UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
INSTITUTO DE ARTES
BACHARELADO EM MÚSICA - HABILITAÇÃO EM VIOLÃO
A SEMIÓTICA NA PERFORMANCE VIOLONÍSTICA: ANÁLISE DA
OBRA USHER-WALTZ OP. 29, DE NIKITA KOSHKIN
HELOISA GERVAZONI CARBONERA
SÃO PAULO
2018
HELOISA GERVAZONI CARBONERA
A SEMIÓTICA NA PERFORMANCE VIOLONÍSTICA: ANÁLISE DA
OBRA USHER-WALTZ OP. 29, DE NIKITA KOSHKIN
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” para a obtenção do título de
Bacharel em Música.
Orientador: Prof. Dr. Maurício Funcia de Bonis
SÃO PAULO
2018
1
Agradecimentos
Aos meus pais, Edna e Luiz Cláudio, pela existência e pelo apoio infindável; por
mostrarem que sonhos, quando realistas, são possíveis, não com pouco esforço;
ao Marcelo, pela competição amigável que, por vezes inconscientemente, me
impulsiona;
à Joanna que me fez uma enorme gentileza: me ajudou a perder o medo do inglês
formal;
à Karina, pela paciência e pela colaboração descomedida após um hiato de contato
que, garanto, nunca estremecerá a amizade: serei eternamente grata;
aos amigos de infância e de São Paulo que ofereceram colo, conforto e carinho (e,
às vezes, pás): nos momentos difíceis e solitários recorri a vocês; contem comigo;
e a Maurício de Bonis e Luciano Morais: sem confiança, disponibilidade e incentivo,
menos esperança eu teria.
2
Resumo
No encontro de áreas de pesquisas próximas porém distintas, como a
musicologia e a performance, nos propusemos a analisar a peça de Nikita Koshkin,
Usher-Waltz. A maneira que encontramos para tanto se deu partir da associação de
análises musicais e de elementos extramusicais, presentes no conto que deu origem
à composição, A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe.
Dessa forma, investigamos os aspectos biográficos dos autores, de forma a
possibilitar a compreensão dos processos criativos que os guiaram, e realizamos a
análise das obras separadamente: para a peça, utilizamos bibliografias da área da
música, enquanto que, para o conto, da literatura.
Então, pudemos compará-las e observar paralelos entre elas, explicados em
parte pela semiótica, em autores como Peirce (2010), Santaella (1985) e Zampronha
(1990). Finalmente, sugerimos, embasados em nossa pesquisa, aspectos musicais
que podem ser assumidos na interpretação musical com o objetivo de imprimir, na
performance, as análises extramusicais provenientes não apenas do conto de Poe
como também de sua relação com a Usher-Waltz.
Palavras-chave: Nikita Koshkin; Usher-Waltz; Edgar Allan Poe; A Queda da
Casa de Usher; violão; interpretação musical.
3
Abstract
At the meeting of two research areas, close but different, as Musicology and
Performance are, we proposed to analyze the Nikita Koshkin piece, Usher-Waltz.
The way we found to do so occurred from the association of musical analysis and
reviews of extramusical elements in the short story that gave rise to the composition,
Edgar Allan Poe’s The Fall of the House of Usher.
Thus, we investigated the biographical aspects of both authors, making the
understanding of the creative method that guided them possible, and we performed
an analysis of the piece and of the short story separately: for the piece, we used
bibliography found at the musical area, while for the short story, found in literature.
Then, we could compare them and observe parallels between them, explained
partially by semiotics, in authors such as Peirce (2010), Santaella (1985) and
Zampronha (1990). Finally, we suggest, based on our research, musical aspects that
might be accepted on musical interpretation with the objective of instilling, in the
performance, the extramusical analysis originated not only from Poe’s short story but
also from it’s relationship with Usher-Waltz.
Key words: Nikita Koshkin; Usher-Waltz; Edgar Allan Poe; The Fall of The
House of Usher; guitar; musical interpretation.
4
Índice de Figuras e Tabelas
Figura 1 - compasso 163…………………………………………...…………………..p. 24
Figura 2 - compassos 1-5……………………...………...……………………………..p. 26
Figura 3 - compassos 6-13……………..……….……..……………………………….p. 27
Figura 4 - compassos 18-22…….……………….….………………………………….p. 28
Figura 5 - compassos 23-32………………………..…………………………………..p. 29
Figura 6 - compassos 32-39……………………....…………………………..……….p. 30
Figura 7 - compassos 40-47……………………….……………………..…………….p. 30
Figura 8 - compassos 48-52……………………….……………..…………………….p. 31
Figura 9 - compassos 53-56……………………….……..…………………………….p. 32
Figura 10 - compassos 57-60…………………….…………………………………….p. 32
Figura 11 - compassos 61-64……………….………………………………………….p. 33
Figura 12 - compassos 65-72………….……………………………………………….p. 33
Figura 13 - compassos 73-81…….…………………………………………………….p. 34
Figura 14 - compassos 82-89…………………………………………………………..p. 35
Figura 15 - compassos 90-97…………………………………………………….…….p. 36
Figura 16 - compassos 98-106……………………………………………..………….p. 37
Figura 17 - compasso 107……………………………………………..……………….p. 38
Figura 18 - compassos 108-111…………………………….…………………………p. 38
Figura 19 - compassos 112-120………………………....…………………………….p. 39
Figura 20 - compassos 120-128…………………....………………………………….p. 40
Figura 21 - compassos 129-132………………….…...……………………………….p. 40
Figura 22 - compassos 133-141………………....…………………………………….p. 41
Figura 23 - compassos 142-144……………….………………………………………p. 41
Figura 24 - compassos 145-152…………….…………………………………………p. 42
Figura 25 - compassos 153-159………….……………………………………………p. 43
Figura 26 - compassos 160-173……….………………………………………………p. 44
Figura 27 - compassos 180-189…….…………………………………………………p. 44
Figura 28 - compassos 190-193….……………………………………………………p. 45
Figura 29 - compassos 194-197…………………………………………………….…p. 45
Figura 30 - compassos 203-205………………………………………………….……p. 46
5
Figura 31 - compassos 206-211……………………………………………….………p. 46
Figura 32 - compassos 212-218……………………………………………….………p. 47
Figura 33 - compassos 224-233…………………………………………….…………p. 47
Figura 34 - compassos 241-248………………………………………….……………p. 48
Figura 35 - compassos 249-256……………………………………….………………p. 48
Figura 36 - compassos 263-271…………………………………….…………………p. 49
Figura 37 - compassos 284-293………………………………….……………………p. 50
Figura 38 - compassos 294-312……………………………….………………………p. 50
Figura 39 - compassos 313-322…………………………….…………………………p. 51
Figura 40 - compassos 330-336………………………….……………………………p. 51
Figura 41 - compassos 345-358……………………….………………………………p. 52
Figura 42 - compassos 1-5……………………………………………………………..p. 69
Figura 43 - compasso 6…………………………………………………………...……p. 70
Figura 44 - compasso 7……………………………………………...…………………p. 70
Figura 45 - compasso 6………………………………...………………………………p. 71
Figura 46 - compassos 7-11……………………………………………………………p. 71
Figura 47 - compassos 14-18……..……………………………………………………p. 71
Figura 48 - compassos 73-75……………………………………………………..……p. 72
Figura 49 - compassos 145-148……………………………………………….………p. 72
Figura 50 - compassos 142-144…………………………………………………….…p. 73
Figura 51 - compassos 153-154………………………………………………….……p. 73
Figura 52 - compassos 6-9 em comparação com compassos 14-17……………...p. 78
Figura 53 - compassos 19-21………………………………………..…………………p. 78
Figura 54 - compassos 32-33………………………………..…………………………p. 78
Figura 55 - compassos 73-74………………………..…………………………………p. 79
Figura 56 - compasso 82……………………….………………………………………p. 79
Figura 57 - compassos 153-159…….…………………………………………………p. 80
Figura 58 - compassos 160-163….……………………………………………………p. 80
Figura 59 - compassos 1-2 em comparação com compasso 107………………….p. 81
Figura 60 - compassos 82-85….…………………………………………………….…p. 84
Figura 61 - compassos 90-93….……………………………………………………….p. 85
Figura 62 - compassos 86-87 em comparação com compassos 94-95…………..p. 85
6
Figura 63 - compassos 133-135….……………………………………………………p. 85
Figura 64 - compassos 137-141….……………………………………………………p. 85
Figura 65 - compassos 171-172….……………………………………………………p. 86
Figura 66 - compassos 189-193….……………………………………………………p. 86
Figura 67 - compassos 194-197….……………………………………………………p. 87
Figura 68 - compassos 204-210….……………………………………………………p. 87
Tabela 1 - comparação dos dados de seccionamento entre a análise de Ko (2006) e
o presente trabalho………………………………………………………………...p. 52-53
7
Sumário
INTRODUÇÃO
10
1. PRIMEIRA PARTE - COMPOSITOR E OBRA MUSICAL:
13
NIKITA KOSHKIN E USHER-WALTZ
1.1 ASPECTOS BIOGRÁFICOS DE NIKITA KOSHKIN
13
13
1.2. ASPECTOS GERAIS: USHER-WALTZ
22
1.2.1 COMENTÁRIOS DO COMPOSITOR
22
1.2.2 ANÁLISE DA PEÇA: ASPECTOS HARMÔNICOS, FORMAIS E MOTÍVICOS
25
1.2.2.1 Seção introdutória da peça
26
1.2.2.2 Seção A
27
1.2.2.3 Seção B + A’
29
1.2.2.4 Seção C
35
1.2.2.5 Seção D - (repetição variada da introdução)
38
1.2.2.6 Seção E + A’’
42
1.2.2.7 Seção F
45
1.2.2.8 Seção G
49
1.2.2.9 Coda
51
1.2.2.10 Resumo da análise formal de Usher-Waltz
52
2. SEGUNDA PARTE - AUTOR E LITERATURA:
54
EDGAR ALLAN POE E A QUEDA DA CASA DE USHER
2.1 ASPECTOS BIOGRÁFICOS DE EDGAR ALLAN POE
54
54
2.2 ANÁLISE DO CONTO A QUEDA DA CASA DE USHER
58
3. TERCEIRA PARTE - RELAÇÕES ENTRE AS OBRAS:
67
REFERÊNCIAS DO CONTO EM USHER-WALTZ
3.1 RELAÇÃO ENTRE AS OBRAS NO QUE SE REFERE À ESTRUTURA
67
67
3.2 RELAÇÕES PRELIMINARES: INTRODUÇÃO DOS MATERIAIS
68
3.3 A COINCIDENTE RELAÇÃO ENTRE O NÚMERO DE APRESENTAÇÕES
MOTÍVICAS NA PEÇA E A DUPLICIDADE DE SENTIDO DO TERMO “CASA DE
USHER”
70
3.3.1 USHER-WALTZ
70
3.3.1.1 Primeira apresentação do motivo
71
3.3.1.2 Segunda apresentação do motivo
71
3.3.1.3 Terceira apresentação do motivo
72
3.3.1.4 Quarta apresentação do motivo
72
3.3.1.5 Quinta apresentação do motivo
73
3.3.2 A QUEDA DA CASA DE USHER
73
3.3.2.1 Primeira afirmação de duplicidade de sentido
74
3.3.2.2 Segunda afirmação de duplicidade de sentido
74
3.3.2.3 Terceira afirmação de duplicidade de sentido
74
8
3.3.2.4 Quarta afirmação de duplicidade de sentido
75
3.3.2.5 Quinta afirmação de duplicidade de sentido
75
3.3.3 RESPECTIVAS RELAÇÕES ENTRE AS OBRAS DE NIKITA KOSHKIN E DE
EDGAR ALLAN POE
76
3.3.3.1 Primeira apresentação do tema nas obras
76
3.3.3.2 Segunda apresentação do tema nas obras
76
3.3.3.3 Terceira apresentação do tema nas obras
78
3.3.3.4 Quarta apresentação do tema nas obras
79
3.3.3.5 Quinta apresentação do tema nas obras
80
3.4 REFERÊNCIA ENTRE AS OBRAS: CISÃO ESTRUTURAL
81
3.5 RELAÇÕES ENTRE INSTRUMENTAÇÃO DA OBRA E CARACTERÍSTICAS DO
PROTAGONISTA
82
3.6 RELAÇÃO ENTRE A PROGRESSIVA ASSUMPÇÃO DE IRRACIONALIDADE DO
NARRADOR NO CONTO E O AFASTAMENTO DA REGIÃO TONAL EM DIREÇÃO AOS
ACORDES EM PARALELISMO EM USHER-WALTZ
83
4. PROPOSTAS INTERPRETATIVAS
89
CONSIDERAÇÕES FINAIS
93
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Anexo 1
95
97
Anexo 2
101
Anexo 3
105
9
INTRODUÇÃO
O presente trabalho foi estruturado intencionando a realização de uma
extensa análise que, para além dos trabalhos a nível de graduação da área de
performance que utilizam de uma ferramenta em específico mas que se mantêm em
ignorância quanto a outras possibilidades extramusicais, fosse capacitada para lidar
com adversidades de interpretação no que se tratasse da comunhão entre duas
linguagens, por vezes externas uma à outra. Uma vez apontado o objeto de
pesquisa, foi possível a busca de uma ferramenta analítica que possibilitasse as
comparações entre as obras Usher-Waltz, para violão, de Nikita Koshkin e A Queda
da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe, conto sobre o qual a primeira foi vinculada.
A ferramenta que nos possibilitaria, com maior completude, tais associações,
além da própria musicologia, se demonstrou ser a semiótica, em conexão à música.
Zampronha (1990), sobre nossa condição humana de ser social, afirma que
somos mediados por uma rede, uma pluralidade de
linguagens: gráficos, sinais, setas, sons musicais e não
musicais. Silêncios, ruídos, luzes, números, gestos, olhares.
O homem cria, produz, trans-forma, in-forma, con-forma,
comunica, através de uma rede plural de linguagens. Porque
somos
seres
de
linguagem.
E, à medida que nos
submetemos às regras da linguagem, integramo-nos numa
comunidade linguística e … social (ZAMPRONHA, 1990, p.
130).
A este fator, ainda declara que “a linguagem musical é relacional”, ou seja,
que seu sentido “surge então da relação em que se inscreve”, recusando o
argumento de que a música seja, de fato, simbólica e a colocando no espectro de
qualidade pura, não conceituando nem descrevendo, a
despeito das tentativas da escola romântica do XIX, ela é na
sua essência icônica. Ou seja, a música é um conjunto de
elementos que se esclarecem por si, mediante um sistema
10
de relações sucessivas entre os signos, que são a explicação
recíproca uns dos outros (idem, 1990, p. 132).
Esta abordagem, mesmo que não tão aprofundada na aplicação da análise
semiótica em sua extensividade, possibilita uma compreensão da arte musical para
além dos contrastes harmônicos, texturais, formais e dinâmicos, por apontar sentido
nas relações entre significado e significante quando almejarmos a comparação entre
obras musicais e não musicais. Assim, podemos criticar Ko (2006) no que se refere
à associação enigmática de leitmotiv, sobre a qual insere a interpretação de que o
motivo principal da obra é uma associação direta ao protagonista enquanto sua
exposição transposta à subdominante se refere à irmã Madeline, em oposição ao
que defendemos neste trabalho.
A divisão deste trabalho, em quatro partes, se dá da seguinte forma: a
primeira se refere ao compositor e à peça Usher-Waltz, cuja bibliografia de
Papandreou (2016) nos permitiu o acesso à biografia de Nikita Koshkin, enquanto os
conceitos de Schoenberg (1969; 1970) e Diether de la Motte (1994) nos elucidaram
quanto às dúvidas em análises harmônicas. No entremeio destes subitens, achamos
pertinente a validação de alguns argumentos sobre a peça na visão do próprio
compositor e, para tanto, nos apoiamos em entrevistas em material impresso e
audiovisual, citadas no texto.
Em seguida, a segunda parte trata da mesma visão seccionada entre
biografia e obra, desta vez sobre Edgar Allan Poe e o conto A Queda da Casa de
Usher. A principal referência utilizada à biografia do autor é do livro The Poe Log: A
Documentary Life of Edgar Allan Poe, 1809-1849, enquanto que à análise do conto,
em edição publicada em 2008 e traduzida por José Paulo Paes, atribuiu-se
bibliografia de pesquisadores como Santaella (1985) e Spitzer (1984, apud
MATTOS, 2001). Além disso, trazemos esporadicamente o viés de da psicologia,
dada por Gomes (2017), em seu trabalho sobre as Evidências da Mãe Morta na vida
e obra de Edgar Allan Poe.
A penúltima, denominada terceira parte, que trata das relações entre as
obras, utiliza, ao mesmo tempo, os resultados das análises de todos os
pesquisadores mencionados nas partes anteriores, visto que é resultado dessa
11
pesquisa preliminar. A relação entre Poe e Koshkin é explanada por meio da
apresentação do trecho do conto em comparação ao trecho correspondente na
Usher-Waltz, dada a assimilação, pelo breve estudo dos signos, de que são
linguagens diferentes e que à música, de caráter relacional e consequentemente
móvel, não se pode atribuir um sentido estrito e inflexível. Compreendemos,
também, que a decodificação de um signo, mesmo que regido pela terceiridade
como lei geral (PEIRCE, 2010, p. 50), só pode existir a partir da existência da tríade
do raciocínio e, posteriormente, da lógica, o que sugere que toda relação entre
signos e objetos são fundamentados em uma visão individual e, por vezes, unilateral
de tais aspectos. Assim, o que se registra na terceira parte de relações entre as
obras e, posteriormente, se sugere como proposta interpretativa ao leitor são, via de
regra, a visão deste trabalho, de forma a entender que outra pesquisa pode gerar
outros resultados e que, no campo das artes há muitos ganhos com a multiplicidade
de perspectivas.
Finalmente, a quarta parte do trabalho se refere às propostas resultantes das
pesquisas preliminares e das relações observadas e argumentadas entre as obras.
Neste ponto, muito se sugere como realização, referente às dimensões de
ferramentas e técnicas musicais, como realização exagerada ou contida de ritenutos,
fermatas, ou até mesmo cisões sonoras (pausas), além da utilização de staccatos,
mesmo em notas em que não aparecem indicações nas edições da partitura, e das
sugestões sobre trechos que podem ser colocados como primeiro plano, de forma
que seja assimilada a unidade da peça.
Nos anexos, acrescentamos a partitura em sua edição alemã, publicada em
1993, bem como a transcrição da entrevista de 2017 de Nikita Koshkin ao portal
online Tonebase, dados em inglês e em nossa tradução.
12
1. PRIMEIRA PARTE - COMPOSITOR E OBRA MUSICAL:
NIKITA KOSHKIN E USHER-WALTZ
1.1 ASPECTOS BIOGRÁFICOS DE NIKITA KOSHKIN
De acordo com Papandreou (2014), “Nikita Arnoldovich Koshkin nasceu em
Moscou, no dia 28 de fevereiro de 1956” (p. 30, tradução nossa)1. Seu avô materno,
descendente do escritor Ivan Turgenev, havia sido exilado devido à Revolução de
Outubro de 1917, e foi na Sibéria que conheceu a esposa e nasceu Ludmila, mãe de
Koshkin. O tio-avô de Koshkin, Sergey Petrovich Turgenev, foi um renomado
arquiteto, e influenciou intensamente a vida do compositor desde a infância: era mais
considerado como “avô” por Nikita e seu irmão Alexander que o próprio, que havia
abandonado a família. “O retorno dos avós de Nikita a Moscou foi permitido antes da
Segunda Guerra Mundial, e assim o fizeram: forçados, de início, a viver a 101
quilômetros da capital, eventualmente se mudaram para o subúrbio de Perovo
(distrito a 12 quilômetros da Praça Vermelha, região central da cidade de Moscou).
Ali, Ludmila e Arnold se conheceram e se casaram, e Nikita Koshkin nasceu
(PAPANDREOU, 2014, p. 30-31).
Seu pai estudou no Instituto de Aviação de Moscou e trabalhou como militar
durante toda a vida. E, sobre sua mãe, os dados mencionados se resumem à
referência a sua voz, que tinha características nítidas do bel canto, mas que não foi
desenvolvida devido à falta de estudo profissional. Nikita foi batizado em segredo, já
que tal sacramento era praticamente proibido na União Soviética, e seus pais (que
não ficaram sabendo - a ação foi tomada pela avó sem consultá-los) eram membros
do Partido Comunista, do qual seriam expulsos se alguém soubesse do ocorrido
(PAPANDREOU, 2014, p. 30-31).
Seu irmão, Alexander, desenvolveu precocemente as habilidades como
pintor. Encorajado e apoiado pelos pais, obteve uma carreira sólida e se tornou uma
influência para Nikita, observada na temática de suas composições. Aos quatro anos
“Nikita Arnoldovich Koshkin was born in Moscow on 28 February 1956” (PAPANDREOU, 2017, p.
30).
1
13
de idade, teve seu primeiro contato com A Sagração da Primavera, de Igor
Stravinsky. Aqui, Papandreou transcreve uma de suas entrevistas, de 8 de fevereiro
de 2013, que demonstra o grande impacto que tal feito teve:
Eu estava sentado com minha boca aberta, ouvindo à
música, e quando acabou eu disse “coloque de novo, por
favor”. Eles jantavam e eu ouvia Stravinsky repetidamente
durante a noite toda. Eles ficaram tão surpresos; pensaram
que eu era novo demais para tanto, mas eu estava tão
impressionado e dizia que a música era inacreditável, então,
naquele momento, eles pensaram que eu deveria ter algum
talento musical (PAPANDREOU, 2014, p. 31, tradução
nossa)2.
Assim, sua família tentou fazer com que fosse admitido numa escola de
música, mas foi rejeitado aos seis anos, porque
a banca da prova de admissão julgou que ele não possuía
uma boa percepção de alturas, tinha indiferente memória
musical e nenhuma de ritmo! Sendo tão novo, ele não foi
capaz de entender o que queriam que fizesse. A professora
tocou uma nota no piano e pediu que cantasse, mas o garoto
não entendeu que ela queria a nota em particular, então
cantou o que veio à mente. Da mesma forma, quando
pediram para repetir um padrão rítmico que foi tocado, ele
simplesmente improvisou algo diferente [...]. Portanto, seus
pais desistiram da ideia de que ele era musicalmente dotado
e pensaram que seria melhor se ele seguisse a carreira de
diplomata (afinal, isso asseveraria uma vida abastada
financeiramente) (PAPANDREOU, 2014, p. 31-32, tradução
nossa)3.
“I was sitting with my mouth open, listening to his music and when it was over I said ‘Put it again,
please’. They were having dinner and I was listening to Stravinsky again and again the whole evening.
