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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS MANOEL GILDO ALVES NETO FALARFAZENDO DANÇA AFRO-GAÚCHA: AO ENCONTRO COM MESTRA IARA Porto Alegre 2019 MANOEL GILDO ALVES NETO FALARFAZENDO DANÇA AFRO-GAÚCHA: AO ENCONTRO COM MESTRA IARA Esta dissertação foi apresentada ao programa de pós-graduação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção de título de Mestre em Artes Cênicas Orientadora: Profª. Drª. Suzane Weber da Silva Porto Alegre 2019 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS Manoel Gildo Alves Neto FALARFAZENDO DANÇA AFRO-GAÚCHA: AO ENCONTRO COM MESTRA IARA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas. Aprovada em 15 de fevereiro de 2019. BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Suzane Weber da Silva (PPGAC – UFRGS) ________________________________________ Profa. Dra. Celina Nunes Alcântara (PPGAC – UFRGS) ________________________________________ Prof. Dr. Flávio de Campos Braga (CAL- UFSM) ________________________________________ Profª. Drª. Mara Rúbia Alves da Silva (CEFD – UFSM) ________________________________________ DEDICATÓRIA A toda nossa ancestralidade! A negras(os) quem em seus Gestos de Resistência nos ensinam sobre cuidado e amor. Dedico esse estudo a duas mulheres que em movimento escreveram sobre Protagonismo Negro na história desse país Tia Lili, Vó Madá e a Nei D’Ogum (in memória) AGRADECIMENTO ESPECIAL A Mestra Iara, toda a minha gratidão pela confiança, por me permitir ouvir, ver, aprender! Por me potencializar nessa caminhada, pela generosidade com que me acolheu desde quando nos conhecemos! Ao Grupo Afro-Sul de Música e Dança, as(aos) bailarinas(os) que contam em seus corpos essa história de resistência e de empoderamento! A Mestre Paulo Romeu, obrigado pelo sorriso caloroso sempre que me recebia no Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê. AGRADECIMENTOS A minha família, semente, chão, água e fruto. A minha filha Inajá Ferreira Alves, o erê (criança) que me faz acreditar que é possível! Dona Candeia (Mãe) e Seu Pedrinho (Pai) pelo companheirismo, pelos ensinamentos que dizem de nós, de gênero, de classe, de raça, de fé! Aos meus irmãos Hiran Alves, Ivete Alves, Ivan Alves e Ronivon Alves obrigado por fomentarem o meu sonho desde sempre. Aos meus sobrinhos Maíres, Dandara, João Pedro, Jhuan e Hiran Junior. Às minhas Mestras, “mães-mulheres”. Pessoas que me ensinaram a (re)nascer em algum momento da caminhada. A minha madrinha, Antonieta dos Santos, a minha Iyálorixá Silvia de Oxum, às professoras Juscilene Ferreira, Ana Lêda, Rizeuda Muniz, Cleta, Cida, Terezinha, Helô Gravina, Mara Rúbia. A minha amiga e companheira de militância, Marta Nunes. À minha orientadora, Profª. Dra. Suzane Weber. Gratidão pela efetiva orientação durante o processo de mestrado! À todas(os) professoras(es) do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em especial às professoras Cêlina Alcântara, Luciana Palludo, Mônica Dantas, Patrícia Fagundes e Walter Lima, obrigado por todo saber compartilhado, certamente ele atravessará os muros da universidade em direção a justiça social. À Lucielle Codeim Dresch, minha companheira, a pessoa que esteve presente nos melhores e nos piores momentos desse processo. Obrigado pelo afeto! Às(aos) bailarinas(os)/ativistas negras(os) que conheci no Rio Grande do Sul. A caminhada não teria sido a mesma sem vocês, ao Coletivo Negressencia (Santa Maria-RS); às professoras Raquel Silveira e Maritza Freitas do Grupo Odara (Pelotas-RS), a artista Rita Lendé (coordenadora geral do Seminário de Dança Afro do RS), à Juliana Coelho e Daniel Amaro da Cia. De Dança Afro Daniel Amaro (Pelotas-RS), Ane Rose, idealizadora do Festival Ouro Dança (Lavras do Sul-RS), Cátia Cilene e o Griot Mestre Cida do Grupo Clara Nunes (Caçapava do Sul-RS) a Isadora Bispo (idealizadora do projeto Xirê-Dun). Nei D’Ogum (in memória), a você rouxinol que me ensinou que é só não temer, gratidão! À todas(os) colegas da turma 2017/2 do mestrado do Programa de PósGraduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Obrigado pelas trocas. À banca da qualificação e defesa final, Professoras(es) Dra. Celina Alcântara, Dra. Luciane Ramos, Dra. Mara Rúbia Alves, Dr. Flávio Campos, Dr. Airton Tomazzoni pela colaboração na construção desse trabalho. Ao Grupo de Dança #Parada58, as minhas alunas e alunos, com quem dividi muitas angústias, medos e alegrias nesse percurso artístico e político onde o falarfazer se conjugam. Ao grupo de percussão Sankofa (Porto Alegre - RS), ao percussionista e amigo Diih Neques pelos compartilhamentos em gestos musicais, a Dra. Lídia Olinto pelos conselhos durante o processo de seleção, a Letícia Schwartz (MilPalavras) pela audiodescrição, Milena Colognese (Plural Assessoria Linguística) e Marice Fiuza pela atenção nas correções textuais. Ao artista Lucas Bairros, obrigado pelo processo colaborativo de designer gráfico da dissertação. À CAPES pelo financiamento, sem ele seria inviável concretizar esse estudo! RESUMO Esta dissertação é fruto de reflexões produzidas no encontro entre o autor (Manoel Gildo Alves Neto) e Mestra Iara (Maria Iara Santos Deodoro). Apresento memórias que compõem minha trajetória enquanto artista negro, brasileiro, em seguida exponho reflexões desenvolvidas no encontro com Mestra Iara. Em 1974, junto a um coletivo de artistas negras(os), Iara fundou o Grupo Afro-Sul de Música e Dança (GASMD), onde desenvolveu e segue desenvolvendo metodologias específicas para o ensino e criação em Dança Afro no contexto gaúcho. Mestra Iara é reconhecida por ter sido a primeira artista a destacar-se como investigadora e propositora de um sotaque em Dança Afro no Rio Grande do Sul. Esta investigação foi guiada pela natureza inventiva do saber/fazer próprio da prática artística. A abordagem metodológica é marcada pela inspiração em ferramentas do Método Etnográfico e Auto-Etnográfico rumo à Pesquisa em Arte. Intitulada “FalarFazendo Dança Afro”, a abordagem metodológica foi proposta a partir da observação-participante nas práticas artístico-pedagógicas ministradas pela mestra, com o intuito de registrar e refletir acerca de enunciados verbais e gestuais que caracterizam o pensamento-docorpo na Dança Afro-Gaúcha. Tais reflexões partem também das memórias compartilhadas, por via de um olhar atencioso às práticas de ensino e criação desenvolvidas pela Mestra Iara, tendo como questão central investigar as especificidades do gesto que conferem ao GASMD identidade(s) própria, fundante de uma possível categorização chamada de Dança Afro-Gaúcha. PALAVRAS-CHAVE: Dança Afro-Gaúcha; Pedagógicas; FalarFazendo, Dança Negra. Mestra Iara; Práticas Artístico- ABSTRACT This dissertation is the result of reflections produced in the meeting between the author (Manoel Gildo Alves Neto) and Master Iara (Maria Iara Santos Deodoro). I present memories that compose my trajectory as a black artist, Brazilian, and then expose reflections developed in the encounter with Master Iara. In 1974, with a group of black artists, Iara founded the Grupo Afro-Sul de Música e Dança (GASMD), where she developed and continues to develop specific methodologies for teaching and creating Afro Dance in the context of Rio Grande do Sul. Master Iara is recognize for being the first artist to stand out as a researcher and proposer of an Afro Dance accent in the Rio Grande do Sul. This research was guided by the inventive nature of know/do of artistic practice. The methodological approach is marked by the inspiration in tools of the Ethnographic and Auto-Ethnographic Method towards Art Research. Entitled "SpeakingDoing Afro Dance", the methodological approach was proposed based on participant observation in the artistic-pedagogical practices taught by Master Iara, with the purpose of recording and reflecting on verbal and gestural statements that characterize the body-thought in the AfroGaúcha Dance. These reflections also start from the shared memories, through a careful look at the teaching and creation practices developed by Master Iara, whose central question is to investigate the specificities of the gesture that give GASMD its own identity, the basis of a possible categorization called Afro-Gaúcha Dance. KEY WORDS: Afro-Gaúcha Dance; Master Iara; Artistic-Pedagogical Practices; SpeakingDoing; Black Dance. LISTA DE FIGURAS Figura 1. Bailarina Taila Santos - Espetáculo "O Feminino Sagrado - Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Marciel Goelzer (GASMD, 2016)............................................................................................................... 18 Figura 2. Mestra Iara e Manoel Gildo durante Feijoada no Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê. (16/12/ 2018) ............................................. 32 Figura 3 - Bailarinas Mestra Iara, Leciane Rodrigues, Maria da Graça Penha e Edjana Deodoro - "O feminino sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Marciel Goelzer (GASMD, 2016) .............................. 34 Figura 4. Manoel Gildo Alves Neto (fotografa Camila Nuñez) ........................ 41 Figura 5. "O feminino sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Douglas Freitas(GASMD, 2016) ............................................... 67 Figura 6. Cartaz da 1º palestra-aula-performance pública “FalarFazendo Dança Afro”..................................................................................................... 69 Figura 7. Entre o Mar e o Vento – Cena do espetáculo teatral “Sortilégio - O mistério negro” - Da esquerda para a direita - Camila Matzenauer, Manoel Luthiery, Ediana Larruscain - Fotografia de Rafael Goulart (2014). ................ 73 Figura 8. Caxingelê - Apresentação da coreografia Caxinguelê na I Virada Cultural da UFSM. Fotografia de Barbara Marques (2015) ............................ 74 Figura 9. FalarFazendo Dança Afro – Com Mestra Iara em Porto Alegre-RS. Entrevista-Aula-Performance no Salão de Festas da reitoria da UFRGS (12 de junho 2018) ..................................................................................................... 76 Figura 10. FalarFazendo Dança Afro – Com Mestra Iara em Porto Alegre-RS. Entrevista-Aula-Performance no Salão de Festas da reitoria da UFRGS (12 de junho de 2018) ................................................................................................ 76 Figura 11. FalarFazendo Dança Afro em Caxias do Sul-RS. Apresentação do oral do trabalho “Corpo Odara: Educação afro-referenciada na formação do ator e do bailarino” no VII Salão de Dança do RS (2015) ............................... 77 Figura 12. FalarFazendo Dança Afro em Santa Maria-RS. Lançamento da exposição fotográfica “Negras e Negros na cultura na ciência e nos movimentos sociais” no Centro de Convenções da UFSM. Fotografia por Dartanhan Baldez (2018) ................................................................................ 77 Figura 13. Bailarina: Maria da Graça Penha, Camila Camargo, Taila Souza Espetáculo "O Feminino Sagrado - Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Marciel Goelzer. (GASMD, 2016) .............................. 87 Figura 14. Folder de divulgação do 1º Seminário de Dança Afro do Rio Grande do Sul................................................................................................. 99 Figura 15. Folder de divulgação do 1º Encontro Afro-Sul de Dança Afro (2001) ...................................................................................................................... 100 Figura 16. Folders de divulgação do projeto “Xirê-Dun: a Dança celebra a história do Negro no Pampa” ........................................................................ 101 Figura 17. Mestra Iara em cena interpretando o mito de Nanã e Xapanã, no espetáculo “O Sagrado Feminino – Um olhar descendente da mitologia africana” Fotografia de Marciel Goelzer. (Acervo ISASO, 2017) .................. 104 Figura 18. Paulo Romeo e amigos no período de reconstrução do espaço da Escola de Samba Garotos da Orgia, atual sede do ISASO - Década de 1990 (Acervo ISASO) ............................................................................................ 110 Figura 19. Apresentação de grupo musical Amigos Leais, no período de reconstrução da atual sede do ISASO – Década de 90 (Acervo ISASO) ..... 111 Figura 20. Bailarinos ensaiando no pátio do ISASO (Acervo ISASO) .......... 111 Figura 21. Mestra Iara fazendo as honras num evento festivo no ISASO Década de 90 (Acervo ISASO) ..................................................................... 112 Figura 22. Folder de divulgação do Núcleo de Vivência em Percussão e Cultura Popular ............................................................................................. 113 Figura 23. Ensaio do Maracatu Trovão no pátio do ISASO .......................... 114 Figura 24. Dona Verônica Santos (Tia Lili) é homenageada em matéria em um jornal regional. (Acervo ISASO) .................................................................... 120 Figura 25. Sopapo, o grande tambor Afro-Gaúcho ....................................... 123 Figura 26. Tambores e Agês do Batuque do Sul. ......................................... 124 Figura 27. Da esquerda pra a direita – Mestra Iara, Paola Deodoro, Edjana Deodoro, Isabel Deodoro, Khadija Deodoro (acervo familiar) ....................... 140 Figura 28. Capa do CD da GASMD – Ancestralidade e Gerações. .............. 141 Figura 29. Mestra Iara dançando solo (Acervo ISASO). ............................... 142 Figura 30. Mestra Iara (Porta-Bandeira) e seu parte Osmar (Mestre Sala) (Acervo ISASO) ............................................................................................ 143 Figura 31. Espetáculo "O feminino sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Douglas Freitas(GASMD, 2016) ............... 149 Figura 32. Na imagem bailarinas(os) do GASMD ensaiando sob a direção de Mestra Iara (Arquivo ISASO). ............................ Erro! Indicador não definido. Figura 33. Aquarela “Cena Fandango Negro, Campo St. Anna, Rio de Janeiro" - Pintado por Augustus Earle (1793-1838)......... Erro! Indicador não definido. Figura 34. Espetáculo "O feminino sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Douglas Freitas(GASMD, 2016) ............... 167 Figura 35. Bailarinas Edjana Deodoro e Taila Santos - Coreografia Batuque Espetáculo "O feminino sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Douglas Freitas(GASMD, 2016) ............................................. 169 LISTA DE ABREVIATURAS GASMD – Grupo Afro-Sul de Música e Dança ISASO – Instituto Sóciocultural Afro-Sul Odomodê DAD – Departamento de Artes Dramáticas DAG – Dança Afro-Gaúcha PAP – Práticas Artístico-Pedagógicas SCBES - Sociedade Cultural Beneficente Escola de Samba PPGAC – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público SUMÁRIO RESUMO ................................................................................................................. 08 ABSTRACT .............................................................................................................. 09 LISTA DE FIGURAS .................................................................................................10 LISTA DE SIGLAS ................................................................................................... 12 PARTE 1 – ÁGUA TERRA AR FOGO NA PESQUISA EM DANÇA AFRO I - ÁGUA ................................................................................................................... 17 UMA ÁGUA FORTE PRA ME BANHAR ....................................................... 19 II - TERRA ................................................................................................................ 33 PÉ DE DANÇA: SAIR ANDAR VER .............................................................. 35 CHÃO ÚMIDO, SEMENTES LANÇADAS ..................................................... 41 DANÇA NEGRA: ARTE E POLÍTICA ............................................................ 47 RUPTURAS E PONTES ................................................................................ 55 III – AR ..................................................................................................................... 66 FALARFAZENDO DANÇA AFRO ................................................................. 68 INSPIRAÇÕES DO FAZER ........................................................................... 71 ENTRE O FALAR E O FAZER ...................................................................... 78 IV - FOGO ................................................................................................................ 86 VISIBILIDADE NEGRA NA DANÇA .............................................................. 88 AÇÕES ARTÍSTICO-PEDAGÓGICAS EM DANÇA NEGRA NO RS ............ 97 PARTE 2 – AO ENCONTRO COM MESTRA IARA V – AO ENCONTRO COM MESTRA IARA ............................................................ 104 SAUDANDO MESTRA IARA! ...................................................................... 105 AFRO-SUL ODOMODÊ – UM PEDAÇO DA ÁFRICA NO SUL .................. 109 TIA LILI: MULHER NEGRA NA GESTÃO EM DANÇA ............................... 118 ENTRE O CORPO E O TAMBOR ............................................................... 121 CORPO ABERTO AO ENCONTRO ............................................................ 125 DA INVESTIGAÇÃO A CRIAÇÃO DA DANÇA AFRO-GAÚCHA .................135 MEMÓRIAS NA VOZ DA MESTRA ............................................................. 139 ETNOGRAFIA DA PEDAGOGIA DA BAGUNÇA ........................................ 145 VI – GESTO ............................................................................................................ 149 CONTRAÇÃO .............................................................................................. 159 FORTE-LEVE .............................................................................................. 166 VII – DEPOIS DO BANHO, AINDA HÁ MUITA ÁGUA PRA SE BANHAR.............. 173 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 177 APÊNDICE ............................................................................................................. 188 ANEXO A ................................................................................................................ 188 ANEXO B ................................................................................................................ 191 PARTE 1 ÁGUA AR TERRA FOGO NA PESQUISA EM DANÇA AFRO 17 I - ÁGUA “Sou água de cachoeira Ninguém pode me amarrar Piso firme na corrente, que caminha para o mar Em água de se perder Eu não me deixo levar Eu andei” Mariene de castro 1 “Por mais que me naveguem, me levando pelos mares, por mais que me maltratem, carne aberta pela faca. A memória vem e salva, a memória vem e guarda. Guarda o cheiro da minha terra, a música do meu povo A certeza de hoje e sempre Que ninguém vai nos tirar Aonde estiver o Porto Por mais que eu sofra e grite” Milton Nascimento (2002)2 CASTRO, Mariene. Abre caminho. Youtube, publicado por MarieneDeCastroVEVO em 26 de maio de 2011. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=n1xj3IsAiOs. Acessado em 26 de agosto de 2018 2 NASCIMENTO, Milton. Era Rei e Sou Escravo. Youtube, publicado por thercandycoloredclown em 20 de novembro de 2014. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=z2g2JVx65OA. Acessado em 05 de setembro de 2018. 1 18 Figura 1. Bailarina Taila Santos - Espetáculo "O Feminino Sagrado - Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Marciel Goelzer (GASMD, 2016) 19 UMA ÁGUA FORTE PRA ME BANHAR3 Aprender, dançar, escutar, parar, refletir, ler, falar, escrever, ensinar, compartilhar, assimilar, criar e ensaiar. Esses foram alguns dos procedimentos adotados na forma de gesto (intenção), durante esse processo de investigação e aprendizagem artística. Tais ações foram necessárias, para tentar traduzir em palavras as essências do perfume que senti nesta pesquisa tal qual o ritual que precede a apresentação do Grupo Afro-Sul de Música e Dança (GASMD). Minutos antes de dar início as danças e cantos, todas(os) as(os) bailarinas(os), percussionistas, equipe técnica, entre outras(os) formam uma grande roda para receberem um a um, um pouco de perfume transmitido pelas mãos da diretora geral do grupo, Mestra Iara, trago aqui um pouco desse cheiro. Escrever sobre Dança preserva em sua métrica uma complexidade que demanda um engajamento corporal. É uma experiência de compartilhar paisagens e sensações particulares e singulares – mesmo que vivenciadas coletivamente. A palavra ‘experiência’ não está associada ao que as ciências naturais denominam por ‘experimento’. A experiência, compartilhada aqui “trata-se mesmo de um processo mediador, autor-reflexivo e constitutivo da consciência” (SODRÉ, 2012, p. 99). Segundo a Mônica Dantas: Em dança, se procedo assim, descaracterizo a própria atividade. Se “abstraio” sons, músicas, luz, figurino e o modo como são executados os movimentos, se me recuso a perceber as modificações espaciais e temporais que a coreografia provoca, se não me deixo conduzir pelos movimentos, mas me preocupo em buscar significados para eles, descaracterizo o próprio sentido que porventura a coreografia possa ter. (DANTAS, 1997, p. 4) Algumas reflexões apontadas neste texto têm sido desenvolvidas desde 2013 e estão aqui reelaboradas, elas versão sobre Dança, Educação e Política. Tento descrever sobre saberes da Dança impressos no ato do Saber/Fazer e também sobre a ação política organizada por diversos de seus agentes, que assumem o ensino da Dança como espaço de atuação política. As curiosidades sobre as especificidades da Dança Negra 4 produzida no Rio Grande do Sul, popularmente intitulada de Dança Afro-Gaúcha, chamava-me a JOVELINA PÉROLA NEGRA. Águas de cachoeira. YouTube, publicado por MPB:: As Melhores!! Em 2 de abril de 2018. