como triunfo da organização racional sobre a crueldade da vida, que é estúpida, breve e brutal. O que também é insustentável é a concepção da sociedade moderna como força moralizante inequívoca, de suas instituições como poderes civilizadores, de seus controles coercitivos como barragem que defende a frágil humanidade das torrentes das paixões animalescas.33 Compreender o totalitarismo e as questões cruéis que ele suscita é um esforço necessário para nos desvinculararmos da ideia de que o Holocausto é “como um quadro na parede: bem emoldurado para fazer a separação entre a pintura e o papel de parede e ressaltar como diferia do resto da mobília”.34 É preciso fugir da concepção de que aquilo aconteceu lá, longe de nós, e que foi um fenômeno tão distinto de toda a história da humanidade que não deveríamos nos preocupar, afinal, hoje estaríamos seguros, já que nada daquilo poderia nos acometer 32 BAUMAN. Modernidade e Holocausto, pp. 115, 116, grifos meus. Idem, ibidem, p. 242. 34 Idem, ibidem, p. 9. 33 14 novamente. O esforço de Zygmunt Bauman se dá para mostrar que não estamos de fato seguros e que o Holocausto está, na realidade, muito próximo de nós: Sugiro de fato, no entanto, que as regras da racionalidade instrumental são singularmente incapazes de evitar tais fenômenos; que não há nada nessas regras que desqualifique como impróprios os métodos de ‘planejamento social’ usados no Holocausto ou, mesmo, como irracionais as ações a que serviram. Sugiro, ademais, que a cultura burocrática que nos capacita a ver a sociedade como objeto de administração, como uma coleção de tantos ‘problemas’ a resolver, como ‘natureza’ a ser controlada, ‘dominada’ e ‘melhorada’ ou ‘refeita’, como um alvo legítimo para o ‘planejamento social’ e no geral como um jardim a ser projetado e mantido à força na forma planejada (a atitude do jardineiro divide as plantas entre aquelas ‘cultivadas’, de que se deve cuidar, e as ervas daninhas a serem exterminadas) foi a própria atmosfera em que a ideia do Holocausto pôde ser concebida, desenvolvida lentamente mas de forma consistente e levada à conclusão.35 Não podemos virar as costas para esse trauma e simplesmente acreditar que tal passado já passou: eis a relevância em falar sobre totalitarismo e Holocausto em 2017 no Brasil. Precisamos falar sobre o totalitarismo porque ele representa o mundo em que ainda vivemos, porque é algo que toca a todos nós, enquanto seres humanos. Todorov tenta mostrar que o totalitarismo é único, principalmente no que diz respeito à experiência singular; no entanto, “para que a coletividade possa dela tirar proveito, é preciso reconhecer o que essa experiência tem de comum com outras”.36 Ou seja, aprender com esse passado significa, principalmente, lançar luz ao presente e examinar a sociedade em que vivemos, já que, “uma das lições desse passado recente é exatamente a de que não há ruptura entre os extremos e o centro, mas uma série de transições imperceptíveis”.37 Ainda corremos o risco de passar por essas transições sem percebê-las, e precisamos estar atentos aos sinais de alerta. Devemos lembrar, no entanto, que o futuro não está determinado e que o fato de vivermos em um mundo com os mesmos elementos que tornaram possível o totalitarismo não significa que estejamos necessariamente fadados a vivenciar outro Holocausto. Como Bauman e Hannah Arendt afirmam, tudo isso se choca com a pluralidade humana. Para Arendt, os processos históricos são constantemente interrompidos pela ação humana e os desastres não acontecem automaticamente e nem são determinados. De maneira semelhante, para Bauman, uma das lições do Holocausto é uma lição de esperança. Ele lembra que tudo recai, basicamente, sobre uma escolha: 35 BAUMAN. Modernidade e Holocausto, p. 37, grifos meus. TODOROV. Em face ao extremo, p. 320. 37 Idem, ibidem, p. 281. 36 15 Colocar a autopreservação acima do dever moral não é algo de modo nenhum predeterminado, inevitável ou inelutável. Podemos ser pressionados a fazêlo, mas não somos forçados a isso, de maneira que não se pode de fato jogar a responsabilidade da ação nos que pressionaram para tal. Não importa quantas pessoas optaram pelo dever moral acima da racionalidade da autopreservação – o que realmente importa é que alguns fizeram essa opção. O mal não é todo-poderoso. Pode-se resistir a ele. O testemunho dos poucos que resistiram desmantela a autoridade lógica da autopreservação – ele revela afinal do que se trata: de uma escolha.38 Eric Hobsbawm ressalta que o futuro histórico nunca está determinado e que a experiência histórica ensinou aos historiadores “que ninguém jamais parece aprender com ela. No entanto, temos que continuar tentando”.39 Logo, procurei com este trabalho continuar tentando aprender com a experiência histórica do totalitarismo. Procurei inserir o nazismo no campo de possibilidades da sociedade e política modernas e busquei, sobretudo, abarcar a resistência dentro do campo das alternativas, do fazer histórico e da própria condição humana – mesmo a condição humana sob dominação total. A resistência como responsabilidade pelo mundo Em toda sua obra, Hannah Arendt demonstra a contradição inerente a amar um mundo em que o nazismo existiu como uma possibilidade tangível. O totalitarismo foi o fruto de um mundo que deve sua própria existência aos homens e diz respeito aos homens precisamente por ser um evento mundano. Sendo assim, ela dedicou sua vida a estudar esse mundo, sobretudo o mundo comum, os homens, e não o homem. Com isso, ela entende que a história é resultado de ações, do fazer desses homens no mundo conjunto e plural e, ainda, que a história é uma sequência de eventos e não de ideias. O totalitarismo representou uma quebra na história, uma ruptura, e foi um evento marcante nos tempos modernos. Por ser fruto da ação humana, o fim do totalitarismo depende do próprio homem, já que não são as ideias que mudam o mundo e sim os eventos históricos e políticos. Cabe neste momento a apresentação de alguns conceitos de Arendt que permeiam – nem sempre explicitamente – toda a dissertação: os conceitos de responsabilidade, juízo, julgamento, pensamento, heroísmo e amor mundi. Afinal, as atividades do juízo e do julgamento são fundamentais para a compreensão de uma ação resistente e, sobretudo, de uma 38 39 BAUMAN. Modernidade e Holocausto., p. 236, grifo meu. HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 59. 16 ação heroica corajosa, tendo em vista a importância que a autora atribui à coragem na esfera pública. Bethânia Assy, ao trabalhar a ética na responsabilidade, entende que para Hannah Arendt, existem três níveis de responsabilidade: a responsabilidade de escolher a si mesmo (uma característica do pensamento), a responsabilidade de julgar e eleger exemplos (atributo do juízo) e a responsabilidade para com a durabilidade do mundo por meio de um agir consciente (que se encontra no conceito de amor mundi). O ponto de partida para a compreensão das atividades do pensamento e de julgamento é o questionamento: “com quem desejo ou suportaria viver junto?”, já que “nós só agimos e falamos em pluralidade, também pensamos, queremos e julgamos na companhia dos outros”.40 Tal indagação demonstra a profunda relação entre a atividade do pensamento e a atividade do julgamento. Enquanto esse questionamento atua no âmbito particular com a atividade do pensamento, quando mobilizado na atividade do juízo, torna-se um problema político. Isso significa que o julgamento não é resultado direto do pensar, porém, o pensar libera espaço para o julgamento aparecer, já que o exame de opiniões, que é a base do pensamento reflexivo, cria espaço mental para o juízo imparcial. Apesar de serem relacionados, pensar e julgar são atividades distintas. Apenas pensar não nos torna capazes de acessar o mundo fenomênico de forma particular e concreta, ou seja, pensar não implica em agir de acordo com o juízo. Isso se dá porque o pensar é uma atividade que não leva à ação, como Arendt nos lembra, “não nos diz o que fazer, mas quando parar”. Não existem soluções definitivas na atividade do pensar, os problemas sempre se renovam e pensar sempre é repensar, uma atividade que nunca tem fim, nem mesmo com a cognição, não sendo, portanto, uma atividade contemplativa. A ação surge do julgamento: a atividade de julgar é, por assim dizer, o último momento antes do agir. Pensamos, refletimos e após o julgamento final, agimos, visto que a passagem para o mundo público só acontece com o julgamento. Dessa ação, podemos tirar algumas conclusões: a ideia de que minha ação está de acordo com as minhas convicções e consigo conviver com ela; a ideia de que a ação que efetuarei é também a ação que eu espero que os outros efetuem, como um imperativo categórico; e, por fim, a concepção de que a minha ação é pública e, portanto, se encontra no mundo das aparências, no olhar de julgamento dos outros e assim, delimitará os que desejam conviver comigo. Segundo Bethânia Assy: Alguém que exercita a capacidade crítica de pensar está na companhia de si próprio e, portanto, continuamente provocado a escolher dentre outros selves 40 ASSY, Bethânia. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 147. 17 com os quais conviver. No plano da faculdade de julgar, a dimensão da partilha é muito mais fenomênica: dá-se por meio da escolha de com quem desejamos partilhar a vida e na forma como emitimos nossos juízos.41 O pensar, sendo uma atividade do dois-em-um, isto é, do meu relacionamento entre eu e eu mesma, se dá no particular, ao passo que o juízo se dá no espaço-entre, ou seja, no domínio público das relações humanas, atingindo caráter político. O juízo arendtiano, nesse sentido, é a capacidade de assumir o ponto de vista do outro, na qual existem duas figuras: o ator e o espectador. O juízo reflexivo necessita do caráter coletivo de humanidade justamente porque o espectador precisa pensar no lugar de todos os outros - o que Kant chama de mentalidade alargada. Ainda neste sentido, o juízo reflexivo também precisa de outro critério, chamado de validade exemplar. A validade exemplar está atrelada às nossas experiências e nossas escolhas e se baseia na seleção das companhias do nosso juízo. A faculdade de julgar somada à responsabilidade pessoal, resulta na responsabilidade de julgar. Essa responsabilidade de julgar tem relação com o outro com quem queremos dividir a vida e essa companhia é escolhida quando pensamos em exemplos, de pessoas mortas ou vivas, reais ou fictícias, do passado ou do presente. Segundo Hannah Arendt, os exemplos servem para guiar os nossos julgamentos e quem escolhe um mau exemplo é uma pessoa que se deve evitar. Um dos maiores perigos dos tempos modernos, que desencadeia na banalidade do mal, é a recusa ou incapacidade de escolher os seus exemplos e a sua companhia, e, também, a recusa ou incapacidade de estabelecer uma relação com os outros pelo julgamento. Na faculdade de julgar, em última instância, se distingue o que é certo e o que é errado, e, ao nos colocarmos no lugar do outro, saímos do campo da subjetividade, já que não consideramos apenas nós mesmos quando julgamos. Portanto, quando a Rosa Branca age como um grupo na cena pública tentando interferir na sua realidade política, isso significa precisamente a aliança da faculdade de julgar à responsabilidade pessoal. Afinal, sua ação política surgiu precisamente do julgamento, das companhias que escolheram para viver e do desejo de sua ação poder se tornar um exemplo para todos os outros. Podemos, então, classificá-los como heróis? A capacidade de juízo somada à escolha da companhia para guiar nossas ações, ou seja, exemplos, resulta na validade exemplar. Com a validade exemplar, que é um critério para o juízo reflexivo, entendemos que é possível ensinar mediante um exemplo e que, além disso, também é possível dar um exemplo e persuadir outras pessoas a agirem. O exemplo tem a capacidade de inspirar, de modo que, como aponta Arendt, “sempre que tentamos realizar um 41 ASSY, Bethânia. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. 146. 18 ato de coragem ou de bondade, é como se imitássemos alguma outra pessoa”.42 E o juízo tem capacidade exemplar, quando o próprio exemplo é escolhido corretamente. É nesse momento que surge a figura do herói. Arendt ilustra através do herói a figura emblemática do ator singular que realiza uma ação original e que resulta em uma 'diferença de qualidade', de modo a trazer uma nova imagem para o mundo que, por sua vez, cria um novo exemplo para ações futuras. Arendt concebe o herói como uma figura originária que o distingue por suas ações, que cria uma ligação dentro de uma comunidade territorial, assegura um espaço cívico. O que está em jogo na distintividade do herói é a originalidade de determinadas ações que diretamente influenciam na construção da exemplaridade pública. [...] A apreciação da vida em comunidade está entre as principais razões do heroísmo. [...] O herói figuraria a singularidade que incorporaria a realização de uma generalidade.43 Hannah Arendt define o herói como a personificação emblemática da ação. O herói age de forma original e traz uma nova imagem para o mundo, tornando-se assim, um exemplo para ações futuras. Ele é original e singular porque é excepcional em suas ações: realiza ações características que asseguram um espaço cívico e que constroem uma exemplaridade. Isto é, o herói é singular porque sua ação é singular mediante a dos outros, mas realiza uma generalidade, porque age em favor da comunidade. No entanto, o herói não é uma pessoa diferente das outras, pelo contrário: Arendt sublinha que cada um de nós é capaz de agir de forma heroica porque todos nós somos singulares enquanto sujeitos, enquanto indivíduos. Nossa singularidade é demonstrada quando afirmamos quem somos no agir na companhia dos outros. Sendo singulares, todos podemos agir com nobreza na cena pública, assegurando o comum. Como Arendt lembra, todos os homens são capazes de milagres, são os homens que os realizam, e é por isso que toda a humanidade pode esperar por milagres. O herói é quem opera o milagre na construção de um exemplo, no momento em que age assegurando o espaço cívico e livre. Ela explica que “o processo histórico nasceu de iniciativas humanas e é constantemente interrompido por novas iniciativas” e que todo nascimento é um novo começo. A liberdade do homem e sua a capacidade de agir e começar tem a ver com o fato de que o homem nasce “em um mundo que já existia antes dele e seguirá existindo depois”. Sendo assim, “se o significado da política é a liberdade, isso quer dizer que nessa esfera e em nenhuma outra – nós temos efetivamente o direito de esperar milagres”.44 A história, em contraposição com a natureza, é repleta de eventos; aqui, o milagre do acidente e da infinita improbabilidade ocorre com tanta frequência 42 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 307. ASSY, Bethânia. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, pp. 188-189. 44 ARENDT, Hannah. A promessa da política, pp. 166-168. 43 19 que parece estranho até mesmo falar de milagres. Mas o motivo dessa frequência está simplesmente no fato de que os processos históricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pelo inituim que é o homem enquanto ser que age. Não é, pois, nem um pouco supersticioso, e até mesmo um aviso de realismo, procurar pelo imprevisível e pelo impredizível, estar preparado para quando vierem e esperar ‘milagres’ na dimensão da política. E, com quanto mais força penderem os pratos na balança em favor do desastre, mais miraculoso parecerá o ato que resulta na liberdade, pois é o desastre e não a salvação que acontece sempre automaticamente e que parece sempre, portanto irresistível. [...] A diferença decisiva entre as ‘infinitas improbabilidades’ sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a realidade histórica está em que, na dimensão humana, conhecemos o autor dos ‘milagres’. São homens que os realizam – homens que, por terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito.45 Portanto, para ser um herói, a ação original deve visar o comum, ou seja, deve criar o espaço para ação pública e, com isso, se tornar um exemplo. Para criar o espaço e se tornar um exemplo, precisa-se da faculdade da imaginação, onde “nos removemos mentalmente de onde estamos fisicamente colocados” e “imaginamos que as coisas poderiam ser diferentes do que realmente são”.46 Um herói que personifica a ação fundante é um herói que busca nos exemplos do passado as formas de criar um novo início, de uma nova ordem dos tempos, que Hannah Arendt chama de novus ordo seclorum. A ação fundante é a mais poderosa de todas as ações livres porque significa iniciar algo sem precedentes, construir uma realidade inteiramente nova. Em regimes extremos, a responsabilidade pessoal acaba se misturando com a responsabilidade política. Afinal, ao se abdicar da participação política e ao se recusar a agir, não estaria o indivíduo aceitando permanecer em um regime que é danoso para o coletivo e, portanto, representando uma profunda falta de responsabilidade política? Na ética de Hannah Arendt, não importa se o indivíduo tem boas intenções no seu íntimo, no seu particular. Se ele não age, se não demonstra e não aparece na cena pública em concordância com essas intenções – o que ela chama de identidade específica, isto é, quem somos no espaço público e quem desejamos mostrar no mundo das aparências -, o seu particular de fato, politicamente, não importa. Como lembra Bethânia Assy, “no vocabulário de uma ética arendtiana não cabe a distinção clássica entre a publicidade de nossos atos e a privacidade de nossas intenções”.47 45 Idem. Entre o passado e o futuro, pp. 219-220, grifos meus. Idem. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 191. 47 ASSY, Bethânia. “Faces privadas em espaços públicos”: por uma ética da responsabilidade (Introdução à edição brasileira). In: ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 52. 46 20 A análise dos conceitos de culpa e consequentemente, de responsabilidade e moralidade, são fundamentais para a compreensão da resistência da Rosa Branca, uma resistência embasada fundamentalmente no imperativo moral. Hannah Arendt diria que eles prefeririam morrer a ter que conviver consigo mesmos sabendo que não fizeram nada para acabar com o governo nazista. Em suma, eles sabiam que estavam condenados a viver com a sua própria consciência. Como verdadeiros heróis, no sentido de Todorov e de Arendt, agiram de acordo com seu ideal e esse ideal era a luta pelo bem da humanidade. O exterior estava de acordo com o interior e eles agiram moralmente, em serviço do bem. Sendo assim, os heróis que aqui serviram de exemplo, estão profundamente atrelados também, à ideia de amor mundi. O amor mundi, ou a responsabilidade pelo mundo, “o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos responsabilidade por ele”,48 não é simplesmente uma promessa que vincula os seres humanos. Ele é, além disso, um imperativo à ação, por ser um amor por aquilo que é criado através da ação em conjunto. Se sentirmos amor mundi, agiremos, e quem ama o mundo o suficiente assume responsabilidade para com a durabilidade desse mundo. O cultivo de sentimentos públicos é fruto do esforço contínuo de levar em consideração os pontos de vista alheios. Não obstante nascermos intrinsecamente entre homens, ainda nos cabe a arte de exercitar a alteridade, de assumir responsabilidade por quem somos, pelo modo como agimos, e por que mundo somos responsáveis. Uma vez que, tendo como pressuposto que quem alguém é só se revela no domínio da ação, e que este aparecer se dá necessariamente 'entre os homens' [...], poder-se-ia concluir que a responsabilidade tanto para com quem sou, quanto para com o outro e para com a durabilidade do mundo, encontram pelo menos um afluente em comum: o espaço-entre.49 Se o nascimento é o acontecimento inaugural e fundamental, através do qual chegamos em um mundo como estrangeiros, apenas nos tornamos humanos a partir de palavras e ações e é assim que fazemos do mundo a nossa casa. A natalidade, enquanto a possibilidade de nos atualizarmos por meio de ações e de nos responsabilizarmos pelo nosso nascimento, aparece como um conceito fundamental para Arendt, já que “o homem faz o mundo e torna a si mesmo uma parte do mundo”.50 O mundo humano é produto do amor mundi humano, condicionado à 48 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 247. O espaço-entre, nada mais é do que o espaço em comum entre os homens, ou seja, o político. ASSY, Bethânia. “Faces privadas em espaços públicos”, p. 58. 50 ARENDT, Hannah (1929, p. 43) apud CORREIA, Adriano. Natalidade e amor mundi: sobre a relação entre educação e política em Hannah Arendt. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n.3, p. 811-822, set./dez. 2010, p. 813. 49 21 natalidade dos que vivem nele e à mortalidade dos que o edificaram.51 O amor mundi está, então, no centro da compreensão da política, visto que o mundo é um espaço que construímos para nós mesmos e esse amor pelo mundo precisar sempre de cuidado e manutenção. A liberdade requer a criação de um espaço para ação e o amor pela liberdade está na essência da política, assim como o amor pelo mundo em que chegamos como estrangeiros e no qual tentamos fazer a nossa casa. A política consiste não apenas na organização de convivências e de comunidades, mas de conservar possibilidades do espaço-entre, ou seja, do espaço de interação, com o risco permanente de danificar o mundo. Se nascer é ser início, o segundo nascimento para o mundo é o de se arriscar a agir, por meio de ações e palavras. Engajar-se politicamente é, portanto, renascer no mundo e o amor mundi representa a ideia de que queremos que o mundo persista, representa a responsabilidade de dizer sim para o mundo.52 O mundo, esse conjunto de cultura, comunidade dos homens, instituições políticas e, acima de tudo, o estar junto, o espaço-entre, que permite que nos articulemos, mas que também possibilita que nos separemos, é uma preocupação fundamental na esfera da política. O totalitarismo busca acabar com esse mundo representado pelo espaço-entre, deixando apenas o cinturão de ferro, o Um-Só Homem, onde não há espaço para articulação, apenas massas tão juntas e homens contraídos uns contra os outros. Isso significa que agir em um regime totalitário na cena pública e aparecer para o mundo por meio de palavras e ações representa, categoricamente, uma expressão de desejo de persistência pelo mundo. Os resistentes renasceram no mundo por meio dos panfletos e das outras formas de dissidência, por meio do discurso, das palavras e das associações, porque entendiam que tinham responsabilidade pelo que acontecia na Alemanha. Amavam o mundo o suficiente para assumir responsabilidade por ele e tentaram tornar o deserto um lugar mais humano. Os heróis são aqueles que agem em cena pública pelo bem comum, servindo de exemplo. A partir desses exemplos, podemos ser impulsionados a agir, por meio da capacidade do juízo. A ação fundante, a mais poderosa ação livre de todas, é capaz de pôr fim a um regime totalitário, e ela também surge por meio de um retorno ao passado para buscar exemplos e ideias de como fazer algo novo, de como interromper o continuum histórico para a criação de uma nova ordem dos tempos. Esse tipo de ação possui ideais revolucionários e, portanto, é imprevisível, já que 51 CORREIA, Adriano. Política, formação, república: o amor mundi como sentimento político fundamental. Conferência apresentada em: I Simpósio Hannah Arendt: Amor mundi: Política, educação e Modernidade. UFSC, Florianópolis, 2017. 52 Idem, ibidem. 22 visa fundamentalmente à instauração da liberdade. O que viria a ser depois que a liberdade estivesse no terreno comum, seria impossível de se antecipar. Os heróis resistentes ao totalitarismo são aqueles que agiram moralmente e com responsabilidade política, e o fizeram por meio de uma aliança do amor mundi, com a atividade do pensamento e do juízo. Como apresentado anteriormente, a união das três responsabilidades: a responsabilidade de escolher a si mesmo, a responsabilidade de julgar e eleger exemplos e a responsabilidade para com a durabilidade do mundo por meio de um agir consistente. Isso não significa que os heróis eram pessoas mais elevadas espiritualmente ou diferentes dos que não resistiram. Significa que prefeririam morrer a conviver com alguém que não fez nada para mudar o regime tirânico ao qual estavam submetidos. Significa que sentiam responsabilidade pelo mundo em que viviam e que eram heróis no sentido de um agir exemplar buscando o bem de todos. E, ainda, que uniram a coragem para resistir aliada à capacidade inalterada do juízo: a capacidade (e responsabilidade) de escolher, todos os dias, o outro que quero e suporto viver junto. 23 Capítulo Um Um mundo onde tais coisas são possíveis “Sonho que, por precaução, falo russo enquanto durmo (não sei falar russo e também não falo durante o sono), para que eu mesma não me compreenda e, assim, ninguém me entenderá caso eu diga algo sobre o Estado, pois isso é proibido e precisa ser denunciado” (Sonho de uma faxineira, verão de 1933. Charlotte Beradt. Sonhos no Terceiro Reich) “Perto das nove da noite, depois de minhas consultas, quando quero me esticar calmamente no sofá com um livro sobre Matthias Grünewald, minha sala e meu apartamento ficam de repente sem paredes. Olho apavorado ao meu redor e, até onde meus olhos conseguem alcançar, os apartamentos estão todos sem paredes. Ouço gritarem em um megafone: ‘De acordo com o edital sobre a eliminação de paredes, datado do dia 17 deste mês...’” (Sonho de um médico, 1934. Charlotte Beradt. Sonhos no Terceiro Reich) 24 “E se eu for jogado na cela mais escura Tudo isso são esforços inúteis Porque os meus pensamentos quebram todos os portões E todas as portas: pensamentos são livres! ”1 Autores de milagres Os nomes Sophie e Hans Scholl, Alexander Schmorell, Willi Graf, Christoph Probst e Kurt Huber são internacionalmente conhecidos. Sua ação panfletária é respeitada como uma representação de coragem política e de manutenção da dignidade, mesmo mediante condições extremas. Os seis panfletos da Rosa Branca, distribuídos anonimamente não só em Munique, como em algumas das principais cidades da Alemanha, como Colônia, Hamburgo e Frankfurt, pareciam, para a Gestapo, compor uma resistência altamente organizada. Os panfletos inicialmente possuíam citações de filósofos, poetas e da Bíblia, e se dirigiam ao povo alemão, buscando conscientizá-lo e obriga-lo a refletir sobre a catástrofe que acontecia na Alemanha. A Segunda Guerra Mundial é referenciada com frequência e os conceitos mobilizados nos escritos são principalmente os de liberdade, de resistência, e de culpa do povo alemão. Todo o processo da ação panfletária era feito pelos próprios estudantes, que custeavam a produção, compravam tinta, papel, selos, envelopes e que se revezavam durante a madrugada para fazer cópias dos escritos. Os textos geralmente eram colocados nas caixas de correio de pessoas escolhidas de maneira aleatória, mas por vezes também eram enviados por meio de cartas. Sophie e Hans Scholl ficaram mais famosos no cenário internacional, precisamente porque foram os primeiros a serem presos pela Gestapo após jogarem centenas de cópias do sexto panfleto nas portas das salas e no hall da Universidade de Munique. Esta ação custou a vida desses jovens e dos outros membros da Rosa Branca, além da prisão de muitos de seus amigos. A Rosa Branca certamente conquistou o seu espaço no cenário da resistência ao nazismo. A memória produzida sobre esses estudantes explorou intensamente a ideia de que era possível resistir e de que eles representavam a Alemanha que não era nazista, a Alemanha Trecho da música “Die Gedanken Sind Frei”: um poema que apareceu de muitas formas ao longo do século XVIII mas que se popularizou na revolução de 1848 na Alemanha. Supostamente Sophie tocou essa música para seu pai quando ele estava preso. Citado em: DUMBACH, Annette; NEWBORN, Jud. Sophie Scholl and the White Rose. USA: Oneworld, 2007, p. 106. Tradução minha. 1 25 que resistiu a Hitler. Uma série de livros foram escritos para contar a história do grupo, principalmente dos irmãos Scholl,2 apresentando-os como indivíduos superiores em sua coragem e sua convicção do que era certo e errado. Foram feitas peças de teatro e filmes em tributo a esses jovens, sendo o mais famoso Sophie Scholl – Die Letzen Tage,3 traduzido para o português como Uma mulher contra Hitler. Por toda a Alemanha foram renomeadas praças, ruas e escolas como forma de honrar estes resistentes. Munique, na Bavária, é um município que até os dias atuais conta com dezenas de homenagens a Rosa Branca por toda a cidade.4 A Universidade de Munique5 se tornou uma espécie de memorial para os estudantes: nas praças do lado de fora da universidade é possível encontrar os panfletos e as fotos dos membros fixados no chão. As duas praças foram renomeadas em homenagem aos resistentes: a que dá para a entrada da universidade se chama Praça dos Irmãos Scholl (Geschwister-Scholl Platz) e a do outro lado da avenida, Praça do Professor Huber (Professor Huber Platz). Dentro da faculdade ainda é possível encontrar uma estátua de Sophie Scholl, um centro de memória e mais algumas referências à resistência da Rosa Branca. No auditório da Universidade de Munique também é entregue anualmente, desde 1980, o Prêmio Irmãos Scholl (Geschwister-Scholl-Preis), um prêmio literário para livros que promovam a liberdade intelectual e que tenha relação com a liberdade humana, civil e a responsabilidade moral para com o mundo.6 Levando esse apelo memorial em consideração, estudar criticamente este grupo se mostrou uma tarefa delicada e que toca em algumas feridas. A Rosa Branca é vista como um símbolo, e, por ser um símbolo, há uma recusa de tratá-la historicamente e de fazer ponderações que são necessárias e próprias ao trabalho do historiador. Este capítulo tem por objetivo apresentar uma narrativa da Rosa Branca, em busca de uma compreensão mais abrangente de sua formação e sua resistência. Quem se propõe a estudar a história desses jovens logo se depara com a escassez de fontes, das quais temos acesso a pouquíssimas - e a grande maioria delas foi selecionada pela Ao longo da dissertação utilizo com frequência as expressões “literatura sobre a Rosa Branca” ou “bibliografia sobre a Rosa Branca” como uma forma de evitar a repetição das mesmas referências. A título de esclarecimento, os livros de referência sobre a história da Rosa Branca utilizados são: VINKE, Hermann. The Short Life of Sophie Scholl. Harper & Row, Publishers, Inc., 1984; HANSER, Richard. A Noble Treason: The story of Sophie Scholl and The White Rose revolt against Hitler. Ignatius Press, San Francisco, 2012; DUMBACH, Annette; NEWBORN, Jud. Sophie Scholl and the White Rose. USA: Oneworld, 2007; SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013. 3 Filme alemão de 2005, do diretor Marc Rothemund e do escritor e produtor Fred Breinersdorfer. 4 Tive a oportunidade de ver isso pessoalmente quando fiz o meu intercâmbio na Alemanha em 2013. 5 O nome completo da Universidade é Ludwigs-Maximiliam Universität München. 6 Sobre o Prêmio Irmãos Scholl, ver: http://www.geschwister-scholl-preis.de/preistraeger_20102019/2015/index.php. Acesso em 29/07/2017. 2 26 família Scholl. A principal fonte sobre a história do grupo é o livro de Inge Scholl, irmã de Sophie e Hans, que objetiva contar a trajetória dos estudantes. Ele começou a ser escrito em 1947 e sua primeira edição em alemão foi publicada em 1952, no processo de construção de memória da Alemanha no pós-guerra. A postura dos Aliados, inicialmente, foi a de não fazer uma diferenciação entre alemães e nazistas, querendo mostrar para o mundo e principalmente para os alemães, o que eles haviam feito. A culpabilização do povo alemão foi muito forte e presente durante um período, o que Hannah Arendt chama de “processo de desnazificação”.7 A população civil passou a ter acesso ao horror e o discurso produzido era o de que todos tinham feito aquilo, uma ideia de culpa coletiva. Como Andreas Huyssen demonstra, a consciência temporal do final do século XX foi a de assumir responsabilidade pelo seu passado.8 O livro de Inge aparece com um conjunto novo de fontes para desmistificar a ideia de que todos os alemães eram nazistas. Neste sentido, é um livro que deve ser lido como um testemunho da época, como um trabalho de memória, um esforço para apresentar que houve resistência e que era possível resistir. Ela aparece como uma testemunha de uma experiência, entretanto, seu livro não é a única fonte que dispomos para analisar a resistência da Rosa Branca – apesar de ser a mais importante. O que esse trabalho pretende fazer é contrastar a narrativa de Inge com a de outros autores e com outras fontes. Segundo Inge Scholl, seu objetivo com o livro era: Eu havia me limitado a narrar a história de meus irmãos e seus amigos a partir da perspectiva de uma pessoa muito próxima. Naquele momento, a distância temporal que teria possibilitado a investigação do contexto histórico ainda não existia e tampouco se colocava a pergunta sobre o êxito da resistência. Pois para as pessoas que, após o fim da Guerra, tomaram conhecimento dos atos hediondos cometidos pelo sistema nazista, o simples fato de ter havido uma resistência foi crucial [...]. Sobretudo os jovens, de cuja boa-fé tanto se havia abusado, encontraram na história da Rosa Branca o estímulo necessário para um recomeço.9 Esta dissertação caminha pela ideia de heroísmo e de atos que podem servir de exemplo para gerações futuras. Esse foi o objetivo de Inge Scholl ao narrar a história de seus irmãos: mostrar para os jovens que a Alemanha não era toda nazista e que existiu coragem de agir mesmo diante do terror totalitário. Como apontado na Introdução, de acordo com Hannah Arendt, podemos entender os membros da Rosa Branca como autores de milagres, que com o 7 ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo (ensaios). São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 280. 8 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 18. 9 Inge Scholl, em “Observações sobre os objetivos da Rosa Branca. ” In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 113-114, grifos meus. 27 duplo dom da liberdade e da ação, tentaram modificar a realidade em que viviam. Enfatizo, no entanto, a percepção questionável de possibilidade de resistência ao Nacional-Socialismo, pois, como veremos adiante, esta visão toca em questões delicadas como culpa, responsabilidade e escolha. Como Todorov ressalta, “os homens nunca são inteiramente privados de escolher. A pessoa é responsável por seus atos, quaisquer que sejam as pressões que sofra, caso contrário, renuncia a sua filiação humana; entretanto, quando as pressões são de fato muito grandes, o julgamento deve levar isso em conta”.10 Tentei precisamente levar essa percepção de Todorov em consideração ao longo de todo o trabalho, para melhor examinar a resistência desses jovens. Dizer que era possível resistir, de fato, é verdade. Resistir é uma escolha, assim como não resistir também o é. Não resistir implica responsabilidade política, como veremos posteriormente com Hannah Arendt. Mas é preciso cautela para julgar essa afirmação e principalmente, para julgar os que não tiveram a mesma postura em um regime totalitário como de Adolf Hitler. A seguir, veremos como se deu o trajeto dos membros da Rosa Branca rumo à oposição declarada ao nazismo. A ilha dos Scholl Quando Hitler assumiu o poder em 1933, a família Scholl vivia na pequena cidade de Ulm, circundada pelo rio Danúbio. Robert e Magdalena Scholl tinham cinco filhos: Inge, Hans, Sophie, Elizabeth e Werner. Apenas Inge e Elizabeth sobreviveram ao nazismo; Hans e Sophie foram executados pelas atividades de panfletagem e Werner morreu no front em uma de suas missões como soldado. Inicialmente, a vida dessa família de classe média não mudou por conta do Nacional-Socialismo. As leis raciais não causaram problemas para os Scholl, que facilmente conseguiam provar a sua origem ariana.11 Eles continuaram indo a museus, lendo literatura clássica, discutindo política, arte e música em jantares familiares. Os Scholl se mudaram duas vezes antes de se estabelecerem em Ulm e todas as suas casas eram grandes e espaçosas.12 Escutar rádios internacionais proibidas, ler livros proibidos e ouvir músicas proibidas eram 10 TODOROV, Tzvetan. Em face ao extremo. Campinas, SP: Papirus, 1995, p. 149, grifos meus. Hans Scholl em uma carta pede para sua mãe lhe enviar o comprovante de descendência ariana para que ele possa ingressar na universidade. Ver em: JENS, Inge. At the heart of the White Rose. 12 “My dad always rented big apartments, no matter how badly off we were”. Inge Scholl, In: VINKE. The Short Life of Sophie Scholl, p. 15. 11 28 práticas comuns no universo doméstico, assim como discutir política. Era uma família luterana protestante e tradicional.13 Robert Scholl recebia o suficiente para prover uma boa educação para todos os seus filhos, de modo que Hans e Sophie nunca precisaram se preocupar em economizar. Essa questão é descrita em várias cartas dos irmãos para os seus pais,14 onde fazem pedidos recorrentes de valores para comprar livros, dicionários, pagar por aulas de francês, latim, etc. Ter a liberdade de sair de uma pequena cidade no interior para se mudar para uma cidade grande como Munique e conseguir estudar com segurança e tranquilidade financeira, de fato não era uma condição comum a todos os alemães – principalmente nos primeiros anos de guerra, onde o racionamento e a economia estavam na ordem do dia. Sophie disse à Gestapo: “meu pai ganha algo em torno de 1500 RM [Reichsmarks] por mês, portanto não é uma dificuldade para ele pagar pelos meus estudos”.15 O ambiente familiar dos Scholl - descrito por Inge como “uma ilha pequena e segura naquela engrenagem que se tornava cada vez mais incompreensível e estranha” -16, bem como as influências culturais que eles receberam de seus pais ao longo da vida (literatura, música, cinema, arte), são fundamentais para compreender sua resistência e até mesmo sua linguagem nos panfletos. As citações de Goethe, Novalis, Lao-Tsé e Aristóteles deixam claro que eles tinham acesso a esse tipo de leitura. Ademais, na esfera pessoal dos Scholl era possível discutir política livremente e ter um embate de opiniões, e Robert Scholl sempre foi um crítico do regime nazista, mesmo quando seus filhos ingressaram na Juventude Hitlerista (Hitlerjugend) e na Liga das Jovens Alemãs (Bund Deutscher Mädel, ou BDM). O entusiasmo inicial dos irmãos Scholl é descrito por Inge: Ouvíamos em toda a parte que Hitler queria trazer grandeza, felicidade e prosperidade a essa pátria, que ele se empenharia para que todos tivessem trabalho e pão, que não descansaria até que cada alemão fosse uma pessoa independente, livre e feliz em sua pátria. Achamos todos os propósitos muito bons e queríamos fazer de tudo para contribuir com a nossa parte [...]. Acreditávamos ser membros de uma grande organização que incluía e 13 Sophie e Hans, nos seus últimos momentos, receberam assistência espiritual na prisão de um capelão protestante da Igreja luterana, o Dr. Karl Alt. A bibliografia afirma que eles não pertenciam ou frequentavam nenhuma igreja específica, ou seja, não possuíam filiação clerical, mas que se declaravam cristãos luteranos. 14 JENS, Inge. At the heart of the White Rose. 15 “My father earns somewhere around 1500 Marks per month, therefore it is no hardship for him to pay for my studies” Tradução minha. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl. ZC13267. (English Edition), por Joyce Light (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 3068. 16 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 29. 29 reconhecia a todos, dos dez anos à idade adulta. Sentíamo-nos partícipes de um processo, de um movimento surgido da massa popular.17 A Juventude Hitlerista era uma organização nazista, que passou a ser de alistamento obrigatório a partir de 1936 e que abarcava jovens de 6 a 18 anos. A Liga das Jovens Alemãs era o equivalente feminino à Juventude Hitlerista, uma organização para moças entre 14 e 18 anos. Essas duas associações representavam os únicos coletivos de jovens permitido durante a Alemanha nazista, que serviam basicamente para doutrinação e adequação à ideologia do regime. Richard Evans reitera o argumento de que estar na Juventude Hitlerista abarcava uma sensação de pertencimento, de propósito e de grupo e que, “ainda que os garotos mais velhos conservassem alguma coisa das crenças que seus pais socialdemocratas, comunistas ou católicos houvessem lhes transmitido, os mais jovens eram ‘desde o começo alimentados apenas com o espírito nacional-socialista”.18 Era uma organização que emitia diretrizes rígidas: os livros que eram lidos eram nazistas, as canções que cantavam eram nazistas, o treinamento era compulsório, os exercícios desgastantes e as punições eram severas. Os jovens Scholl mergulharam nessa experiência, mas não demorou muito para que começassem a se decepcionar com o Führer e com o Nacional-Socialismo. Robert Scholl havia deixado claro desde que Hitler havia chegado ao poder, que as promessas de Führer custariam muito caro a Alemanha. Inge Scholl relata uma conversa com seu pai sobre a existência de campos de concentração e sobre o conhecimento de Hitler desses campos. Robert Scholl disse: “E como poderia não saber, se eles existem há anos e foram seus amigos mais próximos que os construíram? E por que ele não usou seu poder para fechá-los imediatamente? Por que qualquer pessoa que sai de lá é proibida de contar suas vivências sob ameaça das mais duras penas?”. Seus filhos retrucavam dizendo que o Führer de fato havia eliminado o desemprego como havia prometido, argumento que Robert rebatia: “isso é verdade. Só não perguntem como!”. No fim, a frase de seu pai que ficou marcada para Inge foi: “quero apenas que vocês caminhem pela vida com liberdade e retidão, mesmo que seja difícil”.19 Suas opiniões discordantes do regime fizeram com que Robert Scholl fosse preso em duas ocasiões: em 1942, a Gestapo vai a sua casa e, após uma investigação, levam Robert para a prisão por expressar opinião contrária ao regime. Robert havia falado à sua secretária que a guerra já estava perdida e que Hitler era um flagelo da humanidade. Ele foi solto alguns dias 17 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 22-23. EVANS, Richard J. O Terceiro Reich no poder. 2ª edição, São Paulo: Planeta, 2014, p. 319. 19 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 28-29. 18 30 depois com o aviso de que o julgamento seria dentro de alguns meses. Em agosto do mesmo ano sai a sua sentença e ele é preso por mais quatro meses. Em seu depoimento para a Gestapo, Sophie explica sobre a visão política de seu pai: Até onde eu sei, meu pai não teve nenhuma filiação partidária antes da ascensão [de Hitler] ao poder. No entanto, eu sei que ele tem tendências democráticas, ou seja, ele é da opinião de que uma nação deveria governar-se democraticamente se [os cidadãos] tiverem maturidade o suficiente para essa forma de governo. [...] Se eu entendo o pensamento político de meu pai corretamente, ele tem uma vaga noção de uma forma democrática de governo com poderes específicos. É provável, por esta razão, que meu pai se opõe ao Nacional-Socialismo como tal, ou também, detém pontos de vista que são contrários aqueles do atual regime.20 Como lembra Richard Evans, o regime nazista buscava reprimir a oposição ativa, mas também “buscava eliminar até mesmo os mais ínfimos sinais de descontentamento e sufocar qualquer coisa que pudesse sugerir que a população não estava maciça e entusiasticamente por trás de tudo que ele fazia”, sendo assim, “mexericos maliciosos e piadas políticas podiam ser tão censuráveis quanto oposição e crítica diretas”.21 Robert Scholl mantinha vínculos com outras pessoas que tinham pensamentos discordantes e logo ficou marcado como um opositor do regime. Dessa forma, para Hans e Sophie, o caminho da resistência possivelmente se deu de maneira mais natural do que para outras pessoas, pois, tinham ao seu redor um grupo de indivíduos que também não concordavam com alguns princípios do Nacional-Socialismo. Movimentos de juventude Uma das hipóteses deste trabalho é a de que todos os membros da Rosa Branca haviam participado, de uma forma ou de outra, de algum grupo clandestino proibido pelo governo. As fontes confirmam que Hans, Sophie e Willi Graf fizeram sim parte de grupos proibidos. Em 1937, Hans, Sophie, Inge e Werner foram presos pela Gestapo por envolvimento com grupos clandestinos, comumente chamados de Jungeschaft. O grupo em questão em tese havia sido formado por Hans e Ernst Reden, e era chamado de d.j.I.II. O d.j. era por Deutsche “As far as I know, my father had no party affiliation before the ascension to power. However, I do know that he has democratic leanings, that is, he is of the opinion that a nation should be governed democratically if they are mature enough for that form of government. […] If I understand my father’s political thought processes correctly, he has a vague notion of a democratic form of government with specific powers. It is likely for this reason that my father opposes National Socialism as such, or rather holds views that are against those of the current regime”. Tradução minha. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 3071-3073. 21 EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 130. 20 31 Jungeschaft (Jovens Alemães), e o I.II significava que o grupo começou suas atividades no primeiro dia do décimo primeiro mês. No d.j.I.II eles faziam caminhadas juntos, tocavam balalaica, ouviam músicas folk e jazz (que eram proibidas), discutiam literatura, escreviam poemas, ouviam rádios internacionais e acampavam. Inge Scholl descreve a Jungeschaft como um movimento impreciso, que consistia em uma associação de jovens que buscavam manter a cultura alemã ativa.22 Ela explica o seu funcionamento: Os membros da Jungeschaft se reconheciam por suas roupas, suas canções e até por seu linguajar. [...] O grupo viajava nos fins de semana e, mesmo com o frio mais intenso, acampava em barracas feitas no modelo dos lapões, povo do extremo norte da Europa. Quando sentavam ao redor da fogueira, liam textos e cantavam e acompanhavam o coro com o violão, o banjo e a balalaica. Colecionavam canções de todos os povos e escreviam e compunham seus próprios cantos festivos e músicas divertidas.23 O d.j.I.II era um grupo masculino, que Werner de fato fez parte junto com seu irmão Hans. Sophie, que foi liberada imediatamente pela Gestapo por ser “muito nova e afeminada” e Inge, que foi liberada depois de uma semana, foram presas por “culpa por associação”.24 Ou seja, Hans tinha 19 anos e Sophie apenas 16 quando foram presos pela primeira vez. Ao analisar os interrogatórios feitos pela Gestapo em 1937 de Hans Scholl, foi possível obter informações mais detalhadas acerca das acusações e da formação desses grupos de jovens. A acusação de “atividades bündische” não tem uma tradução precisa. Bündisch basicamente significa se organizar ou se unir em conjunto a uma liga ou a um grupo. Durante o Terceiro Reich, o termo ficou conhecido como organizações jovens que se situavam fora da Juventude Hitlerista e sofriam influências ou abarcavam outras entidades maiores, como organizações católicas ou até mesmo células comunistas e socialistas.25 Nos interrogatórios delimita-se que Hans Scholl foi preso por fazer parte de uma das células do d.j.I.II, mas ele não foi o seu criador. O d.j.I.II foi provavelmente o maior e mais organizado grupo bündische da Alemanha (ao lado dos Piratas de Edelweiss), e seu verdadeiro fundador foi Eberhard Koebel, também conhecido como Tusk. 22 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 29-31. Idem, ibidem, p. 30. 24 Inge Scholl, In: VINKE. The Short Life of Sophie Scholl. 25 Ver mais em: The Bündische Trials (Scholl/Reden) – 1937-1938. (English Edition), por Joyce Light (editor), Denise Heap (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 116. 23 32 Koebel criou o d.j.I.II em 1929,26 porém em 1932 ele deixou de ser o líder desse movimento e se aliou a Liga Comunista Jovem e ao Partido Comunista Alemão (KPD). Ele foi preso em 1934 por tentar influenciar os jovens com ideias esquerdistas e foi solto algum tempo depois, quando conseguiu escapar para Londres. Mesmo morando na Inglaterra, Koebel conseguia se reunir com os membros ativos do d.j.I.II e de outros movimentos de juventude, que iam até a sua residência para discutir estratégias para a manutenção desses movimentos.27 O d.j.I.II criou o arquétipo do movimento escoteiro alemão com a criação da Kothe (ou Kohte), uma tenda que não era característica na Alemanha anteriormente, baseada em modelos nórdicos, com a cor preta. Com um design particular, a Kothe permitia que se fizesse uma fogueira em seu interior, já que ela possuía uma saída para a fumaça. Por conter várias divisórias, era possível montá-la de jeitos diferentes, além de ser leve e fácil de ser carregada. A Kothe foi proibida junto com os movimentos de juventude por ser vista como um símbolo bündische, e os que continuaram a utilizá-la, eram considerados aliados de movimentos bolchevistas e de esquerda – devido a influência de Koebel. Tal influência pode ser percebida nos relatórios da Gestapo, quando se explica o funcionamento dos grupos bündische: Antes de o Nacional-Socialismo chegar ao poder, havia um grande número de grupos de jovens e clubes na Alemanha, bem como na Áustria. Estes eram coletivamente denominados ‘juventude bündische’. Apesar dos melhores esforços de grupos individuais e da existência parcial de atitudes básicas ‘folk’, todos esses grupos careciam de um objetivo comum. Havia inúmeros grupos e inúmeros objetivos e círculos de liderança. [...] Köbel – aos 22 anos na época – trouxe uma nova característica para a vida bündische. Ele exercia grande influência sobre os grupos de jovens bündische, mesmo aqueles que não faziam parte da sua organização d.j.1.11. Além da criação de novas tradições (por exemplo, um novo uniforme em que a camisa não tinha botões, mas fechava com um fecho de botão, bem como a introdução do Kothe, uma tenda da Lapónia), ele também criou intelectualmente um novo estilo, que se tornou um uso comum em numerosos jornais, livros e cartas, e que ele propagou. Com o passar do tempo, toda a sua atitude se afastou cada vez mais do corpo da cultura alemã e abraçou cada vez mais elementos estrangeiros, em particular os do Extremo Oriente. E se o desejo dele de criar um ‘mundo de menino’ alemão sob sua liderança falhou, sua influência sobre a juventude bündische como um todo foi imensamente bem-sucedida. Seus escritos foram lidos por todos os lados em acampamentos bündische, suas tradições foram introduzidas e suas canções foram cantadas. [...] Acima de tudo, a literatura bündische foi amplamente distribuída. Esta literatura é em grande parte incompatível com o Nacional-Socialismo. Algumas delas são totalmente prejudiciais para o regime. Por isso, ela foi banida na Juventude Hitlerista. 26 Uma pequena biografia de Koebel pode ser consultada em: http://www.gdwberlin.de/en/recess/biographies/index_of_persons/biographie/view-bio/eberhard-koebel/?no_cache=1 Acesso em 29/07/17. 27 A Gestapo não investigou profundamente essa questão, apenas aponta alguns membros do d.j.I.II que frequentaram a casa de Koebel em Londres. In: The Bündische Trials (Scholl/Reden) – 1937-1938, posição 1174. 33 Verificou-se que, acima de tudo, alguns dos que tinham sido bündisch antes tinham sua base nas influências comunistas, pelo menos de uma natureza culturalmente bolchevista.28 Ou seja, a influência de ideais de esquerda nos grupos bündische era uma grande preocupação das autoridades nazistas. A Juventude Hitlerista tomou emprestado muitas das práticas das Jungeschaft, como as caminhadas, as canções, os rituais, as cerimônias, os jogos e os acampamentos. No entanto, como Richard Evans reitera, a Juventude Hitlerista “era uma organização enfaticamente controlada de cima, dirigida não pelos próprios jovens, como o antigo movimento jovem havia sido, mas pela liderança da juventude do Reich”.29 As medidas de coerção e obediência excessivas faziam com que os jovens perdessem entusiasmo pela Juventude Hitlerista e tentassem manter viva a velha tradição dos movimentos de juventude.30 Além disso, um dos argumentos da Gestapo para a investigação dos movimentos bündische era a sua associação com práticas homossexuais, que eram proibidas na Alemanha nazista de acordo com o parágrafo 175 do código legal. De acordo com as evidências fornecidas pelo relatório da Gestapo em 1937: Havia um forte aspecto homoerótico nos círculos jovens da juventude bündische antes de Hitler chegar ao poder. Isso levou a inúmeras transgressões entre o mesmo sexo entre os membros dos clubes bündische, principalmente entre líderes e seguidores. No caso que nos cabe, uma série de transgressões entre o mesmo sexo poderiam ser comprovadas. Muito provavelmente, as origens [dessas transgressões] podem ser encontradas nas atitudes homoeróticas de um círculo ainda maior de bündische. 31 “Before National Socialism came to power, there were a great number of youth groups and clubs in Germany, as well as in Austria. These were collectively referred to as “bündische youth”. Despite the best efforts of individual groups, and in spite of the partial existence of basic ‘folk’ attitudes, all of these groups lacked a common goal. There were numerous groups, and numerous goals and leadership circles. […] Köbel – at the time 22 years old – brought a new character into the bündische life. He exercised great influence on bündische youth groups, even those that were not a part of his d.j.1.11. organization. In addition to the creation of new traditions (e.g. a new uniform in which the shirt did not have buttons but closed with a knob-like fastener, as well as the introduction of the Kothe, a tent from the Lapland), he also intellectually created a new style, which became common usage in numerous newspapers, books, and letters and which he propagated. Over the course of time, his entire attitude veered ever further away from the body of German culture and increasingly embraced foreign elements, particularly those of the Far East. And if his desire to create a German “boy’s world” under his leadership failed, his influence on bündische youth as a whole was immensely successful. His writings were read everywhere in bündische encampments, his traditions were introduced, and his songs were sung. […] Above all, bündische literature was widely distributed. This literature is largely incompatible with National Socialism. Some of it is outright detrimental to it. Therefore it was banned in Hitler Youth and Jungvolk. It could be seen that above all, some of those who had been bündisch before had their basis in Communist influences, at least of a culturally Bolshevist nature” Tradução minha. In: The Bündische Trials (Scholl/Reden) – 1937-1938, posição 1108-1140. 29 EVANS, Richard J. O Terceiro Reich em guerra. 2ª edição, São Paulo: Planeta, 2014. p. 318. 30 Idem, ibidem, p 323. 31 “There was a strong homoerotic aspect in bündische youth circles before Hitler came to power. This led to numerous same-sex offenses between the members of the bündische clubs, primarily between leaders and followers. In the case before us, a number of same-sex offenses could be proven. Most likely the origins [of these offenses] can be found in the homoerotic attitudes of an even larger circle of bündische” Tradução minha. In: The Bündische Trials (Scholl/Reden) – 1937-1938, posição 887. 28 34 Quando Hans Scholl foi preso em 1937, sua prisão se deu por esses dois motivos: a associação em grupos de juventude proibidos, e práticas homossexuais com colegas mais jovens. Ernst Reden, amigo dos Scholl, foi preso pelos mesmos pretextos, sendo que suas investidas sexuais foram direcionadas a Werner Scholl, irmão mais novo de Hans. Em sua confissão, Hans relata diversos encontros sexuais com seu amigo “Robert”32 enquanto eles estavam na Juventude Hitlerista. Nesses encontros, Hans afirma que eles dormiram juntos, se beijaram, e, em algumas situações, Hans fez movimentos sexuais até ejacular - o que “Robert” sempre respondeu passivamente, por enxergar Hans em uma posição de poder, já que, desde 1935, Hans era um Líder de Pelotão. Um Líder de Pelotão (Fähnleinführer) era o líder de um grupo de 150 garotos dentro da Juventude Hitlerista. A literatura da Rosa Branca muitas vezes traduz esse termo como alguém que segurava uma bandeira da Juventude, o que não era o caso. Hans sendo um Líder de Pelotão significava que ele possuía efetivamente uma posição de destaque dentro da hierarquia da Juventude Hitlerista, o terceiro mais alto posto dentro da liderança local.33 A bibliografia da Rosa Branca não faz nenhuma menção a esse episódio, abordando apenas a sua prisão por envolvimento com grupos clandestinos, por vezes até exaltando esse envolvimento e participação. Só foi possível a descoberta das práticas sexuais de Hans na Juventude Hitlerista devido aos interrogatórios conduzidos pela Gestapo. Descobri ao longo da pesquisa que a literatura (e a própria Inge Scholl) deliberadamente deixam de lado muitas questões polêmicas, principalmente sobre Hans Scholl, possivelmente para não manchar a sua imagem como um homem resistente ao nazismo. No quarto capítulo darei mais atenção a esses traços problemáticos da construção da personalidade de Hans, quando apresentarei o testemunho controverso de Gisela Schertling, namorada de Hans na época de sua prisão e execução. Hans admite para a Gestapo suas condutas sexuais proibidas com “Robert” em diversas ocasiões em 1935 e 1936, mas explica que o fez porque sentia um grande amor pelo colega, dois anos mais novo que ele - ou seja, “Robert” tinha entre 14 e 15 anos na época. Ele escreve uma carta a seus pais em 18 de dezembro de 1937, quando estava preso em Stuttgart, dizendo: “eu estou profundamente arrependido por ter trazido esse infortúnio à nossa família, e eu estava perto do desespero durante os meus primeiros dias na prisão”. Hans também promete que: “Eu O nome completo não aparece nos interrogatórios e é possível que “Robert” nem seja um nome verdadeiro, apenas um pseudônimo. 33 The Bündische Trials (Scholl/Reden) – 1937-1938, posição 1534. 32 35 vou fazer tudo certo. Quando eu estiver livre novamente, eu vou trabalhar e trabalhar – isso e nada mais – para que vocês possam olhar para o seu filho com orgulho de novo”.34 Pelo teor do pedido de desculpas de Hans, podemos nos questionar se a família Scholl já sabia das acusações de práticas homossexuais durante sua inserção em grupos bündische – o que certamente se qualificaria como um grande “infortúnio” para uma tradicional família alemã. Um infortúnio ainda maior se considerarmos que Werner, irmão mais novo de Hans, também estava sendo acusado de ter cedido às investidas homossexuais de Ernst Reden. Os dois filhos homens de Robert e Magdalena, sendo um deles considerado um herói e símbolo da resistência alemã ao Nacional-Socialismo, estavam envolvidos em práticas sexuais proibidas com outros homens: esse me parece ser um pretexto forte o suficiente para o silêncio de Inge Scholl e da literatura sobre a Rosa Branca acerca dos motivos desta prisão de 1937. Com relação à sua participação no d.j.I.II, Hans se defende explicando que não fazia parte desse grupo especificamente mas sim, de um grupo bündische que mantinha as tradições do d.j.I.II e ainda afirma que em junho de 1937 já não havia mais nenhuma atividade bündische em seu grupo. Não se sabe se isso era de fato verdade ou se Hans usou esse argumento para escapar das acusações da relação do d.j.I.II com outros grupos comunistas. Ele explica a estruturação desse grupo com tradições do d.j.I.II: Tínhamos reuniões de clube frequentemente e continuamos as viagens [de acampamento] com a Kothe. Realizávamos nossas reuniões de clube em uma sala na casa de ‘Martin’. Do outono de 1936 a dezembro de 1936, elas ocorreram em média a cada duas semanas às sextas-feiras. Como o foco de tais reuniões do clube, eu geralmente escolhia uma pessoa que tinha algo a nos dizer. Poderia ser um escritor como Rilke, Hölderlin, George, Wiechert e Hesse, ou um pesquisador como Uli Wieland, Bengt Berg ou um general como Genghis Khan ou Frederico, o Grande. Músicas e livros apropriados para o tema eram escolhidos. Após a palestra, falamos sobre [o assunto] se necessário, e em geral trocávamos opiniões e considerações. Meninos diferentes, que eu havia escolhido com antecedência, davam palestras ou apresentações. [...] Em geral, íamos a uma viagem de acampamento a cada 3 semanas, de sábado a domingo, de setembro de 1936 a dezembro de 1936. Em janeiro e fevereiro de 1937, é possível que tenham havido 2 ou 3 viagens a mais. Normalmente, íamos em algum lugar perto de Ulm, às vezes de bicicletas, às vezes a pé. Nós sempre levávamos a Kothe. À noite, construíamos fogueiras na Kothe. Nós líamos em voz alta livros de Timmermann, Hans Johst, Walter Flex, Manfred Hausmann, Brues e Wiechert. Nós só líamos em voz alta os contos heroicos [de Tusk] em ocasiões “I’m so immensely sorry to have brought this misfortune on the family, and I was often close to despair during my first days in detention”; ““I’ll put everything right. When I’m free again, I’ll work and work – that and nothing but – so you can look on your son with pride again”. Tradução minha. Carta de Hans Scholl em 18 de dezembro de 1937. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 5. 34 36 muito especiais. Nós cantamos as músicas da Legião do Sul, e do Icebreaker,35 e dos clubes Trucht e Nerother. Domingo de manhã, vagávamos pela floresta e observávamos os cervos. Por um tempo, também praticávamos tiro com uma arma de fogo de pequeno calibre. Várias vezes, íamos a concertos ou filmes juntos, e em diferentes ocasiões também íamos ao teatro juntos. [...] Já afirmei que o grupo que eu liderava era um grupo bündische. No entanto, ele não pode ser considerado um grupo d.j.1.11. Para mim, o d.j.1.11 era coisa antiga. Eu não pretendia manter um clube adormecido. Se por acaso tenhamos adotado a maioria das tradições do d.j.1.11, é só porque pensei que era a melhor maneira de treinar os meninos. Não tinha intenção de recrutar para aquele grupo. Era claro para mim que, com o tempo, o clube dos meninos cessaria por vontade própria. Não queríamos tornar-nos pessoas que permaneceram no movimento da juventude para sempre, como é o objetivo de alguns que estão nos grupos juvenis bündische.36 Aqui, Hans fornece uma descrição mais detalhada de suas atividades, explicando as reuniões, as viagens e as leituras feitas em grupo. Os movimentos de juventude bündische podem ser considerados como românticos e idealistas e foram proibidos pouco depois que Hitler assumiu o poder, com a alegação de que não poderia existir nenhuma outra associação de juventude além da Juventude Hitlerista. Os movimentos que tentaram continuar foram perseguidos, muitos membros foram presos e talvez por isso seja possível observar uma grande tendência de participantes de algum movimento bündische terem se tornado futuramente resistentes ao nazismo. A inserção de Hans Scholl em um grupo bündische, fosse ele um ramo do d.j.I.II ou apenas um grupo que mantinha as tradições do d.j.I.II não significa impreterivelmente uma postura de resistência já em 1937. Significa, no entanto, um anseio de 35 Icrebreaker, uma publicação periódica dos clubes bündische, a grande maioria publicada e editada por Koebel (Tusk). 36 “We often had club meetings and continued the Kothe [camping] trips. We held our club meetings in a room in “Martin’s” house. From the autumn of 1936 to December 1936, these took place on the average every two weeks on Fridays. As the focus of such club meetings, I usually chose a person who had something to say to us. It could be a writer like Rilke, Hölderlin, George, Wiechert, and Hesse, or a researcher like Uli Wieland, Bengt Berg, or a general like Genghis Khan or Frederick the Great. Songs and books appropriate to the theme were chosen. After the lecture, we talked about [the subject] if necessary, and in general exchanged opinions and thoughts. Different boys, whom I had chosen in advance, gave lectures or presentations. […] In general, we went on a camping trip every 3 weeks, Saturday to Sunday, from September 1936 to December 1936. In January and February 1937, it is possible that there were 2 or 3 more trips. We usually just went somewhere near Ulm, sometimes on bicycles, sometimes on foot. We always took along the Kothe. At night, we would build campfires in the Kothe. We would read aloud from books by Timmermann, Hans Johst, Walter Flex, Manfred Hausmann, Brues, and Wiechert. We only read aloud from [Tusk’s] heroic tales on very special occasions. We sang the songs of the Southern Legion, the Icebreaker club, the Trucht and the Nerother clubs. Sunday mornings, we would roam the forest and watch the deer. For a while, we also would practice marksmanship with a small caliber firearm. Several times, we went to concerts or films together, and on different occasions we would also go to the theater together. […] I have already stated that the group I led was a bündische group. However, it cannot be considered a d.j.1.11. group. For me, d.j.1.11. was old news. I did not intend to maintain a dormant club. If we happened to have adopted most of the d.j.1.11. traditions, that is only because I thought that was the best way to train the boys. I had no intention of recruiting for that group. It was clear to me that with time, the boys’ club would cease of its own accord. We did not wish to become people who stayed in the youth movement forever, as is the goal of some of those in bündische youth groups.” Tradução minha. In: The Bündische Trials (Scholl/Reden) – 1937-1938, posição 524-566, grifos meus. 37 inserção em alguma associação que não fosse a Juventude Hitlerista e a necessidade de um espaço de livre expressão e de manutenção de tradições germânicas. O d.j.I.II e posteriormente a publicação Windlicht demonstram o caminho de dissidência traçado pelos Scholl rumo a resistência da Rosa Branca. Windlicht Outro grupo clandestino do qual fizeram parte todos os Scholl, foi o chamado Windlicht (Luz de vento), que, no sentido literal consiste em uma lâmpada de óleo com uma chaminé de vidro, projetada para proteger a chama mesmo mediante ventos fortes. Windlicht representava uma forma de discussão entre o círculo de amigos em Ulm e surgiu por volta de meados de 1941, provavelmente em agosto. Esse foi um grupo em que Inge e Sophie puderam participar, e sua prática equivalia basicamente a um pequeno jornal que continha artigos e discussões culturais. O jornal circulava entre os amigos dos Scholl juntamente com literatura proibida e era visto como “uma afirmação de independência intelectual”.37 Windlicht não fazia nenhuma menção direta a situação política do país e sua escrita era de um teor intelectual e rebuscado. Não obstante, como seu nome sugere, representava, para estes jovens, uma luz que continuava a brilhar mesmo no mais sombrio dos tempos, como diria Hannah Arendt. O jornal incluía ensaios, poemas, reflexões pessoais, desenhos, músicas – era basicamente um periódico amador, similar a um revisor literário. Segundo Inge Scholl, o grupo de amigos onde Windlicht circulava variava em idades entre 18 e 23 anos, num total de aproximadamente dez pessoas. Ela se recorda que foram produzidas cerca de três publicações, até que eles tiveram que acabar com as operações depois de Inge ter sido abordada pela Gestapo. Ao voltar de uma visita a Hans em fevereiro de 1942, a jovem encontra um oficial da Gestapo em sua porta, informando que ela havia sido chamada para um interrogatório imediato. Ao chegar na sede da Gestapo, ela conseguiu destruir um artigo de Windlicht que estava em sua bolsa e que falava sobre Napoleão, mas que poderia – e deveria – ser interpretado como uma crítica a Hitler. Caso a Gestapo a tivesse revistado e encontrado a publicação, ela poderia ter sido presa por até dezesseis anos, por crime de associação a movimentos de juventude ou de ação panfletária. Isso gerou receio entre os amigos, o que fez com que eles acabassem com as publicações. Windlicht acabou aproximadamente em fevereiro de 1942, apenas quatro meses 37 “An assertion of intellectual independence”. Tradução minha. In: HANSER. A Noble Treason, p. 102. 38 antes do primeiro panfleto da Rosa Branca aparecer – o que nos leva a concluir que esse teria sido o primeiro passo da resistência dos Scholl. Segundo Inge: “esse foi o fim deste inocente esforço criativo para manter nossa lâmpada comum acesa e protegê-la contra o furacão. Tivemos que renunciá-lo justo quando Hans estava buscando envolver seus amigos de Munique no empreendimento”.38 Windlicht contava com contribuições de Inge, Hans, Sophie, Otl Aicher, Traute Lafrenz, e também de Carl Muth e Theodor Haecker. As palavras eram escolhidas cuidadosamente para não causarem nenhum alerta às autoridades e o seu objetivo era basicamente a manutenção do mínimo de liberdade de expressão. Apesar de não fazer nenhuma menção direta ao governo nazista, poderia ser considerado como uma manifestação de um movimento de juventude, o que era, como vimos, proibido. Foi uma tentativa de independência intelectual e de expressão e diálogo entre pares: Esses [ensaios] foram expandidos para cartas de fim de ano, que foram enviadas para vinte ou mais amigos de mentalidade semelhante, que, por sua vez, as passaram para outros. Quando as cartas começaram a circular com alguma regularidade, elas receberam um nome e assumiram o caráter de uma publicação. O nome escolhido foi Windlicht. Hans e Sophie, quando estavam em casa, também contribuíram para a Windlicht, que, de forma velada e protegida, tornou-se uma forma de resistência para todo o círculo de Scholl. Os ensaios e comentários eram de tom cultural; não havia peças políticas e nenhum ataque direto ao regime. Windlicht era, em vez disso, uma maneira pessoal e privada de conseguir algum tipo de auto expressão divorciada da mão inibidora do Estado e além do seu alcance. Estas publicações forneceram uma fuga do miasma do controle do pensamento nazista e foi, ao mesmo tempo, uma afirmação de independência intelectual.39 Cruzando a bibliografia e as fontes, foi possível recuperar alguns dos ensaios40. O texto Sobre a pobreza,41 possivelmente o primeiro artigo de Windlicht, escrito por Hans Scholl, gerou muita discussão entre os amigos, no qual a ideia era de que a guerra deixaria a todos muito “That was the end of this innocent creative endeavor to keep our communal lamp alight and shield it from the hurricane. We had to renounce it just when Hans was seeking to involve his Munich friends in the venture”. Tradução minha: In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 300. 39 “These [essays] were expanded into round-robin letters, which were sent to a score or more of like-minded friends, who, in turn, passed them on to others. When the letters began to circulate with some regularity, they were given a name and so took on the character of a publication. The name chosen was Windlicht. Hans and Sophie, when they were home, also contributed to Windlicht, which, in a veiled and guarded way, became a form of resistance for the whole Scholl circle. The essays and commentaries were all cultural in tone; there were no political pieces as such and no direct attacks on the regime. Windlicht was, rather, a personal and private way of achieving some kind of self-expression divorced from the inhibiting hand of the state and beyond its reach. The paper provided an escape from the miasma of Nazi thought-control and was, at the same time, an assertion of intellectual independence” Tradução minha. In: HANSER. A Noble Treason, p. 102. 40 Os ensaios estão disponíveis (alguns na íntegra, alguns em trechos) em: JENS, Inge. At the heart of the White Rose. 41 Não estou certa se a melhor tradução para “poverty” nesse contexto é “pobreza” ou “miséria”. 38 39 pobres, miseráveis, com cidades destruídas. Contudo, baseado no princípio cristão, o texto lembra que a pobreza é o caminho para a luz: “A guerra sujeitará a Europa a extrema pobreza. Nunca esqueçam, meus amigos, de que a pobreza é a estrada para a luz”.42 Em dezembro de 1941, existem mais alguns escritos recuperados. Um deles era sobre o Sudário de Turim, uma peça de linho que os cristãos acreditam ter sido o tecido que cobriu Jesus Cristo após a crucificação. Hans estava convencido de que a peça era verdadeira, e escreveu também um ensaio sobre isso. Sophie faz um ensaio sobre o Natal, enquanto Traute Lafrenz escreveu sobre o Ano Novo e Inge Scholl escreveu sobre a viagem para esquiar que todos os amigos fizeram juntos também no Ano Novo.43 Windlicht aparece como mais um traço da oposição da família Scholl e do círculo de amigos em Ulm, mas, talvez, como um passo além do d.j.I.II. Isto porque consistia em uma publicação, um periódico, escritos e ensaios feitos pelos amigos para tratar dos temas mais diversos, mas que também, em alguns momentos, representavam uma crítica velada ao nazismo. Sendo a forma de resistência da Rosa Branca embasada no gênero panfletário, é possível perceber como Windlicht pode ter influenciado nesta decisão. Hans Scholl escolheu a escrita e a distribuição de panfletos para pregar a resistência ao nazismo, de forma mais direta e explícita, mas, ainda assim, o gênero escolhido foi a escrita. Os panfletos da Rosa Branca talvez tenham sido o aprimoramento de Windlicht, de forma mais direta e sobretudo, política. Quinta Columna Neste momento, uma breve caracterização dos autores de milagres desta história se mostra pertinente. Como se conheceram, como são personalizados na bibliografia e quais eram suas convicções que permitiram com que agissem em conjunto. Lançarei, inicialmente, um olhar mais atento aos jovens resistentes Sophie, Hans, Alex, Willi e Christoph, já que Kurt Huber é um personagem que aparece em 1942, mas que só toma forma em 1943, quando escreve o sexto panfleto. A Quinta Columna é uma referência irônica aos membros da Rosa Branca, que aparece em uma carta de Hans Scholl a sua mãe e seus irmãos, quando ele estava na Rússia, em setembro On poverty [Essay in Windlicht, Novembro 1941] “The war will subject Europe to dire poverty. Never forget, my friends, that poverty is the road to light”. Tradução minha. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 165. 43 Os trechos recuperados podem ser encontrados em: JENS, Inge. At the heart of the White Rose. 42 40 de 1942.44 O termo surgiu com o general Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola (19361939) para designar um grupo de simpatizantes, já que ele afirmou que o sucesso da sua campanha em Madri se deveu a quatro colunas atacando a cidade pelo exterior e uma quinta coluna atacando no interior. O termo ficou conhecido como uma referência a “atacar por dentro”, seja por meio de sabotagem, espionagem, propaganda subversiva, difusão de boatos ou qualquer forma de desmobilização interna do país em favor do inimigo. Ou seja, em um país em guerra ou prestes a entrar em guerra, os quinta-colunistas são um grupo que age em favor ou em colaboração com o inimigo.45 Pensando que Hans Scholl e os amigos estavam no front russo quando esse termo aparece em cartas, é perceptível como a resistência da Rosa Branca estava se modificando e como, possivelmente, eles se enxergavam como os que atacavam de dentro da própria Alemanha para colocar um fim na guerra. Sophie Scholl é uma personagem controversa dentro da Rosa Branca. Se, por um lado grande parte do foco da literatura sobre o tema se voltou para ela, 46 por outro lado, Sophie na maioria das vezes é retratada como estereótipo da mulher frágil e delicada que só entrou no caminho da resistência por influência de seu irmão mais velho. Também há momentos em que ela é descrita como muito masculina pelo seu corte de cabelo, suas roupas e também pelo fato de ter priorizado o estudo universitário e não um casamento e a constituição de uma família. Sua amiga Susanne Zeller recorda de uma conversa das duas em que Sophie disse: “Se Hitler viesse em minha direção agora mesmo e eu tivesse uma arma, eu atiraria nele. Se os homens não fazem isso, bom, então, uma mulher terá que fazer”.47 Ao longo da pesquisa, tive a percepção de que Sophie tinha uma personalidade muito similar à de seu irmão, sendo uma mulher bastante decidida e convicta de seus ideais – o que lhe rendia muitas discussões com seu namorado, como veremos adiante. Entretanto, a literatura na maioria das vezes a apresenta como muito tímida e calada, com um grande interesse pela natureza, pelas artes e pela filosofia. A questão fundamental é o papel de uma mulher nos anos de 1940, em um grupo de resistência contra o regime nazista. O movimento feminista na Alemanha, que era forte e ativo alguns anos antes, fora esmagado pelo governo nazista já no ano de 1933, assim que Hitler 44 Rússia, 2 de setembro de 1942. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, pp. 218-219. Idem, ibidem, p. 316. 46 Isso pode ser observado até mesmo pelo título dos livros referentes à história da Rosa Branca, alguns utilizados nessa dissertação, como “A Noble Treason: the story of Sophie Scholl and The White Rose revolt against Hitler”, “Sophie Scholl and The White Rose” e “The Short Life of Sophie Scholl”, além do filme mais famoso sobre a Rosa Branca, cuja tradução em português ficou “Uma mulher contra Hitler”. 47 “If Hitler were to come toward me right now and I had a gun, I would shoot him. If the men won’t do it, well, then a woman will have to” Tradução minha. In: VINKE. The Short Life of Sophie Scholl, pp. 135-136. 45 41 assumiu o poder. As feministas radicais foram exiladas, o movimento feminista foi fechado e suas associações e corporações foram inseridas e diluídas na Organização das Mulheres Nacional-Socialistas (NS- Frauenschaft). Posteriormente foi instaurado o Serviço das Mães do Reich que incentivava as mulheres a terem filhos, dando prêmios para as mães com quatro ou mais filhos, entre outros programas de incentivo à família.48 Sendo assim, a resistência política de uma mulher, sobretudo de uma mulher que não se encaixava nesse padrão desejado do Reich, era, de fato, impressionante.49 Como aponta Inge Scholl: “eu estou convencida de que o que os Scholl e seus amigos começaram, o que Sophie - especialmente Sophie, como uma mulher – começou, ainda está sendo trabalhado. Ainda está pulsando no ar”.50 Do lado oposto, Hans Scholl é descrito nos livros como inteligente, charmoso, desinibido, com personalidade forte e imperativa – traços que são exaltados na literatura quando relacionados a ele, mas deixados de lado quando observados também em Sophie. Hans era identificado como o “líder” da Rosa Branca, juntamente com Alex Schmorell, por ter posturas mais incisivas e ideias mais concretas sobre como resistir ao regime. O trabalho de Hans na companhia médica lhe assegurava uma posição muito particular e conflitante, a de estudantemédico-soldado. A medicina teve predominância nas escolhas dos jovens mesmo antes da guerra. Em 1940, 62% de todos os estudantes estavam inscritos em faculdades de medicina. No entanto, eles eram obrigados a prestar serviço como médicos no exército no front quando lhes fossem demandados, além da necessidade de trabalhar durante as férias em fábricas ou em estágios em hospitais. Como lembra Inge Scholl, seu irmão levava “uma vida de estudante insólita: ora soldado, ora estudante, um dia no quartel, em seguida novamente na universidade ou na clínica médica”.51 Portanto, por um lado, Hans era obrigado a participar da guerra no front, mas, por outro lado, ele não precisava dormir em tendas, conseguia evitar inspeções e a Companhia Médica Estudantil,52 era, de maneira geral, pouco habitada por nazistas fanáticos: Eles incluíam um bom número de jovens que haviam entrado em medicina porque os livrava do campo de exercícios e permitia que continuassem estudando pelo menos parte do tempo. Para alguns, era francamente uma maneira de evitar o combate. O tom político de uma companhia médica era mais livre e fácil do que uma unidade convencional e a conversa mais desinibida. Havia menos perigo de cair nas mãos da Gestapo, já que o 48 EVANS. O Terceiro Reich no poder, pp. 583-584. Não deixa de ser curioso o fato de Sophie vir de uma família que era o exemplo de família ariana tradicional. Sua mãe entrava no padrão de mães do Reich, com uma família constituída por cinco filhos. 50 “I am convinced that what the Scholls and their friends started, what Sophie – especially Sophie, as a girl – started, is still at work. It is still pulsating in the air” Tradução minha. In: VINKE. The Short Life of Sophie Scholl, p. 214, grifo meu. 51 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 33. 52 Ver mais em: EVANS. O Terceiro Reich em guerra, pp. 683-685. 49 42 uniforme era uma barreira que a Gestapo deveria respeitar. A disciplina e a punição dos soldados eram funções reservadas somente ao exército. A adesão a uma companhia médica poderia, de fato, ser feita para servir de proteção ou abrigo, onde os dissidentes poderiam entrar em contato e se associar com menos medo de serem detectados do que na sociedade civil.53 Em suma, apesar de ser exigida a sua atuação na guerra, ser um estudante-soldado oferecia alguns privilégios e liberdades que os civis não possuíam. Por esses motivos, Hans conseguia ir para o front e retornar para Munique para continuar os seus estudos – ele nunca foi obrigado a permanecer no front durante um período muito longo de tempo. Entre os anos de 1941 e 1942, Hans teve que interromper seus estudos em Munique em vários momentos para servir a companhia tanto em estágios em hospitais, quanto em trabalhos no front, como na França, mas nunca por ocasiões demasiada extensas. Ele conhece Alex Schmorell e Christoph Probst no ano de 1941, e Willi Graf no ano de 1942. As datas dos primeiros encontros entre os amigos são imprecisas e foi necessário o cruzamento das fontes para averiguar com mais exatidão. Alex e Christoph eram amigos de muitos anos, “desde os tempos de colégio”, segundo o próprio Schmorell, já que ambos estudaram na escola secundária Neues Realgymnasium em Munique. Alex se junta à Companhia Médica Estudantil de Munique no fim de 1940 e conhece Hans no ano seguinte, quando ambos se preparavam para as provas na faculdade de medicina após serem liberados de seus serviços no front francês. A amizade entre os dois cresce e Alex começa a chamar Hans para encontros em sua casa, onde intelectuais, artistas e teólogos se reuniam com frequência. Em uma dessas reuniões, Probst estava presente e foi apresentado à Hans. Já Willi Graf só se uniu ao grupo em 1942, após a chegada de Sophie em Munique e também após o primeiro panfleto da Rosa Branca ter sido distribuído. Possivelmente ele foi apresentado a Hans por meio de Probst.54 Willi Graf, que era um católico fervoroso, também fez parte de um grupo clandestino de juventude nos anos de 1937-38, que possuía práticas similares às do d.j.I.II. Era uma associação católica chamada Grauer Orden (Ordem Cinzenta), pela qual Willi chegou a ser preso para interrogatório enquanto estudava na Universidade de Bonn, em 1937.55 Willi residia “They included a good many young man who had gone into medicine because it got them off the parade ground and allowed them to continue studying for at least part of the time. To some it was frankly a way of avoiding combat. The political tone of a medical company was more free and easy than a conventional unit and the talk more uninhibited. There was less danger of falling afoul the Secret State Police, since the uniform was a barrier the Gestapo was bound to respect. The discipline and punishment of soldiers was a function reserved to the army alone. Membership in a medical company could, in fact, be made to serve as a cover, or shelter, where dissidents were able to make contact and associate with less fear of detection than in civilian society” Tradução minha. In: HANSER. A Noble Treason, p. 112. 