They were so surprised; they thought that I was too little for that, but I was so impressed and said that
it is unbelievable music so, that moment, they thought that I should have some musical talent” (idem,
2017, p. 31).
3
“... the entrance exam jury adjudicated that he did not possess a good sense of pitch, had an
indifferent musical memory and no rhythm! Being so young, he was not able to understand what they
wanted from him. The professor played a not at the keyboard and asked him to sing, but the little boy
did not understand that she wanted that particular note so he sang whatever came to mind. Likewise,
2
14
Assim se iniciou seu contato com outros idiomas, já que as aulas eram
ministradas em russo e inglês. Teve contato também com a literatura, em prosa e
poesia, e seu gosto pela literatura, que se mantém desde então, frequentemente se
transformou em inspiração para suas composições, como é o caso do objeto deste
trabalho: a Usher-Waltz e o conto The Fall of the House of Usher.
Começou a estudar música de maneira autodidata:
quando adolescente, seu único interesse musical era por
rock, que era popular e intrigante para os jovens daquele
tempo devido à origem ocidental (eles cantavam em inglês)
e, embora não fosse proibido, também não era considerado
lícito. Parte de uma banda de quatro garotos, Nikita tocava
bateria no começo, por ser mais fácil e porque não precisava
ler partituras. Como baterista não era ruim [e, como afirmou
em entrevista], “pelo menos o ritmo estava bom, ao contrário
do que disseram na escola básica de música!”. Eles
ensaiavam no Palácio dos Jovens Pioneiros
(similar a
escoteiros) onde, de forma que eles pudessem usar a bateria
e as guitarras elétricas, eram obrigados a participar da
orquestra de instrumentos populares” (PAPANDREOU, 2014,
p. 32, tradução nossa)4.
Nesta banda, eram tocadas músicas de bandas como Led Zeppelin e The
Rolling Stones, mas “eles não gostavam de The Beatles, visto que não eram
ruidosos o suficiente” (PAPANDREOU, 2014, p. 32, tradução nossa)5. Koshkin, se
interessando pela guitarra elétrica, começou a estudá-la de maneira autodidata no
when they asked him to repeat a rhythmic pattern that they played for him, he just improvised
something else. Therefore, his parents gave up the idea that he was musically gifted and thought that
it would be best for him to follow a diplomatic career (since this would assure him a wealthy living)”.
(PAPANDREOU, 2014, p. 31-32).
4
“When he was a teenager, his only musical interest was in rock, which was very popular and
intriguing for youngsters of that era because it was of Western origin (they sang in English) and
although it was not actually forbidden, it was neither considered ‘legal’. Part of a group of four boys,
Nikita played drums at the beginning as it was easier and, also, because he did not have to read
music. As a drummer, he was not bad, ‘at least the rhythm was good, unlike they said in the
elementary music school! They rehearsed in the Palace of Pioneers (similar to boy scouts) where, in
order to let them use the drums and the electric guitars, they obliged them to participate in the folk
instruments’ orchestra” (PAPANDREOU, 2014, p. 32).
5
“Nikita’s band played music by groups such as Led Zeppelin and The Rolling Stones (they did not
like The Beatles, as they were not noisy enough!) during celebrations” (PAPANDREOU, 2014, p. 32).
15
início de 1970, e quis, depois, iniciar estudos formais, que começou no ano seguinte.
A escola de música em que ingressou oferecia apenas o curso de violão clássico,
com o qual Nikita ficou impressionado:
Ele prontamente anunciou à família que queria se tornar
músico, decisão que todos reprovaram, uma vez que esta
não era considerada uma profissão rentável [...]. Devido à
insistência de Nikita, pediram ao seu ‘avô’ [aqui a menção é
a Sergey Petrovich Turgenev, citado acima] que tentasse
fazê-lo mudar de ideia. Entretanto, visto que Sergey era o
único que nunca tinha desistido da ideia de que seu neto
adolescente tinha talento musical [...], não apenas ele não
tentou dissuadi-lo mas, ao contrário, o presenteou com seu
violão antigo (até então Nikita tocava em instrumentos
emprestados) e uma gravação em LP de Andrés Segovia.
(PAPANDREOU, 2014, p. 32-33, tradução nossa)6.
Dessa forma, Koshkin teve contato com obras de Villa-Lobos e de Matteo
Carcassi. Foi quando iniciou suas composições: o Andantino deste último
compositor, que Koshkin julgou uma ótima peça porém muito curta, “ele desenvolveu
em doze variações (que não o eram na realidade, já que à época ele não tinha ideia
de como uma variação deveria ser composta; ele apenas prolongou o material, coisa
que atualmente considera tolice)”7 (PAPANDREOU, 2014, p. 33, tradução nossa).
Tendo mostrado seu trabalho ao seu professor de violão, recebeu e seguiu o
conselho de compor suas próprias peças “ao invés de desfigurar a música de outros
compositores” (idem, 2014, p. 33, tradução nossa)8.
“He soon announced to his family that he wanted to become a musician, which was something that
they all disapproved of, since it was not considered a profitable profession [...]. Nikita insisted, so they
asked his ‘grandfather’ to try to change his mind. However, since Sergey was the only one who had
never given up the idea that his teenager grandson had musical talent [...], not only he did not try to
dissuade him but, on the contrary he gifted him his old guitar (until then Nikita was playing on
borrowed instruments), along with an LP record of Andrés Segovia” (PAPANDREOU, 2014, p. 32-33).
7
“He took the Andantino from Matteo Carcassi (which he thought was a very nice piece but too short)
and developed it with twelve variations (which were not really such, since he had no idea how a
variation should be done; he just prolonged the material, something that he now considers silly)”.
(PAPANDREOU, 2014, p.33).
8
“[...] if he wants to compose, he should compose his own music instead of distorting other
composers’ music” (PAPANDREOU, 2014, p. 33).
6
16
Sua primeira composição, de nome “Spanish Dance”, está na tonalidade de lá
menor, mas apresenta a nota sol♯ na armadura de clave, o que demonstra que
seus estudos ainda estavam no início. Ainda, sua composição se deu longe do
instrumento, e o trabalho de escrita durou três dias. Sua tentativa em tocá-la depois
foi uma surpresa; nas palavras do próprio Nikita,
Eu escrevi e então não era capaz de tocar! Então fui
obrigado a estudar mais o violão, a fim de poder tocar o que
havia pensado. Dessa forma, desde o princípio aprendi que
compor é uma coisa e tocar é outra (PAPANDREOU, 2014,
p. 34, tradução nossa)9.
O curso de música iniciado em 1971, que tinha duração de cinco anos, Nikita
terminou-o em dois; afinal, se não o fizesse, não poderia ingressar na faculdade aos
17 anos e seria obrigado a servir o exército. Então, em 1973, ingressou na Escola de
Música Revolução de Outubro, hoje conhecida como Instituto Alfred Schnittke, que
foi quando compôs a peça que o fez famoso: Os brinquedos do príncipe (1974),
inspirado por uma pintura homônima de Giorgio de Chirico. No mesmo ano,
conheceu o violonista Vladimir Mikulka, com quem desenvolveu uma longa amizade
de colaboração mútua (PAPANDREOU, 2014, p. 34-35).
“Koshkin apresentou oficialmente seu primeiro recital de violão no ano de
1976” (PAPANDREOU, 2014, p. 36, tradução nossa)10, e se graduou no ano
seguinte, tendo participado tanto das aulas de instrumento, que eram suas
obrigatoriedades, quanto das aulas de composição, mesmo não sendo discente do
departamento teórico. Koshkin também estudou regência, onde aprendeu mais
sobre interpretação do que nas próprias aulas de violão. Em entrevista a Chris
Kilvington, o compositor comenta que
O violão pode pertencer à tradição de instrumentos como a
balalaika e domra [instrumentos populares russos], e nossos
performers
desses
instrumentos
são
ótimos
mas
é
“I wrote it and then I was not able to play it! So I was obliged to practise the guitar more in order to be
able to play the ideas I had in my mind. And this way from the very beginning I learned that composing
is one thing and playing is another” (PAPANDREOU, 2014, p. 34).
10
“Koshkin gave his first official guitar concert in 1976” (PAPANDREOU, 2014, p. 36).
9
17
necessário frequentar outros cursos. Certamente, nem todo
violonista se tornará regente, mas assim se ensina como
trabalhar com música sem encostar em um instrumento. Isto
é muito importante. [...] Regência realmente ajuda a pensar
propriamente como solista (KOSHKIN apud KILVINGTON,
1993, p. 52, tradução nossa)11.
“Em 1978, Koshkin compôs outra peça que também foi marco do início de sua
fama internacional: ‘The Fall of Birds (Andante quasi Passacaglia e Toccata)’”12
(PAPANDREOU, 2014, p.36, tradução nossa), que originalmente era apenas
toccata. Vladimir Mikulka, violonista para quem Nikita compôs a peça, queria
estreá-la com uma introdução lenta, que colocou no programa se esquecendo de
comentar com o compositor até poucas semanas antes do concerto. Assim, Koshkin
escreveu a primeira parte da obra em dois dias e noites, sem dormir, e o violonista
teve apenas duas semanas para aprendê-la.
Em meio ao seu contato intenso com Mikulka, com quem afirma ter aprendido
mais que com seus professores, afinal pôde ver de perto a rotina de estudos deste.
De acordo com Papandreou (2014), “aprendeu a tocar sem ruídos desnecessários;
mudou sua posição de mão, lixou suas unhas mais curtas a fim de produzir o som
com unha e a polpa [do dedo] e, mais importante, aprendeu a sustentar a melodia”
(p. 37, tradução nossa).13 Outras influências que Mikulka teve em Koshkin abrangem
o incentivo para este último finalizar sua composição de Os brinquedos do príncipe,
bem como a organização de entrevistas em jornais, revistas e até mesmo na
televisão. Além disso, o violonista levou e estreou as obras de Nikita Koshkin na
França, visibilidade que o fez “ser considerado como um dos mais importantes
compositores de obras para violão do século XX” (idem, 2014, p. 38, tradução
“the guitar can belong in the tradition of instruments such as the balalaika and domra, and our
players of these instruments are excellent, but it is necessary to follow other courses. Certainly, not
every guitarist will become a conductor, but you are teaching how to work with music without touching
an instrument. This is very important. [...] Conducting really helps you to think properly as a soloist”
(KILVINGTON, 1993, p. 52).
12
“In 1978, Koshkin wrote another important piece that also marked the beginning of his international
fame: ‘The Fall of Birds (Andante quasi Passacaglia e Toccata)’” (PAPANDREOU, 2014, p. 36).
13
“[...] he learned to to play without making unnecessary noise; he changed his hand position, filed his
fingernails short in order to produce the sound both with nail and flesh and, most importantly, he
learned to sustain a melody” (PAPANDREOU, 2014, p. 37).
11
18
nossa)14, reconhecimento tal que, em 1981, o próprio Segovia já conhecia e elogiava
sua obra.
Koshkin participou também de um projeto colaborativo entre compositores
que demorou dezessete anos para ser completado: iniciou-se com um acordo entre
este e Štěpán Rak:
cada um escreveria um tema e o outro comporia variações
sobre ele. Então, Rak fez o mesmo [acordo] com o amigo em
comum, John Duarte, e Koshkin se propôs a encerrar o ciclo,
repetindo o mesmo com Duarte e, eventualmente, haveria
seis peças que poderiam ser tocadas todas juntas em um
concerto (PAPANDREOU, 2014, p. 38, tradução nossa)15.
Koshkin, entre os anos de 1978 e 1980, intercalava as aulas de solfejo e
harmonia com suas próprias responsabilidades como professor. Assim, se preparava
para ser admitido no Gnessin Institute, hoje conhecido como Russian Academy of
Music, onde o curso de violão tinha acabado de ser aberto. Nikita passou em
primeiro lugar (no segundo ano de testes de admissão, já que no primeiro ano
nenhum violonista passou), com nota suficiente para entrar no curso de mais difícil
ingresso, e frequentou as aulas entre os anos de 1980 e 1985 com um professor
com quem não teve uma relação muito produtiva por defender soluções técnicas (e
consequentemente musicais) com as quais Koshkin não concordava. Além disso, o
docente negligenciava suas obrigações, faltando às aulas e ouvindo seus alunos
apenas nas provas finais, sem ao menos saber do repertório que seria tocado
(PAPANDREOU, 2014, p. 40).
Segundo Papandreou (2014), não tendo se arrependido de entrar no Gnessin
Institute devido à vasta experiência adquirida (principalmente em música de câmara,
performance, regência e composição), Koshkin:
“‘The Prince’s Toys’ prèmiered on 24 October 1980 in the Grand Auditorium de Radio France, Paris
and, after that occasion, Koshkin began to be considered as one of the most important guitar
composers of the twentieth century” (idem, 2014, p. 38).
15
“[...] each one would write a theme and the other would compose variations on it. Then Rak did the
same with their mutual friend, John Duarte and Koshkin proposed to close the circle repeating the
same with Duarte and eventually have six pieces that could be played all together in one concert”
(PAPANDREOU, 2014, p. 38).
14
19
aprendeu muito em suas outras aulas: teoria, orquestra,
regência e música de câmara. O violão era novidade à
época, e quando alguém precisava de um violonista, sempre
o procuravam [...]. Koshkin sempre aceitava todas as
propostas [que recebia], ao contrário de seus colegas, que
preferiam apenas tocar como solistas16 (PAPANDREOU,
2017, p. 40, tradução nossa).
“Entre os anos de 1983 e 1994, Koshkin foi o principal professor de violão na
Escola Revolução de Outubro” (PAPANDREOU, 2014, p. 41, p. 37, tradução nossa)
17
tendo composto neste período (mais especificamente em 1984) sua obra mais
conhecida, “Usher-Waltz”, tema deste trabalho, tocada e gravada pelo violonista
John Williams. No mesmo ano, sua filha nasceu e suas mudanças constantes de
residência resultaram na perda de muitas de suas partituras.
Devido a questões políticas (a então União Soviética, comunista, estava em
plena Guerra Fria), o compositor foi proibido de viajar ao exterior e, “não podendo se
desenvolver suficientemente como violonista e atualizar seu repertório, então
começou a tocar apenas seus próprios trabalhos” (PAPANDREOU, 2014, p. 42,
tradução nossa)18. Entretanto, foi escolhido como solista no “The Moscow Concert”
no ano de 1987, que proporcionou a ele a oportunidade de realizar um tour pela
União Soviética. Em um período de quatro anos, pôde “ganhar a vida tocando [...]
vinte concertos em vinte dias em vinte diferentes cidades” (idem, 2014, p. 43, p. 37,
tradução nossa)19, até a falência do ‘Moscow Concert’. Logo que a fronteira soviética
foi aberta, Koshkin pôde aceitar o convite de tocar em Amsterdam, tendo sido
prestigiado por seus amigos Mikulka e Chris Kilvington.
“Moreover, he learned much in the other classes: theory, orchestra, conducting and chamber music.
Guitar was a novelty at the time, and when anyone needed a guitarist they sought him in the Gnesin
Institute. Koshkin always accepted every such offer, unlike his fellow students who preferred to only
play solo [...]” (idem, 2014, p. 40).
17
“From 1983 to 1994, Koshkin was the main guitar teacher at the October Revolution College [...]”
(idem, 2014, p. 41).
18
“Due to the ban imposed on him in terms of travelling abroad and, having no contact with the rest of
the world, Koshkin could not develop enough as a player and update his repertoire, so he started
playing only his own works” (PAPANDREOU, 2014, p. 42).
19
“During those years, he could make his living from playing and [...] he might have twenty concerts in
twenty days in twenty different cities and then he had enough money to live for half a year” (idem,
2014, p. 43).
16
20
Seguida à sua estreia em Amsterdam, embarcou em
numerosas tours em países como França, Alemanha,
Inglaterra, República Tcheca, Polônia, África do Sul, China e
México. participou de vários festivais de violão e foi jurado
em vários concursos internacionais (PAPANDREOU, 2014,
p. 44, tradução nossa)20.
Em 1997, foi pela primeira vez aos Estados Unidos, onde participou “como
artista convidado e jurado no prestigioso festival realizado pelo The Guitar
Foundation of America (GFA), para o qual foi convidado novamente em 1999”21
(PAPANDREOU, 2014, p. 44, tradução nossa). Seu último concerto, na África do
Sul, foi em 2000, e depois disso desistiu do instrumento devido ao problema,
descoberto inicialmente em 1994, de distonia focal. Assim, Koshkin decidiu se
dedicar apenas à composição, escolha tal que “tornou o repertório violonístico muito
mais abundante”22 (idem, 2014, p. 45, tradução nossa). Desde então, “a composição
vem sendo a principal ocupação de Koshkin, enquanto ainda dá aulas de violão na
‘State Classical Academy’, em Moscou”23 (idem, 2014, p. 47, tradução nossa). Sua
preocupação no que concerne aos seus alunos se exprime nas obras compostas por
Koshkin com tal finalidade, como Masquerades, Happy Birthday, Da Capo e
Nominativus Singularis, o que confirmou em entrevista:
[...] alunos não são estúpidos. Se vão se desenvolver bem,
devem começar com exemplos musicais excelentes. Estou
longe de dizer que eu sou excelente, mas pelo menos posso
fazer meu melhor. Se eles veem alguém tentando, e
tentarem por si próprios, então desempenhamos um papel e
algo surge disso. Os iniciantes não devem começar [os
“Following his Amsterdam debut, he embarked upon numerous tours in countries such as France,
Germany (including a concert in the Berliner Philharmonie), Great Britain, Czech Republic, Poland,
South Africa, China, and Mexico; he participated in many guitar festivals and has been a jury member
in several international guitar competitions” (idem, 2014, p. 44).
21
“In 1997, he appeared for the first time in the USA, starting with a tour in Texas and Arizona during
springtime before returning in the autumn in order to participate as a guest artist and member of the
jury at the prestigious festival held by The Guitar Foundation of America (GFA), where he was invited
again in 1999” (idem, 2014, p. 44).
22
“[...] his choice to devote himself only to composition (which he probably prefers to playing) has
made the guitar repertoire much richer” (idem, 2014, p. 45).
23
“Since the time that he stopped playing, composition has been Koshkin’s main occupation, while he
also teaches guitar in the ‘State Classical Academy’ in Moscow [...]” (idem, 2014, p. 47).
20
21
estudos] com música boba [...] Alunos, de acordo com minha
experiência, gostam de ter música interessante, onde podem
sentir os resultados, então as partes separadas devem ser o
mais interessante possível (KILVINGTON, 1993, p.51,
tradução nossa)24.
1.2. ASPECTOS GERAIS: USHER-WALTZ
1.2.1 COMENTÁRIOS DO COMPOSITOR
De acordo com Papandreou (2014, p. 13), Koshkin leu o conto A queda da
casa de Usher de Edgar Allan Poe aos doze anos de idade, ou seja, em torno de
1968, e, após sua composição, teve a oportunidade de mencioná-la várias vezes em
entrevistas transcritas e em material audiovisual. Por exemplo, a Kilvington (1993),
afirma que sua escrita é orquestral em natureza:
Minha educação musical na Rússia foi tudo menos centrada
especificamente
realmente
no
aprecio
violão.
não
Os
compositores
compõem
para
que eu
violão.
Eu,
particularmente, gosto de orquestras sinfônicas, que são
capazes de produzir virtualmente qualquer som. Não
obstante, o violão é um instrumento rico, com tantas cores
Algumas de minhas próprias peças, como The Prince's Toy,
Piece with Clocks, Usher-Waltz, têm sabor orquestral em
suas sonoridades, mas suas transcrições seria impossível.
Elas são apenas para violão, e para o uso de timbres
violonísticos (KILVINGTON, 1993, p. 51, grifo do autor,
tradução nossa)25.
“[...] students are not stupid. If they are to grow well, they must start with excellent examples of
music. I am far from saying that I am excellent, but at least I can do my best. If they see someone
trying, and also try themselves, then we play a part and something will come of it. Beginners must not
start with silly music [...]. Students, according to my experience, like to have interesting music where
they can feel the results, so the separate parts must be as interesting as possible” (KILVINGTON,
1993, p. 51).
25
“My musical education in Russia was anything but specifically centered on guitar. The composers I
really appreciate are not guitar composers. I particularly enjoy the symphony orchestra, which can
produce virtually anything. Nevertheless, the guitar is a rich instrument, with so many colors [...]. [...].
Some of my own pieces, such as [...] Usher-Waltz, have an orchestral flavor in their sound, but
transcription would be impossible. They are for guitar only, for specific use of guitar colors” (idem,
1993, p. 51, grifo do autor).
24
22
Além disso, Koshkin afirma, em entrevista publicada em material audiovisual
na plataforma Tonebase, que a Usher-Waltz “representa o encontro de duas
culturas: russa e americana” (MASTERCLASS..., 2017, parte 1, tradução nossa)26,
se referindo ao fato de ter agregado à obra de Edgar Allan Poe o conceito da valsa
de
concerto
tradicional
russa,
idealizado
por
compositores como Glinka,
Tchaikovsky, Rachmaninoff, Shostakovich e Prokofiev. Na mesma ocasião, o
compositor oferece alguns conselhos ao intérprete:
um equívoco comum do violonista é tocar a peça como uma
valsa comum, porque minha ideia era fazê-la inusitada desde
o início. É por isso que coloco um andamento rápido, allegro
agitato, que não se inicia no primeiro compasso - [a obra]
tem um tipo de introdução no começo, com harmônicos. [...]
São duas frases: uma nos agudos, e a outra frase é de
harmônicos nos baixos. Então, é melhor tocar os [últimos]
harmônicos [...] com o polegar e encostar na corda com o
indicador, porque dessa forma não haverá produção de ruído
(MASTERCLASS... , 2017, parte 1-2, tradução nossa)27.
Sobre o tema principal da peça, Nikita Koshkin afirma que, além de possuir
características típicas de valsa austríaca ou vienense, “até a primeira entonação é
pouco usual, porque há um glissando que vai da nota si à nota dó, quase uma oitava
abaixo”, e pede que, na performance, a atenção seja redobrada para que “o
glissando seja audível; isto é muito importante” (MASTERCLASS…, 2017, parte 2,
tradução nossa)28.
Outro
dado
relevante
mencionado
pelo
compositor é referente ao
seccionamento da obra. De acordo com ele, a Usher-Waltz
“It [the piece Usher-Waltz] is the meeting of two cultures: russian and american”.
(MASTERCLASS…, 2017, parte 1).
27
“[...] a usual mistake of the guitarist is to play the piece as normal waltz, because my idea was to
make it unusual from the very beginning. That’s why I put fast tempo, allegro agitato, but it comes not
from the very first bar, it has some kind of introduction in the beginning, which has harmonics. [...]
there are two phrases, one is on the trebles, and the other phrase is harmonics on the basis. So it's
better to play the harmonics with the [...] thumb, and to touch the string with the index finger, because
then you will have no noise” (MASTERCLASS… 2017, parte 1-2).
