PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Faculdade de Comunicação e Artes
Curso de Comunicação Social
Habilitação em Jornalismo
IMAGENS DA
SEXUALIDADE NO
CINEMA DE ALMODÓVAR
Carla Caetana Chamone
Debora Prado Sampaio
Laura Zschaber Guimarães
Marina Costa Marçal de Moraes
Rafael Resende de Oliveira Rosa
Rebeca Alice Penido
Thiago Soares Crivelaro
Belo Horizonte
2012
Carla Caetana Chamone
Debora Prado Sampaio
Laura Zschaber Guimarães
Marina Costa Marçal de Moraes
Rafael Resende de Oliveira Rosa
Rebeca Alice Penido
Thiago Soares Crivelaro
IMAGENS DA
SEXUALIDADE NO
CINEMA DE ALMODÓVAR
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao
Curso de Comunicação Social, habilitação em
Jornalismo, da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito para obtenção do título
de Bacharel em Jornalismo.
Orientador: Bruno Vasconcelos de Almeida
Belo Horizonte
2012
Carla Caetana Chamone
Debora Prado Sampaio
Laura Zschaber Guimarães
Marina Costa Marçal de Moraes
Rafael Resende de Oliveira Rosa
Rebeca Alice Penido
Thiago Soares Crivelaro
Imagens da Sexualidade no Cinema de Almodóvar
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao
Curso de Comunicação Social, habilitação em
Jornalismo, da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito para obtenção do título
de Bacharel em Jornalismo.
_____________________________________________________
Bruno Vasconcelos de Almeida (orientador) – PUC Minas
_____________________________________________________
Eduardo Antônio de Jesus – PUC Minas
_____________________________________________________
Carolina Marinho – PUC Minas
Belo Horizonte, 30 de novembro de 2012.
Aos grandes nomes da Sétima Arte
que nos instigaram a pensar os tortuosos
caminhos da sexualidade na tela.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos aos professores Eduardo Antonio de Jesus e Bruno Vasconcelos de
Almeida pelo esteio teórico e convite à reflexão que nos ofertaram durante a
realização deste trabalho. À supervisora, professora Carolina Marinho, nosso
agradecimento também pelas contribuições no enriquecimento do presente texto.
Ao professor Paulo Pereira, agradecemos especialmente por ampliar nossa visão
sobre o cinema, e trazer ao nosso conhecimento o que de mais apaixonante a arte
cinematográfica legou às novas gerações de espectadores.
Por fim, ressaltamos a importância de todas as formas de contribuição advindas de
professores e colegas que, interessados na discussão aqui empreendida, vieram a
acrescentar em nosso debate acerca da sexualidade no cinema de Pedro
Almodóvar.
RESUMO
Este trabalho embasa-se na tentativa de compreender como o tema da sexualidade
emerge da imagem projetada na tela pelo cinema do espanhol Pedro Almodóvar,
utilizando-se para isso da análise de três filmes da filmografia do diretor: Pepi, Luci,
Bom e Outras Garotas de Montão (1980), Carne Trêmula (1997) e Má Educação
(2003). Buscar-se-á discutir como os elementos fílmicos (enquadramentos, planos,
figurinos, cenários, roteiros, atuações, montagens, trilhas sonoras) utilizados na obra
almodovariana expressam a visão peculiar do cineasta sobre temas concernentes à
sexualidade. Para tanto, contar-se-á com aportes advindos de áreas distintas de
conhecimento, como a Psicologia e a Filosofia, caracterizando esta pesquisa como
transdisciplinar.
Palavras-chave: Cinema. Cinema Espanhol. Movida Madrileña. Pedro Almodóvar.
Sexualidade. Devir.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Cartaz de Fogo nas Entranhas (1981)........................................................14
Figura 2: Cartaz da Produtora El Deseo....................................................................16
Figura 3: Cartaz de Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980)................24
Figura 4: Cena de Má Educação (2003)....................................................................27
Figura 5: Cena de Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980)..................31
Figura 6: Cena de Kika (1993)...................................................................................35
Figura 7: Cena de Volver (2006)................................................................................39
Figura 8: Cena de Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980)..................47
Figura 9: Cena de Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980)..................49
Figura 10: Cena de Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980)................52
Figura 11: Cena de Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980)................54
Figura 12: Cena de Carne Trêmula (1997)................................................................58
Figura 13: Cena de Carne Trêmula (1997) ...............................................................59
Figura 14: Cena de Carne Trêmula (1997) ...............................................................64
Figura 15: Cena de Carne Trêmula (1997) ...............................................................65
Figura 16: Cena de Ensaio de um Crime (1955) .......................................................66
Figura 17: Cena de Carne Trêmula (1997) ...............................................................66
Figura 18: Cena de Má Educação (2003) .................................................................69
Figura 19: Cenas de Má Educação (2003) ................................................................71
Figura 20: Cena de Má Educação (2003) .................................................................75
Figura 21: Cena de Má Educação (2003) .................................................................76
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................9
2 A PRODUÇÃO FILMOGRÁFICA DE PEDRO ALMODÓVAR E SEU CONTEXTO
BIOGRÁFICO.............................................................................................................12
2.1 Apontamentos biográficos sobre o cineasta.........................................................13
2.2 As peculiaridades na produção filmográfica de Pedro Almodóvar.......................17
2.3 A Movida Madrilenha e sua importância para a constituição da obra de Pedro
Almodóvar .................................................................................................................19
2.3.1 O primeiro filme de Almodóvar, a personagem Patty Diphusa e a influência de
Andy Warhol ..............................................................................................................22
2.4 A sensualidade no cinema de Almodóvar............................................................26
3 A SEXUALIDADE E O CINEMA..............................................................................29
3.1 Cinema, repressão política e sexual ...................................................................29
3.2 O voyeurismo, o desejo e o dispositivo cinematográfico......................................32
3.3 O almodovariano entranhado no imaginário do cinema contemporâneo ............37
3.4 Masculino e feminino: invenção de lugares na ótica almodovariana..................41
4 A IMAGEM DAS SEXUALIDADES..........................................................................43
4.1 Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão......................................................46
4.1.1 A construção da sexualidade pela imagem.......................................................48
4.1.2 Devires: corpos que vibram...............................................................................53
4.2 Carne Trêmula......................................................................................................55
4.2.1 Personagens e enredo......................................................................................57
4.2.2 Desejo e vingança ............................................................................................58
4.2.3 A trilha sonora e outros recursos técnicos........................................................63
4.2.4 A intertextualidade em Carne Trêmula..............................................................65
4.3 Má Educação........................................................................................................67
4.3.1 A abertura..........................................................................................................68
4.3.2 Conhecendo Zahara........................................................................................68
4.3.3 A câmera e outros aspectos técnicos................................................................70
4.3.4 A temática gay...................................................................................................72
4.3.5 O contexto da obra ...........................................................................................76
5 CONCLUSÃO..........................................................................................................79
REFERÊNCIAS..........................................................................................................82
ANEXOS....................................................................................................................88
9
1 INTRODUÇÃO
Pensar sobre o cinema de Pedro Almodóvar requer um olhar referenciado em
lugares pouco tradicionais de fala e ação. Este trabalho priorizou estudar e analisar
a sexualidade presente na filmografia do cineasta espanhol. A temática, recorrente
em suas produções, de modo implícito ou explícito e, por vezes, desconcertante,
despertou curiosidade por compreender o fascínio do cineasta pelos meandros da
sexualidade humana. Desse modo, buscou-se investigar, desde sua formação
profissional diversa e personalidade peculiar até os elementos que denotam o
amadurecimento de seu modo de filmar, passando por contextos históricos
vivenciados pelo diretor – elementos que o motivaram e influenciaram na produção
de seu cinema autoral.
O caminho percorrido pelo diretor revela em Almodóvar um conhecimento e
sensibilidade acerca das diferenças que marcam as relações humanas. Os
sofrimentos e redenções das mulheres feridas afetivamente, a capacidade humana
de simular força e contornar situações adversas e os conflitos familiares
exacerbados remetem à ideia de um conhecimento e experiência legítimos. Tais
questões tipicamente humanas são trabalhadas por uma câmera cúmplice, que
compartilha com os personagens seus dilemas pessoais. A sexualidade ganha então
um lugar de expressão não estigmatizado, despido de matizes conservadores.
No capítulo inicial, realizou-se um panorama da trajetória pessoal de
Pedro
Almodóvar,
descobertas
que
compassadamente
profissionais.
Seus primeiros
caminhava
curtas-metragens
junto
e
às
suas
respectivas
repercussões – positivas ou não – fundamentaram suas inspirações e escolhas nas
produções futuras. Discorreu-se também sobre a biografia profissional do
diretor – seus filmes de maior sucesso que renderam prêmios e indicações – para,
enfim, desembocar nas tendências, estilos e disposições dos temas típicos no
cinema de Almodóvar.
O contexto histórico da época em que se inicia a produção do diretor – a
negação
do
franquismo
e
a
consequente
transição
para uma
Espanha
10
democrática – traduzida pelos movimentos que clamavam por liberdade, marca e
exerce
grande
influência
sobre
seu
primeiro
longa-metragem
comercial,
Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980). A quebra de padrões já
determinados e aceitos pela sociedade também é destaque nos filmes de Almodóvar
e a sexualidade se expõe de maneira inovadora – cada vez mais intensa e
sofisticada.
O capítulo 2 apresenta a temática da sexualidade em seu casamento com a
imagem cinematográfica, na qual estudou-se formas utilizadas no tratamento da
temática sexual. Os recursos que o cineasta utiliza para proporcionar ao espectador
o contato com o universo almodovariano são revisitados da escolha dos planos à
interpretação dos atores. Tais recursos, quando vistos agregados, dão a ver a
riqueza que a imagem carrega e o que ela vem colocar em voga.
O tensionamento entre a sexualidade vista pelas lentes do diretor espanhol
com estudos baseados no campo da Psicologia e da Filosofia acerca do
comportamento sexual humano, questiona a abordagem de Almodóvar sobre o
tema, uma vez que este é uma das marcas do cineasta espanhol, que tem seu estilo
próprio, com especial apreço por narrativas de denso viés sexual. Se ainda hoje a
discussão sobre sexualidade gera polêmicas perante a sociedade, em tempos
autoritários se dava de forma ainda mais turbulenta, o que causava repreensão por
parte das pessoas a qualquer manifestação transgressora do corpo e gerava
questionamentos sobre as posturas chanceladas pelo convívio social.
Ainda no segundo capítulo, abordou-se a questão do voyeurismo, uma vez
que o olhar é o principal instrumento de alcance do cinema, permitindo a criação do
erotismo e da sensualidade na imagem - o que possibilita expandir fronteiras e
ambiências nos planos individual e social, fazendo do espectador um eterno voyeur
e da sociedade um palco para tal prática.
Por fim, no capítulo 3, realizou-se a análise fílmica de três longas-metragens
do cineasta espanhol: Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão (1980), Carne
Trêmula (1997) e Má Educação (2003), com o objetivo de apresentar pontos e
características marcantes da filmografia almodovariana a partir de um recorte
panorâmico de sua obra que abarcasse momentos distintos de sua carreira.
11
Baseando-se nos conceitos propostos por Jacques Aumont a respeito da estética
cinematográfica e na filosofia da imagem de Gilles Deleuze e Félix Guattari no que
tange à experiência do cinema, tentou-se compor uma discussão acerca das
recorrências imagéticas que deixam entrever em Almodóvar um trato único no que
toca o campo da sexualidade.
É preciso ressaltar que a escolha dos três filmes referidos deu-se a partir da
presença de elementos comuns às películas. Além do tema central da sexualidade,
que perpassa por todas elas, viu-se conformar também a temática da vingança nos
roteiros analisados, incitando a pensar que tal sentimento catalisa emoções e produz
reviravoltas na vida dos personagens almodovarianos.
A análise fílmica empreendida buscou abarcar pontos que dissessem de
como a obra quer expor seu modo de ver a sexualidade em personagens pouco
convencionais e complexos em sua singularidade. Daí esquadrinha-se a plasticidade
da imagem (aberturas dos filmes, por exemplo, em sua riqueza imagética), a
apresentação dos personagens, os temas fulcrais em cada filme, as características
técnicas (como a câmera cumpre seu papel) e também a relevância do contexto
sociocultural para pensar cada filme almodovariano dentro de seu lugar de
enunciação.
12
2 A PRODUÇÃO FILMOGRÁFICA DE PEDRO ALMODÓVAR E SEU
CONTEXTO BIOGRÁFICO
“Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história,
isto é, como o relato coerente de uma sequência de
acontecimentos com significado e direção, talvez seja
conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação
comum da existência que toda uma tradição literária não
deixou e não deixa de reforçar.” – Pierre Bourdieu
Assim como o romance moderno, que apontou os limites para a construção
de uma narrativa linear e de direção única, a tentativa de compilação de elementos
biográficos de uma célebre personalidade como Pedro Almodóvar encontra
obstáculos diante de um projeto narrativizante. A ilusão de se contar a “história de
uma vida” está calcada em toda uma tradição que secularmente colocou rédeas
curtas em um “plano real” que é por definição descontínuo, formado de elementos
por vezes justapostos sem razão aparente. Pois assim é, também, que o relato
biográfico quando tomado como projeto de escrita, necessita levar em conta as
vicissitudes do cotidiano do biografado.
Os eventos da vida surgem de forma aleatória, espontânea, às vezes
ordinários ou extraordinários, mas nunca dados de forma previamente coerente.
Quando se tenta conceber um olhar ordeiro para eles (provendo-lhes algumas
coerências) é preciso lidar com o pudor de se ver tecendo uma diegese que se quer
clara e objetiva, mas deve-se saber: originária de uma “realidade” que não cansa de
derrubar as representações tradicionais do discurso, tão profundamente enraizadas
pelo texto romanesco clássico.
Barthes sintetizou tal linha de pensamento aqui esboçada: “A narrativa mais
realista que se pode imaginar desenvolve-se segundo vias irrealistas.” (2004, p.189).
Por esses motivos é que se apresentam a seguir apontamentos que visam
corajosamente trazer alguns referenciais para pensar a trajetória pessoal e
profissional de um cineasta, sem perder de vista a complexidade e incompletude
endêmica de tal tarefa.
13
2.1 Apontamentos biográficos sobre o cineasta
Pedro Almodóvar Caballero nasceu em Calzada de Calatrava, na região de La
Mancha, Espanha, em 1951. De família humilde, nascido em uma região que é
sinônimo de pobreza e subdesenvolvimento para os espanhóis, mudou-se para a
comunidade hispânica de Extremadura quando tinha oito anos, e lá estudou com os
Salesianos e os Franciscanos. A experiência não deu certo, o que fez Almodóvar se
afastar da igreja e descobrir sua paixão pelo cinema. Desde muito pequeno,
Almodóvar sentia que estava rodeado, em sua aldeia, por uma gama de coisas que
não queria fazer na vida. O cineasta se sentia muito solitário e cerceado pela
mentalidade retrógrada e a desaprovação constante dos outros. “Felizmente nada
me traumatizou, porque tenho uma personalidade muito positiva e porque me
refugiava justamente na leitura e no cinema, o que me dava enorme prazer.”
(ALMODÓVAR apud STRAUSS, 2008, p.25).
A trajetória profissional do cineasta começou muito cedo, quando ainda
criança ajudava a mãe a escrever cartas e dava aulas particulares para os vizinhos,
ensinando-os a ler e escrever.
Como na nossa rua ninguém sabia ler nem escrever, minha mãe, que é
muito esperta, montou uma espécie de empresa: ela e eu – que era muito
adiantado para a minha idade – escrevíamos cartas que os vizinhos ditavam
e líamos as que recebiam. Depois minha mãe montou um negócio ainda
mais sofisticado. Como era tão inteligente, já sabia tantas coisas, enquanto
os outros não sabiam nada, ela fez de mim um professor primário. Por volta
das nove horas da noite, depois do trabalho nos campos, as pessoas – que
eram mais velhas que eu, tinham cerca de 15 a 20 anos – vinham à nossa
casa, vestidos como se fossem ao médico, e eu as ensinava a ler, escrever
e contar. O incrível é que minha mãe tivesse a ideia de fazer de mim um
professor aos oito anos. (ALMODÓVAR apud STRAUSS, 2008, p. 45)
Almodóvar saiu de Extremadura em 1968 e foi para Madri. Lá, passou por
uma série de empregos temporários, até entrar para a Companhia Telefônica, como
funcionário administrativo, onde permaneceu por 12 anos. Nesses tempos, Pedro
Almodóvar dividia-se entre a Companhia Telefônica, a literatura, o grupo de teatro
Los Galiardos e a banda de punk-rock Almodóvar e McNamara. Esta dupla
14
performática ganha destaque em cenas musicais nos filmes Labirinto de Paixões
(1982) e Que Fiz Eu Para Merecer Isto? (1984) dentro da filmografia almodovariana.
No final dos anos 1970, colaborou para revistas de cultura como Stars, El
Víbora e Vibraciones. Publicou ainda a novela Fogo nas Entranhas (1981), ícone de
uma produção erótica ilustrada e eminentemente contestadora da puritana moral
espanhola, naquela época. Ainda dentro da alçada literária, Almodóvar idealizou a
celebrada personagem Patty Diphusa, “estrela do pornô internacional” como a
personagem se define, para uma série de contos na revista espanhola La Luna. Tais
atividades eram paralelas a uma carreira como diretor, ator e produtor de filmes que
chegaram ao circuito comercial a partir de 1980 assinados por Almodóvar.
Figura 1 Fogo nas Entranhas (1981) – Contestar é a lei
Em 1973, o diretor comprou sua primeira câmera super-8, com a qual fazia
curtas-metragens ajudado por amigos. O primeiro, intitulado Duas putas ou a história
de amor que termina em casamento, foi realizado no ano de 1974. Nessa época,
Almodóvar produzia filmes com duração de 5 a 30 minutos. No começo, as
15
projeções eram feitas na casa de amigos em Madri e Barcelona. Mais tarde, o
cineasta passou a exibi-los em bares, discotecas, escolas particulares de cinema
que acabavam de ser criadas em Madri, chegando a galerias de arte e, por fim, na
Cinemateca da capital espanhola.
Foda...
Foda...
Foda-me...
Tim
foi
sua
primeira
experiência
em
longa-metragem, gravado nos anos de 1977 e 1978. Era a despedida do cineasta do
formato super-8, cujas exibições se restringiram a festivais underground, tendo,
inclusive, o próprio diretor ao lado da projeção para fazer as vozes dos personagens,
já que o processo de sonorização era precário, e por isso mesmo, o longa nunca foi
lançado comercialmente.
Como todos os filmes eram mudos – era muito difícil gravar em super oito e
o resultado nunca era satisfatório – eu me colocava ao lado do projetor e
fazia as vozes de todas as personagens; fazia também comentários e às
vezes críticas sobre o que não me agradava na atuação dos atores; cantava
e tinha um pequeno gravador que me permitia inserir canções nos filmes.
