MULHERES ATRAPALHADAS - O ensino de primeiras
letras na província de São Paulo: um olhar sobre a instrução
feminina (primeira metade do Oitocentos)
SILVA, Bruna de Jesus Barbosa da (USP) 1
GALVÃO, Luciana Suarez (USP) 2
MOTTA, José Flávio (USP) 3
Menina que sabe muito
É mulher atrapalhada.
Para ser mãe de família,
Saiba pouco ou saiba nada...
Versos reproduzidos por Luís Edmundo.
A Corte de D. João no Rio de Janeiro
(apud DIAS, 1984, p. 26)
Introdução
Neste artigo procedemos a um estudo da educação pública primária
na província de São Paulo e de sua expansão na primeira metade do século
XIX, dando especial atenção à instrução feminina. Iniciamos com uma breve
menção à reforma educacional pombalina e, em seguida, tomando como
marco temporal a Independência do Brasil, verificamos como a educação
pública passou a ser vista como um imperativo para a construção da nova
nação. Essa mudança de perspectiva também afetou a instrução feminina, até
então principalmente domiciliar. Não obstante, salientemos de pronto os
limites dessa alteração: a educação das meninas nas escolas tinha como
objetivo a formação de boas esposas e mães. Daí, por exemplo, a
importância das prendas domésticas como disciplina do currículo de
primeiras letras.
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (PPGHE-FFLCH/USP);
E-mail: bruna.jesus.silva@usp.br.
2
Professora Livre-Docente do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
(IEB/USP); E-mail: lsgalvao@usp.br.
3 Professor Titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração
e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP); E-mail: jflaviom@usp.br.
1
Em São Paulo, acompanhamos a atuação governamental por meio
das leis que tratavam da educação primária, e nos valemos também das
análises, ideias e opiniões apresentadas nos relatórios dos presidentes da
província paulista. Esses relatórios fundamentavam os discursos anuais
feitos pelos presidentes à Assembleia Legislativa Provincial, por ocasião da
abertura de seus trabalhos, no início de cada ano, sendo o primeiro elaborado
em 1838. Continham informações sobre assuntos pertinentes ao governo da
província, como estradas, obras públicas, força pública, administração da
justiça e instrução pública, entre outros. Essa leitura possibilitou-nos estudar
questões qualitativas referentes à educação paulista, expressas nas
informações e opiniões discursadas aos deputados. Destas fontes
documentais extraímos os mapas de alunos, que eram tabelas anexas aos
relatórios dos presidentes, os quais continham as aulas da província -em suas
diversas localidades- e os respectivos números de estudantes, informes que
nos permitiram analisar quantitativamente a oferta de cadeiras de primeiras
letras em São Paulo no decurso do período examinado. Verificamos,
outrossim, nos orçamentos aprovados pela Assembleia Legislativa, os
valores destinados à instrução pública. Adicionalmente, embora de maneira
sucinta, ocupamo-nos do Seminário da Glória, primeira instituição pública
de ensino destinado a meninas em São Paulo.
A reforma educacional do Marques de Pombal
No reinado de D. José I (1750-1777), que passou para a história
como período da governação pombalina por conta da preeminência de seu
ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo (Conde de Oeiras em 1759 e
Marquês de Pombal em 1770), os Jesuítas, por meio de um Alvará de 1759,
foram expulsos de Portugal e de seus territórios, acarretando o fechamento
das escolas mantidas pela Ordem no Brasil. Havia poucos colégios na
colônia, mas os existentes contavam com corpo docente bem preparado e
boas bibliotecas (cf. MARCÍLIO, 2005). Além disso, o sistema de ensino era
articulado e preparava os estudantes para o ingresso na Universidade de
Coimbra ou em universidades francesas (cf. VECHIA, 2005).
A partir de então, o provimento do ensino passou a ser uma função
do Estado. A reforma pombalina do ensino, de 1759, foi regulamentada em
1772, estabelecendo-se a divisão em primeiras letras, estudos secundários e
ensino superior. Também foi criado o subsídio literário, tributo cuja
arrecadação seria aplicada na instrução pública.
Aprender a ler, escrever e contar, bem como o aprendizado da
doutrina cristã, eram da alçada do ensino primário, enquanto os estudos
secundários eram formados por aulas régias, cujos conteúdos eram prérequisitos para a entrada no ensino superior. Maria Luíza Marcílio, em seu
livro História da escola em São Paulo e no Brasil, assim se expressou acerca
das referidas aulas:
Cada aula régia constituía uma unidade de ensino, com
professor único, instalada para determinada disciplina.
Era autônoma e isolada, pois não se articulava com
outras nem pertencia a escola alguma, nem mesmo a
nenhum plano geral. Não havia currículo, no sentido de
um conjunto de estudos ordenados e hierarquizados,
nem duração prefixada se condicionava ao
desenvolvimento de qualquer matéria. (MARCÍLIO,
2005, p. 21)
No Brasil foram criadas aulas régias de gramática latina, grego,
filosofia, retórica, francês, matemática elementar, trigonometria, aritmética e
geometria, entre outras, oferecidas em determinadas cidades (cf. VECHIA,
2005). Esse formato de ensino iniciado do final do século XVIII continuou
após a Independência e perdurou no decurso da maior parte do século XIX.
A educação doméstica
O número exíguo de escolas fazia com que a educação domiciliar
correspondesse a parte significativa ou até mesmo à totalidade do ensino
ofertado às crianças. Nesse sentido, é importante destacar a educação
feminina. A reforma do ensino de Pombal não contemplou as meninas, de
modo que elas não poderiam frequentar as escolas públicas. No Brasil, tal
situação apenas foi juridicamente revertida com a Constituição de 1824, que
em seu artigo 179, inciso XXXII, estendeu, ainda que de maneira implícita,
o ensino ao sexo feminino:
Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis, e políticos
dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a
segurança individual, e a propriedade, é garantida pela
Constituição do Império, pela maneira seguinte.
[...]
XXXII. A Instrução primária, e gratuita a todos os
Cidadãos. (Constituição Política do Império do Brasil.
Carta de Lei de 25 de março de 1824) 4
Entretanto, conforme observou Leda Maria Pereira Rodrigues,
torna-se uma realidad
1962, p. 71). A referida lei5
(sic) escolas de meninas nas cidades e vilas mais populosas, em que os
Presidentes em Conselho, julgarem necessário este estabelecime
(Coleção de leis do Império do Brasil. Lei de 15 de outubro de 1827).
Por outro lado, o ensino dos meninos já contava com algumas
escolas públicas, mas não era amplamente disseminado. Em São Paulo,
Maria Beatriz Nizza da Silva analisou as listas de estudantes elaboradas
pelos professores régios e concluiu que, por volta de 1818, apenas 2,5% da
população livre do sexo masculino em idade escolar da então capitania
paulista, excetuando a capital, frequentavam as aulas de primeiras letras
promovidas pelo Estado (cf. SILVA, 1984). A autora também apresentou a
lista com os anos de criação das aulas de estudos primários para meninos nas
principais vilas de São Paulo, por nós reproduzida no Quadro 1.