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=J3ybloLsMlk>. Acessado dia 25 de janeiro de 2018. 3 20 atenção tanto pela força de seus traços estéticos e poéticos, pela qualidade técnica de seus agentes (tais como bailarinos, coreógrafos, produtores, educadores), quanto pelas estratégias de resistência política dos seus agentes. Tais grupos, de certa forma, assemelham-se à quilombolos urbanos, mediadores de uma educação antirracista. Desde que vim morar no Rio Grande do Sul, em 2013, tenho convivido e trabalhado com diversos agentes da cultura negra deste estado, protagonistas invisibilizados na cena artística. Acometida por uma invisibilidade e ausência produzida (GOMES, 2017; SANTOS, 2002). A curiosidade sobre as práticas artísticas e pedagógicas de alguns desses agentes demandou um olhar cuidadoso sobre a trajetória de artistas que estão na caminhada há muito tempo sem terem o devido registro conforme sua relevância, distinção e complexidade de suas danças. Assim, ampliei a escuta e o olhar sobre a formação de determinados artistas negros, propositores na elaboração de noções técnicas para o ensino, preparação corporal e criação artística em Dança AfroGaúcha, analisando tais práticas enquanto ações potentes na luta antirracista e na descolonização do corpo. A prática desses agentes construía em mim paisagens e reflexões, as quais instigavam-me a curiosidade na busca por entender sobre a genealogia do gestual nascido e/ou transformado na encruzilhada entre África e Rio Grande do Sul, fomentadora da Cultura e Corporeidade Negra Gaúcha. Escrevo, aqui, um olhar cuidadoso e apreensivo sobre as práticas artístico-pedagógicas desenvolvidas, assimiladas ou transformadas pela artista negra portoalegresse, Maria Iara Santos Deodoro, artistica e popularmente conhecida no Sul do Brasil como Mestra Iara e assim ela será nomeada nesse estudo. A escolha da Mestra Iara como protagonista nesta investigação surgiu no momento que fui capturado pelo seu gestual, tanto em suas práticas artísticas quanto pedagógicas. Seu compromisso com a emancipação do Corpo Negro através da Dança, suas práticas pedagógicas enraizadas em princípios civilizatórios negros, tal como uma árvore de raiz africana, a qual desenvolve caule, flores e frutos no território brasileiro, regado por águas frescas de saberes ancestrais difundidos pela As discussões, evoluções e disputas em termos dos conceitos de Dança Negra e Dança Afro são noções caras a essa pesquisa e serão detalhadas no subcapítulo “Dança Negra: Arte e Política”. 4 21 oralidade, inspira-me a seguir acreditando que é possível lutar pelas pequenas e grandes mudanças que buscam justiça social por intermédio da educação em Dança! Com a intenção de aprofundar com coerência na temática, busquei conhecer bailarinas(os) e ex-bailarinas(os) do Grupo Afro-Sul de Música e Dança (GASMD), onde Mestra Iara desenvolve há 44 anos sua pesquisa em Dança, assina o trabalho do grupo como professora, bailarina e coreógrafa, além de atuar na coordenação geral da Instituição Sociocultural Afro-Sul Ọdọmodê (ISASO). Esta dissertação é um registro de uma trajetória negra na Arte. Trajetória que se apresenta como estratégia de existência e resistência, poética e estética, na área da Dança, assumindo sua responsabilidade com a produção de conhecimento disparadora de Empoderamento Negro. O subtítulo desta dissertação explicita que este é um olhar atento e modesto para o encontro que vivi com as práticas e memórias de Mestra Iara. O exercício inicial de escrever a próprio punho o tema, questão e objetivo(s) da pesquisa, a qual torno pública, aconteceu como Dança, uma performance em Dança Afro sentada, com caderno apoiado na mesa e um lápis na mão. Ação que filio a noção de Dança Desobediente Afrocêntrica. Uma ação corpórea de dançar com o punho e com as palavras, um lançar-se no mundo organizado por uma sintaxe gramatical com o intuito de ressaltar a potência das Danças Negras Brasileiras. Um Dançar que, com seu gestual, sua expressão, seu ativismo, sua ação cognitiva do corpo, propõe um “projeto corporal emancipatório e (re)estruturador das representações sobre o corpo negro” (RENGEL; FERREIRA. 2017, p. 333). Busquei numa pausa funcional-criativa um tônus paradoxalmente Suave e Forte5 para seguir, mesmo diante da diversidade dos acontecimentos políticos dos últimos tempos. Vale contextualizar, a quem por ventura venha acessar esse texto que, nos últimos anos (2016, 2017, 2018), o Brasil tem vivido um período de grande retrocesso político marcado por gestos autoritários e ações que tencionam as Políticas Afirmativas presentes no campo educacional e cultural, fruto de lutas históricas da população negra afrodescendente bem como de outras minorias. 5 Expressão usada didaticamente por Mestra Iara Deodoro e pelo GASMD para falar sobre a qualidade expressiva do gesto na Dança Afro-Gaúcha. 22 Vivemos uma época em que povos indígenas, mulheres, comunidade LGBTTQI6 são diariamente ameaçados por uma classe política descomprometida com a diversidade humana e com a pluralidade cultural. A violência faz vítimas diariamente, uma parlamentar negra, Marielle Franco7 (1979-2018) foi assassinada, vítima de um crime político, outras(os) são ameaçados constantemente. Travestis e transexuais de todo o país são vítimas de violência que se camufla num fundamentalismo religioso. Diante de todo caos, a prática de escrever sobre performance negra exigiu do eu-corpo dançante outro gesto, outro tempo. Um tempo dançado na minúcia, na expectativa, na esperança, na sala de espera. Esta Pesquisa em Arte inspirou-se em ferramentas do método etnográfico (SILVA, 2010) para criar seu próprio caminho de pesquisa. Não se trata de uma etnografia “desde dentro” (SANTOS, 1986) mas uma Pesquisa em Arte fisgada pelo encantamento com tudo que vi e ouvi. Seguimos e nos inspiramos por algo que opera na ordem do saber/fazer, a qual articula memórias do corpo-em-arte (LEONARDELLI, 2009), através de enunciados gestuais e verbais, expressos nas práticas artísticas e pedagógicas da Mestra Iara. Segundo Leonardelli (2009), a Arte é produto/linguagem, expressos no pensamento do corpo, a autora afirma que: Somente por que temos memória e porque ela é criadora e trabalha em conjunção com todas as demais faculdades - ou arrisquemos mais longe, não falemos mais em faculdades, senão em adensamentos mentais de funções em devir que criam o grande fluxo das ações humanas - é que a arte se tornou possível. (LEONARDELLI, 2009, p. 192) Vale explicitar que a memória desvelada nos encontros que tive com Mestra Iara articulavam, numa ação criativa individual e ao mesmo tempo coletiva, o movimento enquanto formulador do pensamento. Para a leitura deste trabalho, importa considerar que se trata de uma escrita extremamente balizada, não somente pela prática artística e docente, mas também política, no sentido de pôr outras vozes no centro da discussão, outras narrativas, as quais enunciam com esperança a ação 6 Sigla utilizada pelos movimentos sociais de luta pela diversidade sexual e de gênero que significa: lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queers e pessoas intersex. Em alguns casos acrescenta-se outras letras que reivindicam pautas ligadas a esta discussão. 7 Marielle Francisco da Silva, conhecida como Marielle Franco (Rio de Janeiro, 27 de julho de 1979 – Rio de Janeiro, 14 de março de 2018), foi uma socióloga, política, feminista e defensora dos direitos humanos brasileira. Filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), elegeu-se vereadora do Rio de Janeiro para a Legislatura 2017-2020, durante a eleição municipal de 2016, com a quinta maior votação. Crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro e da Polícia Militar, denunciava constantemente abusos de autoridade por parte de policiais contra moradores de comunidades carentes. Em 14 de março de 2018, foi assassinada a tiros junto de seu motorista, Anderson Pedro Mathias Gomes, no Estácio, Região Central do Rio de Janeiro. 23 antirracista de negras e negros no campo das Artes. As memórias nos apontam um montante de experiências singulares, as quais legitimam o GASMD enquanto referência no cenário artístico da capital gaúcha, que ao serem apresentados à aquilombamentos artísticos contemporâneos8, ensina sobre caminhos possíveis para a produção de um ambiente pluricultural tanto na produção quanto na formação artística. A escrita, nesse caso, torna-se uma ação direta, artístico-política, que se pretende pequena fagulha da luta por igualdade racial, salvaguardando o direito à pluralidade cultural no ensino da Dança, tal qual nos ensina Santos (2006, p. 137) O exame que estamos propondo – o de introduzir a tradição do indivíduo como recriação estética pluricultural na dança-arte-educação - aponta uma possibilidade de uma práxis pedagógica educativa centrada no cultivo do diverso, respeitando a heterogeneidade cultural construída pelos alunos Proponho a descrição de um processo de escuta, mas uma escuta do gesto e da fala, de enunciados que reverberam em mim a possibilidade de outros movimentos de vida. “Movimentos de vida em tempos de crise, em tempos de ódio, em tempos de fascismos, em tempos onde a diferença não é reconhecida, onde não se olha essa multiplicidade dessa nossa constituição negra” (SILVEIRA, 2016)9. Nesse sentido, esta pesquisa se faz discurso político tal qual o corpo negro que se lança numa Dança, que se expressa por Gestos de Resistência. A região sul do Brasil, formada pelos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, é conhecida nacionalmente pela presença marcante da cultura europeia. A euro-descendência é constantemente rememorada com muito entusiasmo pela população branca desse estado. Entretanto, não há como negar a presença massiva de afrodescendentes de pele negra nesses estados. O módulo da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (PNAD-Contínua) de 2016 nos mostra que, entre os anos de 2012 e 2016, a população autodeclarada preta ou parda do Brasil cresceu de 52,7% para 54,9%. No Rio Grande do Sul, a Nomeio de “Aquilombamentos Artísticos Contemporâneos”, grupos, companhias e coletivos compostos majoritariamente por artistas negras(os), que tem suas poéticas relacionadas à discussão do racismo, ou mesmo dramaturgias produzidas a partir da agência discursiva de pessoas negras, ou estética relacionada a expressões performáticas, as quais podem envolver canto, dança, ritmo, negros, com atitude e filosofia marcadamente antirracistas. 9 DIAS, Raquel Silveira. In: NEGRESSENCIA mulheres cujos filhos são peixes. Produção executiva: Marta Regina dos Santos Nunes; Produção Artística e Direção: Manoel Luthiery; Captação, Edição e Finalização: Luciele Oliveira e Franciele Oliveira. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=87JDBMb4Vak> Acessado em 19 de maio de 2018. 8 24 população que se declarava preta e parda cresceu de 16,2% para 18,2%. Um número que a princípio parece ser muito pequeno, mas que diz muito sobre as políticas de branqueamento perpetradas pelo plano político local10. É nesse contexto brasileiro e também do Sul do Brasil, tradicionalmente marcado pela exaltação da cultura europeia, que esta Pesquisa em Dança aponta um outro vetor, em Dança Negra, pautada nas experiências de uma mulher negra, nascida e criada na capital gaúcha, Porto Alegre. Uma artista comprometida, há mais de quarenta anos, com patrimônios imateriais da Cultura Africana, assentados e assimilados no território do Rio Grande do Sul. Por meio da Dança Afro-Gaúcha,a artista Maria Iara, busca visibilizar a presença Negra no Rio Grande do Sul. Os discursos e as ações de Mestra Iara elegem a Arte como estratégias na luta antirracista, as quais promovem a ruptura com a Colonialidade11 impressa na Dança Brasileira, criada e ensinada na contemporaneidade, rompe com estereótipos exotificados e com o fetichismo acerca da corporeidade e das culturas negras. Suas ações fortalecem e exaltam a diversidade de modos de saber/fazer Dança criados no Brasil. A ideia do “saber único” termina recalcando uma parte importante da realidade, porque há práticas sociais baseadas em conhecimentos populares, conhecimentos indígenas, conhecimentos camponeses, conhecimentos urbanos, mas que não são avaliados como importantes ou rigorosos. Seus efeitos são igualmente danosos no tocante à educação, porque o monismo cultural que privilegia a língua hegemônica impede o pluralismo das linguagens característico de alunos provenientes de diferentes estratos sociais, senão de outras regiões emigratórias do mundo. A monocultura do saber está por trás da crescente violência nas escolas frequentadas por jovens provenientes de classes economicamente subalternas ou de famílias imigratórias (SODRÉ, 2012, p. 23). Leda Martins (2003) nos alerta que a literatura escrita no Brasil, predomina a herança de arquivos textuais de retórica europeia. Em nossas letras escritas, os repertórios poéticos dos povos africanos e indígenas e seus domínios de linguagens Disponível em <https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2017/11/aumentaproporcao-de-negros-na-populacao-gaucha-aponta-ibge-cjadvcfym0fpe01mxniljl5kh.html> Acessado em 26 de dezembro de 2018. 11 O intelectual da Sociologia, Aníbal Quijano (1928-2018), cunhou o conceito de Colonialidade a fim de questionar e transcender as particularidades da noção de colonialismo, que mesmo pós-abolição e pós-independência dos países colonizados não desaparece. O conceito é elaborado a partir de uma sólida crítica a ‘modernidade’ que invisibiliza todo o legado econômico e cultural dos países colonizados. A distinção entre os termos Colonialidade e Colonialismo nos ajuda a pensar as formas coloniais de dominação que mesmo com o fim das administrações coloniais continuam operando através de estruturas de poder e subordinação que passaram a ser reproduzidas pelo sistema-mundo capitalista colonial-moderno, e que se arquiteta em torna da ideia de “raça” (QUIJANO, 2005; SODRÉ, 2012). 10 25 pouco ecoaram. Ou ainda, o pouco que ecoaram é constantemente invisibilizado e pouco conhecido. Essa escrita de fundo europeia figura quase como exclusividade da natureza do saber e conhecimento. No entanto, para a autora, a memória pode estar grafada no corpo: através do movimento e da voz, dentro do âmbito das performances da dança, da oralidade e das práticas rituais. Minha hipótese é a de que o corpo em performance é, não apenas, expressão ou representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de inscrição do conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que performativamente o recobrem. Nesse sentido, o que no corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico, científico, tecnológico, etc. No âmbito dos rituais afro-brasileiros (e também de matrizes indígenas), por exemplo, essa concepção de performance nos permite apreender a complexa pletora de conhecimentos e de saberes africanos que se restituem e se reinscrevem nas Américas, recriando-se toda uma gnose e uma episteme diversa. (MARTINS, 2003, p. 66-67) Esta pesquisa trata justamente das memórias grafadas no corpo, não exclusivamente através de práticas rituais, mas em práticas artístico-pedagógicas, que desenvolvidas por Mestra Iara e analisadas em sua complexidade, nos ensina muito sobre a construção de uma performatividade negra gaúcha na Dança Afro, forjada na encruzilhada do fazer/saber Africano-Brasileiro. Práticas guiadas por uma pedagogia baseada no cuidado e em princípios civilizatórios, culturais e filosóficos, africanos e afro-brasileiross. Se inscreve na esteira da Ecologia dos Saberes12, prevenindo mortes simbólicas, uma vez que, reconhecendo a força da Dança Afro como estratégia de lita na trincheira contra o Epistemicídio13, qual simplesmente invisibilizam a presença Negra no território gaúcho. A Pesquisa em Arte14, nesse caso, aponta seu comprometimento político com Gestos de Resistência, reflexo de pautas urgentes de ordem social, racial, de gênero Conceito cunhado pelo intelectual Boaventura de Souza Santos, expressa diretamente à possibilidade de existência da diversidade frente ao Epstemicídio dos saberes (SANTOS, 2010). 13 Segundo Santos (2010) o Epstemicídio configura-se como a morte ou extinção de bens simbólicos que tem acontecido nos últimos cinco séculos, dizimando uma imensidão de riquezas derivadas das experiências cognitivas principalmente em territórios colonizados. O autor sugere para recuperação de alguns desses saberes e experiências a Ecologia dos Saberes que recorre ao seu atributo pósabissal mais característico, tradução intercultural, já embebidas de diferentes culturas e experiências ocidentais e não-ocidentais, tais experiências não só usam linguagens diferentes, mas também distintas categorias, diferentes universos simbólicos e aspirações, com intuito de promover uma vida melhor. 14 Segundo Fortin e Gosselin (2014) num sentido mais amplo, a Pesquisa nas Artes se aplica à investigação que é realizada no campo das artes, como forma de abordar artistas, seus processos e 12 26 e de classe na área da Dança. Assumo a polissemia presente na palavra Gesto, ao compreender o seu potencial narrativo na produção do corpo enquanto espacialidade (espaço), na produção de memórias (tempo), tal como se o corpo fosse um documento atualizado constantemente pelo espaço e pelo tempo. O saber transmitido pela Dança tem tanto haver com a repetição ritmada de uma memória mítica fundamental para o corpo (por propiciar uma “intuição do mundo”) quando com ensinamentos presentes relativos, por exemplo, à posição do corpo em face de momentos cruciais, como os de proteção à saúde, terapia, júbilo, cultuação, guerra (na África tradicional o guerreiro dançava no campo de batalha), reprodução (SODRÉ, 1988, 125) Ao materializar-se enquanto movimento efêmero no espaço, o gesto passa a ser mediador de linguagem, construtor de narrativas. Essas narrativas do gesto, presentes tanto na arte, quanto na vida, são fulcrais para a esta investigação. Compreendo que parte desses gestos se traduzem em Dança e para ser compreendido, precisa ser dançado. A compreensão acerca do gestual, recorrente na Dança Afro-Gaúcha e proposto pela mestra, dá-se pela vivência, pela experiência e, para isso, proponho uma performance-entrevista-aula denominada FalarFazendo Dança Afro. Nessa proposta, partimos de alguns aspectos desenvolvidos a partir da experiência da mestra frente ao GASMD desde 1974, para conversar e corporificar aspectos da técnica. A partir dessas vivências, contextualizo e proponho um olhar analítico para a captura de um sotaque corporal e gestual recorrente nas práticas artístico-pedagógicas na Dança Afro-Gaúcha. Tendo em vista a contribuição de Mestra Iara para o desenvolvimento desse saber/fazer, popularmente conhecido no Rio Grande do Sul como Dança AfroGaúcha, busco interconectar Arte, Cultura e Educação, para investigar o que caracteriza o sotaque gaúcho no saber/fazer da Dança Afro. A questão central dessa pesquisa é: Em que medida as práticas artístico-pedagógicas, desenvolvidas por Mestra Iara, no contexto do Rio Grande do Sul, confere ao GASMD uma identidade(s) os seus produtos num campo acadêmico. Podendo a pesquisa incluir: Pesquisas sobre as artes (por exemplo, a compreensão das músicas para dançar do século XVIII); Pesquisas para as artes (por exemplo, a compreensão do impacto dos dispositivos eletrônicos entre dançarinos e iluminação); Pesquisas em artes (por exemplo, a compreensão do conhecimento incorporado de um coreógrafo ou artista). 