Era um espetáculo ao vivo, e o público adorava isso. (ALMODÓVAR apud
STRAUSS, 2008, p. 98)
Só em 1980, depois de arrecadar dinheiro com amigos e economizar o que
ganhava como funcionário administrativo da empresa telefônica, Almodóvar
conseguiu lançar um filme no circuito comercial, dessa vez em 16 milímetros: Pepi,
Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980), que pode ser considerado sua
verdadeira estreia no cinema. O roteiro do filme partiu de uma fotonovela chamada
Erecciones Generales, criada por ele para a revista espanhola El Víbora. O filme
criou um enorme culto, sobretudo entre os grupos que constituíam o movimento pop
La Movida (Movida Madrilenha), no qual se inseria Pedro Almodóvar.
Mais tarde, em 1985, o cineasta espanhol criou em parceria com seu irmão,
Agustín Almodóvar, a produtora El Deseo. “A El Deseo nasceu da insatisfação de
Pedro ao trabalhar com produtores, o que resulta num enorme desperdício de
energias”, relatou a Frédéric Strauss. (ALMODÓVAR apud STRAUSS, 2008, p.100).
Até agora, a produtora foi responsável pela produção de 14 filmes do diretor. Entre
curtas e longas, Almodóvar já produziu cerca de 40 filmes, que hoje são exibidos
mundialmente.
16
Figura 2 A produtora El Deseo e os grandes títulos de Almodóvar
Com sua filmografia recebeu várias indicações a prêmios importantes do
cinema, entre eles destacam-se: o Oscar de melhor roteiro original por Fale com Ela
(2002), o BAFTA (British Academy of Film and Television Arts) e o Festival de
Cannes por Tudo Sobre Minha Mãe (1999), ambos na categoria Melhor Diretor.
Além de ter conquistado duas indicações ao Oscar de melhor filme estrangeiro, por
Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) e Tudo Sobre Minha Mãe, tendo
recebido a estatueta por esse segundo filme.
17
2.2 As peculiaridades na produção filmográfica de Pedro Almodóvar:
estilo e tendências
Pedro Almodóvar traz para a tela grande o universo sociocultural do qual fez
parte em sua juventude, impulsionado pelo fervor social da Movida Madrilenha. Suas
observações da classe média baixa espanhola viraram histórias de dor, paixão,
loucura, risos e acima de tudo, sensualidade. A criatividade do cineasta o faz
mesclar vários gêneros cinematográficos: melodrama, comédia, suspense. As obras
do diretor passam por vários estágios, predominantemente libertários e intensos no
conteúdo.
“Uma enorme presença do irracional, do exagero.” (ALMODÓVAR apud
STRAUSS, 2008). É assim que Almodóvar classifica seus filmes, seja na forma de
dirigir, nos critérios de utilização das cores, na trilha sonora, na caracterização dos
personagens ou na seleção do elenco.
A direção almodovariana se faz singular e eclética. O diretor passa do drama
à comédia, do thriller ao musical de uma cena à outra, de acordo com o tom que a
história ganha. Ressalta-se que isso se dá sempre buscando uma estética
consonante. Almodóvar imprime um particular estilo de direção, autocentrado, mas
aberto a improvisações que figuram como acréscimos às intrincadas tramas de seus
filmes. Os atores que com ele trabalham se veem imersos em um jogo do qual o
cineasta é um perfeito estrategista. O próprio Almodóvar confessa: “Quando se
move entre gêneros, e atravessa tons opostos em questão de segundos (...), a única
arma com que se conta, além de compor uma cena realista, são os atores. As
atrizes, neste caso.” (ALMODÓVAR apud STRAUSS, 2008, p. 122).
As cores fortes utilizadas seguem também um critério de vivência do autor.
Os temas espanhóis exercem grande influência em suas películas, principalmente o
vermelho e o amarelo - cores que formam a bandeira da Espanha. Almodóvar revela
através das cores o misticismo e as tradições de sua terra natal, e para isso, recorre
a matizes vibrantes com o intuito de conseguir o efeito desejado.
18
Na abertura de Má Educação (2003), têm-se ícones religiosos submersos em
tons vermelho e preto que já na primeira sequência do longa – passada no escritório
do personagem Enrique Goded (Fele Martínez) – se abrem em cores vibrantes do
amarelo ao laranja, revelando uma paleta de cores quentes utilizada ousadamente
pelo diretor.
A trilha sonora nos filmes de Pedro Almodóvar é também destacável por seu
caráter polissêmico: música para rir, para chorar, para seduzir, para surpreender. Ela
é utilizada como importante recurso, pois acompanha as cenas, as impressões dos
personagens, o figurino; dá credibilidade a cada sentimento que o filme quer passar.
As músicas escolhidas ressaltam a encenação e a cultura do espetáculo das
relações humanas. Para Antonio Holguín, a trilha sonora é fundamental para o
entendimento de cada cena em Almodóvar:
As canções inscritas na obra do diretor Pedro Almodóvar são, como bem
sabem os fãs e os estudiosos da obra do diretor manchego, dispositivos
especialmente relevantes. Habilmente imbricadas na própria estrutura do
roteiro, as canções de Almodóvar participam da composição do perfil dos
personagens, fornecem ao espectador um índice de „latinidade‟, ou mais
precisamente, de um modo „latino‟ de expressar sentimentos e operam, por
meio das letras, muitas vezes como uma espécie de fala cantada.
(HOLGUÍN, 1999, p. 13)
Tem-se, por exemplo, no filme A Lei do Desejo (1987), um exemplo da carga
dramática que a música imprime à narrativa de um filme com a assinatura de
Almodóvar. Na sequência final, os personagens Antonio Benitez (Antonio Banderas)
e Pablo Quintero (Eusebio Poncela) encontram-se sozinhos em um apartamento ao
som da canção “Lo dudo”, do trio mexicano Los Panchos. Enquanto pela última vez
sentem a presença apaixonada um do outro, se despedem agonicamente de um
amor trágico e cruel com a plangente letra: “Lo dudo, lo dudo, lo dudo / Que halles
un amor más puro / Como el que tienes en mí...”.
Quando escreve suas histórias, Almodóvar não define qual ator interpretará
um determinado personagem. Suas criaturas não ganham rostos já definidos, pois,
segundo o autor, no desenrolar de uma história, eles podem sofrer vários tipos de
mudança, seja de idade, de sexo, etc. Porém, ele deixa claro que prefere trabalhar
19
com certos intérpretes. Victoria Abril, Antonio Banderas, Penélope Cruz e Carmen
Maura dão vida a personagens marcantes da filmografia almodovariana. (STRAUSS,
2008).
Os atores são escolhidos por questões que vão desde a proximidade física
com o personagem criado no roteiro, até a desenvoltura de cada ator para compor
as cenas mais intensas dos filmes de Almodóvar. Antes de uma cena ser rodada, o
diretor detalha ao elenco como ela deve ser feita, porém não titubeia em alterá-la a
favor de uma maior entrega por parte do ator ou uma mudança de estilo na
interpretação de outro.
2.3 A Movida Madrilenha e sua importância para a constituição da obra
de Pedro Almodóvar
Depois de quatro décadas de ditadura na Espanha, esse período limitado
chega ao fim em 1975, com a morte de Francisco Franco, ditador espanhol. O fim do
regime permitiu uma busca insana da juventude pelo prazer, pois não havia
parâmetros para proibições, já que estas estavam irremediavelmente ultrapassadas
pela queda do governante. Caracterizado por um movimento totalitário, baseado no
Fascismo, o Franquismo tinha bases definidas pela unidade nacional espanhola
(nacionalismo de Estado), pelo catolicismo e pelo anticomunismo. Apesar de o
regime ter-se autodefinido como democracia orgânica com fins propagandísticos, a
população sofria com a repressão da liberdade pessoal e política.
Ao se analisar a vida cultural e política da época, percebe-se que com a morte
de Franco, o processo de renovação sociocultural adquiriu força e passou a
representar uma transição para uma vida mais democrática. A Espanha vivia um
renascimento criativo, e as artes visuais, a música e o cinema testemunharam o
sentimento de uma geração, que não havia presenciado a Guerra Civil (1936-1939),
nem a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mas sofria as consequências
cotidianas de um país isolado, que ainda executava opositores do regime e não
20
permitia inovações culturais de qualquer ordem. Nesse contexto de transição, surge
o movimento conhecido como La Movida Madrilenha. Inicialmente associada à Madri
do final dos anos 70 e começo dos anos 80, a Movida, na verdade, aconteceu em
várias cidades espanholas, caracterizando-se como um processo de explosão de
cor, liberdade e irreverência em um país que saía do autoritarismo político para
ingressar na modernidade liberal.
Para as pessoas envolvidas no movimento, era necessário apagar da história
da Espanha o passado recente de opressão e decadência da ditadura de Franco.
Essa mudança se operaria por meio das artes e da liberação sexual. Sobre isso,
Pedro Almodóvar relata em Conversas com Almodóvar (2008) que a transgressão à
lei, ou ao que é moralmente imposto como correto, não é o objetivo de seu cinema
ou de qualquer filme produzido no período por existir na transgressão uma relação
de obediência e respeito às regras quando se pretende subvertê-las. Reafirmar o
poder tirano e a submissão geral às leis são duas ações que o cineasta se diz
incapaz de fazer ao criar suas histórias:
É por isso que meus filmes nunca foram antifranquistas. Neles eu
simplesmente não reconheço a existência de Franco. É um pouco a minha
vingança contra o franquismo: quero que dele não permaneça nem a
recordação nem a sombra. (ALMODÓVAR apud STRAUSS, 2008, p. 38)
Se o momento político era de superação do franquismo, no contexto cultural e
artístico ganhava corpo a Pop Art, já disseminada por Nova York e Londres,
valorizando a cultura do efêmero e as ações e objetos presentes no cotidiano.
Assim como o que aconteceu nestas duas cidades cosmopolitas, o
movimento madrilenho também se inspirará nas ideias da Pop Art para realizar-se
dentro de um sistema capitalista e tecnológico, em uma sociedade midiatizada, onde
os bens de consumo se tornam protagonistas e são supervalorizados.
Surge nesse contexto, entre os jovens espanhóis da época, gírias que faziam
referências ao estilo de vida da cultura pop, muitas delas ligadas a entorpecentes
(caballo – heroína, camello – traficante, porro – cigarro de maconha ou haxixe, etc),
21
o que faz notar que as drogas foram elementos onipresentes na Movida, seguindo a
tríade, já conhecida da juventude americana nos anos 60, Sexo, Drogas e Rock’n
Roll. Este último não foi escolhido como um dos instrumentos dessa geração por
acaso, pois o ritmo musical representava a revolta e a vontade de mudança
características dos mais novos, que procuraram se rebelar contra a ordem imposta
pelo sistema e seus ditames. Segundo João Eduardo Hidalgo:
Depois de anos de proibições, de ausência de direitos, os jovens queriam
viver a vida sem preocupações, sem se comprometer com o intricado jogo
protagonizado pelos políticos das mais variadas orientações. (HIDALGO,
2009, p.3)
Ainda segundo Hidalgo, dentre as muitas variações coexistentes no universo
do Rock, o glam-rock inglês surge como inspiração para os integrantes do
movimento porque carrega em suas performances a rebeldia expressa em
indumentárias coloridas, cabelos armados e saltos altos, que revelam, de certa
forma, a ambiguidade, a androgenia e a visão de que a energia sexual do homem e
da mulher são complementares. A sexualidade surge aí como um viés recorrente
para retratar a Movida.
O movimento não foi um acontecimento aprisionado dentro de um ramo
artístico específico, ele teve representantes em todas as áreas da vida cultural: no
cinema, nos quadrinhos, na literatura, na fotografia, na pintura, no teatro, na moda,
gerando inclusive várias “tribos”. O que caracterizava a Movida era a presença de
um espírito criativo, sendo Pedro Almodóvar um dos nomes mais importantes do
movimento (que além de produzir filmes, cantava, atuava e escrevia para revistas e
jornais na linha undeground). O cineasta, no livro Alaska y otras historias de La
Movida, de Rafael Cervera, afirma que:
Nem um movimento artístico, nem um grupo com uma ideologia concreta
(uma vez que a ausência de compromisso político era marcante no grupo),
éramos simplesmente um montão de gente que vivia em um dos momentos
mais explosivos do país, e de Madri em particular. Houve um momento em
que de repente as pessoas perdem o medo, da polícia, dos vizinhos, da
própria família, do ridículo e delas mesmas. (ALMODÓVAR apud
CERVERA, 2002, p.14-15).
22
O momento sociocultural vivido pela Madri retratada por Almodóvar é
caracterizado assim como a forma encontrada por uma população, sedenta por
expressar-se livremente, de compartilhar seus anseios e desejos reprimidos pelo
longevo regime franquista. Longe de militar em tom panfletário, os madrilenhos que
comungavam da posição do cineasta, queriam ridicularizar os derradeiros bastiões
da opressão de forma anárquica e arrojada.
2.3.1 O primeiro filme de Almodóvar, a personagem Patty Diphusa e a
influência de Andy Warhol
Da direção de Pedro Almodóvar, é lançado em 1980, o filme Pepi, Luci, Bom
e Outras Garotas de Montão, que surge como recorte das gerações que
participaram da Movida. No filme estavam enredadas várias personagens marcantes
do movimento, englobando artistas de diferentes ambientes. Da irreverência dos
Comics, cuja característica principal era a possibilidade de criar histórias fantásticas,
cheias de humor negro e sexo violento (a Igreja e a burguesia hipócrita foram
devidamente escrachadas pelas publicações), temos Cessepe, acrônimo de Carlos
Sánchez. O autor decorou paredes e tetos em bares da moda e livrarias, e ainda fez
o cartaz e os letreiros do filme.
Ainda na década de 1980, Almodóvar se destacou pelas histórias contadas na
revista underground La Luna, sob a figura marginal e depravada da personagem
Patty Diphusa, uma estrela do pornô internacional que encarna, ainda que nas
páginas, a ideia de um autêntico representante da Movida: uma mulher que vive de
“trepadas e porres homéricos”.
Patty Diphusa é a voz insone de Pedro Almodóvar, que por duvidar de sua
inexistência, criou-a como uma mulher de seu tempo: contemporânea e capaz de
atuar com desenvoltura diante das mais adversas situações.
Diphusa está tão entranhada na história de seu alter-ego (Pedro Almodóvar)
que este a dispôs como uma factory girl, termo utilizado para designar as meninas
23
“descoladas” que apareciam tanto no ambiente underground da factory, estúdio-casa
de Warhol, quanto em seus filmes.
As aproximações entre Almodóvar e Warhol revelam mais um capítulo
curioso: Pedro Almodóvar era chamado pelos amigos de “Warhol espanhol”, pois
cultuava, na época, aquilo que compunha o universo do artista americano: os
quadrinhos, os filmes, a moda e as festas. Em situações comemorativas, os dois se
encontraram, ainda nos anos 80, segundo Frederic Strauss:
Eu [Pedro Almodóvar] era convidado e todas as noites lhe era apresentado
[a Andy Warhol]! Isso se tornou um pouco aborrecido, eu sempre era
anunciado como o Warhol espanhol. Depois da quinta ou sexta vez, ele
acabou por me perguntar o por quê. Eu lhe disse que era, sem dúvida, por
haver muitos travestis em meus filmes. (ALMODÓVAR apud STRAUSS,
2008, p. 34-35)
Na pintura, temos a presença da dupla Juan Carrero e Enrique Naya,
conhecida como Costus (diminutivo de Las Costureras, pois Juan ganhava a vida
costurando almofadas). A Casa Convento de Las Costus ficava no bairro que
concentrou os lugares de destaque da Movida em Madri, e foi local de gravação de
várias cenas dos filmes de Almodóvar. Las Costus tornou-se assim mais um dos
ambientes que o cineasta inseriu no imaginário de desbunde da cultura madrilenha
daquele momento.
No teatro há a presença dos grupos El Joglars e Los Goliardos (únicos grupos
de teatro ligados ao movimento em Madri). Nele estavam Carmen Maura, que já
possuía certo prestígio nos palcos da cidade e que incentivou Almodóvar a começar
a escrever e até atuar em papeis dentro do grupo, e Félix Rotaeta, que produziu e
atuou no filme Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão.
24
Figura 3: Marco da transgressão: o primeiro filme almodovariano
No âmbito da música, destaca-se Kaka de Luxe (apontado como um dos
primeiros deflagradores da Movida). Surgido em 1977, o grupo era formado por sete
amigos vindos de famílias de classe média alta, que iriam trazer para o panorama
musical um visual inusitado, uma incrível capacidade para a paródia e o escracho.
Dentre os sete, estava Alaska (Olvido Gara), escolhida por seu figurino, para fazer a
personagem Bom no filme de Almodóvar de 1980. Sem experiência como atriz, ela
interpreta a si mesma no longa, uma moderna e sádica jovem que vive
descompromissada e intensamente.
A linha narrativa de Pepi, Luci, Bom... ilustra a Madri da Movida Madrilenha e
seus costumes insólitos. A personagem Pepi é violentada por um policial para não
ser denunciada por cultivo de maconha na sacada de seu apartamento. Ela resolve
se vingar do agressor, sem saber que ele tem um irmão gêmeo, o que gera mais
situações embaraçosas ao longo da trama. Pepi conhece Luci, a esposa insatisfeita
do mesmo policial, e lhe aplica aulas de tricô. Em uma dessas aulas, entra em cena
a personagem Bom, que fornece sem rodeios e a pedido de Pepi, um banho de
25
urina a Luci. Luci então, se apaixona perdidamente por Bom. É assim que
Almodóvar tece um relato de excentricidades para destacar aspectos impudicos e
contestadores de uma jovem parcela da sociedade hispânica que buscava se
desvencilhar das amarras de um regime político e culturalmente castrador.
Dentre as influências cinematográficas para a construção da trama estão os
filmes Flesh (1968), Trash (1970) e Heat (1972) do diretor americano e
ex-colaborador de Andy Warhol, Paul Morissey, e também John Waters, cineasta
americano, com Pink Flamingos (1972) e Female Trouble (1974). Porém, enquanto
em Pink Flamingos temos o nu real e o sexo explícito, em Pepi, Luci, Bom... a
irreverência e a ausência de censura realizam-se nos diálogos e nas situações
inusitadas. Em relação aos filmes de Morissey, Almodóvar afirma que enquanto os
seus filmes se voltam para a ficção, os trabalhos do diretor americano possuíam
caráter documental e sociológico. (STRAUSS, 2008).
O primeiro filme de Almodóvar destaca-se também através das personagens,
reflexo dos envolvidos na Movida. Pepi é uma imprevisível mulher na casa dos 30
anos, Luci uma dona de casa com mais de 40, dominada pelo marido policial, e Bom
é a jovem moderna que quer gozar a vida e fugir de um passado tedioso. Os que
plenamente viveram o movimento madrilenho foram os que tinham crescido sob o
repressor franquismo, e podiam agora, mais velhos, extravasar seus desejos e
anseios. O primeiro filme de Almodóvar é também sua primeira tentativa de falar
sobre a as dificuldades diárias de relacionamento que enfrentam os casais e
também sobre a solidão característica das jovens modernas e livres, como no caso
das personagens Pepi e Bom.