Além da pouca disponibilidade de aulas, a precariedade do ensino também
decorria do corpo docente mal preparado. A maior parte dos professores não
tinha formação adequada, a remuneração era baixa e geralmente não
recebiam auxílio governamental para o local das aulas muitos professores
davam aulas em suas próprias casas ou para o material didático. Dessa
forma, com as exíguas possibilidades de ensino formal, a educação recebida
em casa era muito importante para a formação das crianças. Os meninos
aprendiam as atividades profissionais do pai, além da instrução cristã com a
mãe (cf. MARCÍLIO, 2005). As meninas, por seu turno, aprendiam a
costurar e bordar, assim como outras tarefas domésticas (cf. SILVA, 1984).
Neste artigo, para a comodidade dos leitores, optamos por atualizar a ortografia de todas as
citações, mantendo a pontuação original.
5 No caput
Coleção de leis do Império do Brasil. Lei de 15 de
outubro de 1827).
4
Havia a possibilidade de contratar professores particulares de
primeiras letras, os quais cobravam mensalidades módicas e geralmente
pertenciam às categorias pobres da população, às vezes deficientes físicos ou
idosos (cf. MARCÍLIO, 2005). Nesses casos, escolas poderiam ser montadas
pelo chefe de família contratante para ensinar seus filhos, vizinhos e
parentes ou por um conjunto de pais que contratavam coletivamente um
professor (cf. FARIA FILHO, 2004). As crianças mais ricas poderiam ter um
preceptor, que nas primeiras décadas do Império geralmente era um
sacerdote secular convivendo com a família e responsável pela educação dos
menores (cf. MARCÍLIO, 2005).
Quadro 1
Criação das aulas de primeiras letras em São Paulo
Localidade
Paranaguá
Curitiba
Parnaíba
Data de
criação
1789
1800
1801
Guaratinguetá
1812
Itu
1812
Taubaté
1812
Fonte: SILVA (1984).
Localidade
Jundiaí
Iguape
Mogi das
Cruzes
Santos
Atibaia
São Carlos
Data de
criação
1812
1812
1812
Localidade
Porto Feliz
Itapetininga
São Vicente
Data de
criação
1817
1820
1821
1813
1814
1814
Jacareí
Bragança
Sorocaba
1821
1821
1821
Educação para formar um país
Identificamos, ainda no período colonial, a preocupação das
autoridades com o baixo nível educacional da população. O Morgado de
Matheus, por exemplo, governador-geral da capitania de São Paulo em 1765,
teve dificuldades em organizar a estrutura administrativa de seu governo
devido à falta de pessoas letradas, o que resultou na elaboração de um plano
de ensino enviado à metrópole e na instalação de aulas na capital paulista
(cf. MARCÍLIO, 2005).
Com a Independência, a necessidade de capital humano que
possibilitasse o desenvolvimento da nova nação tornou-se mais premente.
Entre as preocupações do Império estava a necessidade de firmar um
arcabouço jurídico-institucional que fosse respeitado por todos, criando
condições de governabilidade do novo Estado. Nesse sentido, a instrução da
população passou a ser uma condição de existência da nação (cf. FARIA
FILHO, 2004).
De fato, as questões relacionadas ao ensino foram debatidas na Assembleia
Constituinte de 1823 e foi constituída uma comissão para tratar da instrução
pública (cf. RODRIGUES, 1962). Dissolvida a Assembleia e outorgada a
Constituição de 1824, esta trouxe, como mencionamos na seção anterior
deste artigo, a garantia de instrução primária a todos os cidadãos, o que, ao
fim e ao cabo, deveria incluir os do sexo feminino.
Posteriormente, a lei de 15 de outubro de 1827 que pode ser
entendida como uma lei geral do ensino primário , estabeleceu a criação de
escolas de primeiras letras nas cidades, vilas e lugares mais populosos do
país e instituiu exames perante o Presidente de Província em Conselho para
o provimento das cadeiras primárias, além de tratar dos ordenados dos
professores. Interessante notar que, consoante o disposto no artigo 12º da lei,
Além disso, a referida lei também dispôs sobre as disciplinas a serem
ensinadas nas aulas de primeiras letras:
Artigo 6º. Os professores ensinarão a ler, escrever, as
quatro operações de aritmética, prática de quebrados,
decimais e proporções, as noções mais gerais de
geometria prática, a gramática da língua nacional, e os
princípios de moral cristã e da doutrina da religião
católica e apostólica romana, proporcionados à
compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a
Constituição do Império e a História do Brasil. (Coleção
de leis do Império do Brasil. Lei de 15 de outubro de
1827)
Para as meninas, de acordo com o artigo 12º da dita lei, o currículo
era composto de modo geral pelas mesmas disciplinas, porém excluindo as
noções de geometria, limitando a aritmética somente às quatro operações e
acrescentando o ensino das prendas domésticas.
Com o Ato Adicional de 1834, que criou as Assembleias
Legislativas e deu a elas a competência para legislar sobre a educação
primária e secundária, a política educacional do Império passou a ser
descentralizada. A expansão do ensino público, especialmente das primeiras
letras, tornou-se um desafio a ser enfrentado pelas províncias. Uma década
mais tarde, em discurso proferido por ocasião da abertura da Assembleia
Legislativa provincial em 1844, as palavras do então presidente da província
de São Paulo, Manuel Felisardo de Souza e Mello, resumiam seu
entendimento acerca do papel e da importância daquele desafio:
(...) por estarem convencidas [as Assembleias desta
província] da poderosa influência, que ela [a instrução
pública] exerce sobre o homem, tornando-o mais
sociável, dócil e menos sujeito a fantásticos prejuízos,
sendo sobremaneira indispensável ao Cidadão de um
País regido por Instruções livres, que deve por si
mesmo, sem socorro alheio, conhecer a marcha dos
negócios públicos (...). (Discurso recitado à Assembleia
Legislativa Provincial em 1844, p. 07)
O ensino em São Paulo
Daniel Pedro Müller, na Introdução ao seu
estatístico da Província de São Paulo em 1836, estabeleceu a pertinência de
um levantamento desse tipo no que respeita às escolas:
Deve-se indagar (...) se há escolas suficientes para a
Instrução Pública, essa mola real da prosperidade de um
país, que suaviza os costumes, que faz os homens mais
cordatos, mais urbanos, mais respeitadores dos direitos
alheios: se convirá a criação de mais alguns
estabelecimentos, ou alguma alteração no método de
ensino: e finalmente, quais deverão ser os públicos,
quais os particulares. (MÜLLER, 1978, p. XXIX)
Müller identificou o número de escolas e respectivos alunos em
diversas cidades e vilas de São Paulo, tanto para as escolas públicas, as quais
ele nomeia como nacionais, quanto para as escolas particulares. Os
resultados desse levantamento são por nós apresentados na Tabela 1.