27 somática própria, fundadora de um sotaque específico em Dança Afro, chamada Dança Afro-Gaúcha? Segundo Dantas (2014) as categorias de diferença definidoras de certas identidades se inscrevem no corpo através das marcas visíveis, ou seja, a cor da pele, dos olhos, dos cabelos, os marcadores de gênero, as capacidades e incapacidades físicas, visto isso, também acessíveis através das vestimentas e “de modo mais sutil, nas maneiras de portar o seu corpo, de mover-se, de gesticular, podendo constituir-se como um Acento Somático” (DANTAS, 2014, p. 3). Visto isso, entendemos a Identidade Somática como sendo construída pela relação com a experiência do seu próprio corpo, construída a partir do reconhecimento e da representação provenientes das experiências. Dentro do bojo das experiências, podemos citar as pequenas ou grandes mudanças propostas por artistas em técnicas corporais encarnadas durante os processos de aprendizagem que permeiam toda a vida do indivíduo. Quando Marcel Mauss propõe a ideia de Técnicas corporais como "maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo" (MAUSS, 2011, p. 401), também deixa implícito a ideia de que há um processo de construção de um arquivo corporal dentro de cada grupo que o sujeito-identidade está ligado, e nesse processo a eficiência do movimento e o processo de transmissão são basilares para continuar existindo, a não ser que haja um objetivo estritamente lúdico ou expressivo, pois a partir daí a técnica corporal, mesmo respeitando a eficiência e a tradição ganham contornos estéticos ligados a outras dimensões da vida, e a Arte é uma delas. Acredito que escrever um pouco das memórias acerca do trabalho desenvolvido por essa artista e seu grupo é uma forma de valorizar e reconhecer o trabalho desenvolvido ao longo de 44 anos de sua trajetória no Rio Grande do Sul. Logo, reconheço-me enquanto artista-docente-pesquisador interessado em processos criativos e de ensino na área da Dança, estudos que fomentem, não só a prática e a reflexão a respeito do gesto no âmbito da Dança, mas também a urgência de atualizar a historiografia15 da Dança com trajetórias ainda invisibilizadas, Me refiro a historiografia na pretensão de compreender e abarcar um sentido crítico da história, buscando compreender os fatos tendo em vista seu contexto social e político. Nessa pesquisa, em especial, busca-se evidenciar e colaborar para uma perspectiva de pertencimento junto a cultura negra, com recorte na dança. 15 28 torno a repetir, uma invisibilidade e ausência produzida (GOMES, 2017; SANTOS, 2002). Encontro afinidade com a terminologia “bailarino-historiador” proposto por Isabele Launay. Segundo esta autora [...] a aliança e a confrontação entre historiadores e bailarinos para construir a narrativa histórica em dança evidentemente também coloca em questão o que ainda nos resta de positivismo, de sociologismo e culturalismo em história e, sobretudo, desloca e transforma os hábitos de trabalho de uns e dos outros. Se o bailarino entra na biblioteca ou consulta arquivos, o historiador entra de certa maneira também na escola do estúdio ou do palco para aprender o sentido de um gesto antigo. (LAUNAY, 2012, p. 145) Ao analisar o texto de Launay, percebo que esta pesquisa propõe-se a uma investigação artística no que diz respeito à Memória do Corpo e às Narrativas do Gesto nas práticas artístico-pedagógicas em Dança desenvolvidas pela Mestra. Ao compreender a importância da implementação de práticas artístico-pedagógicas antirracistas, anti-machistas e Decolonial16 no Ensino da Dança, tais práticas são fulcrais no processo Descolonização17, são essenciais no processo de esquecimento do gesto-cativo (NASCIMENTO, 1989). No entanto, para que novos projetos educacionais sejam criados, surge como demanda no campo das Artes a sistematização e a difusão de experiências artísticas e pedagógicas que têm trajetória no que nomeio por Gestos de Resistência. Gestos de Resistência são ações fundadas a partir das práticas artísticas e/ou pedagógicas de cunho antirracistas, anti-machistas e contra-hegemônicas, as quais fomentam no campo do saber/fazer Artes, representações positivas acerca das corporeidades consideradas desviantes do padrão eurocêntrico. Desse modo, pretende subverter o imaginário colonizado, o qual tangencia sujeitos negros a representações estereotipadas, folclorizadas, sem a possibilidade de narrar-se, sem O Pensamento Decolonial emerge do Grupo Modernidade/Colonialidade inspirando a rebeldia e a desobediência no que diz respeito a criação de opções fronteiriças, a fim de garantir a pluralidade cultural e a relação intercultural de maneira desierarquizada, de certa forma tal pensamento ameaça a estabilidade das supremacias ideológicas. Segundo Oliverira e Candau (2010) a decolonialidade implica partir da desumanização e considerar as lutas dos povos historicamente subalternizados pela existência, para a construção de outros modos de viver, de poder e de saber. Portanto, decolonialidade se propõe a visibilizar os saberes/fazeres e as lutas contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas sociais, epistêmicas e políticas [...] a decolonialidade representa uma estratégia que vai além da transformação da descolonização, ou seja, supõe também construção e criação. Sua meta é a reconstrução radical do ser, do poder e do saber. 17 Segundo Silva (2018, p. 31), a ideia de “Descolonização implica em uma revisão profunda de esquemas reproduzidos externa e internamente às nossas realidades em termos ideológico-culturais” baseada na autora Silvia Cusicanqui, Ramos (2018) pontua que o termo Descolonização não deve ser uma palavra que se distancie da prática, é necessário que haja a articulação entre a teoria e a prática. 16 29 protagonismo nos feitos políticos e sem viés crítico-discursivo sobre a opressão. Práticas alinhadas à crítica, à Razão Indolente18 (SANTOS, 2004; GOMES, 2017) a partir da proposta de saberes/fazeres estéticos-corpóreos produzidos na esteira da Ecologia dos Saberes19 (SANTOS, 2010). Contaminado pela natureza inventiva da arte, um dos recursos autorais utilizados para a escrita deste texto é nomeado antes dos capítulos por: Água, Ar, Fogo e Terra. Em resumo, configura-se como epígrafe estendida, tratada como espaço de liberdade poética, o qual acompanha os capítulos da primeira parte da dissertação. É uma estratégia criada para trazer à superfície da escrita as camadas poéticas que minaram reflexões durante o processo de pesquisa. O leitor encontrará uma lista de pequenas citações com poemas, letras e links de músicas, textos do diário de bordo, sonoridades, visualidades, entre outras referências que dialogam e articulam sentido ao processo de escrita. A dissertação contém duas partes, dividida em capítulos e subcapítulos que conversam entre si como a polirritmia do Samba, cujos sons sincopados geram a cadência rítmica propícia ao movimento. Autoras(es) das Artes, Educação e Ciências Sociais são utilizadas para auxiliar no processo de elaboração de um pensamento crítico-reflexivo acerca das práticas artístico-pedagógicas, usada no processo de ensino e criação em Dança Afro-Gaúcha. A primeira parte, intitulada “Água Terra Ar Fogo na Pesquisa em Dança Afro”, utilizo os quatro elementos da natureza como metáfora para apresentar a introdução, a justificativa, a metodologia, o chão do pesquisador, reflexões sobre Dança e Política através de tópicos como Dança Negra, Corpo Negro, Colonialidade, Gestos de Resistência, Visibilidade Negra na Dança, a partir de referenciais majoritariamente negro, composto por autores como: Muniz Sodré 18 Segundo Santos (2007, p. 25) a “razão indolente subjaz, nas suas várias formas, ao conhecimento hegemônico, tanto filosófico como científico, produzido no ocidente nos últimos duzentos anos. A consolidação do estado liberal na Europa e na América do Norte, as revoluções industriais e o desenvolvimento capitalista, o colonialismo e o imperialismo constituíram o contexto sócio-político em que a razão indolente se desenvolveu. [...] a razão indolente criou o quadro para os grandes debates filosóficos e epistemológicos dos dois últimos séculos”. 19 Segundo Santos (2007, p. 25) como Ecologia de Saberes, o pensamento pós-abissal reconhece a ideia da diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico. O que implica renunciar a qualquer epistemologia geral. Reconhecendo que no mundo, não só existem diversas formas de conhecimento da matéria, sociedade, vida e espírito, como também muitos e diversos conceitos sobre o que conta como conhecimento e os critérios que podem ser usados para validá-lo. A Ecologia dos Saberes configura-se basicamente como um campo de saberes/fazeres epistemológicos contra-hegemônicos. 30 (1988; 2012, 2017), Inaicyra Falcão (2006), Leda Maria Martins (1997; 2003) Curti (2010), Kabenguelê Munanga (2003), Nilma Lino Gomes (2017) e Zeca Ligiéro (2011). Apresento um pouco do caminho da pesquisa, dos impulsos e dos gestos que a constituíram, além de justificar a importância desta investigação no campo das Artes Cênicas. Apresento, brevemente a história de Mestra Iara, o que prepara o leitor ao entendimento de suas práticas artístico-pedagógicas como ações políticas fomentadoras da Emancipação do Corpo Negro no cenário artístico do Rio Grande do Sul. Através da ideia de “Pé de Dança” compartilho algumas memórias pessoais relevantes na minha construção enquanto artista-pesquisador. Para tal exercício, inspiro-me nos conceitos de “autoetnografia na dança” (FORTIN, 2009) e no conto “Os pés do dançarino” de Conceição Evaristo (2017). Trago na escrita reflexões sobre tensões e conflitos acerca da invisibilidade que é legada aos saberes negros, perpetrados pela Colonialidade (QUINJANO, 2005). Em FalarFazendo Dança Afro, apresento a estratégia metodológica criada nesta investigação que se propõe a uma dinâmica de pêndulo entre a memória dos sujeitos envolvidos na pesquisa – Mestre Iara, bailarinas(os) e ex-bailarinas(os) do Grupo Afro-Sul – e a do autor, Manoel Luthiery, inspirado em ferramentas do método etnográfico e auto etnográfico para a construção da Pesquisa em Arte (SILVA, 2010; FORTIN, 2009). Foram mobilizadas ferramentas, tais como: entrevistas semiestruturada, diário de bordo, observação-participante, observação, análise de fotografias e matérias de jornal. Reflexões sobre a visibilidade negra na Dança são desenvolvidas. Para isso, mobilizo noções oriundas da perspectiva Afrocêntrica (ASANTE, 2009; 2016; NOGUERA, 2018) na esperança de problematizar no campo acadêmico a atitude/ação política antirracista. A segunda parte da dissertação, intitulada “Encontro com Mestra Iara” é marcada por uma imersão nas memórias e na biografia da Mestra. Diversas informações relevantes sobre a criação do Grupo Afro-Sul de Música e Dança (GASMD), sobre o Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê (ISASO), reconhecido como Ponto de Cultura pelo extinto Ministério da Cultura (MinC). Apresento um pouco da memória acerca de Dona Verônica Santos, Tia Lili, como era popularmente conhecida a mãe de Mestra Iara. 31 Tia Lili é uma mulher que me emociona todas as vezes que lembro das narrativas acerca de seus Gestos de Resistência. Tia Lili, mulher negra, empregada doméstica e requisitada cozinheira da burguesia portoalegrense, que, como muitas outras mulheres negras, enfrentou a dificuldade da maternidade solo após o falecimento do companheiro, o sr. Vilson dos Santos. No início da carreira o GASMD contou com o apoio de Tia Lili, produtora de dança e doméstica, empresária do GASMD nos primeiros anos após a fundação. Nos subcapítulos “Afro-Sul Odomodê: Um pedaço da África no Sul do Brasil” e “Memórias na voz da mestra”, convido os leitores a conhecerem um pouco das memórias que estão plantadas naquele chão, no corpo. Tais memórias são compartilhadas a partir das lembranças de Mestra Iara. Em seguida apresento algumas das minhas reflexões acerca dos frutos da investigação, reconhecendo as nuances do trabalho artístico-pedagógico da Mestra, enfatizando a criação da Dança Afro-Gaúcha. Escrevo a partir dos relatos e depoimentos, destacando ser uma escrita permeada pela minha experiência prática enquanto artistas-pesquisador e aluno de Mestra Iara. Discorro sobre os fundamentos da técnica desenvolvida pela Mestra, elencando a Contração e a qualidade Forte-Leve como eixos do trabalho artístico-pedagógico. Este trabalho discorre sobre a trajetória que consolida e elege o GASMD como matriz geradora de um saber/fazer Dança Afro peculiar. Reconhecido pela sua importância e protagonismo enquanto representante de uma identidade somática local, nominada de Dança Afro-Gaúcha. Desejo a todos uma boa leitura e que este registro acerca do saber/fazer Dança Afro sirva como instrumento na descolonização do saber/fazer Dança, comprometido não só com a teorização, mas também com uma prática artística e educativa contundente desvelada como gesto de resistência no tocante as Artes Cênicas. 32 Figura 2. Mestra Iara e Manoel Gildo durante Feijoada no Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê. (16/12/ 2018) 33 II - TERRA Pode crer no axé dos seus ancestrais Martnália Mendoça Ferreira/ Martinho da Vila20 “Dona da casa me dê licença Me dê seu salão para vadiar!” Edith Olivia Nogueira (1916-2009)21 “Sair Andar Ver” Nana Vasconcelos (1944-2016)22 FERREIRA, Martnália Mendonça; VILA, Martinho. VALENÇA. Samba dos Ancestrais. Youtube, publicado por Akofá Logun em 9 de janeiro de 2013. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=HjRYUzKBL58. Acessado 24 de setembro de 2018. 21 Edith Oliveira Nogueira, também conhecida como Dona Edith do prato, ficou conhecida por se apresentar usando uma faca e um prato como instrumentos percussivos base para sua cantoria de Samba-de-roda. BETHÂNIA, Maria; NOGUEIRA, Edith Oliveira. Dona da casa – Eu vim aqui. Youtube, publicado por Peter Gast em 3 de agosto de 2017. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1Zi60AsruYc. Acessado em 30 de dezembro de 2018. 22 VASCONCELOS, Nana. Curtain. Youtube, publicado por DJ Colucci em 11 de março de 2016. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=bXdPkcvTb8I. Acessado em 30 de dezembro de 2018. 20 34 Figura 3 – Bailarinas Mestra Iara, Leciane Rodrigues, Maria da Graça Penha e Edjana Deodoro - "O feminino sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Marciel Goelzer (GASMD, 2016) 35 PÉ DE DANÇA: SAIR ANDAR VER Entrar em contato e aprender com saberes/fazeres negros, numa sociedade ainda marcada pela escravização e fortemente pelo racismo, pressupõe deslocar-se para entrar em contato, mesmo estando a margem da própria encruzilhada, mesmo reconhecendo sua pertença e identidade étnico racial, mesmo sendo negra(o). O poder da colonialidade impressa na educação e na cultura de países colonizados, contamina completamente nossos modos de pensar, pesquisar e dançar. É preciso limar do horizonte os enunciados que negam a pessoa negra o estatuto de sujeito humano e suas inúmeras possibilidades de ser e existir. Encantar-se com as potências de vida que se enunciam no caminhar é uma dessas medidas. Nesse sentido, trago a noção de Pé de Dança como uma dessas potências de vida que tem me encantado no percurso de caminhador como artistapesquisador. Um belo encontro entre saber rejeitado e negado pela historiografia e alguém encantado com a beleza existente nos traços que acordam sua ancestralidade. Traços visíveis na resistência perpetrada por ritmos e gesto guiados por toques de tambor, tal qual afirma Sodré (2017, p 142) Propriamente uma integração rítmica do movimento ao espaço e ao tempo, a dança cria ou “inventa” as ações a partir do fluxo temporal do imaginário coletivo e, deste modo, produz um agir autônomo do dançarino frente às técnicas particulares de cada ação, espaço (caçada, combate, amor etc.). Mas é uma autonomia que se comunica tanto com clareza quanto pela força latente de uma incitação aos espectadores do grupo, ao modo de uma mensagem apenas sentida (a linguagem secreta da percussão), inerente à alacridade que os libera de si mesmos. Não se traduz nem se explica a dança – ou seja, ela não é um duplo teatro da mímica, da literatura ou da história -, pois a ação do dançarino é projetiva, induzindo a uma experiência não redutível ao conceito. O termo Pé de Dança é uma metáfora utilizada em comunidades de terreiros para referir-se as modulações de tônus(tensilidades), dinâmicas rítmicas e gestuais altamente performáticas e espetaculares presentes em tradições ritualísticas do Candomblé. Este acervo gestual está intimamente ligado a mecanismos de tradução dos mitos resguardados na memória coletiva. São executados em práticas religiosas na perspectiva de reconexão com a ancestralidade africana e manutenção das linguagens oriundas da África. Cabe relembrar que nessa perspectiva religiosa-cultural o mundo imanente recorrentemente confunde-se com o transcendente (LUZ, 2013). A presença do 36 visível e do invisível circunda a vida dos sujeitos dessa comunidade, e certas dinâmicas corporais são necessárias para essa reconexão. O gestual do Pé de Dança está relacionado a posição do sujeito no contexto hierárquico da comunidade e do ritual. Geralmente se leva em consideração a ancianidade, impressa pela idade biológica ou tempo de iniciação, que concomitantemente confere ao sujeito uma posição-cargo de responsabilidade com o outro dentro da Egbé Ayiê23. Em comunidades de Candomblé Ketú o termo perfuré ou préfuré refere-se ao processo de aprendizagem do gestual específico do ritual, esse processo é mediado pelas ações básicas recorrentes a vida cotidiana do terreiro, conferindo a Dança dos Orixás uma característica básica das Danças Africanas, o Sentido Holístico. O Sentido Holístico busca a inserção do ser humano no cosmo. Neste sentido, a dança solicita o corpo em sua totalidade para que os movimentos realizados integrem os princípios básicos das danças africanas. É o físico e o emocional interligando-se em uma trama de sentidos utilizando o movimento, gestos, espaço, o tempo e o ritmo na tradição africana. Estas tradições possuem um sentido de pertencimento e correlação entre valores étnicos, éticos, estéticos, sociais, religiosos, políticos e culturais, dispostos de forma compositiva intrínseca. (PAIXÃO, 2009, p. 54-55) A noção de que o plano físico – imanente - é constantemente atravessado pelo plano espiritual – transcendente - (LUZ, 2013) me possibilita concluir que ao colher, macerar ou pilar uma erva para banho, o sujeito está em relação com saberes/fazeres técnicos corporais que acionam através do gesto um pensamento corpo intimamente ligado a memória coletiva ancestral, impregnada de Sentido Holístico e seus “valores étnicos, éticos, estéticos, sociais, religiosos, políticos e culturais, dispostos de forma compositiva intrínseca” (PAIXÃO, 2009, p. 55). Acredito que a liminaridade instaurada pela relação de complementariedade entre Rito e Mito são mediadas pela oralidade e pelo gestual - como é o caso das performances cantadas e dançadas tanto no sirè24, quanto no perfuré/prefuré acometido pelo princípio da Repetição25. Conferindo ao corpo uma conexão com saberes/fazeres ancestrais resguardados na memória coletiva pelo Gesto e pela Oralidade. Egbé – Comunidade; Aiyê – terra; numa tradução livre do Yorubá para o português Egbé Aiyê refere-se à “Comunidade terrena”. 24 Festa pública em casas religiosas de matriz africana Yorubá. 25 Princípio básico das Danças Africanas, segundo Martins (1998, p. 31) é “através da repetição das sequências de movimentos, gestos e canções em círculo, que o/a filho/a de santo (yawô) começa a alterar seu estado de ser, incorporando a força cósmica e sobrenatural do orixá no seu corpo”. 