28
“even the first intonation of it is quite unusual, because we have this glissando which goes from B to
C, almost an octave down; be careful to play it so this gliss will be hearable; it’s very important”
(MASTERCLASS…, 2017, parte 2).
26
23
não possui um tipo de estrutura como A-B-A ou algo
parecido. [A obra] é sucedida: o desenvolvimento é
sucessivo, e podemos [...] encontrar algumas pontes na
música, mas ela não foi construída de acordo com estrutura
clássica alguma. Eu estava apenas pensando [...] sobre a
expansão e o desenvolvimento da imagem, visto que Usher
começa a tocar valsa e se torna mais e mais irracional, até
que, no fim, fica completamente insano (MASTERCLASS…,
2017, parte 2, tradução nossa)29.
Ademais, sobre o primeiro trecho de rasgueados, que se inicia no compasso
160, Koshkin recomenda que o violonista não negligencie o som produzido pelo
rasgueado em cordas soltas. Afinal, aponta a falta de audibilidade do segundo
acorde (figura 1 - compasso 163) como outro equívoco interpretativo.
figura 130 - compasso 163
Sobre os pizzicatos bártok, que aparecem na segunda seção de rasgueados,
o compositor menciona ser “o clímax da peça”, e se refere à loucura de Roderick
Usher, “como se ele estivesse tentando estourar as cordas do instrumento”
(MASTERCLASS…, 2017, parte 3, tradução nossa)31. A dica que dá neste momento
“It has no this kind of structure like A-B-A or something like that. It goes through: the development
goes through and we can [...] find some kind of bridges in the music but the music was not built
according to some classical structure [...]. I was just thinking about [...] the development of the image,
because Usher starts playing waltz and getting more and more crazy and then, in the end, he became
completely insane (MASTERCLASS…, 2017, parte 2).
30
Em todas as figuras, considerar a clave de sol com transposição em oitava abaixo, típica da
notação musical moderna para violão. Caso necessário, a partitura completa da peça, inserida no
anexo 3, pode sanar quaisquer incertezas.
31
“[...] it comes to the climax of the piece, which is again with [...] chords and [...] pizzicato bártok. [...]
Here it sounds exactly in the moment when Usher is so crazy that, well, it sounds like he is trying to
crash the strings of the instrument” (MASTERCLASS…, 2017, parte 3).
29
24
é especificamente à técnica do violonista, sem alterações de expressividade: devido
ao rápido andamento da peça, uma alternativa que promove estabilidade e
segurança é a de utilizar polegar e indicador da mão direita nesta técnica, ao invés
de utilizar apenas o polegar, como usualmente é realizado o pizzicato bártok.
Finalmente, na quarta parte da entrevista, Koshkin menciona os trechos finais
de sua composição: a nova seção de harmônicos, que funciona como uma
lembrança do tema principal e simboliza “a sensação de reprise, apesar de o tema
não soar completamente [...]; Usher recebe uma iluminação mental, se tornando
normal por um momento antes de sua recaída completa” (MASTERCLASS…, 2017,
parte 4, tradução nossa)32.
1.2.2 ANÁLISE DA PEÇA: ASPECTOS HARMÔNICOS, FORMAIS E MOTÍVICOS
Obtidos os dados biográficos do compositor e algumas informações dadas em
entrevistas sobre a Usher-Waltz, analisamos a obra musical a partir da referência de
Ko (2006), com cujas conclusões concordamos parcialmente. A mais veemente
discordância em relação a seu trabalho se dá no seccionamento do objeto de
pesquisa, que será detalhado futuramente.
Utilizando os conceitos de Schoenberg sobre o repertório tonal clássico
(1970), entendemos que
a menor unidade estrutural é a frase, que consiste em um
número de eventos musicais integrados [...] e bem adaptados
à combinação como outras unidades similares. O termo frase
significa, estruturalmente, uma unidade aproximadamente a
algo possível de ser cantado em um único fôlego (p. 3,
tradução nossa)33.
Ainda sobre frase, o Dicionário Grove de Música (1994) define o vocábulo da
seguinte forma:
“[...] the feeling of the reprise, though the theme sounds not complete [...]; Usher gets kind of light in
his brains, coming normal for a moment before the complete crash” (idem, 2017, parte 4).
33
“The smallest structural unit is the phrase, a kind of musical molecule consisting of a number of
integrated musical events [...] and well adapted to combination with other similar units. The term
phrase means, structurally, a unit approximating to what one could sing in a single breath”
(SCHOENBERG, 1970, p. 3).
32
25
termo usado para pequenas unidades musicais de tamanhos
variados, geralmente consideradas maiores do que um
motivo, porém menores que um período. O termo tem uma
conotação melódica: aplica-se “frasear” à subdivisão de uma
linha melódica (SADIE, 1994, p. 343).
Sobre o motivo, mencionado no verbete acima, as referências apontam sua
definição (em contextos tonais) como o menor elemento musical da obra, possuidor
de identidade própria (SCHOENBERG, 1970; SADIE, 1994). Inclui, segundo
Schoenberg (1970), elementos musicais de altura intervalar e ritmo, além da
obrigatoriedade de possuir impacto memorável: “o motivo aparece constantemente
ao longo da peça: é repetido. A repetição em si frequentemente gera monotonia.
Monotonia só pode ser superada por meio do uso de variação” (p. 8, tradução nossa,
grifos do autor)34.
1.2.2.1 Seção introdutória da peça
Com estes conceitos em mente, iniciamos a análise de Usher-Waltz do
primeiro compasso. A introdução (figura 2) é apresentada em harmônicos artificiais,
arpejando o acorde de dominante com sétima de lá menor em andamento lento e
com a adição de uma dissonância de intervalo de oitava diminuta entre as notas
sol♯ e sol♮ (como enarmonia da nona aumentada). Os harmônicos dos compassos
2-3 são repetidos oitava abaixo nos compassos 3-5, produzindo de maneira escrita a
ferramenta equivalente a uma fermata e um ritardando, e essa reincidência funciona
como método de memorização motívica.
figura 2 - compassos 1-5
“A motive appears constantly throughout a piece: it is repeated. Repetition alone often gives rise to
monotony. Monotony can only be overcome by variation” (idem, 1970, p. 8).
34
26
1.2.2.2 Seção A
figura 3 - compassos 6-13
No compasso 6 (figura 3) um novo motivo é apresentado, com a adição do
motivo anterior ainda em repetição, mas não mais com a mesma harmonia de
dominante à região de tônica; assim se inicia o que chamaremos, como Ko (2006),
de Seção A, do compasso 6 ao 32. O material novo se destaca pelo semitom
descendente (dó-si) e pelo glissando, também descendente, até um dó, oitava
abaixo do primeiro. Assim, afirma-se a região tonal de lá menor, visto que a
dominante que preenche os seis primeiros compassos resolve sua tensão na tríade
de lá menor, concomitante à indicação de andamento allegro agitato. O oitavo
compasso retoma o motivo de arpejo de acorde com sétima apresentado na
introdução e expõe um acorde que, à primeira escuta, se constitui como II grau
frígio, mas que logo em seguida se caracteriza como um acorde de "sexta italiana"
(sexta aumentada sobre si♭) e ganha no decorrer do compasso dissonâncias
características de alterações sobre a função de dominante sem fundamental da
tônica (quinta diminuta no baixo, sétima menor). O nono compasso dialoga com o
ritmo de valsa do compasso 7, desta vez na função de dominante da dominante: um
27
acorde de si com sétima e nona menor, que direciona ao acorde de mi em arpejos
no compasso seguinte e, então, no compasso 11, retorna a lá menor. A finalização
do trecho se dá nos compassos 12 e 13, com, respectivamente, os acordes de fá
menor e lá menor (distanciamento brusco de submediante menor).
Ainda na mesma seção, o compositor repete o motivo de semitom e glissando
no compasso 14, e o faz de maneira idêntica nos três primeiros compassos (6-8 são
iguais a 14-16). A partir desse ponto, inicia-se o desenvolvimento harmônico da
peça: no compasso 18 (figura 4) o arpejo, ainda como variação do primeiro motivo,
realiza o acorde de sol com sétima e nona menor, com função de dominante
individual de dó: relativa maior de lá menor.
figura 4 - compassos 18-22
A resolução acontece no compasso 19, que apresenta uma bordadura na
nota mi por três compassos seguidos (estes seriam idênticos, não fossem os
semitons descendentes dó-si-si♭ até a retomada do acorde de lá). O trecho que se
inicia no compasso 22, com o acorde de lá menor, é estrutural por apresentar, pela
primeira vez, uma escala ascendente, sobre a qual o compositor pede um crescendo
antes da entrada da tétrade de subdominante menor no compasso 23 (figura 5)35.
Esta, por sua vez, exibe a simultaneidade de uma sétima menor no primeiro tempo
do compasso, como uma maneira de antecipar o material que será utilizado na
seção B.
Importante ressaltar que, para a realização da análise, este trabalho utilizou duas edições da
partitura da peça Usher-Waltz. Em relação à primeira, mais antiga, percebemos algumas notas em
desacordo com as gravações ao vivo encontradas do próprio compositor, mas as expressões de
dinâmicas se apresentam mais completas. Referimo-nos à edição, publicada em 1989, de G.
Schirmer, Inc., editora americana fundada em 1861. A segunda versão da peça, que permitiu a
inserção das figuras neste trabalho, foi editada e digitada por Alexander Tchekhov, e publicada em
1993 pela editora alemã Edition Margaux.
35
28
Em sequência, o compasso 24 apresenta, no mesmo caráter de arpejos, o II
grau frígio (subdominante napolitana) de ré menor (logo acrescido de uma sexta
aumentada, caracterizando-se como dominante do acorde do compasso anterior).
Segue a retomada do acorde de mi maior com sétima (acrescentando-se a sexta dó,
que aparece como melodia; e a nona menor fá, que aparece como apoggiatura ao
mi do compasso seguinte, que permanece no mesmo acorde. A função dominante
dos compassos 25 e 26 resolve na tônica (lá menor) no compasso 27, mas não o faz
de maneira assertiva: no baixo há a nota lá, o que dá a sensação de resolução, mas
a melodia aponta a nota ré♯, sensível da quinta do acorde, resolvendo no segundo
tempo do compasso.
figura 5 - compassos 23-32
No compasso 28, o motivo de semitom descendente se estende de forma que
o cromatismo preenche o intervalo de fá a ré♭, quando a harmonia se desenvolve
ao acorde de si♭ menor com sétima, demonstrando afastamento da região tonal
(enarmonia da região de mediante maior de lá maior). Nos compassos 30 e 31, mais
uma cadência dominante-tônica é realizada, desta vez com mais força devido à
finalização de seção: no primeiro, há a adição de uma sensível, que resolve, da terça
(lá♯-si) no acorde de mi; no segundo, há um desfecho melódico descendente, com
as notas mi♭-ré-dó-si, até, no primeiro tempo do compasso 32, chegar no lá.
1.2.2.3 Seção B + A’
Então, inicia-se o que Ko (2006) denomina de Seção B: nos tempos fracos do
compasso 32 realiza-se o motivo de semitom em sua inversão, nas notas lá e lá♯,
29
com direção à nota si da melodia do compasso 33. Deste ponto até o compasso 36,
o baixo realiza com a melodia um intervalo de sétima maior, intercalando os acordes
de dó maior (tônica relativa) e fá menor (estes acordes foram associados, em
relação à nota em comum, por Diether de la Motte, 1994, p. 67). Em seguida, a
alternância harmônica permanece com alteração melódica: a repetição das notas si
e mi dão lugar a dois compassos de sol e o retorno ao mi na finalização da frase. Até
o
compasso
39
(figura
6),
o ritmo de valsa prevalece, marcado pelo
acompanhamento em staccato.
figura 6 - compassos 32-39
figura 7 - compassos 40-47
30
No compasso 40 (figura 7) realiza-se um cromatismo ascendente com baixo
em sol (dominante de dó maior, que demonstra uma tonicização nesta região
harmônica), com mesma direcionalidade à nota si e ao acorde de tônica relativa,
como uma ferramenta de repetição com fins de memorização: os compassos 41-43
são idênticos aos 35-37. Em seguida, a frase se desenvolve, preservando o ritmo,
mas com mudança harmônica ao acorde de sexta aumentada francesa sobre si♭ no
(cp. 44) de lá menor,
que não resolve no compasso seguinte: se direciona ao
acorde de fá♯ maior com sétima e nona menor, função dominante, que não obtém
resolução, visto que o compasso 46 apresenta a função dominante com sétima
sobre sol e, apenas então, resolve na tônica da região de dó maior, no compasso 47.
Dadas as ressalvas: o acorde de sol apresenta ambos si natural (como
acompanhamento do acorde, em ritmo de valsa) e si♭ (como melodia em sensível
superior da nota lá).
Após o trecho anterior, inicia-se mais um desenvolvimento no compasso 48
(figura 8). Neste, o compositor retoma a região de lá menor: dominante com baixo
em mi e cromatismo ascendente, iniciado em ré♯; quando o baixo atinge a nota lá,
a melodia realiza um intervalo de sétima maior (sol♯). No compasso 51, o primeiro
acorde em arpejo é apresentado: com quatro notas simultâneas (mi grave, e ré-fá-dó
no agudo), indicando a expansão da textura que ocorre paulatinamente. A
dissonância retorna ao acorde de lá menor no compasso 52, de maneira próxima ao
realizado no compasso 27.
figura 8 - compassos 48-52
No compasso 53 (figura 9), o que se apresenta é um segundo arpejo de
acorde de quatro notas, dessa vez no acorde si♭ menor com sétima, seguida por
um acorde de fá menor com sétima maior (mi) e 13ª (ré). No compasso 55, o
cromatismo se sobrepõe: em staccato, a melodia apresenta ré♯, ré♮
e ré♭,
31
enquanto o baixo apresenta fá♯, sol e sol♯. O ritmo harmônico aumentado em
associação aos cromatismos cria tensão, que se resolve no compasso seguinte com
a tríade de lá menor.
figura 9 - compassos 53-56
figura 10 - compassos 57-60
Os compassos que se seguem (figura 10) assimilam a tensão
provocada anteriormente e repetem a ideia de dois planos cromáticos em oposição:
no compasso 57, o novo material apresenta quiálteras em tessitura aguda; as
segundas notas de cada tercina, quando vistas como uma linha em si mesma,
realizam ré♯, ré♮ e ré♭ (resolvendo no compasso seguinte na nota dó) enquanto as
outras notas, mais graves, realizam fá♯, sol e sol♯ (resolvendo na nota lá, no
segundo tempo, antecipada pelo lá grave do baixo). Desta forma, percebemos que
32
este compasso funciona como fragmentação, além da mudança de registro, do
compasso 55. O compasso 59 realiza um movimento idêntico oitava abaixo,
resolvendo também em lá menor no compasso 60, também em tessitura grave.
Em sequência (figura 11), o compositor apresenta quatro compassos (61-64)
de acordes em ritmo idêntico ao início da Seção B, mas de harmonia diferenciada: o
compasso 61 apresenta um acorde de 6ª aum. italiana (si♭-sol♯), com um dó
agudo como melodia, que pode ser observado como um retardo permanente da
terça do acorde do compasso anterior; o compasso 62 possui a mesma nota dó
como melodia, desta vez oitava abaixo, com a harmonia em função dominante da
dominante (acorde de si maior); no compasso 63, percebe-se resolução com o baixo
se movendo quinta abaixo e a harmonia em função dominante da região de lá; e,
finalmente, o compasso 64 resolve o trecho em lá menor.
figura 11 - compassos 61-64
figura 12 - compassos 65-72
Seguindo-se a tais dados, o compositor realiza uma frase em repetição, mas
não realiza a repetição sequencial como de costume. Ao invés de repetir os
compassos 65-68 de maneira idêntica aos 57-60, realiza as quiálteras em tessitura
33
grave antes daquelas em tessitura aguda. Além disso, a harmonia das compassos
61-64 são repetidas nos compassos 69-72, também de maneira invertida em relação
ao dó intercalado em uma oitava presente na melodia, como se pode observar na
figura 12.
Ko (2006) analisa este trecho como um marco de final de seção. Entretanto,
observamos que o que se inicia a seguir não se configura como tal, já que pode ser
percebido como uma recapitulação variada do motivo de semitom que mencionamos
no início desta análise. Afinal, o compasso 73 realiza novamente o baixo em mi,
enquanto a melodia apresenta as notas dó-si, seguidas por um glissando
descendente, que desta vez não preenche a extensão de um intervalo de sétima
maior, e sim de quarta justa. Por isso, denominamos esta seção como B + A’, de
forma que esta recapitulação seja realmente parte estrutural desta segmentação.
figura 13 - compassos 73-81
No trecho dos compassos 74-79 (figura 13), o baixo realiza cromatismo
descendente, compasso a compasso, preenchendo o espaço intervalar de lá até mi
e apresentando ritmo intercalado entre acordes em ritmo de valsa e colcheias em
arpejos. No primeiro compasso deste trecho, o compositor escreve uma tríade
diminuta de fá♯, com sétima menor e baixo em lá; no compasso 75, o arpejo de
sol♯ menor (com acréscimo de fá, enarmonia da sexta menor), função dominante
anti-relativa, com a nota mi, fora do acorde, soando na melodia; no compasso 76, o
acorde com acompanhamento em staccato é de mi (tríade diminuta e sétima menor)
em primeira inversão; o compasso 77 apresenta o arpejo de ré maior com sétima
maior (função subdominante) em primeira inversão; o penúltimo compasso, 78,
34
apresenta um acorde de fá menor com sétima menor; e, finalmente, o compasso 79,
que exibe o acorde de dominante com sétima menor, em conjunto com a nota lá♯
como sensível da quinta do acorde e a nota ré♯ na melodia. A dominante resolve no
compasso 80, com ritenuto, e uma melodia descendente em leve textura, como
finalização próxima à da Seção A.
1.2.2.4 Seção C
No compasso 82, Ko (2006) falha ao não apresentar uma nova seção, já que
há diminuição das referências à região tonal de lá menor, visto que neste novo
trecho gradativamente se iniciam os paralelismos que tomarão grandes proporções
ao longo da peça, como será visto nesta análise. Assim, no que chamaremos de
Seção C (figura 14), o ritenuto se finaliza no compasso 81, e em seguida volta a
tempo. Apresentam-se três notas, sendo o baixo em fá♯ e o acompanhamento em
lá♯ e mi♯. Aqui, a digitação de mão esquerda colabora na visualização do
compasso como um acorde maior com sétima maior, especificamente como uma
tonicização em fá♯, função de tônica anti-relativa. Entretanto, esta tonicização não
se estabelece, já que não há cadência dominante-tônica: o compasso 83 apresenta
um acorde de tríade diminuta e sétima menor (enarmonizamos ré♯-mi♭ e
sol♯-lá♭).
figura 14 - compassos 82-89
O compasso 84, por sua vez, apresenta um acorde de terça menor e sétima
maior sobre si, com função de subdominante. A este, segue-se um acorde de si♭
meio diminuto após o qual o primeiro material paralelo é observado. O compasso 86
35
realiza o acorde de dominante com sétima, que resolveria em lá menor no compasso
seguinte; entretanto, o compositor escreve um lá maior, com a adição de sétima
menor e nona menor, tornando-o dominante de ré, tensão essa que não se resolve.
O compasso 88 realiza o motivo de cromatismos em colcheias, e apresenta o baixo
em mi, retornando à dominante; finalizando a frase, o compasso 89 volta ao lá em
função dominante.
Em seguida, os compassos 90-93 (figura 15) transpõem paralelamente, ou
seja, com material intervalar idêntico, os compassos 82-85, um tom acima. Na
circunstância de música do século XX, uma harmonia no limiar da tonalidade (no
qual se enquadra a peça de Koshkin) permite a assimilação de que não há
alterações extensas de significado harmônico no que se refere ao uso de enarmonia
nas repetições literais.
figura 15 - compassos 90-97
Em outra tessitura, o compasso 94 repete o acorde de lá em função
dominante, agora com a nona aumentada (enarmonizada para dó♮). Vale ressaltar
que o mesmo acorde era realizado, no compasso 87, com meia pestana na segunda
casa e, agora, na oitava casa. No compasso 95, observamos a nota mi no baixo,
como uma repetição automática depois da nota lá; entretanto, o acorde realizado no
acompanhamento indica dó diminuto com sétima maior, que antecede a tríade
diminuta de si no compasso 96. Este também apresenta o baixo deslocado da
harmonia: a nota si♭ é ouvida após lá e mi nos respectivos compassos anteriores,
apresentando uma antecipação estendida do ostinato que preencherá uma grande
36
seção posterior. A frase se encerra no compasso 97 (figura 15), com uma sexta
aumentada francesa (mi♭-dó♯ sobre as quais se adicionam sol e lá, além de mi♮).
Com este fim de frase, Ko (2006) finaliza mais uma seção, escolha esta que
não acatamos, visto que o trecho imediatamente posterior oferece um destaque à
subdominante (compassos 98-106 - figura 16) antes de um ritenuto que prepara a
retomada do motivo inicial (compasso 107), apresentado na introdução. Logo, a
frase que tem início no compasso 98 apresenta o acorde de ré menor
(subdominante) com nona, e é acompanhada por um compasso de mi (dominante) e
outro em lá menor. O compasso 101 apresenta a mesma figura rítmica de quiálteras,
dispostas, no que se refere à altura das notas, de maneira distinta: a primeira nota
de cada tercina preenche uma escala ascendente que prepara a retomada da frase
em ré menor (lá-si-dó♯); a terceira realiza um pedal em mi, utilizando corda solta; e
a segunda realizaria uma uma escala descendente que teria a mesma
direcionalidade a ré, por se iniciar com as notas sol e fá, mas quebra a expectativa
ao exibir, no terceiro tempo, um ré♯.
figura 16 - compassos 98-106
A segunda frase, assimétrica, se inicia nos compassos 102-103, quase
idênticos aos 98-99 (a melodia dos compassos é idêntica, mas apresenta alteração
harmônica: no compasso 99, como já foi observado, a função é dominante da região
de lá, enquanto no compasso 103, a função dominante prepara o acorde de dó,
apresentada no compasso seguinte), com uma interrupção da repetição que dá lugar
a mais um paralelismo, perdendo coesão com as funções harmônicas tradicionais.
Dessa forma, o compasso 104 aparece um tom abaixo (acorde de dó menor com
nona) do compasso em ré, e o compasso 106 (acorde de si♭ com nona), mais um
37
tom abaixo. O compasso intermediário, 105, também é paralelo ao compasso 99,
tornando possível a preparação do si♭ com nona.