54 JENS, Inge. At the heart of the White Rose, pp. 152, 314, 321. 55 DUMBACH, Annette; NEWBORN, Jud. Sophie Scholl and the White Rose, p. 54. 53 43 em Saarbrücken e serviu na companhia médica na França, Iugoslávia e Rússia até ser enviado para Munique para continuar seus estudos, em 1941. Segundo Inge Scholl, sua irmã Sophie descreveu Willi desta forma: “quando ele fala com seu jeito minucioso, dá a impressão de não poder falar antes de se identificar plenamente com o que diz. Por isso, tudo nele parece tão íntegro, tão autêntico e altamente confiável”.56 Já Alex Schmorell era um caso à parte no grupo. Conhecido pelos amigos como Shurik, ele nasceu na Rússia, pátria de sua mãe, e foi para a Alemanha com quatro anos de idade com seu pai, que era médico e alemão. Instalaram-se em Munique e ele foi criado na Igreja Ortodoxa Russa, seguindo a fé de sua mãe. Alex falava russo e alemão fluentemente e seguiu a carreira de medicina por influência de seu pai. Assim como Hans, entrou na Juventude Hitlerista quando ela incorporou o coletivo de direita do qual fazia parte, a Juventude Scharnhorst. O jovem se voluntariou para ir para o front quando a guerra começou, e acabou indo para a França prestar serviços médicos. Quando retorna, vai estudar em Munique e é quando o grupo da Rosa Branca se forma. Como será apresentado nos próximos capítulos, o amor pela Rússia se torna uma questão muito importante para Schmorell, o que o faz seguir uma linha de resistência cada vez mais ativa, e cada vez mais à esquerda, pensando numa possível aliança entre a Alemanha e a União Soviética. Christoph Probst era o único casado entre os estudantes e, quando conheceu Hans Scholl, já tinha dois filhos, de dois e três anos, respectivamente. Probst não pertencia à mesma companhia médica que Hans, Alex e Willi, e residia em Innsbruck, onde era sargento da sua companhia médica. Quando foi preso, sua esposa tinha acabado de dar à luz ao terceiro filho do casal e ela só soube de sua prisão quando ele já havia sido executado. Probst estudou em internatos particulares durante toda sua vida, o que fez com que ele conseguisse evitar as pressões para ingressar na Juventude Hitlerista. O sistema de internatos na Alemanha foi capaz de manter suas linhas educacionais mesmo com a tentativa de nacionalização do ensino, e, quando a filiação à Juventude Hitlerista se tornou obrigatória, em 1936, Probst já havia se formado. Ele serviu como soldado-médico pela companhia estudantil em Munique, onde morou por um período, até conseguir continuar seus estudos em Innsbruck. O jovem era bastante religioso, apesar de nunca ter sido batizado formalmente como católico até às vésperas de sua execução. Christel, como era chamado pelos amigos, não teve uma onda de euforia quando Hitler tomou o poder, provavelmente pela educação que ele recebeu nos internatos - ao 56 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 38. 44 contrário de Hans e Sophie -, e sempre foi contra certos dogmas do governo,57 principalmente em relação ao programa de eutanásia.58 Quando as ações da Rosa Branca se tornaram mais abrangentes, com a impressão e distribuição de um número cada vez maior de panfletos, Hans e Alex tentavam excluir Probst das atividades, por ele ser o único membro com esposa e filhos. Alguns outros personagens na história da Rosa Branca são importantes de serem mencionados aqui. Uma delas é Traute Lafrenz, namorada de Hans por um período e atuante na propagação da resistência em Hamburgo, sua cidade natal. Inicialmente ela fez parte de um grupo de dissidentes em Hamburgo liderado pelo pediatra Rudolf Degwitz, que participou do golpe da cervejaria de Hitler em 1923,59 mas que, aos poucos foi perdendo sua crença no Partido Nazista e começou a ter severas críticas ao seu programa, principalmente na questão da eutanásia de crianças. Degwitz foi condenado por alta traição pelo Tribunal do Povo em 1944 e Traute transferiu seus estudos para Munique em 1941, onde conhece os membros da Rosa Branca e os auxilia nas atividades de resistência, tornando-se o principal elo entre Munique e Hamburgo. Muitas vezes deixada de lado pela bibliografia, Traute certamente foi uma das principais pessoas da resistência ativa da Rosa Branca na segunda fase, uma personagem feminina muito forte, ao lado de Sophie Scholl. Duas pessoas significativas na formação da resistência dos irmãos Scholl foram Theodor Haecker (1879-1945) e Carl Muth (1867-1944). Hans Scholl é apresentado a Carl Muth por seu amigo Otl Aicher em agosto de 1941, próximo ao começo das publicações de Windlicht. Muth era um jornalista católico, criador e editor da revista Hochland, banida pelos nazistas pouco antes de ele conhecer Hans Scholl, depois de quarenta anos de atividade (1903-1941). O periódico católico se dedicava a fazer um diálogo entre os católicos devotos e artistas, intelectuais e membros proeminentes da cultura alemã. Hochland, mesmo depois de 1933, manteve sua independência e críticas características, e “rapidamente tornou-se o principal veículo em que os católicos progressistas debatiam questões atuais de um aspecto literário, 57 HANSER. A Noble Treason, p. 117. O programa de eutanásia nazista, conhecido como Aktion T-4, teve início em 1939, e se consistia na eutanásia de centenas de pessoas consideradas doentes e com “todo tipo de debilidade mental”. Esquizofrênicos, crianças, dementes senis, criminosos, surdos, cegos e indivíduos que não cumpriam o requisito econômico de capacidade de trabalho produtivo eram involuntariamente eutanasiadas. Dentro dessa avaliação, aparentemente médica e econômica, encontrava-se a ideologia nazista eugenista de eliminar indivíduos que prejudicavam o crescimento da raça alemã pura a longo prazo. Ver mais em: EVANS. O Terceiro Reich em guerra, pp 118-120. 59 Também conhecido como Putsch de Munique, foi a tentativa malsucedida de Hitler de tomar o governo bávaro, em 9 de novembro de 1923. O golpe de Estado foi controlado pela polícia bávara, e resultou na prisão de Adolf Hitler e de seus correligionários. Foi durante esse curto período de prisão que Hitler escreveu Mein Kampf, o livro que seria seu manifesto político e a base da ideologia do futuro regime nazista. 58 45 social, filosófico, político e teológico”.60 A amizade entre Hans Scholl e Carl Muth cresceu rapidamente e, em outubro de 1941, ele trabalhava durante muitas tardes organizando e catalogando a biblioteca pessoal do editor de Hochland. Nessa época, os dois conversavam diariamente sobre arte, literatura e, principalmente, sobre a necessidade e obrigação cristã de resistir a um regime opressor. Muth logo se tornou uma referência para os Scholl, comentando e participando ativamente nas edições de Windlicht e influenciando religiosamente e ideologicamente os irmãos. Por meio de Carl Muth, Hans Scholl também conhece Theodor Haecker, que, na época, mesmo tendo sido proibido pelos nazistas de escrever ou publicar qualquer artigo, estava redigindo o que ficou conhecido como Jornal na Noite (Tag- und Nachtbücher)61. Haecker previamente havia sido um grande estudioso e tradutor das obras de Kierkegaard, quando começou a escrever secretamente ensaios e pequenos textos sobre o regime nazista, demonstrando a sua oposição intelectual e, posteriormente, foi reconhecidamente um importante membro da resistência católica na Alemanha. Sobre o oitavo aniversário da chegada de Hitler ao poder, Haecker escreve: “Nós, como nação, renegamos o 30 de janeiro de 1933. Desde então, como nação, nós estivemos na estrada errada, no lado errado” e, sobre a redenção do povo alemão: “precisaremos de muitas pessoas justas se houver qualquer coisa de nós que ainda possa ter um nome diante de Deus e do mundo”.62 Como explicitado no começo do capítulo, não só o ambiente familiar dos Scholl, como também o seu círculo de amizades, influenciou muito no caminho trilhado para a resistência. As referências de dois homens mais velhos63 e opositores do regime nazista, que expressavam suas ideias de resistência por meio de escritos, jornais e ensaios, representam uma forma de resistência espiritual para Hans Scholl. Foi a partir dessas conversas e desses encontros de leitura e discussões, que ele compreendeu melhor o significado da resistência e do dever do cristão perante o governo nazista. “Very soon became the principal forum at which progressive Catholics debated topical issues of a literary, social, philosophical, political, and theological complexion” Tradução minha. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 301. 61 HANSER. A Noble Treason, pp. 123-124. 62 “We, as a nation, apostatized the 30th January, 1933. Since then, as a nation, we have been on the wrong road, on the wrong side”; “we shall need very many just people if there is to be anything left of us that can still bear a name before God and the world” Tradução minha. In: HANSER. A Noble Treason, p. 124. 63 Quando Hans Scholl conheceu Carl Muth e Theodor Haecker, eles estavam com 74 e 62 anos, respectivamente. 60 46 A vida sob a suástica Os membros da Rosa Branca cresceram, foram educados e viveram a sua juventude durante o regime nazista. Portanto, é pertinente fazer uma breve análise sobre o que significava viver sob a suástica, isto é, como era a vida dos alemães naquela época. Traçar um panorama dos anos de 1933 até a eclosão da guerra me parece fundamental para ter uma ideia melhor dos dilemas que estes jovens enfrentaram e, sobretudo, por que seu o entusiasmo inicial com o NSDAP64 foi suprimido e se transformou em resistência. Para isso, trabalharei em três chaves: a repressão artística/cultural; a resistência das igrejas; a situação nas universidades. Quando o nazismo surge em 1933, uma das suas características mais fortes era a sua ideia de revolução cultural completa, além da necessidade incessante de legitimação popular. Para atingir esse fim, Goebbels utilizava da propaganda para cultuar o Führer e para enaltecer o estilo de vida ariano. A propaganda buscava atingir a todos, e em 1933 foram distribuídos aparelhos de rádios baratos chamados de receptores do povo, instrumentos que o trabalhador alemão conseguia comprar com uma semana de trabalho e que poderia ser pago em parcelas se necessário. Em 1939, mais de 70% das casas alemãs possuíam um receptor,65 o que possibilitou a propaganda nazista a se disseminar cada vez mais. Os discursos de Hitler eram transmitidos por rádio, bem como a “Hora da Nação”, que passava todas as noites. O rádio, como afirmou Goebbels,66 trabalhava a serviço da ideologia e pretendia colocar o povo todo a favor do regime. No primeiro ano de regime os nazistas deram início à repressão artística e cultural, bem como à manipulação da imprensa, com a implementação do diário do Partido, o Observador Racial (Völkischer Beobachter), uma leitura essencial para se inteirar sobre o que estava acontecendo na Alemanha. Ao lado do Observador Racial estava o Der Stürmer, o jornal antissemita e sensacionalista de Julius Streicher. Goebbels dava instruções sobre o que publicar e como publicar, de modo que a circulação de notícias se tornou cada vez mais homogênea e os jornalistas e editores não tiveram muita escolha a não ser ceder ao controle do Partido. Como a própria Inge Scholl afirma, os jornais “tinham a tarefa de consumar o embotamento total das mentes e espíritos alemães”.67 Os escritores não tiveram um destino muito diferente, já que a maioria emigrou ou estava exilado. Outros, optaram pela “‘emigração interna’, recuando de 64 Abreviação de Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. 65 EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 165. 66 GOEBBELS (1933) apud EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 167. 67 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 64. 47 temas humanos para escrever sobre a natureza, substituindo a descrição de eventos para escrever sobre tempos remotos ou sobre temas sem ligação com qualquer período específico”.68 A censura sobre a produção artística atuava de múltiplas maneiras, uma vez que, além da exclusão dos judeus e de qualquer dissidente ou pessoa de passado político suspeito, “a filiação à Câmara de Literatura do Reich era compulsória” e “não só para todos os escritores, poetas, roteiristas de cinema, dramaturgos, críticos e tradutores mas também para editoras, livrarias de livros novos e usados, bibliotecas que emprestavam livros e qualquer coisa ligada ao comércio de livros, incluindo publicações científicas, acadêmicas e técnicas”.69 Evans reforça que após a queima de livros nas cidades universitárias em 10 de maio de 1933, foi emitida uma lista negra de livros proibidos de compra, revenda e leitura, com mais de 400 títulos. Entre os autores que tiveram seus livros queimados e proibidos temos Thomas Mann, Walter Benjamin, Albert Einstein, Sigmund Freud, entre outros. Obras estrangeiras foram banidas, como Oliver Twist de Charles Dickens e livros de autores judeus ou que apresentavam o judeu como temática, também foram proibidos. Nesse mesmo ano, viu-se o expurgo de artistas judeus, de esquerda, de arte abstrata e de quase todos os artistas que tinham reputação internacional. Intelectuais começaram a fugir do país, como a própria Hannah Arendt e Thomas Mann. Os museus e os teatros também sofreram com o controle da produção e com a censura, bem como os concertos, óperas, músicos e compositores. O jazz e o swing foram reprimidos assim que os nazistas chegaram ao poder, por serem considerados degenerados, “estranhos à identidade musical alemã, associados a todo tipo de decadência e produzidos pelos racialmente inferiores afro-americanos e judeus”.70 Como disse Goebbels em um discurso de 1935: O Nacional-Socialismo não é apenas uma doutrina política, é uma perspectiva geral, total e todo-abrangente, sobre todas as questões públicas. Portanto, por uma questão de suposição natural, toda nossa vida tem que se basear nela. Esperamos que chegue o dia em que ninguém precisa mais falar sobre Nacional-Socialismo, visto que terá se tornado o ar que respiramos! Assim, o Nacional-Socialismo não pode se contentar com mera devoção da boca para fora, ele deve atuar sobre a mão e o coração. As pessoas devem se acostumar internamente com essa forma de se comportar, devem convertê-la em seu conjunto próprio de atitudes.71 Desta forma, a repressão, a censura e a propaganda trabalharam em conjunto para criar uma Alemanha orgânica como sociedade e como cultura. Afinal, a disseminação de informação 68 EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 187. Idem, ibidem, p. 191. 70 Idem, ibidem, p. 241. 71 GOEBBELS (1935) apud EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 249. 69 48 e de qualquer produto intelectual era controlada e monitorada, atingindo níveis quase orwellianos72 com os jornais do Partido e as rádios do Partido. Os nazistas não foram bemsucedidos em conseguir uma genuína mobilização espiritual de todo o povo alemão, mas tiveram sucesso em construir um tipo de conformidade apática na maioria.73 O nazismo também tentou se infiltrar na religião e em todas as formas de associação. Tentaram “nazificar” a Igreja Protestante para unificar a religião e a criação de uma igreja do Reich, já que a Igreja Evangélica Alemã, diferentemente da Igreja Católica, não era obrigada a lealdade a nenhum grupo ou instituição fora da Alemanha, como o papado. Os protestantes foram apoiadores entusiastas do nazismo e de Hitler nos primeiros anos, sendo favoráveis principalmente às ideias de supremacia racial e do nacionalismo exacerbado. Dietrich Bonhoeffer foi o mais proeminente membro da oposição protestante a dogmas do regime nazista, seguido por outros bispos e pastores, como Martin Niemöller, rejeitando a proposta de uma igreja unificada do Reich e criando um órgão rival, a Igreja Confessante. A Igreja Católica também apresentou alguma oposição, já que o Ministério da Propaganda atacava a instituição afirmando que ela era sexualmente corrupta, “uma chaga no corpo racial saudável”, que deveria ser eliminada. No entanto, como argumenta Richard Evans, é preciso uma relativização dessa resistência. Os religiosos de maneira geral, resistiam a algumas pautas específicas, como o programa T4 de extermínio de doentes físicos e mentais, mas não se opunham a outros dogmas, como o antissemitismo e repressão: A despeito da coragem de muitas figuras de liderança das religiões principais e de muitos membros comuns de suas congregações, nenhuma delas opôs-se ao Terceiro Reich em mais do que uma estreita frente religiosa. [...] A verdade era que, em um amplo leque de assuntos, as igrejas permaneceram caladas. As igrejas tanto Evangélica quanto Católica eram politicamente conservadoras, e o haviam sido por um longo tempo antes de os nazistas chegarem ao poder. Seu medo do bolchevismo e da revolução [...] reforçou sua ideia de que, se o nazismo se fosse, alguma coisa ainda pior poderia tomar seu lugar. A profunda e com frequência acrimoniosa divisão confessional na Alemanha fez com que ficasse fora de questão a união de católicos e protestantes contra o regime. [...] Ambos saudaram amplamente a supressão dos partidos políticos marxistas, comunistas e liberais, o combate da ‘imoralidade’ na arte, literatura e cinema, e muitos outros aspectos das políticas do regime. A longa tradição de antissemitismo tanto entre católicos quanto protestantes garantiu que não houvesse protestos formais das igrejas contra os atos antissemitas do regime. O máximo que elas estavam preparadas para fazer era tentar proteger os judeus convertidos em suas hostes e mesmo nisso sua atitude às vezes foi extremamente ambígua.74 72 ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 254. 74 Idem, ibidem, p. 299. 73 49 Sendo assim, percebe-se que a proposta de uma Alemanha totalmente orgânica abarcava todos os setores: a vida intelectual, artística, religiosa, e, também, a educação. O sistema educacional sofreu um baque com o Nacional-Socialismo, uma vez que houve uma mudança em todo o currículo escolar para abarcar e aprofundar a ideologia nas escolas. Evans aponta que “o objetivo da história era ensinar as pessoas que a vida sempre era dominada pela luta, que raça e sangue eram centrais em todos os acontecimentos do passado, presente e futuro, e que a liderança determinava o destino dos povos”, e ressalta a inclusão de temas centrais na educação, como “a coragem na batalha, o sacrifício por uma causa maior, admiração ilimitada pelo Líder e ódio aos inimigos da Alemanha, os judeus”.75 A ideologia adentrou as escolas, onde os discursos de Hitler eram transmitidos por rádio, os professores liam em voz alta trechos do jornal Der Stürmer e pôsteres de propaganda eram espalhados pelos quadros. Houve a inclusão da ideia de raça em todas as matérias, até em “aritmética social” onde eram feitos cálculos matemáticos com mensagens doutrinatórias escondidas,76 além das cartilhas e livros didáticos com conceitos-chave da ideologia nazista como espaço vital e superioridade da raça alemã. Os professores não tinham muito espaço para dissidência, já que havia uma pressão constante para seguir a linha nazista e uma palavra ou discurso mal interpretado poderia levar à detenção e demissão do professor. Na tentativa de doutrinar os jovens, os grandes aliados do regime nazista foram a Juventude Hitlerista e a Liga das Moças Alemãs, que tomaram o monopólio da educação das crianças e incorporaram todas as antigas associações de jovens e grupos e movimentos de juventude existentes anteriormente, como já foi discutido. A Juventude Hitlerista começou a crescer exponencialmente a partir de 1933 e no final de 1935 contava com 4 milhões de meninos e meninas entre dez e 18 anos de idade; em 1939, esse número atingiu 8,7 milhões.77 O doutrinamento que os jovens alemães recebiam pela Juventude Hitlerista era incessante. Embora tomasse emprestado o estilo das organizações de jovens existentes, com caminhadas, acampamentos, canções, rituais, cerimônias, esportes e jogos, era uma organização enfaticamente controlada de cima, dirigida não pelos próprios jovens, como o antigo movimento jovem havia sido, mas pela liderança da juventude do Reich, subordinada a Schirach. A organização emitiu diretrizes rígidas sobre as atividades executadas. Todos os que se filiavam tinham que jurar um voto de lealdade pessoal a Hitler. O treinamento era compulsório e obrigatório por lei [...] As canções que 75 EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 306. Por exemplo, perguntar às crianças quanto custava ao Estado para manter um doente mental vivo em um asilo. 77 Idem, ibidem, p. 316. 76 50 cantavam eram nazistas, os livros que liam eram nazistas [...] Com o passar do tempo, o treinamento militar assumiu cada vez mais o primeiro plano.78 A ideologia passou a permear todos os âmbitos das escolas e do método de ensino, e professores e alunos viviam com medo de denúncias e se viam coagidos a compactuar com o regime. A Juventude Hitlerista entrou como a cereja do bolo, como mais um passo na doutrinação ideológica, proibindo todas as outras formas de livre associação e fazendo com que os jovens só conhecessem o que existia dentro do pensamento nacional-socialista. Nas universidades a situação também não era muito diferente: se na educação básica existia a Juventude Hitlerista para doutrinar e controlar as crianças, nas universidades, existia a Liga dos Estudantes Nazistas. A Liga dos Estudantes Nazistas, apesar de ter uma abrangência mais limitada que a Juventude Hitlerista, a partir de 1936 absorveu todas as fraternidades e grupos de jovens que permaneciam nas universidades. Sendo assim, ela “obteve a supremacia entre o grupo estudantil” e tirou “efetivamente do caminho outras instituições representativas de estudantes”.79 Essa concepção de não existir vida fora do Partido com o fim de todas as formas de cooperação e organização livres era muito eficiente, uma vez que os indivíduos não tinham para onde ir e nem sabiam com quem poderiam conversar caso tivessem alguma discordância. Qualquer um poderia denunciar um comentário maldoso. As mulheres foram as mais afetadas pelas políticas de ingresso na universidade, como veremos no terceiro capítulo. O currículo universitário foi reduzido e grande parte do tempo de estudo era tomado por serviço militar obrigatório nas férias ou em feriados e períodos intermediários. Como veremos, Sophie e Hans Scholl sofreram com essas medidas, já que a partir de 1934, o serviço de seis meses se tornou obrigatório para todos os estudantes que já haviam sido aprovados na universidade, assim como, para as mulheres, a necessidade de “um ano doméstico” antes de começar a estudar. O objetivo desse programa era “não só dar expressão prática ao comprometimento com a construção da nova Alemanha, como também ajudar o esnobismo de classe e a arrogância intelectual dos muito cultos”.80 O projeto, no entanto, foi um fracasso, visto que os estudantes, em sua maioria de classe média, não se identificavam com o trabalho braçal e odiavam o período em que serviram nos campos. A disciplina militar e as longas horas de trabalho físico esgotavam esses estudantes que, além de 78 EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 318. Idem, ibidem, p. 342. 80 Idem, ibidem, p. 348. 79 51 serem obrigados ao serviço compulsório pré-universitário, também eram obrigados a serviços não remunerados durante as férias em fábricas ou fazendas. Os nazistas tinham um profundo desprezo pelos intelectuais, pelos que lecionavam e pelos que estudavam nas universidades, posto que consideravam um desserviço estudar quando o país precisava de homens no front e de mulheres para “dar um filho ao Führer”. Contudo, a proposta de inserir a ideologia nazista nas aulas das universidades surtiu muito pouco efeito – ao contrário das escolas -, já que os professores conseguiam com bastante sucesso evitar as terminologias nazistas e discursos ideológicos que não se adequavam ao nível sofisticado e profundo da educação superior. Em 1938, o Serviço de Segurança da SS 81 concluiu que em quase todas as universidades existiam “queixas sobre a passividade dos professores conferencistas, que rejeitam qualquer trabalho político ou ideológico que rompa as fronteiras estreitas de suas especialidades”.82 Enquanto o ensino de História conseguiu de alguma forma resistir à ideologia nazista, preservando o grande legado de historiadores alemães contra o novo anti-intelectualismo, no curso de Medicina o contraste não poderia ser maior. Os estudos raciais tomavam muito tempo e energia do curso e, apesar de a qualidade dos professores ser “com frequência pobre e o conteúdo do que ensinavam cientificamente dúbio, a higiene racial era no mínimo aceita em princípio pela maioria das faculdades de Medicina”.83 A Medicina era uma área importante para o Partido, que tinha a intenção de inserir progressivamente a higiene racial no conteúdo das matérias dos estudantes, a fim de incutir a ideia de melhoria da raça para o que viria a ser no futuro as pesquisas de prevenção, a eliminação de influências negativas sobre a raça, a esterilização à força e, posteriormente, o assassinato, embasado no aspecto neutro de uma simples medicina preventiva. Os estudantes médicos foram gradativamente sendo demandados pelas Forças Armadas por conta da guerra, o curso de medicina foi encurtado e eles tinham cada vez mais obrigações para com o Partido. Como afirma Richard Evans, “os nazistas viam o sistema educacional em primeiro lugar como um meio de incutir sua visão de mundo nos jovens, e ainda mais como um meio de treiná-los e prepará-los para a guerra”, de modo que “qualquer coisa que ficasse no 81 Abreviação de Schutzstaffel, uma organização paramilitar que servia como Tropa de Proteção, mas que a partir de 1939 contava com o seu próprio exército armado independente do exército nacional (a Wehrmacht). A SS absorveu a Gestapo e comandava os campos de concentração e de extermínio nos países ocupados. 82 Relatório da SS (1938) apud EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 354. 83 Idem, ibidem, p. 367. 52 caminho, inclusive valores educacionais tradicionais, como liberdade de indagação, inteligência crítica ou o ideal da pesquisa pura, seria deixada de lado ou abolida”.84 Desta maneira, para os jovens da Rosa Branca, crescer sob o regime nacional-socialista implicava em uma série de privações, obrigações e regulamentações. Os longos períodos de trabalho para poder ingressar na tão sonhada universidade, os serviços contínuos para o Reich que atrapalhavam os estudos que já estavam precários, a falta de liberdade para questionar qualquer coisa, as proibições de publicações e livros que eles gostavam, a presença de Carl Muth e Theodor Haecker que só reforçava que não era possível de maneira nenhuma expressar a sua opinião livremente: tudo isso representava a tensão ininterrupta de viver sob a suástica. Com a eclosão da guerra, a vida na Alemanha se tornou ainda mais sobrecarregada. Inge Scholl recorda o que significava isso: Nos jornais saíam cada vez mais notícias sobre sentenças de morte proferidas pelo Tribunal do Povo contra pessoas que se opunham ao tirano, mesmo que só com palavras. Hoje era um pianista, amanhã um engenheiro, um operário ou um diretor de fábrica. Entre eles havia padres, um estudante ou um oficial de alta patente [...]. As últimas páginas dos jornais estavam cobertas com obituários dos soldados mortos em batalha, com os típicos símbolos da cruz de ferro. Os jornais pareciam cemitérios. Apenas a primeira página tinha um aspecto diferente. Era dominada por manchetes insuportavelmente grandes, como: ‘O ódio é nossa oração – e a vitória, nossa recompensa’. Sublinhadas por traços grossos e vermelhos, que pareciam veias inchadas de fúria. [...]. Os jornais eram como campos minados. Não fazia bem a ninguém passear por eles. Toda a Alemanha era um campo minado, o tempo inteiro; nossa pobre pátria assolada.85 Toda a Alemanha parecia um campo minado e resistir se tornou, realmente, um imperativo. O contexto histórico apresentado é fundamental para entender como esse grupo de jovens desenvolveu sua resistência, já que cresceram sob o regime nazista. Tendo em vista o apanhado histórico feito até aqui, agora darei início à análise conceitual do regime nazista, com base nos conceitos de totalitarismo e de compreensão. O olhar aprofundado em torno do conceito de totalitarismo é essencial não só por esse ser um conceito que perpassa todo este trabalho, mas também, e principalmente, por ser o pilar para todos os questionamentos que me fiz ao longo da escrita. As indagações sobre resistência, ação, humanidade, moralidade e o mal não fazem sentido se não inserirmos o totalitarismo como uma forma de dominação possível dos tempos modernos. Pensar sobre o totalitarismo significa não 84 85 EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 368 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 63-64, grifos meus. 53 apenas olhar para o mundo em que vivemos, mas chamar atenção para nós mesmos, enquanto seres humanos. Logo, analisar um grupo de resistência no totalitarismo implica em lançar um olhar atento sobre a própria ideia de totalitarismo, de uma forma de dominação total. E, ainda, entender que o totalitarismo está nos campos de possibilidades do fazer político: para combatêlo, é imprescindível a tarefa infindável e jamais completa, de compreendê-lo. Compreender o totalitarismo O perdão não é condição nem consequência da compreensão. Perdoar (com certeza, uma das maiores capacidades humanas e talvez a ação humana mais ousada, na medida em que tenta o aparentemente impossível, a saber, desfazer o que foi feito, e consegue criar um novo começo quando tudo parecia ter chegado ao fim) é uma ação única e culmina num gesto único. Compreender é infindável e, portanto, não pode gerar resultados definitivos. É a maneira especificamente humana de viver, pois todo indivíduo precisa se sentir conciliado com um mundo onde nasceu como estranho e onde sempre permanece como estranho, na medida de sua singularidade única. A compreensão começa com o nascimento e termina com a morte. Na medida em que o surgimento dos governos totalitários é o acontecimento central de nosso mundo, compreender o totalitarismo não é desculpar nada, mas nos conciliar com um mundo onde tais coisas são possíveis.86 O conceito de compreensão de Hannah Arendt perpassa todo esse trabalho. A compreensão de fenômenos políticos e humanos nos é apresentada pela autora como uma tarefa necessária, porém complexa e profunda - que não cessa e que se liga ao conhecimento. Ela entende que não existe nenhum episódio em que não seja possível um esforço de compreensão, nem mesmo um evento que abalou todas as nossas estruturas morais e de julgamento. A compreensão se mostra necessária para que os homens aceitem o que aconteceu e se reconciliem com o que existe; ela se liga ao outro lado da ação política, que intrinsecamente quer dizer: dar um novo início. Desta forma, como dito na Introdução, meu objetivo aqui não é apenas construir uma narrativa, mas, dar um sentido ao passado, compreendê-lo para atingir uma reconciliação, entendendo a reconciliação como permanente e não definitiva. A reconciliação é do tempo mundano, sendo, portanto, sempre confrontada por forças do passado, do presente e do futuro. Se pensar é sempre repensar, compreender é infindável e a reconciliação é contínua. A compreensão nasce do pensamento e precisa de reflexão para examinar os acontecimentos e os 86 ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo (ensaios). São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 331, grifo meu. 54 eventos, mas, não gera conclusões definitivas. Dessa atividade da compreensão, existe a possibilidade de uma reconciliação com o passado, mesmo sendo um passado tão traumático como o totalitarismo. Compreender é relevante para mim, enquanto historiadora, por propor uma abordagem da história que me é muito cara. Enxergar a produção historiográfica como uma aliada do fazer cívico foi algo que sempre me pareceu possível, mas que só fez sentido quando detive parte do meu estudo a história filosófica do político, como apresentado na Introdução. Nem sempre bem vista, esta história que dá as mãos para a filosofia e a sociologia se mostra para mim como fundamental para pensar no totalitarismo, precisamente por entender que não está esgotada a possibilidade de um novo totalitarismo simplesmente porque os regimes nazista e stalinista tiveram fim. E, também, por enxergar que esta possibilidade não significa uma necessidade, uma vez que, como diria Hannah Arendt, os seres humanos estão condenados a fazer o seu próprio destino no terreno sempre indeterminado da liberdade e da ação. Busco com este aparato conceitual pensar em uma história compreensiva e, por ser compreensiva, fadada ao recomeço, a novas análises, novos olhares, novas perspectivas e, sobretudo, novos ensinamentos. Compreender também é significativo para mim, enquanto ser humana, agente política e integrante da sociedade moderna. Isto porque é um conceito que, aliado à ideia de reconciliação, nos permite fazer as pazes com passados traumáticos – e isso pode ser aplicado em várias áreas da nossa vida em particular. Sua aplicação na vida comum é ainda mais essencial. Considero que a reconciliação com o totalitarismo significa precisamente o que Hannah Arendt diz: nos conciliar com um mundo onde tais coisas são possíveis. Estudar os aspectos mais horríveis do sombrio tempo do século XX expressa uma tentativa de entender o que virá deste estudo, deste conhecimento e desta narrativa. Como lembra Arendt: “humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao falar disso, e no curso da fala aprendemos a ser humanos”87 e as coisas humanas só se tornam humanas para nós quando podemos discuti-las com nossos companheiros. Então: A dificuldade de se encontrar uma atitude razoável talvez se expresse mais claramente como o clichê de que o passado ainda não foi ‘dominado’ e na convicção, sustentada principalmente por homens de boa vontade, de que a primeira coisa a se fazer é tratar de ‘dominá-lo’. Talvez não se possa fazê-lo com nenhum passado, mas certamente com o passado da Alemanha hitlerista é impossível. O máximo que se pode alcançar é saber precisamente o que foi ele e suportar esse conhecimento, e então esperar para ver o que virá desse 87 ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 34. 55 saber e desse suportar [...]. Não podemos dominar o passado, mais do que desfazê-lo. Mas podemos nos reconciliar com ele [...]. Tanto quanto seja possível algum ‘domínio’ do passado, ele consiste em relatar o que aconteceu; mas essa narração, que molda a história, tampouco resolve qualquer problema e não alivia nenhum sofrimento; ela não domina nada de uma vez por todas. Ao invés disso, enquanto o sentido dos acontecimentos permanecer vivo – e esse sentido pode persistir por longuíssimos períodos de tempo -, o ‘domínio’ do passado pode assumir a forma de narração sempre repetida. O poeta, num sentido mais geral, e o historiador, num sentido muito específico, tem a tarefa de acionar esse processo narrativo e de envolver- nos nele.88 Compreender o totalitarismo seria, portanto, uma tentativa de conhecer e esperar para ver o que virá desse saber. Esse porvir permanece se modificando e pode levar a uma reconciliação, que não significa de fato perdoar nada, e sim, acolher o mundo em que vivemos e tentar torná-lo mais humano. Acredito que falar sobre o totalitarismo e lutar para que ele não retorne seja uma das expressões do amor mundi, do momento em que decidimos que amamos o mundo o suficiente para tomar responsabilidade por ele. Pretendo utilizar o conceito de Hannah Arendt de totalitarismo para compreender a dinâmica do regime nazista. Como argumenta Newton Bignotto, o conceito de totalitarismo de Arendt nos serve para compreender uma força de dominação que atingiu as sociedades modernas, “um produto de uma época que ainda não esgotou seu sentido para nós”. Neste sentido, o nazismo se apresentou como uma forma histórica desse novo tipo de regime político, assim como o stalinismo na União Soviética. Arendt se esforça para apresentar os traços desse tipo de regime que, para ela, foi único e que não poderia ser concebido dentro das teorias de regimes tradicionais. A filósofa entende o totalitarismo como uma possibilidade política da Modernidade e que foi possível justamente por estar inserido nessa Modernidade. Segundo Bignotto: O conceito de totalitarismo não foi forjado por Arendt. Já na segunda década do século 20, a palavra aparecia associada ao regime dominado por Mussolini, mas foi, sobretudo, a partir dos anos 1930, no período de ascensão e consolidação do nazismo, que o conceito ganhou forma e apareceu em estudos, como os de Raymond Aron ou de Franz Neumann, -dedicados a compreender as experiências ameaçadoras que ganhavam corpo na Europa. [...] Sem desconhecer as diferenças entre a experiência dos diversos países, Arendt acreditava que podíamos nos servir do conceito de totalitarismo para abordar os problemas resultantes de um regime que destruía o terreno da política e fazia do terror uma forma central do relacionamento do Estado como seus cidadãos. Mais que isso, ela mostrava que o totalitarismo era o produto de um século que havia jogado por terra as antigas teorias políticas, tornando obsoletos conceitos que antes orientavam os que se ocupavam das questões de governo e de suas formas. Uma nova barbárie havia sido gestada por um regime sem comparação com aqueles conhecidos pela tradição. [...]. Um 88 ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios, pp. 28-30, grifos meus. 56 segundo aspecto importante da herança arendtiana é a capacidade que ela demonstrou de apontar os traços fundamentais que distinguem os regimes extremos do século 20. Ao analisar o papel do líder totalitário e mostrar os laços que o unem às massas desenraizadas e solitárias de nosso tempo, ela soube compreender o significado da solidão num tempo em que as comunicações aparentemente aproximaram os homens. Ao apontar para a progressiva destruição da esfera pública, que implicou o colapso do sistema partidário e em última instância da ideia mesma da pluralidade como valor primeiro das sociedades livres, ela mostrou ao mesmo tempo o lugar do qual nasce a experiência democrática e os limites de suas instituições. Finalmente, ao estudar o papel do terror na estrutura de domínio total, ela apontou para a destruição dos laços éticos entre os homens como a consequência necessária de uma sociedade sem política.89 Sendo assim, o conceito de totalitarismo está sendo utilizado em todo esse trabalho pensando apenas na análise da autora para o regime nazista. De acordo com Hannah Arendt, para compreender e combater o totalitarismo, precisamos entender que o totalitarismo é a negação total da liberdade. Para ela, o sentido único da política é a liberdade, portanto um regime que se constitui pela ausência de toda liberdade, também se constitui na negação da própria política. Ela concebe a política como o espaço onde os homens podem debater suas ideias livremente, onde sua liberdade possa aparecer e onde a pluralidade humana seja respeitada, pois não podemos falar do homem e sim dos homens. Marc Bloch já defendia que o objeto da história são os homens, a diversidade.90 Para Arendt, um regime totalitário possui um conjunto de características, tais como: o terror, a polícia secreta, o fim de todas as liberdades, o desprezo pela norma jurídica, o conflito constante entre Partido e Estado, a duplicação dos órgãos do Estado, os campos de concentração, o racismo, o isolamento dos indivíduos, a transformação dos indivíduos em seres supérfluos, a burocracia. Resumidamente: “o governo totalitário sempre transformou as classes em massas, substituiu o sistema partidário não por ditaduras unipartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o centro do poder do exército para a polícia e estabeleceu uma política exterior que visava abertamente ao domínio mundial”.91 O terror totalitário seria diferente de qualquer outra forma de terror por três razões: era um terror que não diminuía, pelo contrário, só crescia mesmo quando a oposição já não existia;92 era um terror contra pessoas inocentes; e, por ser um terror sem fim, culminava em 89 BIGNOTTO, Newton. Arendt e o totalitarismo. In: Revista Cult, edição 129, São Paulo. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/arendt-e-o-totalitarismo/, Acesso em 30/07/17. 90 BLOCH, Marc. Apologia da história ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 54. 91 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 512. 92 Isso pode ser observado após 1936, já que nos três primeiros anos do nazismo toda a oposição política foi eliminada maciçamente. 57 um ambiente onde a paz jamais reinaria. Para um governo totalitário se manter no poder, ele precisa estar sempre em movimento e o terror é a essência desse governo. O totalitarismo elimina a liberdade pública e também a liberdade e vivência privada, destrói a capacidade de pensar e também de agir. No totalitarismo o inocente de hoje poderia ser culpado amanhã e é por isso que Arendt insiste em dizer que as vítimas do totalitarismo eram pessoas completamente inocentes, porque na realidade, não foram apenas os “inimigos de Estado” que foram eliminados. Culpado era quem ficava no caminho do terror e isso é essencial para compreender o julgamento da Rosa Branca, que se deu de forma muito rápida e sem a menor piedade. Hans e Sophie Scholl foram presos em 18 de fevereiro de 1943, julgados em 22 de fevereiro e executados em 23 de fevereiro.93 Ou seja, desde a prisão até a execução, se passaram apenas cinco dias. Para o governo era imperdoável que alemães de classe média, universitários e vindos de famílias tradicionais, estivessem se voltando contra o Führer, mais ainda que um professor universitário fizesse isso – afinal, a função do professor, segundo o juiz Roland Freisler, era a de ajudar o Partido com o ensino e manutenção de pressupostos ideológicos da sociedade nazista. Além disso, há outro elemento constitutivo do regime totalitário que se tornou muito poderoso: a ideologia. Para Arendt, a ideologia é a lógica de uma ideia, isto é, fornece uma determinada visão de mundo explicativa. A ideologia tenta explicar o mundo através de um postulado. Por exemplo, o antissemitismo por si só não é uma ideologia. Ele só se constitui uma ideologia no momento em que toda a vida é esclarecida pela ideia de que os judeus são inferiores e que estão conspirando para uma dominação mundial. A ideologia se torna de fundamental importância quando os habitantes de um regime totalitário não conseguem mais distinguir o que é verdade e o que é apenas fruto da propaganda. Desta forma: “quem concordasse com a existência de ‘classes agonizantes’ e não chegasse à consequência de matar os seus membros, ou com o fato de que o direito de viver tinha algo a ver com a raça e não deduzisse que era necessário matar as ‘raças incapazes’, evidentemente era ou estúpido ou covarde”.94 A ideologia busca explicar tudo, o passado, o presente e o futuro, sem nenhuma relação com uma realidade concreta: se não é verdade que os judeus estão em uma conspiração para a eliminação da raça ariana, então esconde-se e manipula-se os fatos de modo que isto pareça ser verdade. O totalitarismo elimina o espaço onde a liberdade pode aparecer, o terror elimina a relação entre os homens e a ideologia elimina a relação com a realidade, tornando os homens 93 94 Sentenças do Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 121-125. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo, p. 524. 58 incapazes de pensar e, portanto, incapazes de agir. Terror e ideologia andam juntos, uma vez que “o terror é necessário para tornar e manter o mundo coerente, para dominar os seres humanos até que percam a espontaneidade e, com ela, a imprevisibilidade especificamente humana do pensamento e da ação”.95 Essa eliminação da espontaneidade é o que Hannah Arendt chama de transformar os indivíduos em seres supérfluos. O aspecto mais horrível do terror é que ele junta indivíduos isolados, deixando-os ainda mais isolados, já que apenas indivíduos totalmente isolados podem ser dominados. Ela explica: “com os termos ‘sociedade atomizada’ e ‘indivíduos isolados’, designamos um estado de coisas em que as pessoas convivem sem ter nada em comum, sem compartilhar nenhum campo visível e tangível do mundo”.96 Para ela, o isolamento e o desenraizamento são características de nossos tempos e é importante lembrar que solidão e isolamento não são a mesma coisa. Quando estou sozinha, não estou só, estou comigo mesma. A solidão se dá no diálogo interno entre eu e eu mesma, o que Arendt chama de dois-em-um. Sendo assim, quando se está em solidão, potencialmente se está com os outros, porque quem suporta a própria companhia provavelmente suportará a companhia de outrem. O isolamento, pelo contrário, se dá quando o homem é abandonado ou separado de seus companheiros, não ficando nem mesmo na sua própria companhia. Um homem isolado não é um homem que está sozinho, pois sozinho ele ainda estaria consigo mesmo. Um homem isolado não tem ninguém, ele “foi abandonado até pelo seu próprio eu e está perdido no caos das pessoas”.97 A formação da sociedade de massas é uma das características da Modernidade, e representa uma massa homogênea de homens sem representação política, sem organização, sem interesses em comum e sem preocupação pelo coletivo. Não há mais indivíduos, apenas seres da mesma espécie e os homens passam a não ver mais o mundo como pertencente ao público, nada os agrega a um objetivo ou interesse comum. Os homens massificados e moldados pela ideologia totalitária são profundamente indiferentes quanto à política, se recusam a participar da esfera pública e não têm iniciativas para criar algo novo. O totalitarismo elimina a pluralidade humana e a livre associação entre os homens, acaba com o espaço-entre, ou seja, o espaço onde nasce a política, juntando todos os homens em um cinturão de ferro e criando o Um-Só homem. Agrega todas as pessoas, suprime a singularidade e, ao mesmo tempo, elimina o diferente. O objetivo do totalitarismo é o de transformar o homem em um animal de reações 95 Idem. Compreender, p. 369. Idem, ibidem, p. 376. 97 Idem, ibidem, p. 378. 96 59 idênticas e previsíveis, como o cão de Pavlov,98 que Hannah Arendt usa em muitos de seus textos. A figura do líder, enquanto representante das necessidades e transmissor de poder, oferece às massas uma visão e explicação do mundo. O objetivo do totalitarismo é a manutenção da sociedade de massas, não a transformação de todos em fanáticos nazistas; pretende-se que todos os indivíduos se tornem o cão de Pavlov. Sem a sociedade de massas e a força da ideologia e do terror, o nazismo, enquanto realização histórica do conceito de totalitarismo, não seria possível. Por que fizemos toda essa digressão conceitual? Não somente porque o conceito de totalitarismo perpassa todo este trabalho, mas, sobretudo, para tentar adentrar mais profundamente nas angústias que a população alemã vivia nos anos de 1940. Indivíduos isolados e supérfluos, constantemente amedrontados pelo terror, sem conseguir enxergar nada além da ideologia, sem liberdade e sem poder de ação. Nesse contexto político e social, como entender um grupo de resistentes? Arendt nos lembra que a dominação totalitária se choca com o humano e com a contingência do fazer histórico. Ao mesmo tempo em que o totalitarismo não é um acaso histórico ou uma exceção de nossos tempos por estar dentro do campo de possibilidades da condição humana e política, assim também está a capacidade de resistir a ele. Segundo Bauman, o mal não é todo poderoso, podemos resistir a ele. Tudo se trata, “nos raros momentos em que as cartas estão abertas sobre a mesa”,99 de uma escolha. E essa escolha pode impedir catástrofes.100 Eis o sentido da resistência da Rosa Branca, um grupo cuja espontaneidade não foi totalmente eliminada: Para que um governo totalitário atinja seu objetivo de controle total sobre os governados, as pessoas devem ser privadas não só de suas liberdades, mas também de seus instintos e impulsos, que não são programados para gerar reações idênticas em todos, mas sempre levam diferentes indivíduos a diferentes ações. O êxito ou fracasso do governo totalitário, portanto, depende em última análise de sua capacidade de transformar seres humanos em animais pervertidos. De modo geral, isso nem sempre é possível, mesmo sob as condições do terror totalitário. A espontaneidade nunca pode ser inteiramente erradicada, porque a vida como tal, e com certeza a vida humana, depende dela. Mas, nos campos de concentração, é possível extirpar grande parte da espontaneidade ou, em todo caso, se dedica o máximo de esforço e atenção às 98 Experiência realizada pelo fisiologista russo Ivan Pavlov. A experiência consistia em treinar cães para salivar toda vez que ouvissem uma sineta, já que associavam o barulho da sineta a receber comida. A experiência comprovaria que nossos reflexos podem ser recriados e controlados, e mais ainda, condicionados, abrindo espaço para a psicologia comportamental. 99 No original “When the chips are down”, uma expressão que Arendt usa com frequência em seus textos para “se referir às situações críticas nas quais se é compelido a pensar por si próprio”. Nota da edição brasileira, In: ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 364 100 Idem, ibidem, p. 257. 60 experiências com essa finalidade. Para tanto, evidentemente, as pessoas têm de ser privadas dos últimos traços de sua individualidade e transformadas em conjuntos de reações idênticas; tem de ser afastadas de tudo o que lhes conferia identidade e singularidade na sociedade humana.101 As duas fases da resistência da Rosa Branca A Rosa Branca possuiu duas fases de resistência bem distintas, uma em 1942 e outra em 1943. Nos Panfletos da Rosa Branca é possível perceber uma resistência embasada primordialmente na ideia de sabotagem. Os quatro primeiros panfletos propõem a resistência não violenta, apresentando mecanismos para sabotar o Partido Nazista. Nos Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha a retórica muda por completo, a resistência pregada é mais ativa e há o desejo de união e colaboração com outros grupos de resistência existentes. Neste momento, outras ações de resistência aparecem em conjunto com a ação panfletária, como as pichações nos muros e os encontros com Falk Harnack. Ao longo dos capítulos essa diferença ficará mais clara e será explicada mais detalhadamente, mas é importante tratar do conceito de resistência nesse momento, por ser um conceito polissêmico. Como dito anteriormente, a principal fonte sobre a história da Rosa Branca é o livro de Inge Scholl. A visão que nos é apresentada por Inge em seu livro, a de que era possível resistir, pode levar a conclusões muito equivocadas e injustas. A construção da memória da Rosa Branca, que a assinala como um símbolo, serve para que o público aponte exemplos como o desses jovens (que eram uma minoria entre a população) para culpar os que não se revoltaram. Como foi apresentado, o totalitarismo busca acabar completamente com a liberdade e espontaneidade do homem, reduzindo-o apenas a um animal com reações idênticas. Qualquer ato de resistência poderia – e era, na maioria das vezes – punido com a morte, o que deixa o campo de possibilidades muito restrito. Além disso, é preciso lembrar que o conceito de resistência se torna mais amplo em um regime totalitário e muitas atitudes que em outro governo e em outro local não são consideradas atitudes resistentes, devem ser levadas em consideração na Alemanha nazista. De acordo com os dados de Peter Hoffman,102 cerca de 3 milhões de alemães foram presos em algum tipo de campo de concentração ou em prisões tradicionais por 101 ARENDT, Hannah. Compreender, p. 327. HOFFMAN, Peter. The History of the German resistance, 1933-1945. 3 rd English ed. Canada: McGill-Queen’s University Press, 2001. 102 61 motivos políticos, dos quais 800.000 foram presos por resistir ativamente ao regime e 10.000 foram mortos por apresentarem alguma forma de resistência. A resistência partidária e político-ideológica ao regime nazista foi eliminada pouco depois que Hitler assumiu o poder, já em 1933, quando grupos como comunistas, socialistas e liberais foram levados a campos de concentração ou prisões. Neste mesmo ano foi emitido um decreto emergencial que, entre outras coisas, proibia a distribuição de qualquer artigo impresso, fosse ele um jornal, um pôster ou um panfleto, com o perigo de prisão imediata dos autores do artigo e de qualquer pessoa que soubesse deste tipo de atividade ilegal e não a denunciasse. Esse decreto também proibia reuniões ao ar livre que pudessem “colocar em perigo a segurança pública”. A repressão aos opositores e resistentes começou muito cedo, como argumenta Richard Evans: Em 1933, um enorme aparato de vigilância e controle foi rapidamente criado para rastrear, deter e punir qualquer um que se opusesse ao regime nazista, inclusive uma considerável terça parte do eleitorado que havia votado nos partidos de esquerda nas últimas eleições livres alemãs. Ao final de 1935, a oposição organizada havia sido completamente esmagada. A ‘Noite das Facas Longas’ também foi uma lição para os dissidentes dentro do Partido Nazista, sobretudo, é claro, para os milhões de homens que pertenciam ao turbulento movimento paramilitar camisa-parda. Políticos de muitos outros partidos, de democratas a nacionalistas, haviam sido ameaçados, até assassinados como um aviso para os outros entrarem na linha. Mas, de 1936 em diante, o terror aberto foi cada vez mais dirigido contra as relativamente pequenas minorias, como comunistas e social democratas tenazes ou comprometidos, antissociais e preguiçosos, pequenos criminosos e [...] judeus e homossexuais. 103 Neste sentido, é possível perceber que o potencial para uma resistência ativa era muito pequeno, sobretudo porque a população civil não tinha acesso direto a Hitler para tentar uma ação mais “eficiente” e “frontal”. É por esse motivo que devemos expandir o conceito de resistência no regime nazista, já que se formos considerar como resistentes apenas os que buscavam uma ação efetiva - como um atentado ou um golpe de Estado - iremos analisar apenas os conspiradores à morte de Hitler de 1944. É importante destacar que “a questão de como resistir à dominação total, ou como preservar a capacidade de resistir diante de um ataque consciente, implacável e contínuo a essa capacidade, foi ao mesmo tempo prática e filosófica”.104 103 EVANS. O Terceiro Reich no poder, p. 142. “The question of how to resist total domination, or how to preserve the capacity to resist in the face of a conscious, merciless and sustained attack upon it, was at once practical and philosophical” Tradução minha. In: CAYGIL, Howard. On resistance: a philosophy of defiance. Bloomsbury Publishing Plc, 2013, p. 137. 104 62 É fundamental, portanto, um exame mais detalhado do conceito de resistência pensando especificamente na Alemanha nazista, tendo em vista que muitas das análises são feitas baseadas na resistência francesa à ocupação alemã – inclusive, usando “Resistência” em maiúsculo, para esta última, e “resistência”, em minúsculo, para todas as outras formas de resistência. Esta investigação é indispensável uma vez que grande parte das teorias produzidas sobre o conceito de resistência se dão com o uso do par “resistência x ocupação” e esse não é o caso da Alemanha nazista. Denise Rollemberg, ao pensar na formulação do conceito para o caso francês, afirma: “estudar a Resistência no contexto de redirecionamento da historiografia implicou a necessidade de melhor conceituá-la. Como argumentou François Bédarida, as interpretações da Resistência ligam-se diretamente a suas definições. Aí estaria o ponto de partida para interpretá-las”.105 Pensando os grupos de resistência aos regimes autoritários como o nazismo ou o fascismo, a autora aponta o que os unifica, mesmo sabendo de suas especificidades: 1) o resistente é ‘dissidente’, no sentido do ‘rebelde fora da lei’ ou que apela para uma ‘lei superior’, a da consciência; 2) todos os resistentes enfrentam o mesmo inimigo; 3) todos recorrem a métodos heterodoxos, estranhos às regras e às normas da guerra clássica; 4) todos os movimentos de resistência procedem da improvisação; 5) os grupos de resistência surgem da base, saem de iniciativas individuais, e não da vontade do Estado; são construídos de baixo para cima, da periferia para o centro com líderes improvisados.106 Tendo em vista a experiência francesa como a representação icônica da resistência na definição do conceito, pensaremos aqui em uma forma mais pontual para conceber o ato de resistir dentro da Alemanha.107 O conceito de resistência está sendo pensado aqui como uma ação que se insere no direito de resistir contra a opressão do governo e não apenas como uma reação a uma ocupação territorial. Parece-me fundamental frisar a importância da ação na resistência, pois, como aponta a própria Denise Rollemberg, a ideia de resistência anda juntamente com a ação do homem: “não se é resistente, mas se faz a resistência”108 e essa ação deve ser pensada em conjunto com engajamento, intenções e principalmente, consequências. De acordo com a obra O homem revoltado, de Albert Camus: “‘Resistir é, primeiramente, encontrar a força de dizer ‘não’, sem ter sempre uma ideia muito clara acerca de a que se 105 ROLLEMBERG, Denise. Definir o conceito de resistência: dilemas, reflexões, possibilidades. In: História e memória das ditaduras no século XX. Editora FGV, 2015. Vol. 1, p. 79. 106 Idem, ibidem, pp. 82-83. 107 KNOWLES, ERIC S.; LINN, Jay A. (edit.) Resistance and persuasion. Lawrence Erlbaum Associates, Inc., 2004, p. 4. 108 LABORIE apud ROLLEMBERG, Denise. Definir o conceito de resistência, p.88. 63 aspira’”.109 Desta forma, resistir não é apenas reagir a uma força e é mais uma negação do que uma afirmação. Resistir é ocupar de alguma forma o espaço público e por meio da ação tentar mudar a realidade. Além disso, resistir implica a consciência da resistência e, especialmente, das consequências de seus atos. Isso significa, para Hannah Arendt, que os verdadeiros resistentes são os que não têm uma crise de consciência, que sempre souberam diferenciar o certo do errado e que não tiveram uma crise moral. A primeira fase da Rosa Branca, de 1942, chamada de Panfletos da Rosa Branca, propunha a derrubada do governo de Hitler por meio da sabotagem a todos os mecanismos do Partido. Eles acreditavam que se todos os alemães fizessem sua parte aderindo à resistência passiva proposta em seus panfletos, uma onda de revolta correria pela Alemanha e o NacionalSocialismo poderia então, ser derrubado. Isso quer dizer que eles entendiam que o governo nazista, por mais repressivo e autoritário que fosse, necessitava de adesão, obediência e consentimento da maioria da população e a resistência não violenta aparecia justamente para quebrar esse consentimento. Uma população desobediente poderia enfraquecer o governo e por fim, eliminá-lo. Eles utilizam, na primeira fase, o conceito de resistência passiva. No entanto, pensando nas formas de ação e estratégias propostas por esses jovens, é possível perceber que ela não era embasada em uma passividade. Afinal, a própria distribuição de panfletos na cena pública em um regime totalitário já pode ser definida como uma ação política e, se envolve uma ação, efetivamente não pode ser entendida como uma resistência passiva. Encontrar a força para dizer não e agir mediante essa proposta de mudança do mundo já se constitui por si só em um empreendimento e uma intervenção na cena pública. Como Hannah Arendt lembra, quem nós somos aparece na cena pública, ou seja, no campo da política, por meio de ações realizadas em conjunto. Portanto, manterei o conceito de resistência passiva quando estiver analisando os panfletos, uma vez que eles utilizam essa terminologia, mas entendo que a sua resistência nessa fase é, de fato, uma resistência não violenta e não passiva. Poderíamos pensar nos atos de sabotagem como atos de desobediência civil. Para Hannah Arendt, a desobediência civil acontece dentro de um grupo, que pode ser pequeno e dissidente da maioria, com identidade de interesses, e que resolve agir porque acredita que “os canais normais para mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão 109 CAMUS apud ROLLEMBERG, Denise. Definir o conceito de resistência, p. 85. 64 qualquer efeito”,110 e, a característica do dissidente civil é a não violência. Os motivos da desobediência civil devem ser debatidos “não no campo da moral do cidadão em relação à lei, mas no campo da consciência individual e do compromisso moral da consciência”,111 e, os dissidentes civis são considerados como “minorias organizadas, delimitadas mais pela opinião comum do que por interesses comuns, e pela decisão de tomar posição contra a política do governo mesmo tendo razões para supor que ela é apoiada pela maioria”.112 Celso Lafer aborda o tema da desobediência civil ao longo dos anos pensando em como houve uma mudança desse tipo de ação no século XX. Ele mostra que, no século XX, a desobediência civil foi reformulada para abarcar de Thoreau “o caráter predominantemente não violento da resistência individual à opressão e à injustiça”, e de Gandhi, “a dimensão de uma ação de grupo”.113 Desta forma, os governados se unem em uma ação coletiva e, por meio do não acatamento às leis que são tidas como injustas e opressoras, buscam alguma mudança. Acompanhando o pensamento de Hannah Arendt, Lafer tenta buscar o conceito de desobediência civil na autora pós ruptura totalitária, baseando-se principalmente na ideia de obediência e consentimento. A questão principal, parece-me, é que quando pensamos em desobediência civil, geralmente pensamos em uma ação conjunta e pública, e que se desenvolve no não cumprimento de leis federais de um país. A aplicação deste conceito dessa forma não faria muito sentido em se tratando da resistência da Rosa Branca ao regime nazista, principalmente no que diz respeito à resistência a leis opressoras. O nazismo não alterou particularmente as leis da Alemanha, na verdade, a constituição de Weimar foi mantida durante todo o governo; o partido Nacional-Socialista agia por meio de milhares de decretos que muitas vezes se sobrepunham. Michel Randle alarga um pouco o conceito, pensando também na resistência civil em governos ditatoriais e opressivos, onde é muito mais perigoso para a população resistir ativamente. O autor utiliza o conceito de resistência civil para descrever fundamentalmente uma ação não violenta, que se diferencia de guerrilhas, do terrorismo, e de outras formas de luta direta ou armada. Como ele argumenta, qualquer governo depende do consentimento e da obediência da população e o que estes resistentes colocam em cheque é justamente essa 110 ARENDT, Hannah. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 68. Idem, ibidem, p. 57. 112 Idem, ibidem, p. 55. 113 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª edição, 1988, p. 201. 111 65 obediência. O que a resistência civil se propõe, portanto, é uma ação conjunta, que pode ser revolucionária (como tentar derrubar um regime por completo) ou reformista (como tentar a retirada de uma determinada lei ou sanção opressora), e seu traço característico é a não violência – que não necessariamente tem a ver com uma questão ética e moral. Muitas vezes os resistentes não usam formas violentas, como a guerrilha, por falta de recursos ou por entender que o governo tem uma força repressora muito grande. O adjetivo “civil” se refere a um indivíduo ou à própria população, “sugerindo que os objetivos de um movimento são ‘civis’ no sentido de serem amplamente compartilhados em uma sociedade; e denota que a ação em questão é de caráter não militar ou não violento”.114 Sendo assim, o que é entendido por resistência civil é: A resistência civil é um método de luta política coletiva baseado na visão de que os governos dependem em última análise da cooperação, ou pelo menos da condescendência, da maioria da população e da lealdade dos militares, da polícia e do serviço público. Ela está, portanto, fundamentada nas realidades do poder político. Funciona mobilizando a população para retirar esse consentimento, procurando minar as fontes de poder dos oponentes e aliciando o apoio de terceiros. Os seus métodos vão do protesto e da persuasão à não colaboração social, econômica e política e, finalmente, à intervenção nãoviolenta. Demonstrações, vigílias, organizações de petições são algumas das ações características associadas ao protesto e à persuasão. As greves, os retardamentos, os boicotes, a desobediência civil, estão entre os métodos de não cooperação. E as ocupações e a criação de instituições de governo paralelas estão entre os métodos de intervenção não-violenta.115 Logo, o conceito escolhido para a resistência da Rosa Branca, especificamente na primeira fase, é resistência civil, essencialmente porque se constituiu em uma resistência não violenta, que se baseava na sabotagem aos mecanismos do Partido. Como Inge Scholl afirma, “o lema da resistência passiva deveria transmitir às inúmeras pessoas contrárias ao regime o sentimento de uma solidariedade real embora imperceptível, deveria fortalece-la e ampliá-la, convencer os indecisos, levar os indiferentes a tomar uma decisão, colocar os adeptos do “Implying that a movement’s goals are ‘civil’ in the sense of being widely shared in a society; and it denotes that the action concerned is nonmilitary or nonviolent in character” Tradução minha. In: ROBERTS, Adam; GARTON, Timothy Ash (edit). Civil resistance and power politics. Oxford University Press Inc., New York, 2009, pp. 2-3. 115 “Civil resistance is a method of collective political struggle based on the insight that governments depend in the last analysis on the cooperation, or at least the compliance, of the majority of the population, and the loyalty of the military, police and civil service. It is thus grounded in the realities of political power. It operates by mobilizing the population to withdraw that consent, by seeking to undermine the opponents' sources of power, and by enlisting the support of third parties. Its methods range from protest and persuasion to social, economic and political non-cooperation, and finally to non-violent intervention. Demonstrations, vigils, the organizing of petitions are some of the characteristic actions associated with protest and persuasion. Strikes, go-slows, boycotts, civil disobedience are among the methods of noncooperation. And sit-ins, occupations and the creation of parallel institutions of government are among the methods of non-violent intervention.” Tradução minha. In: RANDLE, Michel. Civil resistance. Fontana Movements and Ideas Series, 1993, pp. 9-10. 114 66 nazismo em dúvida e tornar céticos os eufóricos”.116 O conceito parece pertinente para abordar a primeira fase do grupo, porque, como propõe Randle, mesmo um regime extremamente ditatorial necessita de obediência e aceitação: Os governos ditatoriais podem usar a força, ou terror absoluto, para garantir a conformidade da população e isso pode ser bem-sucedido, às vezes em períodos prolongados. Nessas circunstâncias, a sociedade civil, na medida em que ela existe, tenderá a operar de forma clandestina, e a mídia provavelmente estará sob estreito controle governamental. Mesmo em casos tão extremos, no entanto, os governos não governam sozinhos pela força. A vontade do soldado individual de obedecer às ordens pode ser engendrada pelo medo das consequências da desobediência, mas a fidelidade coletiva das forças armadas e das forças de segurança depende de algo mais intangível – a autoridade do governo e a aceitação de sua reivindicação de legitimidade. A resistência civil procura desafiar a autoridade e a legitimidade do governo e, assim, privá-la de sua fonte de poder na cooperação da sociedade e das instituições do Estado. Onde o objetivo é remover uma injustiça específica – como a discriminação racial – o desafio à autoridade do governo é limitado; a sua legitimidade em geral não está posta em questão, mas sim simplesmente o direito de aprovar ou aplicar certas leis, ou de tolerar práticas específicas na sociedade. Numa luta mais fundamental, a resistência civil desafia o direito do governo de governar e também pode contestar todo o sistema político e social dentro do qual ele opera.117 A segunda fase da Rosa Branca, de 1943, chamada de Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha já busca uma ação mais direta, com uma união ao movimento de resistência nacional estudantil e uma possível luta armada. O caminho percorrido se constrói com discordância, oposição, resistência civil e pacífica e, por fim, resistência ativa. A grande questão é que os membros da Rosa Branca foram executados antes de conseguirem ter o revolucionário encontro com os membros da esquerda alemã. No entanto, tendo a analisar a segunda fase da Rosa Branca não só na ação panfletária, mas também nas outras ações de pichação e com os importantes encontros com Falk Harnack e a intenção declarada de uma ação Inge Scholl, em “Observações sobre os objetivos da Rosa Branca. ” In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 115. “Dictatorial governments may use force, or outright terror, to secure the compliance of the population and this may succeed, sometimes over prolonged periods. In these circumstances, civil society, in so far as it exists at all, will tend to operate clandestinely, and the media is likely to be under tight government control. Even in such extreme cases, however, governments do not rule by force alone. The willingness of the individual soldier to obey orders may be engendered by fear of the consequences of disobedience, but the collective allegiance of the armed services and security forces is dependent on something more intangible - the authority of the government and the acceptance of its claim to legitimacy. Civil resistance seeks to challenge the authority and legitimacy of the government and thereby also to deprive it of its source of power in the cooperation of society and state institutions. Where the goal is to remove a specific injustice - such as race discrimination - the challenge to the government's authority is limited; its legitimacy in general is not in question, simply its right to pass or enforce certain laws, or to tolerate particular practices within society. In a more fundamental struggle, civil resistance challenges the government's right to rule and may also contest the whole political and social system within which it operates.” Tradução minha. In: RANDLE. Civil resistance, p. 102. 116 117 67 resistente integrada e antifascista. É fundamental destacar esses pontos na análise para que não se torne uma interpretação rasa em torno apenas dos panfletos. Portanto, me parece necessária a utilização do conceito de resistência com duas variações: nos Panfletos da Rosa Branca, se trata de resistência civil, sobretudo pela proposta de resistência não violenta por meio da sabotagem; nos Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha, há uma mudança de perspectiva, em que se propõe uma resistência que adquire ideais mais revolucionários, porém frágeis e que nunca foram concluídos. Há uma ruptura na crença de que era possível resistir ao Nacional-Socialismo puramente por meio da sabotagem e da disseminação da discordância e da desobediência; começa-se então a perceber que é necessária uma ação com propostas políticas mais concretas. No retorno ao passado em busca de referências e exemplos para impulsionar a ação, percebe-se que a Nova Alemanha e a Nova Europa que eles queriam e buscavam não poderiam ser nada parecidas com o que existia antes de Hitler. Era necessário algo novo: um regime socialista? Um regime federativo? Uma democracia? Não houve tempo hábil para delimitar exatamente os planos para essa ação direta e conjunta da Rosa Branca, mas sabe-se que as intenções poderiam abarcar até mesmo uma luta armada contra o fascismo internacional, como também o tiranicídio. E talvez, isso teria sido uma tentativa de criação de uma nova ordem dos tempos, onde a liberdade ocuparia o papel central – neste sentido, portanto, uma atitude revolucionária. O conceito de resistência para Os Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha permanece, portanto, inacabado e não totalmente definido em termos de inserção em categorias conceituais pré-existentes. A Rosa Branca não teve tempo para a definição de estratégias concretas de ação, de linhas políticas definidas ou de pressupostos totalmente claros, o que torna difícil avaliar. Isso quer dizer, simplesmente, que nesse curto período da segunda fase da Rosa Branca, há muitas complexidades para que se possa ser taxativo em uma categoria única conceitual. Se na primeira fase a definição se dá com mais facilidade e fluidez, no segundo momento, o entendimento é mais disperso. Em 1943 há claramente uma radicalização, uma resistência mais ativa, que rompe completamente com o que havia sido proposto inicialmente em 1942. Creio ser importante focar precisamente nessa ruptura e não necessariamente no desenvolvimento de uma nova conceituação para identificar a segunda fase. Nos próximos capítulos, o leitor poderá embarcar na análise aprofundada de cada panfleto individualmente e no caminho traçado por estes jovens resistentes. 68 Capítulo Dois Panfletos da Rosa Branca “Que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra – essa convicção constitui o pano de fundo implícito contra o qual se delinearam esses perfis. Olhos tão habituados às sombras, como os nossos, dificilmente conseguirão dizer se sua luz era a luz de uma vela ou de um sol resplandecente” (Hannah Arendt. Homens em tempos sombrios) 69 “Nós devemos nos cegar a estes perigos? Não é preferível morrer se corroendo de dor do que vagar pelo mundo de forma livre e fácil, mas falsamente? Não há nenhum consolo?”1 A fase denominada Panfletos da Rosa Branca conta com quatro panfletos que foram escritos e distribuídos entre junho e julho de 1942. Os dois primeiros foram escritos por Hans Scholl e Alexander Schmorell, assim como os dois últimos, que, supostamente, também contaram com os conselhos de Christoph Probst. Esses primeiros panfletos não foram feitos com a ajuda de Kurt Huber, que, na época, ainda não tinha conhecimento das atividades da Rosa Branca. A primeira fase conta com panfletos maiores, que possuem longas citações de pensadores ou da Bíblia e têm uma linguagem pouco direta. Apesar de a Rosa Branca não ser um grupo em que a religião compunha um papel ideológico, é importante observar como os argumentos religiosos e a própria motivação vinda da fé foram importantes para a constituição da resistência destes estudantes, principalmente nessa fase inicial. Os autores mobilizados nos escritos dessa fase são Friedrich Schiller, Goethe, Lao-Tsé, Aristóteles e Novalis. Neste capítulo será feita uma análise de cada panfleto individualmente e dos conceitos de liberdade, resistência e culpa. No entanto, antes de lançarmos o olhar para a ação panfletária, é necessária uma exposição dos elementos de oposição ao regime nazista que aparecem nas cartas de Sophie e Hans Scholl. Como demonstrado no capítulo anterior, estes jovens, inicialmente empolgados com o regime nacional-socialista, aos poucos foram se decepcionando com alguns de seus dogmas – e justamente por isso, ingressaram em atividades proibidas, como o d.j.I.II e a publicação Windlicht. Nas cartas, essa crescente oposição fica mais clara, sobretudo no caso de Sophie, tendo em vista todas as dificuldades burocráticas que ela teve que enfrentar para poder ingressar na universidade. Tentarei analisar brevemente esse aspecto para um melhor entendimento de suas personalidades e, em seguida, iniciarei a abordagem da ação panfletária da Rosa Branca. “Should we blind ourselves to these dangers? Isn’t it preferable to die of evergnawing pain than to roam the world freely and easily, but falsely? Is there no consolation?” Tradução minha. Carta de Sophie Scholl a Rose Naegele em 17 de julho de 1941. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose: Letters and diaries of Hans and Sophie Scholl. USA: Harper & Row Publishers, 1987, p. 118 1 70 Como o “sim” para o Nazismo se transformou em um claro “não”2 Sophie Scholl cresceu em uma casa onde era constantemente estimulada pelos pais a seguir uma carreira artística. A família possuía muitos amigos artistas (pintores, escritores, desenhistas) que reforçavam o talento da jovem para a escrita e a pintura. Sophie ilustrou a tradução de Peter Pan para o amigo Hanspeter Naegele e também uma história de George Heym. Inge se recorda que a escolha de Sophie de estudar Biologia na universidade surpreendeu toda a família, que, por conta de suas habilidades, como dito, esperava que ela se tornasse artista. Sophie, no entanto, afirmou para a irmã que arte não era algo que se aprendia academicamente, e que por isso ela preferia se dedicar à biologia.3 Na literatura sobre a Rosa Branca, geralmente se diz que Sophie estudou Biologia e Filosofia, já que ela assistia às aulas da faculdade de filosofia do professor Kurt Huber. Entretanto, assistir às aulas de outros departamentos parecia ser uma prática comum, tendo em vista que Hans, Alex e Willi, todos estudantes de Medicina, também frequentavam os cursos de Huber. Não consegui determinar, assim, se ela de fato estava cursando as duas áreas, ou se apenas comparecia a algumas aulas. Quando se forma no ensino médio em março de 1940, Sophie começa a trabalhar no Instituto Fröbel em Ulm, como professora de jardim de infância, sendo uma forma de escapar do Serviço de Trabalho do Reich (Reicharbeitdienst, ou RAD). O período mínimo de atuação no RAD era de seis meses, podendo ser estendido por dois anos, e seu objetivo era atender às necessidades do exército ou do próprio Reich, diminuindo o desemprego e melhorando a economia. Para as mulheres, servia como uma forma de limitar seu acesso às universidades, para que se dedicassem aos “serviços do lar”. Como vimos no capítulo anterior, a obrigatoriedade deste tipo de serviço não causava um maior empenho dos jovens, pelo contrário. Eles não se identificavam com o trabalho braçal, não tinham esse sentimento de estar trabalhando pelo Reich e tampouco gostavam de continuar trabalhando em campos e fábricas durante as férias. O RAD serviu, por fim, para fazer com que muitos estudantes, principalmente mulheres, desistissem de ingressar na universidade, devido às tantas dificuldades impostas. Sophie, contudo, foi persistente. Em teoria, o trabalho como professora de jardim de infância era uma maneira aceitável para substituir o RAD, que era obrigatório para homens e Inge Scholl ao explicar o posicionamento político de seus irmãos: “O ponto crucial foi o ‘sim’ ao Partido Nacional-Socialista ter se transformado em um claro ‘não’”. In: “Observações sobre os objetivos da Rosa Branca” In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 118. 3 VINKE, Hermann. The Short Life of Sophie Scholl. Harper & Row, Publishers, Inc., 1984, pp. 32-33. 2 71 mulheres antes de ingressarem no serviço militar ou na universidade. O trabalho de Sophie começa em maio de 1940 e dura um ano. Então, ela faz a prova de certificação do Estado para poder ter um diploma de professora de jardim de infância, sendo aprovada em março de 1941. A jovem é informada, porém, que esse trabalho não conseguiria eliminar a obrigatoriedade do RAD e ela se voluntaria para trabalhar como enfermeira em Ulm para tentar mais uma vez fugir do serviço compulsório. Suas tentativas são novamente frustradas e, em abril de 1941, Sophie começa a trabalhar no campo de Krauchenwies como integrante do RAD. O serviço de Sophie, que terminaria em outubro de 1941, foi estendido como uma determinação obrigatória visando dificultar ainda mais o ingresso de mulheres na universidade. Os seis meses iniciais se transformaram em um ano. Em outubro, ela é transferida de Krauchenwies para Blumberg, onde trabalha para o Serviço Auxiliar à Guerra como professora de jardim de infância. Lá, atuou em uma creche como parte da organização nacional-socialista em Blumberg até março de 1942.4 Finalmente, consegue ingressar na Universidade de Munique como estudante em maio do mesmo ano. O percurso de seu irmão Hans até a entrada na universidade foi parecido com o de Sophie. Em 1937 ele deixa a Juventude Hitlerista, também o ano de sua primeira prisão por participação em grupos clandestinos proibidos, como já tratado no capítulo anterior. Nesse ano ele inicia voluntariamente o RAD no campo de Göppingen para começar seu trabalho compulsório por seis meses. Em novembro de 1937, ingressa no treinamento militar como membro da cavalaria em Bad Cannstadt, onde fica por um ano, até terminar o treinamento militar básico. Após sua dispensa em 1938, Hans vai trabalhar como médico do exército em Tübingen para obter permissão para estudar Medicina. Após seis meses, consegue sua certificação e é liberado para o curso em 1939, quando ingressa na Universidade de Munique, em abril. Em julho de 1939, dirige-se ao leste da Prússia durante as férias escolares, onde realiza parte do trabalho compulsório obrigatório a estudantes universitários no Reich. Em 1940 foi chamado para o serviço militar e em março vai para a Companhia Estudantil de Munique. No período de maio desse ano, é enviado para várias localidades. Consegue permissão para estudar em Göttingen, mas é chamado para o serviço no front francês, onde trabalhou como médico e onde conheceu Alex Schmorell, que também servia como soldado-médico. A partir de 1941, 4 Interrogatório de Sophie Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl. ZC13267. (English Edition), por Joyce Light (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 3052. Também em VINKE, Hermann. The Short Life of Sophie Scholl; JENS, Inge. At the heart of the White Rose; HANSER, Richard. A Noble Treason; DUMBACH, Annette; NEWBORN, Jud. Sophie Scholl and the White Rose. 72 Hans se mantém junto à Companhia Estudantil de Munique, onde permanece até meados de 1942, quando vai servir no front russo.5 O começo da Segunda Guerra Mundial definitivamente foi um ponto de inflexão para Sophie e Hans Scholl. Em suas cartas é possível observar uma série de questionamentos sobre a necessidade da guerra, sobretudo para Hans, que, por ter sido enviado eventualmente para o front, teve que lidar pessoalmente com centenas de feridos e mortos nos centros médicos em que trabalhava. Em suas cartas, ele se queixa do fechamento das estradas e, metaforicamente, do fechamento de portas para a juventude, como é possível perceber nas passagens: “a pessoa se sente mais e mais como um prisioneiro”; “se pelo menos essa guerra miserável acabasse logo. Eu gostaria de sair da Alemanha”; “a guerra pode ter distorcido muitas coisas no meu cérebro”.6 Em 11 maio de 1941, Hans faz uma referência em uma carta a sua irmã Inge, ao que ele chama de “termômetro de nosso pai”, ou o “barômetro de opinião”. Tratava-se de uma figura de linguagem usada entre os Scholl para nomear as opiniões políticas de Robert acerca dos acontecimentos na Alemanha e na guerra.7 Em outra carta, de Robert Scholl a sua filha Sophie, datada de 14 de abril de 1941, o pai afirma: “ultimamente eu sou da opinião que a guerra durará um pouco mais. De um aspecto superficial, o barômetro aumentou um pouco, e possivelmente aumente um pouco mais no futuro imediato, mas uma mudança é absolutamente inevitável”.8 A mudança de pensamento aparece de forma mais evidente nas cartas de Sophie para seu namorado Fritz Hartnagel, que conheceu quando tinha apenas 16 anos e com quem manteve um relacionamento até o fim da sua vida. Fritz era quatro anos mais velho que ela, sendo um soldado convicto de suas obrigações e deveres. Após a morte de Sophie, Fritz se aproxima de sua irmã mais nova Elisabeth, com quem eventualmente se casa. A partir de 1939, Sophie começa a questionar Fritz com frequência acerca de seus princípios e passa professar em suas cartas ideias como “eu simplesmente não consigo entender como as vidas das pessoas agora estão sob constante ameaça de outras pessoas. Eu nunca entenderei, e acho isso terrível. Não 5 Interrogatório de Hans Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 2181. Também em JENS, Inge. At the heart of the White Rose; HANSER. A Noble Treason; DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose. 6 “One feels more and more like a prisoner”; “if only this godforsaken war would soon be over. I’d like to get out of Germany”; “the war may have distorted a lot of things in my brain”. Traduções minhas. Cartas de Hans Scholl em janeiro e fevereiro de 1941. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, pp. 98, 99, 101. 7 Idem, ibidem, p. 114. 8 “Lately I’m of the opinion that the war will last somewhat longer. From a superficial aspect the barometer has risen a little and my rise a little more in the immediate future, but a change is absolutely inevitable” Tradução minha. Idem, ibidem, p. 295. 73 me diga que é para o bem da Pátria!”.9 Em suas correspondências, ela pergunta a Fritz quem são seus amigos no front, aparentando estar constantemente apreensiva com seu bem estar, relata suas preocupações com relação às privações econômicas necessárias em tempos de guerra (como o esgotamento produtos básicos) e questiona-se sobre o privilégio de estar vivendo normalmente enquanto seu namorado está dando sua vida pela Alemanha. Em 9 de abril de 1940, Sophie escreve: Há momentos em que eu temo a guerra e sinto como se fosse perder a esperança completamente. Odeio pensar nisso, mas a política é quase tudo o que há e enquanto ela é tão confusa e desagradável, é covarde virar as costas para ela. Você provavelmente está rindo disso e dizendo a si mesmo: ‘ela é uma mulher’. Mas acho que eu seria muito mais feliz se não estivesse sob pressão o tempo todo - então eu poderia me dedicar a outras coisas com uma consciência muito melhor. Do jeito que as coisas estão, todo o resto ocupa o segundo lugar. Nós fomos educados politicamente, afinal. (Agora você está rindo novamente).10 Pela forma como Sophie fala com Fritz em suas cartas, é possível perceber que ela não tinha medo de expor suas opiniões a ele, mesmo que soubesse que os dois tinham visões muito diferentes, especialmente no que dizia respeito à política e à guerra. Na correspondência acima, a jovem demonstra saber que a atitude esperada de uma mulher e futura esposa de um soldado era permanecer em silêncio, pois política era um assunto para homens. Afinal, eram os homens que estavam no front arriscando suas vidas. Ela diz novamente a Fritz sobre o estereótipo da feminilidade, ao qual obviamente não se adequa, em uma carta de junho de 1940: Tenho certeza de que você acha pouco feminino, a maneira que eu escrevo para você. Deve parecer absurdo uma mulher se preocupar com a política. Ela supostamente deveria deixar suas emoções femininas dominarem seus pensamentos. Mas eu acho que os pensamentos têm precedência e que as emoções muitas vezes te desnorteiam porque você não consegue diferenciar as grandes coisas das pequenas coisas que podem interessar você mais diretamente - pessoalmente, talvez.11 “I just can’t grasp that people’s lives are now under constant threat from other people. I’ll never understand it, and I find it terrible. Don’t go telling me it’s for the Fatherland’s sake.” Tradução minha. Carta de Sophie Scholl em 5 setembro de 1939. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 36. 10 “There are times when I dread the war and feel like giving up hope completely. I hate thinking about it, but politics are almost all there is, and as long as they’re so confused and nasty, it’s cowardly to turn your back on them. You’re probably smiling at this and telling yourself, ‘she’s a girl’. But I think I’d be far happier if I weren’t under pressure all the time – then I could devote myself to other things with a far better conscience. As it is, everything else takes second place. We were politically educated, after all. (Now you’re laughing again)” Tradução minha. Idem, ibidem, p. 65. 11 “I’m sure you find it unfeminine, the way I write to you. It must seem absurd for a girl to worry her head about politics. She’s supposed to let her feminine emotions rule her thoughts. But I find that thoughts take precedence, and that emotions often lead you astray because you can’t see big things for the little things that may concern you more directly – personally, perhaps”. Tradução minha. Carta de Sophie Scholl em 28 de junho de 1940. Idem, ibidem, p. 78. 9 74 É indispensável frisar a postura esperada de uma mulher durante o nazismo, uma vez que o próprio Hermann Göring, líder do NSDAP, durante os julgamentos de Nuremberg afirmou que o heroísmo era uma questão estritamente masculina. Segundo Tzvetan Todorov, Göring desprezava profundamente os “valores humanitários efeminados” e considerava que o papel das mulheres deveria ser “o de admirar os heróis e recompensar com seus favores as façanhas que eles realizam”.12 Não somente Sophie Scholl, como também Traute Lafrenz, estão nesse trabalho precisamente para mostrar que o heroísmo também é uma questão feminina e que as mulheres têm papel fundamental nesse grupo de resistência. A esfera do político e da política também pertence às mulheres – Sophie e Traute provam isso indiscutivelmente. As correspondências de Sophie são fontes preciosas para compreender melhor a sua personalidade e suas convicções. Nas cartas endereçadas a Fritz, a jovem manifesta muita insegurança sobre o futuro de sua relação, dadas as já comentadas divergências do casal. Em uma carta de 16 de maio de 1940, ela afirma: “nossas ideias são tão diferentes, e às vezes eu me pergunto se isso é realmente tão desimportante, quando deveria ser a base de qualquer relacionamento”, e “meu mais estimado desejo é que você possa sobreviver a esta guerra e a estes tempos sem se tornar um produto deles”.13 Em julho, ela também coloca: “eu não consigo imaginar duas pessoas vivendo juntas quando elas diferem nestas questões e em seus pontos de vista, ou ainda, em suas atividades. As pessoas não devem ser ambivalentes apenas porque todo o resto é”.14 Sophie discordava decididamente dos ideais de Fritz, dizendo em uma das cartas que isso não era irrelevante em tempos de guerra porque, para ela, eventos graves não são uma justificativa para se deixar levar pelas circunstâncias. Os conflitos no relacionamento são nítidos em uma carta de 19 de agosto de 1940: Um soldado deve prestar um juramento, afinal, o trabalho dele é cumprir as ordens do governo. Amanhã ele pode ter que obedecer a uma visão diametralmente oposta à de ontem. Sua profissão é obediência. Então, a atitude militar não é realmente uma profissão. Na sua concepção ideal disso, ela realmente está de acordo com as exigências morais presentes em cada indivíduo. Posso apreciar muito que você considere sua profissão como educativa, mas acho que isso é apenas uma parte dela. Como um soldado pode 12 TODOROV, Tzvetan. Em face ao extremo. Campinas, SP: Papirus, 1995, pp. 230-231. “Our ideas are so different, I sometimes wonder if it’s really so unimportant, when it ought to be the basis of any relationship”; “my dearest wish is that you should survive this war and these times without becoming a product of them” Tradução minha. Cartas de Sophie Scholl em maio e julho de 1940. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 68. 14 “I can’t imagine two people living together when they differ on these questions in their views, or at least in their activities. People shouldn’t be ambivalent themselves just because everything else is” Tradução minha. Idem, ibidem, p. 75. 13 75 ter uma atitude honesta, como você diz, quando ele é obrigado a mentir? Ou você não está mentindo quando tem que prestar um juramento ao governo um dia e outro juramento no próximo? Você deve permitir essa situação, e ela já surgiu antes de agora. Você não era muito a favor de uma guerra, se eu me lembro bem, e, ainda assim, você gasta todo o seu tempo treinando as pessoas para ela. Você certamente não acredita que seja tarefa das forças armadas ensinar às pessoas uma atitude honesta, razoável e sincera. E quanto à sua comparação com o cristianismo, acredito que uma pessoa pode ser cristã sem pertencer a uma Igreja. Além disso, um cristão não é obrigado a ser nada além do que o que seus mandamentos principais exigem dele. Se o mandamento de um soldado é ser leal, sincero, razoável e honesto, ele certamente não pode obedecer, porque se ele receber uma ordem, ele deve realizá-la, quer ele a considere certa ou errada. Se ele não executá-la, ele é demitido, não é?15 É relevante ressaltar que essa carta foi escrita enquanto Sophie estava trabalhando em Bad Dürheim para obter seu certificado de professora. A experiência no trabalho compulsório e os empecilhos para o tão sonhado ingresso na universidade foram questões que definitivamente abalaram a simpatia de Sophie pelo Nacional-Socialismo. A guerra intensificou ainda mais suas discordâncias e ela chega a dizer que: “não é fácil banir todos os pensamentos sobre a guerra. Embora eu não saiba muito sobre política e não tenho nenhuma ambição de fazê-lo, eu tenho uma ideia de certo e errado, porque isso não tem nada a ver com política e nacionalidade”.16 Aqui temos um elemento que será abordado com mais profundidade neste capítulo: a noção de certo e errado. Nessa carta, Sophie afirma que saber o que é certo e o que é errado não tem relação com a política e a nacionalidade, sugerindo serem noções que não podem ser relativizadas. Hannah Arendt e Zygmunt Bauman expressam exatamente a mesma ideia quando dizem do imperativo moral e o fato de a moralidade não poder estar condicionada à sociedade em que vivemos. Afinal, se a sociedade se modificar do dia para a noite (como Arendt “A soldier has to swear an oath, after all, so his job is to carry out his government’s orders. Tomorrow he may have to comply with a view diametrically opposed to yesterday’s. his profession is obedience. So the soldierly attitude isn’t really a profession. In your ideal conception of it, it really accords with the moral demands made on every individual. I can well appreciate that you regard your profession as an educative one, but I think that’s only a part of it. How can a soldier have an honest attitude, as you put it, when he’s compelled to lie? Or isn’t it lying when you have to swear one oath to the government one day and another the next? You have to allow for that situation, and it’s already arisen before now. You weren’t very much in favor of a war, to the best of my knowledge, yet you spend all your time training people for it. You surely don’t believe it’s the job of the armed forces to teach people an honest, modest, sincere attitude. And as for your comparing this to Christianity, I believe a person can be a Christian without belonging to a Church. Besides, a Christian isn’t compelled to be anything other than what his principal commandments require of him. If a soldier’s commandment is to be loyal, sincere, modest and honest, he certainly can’t obey it, because if he receives an order, he has to carry it out, whether he considers it right or wrong. If he doesn’t carry it out, he’s dismissed, isn’t he?” Tradução minha. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, pp. 88-89. 16 “It isn’t easy to banish all thoughts of the war. Although I don’t know much about politics and have no ambition to do so, I do have some idea of right and wrong, because that has nothing to do with politics and nationality” Tradução minha. Carta de Sophie Scholl em 29 de maio de 1940. Idem, ibidem, pp. 68-69. 15 76 argumenta ter sido o caso do nazismo), precisaremos ter algo em que nos segurarmos. Dizer que a moral, ou seja, a percepção do que é certo e errado, pode variar de acordo com o governo, a sociedade, ou até mesmo com a guerra, serve apenas como uma “desculpa” para que atos considerados imorais sejam cometidos. Para Arendt e Bauman – e claramente para Sophie – tempos extremos não justificam que percamos de vista noções básicas de humanidade: estas devem nos acompanhar sob quaisquer circunstâncias e em qualquer momento. As correspondências e entradas de diários aos quais temos acesso fazem parte de um livro organizado por Inge Jens, com cartas previamente selecionadas por Inge Scholl. Ruth Sachs17 destaca como Inge Scholl sempre se empenhou em escolher cuidadosamente quais documentos disponibilizar para os pesquisadores e demais interessados pela história da Rosa Branca. Isso faz com que o conteúdo das mensagens seja problemático, uma vez que foram preliminarmente elegidos pela irmã de Sophie e Hans com o objetivo de mostrar o melhor lado de sua família. Nesse compilado, a mudança de pensamento em Sophie é bem mais clara do que em Hans, o que pode ter ocorrido devido à própria seleção do material e não necessariamente porque Sophie se opôs ao nazismo de forma mais veemente e precoce que seu irmão. Todavia, deixando claras essas considerações, não podemos deixar de lado as afirmações de Sophie, tão importantes para a compreensão de sua personalidade: Para mim, a justiça tem precedência sobre todos as outras ligações, muitas das quais são puramente sentimentais. E certamente seria melhor se as pessoas envolvidas em um conflito pudessem tomar o lado que consideram correto. Eu sempre pensei que era errado que um pai tomasse a princípio o lado do seu filho, por exemplo, quando um professor o castiga. Por mais que ele possa amar a criança, ou por essa mesma razão. Eu acho que é tão errado para um alemão ou um francês, ou qualquer outra pessoa que seja, defender sua nação obstinadamente apenas porque é nação dele. As emoções muitas vezes podem ser enganosas.18 Aqui, a jovem reafirma sua posição firme quanto às noções de certo e errado e, sobretudo, de justiça. A comparação com um pai defendendo o seu filho sob qualquer circunstância apenas por ser seu filho demonstra claramente suas impressões acerca do trabalho de soldado de Fritz. Amar a Alemanha não significaria, para Sophie, defender a Alemanha com SACHS, Ruth. White Rose History: Volume I: January 31, 1933 – April 30, 1942. Academic Version. D.E.Heap, Joyce Light (editors). Utah, USA: Exclamation Publishers, 2003. 18 “To me, justice takes precedence over all other attachments, many of which are purely sentimental. And It would surely be better if people engaged in a conflict could take the side they consider right. I’ve always thought it wrong for a father to take his child’s side on principle, for instance when a teacher punishes him or her. However much he may love the child, or for that very reason. I think it’s just as wrong for a German or a Frenchman, or whatever else a person may be, to defend his nation doggedly just because it’s his. Emotions can often be misleading” Tradução minha. Carta de Sophie Scholl em 23 de setembro de 1940. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 93. 17 77 unhas e dentes em uma guerra que, para ela, não fazia sentido algum. A ideia de amor ao país é inclusive definida por ela como uma emoção, e emoções poderiam nos enganar e nos impedir de ver claramente. Em suma, para Sophie, a justiça deveria estar acima de tudo, assim como a noção do que é certo e errado. Ambas as questões não deveriam ter nenhuma relação com o país onde vivemos e o momento político em que estamos. A partir deste momento, o leitor será conduzido a uma descrição mais detalhada do processo panfletário da primeira fase da Rosa Branca, para entender melhor como estes jovens iniciaram tal empreitada, e, especialmente, como se deu a mudança drástica de pensamento de 1942 para 1943. O começo da ação panfletária Muito se questionou sobre o nome “Rosa Branca”. Quais foram os motivos da escolha desse nome que aparece como um símbolo artístico e romântico? Existe algum motivo, de fato? Hans Scholl, ao ser interrogado pela Gestapo em fevereiro de 1943, afirma: O nome ‘A Rosa Branca’ foi escolhido aleatoriamente. Eu agi no pressuposto de que certos conceitos concretos deveriam estar presentes na propaganda efetiva - os conceitos não significariam nada por si mesmos, mas soariam bem e dariam a impressão de que havia uma agenda para [a propaganda]. É possível que eu escolhi o nome numa base emocional, porque na época, eu estava sob a influência da novela espanhola de Brentano19 ‘La Rosa Blanca’.20 É possível que tenha havido uma influência do livro supracitado, mas não é possível saber com certeza. Sophie afirma que Hans havia dito a ela que, durante a Revolução Francesa, a aristocracia usou uma rosa branca como um símbolo em suas bandeiras. 21 Provavelmente o nome representava algo mais artístico do que político e realmente demarca a diferença entre a primeira fase e a segunda. Na primeira, a fase da Rosa Branca, é possível dizer que havia um ar mais romântico, literário e cristão. Na segunda, com a troca de nome dos panfletos para 19 Na bibliografia esse autor também aparece como B. Traven. “The name ‘The White Rose’ was randomly chosen. I acted on the assumption that certain concrete concepts must be present in effective propaganda – the concepts would mean nothing in and of themselves, but would sound good and would give the impression that there was an agenda to [the propaganda]. It is possible that I chose the name on an emotional basis because at the time, I was under the influence of Brentano’s Spanish ballad “La Rosa Blanca” Tradução minha. Interrogatório de Hans Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 2777. 21 Interrogatório de Sophie Scholl. Idem, ibidem, posição 3519. 20 78 Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha, há a tentativa de inserção no movimento de resistência nacional, sendo a inocência inicial deixada de lado. Com relação a produção dos panfletos, existem muitas informações imprecisas. Ainda paira um grande questionamento acerca de quem de fato escreveu os panfletos nesse primeiro momento. A bibliografia, de maneira geral, apresenta a influência de Christoph Probst na escrita do terceiro e quarto panfletos dessa fase. No entanto, como houve uma tentativa muito grande por parte de Hans Scholl e seus amigos de excluir a participação de Probst das atividades da Rosa Branca – com vistas a protegê-lo, uma vez que ele era o único membro entre os estudantes com filhos pequenos e, portanto, uma família pela qual era responsável - a documentação acerca disso é bastante confusa. Sobre essa questão, Inge Scholl afirma que “mais tarde, quando os amigos já haviam decidido entrar na resistência ativa, tentavam conscientemente excluí-lo de ações perigosas, como a impressão e distribuição dos panfletos. Sem dúvida alguma, Christel desempenhou um papel muito importante na concepção e na elaboração dos textos”.22 Inge deixa “no ar” se ele realmente participou da escrita dos panfletos na primeira fase e se na segunda só fora excluído das atividades mais perigosas, mas não da elaboração dos textos. No próximo capítulo, farei uma análise do rascunho do sétimo panfleto, o único que sabemos ter sido, de fato, escrito integralmente por Probst. Em seu interrogatório, Alex Schmorell afirma que só contou para Probst que ele e Hans eram os autores dos panfletos da Rosa Branca no final de 1942, ou seja, quando as atividades já haviam acabado. Declara ainda que Probst era um opositor do Nacional-Socialismo e que já desconfiava da natureza desses panfletos, mas que o amigo nada teve a ver com a produção panfletária e tampouco teve participação em atividades de resistência.23 No entanto, como dito acima, isso pode ter sido uma estratégia para proteger Christoph. Inge Scholl se recorda de como Hans fazia o maior esforço possível para manter todos os seus amigos próximos “no escuro” com relação às operações. Ninguém de sua família sabia da ação panfletária e essa foi uma tática usada por Hans durante todo o período de atuação da Rosa Branca. Segundo ele, o número de envolvidos deveria ser o menor possível, uma vez que o indivíduo poderia ser preso se soubesse da prática de atividades criminosas e não denunciasse. 22 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 38. Interrogatório de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts. RGWA I361K-I-8808. (English Edition), por Joyce Light (editor), Denise Heap (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 439-441. 23 79 Tentei ao longo dessa dissertação compreender a dinâmica da produção panfletária de modo mais detalhado. Segundo Hans Scholl, com relação aos primeiros panfletos: Nós preparamos o rascunho [do texto] enquanto trabalhamos juntos. Eu iniciei isso. Schmorell declarou sua vontade de trabalhar comigo. Eu escrevi o primeiro panfleto. Para o segundo panfleto, escrevi a primeira metade, Schmorell escreveu a segunda metade, de onde começa, ‘Mas não com respeito à questão judaica ...’ Para o terceiro panfleto, escrevi a primeira metade, até a parte que termina ‘Cada vez mais alto’. Schmorell escreveu o resto. Eu escrevi todo o quarto panfleto. [...] Nós fizemos as cópias juntos. Nós também escrevemos os endereços juntos, fazendo turnos usando a máquina de escrever Remington em questão. Pegamos os endereços da lista telefônica do endereço de Schmorell [do seu pai] [...] Eu disse e agora repito rapidamente que eu juntamente com Schmorell, escrevemos, produzimos e distribuímos esses 4 panfletos diferentes, 100 cópias de cada.24 De acordo com Hans, ele escreveu sozinho e integralmente o primeiro e o quarto panfletos, ao passo que o segundo e o terceiro foram escritos em conjunto com Alex Schmorell. Pensando nessa declaração, no segundo panfleto, Alex teria escrito a parte onde é tratada a Questão Judaica e, no terceiro, teria sido responsável pela escrita de toda a estratégia da resistência passiva,25 através dos atos de sabotagem. Schmorell tem uma declaração diferente com relação a esse tema, na qual afirma que todos os panfletos foram escritos em conjunto e que ambos foram responsáveis pela autoria dos quatro primeiros panfletos, com tiragem de cem cópias cada. Conta, ainda, que o método de produção se dava de forma que cada um escrevia um rascunho do que seria o panfleto, depois se reuniam, comparavam as ideias e elaboravam um panfleto integralmente.26 Sendo assim, não é possível determinar realmente quem redigiu cada parágrafo ou como se dava precisamente o processo de escrita. Acredito que esse fato não seja prejudicial para a análise dos materiais, já que o resultado final era um texto que agradava e ia de acordo com ambos Hans e Alex (e Christel, possivelmente). É significativo frisar a pequena produção panfletária nessa primeira fase - com uma tiragem total de 400 cópias de panfletos - em “We prepared the draft [of the text] while working together. I initiated this. Schmorell declared his willingness to work with me. I wrote the first leaflet. For the second leaflet, I wrote the first half, Schmorell wrote the second half, from where it begins, ‘But not with regards to the Jewish question…’ For the third leaflet, I wrote the first half, down to the part that ends ‘higher and higher’. Schmorell wrote the rest. I wrote all of the fourth leaflet. […] We made the copies together. We also typed the addresses together, taking turns using the Remington typewriter in question. We took the addresses out of the Schmorells’ address telephone book [his father’s] […] I said and now briefly repeat that together with Schmorell, I wrote, produced, and distributed these 4 different leaflets, 100 copies each.” Tradução minha. Interrogatório de Hans Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 2887-2937. 25 Reitero mais uma vez que mantive o conceito de resistência passiva, mas compreendendo-a como uma resistência não violenta, e não como uma passividade. 26 Interrogatório de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts, posição 284-297. 24 80 comparação com a segunda fase, em que a tiragem de um único panfleto chegava a mais de 1500 cópias. Isso se deve porque, inicialmente, o grupo dispunha apenas de uma máquina de escrever emprestada e de uma máquina copiadora (comprada por Hans), além de pouco espaço para a produção panfletária. Aparentemente, os encontros revezavam entre a casa de Alex Schmorell e o pequeno apartamento de Hans Scholl, e ambos dividiram os custos da geração dos panfletos e arcaram com os gastos com papel, tinta, envelopes, selos, etc. Alex explica a elaboração desses folhetos: À medida que escolhemos os endereços, nosso objetivo era enviar nossos panfletos para um círculo de pessoas que, presumivelmente, seriam simpatizantes da nossa causa. Não criamos um índice de nomes; em vez disso, postamos a segunda edição, etc., e escrevemos para os mesmos indivíduos que conseguimos recordar da primeira edição ou que estavam na lista telefônica. Desta forma, a grande maioria das pessoas recebeu todas as 4 edições dos panfletos. Nós fomos particularmente cuidadosos em não deixar que se conhecesse entre os nossos amigos que éramos os autores desses panfletos. Para verificar se nossos panfletos foram entregues, os postamos para nós mesmos. Determinamos que nosso processo funcionou.27 Logo, o processo na primeira fase além de contar com menos panfletos e menos estrutura, era também bem menos organizado. Ademais, não se sabe realmente o período em que os panfletos foram escritos e distribuídos, já que a literatura afirma ser entre final de maio e meados julho de 1942, ao passo que Alex Schmorell afirma que os 4 panfletos foram escritos e distribuídos em um intervalo de 14 dias, em junho.28 Utilizarei aqui o período de junho de 1942, por acreditar ser o mais preciso com o cruzamento das fontes e bibliografia. A chegada de Sophie Scholl a Munique para dar início a seus estudos na universidade é um episódio de destaque na história da Rosa Branca. Ela se muda para a cidade em maio de 1942, hospedando-se inicialmente na casa de Carl Muth. Apesar de grande parte da documentação afirmar que ela chegou na cidade no dia do seu aniversário, dia 9, de acordo com os relatos de sua correspondência, pode-se inferir que sua chegada provavelmente se deu entre os dias 1 e 2. No dia do aniversário de Sophie, Hans, que já residia em Munique, organizou uma pequena comemoração e apresentou a irmã a seus amigos Christoph e Alex. Tomaram “As we chose the addresses, our aim was to send our leaflets to a circle of persons who would presumably be sympathetic to our cause. We did not create an index of names; rather as we posted the second edition etc., we wrote to the same individuals we could recall from the first edition or who were in the telephone directory. In this manner, the vast majority of people received all 4 editions of the leaflets. We were particularly careful not to let it become known among our friends that we were the publishers of these leaflets. To verify that our leaflets were being delivered, we posted them to ourselves. We determined that our process worked” Tradução minha. Interrogatório de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts, posição 302305. 28 Idem, ibidem, posição 307. 27 81 vinho, cantaram, Hans leu um poema de Gottfried Keller que lhe parecia muito atual e a palavra resistência apareceu pela primeira vez. Alguém questionou: “mas não é um absurdo que fiquemos em casa, em nossos quartos, estudando como curar as pessoas, enquanto lá fora o Estado diariamente provoca incontáveis mortes de jovens? ”, ao que se seguiu: “O que estamos esperando? Que um dia a guerra acabe e todos os povos apontem para nós e digam que suportamos um governo assim sem resistência?”.29 As aulas de Sophie começam no dia 18 de maio e o primeiro panfleto surge aproximadamente seis semanas depois de sua chegada, no começo de junho. O segundo panfleto aparece logo em seguida, tendo Inge Scholl30 afirmado que este foi o momento em que Sophie tomou conhecimento das atividades de seu irmão Hans e decidiu ajudá-lo. Inge conta também que Sophie, ao receber um panfleto e ler o seu conteúdo, sentiu-se ao mesmo tempo animada por alguém finalmente ter falado alguma coisa, e apreensiva, por considerar aquele discurso familiar demais. Quando Sophie chegou em casa, viu um livro no quarto de Hans: de Schiller, sobre a Legislação de Licurgo e Sólon, e as páginas marcadas mostravam justamente as citações contidas no panfleto recebido por ela. Assim, soube imediatamente que seu irmão estava envolvido nessas atividades, fato que a deixou apreensiva e receosa, afinal, Hans “ultrapassara os limites do espaço em que as pessoas se recolhem com segurança e conforto. Para ele, não havia mais volta”.31 Ao confrontar seu irmão, Sophie concluiu que sozinho ele não poderia continuar naquela tarefa e decidiu ajudá-lo. Não consegui, no entanto, determinar realmente a extensão das atividades de Sophie, inclusive porque nem Hans Scholl e nem Alex Schmorell falam nada sobre o seu envolvimento nessa fase inicial. Em seu depoimento para a Gestapo, Sophie relata sua participação apenas na segunda fase, em 1943, negando categoricamente a participação nos Panfletos da Rosa Branca e afirmando que só tomou conhecimento do quarto panfleto através de Traute Lafrenz. Diz também que, ao perguntar ao seu irmão sobre o escrito, Hans lhe disse que nunca é bom saber quem é o verdadeiro escritor de um panfleto, pois, ao sabê-lo, a pessoa também poderia estar em perigo. Sophie acrescenta ainda que em julho de 1942 circulava o rumor entre os estudantes de que o escritor dos panfletos da Rosa Branca havia sido preso, condenado e executado e que: “eu não vi ou ouvi nada mais relacionado ao panfleto ‘A Rosa Branca’ de nenhuma maneira. 29 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 49. Os livros de Hanser, Vinke e de Dumbach&Newborn tem a mesma afirmação sobre o momento em que Sophie descobre as atividades de seu irmão. 31 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 54. 30 82 Eu devo contestar fortemente a acusação de que eu tinha o menor envolvimento com a escrita, produção e distribuição deste documento”.32 Sophie declara que ela e Hans decidiram, juntos, realizar uma ação efetiva apenas em julho de 1942, antes de ele ir para o front russo e que essa ação só pôde ser tomada no fim daquele ano, com o começo da produção dos Panfletos do Movimento de Resistência – assim, reafirmando a sua não participação na primeira fase. Entretanto, no mesmo interrogatório, Sophie revela que entre maio e julho de 1942 recebeu quantias de dinheiro (um total de 300 Reichsmarks) de seu namorado Fritz Hartnagel, para usar como ela quisesse. O dinheiro que ela pediu a Fritz coincide com a época em que os panfletos da primeira fase aparecem, insinuando que ela poderia estar usando essa quantia para comprar o material para a produção dos escritos. Quando questionada sobre isso, Sophie afirma que só utilizou esse dinheiro para a produção dos Panfletos do Movimento de Resistência e que, com o restante, havia comprado livros. Traute Lafrenz é quem coloca mais dúvidas acerca do envolvimento de Sophie na primeira fase, afirmando que costumava comprar envelopes e selos com a amiga, além de dizer que foram ela e Sophie as responsáveis pela destruição de todas as evidências que estavam no apartamento de Hans e que pudessem comprometê-lo, antes de ele ir para o front, em julho. Tudo isso sugere que Sophie de fato sabia das atividades de seu irmão e que possivelmente o ajudava com a compra de materiais. É possível que, ao afirmar que não sabia de nada das atividades de 1942, Sophie estava tentando proteger o próprio irmão, sobretudo pela afirmação de que ouvia boatos de que o autor dos Panfletos da Rosa Branca havia sido executado em 1942. Talvez essa tenha sido uma tentativa de livrá-lo das acusações e colaborar para que ele fosse julgado somente pelas ações de 1943. Esse é o único motivo que explicaria uma mentira de Sophie sobre essa questão, visto que ela já havia assumido responsabilidade pelas suas ações e tinha consciência das consequências de seus atos. Levando todas essas dúvidas em consideração, minha hipótese é a de que Sophie participou da produção e distribuição do terceiro e quarto panfletos, mas sem interferência no conteúdo. Acredito que, de fato, sua participação é mais ativa na segunda fase, mas, como apresentado, todas essas informações são imprecisas. “I did not see or hear anything else related to the leaflet ‘The White Rose’ in any manner. I must strongly dispute the accusation that I had even the least to do with the writing, the production, or the distribution of this document” Tradução minha. Interrogatório de Sophie Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 3525. 32 83 Panfletos como atuação política Dentro da análise dos panfletos, pretendo me aprofundar em três conceitos chaves que perpassam todas as ideias da Rosa Branca: os conceitos de culpa, resistência e liberdade. É importante compreender tais conceitos dentro de seu contexto e, ainda, analisar como o próprio grupo os entendia. Sendo assim: o que é resistir ao totalitarismo, e o que a Rosa Branca entendia como resistência? O que é liberdade em um regime totalitário e o que a Rosa Branca entendia como liberdade? Quem tem culpa no Nacional-Socialismo e a quem a Rosa Branca atribuía essa culpa? Como argumenta Reinhart Koselleck: “a história dos conceitos lida com o uso de linguagem específica em situações específicas, nas quais os conceitos são elaborados e usados por falantes específicos”.33 É fundamental pensar tais conceitos no contexto histórico em que estão sendo utilizados, os campos sociais em que circulam, são produzidos e reproduzidos. Como reforça Antoine Prost: “historicizar os conceitos é identificar a temporalidade de que eles fazem parte; trata-se de um modo de aprender a contemporaneidade do não contemporâneo”.34 Ao trabalhar tais conceitos, também estou levando em consideração que, ao mesmo tempo, estou evocando toda uma outra rede conceitual. Como Prost35 tenta explicitar ao tratar do conceito de fascismo, alguns conceitos fazem mais sentido se colocados juntos e em relação a outros, seja em oposição, substituição ou associação. Ao tratar da culpa dos alemães, por exemplo, também estou tratando de conceitos como responsabilidade coletiva, responsabilidade pessoal, liberdade, julgamento, moralidade,36 entre outros. “Assim, é impossível defini-los por uma fórmula: convém descrevê-los, desenrolar a meada de realidades concretas e de relações de quais eles são o resumo (...); explicá-los é sempre explicitá-los, desenvolvê-los, desdobrá-los”.37 Além disso, é fundamental se ater a metodologia de análise dos próprios panfletos e das particularidades desses escritos específicos, produzidos e distribuídos em meio ao regime nazista, no século XX. Os panfletos se constituem como um suporte de circulação de ideias, tendo grande destaque durante as Revoluções Inglesa, Francesa e Americana. Como 33 KOSELLECK (1996). apud JASMIN, Marcelo Gantus. História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares. Revista Brasileira de Ciências Sociais: vol. 20, nº. 57, fevereiro de 2005, p. 32. 34 PROST, Antoine. Doze Lições Sobre a História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008, p. 130. 35 Idem, ibidem, p. 124. 36 Ver: ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 37 PROST. Doze Lições Sobre a História, p. 121. 84 argumentam Heloísa Starling38 e Bernard Baylin,39 as principais características desse tipo de suporte são o seu conteúdo tópico, polêmico e curto, munidos de argumentos convincentes e que não necessariamente vem com a assinatura do autor. Um aspecto fundamental na constituição de um panfleto é a fomentação de polêmica sobre um fato que está acontecendo no momento em que o panfleto é escrito. Seus objetivos mais claros são: a circulação de opinião, a troca e confronto de argumentos e o posicionamento da população sobre o assunto debatido. Segundo Starling, o panfleto moderno manteve suas linhas definidoras até as últimas décadas do século XX, de modo que podemos inserir os panfletos da Rosa Branca nessa tradição, que tem início no século XVIII. Os panfletos da Rosa Branca podem ser entendidos como uma forma de propaganda (e assim também os Scholl os definem) antinazista. Isso significa que eles buscavam, com o seu conteúdo, fazer com que informações circulassem de mão em mão e incitassem a oposição ao regime de Hitler. O objetivo principal dos panfletos da Rosa Branca está em fazer a população refletir sobre o que acontecia dentro de seu próprio país e, para auxiliar nessa reflexão, eram delatados os crimes da guerra e eventos singulares apareciam como incentivo (como, por exemplo, o discurso de Giesler na Universidade de Munique em janeiro de 1943, ou o discurso de rádio de Roosevelt também em janeiro de 1943). Na linguagem dos folhetos fica muito claro que os crimes são denunciados para que os alemães agissem antes que fosse tarde demais, ou seja, um aviso de que o povo alemão seria odiado por todo o mundo se não impedissem Hitler. Como será apresentado ao longo deste trabalho, esses jovens não tinham uma proposta definida sobre o que viria a ser a Alemanha caso eles atingissem seu objetivo de acabar com o Nacional-Socialismo, mas duas coisas eram certas: a guerra precisava acabar e o nazismo deveria ser destruído em todas as suas bases. Sophie Scholl afirma para a Gestapo que Hans e ela perceberam que sua postura inicial de apenas conversar com pessoas com opiniões parecidas sobre as suas discordâncias ao regime não significava nada. Seus círculos de leituras e discussões não fariam com que a guerra fosse encurtada e eles se deram conta que precisavam de um meio para comunicar suas visões com as “massas”40 – ainda que essa proposta de tocar as “massas” não seja condizente com a realidade de suas ações, como veremos. A partir daí, tiveram a ideia de produzir panfletos, 38 STARLING, Heloisa Maria Murgel. A matriz norte-americana. In: BIGNOTTO, Newton. Matrizes do Republicanismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 250. 39 BAILYN, Bernard. A literatura da Revolução. In: As Origens Ideológicas da Revolução Americana. Bauru: EDUSC, 2003, pp. 23-67. 40 Interrogatório de Sophie Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 3250-3257. 85 como uma maneira de estimular a discordância e apresentar argumentos para mostrar que a guerra precisava acabar. Os irmãos enxergavam sua empreitada como uma forma de propaganda, que foi inicialmente mais destinada às pessoas cultas. Precisamente por essa razão que a segunda fase se constituiu em uma ruptura tão grande com a primeira. Começaram, portanto, a entrar em contato com outros membros da resistência alemã em 1943, por entenderem que os panfletos românticos provavelmente não incitariam uma ação popular, principalmente porque não abarcavam o “popular”, somente a intelligentsia. Além disso, após retornarem do front russo, Hans e Alex passam a acreditar que uma resistência passiva não surtiria nenhum efeito e que Hitler precisava ser impedido a todo custo. Para tanto, era necessária uma aliança com os outros movimentos de resistência antifascistas já existentes. Hans tinha, inclusive, uma proposta de formar uma resistência estudantil, por meio da aliança dos estudantes das principais universidades alemãs, e os panfletos passaram a ocupar apenas uma das vertentes de ação dessa segunda fase. Pensar a resistência em um regime totalitário é pensar também que a resistência se encontra dentro do campo de possibilidades do humano, assim como o próprio totalitarismo. Ainda que se constituísse a minoria dentro da população alemã, a resistência a um regime totalitário não é um acontecimento totalmente singular e que deva ser tratado como algo extraordinário e sobre-humano. Assim, “o acontecimento, principalmente, sob a sua forma política não pode, portanto, ser considerado como um simples produto; ele não é o grão de areia que se tornou pérola no corpo da ostra-estrutura”. E, pensando no trabalho da história filosófica do político: “o historiador político deverá, portanto, fazer cada vez mais apelo ao longo prazo, quer dizer, encarar a temporalidade em que trabalha sob o ângulo da permanência, e não apenas da mudança”.41 A Rosa Branca foi um grupo formado por um interesse conjunto de tomar a atitude de se opor ao nazismo, por não considerar aquele governo legítimo, mesmo sabendo das prováveis consequências de seus atos. Estavam dispostos a morrer por essa causa e assim o fizeram, e distribuíram os panfletos na tentativa de fazer com que a população também resistisse. Como demonstra Hannah Arendt, não há uma diferença entre o mundo das aparências e o mundo privado de nossas intenções, portanto, aparecer para o mundo por meio de palavras e atos significa engajar-se politicamente. A ação panfletária é vista, então, como uma forma de resistir no mundo massificado do totalitarismo. Na medida em que o totalitarismo visa acabar com o 41 JULLIARD, Jacques. A política. In: LE GOFF; NORA (orgs.). História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 186, 188. 86 mundo humano e transformar todos os homens em Um-Só, acabando com a singularidade e também com a ação livre e conjunta, os membros da Rosa Branca tentam fazer renascer o espaço-entre, o espaço onde os homens podem se associar. E foi por meio dessa associação entre os resistentes e outros opositores que surgiu uma ação que visava a liberdade, uma ação que atuava em nome do comum e em virtude do amor responsável pelo mundo. Através da faculdade do pensar e do juízo, esses resistentes, que nunca tiveram uma crise de consciência, interviram no mundo político e renasceram para esse mundo, se tornando exemplos: heróis, verdadeiramente. A responsabilidade essencial pelo Outro Nos Panfletos da Rosa Branca, o conceito de culpa aparece de forma muito enfática, muito mais do que na segunda fase do movimento de resistência. Eles fazem afirmações como “ninguém pode ser absolvido: cada indivíduo é culpado, culpado, culpado!”42 e “a sua culpa crescerá dia após dia, como em uma curva parabólica”.43 Sendo assim, é importante fazer uma reflexão acerca da ideia de culpa do povo alemão. Hannah Arendt faz uma diferenciação entre os conceitos de culpa e responsabilidade. Para ela, dizer que todos os alemães são culpados acaba contribuindo para o discurso dos próprios nazistas, pois, onde todos são culpados, ninguém de fato é culpado e ninguém pode ser julgado. Assim, não é possível tratar de algo como culpa coletiva de toda a população alemã “desde Lutero a Hitler”,44 é preciso, então, incluir o conceito de responsabilidade para melhor compreender o colapso moral da Alemanha nazista. O regime nacional-socialista introduziu na sociedade um novo conjunto de valores e, concomitantemente, um corpo jurídico ligado a esses novos valores. Arendt afirma que diante do horror, de uma situação de exceção, houve um colapso quase universal de julgamento pessoal. De acordo com a filósofa, não existe culpa coletiva e nem inocência coletiva. A responsabilidade é coletiva, e a responsabilidade política é um tipo de responsabilidade coletiva. Arendt demonstra que os “não participantes” permaneceram com o mesmo sistema de valores - ou seja, com o mesmo julgamento de certo e errado – que eles possuíam antes de 42 Segundo panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 97. Terceiro panfleto. Idem, ibidem, p. 100. 44 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento, p. 83. 43 87 Hitler, de modo que não assassinavam porque se recusavam a viver com um assassino – eles mesmos. Desta forma, a conduta moral não estaria relacionada à obediência a nenhuma lei externa, o que, segundo Kant, diferencia moralidade de legalidade. Ao tratar do imperativo categórico, Kant evidencia que, se não quero contradizer a mim mesmo, devo agir de tal maneira que “a máxima de meu ato pode se tornar uma lei universal”. 45 Por isso é melhor, como demonstra Sócrates, estar em desacordo com os outros do que estar em desacordo consigo mesmo, e isto também vale para a noção de que é melhor sofrer o mal do que cometê-lo, pois “se faço o mal, sou condenado a viver junto com um malfeitor numa intimidade insuportável; nunca posso me livrar dele”.46 Nesse sentido, os alemães da época nazista que não eram culpados – como os integrantes da Rosa Branca -, não passaram por uma crise moral ou de consciência porque o mal, para eles, não era uma tentação; eles apenas preferiam morrer a ter que viver com um criminoso. Eles “nunca duvidaram que os crimes permaneceram sendo crimes mesmo se legalizados pelo governo”.47 Para Arendt, a culpa é um sentimento pessoal ligado, principalmente, à moralidade, enquanto a responsabilidade coletiva está inserida no campo político, dentro de uma comunidade. Portanto, seria tão errado sentir culpa por algo que não fizemos de fato, quanto não sentir culpa por algo que fizemos. Porém, podemos sentir responsabilidade por algo que não fizemos, já que vivemos em uma comunidade e vivemos com nós mesmos. É o nosso dever político, enquanto comunidade, de impedir o mal; quando não o impedimos, somos responsáveis, não culpados. Diria que duas condições tem de estar presentes para a responsabilidade coletiva: devo ser considerado responsável por algo que não fiz, e a razão para a minha responsabilidade deve ser o fato de eu pertencer a um grupo (um coletivo), o que nenhum ato voluntário meu pode dissolver [...] Esse tipo de responsabilidade, na minha opinião, é sempre política [...] Todo governo assume a responsabilidade pelos atos e malfeitorias de seus predecessores, e toda nação pelos atos e malfeitorias do passado.48 A moralidade diz respeito ao indivíduo na sua singularidade e muitas vezes é vista como um conjunto de costumes e de hábitos. Arendt alerta que a moralidade não é e nem pode ser entendida como um conjunto de hábitos que se modifica em cada época e em cada governo, pelo contrário: ela está ligada ao outro que se quer viver junto, ao diálogo entre eu e eu mesma. Os que têm medo do desprezo de si, ou de se contradizer, são sempre os que vivem consigo 45 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento, p. 133. Idem, ibidem, pp. 154-5. 47 Idem, ibidem, p. 142. 48 Idem, ibidem, pp. 216-7. 46 88 próprios, os que tem esse diálogo interno (que chamamos de consciência) muito claro e, portanto, não tem uma crise de consciência. Os Dez Mandamentos, cuja base cristã fazia com que os homens se sentissem moralmente obrigados a cumprir, foram solapados pelos regimes totalitários, já que, o “Não Matarás” e o “Não prestarás falso testemunho” se transformaram do dia para noite em “Matarás” e “Prestarás falso testemunho”. Sendo assim, para Arendt, “no centro das considerações morais da conduta humana está o eu; no centro das considerações políticas da conduta está o mundo. Se despirmos os imperativos morais de suas conotações e origens religiosas, resta-nos apenas a proposição socrática – é melhor sofrer o mal do que fazer o mal”.49 A filósofa entende, portanto, que pensar implica em analisar sua conduta moral: Sabemos agora que as normas e os padrões morais podem ser mudados da noite para o dia, e que tudo o que então restará é o mero hábito de se manter fiel a alguma coisa [...] Os melhores de todos serão aqueles que tem apenas uma única certeza: independentemente dos fatos que aconteçam enquanto vivemos, estaremos condenados a viver conosco mesmos.50 Outro autor fundamental para as questões de culpa e responsabilidade – dialogando fortemente com Hannah Arendt - é o sociólogo Zygmunt Bauman. Como vimos, em Modernidade e Holocausto, Bauman propõe a teoria de que o Holocausto é fruto da Modernidade e que não devemos tratar o comportamento imoral como um desvio da norma ou algo que seja inserido fora da sociedade. Para Bauman, a conduta moral deve existir independente do fator externo, ou seja, independente da sociedade em que estamos inseridos: “Mesmo se condenada pelo grupo – por todos os grupos, aliás – a conduta individual deve ainda ser moral; uma ação recomendada pela sociedade – mesmo por todo o conjunto da sociedade em uníssono – pode ainda assim ser imoral”.51 A capacidade de julgamento para distinguir o certo e o errado é algo que deve se basear além da consciência coletiva da sociedade e, enxergar os nazistas como loucos e sádicos que fizeram tudo por terem uma “doença”, diminui a culpa e a carga de responsabilidade do que realmente precisa ser analisado: Enquanto a moralidade for entendida como produto social e explicada em termos causais por referência a mecanismos que, se funcionam adequadamente, garantem seu ‘abastecimento constante’, os eventos que ofendem os difusos, mas arraigados sentimentos morais e desafiam a concepção comum do bem e do mal (da conduta própria ou imprópria) tenderão a ser vistos como resultado de uma falha ou má administração da ‘indústria moral’. (...) O comportamento imoral é então teorizado como 49 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento, p. 220. Idem, ibidem, p. 108. 51 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 206. 50 89 ‘desvio’ da norma e, em última análise, da deficiência ou imperfeição dos mecanismos sociais destinados a exercer tais pressões.52 Para Bauman, a responsabilidade pelas ações morais repousa no indivíduo e cabe a ele a capacidade de resistir à pressão da sociedade para fazer algo que ele mesmo pode considerar como errado. O que o nazismo conseguiu atingir com sucesso, foi a produção social da distância entre os indivíduos de modo a eliminar essa noção de responsabilidade na maioria das pessoas. Mas, para ele, a moralidade não é um produto da sociedade, e sim algo que a sociedade manipula e utiliza. Sendo assim, os seres humanos têm a responsabilidade moral de resistir à socialização. Isso significa que a minha responsabilidade enquanto ser humano é incondicional, ela diz respeito ao Outro, à minha relação com esse Outro e está inerente a mim enquanto humano. O dever moral só conta, então, com essa responsabilidade humana essencial pelo Outro e, muitas vezes, posturas morais são posturas de resistência. Todorov, ao falar dos heróis, chama atenção para as questões da moralidade e dignidade humanas. A dignidade seria o respeito por si mesmo e uma adequação entre exterior e interior. Para ele, a dignidade não exige sanção social, necessitando apenas da coerência entre consciência e gesto, o que o leva a concluir que nem toda a dignidade é moral: ela só se torna moral quando vem do exterior e está a serviço do bem. Ele explica: “o nazista que age sempre de acordo com suas convicções merece, talvez, uma espécie de respeito, mas nem por isso seu comportamento se torna moral. Para que isso aconteça, não basta que haja harmonia entre os atos e os ideais, é preciso, ainda, que esses ideais não se choquem com o bem da humanidade”.53 Fazendo uma analogia com Hannah Arendt, isso significaria que: é melhor estar em desacordo com o mundo do que consigo mesmo, mas somente estar em acordo consigo mesmo não quer dizer agir moralmente. É possível estar de acordo consigo mesmo e não agir em serviço do bem, o que seria importante para analisar tanto Eichmann, que segundo Arendt, não pensava nas consequências de seus atos (portanto, não agia necessariamente de acordo com suas convicções), quanto um nazista convicto, que realmente acreditava naquilo que estava fazendo. Seguindo a linha argumentativa de Todorov, atos morais tornam o mundo melhor do que antes e beneficiam todos os seus habitantes. No entanto, “em nome da moral, só se pode exigir de si mesmo”,54 o que significa que a moral tem a ver com o indivíduo, ainda que um ato moral possa beneficiar o coletivo. O autor lembra que “se quero exemplos do bem, devo sempre 52 BAUMAN. Modernidade e Holocausto, pp. 202-3. TODOROV. Em face ao extremo, p. 81. 54 Idem, ibidem, p. 130. 53 90 tomá-los fora de mim; do mal, começar a procurá-los em mim”.55 Como vimos na Introdução, os heróis que buscam uma mudança no continuum histórico para abarcar a possibilidade de uma ação livre e fundante, se debruçam em exemplos do passado para auxiliá-los a agir. Um herói age, então, visando o bem da comunidade, mas suas ações morais recaem sobre ele mesmo. Em concordância com Bauman, Todorov afirma que o mal vive dentro de nós e que esse é um grande perigo. Para ambos, “o mal não é acidental, está sempre lá, disponível, pronto a manifestar-se; basta não fazer nada, para que ele emerja”.56 Posto isso, agir moralmente demanda não só que o indivíduo seja o sujeito das ações que recomenda, mas também, e essencialmente, uma profunda e constante análise e questionamento de si mesmo. Retomamos a questão de Hannah Arendt: com que outro quero e suporto viver junto? Suportaria viver comigo mesma sabendo que não fiz nada para impedir o mal? Todorov alerta que os homens nunca são inteiramente privados de escolher, uma vez que dizer que somos apenas animais racionais submetidos às circunstâncias e à sociedade em que vivemos faria com que renunciássemos completamente a nossa filiação humana. Bauman, de acordo, lembra que o mal não é todo poderoso e que é possível resistir a ele. Eis aqui o sentido da resistência ao totalitarismo: “quando ainda há tempo, é imperioso agir”.57 Todorov explica o que ele entende por moral e como ela afeta o mundo humano: Do modo como a compreendo, a moral não poderia desaparecer sem que produzisse uma mutação na espécie humana. [...] A moral, tal como a entendo, é uma das dimensões constitutivas do mundo intersubjetivo; ela o impregna de parte a parte e constitui, ao mesmo tempo, seu ápice. Como é impossível imaginar a humanidade sem relações intersubjetivas, não podemos imaginála sem dimensão moral. Entendo por moral aquilo que nos permite dizer que uma ação é boa ou má. [...] Um mundo privado de moral seria um mundo onde tudo, nas relações humanas, tornar-se-ia indiferente – o que é praticamente impossível de conceber. [...] Se me perguntassem por que agimos de maneira moral, seria levado a dar uma dupla resposta: porque, desse modo, sentimos uma alegria profunda e porque, por meio disso, conformamo-nos à própria ideia de humanidade e participamos, assim, de sua concretização.58 A ação moral, nesse sentido, seria tão natural e inata quanto o mal cotidiano, entendido como o mal de não fazer nada mediante o sofrimento de outro ser humano. O mal causado pela indiferença pode acometer a todos nós – e, na maioria das vezes, acomete. Como Todorov lembra, “para que o mal se realize, não basta a ação de alguns, é preciso também que a grande 55 TODOROV. Em face ao extremo, p. 130. Idem, ibidem, p. 176. 57 Idem, ibidem, p. 259. 58 Idem, ibidem, pp. 324-326. 56 91 maioria fique de lado, indiferente; disso, sem dúvida, somos todos capazes”.59 Ele conclui que não podemos tirar lições sobre a natureza do homem com a experiência do totalitarismo, pois os homens ou não são nem bons nem maus por natureza, ou são os dois. A ação moral está ao nosso alcance da mesma forma que o mal. Portanto, ela se constitui uma ação voluntária, e assim, livre. É preciso escolhê-la. Como classificar, portanto, uma atitude heroica como moral? Todorov salienta que os heróis correm riscos, fazem sacrifícios e que uma ação heroica é dirigida a uma abstração (pátria, liberdade, comunismo, humanidade) e não a indivíduos. Não obstante, a moral leva em conta os indivíduos e não abstrações. Uma ação heroica moral, isto é, que pode ser classificada como boa e louvável, é a que leva em conta não só a abstração, mas também o elemento humano e o efeito de suas ações no próximo. Isso demonstra a existência do livre arbítrio, da adequação entre interior e exterior e do bem da humanidade como objetivo máximo. A análise dos conceitos de culpa e consequentemente, de responsabilidade e moralidade, são fundamentais para a compreensão da resistência da Rosa Branca, uma resistência embasada fundamentalmente nesse imperativo moral, sobretudo na primeira fase. Apesar de os estudantes dizerem que todos os alemães são culpados60 pelo nazismo, sua ação é iniciada justamente pela noção de que era preciso fazer alguma coisa. Era um dever, um imperativo. Eles entendiam que existia uma responsabilidade sobre o que acontecia em seu próprio país e que era o dever de todo alemão combater aquele sistema que cometia crimes em nome do povo. A culpa aparece como uma ideia associada diretamente à moralidade do indivíduo, à necessidade de agir mediante a tirania de Hitler, pois não agir e deixar o nazismo continuar, não era uma opção. Como as cartas de Sophie Scholl apresentadas no começo do capítulo, as noções de certo e errado permaneceram intactas nestes jovens, mesmo sob um governo totalitário. Hannah Arendt diria que eles preferiram morrer a ter que conviver consigo mesmos sabendo que eles não fizeram nada para acabar com o governo nazista, ou melhor, que eles sabiam que estavam condenados a viver com a sua própria consciência. Como verdadeiros heróis, no sentido proposto por Todorov, agiram de acordo com seus ideais, em uma luta pelo bem da humanidade. O exterior estava de acordo com o interior e eles agiram moralmente, em serviço do bem. 59 TODOROV. Em face ao extremo, p. 175. Afirmação que Hannah Arendt refutaria, dizendo que todos os alemães são responsáveis por fazerem parte dessa comunidade, porém nem todos são culpados. 60 92 “Cada nação merece o governo que tolera”61 O primeiro panfleto62 começa com a seguinte afirmação: “Não há nada mais indigno para um povo civilizado do que se deixar ‘governar’ sem resistência por uma corja de déspotas irresponsáveis, movida por instintos obscuros”.63 Observa-se que sempre que vão falar do governo nazista, os panfletos grafam a palavra governo entre aspas e isso se deve ao fato de não considerarem o Nacional-Socialismo como um governo legítimo. Também é possível observar o uso do termo déspotas: uma entidade que governa com poder absoluto. Ao longo de seus escritos, a Rosa Branca se refere ao governo nazista não só como despotismo, mas também como tirania e ditadura. Hannah Arendt utiliza a teoria dos regimes de Montesquieu para explicar o ineditismo do totalitarismo. Para Montesquieu, todo governo tem uma estrutura e um princípio particulares que o põe em movimento, princípios que regem tanto os governantes como os governados. A natureza do governo seria aquilo que o faz ser o que ele é, ao passo que o princípio motor ou norteador do governo seria o que o põe em movimento através de ações. Sendo assim, a república seria um governo constitucional com o poder soberano nas mãos do povo e o seu princípio de ação seria a virtude (amor à igualdade); a monarquia, por sua vez, seria um governo dotado de leis com o poder soberano nas mãos de um indivíduo e o seu princípio de ação seria a honra (paixão pela distinção); a tirania, por fim, seria um governo sem leis em que o poder é exercido por um indivíduo segundo sua vontade arbitrária, sendo o medo seu princípio de ação.64 De acordo com Arendt, governos tirânicos e autoritários estão inseridos dentro da estrutura da pirâmide, clássica no pensamento político tradicional. Um governo tirânico é igualitário por excelência, já que “o tirano é o governante que governa como um contra todos, e os ‘todos’ que ele oprime são iguais, a saber, igualmente desprovidos de poder”.65 A confusão entre tirania e totalitarismo parece se dar quando pensamos que tanto o tirano, quando o líder totalitário, concentram todo o poder em suas mãos, utilizando-o de modo a reduzir todos os 61 Primeiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 92. Escolhi não falar individualmente do autor de cada panfleto e nem da data de sua distribuição, já que existem muitas dúvidas acerca disso, como apontado previamente. Convencionou-se que os panfletos foram escritos e distribuídos em junho de 1942 e que participaram de sua elaboração Hans Scholl e Alex Schmorell. 63 Primeiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 91. 64 ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo (ensaios). São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008 pp. 348-349. 65 Idem. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 136. 62 93 outros homens à impotência. Dessa forma, podemos observar que a Rosa Branca usava conceitos como tirania, despotismo e ditadura porque eram os conceitos conhecidos na época para denominar regimes autoritários, principalmente se refletirmos sobre o tipo de leitura que os Scholl faziam e a influência dos textos dos antigos em seus escritos. A Rosa Branca afirma que o povo alemão tinha uma venda sobre os olhos e não queria ver “os mais horrendos crimes, que ultrapassam qualquer limite imaginável”. Logo, tem início uma temática que perpassa toda a primeira fase panfletária: a ruína do povo alemão: Se em sua mais profunda essência o povo alemão já está tão corrompido e degradado a ponto de, confiando levianamente em uma duvidosa conformidade à leis da História, não mostrar reação para defender o que o ser humano possui de mais valioso e que o eleva acima de todas as outras criaturas, a saber, o livre-arbítrio, a liberdade de assumir o comando, de mover a Roda da História com as próprias mãos, subordinando-a à sua decisão racional; se os alemães, assim desprovidos de qualquer individualidade, já se tornaram uma massa tão insípida e covarde, então, sim, eles merecem a ruína.66 No primeiro momento fica muito claro que, para os estudantes, se o povo alemão não oferecesse nenhuma resistência ao nazismo, seria um povo odiado por toda a Europa e merecedor de tal ódio por terem sido apáticos. A única maneira de se livrar da ruína eminente seria a de resistir a Hitler, de exercer o dom da liberdade e de fazer a sua própria história, ao invés de ficar apenas esperando que as coisas acontecessem. Esse tipo de discurso, de que a população merecia a ruína se não fizesse nada para impedir Hitler, era extremamente perigoso e cumpria um papel que é importante na ação panfletária: o de incitar a ação. Eles queriam mostrar que somente os alemães conseguiriam acabar com o regime nazista e que esse era um dever moral de todos. Logo em seguida, surge nos panfletos a primeira menção a Goethe, um dos principais escritores alemães, ícone do movimento literário do Romantismo Alemão67 ao lado de Friedrich Schiller – também citado nesse mesmo panfleto. O romantismo foi um movimento não só artístico, como também filosófico, uma revolução de pensamento, que perpassou fins do século XVIII e todo o século XIX. Foi uma corrente que apoiava o nacionalismo e incentivava a cultura nacional, tendo sido fundamental, na Alemanha, para a unificação dos proto-estados 66 Primeiro panfleto, In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 91, grifos meus. Para uma visão mais aprofundada do romantismo alemão, ver: SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2010. Em uma entrevista para a Revista Cult, Safranski define o romantismo alemão como uma revolução de pensamento, e fala que “na Alemanha o Romantismo atingiu seu ápice, tornando-se então exemplo em outros países. Mas acima de tudo esse movimento resistiu, e influenciou até os dias atuais, a cultura alemã no bom como no mau sentido”. Ver em: https://revistacult.uol.com.br/home/romantismo-alemao/ acesso em 22/07/2017. 67 94 germânicos. Como dito no capítulo anterior, os Scholl eram uma família muito influenciada pela cultura alemã em todos os âmbitos: literatura, poesia, música, política. Goethe era um dos autores preferidos de Sophie e Hans Scholl e, não por acaso, aparece aqui como uma grande referência. Goethe fala dos alemães como um povo trágico, semelhante aos judeus e aos gregos, mas hoje ele parece mais um rebanho superficial e apático de seguidores alienados, que tiveram sua medula sugada e sua essência subtraída e que agora estão dispostos a se deixarem lançar à ruína. É o que parece, mas não é assim; muito pelo contrário: por meio de uma violação lenta, ardilosa e sistemática, cada indivíduo foi confinado em uma prisão espiritual, e só quando já estava acorrentado ali é que tomou consciência da fatalidade. Foram poucos os que reconheceram a perdição iminente, e a recompensa por suas heroicas palavras de advertência foi a morte.68 Esse trecho é representativo, pois Hans Scholl provavelmente se incluía nesse grupo de pessoas que estavam confinadas em uma prisão espiritual e que só perceberam a ruína depois. Isto é, indivíduos que se entusiasmaram com a proposta nacional-socialista inicialmente, mas que, com o passar do tempo, foram se decepcionando com o governo e discordando de muitos de seus ideais. Como foi dito, Hans Scholl foi membro da Juventude Hitlerista e foi só a partir de 1938 que começou a perceber e entender seu descontentamento com alguns dogmas nazistas, principalmente no que dizia respeito a liberdade essencial do indivíduo. É bom frisar que as publicações de Windlicht, que podemos compreender como o primeiro passo da resistência dos Scholl como abordado no capítulo anterior, datam de agosto de 1941 a fevereiro de 1942, ou seja, a última publicação acaba apenas quatro meses antes do primeiro panfleto da Rosa Branca. Ademais, nesse folheto também é ressaltado que os poucos que “reconheceram a perdição iminente” foram punidos com a morte. Os poucos que entenderam o que o governo nazista buscava de fato, e que se opuseram desde o início, foram assassinados. No que tange o alinhamento político do grupo, a Rosa Branca não está em equiparação a nenhum grupo político da época, nem mesmo à resistência religiosa. Como mencionado, os estudantes não propunham nenhuma forma de governo caso conseguissem tirar Hitler do poder; além disso, não estavam inseridos em nenhuma outra resistência política da época – caso estivessem, provavelmente teriam ido para campos de concentração já nos primeiros anos do nazismo. Esse foi o caso dos socialdemocratas e principalmente dos comunistas, os únicos grupos que ofereciam uma oposição mais organizada ao nazismo e que foram destruídos com violência. Em 1935, Hitler já não sofria com nenhuma oposição política declarada. Zygmunt Bauman destaca a fala de um 68 Primeiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 91-92, grifos meus. 95 sobrevivente dos campos de concentração: “só pode dizer que fez tudo o que podia aquele que pagou por isso com a morte”.69 Desta forma, Hans tinha razão ao dizer que os opositores pagaram com a própria vida. A associação do povo alemão a “um rebanho superficial e apático de seguidores alienados que tiveram sua medula sugada e sua essência subtraída e que agora estão dispostos a se deixarem lançar à ruína” é extremamente poderosa. Para a Rosa Branca, os alemães haviam perdido a sua essência como um povo consciente e se tornaram uma massa de indivíduos que faziam o que o Führer mandava, mesmo que a ordem fosse levar a Alemanha a ruína. O rebanho superficial tem profunda relação com o que Hannah Arendt chama de sociedade de massas nos regimes totalitários, onde não existe mais o indivíduo, apenas uma massa compacta e homogênea de seres humanos que não têm mais interesse pelo coletivo. Na sociedade de massas não existe mais o humano, apenas seres da mesma espécie, massificados e moldados pela ideologia para agir dentro de um plano traçado para eles pelo Líder e o Partido. Ao mesmo tempo em que a Rosa Branca diz: “não é verdade que hoje todo alemão honesto envergonha-se de seu governo? ”,70 também diz que “cada nação merece o governo que ela tolera”.71 Esse discurso vai se desenvolver nos próximos panfletos com a ideia de culpa do povo alemão. Para os membros da Rosa Branca, se o povo alemão deixasse o governo de Hitler continuar no poder, não só eles mereciam sua ruína como também eram culpados por tudo o que acontecia e iria acontecer para com a reputação do país. Sendo assim, era de obrigação de todos que: Eis por que, consciente de sua responsabilidade como membro da cultura cristã e ocidental, cada um deve, nesta hora derradeira, resistir da melhor maneira possível, combater o flagelo da humanidade, o Fascismo e qualquer outro sistema de Estado Absoluto semelhante a ele. Ofereçam resistência passiva – resistência – onde quer que vocês estejam, impeçam que essa máquina de guerra ateísta continue avançando antes que seja tarde demais.72 É interessante destacar a concepção de “máquina de guerra ateísta”. Muitas vezes os jovens da Rosa Branca se referem a Hitler como alguém que estava manchando os valores cristãos tradicionais. Entretanto, não podemos classificar o governo nazista como particularmente ateísta, principalmente porque as igrejas continuaram existindo, como vimos 69 BARTOSZEWSKI, Wladyslaw apud BAUMAN. Modernidade e Holocausto, p. 231. Primeiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 91. 71 Idem, ibidem, p. 92. 72 Idem, ibidem, p. 91, grifos meus. 70 96 anteriormente. Essa primeira fase, contudo, conta com muitas referências religiosas e Hitler é constantemente retratado como a representação do Mal e do diabo. Essa é, também, a primeira menção ao termo fascismo nos escritos – que se torna algo recorrente -, e cabe aqui uma breve análise. Em 18 de fevereiro de 1943, pouco após a prisão dos irmãos Scholl, a Gestapo encomendou um perfil psicológico dos autores dos panfletos que eles haviam recolhido, não só os que os irmãos estavam distribuindo naquele dia, como os outros que eles já tinham em sua posse. Esse perfil foi feito para averiguar duas coisas: se havia alguma relação entre os Panfletos da Rosa Branca e os Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha, ou seja, se os panfletos eram dos mesmos autores; e se os autores poderiam ser membros de uma organização de resistência maior e estrangeira, e não alemães, fato que implicaria na soltura dos irmãos Scholl. Analisarei mais profundamente essas questões no último capítulo, já que o professor Harder73 recebe inicialmente, no dia 17, os dois panfletos da segunda fase, e no dia seguinte, os quatro panfletos da primeira fase. O comentário do professor acerca do uso do termo fascismo é: O autor aparentemente se nutre de propaganda estrangeira estável, bastante banal, que eu conheço devido ao meu domicílio no exterior. Eu assumiria que essa propaganda vem de transmissões estrangeiras [de rádio], mas não tenho meios para testar essa teoria. Os seguintes pertencem a esta categoria: pregação da resistência passiva; a expressão ‘fascista’ para se referir ao Nacional-Socialismo, uma vez que esta expressão se originou com os bolchevistas; as falas sobre as grandes perdas na Frente Oriental já no verão passado; e, finalmente, a crítica do estilo de Adolf Hitler em Mein Kampf.74 Como é possível concluir ao longo deste trabalho, a utilização de determinados conceitos e a informação de certos acontecimentos da guerra denunciavam que os autores ouviam rádios estrangeiras. Não é de se estranhar, portanto, a equiparação dos nazistas com os fascistas principalmente ao associarem o Fascismo a um Estado absoluto. O movimento Na documentação consta apenas “Professor Harder”, residente de Munique. Cruzando a bibliografia, descobrese que se trata na verdade de Richard Harder, professor de grego da Universidade de Munique e também diretor do Instituto História Intelectual Indogermânica de Munique. Harder foi financiado pelos nazistas para desenvolver pesquisas raciais e produzir uma história intelectual racial “genuína”. Ver mais em: BIALAS, Wolfgang; RABINBACH, Anson (orgs.). Nazi Germany and the Humanities: How German Academics embraced Nazism. Londres: OneWorld Publications, 2014, pp. 329-330. 74 “The author apparently gets nourishment from steady, fairly banal, foreign propaganda, that I am familiar with from my domicile abroad. I would assume that this propaganda comes from foreign [radio] broadcasts, but I do not have any means to test this theory. The following belongs in this category: Preaching of passive resistance; the expression “fascist” with regards to National Socialism, since this expression originated with the Bolshevists; talk of the great losses on the Eastern Front as early as last summer; and finally, the critique of Adolf Hitler’s style in Mein Kampf.” Tradução minha. Análise do Professor Harder. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 845-848. 73 97 fascista, iniciado na Itália com Mussolini, tinha muitas características similares ao NacionalSocialismo. Segundo Richard Evans: O fascismo italiano era violento, incessantemente ativo, desprezava as instituições parlamentares, era militarista e glorificava o conflito e a guerra. Era acrimoniosamente contrário não só ao comunismo, mas também e ainda mais notavelmente ao socialismo e ao liberalismo. Favorecia uma visão orgânica da sociedade, na qual interesses de classe e representação popular seriam substituídos por instituições estabelecidas que atravessariam as classes e uniriam a nação. Era machista e antifeminista, almejando um Estado no qual os homens mandariam e as mulheres ficariam reduzidas basicamente às funções de dar à luz e criar filhos. Elevava o líder a uma posição de autoridade incontestada. Patrocinava o culto da juventude, declarando sua intenção de varrer velhas instituições e tradições e criar uma nova forma de ser humano, rude, anti-intelectual, moderno, secular e acima de tudo fanaticamente devotado à causa de sua nação e raça. Em todos esses aspectos, forneceu um modelo e um paralelo para o emergente Partido Nazista.75 Por conseguinte, o nazismo aparece como um governo autoritário, tirânico, absoluto, ditatorial e fascista. Os termos usados refletem não só a linguagem que estava sendo usada internacionalmente, como também a educação que os autores receberam, os livros que haviam lido e os autores que conheciam. Nesse primeiro escrito, assim, já se encontra uma longa citação de Friedrich Schiller, de A legislação de Licurgo e Sólon, e uma de Goethe, de O despertar de Epimênides. Tais citações, inclusive, ocupam a maior parte do texto. Parece-me que eles queriam mostrar às pessoas que existiam alemães que não concordavam com o nazismo, isto é, que nem todos os alemães eram nazistas. Como vimos anteriormente, era extremamente difícil que pessoas que tivessem discordâncias com o regime falassem sobre isso com seus pares, portanto, esse primeiro panfleto talvez tenha sido justamente uma tentativa de mostrar para essas pessoas discordantes que elas não estavam sozinhas. Sobre A legislação de Licurgo e Sólon, os trechos escolhidos no panfleto dizem respeito à Constituição e aos poderes do Estado. Licurgo de Esparta foi um legislador que implementou a reforma política baseada no ideal militar e na igualdade entre os cidadãos espartanos. Schiller destacada nesse excerto que a legislação de Licurgo “é uma obra prima da política e da antropologia”, que, no entanto, se perdeu em sua função principal, a de promover o progresso do Espírito. A finalidade do Estado seria a do desenvolvimento das potencialidades do homem, de modo que o Estado não seria um fim em si mesmo. Dessa maneira, por mais bem pensada que tenha sido a constituição em Esparta, ela falhou, e se tornou “um mal que se prolonga”, já 75 EVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. 2ª edição. São Paulo: Planeta, 2014, p. 241. 98 que o benefício político dessas leis e desse Estado havia sido conquistado em detrimento “de todos os sentimentos morais”.76 Schiller afirma que: “o próprio código penal espartano proclamava o perigoso princípio de se considerar o homem como meio e não como fim – com isso solaparam-se, em conformidade com a lei, os fundamentos do direito natural e da moralidade”.77 É possível supor que esse trecho foi escolhido pela Rosa Branca para tratar da função do governo nazista na sociedade alemã, sobretudo nas suas aparentes conquistas: a melhoria no desemprego, na economia, na violência. Após a falida República de Weimar, a crise econômica de 1929, a situação desesperadora que se encontrava a população alemã no começo dos anos 1930, Hitler surgiu como um salvador, alguém que iria resolver todos os problemas do país. A grande maioria dos alemães acreditou nesse discurso de Hitler e acompanhou o progresso de suas medidas, mas a questão que se coloca é: tudo isso foi conquistado às custas de quê? Como recorda Inge Scholl, ao afirmarem que Hitler havia eliminado o desemprego, como prometido, seu pai, Robert Scholl, os alertou: “isso é verdade. Só não perguntem como!”. Dessa forma, pensando no trecho de Schiller, é possível perceber que, para a Rosa Branca, não importava que a economia tivesse melhorado e a sociedade tivesse saído de uma situação de muita miséria. Tudo isso se deu às custas do fracasso da finalidade última do Estado, entendida como o desenvolvimento de todas as potencialidades do homem, e da concepção do homem como um fim em si próprio, e não como meio para atingir um fim. O próximo excerto escolhido no panfleto é de O despertar de Epimênides, de Goethe, ato II, cena IV. São trechos que tratam do desejo pela liberdade e que alertam que “os que seguem o ousado irão junto perecer”. Com relação às palavras de Goethe, há uma questão interessante: o escritor alemão Thomas Mann foi convidado pela BBC para fazer transmissões de rádio falando aos ouvintes sobre os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Os discursos datam de 1940 a 1945 e, em um discurso de setembro de 1941, o escritor fala do mesmo livro de Goethe supracitado, questionando a comparação recorrente entre Hitler e Napoleão.78 Ele afirma que: Mas ouçam os versos de O despertar de Epimênides, em que Goethe, após a queda de Napoleão, condena previamente a aventura de Hitler: ‘Maldito seja quem por falso conselho, Com a coragem dos insolentes, Faça agora, como alemão, 76 Primeiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 93. Primeiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 93. 78 Essa comparação será abordada no próximo capítulo. 77 99 Aquilo que o franco-corso fez! Cedo ou tarde descobrirá Que existe uma justiça duradoura; Que apesar do poder e do esforço As coisas irão mal para ele e para os seus!’79 Pelas cartas e os relatos de Inge Scholl, sabemos que a família ouvia com frequência a rádios proibidas, como as transmissões internacionais da BBC. Sabemos também que Thomas Mann era um intelectual muito admirado pelos Scholl. Talvez Hans Scholl tenha escutado essa transmissão de 1941, mas não é possível afirmá-lo com certeza. De todo modo, é um bom demonstrativo da importância de Goethe para a intelectualidade alemã e de como o autor aparecia em muitas ocasiões como alguém que alertou sobre os perigos dos rumos da Alemanha e que auxiliava a pensar na situação do país naquele momento dos primeiros anos da Segunda Guerra. O panfleto termina com um pedido para que as pessoas fizessem a maior quantidade possível de cópias e que as passassem adiante, um pedido comum ao fim dos panfletos da Rosa Branca – demonstrando a ideia de que os próprios receptores pudessem alimentar a resistência. “Ninguém pode ser absolvido: cada indivíduo é culpado”80 O segundo panfleto é mais longo, com duas pequenas citações de Lao-Tsé ao final. Nesse momento as ideias são elaboradas de maneira um pouco mais clara, mas ainda sem muitas proposições. Sua temática é a culpa do povo alemão e a necessidade de resistir ao governo de Hitler. O Nacional-Socialismo é visto como irracional e associado a um “tumor cancerígeno” que contaminou todo o povo. Era um governo que estava apodrecido por dentro desde o começo, mas que se manteve com base na mentira. Nas primeiras linhas já é feita uma crítica ao livro de Hitler, Mein Kampf (Minha Luta), que, segundo a Rosa Branca, era um livro “escrito no pior alemão que eu já li e que, todavia, foi alçado à condição de Bíblia para o ‘povo dos poetas e pensadores’”. Essa ironia é um recurso recorrente nos panfletos da Rosa Branca, bem como a crítica direta a Hitler e não somente ao Partido Nazista. O teor irônico também é observado nas cartas de Hans Scholl e nas suas declarações à Gestapo. Neste panfleto, novamente, é apontada a ideia de que, se toda a maldade do nazismo não foi percebida desde os primeiros anos, “foi porque ainda vigoravam forças do 79 MANN, Thomas. Ouvintes alemães! Discursos contra Hitler (1940-1945). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. 80 Primeiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 97. 100 Bem suficientes para contê-lo”, ou seja, porque ainda existia alguma forma de resistência, do que se segue: Após crescer e crescer e, por meio de uma corrupção generalizada, chegar enfim ao poder, o tumor rebentou e contaminou o corpo inteiro: a maioria dos antigos opositores se escondeu, a intelectualidade alemã se refugiou em uma cova, para aos poucos morrer sufocada como uma planta privada da luz e do sol. Agora estamos próximos do fim. O que importa agora é que nos reencontremos uns aos outros, que nos ajudemos a discernir bem, que pensemos nisso sempre, sem descanso, até o mais reticente se convencer da extrema necessidade de lutar contra esse sistema. Se uma onda de revolta se propagar pelo país, se houver algo no ar, se muitos participarem, então, em um derradeiro e extraordinário esforço, esse sistema poderá ser derrubado. Um fim com terror ainda é melhor que um terror sem fim.81 Assim, a Rosa Branca entende que a oposição na Alemanha estava escondida, mas que ela existia. Acreditavam ainda que a intelectualidade tinha o dever de resistir ao nazismo e que havia chegado o momento de esses opositores se reencontrarem para lutar pelo fim do regime, mostrando até para os mais “reticentes” que Hitler era um mal que precisava ser eliminado. Sendo um grupo que morreu por esses ideais, é possível imaginar que eles realmente acreditavam nessa visão de que “um fim com terror ainda é melhor que um terror sem fim” – essa é a concepção de heroísmo proposta por Todorov, como vimos na Introdução. Também podemos nos questionar o que significaria esse “fim com terror”, uma vez que nesse momento inicial a escolha da forma de ação é a resistência pacífica, por meio da sabotagem. Para esses jovens, que acontecia na Alemanha era uma “catástrofe”, mas ainda havia saída. Para tanto, era preciso que os alemães se purificassem através do sofrimento, ansiassem pela “luz na mais profunda noite”, mobilizassem-se e contribuíssem para se livrar “do jugo que oprime o mundo”. O jugo, ou seja, a submissão e obediência a alguém, e esse alguém, para eles, era um tirano: Hitler. O ataque direto a Hitler não era por acaso: era preciso difamar a imagem do Führer como um bom governante e líder militar para poder enfraquecer o nazismo nas suas próprias bases. Este panfleto é especialmente intrigante porque nele é tratado a questão judaica. Em 20 de janeiro de 1942 realizou-se a Conferência de Wannsee, um encontro entre 15 homens do governo nazista para definir os rumos do que ficou conhecido como a Solução Final da Questão Judaica (Endlösung der Judenfrage). Nessa reunião secreta ficou decidido que os judeus deveriam ser eliminados de todas as formas da sociedade alemã e tiveram início as deportações em massa para o leste. Foram delimitadas as maneiras como a deportação se daria, o número 81 Segundo panfleto In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 95-96, grifos meus. 101 de judeus transportados, o tipo de trabalho que seria dado aos que sobrevivessem à deportação e, nas semanas seguintes toda a estrutura dos campos de concentração foi modificada. Segundo Richard Evans: “a conferência foi então concluída com o que as minutas descreveram recatadamente como ‘vários tipos de soluções possíveis’. De acordo com testemunhos posteriores, esses tipos de soluções incluíam o uso das caminhonetes de gás”.82 Dito isto, quando a Rosa Branca redigiu o panfleto, em junho de 1942, milhares de judeus já estavam sendo exterminados. Entretanto, é interessante atentar para linguagem escolhida para abordar a questão: Não pretendemos abordar aqui a questão judaica, não queremos redigir nenhum discurso de defesa – não. Apenas como exemplo, queremos mencionar brevemente um fato: o fato de que, desde a tomada da Polônia, trezentos mil judeus foram assassinados naquele país da maneira mais bestial. Aqui vemos o mais terrível crime contra a dignidade humana, um crime sem precedentes em toda a história da humanidade. Pois os judeus também são seres humanos e – seja qual for a opinião de cada um sobre a questão judaica – foi contra seres humanos que esse crime foi cometido. Talvez alguém diga que os judeus merecessem tal destino; essa afirmação seria de monstruosa arrogância, mas suponhamos que alguém o dissesse: como essa pessoa justificaria o fato de que toda a juventude polonesa de linhagem nobre foi exterminada (queira Deus que isso ainda não tenha acontecido!)