Tabela 1
Ensino público de primeiras letras em 1836
Local
Bananal
Meninos
Escolas
1
Alunos
30
Meninas
Escolas
-
Alunas
-
Areias
1
16
-
-
Lorena*
1
-
-
-
Guaratinguetá*
1
-
-
-
Cunha
1
18
-
-
Taubaté
1
46
-
-
Pindamonhangaba
1
18
-
-
Paraibuna
1
23
-
-
Jacareí
1
34
-
-
Mogi das Cruzes
1
43
-
-
Santa Isabel
1
30
-
-
São Paulo
4
135
1
49
Santo Amaro
1
45
-
-
Paranaíba
1
31
-
-
Bragança
1
29
-
-
Atibaia
2
51
-
-
Jundiaí*
1
-
-
-
São Carlos (Campinas)
1
28
-
-
Mogi Mirim
1
67
-
-
Franca
1
17
-
-
Itu
1
75
1
48
Capivari
1
30
-
-
Porto Feliz
1
72
-
-
Constituição
1
55
-
-
Sorocaba
1
107
1
40
Curitiba
1
54
1
43
Paranaguá
1
56
-
-
Iguape
2
47
-
-
Santos
1
37
-
-
São Sebastião
1
90
-
-
Totais
35
1284
4
180
Fonte: MÜLLER (1978).
* Em Lorena o cargo de professor estava vago; em
Guaratinguetá não constava o número de alunos; em
Jundiaí o professor estava suspenso.
Observamos que das 39 escolas mantidas pelo governo provincial
apenas 4 eram dedicadas ao ensino feminino,6 o que representava 10,3% do
total de escolas primárias públicas. Quando consideramos o número de
alunos, o resultado é levemente mais positivo, já que as 180 meninas
correspondiam a 12,3% do total de alunos. Outro ponto interessante é a
quantidade de escolas particulares. Havia 44 instituições particulares de
ensino na província, atendendo 909 meninos,7 sendo que duas delas também
ensinavam meninas.8 O levantamento encontrou apenas uma escola
particular exclusivamente feminina, na cidade de São Paulo, com 14
educandas (cf. MÜLLER, 1978).
Sobre os estudantes, Maria Luíza Marcílio, analisando as listas de
alunos, observou a frequente presença de escravos no ensino público
masculino em São Paulo na primeira metade do século XIX. 9 Segundo a
autora, haveria nas escolas públicas um traço mais democrático, apesar da
sociedade hierarquizada inclusiva:
Consoante a lei que estabeleceu o orçamento para o ano financeiro de 01/07/1836 a
30/06/1837, a dotação dos ordenados considerava 35 professores de primeiras letras de
escolas masculinas e 6 mestras de meninas (cf. Lei n. 40, de 18 de março de 1836).
7 Cálculo feito a partir dos dados constantes de MÜLLER (1978).
8 Uma dessas duas escolas estava localizada em Paranaguá, contando com 39 meninos e 19
meninas, e a outra se situava em Ubatuba, atendendo 11 meninos e 5 meninas (cf. MÜLLER,
1978).
9
Em 1868, contudo, o novo Regulamento da Instrução Pública da Província de São Paulo, em
seu artigo 57, parágrafo 3º, proibiria os escravos de frequentarem as escolas públicas paulistas
(cf. MARCÍLIO, 2005).
6
Conviviam na mesma sala de aula filhos das famílias
mais importantes da cidade ao lado de filhos de
cidadãos livres comuns, de filhos ilegítimos, de crianças
expostas (abandonadas ao nascer), filhos de escravas;
crianças brancas, pardas e negras; ricas e pobres.
(MARCÍLIO, 2005, p. 32)
Em 1846 foi promulgada a lei provincial n. 34, que tratava da
instrução primária paulista. A lei definiu um programa básico de ensino para
as escolas, praticamente igual ao da lei geral de 1827, mas avançou ao
permitir disciplinas adicionais nas escolas com maior número de discentes.
Dessa forma, nas escolas masculinas com mais de 60 alunos, poderiam ser
adicionadas ao currículo as aulas de noções gerais de história e geografia,
especialmente do Brasil, e noções de ciências físicas aplicáveis aos usos da
vida. Já nas escolas femininas frequentadas por mais de 40 alunas, poderiam
ser incluídas noções gerais de história e geografia, além de música. 10
A lei de 1846 também estabeleceu o provimento dos cargos de
professor por concurso público feito perante o presidente da província,
juntamente com uma comissão. Adicionalmente, fixou os ordenados e tratou
das possibilidades de suspensão, remoção e demissão dos professores, além
de estabelecer que a inspeção das escolas ficaria a cargo de uma comissão
local, composta por três residentes, sendo um indicado pela província e dois
pela câmara municipal (um sacerdote).
Importante notar que a dita lei estabeleceu o comprometimento do
governo com o fornecimento dos locais para as escolas e dos recursos
materiais necessários para o seu funcionamento. No entanto, de acordo com
edifícios, e nem conseguir por meio das subscrições, continuarão as aulas a
o, Marcílio verificou em seus estudos
que não houve prédios escolares públicos na cidade de São Paulo durante o
Império (cf. MARCÍLIO, 2005).
São perceptíveis na lei n. 34 a intenção e a preocupação com a
expansão do ensino primário. Em relação aos professores, por exemplo, era
prevista a demissão do educador se, por sua culpa, a escola fosse frequentada
por menos de 12 alunos. Por outro lado, haveria uma gratificação anual a ser
paga aos docentes, de quatro mil réis por aluno que excedesse o número de
20 nas escolas masculinas, ou o de 15 no caso das escolas para meninas. O
menor número de alunas pode ser um reflexo da maior dificuldade para
10 Para
os informes apresentados neste e nos próximos parágrafos, cf. Lei n. 34, de 16 de
março de 1846.
inseri-las e mantê-las nas escolas. Assim, de modo geral, o governo valia-se
de punições e benefícios financeiros para incentivar os professores a
aumentarem o número de crianças nas aulas públicas primárias.
Outras medidas previstas na lei em questão eram o provimento das
cadeiras sem necessidade de concurso público para os alunos formados pela
escola normal, criada pela mesma lei, além da contratação de professores
provisórios, caso não houvesse candidatos aos concursos públicos. Ambas as
medidas refletiam a intenção e até mesmo a urgência de se promover os
estudos de primeiras letras na província.
Dessa forma, foi instituída em 1846 a primeira escola normal
paulista. O curso tinha duração de dois anos e era destinado apenas para
homens.11 A escola normal seria importante para propiciar a formação de
professores, o que era uma necessidade na época. Venâncio José Lisboa,
presidente da província, chamou atenção para o fato em seu relatório de
1839, segundo o qual os docentes de primeiras letras, em geral, não
possuíam habilitação para os cargos e nem sequer havia escolas para
prepará-los para o magistério (cf. EGAS, 1925). Nesse sentido, a criação da
escola normal pela lei n. 34, de 1846, refletiu a intenção governamental de
expansão e melhoria do ensino primário.