1.2.2.5 Seção D - (repetição variada da introdução)
Aqui, finalmente, concordamos com a análise de Ko (2006) no que se refere
ao seccionamento da Usher-Waltz. O ritenuto apresentado pelo compositor no
compasso 106, em conjunção com a retomada do motivo apresentado na
introdução, permite a divisão explícita em uma Seção D no compasso 107 (figura
17), que apresenta o arpejo idêntico ao compasso 2, com a diferença de que este
último era realizado em harmônicos, e o atual possui ressonância na altura real do
instrumento transpositor.
figura 17 - compasso 107
figura 18 - compassos 108-111
Em seguida, apresentam-se três compassos em lá menor (figura 18): a
redução do ritmo harmônico é novidade, visto que a valsa até então expunha, grosso
modo, um acorde por compasso. A melodia assume a região tonal apresentando
uma única dissonância, que aparece intercaladamente: ora como bordadura, ora
mais longa. O compasso 111 faz referência aos materiais cromáticos com uma
38
rápida passagem em intervalos simultâneos de sétima e nona, e no compasso
seguinte retoma o novo material de ritmo harmônico alongado, desta vez em dó
maior na segunda inversão, com a continuidade do ré♯ como dissonância
recorrente.
No compasso 115 (figura 19), o mesmo material cromático do compasso 111
surge, de forma a criar uma expectativa acerca da possibilidade de exposição de um
novo trecho de ritmo harmônico, desta vez em fá (como numa sequência).
Entretanto, a expectativa é frustrada quando o compositor apresenta, no compasso
116, um fá♯ no baixo, alterando apenas uma nota em relação aos compassos 108 e
112: uma nota em oitava com o baixo. No compasso 117, o compositor exibe o
acorde de si, em tríade diminuta, acrescentadas sétima menor e nona maior, e
segue nos compassos seguintes com um acorde de fá menor, realizando depois
outra cadência dominante-tônica em lá menor no compasso 120.
figura 19 - compassos 112-120
Aqui (figura 20), surge mais um paralelismo: o acorde de lá menor do
compasso 120 dá lugar a sol♯ menor e, finalmente, a sol menor. No último, um
ritenuto permite a finalização da frase no compasso 123, com o acorde de fá♯ em
função dominante (sem apresentar resolução) e exibindo o motivo em arpejos.
Assim, atinge o trecho dos compassos 124-128, que inicia outro curto trecho em
paralelismo, revelando novamente a ideia do arpejo em colcheias intercalado ao
gesto típico de valsa: o primeiro compasso, a tempo, apresenta o acorde de si♭
com sétima maior (II grau frígio); o compasso 125 apresenta o arpejo de lá♭ menor
39
sobre um baixo em ré♭; o compasso 126 é paralelo, um tom abaixo, do compasso
124; e, finalizando a frase, os compassos 127-128 são idênticos, terça menor abaixo
dos compassos 125-126.
figura 20 - compassos 120-128
No compasso 129 criticamos novamente a percepção de Ko (2006) no que se
refere ao seccionamento da obra, visto que o trecho que se inicia, mesmo que com
novo material (o baixo com nota pedal em mi), é ponte para a próxima seção - esta
sim, em concordância com o trabalho citado. Dessa forma, os compassos 129-132
(figura 21) acumulam tensão não apenas pelo baixo pedal ou devido à escala
descontínua porém com direcionalidade ascendente, mas também pela indicação de
crescendo como anotação no início do trecho. Além disso, o distanciamento
harmônico
dado
pelos
paralelismos
que
detalharemos
a
seguir
e
pela
direcionalidade à região de ré menor também são colaborativos à construção de
tensão.
figura 21 - compassos 129-132
Sobre os movimentos paralelos do trecho, iniciados no compasso 133 (figura
22), observamos que as notas simultâneas realizadas no primeiro tempo deste
compasso são lá♭ e fá; e são transpostas no mesmo intervalo para si♭-sol e
dó♭-lá♭. Os compassos 134-135 repetem identicamente os compassos 132-133, e
40
o compasso 136 já é transposição exata dos compassos 132 e 134, bem como os
compassos 137-139 são paralelos aos compasso 133 e 135 - note-se que a
equidistância pode ser observada tanto compasso por compasso quanto pulso a
pulso, de forma a acelerar o ritmo harmônico dentro da qualidade de afastamento da
região de lá. Os compassos 140-141 não são paralelos em sua totalidade (no que se
refere à comparação integral), mas ainda são paralelos pela observação a cada
tempo, visto que o dedilhado da mão esquerda não se altera.
figura 22 - compassos 133-141
figura 23 - compassos 142-144
Uma nova frase se inicia no compasso 142, com duração de três compassos
(figura 23): a exibição de paralelismos perceptíveis nas notas de acompanhamento
(visto que o baixo realiza movimento contrário: ré-dó-si♭) e a retomada do
andamento a tempo após um ritenuto nos dois compassos anteriores torna este
41
trecho estrutural pela indicação reiterativa de crescendo e pela proximidade à região
de subdominante. O primeiro compasso, com acordes plaqué, apresenta um acorde
de quatro notas em harmonia quartal (ré-sol-dó♯-fá♯), de forma que a nota que
seria referente ao contralto realiza, nos outros dois tempos do compasso, um
cromatismo descendente (dó♯-dó♮-si), dado que permite que o último acorde
ouvido seja um acorde de sol com sétima maior. O compasso 143 realiza o mesmo
movimento, com exceção do baixo que já foi detalhado: a harmonia quartal, neste
ponto, é de natureza triádica (si♭-mi-lá), de forma que ainda a segunda voz mais
aguda realiza o cromatismo descendente (mi-mi♭-ré), alcançando, no terceiro
tempo, o acorde de si♭ maior com sétima. Finalmente, o compasso 144 realiza o
mesmo: tríade em harmonia quartal (ré♭-sol-dó), de forma que no terceiro tempo o
acorde percebido é um ré♭ com sétima maior.
1.2.2.6 Seção E + A’’
figura 24 - compassos 145-152
O baixo descendente produziu tensão suficiente para o início do que
chamaremos de Seção E’, coincidente com a Seção G de Ko (2006) - esta é
caracterizada pelo lá como dominante da região de ré, visto que nesta seção há
modulação à subdominante, e recapitulação do motivo de semitom descendente
associado à técnica de glissando que mencionamos previamente: o trecho dos
compassos 145-152 é idêntico em sua transposição em relação aos compassos
6-13. Portanto, os compassos 145-146, no tema dó-si-dó, aparecem transpostos em
fá-mi-fá, de forma que o lá (função dominante) resolve em ré menor, acorde
42
considerado como tônica nesse momento. O compasso 147 apresenta um acorde,
em arpejos, de sexta aumentada italiana; observa-se, no 148, o acorde de mi maior
(dominante da dominante); no compasso 149, respectivamente, um arpejo de lá
maior; e assim por diante (figura 24), em sequência à transposição do trecho
mencionado.
No compasso 153 inicia-se nova recapitulação, desta vez de volta a lá menor,
repetindo identicamente quase sete compassos em sua totalidade (compassos
153-159 - figura 25), idênticos ao trecho entre 6 e 12), com duas pequenas
alterações nos últimos compassos de ambas as seções: a textura, no compasso 12,
com acorde de 3 notas, se expande a uma textura de 4 notas; o último tempo do
compasso, ao invés de realizar na melodia as notas fá-sol-fá, o faz fá-sol-lá♭, como
o desenvolvimento que permitirá o início da seção de rasgueados, clímax textural e
dinâmico da peça.
figura 25 - compassos 153-159
Destarte, no compasso 160 (figura 26) o primeiro rasgueado é no acorde de lá
menor, com cujo ostinato (lá-mi-si♭) simultâneo há repetição nos dois compassos
seguintes. O compasso 163, então, realiza seis rasgueados distintos, sendo os de
contratempo inteiramente realizados em cordas soltas, enquanto os de início de
tempo realizam, em paralelo, os acordes de lá menor, si♭ menor e sol menor. Os
compassos 164-167 repetem 160-163, e os três compassos iniciados em 168
possuem o acorde configurado em transposição a sol menor, alterando uma das
notas do ostinato: a tônica do acorde. O compasso 171 apresenta um glissando,
mesmo material utilizado no início do motivo principal da peça, mas desta vez de
maneira ascendente e preenchendo o âmbito de maior textura do instrumento: as
seis cordas. Os compassos 172-173 são transposições a dó, idênticas à
43
transposição anterior, como redução de repetição; os compassos 174-175 exibem a
mesma ideia musical do compasso 163, expondo diferentes acordes, sempre em
paralelo, culminando na redução brusca de textura no compasso 180.
figura 26 - compassos 160-173
figura 27 - compassos 180-189
Em seguida, o que se apresenta no compasso 180 é o mesmo acorde de
sexta aumentada italiana sobre si♭, com nota pedal em mi (no baixo). o acorde
recebe um si♮ no compasso seguinte, e o ritmo de valsa se perde em meio aos
acordes dissonantes de grande textura que aparecem mesmo em tempos fracos, em
referência ao conceito de hemíola (figura 27 - compassos 182-185), explanado pelo
Dicionário Grove de Música como “articulação de dois compassos em tempo
44
ternário, como se fossem três compassos em tempo binário” (SADIE, 1994, p. 423).
A frase se encerra após o ápice de textura e tessitura dos compassos 186 e 187,
atingindo o piano do recorrente acorde de sexta aumentada italiana nos compassos
188 e 189.
1.2.2.7 Seção F
figura 28 - compassos 190-193
figura 29 - compassos 194-197
Outro ponto de concordância em relação à análise formal de Ko (2006) se
refere ao seccionamento no levare do compasso 190: mais uma vez o ritenuto
seguido da marcação a tempo nos permite identificar o início de seção. O que Ko
(2006) denomina de H, designaremos aqui de Seção F, caracterizada pela repetição
exaustiva, no baixo, das notas mi e lá, como sugestão e referência à cadência
dominante-tônica na região de lá menor. Entretanto, não há força de sensível tonal
45
ou modal, visto que a harmonia pouco acompanha o trecho, principalmente devido à
recorrência da dissonância produzida pela nota que aparece no agudo como ré♯ e
oitava abaixo como mi♭ nos compassos 190-193 (figura 28). Esta frase de quatro
compassos precede outra repetição da melodia ré-dó-si, que aparece três vezes nos
compassos 194-196 (figura 29), permitindo uma pequena ponte, que aparece no
compasso 197 ainda com mesma harmonia, ao desenvolvimento da seção. Os
compassos 198-199 repetem os compassos 190-191, após os quais a melodia inicia
direcionalidade à tessitura aguda, culminando, no compasso 204 (figura 30), à nota
mais aguda (excetuando-se os harmônicos) da peça, um lá de timbre peculiar devido
à sua apresentação em três oitavas distintas.
figura 30 - compassos 203-205
figura 31 - compassos 206-211
No levare do compasso 206, o compositor expõe mais uma seção de
paralelismos (figura 31), com um hiato entre o ritmo harmônico do baixo (que
permanece na nota mi, sugestão de função dominante), de forma que o trecho
paralelo acumule tensão. Novamente, a digitação de mão esquerda permite que a
46
visualização
paralela
seja
fácil.
Os
compassos
208-211
repetem
quase
identicamente os compassos 204-207, com o último tempo do último compasso
sendo responsável pelo movimento ascendente que desenvolve um novo tipo de
paralelismo nos compassos 212 e 213 (figura 32), retomando o espaço harmônico
dos acordes de fá menor e fá♯ menor. O compasso 214 retoma o movimento, já
explorado, de arpejo ascendente (sol menor), e os compassos 215 e 216 retomam o
paralelismo de 212-213. A frase é finalizada em mais um arpejo de si♭ menor, onde
há indicação de ritenuto, anterior ao acorde de si menor com sétima (nona maior e
11ª acrescentadas), que aparece no compasso 218.
figura 32 - compassos 212-218
figura 33 - compassos 224-233
Os compassos 219-222 repetem, novamente, os compassos 190-193, e a
eles se segue novo desenvolvimento: no compasso 224 (figura 33), o ritmo
harmônico é acelerado devido à utilização de três acordes distintos no mesmo
compasso: mi menor, fá menor e mi menor. O compositor retorna ao acorde de lá
menor para, em seguida, reduzir a textura a duas linhas polifônicas: uma delas, o
47
ostinato já trivial das notas lá-mi-si♭; a outra, relativamente nova, se insere em
maior parte à escala lá menor natural, assumindo dissonâncias como si♭, mi♭ (ou
ré♯) e ré♭. Entretanto, esta escala apresentada não configura nova seção, visto
que não há finalização de frase que delimite uma respiração, além do fato de a
melodia ser uma expansão, em caráter de desenvolvimento, dos compassos
anteriores.
Nesta ocasião, não há finalização explícita de frase (no compasso 240), visto
que o movimento melódico sol♯-fá-mi é unido ao trecho entre os compassos
241-248 (figura 34), que apresenta complexidade rítmica, realizando divisão ternária
no baixo (ainda mantendo o mesmo ostinato, desde o compasso 226) e binária na
tessitura médio-aguda, que exibe paralelismos nos acordes.
figura 34 - compassos 241-248
figura 35 - compassos 249-25636
No caso da edição selecionada, a partitura apresenta bula para indicação das notas com pizzicato
bártok, além de apresentar a uma possibilidade técnica de execução do vibrato: ao invés de mover o
dedo da mão esquerda no sentido da corda, sugere-se puxar e empurrar a corda para cima e para
baixo.
36
48
Enfim, a obra de Koshkin retoma a segunda seção de rasgueados em
paralelo, desta vez mais intensa devido à adição da técnica de pizzicato bártok.
Iniciada no compasso 249 (figura 35) com pestanas paralelas às cordas soltas nas
casas 1, 3 e 4, é no compasso 251 (figura 35) que os acordes se configuram como
modo menor e voltam a realizar, no baixo, o mesmo ostinato lá-mi-si♭. A isso,
intercalam-se notas na técnica mencionada - assim, cria-se contraste entre textura
densa e diluída, e cria-se tensão devido à dissonância (ré♯, dó♯, si♭ e sol♯) das
notas ruidosas em pizzicato entre graves e agudos.
figura 36 - compassos 263-271
No compasso 263 (figura 36), o ritmo sofre alteração, além da substituição
dos acordes que produzem o ostinato: inicia-se o rasgueado com cordas soltas,
acorde de sol menor e fá♯ menor; depois, no compasso 265, estes três acordes se
mantêm e acrescentam-se cordas soltas, lá menor e sol♯ menor; na terceira
repetição, reitera-se os seis acordes e adiciona-se cordas soltas, si menor e si♭
menor. Além disso, altera-se o desenvolvimento: não há mais rasgueados na peça,
visto que o compositor apresenta uma escala em pizzicato bártok e reduz a textura
da obra até atingir a seção seguinte.
1.2.2.8 Seção G
Seccionamos a obra de Koshkin, mais uma vez, de maneira diversa à de Ko
(2006). Iniciamos a Seção G no compasso 284, cujo harmônicos ressoam o motivo
cromático descendente (impossibilitado, pela técnica violonística, de realizar o
49
glissando), desta vez transposto em mi menor. Entretanto, o motivo é apenas uma
recapitulação longínqua, pois não realiza nada além da sétima maior descendente e
de sua reincidência em fragmentação rítmica, até o compasso 293 (figura 37). Do
compasso 294 em diante (figura 38), a melodia inicia mais uma repetição do mesmo
motivo, enquanto surge uma escala ascendente grave em bitonalidade, como se a
região de tessitura inferior estivesse em defasagem com a oposta; ambas aparecem
transpostas a três regiões distintas: sol♭ menor na melodia e escala grave em lá
menor (compassos 294-298); fá menor na melodia e sol♭ menor na escala de
tessitura inferior (compassos 299-303); ré♭ menor na melodia e fá menor na escala
(compassos 304-309).
figura 37 - compassos 284-293
figura 38 - compassos 294-312
Depois da longa fermata exposta no compasso 312, o compositor apresenta
um trecho em andamento distinto, meno mosso, menos movido. Em oposição a Ko
(2006), apesar da alteração no andamento, não identificamos aqui uma cisão
explícita de material, visto que, neste trecho, percebe-se a continuidade de vários
50
aspectos, principalmente no que se refere à rítmica: ainda há, como no início desta
seção, o conflito entre uma melodia médio-aguda com dissonâncias pontuais, às
vezes em ritmo binário, em contraste com o baixo repetitivo em três semínimas por
compasso. Além disso, essa última seção permite, na melodia, a identificação de
vários dos materiais expostos ao longo da peça (figura 39), como o motivo cromático
descendente (nos compassos 316 e 324, em relação às notas dó♯-dó), o arpejo em
colcheias (que aparece curto e descendente, ao invés de ascendente, como nos
compassos 318 e 326) e a escala de três notas (figura 40), como levare, repetitiva
da Seção F (nos compassos 331-341).
figura 39 - compassos 313-322
figura 40 - compassos 330-336
1.2.2.9 Coda
Schoenberg (1970) define coda como uma adição extrínseca à peça, de
tamanho extenso ou reduzido, e afirma ser difícil “dar qualquer razão para a adição
de uma coda a não ser a que o compositor quer dizer algo a mais” (p. 185, tradução
51
nossa)37. No caso da peça de Koshkin, nossa análise coincide com a de Ko (2006): a
coda preenche a extensão de 14 compassos (345-358, figura 41): finaliza o trecho
combinando o ostinato que percorreu grandes trechos da obra com a nota pedal,
que, dentre as diversas regiões que foi exposta, a em lá é a que se destaca, visto
que não apenas é a região tonal da obra, como também foi o último material a ser
variado, na seção imediatamente anterior.
figura 41 - compassos 345-358
1.2.2.10 Resumo da análise formal de Usher-Waltz
Segue-se, então, uma tabela comparativa entre os seccionamentos formais
defendidos por Ko (2006) e as ideias formais sustentadas pelo presente trabalho,
como uma maneira de simplificar a visualização ao leitor, para tornar possível a
leitura dinâmica das divisões sugeridas (tabela 1).
Ko (2006)
Carbonera (2018)
Seção
CP.
Seção
CP.
Introdução
1-6
Introdução
1-5
Justificativa
A seção de harmônicos
finalizada no compasso 5.
é
“It would be difficult to give any other reason for the addition of a coda than that the composer wants
to say something more” (SCHOENBERG, 1970, p. 185).
37
52
A
6-32
A
6-32
B
32-73
B + A’
32-81
C
73-97
C
82-106
D
98-106
E
107-128
F
129-144
G
O compasso 73 é recapitulação
do motivo da seção A, enquanto
o cp. 82 apresenta material novo
imprescindível para o resto da
obra.
D (rep. var.
introdução)
107-144 Inicia-se, no compasso 129, uma
ponte para a nova seção: não se
configura seccionamento.
145-188
E + A’’
145-189 Seção termina no primeiro tempo
do compasso.
H
189-226
F
I
227-278
J
279-312
189-283 O material apresentado no cp.
227, em textura diluída, não é
novo, visto que a melodia é
variação do material anterior.
K
313-344
G
Coda
345-358
Coda
284-344 Cp. 278 também não configura
finalização de seção, visto que a
345-358 ponte
para
o trecho de
harmônicos se dá ate o cp. 283.
tabela 1 - comparação dos dados de seccionamento entre a análise de Ko (2006) e o presente
trabalho
53
2. SEGUNDA PARTE - AUTOR E LITERATURA:
EDGAR ALLAN POE E A QUEDA DA CASA DE USHER
2.1 ASPECTOS BIOGRÁFICOS DE EDGAR ALLAN POE
“Edgar Allan Poe nasceu em Boston, a 19 de janeiro de 1809” (SANTAELLA,
1985, p. 141). Segundo Gomes (2017), não se sabe se o pai de Poe abandona a
família ou se morre, mas a mãe do escritor, grávida, começa a ficar doente, com
tuberculose; a mãe passa muito tempo doente e acamada, e “a criança acaba por
ficar impotente entre uma mãe psiquicamente morta e um pai indisponível” (p. 39),
quando Mrs. Poe dá à luz à terceira criança, Rosaline, e morre. Assim, entre dois e
três anos de idade, Edgar Allan fica órfão, e é “entregue à tutela de um rico
comerciante, John Allan, tendo recebido da Sra. Allan todos os desvelos de uma
verdadeira mãe” (SANTAELLA, 1985, p. 141). As influências psicológicas
decorrentes de uma história de vida como esta são, sem dúvida, extensas, o que
poderá ser observado em suas obras, à medida que adquire maturidade.
Quando Poe ainda era criança, a família Allan se muda para a Inglaterra,
onde Edgar recebe sua educação; em 1820 todos retornam à cidade de Richmond,
devido ao fracasso profissional de John Allan. E. A. Poe, então, termina os estudos
e, em 1826, “frequenta a Universidade de Virginia, onde se destaca em latim e
francês”38 (THOMAS & JACKSON, 1987, p. 67, tradução nossa). Entretanto, Poe só
cursou a universidade por um ano, pois “teve de abandoná-la pelas dívidas de jogo
que lá assumira” (SANTAELLA, 1985, p. 141), valores que John Allan, segundo a
The Edgar Allan Poe Society of Baltimore, se recusa a pagar. Este foi um dos vários
atritos relatados acerca da relação de Edgar Allan Poe com o pai adotivo, que
culminam na saída de Poe do lar dos Allan e em sua ida a Boston, onde publica seu
primeiro trabalho, uma coleção de poemas, e se alista no exército sob o nome de
Edgar A. Perry, dizendo ter 22 anos, instituição na qual permanece entre os anos de
“From February to December 1826 Poe attends the University of Virginia, where he excels in Latin
and French” (THOMAS & JACKSON, 1987, p. 67).
38
54
1827 a 1829 (THOMAS & JACKSON, 1987, p. 67-90, tradução nossa)39. No ano
seguinte, ingressa na Military Academy at West Point, graças à ajuda de John Allan,
após reconciliação, mas “acha a vida de um cadete de West Point desagradável,
desobedece a ordens, e é expulso da Academia” (idem, 1987, p. 111, tradução
nossa)40.
Assim, é deserdado pelo pai adotivo: John Allan morre em 1834, deixando
absolutamente nada para Edgar. “Sem sucesso na busca de emprego como
professor na região de Baltimore, Poe é encorajado, por John Pendleton Kennedy, a
escrever para o Southern Literary Messenger, de publicação mensal por Thomas
Willis White, em Richmond” (THOMAS & JACKSON, 1987, p. 145, tradução nossa)41
, e por isso volta a morar nesta cidade no ano de 1835. Além de escrever, Poe é
empregado como editor e começa a receber notoriedade por suas obras. “Em maio
de 1836, Poe se casa com sua prima Virginia, que ainda não tinha quatorze anos
completos” (idem, 1987, p. 145)42.