?83 É fundamental destacar que o antissemitismo atingia a Alemanha muito antes de o nazismo chegar ao poder e que muitos alemães (inclusive dentre grupos religiosos) eram antissemitas, mas não eram necessariamente exterminacionistas. A população protestante, da qual a família Scholl fazia parte, que contava com cerca de 40 milhões de pessoas, ou quase dois terços de toda a população, apoiara com fervor o NSDAP nos primeiros anos de governo. Hitler apareceu como uma alternativa ao marxismo e ao caos político daquele contexto e, existiam grupos protestantes cuja meta era “opor-se à ‘missão judaica na Alemanha’, rejeitar ‘o espírito do cosmopolitismo cristão’ e combater a ‘mistura racial’ como parte da missão de estabelecer uma ‘crença em Cristo apropriada à nossa raça’”. 84 Isso significa que o conservadorismo político tocava grande parte da população, inclusive os religiosos - e como vimos, a Rosa Branca era um grupo que em grande parte foi motivado pela fé. Inge Scholl não aborda a temática do antissemitismo de forma profunda, exceto em algumas passagens e, mesmo assim, referindo-se mais a Sophie do que a Hans. Ela afirma: Tanto quanto eu lembro, Sophie foi menos levada do que Hans e eu pela empolgação de 1933-34. [...] Lembro-me de que uma vez em uma viagem de 82 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 308. Segundo panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 96, grifos meus. 84 EVANS. O Terceiro Reich no poder, pp. 263-4. 83 102 bicicleta, uma menina de quinze anos de repente disse: ‘Quão adorável isso tudo seria, se não houvesse esse negócio sobre os judeus’. Havia duas meninas judias na classe de Sophie em Ulm, Luise Nathan e Anneliese Wallersteiner, filhas de famílias bem respeitadas. Elas não foram autorizadas a se juntar ao BDM [Liga das Jovens Alemãs, Bund Deutscher Mädel] e isso continuou enfurecendo Sophie. Mais de uma vez ela perguntou: ‘Por que Luise não pode, com seus cabelos finos e olhos azuis, ser membro, enquanto eu com meus cabelos escuros e meus olhos escuros sou membro?’. Ela não conseguiu entender, muito menos aceitar, o racismo antissemita. Ela deliberadamente manteve sua amizade com Anneliese e muitas vezes a levou para casa. Ela estava profundamente perturbada pelo pensamento de que tal amizade estava realmente proibida.85 Sophie se questiona como ela podia ser considerada ariana pelos critérios raciais, uma vez que não tinha olhos e cabelos claros, ao passo que sua amiga que possuía essas características físicas era discriminada por ser judia. Essa era uma contradição muito comum dentro do programa antissemita nazista, visto que a definição de judeu abarcava critérios muitas vezes subjetivos e confusos. Após a promulgação das Leis de Nuremberg em 1935, ficou definido que judeu era quem praticasse a religião judaica e/ou tivesse pelo menos três dos quatro avós judeus. Essas definições foram se modificando ao longo do tempo, abarcando também pessoas que eram classificadas judias pelo critério da raça mas que eram católicas e que nem sempre tinham descendência judaica.86 Uma pessoa poderia, portanto, ser vista como judia exclusivamente pelo critério racial, mesmo que não tivesse descendência e tampouco praticasse a religião judaica. Segundo Richard Evans, foi em fins de 1942 que o extermínio dos judeus se tornou “um tipo de segredo conhecido por todos na Alemanha”.87 Para os Aliados, a melhor forma de interromper o genocídio era acabando com a guerra o mais rápido possível. A partir de dezembro de 1942 a propaganda Aliada e britânica bombardeava os alemães com informações sobre o genocídio, de forma escrita e por rádio, prometendo retaliação e inflamando os alemães contra o regime nazista. Robert Gelatelly situa esse momento no meio do ano de 1942: “os alemães que ouviam rádios estrangeiras, especialmente a BBC, podiam escutar os relatos sobre “As far as I recall it, Sophie was less carried away than Hans and I by the excitement of 1933-34. [...] I remember that once on a bicycle trip a fifteen-year-old girl suddenly said, ‘how lovely all this would be if only there wasn’t this business about the Jews’. There were two Jewish girls in Sophie’s class in Ulm, Luise Nathan and Anneliese Wallersteiner, daughters of well-respected families. They were not allowed to join the BDM which kept enraging Sophie. Again and again she asked, ‘why can’t Luise, with her fair hair and blue eyes, be a member, while I with my dark hair and dark eyes am a member?’. She could not understand, much less accept, anti-Jewish racism. She deliberately maintained her friendship with Anneliese and often brought her home. She was deeply disturbed by the thought that such friendship was really forbidden.” Tradução minha. In: VINKE. The Short Life of Sophie Scholl, p. 42, grifo meu. 86 Sobre as Leis de Nuremberg e o processo de retirada dos judeus da vida civil, ver: EVANS. O Terceiro Reich no poder, pp. 604-624. 87 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 633. 85 103 o assassinato em massa de judeus a partir de pelo menos meados de 1942”.88 Sendo assim, quando os panfletos da primeira fase foram escritos, as informações acerca do genocídio poderiam não ser amplamente divulgadas, mas já corriam no território alemão, ainda que fosse por meio de rumores. A culpa do povo alemão, apontada pelos panfletos, é justamente um reflexo de sentimentos cristãos profundamente enraizados nos alemães, isto é, a culpa por não terem conseguido impedir que tantos judeus fossem assassinados. Pelo que se sabe a respeito da constituição familiar dos Scholl, principalmente pela forte presença de Robert Scholl, um oposicionista ao regime, é possível imaginar que o antissemitismo era algo que incomodava os jovens. Porém, o antissemitismo exterminacionista não era uma pauta política para a Rosa Branca, pelo menos não nos panfletos e pelo menos não no seu curto período de existência. Na segunda fase, em 1943, onde a indignação com o regime fica mais clara e as informações acerca do extermínio nos campos de concentração já estavam mais disseminadas, a questão judaica aparece novamente. No entanto, de fato, a resistência da Rosa Branca não era uma resistência à Solução Final89 – por isso reitero que essa não era uma pauta política para eles. O que quero dizer com isso? Em primeiro lugar, é importante destacar a coragem de trazer, naquele momento da guerra, o tema do assassinato dos judeus e poloneses a público, mesmo que sob o manto do anonimato. Afinal, os panfletos não eram assinados e a identidade dos autores permanecia protegida, no entanto, a produção e distribuição panfletária era um perigo constante e a descoberta da identidade dos autores poderia levar à morte dos mesmos. Ademais, a Rosa Branca ainda reitera que esse era um crime contra seres humanos, e chama o povo alemão para lutar contra esse e todos os outros crimes cometidos pelo NacionalSocialismo. No entanto, o extermínio dos judeus e poloneses era, para a Rosa Branca, mais uma questão de responsabilidade moral do que de responsabilidade política, e os próprios fazem essa diferenciação quando afirmam que não se pode assassinar seres humanos, uma ideia profundamente embasada na moral cristã. 88 GELLATELY, Robert. Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista. Rio de Janeiro: Record, 2011, pp. 232-3. 89 Até porque, como lembram Ian Kershaw e Richard Evans, há uma grande diferença entre o que a população podia e poderia saber e o que elas faziam com essa informação. Kershaw explica que uma consciência de genocídio (ainda que essa palavra não fosse usada na época) estava surgindo, mas não havia um conhecimento do que acontecia em detalhes e tampouco a escala do extermínio, o que deixou essa consciência com pouco aparato de compreensão. O próprio conceito de “Solução Final” só apareceu posteriormente, então, quando digo que a Rosa Branca não tem uma resistência política à Solução Final, quero dizer que eles não têm como pauta política tomar atitudes práticas para impedir que pessoas fossem exterminadas no front ou em campos de concentração, por exemplo. Para mais sobre a polêmica questão sobre o que os alemães sabiam sobre a Solução Final, ver: KERSHAW, Ian. Hitler, the Germans, and The Final Solution. Yale University Press, 2008. 104 Isso significa que essa questão aparecia, sim, nos panfletos, mas como um demonstrativo dos crimes que os nazistas estavam cometendo em nome do povo alemão. Como se afirma no impresso, “seja qual for a opinião de cada um sobre a questão judaica – foi contra seres humanos que esse crime foi cometido” e, mesmo que alguém dissesse que os judeus mereciam tal destino (uma postura arrogante, para eles), ainda assim não haveria explicação para o extermínio de “toda a juventude polonesa de linhagem nobre”. Portanto, a questão judaica poderia ser entendida como uma questão de opinião. No entanto, os alemães deveriam superar suas opiniões pessoais e enxergar o panorama geral: seres humanos estavam sendo exterminados. A resistência deveria ser embasada, portanto, em princípios de humanidade essenciais, fundamentados sobretudo em preceitos religiosos, que tangenciam o mundo da política, mas que não se constituem uma pauta política concreta. A pauta política fundamental para estes jovens era tirar o Nacional-Socialismo do poder, e para isso foram fornecidas soluções e medidas práticas de sabotagem como possibilidade de atingir esse objetivo. Logo após abordarem a questão judaica, a Rosa Branca afirma que estão se referindo a crimes que os alemães já tinham conhecimento. Para eles, as questões “da terrível subhumanidade” atingiam a toda a população e deveria obrigá-la a refletir sobre o que acontecia em seu próprio país. Os alemães estariam “imersos num sono letal”, dormindo “seu sono indiferente e estúpido” em um constante “estado de inércia”, uma vez que ninguém se preocupava com “esses crimes hediondos e extremamente desumanos”. Se todos já sabiam do que estava acontecendo, isto é, o extermínio dos judeus e poloneses, e se todos aceitavam o fato “e o caso é dado por encerrado”, o povo alemão continuava a dar “incentivo e oportunidade para os criminosos fascistas continuarem a sua devastação”. Seria um sinal de que os sentimentos humanos mais básicos dos alemães se embruteceram, de que nenhuma corda de seu interior sai do tom em estridente repúdio a tais atos, de que estão imersos num sono letal, do qual não há despertar, nunca, jamais? É o que parece e o que acontecerá com certeza se o alemão não sair logo desse estado de inércia, se não protestar de todas as formas possíveis contra essa corja de criminosos, se não se compadecer dessas centenas de milhares de vítimas. E ele [o povo alemão] não só deveria sentir compaixão pelas vítimas, não, muito mais que isso: deveria sentir sua parcela de culpa. Pois é a sua apatia que permite a essas pessoas sombrias agirem assim, ele dá suporte a esse ‘governo’ que fez recair sobre si uma culpa infinita; sim, ele é o culpado da existência desse governo! Todos querem ser absolvidos de sua parcela de culpa: é o que todos fazem, e depois voltam a dormir com a consciência tranquila. Mas ninguém pode ser absolvido: cada indivíduo é culpado, culpado, culpado!90 90 Segundo panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 97, grifos meus. 105 Como entendido pela Rosa Branca, a apatia do povo alemão estaria dando suporte para as ações dos nazistas, nesse caso compreendidas, principalmente, como o assassinato de milhares de judeus e poloneses. Para eles, era um absurdo que os alemães não estivessem lamentando o destino dessas vítimas e que não sentissem compaixão pelo seu sofrimento. A escolha da palavra vítima nesse contexto é extremamente representativa, posto que enxergar o judeu como vítima era uma maneira de ir diretamente contra a ideologia nazista, que, por sua vez, pregava que os judeus mereciam aquele destino por serem responsáveis por uma conspiração que visava a eliminação da raça ariana. Os alemães seriam, então, culpados pela existência do governo nazista e não poderiam dormir com a consciência tranquila. Para a Rosa Branca, todos os alemães são culpados pelo governo nazista e pelas ações que são feitas em seu nome. Os indivíduos que não resistiam se tornavam cada dia mais culpados. A ideia de culpa alemã foi muito forte no pós-guerra, onde os Aliados utilizaram justamente dessa ideia, a de que não havia diferenciação entre alemães e nazistas, pois todos eram culpados pelo extermínio do povo judeu e de todos os outros crimes cometidos pelo Nacional-Socialismo. A questão da moralidade me parece fundamental para compreender a resistência da Rosa Branca, precisamente porque esses estudantes afirmavam com frequência em seus panfletos que todo alemão tinha o dever moral de extinguir o regime nazista e que, caso não o fizessem, uma culpa imensa recairia sobre todos. Para eles, resistir naquela situação tinha uma relação direta com um imperativo moral, como tratei anteriormente. Ademais, utilizar o conceito de culpa naquele momento, em 1942, era uma forma propagandística forte, que deveria realmente apelar para o lado dos sentimentos mais humanos, como o de compaixão por ver outro ser humano sofrendo. Apesar de considerarem o povo alemão culpado, lembram que não era tarde demais para “livrar o mundo desse governo, que é a pior de todas as aberrações possíveis”. Havia chegado o momento de “extirpar essa horda marrom” – sendo o marrom provavelmente uma referência à cor do uniforme dos membros da SA91 nos primeiros anos do nazismo. A Rosa Branca diz que, até o momento da guerra, os alemães aderiram ao nazismo por deslumbre, pois “os nacional-socialistas não mostraram sua verdadeira face”, mas, após saberem de todos os crimes, “a única e mais elevada obrigação, a mais sagrada obrigação de 91 Abreviação de Sturmabteilung, conhecida como a Tropa de Assalto nazista, uma organização paramilitar. Hitler via a SA como uma tropa de pressão política que por vezes é descrita como desorganizada e ocupada por baderneiros. A SA foi dissolvida em 1934, na famosa Noite dos Longos Punhais, e seu espaço como polícia política foi ocupado pela SS nos anos subsequentes. 106 todo alemão deve ser aniquilar essas bestas cruéis”.92 Da mesma forma que Hans Scholl “acordou” para os crimes do Terceiro Reich, todo o povo poderia e deveria fazer o mesmo e eliminar aquele governo. Após essas declarações, são colocadas duas longas citações de LaoTsé, de forma abrupta, ao contrário do primeiro panfleto que iniciava a citação com uma menção daquela referência. Lao-Tsé (ou Lao Zi, Lao Tsu) foi um antigo escritor e filósofo chinês, responsável pela escrita do mais famoso livro do taoísmo chinês, o Tao Te Ching, O Livro do Caminho e da Virtude. Lao-Tsé pode ter sido um personagem das lendas chinesas e não necessariamente um indivíduo histórico – basicamente a mesma dúvida que se tem sobre a existência de Homero. A disseminação do Tao Te Ching no ocidente se expandiu após o século XIX, então é possível que Hans tenha lido esse livro. Como as citações desse panfleto não são feitas com referências, não é possível determinar de qual livro ou texto Hans retirou os excertos. Analisarei o conteúdo dos escritos, dos quais estou utilizando a tradução do alemão para o português. A primeira citação afirma que “é arrasado o povo cujo governo é impositivo” e, ao falar da miséria do homem, aponta que “a ordem inverte-se em desordem, o bem inverte-se no mal. O povo entra em confusão”. O próximo bloco traz quatro citações separadamente, quer dizer, citações de trechos diferentes do mesmo texto, ou até mesmo de textos distintos. Segundo LaoTsé, “quem tenta dominar o reino e moldá-lo segundo seu arbítrio, não o vejo alcançar seu objetivo, isso é tudo” e o reino “é um organismo vivo; ele não pode ser construído! Quem tenta construí-lo, o arruína, quem tenta possuí-lo, o perde! ”.93 Esses fragmentos são escolhidos deliberadamente, afinal, os panfletos tinham o objetivo de pregar a resistência na população, chamando-a para a ação. Na primeira fase, a Rosa Branca utiliza com frequência o recurso de citações de pensadores com o propósito claro de embasar seu argumento e mostrar que a própria intelectualidade antiga já alertava sobre os perigos de governos arbitrários e autoritários. Nesse caso, Lao-Tsé mostra que o governo não deve ser impositivo e que o governante não deve tentar dominar e moldar o seu reino arbitrariamente, ou seja, que o governo não pode se manter se o governante for opressor, dominador. Portanto, Hitler como um representante moderno de um governo despótico e opressor, deveria ser retirado do poder. O panfleto termina com o tradicional pedido para que as pessoas fizessem cópias dos escritos e os distribuíssem, visando alcançar o maior número possível de indivíduos. 92 93 Segundo panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 97. Segundo panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 98. 107 “O sentido e a finalidade da resistência passiva é derrubar o Nacional-Socialismo”94 O terceiro panfleto é o mais extenso entre todos e contém o maior conteúdo das ideias próprias da Rosa Branca, possuindo apenas uma pequena citação de Aristóteles ao final. Esse panfleto começa com o lema do livro “Das Leis”, do escritor e filósofo romano Marco Túlio Cícero, escrito em latim, “Salus publica suprema lex”. Em português, seria algo como “Que o bem [ou segurança, bem-estar, felicidade] do povo seja a lei suprema”. O simples fato de a chamada para o folheto começar com uma citação em latim, sem nenhuma tradução, reforça o argumento de que a Rosa Branca estava escrevendo para um público bem específico da população, que Hans Scholl chama de intelligentsia. Neste panfleto, a ideia de resistência da Rosa Branca aparece de maneira mais clara, com os conceitos de resistência pacífica e sabotagem. Também é possível perceber que o grupo não propunha nenhuma forma de governo, na verdade, consideravam todas as formas conhecidas como utópicas. Esse é um ponto fundamental para compreender estes atores políticos, pois se percebe que o objetivo maior era tirar Hitler do poder; o que seria feito caso fossem bem-sucedidos na empreitada, não se sabe – pelo menos não nessa primeira fase. O terceiro panfleto começa com a afirmação: Todas as formas ideais de Estado são utopias. Um Estado não pode ser construído de maneira puramente teórica; ele precisa crescer, amadurecer, assim como um indivíduo. Mas não se deve esquecer de que já existia uma forma rudimentar de Estado nos primórdios de cada civilização. A família é tão antiga quanto o próprio homem e a partir dessa convivência inicial, o homem, como ser racional, criou para si um Estado cujo fundamento é a Justiça e cuja lei suprema deve ser o Bem Comum. O Estado deve representar uma analogia da ordem divina e, por fim, se aproximar de seu modelo, a mais alta de todas as utopias, que é a civitas Dei.95 A família, portanto, veio antes do Estado e este deveria representar uma analogia da ordem divina. A ordem de Deus seria a de viver em comunidade naturalmente de forma livre e independente, buscando a felicidade terrena na cooperação com uma comunidade estatal. A referência a mais um termo em latim, “civitas Dei”, vem da obra de Santo Agostinho, De civitate Dei (A cidade de Deus), na qual ele descreve o plano terreno e o plano de Deus. Há uma retomada à citação inicial de Cícero, quando dizem que o fundamento do Estado é a Justiça e que a lei suprema da Justiça é o Bem Comum dos cidadãos. O governo de Hitler, então, estava 94 95 Terceiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 100. Idem, ibidem, p. 99, grifos meus. 108 em desacordo com essas leis e com o modelo de utopia da Cidade de Deus; era, pelo contrário, uma ditadura do Mal, como é colocado logo em seguida. Declaram que todas as configurações de governo são utopias e que não queriam abordar as formas possíveis de Estado, das quais eles citam a democracia, a monarquia constitucional e “outros sistemas monárquicos”. Na verdade, esse panfleto explicita que não importa a organização do Estado - a forma de governo do momento - o que importa é que esse Estado garanta a liberdade e o bem-estar de seu povo. Eles afirmam: Mas é necessário destacar de maneira clara e inequívoca que cada indivíduo tem direito a um Estado adequado e justo, que assegure tanto a liberdade de cada um quanto o bem de todos. Pois, segundo a vontade de Deus, o ser humano deve tentar alcançar, com autonomia e iniciativa própria, sua finalidade natural, sua felicidade terrena, na convivência e na cooperação com a comunidade estatal, de maneira livre e independente. Nosso ‘Estado’ atual é, entretanto, a ditadura do Mal.96 A finalidade natural do indivíduo seria a felicidade terrena e essa felicidade se daria de forma autônoma através da convivência e cooperação com a comunidade estatal. Isto é, após os primórdios da civilização, quando as pessoas se organizavam através de pequenas comunidades e com base na família, tornou-se necessário que o homem, através de sua racionalidade, criasse o Estado. O Estado organizaria a comunidade e forneceria os meios para governar com Justiça, pensando no bem comum e na sua analogia com a ordem de Deus. O nazismo aparece como o oposto de tudo isso: uma ditadura do Mal. É importante destacar o “Mal” grafado com letra maiúscula, indo de acordo com o teor religioso do panfleto. É perceptível o maniqueísmo do Bem (Cidade de Deus) e Mal (ditadura) e Hitler se torna a personificação desse Mal metafísico, o Mal próprio ao Diabo. Ao afirmar que o Estado nacional-socialista era uma ditadura do Mal, o panfleto também declara que os alemães sabiam disso e não faziam nada a respeito. Reitera também que se os alemães não resistissem “a esse fruto do inferno, a sua culpa crescerá dia após dia, como em uma curva parabólica”. Não só era necessário reagir, como a não reação implicava em uma ruína iminente e em um merecimento dessa ruína: ‘Mas isso não é novidade’, você poderia objetar, ‘não adianta nada jogar isso de novo na nossa cara’. Se vocês sabem, eu pergunto, então por que não reagem, por que permitem que os poderosos roubem um por um os seus direitos, escancarada ou dissimuladamente, até chegar o dia em que não restará mais nada, absolutamente nada, além de uma engrenagem estatal mecanizada, comandada por criminosos e beberrões? O seu espírito já está tão 96 Terceiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 99, grifos meus. 109 subjugado pela violação que se esquecem que é não apenas seu direito, mas seu dever moral eliminar esse sistema?97 “Jogar isso de novo na nossa cara” pode ser uma referência aos dois panfletos anteriores, nos quais a temática da necessidade de acabar com o regime nazista já havia sido deixada bem clara. A indignação continua ao questionarem porque, mesmo sabendo de todos os crimes nazistas, a população ainda assim não reagia e não cumpria o seu dever moral. No entanto, os estudantes lembram que, se os alemães não mobilizassem os últimos resquícios de energia e de coragem para lutar contra o nazismo, eles mereceriam “ser dispersos por todo o mundo como a poeira pelo vento”. Para eles, não resistir era covardia escondida sob o manto da racionalidade, ou seja, era uma “desculpa” dizer que não se podia resistir de nenhuma forma porque era preciso pensar racionalmente sobre a família, o emprego. O que os alemães tinham, na verdade, era medo de resistir e isso, para a Rosa Branca, era pura e simplesmente um ato de covardia. Tal proposta está em concordância com Hannah Arendt e Bauman quando ambos argumentam que, na máxima, resistir ou não resistir era uma questão de escolha. Em seguida, inicia-se um diálogo com o leitor, no qual os estudantes dizem que talvez a maioria dos leitores dos panfletos não sabia o que fazer ou como se opor. Esse era o momento em que eles iriam demonstrar que a resistência não requeria uma alta atividade do espírito ou de mecanismos políticos, visto que qualquer pessoa tinha condições “de contribuir de alguma forma para a queda deste sistema”. Explicam que a ação efetiva só poderia ser obtida através da colaboração da população: Não é através do embate solitário, como um ermitão amargurado, que será possível preparar o terreno para a queda desse ‘governo’ ou até mesmo desencadear a revolução o mais rápido possível; isso só será possível através do trabalho conjunto de muitas pessoas convictas e engajadas, pessoas em comum acordo sobre os meios pelos quais podem atingir o seu fim. Quanto a esses meios, não temos muita escolha: apenas um está à nossa disposição – a resistência passiva.98 Esse fragmento é significativo para elencar algumas questões. Antes de tudo, a ideia de que era preciso preparar o terreno para uma revolução. Aqui, não podemos associar a ideia de revolução com uma perspectiva de esquerda e, sim, com a noção de revolução como revolta popular contra o governo vigente. O objetivo maior era tirar Hitler e os nazistas do governo, não necessariamente a substituição de formas de governo, como foi o caso, por exemplo, da Revolução Russa, cujo objetivo era derrubar o czarismo e implantar um governo socialista. A 97 98 Terceiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 100, grifos meus. Idem, ibidem. p. 100, grifos meus. 110 diferenciação das concepções de revolução é expressiva, visto que naquele momento do século XX, precisamente por conta da Revolução Russa e da Revolução Alemã, a ideia de revolução estava associada a alinhamentos político-ideológicos ligados ao socialismo e ao comunismo. Não obstante, utilizo nesse momento a definição de revolução proposta por Hannah Arendt, 99 entendida como ações que visam o fim da opressão e a instauração da liberdade. Ou seja, a Rosa Branca acreditava que se uma quantidade suficiente de pessoas aderisse à resistência proposta, seria possível que surgisse uma onda de revolta que se alastraria por toda a Alemanha e derrubaria Hitler efetivamente. Essa onda de revolta, entendida como a revolução que eles pretendiam, se baseava no terreno da imprevisibilidade das ações humanas. Afinal, como apresentado na Introdução e no capítulo anterior, os resistentes que tentam instaurar uma nova ordem dos tempos não sabem o que virá das suas ações. Uma ação livre pode gerar consequências imprevisíveis, e é isso que Arendt entende como o processo revolucionário. Na primeira fase, ainda não há uma ideia de revolução com princípios de um movimento de esquerda, ao contrário da segunda fase, em que essa inclinação começa a se delinear. A Rosa Branca inicialmente acreditava que os opositores ao regime nazista estavam escondidos em suas casas: primeiro por medo de agir, segundo, por não saberem como resistir e, terceiro, por não saber quem iria apoiá-los nessa atividade, visto que a população parecia apoiar Hitler e a Gestapo parecia estar ouvindo tudo e todos, como vimos no capítulo anterior. O panfleto servia, então, tanto para incitar a resistência, como também para mostrar que existia oposição e que essa oposição deveria se unir através de um meio de ação: a resistência passiva. Tal forma de resistência surge no primeiro momento como o único instrumento à disposição para atingir a queda do governo. Hans e os amigos mantém essa posição até irem para o front russo, quando deixam de acreditar que era possível uma mudança efetiva agindo passiva e pacificamente. O que eles entendem por resistência passiva, afinal? Nesse mesmo panfleto são dados alguns exemplos: O sentido e a finalidade da resistência passiva é derrubar o nacionalsocialismo. E nessa luta não se deve recuar diante de nenhum caminho, diante de nenhum ato, seja qual for a sua natureza. O nacional-socialismo deve ser atacado em todos os seus pontos vulneráveis. É preciso preparar logo um fim para este não-Estado – uma vitória da Alemanha fascista nesta guerra teria consequências imprevisíveis e terríveis. Não é a vitória militar sobre o bolchevismo que deve ser a preocupação primeira de todo o alemão, mas sim a derrota dos nacional-socialistas. Isso deve ser prioridade absoluta. E agora cada opositor convicto do nacional-socialismo deve perguntar a si mesmo: como ele pode lutar contra o ‘Estado’ atual de forma mais eficaz possível, 99 ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 111 como pode lhe dar os golpes mais certeiros? Através da resistência passiva, sem dúvida. [...] Sabotagem às fábricas de armamentos e empresas fundamentais para a guerra, sabotagem a todas as assembleias, manifestações, festividades e organizações que forem promovidas pelo partido nacionalsocialista. Deter o avanço dessa perfeita máquina de guerra (uma máquina que trabalha somente em prol da guerra e cujo avanço tem como fim exclusivo a salvação e manutenção do partido nacional-socialista e de sua ditadura). Sabotagem a todas as áreas científicas e intelectuais que atuam a favor da continuidade da guerra presente – seja em universidades, escolas superiores, laboratórios, institutos de pesquisa ou escritórios técnicos. Sabotagem a todos os eventos de natureza cultural que possam aumentar o ‘prestígio’ dos fascistas aos olhos do povo. Sabotagem a todos os ramos das artes plásticas, por mais insignificante que seja a sua relação com o nacional-socialismo e sua servidão a ele. Sabotagem a toda publicação, a todos os jornais que estão a soldo do ‘governo’ e que lutam pela sua ideologia e pela disseminação da mentira marrom.100 O objetivo maior da resistência naquele momento deveria ser o de fazer com que a Alemanha perdesse a guerra. Isso era necessário porque uma vitória da Alemanha não significaria uma vitória de fato, uma vez que representaria a vitória do Nacional-Socialismo enquanto forma de Estado e de sociedade. Era contra isso que eles estavam lutando, contra a manutenção daquele governo e de seus princípios. Sendo assim, a derrota militar da Alemanha representaria um enfraquecimento da liderança e uma possível derrota, também, do nazismo. Todas os setores que ajudavam e davam continuidade à guerra e ao prestígio nazistas deveriam ser atacados. Esse era um princípio que o grupo de fato seguiu: todos eles pararam de frequentar qualquer tipo de evento elaborado pelo Partido. Mas o povo precisa ser mantido sempre sob tensão, a pressão do bridão nunca pode diminuir! Não doem nada nas coletas de metal, de produtos têxteis e outros! Procurem convencer todos os seus conhecidos, também os das camadas sociais mais baixas, da falta de sentido do prosseguimento da guerra e da falta de perspectiva desta guerra, da escravidão intelectual e econômica provocada pelo nacional-socialismo, da destruição de todos os valores morais e religiosos, e os convoquem à resistência passiva!101 A escolha do termo “bridão” nesse momento final do panfleto é representativa. O bridão, uma espécie de freio utilizada em cavalos para auxiliar no momento em que são domados, é feito de uma forma que provoque pressão no céu da boca do animal, forçando-o a virar a cabeça para cima ou para baixo. A associação à pressão do bridão no cavalo no processo de domá-lo é feita de forma direta à maneira como Partido tentava domar os cidadãos e controlá-los de forma firme. 100 101 Terceiro panfleto. SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 100-101, grifos meus. Idem, ibidem, p. 102, grifos meus. 112 A Rosa Branca buscava, com os panfletos, disseminar a ideia da resistência para a população alemã, de modo que todos os cidadãos pudessem contribuir para a derrubada do governo e, sendo eles membros da intelligentsia, precisavam de apoio popular para poder provocar uma ação generalizada. Provavelmente por isso fazem referência nesse folheto às classes sociais mais baixas, visto que, para incitar a revolução, como haviam sugerido anteriormente, era necessária a adesão ao movimento de resistência. Tal adesão não seria frutífera se contasse apenas com os interlocutores dos panfletos, ou seja, a intelectualidade. Essas “pequenas ações que estivessem ao alcance de qualquer um” deveriam atingir as massas, objetivo que Sophie apresenta à Gestapo, como visto no capítulo anterior. De acordo com Inge Scholl: Sua primeira preocupação era o fracasso da intelectualidade alemã, do qual eles tinham plena consciência. Por isso, usaram a linguagem da burguesia culta e se referiram aos grandes nomes da cultura alemã como Schiller e Goethe, sobretudo no primeiro panfleto. Tentaram tocar principalmente as pessoas cultas. Tentaram despertar na intelectualidade alemã uma consciência pesada e, por fim, suscitar o protesto interno e externo. [...]. Meu irmão partia do pressuposto de que a intelectualidade tinha uma responsabilidade maior devido a seus conhecimentos. Mas Hans não queria só que ela refletisse, ela deveria reforçar o seu papel por meio do engajamento político e conquistar maior relevância na sociedade através de ações concretas. 102 O panfleto termina com um pedido para a distribuição de cópias e com uma citação de Aristóteles, em Da Política, sobre a constituição de um governo tirano. Para Aristóteles, fazia parte da essência do tirano “incitar todos contra todos e opor amigos a amigos”, empobrecer os seus súditos e estimular guerras permanentes. Tendo em vista tudo o que foi dito nesse panfleto, Hitler era a representação do tirano de Aristóteles e a citação escolhida demonstra justamente isso. A Alemanha se encontrava em uma guerra que, para a Rosa Branca, não era uma guerra dos alemães contra os bolchevistas e sim do povo alemão contra todos os valores morais: uma guerra em que ninguém sairia ganhando. A ideia de opor todos contra todos também é presente no Nacional-Socialismo, se analisarmos a questão das denúncias a Gestapo e o pressuposto de que todos estavam sendo constantemente vigiados. Se não se pode confiar em ninguém, não existe mais amizade ou qualquer vínculo entre os seres humanos. Como lembra Hannah Arendt, a essência do totalitarismo é o movimento constante, pois qualquer estabilidade vai contra os seus princípios. E na essência do movimento totalitário se encontra o terror, que busca eliminar toda a espontaneidade humana e deixar os homens completamente isolados, sem a companhia Inge Scholl, em “Observações sobre os objetivos da Rosa Branca. ” In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 118-119. 102 113 dos seus semelhantes e nem de si mesmos. Nas palavras de Arendt: “o governo totalitário só existe enquanto se mantém em movimento constante”, já que “enquanto o domínio totalitário não conquistar o mundo inteiro e não fundir, com o férreo anel do terror, todos os indivíduos numa única humanidade, o terror, em sua dupla função de essência do governo e princípio, não de ação, e sim de movimento, não pode concretizar-se plenamente”.103 Mais importante do que o terror enquanto prática, era o terror enquanto conceito e sobretudo, o medo do terror. Em outras palavras, mais importante do que a população estar de fato sendo ouvida e vigiada a todo momento, era o medo pela possibilidade estar sendo ouvido e vigiado a todo momento. O medo era usado para difundir o terror totalitário, para fazer com que as pessoas acreditassem estar sob constante vigília, afinal, era impossível saber se estavam todos sendo observados ou não. O livro de Charlotte Beradt é um bom exemplo para esclarecer um pouco a ideia do medo do terror durante o regime nazista. Beradt, uma jornalista de origem judia, ligada ao Partido Comunista Alemão, fez uma compilação de sonhos que ela coletou em entrevista com alemães, logo após a ascensão de Hitler ao poder em 1933, até às vésperas da Segunda Guerra Mundial, em 1939. Essa jornalista se tornou amiga e tradutora de Hannah Arendt, tendo sido responsável ainda pela edição das cartas de Rosa Luxemburgo a sua secretária e pela escrita de uma biografia do líder comunista Paul Levi. A coleção de sonhos que ela reuniu em seu livro Sonhos no Terceiro Reich representa uma fonte preciosíssima para se ater aos traços mais profundos da dominação totalitária e para entender os impactos de viver e presenciar a experiência política do nazismo. Em um dos sonhos analisados por Charlotte Beradt, uma dona de casa conta, em 1933: “quando, no dia anterior, no dentista, estávamos conversando sobre boatos, eu me vi, para minha própria surpresa, cravando os olhos em sua máquina, como se ali pudesse estar instalado um aparelho de escuta”.104 Uma jovem tem um sonho que segue essa mesma linha do medo da vigília: “sonho que acordo no meio da noite e vejo que os dois anjinhos pendurados sobre a minha cama não olham mais para cima, mas para baixo, observando-me penetrantemente. Fico tão assustada que me escondo embaixo da cama”.105 Tudo isso parece ter saído do romance de George Orwell, 1984, quando o personagem principal, em qualquer lugar que vai, se depara com um letreiro, uma pintura ou cartaz, com as inscrições “O Grande Irmão está de olho em 103 ARENDT, Hannah. Compreender, p. 363. BERADT, Charlotte. Sonhos no Terceiro Reich: como sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler. São Paulo: Três Estrelas, 2017, p. 65. 105 Idem, ibidem, p. 68. 104 114 você”.106 O Grande Irmão representa justamente essa ideia de uma entidade onipresente, sempre observando todos os passos da população. Portanto, era menos importante que os alemães estivessem de fato sendo vigiados: o que era indispensável era que eles acreditassem nisso. Como lembra Inge Scholl: “a Alemanha inteira parecia ser espreitada por ouvidos secretos”.107 E os nazistas não faziam a menor questão de ocultar as instituições e as práticas repressoras, pelo contrário, os jornais e outras formas de propaganda regularmente mostravam as execuções e prisões de dissidentes. Hoje sabemos que o discurso de que Hitler fazia tudo secretamente e escondido da população é um grande mito. Entretanto, isso também cumpria mais uma função de amedrontar a população, pois propagandeava o terror contra os dissidentes e resistentes para coibir os alemães comuns a fazerem o mesmo, uma forma de dar o exemplo. Como mostra Richard Evans, “o aprisionamento, tortura ou mesmo morte podiam estar à espera de qualquer um que ousasse dar voz a críticas ao regime e seus líderes”.108 O medo de estar sendo vigiado e a possibilidade de denúncia era fundamental para refrear qualquer resistência e o estado de intimidação se fortaleceu neste sentido. Isso porque, nos primeiros anos de governo, o Nacional-Socialismo foi bem-sucedido em eliminar qualquer forma de associação entre as pessoas, não deixando nada além das instituições comandadas pelo próprio partido (como a Juventude Hitlerista). Em suma, o nazismo foi bem-sucedido em promover o isolamento dos indivíduos, como vimos com Hannah Arendt; a ideia era de não existir vida fora do Partido ou da ideologia. Ademais, a Gestapo não era a única instituição a reforçar a atmosfera de medo, sendo apenas uma em um conjunto grande que incluía desde a SA e a SS, até a Juventude Hitlerista e os supervisores de quarteirão, todos responsáveis por fornecer informações sobre dissidentes e desviantes. O regime forçou os alemães à aquiescência, infligindo todo um leque de sanções àqueles que ousavam se opor, desorientando as pessoas de modo sistemático e privando-as de seus ambientes sociais e culturais tradicionais, tais como o pub, o clube e a associação de voluntários, sobretudo onde esses pudessem ser vistos como uma fonte potencial de resistência. [...]. Destituíram sistematicamente todos os alemães de quase todos os direitos civis e humanos básicos que haviam desfrutado sob a República de Weimar. [...]. Pois os nazistas não almejavam apenas forçar a população a uma aquiescência passiva e taciturna. Queriam também incitá-la a um referendo positivo e entusiástico de seus ideais e políticas, mudar a mente e o espírito das pessoas e criar uma nova cultura alemã que refletisse somente seus valores.109 106 ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 33. 108 EVANS. O Terceiro Reich no poder, pp.144-147. 109 Idem, ibidem, pp.146-147. 107 115 Sendo assim, de acordo com a Rosa Branca, os alemães tinham medo de resistir, mas isso era um medo covarde, tratava-se de uma covardia “escondida sob o manto da racionalidade”,110 sendo a racionalidade entendida como qualquer motivo ponderado para não se arriscar, como a manutenção do emprego. Como nos lembra Todorov, o herói também pode agir por medo de ser visto como um covarde e o mundo dos heróis é um mundo unidimensional, onde se comportam apenas os opostos: “nós e eles, amigo e inimigo, coragem e covardia, herói e traidor, preto e branco”.111 Esse é o panfleto mais propositivo dessa primeira fase e o único que explica não só o que eles entendem por resistência, como também as formas de ajudar e participar da resistência. A resistência passiva estava ao alcance de todos e esse folheto surge como uma sugestão de como agir, para que cada indivíduo encontrasse o seu próprio caminho de adesão, como eles mesmos afirmam. “Não nos calaremos, somos a sua consciência pesada; a Rosa Branca não os deixará em paz!”112 O quarto e último panfleto da série Panfletos da Rosa Branca representa, provavelmente, o mais religioso de todos e já começa com um provérbio: “quem não aprende pelo amor, aprende pela dor. Mas uma criança inteligente só queima o dedo uma vez”.113 Em seguida, trata das vitórias de Hitler no front da Rússia e da África e argumenta que essas vitórias resultaram em um otimismo da população, mas que esse otimismo deveria ser visto com cuidado. Para estes jovens, os opositores de Hitler eram “a melhor parte do povo” e falam também das mortes na guerra: “quem contou os mortos, Hitler ou Goebbels? Provavelmente nenhum deles. Diariamente milhares caem na Rússia”. Entre junho e julho de 1942, a Alemanha já havia invadido a União Soviética. A Operação Barbarossa, iniciada em junho de 1941, objetivava a ocupação da URSS e, consequentemente, o fim do pacto de não agressão entre os dois países. Apesar do sucesso inicial com a invasão de alguns territórios importantes, a tomada de Moscou se mostrou muito mais difícil do que Hitler previra. As decisões no front oriental influenciaram de maneira 110 Terceiro panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 100. TODOROV. Em face ao extremo, p. 21. 112 Quarto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 106. 113 Idem, ibidem, p. 103. 111 116 dramática os rumos da guerra, causando perdas substanciais em ambos os lados. Segundo Richard Evans: A despeito de todos os avanços desde 22 de junho de 1941, os alemães haviam fracassado em atingir seus objetivos por toda parte. O otimismo presunçoso das primeiras semanas da Operação Barba Ruiva dera espaço a uma crescente sensação de crise, refletida nas repetidas demissões dos generais líderes por Hitler. As forças militares alemãs haviam se mostrado vulneráveis pela primeira vez. Depois de Moscou, Hitler ainda estava otimista sobre as chances de vitória. Mas agora sabia que iria demorar mais do que imaginara originalmente. A invasão da União Soviética havia mudado a face da guerra de forma irrevogável. [...] No fim, foi na frente oriental, mais do que em qualquer outra, que se decidiram os destinos da guerra.114 Até maio de 1942, as condições climáticas impossibilitaram a elaboração de uma nova campanha na Rússia. Com o objetivo de tomar o Cáucaso, que continha ricos campos de petróleo, a Alemanha iniciou uma campanha ofensiva com a divisão de dois exércitos, um atacando a Crimeia e outro indo em direção a Stalingrado. Nesse primeiro momento, o exército alemão conseguiu derrotar 21 divisões do Exército Vermelho na Crimeia, matando ou capturando 200 mil soldados (dos 300 mil que enfrentaram suas forças).115 A principal cidade da Crimeia, Sebastopol, resistiu bravamente, mas foi tomada pelos alemães em julho de 1942, com cerca de 90 mil soldados do Exército Vermelho tomados como prisioneiros. O otimismo com essas vitórias não pôde durar muito tempo, visto que, ao fim do mesmo ano, após o ataque a Stalingrado, o exército alemão já havia sofrido várias perdas. Possivelmente é sobre essas vitórias no front oriental que a Rosa Branca menciona no começo desse panfleto. As conquistas na África a que eles se referem provavelmente tem relação com a tomada do porto Líbio em Tobruk em junho de 1942,116 que promoveu o oficial Rommel ao posto de mais jovem marechal de campo do Exército Alemão. No entanto, como o próprio panfleto afirma, “a ofensiva alemã ao Egito estagnou, Rommel é obrigado a permanecer numa posição exposta e altamente perigosa”. Eles não estavam errados, visto que no fim daquele ano, a Alemanha seria derrotada na ofensiva africana, uma das derrotas militares mais paradigmáticas da guerra. Logo, a afirmação “cuidado com toda e qualquer forma de otimismo” aparece quase como uma profecia. A revolta com a guerra passa a ser um tema recorrente nos panfletos da Rosa Branca. Para esses estudantes, a guerra era algo sem sentido e que não deveria ser prolongada sob 114 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, pp. 252-253. Idem, ibidem, p. 463. 116 Idem, ibidem, p. 182. 115 117 nenhuma hipótese. Hitler havia roubado o “bem mais precioso” das pessoas, entendido como a liberdade, e mentido para essas pessoas, conduzindo-as “à morte sem sentido”. Eles entendem que, por trás da luta contra o governo de Hitler, estava intrinsecamente uma luta contra o Mal. Esse panfleto é bem taxativo com essa questão: Toda palavra que sai da boca de Hitler é mentira. Quando ele fala em paz, está pensando em guerra, e quando ele pronuncia – da maneira mais sacrílega possível – o nome do Todo-Poderoso, está pensando no poder do Mal, no Anjo Caído, em Satã. Sua boca é a garganta fétida do inferno, e seu poder é fundamentalmente réprobo. É verdade que se deve conduzir a luta contra o Estado de terror nacional-socialista com meios racionais; mas quem hoje ainda duvida da real existência de poderes demoníacos, não compreendeu nem de longe o fundo metafísico dessa guerra. Por trás do que é concreto, do que é perceptível pelos sentidos, por trás de todas as reflexões objetivas e lógicas, está o Irracional, isto é, a luta contra o demônio, contra o mensageiro do Anticristo.117 Percebe-se, portanto, a associação direta de Hitler ao demônio e o uso de uma linguagem extremamente apocalíptica. É curiosa a menção de que se deve lutar contra o NacionalSocialismo por meios racionais, já que no segundo panfleto eles pregam justamente o contrário quando afirmam que “não é possível enfrentar racionalmente o Nacional-Socialismo porque ele é irracional”.118 Nesse quarto panfleto, aparentemente, são abandonados todos os critérios do panfleto anterior de demonstrar estratégias e táticas de resistência, para apontar para a necessidade de compreender a guerra como a luta contra o demônio e de acordo com um princípio metafísico. Por trás da luta contra o governo, estava na verdade, a luta contra o Mal e, por ser um folheto mais direcionado aos cristãos, entende-se que naquele momento era importante enfatizar ainda mais que a resistência contra o Nacional-Socialismo representava, na verdade, a resistência do Bem contra o Mal. Em todo lugar e em todos os tempos, os demônios esperaram, na escuridão, o momento em que o homem fraqueja, em que o homem abandona, com seu arbítrio, o lugar fundado na liberdade que Deus designou para ele em Sua ordo, o momento em que o homem cede à pressão do Mal, afastando-se do poder da Ordem suprema. Assim, depois de ter dado o primeiro passo por livre vontade, é impulsionado a dar o segundo, o terceiro e assim por diante, em crescente e frenética velocidade. Em todo lugar e em todos os tempos de profunda miséria houve homens que se ergueram, profetas, santos, que conseguiram preservar sua liberdade, que recordaram o Deus Único e com a Sua ajuda exortaram o povo a retornar ao rumo certo. É verdade que o homem é livre, mas sem o Deus verdadeiro, ele se torna indefeso diante do Mal, como um navio sem leme, entregue às tempestades, como um recém-nascido sem mãe, como uma nuvem que se dissolve.119 117 Quarto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 103-104, grifos meus. Segundo panfleto. Idem, ibidem, p. 95. 119 Quarto panfleto. Idem, ibidem, p. 104. 118 118 Pensando em tudo que foi dito no último impresso, onde é possível considerar que a Rosa Branca estava tentando atingir a intelectualidade, nesse panfleto, contudo, parece existir uma mudança de foco, desejando atingir os religiosos. Não por acaso as indagações são feitas aos “cristãos”, e não a pessoas de uma religião específica (católicos ou protestantes, por exemplo). Homens que acreditam em Cristo e na força e bondade de Deus deveriam se unir para lutar contra o Mal, em qualquer época da história. E naquele momento, o Mal era mais forte em Hitler. Se Deus criou os homens à sua imagem e semelhança, oferecendo-lhes o poder da liberdade (o livre arbítrio), e se os homens deveriam agir independentemente e também em conjunto para a formação e manutenção de um Estado que respeite a utopia da Cidade de Deus, então, seria um dever cristão proteger os valores mais puros e tradicionais e lutar contra as encarnações do Mal e as tentações. Nesse sentido, os demônios sempre estariam à espreita. O homem, um ser livre por natureza, a qualquer momento poderia ceder à pressão dos demônios e abandonar o seu lugar junto a Deus. Nesses momentos de escuridão e miséria profunda, sempre houve homens que se ergueram e lutaram contra o Mal, auxiliando a sociedade a retornar para o rumo certo, ou seja, o caminho do Bem e de proximidade com Deus. Esses homens na história eram considerados profetas e santos, que compreendiam que o homem é livre, mas, sem Deus ele não é nada.120 É possível indagar se os integrantes da Rosa Branca se enxergavam como esses homens que se ergueram diante do Mal na história, isto é, como profetas. Como vimos, de acordo com Hannah Arendt, o totalitarismo é um regime que busca eliminar todas as liberdades do homem. A filósofa faz uma diferenciação entre a liberdade como característica da vontade, advinda do cristianismo com o livre arbítrio, e a liberdade como característica do cidadão, utilizando o modelo da Grécia como um exemplo. Para a autora, a liberdade só existe no campo da política. Para exercer a liberdade, o homem precisa de um espaço comum politicamente organizado e, mesmo que possa existir uma liberdade interna (dentro do coração de cada indivíduo), ela só aparece como um fator demonstrável quando relacionada à política. Arendt tenta explicar que a liberdade não pode ser ligada ao arbítrio, caso contrário, poderíamos dizer que na Grécia não havia liberdade; e chama atenção para a importância da liberdade política, baseada no diálogo comum entre iguais e não no diálogo interno e silencioso individual entre eu e eu mesma. 120 Quarto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 104. 119 Está clara, portanto, a influência cristã nesse momento inicial da Rosa Branca, onde a liberdade aparece como associada a uma característica essencial do homem, que lhe foi concedida por Deus. O homem seria livre por natureza e, por ter recebido o dom (ou a maldição?) do livre arbítrio, estaria sempre correndo perigo de ser seduzido pelo Mal. O homem seria sempre indefeso sem Deus. Essa visão do conceito de liberdade vai se modificando ao longo dos panfletos, sendo que, na segunda fase, a noção de liberdade baseada no livre arbítrio quase desaparece, dando lugar à ideia da liberdade política – entendida como liberdade de expressão e de possibilidade de mudar o governo. Inge Scholl ressalta a importância do cristianismo para seus irmãos na luta contra o Nacional-Socialismo: O cristianismo, tal como se revelou a eles, andava de mãos dadas com uma crítica sempre presente – o que se poderia chamar na época de vigilância -, que os acompanhou, em suas trajetórias à terra de ninguém, como um companheiro prudente. Abriu-se uma dimensão instigante de possibilidades espirituais e existenciais, um espaço no qual o ato de pensar não tolerava obstáculos. Foi possível delinear uma relação entre a pintura expressionista, a teologia moderna e a ação política.121 A influência do cristianismo e da motivação vinda da fé se tornam claras não só no conceito de liberdade, como também na expressão da moralidade, como apresentado anteriormente. A influência de Carl Muth, já expressa no capítulo anterior, foi fundamental nessa “redescoberta” do cristianismo, pelo menos para Hans e Sophie Scholl, ambos declarados protestantes luteranos. Eles falam diretamente para os cristãos em um momento do panfleto, questionando-os sobre a luta pela preservação dos valores supremos e indagando: “o próprio Deus não lhe deu força e coragem para lutar? Precisamos atacar o Mal onde ele é mais poderoso, e ele é mais poderoso no poder de Hitler”.122 O impresso possui uma citação de Eclesiastes e uma do escritor Novalis. Esse é o único escrito em que as citações estão inseridas no meio do texto, como parte de seu conteúdo, e não como a última coisa a ser lida, como nos anteriores. Após as citações ainda há três parágrafos de texto, não somente o pedido de distribuição. A passagem de Eclesiastes parece representar a revolta desses estudantes acerca das vidas perdidas na guerra: “e os que cometiam injustiça contra eles [os injustiçados] eram tão poderosos que eles não podiam ter nenhum consolador. Por isso louvei os mortos que já haviam morrido, mais do que os vivos que ainda tinham vida”.123 Inge Scholl, em “Observações sobre os objetivos da Rosa Branca. ” In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 120. Quarto panfleto. Idem, ibidem, p. 104. 123 Idem, ibidem, p. 105. 121 122 120 Já o trecho escolhido de Novalis, grande representante do romantismo alemão, fala sobre a importância da religião para a fundação de um novo mundo. Segundo ele, “a verdadeira anarquia é o elemento gerador da religião” e “somente a religião pode despertar novamente a Europa, assegurar o direito dos povos e recolocar a cristandade, com novo e visível esplendor, em sua missão terrena de fundar a paz”.124 Esse tipo de posicionamento corrobora todos os argumentos apresentados anteriormente no panfleto, sobre a necessidade dos cristãos de lutarem contra o Nacional-Socialismo. Após essas citações, a Rosa Branca coloca: Ressaltamos de forma explícita que a Rosa Branca não está a soldo de nenhuma potência estrangeira. Embora saibamos que o poder nacionalsocialista precisa ser destruído militarmente, procuramos alcançar uma renovação interior profunda do espírito alemão, gravemente ferido. Mas a esse renascimento deve preceder o claro reconhecimento de toda a culpa que recaiu sobre o povo alemão e uma luta implacável contra Hitler e seus inúmeros cúmplices, membros do partido e sequazes. É preciso aumentar brutalmente o abismo entre a melhor parte do povo e tudo o que está ligado ao nacional-socialismo. Não há, sobre a face da terra, punição que faça jus aos crimes de Hitler e de seu séquito. Mas, após o término da guerra, por amor às próximas gerações, tudo isso deve servir de exemplo para que ninguém nunca mais sinta a mínima vontade de tentar algo semelhante novamente. Não esqueçam nem os pequenos bandidos desse sistema, memorizem os nomes para que nenhum se safe! Eles não podem, no último minuto, depois dessas monstruosidades, conseguir trocar de bandeira e fazer de conta que nada aconteceu!125 É pertinente destacar algumas questões que estão presentes neste excerto. Para a Rosa Branca, é preciso aumentar o abismo entre a melhor parte do povo e os nazistas, quer dizer, entre os opositores, e a representação do Mal. Novamente a questão da culpa de todo o povo alemão é colocada, mas, mais do que isso, neste momento também é mencionado o acerto de contas. A ideia de que não existiria uma punição cabível aos crimes do Nacional-Socialismo aparece com intensidade no pós-guerra, nos julgamentos de Nuremberg e, sobretudo, no julgamento de Eichmann em Jerusalém, bem como a ideia de que o nazismo deveria servir de exemplo. Era preciso lembrar daquele passado traumático para garantir que nada similar acontecesse novamente. Tendo em vista o que foi dito nos outros panfletos, a Rosa Branca acreditava que era preciso mostrar que quem não se levantasse para resistir a Hitler, o representante do Mal, era culpado por esses atos. E os culpados não poderiam evitar essa culpa, não poderiam voltar a dormir tranquilos. Após o fim da guerra, esse crime contra seres humanos seria lembrado, e quem não resistiu deveria arcar com as consequências dessa decisão. 124 125 Quarto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 105. Idem, ibidem, p. 106, grifos meus. 121 Ressaltar que a Rosa Branca não era financiada por nenhuma potência externa, queria dizer que eles eram um grupo de resistência independente não só de interesses bélicos, como de interesses políticos. Ao contrário de outros grupos, como a Orquestra Vermelha, que será abordada posteriormente, esses estudantes não se constituíam em um grupo que era apoiado por um partido, ideologia ou governo específico. A Rosa Branca se tratava de um pequeno grupo de jovens alemães lutando independentemente para mostrar que existia oposição dentro do próprio país. O panfleto termina com algumas explicações para os leitores e também alguns apelos. Afirma que seus leitores poderiam ficar despreocupados, pois seus endereços eram escolhidos aleatoriamente em listas telefônicas. É feito o tradicional pedido de reproduzir o impresso e passar adiante e os resistentes finalizam com a frase que provavelmente veio a ser a mais icônica de seus escritos: “Não nos calaremos, somos a sua consciência pesada; a Rosa Branca não os deixará em paz”.126 Após esse folheto, de junho de 1942, há um longo intervalo e o próximo panfleto só foi escrito e distribuído em janeiro de 1943. A suspensão das atividades da Rosa Branca se deu porque quase todos os seus membros foram prestar serviços obrigatórios para o Reich em 1942. Alex, Hans e Willi foram enviados para a Rússia para serviço militar no front de guerra pela Companhia Médica Estudantil de Munique, enquanto Sophie trabalhou por oito semanas em uma fábrica, a partir de agosto daquele ano. Apesar de Sophie já ter cumprido o seu Serviço de Trabalho do Reich antes de ingressar na universidade, como vimos, ela também se viu obrigada a realizar esse trabalho adicional de dois meses. Liberdade, culpa e resistência Depois de analisar os quatro panfletos separadamente, creio ser pertinente fazer uma breve conclusão dos conceitos de liberdade, culpa e resistência, mobilizados nos escritos da Rosa Branca. Afinal, os conceitos se modificam ao longo dos escritos e representam a mudança de pensamento e de atuação política desses jovens. De forma clara, na primeira fase, denominada Panfletos da Rosa Branca, os conceitos de culpa e liberdade aparecem com mais intensidade. No entanto, eles são mobilizados de 126 Quarto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 106. 122 formas diferentes na primeira fase e na segunda. Os conceitos sofrem mudanças drásticas na segunda fase da Rosa Branca, denominada Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha, aparecendo de forma mais fluida e muitas vezes nem chegando a ser diretamente mencionados como antes. Olhando retrospectivamente, é possível concluir que a primeira fase da Rosa Branca se constitui em uma tentativa inicial de resistência, mas sem um direcionamento concreto, uma forma de preparação para o que viria a ser a segunda fase, no ano seguinte. Os panfletos, mais longos, contam com muitas citações e o objetivo central é o de mostrar que havia oposição a Hitler. O conceito de liberdade, tal como aparece no primeiro momento, é principalmente ligado à noção cristã de livre arbítrio, para se transformar, nos próximos panfletos, no ideal antigo de liberdade política. Em 1942, a liberdade é entendida como um dom essencial do homem, dado por Deus, além de se constituir em um direito que o Estado deveria garantir. O Estado deveria assegurar o bem de todos, assim como a liberdade individual, e o governo de Hitler, associado a um governo fascista, tirânico, ditatorial, ia contra esse princípio divino. A liberdade, nesse momento, não tem a ver com participação política ou formas de agir politicamente, ela é um atributo concedido por Deus, algo essencial ao homem. A liberdade demandada pela Rosa Branca, na primeira fase, associada a uma liberdade cristã, da vontade e do livre arbítrio, é substituída, na segunda fase, por uma liberdade essencialmente política, tal como aquela entendida por Hannah Arendt. Para ela, o homem só se realiza plenamente ao exercer o seu dom da liberdade no campo da ação política. Portanto, a liberdade entendida pela autora, é a liberdade antiga, dos gregos, onde o sentido último e fundamental da política é a própria liberdade, que significa essencialmente a ação. Só somos livres quando agimos e, se conviver no mundo é uma preocupação política, é preciso assegurar tanto o individual quanto o comum. O mundo, então, é coletivo, e requer assumir responsabilidade por ele, uma responsabilidade primeiramente política. Para Hannah Arendt “os homens são livres – diferentemente de possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são a mesma coisa”.127 Os nazistas haviam destruído a liberdade individual, a liberdade religiosa e a liberdade de expressão, uma denúncia presente especialmente no sexto panfleto, destinado aos universitários e escrito pelo professor Kurt Huber. A crítica à impossibilidade de expressar uma opinião contrária ao regime ou de pensar livremente aparece com mais intensidade. A luta pela 127 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 199. 123 liberdade sai do campo da vontade e do livre arbítrio, aparecendo na cena pública, e isso é visível não só pelos panfletos, mas pelas ações de pichação nos muros e pelos encontros com Falk Harnack. Liberdade se torna um imperativo para a ação e não só um conceito do espírito e da sua relação com a vontade divina. O Estado nacional-socialista precisava ser destruído para que os alemães pudessem desfrutar da liberdade que lhes foi tomada da maneira mais brutal. A liberdade de expressão era uma força de ação no mundo coletivo tomado por um governo totalitário, mas não só: demandar por liberdade e lutar por ela significava uma ação moralmente resistente. A culpa, inicialmente, também aparece como atrelada a ideais cristãos, profundamente arraigados na mentalidade alemã. Todos os alemães eram culpados pelo que acontecia em seu país e corriam o risco de deixarem o Mal se fortalecer. A culpa surge como um sentimento ligado à necessidade moral e humana de resistir, de impedir que outros seres humanos sofressem. Não aderir à resistência, era não compreender a dimensão catastrófica da guerra, era não assimilar que lutar contra Hitler era lutar contra o Mal, contra o próprio diabo. Os cristãos deveriam sentir culpa por não fazer nada e deixar que outros seres humanos fossem assassinados tão brutalmente. Afinal, o Mal estava sempre à espreita, mas cabia ao próprio ser humano resistir às tentações, com a ajuda de Deus. E o Mal, em todos os momentos históricos, deveria ser atacado: naquele momento, o Mal era o governo nacional-socialista. Então, os alemães não só eram culpados, como também mereciam a ruína se nada fizessem para impedir Hitler. Ninguém poderia dormir com a consciência tranquila se não aderisse a alguma forma de resistência. Já em 1943, o conceito de culpa sai parcialmente do foco da população e se direciona para Hitler e os próprios nazistas – na verdade, ele deixa de ser um conceito mencionado explicitamente e aparece apenas como um princípio. Ainda existe a ideia de que todos deveriam lutar contra o Nacional-Socialismo porque tinham responsabilidade pelo seu país, no entanto, o verdadeiro culpado agora era atacado sem desvios: Hitler. Era ele o responsável pelas derrotas no front militar, por Stalingrado, pelo colapso nas universidades, pela supressão de todas as liberdades. A guerra precisava acabar, Hitler precisava ser retirado do governo e os nazistas deveriam ser julgados pelos seus crimes contra a Alemanha para que os alemães não fossem o povo mais odiado do mundo. Aliado a esses princípios cristãos, a resistência, similarmente, nasce inicialmente como uma atividade não violenta, que não causaria risco à vida de quem tentasse aderir. Os atos de 124 sabotagem propostos pela Rosa Branca eram muito menos “perigosos” do que as ações da segunda fase, que contaram com pichações, reuniões com um membro da resistência de esquerda e viagens de trem intermunicipais para dar cabo à ação panfletária. Para eles, em 1942, a única forma possível de resistir, era por meio de uma resistência passiva. Contudo, em 1943, a forma de resistir sofre uma mudança drástica. A ação panfletária não fala mais de uma resistência passiva ou de métodos de sabotagem. Na realidade, os panfletos se transformam em uma ação propagandística para falar sobre os crimes de guerra, sobre a situação de calamidade no front, e, fundamentalmente, sobre a necessidade da construção de uma nova Europa. A resistência passa a ser almejada em um âmbito nacional e em acordo com outros grupos de resistência existentes, principalmente os alinhados mais à esquerda. Essa questão será abordada de forma mais profunda no próximo capitulo, no entanto, é importante destacar como os conceitos de liberdade, resistência e culpa se modificam dentro do próprio grupo, como seus objetivos e métodos se transformam e como eles caminham para uma outra forma de resistência muito mais ativa, política e concreta. São deixadas de lado as ideias “românticas”, as longas citações, os filósofos e a Bíblia, e o que permanece é a luta objetiva contra o Nacional-Socialismo. 125 Capítulo Três Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha “Na realidade, a situação era tão simples quanto desesperadora: a esmagadora maioria do povo alemão acreditava em Hitler. [...] Contra essa sólida maioria, ficava um número indeterminado de indivíduos isolados, completamente conscientes da catástrofe nacional e moral [...] Sua habilidade de distinguir o certo do errado permanecia intacta, e eles nunca tiveram nenhuma ‘crise de consciência’. [...] Só numa ocasião, num gesto único, desesperado, esse elemento mudo e inteiramente isolado se manifestou publicamente: foi quando os Scholl, dois estudantes de Munique, irmão e irmã, sob a influência do professor Kurt Huber, distribuíram os famosos folhetos que afinal chamaram Hitler daquilo que era de fato – ‘assassino em massa’” (Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém) 126 “Em breve, privarão a pessoa de qualquer chance de preservar sua pobre alma de seus uniformes, com aquele cruel e onipresente espírito militar deles. Que capítulo na história da nação alemã! O que as pessoas encontrarão para colocar mais tarde, além das datas das batalhas e coisas semelhantes?”1 A segunda fase da Rosa Branca conta com dois panfletos, escritos entre janeiro e fevereiro de 1943, denominados Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha. Também há um terceiro panfleto, que é apenas um rascunho, que trata da derrota da Alemanha na guerra. Christoph Probst redigiu este texto integralmente em janeiro de 1943 e o entregou a Hans Scholl, para uma possível distribuição que nunca aconteceu. Nesse segundo momento, a linguagem dos panfletos muda completamente, tornando-se mais direta, informativa e não existem mais citações. A guerra se torna a principal temática, os escritos são mais curtos, pragmáticos e a resistência proposta é mais clara e ativa. É neste momento que os estudantes criam novas células da Rosa Branca em outras cidades, ampliando a circulação panfletária e gerando uma movimentação financeira por meio de doações para custear a impressão de mais folhetos. Também é nesse ponto que Hans Scholl e Alex Schmorell entram em contato direto com um membro da resistência de Berlim, aliado a posições políticas de esquerda: Falk Harnack, irmão de Arvid Harnack. O professor de filosofia da Universidade de Munique Kurt Huber participa da escrita do sexto panfleto, em que é tratada, mais especificamente, a resistência estudantil. Huber até este momento não tinha conhecimento das atividades de seus alunos e, portanto, não havia participado da escrita dos quatro textos anteriores. O ponto sem retorno Em julho de 1942 a companhia médica de Hans Scholl é convocada para fazer um “estágio de combate” no front oriental e Hans, Alex e Willi vão juntos para a Rússia.2 Em 21 de julho, os amigos fazem uma reunião no estúdio do arquiteto Manfred Eickemeyer para falar sobre questões políticas e possíveis formas de resistência. Dentre os presentes, além de Hans, “They'll soon deprive a person of any chance to preserve his pour soul from their uniforms with that grim and ubiquitous martial spirit of theirs. What a chapter in the history of the German nation! What will people find to put in it later on, apart from the dates of battles and suchlike?”. Tradução minha. Rascunho do diário de Sophie Scholl, de uma carta para Fritz Hartnagel, mas que possivelmente nunca foi enviada. 18 de abril de 1941, In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose: Letters and diaries of Hans and Sophie Scholl. USA: Harper & Row Publishers, 1987, p. 133 2 Christoph Probst era de outra unidade e não vai com os amigos para o front oriental. 1 127 Sophie, Willi, Alex e Christel, também estavam Traute Lafrenz, o professor Kurt Huber, Gisela Schertling (namorada de Hans), Kate Schüddekopf (aluna de doutorado de Huber) e Hans Hirzel. No dia seguinte, em 22 de julho de 1942, eles partem para o front, chegando em Varsóvia, a primeira parada, no dia 26. Posteriormente os jovens ficam alocados na cidade russa de Vyazma, ocupada pelas tropas alemãs desde outubro do ano anterior. A experiência no front marcou profundamente Hans Scholl. As entradas em seu diário e as cartas no período de julho a novembro de 1942 mostram como ele se encantou com as pessoas, a paisagem e os lugares, inclusive se referindo a uma “febre russa”, ou seja, um amor louco por esse país. Seu irmão Werner - que morreu no front oriental antes da guerra terminar - estava no mesmo setor que ele, então, os dois passam juntos boa parte dessa experiência. Em uma carta para Kurt Huber datada de 27 de agosto de 1942, e assinada por Hans, Alex, Willi e Hubert Furtwängler, Hans descreve a sua impressão da Rússia e de sua experiência até aquele momento. Como foi dito, Huber havia se tornado próximo do círculo da Rosa Branca em junho daquele ano, mas ainda não fazia ideia das atividades da primeira fase, tampouco das ideias para o próximo momento. A cidade, o gueto e toda a instalação deixaram uma profunda impressão em todos nós. É impossível dar até mesmo uma vaga imagem do que me acometeu na Rússia desde o dia em que cruzamos a fronteira. Não sei por onde começar. A Rússia é tão vasta, tão ilimitada em todos os aspectos, e o amor de seus habitantes pela terra natal também é ilimitado. A guerra varre ao longo do campo como uma tempestade, mas depois da chuva o sol brilha mais uma vez. O sofrimento leva a posse total das pessoas, as purifica - mas depois elas riem mais uma vez.3 Em diversos momentos de seus escritos, Hans faz referência ao sofrimento e a pobreza no front russo. No entanto, provavelmente devido a suas convicções religiosas, para ele, a pobreza era uma coisa boa para o ser humano. Como foi apresentado no Capítulo Um, um dos textos da publicação Windlicht, o ensaio denominado Sobre a pobreza, era justamente sobre o enobrecimento da alma através da pobreza. Hans explica o que era a “febre russa” em uma carta para seus pais datada de 18 de setembro de 1942: Os homens chamam de ‘febre russa’, mas essa é uma expressão desajeitada e fraca. É algo assim: quando você vê o mundo em toda sua beleza encantadora, às vezes você fica relutante em admitir que o outro lado da moeda existe. Esta “The city, the ghetto, and the whole setup made a very profound impression on all of us. It’s impossible to give even a vague Picture of what has assailed me in Russia since the day we crossed the frontier. I don’t know where to begin. Russia is so vast, so boundless in every respect, and its inhabitants’ love of their native land is boundless too. War sweeps across the countryside like a rainstorm, but after the rain the sun shines once more. Suffering takes total possession of people, purifies them – but then they laugh once more” Tradução minha. Carta de Hans Scholl, In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 216. 3 128 antítese existe aqui, como acontece em todos os lugares, se você apenas abrir seus olhos para isso.4 Hans estava, portanto, se permitindo enxergar “o outro lado da moeda”, ou seja, estava tentando ver além do que a propaganda nazista falava sobre a Rússia e seus habitantes. Ele manteve um diário durante o seu tempo no front e em diversos momentos escreve como se estivesse se dirigindo a uma pessoa específica, um membro da intelligentsia alemã – como se essa pessoa estivesse lendo seu diário no momento em que ele escreve. Em uma dessas entradas, redige: “os alemães são incorrigíveis. Sua duplicidade é tão profunda agora que não poderia ser exercida sem matar todo o corpo. Uma nação condenada”.5 O corpo, é aqui entendido como todo o resto da população. É curiosa a analogia aos alemães como incorrigíveis, como se ele não fizesse parte desse grupo. De fato, Hans em alguns momentos afirma ser visto como ariano, europeu, soldado e médico, no entanto, ele próprio não se identificava com esses rótulos – inclusive, fica muito triste por ser obrigado a deixar a Rússia “apenas” por ser alemão. Usando de muita ironia, como é comum em suas cartas, o jovem afirma que iria se sentir nostálgico ao ir embora, e que: “na realidade, no entanto, cada pedaço meu é europeu, um discípulo, um guardião da herança sagrada, e é por isso que eu tenho que voltar [para a Alemanha]”.6 Em seu diário durante a estadia na Rússia, uma entrada é particularmente interessante – essa também como um diálogo a alguém culto: Simplesmente fazer o seu dever é absurdo e enganador. O homem nasceu para pensar, diz Pascal. Para pensar, meu digno acadêmico: eu te censuro com essa palavra. Você está surpreso, eh, seu representante do espírito? O espírito que você serve nesta hora desesperada é um espírito maligno, mas você é cego ao desespero. Você é rico, mas você é cego à pobreza. Sua alma está murchando porque você se recusou a ouvir sua chamada. Você reflete sobre o refinamento final de uma metralhadora, mas você suprimiu a questão mais elementar em sua juventude. A questão de: por que e para onde? Quão pequena deve ser uma nação que chama Frederick II de ‘o Grande’? Essa nação lutou por sua liberdade contra Napoleão, apenas para escolher a escravidão prussiana. Eu sei o quão limitada é a liberdade humana, mas o homem é essencialmente “The men call it ‘Russian fever’, but that’s a clumsy, feeble expression. It’s something like this: When you see the world in all its enchanting beauty, you’re sometimes reluctant to concede that the other side of the coin exists. This antithesis exists here, as it does everywhere, if only you open your eyes to it.” Tradução minha. Carta de Hans Scholl, In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 221. 5 “The Germans are incorrigible. Their duplicity is so deep-seated by now that it couldn't be exercised without killing the entire body. A doomed nation” Tradução minha. Diário Hans, 11 de setembro de 1942. Idem, ibidem, p. 238. 6 “In reality, though, I’m every inch a European, an epigone, a guardian of a sacred heritage, and that’s why I’ll have to go back”. Tradução minha. Hans usa o termo “epigone”, que pode ser traduzido ou como discípulo, ou como “aquele que nasceu depois”, se formos utilizar a etimologia grega. Carta para Rose Naegele, 10 de setembro de 1942. Idem, ibidem, p. 220. 4 129 livre, e é a liberdade dele que o torna humano. Liberdade e pobreza são humanos, escravidão e arrogância são prussianos.7 A relação direta entre o regime nazista e a “escravidão prussiana” é algo que toca os panfletos da segunda fase da Rosa Branca. Nesse fragmento também é possível perceber mais uma vez a noção de que a liberdade é um dom natural do ser humano, essencial de sua existência, fornecido por Deus – em consonância com o que era dito nos Panfletos da Rosa Branca. Em associação com esse diálogo, é possível pensar ainda na declaração de Hans para a Gestapo, na qual explica os motivos pelos quais ele se sentiu na obrigação de resistir, sendo um membro da classe culta da Alemanha. Segundo ele, se a situação externa na guerra não estivesse tão dramática, talvez ele não tivesse tomado nenhuma ação prática de resistência. É nesse excerto que ele explica a ideia de intelligentsia e o movimento de massa que colocou Hitler no poder: Eu sou da opinião que não foi a maioria dos alemães que fracassaram politicamente no período entre 1918-1933 e acima de tudo em 1933. Em vez disso, foi a classe de pessoas em uma nação que deveria liderar essa nação politicamente, [a saber], a intelligentsia. Embora uma classe de pessoas e especialistas educados - em todas as esferas da vida intelectual – estava evoluindo até a plena floração, foram precisamente essas pessoas que foram incapazes de responder às questões políticas mais simples. Esta é a única maneira de explicar por que os movimentos de massa com seus slogans simples puderam acabar com todos os empreendimentos filosóficos mais profundos. Eu senti que era hora de apontar seriamente os deveres nacionaispolíticos que esta parte da classe média [da Alemanha] estava obrigada a fazer. Se o desenvolvimento da política externa tivesse inicialmente tomado um curso mais pacífico, talvez eu não tivesse enfrentado a alternativa: devo comprometer-me com alta traição ou não? Em vez disso, teria tentado mobilizar as forças positivas dentro desta nação de tal maneira que teriam superado tudo o que era negativo e levado a uma forma nacional que valeria a pena lutar.8 “Merely doing one’s duty is absurd and misleading. Man is born to think, says Pascal. To think, my worthy academic: I reproach you with that word. You’re surprised, eh, you representative of the spirit? The spirit you serve at this desperate hour is an evil spirit, but you’re blind to despair. You’re rich, but you’re blind to poverty. Your soul is withering because you refused to hear its call. You ponder on the ultimate refinement of a machine gun, but you suppressed the most elementary question in your youth. The question why and whither? How small must a nation be that calls Frederick II ‘the Great’? That nation fought for its freedom against Napoleon, only to choose Prussian slavery. I know how limited human freedom is, but man is essentially free, and it is his freedom that renders him human. Freedom and poverty are human, enslavement and arrogance Prussian” Tradução minha. Diário de Hans, 22 de agosto de 1942. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 232. 8 “I am of the opinion that it was not the majority of the German people who failed politically in the time between 1918 – 1933, and above all in 1933. Rather it was that class of people in a nation that should lead a nation politically, [namely] the intelligentsia. Although a class of educated persons and specialists – in all spheres of intellectual life – was evolving into full bloom, it was precisely these people who were incapable of answering even the simplest political questions. This is the only way to explain that mass movements with their simple slogans were able to out-shout every deeper philosophical undertaking. I felt that it was high time to seriously point out the national-political duties that this part of middle-class [Germany] was obligated to. Whom If the development of foreign policy had initially taken a more peaceable course, I perhaps would not have been faced with the alternative: Should I commit high treason or not? Rather, I would have attempted to mobilize the positive forces 7 130 Nesse sentido, para Hans, os membros das classes mais cultas tinham a obrigação de resistir, pois eles haviam falhado na sua tarefa de liderar a nação em 1933 quando permitiram Hitler assumir o poder. A única forma de explicar o movimento de massas seria então, precisamente pelo colapso da intelligentsia, que não conseguia mais responder questões políticas simples. Como explicitado no capítulo anterior, Hans e Sophie acreditavam que sua forma propagandística deveria servir para se comunicar diretamente com as massas nesse segundo momento de ação. Durante seu período no front russo, Hans Scholl descobre que seu pai havia sido preso. Em algum momento entre janeiro e junho de 1942, como vimos, Robert Scholl fora detido pela Gestapo pela primeira vez. Segundo Inge Scholl, “primeiro, houve uma longa conversa, em seguida, uma revista pela casa e, depois, eles foram embora levando nosso pai. Naquele dia, sentimos na pele que éramos terrivelmente impotentes”.9 Ele foi solto logo em seguida, com o aviso de que deveria aguardar o julgamento de seu caso, agendado para agosto daquele ano. Robert Scholl foi denunciado por uma funcionária por ter chamado o Führer de flagelo da humanidade, além de dizer que se Hitler não acabasse com a guerra logo, os russos tomariam Berlim em menos de dois anos – uma afirmação que ele errou por apenas um ano. A acusação do Tribunal Especial Político chegou em 3 de agosto e Robert foi condenado a quatro meses de prisão por traição, começando em 24 de agosto. Apesar de a prisão do pai ter afetado Sophie e Hans, eles não ficaram de fato tão surpresos, visto que Robert Scholl era um oposicionista do regime nazista desde os primeiros anos de governo. Uma outra figura fundamental para compreendermos essa mudança de pensamento na segunda fase da Rosa Branca é Alexander Schmorell. A bibliografia, de maneira geral, o apresenta como um jovem totalmente desinteressado por política e que foi facilmente influenciado por Hans. Sophie faz o mesmo comentário acerca de Alex em seu primeiro interrogatório para a Gestapo em 18 de fevereiro de 1943 e acrescenta alguns elementos que nos ajudam a compreender sua personalidade e visão política. Ela diz que Alex não se importava com a política antes da guerra, contudo, quando tiveram início as hostilidades contra a Rússia, ele começou a se preocupar mais pelos eventos políticos, principalmente no quesito militar.10 within this nation in such a manner that they would have outflanked everything negative and led to a national form that would be worth striving for” Tradução minha. Interrogatório de Hans Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl. ZC13267. (English Edition), por Joyce Light (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 2176 – 2720, grifos meus. 9 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 44-46. 10 Interrogatório de Sophie Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 3243. 