A educação feminina
A limitação das possibilidades de aprendizagem feminina refletia o
papel esperado das mulheres, no qual o conhecimento não teria muita
utilidade e era socialmente desestimulado, entendimento este perceptível nos
versos escolhidos para epígrafe de nosso artigo, constantes do livro A Corte
de D. João no Rio de Janeiro, de Luís Edmundo,12 que convém
Para ser mãe de família, / Saiba pouco o
26).
Em São Paulo, a exclusão das meninas do ensino público formal perdurou,
como vimos, até as primeiras décadas do século XIX, de modo que a
educação feminina paulista era principalmente doméstica.
A escola normal foi fechada pela primeira vez em 1867, tendo formado 40 professores
desde sua criação. Foi reaberta em 1875, sendo fechada novamente em 1878, reabrindo
definitivamente em 1880 (cf. DIAS, 2013).
12
Membro da Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 18 de maio de 1944,
Luís Edmundo (Luís Edmundo de Melo Pereira da Costa) publicou, entre vários outros livros,
o A Corte de D. João no Rio de Janeiro, em três volumes, entre 1939 e 1940 (cf. Luís
Edmundo. Perfil do acadêmico).
11
No entanto, Maria Beatriz Nizza da Silva, no seu Sistema de
casamento no Brasil colonial, levantou um ponto interessante, que foi
observado pelos viajantes entre o final do século XVIII e início do XIX, e
lhes causara surpresa: diferente das europeias, as mulheres paulistas não se
dedicavam à economia doméstica, que consistia nos conhecimentos
necessários para administrar uma casa, incluindo, além dos afazeres
domésticos, o uso da escrita e da aritmética para a gestão do domicílio. Em
São Paulo a administração da casa geralmente ficava por conta dos escravos
ou servos (cf. SILVA, 1984).
Havia a possibilidade do aprendizado por meio de professores
particulares. Analisando as listas nominativas dos habitantes
(recenseamentos manuscritos da época), Maria Luíza Marcílio encontrou
professores que viviam do ensino de primeiras letras para meninas na capital
paulista: Manoel José das Neves, solteiro, 72 anos, arrolado na lista de 1802;
Antônio Mâncio, solteiro, 82 anos, presente em 1810; e Maria Francisca,
casada, 54 anos, listada em 1818 (cf. MARCÍLIO, 2005). As famílias mais
ricas, especialmente a partir do desenvolvimento da lavoura cafeeira,
poderiam contratar preceptoras estrangeiras, principalmente francesas ou
alemãs, para instruir suas filhas (cf. MARCÍLIO, 2005). Frequentemente as
professoras estrangeiras residiam na casa da família (cf. SAFFIOTI, 1976).
Ao longo do século XIX, gradualmente, foi ocupando seu espaço a ideia de
relacionar o progresso de uma nação à educação feminina. Essa ideia foi
defendida, por exemplo, pela professora Nísia Floresta Brasileira Augusta,
influência teve sempre sobre a moralidade dos povos, e que o lugar, que ela
ocupa entre eles, é o barômetro, que indica os
(AUGUSTA, 1853, p. 12).
Ou seja, para se tornar uma grande nação o Brasil deveria levar instrução ao
sexo feminino. Afinal, as mulheres eram as responsáveis pela educação dos
filhos, de modo que precisavam ser instruídas para poderem educá-los
devidamente (cf. DUARTE, 2010). Dessa forma, o conteúdo daquilo que se
entendia por ensino de meninas estava muito relacionado ao papel de boas
esposas e mães de família. Daí se depreende a grande importância que os
trabalhos de agulha tinham nos currículos de primeiras letras direcionados às
alunas.
Nesse contexto, a maior dificuldade anteposta à aplicação da lei
geral de 1827 foi o provimento das cadeiras femininas, pois as professoras,
apesar de se sobressaírem nas prendas domésticas, não detinham os demais
conhecimentos necessários para o magistério das primeiras letras (cf.
SAFFIOTI, 1976). Para remediar o problema, uma lei provincial autorizou,
em seu artigo 2º, a contratação interina de mestras de meninas sem a
necessidade de concurso público (cf. Lei n. 9, de 24 de março de 1835).
A primeira aula feminina pública paulista iniciou-se em 1828, com a
nomeação de Benedita da Trindade e Lado de Cristo, que havia sido
aprovada no exame perante o Presidente de Província, na conformidade dos
requisitos legais (cf. RODRIGUES, 1962). A professora nomeada lecionava
pelo método individual e, embora não ensinasse os trabalhos de agulha às
meninas, sua aula foi considerada a melhor de primeiras letras da cidade de
São Paulo por uma comissão de vereadores em 1832 (cf. HILSDORF, 2001).
Benedita Cristo acompanhava a progressão de suas alunas dentro de uma
sequência de aprendizado assim descrita por Maria Lúcia Hilsdorf:
(...) ler o ABC, ler bem e escrever mal, ler e escrever
bem, aprender contas de somar, diminuir, multiplicar e
dividir, gramática, tabuadas, doutrina cristã, princípios
miudezas que por curi
(HILSDORF, 2001, p. 76)
Em 1838 foi feita uma denúncia contra a professora Benedita
tendo em vista a falta dos trabalhos manuais em sua grade curricular.
Em decorrência da denúncia, a Câmara Municipal enviou o vereador
Cônego Cura Manoel da Costa e Almeida para inspecionar a aula, o
que resultou em um parecer elogioso à professora e às disciplinas
ensinadas, justificando a ausência das prendas domésticas pela falta de
tempo (cf. RODRIGUES, 1962).
A importância dos trabalhos manuais nas aulas femininas aparecia
até mesmo nos discursos dos presidentes de província. Em seu relatório de
1840, o presidente, Manoel Machado Nunes, alegou que o ensino das
prendas domésticas era a maior falta existente nas escolas paulistas de
meninas e esperava que as mestras cumprissem a lei, dando mais atenção a
essa parte dos seus deveres (cf. Discurso recitado à Assembleia Legislativa
Provincial em 1840).
Em relação às estudantes, à diferença do que Marcílio observou para
os meninos, na lista de alunas da Sé de 1840 não havia nenhuma escrava ou
exposta; porém, à semelhança do verificado por Marcílio, conviviam
meninas da elite com outras de famílias remediadas e pobres, assim como
crianças ilegítimas (cf. MARCÍLIO, 2005).
Juntamente com Benedita da Trindade Cristo, também foram
aprovadas e nomeadas, em 1828, as seguintes professoras: Benedita Maria
de Jesus, para São Sebastião; Joaquina Rosa de Vasconcellos, para Itu;
Maria das Dores, para Santos; e Escolástica Maria de Jesus, para Taubaté
(cf. RODRIGUES, 1962).