No plano técnico, o filme possui um amadorismo de tom contestatório das
regras clássicas de filmagem cinematográfica, como por exemplo, cabeças cortadas
em enquadramentos incomuns. Almodóvar defende-se: “Quando um filme tem um
defeito, é um filme incorreto, mas quando tem muito mais que um, a isso se chama
Nova Linguagem, Estilo.” (ALMODÓVAR apud STRAUSS, 2008).
A Movida foi fundamental para a formação de Almodóvar tanto na vida
pessoal como profissional, pois serviu para colocá-lo em contato com diferentes
26
pessoas e artistas, que de variadas tendências culturais, serviram de inspiração para
seu primeiro longa-metragem.
2.4 A sensualidade no cinema de Almodóvar
As personagens histéricas e passionais que marcam a filmografia do
espanhol Pedro Almodóvar suscitam no espectador um possível estranhamento
inicial pela quebra de velhos paradigmas de comportamento, mas logo tal efeito se
transforma em fascínio por se tratar de homens e mulheres que vivem em busca de
paixões cada vez mais arrebatadoras dentro de histórias engenhosas e labirínticas.
Na busca pelo amor, a sensualidade ganha destaque em filmes que tem
como força motriz o desejo. André Bazin (1983) lembra que quando se pensa na
imagem
como
provocadora
de
sentidos
que
levam
o
espectador
à
projeção/identificação com figuras fictícias que humanas são em essência, está se
falando de uma arte (a cinematográfica) que demanda um espaço imaginário
propiciador
de
estímulos
para
um
espectador
sedento
pelo
que
a
contemporaneidade mais pode lhe oferecer: imagens.
Diz Bazin que:
No cinema […] a mulher, mesmo nua, pode ser abordada por seu parceiro,
expressamente desejada e realmente acariciada, pois diferentemente do
teatro – lugar concreto de uma representação fundada na consciência e na
oposição –, o cinema desenrola-se num espaço imaginário que demanda a
participação e a identificação. Conquistando a mulher, o ator me satisfaz por
procuração. Sua sedução, sua beleza, sua audácia não entram em
concorrência com os meus desejos, mas os realizam. (BAZIN, 1983, p. 140)
O cinema como tal dispositivo propiciador de ligações entre espectador e
personagem, de forma a trazer à tona uma forte carga de emoção e sentimento, é
explorado por Almodóvar em diversas instâncias. Para Janete El Haouli, no artigo A
27
voz de Almodóvar, o cinema do diretor manchego fala do corpo com uma
intensidade sexual que transforma o espectador em voyeur.
Poderíamos dizer que a paixão subverte a razão a todo o momento, pois
Almodóvar é um regicida e instaura o governo da infâmia, dos delírios e da
luxúria, que desfilam barrocamente perante nossos olhos como numa folia
carnavalesca e canibal. (HAOULI, 1996, p. 87)
Em Má Educação, Almodóvar mais uma vez utiliza da câmera para criar um
enlace sensual entre os personagens Enrique (Fele Martínez) e Ignácio (Gael García
Bernal). Em uma sequência na piscina da casa de Enrique, o personagem de García
Bernal retira a roupa e lança-se na água, passando por cima da cabeça do
personagem de Martínez, que parado dentro da piscina, o deseja e fita-lhe com um
olhar provocador. Na continuidade da mesma sequência, a câmera voltará a passear
pelos corpos dos dois personagens em tom predominantemente sensual.
Figura 4: Sensualidade e erotismo em Má Educação (2003)
Na composição da cena descrita acima estão mescladas atuações bem
delineadas até cores adequadas à ambiência para retratar um universo que exalta o
primado do desejo, personagem central das histórias contadas por Almodóvar. Para
28
Wilson H. Da Silva, no artigo No Limiar do Desejo, o cinema almodovariano se nutre
dessa audaciosa imersão na essência afetiva do ser humano.
São suas linhas tortuosas que delineiam os contornos de seus personagens,
enredos e filmes. É sobre o seu sedutor traçado que corre a narrativa do
diretor. É de seu brilho cativante que brotam não só suas famosas “cores”,
como também os reflexos de inauditas fantasias, anseios e sonhos que
povoam as mentes de seus muitos espectadores. (SILVA, 1996, p. 51)
A sensualidade da imagem projetada por Pedro Almodóvar é o paroxismo
contemporâneo de um processo maior, no qual o próprio cinema se converteu em
máquina de produção de imagens, que no jogo esconde-revela se mostraram ideais
para aflorar a imaginação de espectadores e convertê-los em voyeurs da tela
grande.
29
3 A SEXUALIDADE E O CINEMA
“No fundo do coração de todo diretor... agitam-se, me parece,
dois desejos inerentes à própria natureza de um cineasta. Um
diretor quer filmar o ser humano morrendo. E quer filmar um
homem e uma mulher, ou um homem e um homem, ou uma
mulher e uma mulher, ou um ser humano e um animal
mantendo relações sexuais.” – Nagisa Oshima
A colocação do sexo na ordem do discurso se deu muito antes do surgimento
do cinema. A temática sexual provoca há séculos um misto de curiosidade e
constrangimento que faz emergir contradições e dubiedades. Se o âmbito da
sexualidade era em outros tempos intrincado, hoje ele ainda carrega equívocos, mas
encontra novas formas de expressão através das muitas telas do mundo
contemporâneo.
No caso do cinema, o sexo ganhou nova vazão, deixando o ambiente privado
para emergir na tela grande como um tema robusto que requer esforços históricos e
culturais para pensar e repensar a dinâmica do permitido/proibido, que está no cerne
das discussões em torno da sexualidade humana.
3.1 Cinema, repressão política e sexual
A relação entre sexo e cinema nem sempre foi vista com bons olhos por parte
do público e de alguns governos. Sendo o cinema uma poderosa máquina de
produzir sonhos e despertar desejos, muitos são os sistemas políticos repressores
que cercearam essa liberdade a qual o cinema instiga para despertar revoltas e
contestações. Apesar disso, não são poucos os cineastas que se dispõem a lutar
contra as imposições ditatoriais.
30
No caso da Espanha, depois da queda de um regime que forçava a
população a adotar um discurso comportamental e sexual conservador, foi a vez de
Pedro Almodóvar jogar com estes elementos. Em seus primeiros trabalhos, o diretor
espanhol expressa o sentimento de liberdade, assim como a vontade de apagar da
história os momentos de repressão vividos pela população do país. Como visto no
capítulo 1, a transição política na Espanha, nos anos 1970, e a Movida Madrilenha,
foram de suma importância para a filmografia de Almodóvar, que lançava olhares
inovadores sobre o cinema espanhol, até então dominado por ideias morais e
políticas castradoras advindas da censura do ditador Francisco Franco.
A longa repressão sexual franquista é confrontada com comportamentos
inesperados e atitudes socioculturais provocantes. O ecletismo na maneira
de vestir, a liberdade sexual, o consumo de drogas e o culto à frivolidade
chocam-se com a moral arcaica, a senilidade política e a tradição artística
burguesa. Jovens das camadas mais populares reúnem-se e modernizam a
Espanha na virada da década. (CAÑIZAL, 1996, p. 229)
O fim da repressão pela ditadura franquista foi comemorado pelos espanhóis,
principalmente por meio das artes, sendo o cinema um “porta-voz” daqueles tempos.
Era através dele, que os diretores mostravam para o resto do mundo uma nova
Espanha, com narrativas da vida moderna. As obras dos cineastas desse período
traziam para o público, novas perspectivas – como películas de conteúdos
agressivos à sensibilidade da audiência e filmes extremistas na abordagem
sexual – e até mesmo esclarecimentos sobre os ares democráticos que chegavam
ao país.
Além de toda a repressão política que incide sobre o comportamento das
pessoas durante regimes militares ditatoriais, a repressão sexual também merece
destaque. Se atualmente esse tema ainda gera polêmicas perante a sociedade, em
tempos autoritários era inimaginável que as pessoas falassem abertamente sobre o
assunto ou expressassem seus desejos livremente. A sexualidade e o prazer
através do corpo sempre foram alvo de severa repressão, embora estejam no cerne
da constituição humana. Segundo Freud (1996), os seres humanos já nascem com
impulso vital para a busca do prazer e muitos sofrimentos neuróticos são causados
justamente pela repressão do desejo sexual.
31
Na Espanha dos anos 1970, a morte de Franco e o consequente fim de seu
governo despótico, representou para os envolvidos na Movida Madrilenha a
possibilidade de liberação sexual, que ganhou cenas de destaque na obra de Pedro
Almodóvar. Mais uma vez, o cinema entra como importante ator de capacidade
libertária e antiautoritária, apresentando personagens repletos de desejos, e que
representam peculiarmente o mosaico da sexualidade em seu caráter eclético e
pluriforme.
Em Almodóvar, o desbunde é traço predominante de sua filmografia. Por
exemplo, no filme Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980), a
personagem Pepi, interpretada pela atriz Carmen Maura, cultiva maconha na sacada
de sua casa e para evitar que o policial – marido de Luci – apreenda a planta, Pepi
aceita entregar-se sexualmente a ele.
Figura 5: A cena do abuso sexual vivenciado por Pepi
Para Almodóvar (STRAUSS, 2008), os personagens policiais só aparecem
em seus filmes para permitir o desenvolvimento de outros personagens ou da
história. Ele prefere eliminá-los, já que os considera mais pobres que aqueles que os
rodeiam. Porém, esses personagens são necessários em suas narrativas, uma vez
que sempre há crimes ou coisas que podem ser vistas como tal.
32
Existem tantas ligações entre a transgressão e a lei que tento até negar a
existência da lei; luto para que ela esteja ausente dos meus filmes. [...]
Transgressão é uma palavra moral; ora, não é minha intenção infringir
qualquer norma, mas apenas impor minhas personagens e seu
comportamento. É um dos direitos, e também um dos poderes, que um
cineasta possui. (ALMODÓVAR apud STRAUSS, 2008, p. 37)
3.2 O voyeurismo, o desejo e o dispositivo cinematográfico
Quando estamos no cinema, submetemos a imagem – a imagem do
outro – a um olhar concentrado e bisbilhoteiro, como se a espiássemos pelo
buraco da fechadura, ocultos nas trevas da sala de exibição. (MACHADO,
1997, p. 125)
Conforme Machado (1997), desde suas origens, o cinema foi concebido como
um lugar (em geral escuro) onde se pode espiar o outro e onde a pulsão do olhar
encontra um terreno propício para se manifestar.
O olhar é um dos instrumentos pela qual o cinema opera, juntamente com a
câmera, o projetor, e a sala de exibição. O ato de olhar revela, ao mesmo tempo em
que esconde, o verdadeiro jogo cinematográfico. E assim, o tipo de plano, a
manipulação óptica e a ênfase do fora de campo permitem a criação de erotismo e
sensualidade na imagem.
É pela relação entre voyeurismo/exibicionismo e ver/ser visto que se pode
entender como o cinema consegue se impor como propulsionador de desejos. Para
Ruy Gardnier, no ensaio Tudo na Tela: Tela/Estudo, “o fora de campo age como um
elemento agigantador do plano: se fazemos menção ao que está fora do plano, a
concepção de realidade no filme aumenta e passa a designar não só aquilo que está
no plano, mas também aquilo que o rodeia.” (1999). Dessa forma, a curiosidade
sobre o que não se vê, nos instiga a querer ver o que está fora do alcance dos
olhos, criando assim uma sensação de voyeurismo: querer participar daquela
realidade, acompanhando tudo que está em volta também.
Apesar de existirem várias perspectivas, é pelo ato de enxergar que se toma
as outras pessoas como objetos, sujeitando-as a um olhar fixo, curioso e
33
controlador. Freud definiu essa prática na obra Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade (1905), como escopofilia. O que para a crítica de cinema britânica
Laura Mulvey é um dos prazeres que o cinema proporciona, pois há circunstâncias
nas quais o próprio ato de olhar já é uma fonte de prazer, da mesma forma,
inversamente, existe prazer em ser olhado.
Embora o filme esteja sendo realmente mostrado, esteja lá para ser visto,
as condições de projeção e as convenções narrativas dão ao espectador a
ilusão de um rápido espionar num mundo privado. Entre outras coisas, a
posição dos espectadores no cinema é ostensivamente caracterizada pela
repressão do seu exibicionismo e a projeção no ator, do desejo reprimido.
(MULVEY, 1983, p. 441)
Sendo um dispositivo capaz de regular a distância entre o psiquismo do
observador e as imagens que serão mostradas, a sala de cinema conjuga em sua
estrutura vários elementos que tornam a experiência voyeurística. Um desses
fatores, a escuridão do local, transforma a tela em único objeto que emite luz e, por
isso mesmo, torna-se o centro das atenções. Essa claridade reduzida também isola
os espectadores uns dos outros, transfigurando o ato em algo aparentemente
individual. Apesar da exibição ser feita de maneira bastante manifesta, o desenrolar
do filme, por acontecer independente da presença de uma plateia, provoca nos
espectadores a sensação típica do voyeur de estar só, mesmo que o observador se
encontre
em
meio
à
multidão.
Para
Christian
Metz
(1983),
no
ensaio
História/Discurso (duas notas sobre o Voyeurismo), o mecanismo de satisfação do
voyeur se encontra no conhecimento que ele tem de se saber ignorado no momento
em que lança o olhar ao objeto do desejo. Sob essa lógica - e o cinema é capaz de
afirmá-la - ocorre um fenômeno, no mínimo curioso, em relação ao voyeur e seu
objeto de desejo, pois ao querer se manter anônimo e em contato com o alvo, o
objeto da ação passa a ser justamente o olhar. É sobre essa reviravolta que o
escritor e jornalista Bernardo Carvalho trata no texto ensaístico Fome de Ver (2011):
a partir dos trabalhos de um fotógrafo japonês que retratou os encontros de casais
heterossexuais em um parque japonês e a “matilha de voyeurs que os espreitava”, o
autor cita o psicanalista francês Jacques Lacan, para quem o olhar só se revela
quando o voyeur é pego em flagrante:
34
O olhar é esse objeto perdido, e repentinamente reencontrado, na
conflagração da vergonha, pela introdução do outro. Até aí, o que é que o
sujeito procura ver? [...] O que o voyeur procura e acha é apenas uma
sombra, uma sombra detrás da cortina. Aí ele vai fantasiar não importa que
magia de presença, a mais graciosa das mocinhas, mesmo que do outro
lado haja apenas um atleta peludo. [...] O que se olha é aquilo que não se
pode ver. [...] A fantasia é a sustentação do desejo; não é o objeto que é a
sustentação do desejo. (LACAN apud CARVALHO, 2011)
Vez ou outra, o próprio cinema se dedica a filmar sobre a prática de observar
os outros e a problematizar a questão de ver, e ser pego vendo. Além de Alfred
Hitchcock, autor do clássico Janela Indiscreta (1954), Pedro Almodóvar também
dirigiu, nos anos 1990, o longa-metragem Kika (1993), que contava com uma
personagem voyeur na narrativa. Trata-se do fotógrafo Ramón, noivo de Kika. O
rapaz acompanha a vida da personagem por um telescópio, e assiste inclusive o
estupro de sua noiva pela janela de seu apartamento. Ramón liga para a polícia para
alertar sobre o crime, mas não pode sair de seu lugar enquanto observador e
impedir o ator pornô Paulo Bazzo de prosseguir no ato, pois, ao fazê-lo, revelaria
sua personalidade voyeurista.
Almodóvar também coloca o espectador como cúmplice de Ramón, pois o
público assiste ao estupro como uma cena de filme comum, para depois ser
deslocado para o ponto de vista dos olhos de Ramón colados às lentes telescópicas.
Esse traço voyeur no longa almodovariano expressa a capacidade do
cineasta de manipular a imagem no intuito de despertar no espectador a pulsão de
olhar, como quem espia junto com o personagem Ramón e dali retira um prazer sui
generis. Se não faz isso de forma pioneira, Almodóvar o faz de modo a transbordar
afetos das mais diversas ordens em plena mise-en-scène.
35
Figura 6: O sexo, o voyeurismo e a mídia são pontos importantes para a narrativa de Kika
A atitude voyeurista está presente em outros momentos do filme também. Em
um deles, o espectador observa que Ramón obtém prazer ao tirar fotos enquanto faz
sexo com Kika.
O tratamento do olhar e o desejo inerente a ele é uma das características dos
filmes de Almodóvar. Neles, o diretor cola a câmera à pele, revelando e ocultando
identidades, mostrando as porosidades do corpo e a materialização do desejo. É o
caso da câmera que percorre o corpo de Ignácio/Juan/Zahara, enquanto Enrique o
fita desejoso em Má Educação (2003). Se para a teórica Stella Senra, no ensaio
Tela/Pele (2000), o corpo na tela foi redimensionado pelo surgimento das imagens
técnicas por meio “do esmaecimento da percepção, da desmaterialização dos
corpos, e do eclipse da realidade” (p.5), Almodóvar capta essas transformações, e
lhes dá um tratamento estético que reposiciona o corpo como um grande objeto de
volúpia e prazer, mesmo que alcançado somente através das telas.
Senra (2000) crê em um mundo contemporâneo no qual o confronto
homem/tecnologia se sofisticou a ponto de suscitar transformações no campo das
experiências humanas, mesclando real e virtual. “Como superfície de inscrição de
imagens, a tela do cinema, do vídeo e do computador pode tomar a pele como seu
objeto” (p. 7). É nesse caminho que a sensação de tatilidade passa a pertencer à
36
imagem cinematográfica proporcionando novas apreensões de sentido disponíveis
para além da tela.
Outra possibilidade para a prática do voyeurismo é a própria estrutura da sala
de cinema, envolvida pela escuridão, e que se revela como mecanismo do “espiar”.
Ideal para a manifestação do olhar, o cinema é o ambiente onde se pode observar o
outro sem culpa, pois o espectador se sente mais um em meio à massa. Segundo
Carneiro, Cordeiro & Campos (2005), o cinema traz o privilégio ao indivíduo de
observar sem ser observado, dando-lhe uma sensação de posse sobre a
personagem, sem sentir a temida ameaça de ser rejeitado. A partir daí, a
personagem é tomada pela erotização do olhar do mero espectador, que se torna
um voyeur apto a constituir a percepção visual como principal via de aquisição do
prazer.
O cinema também é um espaço capaz de conceder ao espectador uma
sensação de pertencimento na cena. Sendo assim, outro elemento interessante é o
posicionamento do espectador à frente da personagem, isto é, quando aquele que
assiste o filme sabe mais que a personagem por alguns momentos. Como outra vez
é o caso de Kika (1993), em que o espectador sabe, antes do desfecho, que o
escritor estadunidense Nicholas Pierce, autor de um livro sobre um escritor que
matou sua esposa, realmente cometeu o crime de assassinato descrito no livro.
A escuridão iluminada por um foco de luz, o telão, a configuração espacial da
sala de cinema, a sensação do espectador de pertencer à cena. Todos esses
elementos contribuem para a criação de uma “situação cinema”, como denominou o
psicólogo alemão Hugo Mauerhofer (1983). Para ele, a “situação cinema” é o
momento em que as sensações de tempo e espaço são alteradas, provocando um
maior contato entre o consciente e o inconsciente do espectador – o instante em que
o público se esquece da existência de um mundo exterior à sala de cinema,
dedicando-se à história que se passa na tela e, na alteração do tempo que se dilata,
atuando mais devagar do que quando estamos em contato com um ambiente
iluminado e cercado de objetos que despertam a nossa atenção.
