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Forró X Forró: discursos, polarizações e diversidade num campo musical
Climério de Oliveira Santos
UNIRIO / Doutorado / Etnografia das Práticas Musicais
Palavras-chave: forró eletrônico; forró tradicional; bipolarizações; diversidade musical.
Ao longo da sua existência, o forró tornou-se um campo musical diversificado, englobando
uma teia de sons e significações perpassados por diferentes discursos. A partir dos anos 1990,
com a adoção de elementos da estética pop internacional pelas bandas de forró, surge a
categoria “forró eletrônico” e, em reação à sua emergência, ganha relevo a expressão “forró
tradicional”, ou “pé-de-serra”. Os agentes transformaram as duas categorias antagônicas em
correntes discursivas que provocaram uma crescente bipolarização do debate no campo. Em
um dos pólos está o “forró eletrônico”, cujos empreendedores postulam ser uma música
“moderna, atual, jovem”; no outro pólo encontra-se o “forró tradicional”, referenciado,
sobretudo, na obra de Luiz Gonzaga e, como evidencia o nome, associado a um
Nordeste “tradicional" (ligado ao passado, não-moderno), defendido como o “autêntico
forró”. Tal oposição discursiva – ancorada em diferentes práticas e identificações – vem
envolvendo artistas, músicos, simpatizantes, públicos, jornalistas e outros intelectuais que
acabaram por assumir posição em uma das duas trincheiras. Até mesmo alguns intelectuais
que produziram trabalhos analíticos, quando não aderiram a um dos lados, passaram a
naturalizar a polarização eletrônico/tradicional como sendo a única – ou a mais importante –
ocorrência digna de atenção no campo, contribuindo com a consubstanciação de um gênero
musical bipolar e minimizando a multiplicidade do forró. Entretanto, uma investigação do
forró revela a existência de múltiplas práticas desenvolvidas por artistas que não se
enquadram nos rótulos “tradicional/eletrônico”, além de ambigüidades em práticas daqueles
que defendem uma das correntes opostas. Esteado em preceitos de etnomusicologia e de
ciências sociais, este estudo investiga diversas práticas importantes no âmbito do forró,
verificando uma complexidade no campo que escapa ao olhar que põe a referida dicotomia
em foco.
Forró X Forró: discourses, polarizations and diversity in a musical field
Key-words: electronic forró; traditional forró; bipolarization; musical diversity.
Throughout its existence, forró music has become a diverse field of music, encompassing a
web of sounds and meanings traversed by different discourses. From the year 1990, forró
bands have adopted elements of international pop aesthetic, giving rise to the category
"electronic forró” (or “stylized forró”) and, in response to its emergence, the term "traditional
forró" won took a breath. The social agents turned these categories antagonistic into
discursive currents, which lead to an increasing polarization of the debate in the field. In one
of the poles is the "electronic forró", postulated to be a "modern, current, young" music. In the
other pole is the "traditional forró", referenced especially in the work of Luiz Gonzaga, and as
the name shows, this is one associated with a Brazilian region which is seen as a “traditional
region" (linked to the past, non-modern) – this is defended as being “authentic forró music”.
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Such opposition discourse – anchored in different practices and identifications – has involved
artists, musicians, sympathizer, public, journalists and other intellectuals who ended up taking
a position in the two trenches. Even some intellectuals have produced analytical work, when
they do not adhere to one side, passed to naturalize the polarization electronic / traditional as
the only – or the most important – occurrence worthy of attention in the field. Thus, these
intellectuals contributed to the embodiment of a bipolar genre and minimized the multiplicity
of forró music. However, an investigation of forró reveals the existence of multiple practices
developed by artists who do not fit themselves into the label "traditional / electronic”, and it
also reveals ambiguities in practices of social agents who hold one of the opposing currents.
Based on principles of ethnomusicology and social sciences, this study investigates several
important practices in the forró, verifying a complexity (in the field) that escapes the gaze that
puts such a dichotomy in focus.