Apesar de as aulas de primeiras letras para meninas terem iniciado em 1828,
elas não se consubstanciaram na primeira instituição pública paulista
destinada à educação feminina. Alguns anos antes, em 1825, fora
estabelecido o Seminário das Educandas.
O Seminário das Educandas de Nossa Senhora da Glória
A FUNDAÇÃO
O Seminário das Educandas de Nossa Senhora da Glória, mais tarde
chamado de Seminário do Acu quando se mudou, em inícios da década de
1830, para o prédio do antigo Hospital Real Militar, na Rua Nova do Acu ,13
e também conhecido simplesmente como Seminário das Educandas, foi uma
instituição fundada pelo primeiro presidente de província de São Paulo,
Lucas Antonio Monteiro de Barros.14 Foi inicialmente criado para receber
meninas órfãs de militares.
Em 24 de novembro de 1824, Monteiro de Barros levou ao Conselho
Provisório da Província de São Paulo a proposta de criação de um
estabelecimento de caridade, que seria instalado na Chácara da Glória. O
Conselho aceitou a proposta, criando o seminário de meninas órfãs, e
solicitou recursos para mantê-lo ao Imperador, que por sua vez aprovou a
quantia anual de seiscentos mil réis, em 08 de janeiro de 1825, de modo que
o seminário foi efetivamente instalado em 23 de abril do mesmo ano (cf.
BORGES, 1980). Ainda em 1825, foi criada uma instituição similar para
abrigar meninos órfãos, o Seminário de Santana.
A intenção das autoridades era de prover assistência e educação laica às
meninas, de modo que o seminário não viesse a se tornar um convento ou
congregação religiosa.15 A fim de garantir o devido andamento das
atividades, a instituição era regida por estatutos e inspecionada pelas
autoridades.
Para um estudo histórico do Largo do Acu, recanto da capital paulista, ver WEBER (2013).
de Barros, Visconde de Congonhas do Campo, foi presidente da província de São
Paulo de 01 de abril de 1824 a 05 de abril de 1827 (cf. EGAS, 1925).
15 No início do século XIX o governo passou a dificultar a instalação de conventos, a fim de
evitar o despovoamento, e acreditavam que as congregações deveriam ter caráter educacional
(cf. SAFFIOTI, 1976).
13
14 Monteiro
Admissão no Seminário
Para ser aceita no seminário, o responsável pela menina solicitava
seu recolhimento por meio de requerimento ao presidente da província. Este,
por sua vez, consultava a direção da instituição para saber se havia vaga.
Conforme verificado por Maria Lúcia Hilsdorf, por muitas vezes, mesmo
não havendo disponibilidade, o presidente de província autorizava a
admissão da criança, fazendo com que o seminário abrigasse mais meninas
do que sua capacidade (cf. HILSDORF, 2004).
Inicialmente, o seminário recebia educandas vinculadas à alta
oficialidade militar, mas com o decorrer do tempo as meninas acolhidas
passaram a ser oriundas predominantemente de famílias de militares de
baixa patente. Além disso, posteriormente, a instituição passou a aceitar
meninas expostas na Roda da Santa Casa (cf. HILSDORF, 2001). Também
havia a possibilidade de admissão de pensionistas no Seminário da Glória.
É ainda Hilsdorf quem nos informou alguns dos valores das
mensalidades pagas:
(...) em 1827, pagavam 3$200 mensais Dona Genebra
de Barros Leite por Maria das Dores, o Capitão
Mamede pela filha do Capitão Domingos Monteiro de
Carvalho, e o Padre Fernando Lopes de Campos pela
órfã Jesuína Maria; mas Maria do Nascimento pagava
apenas 1$280 réis e o Coronel Francisco Ignácio,
10$000 réis pelas três filhas, Margarida Eugênia,
Carolina da Conceição e Maria Carolina. (HILSDORF,
2005, p. 56)
ADMINISTRAÇÃO E RECURSOS
Além das mensalidades das pensionistas, o seminário tinha outras
fontes de recursos. Recebia anualmente a verba de Rs. 600$000 da Fazenda
Nacional, auferia parte do produto obtido nas loterias provinciais assim
como o seminário dos meninos e também recebia doações, que geralmente
eram destinadas aos dotes e enxovais das educandas (cf. HILSDORF,
2004).16
Observamos a concessão de dotes às educandas na primeira metade do século XIX; vale
mencionar, contudo, que Muriel Nazzari, por meio da análise de inventários paulistas,
verificou a decadência do costume das famílias de concederem dotes às mulheres no decorrer
do Oitocentos (cf. NAZZARI, 2001).
16
Com a criação das Assembleias Legislativas, a verba governamental
anual passou a ser despendida pela província, o que é verificado nas leis
orçamentárias paulistas. Analisando a primeira metade do século XIX,
observamos que tanto o Seminário da Glória quanto o de Santana constaram
nos orçamentos provinciais a partir de 1836, dentro do artigo que tratava das
despesas de instrução pública. Entretanto, na maior parte dos anos não houve
individualização da dotação dos seminários, de modo que o valor era orçado
conjuntamente para ambos.
O terreno do próprio seminário foi uma fonte de renda enquanto
esteve instalado na Chácara da Glória de 1825 a 1833, e novamente de 1840
a 1844. A extensa propriedade, entre os bairros do Cambuci e Ipiranga, tinha
pomares, pastos e matas que forneciam lenha, além de um rancho,
administrado por uma mulher e utilizado pelas tropas que seguiam em
direção ao Caminho do Mar (cf. HILSDORF, 2001). O estatuto de 1825
dispunha que os rendimentos auferidos com os produtos da chácara e com o
aluguel dos pastos pertenciam ao patrimônio do seminário (cf. BORGES,
1980).
No entanto, os administradores reclamavam que as mensalidades não
eram pagas em dia e que as receitas não eram suficientes para cobrir as
despesas.17 Diversos consertos e reparos eram necessários, assim como
suprimentos cotidianos eram demandados, o que denotava precariedade e
miséria (cf. HILSDORF, 2001). Por outro lado, nem sempre os gestores
agiam como funcionários do governo. Para exemplificar, Nicolau Batista
passou mais de um ano e meio sem prestar contas dos gastos da instituição
às autoridades da província e apenas o fez quando foi chamado para dar
explicações, no final de 1826 (cf. HILSDORF, 2004).