23 37 Tais performances reforçam valores étnicos, éticos, estéticos, sociais, religiosos, políticos e culturais, organizados esteticamente no rito. Nesses fazeres/saberes estão implícitos o manual sobre à gravidade, o tempo, a espacialidade e fluência do movimento. No livro “Corpo Limiar e Encruzilhadas: processos de criação em dança” a professora Renata Lima Silva (2012) nos conta que seu mestre de Capoeira, Mestre Plínio recorrentemente narrava como compreendeu, em uma de suas estadias na Ilha de Itaparica, como que os velhos capoeiristas jogavam “tanta Capoeira” (em termos de qualidade de jogo) sem “treinar”. Segundo Silva (2012, p. 30) Mestre Plínio afirmava que “o segredo está no modo de equilibrar e remar o barco, em esperar o peixe, no descansar acocorado, etc.” O Pé de Dança a que me refiro não está dissociada do Pé que caminha, e conhece através da textura a diferença entre água e areia. Nas comunidades religiosas de matriz africana o gestual das Danças tem base em movimentações de sociedades pré-industriais, atualizadas no corpo de quem dança, e nas energias da natureza. Tal premissa confere à Dança dos Orixás característica holística. Os saberes míticos e fazeres ritualísticos fazem parte de um estudo profundo do Yawô (iniciado) no período de recolhimento26. Ações físicas, tais como: varrer, lavar, pilar, colher, macerar folhas entre outras movimentações, recontam performaticamente sobre mitologias e cosmovisões negras africanas. O corpo que Dança nos rituais de Candomblé, no Batuque do Sul e/ou na Umbanda, não está dissociado das outras práticas cotidianas. Segundo Raimundo Bispo dos Santos, Mestre King Segundo as tradições do candomblé Ketú o Yawô-Iniciado deve ficar recolhido durante determinado tempo na camarinha (quarto onde ficam os assentamentos de alguns Orixás e segredos do Axé do terreiro. Nesse período o iniciado irá vivenciar de maneira intensa ritos de passagens, que são expressos numa gama de saberes/fazeres espirituais e corporais que reavivam a memória ancestral 26 38 Fazer o movimento (o mestre se movimenta mostrando o gicá – rotação antero-posterior com fluência contínua) Pra ka tá Pra ka tá Pra ka tá! Tem gente que faz assim (nesse momento o mestre executa o movimento de elevação e descida do trapézio em fluxo contido) forçando o trapézio. Não! Tem o jeito de jinká correto (Mestre King se movimenta novamente mostrando o gicá) Pra ka tá - Pra ka tá - Pra ka tá! Agora... como foi que as filhas de santo aprenderam isso noutros tempos? Aqui! Lavando roupa! (Mestre King se movimenta novamente mostrando o gicá estimulado pela ação cotidiano de lavar roupas a mão) Na mandioca! (Mestre King se movimenta novamente mostrando o jinká estimulado pela ação física de ralar mandioca) É uma técnica? É! Mas precisa ser elaborada! (SANTOS, 2015) Estando a Vida e a Arte intrinsecamente ligadas no saber/fazer da Dança Afro, é necessário dizer que existem diversas experimentações teatralizadas no ritual de iniciação, onde o iniciado imita o gestual dos instrutores do processo. Verger descreve alguns feitos do processo de iniciação, um deles é transcrito abaixo. Cercados por seus instrutores, imitam a partida para o campo, com uma enxada no ombro e uma cesta na cabeça. Fazem gestos de cultivar a terra, de semear o milho ou subir no tronco de uma árvore para cortar cachos de dendê. Aos primeiros golpes de facão dados caroços de dendê e grita com uma falsa admiração: “Ah! Que belo cacho acaba de tirar!” As moças fingem ir buscar água no riacho com uma cuia ou um pote na cabeça ou ir apanhar lenha no mato. Os dois grupos voltam ao terreiro ao mesmo tempo e simulam ir ao mercado, vender e comprar; depois, à volta á casa para acender o fogo, cozinhar, etc. [...]Todos os gestos da vida reencontrada são executados em uma atmosfera de humor e de alegre descontração depois do longo período de recolhimento (VERGER, 2002, p. 42) Tais modulações de tônus(tensilidades), dinâmicas espaço-temporais, sócioculturais, de ordem ritualísticas e/ou artísticas, especificamente no caso de comunidades de terreiro nagô, se expressam através de um sistema de aprendizagem do gestual específico do ritual. Mesmo não sendo iniciado no candomblé, nasci e me criei dentro de uma comunidade onde as religiosidades de matriz africana e indígenas eram muito presentes. Do lado paterno convivi muito tempo com minha avó Maria Madalena (Avó Madá), líder espiritual do terreiro de Umbanda “Carramanchão de Seu Boiadeiro”. Durante as festas públicas umas das coisas que me chamavam bastante atenção era a Dança e a simbologias de seus gestuais. Na adolescência conheci o terreiro da Folha Miúda – Ylê Axé Iansã DuBò – uma casa de Candomblé KetuAngola, onde a codificação gestual era aparentemente mais sistemática que na Umbanda. 39 A utilização do termo Pé de Dança no contexto dessa dissertação se inspira na noção de “Corpo e Ancestralidade” (SANTOS, 2006) tentando trazer ao conhecimento de todos um pouco das matrizes que constituem o corpo dos sujeitos da pesquisa. Segundo Valerie Dunlop “Quando a Dança é enfatizada somente pela arte, existe o perigo da dança se tornar mais importante que os dançarinos que estão dançando” (DUNLOP apud SANTOS, 2006, p. 44), portanto, buscamos não cair no risco de negar o corpo que escreve e cria em Dança, apresentarei em seguida um pouco da minha caminhada e pertencimentos enquanto artistapesquisador negro. Serão apresentados algumas informações biográficas acerca do Pé de Dança do artista-pesquisador, com consciência de que ao tornar pública algumas dessas memórias pessoais proponho um “trampolim para uma compreensão maior”, busco, enquanto autor, debruçar-me sobre algumas dessas memórias não para justificar ou problematizar o “porquê estou aqui?” ou mesmo para romantizar o processo pessoal de formação enquanto artista, mas para enfatizar outras perspectivas formativas em Dança. Perspectivas negras, que movimentam o cenário cultural e fazem ver, mesmo na invisibilidade que lhe é legada, feixes de luz e texturas de diversas matrizes culturais presentes em corpos negras/os dançantes que sinalizam pra outros modos de aprender a Dançar, ou mesmo de formação artística no contexto brasileiro. Escolhi relatar alguns Gestos de Resistência que ecoam em minha memória, pondo-as em movimento de atualização constante frente minha construção identitária enquanto homem negro, bailarino, pesquisador, ativista social do movimento negro e professor de Dança Afro. Compreendo que a auto-etnografia “se caracteriza por uma escrita do ‘eu’ que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si” (FORTIN, 2009, p. 83) ao passo que a etnografia é visualizada como modo de investigação artística longe de purismos e neutralidades, para Fortin (2009, p. 82) é preciso admitir que, através da escolha de uma questão de pesquisa, o peso das palavras utilizadas nas descrições, o trajeto de um pensamento se constrói [...] o pesquisador que participa de um projeto de um artista, que observa durante um longo período de tempo, que escuta e o questiona, não produz uma descrição da realidade, mas principalmente uma construção: a construção de seu reencontro com o projeto de criação. Toda descrição é, de fato, uma interpretação no sentido de que é a seleção de informações e 40 atribuição de significações a partir de uma memória e de um imaginário individual e coletivo. Peço licença para compartilhar alguns gestos principalmente os que vivi no quintal de minha avó Madá! da minha infância, 41 CHÃO ÚMIDO, SEMENTES LANÇADAS, EU-FRUTO Figura 4. Manoel Gildo Alves Neto (fotografa Camila Nuñez) O entendimento acerca do eu-corpo como produto/produtor de si dentro do espectro do tempo, possibilita o apagamento da fronteira entre o corpo que sou e os (auto)saberes/fazeres produzidos em performance, isso pra dizer que, o olhar lançado às práticas artístico-pedagógicas de Mestra Iara tem corpo, tem experiências e lentes específicas que viabilizaram essa escrita crítico-reflexiva. Segundo Rengel (2007, p. 7) dizer: ‘meu corpo’ faz parecer que o corpo que sou, é algo que possuo. E ‘eu’ sou outro algo. (RENGEL, 2007) propõe que o pronome possessivo [meu] entre em colapso nos enunciados verbais sobre o corpo, rompendo com a noção de self como possuidora do corpo. Entender o eu-corpo de maneira holística e somática, me possibilitou escrever e pensar em primeira pessoa, pondo em ênfase a minha voz, meu corpo e minha experiência enquanto mediador da história de vida de Mestra Iara, sendo assim acredito ser importante para o leitor saber quem é esse sujeito mediador da narrativa. Peço licença aos leitores para a partir de agora compartilhar um pouco das minhas experiências de aprendizagem e pesquisa em Danças Afro-Brasileiras. Licença pra falar do meu Pé de Dança. 42 Nasci e me criei em Remanso-BA, cidade fronteira entre o estado da Bahia e Piauí. Semiárido nordestino, banhado pelas águas doces do Velho Chico27. Filho de um casal de pescadores artesanais (Maria da Conceição Costa e Pedro Alves da Costa). Tendo como avó paterna de Dona Maria Madalena (1928-2012), filha de indígena com negro, uma cabocla brasileira sem sobrenome. Conhecedora do poder medicinal das ervas da região, detentora de saberes orais de sua ancestralidade e Iyalorixá no Caramanchão de Seu Boiadeiro. Desde criança ouço falar em Pé de Dança28, escolho essa metáfora para falar um pouco do meu percurso na Arte, também inspirando pelo conto “Os pés do Dançarino” onde a célebre escritora brasileira Conceição Evaristo (2016) nos brinda com uma estória que diz muito sobre a importância das Mestras no ensino da Dança Afro no Brasil. A Dança sempre esteve presente no ambiente familiar. Talvez a primeira performance pública em Dança tenha sido nos braços de Seu Boiadeiro. Rito comum em centros de Umbanda, onde as entidades costumam dançar com crianças no colo, apresentando-as para toda comunidade. E no decorrer da infância e adolescência estar em volta do fogo com primos e outras crianças durante as sessões do ritual fomentavam nossa aprendizagem sobre as Danças Litúrgicas a partir da imitação29. Em minha infância os gestuais das Danças Sagradas, performadas nos rituais religiosos eram motivo dos meus primeiros jogos de representação. Não me atrevia a dançar entre os adultos, no entanto, em torno do fogo juntava-se sempre muitas crianças, e lá em volta do fogo o gestual dos Orixás, Caboclos/as, da Nega Catirina – personagem do Reis de Boi -, do Samba de Véio eram (re)performados com tom de ludicidade. Sabino e Lody (2011) fazem alguns apontamentos sobre o fogo. O fogo até hoje é um elemento de profunda relação com os deuses em todos os povos e civilizações. O fogo é o sol reproduzido. Purifica, revitaliza, atinge as culpas e os pecados buscando mudanças, referências que tocam na comunicação do homem com sua memória remota, fundamental e Modo como a comunidade ribeirinha local carinhosamente chama o rio São Francisco O termo “Pé de Dança” é uma metáfora utilizada em comunidades de terreiros para referir-se as modulações de tônus(tensilidades), dinâmicas rítmicas e gestuais altamente performáticas oriundos de seus rituais. Essas dinâmicas corporais estão relacionadas a posição do sujeito no contexto hierárquico do ritual, que geralmente levam em consideração a ancianidade e/ou o cargo relativo da/o adepta/o. 29 A Imitação compõe junto aos princípios de Repetição, Forma cíclica e circular, Dimensionalidade, Polirritmia, Policentrismo, Sentido Holístico os sete princípios básicos presente nas Danças Africanas segundo a pesquisadora e coreógrafa Kariamu Welsh Asante (Martins, 1998) 27 28 43 arcaica. [...]É o fogo imanado a cada ano no mês de junho nas festas públicas, algumas religiosas, em especial nos templos de matriz africana; festas que afirmam identidades, atualizam memórias e demais símbolos, que atestam pelas danças o sentimento de ancestralidade (p. 19-22). Às crianças era dado o espaço do quintal para interação e lá estava o fogo, produzindo brasas para o incenso, mas também produzindo calor e comunicação verbal e gestual. Naquele espaço/tempo os conteúdos de ordem simbólica eram compartilhados. A referência familiar na produção de si. Surgiam as primeiras referências estéticas. Nesse sentido, faço relação com o pensamento de Cássia Navas: A experiência estética é fruto de um acontecimento que nos arroja para fora do familiar, do cotidiano, da mesmice, do que sempre acontece, do hábito. Frente o “todo o dia a mesma coisa” é algo que perfura a rotina de maneira violenta, brusca, total. É experiência advinda de uma crise, de um limite e nos joga em outro estado de percepção, do qual saímos diferenciados (2010, p. 2). Tal experiência era interna, no seio familiar, no entanto subvertia o cotidiano, encarcerado numa métrica colonialista. O Pé de Dança era uma referência centralizadora do saber sobre o ancestral, performado em simultaneidade com a música, que de forma poética trata a mitologia, reafirmando saberes sobre as energias da natureza, além de narrativas sobre a Memória da comunidade negra afrodescendente. A dramaturgia do movimento que conta sobre a mitologia de cada Orixás, sobre folhas, matas, água, vento e mandingas, todas (en)cantadas e dançadas de forma muito singular compõem a experiências corporais “estruturados por significados, corpos que são mapas de conteúdos e, portanto, de significação” (NAVAS, 2010, p. 3), elaborando “metáforas corporais” através do pensamento do corpo-em-arte. Ainda em minha infância ouvir e dançar o sagrado era uma brincadeira recorrente. Essas referências estéticas me instigaram a curiosidade acerca da arte. Arrebanhado pela experiência, tenho estudado como aprender a dançar a partir dos elementos da natureza presentes no universo religioso do candomblé. Lembro que, mais ou menos aos 10 anos de idade, uma das minhas professoras do ensino fundamental, Profª. Juscilene Ferreira pediu que eu comunicasse a minha irmã – Ivete Alves – que haveria ensaio do grupo de jovens do qual ela participava. O recado era: “Avise a sua irmã que a noite teremos ensaio!” 44 Ok, recado entregue. Mas a curiosidade sobre o que ensaiariam me fez perguntar a Ivete do que seria o ensaio(?). Minha irmã me responder: “Vamos ensaiar uma coreografia de Dança Afro que apresentaremos na novena à Nossa Srª. do Rosário”. Até então o termo Dança Afro era estranho, por mais que houvesse coerência em classificar e reconhecer a maioria das expressões dancísticas que eu conhecia como Dança Afro. Fui a novena ver Dança Afro! A entrada da bíblia foi anunciada, um violão acompanhanva o alarido dos tambores soava fortalecido pelo canto e dança: Refrão - A palavra de Deus Vai chegando vai! (bis) É jesus que hoje vem nos falar! (bis) Refrão - A palavra de Deus Vai chegando vai! (bis) É a experiencia do povo! (bis) Refrão - A palavra de Deus Vai chegando vai! (bis) É palavra de libertação! (bis) Naquele momento minha irmã junto ao restante do grupo dançava Ijexá embalada pelo som dos tambores! Não imaginava que 20 anos depois daquela experiência me tornaria pesquisador, entretanto sentia que aquela expressão estética era muito similar a todas as expressões que eu havia visto no terreiro. Durante o ensino fundamental e médio, a Escola cumpriu importante papel na minha formação artística. A escola fomentou espaços de experimentação em Dança e Teatro a partir das ações performáticas desenvolvidas em datas comemorativas. Muitas delas eram organizadas pelas professoras Jucilene Ferreira e Ana Lêda Silva no Colégio Ari Amorim de Moura. Em 2004, com aproximadamente 14 anos de idade, conheci Marcelo Santana Mota, na época instrutor de Capoeira pela Associação de Capoeira Mestre Deca de Juazeiro-BA. Um capoeirista forjado na dinâmica da Capoeira de Rua durante a década de 1990. Em 2004 Marcelo Santana já coordenava uma equipe local vinculada à Associação de Capoeira Mestre Deca, sob a supervisão de Mestre Gentil (Wandemberg Ferreira do Nascimento). Sob orientação de Mestre Macarrão estudei Capoeira de 2004 à 2010, quando fui aprovado como bolsista cotista do Prouni30 na licenciatura em Educação Física da Universidade Paulista em Programa Universidade para Todos. Este Programa do Governo Federal do Brasil foi criado com o objetivo conceder bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação de formação específica, em instituições privadas de ensino superior. Foi instituído pela Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005 30 45 Campinas-SP. Marcelo atualmente é reconhecido pela comunidade remansense como Mestre Macarrão e está vinculado ao UNIART Capoeira, onde situo a minha pertença enquanto capoeirista sob o apelido de Timbaí31. No mesmo período junto a Reginaldo Costa – também aluno de mestre Macarrão – fundamos o Arraiá Cultural Belo SerTão. Uma quadrilha junina que durante os 4 anos fomentou a produção artístico-cultural de jovens periféricos em torno da festa junina. Durante minha formação em Educação Física na cidade de Campinas-SP estudei Dança Clássica, Moderna, Contemporânea e Teatro na Associação de Benfeitores e Amigos de Meninos Bailarinos e Atores (ABAMBA), uma ONG criada e coordenada pelo bailarino-pedagogo Beto Regina32. Após o período de formação em Educação Física senti a necessidade de aprofundar os conhecimentos teóricopráticos em Dança me preparei para o processo seletivo via Sisu33, sendo selecionado em 2012 para ser aluno da primeira turma da licenciatura em Dança da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Fui recebido em Santa Maria-RS por Vilnes Gonçaves Flores Jr. (1964-2017), mais conhecido como Nei D’Ogum, um militante do Movimento Negro em 2013. Ele era coordenador do setor educacional e cultural do centenário Museu Comunitário Treze de Maio, um espaço de referência no movimento social de clubes negros do Rio Grande do Sul. Também fui recebido pela produtora cultural e prof. Dra. Marta Nunes (UERGS). Essas duas pessoas me educaram sobre o Movimento Social Negro, potencializando os saberes estéticos-corpóreos que historicamente haviam sidos recalcados na minha formação em Dança. Paralelamente a minha inserção no Movimento Negro em Santa Maria-RS fui voluntário de Iniciação Científica no grupo de pesquisa “Abordagens Somáticas do Movimento na Criação em Dança” sob orientação da Prfª. Dra. Heloisa Gravina(UFSM), onde pude desenvolver a pesquisa “Corpo Odara: Capoeira como processo de formatividade”. Fui bolsista no grupo de pesquisa “Fronteiras porosas Nomenclatura utilizada na região para referir-se ao Jatobá (Hymenaea courbaril). Árvore da família das fabáceas. A espécie pode alcançar 40 metros de altura e 2 metros de diâmetro. 32 Roberto Regina foi bailarino do Balé da Cidade de São Paulo e da Cia. Cisne Negro na década de 90. Ao retornar para Campinas-SP por volta do ano de 1998 dedicou-se exclusivamente a formação de meninos bailarinos na ONG ABAMBA. 33 Sistema de Seleção Unificado implantada em 2010 pelo governo do ex-presidente da república Luís Inácio Lula da Silva. O programa criado pelo Ministério da Educação com o intuito de democratizar o acesso ao ensino superior em instituições públicas. 31 46 nos processos e performances do corpo cênico investigativo” coordenado pela Prof. Gisela Biancalana(UFSM), onde aprendi sobre os Estudos da Performance. Em programas de extensão junto a bailarinos cadeirantes, atores e atrizes negros, e alunos de escolas públicas me realizei pondo em prática junto à comunidade pesquisas teórico-práticas que tematizavam a Capoeira no ambiente escolar, Dança dos Orixás na preparação de bailarinos-atores e a criação artística em Dança com pessoas com deficiência física e mental. Com o intuito de fortalecer a busca por uma diversidade na produção artística local, em 2014, junto a produtora Marta Nunes, submeti ao edital Bolsa para Artistas e Produtores Negros o projeto de criação de um espetáculo de Dança Negra, que envolvia uma pesquisa multidisciplinar junto a mulheres negras gaúchas, chamado “Negressencia – Mulheres Cujos Filhos São Peixes”, no qual atuei como Diretor. O projeto deu início ao grupo santa-mariense de Dança Negra nomeado de Coletivo Negressencia, onde dirigi os espetáculos Negressencia-Mulheres Cujos Filhos são Peixes (2016) Peixes Urbanos (2017). Essas andanças me possibilitaram conhecer diversos educadores, produtores e artistas negros que trabalham com o ensino e criação em Dança Afro seja na escola pública, seja em alas de Escolas de Samba. Despertava aos poucos um olhar atencioso para as memórias desses grupos, além do interesse em conhecer melhor as práticas artístico-pedagógicas desenvolvidas por tais educadores e artistas de Dança Afro do estado do Rio Grande do Sul. Me interessava saber mais sobre os movimentos artísticos que vieram antes. Quem eram as pessoas que antes da minha geração movimentavam o cenário artístico e educacional com Dança Afro? Como subverter o racismo que as invisibilizam da historiografia da arte? Enquanto artista e educador engajado com as discursões acerca das relações étnico-raciais no campo das Artes Cênicas, como poderia evidenciar em um trabalho acadêmico a presença e memória de artistas que prepararam e umedeceram o chão para que a minha geração de bailarinas(os) pudessem ocupar diversos espaços de pesquisa, ensino e criação em Dança Afro? 47 DANÇA NEGRA: ARTE E POLÍTICA “Seja em gesto de ternura ou de dor Ou na ginga que derruba o feitor Corpo fez a sua língua e quem se move sem pudor Desde a nação Cabinda até Salvador Ê dançar! Ê dançar” Pra dizer o que for” (Sergio Santos. 2013)34 A Dança Afro-Gaúcha no contexto desta dissertação é entendida como um segmento na esteira do que atualmente conhecemos por Danças de Estética e Expressão Negra ou Dança Negra (ACONY, 2017), dança essa que, baseada em matrizes e motrizes35 culturais africanas, constrói identidades negras na diáspora. No caso específico da Dança Afro-Gaúcha, os diálogos e trocas acontecem especialmente com traços estilísticos presentes no Samba36 (em comissões de frente de Escolas de Samba), na mitologia yorubana dos Orixás 37, (nos mitos contados do Batuque do Sul38) e no Jongo (inspirado no Jongo da Serrinha do Rio de Janeiro - RJ). Cabe destacar que o termo “Afro” tem sido utilizado pelos movimentos socioculturais negros nas últimas décadas com o propósito de criar um sentimento de pertença, interpelando mulheres e homens negros sobre sua identidade étnicoracial. Desse modo, a dança afro (e consequentemente a autoafirmação do termo “Afro” no sentido aqui implicado) instiga conscientemente o sujeito a (re)conhecer minimamente sua história, ancestralidade, suas identidades, seu corpo, pontuando de maneira afirmativa os patrimônios culturais e genéticos africanos herdados pelo povo negro afrodescendente. Assim sendo, mesmo que “Afro” perpetue uma localização indefinida, sem nação (ACOGNY, 2017), para nós, comunidade SANTOS, Sergio. Corpo. Youtube, vídeo publicado por Sergio Santos em 18 de março de 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I6CJljUTxSA. Acessado em 24 de julho 2018. 