Introdução
Pensar o forró – como música-dança ligada à indústria fonográfica e ao mass media –
implica pensar uma taxonomia que lhe diz respeito. Como propõe Franco Fabbri (1999: 1), a
taxonomia de uma dada musicalidade popular está representada num gênero musical, uma
categoria classificatória inserida no conjunto de gêneros que compõe o universo musical.
Nessa perspectiva, a taxonomia do forró está representada na divisão do universo musical
em gêneros e tanto o consumo como as expectativas dos consumidores de música popular
são, em grande medida, orientados por tais gêneros. Desse modo, o forró se caracteriza por
um conjunto definido de regras socialmente partilhadas, as quais ocorrem como eixo de
comparação entre os gêneros que demarcam as fronteiras.
No entanto, quando tratamos de práticas, tais fronteiras são caracterizadas não por
linhas demarcatórias bem localizadas, mas, por relações entre agentes sociais que negociam
códigos; portanto, são fronteiras fluidas. Nesse sentido, gênero não se restringe à música em
si, mas envolve redes culturais específicas de produção, circulação e significação (HOLT,
2007). O “gênero forró” é uma categoria êmica – cunhada no interior do sistema ao qual
pertence. Justamente por ter essas características, “gênero” será abordado neste trabalho
como um elemento discursivo do interior do que chamo de “campo”. Este trabalho aborda o
forró como um campo de práticas, de valores, de forças, tendo em conta duas concepções: a
idéia de “campo” como uma “arena”, constituído pelos embates (BOURDIEU, 2011: 183–
202) e de “mundo artístico” caracterizado pela produção colaborativa (BECKER, 2008:
373–382). Nesse sentido, o campo do forró é percebido como algo abrangente, com
fronteiras fluidas e que inclui o “gênero musical” (convenções, práticas interiores e
centrais), bem como as práticas periféricas, as relações do forró com outras musicalidades,
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além das ambigüidades ocorrentes. Desse modo, embora haja (no “gênero”) um conjunto de
“regras definidas”, no campo ocorrem rupturas e movimentos tácitos importantes que
dialogam com as convenções vigentes e que podem preceder futuras convenções. Os
movimentos e rupturas que chamo de “tácitos” podem não ser percebidos se o foco de uma
investigação for lançado sobre as narrativas dominantes do gênero forró, o que poderá
provocar obliteração e naturalizações no olhar do pesquisador.
Uma das possíveis naturalizações decorre da atratividade que as lutas de categorias
hegemônicas do campo provocam em quem se interpõe entre elas. Nesses casos, intelectuais
podem passar a se locomover em consonância com as movimentações dos máster-agentes em
combate e perder de vista outros movimentos menos visíveis, mas fundamentais. A oposição
“forró eletrônico X forró tradicional” é um dos mais evidentes exemplos de máster-narrativa
que foi desenvolvida por agentes na taxonomia do forró e que vem atraindo a atenção dos
envolvidos e de pesquisadores, em detrimento das narrativas plurais e das narrativas não
declaradas (tácitas) – igualmente importantes.
A análise baseada em pares opostos foi um dos pilares da antropologia estrutural de
Claude Lévi-Strauss (1958), para quem todo pensamento humano opera através de pares de
oposição. Tal acepção tem sido muito questionada por utilizar as “estruturas sociais” para
interpretar um conjunto, um sistema, ou um fenômeno, sem considerar várias ocorrências
subjacentes. O foco na oposição eletrônico/tradicional evidenciado nas discussões dos vários
agentes envolvidos direta e indiretamente com o forró guarda – em alguma medida –
“relações de parentesco” com a análise estruturalista que há muito vem influenciando o
pensamento social. Este estudo pretende verificar alguns aspectos que jazem por baixo das
categorias “forró tradicional” e “forró eletrônico” – e da oposição entre elas – no âmbito do
Nordeste do Brasil, sobretudo, no estado de Pernambuco. Para tanto, dialoguei com
pesquisadores, artistas de diversas vertentes do forró, com jornalistas, públicos e outros
participantes do campo.