Além do administrador, que era responsável pelas finanças e pela
chácara, a gestão da instituição, especialmente em relação às educandas,
também era responsabilidade da diretora e regente, cujas competências
esperadas foram explicitadas por Wanda Rosa Borges:
Possuindo, de um lado, religiosidade virtuosíssima e, de
outro, todas as características de mulher exemplar, justa,
firme, trabalhadora, observante das leis da equidade,
benignidade e bondade, a Diretora tudo deveria fazer
para que as alunas viessem a ser perfeitas mães de
17 Os
primeiros gestores do Seminário das Educandas eram pai e filha, os portugueses Nicolau
Batista de Freitas Espínola e Eliziária Cecília Espínola (cf. HILSDORF, 2004).
família, das quais ela, antes de tudo, seria um marcante
e impecável exemplo. (BORGES, 1980, p. 46)
No estatuto posterior, de 1845, há mudanças nos cargos de gestão,
de modo que o síndico ficou com as responsabilidades financeiras, enquanto
a diretora passou a incorporar atividades burocráticas e de administração
geral do seminário (cf. BORGES, 1980).
O APRENDIZADO
A educação oferecida pelo seminário deveria compreender a
instrução primária, os trabalhos manuais, educação religiosa e a formação de
caráter (cf. BORGES, 1980). Entretanto, durante as primeiras décadas, a
escolarização das meninas não se processou a contento. Maria Lúcia
Hilsdorf apontou que as educandas aprendiam apenas a ler, tecer, engomar,
costurar e bordar, de modo que, entre 1825 e 1845, não chegaram a alcançar
um nível elementar de instrução (cf. HILSDORF, 2005).
É importante ressaltarmos que ler e não escrever não era uma
particularidade das meninas do Seminário da Glória. Sobre as possibilidades
também afetava o seminário dos meninos. De fato, conforme constava no
relatório de 1831, de Raphael Tobias de Aguiar, então presidente da
47).
O pouco aprendizado das educandas estaria relacionado à falta de
preparo de quem lhes ensinava. A Comissão da Câmara que visitou o
Seminário da Glória em 1831 observou muitos erros na escrita das meninas e
a diretora confessou que não ensinava a tabuada e as quatro operações
matemáticas porque ela mesma não sabia (cf. RODRIGUES, 1962).
A SAÍDA DAS EDUCANDAS DO SEMINÁRIO
Ao criar o seminário, a intenção do governo era dar assistência
e educação leiga às meninas órfãs para que elas tivessem condições de
voltar à sociedade. Assim, as educandas deveriam deixar o seminário quando
se tornassem adultas, mesmo porque havia a necessidade de receber novas
meninas órfãs. No entanto, era preciso garantir sua subsistência fora da
instituição, fosse por meio do casamento ou do exercício de uma profissão.
As possibilidades profissionais para mulheres na época eram
exíguas. Como o seminário era uma das poucas instituições educacionais
femininas na província, apesar das deficiências do ensino ofertado às
meninas, passou-se a considerar o magistério para a profissionalização das
educandas. O relatório do presidente de província, Manoel Felisardo de
Souza e Mello, de 1844, cogitava o aproveitamento das educandas como
professoras de primeiras letras, o que seria benéfico para o seminário e para
a província, pois havia grande dificuldade para o provimento das cadeiras
femininas (cf. Discurso recitado a Assembleia Legislativa Provincial em
1844).
Assim, a fim de profissionalizar as educandas para o magistério, foi
criada, por lei de fevereiro de 1847, uma escola normal a segunda da
província, sendo a primeira datada de 1846 e destinada apenas para homens
que seria instalada junto ao Seminário da Glória (cf. Lei n. 5, de 16 de
fevereiro de 1847). No entanto, a escola nunca funcionou.
Muitas educandas tornaram-se mestras de primeiras letras das
escolas públicas, apesar da falta de adequada formação para o exercício do
magistério. Isso acontecia porque, tanto para homens quanto para mulheres,
não se exigia formação específica para a docência. Os candidatos apenas
deveriam ser aprovados nos exames, conforme estabelecido pela lei geral de
1827 e pela lei provincial de 1846.
Sobre a possibilidade da carreira do magistério para as educandas,
Wanda Rosa Borges caracterizou com justeza essa situação:
O que houve, realmente, foi o aproveitamento de alunas
que, apresentando um mínimo de desenvolvimento,
eram julgadas aptas à profissionalização. Aliás, ser
mestre de primeiras letras era a única alternativa que se
apresentava à mulher alfabetizada, solteira, sem terras
para gerir e à procura de um meio de vida decente (...).
(BORGES, 1980, p. 71)
Tendo em vista essas dificuldades de profissionalização, o
casamento era o meio mais utilizado para a desvinculação das educandas em
relação ao seminário. Entretanto, arranjar matrimônios para as órfãs não era
tarefa fácil. No relatório do presidente José Cesário de Miranda Ribeiro, de
07 de janeiro de 1836, foi mencionada a possibilidade de dar terras para
aqueles que se casassem com as educandas, para que tivessem meios de
sustentar a família, e assim abrir vagas para o acolhimento de novas órfãs
(cf. EGAS, 1925). E no relatório apresentado à Assembleia Legislativa em
1838, o presidente Gavião Peixoto explicitava, entre suas realizações, os
matrimônios de educandas:
Discurso à
Assembleia Legislativa Provincial em 1838, p. 04).
No entanto, o matrimônio nem sempre se mostrava como uma saída
segura, como apontado pelo presidente da província em 1842, Miguel de
Souza Mello e Alvim, pois havia homens que se casaram com as órfãs para
receber o pequeno dote oferecido e depois abandonaram as moças (cf.
Discurso recitado à Assembleia Legislativa Provincial em 1842). Borges,
em sua análise, considerou que a falta de aceitação social em relação às órfãs
dificultava sua saída do seminário (cf. BORGES, 1980).
A expansão da educação paulista
Com o intuito de quantificar os gastos com o ensino de primeiras
letras, realizamos um estudo das leis orçamentárias de 1836 a 1850. É
importante ressaltar que os orçamentos possuíam caráter autorizativo,
tratando de previsões de dispêndios e não de valores efetivamente realizados.
No entanto, optamos por utilizá-los, pois não encontramos os balanços onde
estariam explicitados tais valores. Assim, em nossos comentários, estamos
de fato nos referindo às intenções do legislador provincial no que respeita
aos ditos gastos.
De início, salientemos que, em relação às primeiras letras, as
despesas orçadas no artigo de instrução pública correspondiam
principalmente à remuneração dos professores. No entanto, devido à forma
como as despesas eram apresentadas, na maior parte dos anos não foi
possível individualizar os vencimentos recebidos exclusivamente pelos
docentes do ensino primário, já que os ordenados e gratificações dos
professores de primeiras letras apareciam, em diversas leis, junto com os dos
mestres de ensino secundário, além de incluir, para alguns anos, os utensílios
e consertos das escolas. Dessa forma, para obtermos uma série maior e
contínua, computamos esses valores agregados e os transcrevemos no
Quadro 2.18 Para se ter uma ideia dos recursos destinados exclusivamente
para a remuneração dos professores de primeiras letras, obtivemos esse
18 Havia
ainda outros itens na composição da verba destinada à instrução pública. Entretanto,
como não eram relacionados ao ensino primário, optamos por não os incluir no Quadro 2.
informe para alguns anos específicos: sabemos que, em 1836, eles
correspondiam a pouco menos da metade (48,7%) da cifra apresentada para
esse ano no Quadro 2; em 1840, representavam 81,5%; e equivaliam a
69,8% em 1850.