35 O conceito de Motriz Cultural está relacionado a um conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos. Segundo Ligiéro (2011, p. 107), “a este conjunto chamamos de práticas performativas, e se refere à combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações do mundo afro-brasileiro”. 36 GRUPO AFRO-SUL DE MÚSICA E DANÇA. Ensaio Afro-Sul. Youtube, vídeo publicado por Gilberto Bica em 20 de março de 2017. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=bFDsxi7Fgq8. Acessado em 04 de outubro de 2018. 37 GRUPO AFRO-SUL DE MÚSICA E DANÇA. Sarau Especial Grupo Afro-Sul ODOMODÊ. Youtube, vídeo publicado por Leonardo Vianna Pinto em 22 de novembro de 2016. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OaEJKZazWOA. Acessado em 04 de outubro de 2018. 38 O Batuque do Sul é a expressão religiosa negra, africano-brasileira, particular ao Cone Sul, formado pelos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catariana e Paraná (TRIUMPHO, 1991). 34 48 expatriada da terra natal, tal designação auxilia na reformulação positiva de uma identidade negra da diáspora, formulada através da proximidade ou do desejo de aproximar-se do que emana desse território africano negro, subsaariano. E isso se dá das mais diferentes formas, seja através do uso de turbantes ou da presença de outros traços de uma África que sobrevive em gestos de resistência. Ou seja, no contexto que aqui interessa, trata-se de uma dança por diversas vezes negada, folclorizada ou exotificada nos contextos escolares brasileiros. Há uma diversidade de nomenclaturas utilizadas para referir-se à dança produzida por artistas negros brasileiros que optaram por caminhos Estéticos e Poéticos que relacionam Identidade Negra, Ancestralidade Africana e os Gestuais e/ou Narrativas mito-poéticas presentes nos rituais (religiosos e/ou festivos) de matriz africana. Segundo o bailarino Rui Moreira39: O Brasil cita suas Danças Negras a partir do prefixo Afro. Inspiradas na história de sua descendência Africana, as danças afro-brasileiras, por princípio, remontam uma cosmogonia a partir de valores espirituais que refletem uma corporeidade que é transmitida de geração em geração. De forma ritualizada, normalmente embalada pela percussão, esta dança remete os corpos a uma relação com o continente africano, seja por memória ancestral ou por impulso mimético. Existe uma grande quantidade de danças afro-brasileiras ligadas a rituais e festas – leiam-se manifestações populares coletivas. Divinas ou profanas estas danças são um dos eixos da formação cultural do país e delas derivam danças que acompanham vários ritmos populares. [...] algumas personalidades nacionais fizeram esta dança afro-brasileira ocupar os palcos com muita competência. Mercedes Batista, Marlene Silva, Charles Nelson formam uma sequência de nomes que desenvolveram uma corporeidade específica e fizeram discípulos que seguem seus pensamentos estéticos. (2000, 64) Desde a década de 1970, o termo “Afro” foi adotado pelos movimentos sociais e culturais negros do Brasil, reitera-se, por expressar com eficácia semântica e simbólica os traços do patrimônio cultural africano nos corpos e em artefatos culturais brasileiros, ou melhor, Afro-Brasileiros (LODY, 1995). Naquela época, havia, de alguma forma, o anseio da pesquisa por conhecer uma gênesis Africana (no sentido de busca por entender o passado na diversidade de suas camadas e vozes), que resistia (resiste) latente na memória coletiva da população negra afrodescendente, justamente quando se proferia (profere) o termo “Afro”. Rui Moreira é bailarino, coreógrafo e investigador cultural. Ele nasceu em São Paulo, mas é radicado em Belo Horizonte desde 1984; sua carreira , na posição de intérprete, é marcada pela participação em companhias como: Grupo Corpo, Balé da Cidade de São Paulo e Cia.Cisne Negro. 39 49 Para Marianna Monteiro (2011), a expressão “dança afro” refere-se a uma diversidade de fenômenos e práticas que, de alguma forma, relacionam-se com a diáspora africana ao longo dos últimos cinco séculos. De acordo com a autora, o uso do prefixo afro implica pensar a multiplicidade de encontros entre as culturas europeia e africana, que, entre outros agenciamentos, se encontram no âmbito do “multiculturalismo”. No que se refere ao Brasil, trata-se de recortar “as práticas trazidas por africanos escravizados, que foram reelaboradas e transformadas na América Portuguesa (MONTEIRO, 2011, p. 02). Sendo assim, a partir dos anos 1950, destaca-se o protagonismo de Mercedes Baptista40, que, com a criação de uma técnica de dança associada a uma pedagogia, figura como precursora da dança afro. Monteiro compreende o sistema de dança proposto por Mercedes Batista como “a primeira manifestação modernista em dança elaborada a partir da cultura brasileira” (MONTEIRO, 2011, p. 11). Em 2007, Durante o primeiro colóquio de coreógrafos da África e da Diáspora Negra41 que aconteceu em Toubab Dialam – Senegal, estiveram presentes bailarinos e coreógrafos de diversos países que carregam traços culturais africanos, mesmo estando fora do continente. Artistas esses de países que receberam mulheres e homens negros na condição de escravizados durante o período colonial e que, portanto, vivenciaram a África a partir da experiência da Diáspora Negra. Nesse encontro, o pesquisador e coreógrafo senegalês Patrick Acogny 42 citou o termo “Dança Negra” como nomenclatura possível para uma alternativa artística e política (ACOGNY, 2017; MOREIRA, 2000). Sabemos que o Brasil tem utilizado o prefixo Afro para referir-se à Dança Negra, já no Rio Grande do Sul a nomenclatura recebe como complemento o sufixo Gaúcha, sendo reconhecida, pois, como Dança Afro-Gaúcha em função do pertencimento geográfico de seus criadores e das peculiaridades impressas como Maria Ignácia da Silva Krieger (1921-2014), conhecida como Mercedes Batista, nasceu no interior do Rio de Janeiro e foi a primeira bailarina negra a integrar o elenco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro participando nas produções de balés e óperas. 41 O encontro foi organizado pela Associação JANT-BI, sob a direção artística de Germaine Acogny, e ocorreu no Centro Internacional em Danças Tradicionais e Contemporâneas da África (École des Sables). Germaine Acogni é uma bailarina e coreógrafa senegalesa reconhecida por ser difusora das Danças Africanas em escolas da França e do Senegal (MOREIRA, 2000; ACONY, 2017) 42 Patrick Acogny, bailarino, coreógrafo e pedagogo franco-senegalês. É filho e colaborador de Germaine Acogny, diretora da École des Sables no Senegal. O bailarino também é PhD do Laboratório de Etnocenologia da Universidade de Paris XVIII, Saint-Denis, Françae Diretor-Geral e Artístico da já mencionada École des Sables. 40 50 sotaque no movimento. No território do Rio Grande do Sul, o corpo que traz em seu código genético genes afrodescendentes, e no fenótipo o signo da cor de pele, pigmentada em maior “melanina”, é vulgarmente tratado ou pelos menor quantidade por termos nacionalmente conhecidos, como: mestiço(a), moreno(a), mulato(a), bugre(a) [...]. O racismo local faz-se, assim, evidente, pois os espaços sociais historicamente foram delimitados por grupos étnicos brancos (europeus). Os diversos Clubes Sociais Negros espalhados por todo estado, alguns centenários como é o caso do Museu Comunitário Treze de Maio em Santa MariaRS, são exemplos do apartheid social vivido pela população negra gaúcha, mas também se erguem como modo estratégico de resistência. Numa época em que negras e negros eram privados do acesso a espaços de lazer, erigidos sob sua força de trabalho, nos salões de festa da sociedade branca eurodescendente, os Clubes e Agremiações Negras surgiam no período pós-abolição justamente com o intuito de fomentar o lazer, a organização e solidariedade entre a comunidade negra local (NUNES, 2016). Em diversas cidades do Rio Grande do Sul há microterritórios negros, desde comunidades remanescentes quilombolas a Casas de Batuque do Sul, Clubes Sociais Negros centenários43, Escolas de Samba, Escolas de Capoeira, entre outros. Esses espaços negros protagonizam, cada um à sua maneira, a luta antirracista. O Rio Grande do Sul é um Estado brasileiro que julga ser diferente dos demais em razão de um suposto caráter europeu, que se manifestaria não somente na sua composição étnica, mas também nas características climáticas. Subjacente a essa afirmação está a exclusão do “outro” – africano e ameríndio –, que não se encaixa na almejada “europeidade” e para o qual se nega um lugar nas representações e identidades sobre o Rio Grande do Sul. (DOMINGUES, 2009, p. 218) A expressão “de cor” e os termos “roxo”, “bugre”, “china”, “morena/o” são adjetivos pejorativos recorrentes nesse contexto local, pois invisibilizam a pluralidade das identidades étnicas não brancas que constituem o estado, desarticulam as possibilidades de construção identitária positiva, figurando muitas vezes como disfarce a fim de, talvez por medo, simplesmente evitar Segundo a profª. Drª. Marta Nunes(UERGS), os Clubes Sociais Negros são “espaços de convivência social, intelectual e artística, construídos antes mesmo do fim da escravidão negra no Brasil, no tardio ano de 1888, ganharam força e reconhecimento após a abolição da escravatura[...] os clubes negros desempenharam importante papel como centros de reunião e afirmação na luta de milhares negras e negros por sobrevivência e respeito” (NUNES, 2016, p. 15) 43 51 a palavra “negra(o)”. Segundo o poeta e dramaturgo Luís Silva (Cuti), certas palavras utilizadas pejorativamente para referir-se à pessoa negra fazem ressoar o medo dos sentidos semânticos e ideológicos, estabelecidos historicamente de forma sutil, em torno da palavra “Negro”. Cuti aponta que essa configuração visa anular o termo por entender que o seu uso não encobre o racismo, bem como lembra reivindicações antirracistas (CUTI, 2010). O termo “negra(o)” é repleto de significações, impregnado de valores distintos a cada contexto em que é pronunciado. É, por exemplo, usado cientificamente para nominar uma categoria social[criada], sendo visualizado como um conceito de fundamento etno-semântico, político e ideológico segundo Munanga (2003). Familiar aos estudos em Ciências Humanas e Sociais, recentemente o termo “negro” e as diversas questões em torno dele vêm recebendo maior atenção no campo da Artes Cênicas, que, em processo de Descolonização dos Saberes, começa a reconhecer os privilégios da branquitude nas Artes, além de questionar o racismo intrínseco a práticas teatrais eurocentradas difundidas no hemisfério sul com rótulo de universais. Segundo Sodré: Descolonizar o processo educacional significa libera-lo, ou emancipa-lo, do monismo ocidentalista que reduz todas as possibilidades de saber e de enunciação da verdade à dinâmica cultural de um centro, bem sistematizado na expressão “pan-Europa”. Esse movimento traz consigo igualmente a descolonização da crítica, ou seja, a desconstrução da crença intelectualista de que a consciência crítica é apanágio exclusivo do letrado ou de que caberia a este último iluminar criticamente o Outro. (SODRÉ, 2012, p. 19) Diante disso, o campo de estudo das ciências sociais, das artes e dos diferentes ativismos contemporâneos apontam cada vez mais o fardo do projeto modernista da civilização ocidental que, além de expor corpos não brancos a condições de trabalho escravo, invisibiliza corpos não normativos, tolhendo-lhes possibilidades de sociabilidade. Sob a fachada de racionalidade, desprovida de emoção, a dominação étnico-social administra as instituições sociais em exclusivo proveito próprio da minoria que representa, buscando tranquilamente colonizar ainda aquelas maiorias étnico-sociais que considera adversas. (BARBOSA, 2002, p. 67) É, assim, pautado em reflexões daquelas/es que constroem críticas contundentes à Colonialidade do Saber44 se opõem ao apagamento dos repertórios Segundo Oliveira e Candau (2010, P. 20), a colonialidade do saber pode ser entendida como a “repressão de outras formas de produção de conhecimento não-europeias, que nega o legado 44 52 linguísticos (verbais e gestuais) e à invisibilidade legada a corpos negras(os) as (os) quais historicamente dramatizam suas dores e alegrias na Dança, que proponho, reforço, a importância de investigações aceca de trajetórias negras nas Artes. O Racismo intrínseco na construção da sociedade brasileira colonial é elemento presente na constituição do ‘Corpo Social’ na contemporaneidade. A noção de ‘Corpo-Social’ citada baseia-se em reflexões desenvolvidas por Suzane Weber da Silva (UFRGS) a partir dos conceitos de Habitus, Campo e Capital, elaborados pelo filósofo Pierre Bourdieu (1930-2002). Para a autora: Bourdieu dá continuidade à tradição francesa de reconhecimento do corpo como condição permanente da experiência, influenciado entre outros por Maurice Merleau-Ponty. O corpo social refere-se à dimensão do corpo na qual é possível perceber as inscrições e marcas sociais e está ligado à idéia de que o corpo é construído pela sociedade. É no jogo social que serão definidas as diferentes hierarquias de modelos de corpos e, portanto, um corpo ideal. É a sociedade que vai legitimar alguns modelos em detrimento de outros (SILVIA, 2010, p. 1). Historicamente, em contextos colonizados, a instância legitimadora do poder e do saber/fazer baseia-se em fatores como a pertença étnico-racial, o gênero biológico e as relações sociais através das quais a performatividade de gênero, raça e classe são enfatizadas. Dito de outro modo, vivemos uma época em que a Descolonização dos Saberes (SODRÉ, 2012) e a Colonialidade (QUINJANO, 2005) tornam-se pautas emergentes nas discussões em Artes Cênicas, pontuando a invisibilidade que acomete saberes/fazeres negros (africanos e afro-diaspóricos) e indígenas (ameríndios). Invisibilidade essa que, de alguma forma, está impressa na memória desses corpos, instaurando e atualizando-se em performances, como uma “Refazenda Cultural”45 (GIL, 2007), acessada através dos saberes/fazeres presentes em Técnicas Corporais africanas e indígenas. Essas são algumas das implicações plausíveis para pontuarmos a necessidade de evidenciar outras narrativas acerca dos patrimônios materiais e imateriais do negro africano-brasileiro. Tais narrativas, incorporadas à ideia de “Cultura Popular” ou “Cultura Brasileira”, são recorrentemente docilizadas ou, como intelectual e histórico de povos indígenas e africanos, reduzindo-os, por sua vez, à categoria de primitivos e irracionais, pois pertencem a “outra raça”. Essa afirmação da hegemonia epistemológica da modernidade europeia se traduz num racismo epistêmico”. 45 Segundo Gilberto Gil, “para continuar resistindo, os africanos submetidos ao cativeiro e seus descendentes tiveram que refazer tudo, refazer linguagens, refazer parentescos, refazer religiões, refazer encontros e celebrações, refazer solidariedades, refazer cultura. Esta foi a verdadeira Grande Refazenda” (GIL, 2007, p. 7). 53 aponta o Prof. Edilson Fernandes Souza (2005), trazem suas emoções recalcadas em detrimento de imposições de ordem jurídica e sociocultural eurocentrada. Na perspectiva desta pesquisa, a Dança AFRO é entendida no âmbito das Artes Cênicas como gesto-fruto da diáspora. Isso sinaliza uma busca por unidade, mesmo que simbólica, entre a diversidade de expressões dancísticas patrimoniais e artísticas que trazem ou traduzem a herança africana. Tributária a Dança Negra, tal qual a definição apontada por Patrick Acony: As danças negras são toda prática de dança e coreografia cuja inspiração sejam danças locais e patrimoniais originárias diretamente do continente africano, sejam danças derivadas do continente africano, sejam danças com uma inspiração mística e espiritual oriunda do imaginário e da sabedoria africana! Elas não são monopólio do continente africano, nem dos africanos da África. As danças negras também são produto de todo artista que possua um vínculo de descendência com a África e que se inspire, seja materialmente, seja espiritualmente, no continente africano. Elas não são produzidas apenas por negros ou para os negros! (ACONY, 2017, p. 152) Portanto, na esteira do que politicamente nomeamos de DANÇA NEGRA, a DANÇA AFRO interconecta saberes/fazeres ancestrais de herança africana, atualizados in performance, tanto em rituais quanto na arte produzida por artistas, o que não subtrai a experiência de negritude do sujeito. Segundo a corrente teórica Afro-Americana do qual a autora Kariaamu Welsh Asante é uma das principais referências, a Dança Africana se alicerça em sete princípios, tais como: Poliritmia, Policentrismo, Repetição, Imitação e Hamonia, Sentido Holístico, Circularidade e Dimensionalidade - (ASANTE, apud MARTINS, 1998), princípios basilares e conceituais éticos e estéticos de Danças Negras Africanas, da região subsaariana. No caso da Dança Afro-Gaúcha, recorrentemente, alguns desses princípios são ativados na prática artística e/ou pedagógica de artistas-educadores, porém o diálogo com o espaço-tempo presente, com a história e as culturas locais a Dança Afro-Gaúcha gera seu esboço de princípios e metáforas singulares. Nesta pesquisa analisei a Dança Afro-Gaúcha a partir de um dos sete princípios, o Sentido Holístico, que imprime na Arte da Dança Africana uma intimidade com a Vida. Com isso, borrando fronteiras, transformando-as em camadas porosas interpenetráveis entre a VIDA e a ARTE e frente a esse imbricamento, pergunto: O que (não) pode uma Dança que tem como princípio o Sentido Holístico? 54 Segundo Paixão (2009) o Sentido Holístico busca a inserção do ser humano no cosmo, fazendo com que a Dança solicite do corpo uma totalidade no gesto. Esse princípio propõe a interação entre os princípios da Dança Africana, acionando o Corpo e todas as suas dimensões de forma interligada, promovendo uma trama de sentidos complexa, que utiliza o Gesto, o Ritmo, o Espaço para tal conexão com o cosmos. Diante da pergunta “O que é Capoeira?”, Vicente Joaquim Ferreira Pastinha, Mestre Pastinha (1889-1981), sabiamente respondeu: “Capoeira é tudo que a boca come!”. Coerente com esse modo amplo, holístico, de pensar/fazer impresso nas Danças Afro-brasileiras, cito alguns traços estéticos e políticos (temas desenvolvidos na segunda parte da dissertação) que motivam esta pesquisa em Dança AfroGaúcha: Enraizamento, Contração-Expansão e a Espiral; a relação Corpo-Tambor; o aquilombamento de negras e negros que questionam o status quo da sociedade europocêntrica, ainda regida por princípios colonialistas, e a presença da simbologia da Dança dos Orixás. Tendo em vista a importância de nominar, nominar para existir como afirma Silva (2008), nominar para entender as diferenças e singularidades. O que se convencionou chamar de Dança Afro-Gaúcha, tematizada nessa pesquisa, é a ginga do corpo afrodescendente com a cultura local. Na dor, ela se torna instrumento de denúncia. É arma de quem vai para a trincheira munido de lança, tal qual Lanceiro Negro. Segundo Mestra Iara (2018b), a Dança Afro-Gaúcha é o sotaque negro, gaúcho, impresso no fazer da Dança Afro. 55 RUPTURAS E PONTES Um dos legados perversos da colonização é a imensidão de informações recalcadas, marginalizadas, subalternizadas, invisibilizadas e apagadas de povos que conservam em sua matriz cultural maneiras de se relacionar social e espiritualmente através da dança, canto, batuques, adereços, pinturas e outras materialidades expressivas. A noção universalista abstrata46 disseminada no processo de colonização arquitetou nos territórios colonizados um complexo projeto de dominação cultural (BARBOSA, 2006) que tinha como pilar a exotificação e animalização dos modos diversos de existir em relação ao modelo eurocêntrico. Na Dança, percebe-se isso nas frases comumente dirigidas a bailarinas(os) negras(os), como por exemplo: “você se pintou ou é dessa cor mesmo?”, “macaco!”, “negro já nasce sambando!”, dentre outros enunciados pejorativos que reforçam o estereótipo e a objetificação do corpo negro. Ousamos dizer que uma das estratégias mais devastadoras do processo de colonização foi, e continua sendo, a marginalização da cultura de determinados grupos étnicos, a negação da pluriculturalidade proveniente desse processo. Segundo Barbosa (2006), no Brasil, forças dominadoras sempre estimularam politicamente a formação de híbridos entre diferentes culturas, como produção artificial de elementos sínteses. No entanto, em detrimento da legitimidade de determinada cultura, e do grupo étnico que a constrói, certos aspectos não são negociados. 