As codificações do forró:
É impraticável fazer um mapeamento preciso dos signos que foram integrados ao campo
do forró ao longo da sua história, mas, é possível elencar os principais aspectos que foram
incorporados à persona de alguns artistas proeminentes. Nos anos 1940–50, Luiz Gonzaga,
um tocador de acordeom oriundo do sertão de Pernambuco (Nordeste), combinou elementos
da música que aprendera em sua terra e elementos da música da moda ditada pela capital
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brasileira da época, o Rio de Janeiro. O baião de Luiz Gonzaga vai se configurando como
termo metonímico que remete a outros tipos musicais – xote, coco, xaxado, arrasta-pé, rojão
etc. – identificados com a região Nordeste. Partida, saudade e calamidade (seca) vão se
destacar no cluster de signos emitidos por Gonzaga e seus parceiros, que também lançam mão
de topos (objetos, fatos, modos de falar e de sentir, tipos humanos, paisagem geográfica,
catolicismo cristão, migração etc.) e estabelece o trio instrumental1 – zabumba, sanfona e
triângulo. A agência de Gonzaga estava alinhada com uma colossal conjuntura do período
compreendido entre 1930 e 1955, que combinava nacionalismo – demanda à emblemática
“tradicional” – e modernidade cosmopolita (MCCANN, 2005: 111-128). O baião alcançou o
status de “nacional”, rompendo a barreira do “regional” muito embora, a sua poética tenha se
reportado fundamentalmente ao sertão do Nordeste, à zona rural.
Embora Gonzaga tenha sido pioneiro no uso do termo “forró” com a gravação do Forró
de Mané Vito (L. Gonzaga e Zé Dantas; 1949), Jackson do Pandeiro foi um dos principais
promotores da mudança do apelido midiático de “baião” para “forró” (MOURA, 2001: 215).
Houve muitas outras contribuições de Jackson, como: uso expressivo do coco, dos traços da
embolada e do pandeiro no forró; poética urbana (mantendo também a rural), irônica, bem
humorada e menos ligada à partida-saudade-calamidade do Nordeste gonzaguiano;
heterogeneidade apresentada, por exemplo, nas diversas formações instrumentais (naipes de
metais e orquestras) e na variedade dos padrões rítmicos (FENANDES, 2005:63-68).
A partir de meados dos anos 1950, a música-dança nordestina vai tomando proporções
cada vez menores no mercado e na mídia nacionais, que passaram a ser ocupados por
“novidades”, como bossa nova, tropicália e jovem guarda. No seu terceiro álbum, Canto livre
(RCA-Victor, 1983), Jorge de Altinho2 acrescenta elementos da jovem guarda e do soul
brasileiro – leia-se Tim Maia – aos elementos estabelecidos no forró. O instrumental utilizado
por Jorge incluía: órgão Hammond, piano elétrico Fender, acordeom, sintetizador
Harpstrings, guitarra (com pedais de efeitos eletrônicos), craviola, viola, violão Ovation,
bateria, baixo, naipe de metais (sax tenor, trombone, trompete), agogô, triângulo, e pandeiro.
Além do instrumental, Jorge acelerou o baião, utilizou figurino e cenários urbanos, além de
algumas letras que se reportavam ao ambiente citadino. Embora tenha mantido os padrões
rítmicos gonzaguianos, Jorge de Altinho provocou mudanças significativas no campo.
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Mesmo depois de estabelecer o trio, Gonzaga continuou utilizando outros instrumentos em suas gravações e em
alguns shows.
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Os dados sobre Jorge de Altinho são de primeira mão; obtive através da audição da sua obra e de entrevistas
concedidas pelo próprio artista (2012) e pela sua produtora e esposa Gelva Idália.