131 Ela declara: “politicamente falando, eu acho que Schmorell é desinteressado. Ele é um sentimentalista puro que é impermeável ao processo de pensamento político. Culturalmente, ele tem tendências contrárias ao Nacional-Socialismo, pelos mesmos motivos que eu”11 e também adiciona que: “embora ele seja um completo oponente do bolchevismo com todas as fibras de seu ser, ele ainda nutre sentimentos fortes por sua pátria, o que o torna politicamente inseguro [...] Mas isso, em grande parte é porque ele não pensa seriamente sobre questões políticas e se empolga facilmente”.12 No entanto, ao ler os interrogatórios e as declarações de Alex Schmorell, é de se supor que esse recurso de o classificar como “politicamente desinteressado” possivelmente fosse uma estratégia dos amigos para protegê-lo. Alex, nascido na Rússia e membro da Igreja Ortodoxa Grega, assegura que não conversava de política com seus familiares, logo, ninguém da sua família sabia das suas atividades de resistência. Duas declarações são particularmente impressionantes: a primeira acerca da sua possível relação com perspectivas bolchevistas; a segunda sobre sua posição política mais concreta. Alex afirma que quando foi ao front russo, viu com os próprios olhos o que estava acontecendo na terra que ele tanto amava. Lá ele percebeu os rumos da guerra e também observou que as características e a personalidade dos russos não haviam se modificado com a chegada do bolchevismo.13 Recusa veementemente que seu amor pela Rússia tenha qualquer relação com amor ao bolchevismo. Segundo Schmorell: Sobre a questão de qual corrente política eu sigo, ou ainda, o que penso do Nacional-Socialismo, eu admito sem hesitação que não posso me identificar como nacional-socialista, porque estou mais interessado na Rússia. Admito prontamente meu amor pela Rússia. Em contraste, rejeito o bolchevismo. Minha mãe era russa, eu nasci lá, e não posso deixar de me importar com esse país. Eu me identifico abertamente como monarquista. Mas isso se aplica à Rússia, e não à Alemanha. Sempre que falo sobre a Rússia, não quero glorificar ou me descrever como adepto do bolchevismo; Em vez disso, estou apenas pensando sobre o povo russo e a própria Rússia. Por esta razão, a guerra entre a Alemanha e a Rússia me causa profunda tristeza. Por conseguinte, ficaria feliz em ver esta guerra chegar a um rápido fim, da forma “Politically speaking, I think Schmorell is a nonentity. He is pure sentimentalist who is impervious to political thought processes. Culturally, he has leanings against National Socialism, for the same reasons I do” Tradução minha. Sophie usa a expressão “nonentity”, que quer dizer alguém que não tem qualidades interessantes ou que se destacam, alguém desinteressante ou insignificante. No entanto, no contexto político, “nonentity” pode ser entendido como uma pessoa que não se interessa por política. Interrogatório de Sophie Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição, 3104. 12 “Although he is an absolute opponent of Bolshevism with every fiber of his being, he still nurses Strong feelings for his Fatherland, which makes him politically insecure [...] But that is largely because he does not think soberly enough about political matters and is easily enthused” Tradução minha. Interrogatório de Sophie Scholl. Idem, ibidem, posição 3266. 13 Interrogatório de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts. RGWA I361K-I-8808. (English Edition), por Joyce Light (editor), Denise Heap (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 263. 11 132 que for possível. Também não esconderia o fato de sentir pena se a Rússia tivesse que desistir de muitos territórios por causa dessa guerra. Essa atitude pode soar um pouco estranha, mas peço que seja levado em consideração que minha mãe era russa e, aparentemente, herdei muita coisa dela.14 Sua declaração política demonstra que o jovem também não era favorável a uma democracia: Se você me perguntasse qual a forma de governo que eu prefiro, eu teria que responder: a forma de governo que melhor corresponde ao caráter do país. [...] Portanto, não sou um firme defensor da monarquia, da democracia, do socialismo, ou o que quer que todas as formas [políticas] possam ser chamadas. O que é bom para um país, talvez até o melhor, pode ser a coisa errada para outro país, algo que não corresponde a ele. Em geral, todas essas formas de governo são meras formalidades de qualquer maneira. Muitas vezes eu me identifiquei como russo e, portanto, acredito que a única forma possível de governo para a Rússia é o czarismo. [...] Na Rússia, foi a intelligentsia que estava desalinhada, que havia perdido completamente o contato com as pessoas e que não conseguiu recuperar essa conexão. [...] Naturalmente, em uma nação como eu imagino, haverá oposição, sempre haverá oposição, porque raramente uma nação inteira pensa da mesma forma - mas isso também deve ser tolerado e respeitado. Porque a [oposição] mostra as falhas do governo - e que o governo não possui falhas - e oferece críticas. Um governo deve ser expressamente agradecido quando suas falhas são expostas, para que possam ser corrigidas. [...] Na minha opinião, o Nacional-Socialismo é muito sustentado pelo poder que ele possui. Não tolera nenhuma oposição, nenhuma crítica e, portanto, suas falhas não podem ser reconhecidas, não podem ser eliminadas. Porque acredito que isso não representa uma expressão pura da vontade das pessoas. Isso torna impossível para as pessoas expressarem sua opinião, torna impossível para o povo [Volk] mudar algo com o qual ele não concorda. Foi criado e não pode ser criticado, não pode ser mudado - e eu não acho isso certo. [...] Estou até inclinado ou prefiro uma forma autoritária de governo do que um governo democrático. Porque todos nós já vimos onde as democracias nos levaram. Prefiro uma forma autoritária de governo não só para a Rússia, mas também para a Alemanha.15 “To the question as to which political stream I adhere to, or rather what I think of National Socialism, I will admit without hesitation that I cannot identify myself as a National Socialist, because I am more interested in Russia. I readily acknowledge my love for Russia. In contrast, I reject Bolshevism. My mother was Russian, I was born there, and I cannot help but care about this country. I openly identify as a monarchist. But this applies to Russia, not to Germany. Whenever I speak about Russia, I do not mean to glorify or describe myself as an adherent of Bolshevism; rather I am solely thinking about the Russian people and Russia itself. For this reason, the war between Germany and Russia causes me deep sorrow. I would therefore be happy to see this war come to a speedy end, however possible. I will also not hide the fact that I would be sorry if Russia had to give up too much land because of this war. This attitude may sound a little odd, but I ask that it be taken into account that my mother was Russian and I apparently inherited a great deal from her” Tradução minha. Interrogatório de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts, posição 233, grifos meus. 15 “If you were to ask me which form of government I prefer, I would have to answer: That form of government that best corresponds to the character of the country [...] Therefore I am not a firm proponent of monarchy, democracy, socialism, or whatever all the [political] forms may be called. What is good for one country, perhaps even the best, may be the wrong-headed thing for another country, something that does not correspond to it at all. In general, all of these forms of government are mere formalities anyway. I have so often identified myself as Russian, and therefore I believe that the only possible form of government for Russia is czarism [...] In Russia, it was the intelligentsia that was out of line, who had completely lost touch with the people and who could not get back that connection [...] Naturally in a nation such as I envision, there will be opposition, there will always be 14 133 A parte final dessa declaração, em que Alex se diz favorável a uma forma autoritária de governo, também é recorrente nos membros da Rosa Branca e na população de maneira geral. A República de Weimar havia sido um grande fracasso e o povo não se identificava politicamente com uma democracia, principalmente em um contexto de guerra mundial em que eram necessárias decisões difíceis. Os alemães, em sua maioria, associavam a República de Weimar a instabilidade política, inflação alta, desemprego e uma profunda crise econômica. 16 Em alguns momentos, Alex se diz favorável à democracia e outros não; em alguns momentos negava as formas de governo mais à esquerda, mas, ao mesmo tempo falava da socialização dos bens de produção e da liberdade do proletariado. Isso tudo leva a crer, que apesar de possuir convicções políticas divergentes entre si, a influência de Alex nos panfletos é inegável e é possível dizer com certo grau de certeza que ele não era, de maneira nenhuma, desinteressado politicamente. Muito pelo contrário, Schmorell participou ativamente na produção de panfletos da Rosa Branca desde a sua primeira fase e pelas fontes isso não parece ser devido a mera influência de Hans Scholl. Seu amor pela sua terra natal fez com que ele dissesse ao fim de seu interrogatório que: “Eu confesso a traição, mas nego que agi de forma traiçoeira”,17 possivelmente querendo dizer que não teria traído a sua verdadeira pátria, a Rússia. É relevante recordar que a propaganda nazista foi intensa na pregação do antibolchevismo desde antes de Hitler assumir o poder. A Revolução Russa de 1917 retirou o governo czarista da Rússia e implementou um governo socialista, dirigido pelo Partido Comunista (bolcheviques). A consolidação do governo revolucionário e a posterior organização das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foram eventos que influenciaram todo o mundo. A Alemanha foi profundamente afetada pela onda revolucionária, culminando com a Revolução opposition, because rarely is an entire nation of one mind – but this too must be tolerated and respected. Because the [opposition] lays bare the shortcomings of the current government – and what government has no shortcomings – and offers criticism. A government must be expressly thankful when its shortcomings are exposed, so they can be righted [...] In my opinion, National Socialism is supported too greatly by the power it holds. It tolerates no opposition, no criticism, and therefore its shortcomings cannot be recognized, cannot be eliminated. Because I believe that it does not represent a pure expression of the people’s will. It makes it impossible for people to express their opinion, it makes it impossible for the people [Volk] to change something they do not agree with. It has been created, and it may not be criticized, it may not be changed – and I do not think that is right. [...] I am even inclined or prefer an authoritarian form of government to a democratic government. Because we all have seen where the democracies have led. I prefer an authoritarian form of government not only for Russia, but also for Germany” Tradução minha. Declaração política de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts, posição 721, 748, grifos meus. 16 É bom frisar que a crise da bolsa de valores de 1929 atingiu a Alemanha profundamente. Ver mais sobre a República de Weimar e a ascensão do nazismo em: EVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. 2ª edição, São Paulo: Planeta, 2014. 17 “I confess treason, but deny that I acted treasonously”. Interrogatório de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts, posição 606. 134 Alemã de Rosa Luxemburgo em 1918-19.18 Essa revolução trouxe um medo constante da ameaça do comunismo, principalmente em um momento pós crise econômica onde grande parte da população estava desempregada, decepcionada com a República de Weimar e principalmente, receosa de uma ditadura do proletariado que acabasse ainda mais com a economia já fragilizada. No entanto, durante a Segunda Guerra Mundial, houve uma retomada da propaganda antibolchevista,19 justamente por ser necessário levar a ideologia para a guerra contra a União Soviética. O medo da onda revolucionária se tornou especialmente forte após a derrota de Stalingrado - que é o período tratado aqui -, quando a propaganda nazista retomou a questão da revolução mundial comunista. O bolchevismo era visto pelos setores conservadores e pela maioria da população como uma ameaça aos valores tradicionais da família, da ordem e da forma burguesa de vida, uma vez que pregava a ideia de sociedade sem classes e de coletivização dos bens e meios de produção. Era associado ao caos, desordem, revolução e miséria. A propaganda também explorou profundamente a associação direta entre judeus e bolchevismo, fazendo com que a guerra contra o bolchevismo também fosse uma guerra contra judeus. Segundo os nazistas, o idealizador do bolchevismo, e, portanto, da Revolução de 1917, era Karl Marx, um judeu que pregava a ascensão total da classe proletária em detrimento da intelligentsia e a classe média, que não possuíam raízes proletárias e que, portanto, perderiam todos os seus direitos políticos e sociais na ditadura do proletariado. Era isso que Stalin estava fazendo na Rússia e era isso que precisava ser combatido: o bolchevismo era visto como inimigo ideológico do Nacional-Socialismo. Posto isso, é cabível o questionamento do que exatamente esses jovens entendiam por bolchevismo quando faziam suas declarações à Gestapo. É razoável refletir se Alex, ao se declarar um forte opositor do bolchevismo, poderia estar tentando defender as suas ações de alguma forma. Pode ter sido uma estratégia deste jovem para tentar se livrar da pena de morte, afinal, a associação a grupos comunistas certamente não seria deixada de lado pelo Tribunal do Povo. Ainda existe a possibilidade de a Rosa Branca, de fato, não associar o bolchevismo, esse conceito maligno da propaganda nazista, ao que Hans e os amigos viram e vivenciaram no front. 18 Ver mais em: REIS, Daniel Aarão. As revoluções russas e o socialismo soviético. Sâo Paulo; Editora UNESP, 2003 – Coleção Revoluções do Século XX/direção de Emília Viotti da Costa.; LOUREIRO, Isabel. A Revolução Alemã (1918-1923). São Paulo: Editora UNESP, 2005 – Coleção Revoluções do Século XX/direção de Emília Viotti da Costa. 19 Sobre a propaganda antissemita e antibolchevista, ver: LUZ, Enrique. “O eterno judeu”: Anti-semitismo e antibolchevismo nos cartazes de propaganda política Nacional-socialista (1919-1945). Dissertação de mestrado, UFMG, 2006. 135 Essa última hipótese se mostra bastante viável, sobretudo se levarmos em consideração as reuniões com Falk Harnack, nas quais Hans e Alex se declaram favoráveis a uma aliança da Alemanha com a União Soviética e a um governo mais inclinado para o socialismo. A adesão de Kurt Huber a Rosa Branca certamente é um dos pontos mais instigantes da pesquisa. As declarações feitas para a Gestapo durante seu interrogatório deixam mais clara a postura política desse personagem, que até então era bastante nebulosa. Isso porque ele se apresenta como um nacionalista extremamente conservador em alguns aspectos, fato que sempre me intrigou muito, uma vez que sua participação na Rosa Branca se deu justamente na segunda fase, quando as ideias de Hans Scholl e Alex Schmorell estavam cada vez tendendo mais para o socialismo e o comunismo. Ao longo desta dissertação as declarações de Huber serão apresentadas para uma compreensão maior da sua visão política, tão distinta da dos jovens. Huber explica a Gestapo que seu pai era liberal, pertencendo ao Partido Liberal e o nacionalismo era a base de sua visão política, e assim seria, também, a do professor. Kurt Huber fez parte do Partido Popular Bávaro depois de 1918 por dois anos, mas se retirou quando o partido começou a se transformar e possuir visões políticas mais “de centro”. Não quis se aliar ao NSDAP em 1927 por conta da postura hostil do Partido em relação às igrejas, ficando de 1927 até 1940 sem pertencer a nenhum partido, quando finalmente ingressou no NSDAP. Ele afirma que sua motivação para essa filiação em 1940 foi para a manutenção das relações com os membros conservadores e impedir o “desvio à esquerda”. Huber chegou a publicar vários artigos para os jornais nacional-socialistas. Sobre sua visão política, declara: Eu não estava de acordo com certos aspectos da política cultural nacionalsocialista, especialmente com suas posições anti-cristãs cada vez mais duras, com suas políticas educacionais para a nossa juventude e com sua atitude com a ciência. Eu não sou de modo algum muito religioso. Desde o início, condenei a política da Igreja Católica e Luterana em relação ao NacionalSocialismo. Mas estou firmemente convencido de que uma nação alemã saudável não pode ser construída com sucesso sem a colaboração de membros cristãos do governo. [...] Eu também encontrei-me no mais difícil conflito político - mas também moral - da minha vida e pensamento com o desenvolvimento da situação política desde o final da campanha francesa, juntamente com (em minha opinião) as ameaças crescentes à liberdade intelectual-espiritual do indivíduo e da minha pesquisa, ensino e atividades politicamente bem-sucedidas, que seguiu o (em minha opinião) desvio à esquerda na política nacional alemã. Tenho total simpatia por uma política forte no Leste. No entanto, eu não poderia justificar no meu coração o número cada vez maior de sacrifícios de sangue no Leste. Scholl, Eickemeyer e eu também defendemos o ponto de vista de que as atividades das unidades SS no campo de batalha diminuíram a reputação do exército em geral. Chegamos a 136 este ponto de vista quando descobrimos sobre o tiroteio dos poloneses e russos pelos SS.20 Nesse sentido, é possível perceber que o autoritarismo, para Huber, deveria ter um limite e que a quantidade de sacrifício humano no Leste era algo inadmissível, questão que será retomada posteriormente. O professor afirma ter conhecido Hans Scholl no começo do verão de 1942 (provavelmente em junho) em uma festa do professor Dr. Mertens; em seguida Scholl e os amigos começaram a frequentar suas aulas na universidade. De acordo com o seu depoimento, ele foi à casa de Schmorell no fim de junho e em julho foi convidado para a supracitada festa de despedida dos amigos antes da saída o front, no ateliê de Eickemeyer, onde discutiram política e aparentemente o consenso era de que uma resistência passiva era a forma mais efetiva de combater o nazismo e o rumo a seguir seria o de um governo democrático. No entanto, Huber relata que a visão de Hans mudou integralmente após a sua experiência no front. Ele conta que recebeu uma carta de Hans quando ele estava no front (a mesma citada no começo do capítulo) em que sua mudança de pensamento fica evidente: Enquanto Scholl estava no front, recebi uma carta dele. Nela, ele me disse que tinha adquirido uma visão completamente diferente da Rússia. Anteriormente, Scholl tinha sido um opositor colossal do bolchevismo. No entanto, tive que concluir pela carta que ele havia mudado completamente de ideia. Scholl apareceu novamente no início do semestre de 1942/43 e ocasionalmente frequentou às minhas aulas. Scholl me contaria sobre a situação e suas impressões sobre a Rússia. Ele enfatizou particularmente que os fazendeiros pareciam ser filo-germânicos, não bolchevistas em absoluto. Eles queriam manter suas tradições religiosas. No entanto, eles estavam melhor economicamente do que estavam sob os czares. De acordo com suas declarações, os agricultores defendiam o ponto de vista de que o bolchevismo era o mal menor em comparação com a era dos czares.21 “I was not in agreement with certain aspects of National Socialist cultural policy, especially with its increasingly harsher anti-Christian positions, with its educational policies for our youth, and with its attitude to science. I am in no way very religious. From the very beginning, I have condemned both Catholic and Lutheran church politics with regards to National Socialism. But I am firmly convinced that a healthy German nation cannot be successfully built without the cooperation of Christian-thinking members of the government [...] I also found myself in the most difficult political – but also moral – conflict of my life and thought with the development of the political situation since the end of the French campaign, along with the (in my opinion) increasing threats of intellectual-spiritual freedom of the individual and of my research, teaching, and politically successful activity, which followed the (in my opinion) drift to the left in German national policy. I have complete sympathy for a strong policy in the East. However, I could not inwardly justify the ever-increasing numbers of blood sacrifices in the East. Scholl, Eickemeier, and I also championed the point of view that the activities of the SS-units in the field diminished the reputation of the army in general. We had come to this point of view because of the SS’s shooting of Poles and Russians that we had learned about.” Tradução minha. Interrogatório de Kurt Huber. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack. NJ1704. (English Edition), por Denise Heap (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 525, 562, grifos meus. 21 “While Scholl was on the front, I received a letter from him. In it he told me that he had gotten a completely different view of Russia. Previously, Scholl had been a colossal opponent of Bolshevism. However, I had to conclude from the letter that he had completely changed his mind. Scholl showed up again at the beginning of the 1942/43 semester and occasionally came to my lectures. Scholl would tell me about the situation and his impressions of Russia. He particularly emphasized that the farmers seemed to be philo-Germanic, not Bolshevistic 20 137 Esse trecho confirma a hipótese de que Hans Scholl estava tendo visões políticas cada vez mais à esquerda e que seu contato com Falk Harnack não é injustificado. De acordo com as fontes, é possível apreender que Hans continuava um forte oponente da bolchevização da Alemanha, mas que, no entanto, ele conseguia ver os pontos positivos do governo de Stalin, como a melhora nas condições de vida dos camponeses. Parece-me que essa era uma postura similar com a de Falk Harnack, como veremos adiante, e até mesmo alinhada com a de Alex Schmorell, que recusava o bolchevismo, mas não identificava a Rússia ao bolchevismo. O depoimento de Huber, Hans e Schmorell estão de acordo sobre o fato de Huber só ter descoberto quem eram os autores dos primeiros panfletos da Rosa Branca perto do natal de 1942. Segundo o professor, o seu ponto de inflexão foi o discurso do Gauleiter Giesler sobre as estudantes. Depois desse evento, foi a primeira vez em que decidiu usar da ação panfletária de Scholl para quebrar o seu silêncio. Para Huber, o discurso de Giesler foi um profundo desrespeito aos estudantes e ao exército alemão, uma violação da honra e da liberdade dos cidadãos. Abordarei mais adiante o discurso de Giesler, visto que esse episódio aparece explicitamente no panfleto escrito pelo professor. Kurt Huber decidiu aderir à produção de panfletos, pois, segundo ele, ele e os jovens pertenciam a intelligentsia e não poderiam “ir às ruas”. Ademais, acreditava que a ação panfletária era a única maneira de mostrar à população que havia discordância dentro da Alemanha. Em seu depoimento, Huber enfatiza que ele e Hans não concordavam em tudo e tal declaração é confirmada pelo próprio Hans. Para o professor, muito do que Hans escrevia tinha “tons comunistas” e reitera que eles não estavam de acordo sobre as formas de como a nova Alemanha se organizaria. Quando decidiu escrever o sexto panfleto, no rascunho original, Huber incluiu trechos que Hans e Alex categoricamente retiraram para a distribuição, por não irem de acordo com os seus pontos de vista. Esses trechos diziam respeito às grandes conquistas do exército alemão e declaravam completa solidariedade e submissão dos estudantes alemães ao exército. Essas duas passagens foram retiradas do panfleto e o resultado final, que foi impresso e distribuído, não continha nenhum desses pressupostos, que eram a base do pensamento de Kurt Huber. O professor recorda que as passagens se localizavam depois do quinto parágrafo, ou seja, pouco antes do final do panfleto. Ele diz à Gestapo que o trecho adicional declarava: at all. They wanted to keep their religious traditions. However, they were better off economically than they had been under the Czars. According to his statements, the farmers championed the point of view that Bolshevism was the lesser evil in comparison to the era of the Czars” Tradução minha. Idem, ibidem, posição 569-573, grifos meus. 138 Estudantes, vocês se voluntariaram bem e verdadeiramente para ajudar o exército alemão na linha de frente e nos postos inimigos, nos abrigos de primeiros socorros e também no laboratório e nas suas mesas. Só há um objetivo, e esse é a destruição do bolchevismo russo em todas as formas. Filiem-se firmemente à linha de soldados das nossas gloriosas forças armadas.22 É extremamente representativo que a parte retirada diga respeito justamente ao combate ao bolchevismo, o que reforça o argumento de que Hans e Alex não identificavam mais o bolchevismo como um inimigo da Alemanha. É possível inferir que a contribuição de Huber para a Rosa Branca foi mínima e que sua visão política não ia ao encontro com as de Hans e Alex, apenas em alguns pontos específicos, como a demanda por liberdade de expressão e por educação digna e livre de controle doutrinário. O professor possivelmente estava mais alinhado ideologicamente com a primeira fase da Rosa Branca do que com a segunda. Me parece que os motivos que levaram Huber a resistir por meio de panfletos eram motivos bastante distintos dos de Hans Scholl, Alex Schmorell, Willi Graf, Sophie Scholl e Christoph Probst. O professor sabia que suas ações eram consideradas como alta traição pelo regime, contudo, resolveu correr esse risco não só para informar às pessoas sobre o que a guerra representava, mas, sobretudo, para atingir os membros das posições mais altas do Partido, para alertar contra o perigo da bolchevização do NSDAP. Huber queria que o Partido retornasse às propostas iniciais de 1933, à sua essência. Recusava qualquer forma democrática ou parlamentar como Weimar, além de sentir uma profunda rejeição a qualquer visão socialista ou comunista, seja ela econômica, social ou política. Nessa segunda fase, nada disso estava em concordância com o que Hans Scholl e os amigos pretendiam. Os estudantes almejavam uma ação revolucionária e Huber afirma categoricamente que sua ação não tinha por objetivo trazer uma revolução. O próprio professor reconhece que sua visão política diferia da de Scholl e os amigos: Minha visão para um governo de forma alguma pode ser identificada com as declarações e, possivelmente, as opiniões políticas feitas por Scholl e Schmorell. É verdade que Scholl foi muito receptivo às minhas ideias. Na minha presença, ele também concordou comigo. No entanto, não tenho dúvidas de que ele misturou minhas ideias com as que obteve dos outros, que vieram de uma direção completamente diferente da minha, ou seja, de “Students, you have volunteered well and truly to aid the German army on the frontlines and at their enemy posts, in first aid shelters, and also in the laboratory and at your desks. There is but one goal, and that is the destruction of Russian Bolshevism in every form. Steadfastly align yourselves with the rank and file of our glorious armed forces.” Tradução minha. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack., posição 734, grifo meu. 22 139 comunistas e reacionários religiosos. Ele misturou todas essas ideias juntas em uma imagem subjetivamente confusa.23 Portanto, para Kurt Huber, Hans permutou várias de suas ideias e influências e criou uma visão de mundo própria, que claramente era distinta da que Huber aprovava. Hans Scholl, em seu interrogatório, declara o seguinte sobre as posições políticas de Huber: “Ele é um grande Nacionalista. Ele acredita que o bolchevismo é o destruidor da cultura europeia. Ele tem profundas visões antissemitas”.24 Levando em consideração que o professor só participou exclusivamente da escrita desse único panfleto, não tendo participado nem mesmo do processo de cópia e distribuição, é possível inferir que a resistência da Rosa Branca realmente era uma resistência de jovens estudantes. A literatura sobre o grupo, por vezes, superestima a participação de Huber, como se ele tivesse sido o mentor desses jovens, exercendo uma grande influência em sua resistência. Esse não era o caso, e, apesar de evidentemente o professor ter desempenhado alguma influência no pensamento da Rosa Branca, ele foi usado pelos estudantes como uma fonte de legitimação intelectual. Na realidade, os jovens e o professor compartilhavam efetivamente de poucos ideais políticos e concordavam apenas em alguns pontos específicos. No próximo capítulo será apresentado o discurso de Huber ao Tribunal do Povo, bem como mais algumas de suas declarações políticas à Gestapo para esclarecer um pouco mais esta questão. Retomando ao ponto da mudança de pensamento da Rosa Branca, Hans Scholl e os amigos saem da Rússia em 1 de novembro de 1942, chegando em Munique no dia 6 de novembro. Em algum momento do começo do mês de novembro, Hans e Alex viajam para Chemnitz e encontram Falk Harnack pela primeira vez, iniciando a mobilização para a nova fase da Rosa Branca. Falk Harnack era irmão de Arvid Harnack, principal membro do grupo de resistência que ficou conhecido como Orquestra Vermelha (Rote Kapelle) ou “grupo HarnackSchulze-Boysen”. Esse encontro se deu para uma análise dos panfletos e de possíveis estratégias para a inserção da Rosa Branca em um movimento de resistência nacional, com sede em Berlim, bem como a ampliação das atividades do grupo. Richard J. Evans explica sobre o funcionamento da Orquestra Vermelha: “My vision for a government in no way can be identified with the statements and possibly political opinions made by Scholl and Schmorell. It is true that Scholl was very receptive to my ideas. In my presence, he also agreed with me. However, I have no doubt that he mixed my ideas with those he got from others, which came from a completely different direction than my own, namely Communist and religious reactionaries. He mixed these all together into a subjectively muddled image” Tradução minha. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack., posição 973, grifos meus. 24 Interrogatório de Hans Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 2615. 23 140 Um grupo excepcional com conexões comunistas, embora não se submetesse nem à disciplina comunista nem à ideologia stalinista, conseguira sobreviver desde o começo do Terceiro Reich. Era conhecido pela Gestapo como Orquestra Vermelha (Rote Kapelle), embora fosse, de fato, uma série de grupos clandestinos que se sobrepunham uns aos outros e tinham um funcionamento bastante diferente. [...] Alguns de seus seguidores eram membros do Partido Comunista, mas o grupo era, em essência, independente de qualquer supervisão de Moscou. [...] O grupo ajudava fugitivos políticos a escapar da Alemanha, distribuía folhetos não apenas para alemães, mas também para trabalhadores forçados estrangeiros, e entrou em contato tanto com a embaixada americana quanto com a soviética, as quais mantinha informadas a respeito dos crimes do nazismo. [...] A assim chamada Orquestra Vermelha não era um círculo de espiões soviéticos, como foi retratada pela propaganda nazista posteriormente, mas um movimento de resistência interno, cujos contatos com o serviço de informações soviético eram feitos segundo seus próprios termos. Ela estava longe de ser o único grupo de esquerda desse tipo, embora fosse maior que a maioria.25 De acordo com o autor, a Orquestra Vermelha girava em torno do grupo de resistência em Berlim, formado por Arvid Harnack, funcionário público do Ministério da Economia do Reich e Harro Schulze-Boysen, um adido do Ministério da Aviação (por isso também ficaram conhecidos por “grupo Harnack-Schulze-Boysen”). Arvid pregava por uma Alemanha socialista e pacífica, tendo se filiado ao Partido Comunista em 1937. Schulze-Boysen tinha um posicionamento revolucionário nacionalista radical, tendo sido preso e torturado pelos nazistas já em 1933. As mulheres desempenhavam um papel importante na Orquestra Vermelha, em especial Mildred Harnack-Fish (esposa de Arvid) e Libertas Schulze-Boysen (esposa de Harro). Como mantinham contato com o serviço de informações soviéticos, os próprios soviéticos providenciaram equipamentos de rádio para que a Orquestra Vermelha enviasse informações a respeito da economia de guerra para os russos. A prisão de seus membros se deu pela interceptação pelo serviço de informação militar alemão dessas mensagens clandestinas de rádio, o que levou a prisão de Schulze-Boysen, Harnack e mais de 130 membros, dos quais mais de 50 foram executados, dentre eles os casais Harnack e Schulze-Boysen.26 Com relação a esse encontro dos membros da Rosa Branca com Falk Harnack, a bibliografia de referência apresenta controvérsias, alguns livros afirmando inclusive que tal encontro nunca aconteceu. No entanto, o testemunho de Falk Harnack apresenta dados inéditos e extremamente relevantes para a compreensão da mudança na dinâmica do grupo. O jovem, cuja vida foi bastante interessante e em boa parte destinada à militância de esquerda, era declaradamente comunista e vinha de uma família de resistentes, além de manter contato com 25 26 EVANS, Richard J. O Terceiro Reich em guerra. 2ª edição, São Paulo: Planeta, 2014, pp. 718-719, grifos meus. Idem, ibidem, pp. 718-719. 141 a resistência de esquerda da Alemanha, e afirma que se encontrou com Hans Scholl e Alex Schmorell mais de uma vez. O contato inicial havia sido intermediado pela amiga de Alex, a pintora Lilo Ramdohr, noiva de Falk Harnack na época, que também contou sobre as suas perspectivas sobre o grupo e esse contato. Lilo Fürst-Ramdohr conheceu Alexander Schmorell no outono de 1941 e, desde então, construíram uma amizade em que ela “era para Alex como uma irmã mais velha”.27 Lilo era noiva de Falk Harnack e amiga de sua família desde os tempos de escola. Ela se recorda de quando Alex falou pela primeira vez do que viriam a ser as atividades da Rosa Branca, em janeiro de 1942, afirmando que era necessária uma resistência menos passiva e mais ativa. Ela conta que tentou mudar a sua opinião, dizendo que era perigoso, mas que Alex respondeu: “agora não há mais volta. Eu bem poderia dizer que isso é problema dos alemães, mas não vou deixar Hans na mão. Ele é meu amigo”28. Lilo declara que Alex era um “forte opositor tanto do bolchevismo como do nacional-socialismo” e que nunca teve “a impressão de que seu principal interesse era política”. Na verdade o que estaria motivando Alex a entrar na resistência nesse momento, era “a profunda fidelidade ao amigo”.29 Novamente é importante reforçar a questão discutida previamente, de que esse tipo de declaração possivelmente fosse uma forma de proteger Schmorell, ou, nesse caso, apenas falta de conhecimento de suas reais intenções. Lilo acompanhou a convocação dos amigos para o front oriental em julho de 1942 e a promessa de que quando retornassem a Munique, “a meta seria colocar em prática os planos de tentar tudo para derrubar o regime de Hitler”. A pintora auxiliou nas tarefas da Rosa Branca, oferecendo ajuda financeira e, também, guardando em seu depósito caixas de papelão com papéis e panfletos. Logo após a saída dos amigos para o front, Lilo foi visitar Falk Harnack em Chemnitz, onde ele era soldado, posteriormente a prisão de seu irmão e sua cunhada pelas atividades da Orquestra Vermelha. Nessa ocasião, ela conta a Falk sobre a atuação da Rosa Branca, e lembra que ele ficou bastante interessado. Após esse encontro, relata: Em novembro, após seu regresso da Rússia, Alex, Hans e Christel vieram à minha casa me visitar. Havia uma carta de Falk Harnack sobre a mesa. Eu estava na cozinha preparando chá; quando voltei para a sala, Hans confessou que tinha lido sem querer o remetente da carta que estava sobre a mesa. Pediu desculpas. Perguntou se era um parente do Dr. Arvid Harnack. ‘É o irmão de Arvid Harnack’, expliquei. ‘Ele está desesperado por causa da prisão de Arvid e sua esposa Mildred’. Hans Scholl olhou-me sério. ‘Fiquei sabendo’, ele disse em voz baixa, ‘mas não sabia que ele tinha um irmão’. ‘Prometi visitar Falk 27 Testemunho de Lilo Fürst-Ramdohr, sem data. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 158. Idem, ibidem, p. 158. 29 Idem, ibidem, p. 158. 28 142 novamente, mas agora não posso, por causa da escola’, eu disse. Espontaneamente, Hans me perguntou se ele poderia visitar Falk, em Chemnitz, no meu lugar, e continuou: ‘Você vem comigo, não vem, Alex?’. Alex aceitou sem hesitar. Essa viagem, da qual Alex voltou entusiasmado, trouxe muitas ideias novas. Sem dúvida, Alex deixou de lado suas reservas e seus últimos receios e decidiu aderir plenamente à iniciativa! Hans Scholl mostrou mais uma vez prudência e responsabilidade e estava mais inclinado a examinar com calma as novas propostas de Chemnitz. Ouvi-o dizer: ‘Isso não pode ir tão longe a ponto de arriscarmos nossas vidas’.30 Em fevereiro de 1943, alguns meses após o primeiro encontro, Falk vai a Munique e pede a Lilo para organizar mais uma reunião com os membros da Rosa Branca. Nessa ocasião, em 8 de fevereiro, eles se reúnem na casa dos Scholl na rua Franz-Joseph-Strasse e Lilo recorda que os presentes eram: Hans e Sophie Scholl, Alex Schmorell e Willi Graf. Na realidade, sabemos pelas cartas e pelo depoimento de Sophie Scholl a Gestapo, que Sophie nunca se encontrou com Falk Harnack, pois ela estava na sua cidade natal, Ulm, no período de 5 de fevereiro a 14 de fevereiro. Lilo não ficou para a reunião, a pedido do noivo, que relata ainda um terceiro encontro, ocorrido no dia seguinte, às 17 horas, em que o professor Huber estava presente, além da namorada de Hans, Gisela Schertling. Após esse último encontro, os jovens marcaram mais uma reunião para o dia 25 de fevereiro – essa sim, de fato, nunca aconteceu. Portanto, de acordo com as fontes é possível inferir que ocorreram três encontros entre a Rosa Branca e um membro ativo da resistência de esquerda alemã, que tinha contatos com outros grupos em Berlim e em outras partes da Alemanha. Nesses encontros foram traçados metas e planos para a inserção da Rosa Branca nessa resistência maior e nacional, para além dos planos do próprio Hans de criar uma resistência estudantil integrada. Sendo assim, é de suma importância que seja contada essa parte da história desse grupo, que em toda a literatura é negligenciada. A mudança de posição da Rosa Branca após o retorno dos membros do front oriental é ainda mais dramática do que parece inicialmente. Não se insere apenas em uma resistência ativa, mas sim, em uma resistência organizada e em diálogo com grupos resistentes já existentes e que ficaram conhecidos posteriormente. Falk fala sobre a Rosa Branca com os irmãos Bonhoeffer, Klaus e Dietrich, ambos reconhecidos como membros da resistência teológica e social-democrata alemã e posteriormente envolvidos no atentado contra Hitler em 1944. Portanto, a Rosa Branca não era, como somos levados a imaginar, apenas um grupo de estudantes que distribuiu panfletos com cunho religioso pregando o fim do regime nazista. Ou, que sua resistência era moral e buscava romanticamente uma liberdade de espírito -isso é verdadeiro apenas na primeira fase. A segunda fase do movimento demonstra claramente 30 Testemunho de Lilo Fürst-Ramdohr, In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 160-161. 143 que a partir do fim de 1942 eles almejavam mais, buscavam estratégias para acabar com o regime e tinham objetivos traçados, palpáveis – e, em grande parte, aliados a ideias de esquerda. Cabe, aqui, frisar esse ponto que não fica necessariamente claro nos panfletos. Apesar de o quinto e o sexto panfleto serem mais diretos e chamarem para ação, ainda assim não são formuladas questões tão práticas. O que aconteceu em segundo plano é que demonstra tal mudança e planejamento, e isso só pode ser contado a partir do entrelaçamento de fontes diversas. Precisamente por esse motivo afirmei que a segunda fase da Rosa Branca necessita de ser entendida para além dos panfletos, isto é, analisando também as ações que ocorreram nos bastidores da ação panfletária. O depoimento de Falk Harnack é bastante detalhado e informativo. Tentarei relatá-lo sem recorrer à longas citações integrais, apesar de muitas vezes esse recurso me parecer necessário. Além disso, farei o contraste com o seu depoimento a Gestapo, dado em 11 de março de 1943. Falk começa seu testemunho definindo Hans Scholl e Alexander Schmorell como “os idealizadores do movimento de resistência estudantil na Universidade de Munique”. 31 Ele afirma que eles souberam de sua existência e das atividades de resistência que ele propagava no outono de 1942, quando os membros da Orquestra Vermelha foram presos. Falk reitera a importância de Lilo Ramdohr para esse contato inicial e declara que, no primeiro encontro, “contrariando as convenções usuais da clandestinidade, falamos muito abertamente desde o início, pois cada um de nós sabia muito bem quem era seu interlocutor”.32 É importante ressaltar que tal encontro ocorreu após o retorno dos amigos do front, e, portanto, após os quatro primeiros panfletos já terem sido distribuídos. Chamo atenção desse fato pois o próprio Harnack lembra que Hans e Alex mostraram a ele os panfletos já produzidos e os que estavam sendo elaborados naquele momento, e declara que entre “os textos filosoficamente ornamentados da Rosa Branca” (ou seja, os quatro primeiros panfletos) e “os que estavam sendo elaborados naquele momento, realistas e com um posicionamento político claro”, ele preferia a segunda forma. Enquanto Alex Schmorell contava da dinâmica das atividades do grupo até então, Hans partiu para o questionamento da parte política mais fundamental. Harnack conta dos objetivos de Hans: Ele queria, antes de tudo, estabelecer contato com uma central estratégica do movimento de resistência em Berlim e, assim, conseguir uma base mais ampla 31 32 Testemunho de Dr. Falk Harnack em 1947. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 166. Idem, ibidem, pp. 166-167. 144 para o grupo de resistência estudantil. Seu objetivo era fundar células estudantis ilegais em todas as universidades alemãs que deveriam realizar ações panfletárias repentinas e articuladas. Prometi intermediar o contato com Berlim, já que o principal objetivo daquele momento era construir uma frente antifascista ampla, seja na ala esquerdista (comunista), no grupo liberal ou na oposição militar conservadora. [...] A conversa fundamental em que falamos de política revelou que, na atividade ilegal realizada até então, Scholl e Schmorell foram movidos por uma postura ética pessoal e idealista, mas que agora estavam em busca de uma orientação política mais concreta. Se em Scholl essa orientação vinha do viés católico-filosófico (influência de Carl Muth e Theodor Haecker), em Schmorell prevaleciam fortes tendências socialistas. Mas ambos nutriam forte simpatia pelas terras e pessoas do Leste (Polônia e União Soviética), que haviam conhecido nas vezes em que estiveram no front. Da mesma forma, ambos estavam profundamente convencidos de que um acordo entre a Alemanha e a União Soviética era necessário e teria uma importância decisiva para o futuro da Alemanha. Hans Scholl, um jovem político e apaixonado, disse que pretendia abandonar o curso de medicina para se dedicar exclusivamente à política.33 O acordo entre a Alemanha e a União Soviética seria motivo de discordância entre os jovens e o professor Kurt Huber, como veremos adiante. Neste primeiro momento, Falk já vai contra a visão fornecida por Lilo e Sophie: a de que Alex não queria se dedicar à política. Harnack atesta que, no final e 1942, viajava frequentemente para Berlim, afim de visitar seu irmão e sua cunhada que estavam presos no Escritório Central de Segurança do Reich. Seu irmão, Arvid, havia pedido para ele entrar em contato com o grupo de resistência que hoje é conhecido como “20 de julho”, ou seja, os que planejavam o assassinato de Hitler. Falk procura seus primos, os irmãos Dietrich Bonhoeffer, importante liderança da Igreja Confessional, e Klaus Bonhoeffer, e fala “sobre o plano de salvar o grupo de resistência Harnack/SchulzeBoysen [Orquestra Vermelha], sobre o grupo de estudantes de Munique e, por fim, sobre uma união de todos os movimentos de resistência alemães”.34 Os irmãos Bonhoeffer, segundo ele, eram parte da resistência liberal e se interessaram pelas suas propostas e também afirmaram que era possível que em pouco tempo os militares oposicionistas presentes nas Forças Armadas da Alemanha tomassem ação. É presumível que a referência aos militares oposicionistas seja o que viria a ser, em 1943, o Comitê Nacional Alemanha Livre (ou Comitê Nacional por uma Alemanha Livre). Segundo Richard J. Evans, os russos deram início já em 1942 a uma política de “reeducação” dos prisioneiros de guerra alemães para que estes se “convertessem” ao “antifascismo”, tentando persuadi-los de que Hitler estava destruindo a Alemanha e de que se juntar ao inimigo 33 34 Testemunho de Dr. Falk Harnack. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 167-168, grifos meus. Idem, ibidem, p. 168. 145 (os soviéticos) era a única maneira de salvar o país. Em julho de 1942 já havia um grupo considerável de prisioneiros convertidos e no ano seguinte esse grupo se tornou o Comitê Nacional Alemanha Livre. De acordo com Evans, existia uma ala comunista forte nessa organização, que também contava com oficiais que já nutriam dúvidas quanto à liderança nazista antes de terem sido feitos prisioneiros. O marechal de campo Friedrich von Paulus, o oficial responsável por liderar a frente oriental na batalha de Stalingrado e visto como o grande culpado pela derrota por boa parte dos alemães e principalmente por Hitler,35 apesar de seus enormes esforços para a rendição do exército, foi um dos grandes nomes do Comitê. Paulus foi usado, inclusive, para fazer uma série de transmissões de propaganda dirigidas à Alemanha em favor dos soviéticos.36 Segundo Evans: “as transmissões provavelmente tiveram pouco efeito, mas o simples fato de Paulus estar fazendo-as era um profundo constrangimento para a liderança nazista, e proporcionou mais uma prova para Hitler – se é que ele precisava de alguma – de que a liderança do Exército não era de confiança”.37 Afirmei que a referência dos irmãos Bonhoeffer aos militares oposicionistas provavelmente tem relação com o Comitê porque após a morte dos irmãos Scholl, em fevereiro de 1943, o Comitê Nacional Alemanha Livre redigiu um panfleto falando sobre a Rosa Branca e sua luta pela liberdade. Esse panfleto, direcionado aos soldados, principalmente aos jovens, retrata os membros da Rosa Branca como heróis e apontam Hitler como o inimigo real da Alemanha por ter pervertido a classe média, a nação e a família. De acordo com esse escrito, os irmãos Scholl e Christoph Probst “faziam parte dos nobres e corajosos representantes da juventude alemã que não queriam mais assistir, irrefletidamente, ao pavoroso sofrimento de sua pátria, numa submissão obstinada”.38 O folheto anuncia que os jovens foram acusados de comunistas e parasitas do Povo, acusação que não intimidou Hans Scholl, que afirmou perante ao tribunal não ser comunista, e sim, alemão, e que “foi como alemão, como soldado combatente, como um homem que se preocupa com o destino de sua pátria e de seu povo que o jovem e corajoso defensor da liberdade enfrentou bravamente seus juízes, sem temer a morte”.39 35 Richard Evans reitera diversas ocasiões em que Friedrich von Paulus pede a Hitler a permissão para a rendição de seu exército, e a insistência do Führer de continuar com a batalha, mesmo quando ela já estava perdida. Ver: EVANS. O Terceiro Reich em guerra, pp. 467-480. 36 Idem, ibidem, p. 481. 37 Idem, ibidem, p. 481. 38 Panfleto do “Comitê Nacional por uma Alemanha Livre”. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 224. 39 Idem, ibidem, pp. 225-226. 146 É verdadeiramente impressionante a temática propagandística desse panfleto, que foi distribuído no fim de fevereiro de 1943.40 Em todo o seu conteúdo, os resistentes da Rosa Branca são exaltados não só como heróis, mas, também, como soldados e combatentes da pátria alemã. Trechos dos panfletos da Rosa Branca foram selecionados e reproduzidos no escrito do Comitê e foi dito que chegaria um dia em que as cidades de Ulm e Munique estariam repletas de monumentos para os irmãos Scholl, “em sinal de agradecimento e veneração a seus heróis” – o que, de fato, aconteceu ao fim da guerra. A Rosa Branca, segundo eles, lutou: Contra todo o arbitrário regimento hitlerista que, ávido por dominar o mundo e escravizar os povos, condenou a Alemanha ao incomensurável sofrimento da Guerra Total, aos ataques aéreos em massa, à ruína e à miséria. Contra o manipulador de povos e alucinado Também-General Hitler que, através de sua política imperialista, da perseguição racial e do terrorismo sangrento nas regiões ocupadas, atraiu o ódio dos povos sobre a Alemanha, que arruína e corrói a família, a comunidade camponesa e a classe média alemãs, que provoca uma inundação de estrangeiros na Alemanha e que consome e mina os fundamentos da existência e do desenvolvimento da nação alemã.41 Esse tipo de denúncia da liderança de Hitler é justamente o que Richard Evans retrata ter sido usada pelo Comitê nas transmissões propagandísticas com Paulus. Ao fim do panfleto, há uma chamada aos jovens soldados alemães, para que eles ouvissem o alerta “dos heróis da liberdade” de Munique e que vissem finalmente que “os piores inimigos e corruptores da Alemanha estão bem atrás de vocês e lhes dão ordens e os lançam à luta fatídica e suicida”. O impresso termina com uma convocação: Oficiais e soldados! Não se deixem mais liderar por palavras de ordem incendiárias e mentirosas, mas apenas pela própria razão, consciência e amor à pátria. Por uma Alemanha livre e pacífica! Pela preservação e pelo bem-estar do povo alemão, da família alemã! Lutem contra a guerra de Hitler e contra o terror de Himmler! Lutem contra os lucros de guerra de Göring e Krupp e contra as mentiras de Ley e Goebbels! Lutem contra o ódio entre os povos e contra a Guerra Total! Acabem com a guerra! Derrubem Hitler! Juventude alemã, desperte!42 Não é possível saber com certeza se a referência citada por Falk Harnack com relação a resistência militar relatada pelos irmãos Bonhoeffer era realmente a do Comitê Nacional Alemanha Livre, mas é uma hipótese forte. Retomando a narrativa de Harnack, o jovem conta não ter conseguido colocar muitas de suas ideias em prática, visto que, em 22 de dezembro daquele ano de 1942, “os primeiros onze 40 Há a possibilidade de o panfleto ter sido distribuído apenas no fim de 1944, mas ainda não foi possível delimitar exatamente onde ele foi distribuído e nem a sua tiragem. 41 Panfleto do “Comitê Nacional por uma Alemanha Livre”. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 226. 42 Idem, ibidem, p. 227. 147 militantes principais do grupo de resistência Harnack/Schulze-Boysen (dentre eles, o meu irmão) foram executados na forca, no presídio de Berlim-Plötzensee”. É válido ressaltar que a morte por enforcamento, naquele momento, era considerada uma morte desonrosa e destinada apenas para poloneses, ou seja, é bastante representativo que esses membros da resistência tenham sido assassinados desta forma.43 Quando Falk visita os Scholl, no já relatado segundo encontro de fevereiro de 1943, Hans conta sobre as atividades atuais do grupo, inclusive abordando a repercussão das pichações da palavra “Liberdade” nos muros da universidade e de outros pontos da cidade. Essas pichações ocorreram na véspera da rendição em Stalingrado, quando Hans, Alex e Willi saíram pelas ruas de Munique de madrugada e picharam nas paredes os escritos “Hitler assassino em massa”, “Fora Hitler” e “Liberdade”. Tal empreendimento demonstra como Hans e seus amigos estavam dispostos a tomar ações mais diretas – e, consequentemente, mais perigosas. Falarei sobre essa questão mais adiante. No segundo encontro, Harnack relata o desejo de Hans Scholl de promover uma condução de todas as forças de resistência existentes “de forma solta e desorganizada a se unirem e partirem espontaneamente para a ação”. Aqui é possível perceber, novamente, como a Rosa Branca precisava de uma estratégia mais definida e que não ficasse apenas no discurso. É neste sentido a importância de Falk nesse contato, visto que ele trazia uma racionalidade necessária aos devaneios dos jovens. Harnack afirma que havia ponderado que “para a atividade ilegal era urgente constituir uma organização totalmente confiável, amplamente ramificada e muito segura, pois essa batalha ilegal só teria sucesso se amplos setores da população realmente participassem”.44 O terceiro encontro, que ocorreu no dia seguinte, 9 de fevereiro de 1943, contou com a presença de Falk, Hans e Alex, além do professor Kurt Huber, Willi Graf e Gisela Schertling, que posteriormente afirma a Gestapo que ficou fora do recinto a todo momento durante essa reunião.45 Tal encontro provavelmente foi o mais importante e mais significativo da resistência da Rosa Branca. Nesse momento, a conversa teve um teor mais prático e foram definidos os moldes políticos do que viria a ser “a nova Alemanha”. Falk declara: Relatei brevemente que Berlim tinha concordado em estabelecer uma ampla frente antifascista para além dos limites partidários. Ainda assim, era 43 Hitler ordenou pessoalmente que os membros da Orquestra Vermelha e posteriormente, dos conspiradores a sua morte, fossem executados por meio do enforcamento, que era uma forma de morte destinada apenas a trabalhadores estrangeiros. Curiosamente, os membros da Rosa Branca foram executados por meio da guilhotina. Ver mais em: EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 738. 44 Testemunho de Dr. Falk Harnack. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 169. 45 Os depoimentos de Gisela Schertling serão apresentados no próximo capítulo. 148 necessário coordenar os objetivos políticos, mesmo que em moldes bem abrangentes. Foram discutidas, sobretudo, questões referentes a uma futura Alemanha. Era consenso que seria necessário perseguir e punir com severidade todos os ativistas nazistas, proibir de votar todos os membros do partido nacional-socialista – desde que não fossem militantes da resistência disfarçados -, e, em terceiro lugar, admitir no máximo três partidos (um marxista, um liberal e um cristão). Na discussão também houve unanimidade quanto à organização futura do Império Alemão. Todos eram a favor do estabelecimento de um poder central, com exceção do professor Huber, que citou o federalismo liberal da Suíça como um exemplo brilhante. No âmbito econômico, a economia planificada era o único caminho vislumbrado para salvar a Alemanha de uma catástrofe econômica. Scholl e Huber se posicionaram contra a economia planificada socialista. As reservas de Scholl se dirigiam apenas ao setor agrário, enquanto Huber rejeitava por princípio qualquer forma de economia planificada e via como única possibilidade o sistema econômico liberal da Inglaterra.46 O fragmento acima levanta algumas questões. Em primeiro lugar, quando Falk Harnack se refere ao “Império Alemão”, ele ainda está considerando a ideia de Reich. Ou seja, no tipo de organização que os jovens estavam propondo, é possível que os territórios ocupados pela Alemanha na guerra continuassem sendo ocupados e que respondessem a um governo central. Em segundo lugar, é interessante destacar alguns pontos sobre o posicionamento de Kurt Huber, conforme relatado por Falk Harnack. O professor se diz contra o estabelecimento de um poder central, usando o federalismo suíço como exemplo, no qual os Estados soberanos se uniam por meio de um pacto federativo, dando certa flexibilidade e liberdade para os Estados. A ideia do federalismo é condizente com a postura adotada no quinto panfleto, escrito por Hans, Alex e Willi, que defende que “qualquer poder centralizador, como o poder que o Estado prussiano tentou exercer na Alemanha e na Europa, deve ser sufocado pela raiz. A futura Alemanha só poderá ser federalista!”.47 Tal postura também é observada no depoimento de Huber à Gestapo, no qual ele relata sua profunda decepção com a liderança de Hitler e com o Partido Nazista por dar, segundo ele, uma grande “guinada à esquerda”. A “guinada à esquerda” tem relação com outro ponto assinalado por Falk Harnack: Huber rejeita a proposta de economia planificada (socialista) e usa a economia liberal da Inglaterra como exemplo. Em seu depoimento à Gestapo, o professor enumera vários motivos pelos quais era possível observar o desvio à esquerda do NSDAP, e os principais deles eram a centralização do poder, a centralização da economia e o acúmulo de ações, o fim da sociedade de classes e o consequente fim da ordem social estabelecida, e, acima de tudo, a recusa de se aliar à Inglaterra em sua luta contra o bolchevismo. Na verdade, para Huber, o que ocorreu foi 46 47 Testemunho de Dr. Falk Harnack, In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, grifos meus. Quinto panfleto, Idem, ibidem, p. 108. 149 justamente o contrário, com o acordo com os bolchevistas e a guerra contra a Inglaterra. Ele afirma que “quem firma um tratado com o bolchevismo apenas uma vez, nunca mais tem o direito de se opor a ele ideologicamente”.48 Ao mesmo tempo em que declara que nunca poderia perdoar Hitler por esse acordo, além de questionar a liderança do Führer depois que ele pôs fim a todas as liberdades individuais, o professor reconhece que queria que a Alemanha ganhasse a guerra, já que que não via relação entre a sua crítica e um desejo derrotista. Um dos motivos de sua condenação é justamente a propagação de ideias derrotistas e, portanto, o favorecimento do “inimigo do Reich” e o abatimento da força militar alemã.49 Quando questionado sobre a reunião com Falk Harnack, Huber, em vários momentos alega que Schmorell tinha visões políticas inclinadas ao comunismo e que, nesse encontro, ele avisou Hans Scholl de que as ideias de Falk não tinham relação com as ideias “deles”. Afirma que Falk discutiu apenas questões econômicas com ele e que o jovem declarou que a única maneira de reestruturar a economia seria através de um socialismo real, ou seja, uma socialização total da produção de toda a Europa. Para Harnack, o padrão russo de socialismo de bens de produção era o ideal, e deveria ser usado como modelo. Huber foi veementemente contra essa proposta e concluiu que Harnack deveria ter algo a ver com a “onda comunista na Alemanha” – algo que ele não queria ter nenhuma relação.50 O professor compartilha sua posição sobre a economia no seu depoimento para a Gestapo: Estou firmemente convencido de que a forma econômica da Alemanha e a de uma Europa liderada pela Alemanha deve ser uma economia moderadamente socialista. No entanto, a evolução atual da economia alemã está levando a uma socialização total de todos os meios de produção até a coletivização mais minuciosa da agricultura, bem como a destruição ou pelo menos o estrangulamento de todas as pequenas lojas - e todos esses pontos a uma abordagem crescente do sistema bolchevista. [...] Hoje em dia, o capitalismo e o bolchevismo são encontrados não apenas na Inglaterra e na Rússia, mas também na Alemanha Nacional-Socialista sem qualquer incompatibilidade. [...] Na minha opinião, apenas uma economia federalista e apenas um fortalecimento intensivo do setor agrícola podem trazer o bem-estar econômico na Europa e dominar o duplo perigo do capitalismo e do bolchevismo. É o único [sistema] que pode ser fundamentalmente conciliado com a liberdade material do indivíduo.51 “Whoever signs a treaty with Bolshevism only once never again has the right to oppose it ideologically”. Tradução minha. Interrogatório de Kurt Huber. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack, posição 264. 49 Sentenças do Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 123. 50 Interrogatório de Kurt Huber. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack, posição 648. 51 “I am firmly convinced that Germany’s economic form and that of a Europe led by Germany must be a moderately socialist economy. However, the current evolution of the German economy is leading to a total socialization all of means of production down to the most minute collectivization of agriculture, as well as to the 48 150 Em suma, para Huber, tanto o capitalismo quanto o bolchevismo representavam uma ameaça para a Europa e a única solução seria uma economia embasada no federalismo. Falk Harnack sustenta que questões de política externa também foram discutidas na reunião e que, nesse ponto, também houve discordâncias fundamentais com Kurt Huber. O jovem relata que o movimento de resistência conservador se orientava exclusivamente para o lado ocidental e mantinha contato com Londres, enquanto o movimento Harnack/Schulzen-Boysen pregava pela amizade com a União Soviética, já que era um movimento socialista. Harnack declara que: Se até esse ponto da discussão ainda havia sido possível chegar a um acordo, tudo mudou quando o professor Huber se declarou contrário a uma amizade com a União Soviética e disse considerar apenas o individualismo liberal como modo de vida adequado para a Alemanha. Nesse ponto, Scholl e Schmorell intervieram. Principalmente Schmorell declarou que, do ponto de vista político, era uma tremenda falta de visão limitar-se ao ocidente. Disse que, apesar de não ser comunista, acreditava que a União Soviética havia encontrado uma nova forma social e econômica que, sem dúvida, geraria os impulsos políticos mais fortes no futuro. Pode-se dizer que a nova geração, mesmo nascida em berço cristão, estava pronta para lidar de forma positiva com o tema da relação com a União Soviética e com o socialismo, enquanto a geração mais velha sempre deseja voltar ao sistema liberal.52 Mais uma vez retomamos a ideia de que Hans e Alex estavam dispostos a tomar posturas socialistas para a Alemanha, apesar de alguns pontos ainda não estarem totalmente claros e delimitados nessa conversa. Lilo Ramdohr se recorda da carta que recebeu de Alex Schmorell quando ele estava no front russo, em agosto de 1942, em que “ele exaltava a paisagem russa e suas bétulas brancas” e que contava que “ele e Hans Scholl enterraram, à noite, em segredo, crânios dos russos mortos em combate, a fim de que aquelas almas encontrassem paz”. Ao lembrar do encontro com Harnack em fevereiro, Alex relata a Gestapo que eles discutiram: “os caminhos e formas pelos quais alguém poderia derrubar Hitler e se esforçar para inaugurar uma forma de governo socialista”, e que a posição de Harnack era muito clara, de que “outra coisa deveria surgir no lugar de Hitler. Ele também concordou que, para derrubar Hitler, seria necessário convencer as massas da nação”.53 Schmorell afirma que foram discutidos destruction or at least the strangling of all small shops – and all of this points to an increasing approach to the Bolshevist system. […] These days, capitalism and Bolshevism are found not only in England and Russia, but also in National Socialist Germany without any contradiction. […] In my opinion, only a federalist economy and only an intensive strengthening of the agricultural sector can bring about economic wellbeing in Europe and conquer the dual danger of capitalism and Bolshevism. It is the only [system] that can fundamentally be reconciled with the material freedom of the individual” Tradução minha. Interrogatório de Kurt Huber. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack, posição 940-948. 52 Testemunho de Dr. Falk Harnack, In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 170-171, grifos meus. 53 “The ways and means by which one could overthrow Hitler and strive for and usher in a socialist form of government”; “something else must arise in place of Hitler. He also agreed that in order to overthrow Hitler, it would be necessary to win over the masses of the nation” Tradução minha. Interrogatório de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts, posição 703-707. 151 pensamentos revolucionários e formas de contribuir com a revolução.54 Portanto, Falk Harnack não estava errado ao dizer que os jovens estudantes da Rosa Branca, mesmo sendo cristãos, alemães, criados dentro da Juventude Hitlerista e vindos de famílias tradicionais, estavam dispostos a um diálogo com a União Soviética, ao passo que Kurt Huber não via isso como uma possibilidade por uma questão ideológica conservadora e clara desde o princípio. Quando Huber foi preso, como dito anteriormente, ele ainda era filiado ao NSDAP - sua filiação datando de 1940, um ano após o começo da Segunda Guerra Mundial. Nenhum dos outros membros dessa resistência tinha filiação ao NSDAP. Falk Harnack descreve a pauta final da reunião, que se deu em torno de “um trabalho minucioso e concreto contra o Nacional-Socialismo”. Nesse sentido, todos os presentes decidiram deixar as divergências ideológicas e políticas de lado para unir as forças e se dedicarem “única e exclusivamente à luta conjunta contra Hitler e seu sistema”. Para isso, foi montada uma estratégia onde três ideias centrais deveriam ser divulgadas: “1) A guerra está perdida para a Alemanha; 2) Hitler e sua corja só estão dando continuidade à guerra para garantir a própria segurança e estão dispostos a sacrificar o povo alemão para alcançar esse objetivo; 3) Todas as forças oposicionistas devem ser mobilizadas para pôr fim à guerra o quanto antes”.55 Tal estratégia significava assumir uma postura perigosa e considerada crime de alta traição: propagar a derrota militar da Alemanha. Especialmente após Stalingrado, essa atitude era coerente aos pensamentos populares recorrentes, visto que, como argumenta Richard Evans, a moral alemã estava bem abatida nessa época e a propaganda oficial tentava incessantemente, sem sucesso, buscar apoio popular. Os alemães que inicialmente apoiaram Hitler e estavam confiantes com as vitórias militares, começaram, em 1942-43, contudo, a perder as esperanças diante da sucessão de derrotas no front. Hitler subestimava continuamente o exército soviético e ignorava todas as considerações feitas por seus oficiais e generais do exército. Leningrado (São Petesburgo) estava ocupada pelas forças alemãs desde 8 de setembro de 1941, uma ocupação feita em condições extremamente precárias. De acordo com Evans, “no primeiro inverno do cerco, houve 886 detenções por canibalismo”, e cerca de “um milhão de civis morreram de frio e fome “Harnack did not tell us in what matter he wished to contribute to the revolution as a soldier. As far as I know, Harnack was at Scholl’s residence twice. At both meetings, revolutionary thoughts were contemplated”. Tradução minha. Interrogatório de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts, posição 682-709. 55 Testemunho de Dr. Falk Harnack. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 171. 54 152 durante o inverno de 1941-42”.56 Apesar de o inverno de 1942-1943 ter sido menos severo que o anterior, o Exército Vermelho ainda estava em condições muito superiores para encarar condições de frio extremas. Além do frio constante, o que mais empacava a campanha alemã era a falta de suprimentos e de equipamentos militares. No fim de 1942 mais de 327 mil alemães já haviam sido mortos devido às condições adversas do front. A solução dada por Hitler foi o avanço para Stalingrado, em 12 de setembro de 1942, que era um centro industrial importante, além de ser um ponto de distribuição de suprimentos do Cáucaso e para o Cáucaso. Ademais, Stalingrado possuía um nome com significado simbólico e, após o fracasso da tomada de Moscou e de Leningrado, era de fundamental importância que o exército alemão conseguisse sucesso na campanha em Stalingrado. O comandante responsável pela invasão foi Friedrich von Paulus, já citado aqui, um oficial inexperiente que passara grande parte da sua vida em cargos administrativos. Apesar de um relativo sucesso inicial, no fim de 1942 o combate já havia se tornado “uma batalha de desgaste”. Os soviéticos haviam avançado com muita força e usaram de elementos surpresa, deixando Paulus sem reação ou com reações lentas demais. Foram realizadas algumas tentativas fracassadas de resgate dos soldados alemães, fazendo com que Paulus, em diversas ocasiões ao informar a Hitler das perdas, pedisse pela retirada e rendição de seus homens. O Führer seguiu negando e ordenava que os soldados continuassem lutando, tendo em vista que o fracasso na tomada de Stalingrado seria muito simbólico e uma derrota que ele não estava disposto a admitir. Na época das festas de 1942, o exército alemão já não tinha nenhuma condição de vencer o avanço soviético. Apesar de não terem morrido congelados como no ano anterior, os alemães padeciam com a escassez de comida, que enfraquecia a resistência dos homens no frio e os levavam a adquirir várias doenças. Os soldados estavam comendo carne de cavalo para lutar contra a fome constante, uma situação de miséria extrema e o exército sofria com a escassez de munição. Em 22 de janeiro de 1943, Paulus pediu a Hitler que permitisse a rendição para salvar o que restava de suas tropas e teve seu pedido negado mais uma vez pelo Führer. Segundo Evans, “em 28 de janeiro de 1943, foi emitida a ordem de que doentes e feridos deveriam ser deixados a morrer de fome. Com efeito, as tropas alemãs estavam padecendo do mesmo destino que Hitler havia planejado para os eslavos”.57 56 57 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, pp. 464-65. Idem, ibidem, p. 477. 153 A situação desesperadora em janeiro de 1943 demonstrava que a ocupação de Stalingrado não conseguiria se manter por muito tempo. Paulus se rendeu em 31 de janeiro junto com as suas tropas e o que restou das seis divisões foram bombardeadas sem piedade pelos russos. Em 2 de fevereiro, os alemães finalmente se renderam. Mais de 200 mil alemães haviam sido mortos, 235 mil haviam sido presos durante a batalha, cerca de 100 mil haviam sido presos após a rendição e levados para cativeiro pelos russos, dos quais 55 mil já estavam mortos até a metade de abril de 1943 devido ao despreparo dos russos para abarcar essa quantidade de prisioneiros. Dos que restaram, apenas cerca de 6 mil conseguiu voltar para a Alemanha posteriormente.58 Não só o número de mortes é surpreendente, mas sobretudo o descaso de Hitler para com o seu próprio povo no front. As vidas alemãs tinham tanto valor em Stalingrado quanto a vida de poloneses e soviéticos. O Führer foi irredutível e não aceitou a rendição até o último momento. Se a conjuntura no front externo era a pior possível, no front doméstico não era muito diferente: a moral alemã estava profundamente abalada. Como destaca Evans, “era impossível dar uma explicação para uma derrota daquelas dimensões”, já que “o envolvimento e a destruição totais de todo um exército alemão não podia ser dissimulado”.59 Enquanto a propaganda oficial inicialmente se precipitou anunciando a vitória alemã, antes mesmo da derrota em Stalingrado o conteúdo propagandístico já havia reformulado o seu foco. Durante a batalha, as histórias de jornal e cinejornal “enfatizavam o heroísmo dos soldados envolvidos, uma lição para todos sobre a glória de continuar lutando sem jamais desistir, mesmo quando a situação parecia sem esperança”.60 Após a derrota, a nova verdade era a do autossacrifício, ou, como afirmou o jornal nazista Observador Racial em 4 de fevereiro de 1943: “eles morreram para que a Alemanha pudesse viver”. Entretanto, apesar do esforço propagandístico de Goebbels, havia uma convicção generalizada de que Stalingrado havia sido “o começo do fim” e um dos momentos mais decisivos da guerra até o momento. De acordo com relatórios61 feitos em várias regiões pela SS, a população estava profundamente deprimida, com o estado de espírito perturbado, sobretudo devido às cartas recebidas do front, que relatavam casos de muitos soldados que estavam morrendo de exaustão e de fome. As pessoas questionavam por que Hitler não havia salvado a vida de todos esses 58 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 480. Idem, ibidem, p. 480. 60 Idem, ibidem, p. 479. 61 Evans enumera vários exemplos desses relatórios oficiais. Idem, ibidem, pp. 480-484. 59 154 soldados restantes, mandando-os capitular. Ainda de acordo com esses relatórios, passou-se a criticar a guerra, e, principalmente a liderança do Führer, gerando inclusive a circulação de piadas e de boatos contra Hitler. Escutar rádios estrangeiras proibidas se tornou uma prática mais comum, além de críticas abertas e explícitas ao regime, demonstrando “um claro sinal simbólico da distância crescente entre o povo e o regime”.62 O que se seguiu foi um esforço propagandístico enorme em torno da ideia de guerra total, um empenho final de mobilização em lealdade ao Führer. Em termos práticos, significou racionamento e muito trabalho para a produção de matéria-prima, como carvão e aço, para o desenvolvimento de aviões e tanques, além de gasolina para seu abastecimento. A escassez de matéria-prima era certamente um dos grandes motivos para o fracasso militar alemão até então. Goebbels faz um discurso em 18 de fevereiro de 1943 em Berlim, coincidentemente a data em que Sophie e Hans Scholl são presos após a distribuição do último panfleto, para “uma plateia escolhida a dedo de 14 mil fanáticos nazistas”. Evans cita um trecho do clímax do discurso: ‘Vocês e o povo alemão estão determinados, caso o Líder ordene, a trabalhar dez, 12 e, se necessário, 14 e 16 horas por dia e dar o máximo pela vitória? [Gritos estridentes de ‘sim! ’ e aplauso demorado] [...] Eu pergunto: vocês querem guerra total? [Berros estridentes de ‘sim! ’. Aplauso ruidoso]. Vocês querem, se necessário, uma guerra mais total e mais radical do que podemos imaginar hoje? [Gritos estridentes de ‘sim! ’. Aplauso]’63 Essa era a situação em janeiro-fevereiro de 1943, quando os dois últimos panfletos foram escritos e distribuídos. Os testemunhos apresentados até agora servem para uma compreensão maior do que acontecia nos bastidores da ação panfletária, para que o leitor possa visualizar mais claramente a profunda mudança entre os Panfletos da Rosa Branca e os Panfletos do movimento de resistência na Alemanha. Seguiremos agora para a análise mais detalhada e específica dos panfletos. “Decidam-se antes que seja tarde demais!”64 O primeiro panfleto da segunda fase da Rosa Branca (e quinto panfleto ao todo) foi distribuído no fim de janeiro de 1943, possivelmente entre os dias 28 e 29. Foi um panfleto escrito por Hans Scholl, Willi Graf e Alexander Schmorell. A produção desse panfleto foi feita 62 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 484. GOEBBELS (1943) apud EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 485. 64 Quinto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 107. 63 155 no ateliê do arquiteto Manfred Eickemeyer, em Munique. Eickemeyer foi uma importante figura nas atividades da Rosa Branca, não só por ceder o espaço para a produção dos panfletos, como também por permitir que os amigos fizessem suas reuniões em seu ateliê, onde se discutia política, filosofia, literatura e religião. Ao lado de Carl Muth e Theodor Haecker, Eickemeyer representava uma fonte de legitimação intelectual para os jovens e, segundo Hans, foi por meio do arquiteto que ele tomou conhecimento do extermínio dos poloneses pelos nazistas. É relevante notar que esse impresso foi redigido antes da adesão de Kurt Huber e também antes do segundo encontro com Falk Harnack. Por isso, é importante compreendê-lo como um projeto para a nova fase, o pontapé inicial. O panfleto se inicia com “apelo a todos os alemães” e chama a atenção da população para o que acontecia no front. Assinalam a superioridade do exército americano, declarando que a guerra caminhava para um fim e que “Hitler não pode mais ganhar a guerra, apenas prolongá-la! A culpa de Hitler e de seus cúmplices ultrapassou em muito qualquer limite imaginável. O justo castigo está cada vez mais próximo!”.65 Os estudantes afirmam repetidas vezes que a guerra já estava perdida e que o povo alemão estava cego e surdo, que não percebiam que a “vitória a qualquer preço” e o “lutar até o último homem”, não significava nada além da ruína dos próprios alemães. A guerra, para eles, “nunca foi uma guerra nacional” e lembram que a salvação da Alemanha não estaria necessariamente ligada à vitória do Nacional-Socialismo. Alemães! Vocês e seus filhos querem padecer do mesmo destino que atingiu os judeus? Querem ser medidos com a mesma medida que seus sedutores? Havemos de ser para sempre o povo odiado pelo mundo inteiro? Não! Portanto, rompam com a sub-humanidade nacional-socialista. Provem através de atos que vocês não pensam assim! Uma nova guerra de libertação se inicia. A melhor parte do povo luta ao nosso lado. Rasguem o manto da indiferença com que vocês cobriram seus corações! Decidam-se antes de que seja tarde demais!66 Neste trecho é possível perceber que não era mais possível declarar que os alemães não sabiam o que acontecia no seu próprio país. Esse é o segundo panfleto em que os judeus são mencionados, sendo a primeira vez no segundo panfleto, distribuído em junho de 1942. Richard Evans lembra que o processo da eliminação dos judeus da cena pública começou muito cedo, perdurou todo o governo nazista e só se intensificou com a guerra. Não foi, portanto, uma 65 66 Quinto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 107. Idem, ibidem, p, 107, grifo meu. 156 política adotada de uma hora para outra, na realidade se constituiu em um processo gradual e que culminou no extermínio. Se poloneses eram cidadãos de segunda classe no Governo Geral, judeus então mal se qualificavam como seres humanos aos olhos dos ocupantes alemães, soldados e civis, nazistas e também não nazistas. Os alemães levaram consigo o medo e o desprezo em relação aos judeus que fora instilado na grande maioria deles pela incessante propaganda nazista ao longo dos seis anos e meio anteriores. Nesse período, os judeus da própria Alemanha, menos de 1% da população, haviam sido submetidos a uma crescente discriminação e desapropriação do governo e a surtos periódicos de violência dos ativistas nazistas. Metade deles havia emigrado. Os que permaneceram foram privados dos direitos civis e de seus meios de vida, impedidos de interagir socialmente com os outros alemães, recrutados para esquemas de trabalho forçado e efetivamente eliminados do resto da sociedade alemã. Em novembro de 1938, haviam sido submetidos a uma série de pogroms em escala nacional nos quais praticamente todas as sinagogas alemãs foram destruídas, milhares de lojas de proprietários judeus destroçadas, apartamentos e casas de judeus saqueados e 30 mil homens judeus detidos e colocados em campos de concentração, onde foram espancados e aterrorizados ao longo de várias semanas até serem soltos, depois de dar garantias de que emigrariam. Em seguida, o restante da população judaica da Alemanha foi destituída de suas últimas posses. O processo pelo qual alemães não judeus vieram a considerar seus compatriotas judeus uma raça à parte, a despeito de os judeus da Alemanha compartilharem de todos os aspectos centrais da cultura alemã e não se vestirem nem parecerem diferentes dos outros alemães, foi gradual e desigual, mas, em 1939 [começo da guerra], já havia percorrido um longo caminho.67 É significativo levar em consideração que Hans, Willi, Alex e Christoph eram estudantes médicos, mas também soldados. A categoria “estudante-soldado” os colocavam em uma posição delicada, visto que a qualquer momento poderiam ter que interromper seus estudos para ir trabalhar para a companhia médica em algum lugar do front oriental. Isso significa que tinham mais chances de acompanhar de perto o que estava acontecendo na guerra e de talvez até ver com seus próprios olhos o tratamento dispensado aos prisioneiros. Hans Scholl foi para o front francês e depois para o front russo e certamente a experiência na Rússia moldou a mentalidade dos amigos para a necessidade de uma ação direta e organizada de resistência, como já apresentado anteriormente. Ainda é válido salientar que esses são jovens que cresceram e moldaram suas opiniões durante o Nacional-Socialismo. Quando Hitler chegou ao poder, em 1933, Hans e Willi tinham 15 anos, Sophie 12, Alex 16 e Christoph tinha 14. Quando a guerra começou, em 1939, eles já eram jovens adultos. É imprescindível levar isso em consideração ao analisar as poucas menções da questão judaica nos panfletos, uma vez que que eles realmente conviveram com as políticas de segregação e exclusão dos judeus da vida pública e 67 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, pp. 72-73. 157 social alemã. Viram isso acontecer de perto, acompanharam seus vizinhos judeus serem destituídos de suas posses, perderem os empregos, os direitos sociais mais básicos, o acesso à educação. No entanto, como apresentado no capítulo anterior, o extermínio dos judeus e poloneses era, para a Rosa Branca, mais uma questão de responsabilidade moral, profundamente enraizada na concepção de mundo cristã, do que de responsabilidade política. Neste sentido, o trecho acima deixa claro que eles não queriam que os alemães sofressem do mesmo destino que atingiu os judeus. Analisando o impresso como um todo, entende-se que esse destino tem relação com o extermínio da população alemã já que os “sedutores” nazistas iriam transformar a Alemanha no povo odiado pelo mundo inteiro. O panfleto continua alertando que o povo alemão não deveria acreditar na propaganda nacional-socialista “que instilou em vocês o temor do bolchevismo” e que o governo de Hitler, um sistema criminoso, nunca poderia conquistar uma vitória alemã, portanto, a salvação da Alemanha não estaria ligada a uma vitória na guerra do Nacional-Socialismo, pelo contrário. É feito um pedido às pessoas para romperem “enquanto é tempo com tudo o que está relacionado ao Nacional-Socialismo. Mais tarde um juízo terrível – porém justo – virá sobre aqueles que permaneceram escondidos, de forma covarde e indecisa”.68 Ao fim do panfleto, os jovens explicam como deveriam ser as bases da nova Alemanha e sua possível forma de governo. É possível perceber um conflito nos argumentos: ao mesmo tempo em que se propõe um fim ao militarismo prussiano e a construção de um país federalista, se prega a liberdade do operariado através do socialismo. Isso se deve, provavelmente, às discordâncias ideológicas entre Hans Scholl e Alex Schmorell, ou até – e mais provável – a falta de definição da pauta política e ideológica que eles queriam seguir a partir daquele momento. Há um apelo à liberdade individual bem como uma partilha coletiva dos “bens do mundo”: A ideologia imperialista de poder, venha de onde vier, deve ser neutralizada para sempre. Nunca mais se deve permitir que um militarismo prussiano unilateral chegue ao poder. Somente uma cooperação generosa entre os povos europeus pode preparar o terreno sobre o qual será possível voltar a construir. Qualquer poder centralizador, como o poder que o Estado prussiano tentou exercer na Alemanha e na Europa, deve ser sufocado na raiz. A futura Alemanha só poderá ser federalista! Hoje, apenas uma saudável ordem estatal federalista pode preencher com nova vida a Europa debilitada. O operariado precisa ser libertado de sua condição de mais baixa escravidão através de um 68 Quinto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 108. 