37
3.3
O
almodovariano
entranhado
no
imaginário
do
cinema
contemporâneo
A reverberação que a notória “Política dos Autores” da Nouvelle Vague
francesa (MANEVY, 2006) relegou ao futuro do cinema encontra novo fôlego em
cineastas como Pedro Almodóvar. Isso porque o cinema que o diretor produz
comercialmente desde os anos 1980 é repleto de simbologias próprias e
características plásticas que foram se aprimorando ao longo do tempo, ajudando a
formatar o que hoje poder-se-ia denominar “estilo almodovariano” de produção
cinematográfica.
Tal estilo passa pela concepção de um cinema de matizes particulares, que
faz o processo de filmagem conter a assinatura do diretor, com uma mise-en-scène
característica. No caso almodovariano, as cores, figurinos, cenários, trilhas sonoras
e interpretações comungam para dar o tom melodramático que perfaz a obra do
diretor. Uma sensibilidade pós-moderna vem caracterizar essa filmografia de
contrastes, que refuta os chavões de uma moral empedernida para se abrir ao que
de mais autoral existe em Almodóvar: a necessidade de expressar por recursos
vários da Sétima Arte, as pulsões humanas arrebatadoras que se encontram em
homens e mulheres.
Essas pulsões, segundo Freud, são o mesmo que um intenso desejo, ânsia,
forte inspiração ou vontade; ímpeto, impulso. É este impulso que move o ser
humano a buscar e a realizar um desejo, uma vontade. Para ele, essa motivação
está relacionada a certa quantidade de energia libidinal que conduz o sujeito a um
movimento. Esses movimentos podem estar relacionados a qualquer ação, seja de
alegria, tristeza ou mesmo vingança, tão presentes na obra de Almodóvar. Esses
afetos são liberados com apenas um intuito: o da satisfação do prazer. Tais forças
motivadoras podem ser de origem tanto endógena ou fisiológica, mas sempre
ligados às emoções:
38
Por pressão (Drange) de um instinto, compreendemos seu fator motor, a
quantidade de força ou a medida da exigência de trabalho que ela
representa. A característica de exercer pressão (Drängendern) é comum a
todos os instintos; é, de fato, sua própria essência. Todo instinto é uma
parcela de atividade; se falarmos em termos gerais de instintos passivos,
podemos apenas querer dizer instintos cuja finalidade é passiva. (FREUD,
1914/1915, p. 142)
Entre as características que tornam o cinema de Almodóvar tão peculiar, o
que tange à narrativa é passível de servir como exemplo ilustrativo. A “bricolagem de
gêneros” da qual se vale o cineasta para demonstrar satiricamente a hibridez das
atuais linguagens contemporâneas do vídeo, da informática, do videoclipe, entre
outras, está presente de forma enfática em Kika (1993).
A personagem-título do longa, interpretada pela atriz Veronica Forqué, traz
em si a candura das comédias americanas light, repletas de ingenuidade e
momentos felizes. Kika é uma mulher retrô, que crê no amor mais pueril, é simpática
e otimista em relação a um mundo que não cansa de lhe ser hostil. Em
contraposição a ela, a personagem Andrea Caracortada (Victoria Abril) encarna o
protótipo da vilã pérfida – quase um androide de filmes de ficção científica, graças a
sua postura dura, desumanizada e artificial, enquanto apresentadora de um
programa televisivo sensacionalista (BALOGH, 1996).
Esse mosaico de tipos humanos presente no cinema de Pedro Almodóvar lhe
torna um cineasta capaz de criar pessoas comuns, ordinárias, pois repletas de vícios
e virtudes por vezes difíceis de clivar. Com cenas de tons variados, pinceladas
oníricas e personagens surpreendentes em suas atitudes, esse cinema desprovido
de preconceitos se mostra aberto ao diferente. De acordo com Luiza Aguiar Leite
(2011), “Almodóvar deixa que cada um tome a palavra e faça seu „discurso‟
pessoal.” (p.73).
Os discursos que assim se mesclam, não cessam de produzir situações
inusitadas e momentos singulares. Em Tudo sobre minha mãe (1999), os
preconceitos desmoronam em uma cena de forte carga dramática, descrita por Luiza
Aguiar Leite:
39
Almodóvar desvirgina a maneira de olhar os temas, promovendo um
deslocamento para lugares diferenciados, como no exemplo da cena de
Tudo sobre minha mãe, em que a personagem Lola pega o filho em seus
braços. Emocionamo-nos ao ver um travesti com seios de silicone,
segurando no colo seu filho que contraiu dele o HIV. A cena traz muito mais
emoção que estranhamento. Almodóvar faz do plástico o belo. (LEITE,
2011, p. 88)
Ainda em outros campos também se percebe a marca almodovariana de
produção, como no caso das famosas cores, utilizadas em seus filmes de forma
impactante, criando cenários coloridos com vermelho, amarelo, laranja, e outras
tonalidades quentes. O rubro predominante em Volver (2006) se espalha pelos
cenários, figurinos, e inunda as cenas com uma beleza plástica, já consagrada no
ano de lançamento do filme, como concernente ao universo de Pedro Almodóvar.
Figura 7: O vermelho inunda a cena em Volver (2006)
Seguindo pelo mesmo caminho estão as músicas que permeiam os filmes,
com sentidos que não ilustram a imagem, mas dialogam com ela, como esclareceu
Almodóvar em entrevista a Frederic Strauss (2008). Em Maus Hábitos (1983), o trio
de irmãs cantoras, em uníssono, canta e toca a música “Salí porque salí”,
acompanhadas pela performance da cantora Yolanda Bell (Cristina Sánchez
Pascual), especialmente produzida para o aniversário da Madre Superiora (Julieta
Serrano). A letra diz que “a tí llegué porque llegué, y salí porque salí, amo cuando
40
puedo amar, sigo andando por ahí”, em consonância com o sentimento da cantora
pela madre, que esperava da religiosa o entendimento de que o lugar dela não era o
convento, sendo este um refúgio temporário de uma vida errante.
Boleros como o de Maus Hábitos revelam que a força da música está
sintonizada com as interpretações melodramáticas desse cinema almodovariano,
que coaduna com o choro de amor dos boleros produzidos na Espanha moderna.
Outro tema que finca raízes na produção de Pedro Almodóvar é, segundo
Luiza Aguiar Leite (2011), o “medo do abandono”. Rebeca (Victoria Abril),
personagem de De Salto Alto (1991), sente a ausência da mãe de forma visceral a
ponto de se envolver com o transformista que dubla sua mãe, a cantora Becky
(Marisa Paredes), e com ele manter relações sexuais. Em outra situação, ao
perceber que o ex-amante de sua mãe, Manuel, agora seu marido, de alguma
maneira representava perigo à relação entre mãe e filha, Rebeca o mata em um ato
de pura insanidade. É nesse imbróglio familiar de tom trágico que se insere este
conceito, percebido por ela como uma forma encontrada por Almodóvar de nos
aproximar de seus personagens.
No que diz respeito ao sentimento de desamparo, tanto donas de casa
quanto travestis, freiras ou prostitutas, escritores ou domésticas vivem
problemas semelhantes. Ele [Almodóvar] trata a todos, inclusive aos que se
apresentam como marginais, pelas lentes da compreensão. Talvez, por
isso, nos sintamos tão próximos de seus personagens. (LEITE, 2011, p. 90)
Ressalta-se ainda que tais recursos inseridos no universo do cinema de
Pedro Almodóvar convergem em um tema para o qual tais artifícios (cores, músicas,
narrativas melodramáticas) trabalham em conjunto: a sexualidade. Expressa em
facetas diversas, ela expande suas fronteiras e sai da alcova para ganhar outros
ambientes da vida individual e social dos personagens almodovarianos. Expressa-se
em contornos dissociadores do cânone religioso em Maus Hábitos com a paixão
proibida de uma freira por uma cantora de bolero; nas compulsões sexuais de tom
familiar, como na relação entre Becky e Rebeca em De salto Alto; pulverizando-se
ao máximo em Volver, numa sensível narrativa sobre a doce presença/ausência de
uma avó, que levou consigo parte das memórias de uma família tradicional do
41
interior da Espanha, recalcada em seus desejos para se enquadrar nas normas
sociais vigentes.
3.4 Masculino e feminino: invenção de lugares na ótica almodovariana
Em meio aos planos de Almodóvar, no qual nos mostra o ambiente
tumultuado em que estão inseridas as personagens e a relação que se desenvolve
entre elas, notamos ali, uma miscelânea de pessoas dos mais variados gêneros e a
invenção de novos lugares, são heterossexuais que lidam com homossexuais e
travestis, héteros que se tornam gays, e gays que se descobrem héteros,
personagens femininos que ocupam papéis masculinos e vice-versa. Aparece nesse
cenário a mulher espanhola, com toda sua exuberância e intensidade, seja na figura
de jovens que engravidam de homens transvestidos de mulher, sequestradas
apaixonadas por sequestradores até vinganças mirabolantes e complexas
permeadas pelo desejo feminino – tudo sob o olhar minucioso do diretor.
Almodóvar é reconhecidamente o “diretor das mulheres”. Ana Lucilia
Rodrigues, autora do livro Almodóvar e a feminilidade (2009), contextualiza essa
questão:
O cinema de Almodóvar surge na década de 70, momento em que os
movimentos feministas, os discursos emancipatórios e a sedimentação das
transformações do pós-guerra transformam a condição feminina em tema
definitivamente político. O cinema começa a ser povoado pelo que muitos
chamam de "mulheres reais". Assim, ele inicia seu cinema influenciado, sem
dúvida, pelos movimentos feministas da época, trazendo um perfil feminino
mais realista para as telas. É um conjunto de representações que retratam a
mulher em seu cotidiano vivido, com ênfase nos dramas domésticos e com
a inserção do imaginário que lhe é próprio. (RODRIGUES, 2009, p. 38)
Adentrando a Psicanálise, teorias de Freud e Lacan são frequentemente
utilizadas para os estudos de representação fílmica da mulher, explorando o
voyeurismo e o fetichismo. Para Ann Kaplan (1995), o jogo do olhar já começa na
câmera: “O olho original da câmera, controlando e limitando o que pode ser visto, é
42
reproduzido pela abertura do projetor que ilumina um quadro de cada vez. (...) O
espectador, é claro, está na posição de um voyeur.” (p. 67).
Em Pepi, Luci, Bom..., Almodóvar explora de outra maneira o voyeurismo. A
personagem Pepi, que em uma das cenas é agredida, em outra, observa o
espancamento daquele que acredita ser seu agressor, o que lhe proporciona um
grande prazer. O que se dá é uma forma de vingança por parte de Pepi contra o
policial que a estuprou. Pepi, então, convoca os companheiros de Bom para baterem
no seu agressor. Em meio à pancadaria, ela se excita, observando tudo escondida
em uma esquina próxima. Assume o olhar ativo. Nesse caso, o homem é objeto,
contrariando a citação presente no ensaio Prazer visual e cinema narrativo (1983),
de Laura Mulvey, que aponta:
O olhar masculino determinante projeta sua fantasia na figura feminina,
estilizada de acordo com essa fantasia. Em seu papel tradicional
exibicionista, as mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, tendo
sua aparência codificada no sentido de emitir um impacto erótico e visual de
forma a que se possa dizer que conota a sua condição de „para ser olhada‟.
(MULVEY, 1983, p. 445)
Pedro Almodóvar desloca o lugar da mulher, proporcionando a suas
personagens um apanhado de novas ações, de possibilidades múltiplas de
construção do ser e da subjetividade feminina.
Ainda na cena contida em Pepi, Luci, Bom..., nota-se o destaque da cor
vermelha em meio à confusão da briga. As cores vivas do diretor também nos
servem como base para análise de suas personagens femininas. No livro de
Frederic Strauss, Conversas com Almodóvar (2008), o cineasta afirma: “Isso
corresponde ao meu próprio caráter e ao de minhas personagens, que são muito
barrocas no que se refere ao comportamento, e a explosão de cores combina muito
com esse tipo de dramaturgia.” (p. 117).
O vermelho é cor marcante em seus filmes, e aparece sempre repleto de
significações. Almodóvar destaca: “O vermelho, é também, na cultura espanhola, a
cor da paixão, do sangue, do fogo” (p.118), elementos esses com presença
garantida em seus filmes.
43
4 A IMAGEM DAS SEXUALIDADES
Em seus estudos e considerações sobre o cinema, o filósofo francês Gilles
Deleuze elabora uma teoria baseada nos signos imagéticos como principais
constituintes do cinema. Deleuze não considera escrever sobre a história do cinema
e propõe uma filosofia que se atém à “matéria imagem”, fugindo de um modelo
epistemológico que coloque o cinema subordinado aos esquemas de interpretações
linguísticas.
Segundo Anne Sauvagnargues (2009), no texto A imagem, do arco sensóriomotor à clarividência, Deleuze parte da análise da imagem e de seus processos
cinematográficos determinantes. A autora pondera que o filósofo francês compara a
experiência da vida ao cinema. Para ele, a nossa percepção se dá por meio de dois
mecanismos bastante importantes para a criação de sentido na sétima arte: o
enquadramento e a montagem. O enquadramento pode ser descrito como a seleção
de uma imagem a fim de eliminar tudo aquilo que foge à cena que se deseja
capturar. Já a montagem é o encadeamento dessas imagens para relacioná-las a
outras, construindo assim, uma cadeia de sentidos.
No pensamento deleuziano, imagem é igual a movimento. A partir desse
conceito de imagem-movimento, temos a principal ideia fluindo de sua filosofia sobre
o cinema: a imagem-movimento e suas três variedades. Segundo Deleuze (1983),
as imagens-movimento se dividem em três tipos de imagem quando são reportadas
a um centro de indeterminação: imagem-percepção, imagem-ação e imagemafecção. Assim, a imagem cinematográfica nada mais é que um agenciamento das
três imagens, um consolidado das três variedades imagéticas.
A formação da imagem-movimento e suas três variedades corresponde à
gênese da subjetividade. Segundo Sauvagnargues (2009), o primeiro momento
material da subjetividade é a imagem-percepção subtrativa, que age assim por
limitação, “subtraindo” das outras imagens o que não importa diretamente a ela. Já a
segunda operação material da subjetividade produz a imagem-ação, ligada
diretamente à ideia de forças motrizes.
44
A subjetividade aparece então necessariamente como um esquema
sensório-motor, injetando indeterminação no tecido denso da matéria. A
ação não se contenta em exibir a sua reação sensório-motriz, também
busca o novo de um modo criativo. [...] A imagem-ação, a segunda
operação material da subjetividade, responde dessa forma à percepção
através de uma descarga motriz. (Sauvagnargues, 2009, p. 59).
Ainda de acordo com Sauvagnargues (2009), essa descarga sensório-motriz
implica na imagem-afecção, que ela denomina como “imagem-sentimento”. A
terceira operação da subjetividade, a imagem-afecção, não só garante a passagem
do sensorial (imagem-percepção) ao motor (imagem-ação), como também permite
ao mesmo tempo superar a imagem-movimento subjetiva.
As três variedades da imagem existem em conjunto, de modo que não há
ação sem percepção, nem afecção sem ação. Elas sempre serão apresentadas
juntas. Segundo Deleuze (1983), um filme nunca é feito com uma única espécie de
imagens, portanto, chama-se montagem a combinação das três variedades.
As propriedades distintas das imagens também nos permitem diferenciar as
obras, os gêneros e tipos de planos, de acordo com a predominância de uma
variante ou outra na montagem do filme. Deleuze explica:
Às três espécies de variedades podemos fazer corresponder três espécies
de planos espacialmente determinados: o plano de conjunto seria sobretudo
uma imagem-percepção, o plano médio, uma imagem-ação, o primeiro
plano uma imagem-afecção. Mas, ao mesmo tempo, segundo uma
indicação de Eisenstein, cada uma dessas imagens-movimento é um ponto
de vista sobre o todo do filme, uma maneira de captar esse todo, que se
torna afetivo no primeiro plano, ativo no plano médio, perceptivo no plano de
conjunto, cada um desses planos deixando de ser espacial para tornar-se,
ele próprio, uma „leitura‟ do filme inteiro. (Deleuze, 1983, p.94).
Desse modo, veremos neste capítulo, que o cineasta espanhol Pedro
Almodóvar possui o seu próprio estilo de montagem e outras características que
definem a singularidade de sua filmografia.
A escolha dos filmes Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980),
Carne Trêmula (1997) e Má Educação (2003) como componentes do objeto empírico
da pesquisa deve-se às tensões e problemas que esses filmes apresentam para o
45
espectador e à maneira como os elementos cinematográficos foram neles
trabalhados. Além disso, são longas que marcam cronologicamente a carreira do
cineasta em início de produção (Pepi, Luci, Bom...), já consolidada (Carne Trêmula)
e um último exemplar mais atual (Má Educação).
Todo filme pode ser considerado o resultado de uma série de técnicas e
arranjos para se contar uma história e, por esse motivo, é sempre delimitado pelo
enquadramento da câmera e pela área da tela - ambas levadas em consideração
pelo cineasta como limites na busca por compor uma narrativa acessível a seu
público.
Os filmes selecionados foram escolhidos por conterem o tema da
sexualidade, abordado por enfoques diversos e polissêmicos. A construção da
sexualidade pelo indivíduo, ou mesmo a partir da relação entre homem e mulher ou
ainda entre pessoas do mesmo sexo, serviram como mote para a escolha dos filmes
do objeto empírico no escopo da filmografia de Almodóvar.
A partir do método proposto por Jacques Aumont para analisar a imagem
cinematográfica e com o esteio teórico da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
a análise do objeto empírico buscará identificar elementos como a superfície
imagética e sua organização – o que se chama tradicionalmente de composição –
isto é, as relações geométricas regulares entre diferentes partes da superfície
imagética e as subjetivações em jogo a partir dessas disposições. Além de tratar da
gama de valores ligada à maior ou menor luminosidade de cada região da imagem.
As cores presentes nos filmes e suas relações de contraste são outro
importante viés desse trabalho, já que na obra de Almodóvar a cor tem caráter mais
expressivo que simbólico. Um exemplo é a utilização excessiva das cores-pigmento
vermelho, amarelo e azul, também chamadas de cores primárias. O uso dessas
cores berrantes faz parte da composição dos momentos de tensão ou de grande
beleza dos filmes e frequentemente possibilita ao público a identificação de uma
cena como pertencente a uma produção almodovariana.
46
4.1 Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão
O primeiro filme de Almodóvar Pepi, Luci e Bom e outras garotas de montão
(1980) faz parte do universo do cineasta mais pela temática do que por um modo de
fazer cinema facilmente identificável. Sem a presença marcante das cores que
fazem parte da obra do diretor ou das canções, em particular o bolero, este longametragem não deve ser considerado um filme menor de Almodóvar no quesito
estético e narrativo, pois já no longa-metragem inicial o diretor apresenta duas de
suas características mais reconhecíveis: a vingança e o tratamento da sexualidade
como uma “realidade” complexa, assuntos estes que perpassam os próximos filmes
de sua carreira.