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No início nos anos 1990 o forró estava novamente em baixa na mídia e a lambada era a
música-dança da moda. Surge a Mastruz com Leite, banda que introduz no forró alguns
elementos característicos da música pop internacional: teclados, bateria, baixo, guitarra,
saxofone (com ênfase na bateria e no teclado), coreografias sensuais (bailarinos), aumento
exponencial nos equipamentos de iluminação e de amplificação sonora, foco no público
jovem etc. Através da produção e distribuição de conteúdos por meio de rádio via satélite, o
empresário Emanuel Gurgel – fundador da banda Mastruz com Leite e de outras semelhantes
– constrói uma estrutura industrial e recodifica o forró, ocasionando a proliferação de bandas
similares, as quais deram surgimento à categoria “forró eletrônico”.
Discursos bipolares e diversidade
A dicotomia “eletrônico/tradicional” foi gerada pelo próprio empresário Emanuel Gurgel,
o agente pioneiro das bandas que passaram a ser agrupadas na categoria “forró eletrônico”,
quem me deu o seguinte depoimento:
A Mastruz com Leite foi criada para tocar exclusivamente forró e para modernizar
o forró. Ninguém tava nem aí pra forró, não tocava mais no rádio [...] e o forró tava
atrasado para o momento que a gente tava vivendo, só falava das mesmas coisas,
de sertão, de luz de candeeiro, de Padre Cícero, de seca e tal. As coisas do tempo
de Gonzaga. Qual o jovem que quer saber disso? E tocava aquelas coisas do
mesmo jeito antigo, só usava o trio, não tinha peso nos instrumentos, um som
fraquinho, sem iluminação, sem balé [coreografia]. O mundo é outro, cara, e a
gente tem que acompanhar. Aí eu comecei a juntar músicos, compositores
românticos, para fazer um forró moderno. E tive que dizer isso pra todo mundo
pelo rádio, pela TV, tive que mostrar a diferença pra ajudar a vender. Foi só isso
mesmo. O resto, todo mundo já sabe (Depoimento ao autor, 2000).
O discurso de Gurgel e a sonoridade da banda Mastruz com Leite evidenciam a proposta
de um “forró moderno” – com ênfase em instrumentos de “peso” (bateria e teclados),
amplificação de som e luz, coreografia de dança e poética “atual”, romântica e urbana –
elementos opostos ao forró “do jeito antigo” de Luiz Gonzaga, que está associado a: passado,
ambiente rural (“luz de candeeiro”, “sertão”), flagelo (seca), desatualização e descompasso
com o público “jovem” e com a mídia. Esse discurso sobre a música será veiculado por
Gurgel para “mostrar a diferença”, para marcar a oposição entre os dois forrós: “moderno” e
“antigo” (“atrasado”). Além de estabelecer a oposição nos discursos musical e extra-musical,
Gurgel dá uma idéia da sua perspectiva global – “o mundo é outro” –, o que está evidenciado
também na sintonia do seu forró com a estética pop internacionalizada por majors
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fonográficas que tinham em Maddona e Michel Jackson os seus principais produtos. O
discurso de Gurgel ecoou na voz de muitos empresários e radialistas – e da imensa audiência
– alinhados com a Mastruz com Leite e com as bandas que vieram no seu rastro, gerando, por
outro lado, reações que reforçaram as discussões em torno dessa dicotomia.