158 socialismo sensato. A ilusão da economia autárquica precisa desaparecer da Europa. Cada povo, cada indivíduo tem direito aos bens do mundo!69 Percebe-se que a Rosa Branca enxergava a propaganda nazista como mentirosa, uma vez que pregava que o bolchevismo deveria ser temido e os estudantes viram no front oriental que a vida das pessoas sob o bolchevismo estava de certa forma até melhor do que sob o czarismo. De maneira geral, o chamado “militarismo prussiano” se associa ao governo de Otto von Bismarck, à unificação da Alemanha, às guerras prussianas e à uma forma conservadora e repressiva de governar. Muitos historiadores consideram que o conceito de “militarismo prussiano” se relaciona com a concepção de que a guerra passou a ser mais importante que a política e que essa forma de governar de Bismarck levou à fraqueza e posterior decadência da República de Weimar, e, portanto, a consequente não identificação do povo alemão com a democracia.70 O panfleto termina com o pedido de apoio à resistência por meio da distribuição dos impressos. Antes disso, segue a chamada: “Liberdade de expressão, liberdade religiosa, proteção de cada indivíduo contra a arbitrariedade de Estados autoritários e criminosos: são estes os fundamentos da nova Europa”.71 Tais “fundamentos da nova Europa” resumem precisamente o que a Rosa Branca buscava: a seguridade das liberdades essenciais do ser humano. Era a partir destes princípios básicos que eles pensavam que a nova Europa poderia surgir e se fundamentar. “Levanta, meu povo, já ardem as chamas!”72 O sexto e último panfleto da Rosa Branca foi escrito por Kurt Huber, possivelmente impresso em 16 de fevereiro e distribuído na Universidade de Munique em 18 de fevereiro de 1943 pelos irmãos Scholl, quando os mesmos foram presos pela Gestapo. É um panfleto mais direto que denuncia os crimes da guerra e principalmente a situação das universidades e do meio acadêmico devido a dominação ideológica do Partido. Seu texto é dirigido especificamente aos estudantes universitários e é neste momento que é possível perceber uma mudança no discurso: naquele momento, o foco deveria ser a resistência estudantil. 69 Quinto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 108, grifos meus. EVANS. A chegada do Terceiro Reich, pp. 39-59. 71 Quinto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 108. 72 Sexto panfleto. Idem, ibidem, p. 111. 70 159 Antes de tratar especificamente do folheto, é importante abordar uma questão que demonstra, mais uma vez, como Hans e Alex estavam dispostos a dar um passo adiante na resistência. Nos primeiros dias de fevereiro de 1943, os amigos decidiram pichar nas paredes de Munique os escritos “Fora Hitler” e uma suástica riscada. A literatura de referência não aborda a questão profundamente, nos levando a acreditar que esse foi um único episódio que aconteceu na madrugada do dia 3 para o dia 4, após a notícia da rendição em Stalingrado. No entanto, ao consultar os depoimentos de Hans e Alex sobre o ocorrido, percebe-se que não foi uma ação isolada, e, sim, três ações de pichação entre as madrugadas de 3 a 15 de fevereiro. A ideia partiu de Hans Scholl, que buscava uma propaganda mais específica do que a ação panfletária: ele almejava mostrar à população que havia resistência por meio de uma ação propagandística (esse é o termo usado). É fundamental salientar a mudança de atitude neste momento, de panfletos anônimos para uma ação direta e que representava uma chamada para a liberdade de expressão que eles tanto demandavam. Os atos de pichação podem ser entendidos, então, como protestos políticos e demonstram como a Rosa Branca estava realizando empreendimentos que evidenciavam uma afronta mais direta ao governo de Hitler. Afinal, pensando de acordo com Hannah Arendt, a grande questão da resistência como amor mundi é precisamente a visibilidade das ações. Sendo assim, o surgimento de panfletos no mundo público não estaria no mesmo patamar que protestos políticos, entendidos aqui como os atos de pichação, na cena pública. As ações surgem e aparecem no mundo, sedimentando o espaço-entre e criando, assim, um campo possível de resistência. Se o totalitarismo busca precisamente eliminar o espaço-entre, o espaço onde os homens podem se associar, o surgimento de pichações que mostram para qualquer transeunte que havia resistência, significa, fundamentalmente, um ato político com capacidade de aparecer muito maior do que os panfletos, sobretudo panfletos destinados a um grupo específico da população. O ponto de inflexão que representa claramente a mudança de pensamento destes jovens é exatamente a visibilidade da ação. Hans teve a ideia de realizar as pichações e pediu a Alex Schmorell para produzir um molde com os dizeres. Na noite do dia 3 de fevereiro, Alex chegou na casa de Hans com o molde, tinta e pincéis, e, após a meia noite, foram às ruas de Munique e grafitaram de meia noite até 3h30 da madrugada. Pintaram as paredes da universidade de Munique, um prédio da administração do Reich (que Hans diz não se lembrar qual era) e muitas outras ruas da cidade. A Gestapo estima um número de mais de 30 lugares pichados. Hans se recorda de ter pintado a palavra “Liberdade” nas paredes da universidade quatro vezes, sem o uso de um molde e com 160 uma tinta mais forte. Na noite do dia 8 de fevereiro, Hans e Willi retomaram a mesma atividade e usaram tinta verde para “retocar” os escritos na universidade e na noite de 15/16 de fevereiro usaram o molde de “Fora Hitler” em vários locais: nos correios, na livraria Hugendubel, e, sem o uso de um molde, também escreveram “Hitler, assassino em massa”. Schmorell conta que participou com Hans Scholl na primeira noite, do dia 3/4; na noite do dia 8/9 Hans foi com Willi Graf fazer esse trabalho e, na noite do dia 15/16, os três foram juntos. De acordo com os depoimentos dos irmãos Scholl, Sophie ficou sabendo dessa operação somente após a primeira vez, no dia 4, tendo pedido para participar das próximas; o que Hans Scholl não permitiu, para protegê-la73. Foi encontrada uma pistola com 201 balas na revista na casa de Hans Scholl, e a literatura sugere que Hans levou essa arma carregada nos dias da operação de grafite. Hans afirma que adquiriu essa arma na Rússia e que ele e os amigos haviam concordado que se fossem pegos, iriam fugir da cena, e que, portanto, ele nunca teria levado tal arma com ele. Alex dá depoimentos confusos acerca dessa questão: inicialmente diz que havia comprado a arma do estudante de medicina Anton Wagner, mas, posteriormente afirma que Hans é quem havia comprado a arma de Wagner, tendo lhe entregue 8 dias antes de ser preso, e, finalmente, Schmorell conclui que não usou a arma durante a operação de grafite e que “apenas Hans Scholl carregava uma arma de fogo durante as operações de grafite, e ele teria feito uso dela se tivéssemos sido pegos”.74 O depoimento de Anton Wagner em 11 de março indica que ele conhecia Hans, Alex e Willi e que, quando estavam em serviço no front russo em 1942, ele havia comprado uma pistola de um soldado russo, mas que somente em janeiro de 1943 vendeu a arma para Hans Scholl, em troca de um casaco. Wagner afirma que, como ele sabia que Hans e Alex eram amigos, havia entregue a arma e mais 71 balas para Alex no meio de fevereiro para que ele, por sua vez, entregasse a Hans. Entretanto, também foi encontrada uma arma russa na casa dos pais de Alex Schmorell, com 50 balas. Então, não está claro se havia duas armas ou se era apenas uma arma em questão, principalmente devido aos números de balas. Acredito, contudo, que se tratam de duas armas diferentes. 73 Estas informações foram recuperadas com o entrelaçamento das declarações de Hans, Sophie e Alex a Gestapo. “Only Hans Scholl carried a firearm during the graffiti operations, and he would have made use of it had we been caught” Tradução minha. Interrogatório de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts, posição 567. 74 161 De toda forma, se Hans estava carregando essa arma nos dias das operações, o que é bastante provável, é possível questionar se era apenas para sua proteção ou se ele estava realmente disposto a ir além. A mudança na forma de ação da primeira fase para a segunda é gritante e surpreendente, tornando-se ainda mais surpreendente a cada vez que se juntam as peças desse quebra-cabeças, tão disperso em meio à documentação e à bibliografia. A literatura, como dito, narra o episódio do grafite como algo que aconteceu apenas uma vez, aliado ao relato da chegada dos estudantes na universidade no dia 4, dia seguinte à derrota em Stalingrado, quando os jovens se deparam com as palavras “Liberdade” e “Fora Hitler” nos muros, pintadas com piche. Mulheres russas trazidas para a Alemanha para trabalhos forçados estariam tentando limpar os dizeres. Inge Scholl conta que Sophie disse às mulheres “deixe a palavra aí, foi escrita pra ser lida”,75 enquanto Elizabeth Scholl, que havia passado alguns dias na casa dos irmãos nesse período, se recorda de Sophie dizendo “eles vão esfregar até cansar, isso aí é piche”,76 dando a entender que ela sabia quem havia feito e como. Outro evento significativo de ser relatado antes de dar início à análise do panfleto especificamente, é o discurso de Giesler na universidade. Tal evento se deu em 13 de janeiro e foi muito representativo no que diz respeito aos ânimos da população alemã em relação à massiva propaganda nazista, sobretudo da população jovem. Kurt Huber menciona esse episódio nesse panfleto e, por ter sido a sua inspiração para a escrita do folheto, é fundamental apresentá-lo na íntegra neste momento. Paul Giesler, mais conhecido como Gauleiter77 Giesler, foi à Universidade de Munique proferir um discurso aos estudantes em virtude do 470º aniversário da criação da instituição. Os membros da Rosa Branca não estavam presentes no auditório, visto que haviam feito a promessa de sabotagem a todos os eventos do Partido Nazista. Kurt Huber estava entre os presentes, assim como Gisela Schertling (namorada de Hans Scholl), Annelise Graf (irmã de Willi) e Katharina Schüddekopf (aluna de doutorado de Huber). O discurso de Giesler tinha como objetivo levantar a moral dos estudantes de Munique, tendo em vista que a cidade de maneira generalizada estava profundamente abalada com os últimos acontecimentos na guerra. No entanto, Giesler, como um bom fanático nazista, adotou posturas contra a intelectualidade alemã, dizendo ser um absurdo que os estudantes da 75 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 67. Testemunho de Elisabeth Scholl em setembro de 1968. Idem, ibidem, p. 187. 77 Terminologia que queria dizer que ele era o líder do NSDAP de alguma região da Alemanha ou que ele era o comandante de algum Reichsgau, ou seja, alguma região. No caso, Giesler era o gauleiter da Gau München– Oberbayern (Munique-Bavária superior), uma divisão administrativa do Terceiro Reich. 76 162 universidade estivessem gastando horas de seus dias estudando, enquanto deveriam estar no front ajudando a sua pátria. Sua atenção voltou-se para as estudantes mulheres, que eram minoria na universidade pela série de exigências feitas a elas para conseguirem ingressar no ensino superior. É importante evidenciar também que, na ocasião do discurso de Giesler, a Gestapo já lhe havia entregue os quatro primeiros panfletos da Rosa Branca apreendidos no ano anterior, o deixando a par da existência de uma resistência secreta em Munique. O Gauleiter só não sabia que eram pessoas daquela universidade. Com relação à questão universitária, é válido ressaltar que o ensino superior alemão foi profundamente abalado nos anos do Terceiro Reich e sofreu ainda mais com o desenrolar da guerra. A partir de 1939, o curso de Medicina foi encurtado, devido à necessidade cada vez maior de médicos para as Forças Armadas. Havia, em larga medida, um desprezo por parte da liderança nazista pelos intelectuais, professores e estudantes universitários. Em Minha Luta (Mein Kampf), Hitler já havia deixado isso claro, culpando em grande parte a intelectualidade pela derrota em 1918. O Führer proferiu um discurso, em novembro de 1938, furioso e direcionado contra os professores universitários, em que declarou: “quando dou uma olhada nas classes intelectuais que temos... infelizmente elas são necessárias, suponho; do contrário um dia se poderia, não sei, exterminá-las ou coisa assim”.78 Sendo assim, foram tomadas várias medidas para tornar mais difícil a entrada dos jovens nas universidades, particularmente as mulheres. A partir de 1937 havia a obrigatoriedade do serviço compulsório pré-universitário, uma medida de esforços de guerra, que poderia durar dois anos após o término do ensino secundário. Caso conseguissem entrar nas universidades, os estudantes tinham de passar várias semanas por ano, durante as férias, trabalhando de graça em uma fábrica ou fazenda – que foi o caso do longo e tortuoso caminho de Sophie para entrar na universidade de Munique, como vimos. Para as mulheres era especialmente difícil, visto que Hitler acreditava que o principal propósito da educação feminina era educá-las para serem mães. Já em janeiro de 1934, com base na Lei contra a Superlotação das Instituições e Escolas Alemãs de Ensino Superior (de 1933), foi determinado que “a proporção de moças formadas no ginásio e liberadas para seguir para a universidade não poderia ser maior que 10% dos rapazes”, o que fez com que em 1936 o número de mulheres nas universidades fosse cortado para mais da metade. Além disso, a partir de 1937 houve uma reorganização das escolas secundárias para mulheres, com a abolição do ginásio, de modo que as meninas foram proibidas de aprender 78 HITLER (1938) apud EVANS. O Terceiro Reich no poder. 2ª edição, São Paulo: Planeta, 2014, p. 346. 163 latim, um requisito para o ingresso na universidade. A educação doméstica passou a ser o único caminho possível, já que, mesmo nas escolas secundárias baseadas no ensino de letras, a ciência doméstica era obrigatória. No ano seguinte, em 1938, as mulheres que ainda conseguiam terminar o ensino secundário e obter aprovação para ingressar na universidade –apesar de todas essas exigências e obstáculos - ainda eram obrigadas a cumprir um “ano doméstico” e somente depois desse ano é que poderiam ter permissão para o estudo universitário, isso se a cota não tivesse sido excedida. Em 1939 havia apenas 6 mil mulheres no ensino superior na Alemanha, bem inferior aos 17 mil dos anos 1932-33.79 Portanto, o discurso de Giesler em Munique em 194380 era condizente com o pensamento de muitos membros do Partido Nazista. Ele afirmou que as universidades serviam à sociedade nacional-socialista e que os jovens deveriam se ater a “vida real” e não a “falsas mentes inteligentes”. A vida real, segundo ele, era transmitida a todos apenas por Hitler, que provia ensinamentos verdadeiros. Logo, ele começou a enaltecer os alunos que também eram soldados, que serviram no front recentemente ou que ainda iriam servir (como era o caso dos médicos-soldados, como Hans, Willi, Alex e Christoph) e também aqueles que cumpriam corretamente os trabalhos de esforço de guerra nas férias. A provocação começou logo em seguida, ao proferir uma crítica às pessoas que não tinham talento ou inteligência e que estavam na universidade ocupando o lugar dos que realmente mereciam. Então, teve início o verdadeiro ataque, destinado às mulheres. De acordo com Giesler, as mulheres ali presentes deveriam estar cumprindo seus deveres como mães, ao invés de estar estudando. Afirmou que o lugar natural para uma mulher não era na universidade, e sim, com a sua família, ao lado do seu marido; que “não há motivo para que cada uma dessas mulheres não faça uma contribuição anual com a sua pátria, dando ao Führer uma criança, preferencialmente um filho. Que todas as estudantes mulheres tenham filhos”.81 Nesse momento, já havia uma movimentação entre as mulheres presentes no auditório, mas, o pior ainda estava por vir. Giesler terminou dizendo que: “se algumas de vocês, mulheres, não 79 EVANS. O Terceiro Reich no poder, pp. 345-347. Esse episódio é narrado em diversas fontes, conferir em: DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose, pp. 130-133; GILES, Geoffrey J. Students and National Socialism in Germany. Princeton University Press, 1985, p. 293; HANSER. A Noble Treason, pp. 201-203; VINKE. The Short Life of Sophie Scholl, p. 144; BECK, Earl R. Under the bombs: The German home front 1942-1945. The University Press of Kentucky, 1986, pp. 2829. 81 “The natural place for a woman is not at the university, but with her family, at the side of her husband”; “As for the girls, there is no reason why each of them should not make an annual contribution to the Fatherland of a child, preferably a son. Let all girl students with heathy bodies bear children.” Tradução minha, In: DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose, p. 131; HANSER. A Noble Treason, p. 202. 80 164 tiverem charme o suficiente para encontrar um homem, eu terei o maior prazer em lhes apresentar um dos meus assistentes, os quais eu posso garantir a boa ancestralidade da raça. Eu posso prometer a vocês [mulheres] que essa será uma ótima experiência”.82 Nesse momento, o caos adentrou o auditório, com tumulto e gritos de indignação. Mulheres começaram a sair do recinto e foram contidas indiscriminadamente pelos guardas da SS presentes, o que levou os estudantes homens a entrarem em brigas de socos com os guardas para libertar as colegas. Quando as mulheres foram soltas, os estudantes saíram em massa do auditório e foram para as ruas de Munique, gritando em protesto. Formaram grupos menores e, de braços dados, começaram a cantar: “libertem nossos camaradas! Devolvam nossos camaradas!”83, uma referência clara aos soldados presos e mortos em Stalingrado.84 Estudantes, homens e mulheres, seguiram pela Ludwigstrasse de braços dados gritando, cantando, em um protesto aberto em plena luz do dia, justamente em Munique, “a capital do movimento nazista”. Tal protesto não pôde continuar por muito tempo e logo os estudantes tiveram que se dispersar para não serem presos pela SS. Alguns foram de fato presos e a ordem foi rapidamente restaurada pela polícia armada. O próprio Himmler declarou imediatamente estado de emergência em Munique, suspendendo os serviços de telefone e de rádio, e deu início a uma busca insana pelo incitador do protesto no auditório. Nada foi dito na imprensa sobre o evento mas a notícia se espalhou pelas cidades vizinhas.85 Várias coisas são impressionantes nesse episódio, o que o torna imprescindível de ser destacado neste trabalho. Primeiramente, trata-se de um protesto absolutamente espontâneo (parecido, de certa forma, com o que Hannah Arendt chama da espontaneidade da revolta de Rosa Luxemburgo),86 sem nenhum instigador ou incitador como Himmler acreditava. Ele não aconteceu porque uma pessoa ou um grupo iniciou o tumulto por uma agenda política específica. A indignação surgiu em conjunto e em resposta direta ao discurso sexista de Giesler. “If some of you girls lack sufficient charm to find a mate, I will be glad to assign you one of my adjutants for whose ancestry I can vouch. I can promise you a thoroughly experience”. Tradução minha. In: DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose, p. 132; HANSER. A Noble Treason, p. 202. 83 HANSER. A Noble Treason, p. 203. 84 Como foi dito, esse protesto se deu em 13 de janeiro, quando a Alemanha estava sendo massacrada em Stalingrado, mas ainda não havia se rendido. 85 HANSER. A Noble Treason, p. 203. 86 A revolução espontânea de Rosa Luxemburgo é tratada no ensaio que Arendt faz sobre essa revolucionária. Para ela, Rosa foi um exemplo de como agir em assuntos políticos. A revolução que Rosa participou levou a criação, pela primeira vez na Alemanha, de um conselho operário que organizou comissões para definição de greves e demandas que deveriam ser encaminhadas ao governo em Berlim. Segundo Arendt, as revoluções não são “feitas”, mas irrompem “espontaneamente” quando os seres humanos se unem em prol da liberdade e em busca da criação de algo novo. In: ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 41-66. 82 165 Ninguém sabia que o discurso seria dirigido para as mulheres daquela forma, o que reitera seu caráter espontâneo. O Gauleiter escolheu um péssimo lugar para declarar que as mulheres só deveriam ser mães, afinal, como foi apresentado, as mulheres tinham que passar por um esforço redobrado para conseguir ingressar na universidade e as que conseguiam, obviamente não iriam aceitar qualquer discurso discriminatório. Os estudantes homens também se indignaram, o que é igualmente impressionante. Ademais, o protesto motivou a Rosa Branca a continuar com a ação panfletária, pois, perceberam que a indignação com o Partido Nazista estava presente na universidade e estava crescendo. O público que eles estavam tentando atingir, após esse episódio, se mostrou um público que possivelmente concordaria com suas ações. E, ainda, além de ter sido espontâneo, foi um protesto feito nas ruas, na luz do dia e, novamente, em Munique. Tudo isso é extremamente representativo. Os estudantes não estavam dispostos a aceitar qualquer coisa que o Partido tentasse lhes dizer, não estavam dispostos a abrir mão da sua escolha de estudar e as mulheres certamente não estavam dispostas a sair da universidade, esse lugar tão difícil de ser conquistado, para “dar ao Führer um filho”. O ar de resistência poderia ser percebido entre os círculos estudantis, e certamente foi percebido pelos nazistas, afinal, a reação imediata foi a repressão e o decreto de estado de emergência. Era precisamente com isso que Hans Scholl estava contando nessa nova fase da Rosa Branca. O protesto nas ruas de Munique por conta do discurso do nazista Giesler é certamente um dos eventos mais incríveis e surpreendentes de toda a história da Rosa Branca. E, segundo as fontes, foi justamente esse episódio que inspirou os estudantes a produzir o sexto e último panfleto e a tomarem ações mais ousadas. Para dar início a análise desse panfleto, é importante enfatizar que sua chamada se destina aos “colegas universitários”, sendo, portanto, dirigido nomeadamente ao público estudantil – ao contrário de todos os outros panfletos até então, inclusive o anterior a esse, que se iniciava com “apelo a todos os alemães”. Kurt Huber e os outros membros do grupo estavam pensando em um nicho específico para tais escritos: os estudantes da universidade de Munique. De acordo com o depoimento do livreiro Joseph Söhngen, amigo de Hans desde 1940: Na terça-feira, 16 de fevereiro de 1943, Hans Scholl veio até a livraria de novo, bastante agitado, e me deixou ler o panfleto que acabara de ficar pronto. Eu achei necessário fazer algumas objeções ao texto, mas ele me disse que agora não queria e não podia mudar mais nada. Ele tinha a intenção de distribuir aqueles panfletos na universidade nos próximos dias, mas ainda não sabia ao certo como, e eu supliquei que jamais o fizesse da maneira como estava imaginando: deixar pilhas de panfletos em frente à porta de cada instituto, nas 166 escadarias ou no guarda-volumes, pois, com isso, o risco de ser visto seria imenso.87 O panfleto foi escrito e distribuído após a rendição em Stalingrado, que é a primeira questão levantada: “nosso povo está estarrecido diante da queda dos homens de Stalingrado. A genial estratégia daquele que foi cabo na Primeira Guerra Mundial lançou, inútil e irresponsavelmente, 330 mil homens alemães à morte e à perdição. Führer, nosso muito obrigado!”.88 Já é possível perceber por essa abertura que se trata de um folheto com tons de ironia não contidos nos anteriores. É uma escolha ousada referir-se a Hitler como apenas um “cabo na Primeira Guerra”, sugerindo que sua falta de experiência em assuntos militares fez com que ele tomasse decisões estúpidas e precipitadas, que causaram a morte de milhares de alemães. Para a Rosa Branca, a culpa de Stalingrado e de todas as mortes era de Hitler. O panfleto segue com essa estratégia, questionando se o povo alemão continuaria a deixar os seus exércitos na mão de “um diletante”, isto é, um amador, apenas um entusiasta, que não tinha experiência para continuar sendo o tomador de decisões no âmbito estratégico da guerra. Os membros do Partido Nazista são definidos como “uma corja partidária” com “os mais baixos instintos” e que sacrificaram quase toda a juventude alemã. O impresso segue dizendo que aquele era o momento do acerto de contas da juventude alemã com “a tirania mais execrável que nosso povo já suportou”. Ou seja, quem estava demandando por mudanças era a juventude alemã, era ela que falava em nome de todo o povo alemão exigindo “que o Estado de Adolf Hitler nos devolva a liberdade pessoal, o bem mais precioso dos alemães, que ele nos roubou de maneira mais deplorável”.89 Então, o panfleto segue para uma linha argumentativa mais direta: a situação lamentável do ensino alemão durante os (até então) dez anos do governo nazista. Crescemos em um Estado em que toda a livre expressão da opinião foi amordaçada sem escrúpulos. A Juventude Hitlerista, a SA e a SS tentaram nos uniformizar, nos remodelar e nos anestesiar nos anos de formação mais fecundos de nossas vidas. O desprezível método de sufocar, em um nevoeiro de frases vazias, a incipiente capacidade individual de pensar e julgar chamava-se ‘formação da visão de mundo’. Através de uma seleção idealizada pelo Führer, a qual não poderia ser pensada de forma mais demoníaca e ao mesmo tempo obstinada, são treinados os futuros figurões do partido em quartéis de elite para serem exploradores e jovens assassinos – ímpios, descarados e inescrupulosos -, para serem cegos discípulos do Führer. Nós, 87 Depoimento de Joseph Söhngen em 1945. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 145. Sexto panfleto. Idem, ibidem, p. 109. 89 Idem, ibidem, p. 109. 88 167 operários do intelecto, seríamos as pessoas certas para entravar o caminho dessa nova camada de homens superiores.90 Aqui é possível perceber o que foi dito anteriormente, sobre a Rosa Branca ser um grupo que passou os seus anos de formação dentro do governo nazista. Sabemos que o panfleto foi escrito por Kurt Huber, mas que algumas modificações foram feitas por Hans e Alex antes de sua publicação. A Juventude Hitlerista é citada nesse fragmento, da qual Hans fez parte, assim como Alex e Willi. Ao se definirem como “operários do intelecto” e usarem o pronome “nós”, mais uma vez reforçam o público alvo do impresso, a saber, os jovens estudantes universitários – e, ao mesmo tempo, ainda se definem como intelectuais. É mencionado o episódio do discurso de Giesler e o protesto estudantil decorrente dele: “num evento da Universidade de Munique, as estudantes alemãs responderam à altura aos que tentar macular sua honra; os estudantes alemães defenderam suas colegas e não cederam”. O panfleto segue declarando que esse foi apenas o começo das ações de resistência, um sinal claro da “efervescência do povo alemão” mencionada no começo: “esse é o início da luta por nossa livre autodeterminação, sem a qual valores morais não podem ser criados. Nosso agradecimento a coragem das nossas colegas e à firmeza dos estudantes, a todos os que deram um brilhante exemplo!”.91 É curioso pensar que Kurt Huber escreveu esse panfleto praticamente na íntegra, uma vez que é relatado que ele havia se desentendido com Traute Lafrenz por não considerar que mulheres deveriam se interessar por questões políticas. Grande parte da literatura sobre a Rosa Branca reafirma tal comportamento de Huber, além dos registros de suas entrevistas para a Gestapo, nas quais ele ressalta sua concordância com grande parte das posturas nazistas e também assegura que nenhuma das mulheres da Rosa Branca havia discutido sobre política em sua presença, sendo apenas “ouvintes”. O professor é descrito como um homem que acreditava que as mulheres deveriam aceitar seu papel “natural”, a saber, o de cuidar dos filhos e dar conforto para os homens que estavam lutando pelo mundo. As mulheres valiam para servir café enquanto os homens conversavam sobre os problemas sérios e reais da humanidade.92 Assim sendo, Huber basicamente reafirmava o que Giesler havia proferido em seu discurso na 90 Sexto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 109-110, grifos meus. Idem, ibidem, p. 110. 92 “Kurt Huber was a man who did not find independent, sophisticated, and intellectual women sympathetic. He was comfortable with women who accepted the role that ‘nature’ had given them: the comforter, the nurturer, the provider of sanctuary for the struggling man in a hostile world. As he saw it, women were there to pour coffee for the men as they talked over the serious issues of the world; women were not there for intellectual companionship or friendship, but for spiritual succor” Tradução minha. In: DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose, p. 131; HANSER. A Noble Treason, p. 93. 91 168 universidade de Munique, tornando esse panfleto difícil de ser totalmente compreendido. De fato, em seu depoimento para a Gestapo, o professor afirma que o problema do discurso de Giesler não foi tanto o ataque às mulheres, que poderia ser visto como “um mero erro de julgamento”, e sim, o ataque ao corpo estudantil como um todo.93 É por esse tipo de questão que reitero ao longo de toda a dissertação que a Rosa Branca era um grupo complexo e com posturas ideológicas bastante heterogêneas. Mesmo com Sophie e Traute, duas presenças femininas fortes dentro do grupo que participavam muito ativamente, inclusive mobilizando a resistência em outras localidades, Huber ainda parecia acreditar que política era uma discussão exclusivamente masculina. Surge um lema no sexto panfleto: a luta contra o Partido. Isso significaria: Abandonar as estruturas do partido que querem nos manter amordaçados politicamente! Sair dos auditórios dos sargentos coronéis da SS e dos capachos do partido! Queremos a ciência verdadeira e a autêntica liberdade de espírito! Nenhuma ameaça conseguirá nos intimidar: nem mesmo o fechamento de nossas universidades! Trata-se da luta de cada um de nós pelo nosso futuro, nossa liberdade e honra em um Estado consciente de sua responsabilidade moral.94 O trecho traz novamente uma referência ao que havia sido proposto nos panfletos da primeira fase da Rosa Branca, a sabotagem: não frequentar reuniões, palestras, eventos e nada oferecido pelo NSDAP. Afirma, ainda, que o fechamento das universidades não intimidaria os estudantes, os “operários do intelecto”, uma vez que o sucateamento da educação alemã não seria suficiente para cessar a sede de conhecimento da verdadeira ciência. A “luta de cada um de nós pelo nosso futuro” aliada a “um Estado consciente de sua responsabilidade moral” suscita algumas questões. Como vimos nos capítulos anteriores, a Rosa Branca em muitos momentos luta em torno de um imperativo moral e de uma ética individual. Isso significa que acreditavam não só que cada indivíduo tinha responsabilidade para com os atos de seu país, como também que cada indivíduo tinha um dever moral de impedir o mal onde ele aparecesse e o mal aparecia no governo de Hitler. O “imperativo categórico do Terceiro Reich” era uma distorção do imperativo categórico de Kant, que propunha “aja de tal maneira que sua ação possa ser considerada um princípio universal”. Durante o Terceiro Reich, de acordo com Hans Frank, o imperativo se tornara: “aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude, aprove”.95 Ou ainda, de acordo 93 Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack, posição 621. Sexto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 110. 95 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 153. 94 169 com Hannah Arendt, o nazismo inverteu todos os sistemas de valores e de julgamento preexistentes, de modo que os dois mais importantes dos Dez Mandamentos, dos quais os indivíduos se moralmente obrigados (“Não matarás” e “Não prestarás falso testemunho”) foram desafiados por Hitler. Assim, a ordem do dia se inverteu e se tornou “Matarás”:96 matarás não só o seu inimigo mas também pessoas inocentes, tudo isso porque “a palavra do Führer tinha força de lei”. Dessa maneira, em muitos momentos – como foi no nazismo -, manter uma postura moral significava resistência. Bauman nos lembra que cabe ao indivíduo manter a sua responsabilidade moral de resistir à socialização,97 visto que o dever moral recai sob o indivíduo e sua responsabilidade essencial, incondicional e inerente pelo Outro. Portanto, a resistência da Rosa Branca pode ser entendida especialmente no quesito da responsabilidade essencial de manter a moral em meio ao colapso de julgamento da sociedade. Apesar de atos imorais serem validados e considerados normais pela comunidade, os resistentes sentem-se no dever de resistir a essa pressão social e manterem-se fiéis a suas convicções morais, que se baseiam na responsabilidade para com o Outro, o país, os ideais. A ideia do imperativo moral, já trabalhada nos capítulos anteriores, surge atrelada principalmente aos valores cristãos que os jovens possuíam e, podemos fazer uma analogia com Hannah Arendt e pensar que as leis dos Dez Mandamentos não haviam se modificado em suas consciências. Liberdade e honra! Por dez longos anos, Hitler e seus comparsas distorceram, banalizaram e perverteram até a náusea essas duas sublimes palavras, como só diletantes são capazes de fazer, lançando aos porcos os valores supremos de uma nação. Eles já mostraram suficientemente o que significa liberdade e honra para eles, nesses dez anos de aniquilamento de toda liberdade de pensamento e de ação, de toda a essência do povo alemão. Até o alemão mais burro teve seus olhos abertos pela terrível carnificina que eles, em nome da honra e da liberdade da nação alemã, realizaram e continuam realizando diariamente em toda a Europa. A reputação alemã ficará para sempre maculada se a juventude alemã não se elevar, não se vingar, não se redimir, não esmagar seus algozes para construir uma nova Europa espiritual, de uma vez por todas.98 O fragmento acima é especialmente interessante porque novamente o futuro da Alemanha é colocado nas mãos da resistência da juventude. Além disso, afirma-se que “até o alemão mais burro teve seus olhos abertos pela terrível carnificina que eles, em nome da honra e da liberdade da nação alemã, realizaram e continuam realizando diariamente em toda a Europa”. Esta, mais uma vez, é a expressão do profundo desapontamento com a derrota de 96 Idem. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 165, 220. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 98 Sexto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 110-11. 97 170 Stalingrado e com o futuro da guerra, que cada vez mais parecia ser uma guerra perdida para a Alemanha e que aniquilaria os próprios alemães. Como os membros da Rosa Branca se enxergam como “funcionários do intelecto” ao dizerem que até “o alemão mais burro” percebeu a catástrofe do governo, é possível inferir que os ânimos estavam ruins não só no front de batalha, mas também no front doméstico, como Richard Evans havia levantado. E que, naquele momento, a propaganda nazista não estava surtindo o efeito desejado para trazer esperança para a população, pelo contrário: não só os cultos e letrados percebiam as derrotas, mas também os cidadãos comuns. A juventude é vista, então, como uma saída possível da terrível situação em que se encontrava a Alemanha em fevereiro de 1943. Os jovens deveriam limpar a reputação da Alemanha, que já estava manchada em todo o mundo por conta das posturas dos nazistas durante a guerra. Seu trabalho deveria ser não só de limpar a reputação, como se elevar, se vingar, se redimir e esmagar seus algozes para poder então, construir uma nova Europa espiritual. Se vingar dos algozes, ou seja, se vingar dos carrascos, das pessoas cruéis, sendo identificadas por eles como os nazistas: esse era um dos caminhos para a construção de uma nova Europa unificada. Isso certamente está em acordo com o que foi discutido na reunião com Falk Harnack, na qual, segundo ele, todos concordaram que “seria necessário perseguir e punir com severidade todos os ativistas nazistas”.99 Ainda é válido lembrar que Inge Scholl comenta que a resistência por meio dos panfletos foi pensada para evitar a perda de vidas humanas, visto que uma resistência mais ativa (como “jogar bombas”) mataria pessoas inocentes. No entanto, ela recorda que Sophie e Hans tinham tendências a apoiar o assassinato do tirano, e que ela sabia que seu irmão passou muitos dias em uma biblioteca em Munique estudando e aprendendo mais sobre esse assunto, a saber, o tiranicídio.100 Baseado no que se conhece sobre educação dos jovens Scholl, é possível supor que Hans buscou referências sobre o assunto nas obras antigas e gregas, como em Cícero, Platão e também Tomás de Aquino, todos mencionados nos panfletos iniciais da Rosa Branca. Se os irmãos Scholl apoiavam o tiranicídio, isto é, o assassinato do tirano em nome de um bem comum por indivíduos sujeitos ao poder desse tirano, é possível que estivessem dispostos a ir ainda além na segunda fase da resistência, e, se tivessem 99 Testemunho de Dr. Falk Harnack. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 169. “They could have chosen to throw bombs, but that would have been at the cost of human lives. It’s true that both Sophie and Hans would have endorsed tyrannicide – Hans, as we know, had entrenched himself for days in a Munich convent library to study the subject” Tradução minha. In: VINKE. The Short Life of Sophie Scholl, p. 108. 100 171 sobrevivido, apoiar as tentativas de assassinato de Hitler. Isso é perceptível até mesmo se avaliarmos a arma encontrada nos pertences de Hans Scholl, que lança uma grande interrogação sobre o seu desejo de utilizá-la caso fosse pego nas ações de pichação. O panfleto termina com mais um apelo aos universitários e algumas referências a história alemã: Universitárias! Universitários! O povo alemão olha para nós! Hoje, ele espera de nós o fim do terror nacional-socialista pelo poder do espírito, assim como esperou em 1813 o fim do terror napoleônico. Beresina e Stalingrado estão em chamas no Leste, os mortos de Stalingrado nos invocam! ‘Levanta, meu povo, já ardem as chamas! ’ Nosso povo está em levante contra a escravização da Europa imposta pelo Nacional-Socialismo, na confiança renovada de que a honra e a liberdade triunfarão!101 A referência a 1813 se deve a Batalha das Nações,102 ou a Batalha de Leipzig, ocorrida na cidade alemã de Leipzig. A batalha se deu entre o exército francês do imperador Napoleão Bonaparte e os exércitos aliados da Prússia, Rússia, Áustria e Suécia, culminando com a derrota de Napoleão, sua retirada para a França e seu posterior exílio na ilha de Elba. Ao fim da Batalha das Nações, a hegemonia de Napoleão na Europa foi destruída, ao custo da morte de milhares de soldados de ambos os lados. Nesse sentido, segundo o panfleto, o povo alemão em 1943 esperava dos universitários e dos jovens que eles acabassem com a hegemonia nacionalsocialista, assim como o povo em 1813 esperou que os soldados colocassem um fim “no terror napoleônico”. A menção seguinte ainda é em relação às guerras napoleônicas. A Batalha de Beresina ocorreu em 1812, entre o exército francês de Napoleão e o exército russo. A campanha de invasão da Rússia naquele ano representou uma mudança completa nas formas como as guerras se desencadeavam e culminou com milhares de perdas de todos os lados, além do enfraquecimento da visão de Napoleão como um gênio militar. O inverno russo atacou os franceses de forma devastadora, e, quando o exército francês atravessou o rio para Beresina, já havia perdido grande parte dos seus homens. Beresina foi considerada um verdadeiro desastre, e no fim de 1812 as últimas tropas francesas deixavam a Rússia, colocando um fim na campanha. 101 Sexto panfleto. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 111. Sobre a Batalha das nações, ver: http://www.dw.com/pt-br/1813-pr%C3%BAssia-declarava-guerra-anapole%C3%A3o/a-306365 e http://www.dw.com/pt-br/1813-napole%C3%A3o-perdia-a-batalha-dasna%C3%A7%C3%B5es-em-leipzig/a-313821. Consultado em 01/08/17. 102 172 O imaginário da figura de Napoleão e das guerras desse período ainda estava muito vivo na mente popular no século XX. Uma guerra em duas frentes causava derrotas em ambos os lados e nem Napoleão, o grande líder militar, havia sido capaz de vencer os exércitos russos, tampouco vencer o inverno russo. Segundo Richard Evans, Hitler mantinha uma postura ofensiva por medo de ter o mesmo futuro que o imperador: “a retirada de Napoleão foi o começo do fim para o imperador. A mesma coisa não iria acontecer com ele”. 103 Inclusive, um dos panfletos distribuídos pela Orquestra Vermelha, o grupo do irmão de Falk Arnack, dizia justamente que Hitler iria sofrer os mesmos contratempos na Rússia que Napoleão, ou seja, que Hitler estava insistindo em algo que já havia se provado infrutífero anteriormente na história.104 Dessa forma, pensando na construção desse imaginário, é possível compreender que após a derrota em Stalingrado, os receios da população alemã haviam se mostrado reais e verdadeiros: era impossível vencer a Rússia e Hitler deveria tentar poupar o máximo possível de vidas alemãs terminando logo a guerra – precisamente o que ele se recusava a fazer. O panfleto ainda faz uma relação direta entre Beresina e Stalingrado, onde o número de mortes foi altíssimo: Hitler estava, portanto, seguindo os passos de Napoleão e cometendo os mesmos erros. O impresso termina afirmando que o povo estava em levante contra o NacionalSocialismo e que a verdadeira honra e liberdade do povo alemão triunfariam na nova Europa, na qual haveria cooperação entre os povos. Esse panfleto, que contou com uma tiragem de mais de 3 mil exemplares,105 foi colocado no hall da universidade de Munique, nas portas das salas, jogado do segundo andar e espalhado pelo chão. Sophie e Hans Scholl foram presos pela Gestapo no mesmo dia de sua distribuição na universidade, quando foram vistos pelo zelador, que imediatamente acionou as autoridades. Se seguiu, então, a prisão de todos os membros: Christoph Probst, Willi Graf, Alexander Schmorell e Kurt Huber. “Todos os alemães serão sacrificados ao mensageiro do ódio e do desejo de extermínio”106 O sétimo panfleto da Rosa Branca é apenas um rascunho escrito por Christoph Probst e que nunca chegou a ser revisado, produzido ou distribuído. Quando Hans e Sophie foram presos 103 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 249. Idem, ibidem, p. 719. 105 A tiragem total pode ter chegado a mais de 5 mil, levando em conta sua distribuição em outras cidades e em algumas casas em Munique. Abordarei essa questão com mais detalhes no próximo capítulo. 106 Rascunho do sétimo panfleto da Rosa Branca. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 234. 104 173 pela Gestapo em 18 de fevereiro de 1943, Hans tinha uma cópia desse panfleto em seu bolso, que ele conseguiu desfazer em vários pedaços. Ao ser questionado pela Gestapo sobre o conteúdo e origem dos pedaços de papel, o jovem afirmou que havia sido entregue a ele por um estudante que ele não conhecia, novamente uma tentativa de proteger Probst das consequências das ações da Rosa Branca. No entanto, ao revistar o apartamento de Hans Scholl, a Gestapo encontrou uma carta escrita por Probst, com a mesma letra que a do rascunho do panfleto. O jovem foi preso logo em seguida, o panfleto foi reconstituído e quando interrogado, Probst teve que preencher as lacunas do que não havia sido completamente recuperado. Essa transcrição da Gestapo juntamente com os adendos de Christoph Probst foram encontrados na Alemanha Oriental após a queda do Muro de Berlim.107 Devido ao conteúdo do folheto, é possível determinar que ele foi redigido após a transmissão de rádio do presidente dos Estados Unidos Franklin D. Roosevelt, na qual foi exigido da Alemanha a rendição incondicional. Tal transmissão foi feita em 12 de fevereiro de 1943 (ou seja, dez dias após o fim da batalha de Stalingrado) e após a Conferência de Casablanca, que se deu entre 14 e 24 de janeiro de 1943, na cidade de Casablanca, no Marrocos. A conferência foi realizada com o intuito de planejar os próximos passos dos Aliados108 na Segunda Guerra Mundial, posto que em fins de 1942, Churchill e Roosevelt já haviam concordado que uma das metas da guerra aliada seria a punição de países que perseguiram judeus durante a guerra. Além do presidente Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Churchill, também estava presente o general Charles de Gaulle, representando a França. Stalin não compareceu pela necessidade de sua presença na URSS devido ao desenrolar da batalha de Stalingrado. Foi na Conferência de Casablanca que foi decidido o início dos bombardeios estratégicos por parte dos Aliados. A campanha de bombardeios, chamada de nova Ofensiva de Bombardeio Conjunto, tinha como objetivo, segundo o Comando Supremo em suas ordens para o exército britânico e estadunidense em 21 de janeiro de 1943: “efetuar a destruição progressiva e o deslocamento do sistema militar, industrial e econômico alemão, e a quebra da moral do povo alemão até o ponto em que sua capacidade de resistir por meio de armas seja fatalmente enfraquecida”.109 107 DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose, p. 204. O Exército Aliado era composto inicialmente pela França e pelo Reino Unido. A partir de 1941, após o ataque de Pearl Harbor, os Estados Unidos também entraram na aliança. Em junho do mesmo ano a União Soviética entra no Exército Aliado, desempenhando um papel fundamental para a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial. O Exército do Eixo era composto principalmente pela Alemanha, Itália e Japão. 109 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, pp. 450, 503-4, 531. 108 174 Os bombardeios tiveram início na região do Ruhr e seguiram-se pelas províncias que eram importantes para a mineração e indústria alemãs, como Colônia, Düsseldorf, Dortmund e Bochum. Um dos amigos mais próximos dos Scholl, Carl Muth, foi diretamente afetado por bombardeios que já estavam acontecendo desde os fins de 1942. Sophie teve de cancelar uma viagem para poder ajudar Muth a consertar sua casa que havia sido parcialmente destruída em outubro daquele ano por bombardeios aéreos em Munique. A transmissão de Roosevelt e a Conferência são citadas no próprio panfleto: “em [24 de janeiro]110 de 1943, Roosevelt, o homem mais poderoso do mundo, disse em Casablanca: ‘nossa luta de extermínio não se volta contra os povos, mas sim contra os sistemas políticos. Lutaremos até a capitulação incondicional!’”.111 Nesse discurso, Roosevelt explica o que seria essa capitulação incondicional (unconditional surrender): “nós [Aliados] não queremos causar nenhum mal às pessoas comuns das nações do Eixo. Mas nós iremos sim impor punições e retaliações sob os seus líderes, que são culpados e bárbaros”112. Fica claro que a única condição possível seria a rendição incondicional da Alemanha, não havendo garantias para o país, tampouco para seus líderes. Não haveria negociação.113 Pensando que a intenção do rascunho do panfleto era obviamente a sua distribuição, é possível perceber que o discurso era inteiramente voltado para a derrota alemã na guerra, atribuindo a Hitler a culpa pela ruína do país. Tal postura era condizente com todos os acontecimentos da época, como dito, os bombardeios, a campanha falida na África e Stalingrado. Richard Evans explica que os cidadãos, profundamente afetados pelos bombardeios, começaram a desejar o fim da guerra e se questionar por quê Hitler permitia que os soldados marchassem para a morte e por quê ele permitia que a Alemanha fosse destruída, deixada em ruínas. O que não se pode negar, entretanto, é que os bombardeios tiveram um efeito enorme no estado de espírito dos civis. [...] Depois da guerra, quando lhes 110 O livro com tradução brasileira coloca a data como 26 de fevereiro. Essa data certamente está incorreta, primeiro porque a transmissão aconteceu no dia 12 de fevereiro e a Conferência de Casablanca, entre os dias 14 e 24 de janeiro. Além disso, no dia 26 de fevereiro, Probst já havia sido preso e executado, e o rascunho foi apreendido entre os dias 18 e 19 de fevereiro. No livro de Dumbach, a data consta como 24 de janeiro, último dia da Conferência, que é a data escolhida aqui. 111 Rascunho do sétimo panfleto da Rosa Branca. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 233-4. 112 “We mean no harm to the common people of the Axis nations. But we do mean to impose punishment and retribution upon their guilty, barbaric leaders” Tradução minha. Discurso de rádio de Roosevelt em 1943 disponível em: http://www.ibiblio.org/pha/policy/1943/430212a.html . Acesso em 01/08/17. 113 É questionado o amplo impacto da decisão de rendição incondicional em janeiro de 1943 para o futuro da guerra. Considera-se que a guerra se estendeu por mais tempo devido a esse posicionamento aliado e, que o desencadear da política de bombardeamento estratégico e posteriormente, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, tem relação direta com o que foi discutido na Conferência de Casablanca. 175 perguntaram qual tinha sido a coisa mais difícil que os civis tiveram de enfrentar na Alemanha, 91% das pessoas responderam que haviam sido os bombardeios; e mais de um terço disse que eles tinham afetado o estado de espírito das pessoas, incluindo o seu próprio. Eles [os bombardeios] foram mais vitais que as derrotas em Stalingrado e no norte da África para disseminar a desilusão popular em relação ao Partido Nazista.114 Goebbels e o Ministério da Propaganda se esforçaram para tentar colocar a população contra os Aliados e seus chefes políticos, responsáveis pelos bombardeios. Os judeus conspiradores estariam enganando Churchill e Roosevelt e controlando a artilharia britânica e estadunidense em sua luta pela destruição total da Alemanha.115 Entretanto, como vimos, os membros da Rosa Branca ouviam rádios internacionais, de modo que tinham acesso às informações sobre o que estava acontecendo na guerra e não só ao que a propaganda nazista proferia. O que Probst tentou fazer com esse panfleto, foi justamente alertar os alemães de que a propaganda não dizia toda a verdade e que eles deveriam se unir contra os verdadeiros destruidores da Alemanha: Hitler e o Partido Nazista. Hans Scholl, em seu depoimento para a Gestapo, afirma que Probst já havia expressado interesse em escrever um panfleto há vários meses, e que lhe apresentou esse rascunho pouco antes do sexto panfleto ser produzido. Escutar rádios estrangeiras era proibido, porém, desde o começo da Segunda Guerra, foi uma prática que aumentou consideravelmente. Apesar de ser um risco alto, uma vez que a partir de 1939, ouvir rádios estrangeiras passou a ser considerado um crime passível de pena de morte, cada vez mais alemães recorriam a esse recurso para saber o que estava acontecendo na guerra. A população ouvia os noticiários políticos nacionais com indiferença e sentia que não sabia o que ocorria com seus soldados enviados para o front. A falta de informações detalhadas sobre o decorrer das campanhas na África e no front oriental fez com que muitos alemães recorressem principalmente a BBC para informações confiáveis sobre os conflitos. Segundo Richard Evans, não era muito difícil conseguir ouvir rádios estrangeiras, mesmo levando em consideração o risco constante de ser denunciado por um vizinho ou até mesmo familiar: “a maior parte das pessoas que tinham um rádio recebia a emissão da BBC em língua alemã sem grandes dificuldades, e até mesmo os ‘receptores do povo’ às vezes conseguiam captá-la”.116 O panfleto inicia com uma exclamação: “Stalingrado! Duzentos mil irmãos alemães sacrificados pelo prestígio de um vigarista militar”.117 Trata-se de um impresso direto e curto 114 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, pp. 529-53. Idem, ibidem, p. 531. 116 Idem, ibidem, p. 662. 117 Rascunho do sétimo panfleto da Rosa Branca. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 233. 115 176 que possivelmente tenha sido destinado aos alemães que também estavam indignados com a derrota militar na Rússia. Probst questiona se os alemães permitirão que seu país sofra o mesmo destino de Trípoli, a capital da Líbia, controlada pela Itália até janeiro de 1943, quando foi tomada pelos britânicos até sua independência em 1951. O exército italiano, que havia durante muito tempo comandado todo o Mediterrâneo, não conseguiu conter o avanço inglês, principalmente após a inserção dos Estados Unidos na guerra e sua aliança com o governo britânico, na época comandado por Winston Churchill. Segundo Evans, a tentativa alemã de obter controle do norte da África e de seus campos petrolíferos falhou e, a partir de maio de 1943, se transformou em humilhação quando 250 mil soldados do Eixo, metade deles alemães, tiveram de se render ao exército dos Aliados.118 A referência a Trípoli é curiosa, tendo em vista que a derrota alemã no norte da África entre 1942-1943 foi vista como um grande baque para a moral alemã, que já estava profundamente abalada com o desenrolar da guerra. No entanto, apesar da derrota militar alemã, Probst descreve o exército inglês como benevolente com os libaneses, além de sugerir que a postura dos ingleses para com o país ocupado era melhor do que a postura do exército alemão na sua tentativa de ocupação. Isso pode ser percebido pela escolha dos termos usados “falsos chefões e sub-homens”, nomenclaturas já utilizadas em outros panfletos da Rosa Branca para descrever os membros do Partido Nazista. Assim sendo, mais uma vez é possível observar que o grupo não desejava realmente que o exército alemão obtivesse derrotas militares e a sequência destas só demonstrava que a guerra precisava terminar. Agora, o sangue de 200 mil soldados entregues à morte denuncia o assassino Hitler. Trípoli! Rendeu-se incondicionalmente ao 8º exército inglês. E o que fizeram os ingleses? Deixaram a vida dos cidadãos seguir seu curso habitual. Mantiveram até mesmo os policiais e funcionários públicos em seus postos. Eles só foram realmente minuciosos quando livraram a maior cidade de colonização italiana de todos os falsos chefões e sub-homens.119 Segue-se, por todo o panfleto, a referência a Trípoli, de maneira um tanto confusa: como um exemplo a ser seguido ou como um destino triste. Não foi possível determinar se Probst acreditava que a Alemanha deveria se render aos Aliados para que a guerra tivesse um fim de uma forma um pouco mais pacífica – ainda mais se levarmos em consideração a exigência da rendição incondicional. Independente disso, é um folheto que demonstra muita indignação com a postura da Alemanha em Stalingrado, sobretudo no que diz respeito a não capitulação frente ao Exército Vermelho, quando já estava mais do que claro que a batalha seria perdida. Como 118 119 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, pp. 534-536. Rascunho do sétimo panfleto da Rosa Branca. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 233, grifo meu. 177 foi dito anteriormente, Hitler foi irredutível e exigiu que seus soldados lutassem até o fim, o que fez com que a população questionasse por que ele não quis salvar seu próprio povo por meio de uma rendição. Em aviões, oficiais de alta patente salvaram-se da batalha de Stalingrado. Hitler proibiu os combatentes encurralados de recuarem em direção às tropas de retaguarda. [...] Paulus não capitulou e tampouco Hitler capitulará. Pois então não haveria para ele nenhuma saída. E vocês querem se deixar enganar como os 200 mil soldados que defenderam Stalingrado sem qualquer chance de vitória? Sendo massacrados, esterilizados ou tendo seus filhos roubados de vocês?120 Tal afirmação reitera a ideia de que o panfleto foi escrito para informar a população, visto que, apesar de ter se tornado comum a escuta de rádios estrangeiras, esta era uma prática proibida e perigosa. O número de mortos relatado e a postura de Hitler e do general Paulus não eram questões amplamente discutidas na Alemanha logo após Stalingrado, pois como vimos, Goebbels fez um esforço enorme de propaganda para apresentar os soldados como heróis e de evitar que essas informações fossem divulgadas. O questionamento do que estava sendo dito cotidianamente nos jornais parece ser uma questão muito importante para a Rosa Branca. Ao fim do panfleto, é feito um apelo por uma tomada de decisão rápida por parte dos alemães: Hoje, a Alemanha inteira está cercada, como esteve Stalingrado. Todos os alemães serão sacrificados ao mensageiro do ódio e do desejo de extermínio! A ele, que martirizou os judeus até a morte, que exterminou metade dos poloneses, que queria aniquilar a Rússia; a ele, que tirou de vocês a liberdade, a paz, a felicidade familiar, a esperança e a alegria, e que em troca deu-lhes dinheiro inflacionado. Isso não deve, isso não pode ser assim! Hitler e seu regime precisam cair para que a Alemanha continue a viver. Decidam-se: Stalingrado e a ruína ou Trípoli e o futuro repleto de esperança? E quando tiverem decidido, então ajam.121 O fragmento traz uma questão muito importante: Hitler é claramente referido como mensageiro do ódio e do desejo de extermínio. Logo em seguida, é feita a denúncia da morte dos judeus e o extermínio dos poloneses. Isso quer dizer que o grupo estava se informando cada vez mais sobre o que acontecia no front, principalmente na Polônia, graças aos relatos de Manfred Eickemeyer e as transmissões de rádio. Portanto, em fevereiro de 1943, a Rosa Branca estava deixando cada vez mais claro que seus integrantes sabiam do que estava acontecendo em outros locais em nome de Hitler. Desde a ocupação da Polônia, em 1939, as notícias sobre o tratamento do exército alemão em relação aos poloneses e judeus poloneses mostravam que o objetivo de Hitler era 120 121 Rascunho do sétimo panfleto da Rosa Branca. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 233. Idem, ibidem, p. 234, grifos meus. 178 tornar a Polônia o seu terreno de teste de teorias e práticas raciais. Com a instalação do Governo Geral, comandado por Hans Frank, deu-se início às práticas de confisco coletivo da propriedade polonesa, a exigência de trabalhadores poloneses para a economia do Reich, além do tratamento violento dispensado aos prisioneiros, que eram espancados constantemente e, finalmente, o extermínio em massa dos poloneses. Richard Evans ressalta que oficiais de alta patente do exército alemão (os quais possuíam um menor grau de influência das ideologias nazistas) criticaram com veemência as políticas de ocupação na Polônia: a expulsão ilegal de moradores, o confisco de bens dos poloneses, o autoenriquecimento ilícito devido ao furto, a apropriação indébita, a desobediência, o abuso de bebidas alcóolicas e os maus tratos e estupro de mulheres polonesas. Tais hábitos eram descritos como dignos de mercenários piratas.122 Além de tudo, os poloneses tiveram que lidar com a deportação, a criação de guetos, o confinamento em campos de concentração e, posteriormente, o extermínio. Essa questão é tão importante porque é condizente com tudo que vem sendo dito acerca dessa nova fase da Rosa Branca. O grupo estava se organizando para uma resistência nacional e bem mais ampla e ativa, o que queria dizer que de fato estavam adquirindo posições políticas mais concretas e determinantes. Esse é apenas o rascunho de um panfleto, que não chegou a ser distribuído, mas que ainda assim, estava no mesmo tom dos dois anteriores, referentes a nova fase da proposta de resistência. É possível supor que nem todos os membros concordariam com posturas mais à esquerda, por motivos diferentes. Kurt Huber é o exemplo mais óbvio, por ser totalmente contra qualquer movimento à esquerda. O núcleo talvez se restringiria a Hans Scholl, Alex Schmorell e Willi Graf. Sophie é um grande ponto de interrogação, pois não se sabe até que ponto seu irmão a deixaria participar das atividades por temer pela sua segurança. O mesmo vale para Probst, que nesse panfleto faz uma menção direta a sua indignação pelo desejo de aniquilação da Rússia por parte dos nazistas, mas que era constantemente “deixado de lado” das ações de resistência para sua própria proteção. Independente de todas essas questões, o ponto de inflexão é claro: após o retorno do front russo, em novembro de 1942, a Rosa Branca passa conscientemente para um ponto sem retorno. As ações são mais claras e ousadas e, provavelmente por esse motivo esses estudantes foram presos mais rapidamente. 122 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 46. 179 Nesse momento é importante deter-se às nuances das últimas ações da Rosa Branca, a prisão e execução de seus membros. Foi feito um apanhado de documentos diferentes para construir uma história que represente toda a complexidade de seus últimos passos. Para isso, consultei as transcrições dos interrogatórios da Gestapo de todos os membros (os irmãos Scholl, Graf, Probst, Huber, Falk Harnack, bem como outras pessoas relacionadas ao grupo, como Manfred Eickemeyer, Gisela Schertling, Traute Lafrenz, Eugen Grimminger), além das sentenças de morte, as apelações dos advogados, os testemunhos de vários personagens, as cartas, as conclusões dos especialistas contratados pela Gestapo para analisar os panfletos, e, ainda, a bibliografia de referência já citada e usada anteriormente. Esse será o tema do próximo capítulo. 180 Capítulo Quatro Não nos esquecer de lembrar “Do ponto de vista não mais de si, mas da humanidade (que cada um pode entender como quiser), uma vida não é vivida em vão, se dela resta um traço, um relato para somar-se às inúmeras histórias que fazem nossa identidade, contribuindo assim, ainda que em ínfima medida, para tornar esse mundo mais harmonioso e mais perfeito. Tal é o paradoxo dessa situação: os relatos sobre o mal podem produzir o bem” (Tzvetan Todorov. Em face ao Extremo) 181 “O que escrevemos e dissemos é o que, no fundo, muitas pessoas pensam, só que elas não tem coragem de dizer”1 Esse capítulo tem a proposta de contar os últimos momentos dos membros da Rosa Branca, bem como os detalhes de seus julgamentos, execuções e também a memória construída posteriormente sobre o grupo. Mas, ainda, pretende ser um capítulo que dá voz e coloca em destaque figuras que são negligenciadas na literatura sobre o tema. A Rosa Branca é vista com frequência como o grupo de resistência dos irmãos Scholl, ou, no máximo, como um grupo que girava em torno de Scholl-Schmorell-Graf-Probst-Huber. O que pretendo mostrar aqui é, justamente, a importância de um grupo razoavelmente amplo de pessoas que influenciaram essa resistência e, embora nem todos tenham participado ativamente da produção e distribuição de panfletos, a grande maioria serviu como apoio intelectual para o projeto de ação da Rosa Branca. Reuniões para discussão de textos literários ou filosóficos eram comuns entre o grupo de amigos, e geralmente aconteciam no ateliê de Manfred Eickemeyer, na vila do pai de Alex Schmorell, na casa do professor Huber, ou, até mesmo, no apartamento de Hans Scholl. Essas reuniões contavam, por vezes, com até 30 pessoas, e sabemos pelos testemunhos que não eram discutidas apenas questões intelectuais, mas também, a oposição ao regime nazista. Críticas eram feitas de forma direta ou indireta e, certamente, este tipo de reuniões de jovens estudantes fundamentaram as bases para o que viria a ser a ação panfletária da Rosa Branca. Também é imprescindível apontar a influência de pessoas mais velhas e que declaradamente se opunham ao regime na formação intelectual desses jovens. Esses personagens, como Eickemeyer, Haecker, Huber e Muth, serviram como mentores e abasteciam não só um debate profundo, como também, auxiliavam com sua experiência. Aqui ainda pretendo mencionar os indivíduos que foram presos no segundo e terceiro processos da Rosa Branca, que colaboraram financeiramente ou mais ativamente na compra de selos, envelopes, papel, e até mesmo, pessoas que sabiam das atividades ilegais, mas não denunciavam, já que só o fato de não denunciar o crime era muito perigoso. A maioria dos membros da Rosa Branca foi presa justamente por crime por associação e pela falha em denunciar as atividades às autoridades. Também aqui aparecem os jovens que circularam os 1 Comentário de Sophie Scholl à acusação do Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 76. 182 panfletos em outras cidades, com destaque ao círculo de Ulm e de Hamburgo, que fizeram com que a Rosa Branca parecesse, para a Gestapo, como um grupo muito mais organizado e articulado do que de fato era. O que quero dizer com tudo isso é que não podemos limitar a Rosa Branca a um grupo restrito de seis pessoas. As ideias circularam e foram debatidas, e, como vimos nos capítulos anteriores, Hannah Arendt lembra que o mundo é de homens no plural. O homem sozinho não é capaz de agir politicamente e de intervir no mundo comum, no espaço-entre. É de fundamental importância falar dos outros atores que ajudaram e colaboraram, direta ou indiretamente, de forma pequena ou de forma ativa, para que essa resistência fosse possível e para que eles fossem conhecidos futuramente como um dos principais exemplos de resistência moral alemã durante o nazismo. “Humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao falar disso”2 Neste capítulo, a maioria das fontes utilizadas consistem em testemunhos de sobreviventes das atividades da Rosa Branca dados após o fim da guerra. Aqui, encontramos testemunhas oculares, os advogados dos casos, amigos, familiares, um investigador da Gestapo e a própria Inge Scholl. Também utilizo os depoimentos dos prisioneiros dados a Gestapo durante os processos, como já usado nos outros capítulos anteriores. Isso significa que neste capítulo, a memória do testemunho ocupa o papel principal. Hannah Arendt acredita que contar estórias (stories) é o único meio para compreender um fenômeno quando todos os conceitos e teorias tradicionais não são mais suficientes para explicá-lo; o filósofo então, se torna um storyteller: ele reconstitui com a ajuda da imaginação os acontecimentos tentando compreender o que aconteceu. O totalitarismo fez com que Arendt se tornasse uma storyteller; por não ter precedentes na história, foi necessário narrar (expor, contar) o totalitarismo para compreendê-lo. Para ela, o pensamento narracional é uma atividade sem fim, pensar sempre é repensar. Assim, o pensamento narracional não leva a uma conclusão x ou y, ele provoca o pensamento nas pessoas. Este tipo de pensamento reconstitui a experiência, tentando dar sentido e significação a ela, podendo culminar na reconciliação com o acontecimento. 2 ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 34. 183 Isso se dá porque, para Arendt, o totalitarismo representou o fim da política, entendida como uma atividade humana embasada na liberdade de associação e de expressão. Sendo assim, era necessária uma nova forma de narrar essa história, para tentar trazer de volta algum sentido para o mundo.3 Seyla Benhabib entende que, para Arendt, escrever sobre o totalitarismo é tão difícil porque o nosso impulso inicial em se tratando de um regime tão extremo e que trouxe o pior do ser humano, é de destruir, e não de construir. E a narrativa deve ser, justamente, uma forma de construção. Arendt, como já dito anteriormente, nega a ideia de que o totalitarismo era um regime necessário e inevitável, e argumenta que buscar suas origens não significa dizer que ele aconteceria de qualquer maneira. Sempre podemos contar com o improvável, pois estamos tratando do campo das ações humanas, ou seja, o campo do imprevisível. A partir disso, Arendt pensa no conceito de compreensão, já tratado anteriormente, aliado a ideia de narrativa. Benhabib ressalta como o narrador, engajado na tentativa de compreender, também está fazendo um julgamento. Um julgamento que nada tem a ver com o sentido moral ou jurídico, e sim, com a ideia de “recriação de uma realidade compartilhada dos pontos de vista de todos os envolvidos e relacionados”.4 Um julgamento histórico seria, precisamente, a habilidade de “tomar o ponto de vista do outro” e isso significaria, basicamente, a possibilidade de recriar o mundo da forma como ele aparecia aos olhos do outro. Para pensar no totalitarismo, Arendt recorre ao conceito de Walter Benjamin de passado fragmentado. Benhabib explica que para pensar em tais condições, devemos analisar constantemente a brecha (gap) entre passado e presente: “os eventos do século XX, no entanto, criaram uma brecha entre o passado e o presente de tamanha magnitude que o passado, ainda presente, está fragmentado e não pode mais ser contado como uma narrativa unificada”.5 A narrativa aparece então como constitutiva de nossa própria identidade. Quem nós somos é revelado ao mundo através de narrativas que nós contamos de nós mesmos e do mundo que dividimos em conjunto. Ou seja, fazendo uma relação com as ideias de amor mundi apresentadas na Introdução, nós aparecemos para o mundo por meio de ações, e essas ações só vivem por meio de narrativas. Segundo Benhabib: “ações, ao contrário de coisas e objetos naturais, só vivem nas narrativas daqueles que as realizam e nas narrativas daqueles que as 3 BENHABIB, Seyla. Hannah Arendt and the Redemptive Power of Narrative. In: HINCHMAN, Lewis P. & Sandra K. (editors). Hannah Arendt: Critical Essays. Albany: State University of New York Press, 1994, p. 119. 4 “In the sense of the recreation of shared reality from the standpoint of all involved and concerned”. Tradução minha. Idem, ibidem, p. 121. 5 “The events of the 20th century, however, have created a gap between past and future of such a magnitude that the past, while still present, is fragmented and can no longer be told as a unified narrative” Tradução minha. Idem, ibidem, p. 124. 184 compreendem, interpretam e recordam”.6 Se quem alguém é só se revela através da ação feita entre homens, no espaço-entre, ou seja, no campo da política, esse ser que aparece por meio de ações só pode sobreviver através de narrativas que buscam entendê-lo, interpretá-lo, e lembrarse dele. Como ela diz, “quem nós somos em qualquer ponto é definido pela narrativa que unifica passado e presente”.7 Contar e recontar o passado nos mostra quem somos, porque quem somos é definido pela própria narrativa, que une a brecha (gap) entre passado e presente, e torna o passado inteligível mais uma vez, mesmo quando tudo parece ter desmoronado. Narrar é, portanto, uma atividade humana fundamental. Desta forma, uma narrativa (storytelling) que busca a compreensão é entendida como a possibilidade de ver as coisas pelo ponto de vista do outro, tentando unir a brecha entre passado e presente. Contar a história de homens que agem se mostra uma tarefa complexa, mas valiosa, pois é através dessas histórias que suas ações podem permanecer em contato com o mundo. E, em um passado tão fragmentado - mas que ainda não passou -, as narrativas surgem como uma forma de uma possível unificação entre ele e o nosso presente. Como Rosanvallon lembra, escrever historiografia é intervir no presente. Narrar, uma atividade humana fundamental, tenta, justamente, conectar. Neste capítulo, a forma de construção dessa narrativa se dá através de diversos relatos testemunhais. Por estar diretamente ancorada à vivência, a descrição do passado pelo testemunho baseia-se no “isso é verdade porque eu vi, eu vivi isso”. É então fundamental lembrar que: “os que não viveram aquela experiência nunca saberão o que ela foi; os que a viveram nunca o dirão; realmente não, não até o fundo. O passado pertence aos mortos”.8 O testemunho lida com a tarefa árdua de sempre rememorar o trauma (o trabalho de luto que está fadado a sempre recomeçar) e, ao mesmo tempo, de negá-lo. A memória não existe sem sua resistência e, ainda, a memória só existe concomitantemente com o esquecimento. Assim, o historiador que trabalha com narrativa testemunhal tenta “preencher os espaços abertos no “Actions, unlike things and natural objects, only live in the narratives of those who perform them and the narratives of those who understand, interpret, and recall them” Tradução minha. BENHABIB, Seyla. Hannah Arendt and the Redemptive Power of Narrative, p. 124. 7 “Who we are at any point is defined by the narrative uniting past and present” Tradução minha. Idem, ibidem, p. 125. 8 WIESEL apud AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo; Bointempo, 2008, p. 42. 6 185 texto/história, sabendo que essa tarefa é infinita e, mais importante, com a consciência de que a leitura é perpassada por um engajamento moral, por um compromisso ético com o ‘original’”.9 Por ter antes um “dever” com os que não sobreviveram, um culto a esses mortos, a narrativa testemunhal também se ocupa de questões morais: “a arte da memória, assim como a literatura de testemunho, é uma arte de leitura de cicatrizes”.10 Ou seja, os sobreviventes tentam expor o passado, os fragmentos e ruínas e ao mesmo tempo, as cicatrizes e a dor. Segundo Beatriz Sarlo, a lembrança é algo incontrolável e o passado é um campo de disputa entre a história e a memória: A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum. A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar.11 Marcio Seligmann-Silva destaca que, apesar de a história e a memória parecerem opostos, o historiador deve aprender a lidar com ambas. Não podemos controlar a memória, mas devemos nos lembrar de esquecer e também não nos esquecer de lembrar. Essa é a dicotomia entre história e memória, onde uma não apaga a outra. Como Saul Friedländer argumenta, não existe uma esfera apolítica do cotidiano, e a história é sempre política. É necessário, portanto, um trabalho conjunto entre a memória e a historiografia e devemos antes de tudo saber os limites do conhecimento histórico, pois a historiografia, assim como a memória, são apenas uma forma de interpretação e reinterpretação do passado. Para isso, devemos, sobretudo, pensar com uma mente aberta: ‘Pensar com uma mente aberta’, escreve Hannah Arendt, ‘significa treinar a imaginação para que ela faça uma visita’. [...] Trata-se de uma qualidade não só do historiador, mas também de quem o escuta: a imaginação ‘faz uma visita’ quando rompe com aquilo que a constitui na proximidade e se afasta para capturar reflexivamente a diferença. [...]. Para conhecer, a imaginação precisa desse trajeto que a leva para fora de si mesma e a torna reflexiva; nessa viagem, ela aprende que a história jamais poderá ser totalmente contada e jamais terá um desfecho, porque nem todas as posições podem ser percorridas e sua acumulação tampouco resulta numa totalidade. O princípio de um diálogo sobre a história baseia-se no reconhecimento de seu caráter 9 SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2003, p. 54. 10 Idem, ibidem, p. 56. 11 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, pp. 24-25. 186 incompleto (que, evidentemente, não é uma falha na representação dos detalhes nem dos ‘casos’, mas uma admissão da qualidade múltipla dos processos).12 Sendo assim, a utilização da narrativa testemunhal como fonte nesse capítulo serve, sobretudo, para tentar reconstituir da melhor forma possível os últimos passos desse grupo de resistência, tendo sempre em mente a limitação própria do conhecimento histórico. “Hoje vocês nos mandam para a forca, mas amanhã vocês é que serão os enforcados”13 Na manhã do dia 18 de fevereiro de 1943, os irmãos Hans e Sophie Scholl foram para a Universidade de Munique carregando uma mala com cerca de 1600 exemplares do sexto panfleto, redigido por Kurt Huber. Na fachada da universidade ainda era possível ver os escritos “Liberdade” e “Abaixo Hitler”, pois a tinta não tinha sido completamente apagada. Entre dez e onze horas da manhã, as salas e os auditórios estavam fechados, deixando as escadas e o hall vazios. Traute Lafrenz se lembra de ter ficado angustiada ao ver os irmãos Scholl entrarem na universidade apenas cinco minutos antes do fim da aula, e ainda carregando uma mala.14 Hans e Sophie começaram a colocar pequenos montes de panfletos nas portas das salas, nas escadas e, por fim, lançaram uma grande quantidade do segundo andar, fazendo com que centenas de panfletos ficassem espalhados pelo hall de entrada. Poucos segundos depois, as portas das aulas se abriram e, antes que os irmãos Scholl conseguissem se perder na multidão, foram avistados pelo zelador e membro do NSDAP, Jakob Schmid, que os segurou pelos braços dizendo que estavam presos. Schmid havia sido contatado pela Gestapo algumas semanas antes, com o pedido de manter vigilância e ficar em alerta para qualquer sinal de atividade suspeita por parte dos estudantes. Essa questão tem relação com o protesto na universidade de Munique em janeiro daquele ano e a posterior distribuição do quinto panfleto da Rosa Branca, endereçada principalmente a estudantes e membros da universidade. Em seu depoimento para a Gestapo no dia da prisão, Jakob Schmid afirma que Hans, ao ser abordado por ele, disse: “algo assim é um absurdo, é uma afronta levar alguém em custódia aqui na universidade! ”. No entanto, Schmid, não deixou Hans confundi-lo com essa afirmação e prontamente os prendeu.15 12 SARLO, Beatriz. Tempo passado, pp. 41-42, grifos meus. Comentário de Hans Scholl a acusação do Tribunal do Povo. Testemunho de Robert Mohr em 19/02/1951. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, 2013, p. 201. 14 Testemunho de Traute Lafrenz possivelmente em 21/02/1946. Idem, ibidem, p. 151. 15 “Something like that is absurd, it is an effrontery to take someone into custody here in the university!”; “I did not let him confuse me with this statement. I told both of them that they were under arrest”. Tradução minha. 13 187 Todas as portas da universidade foram fechadas e ninguém podia entrar ou sair. Uma testemunha ocular recorda que “todos os alunos foram obrigados a se reunirem no pátio. Qualquer um que tivesse pego um panfleto deveria entregá-lo para o homem encarregado de coletá-los. Ficamos lá esperando por duas horas até que finalmente Hans Scholl e sua irmã foram levados algemados”.16 Helmut Goetz, que também presenciou o ocorrido, se lembra que os estudantes da universidade agiram com uma “passividade avassaladora”, já que permaneceram “calados e à espera” e também “cometeram a inconcebível estupidez de bater os pés em aprovação ao reitor, que chegou logo em seguida, dando explicações e falando qualquer coisa sobre alta traição”.17 Segundo as testemunhas, Hans e Sophie passaram pelos estudantes sem demonstrar nenhuma expressão e sem tentar nenhum contato, como se nunca tivessem visto nenhuma daquelas pessoas. Eles sabiam que qualquer olhar de reconhecimento poderia levar a pessoa a ser presa e interrogada, e, por isso, agiram como se não conhecessem ninguém. Gisela Schertling, namorada de Hans, no entanto, recorda que ao vê-la, Hans gritou “vá para casa e avise Alex, se ele estiver lá, ele não deve esperar por mim”, uma referência clara para que ela avisasse Alex Schmorell que ele havia sido preso, para dar ao amigo a possibilidade de fuga. A Gestapo foi acionada imediatamente e os irmãos foram levados para a prisão, no Palácio de Wittelsbach, onde tiveram início os interrogatórios. Christoph Probst foi levado para a prisão no dia seguinte, 19 de fevereiro, após a Gestapo conseguir recuperar o rascunho do sétimo panfleto, escrito integralmente por ele, mas que Hans havia tentado rasgar para não incriminar o amigo. Christel tinha ido buscar o seu pagamento de soldado, como toda sexta feira, no escritório da Companhia Estudantil em Innsbruck, mas a Gestapo já o aguardava. Ele foi transferido para a prisão de Munique no dia 20. Alexander Schmorell conseguiu escapar por alguns dias e só foi preso no dia 24 de fevereiro. Willi Graf foi preso mais tarde no dia 18, e o professor Huber no dia 22. A última carta que Hans Scholl escreveu, destinada a Rose Naegele, data de 16 de fevereiro de 1943, no dia em que o último panfleto foi produzido, dia em que ele se encontrou com o livreiro Joseph Söhngen para falar de seus planos e, apenas dois dias antes de sua prisão. Na carta, ele diz que “nunca meu respeito pela sua pureza de coração esteve maior do que agora, Interrogatório de Jakob Schmid. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl. ZC13267. (English Edition), por Joyce Light (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 468. 16 “All students were ordered to assemble in the courtyard. Whoever had picked up a leaflet was to hand it to the man in charge of collecting them. We stood there waiting for two hours until finally Hans Scholl and his sister were led away in handcuffs” Tradução minha. In: VINKE, Hermann. The Short Life of Sophie Scholl, p. 160. 17 Testemunho de Helmut Goetz em 23/10/1953. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 192. 188 quando a vida se tornou um perigo constante. Mas porque o perigo é de escolha própria, devo dirigir-me para o meu destino escolhido livremente e sem vínculos”.18 Em seu testemunho, Joseph Söhngen afirma que Hans Scholl tinha um “homem de confiança” que o informou que a Gestapo estava à sua espreita, e que o prenderia nos próximos dias. Sendo assim, “ele precisava agir mais uma vez, antes que fosse neutralizado”.19 Wilhelm Geyer, pintor de Ulm e amigo dos Scholl, passou um período em Munique em fevereiro de 1943 para elaborar um retrato de Carl Muth. Ele também se recorda que na noite de 16 de fevereiro, no ateliê de Eickemeyer, Sophie disse a ele: “muitas pessoas morrem por esse regime, está na hora de alguém morrer contra ele”.20 Geyer afirma que os irmãos Scholl sabiam que estavam sendo observados pela Gestapo, mas que não podiam fugir por terem muita preocupação com as consequências de uma fuga para sua família e amigos. Como ele diz, “se tivessem que ser presos, que não fosse em segredo, mas sim de um modo que o mundo inteiro soubesse”.21 Portanto, é possível que Hans e Sophie soubessem que a Gestapo estava investigando os panfletos da Rosa Branca e que estava vigiando o círculo de amigos. Não foi possível determinar como Hans teve acesso a essa informação e ele possivelmente também não sabia exatamente a extensão do conhecimento da Gestapo sobre suas atividades. No entanto, um último aviso supostamente deveria ter sido dado a ele naquela mesma manhã de 18 de fevereiro, por Otl Aicher, seu amigo de Ulm e namorado de sua irmã Inge. Otl estava em Munique em fevereiro, hospedado na casa de Carl Muth, quando, na noite do dia 17, recebeu uma ligação de Hans Hirzel, amigo mais jovem do círculo em Ulm, pedindo para informar a Hans que o livro do historiador Gerhard Ritter, Machstaat und Utopie (Poder Nacional e Utopia) estava esgotado. Esse era um código para informar que a Gestapo estava a ponto de prendê-lo e que aquele era o momento de fugir. Nessa ocasião, Otl não sabia o significado dessas palavras e tampouco sabia das atividades de Hans e Sophie Scholl. Aicher ligou para Hans dizendo que havia uma mensagem importante para dar para ele, e os dois marcaram um encontro no dia seguinte, no apartamento de Hans, às 11 horas. Quando Otl chegou ao local, Hans e Sophie já haviam saído para a universidade. Ele retornou meia hora depois e encontrou oficiais da Gestapo entrando no apartamento. Aicher foi revistado e observou enquanto a Gestapo revirava “Never my respect for your purity of heart been greater than it is now, when life has become an everpresent danger. But because the danger is of my own choosing, I must head for my chosen destination freely and without any ties” Tradução minha. Carta para Rose Nagële em 16 de fevereiro de 1943. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, p. 279. 19 Testemunho de Joseph Söhngen em 1945. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 145. 20 Testemunho de Wilhelm Geyer em 21/09/1968. Idem, ibidem, p. 190. 21 Idem, ibidem, p. 190. 