No que concerne aos gastos com utensílios e às despesas com
consertos das aulas, seu valor é relativamente baixo e constante, se
comparado com os valores destinados aos ordenados, o que corrobora a ideia
do baixo investimento em infraestrutura das escolas e dos poucos gastos com
material didático durante o Império. Nos anos em que estão
individualizados, comumente consta o valor de um conto de réis, tendo
alcançado o máximo de quatro contos de réis em 1840 e o mínimo de Rs.
300$000 em 1836. Além disso, nas despesas previstas com a instrução
pública, não houve menção a gastos com aquisição ou aluguel de edifícios
para as aulas. Por conseguinte, podemos considerar que o aumento das
despesas com a instrução era reflexo, quase exclusivamente, do aumento do
dispêndio com salários.
Os valores dos ordenados, por sua vez, eram legalmente
determinados. O decreto geral de 07 de agosto de 1832 definiu os salários
anuais dos professores e mestras de primeiras letras de São Paulo da seguinte
forma: Rs. 480$000 para as aulas na capital, Rs. 400$000 nas vilas beiramar, Rs. 360$000 nas demais vilas e Rs. 240$000 nas freguesias (cf.
Coleção das leis do Império do Brasil de 1832). Posteriormente, uma lei
provincial de 1846 estabeleceu os seguintes ordenados anuais para o
magistério primário: para os professores que lecionassem nas cidades os
valores seriam de Rs. 400$000 a Rs. 500$000, nas vilas de Rs. 300$000 a
Rs. 400$000 e nas demais povoações de Rs. 250$000 a Rs. 300$000 (cf. Lei
n. 34, de 16 de março de 1846).
Quadro 2
Orçamento dos ordenados dos professores a
Ano b
1836
1837
1838
1839
1840
Ordenados
28:800$000
30:000$000
28:000$000
30:456$666
31:166$000
Ano b
1841
1843
1844
1845
1846
Ordenados
31:536$000
31:536$000
39:956$660
35:000$000
44:289$998
Ano b
1847
1848
1849
1850
Ordenados
45:850$000
51:296$660
67:746$340
53:082$658
Fonte: Leis orçamentárias paulistas. Observações: a) os valores incluem os salários e gratificações dos
professores primários e secundários, além das despesas com utensílios e consertos das escolas; b) não há
orçamento para 1842 e ficou estabelecido para o ano de 1843 o mesmo orçamento de 1841 (cf. Lei n. 2, de
23 de janeiro de 1843).
Localizamos no Arquivo do Estado de São Paulo uma tabela com os
valores efetivamente pagos aos docentes da província no ano financeiro de
01.07.1831 a 30.06.1832 (cf. Documento Avulso do AESP). A partir dessa
fonte manuscrita, e nos atendo aos dados nela apresentados correspondentes
aos professores de primeiras letras, elaboramos a Tabela 2. Comparando os
informes dessa tabela com a legislação posterior, percebemos que, para
diversas cadeiras, os ordenados referentes ao ano financeiro considerado
estavam em conformidade com os valores contemplados pelo decreto de
07.08.1832 e pela lei n. 34, de 1846.
Tabela 2
Ordenados pagos aos mestres de primeiras letras no exercício financeiro de
1831-1832
Localidade
Santa Efigênia
Sé
São Paulo (feminino)
Iguape
Sorocaba
Itu
São Carlos (Campinas)
Porto Feliz
Guaratinguetá
Mogi das Cruzes
Bragança
Sorocaba (feminino)
Taubaté (feminino)
Paranaguá
Santo Amaro
Atibaia
Taubaté
Jacareí
Conceição dos Guarulhos
Campo Largo
São Bernardo
Santa Isabel
Cunha
São Sebastião
Jundiaí
Ordenado (em réis)
450$652
413$967
413$967
381$657
337$989
337$989
319$646
319$646
301$304
301$304
301$304
301$304
301$304
266$077
263$119
244$972
244$972
244$972
225$326
225$326
225$326
225$326
211$304
206$948
174$000
Constituição
Santos
Nova do Príncipe
Mogi Mirim
Santos (feminino)
Itapetininga
Pindamonhangaba
Nazaré
Total
160$646
144$972
131$086
125$000
125$000
94$972
84$000
37$934
8:143$311
Fonte: Documento Avulso do AESP. Arquivo do Estado de São Paulo.
Como não temos a memória de cálculo dos salários subjacente à
fonte em tela e não localizamos os informes correlatos referentes aos demais
anos financeiros para comparação, não nos foi possível identificar se os
vencimentos mais baixos correspondiam a um período de trabalho menor do
que um ano, se houve descontos, ou se realmente eram o pagamento
correspondente a um ano inteiro. Feitas essas ressalvas, podemos considerar
para o período, especialmente a partir do decreto de 1832, uma relativa
estabilidade de remuneração no magistério de primeiras letras na província
de São Paulo.
Dessa forma, sendo possível considerar estáveis os salários
individuais, é plausível concluirmos que o aumento orçamentário é resultado
da contratação de novos professores. De fato, tendo por base o levantamento
feito por Müller em 1836 e analisando os mapas de alunos anexos aos
relatórios de presidente de província entre 1840 e 1850, 19 verificamos o
aumento das cadeiras de primeiras letras em São Paulo. No Gráfico 1,
corroboramos nossa conclusão ao relacionarmos o quantitativo de aulas com
os valores orçados anteriormente apresentados no Quadro 2:
Os relatórios anteriores a 1840 não trazem mapas de alunos, de modo que não foi possível
obter as informações.
19
Gráfico 1
Orçamento de ordenados e número de cadeiras de primeiras letras
Fonte: Leis orçamentárias paulistas e mapas de alunos.
Na Tabela 3, evidenciamos o grande crescimento das cadeiras de
primeiras letras ofertadas pelo governo provincial. Esse aumento,
evidentemente, contemplava uma expansão geográfica do ensino, com a
criação de aulas em localidades da província que ainda não tinham escolas
públicas.