O “forró moderno” se diversificou muito, produzindo desde bandas que continuam
adotando exclusivamente os padrões rítmicos gonzaguianos e bandas que a esses agregam
outros grooves – swingueira e pisadinha (baianos), música “brega”, “sertaneja” –, até bandas
que praticamente suprimiram as “batidas” e os instrumentos “tradicionais”3. Algumas dessas
bandas passaram a utilizar em larga escala a sensualidade nas letras e nas coreografias,
alcançando com isso grande sucesso, motivando o surgimento de uma vertente musical
sexista que se tornou hegemônica no mercado e eclipsou a Mastruz e as outras bandas
surgidas no início dos anos 1990. Com o declínio da primeira leva de bandas, os seus
empresários se agruparam e começaram a cunhar um novo rótulo – forró das antiga [sic]–
com o objetivo de restabelecer a sua fatia do mercado frente ao novo “forró moderno” de
bandas como Calcinha Preta, Aviões do Forró e Garota Safada etc. A partir de então, uma
significativa parte do público do chamado “forró tradicional” vem repudiando menos as
bandas como Mastruz com Leite. Em depoimentos que tomei aos músicos adeptos do forró
gonzaguiano, como Solano Marinho (bateria) e Luzico (sanfona), foram recorrentes as
afirmações relativizadas, como: “a banda Mastruz com Leite sempre tocou forró tradicional,
mas, muita gente não enxergava isso”. Apesar da diversidade musical e estilística, há quem
abrigue – inadvertidamente – todas essas as bandas de forró no rótulo “forró eletrônico”.
Os forrós das bandas também exerceram uma grande influência sobre artistas que se
reconhecem na vertente “forró tradicional”. Embora Jorge de Altinho tenha usado
“instrumentos modernos” desde começos dos anos 1980, vários artistas que dele se
diferenciavam por enfatizarem elementos (musicais, poéticos e imagéticos) “tradicionais”,
passaram a adotar alguns caracteres “modernos” e a apontar Jorge de Altinho como a
referência para essa atualização, o que pode ser verificado no seguinte relato de Maciel Melo:
Jorge de Altinho usa metais e bateria já faz muitos anos, muito antes dessas bandas,
então eu também posso usar. E hoje você tem que usar um som pesado, o povo tá
acostumado com o peso. Mas você pode ver que eu dou um destaque no trio, boto
ele no centro e na frente dos outros instrumentos. E não canto safadeza,
pornografia, nada disso. Então, eu sou tradicional e sou moderno (Entrevista ao
autor, 2011).
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Entretanto, praticamente todas as bandas mantêm o sanfoneiro, signo maior do forró gonzaguiano.
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Assim como Maciel Melo, Petrúcio Amorim e Flávio José também apontam Jorge de
Altinho como referência para o uso que eles fazem dos instrumentos metais e de bateria. E, de
fato, no que pese o sucesso da Mastruz com Leite e bandas descentes, a música desses artistas
guarda mais semelhança com o trabalho de Jorge de Altinho4 do que com o das referidas
bandas, pois, Jorge não havia transformado o forró numa festa-espetáculo pop e hiper-sensual
(“safadeza”). Por outro lado, o “som pesado” ao qual “público se acostumou”, como assinala
Maciel Melo, significa que a massificação dos “instrumentos de peso” (da Mastuz com Leite
e suas descendentes) modificou a escuta coletiva, que por sua vez demandou mudanças na
música de vários artistas “tradicionais”.
No âmbito do forró, há uma miríade de artistas que não se enquadra nas categorias
“eletrônico” e “tradicional”, o que me convida a refletir sobre a legitimidade do status que
essas categorias e sua oposição adquiriram. Um desses, Silvério Pessoa depõe sobre as suas
práticas e sobre as referidas categorias:
Eu não trabalho dando continuidade a uma tradição [...] eu trabalho desconstruindo
essa idéia de forró como uma coisa fixa, pronta. Então, não faço um show só
tocando canções em blocos de ritmos gonzaguianos, nem monto um trio para tocar
do início ao fim do show. Ora eu enfatizo a guitarra e os instrumentos do rock, em
outros momentos eu monto um trio, depois desconstruo e formo um grupo grande
com os metais e, assim, vou fazendo um show heterogêneo. Não gosto de me
inserir nesses rótulos, como forró pé-de-serra, forró tradicional, forró eletrônico,
nem me enquadrei nesse rótulo chamado “forrozeiro (Entrevista ao autor, 2011).
