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Povos Indígenas em Quadrinhos: narrativas visuais do artista brasileiro Sérgio Macedo, em defesa da preservação do Patrimônio Cultural Indígena Cláudia Matos Pereira Doutoranda em Artes Visuais pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Docente da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. E-mail: claudiamatosp@hotmail.com Resumo: Para Walter Benjamin (1987), a alma, o olho e a mão estão inscritos no mesmo campo e a interação entre eles, definem uma prática. A verdadeira narração é uma prática que não é exclusiva da voz: os gestos intervêm decisivamente na expressão desta relação artesanal. As experiências do narrador e as dos outros criam um “produto sólido, útil e único”. Ao transportar este ponto de vista à Arte e ao Patrimônio, pretende-se analisar como o artista pode ser um narrador e seu produto útil e único se realizar através de desenhos, que expressem a voz de culturas indígenas. Abstract: For Walter Benjamin (1987), the soul, the eye and the hand are enrolled in the same field and the interaction between them, define a practice. The real story is a practice that is not unique voice: gestures decisively involved in the expression of this handmade relationship. The experiences of the narrator and the other creates a “solid, useful and unique product.” When transporting this view to the Art and Patrimony, aims to analyze how the artist can be a narrator and his useful and unique product takes place through drawings that express the voice of indigenous cultures. Palavras chave: Imagem e Cultura Narrativa Patrimônio Cultura Indígena História em Quadrinhos Keywords: Image and Culture Narrative Patrimony Indigenous Culture Comic Books 54 Introdução “O que criou a humanidade foi a narração”. Pierre Janet Walter Benjamin, afirma que a narração não é produto exclusivo da voz e que na verdadeira narração, a mão intervém de forma decisiva com seus gestos, decorrentes da experiência do trabalho, capazes de sustentar “de cem maneiras, o fluxo do que é dito” (Benjamin, 1987: 221). De que forma a linguagem artística pode ser um veículo narrativo em prol da defesa do Patrimônio Cultural? Sérgio Macedo dedicou um período de sua vida a viver na aldeia Kayapó Metyktire, no norte de Mato Grosso — Brasil. Torna-se um ‘narrador’ de histórias em seu livro: “Povos Indígenas em Quadrinhos”, da Zarabatana Books, em 2012. O livro (fig.1) inicia com a formação das primeiras sociedades indígenas no país, chegando ao período considerado Descobrimento do Brasil e a seguir, estão os capítulos: Yanomami; Xavante (1700-1993); Xingu (19601990); Kayapó; Suruí (1960-1988) e Panará (1968-1989). Consciente de que o Patrimônio Cultural Imaterial, (conforme IPHAN) é transmitido de geração a geração, recriado pelas comunidades e grupos, de acordo com seu ambiente, natureza, história e respeito às diversidades culturais como elementos que sedimentam a identidade, Sérgio Macedo, em seu olhar etnográfico, afirma que “o motor essencial da obra foi o contato direto com os povos indígenas que conheceu”. 1. O trajeto de Sérgio Macedo O artista nasceu na cidade de Além Paraíba em 1951, no estado de Minas Gerais, Brasil. Desde cedo se interessou pelo desenho e logo inicia seus os primeiros desenhos com dois anos e meio de idade e, com quatro anos e meio, desenha sua primeira página de HQ, ao copiar uma página do clássico “O Último dos Moicanos”. Nos anos de 1970, foi o primeiro autor brasileiro a publicar Histórias em Quadrinhos na ‘Revista Grilo’ que, até então, só publicava artistas estrangeiros. Em 1973, publicou o primeiro livro de HQ brasileiro, “O Karma de Gargoot”. Em 1974, foi para a França e depois viveu cerca de 25 anos no Taiti. Nos EUA, seu livro “Lakota: An Illustrated History”, foi 55 Fig. 1 Capa do livro de Sérgio Macedo. Fonte: própria. 56 PEREIRA, Cláudia Matos (2014) “Povos Indígenas em Quadrinhos: narrativas visuais do artista brasileiro Sérgio Macedo, em defesa da preservação do Patrimônio Cultural Indígena.” premiado com o Benjamin Franklin Award como a melhor obra multicultural de 1997. Em 2007, recebeu no Brasil o troféu HQ Mix, categoria Grande Mestre e lançou em 2008 o álbum ‘HQ Xingu!’