18 189 o apartamento de Hans e Sophie por uma hora em busca de evidências. Logo ele foi levado para o Palácio de Wittelsbach, onde foi interrogado e só liberado no dia seguinte, devido ao seu privilégio de jurisdição militar.22 A menção ao livro do historiador Gerhard Ritter não é por acaso. Gisela Schertling se recorda que em um dos encontros dos amigos no apartamento de Hans Scholl, o mesmo pediu informações sobre Ritter a um estudante chamado Jaeger, perguntando se seria possível que o historiador viesse a Munique para discutir algumas questões. Jaeger concordou em intermediar o encontro e nesse dia também havia levado um dos livros de Ritter, possivelmente o exemplar de Machstaat und Utopie, previamente citado.23 Nesse livro especificamente, Ritter faz uma comparação entre a utopia proposta por Thomas More e a o realismo de Nicolau Maquiavel, pregando que a Alemanha deveria seguir o princípio maquiaveliano de poder. De acordo com esse princípio, apenas potências que tinham segurança militar poderiam promover liberdades individuais, ao passo que poderes continentais como a Alemanha estavam constantemente ameaçados e precisavam manter a disciplina.24 Ritter, um historiador de Freiburg, aparece como uma figura de destaque e contraditória durante o regime nazista e representa um ótimo exemplo dos complexos posicionamentos políticos da intelligentsia. Ele era luterano e fez parte da Igreja Confessional, entrando em contato com membros da resistência religiosa. A guerra representou um paradoxo nos trabalhos públicos e pessoais do professor, divididos “entre sua repulsa moral pelo nazismo e seu comprometimento patriótico com a causa alemã”.25 Segundo Richard Evans: Assim como muitos outros em sua posição, ele se entusiasmou com as vitórias de 1939 e 1940, mas ficou cada vez mais desiludido com os retrocessos e desastres militares dos anos seguintes. Seu comportamento foi fortemente influenciado pela morte de seu filho no front oriental. Em suas palestras públicas e publicações, ele fez o possível para incentivar os ânimos tanto na pátria quanto no front; viajou pela França e por outros países ocupados e fez palestras para as Forças Armadas, bem como continuou a lecionar em sua universidade. Progressivamente, entretanto, entremeava suas palestras e seus artigos com apelos pela moderação e críticas implícitas ao que via como extremismo nazista. Ao fazer uma introdução para o relançamento de sua biografia de Martinho Lutero em 1943, por exemplo, insistiu na importância de manter uma consciência pura e uma forte ordem legal. Ritter se opunha violentamente às tentativas dos cristãos alemães de nazificar o protestantismo alemão, e começou a escrever memorandos pessoais a respeito da necessidade de restabelecer uma ordem moral depois que a guerra terminasse. [...] Seu posicionamento complexo e muitas vezes contraditório durante o Terceiro 22 VINKE, Hermann. The Short Life of Sophie Schol, p. 165. Gestapo Interrogation Transcripts: Gisela Schertling and Katharine Schüddekopf. ZC13267. (English Edition), por Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 713. 24 Gerhard A. Ritter (1888-1967), por Gregory Weeks. In: BOYD, Kelly (editor). Encyclopedia of Historians and Historical Writing. Volume 2: M-Z. Chicago: Fitzroy Dearborn Publishers, 1999, pp. 996-997. 25 EVANS, Richard J. O Terceiro Reich em guerra. 2ª edição, São Paulo: Planeta, 2014, p. 687. 23 190 Reich caracterizou o de muitos outros acadêmicos da área de humanas, e ele não foi o único cujos pontos de vista passaram gradualmente de um apoio positivo, embora sempre condicional, ao regime para uma oposição crescente baseada nos valores cristãos, conservadores e patrióticos que julgava que o regime estava violando.26 A postura de Gerhard Ritter se assemelha bastante com o posicionamento de Kurt Huber. Em sua confissão política para a Gestapo, ele tenta fazer uma diferenciação entre dois tipos de regimes autoritários liderados por um Führer, o Führerstaat, que ele aprovava, e o Machstaat, que ele desaprovava. Segundo Huber, um Führerstaat era um Estado em que a vontade do Führer não era a lei, e sim, a expressão da lei, sendo, portanto, submetida a ela. Em um Führerstaat, o Führer poderia ser eleito e também poderia ser removido do governo pela vontade popular, já que era um Estado que se baseava na liberdade pessoal inviolável de todos os membros da nação. Por outro lado, um Machstaat se caracterizava por uma nação composta por uma massa que obedecia à vontade do Führer incondicionalmente, e que tornava qualquer crítica à liderança nacional um crime e uma atividade ilegal. Isso acabaria com a liberdade de discurso, com a liberdade de reunião entre homens e com a liberdade de imprensa, destruindo toda a moral do ser humano.27 Huber declara que concordava com os ideais de uma comunidade nacional, de uma educação que focava no desenvolvimento da raça germânica, e que também era a favor de uma certa censura na mídia e de um governo autoritário liderado por um Führer disposto a fazer escolhas difíceis e duras para o país – ou seja, um Führerstaat. Contudo, isso não poderia fazer com que esse Estado se tornasse baseado única e exclusivamente na vontade do líder, tornando qualquer expressão livre um crime e transformando os homens em uma massa submissa. Apesar de parecer inicialmente que Gerhard Ritter concordaria com um Machstaat para a Alemanha, tendo em vista o título de seu livro e a comparação entre Thomas More e Maquiavel, na realidade, ele e Kurt Huber estão dizendo essencialmente a mesma coisa. Ritter não era um nacional-socialista, ele era um nacionalista que acreditava que a Alemanha deveria ser uma forte potência mundial e, para isso, era necessário um Estado autoritário. O que o governo de Hitler estava fazendo, no entanto, representava um desvio completo do autoritarismo que esses professores teriam aceitado, pois cerceava completamente a liberdade individual dos cidadãos. Como Huber afirma, em um Führerstaat, o Führer poderia ser tirado 26 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 687, grifos meus. Confissão política de Kurt Huber, 8 de março de 1943. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack. NJ1704. (English Edition), por Denise Heap (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 873-976. 27 191 de seu posto, porque seria um governo que aceitaria críticas ao regime. Segundo ele, “em uma nação onde a troca pública e livre de opiniões é proibida, a tentativa de expressar livremente e publicamente opiniões deve por vezes assumir formas ilegais”.28 O nazismo representava uma forma extremista de um princípio autoritário, e isso não poderia ser tolerado. Não se sabe se Hans Scholl conseguiu o encontro com Gerhard Ritter, mas é possível compreender os motivos do desejo por essa reunião. No apartamento de Hans e na busca no ateliê de Manfred Eickemeyer, a Gestapo encontrou uma grande quantidade de selos, envelopes, papel, além de duas máquinas de escrever (marca “Erika” e marca “Remington”) utilizadas para elaborar os panfletos, uma máquina duplicadora, tinta, pincéis, além do molde utilizado para pichar as ruas de Munique naquela semana e seis fotos das pichações. Também encontraram cópias do quinto e sexto panfletos, quatro cópias dos Panfletos da Rosa Branca e uma pistola com 201 balas. Foram feitas investigações para determinar se a máquina de escrever “Erika” encontrada no apartamento de Hans havia sido utilizada para a produção dos panfletos distribuídos nos dois últimos meses. Nos relatórios da Gestapo, descobre-se que o quinto panfleto da Rosa Branca contou com uma distribuição de aproximadamente 1300 exemplares e percorreu as ruas de Munique num entorno de aproximadamente 18 quilômetros. Esses panfletos também apareceram em Augsburg, Salzburg, Viena, Stuttgart e Linz, nos dias 25, 26, 27 e 28 de janeiro, respectivamente. Os panfletos foram enviados pelo correio e também distribuídos pessoalmente. Na tiragem enviada por correspondência, foi concluído que a edição em Augsburg foi de aproximadamente 200 panfletos, em Salzburg entre 100 e 150, em Linz apenas 100, enquanto Stuttgart contou com 800 cópias e Viena, mais de mil cópias. Foram apreendidos cerca de 2400 folhetos, porém, a Gestapo acreditava que entre 28 e 29 de janeiro, mais de 5 mil panfletos haviam sido distribuídos.29 Eles elaboraram uma lista das pessoas que haviam recebido os panfletos pelo correio,30 além de analisarem se os escritos recuperados foram produzidos com as máquinas e as tintas que eles haviam confiscado no apartamento de Hans e no ateliê. “In a nation where the free public exchange of opinions is prohibited, the attempt to freely and publicly express opinions must sometimes take on illegal forms” Tradução minha. Confissão política de Kurt Huber. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack, posição 971. 29 Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 647. 30 Lista dos que receberam os panfletos da Rosa Branca. Idem, ibidem, posição 908-979. 28 192 Como dito no Capítulo Dois, a Gestapo contratou o professor Richard Harder para analisar o conteúdo dos panfletos apreendidos. Seu trabalho se consistia em averiguar se os mesmos autores produziram os Panfletos da Rosa Branca e os Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha e se os autores poderiam ser membros de uma organização de resistência maior e estrangeira, e não alemães. Sua análise começa com os dois últimos panfletos, onde ele conclui que ambos foram escritos pelo mesmo autor, que certamente era um alemão, uma “pessoa que dominou completamente a língua alemã, que pensou em seu tópico com absoluta clareza. O homem sabe exatamente o que ele quer; ele possui conhecimentos detalhados”.31 O autor, para ele, tinha profundo conhecimento de literatura, o que implicaria que ele provavelmente era da área de humanidades ou de teologia. Além disso, pela linguagem, ele também conclui que o escritor deveria ser não só um acadêmico, como, principalmente, alguém profundamente conectado à universidade e que se sentia familiarizado com o desenvolvimento do Nacional-Socialismo por experiência própria.32 Sua conclusão desses dois panfletos é: O autor parece ser um intelectual privilegiado que dissemina sua propaganda em círculos acadêmicos, particularmente entre o corpo estudantil. Apesar de uma certa vivacidade em seu discurso e na determinação de sua vontade política, sua produção intelectual não é, no final, pouco mais do que exercícios literários. Suas palavras podem não ter o tom de um solitário amargurado, mas é certo que apenas um pequeno e específico grupo está atrás dessas palavras. Não são a efluência de um grupo ativo e politicamente poderoso. A linguagem [nestes panfletos] é muito abstrata para isso. As palavras não encontram e não podem encontrar ressonância em círculos maiores de soldados ou trabalhadores.33 No dia seguinte, 18 de fevereiro, Harder recebe mais quatro panfletos para analisar, os Panfletos da Rosa Branca. Ele afirma que nesses escritos também se percebe que o autor é um intelectual, cristão, mas que é usada a versão luterana da Bíblia, o que o leva a crer que o escritor “Person who has completely mastered the German language, who has thought through his topic with absolute clarity. The man knows exactly what he wants; he possesses detailed knowledge” Tradução minha. Análise do Professor Harder. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 712. 32 Análise do Professor Harder. Idem, ibidem, posição 731. 33 “The author appears to be a gifted intellectual who disseminates his propaganda in academic circles, particularly among the student body. Despite a certain vivacity in his speech and in the determination of his political will, his intellectual products are in the end little more than literary exercises. His words may not have the tone of an embittered loner, but it is certain that only a small, specific clique stands behind these words. They are not the effluence of a politically powerful, active group. The language [in these leaflets] is too abstract for that. The words will not (and cannot) find resonance in larger circles of soldiers or workers.” Tradução minha. Idem, ibidem, posição 791. Nota-se o uso da expressão “clique” para se referir ao grupo em que o autor dos panfletos se insere, que pode ser entendido como m grupo exclusivo, similar a uma “panelinha” na expressão brasileira. 31 193 não é católico, e sim, protestante. O professor faz uma ligação entre os dois grupos de panfletos, e conclui que todos são de autoria da mesma pessoa, mas que algo aconteceu para existir uma mudança tão grande dos quatro primeiros para os dois últimos. Ele diz: Ele é decididamente romântico (o nome sentimental Rosa Branca). Ele não é cauteloso em relação a sua agenda política e deixa o gato cristão sair da bolsa. E então ele para a sua atividade. Na verdade, ele a interrompe inesperadamente. Em E23 e C2834 há anúncios de sequências que não foram cumpridas. Após uma longa pausa, ele começa de novo com A, em janeiro deste ano. O semblante político mudou. Ele tornou-se muito mais cauteloso, não romântico e deliberado. Gostaria de expressar a suposição de que, entre estes dois períodos, existe uma influência estrangeira. Claramente, alguma outra postagem, talvez no exterior, tenha tomado conhecimento dele devido à primeira série de panfletos e exerceu influência sobre ele [agora]. Portanto, seu comportamento agora é mais forte e seguro para alcançar seus objetivos (pelo menos até onde ele tem objetivos). Isso se intensifica no último panfleto (B) por meio de uma cooptação muito inteligente de eventos recentes na política da universidade.35 Sendo assim, no dia da prisão dos irmãos Scholl, a Gestapo já havia conseguido determinar que todos os panfletos apreendidos eram fruto dos mesmos autores. A postura inicial dos irmãos em 18 de fevereiro foi a de alegar inocência, posto que no momento da prisão, a Gestapo não tinha evidências suficientes para mantê-los presos, contando apenas o depoimento do zelador Jakob Schmid. Ambos disseram que nunca haviam se envolvido em atividades criminosas, que haviam recebido os panfletos pelo correio e apenas visto os papéis no hall da universidade, não conhecendo seus autores. No entanto, essa posição não foi capaz de se manter por muito tempo, pois logo Hans foi apresentado às evidências encontradas em sua casa e no ateliê, o que o obrigou a mudar de estratégia. Ele começou a admitir a culpa, porém, admitiu a culpa sozinho, tirando toda a responsabilidade de sua irmã Sophie - que teve exatamente a mesma atitude. 34 Ele denomina os dois últimos panfletos de A-B, e os quatro primeiros de C-F. “He is decidedly romantic (the maudlin White Rose name). He is not cautious with regards to his political agenda and lets the Christian cat out of the bag. And then he stops his activity. Indeed, he cuts it off unexpectedly. In E23 and C28 there are announcements of sequels that go unfulfilled. Following a longish break, he begins anew with A, in January of this year. The political countenance has changed. He has become far more cautious, unromantic, and deliberate. I would like to express the assumption that between these two periods, a foreign influence exists. Clearly some other post, perhaps abroad, has taken notice of him due to the first series of leaflets and exerts influence over him [now]. Therefore his demeanor is now stronger and unerring in reaching its goals (at least as far as he has goals). This intensifies then in the last leaflet (B) by means of a very clever co-opting of recent events in the politics of the university.” Tradução minha. Análise do Professor Harder. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 859. 35 194 “Seja forte – sem concessões”36 Hans Scholl inicialmente admitiu a produção apenas dos dois últimos panfletos e diz que contou com a ajuda de Sophie, Alex e Willi somente para a compra de envelopes e papel. Ele afirma que comprou a máquina duplicadora sozinho e que produziu e distribuiu integralmente mais de 5 mil cópias do quinto panfleto, além das 2 mil cópias do sexto panfleto. Hans também declara ter distribuído os folhetos nas cidades vizinhas sem a ajuda de ninguém. Ao ser confrontado com as evidências e com os depoimentos de sua irmã e de Willi Graf, o jovem se vê obrigado a mudar seu testemunho no dia 21 de fevereiro. Nesse momento ele resolve admitir como realmente se deu a operação panfletária da Rosa Branca, além das ações de pichação nas paredes de Munique. Hans explica que os Panfletos da Rosa Branca foram enviados pelo correio para endereços que ele buscou na lista telefônica de Munique. Esses endereços foram escolhidos para atingir principalmente a intelligentsia e a intenção era de que as mesmas pessoas recebessem todos os quatro panfletos. Como apresentado no segundo capítulo, Hans e Alex afirmam que trabalharam juntos na produção dos quatro panfletos, mas não se sabe exatamente quem escreveu qual trecho. Sophie Scholl, em seu primeiro depoimento no dia em que foi presa, já afirma que a sua antipatia com o movimento nacional-socialista se devia principalmente pela limitação da liberdade intelectual de toda a população, algo que contradizia tudo o que ela acreditava. Ela declara que: “pessoalmente, eu gostaria de não ter nada a ver com o Nacional-Socialismo”.37 Sophie alega que a decisão de produzir uma quantidade maior de panfletos no fim de 1942 foi feita por ela e seu irmão em conjunto, e que o quinto panfleto foi escrito pelos dois logo após o ano novo de 1943. A produção desse quinto panfleto se deu com a aquisição de uma máquina duplicadora e, ela e Hans arcaram com os custos de selos, envelopes e papel. Sophie conta que em 25 de janeiro de 1943, levou cerca de 250 cartas com panfletos para Augsburg, e Alex fez a viagem de trem no dia seguinte para Viena, passando por Salzburg e Linz. Lá ele enviou 200 cartas em Salzburg, 200 em Linz, 1000 em Viena e 300 para Frankfurt (que foram enviadas de 36 Últimas palavras de Hans Scholl ao seu irmão Werner, antes de ser executado. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 76. 37 “I personally would like to have nothing to do with National Socialism” Tradução minha. Interrogatório de Sophie Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 3095. 195 Viena).38 Ela declara ter viajado sozinha no dia 27 para Stuttgart, onde enviou entre 600 e 700 cartas com folhetos e, que entre 30 de janeiro e 6 de fevereiro, foi responsável por depositar cópias do quinto panfleto em cabines telefônicas e estacionamentos nos arredores de Munique.39 Os endereços dessas cartas foram encontrados em uma lista do Museu Germânico. Segundo Sophie, os custos de toda a operação giraram em torno de 800 a 1000 Reichsmarks, e que eles arcaram com esses custos sozinhos. A operação em outras cidades foi feita dessa maneira, de acordo com Sophie, porque eles desejavam dar a impressão de que existia uma organização local e regional que se opunha ao regime, uma maneira de enganar a Gestapo: Uma vez meu irmão e eu conversamos sobre esse fato - na verdade, foi um tópico frequente de conversa. Pensamos que, uma vez que os panfletos começassem a aparecer, especialmente quando aparecessem em vários lugares quase ao mesmo tempo e em quantidades relativamente grandes, que a Gestapo acreditaria que uma organização maior estava por trás desse trabalho. Nós muitas vezes fizemos piadas sobre essa decepção, principalmente uma vez quando meu irmão e eu produzimos 6000 panfletos durante a madrugada.40 Ao ser questionada se ela acreditava que suas ações e de seu irmão poderiam ser vistas como um crime contra o bem comum, principalmente no que dizia respeito às tropas alemãs que estavam lutando no front, Sophie categoricamente declara: “do meu ponto de vista, devo responder não. Agora, como antes, acredito que fiz o melhor que pude para a minha nação. Por isso, não me arrependo da minha conduta. Desejo assumir as consequências de minhas ações”.41 Alex Schmorell faz uma declaração parecida: Hans Scholl e eu queríamos fazer uma revolução através da publicação e distribuição de nossos panfletos. Estávamos plenamente conscientes de que nosso modo de operação era dirigido contra o regime atual e que se fôssemos descobertos, teríamos que contar com o castigo mais severo. No entanto, não poderíamos ser dissuadidos de prosseguir dessa maneira contra o regime atual, 38 Alex Schmorell faz a mesma declaração em seu interrogatório, onde afirma que Sophie de fato foi para Augsburg na mesma época em que ele foi para Viena. 39 Interrogatório de Sophie Scholl. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 3280-3304. 40 “Once my brother and I talked about this fact – actually, it was a frequent topic of conversation. We thought that once the leaflets started showing up, especially once they showed up in various places almost at the same time and in relatively large quantities, that the Gestapo would believe that a larger organization was behind this work. We even frequently made jokes about this deception, primarily once when my brother and I produced 6000 leaflets late at night” Tradução minha. Interrogatório de Sophie Scholl. Idem, ibidem, posição 3414-3417. 41 “From my point of view, I must answer no. Now as before, I believe I have done the best that I could for my nation. I therefore do not regret my conduct. I wish to take upon myself the consequences of my actions.” Tradução minha. Idem, ibidem, posição 3626. 196 porque nós dois acreditávamos que poderíamos encurtar a guerra desse modo.42 Com os interrogatórios, descobrimos também que o sexto e último panfleto foi distribuído em duas formas distintas: a primeira leva começava com “Colegas universitários e universitárias!” (no original “Komilitonen! Komilitoninem!”), enquanto a segunda, modificada por Hans Scholl, iniciava com “Estudantes alemãs! Estudantes alemães!” (no original “Deutsche Studentin! Deutscher Student!”). Sophie explica que o conteúdo do panfleto era o mesmo, mas que após produzir grande quantidade de folhetos, o estêncil se tornou inutilizável, e que, ao fazer outro estêncil, Hans decidiu mudar o título. Na lista de evidências da Gestapo consta um índice de endereços dos estudantes da Universidade de Munique do semestre de inverno de 1941/1942. Segundo Kurt Huber, Hans Scholl pediu para ele essa lista em fevereiro de 1943, mas que como ele não tinha em mãos um catálogo atualizado dos alunos, lhe entregou a lista antiga de 1941/1942. Foi a partir dessa lista de endereços que muitos panfletos foram enviados aos alunos. Outra questão que é importante destacar é que todos os membros da Rosa Branca, com exceção de Alex Schmorell, possuíam pais e avós de sangue alemão. Essa pergunta era padrão no inquérito da Gestapo ao iniciar uma investigação, bem como o estado civil, religião, adesão ao NSDAP, serviços para o Reich, serviço militar, profissão, etc. Com relação a religião, os irmãos Scholl e Falk Harnack se declaram luteranos, Huber se declara católico e Alex afirma ser grego ortodoxo. Não tive acesso a ficha de identificação de Willi Graf, mas pela sua participação em grupos de juventude católicos, é possível que ele se declarasse católico. Sabese que Christoph Probst foi batizado católico ainda na prisão, pouco antes de ser executado. Em uma carta para sua mãe, Probst escreveu: “eu agradeço a você por ter me dado a vida. Pensando bem, minha vida inteira foi um caminho para Deus. Agora vou partir um pouco antes de vocês, para lhes preparar uma recepção magnífica”.43 Como foi dito anteriormente, quando Sophie e Hans Scholl foram presos em 18 de fevereiro, Alex Schmorell conseguiu fugir por alguns dias, só sendo preso pela Gestapo no dia “Hans Scholl and I wanted to bring about a revolution through the publication and distribution of our leaflets. We were fully aware that our mode of operation was directed against the current regime and that should we be discovered, we would have to count on the harshest punishment. But nevertheless, we could not be deterred from proceeding in this manner against the current regime, because both of us believed that we could shorten the war thereby” Tradução minha. Interrogatório de Alexander Schmorell. In: Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts. RGWA I361K-I-8808. (English Edition), por Joyce Light (editor), Denise Heap (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition, posição 459. 43 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 77. 42 197 24. Em seu depoimento, Alex conta que quando soube da prisão de Hans, ficou vagando por Munique, por saber que não poderia ir para casa sem correr o risco de ser detido imediatamente. Na noite do dia 18 para o dia 19, afirma ter dormido nos Jardins Ingleses e, no dia 19, ao telefonar para sua casa, soube pela sua madrasta que a polícia havia ido até lá procurá-lo. Alex fica durante algumas horas na casa do estudante búlgaro Nikolai Nikolaeff,44 que lhe empresta dinheiro e de quem ele afirma ter roubado o passaporte. Durante o dia 19, Schmorell caminha por Munique até parte da madrugada e consegue passar a noite do dia 20 em uma pensão no Lago Walchen, cerca de 75 quilômetros ao sul de Munique. Ele continuou essa jornada nos dias seguintes, passando por Krün, Elmau, Mittenwald e Kochel, fazendo praticamente todo o percurso a pé. No dia 24, Alex retorna para Munique por considerar ser mais fácil escapar por lá. Ele afirma que nesse dia, para se proteger de um ataque aéreo, entra no porão de uma mulher, a quem ele se refere como Dra. Uppleger e, que no porão ele foi surpreendido por oficiais da Gestapo, que o levaram em custódia. Sua amiga Lilo Ramdohr, já citada anteriormente, conta que ajudou Alex a falsificar o passaporte ainda no dia 18, onde descolaram a foto de Nikolai e a substituíram por uma foto de Schmorell. O plano, então, era de fugir no dia seguinte com Willi Graf, mas ao chegar na estação de trem, Alex percebeu que Willi não estava lá e tampouco sua amiga ucraniana que poderia lhe ajudar com a fuga, e que era impossível passar pela inspeção policial naquele momento. Lilo conta que na noite do dia 20, Alex vagou até parte da madrugada procurando por Willi, retornando frustrado e cansado. Ela lembra que se despediu de Alex pela última vez no dia 21, e que ele lhe disse: “se eu conseguir escapar, minha vida vai mudar muito; senão, ficarei feliz com a morte, pois sei que não é o fim. Você é uma grande amiga”. 45 Nesse dia já era possível encontrar cartazes com a foto de Alex ao redor de Munique, com uma recompensa de mil Reichsmarks para quem o entregasse à Gestapo. No livro de Richard Hanser, é descrita a fuga de Alex com um desfecho diferente. Ele teria ido para a casa de uma conhecida, Marie Luise, em Munique, para conseguir fugir. No entanto, a responsável pelo prédio de Marie Luise, Herr Hauff, o teria denunciado para a Gestapo, levando a sua prisão imediata.46 Sendo assim, a documentação acerca dos últimos 44 Nikolai Daniel Nikolaeff-Hamazaspian aparentemente teve uma atuação muito mais importante do que somos levados a imaginar. Apresentarei seu testemunho mais adiante neste capítulo. 45 Testemunho de Lilo Fürst-Ramdohr, sem data. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 164. 46 HANSER, Richard. A Noble Treason: The story of Sophie Scholl and The White Rose revolt against Hitler. Ignatius Press, San Francisco, 2012, pp. 262-263. Annette Dumbach e Jud Newborn descrevem o mesmo episódio com Marie Luise. In: DUMBACH, Annette; NEWBORN, Jud. Sophie Scholl and the White Rose. USA: Oneworld, 2007, p. 164. 198 momentos de Alex Schmorell em liberdade é bastante nebulosa. Não se sabe com precisão o que aconteceu, para onde ele fugiu e quem de fato o denunciou. Kurt Huber foi levado em custódia pela Gestapo no dia 22 de fevereiro e seus extensos depoimentos para os investigadores se constituem uma espécie de declaração de sua visão política e dos motivos específicos de sua oposição, como já apontado anteriormente. Huber foi um homem que conseguiu se livrar de qualquer tipo de serviço militar ou de trabalho compulsório por ter uma deficiência física, que ele descreve como uma espécie de raquitismo, além de ter sofrido com uma grave difteria quando jovem. As duas doenças o deixaram com paralisia no pé esquerdo, na mão direita e também nos músculos do rosto.47 Ele pôde se dedicar aos estudos e começou a lecionar na universidade de Munique como professor de filosofia e musicologia em 1921. Foi designado professor associado em 1926, trabalhou transcrevendo músicas alemãs folk para a Academia Alemã e se especializou nessa área. Huber casou-se com Klara em 1929, com quem teve dois filhos, que tinham 12 e 4 anos na época de sua prisão. Ele também tinha um filho ilegítimo que tinha 6 anos de idade. O professor acreditava que no Sul da Alemanha, especialmente na Bavária, o NacionalSocialismo não havia assumido a forma de “guinada à esquerda” que havia assumido no Norte, de modo que a mudança que ele buscava tinha que partir do Sul. Ele declara que quando Hans Scholl lhe conta que era o autor dos Panfletos da Rosa Branca, no Natal de 1942, ele já havia recebido a primeira e segunda edições do panfleto, mas que havia queimado esses escritos. Nesse momento, Hans o informa que gostaria de iniciar uma nova ação panfletária e eles começam a discutir questões políticas mais concretas. Huber demonstra em todo o seu depoimento que ele e Hans Scholl tinham profundas divergências de opinião em muitos aspectos, e que, ao fim e ao cabo, concordavam com poucas coisas – como já apresentado. Segundo ele, Hans ficou encarregado de toda a produção e distribuição dos panfletos, e que ele concordou apenas em escrever o texto. No entanto, quando percebeu que Hans não estava completamente de acordo com o que ele havia escrito, principalmente no que dizia respeito à solidariedade com o exército, o professor exigiu que o texto fosse destruído. Hans Scholl, com sabemos, utilizou o texto de Huber, retirando as partes que ele não concordava politicamente, imprimiu e distribuiu, aparentemente sem o conhecimento ou aprovação do professor. Essa postura de Hans só aumentou o desgosto de Huber, que considerava que o estudante, que 47 Interrogatório de Kurt Huber. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack, posição 384. 199 poderia ser um aliado, estava tendendo cada vez mais ao comunismo, um sistema que ele absolutamente rejeitava. O depoimento de Falk Harnack aparece conjuntamente com o de Kurt Huber no mesmo processo da Gestapo. O jovem estudou teatro e gerenciamento de palco na Universidade de Berlim em 1933, até ser transferido para a Universidade de Munique no ano seguinte. Ele participou da Juventude Hitlerista e trabalhou para o NSDAP - sem se filiar ao partido - como diretor de teatro em diversas peças. Harnack cresceu em uma família de letrados, professores universitários e pessoas da alta intelectualidade alemã. Em suas declarações para a Gestapo,48 é bem menos incisivo nas suas colocações do que no testemunho fornecido para Inge Scholl, o que é compreensível, afinal, ele estava tentando evitar a prisão. Ainda assim, faz algumas afirmações que condizem com o que ele diz mais abertamente após o fim da guerra, como por exemplo, sobre sua crença de que a indústria e os bancos pertenciam ao povo, a sua convicção na unificação do Reich, na melhoria das condições de trabalho e de salário do proletariado, e no fortalecimento da economia nacional. A Gestapo analisa as correspondências entre Falk e seu irmão Arvid e conclui que ele concordava com as ideias do irmão, ou seja, que ele concordava com as ações de um grupo declaradamente comunista, e que isso deveria ser levado em consideração na avaliação de seu depoimento. Huber surge como uma testemunha para corroborar esse argumento, ao afirmar que em seu encontro com Falk Harnack, o mesmo lhe apresentou ideias puramente comunistas e que ao ser questionado sobre isso, Harnack afirmou que um comunismo verdadeiro era desconhecido na Alemanha e ainda indicou um livro de Stalin como uma boa introdução à verdadeira ideia de comunismo. Huber também declara que Harnack apenas falou positivamente da socialização completa dos meios de produção de acordo com o modelo russo.49 Falk refuta essa ideia, afirmando que: Eu acredito que eu disse que quando começamos a guerra com a Rússia, não reconhecemos suficientemente a capacidade da economia russa e da sua indústria militar. Eu também disse que a teoria socialista é em grande parte um produto do intelecto alemão. É possível que o Prof. Huber tenha me acusado de ter ideias comunistas nesse contexto. Imediatamente discordei e disse-lhe que não me identificava nem com o comunismo nem com o bolchevismo, porque os pré-requisitos econômicos na Alemanha eram completamente diferentes. Eu não mencionei um livro de Stalin. No entanto, é possível que eu tenha mencionado um livro de Lenin. A título de explicação: os outros estavam falando sobre a Inglaterra e achavam que a política inglesa 48 Interrogatório de Falk Harnack. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack, posição 1249. 49 Interrogatório de Kurt Huber. Idem, ibidem, posição 1609-1621. 200 era algo muito positivo. Eu rejeito decisivamente o imperialismo e a forma de governo inglês. Nesse contexto, mencionei algo que Lenin escreveu que (na minha opinião) apoiava minha declaração.50 A comissão responsável por julgar o caso de Harnack levou em consideração o testemunho de Kurt Huber e concluiu que Harnack era de fato comunista e que agia como tal, já que tentava “escapar dos fatos desviando a atenção para questões mais tangenciais”. Foi determinado que sua família era uma oponente do regime, não só seu irmão Arvid, recentemente executado, como também sua mãe, que segundo a Gestapo, tinha laços muito amigáveis com a Rússia. Ele havia sido acusado de alta traição à pátria, corrupção dos militares e participação de organizações ilegais, no entanto, foi liberado por falta de provas. Segundo seu testemunho, “essa liberação parece inacreditável aos olhos de uma pessoa ingênua, mas não passava de uma tática da Gestapo, semelhante à de um gato que solta o rato de suas garras para depois voltar a capturá-lo. O objetivo nada mais era do que descobrir quais contatos eu retomaria depois desse processo”.51 Falk foi preso em Chemnitz no dia 6 de março, alguns dias depois de receber um telegrama de sua noiva Lilo Ramdohr, que dizia “Amigos caíram no front”, uma referência à prisão dos membros da Rosa Branca. No dia seguinte ele já estava no Palácio de Wittelsbach em Munique e lá consegue encontrar Alex Schmorell uma vez. Ele diz que eles se cumprimentaram em silêncio e que sentiu muita triste ao ver “sua bela e alta figura, de rosto muito corado e olhos ardentes”. Hans, Sophie e Christoph foram os primeiros a serem executados, no dia 22 de fevereiro de 1943. Quando os interrogatórios foram encerrados, Schmorell e Huber foram para o presídio de Neudeck, enquanto Falk e Willi Graf foram para o centro de detenção provisória de Cornelius. O professor Huber e Alexander Schmorell contrataram advogados privados, enquanto todos os outros receberam defensores públicos. Falk relata que “na época, cerca de 80% dos detentos daquela cadeira eram presos políticos de todas as linhas” e que “o importante “I believe that I said that when we started the war with Russia, we did not sufficiently recognize the capacity of the Russian economy and military industry. I also said that Socialist theory is largely a product of the German intellect. It is possible that Prof. Huber accused me of having Communistic ideas in this context. I immediately contradicted him and told him that I did not identify with either Communism or Bolshevism, because the economic prerequisites in Germany were completely different. I did not mention a book by Stalin. However, it is possible that I mentioned a book by Lenin. By way of explanation: The others were talking about England and thought that English politics were something very positive. I decisively rejected imperialism and the English form of government. In that context, I mentioned something Lenin had written that (in my opinion) supported my statement” Tradução minha. Interrogatório de Falk Harnack. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack, posição 1712-1716. 51 Testemunho de Dr. Falk Harnack em 1947. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 184-185. 50 201 era continuar vivo, pois não era possível que aquela guerra insana ainda durasse muito tempo”. O grande problema era que a causa seria julgada pelo Tribunal do Povo, “onde as leis do código penal não valiam nada e quem decidia era a arbitrariedade”.52 No dia 19 de abril, Falk Harnack, Willi Graf, Alex Schmorell, Kurt Huber e outros réus foram levados para o Palácio da Justiça e em seguida para o tribunal, para a audiência pública - que na verdade não era de fato pública, pois só agentes da Gestapo e oficiais do Partido podiam assistir. De acordo com Harnack, as paredes da cela de espera antes do tribunal estavam repletas de testemunhos de pessoas que guardavam a morte ou a condenação: “muitas confissões apaixonadas de quem acreditava na liberdade, no Estado socialista. Muitas opiniões contra o Nacional-Socialismo estavam escritas ali”.53 O juiz Roland Freisler comandava o julgamento do Tribunal do Povo, especializado em crimes políticos, assim como o fez no julgamento dos irmãos Scholl e de Probst. Freisler era conhecido pelos seus julgamentos teatrais e pelas centenas de sentenças de morte atribuídas aos resistentes, um nazista convicto e que sentia prazer em humilhar os réus. Após a leitura dos tópicos da acusação e dos próprios panfletos, o advogado de Kurt Huber imediatamente pediu dispensa da defesa do seu cliente, por se ver “impossibilitado de defender um crime tão monstruosos”. Freisler acatou o pedido, enaltecendo a “postura impecável” do advogado. Kurt Huber ainda enfrentou uma outra decepção, quando a sua testemunha de defesa, seu colega e historiador Alexander von Müller, não pôde comparecer à audiência. A postura do Tribunal do Povo nada se assemelhava à de um tribunal comum. Harnack lembra como no meio da sessão foram trazidas mais quatro novas acusadas, que não puderem sequer ler suas denúncias e muito menos acertarem nada com seus advogados de defesa. O julgamento durou catorze horas. Sobre a acusação contra Alex Schmorell, Falk conta: Freisler bombardeou o jovem estudante com uma retórica bestial. Era um xingamento atrás do outro – aos berros e com tanta raiva que Schmorell sequer conseguia abrir a boca. Toda vez que ele esboçava alguma tentativa de esclarecer, de defender suas ações, Freisler o interrompia aos guinchos. Depois de descarregar toda sua raiva, Freisler perguntou: ‘o que foi que o senhor fez no front? ’. Schmorell respondeu: ‘cuidei dos feridos, como é meu dever enquanto futuro médico’. Freisler: ‘sim, e quando os russos se aproximaram, o senhor não atirou neles? ’ – ‘Não atiro em russos, assim como não atiro em alemães’. Uma enxurrada de xingamentos lançou-se contra Schmorell: ‘Vejam só esse traidor! Ainda diz que quer ser um sargento 52 53 Testemunho de Dr. Falk Harnack em 1947. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 173. Idem, ibidem, p. 175. 202 alemão! Apunhalando a pátria pelas costas! ’ [...] Freisler dominava perfeitamente a técnica de conduzir a audiência e o caso a ser julgado, de forma que cada um de nós precisou se esforçar muito para acompanhar seu ritmo frenético. A vaidade e o sadismo de Freisler transformavam o tribunal em um mero palanque de propaganda nazista: ele sempre voltava a encaixar, aos berros, chavões políticos.54 Richard Evans explica como o compromisso ideológico do Partido Nazista foi intensificado durante a guerra, sendo reforçado por sanções legais embasadas no “espectro de 1918”. Era necessário, segundo uma declaração do Ministério da Justiça do Reich em 1940, “eliminar os elementos politicamente maldosos e criminosos que, no momento crítico, possam tentar apunhalar o front combatente pelas costas”.55 Evans lembra que essa atitude refletia uma punição em transgressores não pelo que eles haviam feito, mas por eles serem quem eram, ou seja, por eles representarem um perigo a ordem, e não necessariamente pelas ações propriamente ditas.56 Ele explica que “assim que a guerra começou, a pena de morte era aplicada a qualquer pessoa condenada por ‘publicamente’ tentar ‘subverter ou perturbar o desejo do alemão ou de um povo aliado de confiar no poder militar’”,57 e, além disso, “o Código Criminal do Reich foi corrigido para impor a pena de morte a qualquer pessoa que causasse uma ‘desvantagem’ ao esforço alemão de guerra”. Essa “desvantagem” poderia ser qualquer tipo de comentário derrotista, isto é, eram categorias muito vagas, mas que executaram centenas de pessoas exponencialmente. Os números são surpreendentes com o desenrolar da guerra: “em 1939, 329 pessoas foram condenadas à morte no Grande Reich Alemão; em 1940, o número subiu para 926, e em 1941 para 1.292, antes de saltar dramaticamente para 4.457 em 1942 e para 5.336 em 1943”.58 Os membros da Rosa Branca entraram nessas estatísticas absurdas de 1943. O próprio Roland Freisler declarou em 1939 que: A Alemanha está engajada em uma luta pela honra e pela justiça. Mais do que nunca, o soldado alemão é o modelo de devoção ao dever para cada alemão de hoje. Qualquer pessoa que, ao invés de se espelhar nele, peca contra o povo, não encontra um lugar em nossa comunidade [...] Não aplicar a mais rigorosa severidade a tais pragas seria uma traição ao soldado alemão dotado de espírito de luta.59 54 Testemunho de Dr. Falk Harnack em 1947. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 177. EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 589. 56 Ironicamente, o julgamento do nazista Eichmann seguiu essa mesma linha, onde ele foi julgado pelo que ele representava e não pelo que ele havia feito. 57 EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 589. 58 Idem, ibidem, pp. 589-590. 59 FREISLER (1939) apud EVANS. O Terceiro Reich em guerra, p. 588. 55 203 Esse tipo de postura é muito clara nos julgamentos da Rosa Branca. Os membros homens eram alemães e médicos, mas também, e mais importante, eram soldados. O fato de um soldado estar pregando a resistência e a derrota militar da Alemanha aparece como um problema no front doméstico, como um ataque à moral do cidadão alemão. Um professor universitário, que deveria ajudar o Partido com pressupostos ideológicos, decidir expressar resistência por meio de panfletos, representava uma alta traição. A moral alemã, já profundamente abalada após Stalingrado, não poderia de forma alguma ser ainda mais estremecida, muito menos por soldados alemães. Declarações derrotistas eram vistas como uma traição ao próprio país e, consequentemente, como auxílio ao inimigo – essa, inclusive foi uma das acusações que os membros da Rosa Branca enfrentaram. A desproporção em relação às ações e a pena também é algo escancarado no julgamento desses estudantes. O julgamento e a sentença foram dados com muita rapidez, principalmente no primeiro julgamento, uma característica comum para evitar pedidos de apelação. Christoph Probst foi executado simplesmente por fazer um rascunho de um panfleto que nunca chegou a ser distribuído, e foi executado com a mesma rapidez que os irmãos Scholl, que participaram muito mais ativamente da resistência. O Tribunal do Povo, ao executar alemães transgressores, queria dar um exemplo para que ninguém seguisse por esse mesmo caminho. Harnack se lembra das últimas palavras que alguns dos membros da Rosa Branca lhe disseram antes de serem executados. Huber, desolado com as sentenças, disse “não é um quadro desolador, esse que se diz o Supremo Tribunal alemão não é uma vergonha para o povo alemão?”. Willi Graf queria apenas saber o tempo entre a sentença e a execução – e foi o que esperou por mais tempo, só sendo executado em outubro de 1943. A justificativa dada pela Gestapo para a prisão de Willi em uma solitária por seis meses até sua a execução, foi para que ele fornecesse nomes de quem ele havia recrutado nos grupos católicos que conhecia. Graf não delatou nenhum amigo.60 Alex Schmorell, que era amigo de Harnack, ao se despedir, pediu a ele para mandar “um abraço de todo coração para Lilo”.61 Falk se lembra dos últimos momentos dos amigos com muito pesar, sobretudo por ele próprio ter sido liberado sem nenhuma pena. No entanto, em 20 de dezembro de 1943, quando Harnack estava em Atenas com seu pelotão, chegou à sua companhia uma ordem para sua execução, que foi pessoalmente assinada por Himmler. Ele conta: “no último instante, no aeroporto de Atenas-Tatoi, consegui fugir do avião 60 61 DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose, p. 178. Testemunho de Dr. Falk Harnack. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 180-184. 204 que estava pronto para me levar. No tempo que se seguiu, continuei com a luta antifascista em Atenas e nas montanhas da Grécia, junto com os gregos que lutavam por liberdade”.62 “Vocês vão entrar para a História”63 Nesse momento pretendo apresentar as narrativas dos testemunhos dos últimos momentos dos membros da Rosa Branca. Eles aparecem aqui como uma forma de preencher as lacunas dessa história, por vezes romantizada e pouco atenta aos detalhes e às nuances. O pastor Dr. Karl Alt, filiado a Igreja Luterana, foi quem prestou assistência religiosa aos irmãos Scholl antes de eles serem executados. Eles receberam, como era de costume antes de execuções, o sacramento do altar, e pediram para o pastor ler trechos específicos da Bíblia. Hans pediu para que eles lessem juntos o salmo 90 da Bíblia de Lutero, que dizia: “Ensina-nos a contar os nossos dias, de tal maneira que alcancemos corações sábios. Volta-te para nós, senhor; até quando? Aplaca-te para com os teus servos... Alegra-nos pelos dias em que nos afligiste, e pelos anos em que vimos o mal”.64 O pastor assegurou aos irmãos que dar a vida pelos seus amigos era um grande ato de amor e que naquele momento deveriam se lembrar de Jesus Cristo, que também morreu em sacrifício por todos os humanos. Ao lerem a passagem da Primeira Epístola de Coríntios que prega que “o amor é sofredor, é benigno, ele não se irrita, não suspeita do mal”, o pastor perguntou aos irmãos “se isso realmente correspondia à verdade e se seu coração não estava cheio de ódio ou amargura contra os acusadores e juízes”, ao que eles responderam: “não, o mal não deve ser pago com o mal e toda a amargura foi extinta”.65 Com isso, Karl Alt lhes concedeu a absolvição, e se lembra, assim como outros testemunhos, de como os Scholl caminharam para a morte com dignidade, de cabeça erguida e sem demonstrar arrependimento, desespero ou medo. Os condenados puderam escrever cartas de despedida para seus pais e irmãos, mas as cartas nunca foram enviadas. O pastor se lembra que na carta de Hans dizia “Meus amados pais! Sinto-me muito forte e tranquilo [...]. Agradeço por vocês terem me presenteado com uma vida tão rica. Deus está conosco!”.66 As últimas palavras de Hans antes da guilhotina foram 62 Testemunho de Dr. Falk Harnack em 1947. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 185. Últimas palavras de Robert Scholll ao seu filho Hans, antes de sua execução. Idem, ibidem, p. 77. 64 Testemunho do Pastor Dr. Karl Alt, sem data. Idem, ibidem, p. 213. 65 Idem, ibidem, p. 214. 66 Idem, ibidem, p. 215. 63 205 “Viva a liberdade!”. Essa informação, citada em todos os livros da Rosa Branca, também consta nos relatórios da Gestapo sobre o procedimento da execução dos Scholl. Max Huber, funcionário do Departamento de Justiça e testemunha da execução de Hans Scholl, declara que “o condenado estava calmo e pacífico. Suas últimas palavras foram ‘Viva a liberdade!’”.67 O companheiro de cela de Hans Scholl durante 18 de fevereiro a 22 de fevereiro de 1943, Helmut Fietz, prisioneiro político no presídio da Gestapo no Palácio de Wittelsbach, também relata os últimos momentos do estudante. Seu testemunho apresenta Hans Scholl como um jovem nobre, que fez de tudo para inocentar e preservar seus amigos e que manteve a calma e a alegria até seus últimos segundos. Ele conta “apesar disso, eu sempre percebia, justamente pelo que estava por trás da aparente alegria de Hans, o quanto era pesado o fardo de sua responsabilidade”.68 Fietz afirma que na sua última manhã, depois de se despedir dele, Hans escreveu na parede de sua cela: “Preservar-se, apesar de toda a violência”, uma referência a uma citação de Goethe, comumente usada na família Scholl em períodos difíceis: “Allen Gewalten zum Trutz sich erhalten”, ou simplesmente, “Allen! ”. Essa citação aparece nas cartas entre os irmãos e os pais, usada recorrentemente por Robert Scholl e era como um lema de perseverança e força.69 Sophie Scholl também foi designada uma companheira de cela (uma prática comum para evitar que os prisioneiros se suicidassem), a prisioneira política Else Gebel. O relato dos últimos dias de Sophie fornecido por Else mostra como Sophie caminhou para a morte sem arrependimentos e demonstrando uma bravura impressionante. Ela conta que no momento em que viu Sophie pela primeira vez, a Gestapo a havia encarregado de revistar a estudante. Gebel relata que sussurrou para Sophie que, se ela estivesse com algum panfleto em suas roupas, lhe entregasse para que fosse destruído, já que ela também era uma prisioneira. Ela não sabe se Sophie acreditou nela ou se pensou que era uma armadilha da Gestapo, mas considera que esse primeiro contato tenha criado um laço entre as duas. Sophie passou a contar da sua ação panfletária para Else, ao longo das noites em que passavam juntas em sua cela, já que a jovem foi interrogada por muitas horas durante os dias em que esteve presa. “The condemned was calm and collected. His last words were ‘Long live freedom!’”. Tradução minha. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl, posição 4403. 68 Testemunho de Helmut Fietz baseado em depoimentos orais que se deram possivelmente no outono de 1945 ou na primavera de 1946. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 205. 69 HANSER. A Noble Treason, pp. 59-60. 67 206 De acordo com Else, as duas foram capazes de passar parte da comida que receberam para Hans, e até mesmo conseguiram enviar um cigarro com a inscrição “Liberdade” para Willi Graf. Ela ainda se lembra de como Sophie ficou consternada quando soube que Christoph Probst também havia sido preso e que teria o mesmo destino que ela e seu irmão. Ele Gebel conta que no seu último dia na prisão, 21 de fevereiro, quando Sophie leu sua acusação, olhou pela janela, deixando o sol bater em seu rosto, e disse,70 suspirando “um dia tão maravilhoso e ensolarado e eu preciso partir”. Ela continuou: “mas, hoje em dia, quantos outros não morrem no campo de batalha, quantas vidas jovens, cheias de esperança… Pouco importa a minha morte se conseguirmos sacudir e abrir os olhos de milhares de pessoas com os nossos atos! Certamente haverá uma revolta entre os estudantes”. Else respondeu, um pouco triste com a esperança de Sophie: “você não aprendeu como o homem é covarde, esse animal de rebanho”.71 Mas Sophie continuou acreditando, e disse: “por quê? Eu poderia morrer de alguma doença, milhões morrem assim. Dessa forma, morrer seria perfeitamente sem sentido, sem nenhum motivo, não seria? Desta forma, pelo menos...”.72 Else tentou convencer Sophie a mudar o seu depoimento, visto que ela conseguiria escapar da morte com uma sentença longa de prisão se dissesse que não participou daquelas ações e que havia feito tudo por amor ao seu irmão. Sophie respondeu a ela: “se meu irmão for condenado à morte, eu não devo ter uma sentença mais leve, e eu não quero. Eu sou tão culpada quanto ele”.73 Na sua última manhã antes de sua execução, ela conta a Else sobre um sonho que teve na noite anterior: ela estava carregando um bebê em um longo vestido branco, levando-o para igreja para ser batizado, no topo de uma montanha. Sophie explica o sonho: Em um dia ensolarado, eu levava no colo uma criança num longo vestido branco para o batismo. O caminho para a igreja conduzia ao topo de uma montanha íngreme. Mas eu segurava a criança bem firme. De repente, diante de mim se abria uma fenda de geleira. Só tive tempo de colocar a criança em segurança do outro lado – então caí do precipício. A criança é a nossa ideia, 70 Inge Scholl utiliza do mesmo testemunho de Else Gebel, porém, ela não coloca todos os trechos. Preferi colocar aqui o testemunho original, que é mais completo. 71 “What a glorious sunny day, and I have to go”; “But how many men must die on the battlefields, how many promising young men... What will my death matter if because of our actions thousands of people will be awakened and stirred to acion! Surely there will be a revolt among the students” “you had not learned how cowardly is man, the herd animal” Tradução minha. Testemunho de Else Gebel, “In rememberance of Sophie Scholl”. In: VINKE. The Short Life of Sophie Scholl, pp. 175-176. 72 “Why? I could die of some sickness, millions do. That way dying would be perfectly senseless, without any point, wouldn’t it? This way, at least” Tradução minha. In: HANSER. A Noble Treason, p. 244 73 “If my brother is sentenced to death, I must not get a lighter sentence, and I don’t want to. I am as guilty as he is” Tradução minha. Testemunho de Else Gebel, “In rememberance of Sophie Scholl”. In: VINKE. The Short Life of Sophie Scholl, p. 176. 207 que irá prevalecer apesar de todos os obstáculos. Tivemos o privilégio de sermos os precursores, mas antes temos que morrer por ela.74 O sonho de Sophie demonstra o idealismo desses jovens até o último minuto: ela ainda acreditava que suas ações teriam repercussões no meio universitário e que uma revolta surgiria. Sabemos que isso não ocorreu e que as manifestações de apoio foram esparsas e predominantemente em âmbito internacional. No entanto, eles conseguiram atingir um posto no hall da resistência, e sua memória de fato prevaleceu – Munique é repleta de memoriais e monumentos em homenagem aos membros da Rosa Branca. Ao contrário dos irmãos Scholl, Christoph Probst não viu ninguém da sua família antes da sua sentença, não conseguiu contatar ninguém, e sua esposa só soube do ocorrido quando seu marido já havia sido executado. Seu destino foi extremamente trágico, visto que ele não teve a oportunidade nem do amparo familiar em seus últimos momentos de vida. Inge Scholl descreve como seus pais e seus irmãos lidaram com a morte de Hans e Sophie, e suas últimas palavras: Nesse ínterim, meus pais conseguiram, como por milagre, visitar os filhos uma última vez. Uma autorização dessas era quase impossível de se conseguir. Entre as 16 e 17 horas, correram para a prisão. Ainda não sabiam se seria realmente a última hora de vida de seus filhos. Primeiro Hans foi conduzido até eles. Vestia roupas de presidiário. [...]. Inclinou-se carinhosamente sobre a cancela que os separava e lhes deu a mão. ‘Eu não tenho ódio, eu me libertei de tudo, tudo’. Meu pai o abraçou e disse: ‘Vocês vão entrar para a História, ainda existe uma justiça’. Em seguida, Hans mandou cumprimentos para todos os amigos. [...] Em seguida, Sophie foi conduzida por um guarda. Vestia suas próprias roupas [...]. De bom grado e alegre, pegou os doces que Hans havia recusado: ‘Oh! Sim, com prazer, eu ainda nem almocei’. Era uma postura incomum de amor pela vida até o fim, até o momento derradeiro. [...] ‘Você nunca mais entrará pela porta’, disse a mãe. ‘Ah, só por alguns aninhos, mãe’, ela respondeu. Então, ela frisou também, como Hans, firme e confiante: ‘Nós assumimos tudo, tudo’ e acrescentou: ‘Isso causará grande repercussão’. [...] Mais uma vez a mãe disse: ‘Não se esqueça, Sophie: Jesus’. Séria, firme e quase ordenando, Sophie retrucou: ‘Sim, mas você também’. Então, ela se foi – livre, sem medo, serena. Com um sorriso no rosto. [...] Os carcereiros relataram: ‘Eles se comportaram de forma incrivelmente corajosa. A prisão inteira estava impressionada. Por isso, assumimos o risco de deixar os três se verem mais uma vez um pouco antes da execução – se isso fosse descoberto, sofreríamos graves consequências. Queríamos que eles pudessem fumar mais um cigarro juntos. Foram apenas alguns minutos, mas acredito que isso significou muito para eles. ‘Eu não sabia que era tão fácil morrer’, disse Christel Probst. E depois: ‘Em poucos minutos, nos veremos 74 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 74. Charlotte Beradt relata esse sonho de Sophie e explica que a referência a uma montanha íngreme é recorrente em sonhos de políticos famosos, como Bismarck. Ela define o sonho de Sophie como: “um sonho transcendente, com símbolos luminosos, tal como o sonho do herói no drama clássico alemão com seus clássicos dilemas morais”. In: BERADT, Charlotte. Sonhos no Terceiro Reich: como sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler. São Paulo: Três Estrelas, 2017, pp. 119-120. 208 novamente na eternidade’. Então, foram levados; primeiro, a moça. Ela foi sem hesitar. Nenhum de nós conseguia acreditar que isso fosse possível. O carrasco disse que nunca vira ninguém morrer assim’.75 Sophie acreditava que seu pai entenderia melhor suas ações e de seu irmão do que sua mãe, já que ele próprio era um opositor do regime. Todavia, o que aconteceu foi o contrário: Robert Scholl ficou profundamente abalado com a perda dos filhos, pensando até em suicídio, e foi Magdalena Scholl quem segurou as pontas da família naquele momento, dizendo que ela tinha que cuidar dos filhos que estavam vivos também.76 Tragicamente, Magdalena ainda perderia mais um filho, Werner Scholl, no front russo. As únicas sobreviventes dos Scholl foram Inge e Elisabeth. Siegfried Deisinger, o advogado encarregado da defesa de Alexander Schmorell deu o seu depoimento sobre as últimas horas de seu cliente no dia 13 de julho de 1943. Ele conta que Alex foi corajoso, forte e, principalmente, tranquilo, lhe dizendo: O senhor deve estar admirado por eu estar tão tranquilo nesta hora. Mas posso dizer-lhe que mesmo que o senhor me dissesse agora que outra pessoa deveria morrer por mim – por exemplo, este guarda que teve que me vigiar – mesmo assim, eu escolheria a morte. Pois agora estou convencido de que a minha vida deve acabar nesta hora, por mais cedo que possa parecer, já que com meus atos cumpri a missão da minha vida. Eu não saberia o que mais eu teria para fazer neste mundo, ainda que eu fosse libertado agora.77 A execução havia sido marcada para às 17 horas daquele dia, porém, poucos minutos antes, surgiram três oficiais da SS com patente de Tenente-Coronel e de Major,78 “e apresentaram uma autorização escrita pelo procurador-regional de justiça e da Gestapo para poderem assistir, a seu próprio pedido, à execução da sentença”. Sobre essa questão, ele relata: Essa autorização foi uma exceção absoluta, visto que, a princípio, era rigorosamente proibida a presença de terceiros numa execução, mesmo de funcionários da prisão. Permanecerá inesquecível, para mim, o diálogo que esses oficiais da SS mantiveram com o médico da prisão, que também integrava a comissão do tribunal. Pois conversaram sobre o momento exato em que a morte por enforcamento ocorre numa execução e sobre as possibilidades de retardá-la ou acelerar a morte propositalmente. Por sinal, eles esperavam que essa execução também fosse efetuada por enforcamento e provavelmente ficaram decepcionados ao saber que não era o caso. Outro aspecto marcante foi que a execução da sentença precisou ser atrasada porque, antes, o diretor do presídio, já na sala de execução, ainda considerou necessário fazer um discurso aos três oficiais da SS, junto com o carrasco, sobre a idade, a instalação e o funcionamento de uma máquina de execução.79 75 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 77-79. VINKE. The Short Life of Sophie Scholl, p. 196. 77 Testemunho de Siegfried Deisinger, sem data. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 216. 78 Esse evento também é relato em: HANSER. A Noble Treason, pp. 275-6. 79 Testemunho de Siegfried Deisinger. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 217. 76 209 Todos os livros sobre a Rosa Branca abordam esse impasse da presença dos oficias da SS na execução de Schmorell. Aparentemente essa não era uma atitude recorrente, o que adiciona mais um elemento de exceção na execução desses jovens. O investigador-chefe da Gestapo em Munique e responsável pelo interrogatório de Sophie Scholl, Robert Mohr, deu o seu testemunho sobre os julgamentos da Rosa Branca. Ele relata que os Panfletos da Rosa Branca chegaram às mãos da Gestapo no verão de 1942, mas que as investigações acerca dos autores não trouxeram nenhum resultado, principalmente pela pouca quantidade de panfletos que foram distribuídos, que foram quase que exclusivamente enviados para “as grandes personalidades do mundo intelectual”. Porém, entre fins de janeiro e começo de fevereiro de 1943, “durante a madrugada, várias pessoas (presumivelmente) distribuíram cerca de 8 a 10 mil panfletos mimeografados pelo centro de Munique, na soleira de casas e quintas, pelas calçadas etc.”.80 Segundo Mohr, essa ação de panfletagem causou extrema preocupação nos “escalões mais altos do partido e do Estado”, principalmente pela ação ter ocorrido em Munique, “a capital do movimento”. Logo após essa distribuição de panfletos em Munique, os mesmos folhetos começaram a aparecer em outras cidades, como Stuttgart, Augsburg, Viena, Innsbruck, o que levou os investigadores da Gestapo a acreditarem que se tratava de um grande e organizado movimento de resistência. Com as investigações, foi determinado que o ponto de partida dos panfletos era, de fato, Munique. Isso foi definido pela análise do papel e dos envelopes utilizados, além da notificação de uma grande quantidade de selos sendo comprados por uma mesma pessoa em uma agência de correio na cidade. A Gestapo também concluiu que pelo teor dos panfletos, os autores deveriam ter formação acadêmica e ter alguma relação com a universidade, pois os endereços dos panfletos enviados e apreendidos em Munique vinham de uma lista de endereços de estudantes da universidade. No dia 18 de fevereiro, Robert Mohr foi informado que duas pessoas haviam sido apreendidas na universidade após uma ação panfletária no edifício. Um funcionário da universidade havia informado que ambos tinham sido vistos no mesmo lugar onde as cópias foram lançadas. Quando Robert Mohr viu os estudantes em questão pela primeira vez, declarou que os dois, mas sobretudo Sophie, “transmitiam uma impressão de absoluta serenidade”. A ele coube o interrogatório de Sophie Scholl, enquanto Hans foi encaminhado a outro investigador. A história inicial de Sophie era a de que na noite anterior do dia 18 de fevereiro, ela havia marcado 80 Testemunho de Robert Mohr. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 193. 210 um almoço com Traute Lafrenz para o dia seguinte, mas que o plano havia mudado e ela e seu irmão Hans decidiram ir visitar seus pais em Ulm. Portanto, o único motivo para eles terem ido à universidade naquele dia, foi para avisar Traute sobre a mudança de planos, já que ela estava assistindo a uma aula. E, como iam para a casa dos pais, carregavam uma mala vazia, que seria usada para colocar as roupas limpas. Sophie também disse que não sabia nada sobre os autores dos panfletos distribuídos na universidade e, que ao ver os papéis próximos a balaustrada do saguão em pilhas, ela e Hans os empurraram. Até aquele momento, Mohr acreditava que todas as declarações de Sophie eram absolutamente plausíveis e que a Gestapo considerava que nem ela e nem o irmão tinham nada a ver com a ação panfletária. Mohr pensava que eles seriam liberados naquele mesmo dia por falta de provas. No entanto, a reviravolta aconteceu quando o quarto de Hans Scholl foi revistado e várias evidências foram encontradas, como mencionado anteriormente. A postura de Sophie, então, foi a de assumir toda a culpa para si para que seu irmão não fosse implicado em nada – ao passo que Hans teve a mesma atitude. Robert Mohr afirma que essa atitude de amor fraternal nunca mais se repetiu nos seus 26 anos de carreira, pois ambos estavam dispostos a se sacrificarem um pelo outro. Ele conta que: Tanto Sophie como Hans Scholl estavam totalmente conscientes da gravidade dos seus atos e do desfecho em que poderiam culminar. Mesmo assim, até o amargo final mantiveram uma postura que só pode ser caracterizada como ímpar. Ambos foram uníssonos nas suas declarações ao afirmarem que seus atos tinham um único objetivo: evitar uma desventura ainda maior para a Alemanha; os irmãos tentavam contribuir fazendo sua parte para salvar a vida de centenas de milhares de soldados e civis alemães. Segundo eles, quando a ventura ou desventura de um grande povo está em jogo, de fato, nenhum meio ou sacrifício oferecido de bom grado é grande demais. Até o fim, Sophie e também Hans Scholl estavam convencidos de que seu sacrifício não seria em vão.81 Mohr relata que apesar de os oficiais da Gestapo saberem que tinham um dever a cumprir, ou seja, executar a sentença dos irmãos, os dois conseguiram desfrutar “completa simpatia e consideração” e até estima de todos os envolvidos. Ele conta que, por isso, “o tratamento dispensado aos irmãos foi bastante bom e indulgente” e que “considerando a grandeza de espírito e de caráter dos interessados, cada um de nós gostaria muito de ter ajudado, se tivesse sido possível, em vez de nos limitarmos a pequenas gentilezas, como foi o caso”. 82 Um colega disse a ele que Hans Scholl possuía uma inteligência que ele nunca havia visto e que lamentava não poder fazer nada por ele. Segundo Mohr, esse mesmo colega lhe disse que 81 82 Testemunho de Robert Mohr. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 198. Idem, ibidem, p. 198. 211 “Hans tinha um perfil de ‘líder do povo’ de que talvez fôssemos necessitar no futuro”, e que era “terrível que tais pessoas tivessem que morrer”. A solução encontrada por Robert Mohr para “ajudar” os irmãos Scholl foi a de tentar convencer Sophie a declarar que não compartilhava da ideologia de seu irmão e que fez tudo o que fez por confiar cegamente em Hans, sem ter verdadeira noção da gravidade de seus atos. Essa teria sido provavelmente a única forma de salvar a vida de Sophie, que se negou veementemente a fazer tal depoimento, por não querer se sentir uma traidora de seu próprio irmão, como vimos.83 Pelos réus serem confessos, não foi necessária nenhuma testemunha de acusação. De acordo com Mohr, ao serem julgados por Freisler, lhe surpreendeu que “os réus mal tiveram direito à palavra, ou, então, ouviam comentários mordazes após qualquer declaração dada”.84 Segundo o investigador, Hans Scholl, em suas palavras finais, declarou responsabilidade por seus atos e afirmou “que chegaria o dia em que aqueles que se intitulavam juízes estariam sentados no banco dos réus”, e que os que os mandavam para forca naquele dia, no futuro também seriam enforcados. Inge Scholl conta que Sophie disse aos juízes “o que escrevemos e dissemos é o que, no fundo, muitas pessoas pensam, só que elas não tem coragem de dizer”.85 Os últimos momentos de Hans e Sophie Scholl, descritos por Robert Mohr pouco antes de sua execução, o impactaram significativamente. Ele conta que o jovem o cumprimentou e o agradeceu por ter tratado bem a sua irmã e que seus pais também estavam muito agradecidos. Segundo Mohr, “esse gesto me comoveu de tal maneira que não consegui dizer uma única palavra”. Ao encontrar Sophie, observou a jovem aos prantos pela primeira vez, pois ela tinha acabado de se despedir de seus pais. A memória construída sobre a Rosa Branca explorou densamente essa “simpatia” da Gestapo aos irmãos, mostrando como realmente aquela havia sido uma situação extraordinária em todos os aspectos. Cabe o questionamento se existiu de fato tal simpatia, considerando a rapidez do julgamento dos irmãos e da caça às bruxas feita logo em seguida com a prisão de todos os associados, família e amigos dos Scholl, a grande maioria que não tinha absolutamente nenhuma relação com a sua resistência, e que foi condenada a duras penas. E, ainda com relação a Sophie, Hans e Probst, cujos interrogatórios duravam mais de dez horas e se estendiam durante a noite, os jovens foram privados de alimento, proibidos de qualquer pedido de 83 Testemunho de Robert Mohr. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 199. Idem, ibidem, p. 201. 85 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 76. 84 212 apelação, tiveram propositalmente um julgamento e execução demasiadamente rápidos, fazendo com que a família de Christoph Probst nem tenha sido notificada de sua prisão, somente de sua morte. Suas cartas de despedida jamais foram enviadas, suas famílias foram presas por associação e no âmbito jurídico nada poderia ser feito para ajudá-los de qualquer forma. O próprio Robert Mohr conta que “as instâncias superiores pressionavam para chegarmos ao encerramento das investigações o quanto antes, pois uma condenação já estava prevista nos dias seguintes pelo Tribunal do Povo em Munique, como aconteceu de fato”.86 Ele também relata que recebeu a ordem de arquivar todas as cartas escritas pelos membros da Rosa Branca, e que foi terminantemente proibido enviá-las aos destinatários, “porque poderiam ser empregadas com fins de propaganda”. Com relação à prisão das famílias dos membros da Rosa Branca, o chamado Sippenhaft, onde “os familiares mais próximos dos condenados deveriam ficar em custódia protetora e depois ser enviados indiscriminadamente a um campo de concentração”, Mohr diz que todos ficaram chocados com “essa medida arbitrária e sem nenhum respaldo jurídico”. Mohr foi o responsável designado pelo interrogatório de Robert Scholl, na prisão de Ulm. Ele afirma que tentou obter uma declaração de Robert similar à que propôs a Sophie, a de que ele não tinha nenhuma postura ideológica ou política que pudesse ser entendida como traição. Porém, “Robert Scholl conservou perante mim uma postura que, em todos os sentidos, honrou aquela mantida por seus dois filhos”, demonstrando opiniões que o levariam a uma prisão imediata. Mohr relata que sua ajuda a Robert Scholl nesse sentido foi a de constatar que a investigação do casal Scholl e de Inge provou que nenhum deles tinha nenhuma relação com o processo de alta traição contra Hans e Sophie. Isso, no entanto, não anulou a custódia protetora já decretada.87 Sendo assim, é realmente muito questionável a existência dessas “pequenas gentilizas” e desse tipo de declaração dos funcionários do Partido. Parece que a memória do grupo explorou principalmente o fato de eles serem tão jovens e estarem dispostos a dar a vida pela sua causa, que não foi possível nem que a Gestapo desonrasse essa imagem. Nem chegou a existir de fato uma batalha pela memória do grupo. Ambos os lados consideraram que os jovens foram extremamente corajosos e isso não poderia ser colocado em questão. Essa aura ao redor da 86 87 Testemunho de Robert Mohr. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 199. Idem, ibidem, pp. 202-203. 213 resistência da Rosa Branca é uma questão que tocou profundamente todo esse trabalho, e tentei aliar várias fontes diferentes precisamente para fazer uma análise mais crítica. Leo Samberger, na época estudante de direito e estagiário do tribunal em Munique, conta do sofrimento de Robert e Magdalena Scholl para tentar salvar os seus filhos. Segundo ele, “o resultado do processo [contra os irmãos Scholl] já estava definido antes de qualquer palavra ser dita”. Samberger estava na sala do tribunal quando o processo estava em andamento, e relata que, além de ter a sensação de que todos os presentes estavam pálidos de medo, também pensou que o rosto dos réus lhe eram familiares de salas de concertos de Munique. Ele reitera que ficou muito impressionado com a postura dos réus, pois “ali estavam pessoas claras e inteiramente movidas por seus ideais”. A postura do juiz Freisler, para ele, era ultrajante, buscando fazer o que fosse necessário para “destruir toda a suspeita de que pudesse se tratar de réus honrados cujo grande objetivo era despertar o povo para a liberdade e o dever”. O julgamento dos irmãos Scholl, que ele chama de jovens revolucionários, segundo ele, foi “motivo de vergonha para a Justiça, que até hoje carrega por isso uma mácula e um complexo”. Essa vergonha se deu não só pela postura de Freisler, mas também pela inatividade do defensor público, demonstrando que não seria feito nenhum esforço para ajudar os réus que ele representava.88 Samberger se recorda da abrupta entrada de Robert e Magdalena Scholl na sala de audiência,89 surpreendendo Freisler e os oficiais da Gestapo presentes. Em uma tentativa desesperada de salvar os seus filhos, Robert tentou argumentar pela soltura dos jovens, lutando para se fazer ouvir, mas o juiz Freisler logo ordenou que ele fosse retirado da sala. A audiência, que começou por volta das 10 horas da manhã, foi interrompida para a deliberação dos juízes por volta de 13h30. A deliberação foi curta e a sentença foi imediata: morte por guilhotina. Samberger relata: Minha indignação e compaixão haviam atingido o auge. Dei meia-volta enquanto as portas eram fechadas e fui em direção aos pais. Apresentei-me como estagiário do tribunal, expressei em poucas palavras o quanto o processo tinha me repugnado e ofereci aos Scholl minha ajuda naquela situação desesperadora. Para mim estava muito claro que esse apoio seria, sobretudo, moral. Falávamos sobre o processo enquanto a sentença era pronunciada na sala. Logo, a porta foi aberta. O público saiu. Foi confirmada a sentença que era de se esperar. Os pais suportaram o momento com uma postura aparentemente equilibrada, digna de admiração. O pai ainda tentou expressar seu horror em altos brados. Pedi que ele se acalmasse imediatamente para que a catástrofe não fosse ainda maior. Então o advogado de defesa de Hans Scholl 88 89 Testemunho de Leo Samberger, sem data. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 207-208. Robert Mohr também dá o mesmo testemunho acerca desse evento. 214 veio falar com os pais. Ele não disse nenhuma palavra de consolo nem esboçou qualquer gesto de compaixão. Ainda por cima foi capaz de censurar os pais por terem ‘educado tão mal seus filhos’.90 Samberger auxiliou Robert Scholl a dar entrada com um pedido de clemência para o procurador regional de Justiça, com quem falou pessoalmente, mas mesmo com esse pedido, não foi possível conversar diretamente com o procurador geral do Reich. Samberger se colocou à disposição de Robert Scholl para ajudar no que mais fosse possível e, os dois se encontraram no fim da tarde, quando Robert pediu para que Leo redigisse um pedido de clemência para Christoph Probst, que também havia sido condenado. No entanto, ele se recorda que assim que entregou o pedido de clemência a Robert Scholl, soube “por um conhecido que estava sentado por acaso em uma mesa ao lado, que havia sido anunciado no rádio que as sentenças de morte tinham sido executadas às 17 horas”. Samberger relata que não conseguiu contar isso para a família e, que ficou com eles por algumas horas, tentando acalmá-los e distraí-los, até que por volta das 22 horas, eles pegaram um trem de volta para Ulm, sem saber da execução e na esperança que esse processo fosse mais demorado.91 De acordo com Inge Scholl, seus pais souberam da prisão de seus irmãos na sexta-feira, dia 19 de fevereiro, mas que, como não eram permitidas visitas no fim de semana, só foram para Munique na segunda, dia 22. O estudante Jürgen Wittenstein os recepcionou na plataforma de trem e os conduziu rapidamente para o Tribunal do Povo, onde o julgamento já estava em andamento. Segundo Inge “ninguém esperava que tudo acontecesse tão depressa, e só mais tarde viríamos a saber que se tratava de um ‘procedimento sumário’, pois os juízes queriam oferecer um exemplo drástico dando um fim rápido e assustador aos réus”.92 Hans e Sophie Scholl foram enterrados no dia 24 de fevereiro no cemitério Perlach, ao lado da prisão de Stadelheim, onde haviam sido executados. Inge se recorda que apenas três dias depois a Gestapo prendeu sua família sob custódia preventiva em Ulm. Seu irmão Werner foi poupado, por estar usando uniforme de soldado e estar sob jurisdição militar, e sua irmã Elisabeth também foi solta por motivos de saúde. Após algum tempo de investigação, a Gestapo acusou Inge, Robert e Magdalena de escutarem Thomas Mann em rádios internacionais proibidas. Inge e Magdalena foram colocadas em solitárias, contudo, ao longo das semanas, ambas ficaram muito doentes e foram liberadas temporariamente por questões de saúde em julho de 1943. No julgamento dos Scholl em agosto, Inge e sua mãe foram absolvidas, enquanto 90 Testemunho de Leo Samberger. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 209-210. Idem, ibidem, p. 211. 92 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 75. 91 215 seu pai foi condenado a dois anos de trabalho compulsório.93 Não consegui determinar se Robert Scholl cumpriu sua sentença. Aqui ainda precisamos nos ater aos depoimentos de Gisela Schertling e Katharina Schüddekopf, ambas rés do segundo processo da Rosa Branca. As declarações de Gisela são particularmente importantes pois é através dela que a Gestapo prende mais associados à resistência de Munique, e, ainda, porque é por meio dela que podemos dar mais alguns passos quanto à compreensão da personalidade da figura de Hans Scholl. Gisela Schertling conhecia Sophie Scholl desde os tempos de trabalho compulsório para o Reich, já que ambas trabalharam juntas no campo de Krauchenwies, em 1941. Ela manteve uma relação de amizade com Sophie desde então, e conheceu Hans Scholl no final de 1942, 14 dias antes do Natal, quando ela já estava estudando na Universidade de Munique. Gisela, nos primeiros interrogatórios para a Gestapo,94 afirma não saber nada sobre atividades panfletárias dos Scholl e nem da participação de Schmorell, Graf ou Probst, pessoas que ela conheceu apenas superficialmente. Hans Scholl também reitera essa afirmação de Gisela, mas, mesmo no primeiro momento, a alegada ignorância de Gisela já levanta suspeitas. Afinal, admitir conhecimento sobre essas atividades levaria no mínimo à prisão da jovem; e, por outro lado, não informar quase ninguém de seus planos era uma estratégia de Hans Scholl, para limitar o número de pessoas implicadas caso fossem pegos. Algumas das afirmações de Schertling contradizem a declaração de que ela não sabia de nada. Por exemplo, a jovem admite estar presente em várias situações que podem ser consideradas suspeitas, como dias em que Sophie, Hans e Schmorell ficaram “trabalhando” até às cinco horas da manhã, ou reuniões do círculo em que era falado abertamente que o regime nazista precisava ser eliminado e substituído por uma democracia ou um governo que proporcionasse mais liberdade aos cidadãos, reuniões em que afirmava-se que era necessária uma revolução para fazer uma transição entre o governo nazista e o novo governo. Gisela também estava presente no encontro com Falk Harnack onde o próprio declarou que foram discutidas as formas de inserção da Rosa Branca em uma resistência mais abrangente e nacional. Entretanto, Gisela insiste que mesmo em todas essas ocasiões, ela não sabia do que 93 VINKE. The Short Life of Sophie Scholl, pp. 198-199. Interrogatório de Gisela Schertling. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Gisela Schertling and Katharine Schüddekopf, posição 345-371. 94 216 estava acontecendo e que nunca questionou seu namorado sobre nada disso – e os depoimentos de Schmorell, Harnack e dos Scholl95 corroboram em uníssono para essa afirmação. Em um segundo momento, no entanto, Gisela Schertling admite ter tido conhecimento dos atos de Hans Scholl, mas declara que não participou de nenhuma dessas atividades. Ela diz que Hans contou de seus planos depois de ela ver uma pilha de panfletos em sua escrivaninha, e que ele lhe disse que os panfletos seriam enviados para os estudantes, e que eles planejavam distribuir na universidade. Ele também contou que havia sido ele quem havia pintado os slogans de “Fora Hitler” e “Liberdade” nos muros de Munique. Gisela ainda admite que ela e Sophie Scholl enviaram panfletos pelos correios juntas, mais de 50 exemplares, mas que, além disso, ela não havia distribuído nenhum panfleto e que não sabia do processo de produção e distribuição dos folhetos. Ela justifica suas atitudes dizendo que foi levada a tudo isso pelo seu amor por Hans, que exercia uma enorme influência sobre ela, impossibilitando-a de dizer não e fazendo-a pensar que não havia nada que ela pudesse fazer além de ajudar. Sobre seu relacionamento com Hans Scholl, Schertling faz acusações que são polêmicas e que não aparecem na literatura sobre a Rosa Branca. Ela afirma que ele foi o primeiro homem com quem ela teve relações sexuais, e incialmente declara que a primeira vez que ela e Hans passaram a noite juntos e fizeram sexo, foi na noite do dia 16 para o dia 17 de fevereiro. Posteriormente, Gisela conta sobre a noite de 6 de janeiro de 1943, quando, após ir a um concerto com Hans Scholl, ambos foram para o ateliê de Eickemeyer. Quando ficou tarde, Hans levou-a para seu apartamento, e, segundo Gisela, lhe deu uma dose de morfina, para ver qual seria o efeito da droga sobre a moça.96 Segundo a jovem, após essa noite, Hans seguia-a para todo lugar, e ela muda seu depoimento acerca da atividade sexual do casal, afirmando que após essa noite de janeiro, Hans foi a seu apartamento e foi muito insistente, e que nesse dia eles fizeram sexo, o que “se tornou uma regra” depois. Gisela declara que não se sentia bem com esse tipo de relação, mas que Hans prometia que ia se casar com ela e continuava sendo muito insistente e incômodo. Quando Gisela disse que queria terminar o namoro, Hans ameaçou suicídio, uma intimidação que ela levou a sério e que, segundo ela, foi o motivo da sua permanência na relação. A jovem afirma que Hans Scholl não dava tempo para ela pensar por si mesma, que ela não conseguia expressar suas opiniões, já que vinha de uma família profundamente Nacional-Socialista e, portanto, divergia dos ideais 95 Depoimentos incluídos no caso de Gisela. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Gisela Schertling and Katharine Schüddekopf, posição 625-397. 96 Interrogatório de Gisela Schertling. Idem, ibidem, posição 954. 217 de Hans em muitos aspectos. O pai de Gisela era membro do Partido, suas irmãs participaram do BDM e todos os filhos tiveram uma educação baseada nos princípios nazistas. Mais tarde, ele sempre tentou me colocar na linha. Ele me mostrou sua biblioteca. A maioria dos livros nela me eram desconhecidos e nunca tinha ouvido falar deles. Ele disse que todos deveriam ler esses livros. Ele sempre disse que tinha experimentado muitas coisas e que ele era maduro além de seus anos. Ele tinha uma personalidade muito dominante. Ele sempre teve que ter um círculo de pessoas ao redor dele que ele pudesse dominar. [...] Foi tão estúpido que o que eles disseram muitas vezes era completamente oposto ao que eu sentia ser verdade. Mas eles eram tão inteligentes, e eles tinham esse conhecimento da história e trabalharam com tantas provas e fatos, que, embora eu soubesse que eles não estavam certos e sabia que não podia acreditar no que disseram, também não consegui provar o que eu acreditava para eles da mesma forma que eles me provaram as coisas. [...] Então me tornei muito indiferente. Eu tinha a sensação de que eu estava sendo moldada, que eu não era mais eu mesma, e que eu não podia mais pensar por mim. Não fazia sentido dizer nada a eles.97 Os pais de Gisela deram um depoimento dizendo que ela sofria de depressão e que possuía alguns distúrbios psicológicos que poderiam explicar sua submissão e vulnerabilidade a Hans Scholl. Gustav Beer, responsável pela comissão especial para analisar o caso, declarou que, ao avaliar o depoimento de Gisela, acreditava que ela estava falando a verdade e que Hans havia influenciado a jovem por meio de drogas e abuso intelectual e psicológico, e que, aliado a declaração de seus pais, seria necessária uma avaliação de um profissional de psiquiatria para determinar se ela era culpada ou não. Nada disso ajudou o caso de Gisela, que foi transferida para a prisão de Neudeck no dia 6 de abril, onde aguardou o julgamento por trás das grades. O advogado de defesa que os Schertling contrataram para o caso da filha, Karl Götz, explorou intensamente o alegado desequilíbrio mental e emocional de Gisela para inocentá-la, porém, apesar dos esforços, ela foi condenada a um ano de prisão. Certamente o caso de Gisela é o que traz mais reservas e dúvidas acerca da veracidade de seu testemunho. Após a “estratégia” de apelar para uma possível doença psiquiátrica da jovem, podemos alimentar incertezas sobre tudo o que foi dito desde o começo, inclusive sobre “Later, he always tried to set me straight. He showed me his library. Most of the books in it were unknown to me and I had never heard of them. He said everybody should have read those books. He always said that he had experienced many things and that he was mature beyond his years. He had a very dominating character. He always had to have a circle around him that he could dominate. […] It was so stupid that what they said often was completely opposite to what I felt was true. But they were so smart, and they had such knowledge of history and worked with so many proofs and facts, that although I often knew they were not right and I knew I could not believe what they said, I also could not prove what I believed to them the same way they proved things to me. […] I then became very indifferent. I had the feeling that I was being molded, that I was no longer myself, and that I could no longer think for myself. It made absolutely no sense to say anything to them” Tradução minha. Interrogatório de Gisela Schertling. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Gisela Schertling and Katharine Schüddekopf, posição 1191-1212. 97 218 sua oposição às ideias da Rosa Branca, sobre a insistência de Hans Scholl e sobre a noite em que ele lhe deu uma dose de morfina. E, ainda, é importante frisar que ela supostamente compartilhava dos ideais nacional-socialistas e que vinha de uma família nazista – portanto, sua colaboração com a Gestapo faz todo sentido. Possivelmente por essa colaboração, a Gestapo se debruçou apenas no seu testemunho para a investigação de outros membros do círculo dos Scholl, no terceiro tribunal da Rosa Branca, em abril de 1943. No entanto, após delatar pelo menos três pessoas, Gisela teve a mesma pena de Traute Lafrenz, que participou ativamente da resistência em Hamburgo. Então, realmente é possível questionar até que ponto se deu sua falta de envolvimento na Rosa Branca, se ela realmente não tinha mudado de ideia quanto ao regime nazista, ou, ainda, se de fato compartilhava dos ideais do Führer, visto que tudo isso poderia ter sido apenas uma forma de fugir da pena de morte. No entanto, Ruth Sachs chama atenção para alguns comportamentos de Hans, que sua irmã Inge deliberadamente deixa de lado ao escrever sobre a história da Rosa Branca – e que a literatura sobre o tema também não menciona. Em primeiro lugar, o abuso sexual de um menino anos mais jovem quando Hans estava na Juventude Hitlerista, e era seu superior imediato – situação já tratada no Capítulo Um. Em segundo, sua “preferência” por meninas (e talvez por meninos) significativamente mais jovens. Sua primeira namorada foi Lisa Remppis, e depois Rose Naegele, cuja família os Scholl conheciam há anos - Sophie inclusive ilustrou a tradução de Peter Pan feita por Hanspeter Naegele. Lisa, Rose e Gisela eram amigas de Sophie inicialmente e depois viraram namoradas de Hans, por um breve período de tempo. Sobre Lisa, Hans escreve aos seus pais em 1938 dizendo que “em Lisa, encontrei uma pessoa que eu posso amar de todo o coração. Não me entenda mal, no entanto. Eu sei que Lisa ainda é quase uma criança, e não estou privando-a de sua infância. Não posso filosofar com ela. Ela é tão natural e nova, e é exatamente isso que eu preciso”.98 Rose Naegele era mais nova do que Sophie, que já era três anos mais nova do que Hans, e foi uma jovem com quem ele manteve correspondência até o fim de sua vida e com quem ele eventualmente fazia investidas “românticas” mesmo estando em outros relacionamentos. Ademais, existe o fato de não sabermos nada sobre o relacionamento de Hans e Traute Lafrenz, com quem ele namorou por cerca de um ano e meio, antes de “desviar sua atenção” para Schertling. A própria Traute não fala sobre seu relacionamento com ele. Todas essas questões “In Lisa I’ve found a person I can love wholeheartedly. Don’t misunderstand me, though. I realize Lisa’s half a child still, and I’m not depriving her of her childness. I can’t philosophize with her. She’s so natural and fresh, and that’s just what I need”. Tradução minha. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, pp. 11-12. 98 219 podem parecer superficiais a princípio, mas servem como conjunto para atentar para a personalidade de Hans Scholl. Creio ser importante a desconfiança da fonte e todas as ressalvas apontadas. Nunca saberemos se Gisela era realmente nazista e estava sob total influência do seu namorado, ou se ela se desiludiu com o Partido (como tantos outros) e resolveu ajudar com a resistência da Rosa Branca, e, portanto, agiu mais diretamente do que ela declarou para a Gestapo. Não sabemos também se Hans de fato foi abusivo com ela e se lhe deu uma dose de morfina para “acalmála” quanto às suas investidas sexuais. De toda forma, é fundamental dar voz a essa fonte, ainda que controversa e ainda que não cheguemos a uma conclusão final sobre seu depoimento. Nas declarações de Schertling descobre-se também que o padrasto de Christoph Probst, Harald Dohrn, estava frequentemente no apartamento de Hans Scholl e nas reuniões do círculo. Alex Schmorell descreve-o como um homem profundamente religioso e Gisela Schertling afirma que ele era um católico oposicionista ao Nacional-Socialismo, sendo muito crítico à limitação da liberdade das igrejas durante o governo nazista. Ela diz que, pelas suas declarações, ele parecia ser contra a unificação do Reich por entender que existiam contrastes muito profundos entre a Bavária e a Prússia. Dohrn foi preso durante o terceiro julgamento dos membros da Rosa Branca, juntamente com Manfred Eickemeyer, Wilhelm Geyer e Josef Söhngen, em 13 de julho de 1943, precisamente por conta do depoimento de Gisela Schertling.99 Josef Söhngen, o livreiro de Munique, foi condenado a seis meses de prisão, que ele descreve em carta a Inge Scholl como um período com “condições de higiene insuportáveis” e “tratamento indigno”;100 Eickemeyer, Geyer e Dohrn foram condenados a três meses de prisão, além da obrigação de pagar uma multa ao Reich. Dohrn continuou no caminho da resistência. Em 1945, ele escutava uma rádio de Munique clandestina proibida , chamada Freiheitsaktion Bayern, conhecida como FAB.101 A FAB chamava para uma resistência não violenta, denominada de “Ação da Liberdade”, 102 nos últimos dias da guerra, quando as tropas americanas já estavam próximas. Essa resistência se baseava, na realidade, na rendição da Bavária às tropas americanas e na colaboração dos civis para que o processo de ocupação fosse o mais pacífico possível. Alguns insurgentes atenderam 99 Interrogatório de Gisela Schertling. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Gisela Schertling and Katharine Schüddekopf, posição 726-738. 100 Testemunho de Joseph Söhngen. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 146. 101 Uma breve descrição do funcionamento da FAB pode ser obtida em: https://www.historisches-lexikonbayerns.de/Lexikon/Freiheitsaktion_Bayern_(FAB) Acesso em 25/07/17. 102 Inge Scholl comenta sobre esse episódio. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 85. 220 ao chamado da FAB em 29 de abril de 1945 e foram presos e imediatamente assassinados a tiros pela SS - dentre eles, Harald Dohrn.103 Outra mulher presa junto com Gisela Schertling foi a estudante de doutorado de Kurt Huber, Katharina Schüddekopf. Filha de pais alemães, Katharina, assim como Huber, foi liberada de todos os serviços compulsórios no Reich devido a uma deficiência física. Seu interrogatório começou em 23 de março de 1943, quando ela explica que conheceu os Scholl através de Traute Lafrenz, em meados de 1942, e logo foi convidada a uma das reuniões na casa de Alex Schmorell e também para a festa de despedida dos amigos no ateliê de Eickemeyer, em julho daquele ano. Katharina não sabe precisar em qual das duas ocasiões as temáticas de resistência foram abordadas. No entanto, em um desses encontros, ela se recorda que Hans Scholl expressou sentimentos e posições contrárias ao regime, que o tema da resistência passiva foi colocado, e que ele lhe apresentou um Panfleto da Rosa Branca, sem lhe dizer quem era o autor. Traute Lafrenz ainda estava namorando com Hans durante essas ocasiões. Dias depois, Katharina afirma que recebeu uma cópia da terceira edição do Panfleto da Rosa Branca diretamente de Hans Scholl, e que entregou essa cópia a Traute quando ela lhe pediu. A estudante diz que Lafrenz parecia já ter conhecimento do conteúdo do panfleto quando lhe fez esse pedido.104 Katharina declara ter se encontrado em poucas ocasiões com o círculo dos Scholl e que conhecia os integrantes apenas superficialmente. Ela também afirma que não sabia do envolvimento de ninguém em ações de resistência panfletária, que não desconfiava de ninguém e que não participou de nenhuma forma de dissidência. No entanto, ela estava presente na palestra de Giesler, que resultou em uma revolta estudantil espontânea, como vimos. Como Hans Scholl não estava presente na palestra (devido a adesão ao ideal de sabotagem, como sabemos), ela reportou para ele o ocorrido, e afirma que ele lhe disse que ele jamais teria se sacrificado por algo tão pequeno, e que naqueles dias, era importante se preparar para algo grande. É possível que Katharina realmente não sabia de nada que estava acontecendo e que apenas estava presente em algumas ocasiões em que a temática da oposição ao regime foi 103 SACHS, Ruth. Evolution of Memory: Volume One. Historical Revisionism as Seen in the Words of George J. (“Jürgen”) Wittenstein. California, USA: Exclamation Publishers, 2011, p. 242. Informações sobre Dohrn também são encontradas em: SACHS, Ruth. White Rose History: Volume I: January 31, 1933 – April 30, 1942. Academic Version. D.E.Heap, Joyce Light (editors). Utah, USA: Exclamation Publishers, 2003; Third White Rose Trial: July 13, 1943 (Eickemeyer, Söhngen, Dohrn and Geyer). Por Ruth Sachs (Tradutor). California, USA: Exclamation Publishers, 2003. 104 Interrogatório de Katharina Schüddekopf. In: Gestapo Interrogation Transcripts: Gisela Schertling and Katharine Schüddekopf, posição 1818-1978. 221 discutida – como era comum no círculo dos Scholl. Ela mantém o seu depoimento do começo ao fim, ao contrário de Gisela, por exemplo. Todavia, como com outros testemunhos dados à Gestapo, não é possível ter certeza de suas reais convicções políticas. Katharina foi sentenciada a um ano de prisão, assim como Gisela e Traute. Sentenças do Tribunal do Povo A primeira sentença do Tribunal do Povo foi contra Sophie e Hans Scholl e Christoph Probst, em 22 de fevereiro de 1943. A acusação, pela qual os réus foram condenados à morte e à “privação de seus direitos civis para sempre”, se deu porque “durante a guerra, os réus incitaram a população, por meio de panfletos, a sabotar o armamento e destituir o nosso povo de seu estilo de vida nacional-socialista”. Com isso, eles continuamente estavam “propagando ideias derrotistas e ofendendo o Führer da maneira mais traiçoeira possível e, portanto, favorecendo o inimigo do Reich e corrompendo nossa força militar”. 105 Os fundamentos para as acuações e sentenças são explicados através de uma descrição dos réus. Hans Scholl é retratado como um estudante de medicina que seguiu seus estudos “graças à assistência do regime nacional-socialista”. Porém, como estudante, ele teria o “dever de trabalhar para a sociedade de modo exemplar. Como soldado, ele foi destacado para estudar na universidade e tem um especial dever de lealdade para com o Führer”. Ou seja, ele teria um duplo dever com a Alemanha, como médico-estudante e como soldado. A linguagem usada nos fundamentos é informal, explorando com veemência as acusações, contém uso excessivo de exclamações e algumas ironias. Ao falar sobre o conteúdo dos Panfletos da Rosa Branca, que chamava para a resistência passiva e sabotagem e tinha por objetivo “distanciar o povo alemão de seu estilo de vida nacional-socialista e, portanto, também de seu governo”, o texto termina com a afirmação: “isso porque ele [Hans] imaginava que só assim o povo alemão poderia sobreviver à guerra!!”.106 Sobre a Rosa Branca, o documento escrito pelo juiz Roland Freisler declara que eles fizeram propaganda política para organizar a população contra a guerra e propor uma aliança com “as plutocracias inimigas do Nacional-Socialismo”, além de fazerem “reivindicações no sentido de uma democracia formal liberal”.107 105 Sentenças do Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 122. Idem, ibidem, p. 122. 107 Idem, ibidem, p. 123. 106 222 Há uma descrição das atividades panfletárias bem como as tiragens dos panfletos, como já exposto anteriormente. Sobre Christoph Probst, Freisler diz que “ele é uma pessoa ‘apolítica’, e que, portanto, não é um homem de verdade”, já que havia sido a política nacional-socialista que havia dado condições para que ele pudesse estudar e ter uma família. Essa questão de se declarar “apolítico” é recorrente nos depoimentos e interrogatórios da Gestapo. Muitos interrogados atestam não ter interesse por política e afirmam que se não fosse pela guerra, eles nem se importariam com os acontecimentos do país. Um recurso comum para escapar de acusações, mas também um reflexo da vida dos homens de massa da sociedade totalitária. Probst, com seu manuscrito de um panfleto, teria clamado para um “derrotismo covarde” usando a “heroica luta em Stalingrado como oportunidade para insultar o Führer”. 108 Além disso, em seu texto, Probst faz uma referência a Roosevelt, o que o coloca em acusação direta de escutar rádios estrangeiras proibidas. Segundo o documento, Hans e Sophie confessaram seus crimes, mas Probst tentou argumentar “alegando uma ‘depressão psicótica’ no momento da redação. A causa disso teria sido Stalingrado e a febre puerperal de sua esposa” e afirmou que o manuscrito não seria transformado em um panfleto. Mas isso não importou para o juiz Freisler. Os réus são condenados por traição ao povo, são privados de seus direitos civis e também são obrigados a arcar com os custos do processo e da posterior execução. O documento termina com os motivos finais do veredito: Aquele que, como os réus, comete alta traição no front interno e, com isso, corrompe a nossa força militar em plena guerra e, portanto, favorece o inimigo do Reich (artigo 5 do Código Penal Alemão para o caso de Guerra e artigo 91b do Código Penal Alemão), ergue a adaga para com ela apunhalar as costas do front! [...]. Quem age assim tenta produzir uma primeira cisão na forte união de nossa frente de combate, justo agora, quando é fundamental estarmos fortes e unidos. E quem fez isso foram estudantes alemães, que sempre se distinguiram pelo autossacrifício em nome do povo e da pátria! Se tal ação não fosse punida com a morte, representaria o início de uma reação em cadeia, cujo desfecho seria o mesmo de 1918. Assim, para que o Tribunal do Povo proteja o povo combatente e o Reich, só existe uma pena justa: a pena de morte. Dessa forma, o Tribunal do Povo tem certeza de representar a opinião de nossos soldados!109 O teor propagandístico é algo que chama a atenção nessas sentenças. Freisler realiza acusações como se estivesse em um discurso do Partido Nazista, usando todos os chavões partidários e ideológicos possíveis. O juiz parece ficar realmente indignado que estudantes 108 Sentenças do Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 124. Idem, ibidem, p. 87; GILES, Geoffrey J. Students and National Socialism in Germany. Princeton University Press, 1985, p. 122. 109 223 alemães, que “usaram o dinheiro do Reich para estudar”, se voltassem contra o seu próprio país, enfraquecendo o front doméstico. Como médicos soldados, eles deveriam estar fortalecendo o front doméstico quando não estivessem no front de guerra. Isso representa como Stalingrado foi realmente um baque para a popularidade de Hitler, como dito anteriormente, que abalou não só os soldados como os próprios civis alemães. As dúvidas quanto à necessidade da guerra e com relação à administração do governo nazista estavam cada vez mais latentes. Ademais, é perceptível como a execução dos membros da Rosa Branca representava uma forma de “dar o exemplo” para que nenhum outro dissidente sequer tentasse seguir pelo mesmo caminho. Como dito no Capítulo Um, mais importante que o terror, era o medo do terror; e reprimir violentamente uma forma de resistência servia para amedrontar qualquer oposição que estivesse surgindo. A segunda sentença se deu no dia 19 de abril de 1943, contra Kurt Huber, Willi Graf, Alex Schmorell, Falk Harnack e mais dez outros: Hans Hirzel e Susanne Hirzel, de Ulm, 19 e 22 anos respectivamente; Franz Joseph Müller, de Ulm, 19 anos; Heinrich Gutter, de Ulm, 18 anos; Eugen Grimminger, de Stuttgart, 51 anos; Dr. Heinrich Philipp Bollinger, de Friburgo, 27 anos; Helmut Karl Theodor August Bauer, de Friburgo, 24 anos; Gisela Schertling, de Munique, 21 anos; Katharina Schüddekopf, de Munique, 27 anos; e Traute Lafrenz, de Munique, 24 anos. O juiz designado mais uma vez foi Roland Freisler. Os motivos para a condenação à morte de Schmorell, Graf e Huber são os mesmos da primeira sentença. Eugen Grimminger foi condenado a dez anos de reclusão com trabalhos forçados e dez anos de perda de sua honra por ter financiado com 500 Reichsmark uma alta traição, mesmo que afirmasse não saber que estava ajudando a favorecer a ação panfletária. Grimminger, um homem casado com uma judia e amigo de Robert Scholl, foi abordado em Stuttgart por Alex Schmorell e Hans Scholl, para auxiliar financeiramente na ação de resistência que eles estavam propondo.110 Traute Lafrenz se lembra que Grimminger lutou muito para escapar da pena de morte, mas que saiu decepcionado com o círculo de Munique, pois “Hans teria descrito tudo de forma tão espetacular, como se todo um governo democrático novo, no qual ele já era praticamente ministro, já estivesse em preparação”.111 110 111 HANSER. A Noble Treason, pp. 191-192. Testemunho de Traute Lafrenz. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 153. 224 O documentário de 2008 da diretora Katrin Saybold, Os resistentes: testemunhos da Rosa Branca,112 conta com testemunhos de membros e associados da Rosa Branca que sobreviveram ao nazismo e serve como uma fonte riquíssima para essa dissertação. Ele conta com os testemunhos de Anneliese Knoop-Graf, irmã de Willi Graf; Birgit Weiss-Huber, filha mais velha de Kurt Huber; Dieter Stasse, meio-irmão de Christoph Probst; Elisabeth Hartnagel, irmã de Sophie e Hans Scholl; Erich Schmorell, meio-irmão de Alex Schmorell; Franz J. Müller, Hans Hirzel, Heiner Guter, membros do grupo de secundaristas de Ulm; Herta SieblerProbst, viúva de Christel Probst; Jürgen Wittenstein, amigo dos membros; Lilo Fürst-Ramdohr, amiga de Alex e na época noiva de Falk Harnack; Nikolai Hamazaspian, amigo de Alex Schmorell; Susanne Zeller-Hirzel, irmã de Hans Hirzel e amiga de Sophie; e Traute Lafrenz. O documentário pretende, de certa forma, desmistificar a aura heroica da Rosa Branca, apresentando vozes de amigos, familiares e conhecidos, tentando principalmente mostrar que a Rosa Branca não era delimitada apenas pelos irmãos Scholl, ou ainda, apenas pelo círculo Scholl-Schmorell-Graf-Probst-Huber, como ressaltado no começo do capítulo. Como lembra Ruth Sachs,113 nas reuniões no ateliê de Eickemeyer, geralmente se reuniam um grupo de 25 a 30 jovens e estudantes. Nessas reuniões, o tema da resistência inevitavelmente aparecia e, sabe-se que os Scholl só se sentiam confortáveis para falar de qualquer tipo de oposição ao regime nazista quando conheciam bem os seus interlocutores e sabiam que eles partilhavam das mesmas ideais. Sendo assim, o debate promovido nessas reuniões foi fundamental para a forma da resistência panfletária da Rosa Branca e é preciso ouvir essas vozes, durante tanto tempo negligenciadas pela literatura e extremamente significativas para observar as nuances da Rosa Branca. Como muitos desses testemunhos fizeram parte do segundo processo do Tribunal, escolhi incluí-los nesta parte do texto para compreender melhor suas ações. Heinrich Bollinger e Helmut Bauer foram condenados a sete anos de reclusão com trabalhos forçados por ouvirem rádios estrangeiras e por terem conhecimento das atividades de resistência e não terem denunciado. Bauer e Bollinger foram recrutados por Willi Graf em uma de suas viagens, uma vez que Willi já os conhecia de um grupo de jovens católicos chamado A O documentário, “Die Widerständigen: Zeugen der Weissen Rose”, me foi fornecido gentilmente por Yasmin Utida, que o legendou para português como parte da sua dissertação de mestrado. As citações do documentário utilizadas aqui estão na dissertação de Utida, que incluiu também uma tradução intermediária dos testemunhos no texto. Não posso agradecê-la o suficiente por ter me fornecido essa fonte tão importante nos “finalmentes” do meu processo de escrita. 113 SACHS, Ruth. White Rose History: Volume I. 112 225 Nova Alemanha. Willi foi para Friburgo, Bonn e Saarbrücken em busca de aliados. Segundo sua irmã Anneliese Graf, em seu testemunho para o documentário de Seybold, havia um impasse moral: “pode-se matar o tirano em um Estado ilegítimo ou deve prevalecer o mandamento cristão ‘Não matarás’? ”. Não obstante, ela conta que “Henrich Bollinger disse que eles tinham armas e acrescentou que ‘nós éramos da opinião que as armas que tínhamos seriam usadas em caso de emergência’”.114 Uma figura interessante que surge no documentário de Seybold é Nikolai Daniel Nikolaeff-Hamazaspian, que, como dito anteriormente, teve um papel mais importante e ativo do que somos levados a imaginar. Em sua entrevista para o filme, ele conta que contribuiu com a resistência da Rosa Branca comprando “papel para a impressão dos panfletos” e acompanhando “Alex em uma viagem a Salzburg para distribuir os impressos”. 115 Nikolai também relata que entregou por vontade própria seu passaporte a Alex Schmorell para auxiliálo em sua fuga e, que nessa ocasião, o amigo afirmou que diria às autoridades que o documento havia sido roubado.116 Nikolaeff foi preso pela Gestapo, e, apesar de a declaração de Schmorell ter conseguido inocentá-lo, o jovem foi preso em diversas outras ocasiões por associação a resistência da Rosa Branca. Franz Müller e Hans Hirzel estudaram na escola secundarista humanista de Ulm e ficaram conhecidos na história da Rosa Branca como o “grupo secundarista de Ulm”. Esse grupo era composto por meninos bem jovens, entre 16 e 18 anos, amigos da família Scholl de longa data. Müller ajudou na ação panfletária juntando selos e envelopes, reunindo dinheiro para a compra desses materiais e roubando selos do escritório de seu pai, um funcionário do Reich.117 Müller e Hans Hirzel também se reuniram em um esconderijo atrás do órgão da Igreja Martin Luther para colocar endereços nos envelopes. Nessa igreja, onde o pai de Hirzel era pastor, ele também conseguiu esconder uma máquina de escrever, envelopes e selos, e o jovem também comprou um mimeógrafo com o dinheiro de Eugen Grimminger. Hirzel e Müller afirmam terem endereçado mais de mil envelopes com panfletos.118 Freisler os descreve como 114 Transcrição da entrevista de Anneliese Graf. In: UTIDA, Yasmin Cobaiachi. Tradução e memória: a legendagem de um filme-testemunho sobre a Rosa Branca. Dissertação de mestrado (Língua e Literatura Alemã, área de concentração: tradução) – Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas, Universidade de São Paulo (USP): São Paulo, 2017, p. 272. Inge Scholl também fala dessa questão. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 84. 115 UTIDA, Yasmin Cobaiachi. Tradução e memória, p. 161. 116 Trascrição da entrevista de Nikolai Nikolaeff. Idem, ibidem, p. 318. 117 Idem, ibidem, p. 148. 118 Idem, ibidem, pp. 151-152. 226 “rapazes imaturos seduzidos pelos inimigos do Estado”, e eles foram condenados a cinco anos de prisão.119 Heinrich Guter também fez parte da escola de secundaristas de Ulm, mas não se envolveu nas atividades de resistência. No entanto, foi condenado a dezoito meses de prisão por não ter denunciado as práticas. Susanne Hirzel, grande amiga de Sophie Scholl, colaborou com as ações da Rosa Branca ao distribuir com seu irmão, Hans, milhares de panfletos em Stuttgart. Ela conta que escondeu parte dos panfletos no estrado da sua cama, colocou outra parte em uma pasta e distribuiu pelas ruas da cidade. Susanne repetiu esse procedimento três ou quatro vezes até que tivesse se livrado de todos os panfletos.120 Como combinado, se fosse pega pela Gestapo, a jovem diria que não sabia o conteúdo dos panfletos, que apenas os havia distribuído a pedido de seu irmão. Por isso, ela foi condenada a seis meses de prisão. Freisler parece chocado com o fato de três alunos da mesma classe escolar secundarista estarem envolvidos nesse caso e afirma que “deve ter algo de errado na moral dessa classe, algo que este colegiado não pode imputar somente a esses dois garotos [Hirzel e Müller]. É uma vergonha que haja tal classe em uma escola secundária humanista!”. 121 Como dito anteriormente, Gisela Schertling, Katharina Schüddekopf e Traute Lafrenz foram condenadas a um ano de prisão, “por serem moças”.122 O grupo de secundaristas e as mulheres eram vistos como “moços tolos e moças tolas, que não ameaçam seriamente a segurança do Reich”.123 Falk Harnack, como vimos, foi liberado como uma estratégia da Gestapo para descobrir contatos da resistência em Berlim. A justificativa do Tribunal do Povo para sua soltura foi: “no seu caso há circunstâncias tão únicas e especiais que não se pode condená-lo por causa dessa omissão [de denunciar as atividades de traição]”.124 Ele foi o único que não teve que arcar com os custos de sua ação penal. A segunda sentença dos membros da Rosa Branca foi considerada vinculada à sentença anterior. Foi feito um resumo das acusações contra os Scholl e Probst, em que Freisler menciona que os Scholl “vem de uma família que também defendia uma posição inimiga do povo alemão e, nela, não receberam educação que os transformasse em verdadeiros compatriotas 119 Sentenças do Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 128. Testemunho de Susanne Hirzel. In: UTIDA, Yasmin Cobaiachi. Tradução e memória, p. 163. 121 Sentenças do Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 138. 122 Idem, ibidem, p. 128. 123 Idem, ibidem, p. 137. 124 Idem, ibidem, pp. 128-129. 120 227 alemães”.125 Ele julga que Schmorell, Graf e Huber são “o outro núcleo da organização”, e novamente é feito um ataque à postura de Hans Scholl e Willi Graf por serem estudantes custeados pelo Reich e ainda assim terem cometido traição: Ambos [Scholl e Graf] foram destacados das Forças Armadas nacionalsocialistas para o estudo da medicina. Ambos deveriam ter sido especialmente gratos ao Führer, pois ele financiou – como fez com todos os estudantes de medicina destacados para este fim – a formação acadêmica de ambos; eles recebiam mensalmente – inclusive o subsídio-alimentação – mais de 250 RM [Reichsmarks], além de cerca de 200 RM de mantimentos, mais, portanto, do que a maioria dos universitários recebem de suas famílias. Ambos eram primeiros-sargentos, ambos alistados em Companhias estudantis!126 Essa acusação, é de fato, legítima. Foi devido a tal salário pago pelo Reich que Hans Scholl e Alex Schmorell conseguiram bancar a maior parte da ação panfletária sozinhos. Hans, além desse salário, ainda recebia um adicional de sua família, vivendo em uma posição financeira bastante confortável, com pouquíssimos gastos reais, já que recebia auxílio alimentação. Uma situação diferente da maioria dos alemães, principalmente em tempos de guerra em que a Alemanha se encontrava afundada na política de racionamento. O ataque ao professor Huber, “que se diz filósofo”, foi ainda mais violento, já que o Tribunal considerava que a função do professor universitário como educador da juventude era a de, em tempos de luta, usar da sua influência para fortalecer a confiança de seus estudantes no Führer, no Reich, no povo e “para ajudar a transformá-los em combatentes do nosso povo, fortes e prontos ao sacrifício”.127 No entanto, o que Huber havia feito era, além de redigir ele próprio um panfleto: Ele alimentou dúvidas ao invés de cortá-las pela raiz; ele discursava sobre o federalismo e democracia multipartidária como se fossem necessárias para a Alemanha, ao invés de ensinar e ser ele mesmo um bom exemplo do imbatível Nacional-Socialismo. Ele semeou dúvidas em nossa juventude quando não era o momento de revolver problemas, mas sim de desembainhar a espada. [...]. Quem instiga as nossas Forças Armadas a irem contra o Nacional-Socialismo quer lhes subtrair a força, pois elas estão baseadas na visão de mundo nacional-socialista dos nossos soldados. Isso é o fundamento da invencibilidade do nosso exército revolucionário nacional-socialista! Depois de Fichte e Kant, depois de tantos professores universitários alemães que, como tambores, convocaram os estudantes ao dever, um ‘professor’ como este é uma mácula para a comunidade científica alemã.128 125 Sentenças do Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 129. Idem, ibidem, p. 130. 127 Idem, ibidem, p. 131. 128 Idem, ibidem, pp. 131-132. 126 228 O tom de deboche quanto à formação de Huber faz parte do ritual ideológico típico dos julgamentos de Freisler. Os apelos de Huber para atentar para o fato de Hans e Alex terem deliberadamente cortado frases do panfleto que mudariam completamente o teor do escrito não foram ouvidos pelo Tribunal. Freisler frisa que isso não era uma justificativa e que os nazistas não cometeriam os mesmos erros do governo de Weimar, “que considerava os perpetradores de alta traição e traidores da pátria como homens honrados e lhes concedia, por serem presos políticos, um regime de pena especial”.129 O documento ainda afirma algo que é extremamente representativo quanto à questão da política totalitária: a ideia de que ninguém poderia ter uma opinião contrária ao regime, nem mesmo se essa opinião fosse contrária a apenas alguns de seus dogmas. Freisler diz: “já se foram os tempos em que cada um podia andar por aí com sua própria ‘crença’ política. Para nós, há somente uma medida, a nacional-socialista. Ela é a medida de todas as coisas!”.130 O documento segue então para a descrição dos crimes de cada acusado individualmente e afirma que: Aquele estudante ou professor que insulta o Führer dessa forma não é mais um dos nossos. Aquele que ataca com ferroadas traiçoeiras o NacionalSocialismo não tem mais legitimidade para estar entre nós. Aquele que encarna a alta traição, parida de um cérebro inimigo do povo, e provoca a cisão da nossa unidade e da decisão de lutar está corrompendo nossa força militar; está ajudando o inimigo nessa guerra [...] Aquele que assim age merece a morte.131 O documento define a empreitada da Rosa Branca como a “organização-de-punhaladapelas-costas dentro do ‘movimento de resistência’”, uma clara referência ao mito da punhalada nas costas usado pelo marechal Paul von Hindenburg para justificar a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Esse mito serviu para os nazistas deslegitimarem a democracia e propor um governo autoritário e, nesse momento do Tribunal, quando a moral alemã estava profundamente abalada pelas derrotas na guerra, o termo ressurge para atacar alemães que lutam contra a própria Alemanha. O crime de escutar rádios estrangeiras é ressaltado como uma desobediência à uma ordem direta do Führer e o documento apela para a importância das denúncias de crime de alta traição ao explicar os motivos das punições de alguns acusados. Freisler afirma que “é impossível a polícia estar em todos os lugares” e que “o bem da Comunidade do Povo depende de que cada cidadão que pretenda ser um verdadeiro alemão apoie o partido, o Estado e as 129 Sentenças do Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 132. Idem, ibidem, p. 132. 131 Idem, ibidem, p. 134. 130 229 autoridades e denuncie tais empreitadas de alta traição quando as descobrir”.132 Essa questão é particularmente interessante quando observamos estudos como os de Robert Gellately, 133 que analisa as denúncias da população à Gestapo e conclui que a maior parte das prisões eram feitas justamente em virtude dessas denúncias. A Gestapo não conseguia fazer muita coisa sozinha, era uma organização relativamente pequena, apesar do mito de estar em todos os lugares. Ela de fato poderia estar em todos os lugares, porque contava com a colaboração da população alemã para efetuar suas prisões. Kurt Huber proferiu um discurso em sua defesa perante o Tribunal que ficou particularmente famoso posteriormente. Nesse discurso, ele tenta explicar o que ele já havia declarado à Gestapo, sobre a “guinada à esquerda” do Partido Nazista e de como suas ideologias estavam cada vez mais distantes das propostas iniciais. Huber acreditava que o nazismo estava cada vez mais similar ao bolchevismo. Ele afirma que “no fundo, toda propaganda de imprensa contra o bolchevismo é enganosa se a crescente bolchevização do Estado e do povo alemão não for impedida com todos os recursos legítimos”.134 Ele viu como o único meio para impedir essa guinada à esquerda como “uma atitude aberta e pública de recusa, de refutação, não de resistência”.135 Segundo o professor: Como cidadão alemão, como professor universitário alemão e como pessoa política, julgo ser não só um direito, mas um dever moral contribuir ativamente para a realização política do destino alemão e também revelar e combater erros evidentes. Creio falar em nome de todos os jovens universitários, réus diante deste Tribunal, ao firmar: o objetivo moral de nossas ações era a luta contra o bolchevismo interno que se propaga de maneira cada vez mais amedrontadora no Estado nacional-socialista hoje. O mais alto dever patriótico é sacudir o sono das consciências, de todas as maneiras possíveis.136 Sabemos que essa afirmação não era realmente verdade, já que Hans e Alex não estavam nem um pouco interessados na “luta contra o bolchevismo interno” e nem no retorno aos moldes iniciais do Partido Nazista. Como vimos no último capítulo, Huber foi usado pelos estudantes como uma fonte de legitimação intelectual, mas eles compartilhavam efetivamente de poucos ideais políticos. Huber continua sua explicação: Meu objetivo era despertar os círculos estudantis, não através de uma organização, mas através da simples palavra; não para incitá-los a atos de 132 Sentenças do Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 136. GELLATELY, Robert. Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista. Rio de Janeiro: Record, 2011. 134 Discurso de defesa de Kurt Huber diante o Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 235. 135 Idem, ibidem, p. 236. 136 Idem, ibidem, p. 236. 133 230 violência, mas para fazê-los reconhecer, do ponto de vista moral, os graves erros existentes na vida política. O retorno a princípios morais claros, ao estado de direito, à confiança mútua entre as pessoas – nada disso é ilegal, pelo contrário, é o restabelecimento da legalidade. Eu me perguntei, guiado pelo imperativo categórico de Kant, o que aconteceria se essa máxima subjetiva da minha ação se tornasse uma lei universal. Só pode existir uma resposta! Regressariam então a ordem, a segurança e a confiança no nosso Estado, na nossa vida política. Toda pessoa de atitude moral ergueria conosco a sua voz contra a dominação iminente do mero poder sobre o direito, da mera arbitrariedade sobre a vontade do Bem moral. Retomaríamos algumas das reivindicações que o partido chegou a formular acertadamente, há apenas dez anos. No decorrer dos anos, tais reivindicações não só não foram atendidas, como se converteram em seu oposto. Não só a reivindicação da livre autodeterminação dos grupos, por menores que sejam, tem sido violada em toda a Europa; mas também a exigência de preservar as especificidades de cada raça e povo.137 Como é possível observar, esse é um discurso que contém muitas referências a um retorno, um regresso, uma retomada de valores perdidos. É esse tipo de postura que caracteriza Huber como um resistente conservador, como explicitado anteriormente. Alguém que era contra a postura mais agressiva do Partido naquele momento, mas que tomou com entusiasmo as propostas iniciais do NSDAP e gostaria de ver um retorno a essas propostas. Não havia uma ideia de uma nova ordem política ou de um novo governo; Huber queria uma retomada do que a Alemanha já havia sido nos primeiros anos da liderança de Hitler. Ele prega que estava atentando para “a necessidade de retomar os únicos fundamentos duradouros de um estado de direito, de retornar ao verdadeiro Estado germânico com uma forte liderança”, 138 que é a diferenciação que ele faz para a Gestapo entre Machstaat e Führerstaat. Para ele, era terrível que ninguém pudesse confiar no próximo, que nem mesmo um pai se sentisse a salvo de seus filhos. Ele acreditava que mediante uma evidente violação do direito, quem não ousava se posicionar só poderia ser considerado covarde. Huber se mostra indignado com a postura do Tribunal de subtrair seu posto de professor universitário, deixando sua mulher e seus filhos em péssimas condições financeiras, e de o terem equiparado “ao mais baixo dos criminosos”. Para ele, esse processo de traição não poderia jamais roubar sua “dignidade pessoal de professor, de pessoa que professa corajosamente sua visão de mundo e de Estado”.139 Huber tenta deixar mais claro os motivos de suas ações e de suas discordâncias com o regime nazista: 137 Discurso de defesa de Kurt Huber diante o Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 236-235, grifo meu. 138 Idem, ibidem, p. 237. 139 Idem, ibidem, p. 238. 231 Um Estado que impede toda e qualquer forma de liberdade de expressão e toda, absolutamente toda crítica legítima do ponto de vista moral, e prevê as mais terríveis punições para qualquer proposta de melhoria, classificando-a de ‘planos de alta traição’, viola um direito alemão, germânico, não escrito, que ainda estava vivo na ‘sensibilidade natural do povo’ e que vivo deve permanecer. [...]. Exijo que se devolva a liberdade ao nosso povo alemão. Não queremos passar nossa breve vida como escravos presos em correntes, nem mesmo nas correntes douradas da fartura material. [...] Minhas ações e minhas intenções serão justificadas pelo curso irrefreável da História; minha confiança nisso é inabalável. Espero em Deus que as forças que legitimam esta ação judicial se afastem de meu povo a tempo. Agi como tive que agir, seguindo uma voz interior. Arco com as consequências conforme as belas palavras de Johann Gottlieb Fichte: ‘E deves agir como se Só de ti e de tua ação dependesse O destino das coisas alemãs E só tua fosse a responsabilidade’.140 As palavras de Johann Gottlieb Fichte, citadas por Kurt Huber, são uma representação da resistência da Rosa Branca: agiram como se só deles e de suas ações dependesse o destino da Alemanha, e se só deles fosse a responsabilidade pelo futuro do país. Talvez por isso Sophie e Hans confessaram e caminharam para a morte com tanta convicção, porque acreditavam que tinham a responsabilidade moral de resistir. Por isso, não importava se ao seu redor os outros não estivessem resistindo: era como se fosse só deles essa responsabilidade. “Acho que vivemos com a convicção firme de termos feito a coisa certa. Eles que estavam errados”141 Neste último momento julgo ser essencial uma análise de Traute Lafrenz e de sua participação na resistência da Rosa Branca. Lafrenz foi uma das personagens mais importantes na história da Rosa Branca, atuando principalmente na expansão do empreendimento em Hamburgo, atingindo um grupo de cerca de cinquenta pessoas que continuaram distribuindo panfletos mesmo após a morte dos membros em Munique. Contudo, ela aparece pouco na bibliografia sobre a Rosa Branca, sendo na maioria das vezes referenciada apenas como namorada de Hans, e deixada de lado quanto à sua importância e representatividade. Ao lado 140 Discurso de defesa de Kurt Huber diante o Tribunal do Povo. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 238, grifos meus. 141 Última fala de Traute Lafrenz que encerra o filme de Katrin Seybold. In: UTIDA, Yasmin Cobaiachi. Tradução e memória, p. 331. 232 de Sophie Scholl, Traute foi uma forte presença feminina nessa resistência estudantil e merece um lugar de destaque. Traute conheceu Alex Schmorell quando ele estudava em Hamburgo, em 1939, e foi ele quem a apresentou a Hans Scholl, em um concerto em Munique em maio de 1941. Traute conta que ela e Hans partilhavam da mesma opinião política e dos mesmos gostos e interesses em literatura, arte e música, o que fez com que o romance entre os dois florescesse rapidamente. A jovem se tornou íntima da família dos Scholl, tendo inclusive passado o ano novo de 1941/1942 com eles em uma viagem de esqui, que marcou profundamente os jovens. Traute escreveu um ensaio para Windlicht sobre essa viagem, onde eles leram textos de Novalis e comemoraram a passagem do ano de acordo com o horário de Moscou, e não com o horário alemão.142 No decorrer de 1942, Lafrenz fazia parte dos encontros de leitura entre o círculo de amigos, encontros que, segundo ela, “não tinham uma pauta fixa e giravam em torno de literatura, com certo interesse por questões históricas. Na maioria das vezes, apenas ao final discutíamos um pouco da situação política”.143 Ela já estava habituada a esse tipo de grupos de leitura em Hamburgo, que giravam em torno de uma professora que a influenciou muito, Erna Stahl, com quem era possível debater até mesmo as obras proibidas pelo regime nacionalsocialista. É possível que esse tipo de configuração de encontros de leitura, tenha sido inclusive, sugestão de Traute.144 Sobre essa rede de amigos, ela afirma: Hans, em especial, procurava pessoas com quem ele supunha compartilhar convicções políticas ou intelectuais. Assim, tínhamos a impressão de que existia uma rede vasta e abrangente de pessoas com as mesmas ideias – que, de fato, existiam, mas como indivíduos isolados; e como nos relacionávamos sempre com essas pessoas e não com os nossos numerosos opositores, ignorávamos a maioria, apostávamos na minoria e nos julgávamos fortes.145 Traute Lafrenz aparece também como uma influência indireta no teor e conteúdo dos Panfletos da Rosa Branca. Foi ela quem deu a Hans o livro do profeta Salomão, cuja citação aparece no quarto panfleto, e era um trecho que ela tinha costume de recitar em Hamburgo com a professora Erna Stahl. Traute conta que, quando viu os Panfletos da Rosa Branca, reconheceu as passagens familiares de Goethe, Lao-Tsé, Novalis e Aristóteles, e imaginou que deveria ter sido escrito “por um de nós”, ou seja, um dos membros dos grupos de leitura. Porém, ela só 142 Traute Lafrenz para Windlicht. In: JENS, Inge. At the heart of the White Rose, pp. 308-309. Testemunho de Traute Lafrenz. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 147. 144 UTIDA, Yasmin Cobaiachi. Tradução e memória, p. 165. 145 Testemunho de Traute Lafrenz. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 148. 143 233 teve certeza que o autor era Hans, quando viu a passagem do profeta Salomão no quarto panfleto. Ao questioná-lo, Hans disse “que não era bom ficar perguntando, isso só colocaria o autor em perigo”, e que “o número dos diretamente envolvidos deveria permanecer muito, muito pequeno”.146 Traute diz que seu papel foi definido e que ela o aceitou, mas Katharina Schüddekopf, em seu depoimento para a Gestapo, afirma que Lafrenz pediu para ela a sua cópia do quarto panfleto, e que, ao receber, disse “era isso que eu estava procurando”. É possível que ela tenha auxiliado na distribuição em Munique, mas não se sabe ao certo. Traute coloca mais um questionamento sobre o envolvimento de Sophie na primeira fase da Rosa Branca, ao afirmar que antes da saída de Hans para o front, eles foram para o apartamento de Hans e destruíram “tudo de comprometedor que encontramos pela frente”, e que costumava comprar envelopes e selos com a amiga, sugerindo que Sophie sabia dos panfletos e ajudava seu irmão. Sobre sua participação em Hamburgo, Lafrenz declara: Em novembro do mesmo ano [1942], passei algumas semanas em Hamburgo. Lá conheci um grupo de estudantes que partilhava das convicções e pensamentos do grupo de Munique, ainda que sua inclinação fosse mais puramente intelectual e menos vital, menos voltada para a ação. Falei sobre os acontecimentos de Munique, entreguei-lhes dois panfletos e decidimos expandir a distribuição ao norte da Alemanha. Pouco antes de eu partir, o cabeça do grupo, Hainz Kucharski, me pediu que lhe enviasse outro panfleto da Rosa Branca. Prometi fazê-lo. [...] Passei o Natal em Viena [...] na casa da minha tia (que tinha muitos conhecidos na universidade, pois o falecido marido fora professor em Viena), contei sobre os panfletos de Munique para um círculo de amigos próximos. E também lhes mostrei alguns.147 Sendo assim, Traute iniciou as atividades da Rosa Branca não só em Hamburgo, como também em Viena, e fez tudo isso ainda em 1942, na primeira fase do movimento. A jovem conta que Hans lhe pediu um mimeógrafo, que aparentemente ela conseguiu comprar na primavera de 1943, e, que nesse período também ia com Sophie comprar papel e envelopes. Ela não fala da sua participação na segunda fase, apenas menciona ter visto as pichações na universidade e ter imaginado ser de autoria de Hans, o que fez com que ela temesse muito pela vida do ex namorado. Apesar das declarações de Gisela Schertling para a Gestapo, nas quais afirma que via pouco Traute e que Hans a tratava mal porque não queria mais se relacionar com ela, Lafrenz continuou fazendo parte do grupo de amigos mesmo após o fim do seu relacionamento com Hans. É possível que Hans a tratasse mal, mas, independentemente disso, 146 147 Testemunho de Traute Lafrenz. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 148. Idem, ibidem, p. 149. 234 ela não foi excluída do grupo. E após a prisão dos Scholl, a jovem se esforçou para eliminar qualquer prova que incriminasse os amigos. Ela conta: Em 5 de março fui interrogada pela Gestapo pela primeira vez. A Gestapo só sabia que eu era amiga de Hans e possivelmente também conhecia outros integrantes do grupo. Constatei, surpresa, que eles já tinham os nomes dos professores Huber e Muth e de Theodor Haecker. Fui liberada com a recomendação categórica de não procurar nenhuma das pessoas cujos nomes foram citados ali com o intuito de alertá-las. Mesmo assim, consegui avisar o professor Huber. [...] Eu e Werner [Scholl] fomos juntos à rua Franz-JosephStrasse, empacotamos os pertences de Hans e Sophie e enviamos tudo para Ulm. No meio das roupas de Sophie, encontramos, entre outras coisas, papéis enrolados com quase mil endereços retirados de listas telefônicas de Frankfurt, Viena e Munique e tinta para impressão. Conseguimos queimar os papéis sem que ninguém percebesse.148 Traute viaja para Ulm com Werner e lá permanece até o fim de suas férias, provavelmente hospedada na casa dos Scholl. Quando retorna para Munique, no dia 14 de março, a Gestapo já estava procurando-a e ela é presa novamente no dia 15. Ela se lembra que foi interrogada durante três semanas sobre o conhecimento dos panfletos, mas que sustentou até o final a versão de que havia visto um panfleto, mas que “só havia passado os olhos naquelas linhas e queimado o folheto logo em seguida”.149 No dia 19 de abril, foi condenada a um ano de prisão, que ela descreve como “tédio, dias repetitivos, longas noites – nenhuma queixa era cabível diante do destino dos outros seis”. Além da prisão, em 21 de maio de 1943, Traute foi proibida de estudar em qualquer escola superior na Alemanha, decisão que ela afirma que “nem chegou a dar de ombros” quando soube. No entanto, seu tormento não acabava por aí. Em junho de 1943 ela foi transferida, sua sentença acabou no ano seguinte e foi liberada em 14 de março de 1944. Após retornar para Hamburgo, soube de sua mãe que o círculo estudantil de Hamburgo havia sido condenado. Ela retorna a Munique, a Gestapo resolve fazer mais uma busca na casa de seus pais em Hamburgo e, alguns dias depois, Traute foi presa novamente. Ela conta que passou três semanas presa, “sem interrogatório, sem que ninguém se desse conta de minha presença”. Após esse período, um oficial, que nunca lhe disse quem era, diariamente lhe questionava sobre Sophie e Hans Scholl e insistia para que ela dissesse “tudo”, fazendo comentários sobre a execução de membros da resistência para amedrontá-la.150 É possível que nesse momento em meados de 1944, a Gestapo estivesse associando Lafrenz a um grupo de resistência maior, pois ela ainda foi questionada sobre seu conhecimento 148 Testemunho de Traute Lafrenz. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 151-152. Idem, ibidem, p. 152. 150 Idem, ibidem, p. 154. 149 235 de tecnologia. Então, Traute foi transferida novamente para Hamburgo, o que mudou toda a condição de sua situação. Ela declara: “seria desnecessário descrever a diferença entre a Gestapo no Sul e no Norte da Alemanha. No Norte, ela aplicava outros métodos”. Seu inquiridor em Hamburgo, questionava-a berrando quando ela havia ouvido emissoras estrangeiras pela última vez, acusando-a de crimes que ela afirma que de fato não havia cometido, ao contrário das acusações do ano anterior, que ela havia conseguido mentir para reduzir sua pena. Ela foi transferida mais uma vez para outro presídio, entre maio e setembro de 1944, que descreve como um período “tenebroso”, com “interrogatórios penosamente longos”. Lafrenz foi acusada de copiar panfletos em Hamburgo, distribuí-los, e de coletar dinheiro para a esposa de Kurt Huber, que havia se afundado em dívidas para custear o processo e a execução do marido. Traute desmentia as “vagas suspeitas a seu respeito”, pois, ela dizia “eu tinha tempo, para mim era indiferente em que lugar eu estivesse presa”.151 Sua causa foi levada em 11 de novembro de 1944 para o Tribunal do Povo em Berlim, juntamente com outras mulheres do “grupo hanseático”, que foi a forma como o núcleo de Hamburgo da Rosa Branca ficou conhecido. Traute foi transferida mais duas vezes e o seu julgamento havia sido marcado para 17 de abril de 1945, e, mesmo com a invasão americana, o julgamento de fato ocorreu em Hamburgo. Não se sabe qual foi a pena dada a ela, mas a jovem provavelmente teria conseguido se livrar de uma possível pena com o fim da guerra. Não obstante, é fundamental contar todo esse tortuoso trajeto de Traute Lafrenz, presumivelmente o mais longo e extensivo de todos os membros da Rosa Branca. A Gestapo de fato menosprezou a sua atuação no grupo, pois se soubesse de todas as suas atividades, sobretudo em Hamburgo, ela provavelmente teria sido executada. No entanto, mesmo escapando da execução, Traute passou dois anos da sua vida atrás das grades, sendo transferida de prisão em prisão. O núcleo de Hamburgo da Rosa Branca contava com cerca de cinquenta pessoas e oito de seus membros mais ativos morreram entre 1944 e 1945 em hospitais e campos de concentração. Três foram executados e dois cometeram suicídio. Foram eles: Hans Konrad Leipelt, 24 anos, estudante de ciências naturais, decapitado em Munique em 29 de janeiro de 1945; Gretha Rothe, 26 anos, estudante de medicina, falecida em 15 de abril de 1945 no hospital em decorrência de sequelas da prisão; Reinhold Meyer, 24 anos, estudante de filosofia, falecido no presídio em 12 de novembro de 1944; Frederick Geussenhainer, 33 anos, estudante de medicina, falecido em abril de 1945 no campo de concentração de Mauthausen; Katharina 151 Testemunho de Traute Lafrenz. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 154-155. 236 Leipelt, mãe de Hans Konrad, 51 anos, doutora em ciências naturais, levada ao suicídio em 9 de janeiro de 1944 no presídio; Elisabeth Lange, 44 anos, levada ao suicídio em 28 de janeiro de 1944 no presídio; Curt Ledien, 52 anos, doutor em direito, enforcado em 23 de abril de 1945 no campo de concentração de Neuengamme; e Margarethe Mrosek, 43 anos, enforcada em 21 de abril de 1945 no campo de concentração de Neuengamme.152 O círculo de Hamburgo não pode, no entanto, ser considerado efetivamente uma extensão da Rosa Branca, visto que, apesar de abarcar cerca de 50 pessoas, os participantes isolados não se conheciam e muitos se encontraram pela primeira vez nos campos de concentração. Era, na realidade, um conjunto de círculos informais, na maioria das vezes com pouco contato ou mesmo nenhum conhecimento entre si.153 Nesse grupo, “havia alguns integrantes de dezessete anos que ainda frequentavam a escola ou que estavam prestando o serviço obrigatório ou de apoio à guerra”,154 algo que ocorreu também na Rosa Branca de Munique, já que alguns jovens que serviam de elo em Ulm, como Hans Hirzel, Heinrich Guter e Franz Müller, que estudaram em uma escola secundarista humanista, tinham entre 16 e 17 anos quando os Panfletos da Rosa Branca foram produzidos. A ação do grupo de Hamburgo se baseou na cópia e distribuição dos panfletos de Munique e na ajuda à viúva de Kurt Huber. Porém, Geoffrey Giles afirma que: Alguns dos estudantes de Hamburgo realmente planejaram expressar sua oposição em atos de sabotagem direta. A possibilidade de contaminar o abastecimento de água de Hamburgo com a bactéria do tétano foi discutida, assim como a detonação da sede da Gestapo da cidade. Essas ideias foram eventualmente rejeitadas a favor da destruição da ponte ferroviária fora da estação principal. Isso seria diretamente perturbador para o esforço de guerra e benéfico para o bem-estar de muitas pessoas, já que era sobre essa ponte que os trens da tropa constantemente transportavam a juventude de Hamburgo para o front e muitas vezes para a sua morte. O contato em Munique, entretanto, de quem esperavam obter nitroglicerina para a bomba, não se mostrou cooperativo e o plano foi descartado.155 Parece-me significativo que, apesar de o grupo de Hamburgo não ter feito nenhuma ação mais “concreta” além de copiar e distribuir os panfletos vindos de Munique, se constituía em 152 SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 85-86. Relatório de Ilse Jacob. Idem, ibidem, p. 87; GILES. Students and National Socialism in Germany, p. 300. 154 Relatório de Ilse Jacob. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 87. 155 “Some of the Hamburg students did actually plan to express their opposition in acts of direct sabotage. The possibility of contaminating the Hamburg water supply with tetanus bacteria was discussed, as was the detonation of the city’s Gestapo headquarters. These ideas were eventually rejected in favor of the destruction of the railway bridge outside the main station. This would be directly disruptive to the war effort and beneficial to the welfare of many people, since it was over this bridge that troop trains constantly transported the youth of Hamburg to the front, and often to their deaths. The contact in Munich, however, from whom it had been hoped to obtain nitroglycerine for the bomb, proved uncooperative, and the plan was dropped” Tradução minha. In: GILES. Students and National Socialism in Germany, p. 302. 153 237 um núcleo com ideias de ação bem mais diretas que os colegas de Munique. Essas ideias não foram colocadas em prática, no entanto, representam ações de sabotagem muito mais frontais e perigosas do que não ir aos comícios do Partido Nazista. Eram planos mais determinados e direcionados para de fato atrapalhar o desempenho da Alemanha na guerra, mas que nunca deixaram o campo das ideias e permaneceram apenas como planos. “Corajosa e magnífica juventude! Vocês não terão morrido em vão, não serão esquecidos”156 A onda de revolta no corpo estudantil que Sophie Scholl acreditava que aconteceria após suas mortes efetivamente não ocorreu. Não houve nenhum protesto e centenas de estudantes demonstraram seu apoio às atitudes da Gestapo e do Tribunal do Povo. O corpo estudantil parecia, para a Gestapo, continuar firme apoiando o Führer e o Nacional-Socialismo.157 É possível que tenham existido algumas manifestações isoladas de apoio, como a distribuição de alguns panfletos pela cidade e algumas pichações que apareceram na Universidade de Munique. Annette Dumbach e Jud Newborn afirmam que nos dias seguintes às primeiras execuções, apareceram pichações na universidade com os seguintes escritos “Os Scholl vivem! Vocês podem quebrar o corpo, mas não o espírito! ”. Também afirmam que no dia do aniversário de Hitler, 20 de abril, o retrato do Führer na universidade apareceu com as inscrições “Inimigo Número Um da Alemanha”. Essa era uma clara referência à propaganda antissemita nacionalsocialista, que apontava os judeus e a estrela de Davi em seus cartazes como o “Inimigo Número Um”.158 No entanto, não foram encontradas fontes para confirmar essas declarações. A repercussão do caso da Rosa Branca provavelmente ficou no boca-a-boca e não excedeu para nenhuma atitude de protesto ou de oposição declarada. De fato, a propaganda nazista explorou o caso da Rosa Branca para atacar a resistência e amedrontar qualquer indivíduo que estivesse pensando em qualquer ato de oposição. Um artigo do jornal nazista Observador Racial, em sua edição de Munique do dia 21 de abril de 1943, abordou as sentenças de Kurt Huber, Alex Schmorell e Willi Graf. O artigo se inicia com Discurso radiofônico proferido por Thomas Mann, em seu canal “Ouvintes Alemães”, em 27 de julho de 1943. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 223. 157 HANSER, Richard. A Noble Treason, p. 283; DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose, p. 163. 158 DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose, p. 163. 156 238 o título “Punição justa para os traidores da nação alemã em guerra”. 159 O texto apresenta os mesmos argumentos utilizados pelo juiz Roland Freisler no Tribunal do Povo, afirmando que esses indivíduos haviam conspirado contra o Reich, favorecendo o inimigo e que nesse sentido, se excluíram deliberadamente da comunidade do povo. No jornal também aparecem os motivos das sentenças dos outros réus desse julgamento, basicamente uma cópia do documento original do Tribunal do Povo. O jornal de Munique Münchner Neueste Nachrichten publicou um artigo no dia da execução dos Scholl e de Probst com o título “Sentenças de morte por planos de alta traição”. O texto afirma que: Como individualistas típicos, os condenados haviam violado a força militar e o espírito de resistência do povo alemão de forma descarada, através da pichação de casas com incitações subversivas ao Estado e através da preparação de panfletos de alta traição. Tendo em vista a luta heroica do povo alemão, sujeitos tão depravados como estes não merecem outra coisa senão a morte imediata e desonrosa.160 Contudo, no âmbito internacional, a recepção foi distinta. Como já apontado no capítulo anterior, a organização de soldados alemães na Rússia Comitê Nacional por uma Alemanha Livre publicou um panfleto em homenagem aos irmãos Scholl no qual o seu heroísmo era exaltado. Em 18 de abril de 1943, George Axelsson escreve para o jornal The New York Times reportando a morte de Sophie, Hans e Christel e contando sobre suas ações e o protesto estudantil após o discurso de Giesler na universidade. Em 2 de agosto de 1943, ele escreve mais um artigo, denominado “jovens mártires alemães”, onde conta que os Estados Unidos haviam acabado de receber a tradução dos panfletos da Rosa Branca, que o impactaram profundamente. Axelsson escreve: Se é genuíno, e não há motivo para duvidar que seja, podemos ver o início do fim do período de pesadelo na própria Alemanha. Era natural que a geração mais velha, que cresceu e amadureceu em um país civilizado, deveria ser pelo menos indiferente ao absurdo do nazismo, mas não havia dúvidas sobre o que se poderia esperar de jovens que nunca tinham conhecido mais nada [além do nazismo]. Quando um animal foi criado em um chiqueiro pode ser esperado que ele aja como um porco. Mas esses estudantes de Munique, poucos ou muitos, representativos ou não, ressurgiram gloriosamente fora da lama, protestando em nome dos princípios que Hitler pensou ter matado para sempre. Nos próximos anos, nós podemos também homenagear o Sargento Hans Scholl, Sophie Scholl, Christoph Probst, Alexander Schmorell, Karl [Kurt] Huber e William Graf, assassinados em Munique por uma causa que também é nossa.161 159 Artigo do Völkischer Beobachter. In: APPENDIX 6: DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose, pp. 219-220. 160 Jornal Münchner Neueste Nachrichten. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 219. 161 “If it is genuine, and there is no reason to doubt that it is, we can see the beginning of the end of the nightmare period in Germany itself. It was natural that the older generation, growing to manhood in a civilized country, 239 Thomas Mann, profere um discurso no seu canal de rádio Ouvintes Alemães, no dia 27 de julho de 1943, em que reflete sobre a resistência da Rosa Branca. Mann tenta mostrar que era fundamental combater a ideia de que existia uma “Alemanha dos nazis” e de que todos os alemães eram nazistas. De acordo com ele, “os anos repletos do mais brutal terror, de martírio e execuções, não foram suficientes para quebrar sua resistência”.162 Por ser um canal de rádio voltado para os próprios alemães, que o escutavam ilegalmente pela transmissão da BBC, ele utiliza de seu discurso para informar os indivíduos. Afirma que sete milhões de pessoas foram deportadas para campos de trabalhos forçados, um milhão foram executadas, cerca de 10 mil foram para campos de concentração, pelo menos 150 mil homens de tropas alemães foram mortos nos países ocupados e pelo menos 250 colaboradores de Hitler foram mortos na Europa. Mann utiliza o termo “quisling”, uma referência a Vidkun Quisling, oficial da Armada Real Norueguesa e líder do partido norueguês pró nazista e antissemita. Quisling foi o principal colaborador à ocupação nazista e se tornou um conceito, um “substantivo coletivo para os nativos que colaboram com Hitler”.163 Mann continua seu discurso enaltecendo os atos de sabotagem de organizações clandestinas, que estariam colaborando para enfraquecer a guerra e determinar que seu fim estivesse mais próximo. Ele diz: “honrados sejam os povos da Europa”, e, principalmente, “honrado seja o povo alemão, e digno de nossa compaixão! ”. O escritor retoma a ideia de que existiam alemães que lutavam contra o nazismo, um pressuposto que perpassa todo o seu discurso: “a teoria de que entre ele e o nazismo não se pode estabelecer diferença, de que alemão e nacional-socialista são uma e a mesma coisa, é por vezes defendida nos países aliados com algum espírito; mas ela é insustentável e não consegue se impor!”.164 Mann apresenta números para informar sobre a resistência na Alemanha: quando começou a guerra, existiam no país 200 mil prisioneiros políticos e as sentenças de morte e de prisões por alta traição só aumentavam.165 should be at least lukewarm toward the hideous nonsense of Nazism, but there was no doubt as to what could be expected of young people who had never known anything else. An animal brought up in a sty may be expected to act like a pig. But these Munich students, few or many, representative or otherwise, rose gloriously out of the mud, protesting in the name of principles which Hitler thought he had killed forever. In years to come we, too, may honor Sergeant Hans Scholl, Sophie Scholl, Christoph Probst, Alexander Schmorell, Karl [Kurt] Huber and William Graf, slain in Munich for a cause that is also ours” Tradução minha. Artigo para o jornal The New York Times. In: APPENDIX 9: DUMBACH; NEWBORN. Sophie Scholl and the White Rose, p. 227. 162 Discurso radiofônico proferido por Thomas Mann, em seu canal “Ouvintes Alemães”, em 27 de julho de 1943. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, p. 220. 163 Idem, ibidem, p. 221. 164 Idem, ibidem, p. 221. 165 Idem, ibidem, p. 222. 240 Esse é o momento em que ele expõe a resistência da Rosa Branca, precisamente como um exemplo dessa Alemanha que não era nazista: Sim, foi aflitiva essa predisposição da juventude alemã – justamente da juventude – para a revolução mentirosa do Nacional-Socialismo. Agora seus olhos se abriram e por isso eles põem a cabeça jovem sobre o cepo do carrasco, para a glória da Alemanha – colocam-na aí depois de dizer na cara dos juízes nazistas: ‘Logo vocês estarão aqui, onde agora estou’; depois de testemunhar diante da morte: ‘Nasce uma nova fé na liberdade e na honra! ’. Corajosa e magnífica juventude! Vocês não serão esquecidos! Os nazistas erigiram monumentos para arruaceiros imundos e criminosos comuns – a revolução alemã, a verdadeira, vai derrubá-los e eternizará em seu lugar o nome daqueles que, quando a noite ainda cobria a Europa e a Alemanha, anunciaram: ‘Nasce uma nova fé na liberdade e na honra!’.166 A Rosa Branca ficou marcada como essa concepção de uma outra Alemanha, uma Alemanha que não era nazista. Os próprios estudantes falavam isso nos panfletos, de que eles não queriam ser o povo mais odiado na Europa porque não fizeram nada para impedir Hitler. Enquanto o mundo enxergava a Alemanha como o país de Hitler, esses jovens aparecem para mostrar que existia discordância e oposição, o que levou à percepção internacional errônea de que era possível resistir e de que só não resistia quem não queria. Dentro de seu próprio país, a Rosa Branca não atingiu a desejada onda de revolta, mas o que Robert Scholl disse a seus filhos se provou como verdade: eles entraram para a história. Como um símbolo de resistência moral, de heróis que morreram por seus ideais e de indivíduos que jamais tiveram uma crise de consciência. Como os que morreram “por uma causa que também é nossa”, a causa da liberdade essencial do ser humano e da força para resistir à opressão, pois a nós cabe a responsabilidade pelo mundo em que vivemos e que fazemos nossa casa. Discurso radiofônico proferido por Thomas Mann, em seu canal “Ouvintes Alemães”, em 27 de julho de 1943. In: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca, pp. 222-223. 166 241 Conclusão O fardo de nossos tempos “A noção de que só é livre aquele que está disposto a arriscar a própria vida nunca desapareceu completamente da nossa consciência.” (Hannah Arendt. A promessa da política) 242 “Sabe o que é mesmo um herói? Está em Príncipe de Homburgo. Kleist representa isso de modo tão sublime. O príncipe, depois de ter passado por seu túmulo, teve plena consciência de que deveria morrer pelo que fez. E arcou com as consequências. Quero dizer, o que conta mesmo é o grau de consciência com que a pessoa age”1 A primeira edição na Inglaterra do livro de Hannah Arendt Origens do Totalitarismo era denominada O fardo de nossos tempos (The burden of Our Time). O totalitarismo, de fato, se apresenta para qualquer um que se aventure a estudá-lo, como um verdadeiro fardo. Lançar os olhos sobre o regime totalitário implica em ver o que existiu de pior no ser humano, e, sobretudo, em não desviar o olhar quando se torna perceptível que o mal ainda está à espreita. O totalitarismo é um fardo de nossos tempos não só porque faz parte de nossos tempos, mas principalmente, porque ele ainda é uma possibilidade desses tempos. No caminho percorrido até aqui, pretendi narrar a vida dos jovens resistentes da Rosa Branca, de suas famílias e seus amigos. Tentei abordar os passos dados por eles até chegar na ação panfletária: a adesão inicial ao Partido Nazista e a futura desilusão, os grupos de juventude, as reuniões de discussão de livros, as redes de pessoas envolvidas. Os panfletos foram analisados individualmente e uma série de outros documentos e fontes foram consultados para abarcar o máximo possível da breve história desses jovens. Ao refletir sobre a história da Rosa Branca, o leitor se viu confrontado, a todo momento, com a aura romântica que a memória desse grupo produziu. Arrisquei, por meio desse longo percurso, traçar as contradições próprias desses atores, a falta de unidade em seu posicionamento político e a própria carência de uma definição concreta do conceito de resistência para esse grupo. Com tudo isso, busquei desromantizar a narrativa da Rosa Branca, ao mesmo tempo em que os apresentei como heróis no sentido entendido por Hannah Arendt e Todorov. Na análise dos panfletos me ative às diferenças entre as duas fases da Rosa Branca. Nos Panfletos da Rosa Branca, em 1942, ainda há um ideal romântico embasado na resistência não violenta por meio de atos de sabotagem. Para essa fase, escolhi trabalhar o conceito de resistência civil, precisamente em virtude do caráter não violento da ação. Após retornarem do front russo, Hans e os amigos partem para um novo empreendimento, embasado em uma 1 Última fala de Traute Lafrenz que encerra o filme de Katrin Seybold. In: UTIDA, Yasmin Cobaiachi. Tradução e memória: a legendagem de um filme-testemunho sobre a Rosa Branca. Dissertação de mestrado (Língua e Literatura Alemã, área de concentração: tradução) – Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas, Universidade de São Paulo (USP): São Paulo, 2017, p. 331 243 resistência nacional, estudantil e possivelmente aliada à esquerda. Nos Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha há uma mudança de perspectiva e a resistência adquire um caráter mais ativo que não conta apenas com a ação panfletária, mas também, com ações de pichação nas ruas de Munique e com encontros com Falk Harnack. Era necessário algo verdadeiramente novo para a Nova Alemanha e para a Nova Europa e os moldes seriam definidos em conjunto entre membros da resistência de toda a Alemanha: comunistas, social-democratas e cristãos. Os jovens delimitaram estratégias de ação e formularam intenções que poderiam abarcar até mesmo a luta armada contra o fascismo internacional. A guerra precisava acabar, seria necessária uma aliança entre a Alemanha e a União Soviética e os nazistas deveriam pagar pelos seus crimes – neste sentido, abarcando presumivelmente a ideia de tiranicídio. Tais atitudes revolucionárias em 1943 representam possivelmente uma tentativa de criação de uma nova ordem dos tempos, onde a liberdade ocuparia o papel central. Procurei conceber como Albert Camus que resistir é dizer não, mesmo quando não se tem uma ideia muito clara do que se aspira, um viés de análise especialmente frutífero para o caso da Rosa Branca. Afinal, como tentei mostrar ao leitor, esse grupo de jovens não possuía um alinhamento ideológico totalmente definido e sua resistência inicialmente se ligou à necessidade de fazer alguma coisa. Ainda é fundamental pensar na proposição de Hannah Arendt da ligação direta entre política e liberdade. Para a filósofa, os homens só se completam na sua humanidade enquanto agem na cena pública, e o fazem porque ser livre e agir se constituem em um mesmo e único processo. A cena pública, definida por Hannah Arendt como o espaço onde a liberdade pode aparecer, não precisa ser um espaço institucional ou mesmo público no sentido puro do termo. A casa de alguém pode ser uma cena pública, se nela resistentes se reúnem para discutir política e expressam suas opiniões. Como lembra Arendt, “a esfera na qual se aventuravam esses homens destemidos tornou-se pública por eles estarem entre iguais”.2 Se é um espaço onde a liberdade aparece, pode ser considerada uma cena pública. Desta forma, o apartamento de Hans Scholl e o ateliê de Eickemeyer podem ser vistos como os espaços onde a liberdade surgiu, onde vozes que discordavam do governo foram ouvidas, entendidas e atualizadas. A partir disso, esses jovens renascem na cena pública com panfletos que pregavam a resistência, sedimentando o espaço-entre os homens e produzindo uma ação livre dentro de um regime totalitário. É precisamente o espaço-entre, o qual o totalitarismo busca eliminar, que se 2 ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010, p. 178. 244 transforma no campo em que a resistência pode aparecer – e, no caso da Rosa Branca, de fato apareceu. Para Hannah Arendt, a política consiste na associação e coexistência de diferentes, porque o mundo não é feito do homem, mas de homens, no plural. Os homens, enquanto comunidade, têm a capacidade de agir e intervir no seu próprio destino, transformando o panorama e convertendo o mundo em um lugar mais harmonioso e perfeito. O mundo, para ela, é apolítico: a política só surge entre os homens, como a manifestação desta pluralidade. A liberdade aparece como o significado máximo da política. Arendt vai contra a ideia de que o futuro está determinado e de que existe uma ordem para os acontecimentos: para ela, somos capazes de traçar nosso caminho e mudar o nosso destino. O mundo coletivo requer que assumamos responsabilidade por ele, uma responsabilidade política baseada no duplo dom da liberdade e da ação. O que isso significa? Que nascemos e somos condenados à liberdade e vivemos em um mundo cuja natureza é, e será sempre, indeterminada. Precisamente por isso podemos dizer que o totalitarismo foi criado por homens e homens podem colocar um fim nele. Qualquer regime é um regime humano e indefinido e é nessa indeterminação que surge a liberdade. A história, portanto, é feita por homens que agem e que criam, porém, os homens não são capazes de criar nada que dure para sempre: por isso podemos sempre esperar que o terror acabe. Se pensarmos na resistência como a manutenção da liberdade, ainda que em tempos sombrios, compreenderemos o milagre como um dom da própria liberdade humana. O milagre, como a possibilidade de um novo começo na história, está intrinsecamente aliado à ideia de Arendt de política e de convivência no mundo. Eis o sentido de esperar por milagres: estes são feitos por homens livres, que agem. O milagre opera com infinitas improbabilidades e com processos interrompidos, por homens que tomam a iniciativa. Agir, portanto, é um ato político. Encontrar a força para dizer não, mesmo com todos ao redor dizendo sim, é uma manifestação do dom da liberdade que surge com o nascimento. Resistir ao totalitarismo é pensado aqui como a manifestação da possibilidade do milagre na existência humana, e, ainda, como a tentativa de ações livres e fundantes. Como uma forma de renascer para o mundo, assumindo responsabilidade por ele e demonstrando o amor por esse mundo, que é fruto da ação conjunta. O amor mundi, o amor e a responsabilidade pelo mundo humano, é, por si só, um imperativo para a ação, por representar o amor pelas coisas criadas em conjunto. Quem ama o mundo o suficiente para assumir responsabilidade por ele, também se preocupa com a 245 durabilidade do mundo. Querer que o mundo persista pode se tornar, então, uma ação política, que consiste na conservação de possibilidades de agir no espaço-entre, o espaço de interação e associação entre os homens. O segundo nascimento para o mundo é o de se arriscar a agir, e, portanto, engajar-se politicamente é renascer no mundo. Renascer para o mundo no regime totalitário representa precisamente o desejo que o mundo continue a existir, o desejo pela manutenção da humanidade no mundo, o mesmo mundo que tornou possível o totalitarismo. A minha intenção com tudo isso é nítida em todo esse caminho: a ideia de que podemos resistir ao mal e de que, ao fim e ao cabo, tudo recai sob uma escolha. E se ainda não estamos livres dos perigos do totalitarismo, é de fundamental importância atentar para essa questão. Espero que esse trabalho possa ajudar a pensar sobre a coragem na política, sobre a resistência em um regime o extremo e sobre a manutenção das características humanas. Busquei, com a escrita, abarcar uma forma de atuação política, pensando que o trabalho do historiador é também o de intervir no presente. Estamos novamente em tempos sombrios e não é necessário muito para que se torne novamente o mais sombrio dos tempos. Para impedir isso, contamos apenas com mulheres e homens que exercem o seu duplo dom da liberdade e da ação na cena pública. Mulheres e homens que buscam mudar a realidade em que vivem e transformar o mundo. Intervir politicamente por meio de ações livres que visem a manutenção da humanidade é a única maneira de combater o totalitarismo. Dependemos apenas de nós mesmos, das nossas escolhas individuais e, sobretudo, de nossas práticas enquanto coletivo. Para que tudo isso faça algum sentido, precisamos sempre falar sobre o totalitarismo, esse fardo de nossos tempos. Temo que tenhamos voltado (ou que nunca tenhamos saído) aos tempos em que o Nada e o Ninguém ameaçam o mundo. Para proteger nosso mundo, precisamos de novo amar o mundo o suficiente para assumir responsabilidade por ele. Amar o mundo é querer que ele continue existindo e essa “abertura apaixonada pelo mundo”3 não pode diminuir nem mesmo com o conhecimento de que o homem pode ser destruído pelo mundo. Não pretendi, com essa dissertação, chegar a qualquer conclusão definitiva, nem sobre a Rosa Branca, nem sobre o totalitarismo e tampouco sobre a condição humana. O que nos resta da história são os vestígios, e o trabalho do historiador é justamente o de tentar dar alguma inteligibilidade a esses vestígios, de pegar as pérolas no fundo do oceano e a dar um sentido a elas, abarcando também a transformação do tempo. Se o objetivo é compreender, a 3 ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 13. 246 compreensão da Rosa Branca sempre será revisitada e repensada, pois não estão - e nem estarão - esgotadas as possibilidades de compreensão de nenhuma história. Compreender uma história significa pensar e repensar sobre ela, uma tarefa interminável que inevitavelmente sempre se renova com novos ensinamentos e novas narrativas. Narrar uma história, essa atividade humana fundamental, busca recriar o mundo da forma como ele aparecia aos olhos do outro. Nossas ações só sobrevivem através de narrativas, e esta é, portanto, apenas mais uma das narrativas possíveis sobre a resistência ao Nacional-Socialismo. 247 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FONTES A Rosa Branca História do grupo contada por Inge Scholl, contida em: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 19-90. Edição em língua inglesa: SCHOLL, Inge. The White Rose: Munich, 1942-1943. New York: Wesleyan University Press, 1983. Panfletos de resistência do Rosa Branca Seis panfletos mais o excerto do sétimo panfleto que não foi distribuído, contidos em: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 91-120; 233-234. Bibliografia de referência sobre a Rosa Branca Principais livros que contam a história do grupo e de suas ações. São eles: VINKE, Hermann. The Short Life of Sophie Scholl. Harper & Row, Publishers, Inc., 1984. HANSER, Richard. A Noble Treason: The story of Sophie Scholl and The White Rose revolt against Hitler. Ignatius Press, San Francisco, 2012. DUMBACH, Annette; NEWBORN, Jud. Sophie Scholl and the White Rose. USA: Oneworld, 2007. SACHS, Ruth. Evolution of Memory: Volume One. Historical Revisionism as Seen in the Words of George J. (“Jürgen”) Wittenstein. California, USA: Exclamation Publishers, 2011 SACHS, Ruth. White Rose History: Volume I – Coming Together: January 31, 1933 – April 30, 1942. Academic Version. D.E.Heap, Joyce Light (editors). Utah, USA: Exclamation Publishers, 2003. 248 SACHS, Ruth. White Rose History: Volume II – Journey to Freedom: May 1, 1942 – October 12, 1943. Academic Version. D.E.Heap, Joyce Light (editors). Utah, USA: Exclamation Publishers, 2005. Sentenças do Tribunal do Povo Sentença contra Hans e Sophie Scholl e Christoph Probst, em 22 de fevereiro de 1943, contidos em: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 121-125. Sentença contra Alexander Schmorell, Kurt Huber, Willi Graf, entre outros (consultar a lista no documento), em 19 de abril de 1943, contidos em: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 126-138. Discurso de defesa diante do Tribunal do Povo por Kurt Huber Discurso proferido em 19 de abril de 1943, contido em: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 235-238. Relatos e testemunhos Relatos e testemunhos enviados por cartas a família Scholl contidos em: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 139-218. A edição conta com os testemunhos de: Joseph Söhngen, livreiro de Munique; Traute Lafrenz;, Lilo Fürst-Ramdohr, amiga de Alex Schmorell; Falk Harnack; Elisabeth Hartnagel-Scholl, irmã mais nova de Hans e Sophie; Wilhelm Geyer, pintor e amigo dos Scholl; Helmut Goetz, estudante da Universidade de Munique na época; Robert Mohr, responsável da Gestapo pelo interrogatório de Sophie; Helmut Fietz, companheiro de cela de Hans Scholl; Leo Samberger, estudante de direito e estagiário no tribunal de Munique; Karl Alt, pastor que prestou assistência espiritual aos irmãos Scholl antes da execução; e Siegfried Deisinger, advogado defensor de Schmorell. 249 Reações e manifestações de apoio Apoio de outras pessoas ao grupo feito por meio de jornais, outros panfletos, no rádio ou em cartas, contidos em: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 219-230. Objetivos da Rosa Branca Depoimento de Inge Scholl sobre os objetivos da Rosa Branca e de seu livro, contidos em: SCHOLL, Inge. A Rosa Branca: A história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo. São Paulo: Editora 34, 2013, pp. 113-120. Diários e cartas de Sophie e Hans Scholl Coletânea de cartas e diários dos irmãos Scholl, contidos em: JENS, Inge. At the heart of the White Rose: Letters and diaries of Hans and Sophie Scholl. USA: Harper & Row Publishers, 1987. Interrogatórios da Gestapo Tradução dos interrogatórios originais do processo dos membros da Rosa Branca. São eles: Gestapo Interrogation Transcripts: Willi Graf, Alexander Schmorell, Hans Scholl, and Sophie Scholl. ZC13267. (English Edition), por Joyce Light (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition. Gestapo Interrogation Transcripts: Professor Kurt Huber and Falk Harnack. NJ1704. (English Edition), por Denise Heap (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition. Alexander Schmorell: Gestapo Interrogation Transcripts. RGWA I361K-I-8808. (English Edition), por Joyce Light (editor), Denise Heap (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition. Gestapo Interrogation Transcripts: Gisela Schertling and Katharine Schüddekopf. ZC13267. (English Edition), por Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition. Third White Rose Trial: July 13, 1943 (Eickemeyer, Söhngen, Dohrn and Geyer). Por Ruth Sachs (Tradutor). California, USA: Exclamation Publishers, 2003 250 Tradução dos interrogatórios e do processo de atividades bündische de Hans Scholl e Ernst Reden em 1937-1938. Em: The Bündische Trials (Scholl/Reden) – 1937-1938. (English Edition), por Joyce Light (editor), Denise Heap (editor) e Ruth Hanna Sachs (Tradutor) Kindle edition. Documentário sobre a Rosa Branca “Die Widerständigen: Zeugen der Weissen Rose” (“Os resistentes: testemunhos da Rosa Branca”), da diretora Katrin Saybold, 2008. O documentário conta com os testemunhos de: Anneliese Knoop-Graf, irmã de Willi Graf; Birgit Weiss-Huber, filha mais velha de Kurt Huber; Dieter Stasse, meio-irmão de Christoph Probst; Elisabeth Hartnagel, irmã de Sophie e Hans Scholl; Erich Schmorell, meio-irmão de Alex Schmorell; Franz J. Müller, Hans Hirzel, Heiner Guter, membros do grupo de secundaristas de Ulm; Herta Siebler-Probst, viúva de Chistel Probst; Jürgen Wittenstein, amigo dos membros; Lilo Fürst-Ramdohr, amiga de Alex e na época noiva de Falk Harnack; Nikolay Hamazaspian, amigo de Alex Schmorell; Susanne Zeller-Hirzel, irmã de Hans Hirzel e amiga de Sophie; e Traute Lafrenz. Transcrição das entrevistas e tradução das legendas do documentário disponíveis em: UTIDA, Yasmin Cobaiachi. Tradução e memória: a legendagem de um filme-testemunho sobre a Rosa Branca. Dissertação de mestrado (Língua e Literatura Alemã, área de concentração: tradução) – Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas, Universidade de São Paulo (USP): São Paulo, 2017. 251 BIBLIOGRAFIA AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ________________. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ________________. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. _________________. A condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. _________________. A promessa da política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. __________________. The life of the mind. Harvest Book, Harcourt, Inc, 1978. _______________. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011. _______________. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ______________. Escritos Judaicos. 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