Em 1837, deixa o editorial por motivos financeiros, se mudando para Nova
Iorque e, em 1838, para Filadélfia. No ano seguinte, começa a trabalhar para o
Burton’s Gentleman’s Magazine como editor-assistente, onde “Poe realiza a maioria
das tarefas tediosas ligadas às publicações mensais” (idem, 1987, p. 247, tradução
nossa)43, mas é neste contexto que o conto “A Queda da Casa de Usher” é
publicado, na edição de setembro.
Em 1840, o jornal para o qual Poe trabalhava é posto à venda, e ele inicia a
divulgação de seu próprio jornal, o Penn Magazine, talvez acelerando seu processo
de demissão no jornal anterior. “Durante o verão e outono [de 1840], ele cadastra
colaboradores e assinantes para o Penn [Magazine], mas falha na busca de apoio
“After quarrels with John Allan Poe leaves the Allan household for Boston. Here he publishes
Tamerlane and Other Poems (1827) and under the alias of Edgar A. Perry he enlists in the U. S.
Army” (idem, 1987, p. 67).
40
“Poe finds the life of a West Point cadet distasteful, disobeys orders, and is dismissed from the
Academy” (idem, 1987, p. 111).
41
“Unsuccessful in finding employment as a teacher in the Baltimore area, Poe is encouraged by John
Pendleton Kennedy to write for the Southern Literary Messenger, a monthly published by Thomas
Willis White in Richmond” (THOMAS & JACKSON, 1987, p. 145).
42
“In May 1836 Poe marries his cousin Virginia, who is not quite fourteen years of age” (idem, 1987, p.
145).
43
“Poe performs most of the tiresome chores connected with the monthly’s publication” (idem, 1987, p.
247).
39
55
financeiro” (idem, 1987, p. 247, tradução nossa)44, até se ver obrigado a adiar
indefinidamente o lançamento do primeiro número devido a dois fatores
subsequentes: problemas de saúde e crise financeira envolvendo o bancos da
Filadélfia. Então, em 1841, se emprega como crítico literário no Graham’s Magazine,
onde publica novos contos.
“Por volta de 20 de janeiro de 1842, Virginia Poe sofre uma hemorragia
pulmonar, indicando o primeiro sintoma de tuberculose” (idem, 1987, p. 315,
tradução nossa)45, estresse que funciona como gatilho e faz com que Poe volte a
beber depois de anos tendo se privado disso. Além disso, pede demissão do
Graham’s Magazine, por estar aborrecido com a leitura das obras que criticava.
Após inúmeras falhas nas tentativas de encontrar um editor que publicasse suas
obras, Edgar Allan Poe finalmente consegue, em 1843, o apoio financeiro necessário
para publicar seu próprio jornal, tendo alterado o nome de Penn Magazine para
Stylus (idem, 1987, p. 393), mas o editor impede sua primeira publicação ao retirar
sua palavra. Poe até recebe um prêmio de 100 dólares pelo conto “O Escaravelho
de Ouro”, mas sua situação financeira o faz experimentar a carreira de palestrante
entre os anos de 1843 e 1844. Volta a ser empregado como editor-assistente, desta
vez no jornal Evening Mirror, onde adquire fama pela publicação do poema “O
corvo”, em janeiro de 1845. Poe sai do Evening Mirror e compra ações no Broadway
Journal - até o fim do mesmo ano Poe não apenas se torna o proprietário único
deste periódico, como também se esforça inutilmente para mantê-lo numa crise
financeira: “sua última edição [é] datada de 3 de janeiro de 1986” (idem, 1987, p.
484, tradução nossa)46.
“Os anos de 1846 e 1847 trazem a Poe o reconhecimento crescente na
Europa” (idem, 1987, p. 611)47 devido à publicação de algumas de suas obras nos
jornais britânicos, além da tradução de seus contos para o idioma francês, mas tal
fama não melhora suas finanças. Até o fim do primeiro ano, Poe e Virginia seguem
doentes e aparentemente sem alimentação e agasalhos suficientes, culminando na
“During the summer and autumn he enlists contributors and subscribers for the Penn, but fails to
find adequate financial backing” (idem, 1987, p. 247).
45
“Around 20 January 1842 Virginia Poe suffers a pulmonary hemorrhage, marking the onset of
tuberculosis” (idem, 1987, p.315).
46
“The last issue, dated 3 January 1846, contains his “Valedictory” (idem, 1987, p. 484).
47
“The years 1846 and 1847 bring Poe increasing recognition in Europe” (idem, 1987, p. 611).
44
56
morte de Virginia, aos 24 anos, no início de 1847. Poe consegue vagarosamente
recobrar sua saúde e sua situação financeira, o que o permite retornar à sua
produção literária e ao seu projeto de editorar seu próprio jornal. “No fim de julho [de
1838] Poe viaja a Richmond, onde renova antigas amizades, cede a beber
intermitentemente, e se prepara para partir numa turnê de promoção do Stylus”
(idem, 1987, p. 713, tradução nossa)48. Seu alcoolismo se agrava, no fim de 1838,
após uma complexidade afetiva com relação a Sarah Helen Whitman, poetisa viúva
que chamou a atenção de Poe: ele a pede em casamento, mas ela oferece vários
motivos pelos quais declina - ser mais velha que ele, ter problemas de saúde,
depender financeiramente de sua mãe e ter de cuidar dela e da irmã mais nova,
além de que Edgar Allan Poe tinha uma grande má fama. Ele pediu repetidamente
que ela reconsiderasse, demonstrando algumas vezes grande perturbação mental,
até que Whitman finalmente aceita conversar com sua mãe para obter
consentimento, desde que E. A. Poe se mantivesse sóbrio. Sabendo disso, a mãe de
Sarah Helen Whitman, Anna Power, tomou controle total das propriedades da
família, colocando-as longe do alcance do futuro genro. Entretanto, Poe não cumpriu
com sua promessa, o que marcou o fim do noivado de maneira abrupta e súbita.
Suas crises aumentam gradativamente durante o ano de 1849, até que
em 27 de setembro, Poe deixa Richmond a caminho de Nova
Iorque, na intenção de retornar em poucos dias com Mrs.
Clemm [sua tia e mãe de sua primeira esposa]; mas quando
faz
uma
escala
em
Baltimore,
começa
a
beber
exageradamente. No dia 3 de outubro, dia de eleições, ele é
encontrado em estado de coma no local de votação [...].
Morre de delirium tremens no hospital Washington College
no dia 7 de outubro. (THOMAS & JACKSON, 1987, p. 783,
tradução nossa)49.
“In late July Poe travels to Richmond, where he renews old friendships, indulges in intermittent
drinking, and prepares to depart on a tour promoting the Stylus” (THOMAS & JACKSON, 1987, p.
713).
49
“On 27 September Poe leaves Richmond for New York, intending to return in a few days with Mrs.
Clemm; but when he stops in Baltimore, he begins drinking heavily. On 3 October, an election day, he
is discovered in a comatose condition at the polling place [...]. He dies of delirium tremens at the
Washington College Hospital on 7 October.” (idem, 1987, p. 783).
48
57
Após sua morte, o reconhecimento unânime de seu trabalho ainda foi lento e
gradual, já que suas desavenças profissionais em Nova Iorque atrasaram seu
reconhecimento como escritor em seu país de origem. Como menciona Santaella
(1985), “Poe não conheceu, por parte de seus críticos, meias medidas” (p. 144),
tendo “num extremo, pesados detratores e, no outro, apaixonados defensores”
(idem, 1985, p. 144). Assim, no século XIX a dicotomia de opinião sobre as obras do
autor já diferiam entre os “moralistas que deploravam a falta de ‘coração humano’” e
os que observavam a estética de suas composições. Desta forma, Edgar Allan Poe
obteve reconhecimento antes na França, devido aos contatos que Baudelaire,
Mallarmé e Valéry tiveram com sua obra, que em seu próprio país de origem, em
que era “considerado um escritor de segunda categoria, seguidor do movimento
romântico: um sucessor dos chamados ‘romancistas góticos’, na prosa, e um
imitador de Byron e Shelley, nos versos” (SANTAELLA, 1985, apud ALVES, 2015, p.
149-150).
2.2 ANÁLISE DO CONTO A QUEDA DA CASA DE USHER
Entendendo os acontecimentos históricos referentes à vida do autor de “A
Queda da Casa de Usher”, podemos concordar com Spitzer (1984), quando afirma
que "precisamos seguir cada detalhe da concatenação de eventos cuidadosamente
construída que Poe realizou neste conto" (apud MATTOS, 2001, p. 112). Assim,
aqui se inicia um resumo livre da obra, marcada pelo início do texto com a chegada
do narrador na Casa de Usher, bem como a descrição completa da paisagem e a
constatação dos aspectos desta que tornavam assombrosa sua contemplação.
Ressalte-se o detalhe da “única fenda visível, a qual, estendendo-se do teto, descia
em zigue-zague pela parede da fachada até se perder nas águas sombrias do
charco” (POE, 2008, p. 159), que só poderia ser notada por um observador muito
atento. GOMES (2017) aplica tal detalhe à psicologia, ou seja, observa que “para a
maioria das pessoas que olhavam a casa a sua estrutura - psíquica - pareceria
estável no entanto, existiam fragilidades, uma fenda, que poderia vir a deitar a baixo
todo o edifício psíquico” (p. 110).
58
O caráter do visitante, segundo Spitzer (1984), é o de "uma pessoa
essencialmente racional e científica no seu modo de lidar com fenômenos ocultos
[...], capaz de recontar os eventos que havia testemunhado com tamanha
elaboração de detalhes e equilíbrio" (SPITZER, 1984, apud MATTOS, 2001, p. 114),
que, apesar de se deparar com uma sensação de insuportável angústia e um
sentimento de invencível tristeza, resolve "então passar algumas semanas naquela
mansão de melancolia" (POE, 2008, p. 157). Assim, a função do narrador na obra é
a de “objetivar os medos nutridos por Roderick” (SPITZER, 1984, apud MATTOS,
2001, p. 113). Afinal, se uma pessoa com tais características mencionadas “é
‘infectada contagiosamente’ pela atmosfera da mansão e pelos ‘vagos terrores’ de
Roderick, faz com que estes terrores [...] adquiram realidade objetiva” (idem, 2001,
p. 114).
O conto de Poe se desenvolve a partir disso, de forma que o narrador pode,
então, discorrer de maneira acurada sobre as superstições de Roderick Usher - uma
delas apresentada como uma "perfeita concordância do caráter da propriedade com
o suposto caráter dos habitantes" sobre a qual quem conta a história especula
acerca da "possível influência que um, na longa ronda dos séculos, podia ter
exercido sobre o outro" (POE, 2008, p. 158), bem como descrever o estado físico e
mental (que são ambos produto e influenciadores da permanente situação de terror,
mistério e medo que o narrador imprime ao leitor) do protagonista e de sua irmã.
Em seguida a esta primeira impressão, o narrador reflete em seu raciocínio
lógico que "era possível que um simples arranjo diferente dos pormenores do
cenário, das minúcias do quadro, seria suficiente para modificar ou talvez aniquilar
sua capacidade de suscitar impressões penosas" (POE, 2008, p. 157), e se põe em
movimento. Assim, muda "sua atenção da visão sinistra para o pequeno lago,
apenas para ver, com uma angústia crescente, a pavorosa construção refletida em
suas águas" (SPITZER, 1984, apud MATTOS, 2001, p. 113), o que se traduz em
"uma antevisão do final do conto quando estas águas se fecham sobre os destroços
da mansão" (idem, 2001, p. 113). Poe explora o medo e as consequências
psicológicas deste sentimento, sendo Roderick Usher a personificação disso; o
narrador assume ser parte disso, quando afirma que "não pode haver dúvida de que
a consciência do rápido progresso de minha superstição [...] serviu sobretudo para
59
acelerar este mesmo progresso. Assim, já o sei bastante bem, é a lei paradoxal de
todos os sentimentos que têm o terror por base" (POE, 2008, p. 158).
Entrando à casa, o narrador entra em contato com o protagonista e, em
poucos diálogos, constata e afirma de maneira veemente ter compreendido "que
(Roderick) estava escravizado a uma sensação anormal de medo" (POE, 2008, p.
162), além de notar que o próprio hipocondríaco tem consciência disso, pois diz
sentir "que mais cedo ou mais tarde chegará a ocasião em que terei de abandonar, a
um só tempo, a vida e a razão em alguma luta com o cruel fantasma: o MEDO"
(idem, 1839, p. 162). Desta forma, este sentimento "é portanto a paixão ou a histeria
que acelera e antecipa", e "o fato de a palavra MEDO vir escrita em maiúsculas [...]
deveria ter-lhes (aos críticos) sugerido uma 'lição', a de que o medo, na medida em
que antecipa eventos terríveis, é uma forma de induzir a realização prematura
desses mesmos eventos" (SPITZER, 1984, apud MATTOS, 2001, p. 113).
Depois, o narrador explica, com suas palavras, as superstições de Roderick,
que envolviam a propriedade onde vivia, “mais especificamente, a uma influência [...]
que algumas particularidades da forma e da substância de sua casa de família
haviam exercido [...] sobre seu espírito; um efeito que a natureza física das paredes
e pequenas torres cinzentas, bem como do turvo pântano em que tudo se mirava,
tinha finalmente produzido sobre o moral de sua vida” (POE, 2008, p. 162). Tais
superstições são repetidas durante o conto, sempre de maneira distinta, o que
resulta em conexões complexas observadas na narrativa de Edgar Allan Poe, que se
adensa, de acordo com o desenvolvimento da trama. A principal conexão realizada
pelo autor se refere ao termo “Casa de Usher”, presente no título e em vários trechos
da obra, que é “um ‘nome singularmente ambíguo’ [...], uma vez que ele abrange
tanto a família quanto a mansão dos Ushers” (SPITZER, 1984, apud MATTOS,
2001, p. 112); outro detalhe que a repetição não-idêntica torna memorável, e que
corrobora esta complexidade, é o detalhe da consciência do medo: uma primeira vez
em que se comenta a consequência da consciência de tal medo - seja ela do
narrador, quando diz que acabou por acelerar o progresso da superstição do
protagonista, ou do próprio Roderick, que prova, por intermédio de uma recitação de
um poema, possuir a consciência do próprio medo e de seu efeito em sua razão.
60
Além disso, o primeiro contato do narrador com Roderick Usher permite a
descrição de sua fisionomia - que curiosamente “lembra-nos do próprio autor Edgar
Allan Poe” (GOMES, 2017, p. 111) -, tanto em tempo real quanto em sua
comparação nostálgica a uma memória de Roderick no passado.
Ademais, duas vezes o narrador cita o consumo de ópio: a primeira quando
compara a sensação de depressão mental ao observar a paisagem inicial “ao
despertar de um fumador de ópio” (POE, 2008, p. 156); e a segunda ao declarar a
inconsistência
de
homogeneidade
dos
traços
particulares
de
Roderick,
especialmente a voz, que “variava rapidamente de uma indecisão trêmula [..] a essa
espécie de concisão energética, essa elocução abrupta, pesada, lenta e soturna,
essa voz gutural, de chumbo, perfeitamente modulada, que pode ser observada nos
beberrões perdidos ou nos incorrigíveis tomadores de ópio” (idem, 1839, p. 161).
“Com efeito, também existem relatos que o autor Edgar Allan Poe bebia e consumia
ópio” (GOMES, 2017, p. 112). O ópio representa ainda mais uma forma de
personificação da casa, de acordo com Spitzer (1984), já que na primeira vez a
comparação é óbvia, marcada ainda pelo “vapor pestilento e místico, pesado, inerte,
mal perceptível, cor de chumbo” (apud MATTOS, 2001, p. 115-116) exalado pelo
lago; e a segunda, caracterização do viés estático da voz de Roderick, oca, sem
vida, principalmente quando comparada a chumbo.
Um dos maiores medos de Roderick Usher era o da morte de sua irmã,
Madeline Usher, afinal isso “o tornaria (a ele, tão desesperado e fraco) o último
sobrevivente da velha estirpe dos Usher” (POE, 2008, p. 163). Esta “consciência
extrema da extinção que se aproxima” (SPITZER, 1984, apud MATTOS, 2001, p.
114) se dá pelo fato de que lady Madeline estava acometida por uma doença que
“desafiara por muito tempo as habilidades dos médicos” (POE, 2008, p. 163),
enfermidade esta caracterizada por “uma apatia estabilizada, uma lenta e gradual
destruição física, assim como frequentes, embora rápidas, afecções de aspecto
cataléptico” (idem, 1839, p. 163). Lady Madeline Usher, “apesar de sua debilidade
física ser enorme [...], resiste fortemente à maldição a que a família está sujeita”
(SPITZER, 1984, apud MATTOS, 2001, p. 113), e em relação a esta demonstração
extensa de força, podemos perceber que:
61
Embora Roderick seja retratado como o personagem
principal do conto e Madeline como uma sombra, passando
furtivamente com “passos retirados”, até antes de sua morte,
Madeline continua sendo uma deuteragonista de uma
maneira peculiar, estando no mesmo nível que seu irmão. O
fato de estar em cena somente por um curto período e não
dizer nada durante o conto (somente lhe é atribuído “um
gemido baixinho” no momento de sua morte) não nos dá o
direito de rebaixar a sua importância, uma vez que seu
impacto na história e o interesse despertado pelas suas
misteriosas aparições são fundamentais. (SPITZER, 1984,
apud MATTOS, 2001, p. 112)
Após este primeiro contato, de relance, com a deuteragonista, o narrador
descreve ter compreendido “que
a visão que [...] obtivera de sua pessoa seria
provavelmente a última que obteria dela - que, viva, [...] jamais a veria de novo”
(POE, 2008, p. 163). A partir disso, inicia a descrição das atividades, entre estudos e
outras ocupações em que Roderick o envolveu (como pintura, leitura de poemas,
bem como atividades literárias e musicais), constatando, inclusive, a “inutilidade de
todas as tentativas de animar uma mente que impregnava de sombras [...] todos os
objetos do universo moral e físico, como numa constante irradiação de angústia”
(idem, 1839, p. 163-164).
Algumas informações importantes sobre a Casa de Usher são apresentadas
antes da morte de lady Madeline, como a crença de Roderick sobre a “sensibilidade
das coisas vegetais” (POE, 2008, p. 167), que se estende ao “reino dos não
orgânicos; [...] às pedras cinzentas do lar de seus avós” (idem, 1839, p. 167), que
corrobora sua visão acerca da vivacidade da mansão. Afinal,
No mundo de Roderick Usher as diferenças entre os reinos humano
(animal), vegetal e mineral são abolidas. Plantas e pedras são
sensíveis, seres humanos possuem características de plantas e de
animais (a influência da vida das plantas sobre ele está refletida em
seu cabelo sedoso - “como aquela textura de teia de aranha mais
flutuava do que caía sobre o rosto [...]”. (SPITZER, 1984, apud
MATTOS, 2001, p. 115)
62
Além disso, nas palavras de Roderick Usher, “a prova da sensibilidade
devia-se observar [...] na condensação gradual, mas certa, da atmosfera (grifo
nosso) própria àquelas águas e paredes” (POE, 2008, p 167), e este termo em
destaque é especial no que se refere ao seu uso neste conto, já que Poe realmente
atribui uma atmosfera à “perfeita concordância do caráter da propriedade com o
suposto caráter dos habitantes” (idem, 1839, p. 158), de forma que este vocábulo
deve
ser entendido não apenas metaforicamente, mas também no seu
sentido propriamente físico: “minha imaginação trabalhara tanto [diz o
narrador], que me parecia haver realmente, em torno da mansão e de
suas adjacências, uma atmosfera peculiar, que nada tinha em
comum com o ar dos céus, mas que emanava das árvores
apodrecidas, das paredes cinzentas e do lago silencioso; um vapor
pestilento e místico, opaco, pesado, mal discernível, cor de chumbo”
[os itálicos são meus]. [...] A atmosfera, emanando da totalidade dos
objetos e dos homens cercados por eles, é perceptível em termos de
luz e escuridão; e esta atmosfera de “radiação de melancolia” é o que
eu chamaria de “alma” da mansão, que ao final do conto desiste de si
mesmo na forma de “uma claridade sobrenatural, uma emanação
gasosa que pairava sobre a mansão e a envolvia numa mortalha”.
[...]
Portanto,
sensivelmente
“atmosfera”
(visivelmente)
é
para
Poe
perceptível
uma
da
manifestação
soma
total
de
características físicas, mentais e morais de um determinado
ambiente e da interação entre essas características. (SPITZER,
1984, apud MATTOS, 2001, p. 116)
Então, o narrador recebe a notícia da morte de lady Madeline, quando
Roderick menciona o fato de maneira brusca e “solicita a ajuda do narrador para
preservar o cadáver da defunta” (GOMES, 2017, p. 113) por quinze dias, antes do
funeral definitivo, devido ao “caráter extraordinário da enfermidade da defunta, e
também por causa da curiosidade ávida e inoportuna por parte dos médicos dela e
da distância em que se encontrava o jazigo da família” (POE, 2008, p. 168). A cripta
a que Madeline foi posta era “pequena, úmida e inteiramente privada de luz” (idem,
1839, p. 169), e o momento fúnebre, como é de se esperar, foi pavoroso,
63
principalmente pela descoberta de que Roderick e Madeline “tinham sido gêmeos, e
que afinidades de uma natureza dificilmente inteligível sempre tinham existido entre
os dois” (idem, 1839, p. 169). Demonstra-se que estavam “acorrentados um ao outro
por um amor incestuoso, sofrendo separadamente, mas morrendo juntos [...],
sujeitos a leis de esterilidade e destruição que os regem, são obrigados a exterminar
um ao outro” (SPITZER, 1984, apud MATTOS, 2001, p. 112).
Aproxima-se o clímax, já que a morte de lady Madeline produz grande tensão,
principalmente porque, como menciona o narrador, “uma visível mudança operou-se
no aspecto do distúrbio mental de meu amigo” (POE, 2008, p. 169), de forma a
potencializar as demonstrações de loucura, em especial no que se refere à
hipersensibilidade, pois “havia ocasiões [...] em que [...] eu era forçado a tudo
explicar com os inexplicáveis caprichos da demência, quando o via de olhar perdido
e fixo durante longas horas, numa atitude que denotava a mais profunda atenção,
como se escutasse algum som imaginário” (idem, 1839, p. 170). E, com o narrador
se contagiando pelas superstições de Roderick, talvez este realmente ouvisse, como
afirma em seguida.