Outro artista que relata a sua experiência e a suas práticas em relação aos rótulos em
questão é Herbert Lucena:
Esse papo de forró pé-de-serra não cola. “Forrozeiro” também não cola. Isso é
mercado para o grupo dos artistas ligados à Sociedade dos Forrozeiros Pé-de-serra
e ai. O forró Eletrônico, dessas bandas, nem é forró, nem é eletrônico [...] Se eu
quero tirar a sanfona, tiro e boto um piano, uma viola, ou uma rabeca. Se eu quero
tocar e gravar um frevo, uma ciranda, um samba, um blues, eu toco e pronto
(Entrevista ao autor, 2012).
Silvério Pessoa e Herbert Lucena são apenas duas citações de um campo muito
diversificado, mas são exemplos adequados á argumentação deste trabalho, uma vez que esses
artistas vêm se destacando no contexto recifense. Eles não se sentem “forrozeiros”, mas tocam
Vale ressaltar que cada nova “moda musical” costuma vir associada a modificações sonoras. Desse modo, os
instrumentos musicais podem parecer os mesmos, mas os sons musicais são modificados através de
processadores de efeito, pré-amplificadores, ênfase diferenciada nas freqüências de som etc.
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forró e se inserem em vários espaços baseados no forró, como alguns dos importantes
festivais juninos. No entanto, eles não se restringem aos principais grooves gonzaguianos.
Silvério utiliza loops eletrônicos e mixa elementos do forró com rock e com música da
Occitania (agrupamento étnico no Sul da França). Herbert e Silvério não se apresentam em
espaços ortodoxos do forró tradicional, como a Sala de Reboco e a Casa de Zé Nabo (casas
noturnas), tampouco nas grandes festas das bandas “modernas” de forró, como o São João da
Capitá e outros. Por outro lado, eles tocam em espaços divugados como “tradicionais”, a
exemplo dos festejos juninos de Caruaru e Recife, os quais permitem a mistura de certas
musicalidades, como baião e rock. Silvério e Herbert não são exceções, muitos outros artistas
não se reconhecem (nem são amplamente reconhecidos) nas duas categorias que se opõem,
como: Cláudio Rabeca, Quarteto Olinda, Leda Dias, Fim de Feira, Chá de Zabumba,
Rabecado, João do Pife, Marcelo Caldi, Josildo Sá, entre outros.
As categorias “forró eletrônico” e “forró tradicional” vêm capitalizando forças através da
entrada de intelectuais nas discussões do campo. Felipe Trotta é um pesquisador pioneiro na
investigação de problemas subjacentes ao advento do forró eletrônico. Trotta coordenou uma
importante pesquisa, escreveu vários artigos e um ensaio (premiado) sobre a “narrativa de
nordeste” do forró eletrônico e o seu confronto com o forró tradicional. Neste último, o autor
afirma:
Ainda hoje o som da sanfona e o sorriso aberto de Gonzaga representam uma certa
unidade identitária regional, reconhecida dentro e fora dos limites da região.
Ocorre que o chamado forró eletrônico tem buscado há quase duas décadas
desconstruir esta narrativa num processo conflituoso e explosivo de
reprocessamento musical. As disputas entre o forró eletrônico e os artistas do
(agora) “pé-de-serra” são perpassadas por um profundo debate sobre os elementos
norteadores dessa nova identidade nordestina (TROTTA, 2012:3).
As afirmações de Trotta nesse trecho são exemplos de generalizações e de
naturalizações que vários intelectuais vêm praticando a respeito do forró e do Nordeste.
Primeiro, afirmar que “ainda hoje o som da sanfona e o sorriso aberto de Gonzaga
representam uma certa unidade identitária regional” é reduzir todas as musicalidades e os
processos identitários do Nordeste à persona Luiz Gonzaga, algo que não corresponde à
realidade e, para verificar isto, basta ouvir as principais rádios e andar pelas ruas: as
carrocinhas de CDs e DVDs piratas tocam funk (carioca e recifense), sertaneja, brega, pop,
rock e muitos forrós. Para completar, ficou patente nos depoimentos de Silvério Pessoa e de
Herbert Lucena, podendo também ser verificado através da audição dos seus últimos discos,
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nos quais a influência de Gonzaga não é predominante, apenas convive com várias outras.