46 Segundo BERNARDINO-COSTA (2018), universalismo abstrato caracteriza-se como projeto ideológico inerente do projeto moderno/colonial, estando sua síntese ligada ao Discurso do Método – penso logo existo – que traz como corolário a ideia de que outros não pensam e não existem. Para o autor a visão universalista suplementa e ideia de que “somente aqueles que produzem um conhecimento a partir de um monólogo interior (solipsismo) e que não são influenciados pelas experiências e sensibilidades locais e corporais (dualismo corpo/mente) estão aptos a produzir um conhecimento verdadeiro e válido em qualquer lugar, por conseguinte, apto a serem universalizados. Esta lógica do universalismo abstrato marca decisivamente não apenas a produção do conhecimento, senão outras expressões da vida: economia, política, estética, subjetividade, relação com a natureza etc. Em todas essas esferas, nesses mais de 500 anos de história moderna, os modelos advindos da Europa e de seu filho dileto – o modelo norte-americano pós-Segunda Guerra – são percebidos como o ápice do desenvolvimento humano, enquanto as outras formas de organização da vida são tratadas como pré-modernas, atrasadas e equivocadas [...]. O universalismo abstrato é um tipo de particularismo que se estabelece como hegemônico e se apresenta como desincorporado, sem pertencimento a qualquer localização geopolítica e desinteressado” (BERNARDINO-COSTA, 2018, p. 124-125). 56 A noção de monocultura do saber e do rigor, isto é, “a ideia de que o único saber rigoroso é o saber científico, portanto, outros conhecimentos não têm validade nem rigor do conhecimento científico” (SANTOS apud SODRÉ, 2012, p. 23) operante na Cultura Europeia, torna inegociável o agenciamento da pluralidade de referências, o que explica um dos motivos acerca da invisibilidade que é legada aos aspectos e contribuições não-europeias. Diversas hierarquias e dicotomias exemplificam bem essa relação impositiva que há na produção de conhecimento. Posso citar a hierarquia criada entre a validade e importância do que é dito e do que é escrito - avaliado e publicado - no meio acadêmico. Imposto o processo de colonização, calcado na ideia de monocultura, grande parte dos países do hemisfério sul foram forçados a compor o que conhecemos como Ocidente. Segundo Muniz Sodré (2017), o Ocidente é a metáfora geográfica utilizada pelas elites coloniais para consolidar uma pretensa dominação imperial (cultural e civilizatória) da Europa sobre o resto do mundo. Para o sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2002), as razões metonímia, proléptica, impotente e arrogante47, além de comporem o que o autor nomeia de Razão Indolente, são apostas do ocidente na transformação do mundo em um espaço capitalista. A razão indolente subjaz, nas suas várias formas, ao conhecimento hegemônico, tanto filosófico como científico, produzido no ocidente nos últimos duzentos anos. A consolidação do estado liberal na Europa e na América do Norte, as revoluções industriais e o desenvolvimento capitalista, o colonialismo e o imperialismo constituíram o contexto sócio-político em que a razão indolente se desenvolveu. [...] a razão indolente criou o quadro para os grandes debates filosóficos e epistemológicos dos dois últimos séculos” (SANTOS, 2002, p. 240) Sob os modos emergentes de subversão da razão indolente, Santos (2002) propõe uma crítica a certos modos como opera a razão no ocidente. O autor afirma que: 47 “Razão impotente, aquela que não exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela própria; a razão arrogante, que não sente vontade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade de demonstrar sua própria liberdade; a razão metonímia, que se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para as tornar matéria-prima; e a razão proléptica, que não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente.” (SANTOS, 2002, p. 239-240) 57 [...] a crítica mais eloquente vem daqueles para quem as razões metonímia e proléptica não são simplesmente um artefato intelectual ou um jogo, mas a ideologia subjacente a um brutal sistema de dominação, o sistema colonial (SANTOS, 2002, p. 242) É necessário relembrar fatos históricos acerca da colonização no Brasil, que, lidos através de um prisma ético na contemporaneidade, configura um dos motivos pelo qual a comunidade negra reivindica políticas públicas. Entretanto, mesmo a passos lentos, é visível um certo movimento no campo acadêmico nos últimos anos que vem reforçando a urgência de, cientes do passado, direcionarmos igualmente nosso olhar para o que se dá no presente, tal qual afirma Santos (2002) quando propõe uma sociologia das ausências. Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como tal, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe [...] o objeto da sociologia da ausência é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças. (SANTOS, 2002, p. 246) Dessa forma, pesquisar trajetórias negras nas Artes subverte o legado da não existência, da ausência e da invisibilidade produzida pelo racismo existente nesse meio . De forma crítica à razão indolente, investigar o fazer/saber artístico negro é uma ação pacifista frente à dor causada por tanta violência (simbólica e física) vivenciada diariamente, externada em arte. Segundo Gomes, A crítica à razão indolente pretende superar esse estado de coisas. A ideia de que um outro mundo é possível, da existência de uma constelação de conhecimentos e práticas é uma tentativa de criar uma nova razoabilidade, novos argumentos para a produção de um conhecimento prudente (GOMES, 2017, p. 57) Escrever a partir da prática artística, da experiência corporal, da vida, do conhecimento que se cria no saber/fazer Dança Negra no meio acadêmico se configura como ação política. Dizemos isso, pois tal movimentação põe em diálogo saberes, práticas e reinvindicações de uma parcela da classe artística que, além de fortalecer essa trincheira, colabora dentro dela para a expansão de conhecimento. Essa contribuição se dá tanto através de produções poéticas a partir de uma matriz cultural (no caso desta pesquisa, a ancestralidade) quanto da atualização de princípios civilizatórios negros no processo educacional. Trazer tais experiências corporais da vida concreta para a superfície, complementando as camadas da Historiografia da Arte, pressupõe ruptura com a razão indolente, implicando portanto, rupturas e pontes. Rupturas com cânones que 58 desconsideram a diversidade e a singularidade, nas perspectivas que discorrem “sobre a Dança”; e Pontes no sentido de aprender outras possibilidades de pensar/fazer “com o Dançar”, seja no ensino, na pesquisa ou criação, tal qual ocorre com a escrita, que, mesmo mediada pela palavra, tem no seu indizível imagens e música. A palavra em nagô implica a unicidade corporal de uma presença indissociável de seus tons e gestos. Em termos estritamente semânticos, nenhuma tradução consegue captar esse sentido, porque não se trata mais de pura língua e sim de uma “maternagem”48 das línguas, que é o logos originário – ou linguagem. (SODRÉ, 2017, P. 139) Esta pesquisa em Dança evidencia memórias invisibilizadas na relação com os discursos hegemônicos que constituem o campo das artes no Rio Grande do Sul, pois a dominação perpetrada no Brasil, vítima do expansionismo europeu no séc. XV, comprometeu drasticamente seus recursos naturais e humanos. Há um legado que deriva do processo de colonização o qual deve ser questionado à luz dos fatos históricos e das memórias que resistiram ao tempo. Legados como o racismo, o epistemicídio e o genocídio de povos originários africanos e seus descendentes, reconhecidos e lidos a partir do fenótipo e da performatividade49, tem embasado de certa maneira, mazelas que acometem a estrutura social na qual estamos inseridos. Em inúmeros momentos da história o racismo, em sua faceta mais ambígua, enunciado como chacota ou piada, tem sido endossado pelo Estado, visto os discursos racistas emitidos por diversas figuras públicas da classe política do Brasil. Partindo de uma perspectiva historiográfica do Rio Grande do Sul (BR), autores como Domingues (2009), Oliveira (2016) Santos Nunes (2016) e Triumpho (1991) pontuam a resistência e o protagonismo da população negra na construção de bens simbólicos [imateriais] e materiais que compõem as riquezas[capital] 48 A maternagem das línguas é entendida como traço característico das formas de enunciação negrobrasileira, maternagem essa que é vocal e, simultaneamente, performativa. 49 A noção de performatividade utilizada baseia-se nas reflexões produzidas pela profª. Drª. Jussara Setenta, para a pesquisadora “a partir da teoria de Austin, Butler vai expandir o conceito de performativo para o conceito de performatividade. De maneira mais ampliada, trata os atos e a organização da fala como ações não apenas fonéticas. O ato de falar passa a ser entendido como um ato corpóreo e, dessa maneira, constitui-se um cruzamento sintático da fala, que já é corpo, com a lingüística. De partida, o que chama a atenção na abordagem de Butler é o estado corporal da ação indicando outros modos de falar e expressar idéias. É a performatividade do performativo. E vale destacar, desde já, a importância do conteúdo político da fala que se constrói no e pelo corpo e comunica-se através desse fazer.” (SETENTA, 2008, p. 29). 59 culturais e monetárias do estado gaúcho. Tais autores lançam um olhar crítico sobre as políticas de branqueamento perpetradas pela força estatal. O livro “Rio Grande do Sul: aspectos de negritude”, organizado por Vera Triumpho (1991) e prefaciado por Abdias do Nascimento50, é um exemplo de produção por meio do qual diversos autores negros e não negros sensíveis à causa antirracista analisam alguns discursos historiográficos produzidos no Rio Grande do Sul acerca da presença da população negra. Esses autores sempre reforçam a contribuição da presença de africanas(os) e de seus descendentes na construção dessea Estado. Iguais a essa iniciativa de produção, outras tantas têm movimentado a cena de militância antirracista por parte de pesquisadores de diversas áreas. Entretanto, ainda é recorrente invizibilizarem a autoria negra. Essa invibilização é indício de que a história ocidental segue perpetuando, em pleno séc. XXI, uma trajetória de agressões não somente físicas, mas simbólicasà população negra, violências essas descritas pelos autores contemporâneos como Epstemicídio dos Saberes. Segundo Santos e Menezes (2010, p. 52), [...] um epstemicídio maciço tem vindo a decorrer nos últimos cinco séculos, e uma riqueza imensa de experiências cognitivas tem vindo a ser desperdiçada. Para recuperar algumas dessas experiências, a ecologia dos saberes recorre ao seu atributo pós-abissal mais característico, tradução intercultural. Embebidas em diferentes culturas ocidentais e não ocidentais, estas experiências não só usam linguagens diferentes, mas também distintas categorias, diferentes universos simbólicos e aspirações a uma vida melhor. Há um Epistemicício de Saberes recorrente na formação artística no Brasil. Refiro-me especificamente aos cursos de Graduação em Dança, que, mesmo se repensando (frente ao crescente número de alunas(os) negras(os) a acessar a universidade pública por via das Políticas de Cotas e à pressão pelas leis 10.939/03 e 11.635/08, que instituem o ensino da História e da Cultura Africana e Afrobrasileira nas escolas), resistem a propostas curriculares Pluriculturais que rompam minimamente com as Danças de ancestralidade e ascendência euroamericanos. Assim, os currículos continuam imutáveis, salvo poucas exceções. Em 2016, o primeiro concurso para docência na área de Estudos do Corpo, com ênfase em Danças populares, indígenas e afro-brasileiras, aconteceu na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Essa seleção foi envolvida por um Abdias do Nascimento (1914-2011), paulista, ativista do Movimento Negro, dramaturgo e ExSenador. 50 60 clima de acirramento na relação dos alunos com o currículo e marcada por uma “denúncia de racismo feita por uma aluna a uma professora que de forma reincidente depreciava temas e posturas afirmativamente negros(as) em suas aulas” (FERRAZ, 2017, p. 117). O resultado foi a contratação de pelo menos três novos professores. Tendo em vista que a região de Pelotas-RS é considerada um polo de referência em termos de concentração de Negras(os) na região Sul do país, no ano de 2018 a Faculdade de Dança da Universidade Federal de Pelotas abriu concurso para contratação de docente na área de Práticas Artístico-Pedagógicas em Danças Afro-Brasileiras, justamente em resposta a uma antiga demanda de inúmeros alunas(os) negras(os) e não negras(os) interessados em estudar e pesquisar a temática dentro da universidade. Num impulso de (in)consciência corporal, desde o período colonial brasileiro, as comunidade subalternizadas valem-se de suas corporeidades como dimensão potencializadora do existir, reconhecendo o gesto e a voz como materialidades performativas que estabelecem o continuum cultural possibilitado pela ação de memórias encarnadas. Certamente a memória corporal é modulada por implicações de ordem cultural, geográfica e afetiva. Essas implicações criam pontos, variantes que convergem para ou coagem o Corpo Colonizado. Assim, as relações raciais, de gênero, orientação sexual, classe econômica, entre outras pertinentes ao corpo e somadas à performatividade, assumidamente consciente ou inconsciente nas políticas de identidade, são tidas como disparadoras das tensões sociais, quando na verdade são outras as forças (capitalismo, farmacopornografia, generificação, entre outras) que convergem para que o corpo e a performance sejam o centro da tensão social. Sendo o corpo uma agência de saber/fazer exposto à colonialidade, pressuponho que sejam o gesto e suas narrativas uma possibilidade de ponte ou ruptura com o status quo. A noção de encruzilhada, tal qual nos ensina as religiões de matriz africana no Brasil, é descrita com maestria por Leda Maria Martins 51 como locus tangencial, instância simbólica e metonímica através da qual se processam diversas elaborações discursivas motivadas por discursos outros coabitantes. O rito Leda Maria Martins é renomada pesquisadora da cultura afro-brasileira. Ela é também dramaturga, poeta, ensaísta, atualmente mora em Belo Horizonte, onde leciona na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 51 61 e, consequentemente, a performance são espaços de “centramento, descentramento, interseções, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergências, unidade e pluralidade, origem e disseminação” (MARTINS, 1997, p. 28). Acredito ser, pois, nesse território que se operaram questões de linguagens e de discurso, intertextuais e interculturais. Encruzilhada, substantivo feminino utilizado neste trabalho como metáfora para ilustrar a relação entre Performance, Política, Rito e Educação. Reconheço a especificidade e importância do termo para as religiões de matriz africana. Nesse contexto, a encruzilhada é reconhecida como morada de Exú. Inspiro-me nessa espacialidade para refletir sobre possibilidades de pontes e rupturas em termos de questões que perpassam sobreposição, colisão, trombadas e confluências compositoras dos jogos de poder, entendendo tais fenômenos como articulados/relacionados entre si, tal como no conceito de “intersecionalidade” proposta por Kimberle Crenshaw52 (CRENSHAW, 2004). Essas transversalidades podem se dar entre diversos campos submetidos à colonialidade, agenciados no consenso ou na imposição. A reflexão parte do pressuposto de que, para continuar existindo, a cultura negra e indígena passou por diversos processos de adaptação, negação de si e/ou de resistência num ritmo próprio capaz de entoar a complexidade a que estava entrelaçada. Por exemplo: A neurose coletiva da/o negra/o revela o terror profundo de ser apanhado pela força repressiva, elemento que sem descanso os prende e/ou elimina fisicamente, nos quase quinhentos anos de Brasil. Na verdade, vítima permanente de etnocídio, o sistema repressivo é forte coadjuvante de seu desempenho estatístico desfavorável de esperança de vida (BARBOSA, 2006, p. 59) Apontando o corpo e o gesto como lugares onde a encruzilhada estabelece relações, fazendo-se espaço transcendente, onde o sujeito encontra-se, identificase, expande-se e conecta-se com o cosmos. Cito a pesquisa desenvolvida por Souza (2005). Ela parte da noção de habitus 53africano nas práticas corporais de Kimberlé Williams Crenshaw é americana e nasceu em 1959. Advogada, defensora dos direitos civis e uma das principais estudiosas da teoria crítica da raça. É professora na Faculdade de Direito da UCLA e na Columbia Law School. É também especialista em questões de raça e gênero. 53 Baseado nos estudos sociológicos de Pierre Félix Bourdieu (1930-2002), o sociólogo Júlio Tavares explica que habitus é “compreendido como a mediação que relaciona a tentativa de se ultrapassar a visão dualista que entende a sociedade como antinômica ao indivíduo. Bourdieu, com o habitus, consegue pensar a prática da sociedade através da incorporação de uma dada estrutura social pelos agentes que, por meio de disposições duráveis, reproduzem os modos de sentir, pensar e agir” (TAVARES, 2012, p. 29). 52 62 expressão negra denominadas Batuques, que aconteciam em espaços públicos no Rio de Janeiro no séc. XIX, analisando suas transformações a partir da série de leis e proibições que criminalizavam tais práticas nesses espaços. O autor parte desses dados para analisar o controle das emoções 54 na Dança Afro praticada por diversos artistas no Rio de Janeiro nos últimos 60 anos. Ele traça uma reflexão crítica acerca dos enunciados corporais e midiáticos que deslocam a Dança dos Orixás dos espaços sagrados para os espaços de legitimação da arte 55 e, concomitantemente, negam a emoção56 durante as práticas corporais. Subtraindo o “caráter primário de sensibilidade” que, segundo o autor, era expresso pelo “movimento brusco da musculatura” (SOUZA, 2005, p. 28), o transe indicava a reconexão do indivíduo com as suas ancestralidades. Essa seria uma das grandes motivações que levavam indivíduos a praticar os batuques, pois tais práticas correspondiam à “experiência do próprio povo de origem africana, atributo dos sentidos da sua vida, onde buscavam a emoção de estar ligados com o seu ancestral divinizado” (SOUZA, 2005, p. 28). O autor Edilson Fernandes Souza conclui que o controle das emoções presente nos Batuques do séc. XIX faz reverberar normas de conduta na produção em Dança Afro do Rio de Janeiro no séc. XX, criando rupturas com a “norma do axé”. Ou seja, passa a haver o rompimento com a estrutura sacerdotal. Concomitantemente, é (re)dimensionaada a emoção no sentido do autocontrole (SOUZA, 2005, p. 149), o que gera uma dinâmica representada pelo autor através da metáfora entre o fogo e o vento. O autor evidencia que, mesmo o Brasil sofrendo Na pesquisa de Souza (2005), a expressão “controle das emoções” é usada para referir-se à ruptura com as emoções emergidas da crença na ancestralidade, pontuando a quebra com a norma do axé ao dimensionar a emoção no sentido do autocontrole, tendo cmo fim a representação do gesto, o espetáculo (SOUZA, 2005). 55 Compreendo como espaços legitimadores da arte toda plataforma mediadora de visibilidade do produto artístico, seja esse produto material ou imaterial como um fazer/saber corporal ou um método de ensino da arte. Alguns exemplos de espaços que chancelam e legitimam algo como arte são: teatros, instituições de ensino da Dança, jornais, museus. 56 O autor elucida que “os ajuntamentos de negros – trazia, do ponto de vista fisiológico, um outro impulso convertido em alegria, acompanhando, certamente, por gritos, risos e danças. De maneira que o sentimento, a emoção, experimentada pelos indivíduos que participavam dos batuques, a partir da junção de traços gestuais e as palavras, como a dança e os cânticos, fortalecia a crença na força vital traduzida na experiência dos ancestrais divinizados. O transe que resultada desse sentimento era associado aos movimentos da dança dos próprios deuses, já incorporados em seus descendentes – a possessão –, uma vez que fazia parte da estrutura da personalidade dos indivíduos que integravam as sociedades que compunham a civilização subsaariana” (SOUZA, 2005, p. 26/27). 