Sete ou oito noites após a sepultura provisória de lady Madeline, o narrador
experimenta a insônia associada a “um invencível tremor (que) apoderou-se pouco a
pouco de meu corpo, instalando-se por fim em meu coração o íncubo do mais
absurdo alarme” (idem, 1839, p. 170), impressão esta somada a uma tempestade
iminente e à chegada assustadora de Roderick, “vítima de seus nervos” (SPITZER,
1984, apud MATTOS, 2001, p. 114), no aposento, já que “seu rosto apresentava
lividez cadavérica - mas, além disso, havia uma espécie de hilariedade demente em
seus olhos, e percebia-se uma evidente e contida histeria em seu aspecto” (POE,
2008, p. 171). Roderick, então,
olha em direção à nuvem que pressagia a morte. “E
você não viu isto?”, pergunta ele ao narrador, que
responde: “Você não deve - você não contemplará
isso”
-
“isso”
significando
“uma
claridade
sobrenatural, uma emanação gasosa que pairava
sobre a mansão e a envolvia em uma mortalha” obviamente uma sombra da “amortalhada” figura de
64
Madeline que veremos mais tarde e o sinal de que a
Casa de Usher está desistindo de sua alma.
(SPITZER, 1984, apud MATTOS, 2001, p. 114)
O narrador tenta acalmá-lo com a leitura de um de seus livros preferidos, a
estória de um herói que adentra a casa de um eremita à força e, ao invés de
encontrá-lo, depara-se e luta com “um dragão escamoso, de aspecto descomunal e
língua ígnea” (POE, 2008, p. 173). Entretanto, os sons que seriam produzidos pelo
protagonista Ethelred, tanto na derrubada da porta da casa quanto na luta com o
dragão - além do terceiro trecho transcrito, em que um escudo de bronze cai no
chão, defronte ao herói - são coincidentes e compatíveis com os “sons decorrentes
da fuga de Madeline do túmulo, os quais parecem estranhamente se harmonizar
com os eventos da história romanesca” (SPITZER, 1984, apud MATTOS, 2001, p.
115). Dessa forma, tais detalhes comprovam a grande força de Madeline citada
acima, na tentativa de resistir à maldição que fora lançada sobre sua família, afinal,
no momento de sua morte, mostra uma força
sobre-humana: “o destroçar de seu ataúde, o ranger
dos gonzos de ferro de sua prisão e a sua luta dentro
da cripta revestida de cobre” são por Roderick
comparados ao “arrombamento da porta do ermitão,
o grito de morte do dragão e o estrondo do escudo”,
ou seja, as façanhas do valente cavaleiro Ethelred do
romance de cavalaria lido pelo narrador para
Roderick. (SPITZER, 1984, apud MATTOS, 2001, p.
113)
Assim, Roderick e narrador, ambos, ouvem a luta de Madeline em sua saída
do túmulo, enquanto leem a história de Ethelred, até que o protagonista do conto de
Poe murmura, afirmando que seus sentidos aguçados haviam, na forma auditiva,
permitido que já tivesse ouvido os movimentos de sua irmã desde os primeiros dias.
Por fim, afirma, se pondo em pé num último esforço: “Eu afirmo que ela agora está
de pé atrás da porta!” (POE, 2008, p. 175), e em seguida a porta realmente se abre,
“como se na energia sobre-humana de sua elocução houvesse o poder de um
65
sortilégio, as enormes e antiquadas almofadas para as quais ele apontava recuaram
com vagar [...], obra de uma formidável rajada” (idem, 1839, p. 175), ação que faz
mostrar “a figura altaneira e amortalhada de lady Madeline de Usher”. Assim, a
deuteragonista
nos é apresentada numa apoteose de majestade na
morte, essa Ethelred feminina regressa, manchada
de sangue, como uma ”conquistadora” da sua
batalha com o dragão (uma batalha que quebra o
encantamento da morte) [...], enquanto seu irmão se
torna ao final do conto uma figura passiva cujo corpo
é reduzido a uma massa que treme. Se Roderick
representa a morte em vida e o desejo de morte, ao
final, Madeline torna-se a personificação da vida em
morte, na vontade de viver. (SPITZER, 1984, apud
MATTOS, 2001, p. 113).
Madeline, nesta cena congelada, permanece “trêmula, a vacilar no umbral depois [...] caiu pesadamente para dentro, sobre o corpo do irmão, e, em sua
violenta e agora final agonia, o que ela arrastou para o chão foi apenas um cadáver”
(POE, 2008, p. 175). Assim, Roderick e irmã morrem juntos, tanto temporal quanto
espacialmente, de maneira a confirmar as palavras de Spitzer (1984): “Roderick
enterra sua irmã viva, mas a rediviva Madeline enterrará Roderick sob seu caído
corpo” (apud MATTOS, 2001, p. 112). O narrador foge, completamente chocado com
os eventos que presenciou, e volta seu olhar apenas “para ver [...] uma lua no ocaso,
grande, da cor do sangue, que agora brilhava vivamente através daquela fenda
antes apenas perceptível, da qual [...] se estendia em zigue-zague desde o telhado
do edifício até o alicerce”. Finalmente, a casa desaba, de modo que a lagoa
profunda se fecha sobre os seus destroços - imagem sugerida por Poe logo no início
da obra, quando o narrador realiza o mesmo movimento, retornando o olhar em
primeira impressão da paisagem.
66
3. TERCEIRA PARTE - RELAÇÕES ENTRE AS OBRAS:
REFERÊNCIAS DO CONTO EM USHER-WALTZ
O presente trabalho aponta, nesta seção, possíveis relações entre as obras
analisadas separadamente nas páginas anteriores e utilizamos o argumento de
Zampronha ao afirmar que só será possível fazê-las, “sem esquecermos que música
é linguagem” (1990, p. 129). Logo, os trechos da obra musical de Nikita Koshkin que
possam fazer referência ao conto de Edgar Allan Poe são aqui descritos
extensamente e enumerados, de forma que as propostas interpretativas possam ser
sugeridas a partir destas inter-relações. Portanto, desde a epígrafe do conto, bem
como da primeira nota da partitura até o ponto final e a última pausa sonora,
respectivamente, seguem os detalhes que foram observados:
3.1 RELAÇÃO ENTRE AS OBRAS NO QUE SE REFERE À ESTRUTURA
A estrutura literária de A Queda da Casa de Usher se relaciona à obra
musical de maneira que na primeira, em sua forma condensada (em comparação
com os grandes romances da época - demonstradas na observação do trabalho de
autores anteriores a Poe, como Charles Brockden Brown, e também de posteriores,
como Mark Twain) de conto, nota-se o enredo breve e monotemático que conduz a
um clímax. O mesmo movimento acontece na obra de Koshkin, como podemos
observar nos contrastes extremos de textura, principalmente no que se refere ao
ponto culminante das seções de rasgueados dos compassos 160-179 e 249-271.
Além disso, outra relação entre as obras se refere à inserção de detalhes no
conto de Poe que sugerem a influência desta na obra musical, percebida pelo ritmo
de valsa que perpassa toda a composição de Koshkin (e inclusive está no título da
obra: “Usher-Waltz”, em tradução livre “Valsa de Usher”), que é uma alusão óbvia e
icônica à vivência musical que o narrador presenciou na Casa de Usher, numa
tentativa vã de animar o espírito de seu amigo de infância, o que se comprova
quando afirma: “entre outras coisas, conservei penosamente a recordação de uma
67
singular amplificação, ou antes perversão, de extravagante ária da última valsa de
von Weber” (POE, 2008, p. 164, grifo nosso).
3.2 RELAÇÕES PRELIMINARES: INTRODUÇÃO DOS MATERIAIS
“Seu coração é um alaúde suspenso;
Tão logo o tocamos, ele ressoa”50 (POE, 2008, p. 156)
Esta epígrafe, atribuída ao poeta Pierre-Jean de Béranger, introdução ao
conto, apresenta o cenário sombrio e misterioso ao imaginário do leitor em conjunto
com o primeiro parágrafo do texto, justamente por expressar a paisagem do conto
onde os acontecimentos se seguirão. Entretanto, Poe altera uma palavra em relação
à epígrafe original, visto que Béranger escreve “mon coeur”, traduzido como “meu
coração”; assim, essa alteração pronominal direciona o sentido da frase ao coração
de Roderick Usher. Vale afirmar, de acordo com Santaella (1985), que “os cenários
[...] nos contos de Poe [...] são molduras tonais que criam sintonias e isomorfismos
entre o que se conta, o modo como é contado e o efeito que vai consubstanciando”
(p. 155). Nesse sentido, a epígrafe se conectaria com os harmônicos dos compassos
1 a 5 (figura 42), que servem de introdução à obra musical, preludiando a harmonia
e a sonoridade do que virá a seguir. O alaúde suspenso ressoa, da mesma forma
que o violão, ecoa o acorde de mi maior com sétima menor; tal relação entre
linguagens, observada pelo viés da semiótica, elucida o ponto de que a técnica em
harmônicos é o signo (devido a seu caráter de posterior representação) do objeto
narrativo da epígrafe em Poe, visto que, de acordo com o quadro ilustrativo das
tricotomias dos signos de Peirce (2010), podemos definir este como o um símbolo
remático, definido como
signo ligado a seu Objeto através de uma associação de
ideias gerais de tal modo que sua Réplica traz à mente uma
imagem a qual, devido a certos hábitos ou disposições dessa
mente, tende a produzir um conceito geral, e a Réplica é
Tradução nossa:
“Son coeur est un luth suspendu;
Sitôt qu’on le touche, il résonne.”
50
68
interpretada como um Signo de um Objeto que é um caso
desse conceito (PEIRCE, 2010, p. 56).
Assim, assumimos uma semelhança timbrística entre o violão, instrumento
para o qual o compositor criou a peça, e o ícone que representa: o alaúde; e, além
disso, o caráter do que o autor denomina como “Termo Geral” pode ser visto na lei
natural da ressonância da própria série harmônica. O acorde de mi maior, então, tem
função de dominante na tonalidade da obra e inclui ainda uma dissonância, entre as
notas sol♯ e sol natural (que também pode ser visto como uma enarmonia de nona
aumentada), que reitera o ar nebuloso das duas obras.
figura 42 - compassos 1-5
Em seguida, o parágrafo do conto que inicia o discurso e apresenta não
apenas o caminho percorrido pelo narrador até a casa do protagonista mas também
os sentimentos suscitados no narrador ao contemplar a paisagem descrita, pode
sugerir um paralelo com a obra de Koshkin no que se refere ao tema motívico
principal, visto que este motivo, como novo material musical, pode se tratar de um
signo da inserção do protagonista em relação ao lugar que mora, simbolizando
concomitantemente a família, seu solar e os desalinhos da mente de Roderick
Usher. Então, a exposição do motivo acontece no compasso 6 (figuras 43 e 44 notas dó4-si3-dó3 dos compassos 6 e 7), quando a mão esquerda do violonista faz
um glissando descendente, soando todas as notas cromáticas entre as duas últimas
notas citadas. Na história da música ocidental, o cromatismo descendente,
exemplificado aqui, recebeu diversas tentativas de atribuição de significado
extra-musical. As figuras retórico-musicais51 descritas por Bartel (1997) no repertório
Admitem-se aqui as figuras retóricas não como a suposição da bibliografia acessada pelo
compositor, mas como argumento de que os sentidos extra-musicais convencionados nesse período
podem ser vistos como referência histórica quando da ocorrência, no repertório, de materiais
similares - no caso, o glissando descendente que produz as mesmas dissonâncias resultantes de
uma escala cromática descendente. .
51
69
barroco alemão incluem a denominada Passus duriusculus (o próprio autor reitera
que este “não é um termo retórico, mas sim a descrição vívida do artifício musical”52),
que é descrita como “uma linha melódica, ascendente ou descendente, alterada
cromaticamente” (BARTEL, 1997, p. 357, tradução nossa)53. Em um uso específico
desta figura retórica, principalmente quanto ao cromatismo descendente, seriam
representados modéstia, insignificância, ignobilidade e desdém. “Por essa razão,
uma frase ou tema que desce em semitons passo-a-passo e sem saltos é chamada
de subjectum catabatum” (idem, 1997, p. 215, tradução nossa)54.
figura 43
figura 44
compasso 6
compasso 7
3.3 A COINCIDENTE RELAÇÃO ENTRE O NÚMERO DE APRESENTAÇÕES
MOTÍVICAS NA PEÇA E A DUPLICIDADE DE SENTIDO DO TERMO “CASA DE
USHER”
3.3.1 USHER-WALTZ
O tema principal da obra musical, mencionado no item 3.1 (início de duas
semínimas descendentes com vibrato e ritenuto num intervalo de semitom),
associado com um glissando ao seu desenvolvimento, que podem ser descritos
como compassos que preenchem e marcam o ritmo de valsa de maneira intercalada,
sendo um compasso de semínimas e outro de colcheias (este último um arpejo que
se inicia com o baixo e percorre a tessitura média do violão, quase sempre finalizado
“[...]
passus duriusculus is not a rhetorical term, but rather a vivid description of the musical device”
(BARTEL, 1997, p. 357).
53
“Passus duriusculus: a chromatically altered ascending or descending a melodic line” (idem, 1997,
p. 357).
54
“For that reason a phrase or theme which descends in semitones by step and without any leaps is
called a subjectum catabatum” (idem, 1997, p. 215).
52
70
com um movimento cromático descendente), aparece repetidamente ao longo da
obra, em suas variações. Segue a enumeração:
3.3.1.1 Primeira apresentação do motivo
A primeira vez que se pode observá-lo é no compasso 6 (figuras 45 e 46), em
sua exposição, na tonalidade de lá menor. Inicia-se pelas notas dó (segunda corda,
casa 13) e si, com um glissando de 7ª maior descendente direcionado ao dó (este
também na segunda corda, mas na casa 1) e arpejos de mi maior com sétima
menor, dominante da tonalidade (figura 46);
figura 45 - compasso 6
figura 46 - compassos 7-11
3.3.1.2 Segunda apresentação do motivo
figura 47 - compassos 14-18
71
Em seguida, é repetido no compasso 14 (figura 47), o que permite que o
ouvinte o identifique e assimile como importante para a obra. Já se percebe uma
leve variação harmônica, de forma que haja uma progressão que estenda a obra
para as seções contrastantes que vêm a seguir;
3.3.1.3 Terceira apresentação do motivo
No compasso 73 (figura 48), o tema surge pela terceira vez, ainda na mesma
tonalidade. Entretanto, não apenas o glissando deixa de preencher o espaço
intervalar de 7ª menor, como nas vezes anteriores, e passa a realizar uma 4ª justa
descendente, iniciando no si e parando no mi, como também a harmonia se expande
a outras regiões não exploradas pelo compositor anteriormente nesta obra;
figura 48 - compassos 73-75
3.3.1.4 Quarta apresentação do motivo
A quarta aparição, no compasso 145 (figura 49), é a transposição do tema
principal para a região de Ré menor (região de subdominante menor), o que
demonstra um expressivo contraste e acumula tensão harmônica. Afinal, o trecho
antecedente prepara a entrada desta nova região harmônica com um crescendo em
um trecho de acordes em blocos e paralelismos (figura 50 - compassos 142-144);
figura 49 - compassos 145-148
72
figura 50 - compassos 142-144
3.3.1.5 Quinta apresentação do motivo
Por fim, a quinta exposição, no compasso 153 (figura 51), retoma a região de
tônica (Lá menor) logo após a sua apresentação em ré. Entretanto, faz como se
repetisse o início, trazendo um desenvolvimento tardio que culmina nos rasgueados
da seção de maior textura da obra toda. Ou seja, a última exposição prepara a
tensão que finaliza a obra.
figura 51 - compassos 153-154
3.3.2 A QUEDA DA CASA DE USHER
Coincidentemente, as cinco vezes em que a obra musical apresenta o tema
são relacionáveis às cinco vezes em que Poe menciona uma relação explícita entre
os dois sentidos do termo “Casa de Usher”, que significa não apenas a casa física,
que o narrador descreve no decorrer do conto, como também a própria linhagem
familiar. Esta duplicidade de interpretação é possuidora de caráter indicial, por ter
passado do caráter de qualidade do termo e se apresentar como signo existente:
Poe se refere a este dado de maneira explícita, como será observado nos próximos
73
subitens. Aqui, novamente, segue a descrição de cada uma das vezes em que isso
ocorre:
3.3.2.1 Primeira afirmação de duplicidade de sentido
A primeira menção ocorre no início do conto, durante a introdução, onde o
narrador evidencia a atmosfera sombria que seguirá: o relato das características
físicas da casa e do caráter introspectivo do temperamento e da personalidade da
antiga família Usher (que apenas se perpetuava por descendência direta) faz com
que seja possível ao narrador traçar um paralelo entre ambos e especular a
influência que um pode ter tido sobre o outro no passar dos séculos. Nessa primeira
exposição, Poe atribui aos camponeses a dissolução do título da propriedade no
termo “Casa de Usher”, evidenciando seu duplo sentido;
3.3.2.2 Segunda afirmação de duplicidade de sentido
Na segunda, já no desenvolvimento do conto (correlação ao compasso 14), o
narrador mostra a visão não dos camponeses mas do próprio Roderick Usher sobre
este mesmo assunto, afirmando que o protagonista “estava acorrentado por certas
impressões supersticiosas relativas à propriedade onde vivia”, e acreditava que
sofria de uma “influência que algumas particularidades da forma e da substância de
sua casa de família haviam exercido [...] sobre seu espírito” (POE, 2008, p. 162).
Atentemo-nos ao fato de que Poe utiliza as palavras “física”, se referindo à natureza
do edifício e do pântano, e “moral”, se referindo à vida de Roderick Usher, e as
coloca em itálico, de forma a chamar a atenção do leitor a essa correlação,
sobressaltando-se assim o vínculo narrativo basilar que exprime e evidencia o
caráter misterioso do conto;
3.3.2.3 Terceira afirmação de duplicidade de sentido
Na terceira vez em que esta relação dúbia entre a casa e a família aparece, a
menção é discreta, já que o narrador não descreve os mesmos fatores de maneira
74
didática e extensa, seguindo rapidamente ao desenvolvimento do enredo. Assim, ele
afirma “a inutilidade de todas as tentativas de animar uma mente que impregnava de
sombras [...] todos os objetos do universo moral e físico, como numa constante
irradiação de angústia” (grifo nosso);
3.3.2.4 Quarta afirmação de duplicidade de sentido
Da mesma forma, na quarta vez em que esta narrativa é apresentada, o
narrador explana a crença do protagonista acerca da sensibilidade não apenas de
plantas como também de coisas inanimadas, ou seja, a sensibilidade até mesmo da
“atmosfera própria àquelas águas e paredes”, que tinha até mesmo influenciado de
forma que “durante séculos tinha formado os destinos de sua família e feito dele o
que [... ] ele era" (POE, 2008, p. 168). Isso torna óbvia, mais uma vez, e comprova a
crença de Roderick na superstição que interliga as relações entre a família e a
mansão;
3.3.2.5 Quinta afirmação de duplicidade de sentido
Na quinta e última vez em que o narrador discorre sobre esse ponto, ele
afirma ter sentido que o estado de Roderick Usher quase o contagiava, e em
seguida atribui à mobília, ou seja, à casa, o agravamento dessa sensação. Neste
trecho, ele demonstra que o estado mental do protagonista o atinge, o que se traduz
na preparação ao clímax do conto, quando o narrador confirma o terror de Roderick
que antes julgava infundado: sentia “as sorrateiras e bizarras influências das
superstições de meu amigo, tão fantásticas quanto impressionantes”. Esta sensação
de terror, o personagem inominado atribui também à iminente tempestade e à
decoração do quarto em que estava, e aqui se evidencia a relação entre o estado
mental de Roderick e a casa, dessa vez incluindo o espírito do próprio narrador. E,
assim, é preparado o clímax da estória, que acontece sete ou oito dias após a morte
de Madeline, quando experimenta numa noite de insônia “todo o poder de tais
impressões” e ouviu “certos sons, baixos e indefiníveis, que, a longos intervalos,
75
provinham não sei de onde entre as pausas da tempestade” (POE, 2008, p.
170-171).
3.3.3 RESPECTIVAS RELAÇÕES ENTRE AS OBRAS DE NIKITA KOSHKIN E DE
EDGAR ALLAN POE
Dessa forma, o tema principal da obra de Koshkin, tanto em sua exposição
quanto em suas variações, pode ser relacionado ao duplo sentido do termo “Casa de
Usher” nestas cinco vezes, respectivamente. Sendo esta a argumentação mais
extensa devido à complexidade dos dados que aqui se especificam, novamente
seccionam-se os materiais de correlação:
3.3.3.1 Primeira apresentação do tema nas obras
A primeira exposição (item 3.3.1.1) do tema equivale à primeira vez em que o
narrador menciona a visão dos camponeses sobre a família e a casa Usher (item
3.3.2.1), justamente por serem ambas as primeiras vezes que os autores expõem o
material que interliga estruturalmente as obras. Ao apontarmos, no primeiro subitem,
a referência de Bartel sobre Passus duriusculus e Subjectum catabatum como
associação possível devido à força do uso, entendemos o motivo de semitom e
glissando como símbolo semiótico da patologia de Roderick Usher. Os intervalos
dessa melodia utilizam, ao mesmo tempo, o cromatismo e a dissonância do semitom
como signo da fissura detectada pelo narrador no início do conto e que, no fim,
engole os destroços da Casa de Usher em ruínas. Vale ressaltar que, a partir da
observação deste dado no primeiro item, todos as reexposições do motivo serão
portadoras deste mesmo significado, visto que a função desta repetição é a
reiteração do mesmo signo, tanto no conto quanto na Usher-Waltz.
3.3.3.2 Segunda apresentação do tema nas obras
A repetição do tema na Usher-Waltz, logo em seguida, no compasso 14 (item
3.3.1.2 - figura 47), equivale à segunda vez em que Poe se refere à natureza física
76
da casa e ao estado mental do protagonista (item 3.3.2.2), e isso faz sentido quando
observamos que, em ambas as obras, há, na repetição, um desenvolvimento
explícito nos discursos literário e musical. Na obra de Koshkin o que se repete da
primeira exposição do tema são apenas os três primeiros compassos (figura 52 comparação entre compassos 6-9 e 14-17), e a variação harmônica cria o contraste
dos compassos 19-21 (figura 53), que culminam na segunda seção da obra, no
compasso 33 (figura 54), intercalando acordes consonantes e dissonantes em ritmo
de valsa, enquanto em Edgar Allan Poe o dado repetitivo aponta um diferente ponto
de vista: no item anterior (3.3.2.1), a perspectiva é a do narrador sobre os
camponeses, que especulam sobre o duplo sentido do título do conto, visto que o
narrador afirma que
a falta de ramos colaterais, e a consequente transmissão
direta, de pai para filho, do patrimônio e do nome, tinha por
fim identificado a ambos de tal forma que dissolvera o título
original da propriedade na denominação equívoca e estranha
de “Casa de Usher” - denominação que parecia incluir, na
mente dos camponeses que a usavam, a família e o solar da
família (POE, 2008, p. 158, grifo nosso).