Segundo, as bandas agrupadas na categoria “forró eletrônico” são muito diversificadas e,
como foi dito anteriormente, o espectro de bandas abrange desde aquelas que tocam os
grooves gonzaguianos, até as que abandonam tais grooves e ainda aquelas que usam em seus
shows os padrões gonzaguianos e aqueles importados de outras músicas; algo similar pode ser
dito em relação à diversidade entre artistas agrupados na categoria “forró tradicional”.
Abordagens desse tipo são muito úteis para produzir uma fotografia histórica em que a luz só
é lançada sobre as máster-narrativas, obscurecendo as zonas fronteiriças, onde ocorrem uma
série de negociações, narrativas plurais que são importantíssimas no âmbito do forró. Além de
Trotta, há outros pesquisadores que contribuíram com estudos sobre o forró, mas, naturalizam
a máster-narrativa da dicotomia eletrônico/tradicional, como: Ibrantina Lopes (2010),
Samantha C. Rebelo (2007), Feitosa (2008).
Entre os jornalistas e apresentadores de
programas de rádio que naturalizam a dicotomia estão: José Teles, Saulo Gomes, Geraldo
Freire, José Mário Austregésilo e Chico Bizerra, só para citar os mais conhecidos.
Além dos que foram discutidos, há outros aspectos dignos de nota nesses processos de
identificações e de exclusões, os quais chamo de movimentos tácitos. Dois deles, por sinal,
são muito curiosos. O primeiro diz respeito a Maciel Melo e Petrúcio Amorim, artistas que se
auto-definem como “tradicionais”, mas que forneceram canções para as bandas de Emanuel
Gurgel e suas descendentes. O fornecimento de canções para a Somzoom ajudou a consolidar
os nomes desses dois compositores e rendeu proventos suficientes para Maciel e Petrúcio se
lançarem como intérpretes no campo do forró. Por outro lado, há artistas reconhecidos como
tradicionais que interpretam canções de sucesso provenientes das bandas de “forró
eletrônico”. O outro caso é ainda mais inusitado. A formação conhecida como trio pé-de-serra
(zabumba, sanfona e triângulo) é um dos símbolos dominantes do “forró tradicional”. No
entanto, os números grupos que adotam essa formação (Trio Forrozão, Trio Macambira, Trio
Chinelo Rasgado...) recebem as piores remunerações entre os artistas do mercado de forró.
Cada componente de um trio costuma receber um cachê entre cinquenta e cem reais, enquanto
os músicos contratados pelos artistas “tradicionais” recebem de duzentos a quinhentos reais,
aproximadamente. Artistas “tradicionais” proeminentes, como os mencionados, costumam
receber cachês entre vinte e trinta mil reais5. Isso comprova que o exercício do litígio
eletrônico/tradicional capitaliza um grupo de agentes do campo, mas não beneficia todos os
“portadores de tradição”.
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Os valores apresentados são líquidos, descontados os impostos e encargos.
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Conclusão
Como foi discutido, o discurso bipolar foi transformado numa narrativa dominante, que
parece querer definir o forró como um todo, em detrimento das narrativas plurais, das micronarrativas, da diversidade do campo. O campo do forró é diversificado, complexo, litigioso e,
ao mesmo tempo, colaborativo. Vimos como a sobrevalorização de pares opostos pode
obliterar o olhar sobre a diversidade e a complexidade. A fotografia histórica que lança foco
na dicotomia eletrônico/tradicional vem naturalizando essa bipolarização, desfocando
narrativas plurais fundamentais e influenciando os processos de legitimação de algumas
práticas, bem como o desconhecimento e depauperamento (e até exclusão) de outras.
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