A ideia desta película se constrói a partir de um desejo de vingar-se que
aparece logo nas primeiras cenas. Pepi é vizinha de um policial que a observa pela
janela do apartamento. Ele percebe que a jovem cultiva mudas de maconha e decidi
ir prendê-la. Pepi, para não ser presa, tenta suborná-lo insinuando-se sexualmente
para ele. A personagem pergunta: “Não podemos fazer por trás?”, explicando que
nunca havia feito sexo vaginal e que pretendia vender sua virgindade.
Apesar da confissão, o policial não dá ouvidos e a estupra. Este é o mote que
leva Pepi a querer fazer sua própria justiça contra o vizinho. Para a execução da
tarefa, ela conta com a ajuda da amiga Bom e de seus amigos punks, que
perseguem, por engano, o irmão gêmeo do policial e o agridem.
Ainda que tenha acreditado ter mandado bater na pessoa certa, a
personagem não se sente totalmente vingada, por isso, Pepi decide se tornar amiga
da mulher do policial, Luci, e lhe conta sobre o crime acontecido. Nesse intervalo,
Pepi, Luci e Bom ficam amigas e apresentam para Luci, recatada e pudica, novas
possibilidades, principalmente no que diz respeito à sexualidade na busca por novas
formas de prazer.
Luci deixa o marido para viver uma vida completamente nova, ao lado de Pepi
e Bom. Com a última, Luci mantêm, inclusive, um relacionamento pautado na prática
sadomasoquista. Parte da frustração em ter se casado com um policial ocorria
47
porque Luci, no início da relação, imaginava que o marido fosse tratá-la com força e
demonstrações de poder, mas como ela mesma diz ao longo da narrativa, ele a via
“como uma mãe”.
No primeiro encontro entre Luci e Bom, Pepi sugere que Bom dê um banho
de urina em Luci, ao passo que esta aceita prontamente e se delicia com o
momento. Em outra situação, um diálogo é travado entre Luci e seu ex-companheiro
policial, no qual ela demonstra um desejo de busca pelo próprio prazer. Enquanto
ele ironiza que a esposa está se fazendo de vítima diante do fato de abandoná-lo,
ela responde: “Sim, uma vítima da onda de erotismo que está varrendo o país”.
Esta manifestação de erotismo e a vontade de contestar os antigos costumes,
como fazem Luci e Bom, estão presentes nas faixas de rock n’ roll inseridas ao
longo do filme. O gênero musical é o manifesto dos mais jovens que buscavam
expressar a rebeldia e a novidade, além de buscar uma representação de total
rejeição aos antigos costumes e a tradição imposta pelos mais velhos. O rock
emerge em combate aos valores anacrônicos cultivados ao longo do governo
franquista como meio para contar experiências e desejos, sobretudo os sexuais.
Figura 8: Pepi, Luci e Bom são mulheres de três gerações e modos de viver distintos
48
Além da pulsão sexual, Pepi, Luci e Bom..., retrata a busca pela realização de
um desejo de vingança. A primeira das muitas histórias em longa-metragem, cujas
personagens têm o desejo de vingar-se, não se constrói a partir de cores
predominantes como o vermelho ou o azul, duas cores da paleta do diretor, para
intensificar as sensações vivenciadas pela personagem a fim de criar um recurso
estético. O que o espectador percebe é que a intenção maior do diretor foi a de
retratar com verossimilhança grupos underground que se fortaleceram com a queda
do regime ditatorial.
O desejo de castigo e reparação é o fio que articula e envolve as três
personagens principais. Todas elas desejam infringir uma punição, a seu modo, para
o policial criminoso.
O olhar de Almodóvar sobre a vingança - momento do passado que reverbera
no tempo presente – neste filme pôde ser considerado a partir de uma perspectiva
que se aproxima daquela formulada por Nietzsche em Assim Falou Zaratustra, em
que a vingança é difícil de ser esquecida por não estar presa à ideia de um tempo
fixo e linear, mas por devir a todo instante.
Isso, sim, isso somente é a própria vingança: a recalcitrância da vontade
contra o tempo e o seu „era‟. Esta determinação assim acrescentada não
enfatiza unilateralmente um caráter isolado do tempo, negligenciando os
dois outros, mas ela caracteriza o aspecto fundamental do tempo em sua
essência plena e própria. (NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 2002, p. 101)
4.1.1 A construção da sexualidade pela imagem
Um corpo em contato com o mundo provocando afetações mútuas. Uma das
principais premissas da obra de Pedro Almodóvar é também ponto de partida para
Pepi, Luci, Bom..., que refuta a separação das figuras do objeto e do sujeito,
negando uma visão restrita da sexualidade.
49
Em seu primeiro longa-metragem, as personagens de Almodóvar fogem de
uma sexualidade entendida como fixa ou imutável para, assim, dar vazão ao desejo.
É o caso de Luci, dona de casa que aprecia se submeter aos desígnios de outra
pessoa para se satisfazer sexualmente. Também o homem que observa da janela
do quarto os atos libertinos de rapazes em uma festa, ao mesmo tempo em que
conversa com a mulher sobre o desejo que sente por ela ao vê-la de barba, reafirma
a tese.
Esse ato voyeur, de observar o outro sem ser visto, perpassa toda a lógica
deste filme. O policial só descobre que Pepi cultivava maconha no seu apartamento
porque a observava do prédio vizinho. A câmera que primeiro filma a fachada do
prédio, age como se estivesse invadindo o apartamento da vizinha, percorrendo
desde a janela onde se encontravam as plantas até as paredes e objetos da casa,
num ato minucioso de espionagem e invasão de um espaço privado. Quando a
campainha toca, percebe-se que Almodóvar cria um jogo com a câmera ao
posicioná-la para trás da janela a fim de representar neste momento o olhar do
vizinho que observava Luci em sua intimidade.
Figura 9: O olhar voyeur e a sexualidade em Pepi, Luci, Bom...
50
Em outro momento do filme é Pepi quem assume o papel de voyeur. Depois
de ser estuprada pelo policial e decidir vingar-se dele, a personagem convoca seus
amigos para bater no violentador. Em meio à pancadaria, Pepi observa tudo de
longe e se excita com a situação. A câmera aqui também vem reforçar essa função,
mostrando a cena de longe, representando o olhar de Pepi diante da situação. É
preciso ressaltar ainda, que neste momento, quem apanha por engano, na verdade,
é o irmão gêmeo do policial agressor.
Além do olhar que se esmera em ser afetado pelo outro sem ser visto, outro
aspecto importante para compreender o filme é o olhar sobre a sexualidade como
um elemento movente, que se relaciona com as coisas que estão à volta, e que
dispara o desejo na medida em que os corpos entram em contato. Este é um
operador importante para pensar a impressão causada no espectador ao assistir
Pepi, Luci e Bom..., mais do que um filme sobre a Madri pós-ditadura franquista, a
construção desse longa-metragem se baseia nos limiares do desejo que ajudam a
constituir as pessoas.
Desejo este que pulsa o tempo todo durante o filme, sendo que um dos
momentos mais peculiares é aquele em que Pepi e Bom conversam em um quarto
de hospital acompanhadas por Luci e seu marido. Acamada, Luci segura a mão do
esposo e comunica sua escolha de voltar para o marido à ex-namorada Bom.
Luci: Sou muito mais sapatão do que você pensa. E você não é tão mau quanto
pensa que é. Você não pode me dar tudo o que eu mereço. Ultimamente, você tem
me tratado como uma empregada. Não estou reclamando, mas acho que eu merecia
algo muito pior. Mas olhe... ele quase me matou...
Marido: Escute ela, garotinha. Não há nada que se possa fazer.
Bom: Escolha entre ele e eu. Esta é a sua última chance.
Luci: Quando me casei com ele, eu fiz a minha escolha.
Pepi: Não confia nele. Ele voltará a te tratar como sua mãe.
Luci: Ele me odeia com toda a sua alma, e ele não pode me perdoar pelo que eu fiz
nos últimos meses. Eu seria louca de perder uma oportunidade como essa.
Bom: Estúpida!
51
Pepi: Quieta! Isto é um hospital. Vamos!
Luci: De qualquer forma, eu quero agradecer por tudo o que fez por mim.
Bom: Guarde seus agradecimentos.
Luci: Se não fosse você, ele nunca me trataria assim...
Marido: Fique quieta, Luci. Já disse o bastante.
Pepi (saindo do quarto): Vamos!
Ao invés de buscar uma representação totalitária e impositiva sobre o desejo
de
suas personagens no
sentido
de lançar-lhes olhares de
rejeição
e
estranhamento, a ideia de sexualidade em Almodóvar é tal qual a que Suely Rolnik
propõe, no texto Geopolítica da Cafetinagem, como “corpo vibrátil” – conceito que
diz respeito a um corpo que reverbera no mundo. A autora afirma que este corpo se
configura como sensório e está efetuando trocas no espaço no qual se insere, como
fazem as personagens de Pepi, Luci, Bom.
Entre a vibratibilidade do corpo e sua capacidade de percepção há uma
relação paradoxal, já que se trata de modos de apreensão da realidade que
obedecem a lógicas totalmente distintas, irredutíveis
uma à outra. A
tensão deste paradoxo é o que mobiliza e impulsiona a potência do
pensamento/criação, na medida em que as sensações que vão se
incorporando à nossa textura sensível operam mutações intransmissíveis
por meio das representações de que dispomos, provocando uma crise de
nossas referências. (ROLNIK, 2012, p. 4)
Compreender que as personagens não podem ser entendidas como figuras
pervertidas ou descontroladas revela, na verdade, um respeito do cineasta aos
desejos que fazem parte de sexualidades muito particulares. Almodóvar é um diretor
que constrói o olhar sobre mulheres e homens com a premissa de não condená-los
segundo as imposições da sociedade, mas de mostrar aquilo que lhes é
idiossincrático.
O que certos coletivos trataria como um desvio moral, no filme de Almodóvar
é visto com naturalidade e condescendência. Ao invés de estranheza, as lentes
captam a humanidade e esta pulsão que se agita e transborda. Nem mesmo Luci, a
52
personagem que apanha do marido e decide, ainda sim, voltar para ele, recebe um
olhar condenatório do diretor.
Se o olhar moralista não faz parte do filme, a divisão binária e redutora da
sexualidade a partir da tipificação de comportamentos e de uma classificação dos
gêneros masculino e feminino em detrimento de uma pluralidade de configurações
sexuais – também se ausenta de Pepi, Luci, Bom... Cada personagem é tratado
como um universo particular e único, denotando toda a complexidade da
sexualidade humana.
Figura 10: No filme o desejo é uma força que dispara pelo contato
Embora a figura de um policial no filme e um estupro – delito grave
juridicamente – esteja presenta na tela, aos olhos de Almodóvar, tais questões
ganham novos matizes. A personagem Pepi, depois do estupro, nega a existência
de uma lei que lhe assegura e procura vingar-se do policial com as próprias mãos. O
diretor, em Conversas com Almodóvar, de Frederic Strauss, enuncia: “Existem
tantas ligações entre a transgressão e a lei que tenho até que negar a existência da
lei; luto para que ela esteja ausente dos filmes.” (ALMODÓVAR apud STRAUSS,
2008, p. 37).
53
4.1.2 Devires: corpos que vibram
Outro ponto importante sobre a construção da sexualidade na película, e
costume no cinema de Almodóvar, é a opção por retratar figuras que não pertencem,
necessariamente, aos padrões de um segmento da sociedade espanhola: a católica
conservadora. Ao invés disso, o conteúdo que o cineasta prefere compor para suas
narrativas traz pessoas marginalizadas culturalmente – os renegados da Movida
com suas bandas punk, festas regadas a álcool, drogas e até mesmo um concurso
insólito para medir o tamanho de diversos pênis, tudo isso atua como alegoria
importante para modificar o curso da narrativa, que pode soar estranha em um
primeiro momento ao público espectador, mas perfeitamente cabíveis neste universo
criado por Almodóvar.
Sob essa perspectiva de construir novas relações e interpretações a partir do
que é marginalizado, o cineasta se aproximaria de um ideal a favor da
não-representação¹ – recurso que procura ampliar certas noções que só são
entendidas pela ampliação de certas percepções e conceitos.
Ao invés de propor um julgamento sobre a sexualidade das pessoas,
enquadrando-as em formas engessadoras, o diretor se preocupa em trabalhar com
ideias que saltam para além de noções estigmatizadas. Vê-se aí um trabalho criativo
poderoso que atua no sentido de ir além da superfície da personagem retirando-a de
rótulo e do julgamento fácil e condenatório proposto pela coletividade. Almodóvar
demonstra como a sexualidade transbordante de seus personagens estabelece um
contato frutífero com o mundo.
Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos
que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as
quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e
lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos,
e através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o
processo do desejo. Esse princípio de proximidade ou de aproximação é
inteiramente particular e não reintroduz analogia alguma. (DELEUZE e
GUATTARI, 2007, p.64).
_____________________
¹ O cinema do espanhol Pedro Almodóvar, ao contrário do que se viu na consolidação da produção hollywoodiana – marcada
por uma transparência da composição imagética – calca-se em uma tradição não representacional da imagem cinematográfica.
Imagem esta que não se dá à representar a sexualidade de forma indicial, mas sim expressá-la imageticamente por meios
simbólicos. Nos interstícios da imagem, Almodóvar permite ao espectador explorar as metáforas da ampla temática sexual.
54
Figura 11: Almodóvar como participante da festa em Pepi, Luci, Bom...
A questão do desejo e também da representação, mencionada no livro
Diálogos (1995) de Gilles Deleuze e Claire Parnet, impõe-se como a afirmação de
uma unidade real mínima diferente. “A unidade real mínima não é a palavra, nem a
ideia ou o conceito, nem o significante, mas o agencimaneto.” (DELEUZE e
PARNET, 1995, p. 65). Por isso, caberia dizer que não corresponde aos sujeitos agir
como sujeitos da enunciação na medida em que eles não atuam sequer como seres
que produzem o enunciado. Para Deleuze e Parnet o enunciado se manifesta da
seguinte maneira:
O enunciado é o produto de um agenciamento, sempre coletivo, que põe
em jogo, em nós e fora de nós, as populações, as multiplicidades, os
territórios, os devires, os afetos, os acontecimentos. O nome próprio não
designa um sujeito, mas qualquer coisa que se passa, pelo menos entre
dois termos que não são sujeitos, mas agentes, elementos. Os nomes
próprios não são nomes de pessoas, mas de povos e tribos, de faunas e de
floras, de operações militares e tufões, de coletivos, de sociedades
anônimas e escritórios de produção. (DELEUZE e PARNET, 1995, p. 65).
A filmografia de Pedro Almodóvar possui tantas singularidades e guarda
tantas relações próximas e indiciais com a realidade que recria, a sua maneira, os
agenciamentos existentes na sociedade. Tudo isso a partir de um olhar próprio do
cineasta. Almodóvar assume o lugar daquilo que Deleuze e Parnet afirmam ser a
55
função do escritor, que ao contrário da noção de autor, não é um sujeito da
enunciação, mas um ser capaz de passar “uma multiplicidade na outra” (p. 65),
criando a partir de um dado já estabelecido, reconstruindo-o.
Um sistema pontual será mais interessante à medida que um músico, um
escritor, um filósofo, ou até mesmo um psicanalista se oponha a ele,
fabricando-o como um trampolim para saltar e alcançar uma multiplicidade
de pontos de vista. (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 94)
Relacional e contextualizado, estes agenciamentos são construídos pelas
pulsões. O desejo de vingança de Pepi não vibra só porque foi violentada, mas por
todo um conjunto de fatos que envolvia desde sua virgindade posta à venda até o
modo como o agressor a violentou.
Todo o conteúdo e a expressão presentes em Pepi, Luci, Bom... atestam que
o agenciamento se fará presente quando uma rede de corpos se abrir para entrar
em contato com a câmera que procura desvendar estes corpos e apresentar a
pluralidade de elementos que compõem estas personagens.
A partir dessa reflexão, tem-se que o agenciamento pode ser entendido como
uma multiplicidade de termos de naturezas díspares que relacionados entre si atuam
em uma espécie de afinidade mútua. “Assim, a única unidade do agenciamento é o
co-funcionamento: é a simbiose, uma „simpatia‟” (DELEUZE e PARNET, 1995, p.84).
4.2 Carne Trêmula
O longa-metragem Carne Trêmula (1997), de Pedro Almodóvar, é baseado no
livro homônimo da escritora Ruth Rendell, publicado em 1986. Ambas as obras
mostram sentimentos, destrinchando psicologicamente cada personagem, trazendo
no enredo os efeitos dos encontros que mudam suas vidas para sempre.
Embora se baseie em um romance policial, a película traz desdobramentos
mais complexos, e pode ser considerada uma obra independente do livro de
56
Rendell. O crítico de cinema do jornal Folha de S. Paulo, Inácio Araújo, aponta que o
enredo analisado – com seus personagens e histórias entrelaçados – permite o olhar
sobre uma nova linguagem de Almodóvar. Segundo ele:
É desse material que Pedro Almodóvar tece seus surpreendentes
melodramas. Que num momento anterior de sua carreira nos faziam rir, mas
com o tempo mais e mais se tornaram graves, com seus desejos
paroxísticos, contrastes berrantes. Um cinema do desejo em estado bruto,
impuro, talvez aberrante. Porém irretocável: é Pedro em grande momento.
(ARAÚJO, 2011)
As características do trabalho do diretor espanhol ganham maior visibilidade e
constância e são apresentadas por meio de personagens fragmentados ao longo da
narrativa. O enredo ganha complexidade pelo fato de que os cinco personagens
principais se conectam pelos meandros da trama que apresenta elementos como
amor, obsessão, paixão, medo, ciúmes e traição, próprios dos relacionamentos
humanos. O filme surpreende por apresentar acontecimentos inesperados e
reviravoltas nos primeiros minutos de projeção.
Declarado estado de emergência em todo o território nacional. A defesa da
paz, do progresso da Espanha e os direitos dos espanhóis obrigam o
governo a suspender os artigos da lei que afetam a liberdade de expressão,
liberdade de residência, liberdade de reunião e associação, e o artigo 18,
pelo qual nenhum espanhol poderá ser detido exceto nos casos e na forma
que prescrevem as leis. (BOLETIM OFICIAL DO ESTADO, 1969, p. 1.175)
São com essas palavras, retiradas do Boletim Oficial do Estado do período
franquista, que Pedro Almodóvar inicia Carne Trêmula. A história se passa na capital
espanhola em 1970, época em que o país vivia um período de repressão e censura.
Para representar a complexa conjuntura política e ideológica vivida naquele
momento pela Espanha, o diretor utiliza rádios e televisores domiciliares como portavozes do embate entre as concepções políticas antagônicas que permeavam a
ditadura de Francisco Franco.
As imagens que abrem a película exemplificam tal cenário. Uma mulher grita
por causa das dores do parto, fazendo ecoar sua voz sobre uma Madri abandonada,
57
assolada pelo medo, onde as pessoas permaneciam dentro de suas casas sem
liberdade de ir e vir.