Já no item posterior (3.3.2.2), ou seja, na segunda menção deste mesmo
aspecto de duplicidade de sentido, o viés demonstrado adiciona informações acerca
do impacto “que a natureza física das paredes [...] tinha finalmente produzido sobre
o moral de sua vida” (POE, 2008, p. 162), se referindo à visão do narrador sobre seu
contato com Roderick. Assim, o relator menciona ter observado
por intermédio de alusões ambíguas e fragmentárias, uma
outra característica essencial daquele seu estado mental. Ele
[Roderick]
estava
acorrentado
por
certas
impressões
supersticiosas relativas à propriedade onde vivia e de onde,
por muitos anos, nunca se afastara; impressões relativas,
mais especificamente, a uma influência cuja força hipotética
era exposta numa linguagem demasiado nebulosa para que
a
reproduza
aqui,
uma
influência
que
algumas
particularidades da forma e substância de sua casa de
77
família haviam exercido, à força de um longo sofrimento disse-me ele -, sobre seu espírito (POE, 2008, p. 162, grifos
nossos).
figura 52 - compassos 6-9 em comparação com compassos 14-17
figura 53 - compassos 19-21
figura 54 - compassos 32-33
3.3.3.3 Terceira apresentação do tema nas obras
A reexposição do tema no compasso 73 (item 3.3.1.3 - figura 48), destacada
pela abreviação do glissando descendente e pelo desenvolvimento alternativo de
uma nova seção com harmonia diferenciada (de início, o glissando, ao invés de
atingir o acorde de lá menor, chega a um acorde de tríade diminuta e sétima menor
78
em primeira inversão, com a manutenção do lá no baixo - figura 55, e se desenvolve,
após oito compassos a partir do compasso 74, a uma nova seção - figura 56) é
interligada à menção rápida da dúbia relação entre a casa e a família Usher por meio
da também reduzida citação da impossibilidade de alterar o temperamento de
Roderick (item 3.3.2.3). Essa se dá, desta vez, pela efêmera citação dos mesmos
termos, “do universo moral e físico”, no contexto da consciência, por parte do
narrador, da inutilidade de seus esforços ao tentar fazer espairecer o protagonista.
figura 55 - compassos 73-74
figura 56 - compasso 82
3.3.3.4 Quarta apresentação do tema nas obras
A penúltima variação do tema aparece em ré menor (item 3.3.1.4 - figura 49),
afirmando um distanciamento da região de tônica da peça por meio de uma curta
modulação. De acordo com Schoenberg (1969), a região de subdominante menor é
considerada uma região próxima, pela quantidade de notas em comum com a região
de tônica. A tensão gerada, resultante do contraste promovido pela modulação, pode
ser relacionada à explicação no conto da origem das superstições do protagonista,
ou seja, da crença na sensibilidade de que não apenas as plantas, como seres vivos
de outro reino que não o animal, como também de seres inanimados, como as
pedras das paredes de sua própria mansão (item 3.3.2.4). Afinal, a menção a esse
79
obstinado pensamento de Roderick Usher é um elemento que comprova, dada a sua
argumentação, a influência da atmosfera da mansão no destino de sua família.
3.3.3.5 Quinta apresentação do tema nas obras
figura 57 - compassos 153-159
figura 58 - compassos 160-163
Por fim, a última exposição do tema (item 3.3.2.5) faz como se repetisse a
primeira aparição do tema nos compassos 153-159 (figura 57). Usualmente a
retomada da região harmônica de tônica seria marco de estabilidade, porém Koshkin
insere intencionalmente um desenvolvimento que a descaracteriza: a retomada da
região após a modulação próxima à subdominante não é assertiva e a tensão
textural nos rasgueados, iniciada no compasso 160 (figura 58), permite a
assimilação do afastamento brutal do espaço harmônico funcional. Esse trecho se
relaciona com a introdução ao conto de Poe, que inicialmente se referia ao efeito
característico da duplicidade de sentido entre a casa e a família de Usher, e
80
finalmente alude à interferência desta duplicidade no universo psicológico do
narrador, que afirma sentir “as sorrateiras e bizarras influências das superstições de
meu amigo, tão fantásticas quanto impressionantes, penetrando-me de forma lenta,
mas segura” (POE, 2008, p. 170, grifo nosso), ao qual se segue a descrição da noite
de insônia e tempestade que assolam respectivamente o narrador e a mansão.
3.4 REFERÊNCIA ENTRE AS OBRAS: CISÃO ESTRUTURAL
figura 59 - compassos 1-2 em comparação com compasso 107
O conto de Poe apresenta uma quebra na forma em prosa do texto quando
coloca, por extenso, um poema que teria sido recitado por Roderick Usher em um de
seus improvisos ao violão. Tal interrupção da narrativa é percebida por Santaella
(1985), que conecta esta adição poética à prosa com a fissura, no que se refere à
imagem arquitetônica descrita pelo autor, que o narrador nota, fenda que
“estendendo-se do teto, na fachada, descia pela parede abaixo, formando
ziguezagues, até se perder nas águas sombrias do charco”. Esta relação entre a
ruptura formal do texto e o termo “fissura” como detalhe imaginativo-visual da estória
se dá em primeiridade na semiótica, de forma que no conto, a primeira cisão é
sintática, classificável como sinsigno icônico, se torna um signo da inconstância do
protagonista. No caso da obra musical, ambos os cortes (tanto a fissura descrita na
apresentação da paisagem, no início do conto, quanto a cisão textual no trecho em
que se apresenta o poema “O Solar dos Espectros”) são apresentados, já que na
81
introdução à peça de Koshkin é tocado em harmônicos artificiais o arpejo do acorde
de mi maior com sétima menor, somada à dissonância entre sol natural e sol♯,
trecho que é repetido no compasso 107 (figura 59), desta vez sem harmônicos. A
dissonância mencionada, vista como legisigno, que na realidade é característica não
apenas nos motivos da peça como também em grande parte dos acordes,
representa
simbolicamente
uma
fissura
no
sistema:
há
progressiva
descaracterização modal, como na incidência de acordes com terças maiores e
menores apresentadas simultaneamente, signo da instabilidade psicológica de
Roderick Usher.
3.5 RELAÇÕES ENTRE INSTRUMENTAÇÃO DA OBRA E CARACTERÍSTICAS
DO PROTAGONISTA
Uma característica trazida à atenção do leitor é a maneira com que a pena de
Roderick Usher aguça seus sentidos, e neste item de correlação destacamos a
instrumentação que Koshkin escolheu para abordar a Usher-Waltz, não apenas
devido ao fato de que o violão foi estudado pelo compositor mas também devido à
citação específica, no conto, de que a audição do protagonista era sensível a ponto
de ouvir Madeline viva desde o primeiro dia de sepultamento, tanto que tal
percepção “lhe tornava intolerável qualquer música, exceto certos efeitos de
instrumentos de corda55” (POE, 2008, p. 165). Este dado é coerente ao observarmos
as características sonoras e estruturais do violão que, como instrumento acústico
“possui uma grande variedade timbrística, porém [...] envelope dinâmico de
intensidade sonora com pouca sustentação ou impossibilidade de controle dinâmico
após o ataque” (MENESES & FORNARI, 2015, p. 196), particularidade considerada
por eles como uma restrição natural ao instrumento que resulta em som
particularmente suave. Dessa forma, o violão permitiria a apreciação musical a
No original, Edgar Allan Poe escreve “stringed instruments”, traduzido para “instrumentos de corda.
Entretanto, ressalta-se que na linguagem utilizada por músicos que falam português e inglês há uma
diferenciação entre “instrumentos de corda” e “instrumentos de cordas dedilhadas”. Este último, que
abrange instrumentos como alaúde, teorba, bandolim e especialmente o violão, é traduzido
geralmente como “plucked instruments”. Neste caso, Poe utilizou duas vezes o termo “stringed
instruments” - na primeira, não fez distinção quanto à técnica dedilhada ou friccionada com arco, mas
logo em seguida afirma que o protagonista, Roderick Usher, tocava violão; e na segunda, aproxima a
menção do termo à menção do instrumento, deixando explícito que essa diferenciação entre
“stringed” e “plucked”, aqui, não se aplica.
55
82
alguém que possuísse hipersensibilidade auditiva, como no caso de Roderick Usher.
Ressalta-se que esta associação direta entre a instrumentação da peça e a menção
do violão no conto é icônica, dada a observação de que o objeto e o signo são
idênticos na referência direta. Esta classificação acontece da mesma forma no
subitem 3.1 quanto ao uso, no signo (peça musical), do ritmo de valsa e, no objeto, a
menção formal do termo. Além disso, no que se refere às características de
envelope dinâmico do instrumento e, consequentemente, dos aspectos sonoros,
uma primeiridade se apresenta, na condição de primeira tricotomia (qualisigno), visto
que o resultado sonoro é decorrência das qualidades do violão.
3.6 RELAÇÃO ENTRE A PROGRESSIVA ASSUMPÇÃO DE IRRACIONALIDADE
DO NARRADOR NO CONTO E O AFASTAMENTO DA REGIÃO TONAL EM
DIREÇÃO AOS ACORDES EM PARALELISMO EM USHER-WALTZ
Outro item de correlação parte da visão do narrador do conto sobre a doença
de Roderick Usher. Em princípio, ele tenta negar veementemente quaisquer
pressentimentos de tensão, pois sabe que não são racionalmente explicáveis. Isso
pode ser percebido quando o narrador se questiona: “que era isso que tanto me
atormentava na contemplação da Casa de Usher?”. Então, sem conseguir responder
à própria pergunta, afirma que “era possível que um simples arranjo diferente dos
pormenores do cenário, das minúcias do quadro, seria suficiente para modificar ou
talvez aniquilar sua capacidade de suscitar impressões penosas”. Entretanto, à
medida que avança, adentrando a casa e convivendo por dias com Roderick,
começa a perceber que a tentativa de animar seu espírito era inútil e em vão; em
consequência, o narrador apresenta indícios primitivos, involuntários e crescentes da
crença na superstição, o que se percebe pela descrição extensa de vários itens
marcantes nessa visita. Um exemplo seria a descrição completa do poema “O solar
dos espectros”, recitado por Roderick, em que o narrador diz “perceber pela primeira
vez uma inteira consciência, por parte de Usher, do vacilar do trono de sua própria
razão”. Entretanto, essa narrativa se aproxima em seguida ao clímax: o narrador
começa a sucumbir, não intencionalmente, à crença que acreditava ser irracional, o
que acontece após a morte de Madeline. Todos estes fatores culminam na descrição
83
detalhada de sua insônia numa noite de tempestade iminente, associada ao
encontro com Roderick em seu estado mais agitado, o que ocorre de maneira crítica
(de acordo com a reaparição de Madeline, de forma que o narrador sai correndo da
casa e, ao olhar para trás, vê o seu desmoronamento.
Essa
longa descrição narrativa do processo da passagem do racional ao
irracional, vivenciado pelo narrador e percebido pouco a pouco na leitura do conto de
Poe, se traduz na obra de Koshkin no que se refere ao uso do sistema tonal, que no
início se apresenta tão delimitado em lá menor (especificamente nos compassos da
primeira seção, que apresenta repetidas cadências de função dominante-tônica, seja
com acorde de Mi maior com sétima menor ou com tríade diminuta em sol♯:
compassos 6-7, 10-11, 14-15, 25-28, 30-31) e, à medida que a obra se segue, a
expansão e a descaracterização do tonalismo se configuram.
Aqui, percebe-se, ao mesmo tempo, uma primeiridade, no que se refere à
variação de textura e timbre, dada pelos rasgueados; uma segundidade, quanto ao
caráter indicial da progressiva tensão criada pelo afastamento harmônico, pelas
dissonâncias e pelas variações de textura e intensidade; e uma terceiridade, pelo
fato de esse mesmo afastamento harmônico significar uma ruptura com um sistema
já estabelecido pelo uso (sistema este como lei geral): quebram-se expectativas
quanto à forma e quanto ao sistema tonal, por exemplo. Assim, o compositor utiliza o
material externo à funcionalidade tonal (como os rasgueados em paralelo) como
símbolo de enlouquecimento, e o faz de forma a aproveitar, seguida à afirmação de
um sistema tonal, a negação do mesmo material.
figura 60 - compassos 82-85
Esse dado é percebido a partir da seção que se inicia no compasso 82, que
apresenta paralelismos pela primeira vez, de forma que os quatro primeiros
compassos, 82-85 (figura 60), são repetidos simetricamente (distância de um tom
84
entre as repetições) nos compassos 90-93 (figura 61). Os compassos 86 e 94 (figura
62) também são respectivamente paralelos aos compassos 87 e 95 (figura 62), com
exceção das notas do baixo, que ainda fazem referência ao movimento cadencial
entre dominante e tônica (na mesma ordem, intercaladamente as notas lá e mi).
figura 61 - compassos 90-93
figura 62 - compassos 86-87 em comparação com compassos 94-95
figura 63 - compassos 133-135
figura 64 - compassos 137-141
O paralelismo começa a preencher toda a obra, suprimindo a noção de
tonalidade: aparece nos compassos 133 e 135 (figura 63), que culmina no trecho de
extensa tensão que prepara a entrada do tema em ré menor: compassos 137-141
(figura 64 - baixo repetindo nota pedal mi enquanto as notas tocadas no pulso
85
mantêm o mesmo intervalo de 6ª maior: lá♭-fá, si♭-sol, dó♭-lá♭, mi-dó♯, etc.);
surge novamente nos trechos de rasgueado dos compassos 160-179, que também
realiza um acúmulo de tensão, desta vez provocado pela maior densidade textural e
pelo ostinato do baixo, que ainda segue a harmonia (varia de lá-mi-si♭ a sol-mi-lá♭
e a dó-mi-ré♭), além de executar, ao mesmo tempo, um rasgueado e um glissando,
no compasso 171 (figura 65).
figura 65 - compassos 171-172
figura 66 - compassos 189-193
Os rasgueados em paralelo dão lugar à seção que se inicia no levare do
compasso 190 (figura 66), que, apesar do baixo manter as notas lá e mi
intercaladas, estas não mais servem de ligação harmônica, já que perdeu-se quase
toda a sensação de tonalidade que era percebida devido às cadências que não são
mais realizadas: agora, ouve-se um acorde de lá diminuto (se percebermos o ré♯
enarmonicamente como mi♭), que permanece nos compassos 190-193 (figura 66),
seguido por três compassos, iguais, em lá menor (figura 67), até que no compasso
197 (figura 67) ouvimos uma dupla sensível ao mi como preparação para o retorno
do lá diminuto. Ou seja, não apenas as dissonâncias ficam em primeiro plano, como
também o retorno à tonalidade aparece de maneira viciada, pois a repetição idêntica
de três compassos se relaciona à criticidade do estado psicológico de Roderick.
86
figura 67 - compassos 194-197
figura 68 - compassos 204-210
Faz-se, aqui, necessário apontar a última vez que a obra musical realiza a
cadência dominante-tônica, que seria marco do último lampejo de racionalidade,
tanto em Usher quanto no narrador: acontece nos compassos 204 e 208 (figura 68),
na tessitura de quatro oitavas, máxima permitida pelo instrumento, de forma tão
pontual que a dissonância que permite ouvir o lá diminuto citado acima se sobrepõe,
seguida a um novo paralelismo nos compassos 206 e 210 (figura 68). Chama a
atenção o recurso, já explorado por Villa-Lobos na década de 1920 (destaca-se o
terceiro de seus 12 Etudes pour Guitare), de afastar-se da afirmação da tonalidade
(ao mesmo tempo em que se exprime a natureza do instrumento) com os
87
paralelismos de posições similares de mão esquerda ao violão. Se os
encadeamentos paralelos como diluição ou negação da tonalidade remetem à obra
de Debussy, a utilização simultânea das cordas graves do violão como bordões
sugere polifonicamente a permanência do centro tonal de que os paralelismos se
afastam.
88
4. PROPOSTAS INTERPRETATIVAS
Os subitens 3.1 a 3.6, mencionados acima, trazem unidade entre o conto de
Edgar Allan Poe e a obra musical composta por Nikita Koshkin, principalmente
quando comparados a partir da sugestão do compositor no título da peça. Visto que
este trabalho tem como objetivo uma proposta interpretativa, tais correlações tomam
proporções mais extensas no que se refere à relevância, pois a partir do que se
aponta acima intenciona-se promover um destaque na performance.
Desta forma, o subitem 3.1 sugere, no que se refere à observação da síntese
do clímax construído na narrativa por meio da utilização do contraste de textura, que
o intérprete toque cada rasgueado com a compreensão de que a dinâmica de
sforzando, presente nas edições de partitura da peça, não é trivial. Entretanto,
recomenda-se que o ostinato seja mantido em primeiro plano, pois são as notas
lá-mi-si♭ que farão a manutenção da linha do discurso musical.
No que se refere à forma, sugere-se que todos os acordes apresentados em
ritmo de valsa (baixo e melodia no primeiro tempo em mínima pontuada,
acompanhamento de tessitura intermediária no segundo e terceiro tempo em
semínimas), sejam tocados com a técnica de staccato. Percebe-se que o compositor
apontou anteriormente, em vários trechos (aponta-se aqui a seção B + A’, que expõe
muito desse material) das edições utilizadas neste trabalho, a utilização desta
ferramenta, visto que as partituras demonstram a pontuação que indica tal dado ao
intérprete. Entretanto, a falta dessa demarcação em alguns pontos (por exemplo,
nos compassos 30, 50, 52, 79, 94, 95, 99, 103, 105, 117, 119 - a enumeração se
segue em variação de acordo com a edição de referência) nos faz considerar a
intenção do compositor na escrita, além da questão da unidade não apenas dos
materiais da Usher-Waltz, mas também em sua relação com a obra de Edgar Allan
Poe.
Em relação ao subitem 3.2, que relaciona a introdução da peça à epígrafe e
ao caráter misterioso do conto, sugere-se que, do terceiro compasso ao fim da
introdução, não se cumpra o trecho de maneira ritmicamente restrita. Afinal, o mote
do conto insinua, ao utilizar o termo “ressoa”, uma continuidade lenta e uma
89
sonoridade quase monótona, apesar do fato dos acontecimentos do conto
abrangerem a dualidade entre os efeitos lentos das influências da casa sobre a
genealogia, ou vice-versa, e dos rápidos acontecimentos após a chegada do
narrador, que diz ter a impressão de antecipá-los apenas com sua chegada à
mansão. Além disso, até mesmo nas descrições iniciais de cenário e atmosfera são
suscitados, por empatia ao narrador, os mesmos sentimentos angustiantes, que não
se esvairão até o fim da leitura - aqui, novamente uma dualidade: os termos
mencionados podem se referir tanto ao conto quanto às imagens que as palavras de
Poe nos evocam.
As propostas apresentadas no presente trabalho quanto à análise do subitem
3.3 definem as dimensões das fermatas e dos ritenutos exprimidos por Koshkin, e
não se referem, necessariamente, ao tamanho da citação, no conto, da duplicidade
de sentido entre os aspectos morais e físicos mencionados. Observando que todas
as reexposições do motivo principal da peça possuem a indicação ritenuto, sendo
este apresentado ora no compasso de início (no qual percebe-se o semitom) ora no
compasso imediatamente anterior (como finalização de frase), sugerimos que seja
assumida, na interpretação, uma concepção de unidade, de forma que estas cinco
aparições sejam destacadas igualmente (excetuando apenas a exposição, que não
apenas se insere em andamento lento como também possui uma fermata além do
ritenuto, e a reexposição em ré que, devido ao próprio distanciamento harmônico
provocado pela modulação, apresentará tensão maior, mesmo que o violonista não
busque acentuar essa diferenciação, como especula-se ser a intenção do
compositor). Tal unidade pode ser alcançada ao assumir que a transição dos
compassos anteriores a cada reexposição seja a mesma; assim, sugere-se que os
ritenutos sejam realizados, nas cinco ocasiões, no compasso anterior à reexposição
do motivo. Assim, de acordo com a expressividade do intérprete, o ritenuto pode,
inclusive, direcionar o ouvinte à assimilação de uma breve fermata - assim,
ressalta-se que a exposição, sobre a qual efetivamente se observa tal indicação,
deve soar com maior exagero que as reaparições do motivo.
Quanto à fissura figurativa em ambas as obras mencionada em 3.4, sugere-se
que, no trecho que finaliza a frase anterior à referência da introdução
(especificamente na transição do compasso 106 ao 107), o intérprete apresente, na
90
execução, a referência à fenda. Entendendo a subjetividade deste subitem, a
sugestão faz inferência que este dado pode ser expressado a partir de um curto
trecho de silêncio após a última nota do compasso 106, na intenção de tornar este
hiato quase imperceptível devido ao ritenuto do mesmo compasso, visto que o
narrador afirma que “talvez o olho de um observador atento tivesse descoberto” esse
detalhe (POE, 2008, p. 159).
Em relação ao subitem 3.5, nada se sugere, visto que o dado mencionado
que associa a obra de Poe à de Koshkin diz respeito à instrumentação, e este dado
é imutável no caso de intérpretes violonistas. Por último, a partir do subitem 3.6, que
discute a relação entre a irracionalidade assumida progressivamente pelo narrador e
o afastamento da tonalidade funcional na peça de Koshkin, sugere-se a fruição das
recorrentes dissonâncias nos casos de incidência da simultaneidade de intervalos
como sétimas e nonas e de ocorrência de paralelismos. Na primeira circunstância,
sugere-se alongar minimamente, por exemplo, os primeiros tempos dos compassos
da seção B, enquanto que na segunda conjuntura, sugere-se uma leve aceleração,
principalmente nas seções de rasgueado, visto que o paralelismo se torna notório
devido ao clímax da peça.