54 63 conflitos socioculturais, os batuques e, posteriormente a Dança Afro, serviram como estratégias de sobrevivência do habitus africano. Seja através das ações dinâmicas do caçador, presente no gestual da Dança de Òsóòsi57; dos ventos mobilizados na dinâmica circular do Ìrùkèrè58 de Oyá; ou no abraço, no jiká, este modo de pensar/fazer a Dança tem fomentando representações mito-poéticas positivas acerca das corporeidades africanas, articuladas aqui pelo prefixo “Afro”, construtoras de imaginários em que corpos negras/os protagonizam a enunciação. Historicamente a colonização europeia se caracteriza por ter sido uma ação dominadora chancelada pela criação de classificações sob um prisma antiético, racista, lançado pelas Ciências Naturais nos sécs. XVI-XVII, período em que a diversidade humana passou a ser subdividida a partir do fenótipo, isto é, em que a noção de raças, como vulgarmente conhecemos, passa a existir (MUNANGA, 2003). A criação de subdivisões em termos de raça constrói também imaginários a partir de mitos e estereótipos. Como exemplo, cito aqui o diálogo entre Dona Diva Guimarães e o ator Lázaro Ramos durante o Festival Literário de Parati 59 (FLIP) em 2017. Dona Diva nos conta um mito apresentado a ela na infância, que intenta justificar a escravização de corpos negros a partir da criação do corpo. Hoje, a história nos possibilita ver o quanto os povos originários (indígenas) e as populações negras foram classificadas e tratadas como categorias sociais “subhumanas”, apontadas inúmeras vezes por renomados intelectuais como o “problema da nação”. No Brasil, uma das obras clássicas que tenta explicitar a subalternidade das populações negras é “Os Africanos no Brasil”, do etnógrafo Nina Rodrigues60, autor que, ao referir-se às esculturas produzidas por artistas negras e/ou negros, afirma: Orixá da caça, da fartura, das florestas e das relações entre o reino animal e vegetal. Confeccionado com cauda de boi, búfalo ou de cavalo, é um instrumento utilizado pelos orixás Òsóòsi(Oxóssi) e Oyá. 59 Diva Guimarães, mulher negra, professora de Educação Física aposentada, ficou nacionalmente conhecida após contar um pouco da sua história de vida durante o diálogo com o ator Lázaro Ramos no Festival Literário de Paraty(FLIP), como mencionado. GUIMARÃES, Diva. Flip 2017 – Território Flip/Flipinha: Diva Guimarães. Youtube, vídeo publicado por Flip – Festa literária Internacional de Paraty em 28 de julho de 2017. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Z5aS8bukb2o. Acessado em 25 de jul. de 2018. 60 Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906) foi um influente médico legista, psiquiatra, professor, escritor, antropólogo e etnólogo brasileiro. No final do séc. XIX, diversas ideias advindas das teorias que sustentavam o Evolucionismo Biológico e Social, formuladas especificamente pelos teóricos 57 58 64 Os frutos da Arte negra não poderiam pretender mais do que documentar, em peças de real valor etnográfico, uma fase do desenvolvimento da cultura artística. E, medidas por este padrão, revelam uma fase relativamente avançada da evolução do espírito humano. É já a escultura em toda a sua evolução, mesmo na sua feição decorativa, do baixo-relevo à estatuária. As vestes são ainda grosseiras porque as ideias não têm a precisa nitidez, os sentimentos e a concepção estão ainda pouco definidos; mas no fundo já se encontra a gema que reclama polimento e lapidação. (RODRIGUES, 2010, p. 180) Ficam explícitas as ideologias higienista e eugenista presentes no pensamento do autor. Cabe pontuar que o excerto é exemplo dos discursos racistas sobre estética e expressões artísticas e/ou ritualísticas negras os quais, historicamente, continuam sendo disseminados. A ideia de um “país doente” reforçava a emergência de estratégias de branqueamento, fazendo com que diversos Estados da Federação subsidiassem, através de aportes monetários e da doação de terras, a imigração de comunidades e famílias italianas, alemãs, polonesas e portuguesas (DOMINGUES, 2009; TRIUMPHO, 1991). Por volta da década de 1870, médicos pesquisadores ganharam enorme prestigio social, chegando a reivindicar responsabilidade pela organização social. Seus discursos se constituíam como diretrizes para a sociedade brasileira. Nessa época, O campo social é invadido pela medicina, que, enquanto um saber regenerativo, colocava-se como uma tecnologia de poder com intuito de normalizar e de controlar os indivíduos e as populações. A medicina assume uma postura de intervenção social intensa e autoritária. A raça situava-se no foco da discussão acerca da saúde da nação e da evolução social, aparecendo como central a questão da mestiçagem. A partir das análises deterministas, a intensa mestiçagem no país aparece como um fator de degenerescência racial, ocasionando anomalias físicas, morais e intelectuais. As doenças mentais, a epilepsia, o alcoolismo, a criminalidade, a sifilização, as grandes moléstias, etc. passaram a ser vistas como consequências funestas da mistura das raças (ALBUQUERQUE, 2011, p. 8) Considerando a história do Brasil, é tácita a informação de que marcadores identitários de pertença étnico-racial, tal qual performatividade e/ou fenótipo, são reconhecidos e lidos socialmente a partir de uma ótica higienista, eurocentrada e racista, que recorrentemente são usadas para sustentar lógicas hierárquicas. Spencer e Darwin sobre as culturas e raças, influenciaram na estruturação do paradigma do evolucionismo social, o qual encontrou respaldo no Brasil justamente através de Rodrigues. 65 No contexto atual, as ações afirmativas61 pautadas historicamente pelo movimento social negro brasileiro, reivindicando políticas de reparação social através de cotas raciais para o ingresso no ensino superior, têm possibilitado o ingresso de negras e negros à universidade. Entretanto, o paradigma da representatividade - em termos das políticas dos saberes expressas pelo currículo, da ausência de professores e referenciais teóricos e práticos negros - gera conflito para a efetivação de uma política coerente. Tal conflito é reafirmado na possibilidade do ingresso engendrada, na negação à permanência das(os) negras(os), tanto da comunidade economicamente desprovida quanto da que aquilombada se imuniza do racismo a se expressar no contexto intelectual. Essas ações afirmativas trouxeram para o ambiente universitário brasileiro uma diversidade de cores e demandas temáticas já recorrentes e disseminadas pelas micro-comunidades intelectuais negras. Essas comunidades, então inseridas no ambiente acadêmico, utilizam-se da estrutura institucional para pautar políticas antirracistas (GOMES, 2017), fomentando a criação de espaços e estratégias subversivas relativas à produção de conhecimento. Nessa perspectiva, esta dissertação busca fomentar pontes justas através das quais os saberes negros sejam respeitados e expressos em sua complexidade, longe dos modos estereotipados de pensar/fazer a Dança Negra. Trata-se de uma proposta para que o Estado da federação com o maior número de cursos de Graduação em Dança do país62 repense a Colonialidade e incorpore a Pluriculturalidade em seus currículos. Ação Afirmativa se refere a um conjunto de políticas públicas de uma determinada sociedade para a proteção de minorias e grupos discriminados no passado. A ação afirmativa visa remover barreiras, formais e informais, que impedem o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, à universidades e a posições de liderança. 62 No Estado do Rio Grande do Sul, há 5 cursos de Licenciatura em Dança, sendo eles: UERGS, UFRGS, UFSM, UFPel e Ulbra. Dentre eles, um Bacharelado na UFSM e um Tecnólogo na UCS. 61 66 III - AR “Negro falava ubundo e mussungo seu mundo apropriou Mas do corpo do negro mussumbo nenhum vai ser senhor Ê Dançar Ê Dançar que essa ngona animou!” Sergio Santos63 “O alicerce é a relação humana, o respeito ao outro, o respeito às diferenças e a si próprio, transformando indivíduos no processo de seu auto-conhecimento” Inaycira Falcão dos Santos “A escrita começa no movimento, assim como a música começa no silêncio e a dança, na pausa” Ciane Fernandes SANTOS, Sergio. Corpo. Youtube, publicado por Sergio Santos em 18 de março de 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I6CJljUTxSA Acessado em 24 de julho 2018 63 67 - Figura 5. Mestra Iara rodeada por bailarinas(os) e pelas crianças, fazendo os agradecimentos no final do espetáculo "O feminino sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Douglas Freitas(GASMD, 2016) 68 FALARFAZENDO DANÇA AFRO Esse estudo de inspiração em estratégias metodológicas advindas da etnográfica e auto-etnográfico, na corrente de algumas Pesquisas em Arte (FORTIN, 2009; SILVA, 2010), acontece num movimento pendular entre a memória de Mestra Iara e do autor, utilizando ferramentas do método etnográfico tais como: - observação-Participante em aulas regulares de Dança Afro, uma vez por semana, ministradas por Mestra Iara durantes os meses de abril a agosto de 2018, totalizando 18 encontros; - Observação das dinâmicas coletivas do Grupo Afro-Sul de Música e Dança em alguns encontros semanais – nesse período o grupo dedicava-se a montagem do espetáculo “Reminiscência: Memórias do nosso Carnaval” que estreou em novembro de 2018; - Diário de Bordo, onde algumas descrições e reflexões sobre o processo de observação e participação foram registrados; - FalarFazendo Dança Afro (encontro privado) fundiam no mesmo espaçotempo oralidade, performance e aula, aconteceram nas dependências do ISASO. Aconteceram no ano de 2018 nos dias 23 de abril, 16 de agosto, 15 de setembro e 21 de dezembro com Mestra Iara, além desses, tive a oportunidade de encontrar no dia 15 de setembro junto com Mestra Iara a bailarina Edjana Deodoro. - FalarFazendo Dança Afro com Mestra Iara (evento público, aberto e gratuito) aconteceu nos dias 12 de junho e 7 de novembro (qualificação) de 2018 como meio de compartilhar a partir da oralidade memórias da trajetória artística bem como de suas práticas artísticas e pedagógicas em dança. 69 Figura 6. Mestra Iara - cartaz da 1º palestra-aula-performance pública “FalarFazendo Dança Afro” Segundo Domingues (2009), [...] para driblar, portanto, o “silêncio das fontes” acerca da experiência histórica dos negros no pós-abolição, não existem fórmulas mágicas. Faz-se necessário desenvolver procedimentos novos (e rever os antigos) de tratamento dos corpus documentais, ousar, ser criativo, fazer uso do paradigma indiciário, cultivando um faro detetivesco e não desperdiçando nenhuma pista; manejar as estratégias e ferramentas de pesquisa com sensibilidade e uma dose de intuição, além, obviamente, de muita perseverança e paciência . São muitas as fontes que podem ser exploradas: desde as tradicionais , como as de caráter governamental, cartorial, judicial; atas, cronistas, jornais, revistas até as sintonizadas às novas linguagens: literatura (romances, contos, poesias), iconografia (fotografias, gravuras, caricaturas, charges), registros artísticos (desenhos, pinturas, esculturas, monumentos), testemunhos orais e audiovisuais (cinema, documentário, televisão e registros sonoros em geral). Já para o trabalho com a memória , é possível sugerir igualmente fontes diversas, como diários, autobiografias, poesias, contos, romances, textos memorialísticos, teatro, danças, músicas, práticas religiosas e monumentos (DOMINGUES, 2009, p. 238). Frente a invisibilidade produzida acerca dessas referências negra, FalarFazendo Dança Afro foi gerado de forma inventiva como estratégia metodológica a serviço de potencializar os enunciados verbais e gestuais, entendidos como fonte primária de informações pra essa pesquisa. A utilização dessa metodologia possibilitou a criação de espaços de escuta de uma Mestra que tem muito a ensinar. Está impresso no cerne dessa metodologia a ação de OUVIR. 70 A noção de Lugar de Fala difundida pela filósofa negra brasileira, Djamila Ribeiro, propõe de maneira subliminar afinar a escuta para ouvir. Ouvir-se, conscientizar-se das injustiças sociais que tornam poucos privilegiados e outras(os) tantos desfavorecidos dos direitos básicos instituídos via constituição de direitos humanos. No contexto dessa dissertação o termo Lugar de Fala se relaciona com a descoberta da potência de sua voz, do seu locus social, uma (auto)escuta propositora de Consciência em relação ao seu Corpo e ao Espaço Social que ele está inserido, além de manter acesa a chama da crítica: Porque só uns podem falar? Porque só alguns tem suas histórias contadas e outras(os) são invizibilizadas(os)? (RIBEIRO, 2017). Segundo a artista, intelectual e professora portuguesa Grada Kilomba, “para descolonizar o conhecimento, temos que entender que todos/as nós falamos de tempos e de lugares específicos, a partir de realidades e histórias específicas” (KILOMBA, 2018, p. 7) por este motivo propus um formato diferente à abordagem metodológica: FalarFazendo Dança Afro. Foram organizados eventos públicos, abertos e gratuitos e encontros privados, em todos eles a intenção de ouvir sobre essas camadas da história da Arte não contada nos livros e aprender tais Gestos de Resistência presentes nas práticas artístico-pedagógicas de Mestra Iara. Portanto a performance FalarFazendo Dança Afro se configura como espaço de escuta, onde o diálogo com a Mestra traz pra dentro da pesquisa curiosidades de participantes do evento público. Durante as performances públicas, participantes apresentaram dúvidas sobre a espiritualidade, práticas pedagógicas dentre outras questões que foram gentilmente sanadas por Mestra Iara durante a performance. Para justificar como cheguei a esta estratégia, trago nos subcapítulos a seguir um algumas memórias autobiográficas do meu percurso de formação acadêmica em Dança na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a fim de apresentar o modo como esta estratégia metodológica que propõe pensar-fazer Pesquisa em Dança entrou em minha vida. 71 INSPIRAÇÕES DO FAZER Quando entrei na licenciatura em Dança na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 2013, no primeiro semestre tive contato com a Profª. Drª. Helô Gravina64 (UFSM) que, ministrando a disciplina Consciência CorporaI, introduziu a noção de “abordagem somática do movimento”65 em meu caminho. Durante a disciplina, a Profª. Helô me estimulou a buscar referências dancísticas em minha ancestralidade, na Cultura Corporal que resvalava memórias e gestos no que produzíamos em sala de aula. Fisicamente longe dos espaços que fomentavam meu sentimento de pertença étnico-racial, busquei estar em movimento de maneira estética e política nos espaços onde meus pares da arte e da militância reforçavam conscientemente a importância da Educação e Arte nos processos de fortalecimento de identidades negras, superação do racismo e emancipação social de corpos negros. Em 2014 ingressei no projeto de pesquisa “Abordagens Somáticas do Movimento na Criação em Dança” coordenado pela Profª. Drª. Helô Gravina. O grupo se propunha a criar conhecimentos a partir do “entre-lugar” onde saberes artísticos e culturais dos pesquisadores estivessem em diálogo com a consciência do movimento mobilizado a partir do trabalho corporal com técnicas da Educação Atriz, bailarina e doutora em antropologia pela UFRGS, atualmente é professora adjunta no Centro de Artes e Letras da Universidade Federal de Santa Maria (CAL-UFSM). 65 Termo utilizado recorrentemente por artistas e professores gaúchos da Dança e Performance que dialogam com o campo da Educação Somática e suas técnicas. A meu ver esta noção fomenta na prática uma expansão dos saberes relacionados a Edu. Somática através de cruzamentos entre práticas somáticas e diferentes técnicas de dança, propondo uma ruptura das hierarquias impostas aos saberes/fazeres do corpo, possibilitando descobertas no/com/sobre/do corpo em primeira pessoa. Considerando as diversas implicações na construção do corpo que Dança. Entre os artistas que utilizam o termo posso citar: Helô Gravina, Tatiana da Rosa, Michel Capeletti. Ver.: GRAVINA, 2015 64 72 Somática, tais como técnicas de Alexander66, Sistema Laban/Barthenieff67 e/ou Klauss Vianna68. Os interesses de investigação das(os) bailarinas(os) pesquisadores deveriam criar pontos de diálogo e intersecção entre suas práticas corporais e coreográficas com saberes relacionados à Educação Somática. Minha escolha inspirou-se no conceito de estética Nagô69 chamado “Odara”70, ao passo que propunha o termo “Corpo Odara”. O termo foi criado visando construir possibilidades, problematizar e discutir saberes afro-referenciados em processos educacionais na educação formal e informal, no treinamento do ator e do bailarino, bem como na criação em dança, teatro e na arte da performance, através de uma tessitura de reflexões com/através dos fazeres e saberes provenientes das africanidades enraizadas no solo brasileiro e das políticas educacionais pautadas no entendimento da heterogeneidade étnica constitutiva do Brasil (NETO, 2015, p. 5). Iniciei a pesquisa oficialmente no processo de criação do espetáculo “Sortilégio – O mistério Negro” (BORGES, 2014), onde as práticas corporais foram de extrema importância ao meu processo formativo, criativo e de pesquisa 71. Atuei como preparador de elenco, coreografo e ator. Seguindo indicações presentes na A Técnica de Alexander é uma técnica de reeducação corporal e coordenação realizada a partir de princípios físicos e psicológicos. Foi criada pelo ator australiano Frederick Matthias Alexander (1869 – 1955). A técnica se baseia na autopercepção do movimento e é aplicável a diversos casos como alívio de dores na coluna, reabilitação após acidentes, melhora na respiração, posicionamento correto ao tocar instrumentos musicais ou cantar, além de outros hábitos relacionados. 67 Inspirados nos ensinamentos de Rudolf Laban (1879-1958) e aprimorado por Irmgard Bartenieff (1900-1981) e seus discípulos, o Sistema Laban/Bartenieff baseia-se em princípios básicos e primordiais do movimento, que abordam desde a respiração e postura até a expressividade e relação entre espaço interno e externo. 68 A Técnica Klauss Vianna é fruto de uma pesquisa totalmente desenvolvida no Brasil, classificada como uma técnica de educação somática. Para este estudo foi fundamentado além de Klauss Vianna (1928-1992) o seu filho Rainer Vianna (1958-1995) e sua companheira Angel Vianna, fundamentais na criação do que hoje chamamos de técnica Klauss Vianna, podendo assim também nos referir a esse estudo como Técnica dos Viannas, não só direcionada ao universo da Dança, mas sim aos diversos campos artísticos. 69 “O nome Ánágóun ou Nàgô, originalmente se referia unicamente a um ramo dos descendentes Yorùbá de Ifé e que foi aplicado em seguida de maneira extensiva pelos Fon e pela administração francesa a todos os povos Yorùbá, qualquer que seja sua origem geográfica. (SANTOS, 1986, p. 31) 70 Segundo o autor Marco Aurélio Luz, Odara refere-se a "dimensão estética do saber, recorrendo a diversos códigos complementares que apoiam e expressam a narrativa. Dança, canto, música, dramatização, vestuário, coreografia, cenário, etc., se unem na harmonia da linguagem negra, e é o que Michael Jackson realiza na TV" (LUZ, 2008, p. 133) 71 A peça esteve registrada no gabinete de projetos do Centro de Artes e Letras (CAL-UFSM) sob o título de “Princípios da Dança dos Orixás na construção de uma retórica corporal”. 66 73 didascália do texto Sortilégio – O mistério Negro escrito por Abdias do Nascimento72 (1914-2011). Segundo as indicações do autor, a dramaturgia deveria levar em consideração os arquétipos dos Orixás Esú73, Ògún74, Yemonjá75 e Oyá76 na construção dos personagens. Esta informação inseriu o gestual desses Orixás no processo como mote para a composição da corporeidade dos personagens. Enquanto preparador de elenco criei alguns jogos cênicos baseados em mitos yorubas recorrentes no ‘Pé de Dança’ desses Orixás. Os jogos exploravam o gestual e o arquétipo dos Orixás para o processo criativo guiado pelo diretor Rozan Borges. Além dos gestuais e dos arquétipos, trouxemos para o corpo visualidades inspiradas na obra da artista negra americana Kara Walker77. Figura 7. Entre o Mar e o Vento – Cena do espetáculo teatral “Sortilégio - O mistério negro” Da esquerda para a direita - Camila Matzenauer, Manoel Luthiery, Ediana Larruscain - Fotografia de Rafael Goulart (2014). 72 Escritor e jornalista paulista, ativista do Movimento Negro, Artista visual e dramaturgo, ex-senador da república federativa do Brasil e fundador do TEN – Teatro Experimental do Negro – em 1944. 73 Segundo a mitologia Yorubana Esù é o Orixá responsável pela encruzilhada, ao possibilitar escolhas Esù torna-se a própria tensão dicotômica. Segundo Sodré (1998) Esù além de guardião da porteira e do templo é o dono do corpo. 74 Segundo a mitologia Yorubá Ógún é o signo da guerra e da tecnologia. Ògún é o Deus do ferro. 75 Yemonjà deriva da junção das palaras em yorubá Yeye Omó Ejá – Mãe cujos filhos são peixes. É uma das Yabás – mãe rainha – termo utilizado para referir-se às Orixás femininas. No Brasil Yemonjà é uma das divindades do panteão yorubá mais conhecidas. Conectada ao mito da maternidade como espaço de cuidado e acolhimento. 76 Oyá divindade dos ventos, das tempestades e do rio Níger. 77 Kara Elizabeth Walker é uma pintora americana contemporânea, silhouettist, print-maker, artista de instalação e cineasta que explora raça, gênero, sexualidade, violência e identidade em seu trabalho. 