Inicia-se uma ruptura, em relação ao estilo do cineasta, na filmografia
almodovariana por meio de Carne Trêmula. O filme parece desmentir as
manifestações
do
diretor
em
relação
ao
desinteresse
despontado
pela
representação da memória histórica vivida na época. Até então, Almodóvar
procurava não assinalar fortemente um interesse pela temática política em enredos
apresentados em suas películas anteriores. A preferência em abdicar do passado e
obliterar as memórias do regime franquista toma novo rumo com o longa de 1997.
De volta ao enredo, 20 anos se passam após a cena de abertura e o que se
pode ver é uma cidade mais vívida, que expressa sua liberdade através de música,
cinema e esportes. Apesar da importância em se ver extinguido o regime franquista
para a história contada no filme, o foco parece estar em acentuar os percalços das
vidas dos personagens. Trata-se de uma narrativa de amor e ódio que em um
entrelaçamento contínuo relata fatos e situações adversas.
4.2.1 Personagens e enredo
Em 1970, Isabel Plaza (Penélope Cruz) é uma prostituta que dá à luz, em um
ônibus, Victor (Liberto Rabal). Anos depois, o jovem conhece Elena (Francesca
Néri), uma jovem rica de classe média alta com quem mantém relação fortuita.
Apaixonado, ele decide procurar pela moça, que resiste às suas investidas. Victor
não desiste e vai atrás dela em sua casa. Os dois se desentendem e Elena ameaça
o rapaz com um revólver. Um tiro é disparado, atraindo a atenção dos policiais David
(Javier Bardem) e Sancho (José Sancho), que entram no local. Victor, então, rende a
moça com a arma enquanto os policiais tentam fazê-lo desistir. Sancho salta para
cima do rapaz e os dois começam a brigar. David acaba atingido por uma bala e fica
paraplégico. Elena se apaixona por ele e os dois se casam. Victor é preso pelo
crime, e a partir daí, entra em jogo a temática da vingança na película.
58
Figura 12: A cena que desenrola a trama de Carne Trêmula
Os destinos dos personagens se cruzam de novo após sete anos, com as
alterações que o fato causou na vida de cada um dos envolvidos. Para o crítico de
cinema do site Terra, Carlos Gerbase, “A grande virtude de "Carne Trêmula" é
justamente essa brincadeira com os destinos dos personagens, obtida através de
elipses narrativas bem radicais.” (GERBASE,1998).
4.2.2 Desejo e vingança
Em Carne Trêmula, desejo e vingança perpassam todos os personagens. A
começar por Victor, que depois de perder a mulher amada para o policial David,
promete se vingar, não de David por lhe roubar Elena, mas dela, que o humilhou e
lhe preteriu por outro homem. O psicanalista Renato Mezan, em Tempo de Muda,
esclarece que a vingança é um sentimento compartilhado e que impulsiona ambos
os envolvidos a ferir um ao outro. Citando Baruch de Spinoza, em seu livro, ele
esclarece ainda que a vingança está diretamente associada à ofensa e à
humilhação: “A vingança é o desejo que, surgindo do ódio recíproco, nos impele a
ferir aqueles que, a partir de um afeto semelhante, nos feriram.” (SPINOZA apud
MEZAN, 1998, p. 135).
59
Quando falamos em vingança, principalmente em histórias adaptadas para o
cinema, a busca pela oportunidade de revanche sempre é saciada por meio da
morte – espetacularizada através da imagem. Morte do que mereceu a vingança e
restituição da felicidade ao vingado. Mas no caso de Carne Trêmula, a vingança não
está na morte da mulher que tanto causou sofrimento ao personagem Victor. Ele
deseja que ela compreenda o quanto o fez sofrer e se culpe por isso. Sua única
intenção, em última instância, é tornar-se um “amante perfeito”, nas palavras de
Victor, para satisfazer os prazeres de uma mulher que vive com um homem semiincapacitado (o policial David), para em seguida concretizar seu plano perverso de
abandonar Elena.
Em uma cena emblemática, Victor visita o túmulo de sua mãe no cemitério e
se depara com uma grande coincidência: o pai de Elena está sendo velado no
mesmo local. O rapaz então, se aproxima da moça e a beija no rosto. Logo depois
que ele se afasta, ela reconhece Victor e se sente abalada. É nesse mesmo
ambiente que o jovem conhece Clara (Ángela Molina), mulher do policial Sancho,
ex-parceiro de David. Os dois passam a se encontrar e iniciam um caso
extraconjugal.
Figura 13: Clara e Victor têm um caso extraconjugal em Carne Trêmula
60
Victor se torna o homem ideal no que diz respeito ao prazer. A mulher de
Sancho se torna útil para seu aprendizado sexual e acaba se apaixonando por ele.
Clara vive um relacionamento infeliz com um marido violento e alcoólatra, que não
admite a separação após 12 anos de casamento. Sancho sabe que a mulher o trai,
mas não consegue ficar sem a esposa. Há, durante o filme, uma conversa entre eles
sobre o assunto:
Clara: Olhe, talvez voltarei a dançar. Preciso estar ocupada.
Sancho: Ocupa-te de nós.
Clara: Sancho, por que não nos separamos? Por que não nos separamos?
(Neste momento Sancho bate no rosto de Clara)
Sancho: Enquanto eu continuar querendo você, não vai se separar de mim!
Clara: Um dia, vou perder o medo de você, Sancho. E pressinto que esse dia não
vai demorar a chegar.
Sancho: Bom, vou à cozinha, que já deve estar pronto.
Clara: E não me bata nunca mais!
Sancho: Mas me dói mais do que em você.
Clara: Então, mais ainda!
Sancho: Vá, fique aqui. Eu coloco a mesa. Perdoe-me.
Para se aproximar de Elena, Victor se inscreve como voluntário na ONG
dirigida por ela. Ele se dedica até se tornar um voluntário exemplar e de extrema
importância no local de trabalho. David descobre que Victor está trabalhando na
ONG e decide visitá-lo. Insatisfeito com a situação, ele ameaça Victor, pois não
admitirá que o homem que lhe roubou suas funções motoras, lhe roube também a
esposa, que para ele é o seu bem mais precioso. Victor, enfurecido com as ameaças
que ouve, confessa que o tiro o qual deixou David paraplégico foi disparado por
Sancho, que já sabia, na época, que David era amante de sua esposa, Clara.
Para salvar seu casamento, Elena resolve se dedicar a outra associação e
assim, manter-se afastada de Victor. O jovem fica abalado com a notícia e conta à
Elena toda a verdade que já havia confidenciado a David. Em seu desabafo, Victor
fala sobre o plano de vingança contra ela. Elena fica comovida.
61
Assim como a vingança, outro tema que reverbera nessa película
almodovariana é o desejo ligado à possessão. É esse o sentimento que dá sentido à
vida das pessoas retratadas. Victor deseja possuir Elena, aprender tudo que pode
para aproximar-se dela e ser notado por suas qualidades. Ele sente que para
concluir sua vingança é necessária uma aproximação, e para isso, reprime seu mais
profundo desejo por Elena para não ver seus planos frustrados. Ao ver que não deu
certo, Victor consegue um novo emprego e resolve se afastar de Elena. Logo
depois, ele também deixa Clara, que se tornara cada vez mais presente em sua
vida. Ela fica desesperada, mas aceita.
Em seu último dia de trabalho na ONG, Elena fica até tarde para recolher
seus pertences e acaba encontrando Victor, que descansa durante o seu turno. Ela
entra no quarto dele e começa a se despir enquanto conversa com o rapaz:
Victor: Não sabia que você estaria aqui.
Elena: Vim pegar minhas coisas do escritório.
Victor: Não vá embora. Se alguém tem de ir daqui, sou eu.
Elena: Não fale. Prometa-me que não vai me buscar. E que não voltaremos a nos
ver. Promete?
Victor: Sim, eu prometo.
Na cena seguinte, Elena se entrega a Victor. As imagens expressam um
desejo intenso, que pode ser atrelado ao conceito de “corpo sem órgãos”, de
Deleuze e Guattari (2007). Nas relações entre os personagens, nos processos do
desejo, o corpo é destituído de suas funções orgânicas para se ater ao prazer, isto
é, o que passa a povoar estes corpos é somente o desejo, e não as propriedades de
cada órgão. O corpo dos personagens passa a ser preenchido por intensidades de
prazer, gozo.
O que se compreende então pela qualidade de um Corpo sem Órgãos?
Primeiro, que este é um corpo cuja qualidade existe para além do corpo do
plano dito real, pois subverte as regras a que este está sujeitado, ainda que
o influencie e nele possa assentar-se, povoando-o de outras tantas
sensações, as quais muitas vezes escapam a um controle e a uma
ordenação. Sua qualidade é a de possibilitar a fuga da organização
62
dogmática a que a carne está presa; é o corpo que permite a
permeabilização de si para a vida. É um corpo que não é uma figura, pois
não é estanque, sempre em devir (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 98).
Quando David chega de viagem, Elena não tem intenção de esconder o
ocorrido entre ela e Victor. Ele se aproxima da esposa com a intenção de lhe
acariciar, mas Elena afirma não estar preparada. Em seguida, lhe conta a verdade
sobre o acontecido. David, revoltado, decide contar para o ex-colega policial,
Sancho, sobre o relacionamento entre sua esposa Clara e Victor, buscando
vingança. Porém Clara está na casa de Victor, à sua espera, depois que fugiu de
casa, decidida a deixar definitivamente o marido violento. Clara escreve uma carta
de despedida para Victor e a coloca dentro da Bíblia. Sancho, orientado por David,
vai até a casa de Victor com a intenção de matá-lo, mas ao encontrar a esposa no
local, a ameaça com uma arma. Clara faz o mesmo. Ela avista Victor chegando e
para salvar o amante, atira contra Sancho, que consegue ferir a esposa antes de
cair no chão.
Para o filósofo francês Gérard Lebrun, em Os Sentidos da Paixão, “(...) a
paixão nos leva à dependência de um determinado objeto. Aristóteles entendia por
paixões, tudo o que faz variar os juízos e de que se seguem sofrimento e prazer.”
(ARISTÓTELES apud LEBRUN, 1987, p. 19). No filme, Clara está entorpecida por
essa paixão aristotélica: ao se ver abandonada por Victor, o único homem que lhe
oferecia afeto, se viu perdida, sem saída e não conseguiu lidar com a rejeição.
No final da história narrada, o sentimento de vingança do personagem Victor,
sustentado ao longo de toda a trama de Carne Trêmula, se revela um sentimento de
culpa, e ao invés de, em vão, tentar reaver algo que ficou no passado, ele consegue
projetar um futuro melhor ao lado da mulher que ama, a qual ainda espera o primeiro
filho do casal.
63
4.2.3 A trilha sonora e outros recursos técnicos
Para enriquecer a temática da vingança no filme, Pedro Almodóvar utiliza
recursos que acentuam ainda mais a importância desse sentimento. Um deles é a
trilha sonora. Na cena em que Victor vê David participando dos jogos paraolímpicos
de Barcelona daquele ano (1992), Elena está na plateia comemorando a vitória do
marido na competição. Victor fica extremamente transtornado e promete se vingar
de Elena. A estrofe inicial da canção Sufre como yo, interpretada por Albert Pla,
exprime bem sua reação: “Yo quiero que tú sufras lo que yo sufro / Y aprenderé a
rezar para lograrlo / Yo quiero que te sientas tan inútil / Como un vaso sin whisky
entre las manos / Y que sientas en tu pecho / El corazón como si fuera de otro / Y
te doleira / Yo te deseo la muerte / Donde tú estés / Y aprenderé a rezar para
lograrlo / Yo quiero que tú sufras / Lo que yo sufro.” (Pla, 1995).
Após negativas e fugas, Elena e Victor cedem ao sentimento que sentem um
pelo outro. Na cena em que Elena se despe para Victor, ela pede a ele que não a
procure mais, e em troca, passa a noite com o jovem. Ele satisfaz todos os desejos
da mulher que ama. Uma paixão adormecida durante seis anos, agora chega ao seu
clímax.
Na sequência descrita percebe-se um verdadeiro ritual, pois se tratam de
cenas filmadas com tratamento fotográfico ímpar e cuidadosa direção de atores, já
ensaiados pelo diretor em filmes como De Salto Alto (1991) e Kika (1993). Essa
versatilidade no uso da câmera e na exposição dos temas demarca um avanço na
obra de Pedro Almodóvar, que mesmo baseada em tradições culturais próprias,
consegue tranceder o universo hispânico de referências e ganhar conotações
universais.
64
Figura 14: Desejo intenso na cena em que Victor e Elena se amam
Ainda no decorrer da narrativa, sabe-se que a paixão entre Elena e Victor não
cessará com o encontro descrito. Elena chora quando vê o amanhecer, mas não são
lágrimas de arrependimento, pois ao chegar a casa, em uma cena transbordante de
sensualidade, ela toma banho ainda rememorando os momentos vividos ao lado de
Victor. É preciso ressaltar que a cena transmite através de uma trilha sonora
adequada e de movimentos lascivos de Elena em contato com a água, uma
ambiência imageticamente instigante – a mesma que Almodóvar amadurece a cada
longa-metragem.
O domínio técnico do diretor se destaca em Carne Trêmula. A película se
desenvolve num ritmo contínuo e leve, sem excessos. Almodóvar compõe cenas
visualmente belas, comprovando o apuro estético das imagens. Na cena inicial do
filme, já descrita, o recurso estético utilizado é um dos mais marcantes da película.
Enquanto o parto acontece, Almodóvar opta pelo plano geral, mas logo em seguida,
a câmera vai se aproximando aos poucos dos personagens dentro do veículo.
65
Figura 15: Sequência em que Isabel dá à luz dentro do ônibus
4.2.4 A intertextualidade em Carne Trêmula
A intertextualidade é um dos recursos acionados por diretores de cinema para
prestar homenagens aos artistas inspiradores, que legaram aos cinéfilos uma gama
de obras geniais dentro da Sétima Arte.
O cinema almodovariano alimenta a intertextualidade geradora de um
hibridismo de gêneros que marca as narrativas multirreferenciadas de Almodóvar.
Para Umberto Eco em Apostillas a el Nombre de la Rosa, a intertextualidade é uma
resposta pós-moderna ao moderno: “Consiste em reconhecer que, porque o
passado não pode ser destruído (...), o que você tem que fazer é voltar a visitar, com
ironia, sem ingenuidade.” (ECO, 1984, p. 74).
Por esse motivo, é comum que, nos filmes do diretor espanhol, releituras de
grandes obras sejam trazidas à cena numa tentativa de reiventar o que já é
conhecido, mas que de fato é importante para o enriquecimento da narrativa fílmica.
Em Carne Trêmula, vê-se a cena em que a arma de Elena dispara
acidentalmente durante a briga com Victor. No televisor que se encontra ligado no
mesmo ambiente, uma cena do filme Ensaio de um crime (1955), de Luís Buñuel, é
exibida, justamente quando a personagem recebe um tiro em tal película. Com uma
66
sincronia entre os fatos, Almodóvar estabelece uma ponte que liga sua obra com a
de Buñuel.
Figura 16: Cena de Ensaio de um Crime (1955)
Figura 17: O mesmo filme em Carne Trêmula
Em Tudo Sobre Minha Mãe (1999), a personagem Manuela, vivida pela atriz
Cecilia Roth, lê em voz alta um trecho do prefácio de Música para Camaleões (Music
for Chameleons, 1980), livro de contos de Truman Capote:
Eu comecei a escrever quando eu tinha oito anos (...). Eu não sabia, então
fui acorrentado para a vida de um mestre nobre, mas impiedoso. Quando
Deus dá um dom, também dá um chicote e chicotes são apenas para
autoflagerlar-se. (CAPOTE, 1984, p. 5).
Essa foi a forma encontrada por Almodóvar para que a personagem Manuela,
mãe de Esteban (Eloy Azorín), pudesse demonstrar ao filho o apoio necessário para
que ele ingressasse na carreira de escritor.
Outra intertextualidade, agora no campo teatral, é retratada ainda em Tudo
sobre minha mãe. O espetáculo utilizado é Um bonde chamado desejo (A Streetcar
Named Desire, 1947), de Williams Tennessee. Manuela assiste à encenação junto
ao filho, e neste momento, é perceptível que a narrativa do filme irá se assemelhar
ao enredo que se desenrola no palco.
67
4.3 Má Educação
A película Má Educação (2003) traz para a filmografia de Pedro Almodóvar
uma temática cara ao seu olhar apurado para a sexualidade. Conceber uma história
na qual seus protagonistas vivem sua homossexualidade de forma perversa e
conturbada já traz contornos potentes para uma discussão sobre o que Almodóvar
tem a dizer no que tange à temática sexual.
Mas para complexificar o enredo, Má Educação também aposta no
questionamento do cânone religioso, na necessidade de enxergar as vísceras de
uma instituição social milenar que não cessou de produzir paradoxos e angariar
inimigos.
O enredo traz os personagens Ignácio (Gael García Bernal), Enrique (Fele
Martínez) e padre Manolo (Daniel Giménez Cacho) envoltos por implicações
recíprocas que afetaram a vida de cada um em momentos diferentes do filme.
Quando Ignácio chega ao escritório do diretor de cinema Enrique, e lhe propõe o
roteiro intitulado “A visita”, inicia-se a partir daí, na trama, uma tentativa de recompor
o passado dos dois personagens, que se conheceram na infância e nela viveram
uma história de afeto mútuo.
Histórias são contadas dentro da história principal que conduz o espectador
do filme. Nas incursões temporais pelas quais Almodóvar adentra em seu roteiro
está o colégio interno no qual Enrique e Ignácio estudaram e onde construíram uma
delicada relação. Tal situação será perturbada pela presença do padre Manolo,
disposto a separá-los por possuir um desejo irreprimido pelo jovem Ignácio.
Depara-se aí com um dos temas basilares da obra. A pedofilia envolvendo um
representante da Igreja faz emergir à cena uma miríade de possíveis interpretações
para tal fato. Será percebido à medida que a obra flui – e discorreremos sobre isso
adiante – um tensionamento entre o sagrado e o profano.
É nessa possibilidade de revolver tabus que mais uma vez o cinema
almodovariano se afirma como lugar de fala das minorias e campo para
questionamento do tradicional (STRAUSS, 2008). Enquanto a narrativa corre, o
68
espectador conhece facetas que o tempo trouxe aos personagens Ignácio e Enrique
– obviamente ainda envoltos por contradições que restaram do passado. É por isso
que ambos se reencontram já adultos – o entrecruzamento dos destinos dos
personagens marca esse longa almodovariano – e iniciam uma nova fase no
relacionamento, após o longo intervalo de tempo que os separou.
4.3.1 A abertura
A abertura do longa traz signos que ajudam a pensar os propósitos do
enredo. Com a trilha sonora de Alberto Iglesias em tom de suspense, surgem na tela
elementos de ordem religiosa como crucifixos, anjos e altares, mesclados a outros
elementos como corpos femininos ou partes deles.