Assim, em relação às escolas em exercício (cadeiras providas),
houve um aumento de 189,5% entre 1836 e 1850. Percebemos com nitidez a
dificuldade em obter professores, pois o total de cadeiras da província
(providas mais vagas) cresceu 297,4%. Também houve aumento
significativo em relação aos alunos atendidos, representando um acréscimo
de 125,7% no período. Em relação ao quantitativo de estudantes, é
importante salientar que os dados da tabela não revelam fielmente o número
de alunos das escolas públicas de primeiras letras da província. Isto porque o
mapa era elaborado com as informações enviadas por cada professor, mas
alguns mestres não prestavam contas ao governo. Dessa forma, há lacunas
nos mapas, que podem ser consideradas significativas em alguns anos. Em
suma, o número apresentado de alunos pode não refletir exatamente a
situação de fato. Isso é mais grave nas cadeiras masculinas, nas quais
verificamos um número significativo de lacunas em alguns mapas. No caso
das aulas femininas a falta de informações era bem menos frequente, de
modo que podemos considerar os dados mais próximos da realidade.20
Tabela 3
Cadeiras de primeiras letras na Província de São Paulo
Ano Cadeiras providas Cadeiras vagas Total de cadeiras Total de alunos
1836
1840
1841
1842
1843
1844
1845
1846
1847
1848
1849
1850
38
53
60
65
62
70
80
94
82
90
95
110
1
24
17
13
19
27
25
14
65
60
55
45
39
77
77
78
81
97
105
108
147
150
150
155
1464
2458
2717
2912
2623
2668
2490
2651
2416
1252
1734
3305
Fonte: Mapas de alunos da província de São Paulo e MÜLLER (1978).
Os informes da Tabela 3 são novamente tabulados na Tabela 4, desta
feita segmentados de acordo com o gênero. Em relação às cadeiras providas,
houve um aumento de 123,5% nas masculinas e 750,0% nas femininas. Este
acréscimo extraordinário das cadeiras providas de meninas é sem dúvida
notável, porém se deveu à quase inexistência de escolas públicas femininas
no início do período analisado: eram apenas quatro as aulas em toda a
província em 1836. Em termos absolutos, o aumento no número de cadeiras
providas foi de 42 (masculinas) e 30 (femininas).
Não podemos descartar, decerto, a possibilidade de o docente ter informado para o governo
um número de estudantes equivocado; todavia, não há como mitigarmos esse risco, de modo
que consideramos as informações prestadas como verdadeiras.
20
Considerando as ressalvas já feitas sobre os mapas de alunos,
calculamos que o número de estudantes do sexo masculino quase dobrou no
período, enquanto o número de alunas quase quintuplicou. Devido às
cadeiras vagas no final do intervalo temporal considerado, notamos ainda
haver um grande potencial de crescimento no número de estudantes de
primeiras letras na província paulista.
Tabela 4
Cadeiras de primeiras letras e número de alunos, por sexo
Ano
1836
1840
1841
1842
1843
1844
1845
1846
1847
1848
1849
1850
Cadeiras Masculinas
Providas Vagas
Total
34
46
52
56
53
61
67
77
65
61
63
76
1
22
16
13
19
20
18
10
28
34
32
25
35
68
68
69
72
81
85
87
93
95
95
101
Alunos
1284
2226
2385
2603
2278
2378
2109
2344
1988
984
1294
2452
Cadeiras Femininas
Providas Vagas Total
4
7
8
9
9
9
13
17
17
29
32
34
0
2
1
0
0
7
7
4
37
26
23
20
4
9
9
9
9
16
20
21
54
55
55
54
Alunas
180
232
332
309
345
290
381
307
428
268
440
853
Fonte: Mapas de alunos da Província de São Paulo e MÜLLER (1978).
Dessa forma, repisemos, o aumento dos gastos previstos com
salários que representavam quase a totalidade das despesas orçadas para o
ensino de primeiras letras era reflexo, em sua maior parte, do provimento
de novas aulas. Ou seja, apesar de a situação da instrução primária ser
frequentemente considerada insatisfatória pelos presidentes de província, é
inegável que houve uma expansão da educação de primeiras letras em São
Paulo, especialmente a partir de meados da década de 1840. Adicionalmente,
como havia dificuldade em encontrar professores aptos ao magistério, o que
era corroborado pelo número de aulas vagas, é possível sugerir, outrossim,
existir um potencial de crescimento da instrução primária na província nos
anos seguintes, na medida em que as cadeiras vagas fossem preenchidas.
Considerações finais
A educação, aí considerados alunos de ambos os gêneros, passa por
uma mudança de mentalidade no decurso da primeira metade do século XIX.
Em São Paulo é perceptível o esforço governamental com vistas a expandir e
melhorar a qualidade do ensino, o que esbarrava em diversas dificuldades.
Nesse sentido, disseminar a instrução pública era um grande desafio, uma
vez que anteriormente à Independência havia pouquíssimas aulas para
meninos e as primeiras cadeiras destinadas às meninas foram providas já no
Império, em 1828.
Observamos, principalmente a partir de meados da década de 1840,
uma aceleração na criação de aulas de primeiras letras, tanto masculinas
quanto femininas. As despesas previstas nos orçamentos acompanharam o
provimento das cadeiras, corroborando a atuação governamental no sentido
de expansão da educação. Entretanto, a qualidade do ensino não era
adequada, principalmente devido à falta de preparo dos professores o que
era ainda mais grave nas escolas femininas , além da carência de material
didático e infraestrutura.
Especificamente em relação à educação feminina paulista é
importante destacar que, apesar do viés de formação de boas mães de
família, o que pode ser evidenciado pela importância dada à disciplina de
prendas domésticas, houve pela primeira vez o acesso de meninas à
instrução formal. Nesse sentido, também ressaltamos o papel do Seminário
de Educandas de Nossa Senhora da Glória no acolhimento e educação, ainda
que precários, de meninas órfãs.
Em suma, verificamos ter havido uma expansão do ensino público
de primeiras letras até meados do século XIX. Em 1850, ademais, havia
diversas cadeiras vagas cujo provimento nos anos seguintes poderia garantir
a manutenção desse movimento de expansão.
Fontes e referências bibliográficas
BRASIL. Ato Adicional à Constituição do Império do Brasil, de 1834. Lei n.
16,
de
12
de
agosto
de
1834.
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SÃO PAULO. Documento Avulso do AESP. Arquivo do Estado de São Paulo.
Tabela 3 de 10/09/1833. C01572, caixa 3, pasta 2, documento 73D.
SÃO PAULO. Discurso que o presidente da província de São Paulo dirigiu a
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SÃO PAULO. Discurso com que o ilustríssimo e excelentíssimo doutor
Vicente Pires da Mota, presidente da província de São Paulo, abriu a
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SÃO PAULO. Discurso com que o ilustríssimo e excelentíssimo doutor
Vicente Pires da Mota, presidente da província de São Paulo, abriu a
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Disponível em <<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/984/index.html>>. Acesso em: 14
dez 2018.
SÃO PAULO. Relatório apresentado a Assembleia Legislativa Provincial de
São Paulo pelo Ex.mo presidente da mesma província, Manuel da Fonseca
Lima e Silva, no dia 7 de janeiro de 1845. São Paulo: Typografia de Silva
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SÃO PAULO. Relatório apresentado a Assembleia Legislativa Provincial de
São Paulo pelo Ex.mo presidente da mesma província, Manuel da Fonseca
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