. Em 2012 lançou o livro que é tema deste artigo. Seja no longo período em que esteve em contato direto com a cultura Ma’ohi no Taiti, seja na obra que realizou sobre os índios Lakota, assim como histórias sobre os índios do Xingu, percebe-se neste artista um olhar múltiplo para a diversidade cultural, assim como o respeito e admiração por estes povos. Suas Histórias em Quadrinhos são textos visuais cuja importância se faz visível pela militância e postura em conscientizar o público na defesa destas culturas. Clifford Geertz (2008:4) fundamenta seu conceito de cultura como sendo semiótico e afirma que “as formas culturais podem ser tratadas como textos”. Sérgio Macedo expressa, mediante esta linguagem artística, a experiência destes encontros em narrativas/textos visuais, em que os personagens são reais e suas falas, relatos reproduzidos pelo artista. 2. Quadrinhos: narrativas visuais Revista ALTER IBI. ISSN 2183-2927. Vol. 1 (1): 54 -61. Sérgio Macedo afirma ter realizado uma História em Quadrinhos ‘documentária’, onde prevalece o realismo naturalista em seus desenhos. Todos os Quadrinhos foram pintados com acrílico sobre papel, com uso do pincel e aerógrafo. Somente três imagens foram feitas com desenho digital. Fiel aos detalhes das paisagens, dos índios, e de todo o contexto, muitas imagens foram criadas a partir de fotografias publicadas pela imprensa e por algumas enviadas a ele, quando residia no Taiti. O artista realizou também esboços nos locais de contato com os índios no Brasil. “Há habilidade narrativa que combina história, ação, aventura e dinâmica entre textos do narrador e balões com falas dos personagens. A linguagem é de fácil acesso ao leitor” (Pereira, 2014). A voz dos indígenas se traduz nos trabalhos do artista. Narrativas de mitos e histórias que se transmitem de geração a geração, formam representações de realidades indígenas. Estas representações envolvem, segundo Roger Chartier (1990: 28), a “compreensão das práticas, complexas, múltiplas, diferenciadas que constroem o mundo como representação”. Um breve exemplo no capítulo sobre os Kayapó, na página 57: “Depois da morte, o MEKARON vai para o ME-TUK-Õ-KRIMET, para lá do KOIWA, longe, muito longe do nosso mundo”. Sérgio Macedo (2012) indica em nota, ao fim da página, o significado de cada palavra nativa, assim: MEKARON (espírito, sombra ou alma); ME-TUK-Õ-KRIMET (aldeia dos mortos); KOIWA (teto do céu). Ele esclarece que na mitologia Kayapó, o céu, sustentado por uma árvore gigantesca, é o teto da 57 Um dia um ME BE NGT encontrou a cova de um tatu gigante. Ele cavou, cavou, dia após dia, cada vez mais fundo e acabou furando o chão do céu. O homem e o tatu despencaram do em direção à terra... e acabou furando o chão do céu. O tatu e o homem despencaram em direção à terra... mas um vento forte pegou o homem e o levou de volta para cima [...] (Macedo, 2012:46). O mesmo índio continua a dizer que este homem (ME BE NGT: um avô, membro da classe dominante) conta aos demais membros da aldeia, sobre o ocorrido e os chefes decidem que todos deveriam descer por uma corda jogada por esse buraco, levando seus pertences. Aqueles que não desceram por hesitarem e os demais que não o fizeram, permaneceram no céu, após a corda ter sido cortada por um menino estranho. O índio prossegue com a fala: “os que não desceram continuam até hoje lá no céu. As estrelas que vemos são as fogueiras que eles acendem durante a noite” (Macedo, 2012: 46-47). São inúmeros os exemplos das falas indígenas nas histórias. Nos capítulos sobre cada tribo, surgem relatos de mitos da criação, lendas, ensinamentos e práticas tradicionais, assim como reflexões, lamentos e indignações com circunstâncias verídicas, contatos, dificuldades, doenças e obstáculos enfrentados pelos índios em determinados períodos da história. Como exemplo, em um quadrinho da página 59, há o relato sobre o contato do cacique Ropni e o então Ministro Andreazza, período em que o governo cede nas negociações e restitui parte da terra Kayapó, divulgado pela tv — momento em que o cacique puxa as orelhas do Ministro e diz: “aceito ser seu amigo, mas você tem que escutar o índio. O índio é gente grande e sei falar como gente grande. Branco não pode mais enrolar índio” (Macedo, 2012: 59). Não prevalece apenas o olhar e técnica do artista sobre seu tema de trabalho, mas décadas de pesquisa sobre o assunto foram necessárias