Tem-se uma tentativa de trazer para o mesmo patamar aquilo que da ordem
etérea do sagrado antes se encontrava elevado acima de uma humanidade
mundana, mas agora se mescla à lascívia dos corpos femininos e a outros
elementos do cotidiano dos homens. Os tons de preto e vermelho que carregam a
abertura descrita ainda conotam uma possível gravidade desse encontro entre
elementos sacros e profanidades.
O espectador pode a partir de tal preâmbulo perceber sinais de uma narrativa
que tentará romper com discursos antigos para adentrar em um lugar – tipicamente
contemporâneo – de multirreferencialidades.
4.3.2 Conhecendo Zahara
A travesti Zahara se apresenta para o espectador de Má Educação em menos
de dez minutos de duração do longa metragem (a conhecemos em imagens
enquanto o personagem Enrique Goded está lendo o roteiro “A visita”) em uma cena
69
de cores fortes e gestos sensuais. Zahara se apresenta com o espetáculo “La
bomba”, em uma modesta casa de shows, segurando uma rosa e vestindo uma
cintilante roupa que imita o corpo feminino em sua sinuosidade.
A canção Quizás, quizás, quizás é interpretada por Zahara em um close up no
qual a personagem insinua seu olhar para um rapaz da plateia – transbordando
intenções em uma imagem-afecção (DELEUZE, 1983) que faz casar cores e trilha
sonora na composição de uma cena tipicamente almodovariana.
Figura 18: Zahara: devir-travesti
A singularidade de tal personagem encontra-se na polissemia que dela
emana. Se a obra de Almodóvar conta com diversos transgêneros, em Má
Educação, o que nos salta aos olhos é a capacidade de uma personagem que busca
incessantemente o seu devir-travesti conseguir usar de uma feminilidade que lhe foi
negada biologicamente, mas não deixou de se fazer presente graças ao desejo do
sujeito.
Diriam Deleuze e Guattari “(...) que cada sexo contém o outro, e deve
desenvolver em si mesmo o pólo oposto.” (1997, p. 59). É essa necessidade de
fazer dialogar os sexos que move os personagens almodovarianos. A repressão
social que os quer constranger precisa ser rechaçada com atitudes ousadas – e
nenhum lugar se torna mais propício para tanto do que o fértil campo da
sexualidade.
70
Só assim o devir-travesti se dá, ou seja, a partir de atitudes de
desabrochamento das múltiplas formas de sexualidade, sem prestar atenção aos
ditames castradores da sociedade. Os rótulos são deixados para trás e Zahara é
assim um exemplo de ruptura e continuidade.
Ruptura porque provoca a recusa ao consensual acerca do que é feminino e
masculino (o jogo de poder da sexualidade ganha novos ardis), expandindo os
limites dos gêneros. Mas ao mesmo tempo, a continuidade existe na medida em que
Zahara ainda é homem. Homem que necessita devir, para assim poder colocar em
prática os anseios de uma sexualidade sempre insatisfeita.
4.3.3 A câmera e outros aspectos técnicos
Almodóvar está apaixonado pela própria narrativa em Má Educação, pela
capacidade de criar um jogo fabular com uma lógica matemática de roteiro,
pela disposição de criar efeitos artísticos na construção dos planos e
fusões. Resultaria disso um projeto afetado e inócuo se não houvesse
paixão nessa experiência. (EDUARDO, 2004)
Em Má Educação o uso dos recursos de câmera são frequentes em diversas
formas. Muitas cenas fazem uso do recurso close up, evidenciando principalmente o
olhar dos personagens e partes de seus corpos, o que sugere a representação de
um jogo de sedução que é essencial para conceber a narrativa almodovariana.
Segundo Deleuze (1983), um filme sempre apresenta a predominância de um tipo
de imagem, prevalecendo algum tipo de montagem, como perceptiva, ativa ou
afetiva. No caso de Má Educação, existe a predominância das imagens em primeiro
plano, dando a entender que se fez uso recorrente da imagem de cunho afetivo.
Mas um filme nunca é feito com uma única espécie de imagem e ao conjunto
da variedade de imagens dá-se o nome de montagem, como visto anteriormente.
Um exemplo claro de montagem afetiva é a cena da transição da infância para a
idade adulta – dos personagens Ignácio e Henrique – com o uso do recurso close up
no rosto de ambos, mesclando faces até um se transformar no outro, finalizada a
fusão imagética em uma imagem-afecção.
71
Figura 19: Cenas de Má Educação
Outro exemplo do uso dos recursos de enquadramento e montagem em Má
Educação é a cena ocorrida na piscina da casa do personagem Enrique Goded (ver
Figura 4, p. 27). Nela, vemos a variedade que representa a imagem-movimento por
meio de um plano de conjunto – enquadrando o ambiente e os personagens –
representando a imagem-percepção; o plano médio, importando não só o
enquadramento, mas a ação virtual das coisas sobre nós e a nossa ação possível
sobre as coisas, como quando a imagem fica mais lenta no momento em que
Ignácio pula na piscina sobre a cabeça de Enrique, representando a imagem-ação; e
finalmente os close ups dos rostos e partes dos corpos em primeiro plano, provendo
significado à imagem-afecção – o que insinua boa parte da carga libidinosa que tal
sequência traz consigo.
Segundo indicação de Eisenstein citada por Deleuze (1983), cada uma
dessas imagens-movimento é um ponto de vista sobre o todo do filme, cada um dos
planos deixa de ser espacial para se tornar uma “leitura” do filme por inteiro.
72
4.3.4 A temática gay
Da explosão de temas controversos que Almodóvar traz para a tela - nem
sempre separando-os didaticamente, o que só sofistica sua produção - a temática
gay perpassa boa parte de sua obra. Em Má Educação, tem-se o ápice dessa
tendência. A temática referida está presente não só na história dos personagens
centrais, mas liga todos os outros personagens ao enredo. Não existe, sequer, um
casal heterossexual representado durante toda a trama, o que diz algo, mesmo que
superficialmente, das intenções do diretor com o longa metragem.
Ignácio e Enrique descobriram-se sexualmente ainda muito jovens, quando
estudavam em um internato católico para meninos. O desejo, no caso de ambos, foi
revelado pelo olhar, como em um jogo inocente de sedução, que acaba em uma
descoberta do prazer, resultante do encontro de dois corpos em uma relação entre
pessoas do mesmo sexo. Um amor obrigado a ter uma separação “carnal” precoce,
mas que sobrevive nos relatos do verdadeiro Ignácio em seu diário, que mais tarde
inspira o roteiro de um filme dentro do filme.
Em tal roteiro – “A visita” – marcadamente uma proposta metanarrativa na
história construída, emerge (como nos dois filmes analisados anteriormente neste
capítulo) a temática da vingança. Reconta-se aí a trajetória de Ignácio (o roteiro é
baseado em seu diário pessoal), que travestido, resolve chantagear Padre Manolo,
voltando ao internato no qual passou sua infância para conseguir dinheiro em troca
da não realização de um filme a partir das memórias contadas no roteiro.
A vingança do personagem de Ignácio contra o padre, que tantas marcas lhe
deixou de uma infância conturbada, é empreendida. Manolo vê-se em situação
periclitante e resolve, com a ajuda de um padre cúmplice, não permitir que Ignácio
saia do colégio interno. Ali mesmo, Ignácio é morto pelos dois padres rapidamente e
a vingança do travesti chega ao fim malogradamente.
Entremeando cenas das filmagens de “A visita”, dirigida pelo personagem
Enrique, com outras que narram a infância dos protagonistas de Má Educação e os
rumos tomados por eles na fase adulta, ressalta-se que se trata de um filme com
73
imbricamentos narrativos que não deixam de alinhavar-se na composição de uma
obra coesa e coerente.
Ainda no que tange à descoberta sexual e o contexto em que vivem as
crianças Ignácio e Enrique no internato espanhol da história, é sabido que em
ambos o embate entre sagrado e profano ganha contornos nítidos, já que os garotos
começam a entender o que se passa com a afetividade recíproca que sentem. Um
bom exemplo é a cena em que os dois personagens, já crescidos, conversam sobre
o desejo que sentiam um pelo outro na infância. Em imagens somos apresentados à
cena em que ambos foram ao cinema escondidos e se tocaram pela primeira vez –
momento em que o desejo emergiu e flexionou os preceitos morais para se fazer
presente: prazer e culpa se entrelaçaram em uma teia de afeições que percorreu
corpo e mente dos garotos.
Em outra sequência, Ignácio se levanta durante a noite e Enrique vai até ele
saber o que estava acontecendo. Os dois se trancam dentro do banheiro para fugir
da vigília dos padres. Há, nesse momento, entre eles, uma conversa sobre os limites
de suas crenças religiosas:
Enrique: Qual o problema?
Ignácio: Não consigo dormir.
Enrique: Eu também não.
Ignácio: O que fizemos no cinema não foi certo.
Enrique: Eu gostei.
Ignácio: Eu também. Mas acho que foi pecado e Deus vai nos castigar.
Enrique: Eu não acredito em Deus.
Ignácio: E acredita em quê?
Enrique: Sou hedonista.
Ignácio: O que é isso?
Enrique: Pessoas que gostam de se divertir. Li isso em uma enciclopédia.
Logo depois, padre Manolo aparece no banheiro à procura dos dois. Eles
sentem medo do castigo, pois apesar de não entenderem perfeitamente o que
74
sentem, sabem que é errado segundo os ditames impostos pelo contexto em que
viviam.
A complexidade da relação homossexual em sociedade, como é mostrada no
filme – Ignácio aceita ser abusado por Padre Manolo devido ao medo de ser punido
pelo sentimento que sentia por Enrique – é confirmada por Foucault (1981). A
descoberta dessa sexualidade causa inquietação e gera a indagação: como é
possível para homens estarem juntos? Viverem juntos, compartilharem seus tempos,
refeições, quartos, lazeres, aflições, saberes e confidências? O que é estar entre
homens, "despidos", fora das relações institucionais, de família, de profissão, de
companheirismo obrigatório?
O filósofo francês acredita que é importante
problematizar essas questões e não apenas buscar explicações e limitar essa
temática ao tradicionalismo social por conta de soluções enviesadas sobre a
temática.
A homossexualidade é uma ocasião histórica de reabrir virtualidades
relacionais e afetivas, não tanto pelas qualidades intrínsecas do
homossexual, mas pela posição de "enviesado", de alguma forma, as linhas
diagonais que ele pode traçar no tecido social, as quais permitem fazer
aparecerem essas virtualidades. (FOUCAULT, 1981, p 39)
A homossexualidade, segundo Foucault (1981), “não é uma forma de desejo,
mas algo de desejável” (p.38). É necessário um esforço para se enxergar como
homossexual e não se resumir, em simplesmente, se reconhecer como tal.
Outra coisa da qual é preciso desconfiar é a tendência de levar a questão
da homossexualidade para o problema "Quem sou eu? Qual o segredo do
meu desejo?" Quem sabe, seria melhor perguntar: "Quais relações podem
ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas através da
homossexualidade?" O problema não é o de descobrir em si a verdade
sobre seu sexo, mas, mais importante que isso, usar, daí em diante, de sua
sexualidade para chegar a uma multiplicidade de relações. (FOUCAULT,
1981, p.38)
Na tentativa de buscar um caminho ainda nebuloso e incerto para a
sexualidade de ambos, Ignácio e Enrique se debatem na adesão ou não a um novo
“modo de vida” que lhes transforme em sujeitos sexualmente realizados e capazes
de defender suas necessidade afetivas e relacionais – evidentemente fazem isso
75
ainda de forma parcialmente inconsciente devido a pouca idade. Tal fato nos remete
ainda à pergunta de Foucault (1981): “É possível criar um modo de vida
homossexual?” (p. 38).
Almodóvar aposta nas múltiplas formas de vida homossexual, relações que
não se fecham hermeticamente e estão sempre abertas a novas possibilidades. A
noção foucaultiana de homossexualidade casa então com a proposta do tema
elaborada em Má Educação. O filme traz para a tela uma cultura homossexual por
vias que fogem a esquemas tradicionais. Como exemplo, tem-se a relação entre
Ignácio e Enrique – entremeada por interesses de outra ordem, o que tira força da
espontaneidade de um devir expresso nessa relação – mas que não deixa de refletir
um desejo de ambos em buscar um lugar para expressão do que desejam.
Figura 20: Inácio e Henrique quando crianças
Reforça-se no longa o poder das instituições na conformação de caráter dos
indivíduos. Félix Guattari, no artigo Devir criança, malandro, bicha, aponta a
capacidade do poder de influência da sociedade, da família e de educadores –
escolas – na vida das crianças. “(...) Eles contribuem para a „função de equipamento
coletivo‟ da força de trabalho, modelando e adaptando crianças às relações de poder
dominante” (GUATTARI, 1981, p. 65). Ignácio cede aos desígnios do padre por
medo da punição que Enrique poderia receber, e com isso, sente um forte
76
sentimento de culpa por se entregar a tal ato. Quando criança, ele se deixa dominar
por seus temores e se rende a todos os desejos do padre.
Ignácio cresce um menino marcado por essa dominação que envolve um
sentimento de culpa e a necessidade de violentar valores próprios decorrente disso.
Poder-se-ia supor que daí redunda a vontade de transgressão que transformará o
garoto Ignácio em um travesti inquieto dentro da roupagem social que lhe
impuseram, disposto inclusive – na parte final da narrativa fílmica – a chantagear o
já idoso padre Manolo, para conseguir dinheiro suficiente que lhe pague uma cirurgia
de mudança de sexo.
Figura 21: Ignácio em "A Visita"
4.3.5 O contexto da obra
O projeto artístico de Almodóvar está calcado em parte sobre a necessidade
de colocar tensões em voga. A marca do cinema almodovariano é a razão sobre a
paixão (EDUARDO, 2004) que faz de Almodóvar um eterno contraventor, mas agora
não mais adepto do desbunde radical dos tempos da Movida. Amadurecido, o diretor
consegue controlar impulsos febris em prol de criações artísticas no cinema, que se
querem mais sofisticadas.
77
Antes de Má Educação, o espectador já havia sido instigado pela riqueza do
universo almodovariano com filmes afamados como Tudo sobre minha mãe (1999) e
Fale com ela (2002). Nessa fase madura da produção do diretor, nos permitimos
dizer, alguns radicalismos do pop madrilenho que nos chegaram em Pepi, Luci,
Bom... foram sublimados na tentativa de compor um discurso, agora, mais atento às
necessidades de uma nova Espanha – modernizada, mas ainda com ranços
conservadores de uma elite insistente em seus credos políticos.
A crítica de cinema da revista Veja, Isabela Boscov, aponta, em crítica sobre
o filme Má Educação, como as “Espanhas” vividas por Almodóvar em sua trajetória
de vida estão compiladas no longa-metragem aqui analisado. Segundo ela,
O padre, o travesti, o ator e o cineasta coexistem também como as
Espanhas diversas: a Espanha oprimida e reprimida do franquismo, a do
desbunde deflagrado no fim dos anos 70, o país conformista, pragmático e
ambicioso da década passada e a Espanha que o próprio Almodóvar
representa e ajudou a criar – a da efervescência e irreverência, capaz de
dar a volta por cima à ditadura de Franco, aos abusos da Igreja, aos
excessos da Movida e ao choque do ingresso na União Européia, para
ressurgir sempre com uma identidade inconfundível e um vigor renovado.
(BOSCOV, 2004, p. 102).
É preciso então frisar que na esteira de um processo de amadurecimento da
política espanhola está também em curso o adensamento do olhar do cineasta para
as realidades que o cercam. Almodóvar parece compreender melhor seus
personagens nesse cinema que Má Educação exemplifica eficientemente. O olhar
do diretor não chega a ser condescendente com os erros tipicamente humanos que
aparecem na tela grande, mas não deseja recriminar, quer apenas que (quase) tudo
esteja dado para a apreciação de um espectador minimamente sensível.
Ignácio, Enrique e Padre Manolo tem suas trajetórias de vida expostas de
forma a – como já é comum em Almodóvar – evitar julgamentos prévios e valorações
preconceituosas. Suas histórias de vida levam o espectador a conhecer as emoções
humanas com fortes matizes de paixão. Diga-se ainda, “pasión” é a palavra que
encerra o filme antes do mesmo ser desfechado como “una película de Pedro
Almodóvar”.
78
Palavra melhor não haveria para se referir à produção de um diretor que se
guia por esse sentimento para filmar (STRAUSS, 2008) e assim consegue oferecer
personagens mais humanizadas, imbuídas das contradições que o corpo humano
também permite expressar.
79
5 CONCLUSÃO
Os percalços de se pensar a sexualidade no cinema de Pedro Almodóvar
levaram ao questionamento de como acionar teorias que servissem de base para
refletir sobre a emergência de conteúdos sexuais na plástica que o cinema traz para
um espectador atento.
Sabendo que a abordagem era pautada na ideia de processo e não na de
explicações causais redutoras (o como em detrimento do por que), tentou-se ampliar
o leque de referências – transdisciplinarizar a temática – para assim obter diversos
olhares para uma questão que contemporaneamente mostra-se complexa a ponto
de não caber em definições estanques.
Como definir essa sexualidade nos filmes almodovarianos? Partindo das
orientações filosóficas de Deleuze e Guattari (2007) chegou-se a uma noção que
longe de ser o fim de uma investigação acadêmica instigante, mostrou-se ponto de
partida e norteador máximo do que viria a se dizer sobre as questões do desejo em
Almodóvar.
A sexualidade, em permanente devir, não pode ser enquadrada em uma
definição cristalizada. A força que advém dela está justamente em sua flexibilidade,
na capacidade de moldar-se a diversas formas de agir e na pluralidade de vozes que
abriga sem distinções estigmatizantes. Encontra-se nesse ponto a deixa para
relacionar essa concepção psicológico-filosófica de sexualidade como um vir-a-ser
que jamais finda, com a peculiar filmografia almodovariana.
Os personagens do cineasta espanhol desfrutam de liberdade sexual para
agir de acordo com seus anseios (sexuais ou não) e a partir deles provocam
deslocamentos no senso comum – em um processo doloroso, mas necessário, que
atualiza paradigmas nessa instabilidade que caracteriza a sexualidade humana.
Nada está dado a priori, nem imutável é – basta (somente) que se ouse ultrapassar
os limites que impõem comportamentos padronizados para uma massa de pessoas
conformadas.
80
Na tela almodovariana, vê-se o padre em contato com o travesti; o homem
que quer se fazer mulher; o homossexual vivendo as mesmas dificuldades que
qualquer ser humano, de orientação sexual semelhante ou não – o que leva a crer
que nesse cinema que foi underground em Pepi, Luci, Bom... (1980), chegando ao
paroxismo do talento com a câmera e a narrativa cinematográfica em Tudo sobre
minha mãe (1999), está calcado em sentidos diversos para sexualidades diversas.
Da absorção de uma imagem que transmite o “real” cosmético hollywoodiano
deu-se uma readaptação ao cinema espanhol contemporâneo de Pedro Almodóvar.