Dessa forma, o intérprete, ao obter contato com este trabalho ou na
realização de sua própria análise, que resultam na assimilação dos fatores
referentes às possibilidades de alteração de parâmetros como intensidade,
andamento, timbre, articulação e agógica, permitem a tomada de liberdades
interpretativas de acordo com o progressivo afastamento da tonalidade funcional: a
critério do instrumentista, à medida em que a peça iniciar a exposição de dados não
tonais - visto que, em ordem a compreender os encadeamentos funcionais da
harmonia, tais parâmetros adquirem caráter de estabilidade, produzindo certa rigidez
da qual só se produzirá ruptura nas peças musicais contemporâneas -, sugere-se a
produção de variações dos parâmetros mencionados. Ressaltamos, ainda, que
independentemente
à
apropriação
do
intérprete
quanto
aos
dados
aqui
mencionados, é ele o responsável pelos resultados, dado que há diferentes
maneiras de atender a esta última sugestão, percebida pelas numerosas
possibilidades de apreensão destas orientações. Afinal, as liberdades artísticas
permitem que a absorção pelo intérprete e, consequentemente, pelo ouvinte, do
91
distanciamento harmônico, seja realizada musicalmente de maneiras diferentes,
desde a obediência inicial ao andamento e a criação final de expectativas dadas
pelos atrasos no ataque, até a variação timbrística no decorrer da peça. Entretanto,
é importante a manutenção da unidade da obra de Koshkin, com a escolha
cuidadosa do parâmetro a ser variado; afinal, a loucura de Roderick Usher, mesmo
insana, é ainda baseada no mais humano dos sentimentos, o medo.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vista do que foi discutido acima, as considerações do presente trabalho
têm como enfoque os resultados da análise, que se deram, principalmente no trecho
denominado “Propostas interpretativas”. Se exprimem, em primeiro plano, no quarto
item do desenvolvimento. Afinal, a pesquisa bibliográfica, que abrange, por exemplo,
biografias e análises musicais, só se justifica, no âmbito da performance artística,
pelas propostas interpretativas, analisadas as restrições que um trabalho de nível de
graduação impõem à pesquisa.
Dessa forma, podemos analisar criticamente os passos percorridos neste
trabalho, e o fazemos de maneira a constatar as prerrogativas que estas
considerações oferecem ao campo de pesquisa da arte, além das particularidades
relativamente comedidas em relação à aplicação, por exemplo, da semiótica, e
também a sugerir expansões em pesquisas futuras, de outros autores que se
interessarem.
Como um panorama do que realizamos neste trabalho, descrevemos aqui as
segmentações realizadas a fim de organizar os dados da pesquisa: em sua primeira
parte, abordamos a biografia do compositor Nikita Koshkin e realizamos uma
extensa análise de Usher-Waltz, que é signo da obra que analisamos na segunda
parte, A Queda da Casa de Usher, em conjunto com a biografia de Edgar Allan Poe.
Reservamos a terceira parte para apontarmos as relações observadas entre as
obras, que só foi possível devido às seções anteriores. Nela, inserimos delimitados
aspectos da semiótica que poderiam ser mais explorados, em uma pesquisa que
incorporasse e aprofundasse o estado da arte da teoria dos signos de Charles
Peirce. Na quarta seção, sugerimos aspectos musicais de acordo com a análise em
comparação aos elementos não musicais provenientes do conto, de forma que todas
as significações atribuídas ao signo (Usher-Waltz) tivessem referência em unidade
com o objeto (A Queda da Casa de Usher).
Assim, projeta-se que os dados finais, referentes à quarta parte deste
trabalho, promoverão reflexões na comunidade violonística e acadêmica e, mesmo
que as informações levantadas não sejam acatadas pelos presentes e futuros
93
pesquisadores do meio artístico-acadêmico, ao menos suscitarão antíteses e
discordâncias que poderão, futuramente, entrar em debate.
No que se refere às perspectivas de pesquisas acadêmicas a partir deste
trabalho, observamos diferentes caminhos, visto que não foram encontradas
bibliografias sobre a abordagem semiótica como ferramenta de análise em Koshkin
ou, sequer, em composições musicais para violão. Ressalta-se também que não há,
no Brasil, análises publicadas a respeito das obras de Nikita Koshkin, como um
compositor de extensa produção para o instrumento; e que infinitos são os temas de
pesquisas que relacionam elementos musicais e não musicais: a questão seria
encontrá-los, e este trabalho colabora nessa investigação.
94
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95
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Paulo: Editora UNESP, V. 6: p. 129-139, 1990.
96
Anexo 1
Transcrição de áudio da entrevista de Nikita Koshkin (2017)
Fonte: Tonebase (Masterclass, 2017)
Idioma original
FIRST PART
- Hello, everybody. My name is Nikita Koshkin and I am a guitar composer from
Moscow, Russia. Thanks for watching this video. I hope it will be interesting for you
because we shall talk about one of my very famous pieces or maybe the most
famous piece which is entitled "Usher-Waltz".
- Usher-Waltz is very successful and it is played by so many guitarists all over the
world, very different at level and some interpretations are good, some are not so
good; but it is really internationally famous. And this is very pleasant for me because
the piece is very very old, it is 33 years old.
- And it was actually composed in 1984, one day before my daughter was born. So I
remember even the exact date when the piece was finished. Now we'll talk about the
exact composition.
- You know, the piece was composed after the novel by Edgar Allan Poe, The Fall of
the House of Usher. Everybody knows that. But the situation is a little bit more
complicated because it is the meeting of two cultures: russian and american - very
romantic american writer Edgar Allan Poe and Russian Tradition of the Concert
Waltz. Many russian composers are doing that: writing big waltzes, concert waltzes,
and usually they are trying to make this waltz, as we say, modern waltz. Glinka was
doing that, Tchaikovsky was doing that, Rachmaninoff was doing that, Shostakovich
was doing that, Prokofiev was doing that, so it's quite very very deep russian
tradition, which was fulfilled in the music of many different composers and I followed
this idea and tried to make this unusual combination of two very interesting cultures.
- The Fall of the House of Usher I read when I was a teenager, something like, I don't
know, 13, you know, something like that. And I remember this moment when Usher
was improvising on the guitar, playing exactly waltz, and this mentioning of the guitar
was for me very strange because in those times guitar was not very popular in Soviet
Union (it was still Soviet Union), and I was surprised by this idea of mentioning guitar
in the novel, so I remember this moment. And then, later, when I started studying
guitar and composing, and some years passed, and then I decided suddenly to come
back to this moment in the novel, and to make it alive. My idea was to compose these
improvisations of Usher on the guitar. But, of course, it's not only about these
improvisations, it's also about the whole story in general.
- Several years passed, and I was trying to recall this moment and I was not even
sure that the guitar was mentioned. So i ran to the book and found exactly this place
and I saw "guitar", so I said "okay, that's good; great, so let's begin to work". And in
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the beginning the work was going very slow: it totally took me half a year to
accomplish the piece. But closer to the end it was coming better and better and finally
it was finished. Very fast I did, like, one third of the piece.
- So, as I said, it is a concert waltz, but a usual mistake of the guitarist is to play the
piece as [a] normal waltz. Because my idea was to make it unusual from the very
beginning.
SECOND PART
- That's why I put fast tempo, allegro agitato. But it comes not from the very first bar,
it has some kind of introduction in the beginning, which has harmonics. And I can
give one advice, because there are two phrases, one is on the trebles, and the other
phrase is harmonics on the basses. So it's better to play the harmonics with the [toca
o harmônico artificial sol♯ na corda mi grave com o polegar]... like that, with the
thumb, and to touch the string with the index finger, because then you will have no
noise. Because if you play like that [toca a mesma nota em harmônico com o anelar,
não com o polegar: sai ruído da corda]... usually we have this noise. So that's [a] first
advice, yes?
- This intonation which you play in the beginning on the harmonics is [a] kind of
leitmotiv which goes through the whole piece. And then, we come to this main theme,
which is the theme of waltz, but even the first intonation of it is quite unusual because
we have this [toca o início do tema: dó-si-(glissando)-dó]... this glissando which goes
from B to C, almost one octave down. Be careful to play it so this gliss will be
hearable. It's very important.
- I'm sorry, I'm not playing in so many years so it's kind of not easy for me to show
something but I'll try to do my best. So, then, you start with the theme and it has all
this typical for Austrian or Viennese Waltz. All these slow down, sudden ritenutos in
the end of the phrase, but generally it goes faster than [a] normal waltz, and it has
immediately this kind of tension which will grow through the whole piece. You know, it
has not this kind of structure like A-B-A or something like that. It goes through: the
development goes through and we can, of course, find some kind of bridges in the
music but the music was not built according to some classical structure of the piece. I
was just thinking about (more about) the development and development of the image,
because Usher starts playing waltz and getting more and more crazy and then, in the
end, he became completely insane.
- It has this A minor theme and then it comes to C major [toca parte B]. You know,
here I can give also one advice. You know, because it sounds very good when we
have kind of a crescendo to E, but we cannot make it on the melody so we have to
make it on the accompaniment.
THIRD PART
- And then it becomes more and more nervous and finally it comes to this episode
with the chords [toca rasgueado de lá com baixo em ostinato lá-mi-si♭]... Here, try to
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catch all the strings, because also an usual mistake is: they play [toca rasgueado
sujo, sem técnica flamenca] ... we hear only this chord [rasgueado de lá menor e
cordas soltas] and the second chord is kind of out.
- Then, here comes another theme, after this episode. [toca seção dó-lá-ré♯: lá
diminuto]. This melody I built it in that interval of octave just to show that, you know,
it's like a bird in a cage which tries to get out but it cannot. So it goes up to E♭ and
down to E♭ and up and down, but there is no way out. So we use this kind of
impression, quite a dramatic one.
- Then, after that, it goes on and on and on, and it comes to the climax of the piece
which is again with these chords [toca acorde rasgueado lá menor, cordas soltas,
lá♯ menor; com pizzicato bártok] and this pizzicato bártok. You know, it is called like
that because Bártok was the first composer to use this kind of pizzicato in this
quartet, I think, quartet number 4, where they played like that. But he used it for the
bowed instruments. And here it sounds exactly in the moment when Usher is so
crazy that, well, it sounds like he is trying to crash the strings of the instrument. But,
of course, be careful not to crash the strings of your guitar.
- The normal way to play pizzicato alla bartok is like that: with one finger [toca a
corda com o polegar da mão direita]... but in Usher-Waltz you have to move very
fast: it's a quite fast piece and it's getting faster to the end. So, that is not a very
stable way of playing for exactly this piece. So, my recommendation is to use two
fingers, which is much safer [toca o pizzicato com indicador e polegar]. You see? So,
this way, it gives to you this kind of very safe feeling because on the stage
sometimes you can miss the string and this is much more stable and sure way to play
this pizzicato alla bartok.
FOURTH PART
- Than we have this kind of diminuendo, with the harmonics. You know, I got the
feeling in the end that we need a reprise of the theme. But, of course, it was not
possible, because the piece is already finishing. So i thought, that instead of the
reprise, I could just remind the main theme, and it it will [...] remind the beginning and
the piece end will give this feeling of arc, before a coda. So, I use this [toca o tema
em harmônicos].
- So, it's really reminding the main theme, and gives this feeling of the reprise, though
the theme sounds not complete on the beginning. It's also a very important moment
in the piece, because before getting completely crazy, Usher gets kind of light in his
brains, [be]coming normal for a moment before the complete crash. And this is
exactly this kind of [thing] I was thinking about that while making the piece, that it
gives this kind of light which comes and disappears after that.
- Than we have this, [...] the ostinato bass that finishes the whole piece. But in the
very end we have this accelerando [mi-fá-mi-ré-mi♭-ré-dó-ré♭-dó♭-si♭].
- My first idea was to finish the piece on the piano. But I played myself the piece very
often in the concert for several years, and from the audience, on the moment that you
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are playing on the stage, you are sometimes feeling, getting some kind of messages
from the audience. And, from the audience, I understood that I have to change a little
bit the way I was playing the end. So, after this accelerando [toca o ostinato
lá-mi-si♭ mais rápido que o tempo primo], I started to make it coming back to the
tempo, fast tempo [toca o ostinato lá-mi-si♭ mais rápido que o tempo primo]. And
then harmonics, and then [última nota].
- It could be even more marcato. Be careful to have this little second [segunda menor
entre baixo pedal lá e ostinato lá-mi-si♭] in notes A and B♭. It gives this feeling of
horror in the end before the very last resonance.
- You know, first of all, be careful because when you are playing [this] kind of crazy
music it should be anyway in the musical borders, not going over that.
- So, that's all I was supposed to tell you about Usher-Waltz in this video, but if you
have some supplementary questions you're welcome to ask in Facebook, you can
find my page and write directly to me. But I hope that everything is quite clear. So, I
wish you success in playing my piece and also remember that Usher-Waltz was
composed 33 years ago and I made much more other music through those years and
lots of different stuff. So, you're welcome to come to this other compositions and
perform them also. Thank you very much, goodbye.
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Anexo 2
Transcrição de áudio da entrevista de Nikita Koshkin (2017)
Fonte: Tonebase (Masterclass, 2017)
Tradução nossa
PRIMEIRA PARTE
- Olá, pessoal. Meu nome é Nikita Koshkin e eu sou um compositor de peças para
violão, de Moscou, Rússia. Obrigado por assistir a este vídeo. Espero que você ache
interessante, porque nós falaremos sobre uma de minhas peças mais famosas, ou
talvez a mais famosa, que é intitulada "Usher-Waltz".
- Usher-Waltz é bem-sucedida, e é tocada por muitos violonistas por todo o mundo,
de diferentes níveis; algumas interpretações são boas, outras nem tanto; mas é,
realmente, famosa internacionalmente. É extremamente encantador, para mim,
porque a peça é bem antiga, compus há 33 anos.
- Ela foi, na realidade, composta em 1984, um dia antes do nascimento de minha
filha. Portanto, me lembro até mesmo a data exata que a peça foi finalizada. Agora,
vamos falar especificamente sobre a composição.
- Sabem, a peça foi composta em referência ao conto de Edgar Allan Poe, A Queda
da Casa de Usher. Todos sabem disso. Mas a situação é um pouco mais complexa
porque ela é o encontro de duas culturas: russa e americana - o escritor romântico
americano Edgar Allan Poe e a Tradição Russa de Valsas de Concerto. Muitos
compositores russos estavam fazendo isso: escrevendo grandes valsas, de
concerto, e frequentemente estavam tentando fazer valsas modernas dessas
composições. Glinka estava fazendo isso, Tchaikovsky, Rachmaninoff,
Shostakovich, Prokofiev também estavam; então isto é uma tradição bastante
profunda, realizada na música de tantos compositores diferentes, e eu segui essa
ideia e tentei criar essa combinação incomum de duas culturas muito interessantes.
- Eu li A Queda da Casa de Usher quando era adolescente, numa idade próxima aos
13 anos, algo assim. E me recordo exatamente o momento em que Usher estava
improvisando ao violão, tocando exatamente uma valsa, e essa menção ao violão
foi, pra mim, muito estranho, porque naquela época esse não era um instrumento
muito popular na União Soviética (era ainda União Soviética), e eu estava surpreso
pela ideia do conto mencionar violão, então me lembro desse momento. Então,
depois, quando comecei a estudar violão e a compor, passados alguns anos, e
então eu me decidi, subitamente, a voltar a esse momento no conto, e a torná-lo
vivo. Minha ideia era compor aqueles improvisos de Usher no violão. Mas, é claro, a
peça não é apenas sobre essas improvisações, é também sobre a peça como um
todo.
- Muitos anos se passaram e eu estava tentando me lembrar desse momento a eu
nem mesmo tinha certeza se o violão era mencionado. Então eu fui rapidamente ao
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livro e encontrei exatamente a palavra “violão”, então pensei “está bem, isso é bom;
ótimo, então vamos começar a trabalhar”. No começo, o trabalho estava bem lento:
levou seis meses para finalizar a peça. Mas, perto do fim, estava cada vez melhor,
até que finalmente tinha terminado. Fiz, rapidamente, quase um terço da peça.
- Então, como disse, é uma valsa de concerto, mas um erro comum do violonista é
tocar a peça como valsa comum. Porque a minha ideia era fazê-la incomum desde o
início.
SEGUNDA PARTE
- É por isso que eu coloco um andamento veloz, allegro agitato. Mas esse
andamento não se inicia desde o primeiro compasso, tem um tipo de introdução no
começo, com harmônicos. Eu posso dar uma sugestão, porque são duas frases:
uma nos agudas, outra nos graves. Então, é melhor tocar os harmônicos … [toca o
harmônico artificial sol♯ na corda mi grave com o polegar]... assim, com o polegar e
encostar na corda com o dedo indicador, porque assim você não produzirá ruído. Se
tocar assim … [toca a mesma nota grave em harmônico com o anelar, não com o
polegar: sai ruído da corda]... normalmente se tem esse barulho [da unha ao raspar
na corda]. Então este é o primeiro conselho, sim?
- Esta entonação que se toca no começo, com harmônicos, é como leitmotiv que que
perpassa a peça inteira. Depois, chegamos a este tema principal, que é o tema de
valsa, mas até mesmo a primeira entoação é bastante incomum porque temos esse
... [toca o início do tema: dó-si-(glissando)-dó]... esse glissando que vai de si a dó,
quase uma oitava abaixo. Seja cuidadoso ao tocar, de forma que o glissando seja
audível. É muito importante.
- Me desculpe, não estou tocando há muitos anos, então não é, para mim, muito fácil
mostrar algo, mas tento fazer meu melhor. Então, começa o tema, e tem esse
caráter típico de Valsa Austríaca ou Vienense. Tudo isso se desacelera, com
ritenutos súbitos no fim de frase, mas geralmente o andamento é mais veloz que
valsas normais, e tem imediatamente esse tipo de tensão que crescerá através da
peça. Sabe, a peça não tem estrutura formal como A-B-A ou algo parecido. Ela se
segue: o desenvolvimento se segue e podemos, claro, encontrar algumas pontes na
música mas ela não foi construída de acordo com alguma estrutura clássica da peça.
Eu estava pensando apenas sobre o desenvolvimento da imagem, porque Usher
começa a tocar valsa e fica cada vez mais alucinado até, no fim, ficar
completamente insano.
- A peça tem o tema em lá menor, até chegar a dó maior [demonstra, tocando a
Seção B da peça]. Sabe, aqui posso dar mais um conselho Sabe, porque soa muito
bem quando temos um crescendo até o mi, mas não podemos fazê-lo na melodia,
então tempo de fazê-lo no acompanhamento.
TERCEIRA PARTE
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- Então, a peça começa a ficar mais e mais inquieta e finalmente chega a esse
episódio com os acordes [toca rasgueado de lá com baixo em ostinato lá-mi-sib]...
Aqui, tente alcançar todas as cordas, porque outro erro comum é: geralmente tocam
… [toca rasgueado sujo, sem técnica flamenca] ... Ouvimos apenas esse único
acorde, [rasgueado de lá menor e cordas soltas] e o segundo acorde não ressoa.
- Então, chega outro tema depois desse episódio [toca seção dó-lá-ré♯: lá diminuto].
Esta melodia eu construí no intervalo de oitava [entre ré♯ e mi♭] apenas para
mostrar que, sabe, é como um pássaro numa gaiola, que tenta sair mas não
consegue. Então vai ao mi♭ agudo e ao mi♭ grave, mas não existe saída. Então,
usamos esse tipo de impressão, bastante dramática.
- Então, depois disso, a peça se desenvolve e chega no clímax que é, novamente,
nestes acordes ... [toca acorde rasgueado lá menor, cordas soltas, lá♯ menor; com
pizzicato bártok]... e esses pizzicatos bártok. Sabe, essa técnica recebe esse nome
porque Bártok foi o primeiro compositor a usar esse tipo de pizzicato em seu
quarteto, eu acho, quarteto nº 4, onde eles tocavam dessa forma. Mas ele usou em
instrumentos de corda friccionada. E aqui, soa exatamente no momento em que
Usher estava tão lunático que, bem, soa como se ele estivesse tentando estourar as
cordas de seu instrumento. Entretanto, é claro, cuidado para não estourar as cordas
de seu violão.
- A maneira normal de tocar pizzicato alla bartok é com um dedo [toca a corda com o
polegar da mão direita]... Mas, em Usher-Waltz, você deve se deslocar muito
rapidamente: é uma peça bastante rápida e, no fim, fica ainda mais rápida. Então,
essa não é uma maneira muito estável de tocar nesta peça. Então, minha
recomendação é usar dois dedos, que é muito mais seguro [toca o pizzicato com
indicador e polegar]. Você vê? Então, dessa forma, isso produz essa sensação de
segurança porque, no palco, às vezes você pode errar a corda e assim é uma forma
muito mais estável e certeira de tocar esse pizzicato alla bartok.
QUARTA PARTE
- Então, temos esse esse diminuendo, com os harmônicos. Sabe, tenho a impressão
de que, no final, que precisamos de uma reprise do tema. Mas, é claro, isso não é
possível, porque a peça está já acabando. Então, pensei que, ao invés da reprise, eu
poderia apenas relembrar o tema principal, e isso [...] nos lembrará o início, e a
finalização da peça nos dará a sensação de arco, antes da coda. Então eu isso isso
...[toca o tema em harmônicos].
- Assim, a coda realmente lembra o tema principal e dá a sensação de reprise,
mesmo que o tema não soe completo na no início [da reexposição]. É, também, um
ponto muito importante da peça porque, antes de ficar realmente louco, Usher
recebe um tipo de luz em sua mente, se tornando normal por um momento antes da
queda completa. E é exatamente nisso que eu estava pensando enquanto
compunha a peça, que produz um tipo de luz que vem e desaparece depois disso.
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- Então, temos isso, [...] o baixo ostinato que finaliza a peça inteira. Mas na
finalização temes esse accelerando [mi-fá-mi-ré-mi♭-ré-dó-ré♭-dó♭-si♭].
- Minha primeira ideia foi terminar a peça na dinâmica piano. Mas eu toquei a minha
própria peça com frequência em concertos por muitos anos e, da plateia, no
momento que você toca no palco, você às vezes sente, recebe mensagens do
público. E, da plateia, eu entendi que deveria mudar um pouco a maneira que estava
tocando o fim. Então, depois desse accelerando, eu comecei a voltar ao tempo
primo, andamento rápido … [toca o ostinato lá-mi-si♭ mais rápido que o tempo
primo]. Então, os harmônicos, e então a última nota.
- [O ostinato do baixo] poderia ser mais marcado. Cuidado para realizar esta
segunda menor nas notas lá e si♭. Isso dá a sensação de pavor no fim, antes da
última ressonância.
- Sabe, antes de tudo, seja cuidadoso porque quando se toca uma música insana,
ela deve estar nas extremidades musicais, não além delas.
- Então, isso é tudo o que eu deveria dizer a vocês sobre Usher-Waltz neste vídeo,
mas se houver alguma dúvida a mais, sinta-se à vontade para me perguntar no
Facebook, você pode encontrar minha página e escrever diretamente a mim. Mas
espero que tudo esteja elucidado. Então, desejo a você sucesso ao tocar minha
peça e, lembre-se que Usher-Waltz foi composta há 33 anos, e eu compus muito
mais através dos anos, muitas coisas diferentes. Então, sinta-se à vontade para
acessar essas outras composições e tocá-las também. Muito obrigado, tchau.
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