para que Sérgio Macedo aprofundasse seu objeto de estudo na concretização deste livro. A preocupação com o Patrimônio Cultural Indígena fez com que ele utilizasse ampla bibliografia, artigos da imprensa nacional e estrangeira, relatórios e publicações da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), dissertações e teses de antropólogos, filmes, documentários e DVDs. Seu livro condensa conhecimento intelectual, sensibilidade artística e um olhar etnográfico em defesa do Patrimônio destes povos. Independente de falas e palavras, as imagens destes quadrinhos enquanto narrativas visuais dizem por si só. 58 PEREIRA, Cláudia Matos (2014) “Povos Indígenas em Quadrinhos: narrativas visuais do artista brasileiro Sérgio Macedo, em defesa da preservação do Patrimônio Cultural Indígena.” terra e que não há relação com a ideia cristã de ‘reino celeste’. A seguir (fig.2 e fig.3), uma história narrada por um índio: Revista ALTER IBI. ISSN 2183-2927. Vol. 1 (1): 54 -61. Figs. 2 e 3 Imagens retiradas do livro de Sérgio Macedo, página 46 e 47. Fonte: própria. 59 Identidade, consciência e continuidade são palavras de peso na visão de Sérgio Macedo. A cultura de um povo fundamenta-se na identidade das pessoas, em suas crenças, valores, expressões, objetos, instrumentos/ferramentas, manifestações artísticas, espaços que ocupam e que são repletos de sentido para aquelas vivências do cotidiano. Histórias, memórias, narrativas, crenças, atividades e práticas que se perpetuam de geração a geração compõem o tecido cultural que vem a constituir o patrimônio cultural. Assim, surge a consciência para se respeitar a identidade de um grupo ou comunidade, como também o respeito à imensa diversidade cultural existente. Márcia Chuva (2012:15) refere-se à importância da contribuição de diversas disciplinas no universo inter e multidisciplinar em diálogo, para a preservação cultural. A arte pode se inserir neste diálogo com o patrimônio. A criatividade humana é infinitamente contínua e a recriação nas sociedades faz parte da habilidade tanto de integração como de superação e adaptação a novas realidades, circunstâncias e contextos. A valorização daquilo que é a essência cultural de determinado povo e que o diferencia dos demais, é também o que mais reforça a sua importância como parte integrante da cultura. Pois é nessa essência vital que se pode perceber a marca de um povo, de uma geração, a força de uma cultura. Nesta voz que surge — no vocabulário das formas, das cores, dos gestos, dos sons, dos ritos, das práticas — se evidencia uma Cultura. Modos de ser — modos de viver — modos de fazer (Gallois, 2006:52) — modos de experimentar e expressar — tudo isso — deve ser preservado como patrimônio humano: como patrimônio cultural, longe de se tornar algo visto externamente e institucionalizado por um discurso científico, mas algo vivenciado, experimentado, percebido como intrínseco na existência. 60 PEREIRA, Cláudia Matos (2014) “Povos Indígenas em Quadrinhos: narrativas visuais do artista brasileiro Sérgio Macedo, em defesa da preservação do Patrimônio Cultural Indígena.” Considerações finais Patrimônio Imaterial. IPHAN [Consult. 2014 -02-03] Disponível em: <URL:http://portal.iphan.gov.br/ portal/montarPaginaSecao.do;jsessi onid=ABBDE4929D788C291B2376 477EE35A3C?id=10852&retorno=p aginaIphan> PEREIRA, Cláudia M. (2014). “Povos Indígenas em Quadrinhos: o olhar etnográfico-semiótico do artistabrasileiro Sérgio Macedo.” In: Revista :ESTÚDIO Artistas sobre outras Obras, número 9, janeirojunho de 2014; pp. 81-87. Lisboa: FBAUL-PT & CIEBA. ISSN 16476158, e-ISSN 1647-7316. Referências BENJAIN, Walter (1987). Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. CHARTIER, Roger (1990). A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL. CHUVA, Márcia (org.). “História e patrimônio: entre o risco e o traço, a trama.” In: Revista do Patrimônio Artístico e Cultural Nacional nº34. Brasília: Ministério da Cultura GALLOIS, Dominique T. (org.) (2006). Patrimônio Cultural Imaterial e povos indígenas-Exemplos no Amapá e norte do Pará. São Paulo: Iepé. GEERTZ, Clifford (2008). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. LCT. MACEDO, Sérgio (2012). Povos Indígenas em Quadrinhos. São Paulo: Zarabatana Books. Revista ALTER IBI. ISSN 2183-2927. Vol. 1 (1): 54 -61. 61