Amparado, segundo ele próprio já frisou (STRAUSS, 2008), na força da paixão que
move sua câmera na constituição de um cinema ambicioso no conteúdo e versátil na
forma. Narrativas intrincadas trazem personagens complexos, com comportamentos
dúbios e por vezes perversos, bem ao gosto de trajetórias de vida errantes. Errantes
como a sexualidade que se descobre diferente a cada nova oportunidade de
transgredir.
A transgressão para Almodóvar não é um ato que perpassa somente por uma
confrontação no campo político, de valorização de modos de existir distintos em
sociedade, mas de uma valorização do sentir, do desejo que move os corpos e que
transmuta cada um mediante um contato. Este encontro criador é uma colaboração
de Almodóvar a partir do cinema para se pensar a sexualidade, em devir numa
fruição rumo a novas afetações.
Frisa-se ainda que pensar a filmografia de um cineasta em atividade –
detentor de uma obra em aberto que ainda produzirá novos olhares para a
sociedade contemporânea – exige que não se conclua uma reflexão como essa, de
forma a delimitar os caminhos possíveis da sexualidade na ótica almodovariana.
Viu-se em A pele que habito (2011) que o tensionamento entre as
possibilidades do ser homem ou mulher é profícuo e as permutas que os gêneros
podem realizar entre si potencializam o caráter mutante da sexualidade humana. Tal
filme parece levar adiante um projeto do cineasta espanhol em questionar os
gêneros na busca de novas saídas para o “problema” (coloque-se nestes termos) da
sexualidade.
81
Uma nova visada no cinema de Almodóvar pode provocar revisões em uma
narrativa esboçada sobre o que sua obra reflete em termos de conteúdo sexual.
Pautar os rumos que essa temática pode vir a tomar na obra do diretor seria
desconsiderar um fator crucial: o caráter fluido e cambiante da sexualidade, que faz
dela um domínio rico dentro das múltiplas possibilidades que a imagem
cinematográfica promove.
82
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87
ANEXOS
Crítica de Má Educação, por Isabela Boscov:
Pedro, és pedra
Com Má Educação, Almodóvar reforça os alicerces da obra mais sólida do
moderno cinema europeu
Se ainda era preciso mais um sinal de que Pedro Almodóvar está entre os maiores
cineastas de qualquer tempo, ele se encontra em Má Educação (La Mala
Educación, Espanha, 2004), que estréia nesta sexta-feira no país. Quebrando uma
regra na carreira do espanhol, esse é um filme nascido de um assunto do momento:
padres que abusam sexualmente de menores. Nos anos 60, no colégio de um
povoado interiorano, Ignacio é um menino molestado pelo diretor, o padre Manolo,
contra cujos avanços ele é naturalmente indefeso. O tema cheira a denúncia e
sensacionalismo, ainda mais em vista das recentes notícias de episódios
semelhantes em todo o mundo. Sem desnaturá-lo, porém, Almodóvar o transforma
numa jornada desorientadora por sua própria biografia e pela dos demais espanhóis,
do tacão franquista aos dias de hoje. Desorientadora porque, logo de início, o diretor
já inverte os sinais desse escândalo – por mais hediondos que sejam os atos do
padre Manolo, o fato é que ele está apaixonado por Ignacio, e disposto a queimar no
inferno por esse amor. E também porque aqui há um filme dentro de outro filme, e
de outro ainda: como sempre no cinema de Almodóvar, os julgamentos têm de ficar
em suspenso até o último momento, quando todas as peças finalmente se
encaixam – e quando a idéia de julgar já perdeu o sentido. Esse talvez seja o
principal motivo por que Almodóvar se definiu como o anti-Mel Gibson, e seu filme,
como o anti-A Paixão de Cristo. E nem vale a pena entrar na questão da
competência.
No filme que se acredita estar vendo, Ignacio (Gael García Bernal) é reencontrado
no fim dos anos 70, como um transexual que, numa passagem por sua aldeia,
decide chantagear o padre Manolo (Daniel Giménez Cacho), a fim de conseguir o
dinheiro necessário para completar sua metamorfose. Esse, porém, é o filme que
Enrique (Fele Martínez), a paixão de infância de Ignacio, está rodando com base
88
num roteiro que o amigo lhe entregou, e que ele próprio estrela, rebatizado com o
nome artístico de Ángel. E por aí adiante: cada vez que a história chega a um ponto
nevrálgico, percebe-se que há outro estrato sob ela, e que ainda será preciso cavar
mais e mais até atingir sua fundação. É um roteiro magnífico, do qual Almodóvar tira
interpretações extraordinárias – com destaque absoluto para o mexicano Gael – e
que ele dirige com toda a força de um cineasta na sua plenitude pessoal e
profissional. Que Má Educação tenha sido recebido com frieza no Festival de
Cannes, em maio, leva a crer que Almodóvar tem razão quando diz que seu sucesso
passou a ser visto como uma falha imperdoável. Junto com seus três filmes
anteriores – Carne Trêmula, Tudo sobre Minha Mãe e Fale com Ela –, Má Educação
forma um dos conjuntos mais sólidos já construídos por um cineasta. E também dos
mais corajosos: embora sejam falsos os rumores de que o diretor foi assediado
pelos padres de sua escola, aqui há mais ainda de autobiográfico do que é costume
em sua obra, especialmente no que diz respeito ao preço que acompanha o prazer e
a libertação.
Não há muita dúvida, claro, de que Enrique é o alter ego de Almodóvar. Ou, mais
especificamente, seu embrião, enquanto os outros personagens correspondem a
versões hipotéticas de um Almodóvar que não tivesse seguido o caminho que se
conhece: o homossexual enrustido, que na impossibilidade de se revelar destrói
mulher, filho e amantes; o artista que se autodestrói, antes mesmo que sua criação
possa florescer; e o artista tornado oportunista. Sua paixão pelo cinema, afirma e
reitera Almodóvar, é sua salvação. Mas, sob esse viés pessoal de Má Educação, o
diretor fala de um assunto bem mais abrangente. O padre, o travesti, o ator e o
cineasta coexistem também como as Espanhas diversas: a Espanha oprimida e
reprimida do franquismo, a do desbunde deflagrado no fim dos anos 70, o país
conformista, pragmático e ambicioso da década passada e a Espanha que o próprio
Almodóvar representa e ajudou a criar – a da efervescência e irreverência, capaz de
dar a volta por cima à ditadura de Franco, aos abusos da Igreja, aos excessos da
Movida e ao choque do ingresso na União Européia, para ressurgir sempre com uma
identidade inconfundível e um vigor renovado.
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Crítica de Má Educação, por Cléber Eduardo
Pedro Almodóvar, La mala educación, Espanha, 2004
Construtor de um cinema sempre calcado na elaboração de cenas e diálogos,
modelado ao máximo pelo roteiro e na montagem, com uma herança do teatro na
disposição dos atores no espaço e na exposição da cenografia, e com um senso de
cortes responsável pela musicalidade das conversas, Almodóvar tem dado sinais de
disposição em expressar-se mais com a câmera, em dar à mise-en-scène um valor
maior, sem com isso diminuir a importância do esqueleto verbal-cênico dos filmes.
Esse desejo maior pela imagem é em Má Educação somado à obsessão pela
representação.
Nos
filmes
de
Almodóvar,
sempre
há
figuras
narradoras-encenadoras (escritores, atores, cantores, performers). Sempre se
mostra como a aparência esconde algo nela mesmo (não por trás dela). Má
Educação, tomando como ponto de partida A Lei do Desejo, eleva a aparência a
tema. E tanto a encenação como o roteiro propõe o jogo da representação dentro da
representação.
Isso explica a insistência em filmar formas-enquadramentos, como as imagens de
portas, grades, beliches, arcos de uma ponte e toda sorte de moldura para se
explicitar a lógica das janelas dentro das janelas (da narrativa dentro de narrativa). O
cineasta permanece, porém, um autor da palavra. É por meio das narrações escritas
ou faladas que se desenvolve o jogo de simulações-revelações. A primeira se dá
com a leitura do roteiro de Inácio-Angel pelo diretor Enrique. A segunda pela leitura
de um romance de Inácio por parte de Padre Manolo, trecho este contido no roteiro
escrito por Angel e lido por Enrique. A terceira pela narração falada do padre Manolo
a Enrique. Além desses três personagens, há a narração ocasional de Enrique, que
entra duas vezes como uma voz narradora, e há a narração sem voz de Almodóvar,
olhar objetivo da narrativa, que organiza os desejos e atitudes desgovernados. Esse
acúmulo de vozes e olhares inibe qualquer cobrança de rigor e coerência em relação
aos narradores. Eles se sobrepõem, se sobrepujam.
Há um corte do letreiro inicial para um cartaz com o nome de Enrique Godet. Este
corte aumenta ironicamente a proximidade entre diretor e personagem: Godet
torna-se Almodóvar. Mas, na tela, o tom confessional-autobiográfico é exorcizado.
Poucas vezes o cineasta manteve uma relação tão distante e racional, tão pouco
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emocional no tratamento estético de um roteiro. Conta-se uma história “qualquer”,
não a história pessoal de Almodóvar, como tanto se escreveu, apesar das esquinas
de percurso biográfico entre ele e os personagens (alunos de colégio de padre).
Todas as paixões são racionalizadas no esquematismo dramático e narrativo com o
qual Almodóvar vê de fora seu ponto de partida autobiográfico, É um filme da razão
sobre a paixão, sem paixão pelo seu tema, mas pelo tratamento do tema. Almodóvar
está apaixonado pela própria narrativa em Má Educação, pela capacidade de criar
um jogo fabular com uma lógica matemática de roteiro, pela disposição de criar
efeitos artísticos na construção dos planos e fusões. Resultaria disso um projeto
afetado e inócuo se não houvesse paixão nessa experiência. Há. A beleza dessa
paixão apenas desloca-se dos personagens para a forma. “Pasión” é, afinal, a
palavra estampada na tela ao fim do filme, antes de ser seqüenciada por “Una
Película de Pedro Almodóvar”.
Em geral despido de julgamentos sobre as atitudes dos personagens, mesmo as
condenadas pelo senso comum, Almodóvar revela aqui menos afeto por suas
criações humanas, mostrando-as agora com maior posicionamento dele como autor.
Seu universo dramático valoriza o lado torto de cada um, ora por causa da paixão (o
padre Manolo), ora por conta de uma funcionalidade (Juan-Angel), misturada à uma
paixão por representar. O mundo não é de confiança em Má Educação. Mas a
dignidade do cineasta está em julgar menos o padre bissexual, afinal movido por
uma grande pulsão (chora ao ouvir o menino de seus sonhos cantando), e ser mais
duro com o inventor de identidades de ocasião (Juan-Angel), que mantém-se
cerebral mesmo em sua paixão pela simulação. Um está fora de controle; o outro
tem controle sobre tudo. E o controlador Almodóvar, que tem amor sim por seus
personagens, mas sempre os trata como marionetes humanizadas, certamente se
vê em Angel-Juan (um manipulador de imagens e versões) mais até que em Enrique
Godet, o manipulador que se faz de manipulado, mas no fundo realmente o é. E
voltamos a essa questão da manipulação, quando, diante de máscaras gigantes e
sorridentes, Juan pergunta a Manolo: “do que eles riem?” Resposta: “de nós”. Na
resposta, fala a marionete, impotente diante de Deus (Almodóvar, em última
instância).
Pelos cenários multi-coloridos, os personagens, com seus figurinos de cores fortes,
desfilam suas aparências-despistes, uns manipulando os outros, outros manipulando
por se fingirem manipulados, todos sabendo mais que demonstram saber. No lugar
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da femme-fatale, aquela figura sedutora e indigna da confiança do herói, temos um
gay-fatale (Gael Garcia Bernal), cuja arma (dilha) está em, conforme a necessidade
e por paixão pela simulação, mudar de identidade. Não é a primeira vez que o noir
encontra o melodrama em Almodóvar: são dois gêneros dos quais o cineasta se
serve bem, em sua abolição de qualquer fronteira entre alta e baixa cultura – seu
universo, afinal e sobretudo, é o do imaginário B. Mas não se trata de emular
convenções do noir, e, sim, limitar-se à utilização de sua dramaturgia, adaptando as
sombras a um espaço solar não despido de sombras outras.
Cada novo filme de Pedro Almodóvar, desde a segunda metade dos anos 80, não é
só um “novo filme de Almodóvar”, mas a confirmação ou a ameaça de um projeto
artístico, um sintoma de seu progresso ou de seu declínio, a manutenção renovada
da grife ou o indício de seu desgaste – e o fim de Almodóvar, ao menos como
vitalidade artística, foi decretado ocasionalmente. Nos últimos anos, desde pelo
menos A Flor do Meu Segredo, Almodóvar ganhou status de mestre (outra espécie
de morte artística), graças sobretudo a Tudo sobre Minha Mãe e Fale com Ela, seus
chamados filmes de maturidade, nos quais coloca todas as tensões internas em
equilíbrio. Houve quem dissesse ou tenha escrito que ele não tinha mais como errar:
era só ligar o piloto automático.
No entanto, em vez de optar pelo vôo fácil, sem turbulências no percurso, Almodóvar
optou pela manobra arrojada, que, embora se sustente por um esquema rígido de
organização criativa (mais ainda), não se poupa dos riscos da empreitada. Má
Educação é um retorno do cineasta ao período de La Movida, nos anos 80, quando
a cultura do travestimento tinha status libertário – uma reação ao represamento
comportamental após quatro décadas de franquismo. Almodóvar, como artista, foi
formado nesse momento histórico e nessa cena cultural de criações e atitudes sem
limites delineados, e traz como herança até hoje, mesmo nos momentos mais
sofisticados, algo da vulgaridade do baixo pop madrilenho – o qual transformou em
arte, não sem perda de uma rebeldia sem muito freio, mas com a conquista de uma
maturidade de estilo. A arte de confecção racionalista pode, como vemos em Má
Educação, também ser uma aventura artística: talvez seja obra de teste, com seu
risco procurado no esquematismo (com ameça de esterilidade, de racionalismo
excessivo). Talvez seja ainda o exercício de uma habilidade querendo provar algo a
si mesma, querendo mostrar como pode se ter paixão no distanciamento, por mais
paradoxal que isso possa parecer.
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Crítica de Carne Trêmula, por Carlos Gerbase
RAPIDINHO
"Entregador de pizza apaixona-se por garota viciada em heroína". Esta é a frase que
a maioria dos jornais utiliza para sintetizar "Carne Trêmula", do espanhol Pedro
Almodóvar. A maioria dos jornais, como sempre, está errada. A trama principal do
filme acontece quando o entregador de pizza vira um ex-presidiário, e a viciada em
heroína vira a esposa virtuosa de um policial paraplégico. A grande virtude de
"Carne Trêmula" é justamente essa brincadeira com os destinos dos personagens,
obtida através de elipses narrativas bem radicais. O grande defeito do filme é achar
que o espectador preenche sem qualquer dificuldade esses "buracos" na história.
AGORA COM MAIS CALMA
"Ata-me" e "Mulheres à beira de um ataque de nervos" são obras de um realizador
original, popular e muito divertido. Almodóvar conquistou seu merecido lugar ao sol
com filmes que tratam de temas "fortes" com uma leveza e um humor
característicos, que viraram uma espécie de marca registrada. Ele gosta de cenários
multi-coloridos, de música melodramática e de emoções baratas. Quando essa
equação funciona bem, o público entra no barco de Almodóvar e se diverte bastante.
Mas, às vezes – e este é o caso de "Carne Trêmula" –, a salada fica um pouco
condimentada demais.
Tenho grande receio de exigir "realismo" de um filme, mesmo porque muitos filmes
simplesmente não são realistas, nem se propõem como tal, e passam muito bem,
obrigado. Prefiro utilizar o termo "verossimilhança", que, a grosso modo, significa a
capacidade que o filme deve ter de convencer o espectador de que os
acontecimentos e os personagens da história são coerentes e possíveis, dentro do
universo ficcional criado pelo realizador (que não é, necessariamente, realista).
Mesmo a mais louca fantasia futurista precisa ser verossímil, ou perde sua força
dramática. "Carne Trêmula", como todo filme de Almodóvar, tem exageros
propositais que o afastam do realismo tradicional, mas – ao contrário de suas obras
melhor sucedidas – não sustenta a coerência interna necessária para que
embarquemos plenamente na viagem proposta pelo diretor.
Exemplos? A cena do cemitério, em que duas coincidências se acumulam: o
ex-presidiário vai visitar o túmulo da mãe justamente quando acontece o enterro do
93
pai de sua amada; e, logo depois, encontra-se com uma mulher (também
personagem importante) que chega atrasada para a cerimônia (de modo a
conhecê-la sem que os demais personagens saibam disso). Tudo bem, o cinema
não vive sem coincidências, e por isso os roteiristas os adoram, mas, num filme em
que o vício da heroína e seis anos numa penitenciária não são elementos
definidores do caráter dos personagens, pelo menos o enredo precisa ter uma lógica
mais severa. Outro exemplo? Uma cena violenta entre o ex-presidiário e o policial
paraplégico, que estão quase se matando, mas param de brigar quando vêem um
gol na TV e descobrem que torcem para o mesmo time.
A tentativa de dar um verniz político ao filme, que começa em 1970, na ditadura, e
termina em 96, com democracia, também não funciona. E por isso jamais poderia
ser a grande amarração da narrativa. Talvez as relações amorosas dos cinco
personagens sejam uma grande alegoria do período franquista, mas, se a intenção
era a metáfora, essa nem o Glauber entenderia. Almodóvar certamente é um
cineasta "político", na verdadeira acepção do termo, pois suas crônicas mundanas e
despudoradas
-
sempre
autorais e
nunca
diluídas no
gosto
médio
do
público – mostram a Espanha ao mundo com uma auto-crítica aguda e corajosa.
Almodóvar, contudo, nunca será um historiador. Ele é um grande contador de
histórias.
"Carne Trêmula", apesar das fraquezas do roteiro, é um bom filme. Almodóvar dirige
atores como poucos e tem uma noção de ritmo perfeita. Às vezes, parece estar
brincando com a câmara, sem chegar ao maneirismo. O sucesso do filme, a meses
em cartaz, é uma prova de que é possível obter empatia com o público e ao mesmo
tempo inovar na narrativa. Sem ser uma obra-prima, é mais um passo de Almodóvar
em sua luta vitoriosa por um cinema essencialmente emotivo e autoral.
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Crítica de Carne Trêmula, por Inácio Araújo
"Carne Trêmula", de Almodóvar, é cinema do desejo em estado bruto”
Na trama de "Carne Trêmula" (Megapix, 0h40) os elementos são da pior espécie.
Existe ali o garoto (Liberto Rabal) que deu um tiro num policial (Javier Bardem). Este
não só ficou aleijado como joga basquete em cadeira de rodas e está casado com
Elena (Francesca Neri), Ora, Elena é a mulher por quem o garoto estava e está
apaixonado. E não é nada impossível que Elena corresponda a seus desejos. É
desse material que Pedro Almodóvar tece seus surpreendentes melodramas.
Que num momento anterior de sua carreira nos faziam rir, mas com o tempo mais e
mais se tornaram graves, com seus desejos paroxísticos, contrastes berrantes. Um
cinema do desejo em estado bruto, impuro, talvez aberrante. Porém irretocável: é
Pedro em grande momento.