74 Após a estreia do espetáculo teatral retornei sozinho para laboratório de criação coreográfica. Escolhi a Capoeira como treinamento corporal (LIMA, 2002) seguida de exercícios de improvisação, como técnica elencada para criação coreográfica. Gestos Específicos das Danças Negras – especialmente de Danças de Estética Negra – e Gestos Emocionais – referentes a memórias afetivas familiares – (SANTOS, 2006) foram ganhando espaço no processo, dado a recorrência com que apareciam nos exercícios de improvisação. Dando início ao processo de composição coreográfica que em seguida foi atravessado por uma adaptação do poema “Árvore” de Manoel de Barros. Eis que nasce a coreografia Caxinguelê! Figura 8. Manoel Luthiery - Apresentação da coreografia Caxinguelê na I Virada Cultural da UFSM. Fotografia de Barbara Marques (2015) Primo legítimo da Sankofa, pássaro africano responsável pelo trânsito dos saberes entre passado e presente, Caxinguelê é brasileiro, nasceu e se criou em terras tupiniquins. Traz consigo um pouco da memória ancestral que seu primo, Sankofa, lhe ensinou. Adaptou, inventou e reinventou no seu corpo o lugar de origem dos seus ancestrais, agenciando informações do corpo-passado com outras do corpo-presente. Porque é no corpo onde todas essas informações se processam, habitando carne, folhas, ossos, bico, raízes e dentes. E assim segue caminhando... entre o terreiro e a cidade, reconectando-se com a natureza viva, animada, inanimada e divinizada (Sinopse da coreografia) 75 Posteriormente a coreografia ganhou corpo de espetáculo com a direção de Cristian Lampert78. Concomitante a este processo formativo-criativo comecei a participar de alguns eventos acadêmicos, onde o formato não comportava a presença de performances artísticas. Como estratégia crítico-performativa a Profª. Helô Gravina, coordenadora e orientadora do grupo – Abordagem Somática do Movimento na criação em Dança – onde eu desenvolvia a Pesquisa de Iniciação Científica intitulada “Corpo Odara: Motrizes afro-referenciadas no treinamento do ator e do bailarino” propôs que eu estudasse formas para performar a comunicação oral do trabalho de pesquisa. A professora me estimulava a criar ações performativas que me auxiliassem a organizar o pensamento tanto na ação da escrita quanto na performance de comunicação oral. Como referência, a referida professora me enviou o vídeo de sua palestra-dançada no “II Colóquio Antropologias em Performance”, onde a professora insere o corpo de forma performativa na ação de apresentar sua pesquisa sobre corpo na capoeira angola, junto ao vídeo o artigo “Falar-fazer antropologia: uma experimentação etnográfica do corpo na capoeira Angola” (GRAVINA, 2011)79. Falar-Fazer tornou-se uma estratégia que utilizei para performar cenicamente minhas comunicações orais, trazendo para os espaços onde a ação de pensar geralmente se dá na imobilidade um certo movimento, borrando assim a fronteira da dicotomia ainda recorrente em alguns espaços acadêmicos. Segundo Gravina (2011, p. 116) Falar-Fazer “consiste resumidamente, em transitar entre fala e movimento como dimensões igualmente constitutivas da comunicação e da reflexão”. Esses processos foram potencializadores da minha formação enquanto artista e pesquisador. O conhecimento atualizado em movimento, acentuado por Gestos individuais, noutros momentos coletivos, possíveis através de dinâmicas e/ou jogos didáticos criados para o ensino da Dança Afro, apontavam linhas de fuga rompiam 78 Graduado em Artes Cênicas (Direção e Atuação) pela UFSM, atualmente é mestrando em Teatro pelo PPGT-UDESC. 79 Neste artigo Heloisa Gravina faz uma restauração performática de sua apresentação no II Colóquio Antropologias em Performance, organizado pelo Grupo de Estudos em Oralidade e Performance (Gesto/UFSC), onde as perguntas norteadoras de seu falar-fazer foram: Quais formas podemos adotar para falar de performance, uma vez que assume-se que, a partir desse paradigma, forma e conteúdo se constituem mutuamente? Quais formas adotamos para escrever sobre a (e a partir da) performance? 76 dicotomia entre Prática e Teoria. Sendo assim, acredito que nesse estudo, os encontros com Mestra Iara dão continuidade as estratégias de pesquisa desenvolvidas desde a graduação. Onde o falar-fazendo está imbricando no pesquisar-dançando. Figura 9. Da esquerda para direita – Mestra Iara, Profa. Dra. Suzi Weber e Manoel Luthiery FalarFazendo Dança Afro com Mestra Iara em Porto Alegre-RS. Entrevista-Aula-Performance no Salão de Festas da reitoria da UFRGS (12 de junho 2018) Figura 10. FalarFazendo Dança Afro – Com Mestra Iara em Porto Alegre-RS. Entrevista-AulaPerformance no Salão de Festas da reitoria da UFRGS (12 de junho de 2018) 77 Figura 11. Manoel Luthiery - FalarFazendo Dança Afro em Caxias do Sul-RS. Apresentação do oral do trabalho “Corpo Odara: Educação afro-referenciada na formação do ator e do bailarino” no VII Salão de Dança do RS (2015) Figura 12. Manoel Luthiery - FalarFazendo Dança Afro em Santa Maria-RS. Lançamento da exposição fotográfica “Negras e Negros na cultura na ciência e nos movimentos sociais” no Centro de Convenções da UFSM. Fotografia por Dartanhan Baldez (2018) 78 ENTRE O FALAR E O FAZER “A escrita começa no movimento, assim como a música começa no silêncio e a dança, na pausa” Ciane Fernandes (2008) O olhar dicotômico voltado para teoria/prática, história/memória e escrita/oralidade têm contribuído para a perpetuação de binarismos próprios da ciência positivista e moderna que deslegitimam categoricamente a pluralidade de modos de conservação da memória. No âmbito da memória dos rituais afrobrasileiros, a pesquisadora Leda Maria Martins (2003) afirma que: Como sopro, hálito, dicção e acontecimento performático, a palavra proferida e cantada grafa-se na performance do corpo, portal de sabedoria. Como índice de conhecimento, a palavra não se petrifica em um depósito ou arquivo estático, mas é, essencialmente, kineses, movimento dinâmico, e carece de uma escuta atenciosa, pois remete a uma poesis da memória performática dos cânticos sagrados e das falas cantadas no contexto dos rituais. O estudo dessa textualidade realça a inscrição da memória africana no Brasil em vários domínios: nos feixes de formas poéticas, rítmicas e de procedimentos estéticos e cognitivos fundados em outras modulações da experiência criativa; nas técnicas e gêneros de composição textual; nos métodos e procedimentos de resguardo e de transmissão do conhecimento; nos atributos e propriedades instrumentais das performances, nas quais o corpo que dança, vocaliza, performa, grafa, escreve (MARTINS, 2003, p. 67). A noção de oposição entre escrita e performance, balizada principalmente por hierarquizações perpetradas pelo modus operandi característico da cultura europeia, faz com que camadas da História Geral, consequentemente camadas históricas relativas à memória do protagonismo negro na Dança Afro, sejam ignoradas. A desconsideração da escrita do corpo negro nos espaços sociais, relegando-o à invisibilidade, rejeita as diversas hipóteses as quais entendem esse corpo como documento produzido também pela gestualidade, fruto das múltiplas técnicas corporais que expressam a ancestralidade africana. Sendo assim, partindo do desconforto causado por correntes intelectuais da Dança ao ignorar as contribuições das autoras negras, negando a diversidade dos modos de escrita nesse campo, reproduzo a pergunta: quais formas adotamos para escrever sobre a e a partir da performance? (GRAVINA, 2011). Este estudo, a partir do entendimento sobre os Gestos de Resistência, pretende contribuir para o reconhecimento da autoria negra na Dança Afro. Com isso, almejo mobilizar, esteticamente, identidades plurais no que diz respeito ao modo de se movimentar, fundamentando-me nos gestuais que (re)performam de 79 maneira mito-poética outras relações com a natureza. Dar-se-á, assim, a proposição, no espaço social, de ações performativas que estão intimamente ligadas à discursividade política negra e afirmativa. Existência e resistência articulam-se conjugando possibilidades narrativas outras. Recorro ao Gesto como materialidade visual criadora de nuvens de sentido (GIL, 2004) que escrevem no mundo discursos sobre a experiência vivida. Isso lembra a célebre frase da poeta e historiadora negra Beatriz Nascimento (19421995) que reafirma a memória como conteúdo formativo do corpo, anunciando a Dança como espaço de libertação e o Gesto como materialidade descolonizadora. As memórias são conteúdos de um continente da sua vida, da sua história, do seu passado, como se o corpo fosse o documento. Não é à toa que a dança, para o negro, é um momento de libertação. O homem negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer, pelo gesto, que ele não é mais um cativo. (NASCIMENTO, 1989) Reitero que certas justificativas utilizadas pelos cânones acadêmicos enfatizavam um pretenso analfabetismo às culturas e a populações negras africanas e afro-diaspóricas, sendo esse discurso reforçado por nossos contemporâneos que desconhecem a oralidade, o gesto e o corpo como possibilidades de escrita da memória. Para os autores Serrano e Waldman: [...] a adoção da oralidade por muitos povos africanos terminou instrumentalizada como sinal de ‘analfabetismo’. Deve-se entender que a expressão ‘analfabetismo’ não faz sentido para a certos povos africanos, até porque suas opções culturais sempre permitiram comunicação eficiente dispensando inclusive em muitos contextos a palavra escrita (SERRANO, WALDMAN, 2007, p. 95). No que diz respeito ao letramento de negras e negros no português, tomo como exemplo o dado historiográfico acerca da criação de diversos jornais – impressos – cuja equipe editorial era totalmente composta por negros e negras nos primeiros anos pós-abolição da escravatura em 1888. Há registros que relatam a existência de ações afirmativas em meados do séc. XVIII e XIX, durante o período escravocrata do país, no qual homens negros popularizavam discursos antirracistas através da escrita possibilitada pela profissão de tipógrafo (OLIVEIRA, 2017). Algumas correntes teóricas contemporâneas têm reconhecido que desde muito antes da escrita com tipógrafos, Malungos80 da diáspora criaram estratégias e ferramentas de linguagem para se comunicarem. A comunicação, forjada pela 80 Termo bantu para referir-se a irmão, mesmo não existindo laços consanguíneos. 80 diversidade etnolinguística da diáspora, (re)cria de música à comida 81 e possibilita diversos códigos – figurino, música, perfumes, dança- que são mobilizados para a construção de uma narrativa, tal qual o conceito de estética Nagô “Odara”. No contexto das performances rituais em comunidades de terreiro82 no Brasil, diversos signos linguísticos (verbais e gestuais) são fundamentais ao processo de conexão com o sagrado. Através desses signos, circulam bens imateriais – mitos, memórias, metáforas, técnicas corporais – eleitos socialmente como forma de comunicar. Tomo como exemplo as tradições iniciáticas da cultura Nagô onde A transmissão oral é uma técnica a serviço de um sistema dinâmico. A linguagem oral está indissoluvelmente ligada à dos gestos, expressões e distância corporal. Proferir uma palavra, uma fórmula é acompanha-la de gestos simbólicos apropriados ou pronunciá-la no decorrer de uma atividade ritual dada [...] A oralidade é um instrumento a serviço da estrutura dinâmica Nagô [...] A expressão oral renasce constantemente; é produto de uma interação em dois níveis: o nível individual e o nível social. No nível social, porque a palavra é proferida para ser ouvida, ela emana de uma pessoa para atingir uma ou muitas outras; comunica de boca a orelha a experiência de uma geração à outra, transmite o àse concentrado dos antepassados a geração do presente. (SANTOS, 1986, p. 47) Quanto à palavra: Esta faz parte de uma combinação de elementos, de um processo dinâmico, que transmite poder de realização: àse: que isto advenha! Se a palavra adquire tal poder de ação, é porque ela está impregnada de àse, pronunciada com o hálito – veículo existencial – com a saliva, a temperatura; é a palavra soprada, vivida, acompanhada das modulações, da carga emocional, da história pessoal e do poder daquele que a profere (SANTOS, 1986, p. 46) O autor Muniz Sodré (1988) pontua que a colonização europeia também atuou como fenômeno “semântico”. Isso implica considerar que diversas relações simbólicas como o saber/fazer, o ethos africano, a arché, , as memórias ancoradas no corpo, no gestual, na oralidade e em outras materialidades de competência infocomunicacionais foram agressivamente submetidos à invisibilidade. Essas Entrevista do ator Antônio Pitanga, por Larissa Ibúmi Moreira <https://www.cartacapital.com.br/cultura/antonio-pitanga-a-sociedade-branca-bebe-come-e-danca-acultura-negra. Acessado em 27 de agosto de 2018. 82 “Os terreiros são comunidades religiosas nas quais a música e a dança, aspectos vitais da religião herdada dos escravizados africanos, complementam-se para oferecer uma visão particular do mundo” (SANTOS, 2006, p. 31). Como explica Santos (2006), terreiro é ”termo que acabou sendo sinônimo da associação e lugar onde se pratica a religião tradicional africana” (SANTOS, 1986, p. 32). “Na diáspora, o espaço geográfico da África genitora e seus conteúdos culturais foram transferidos e restituídos no ‘terreiro’” (SANTOS, 1986, P. 33). Idem à consideração anterior! Além disso, aqui trazes duas citações consecutivas! 81 81 relações simbólicas foram, pois, estratégias usadas para coagir e censurar a diversidade etnosemântica (r)existente no Brasil. Dito isso, reafirmo o lugar dessa estratégia metodológica como espaço de escuta de narrativas negras acerca da Dança Afro. Oportunamente, vale lembrar que a artista portuguesa Grada Kilomba (2016) atualiza reflexões sobre a boca, partindo de longa reflexão sobre a máscara imposta pelo colonizador como instrumento de tortura no rosto de Anastácia – mulher negra escravizada, Kilomba atualiza em leitoras(es) negras(os) o desejo de grito preso na garganta, de trocas no nível comunicacional. Ela denuncia a necessidade de se escutar a voz de mulheres negras silenciadas que têm muito a dizer sobre a história dos países colonizados. Nas palavras da autora: A boca é um órgão muito especial, ela simboliza a fala e a enunciação. No âmbito do racismo a boca torna-se o órgão da opressão por excelência, ela representa o órgão que os(as) brancos(as) querem – e precisam – controlar e, consequentemente o órgão que, historicamente, tem sido severamente repreendido (KILOMBA, 2016, p. 172) Em relação à imagem da escrava Anastácia, a escritora brasileira Conceição Evaristo afirma: [...] eu tenho dito muito que a gente sabe falar pelos orifícios da máscara e às vezes a gente fala com tanta potência que a máscara é estilhaçada. E eu acho que o estilhaçamento é o símbolo nosso, porque a nossa fala força a máscara. Porque todo nosso processo pra eu chegar aqui, foi preciso colocar o bloco na rua e esse bloco a gente não põe sozinha (CONCEIÇÃO, 2017)83. Ouvir, escutar, parar, refletir, ler, analisar, sintetizar, falar, escrever, dançar, ensinar, assimilar, criar, ensaiar. Essas foram alguma das ações adotadas na forma de movimento, gesto, ação física ou pelo menos de intencionalidade, na tentativa de empreender esta pesquisa. Com o objetivo de aprofundar a temática, busquei dialogar com um dos grupos mais antigos em atividade do Rio Grande do Sul, o Grupo Afro-Sul de Música e Dança, fundado por Ms. Iara Deorodo, umas das precursoras do ensino e da criação em Dança Afro no estado. CARTA CAPITAL. Conceição Evaristo: Nossa fala estilhaça a máscara do silêncio. Publicado por Carta capital em 13 de maio de 2017. Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/conceicao-evaristo-201cnossa-fala-estilhaca-a-mascarado-silencio201d/>. Vídeo acessado em 26 de janeiro de 2019. 83 82 Para o exercício de escuta coletiva, dentro dessa metodologia, elaborei um evento público chamado “FalarFazendo Dança Afro”84, um híbrido de entrevista, aula e performance, estimulando simultaneamente a atenção de diferentes sentidos olhos, ouvidos e corpos - para o acesso às memórias compartilhadas por Mestra Iara. Esse evento contou com a participação massiva de alunos do curso de Artes Cênicas (Licenciatura e Bacharelado), matriculados na disciplina de Teatro e Relações Étnico-raciais (DAD-UFRGS), ex-bailarinas(os) do grupo Afro-Sul, artistas da Dança e do Teatro local, além do grupo de percussão Sankofa Drums de Porto Alegre - RS. Nesse evento aberto e gratuito, busquei encruzilhadas possíveis de maneira que o “falar”, o “fazer” e o “dançar” coexistissem a fim de flexibilizar hierarquizações. Busquei, ainda, desvelar nas narrativas do gesto questões relativas ao ensinoaprendizagem, a trajetórias artísticas, artefatos culturais usados no processo criativo. Tudo para subverter noções estanques acerca de teoria e prática e, seguindo pistas baseadas no conhecimento-emancipação, deflagrarmos a possibilidade de enunciação do e ao corpo negro. No conhecimento-emancipação, o ato de conhecer está vinculado ao saber, sabor, saborear, à sapiência e ao sábio. O sábio não é o cientista fechado em seu gabinete ou laboratório. Mas aquele que conhece o mundo através do mergulho no mundo. Esse conhecimento pode ser sistematizado na forma de teoria ou não. A teoria e a experiência prática são vistas como formas diferentes de viver e de sistematizar o conhecimento do mundo, pois é no mundo que a vida social se realiza. Por isso não cabe hierarquia entre elas (GOMES, 2017, p. 59). Borrar as fronteiras entre os discursos verbais e gestuais, possibilitando enunciados performativos recorrentes nas práticas pedagógicas e artísticas de Mestra Iara é parte das estratégias desta pesquisa. Busco, com isso, fomentar fluxos comunicacionais complementares, reconhecendo que recorrer às memórias não significa revivê-las, pois lembrar não é reviver algo, mas refazer, reconstruir, repensar o passado contaminando com ideias e reflexões outras o hoje (BOSI, 1983). As possibilidades de enunciação desveladas nesta pesquisa apontam para a dimensão das memórias ancoradas em corpos negros(as) dada a invisibilidade Realizado no dia 12 de junho de 2018, no salão de destas da reitoria da UFRGS, a 1ª aulaperformance-entrevista com a Ms. Iara Deodoro. Nota na mídia local <http://www.nacaoz.com.br/2015/falarfazendo-danca-afro-aula-aberta-com-a-mestra-iara-deodoro-emanoel-luthiery/>. Vídeo Acessado em 23 de agosto de 2018. 84 83 dessas narrativas na Arte, campo que ainda não (re)conhece as contribuições da cultura africana para o desenvolvimento intelectual e cognitivo do Corpo Social brasileiro. Considero de grande magnitude as noções, técnicas, os conceitos, sistemas, métodos que abordam a corporeidade negra africana e afro-diaspórica, os gestuais específicos como potência insubmissa relevante no processo de construção de identidades e subjetividades descolonizadas. Isso porque tais diretrizes inscrevem-se numa perspectiva decolonial do saber, rompendo com a lógica do conhecimento como algo apolítico, o que, por fim, reproduz as relações de poder coloniais. Reconheço que “a academia não é um lugar neutro, tampouco simplesmente um espaço de conhecimento e de sabedoria, da ciência e da erudição, mas também é um espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a” onde há uma relação problemática com a Negritude (KILOMBA, 2016, p. 7). Nesse espaço de negociações e tensões – chamado Artes Cênicas - em que corpos negras(os) têm sido objetificadas(os), esta dissertação reforça o desejo de mudanças, de rupturas com o racismo, machismo e a colonialidade impressa no ensino da História da Dança que invisibilizam importantes contribuições negras para o campo da arte e das políticas sociais. Nesse sentido, a reflexão proposta pela professora e coreógrafa negra Amélia Conrado diz que: [...] o campo de tensionamentos no qual pesquisadores contemporâneos se dedicam aos estudos históricos de personalidades e artistas negros do teatro e da dança, bem como os grupos e produções cujas estéticas partem da imersão em mitologias, símbolos ou situações existenciais e políticas da realidade do negro em nossa sociedade, justifica-se por uma busca em construção de um pensamento artístico em artes cênicas que responda à necessidade de segmentos e setores sociais desprestigiados – em termos da nossa realidade social – e precisam ser acolhidos na dinâmica científica, visto que produzem arte e através dela, viabilizam intervenções significativas no plano da cidadania, da mobilidade de grupos marginalizados e promovem uma autoestima e representação social. (CONRADO, 2018, p. 79) Tal reflexão sinaliza a necessidade de dar visibilidade à produção historiográfica da Dança não contada pela literatura ‘oficial’. Ou seja, de visibilizar Gestos de Resistência de artistas negras(os) e indígenas aviltados, levantando, além de dados historiográficos acerca da atuação artística e pedagógica, memórias e gestos, compositores de sua trajetória, de modo a constituir acervos pluriculturais para consultas posteriores. Para isso, inventários, memoriais, historiografias de vida e investigações sobre Gestos de Resistência de artistas negras(os) tornam-se 84 imprescindíveis à superação da disparidade perpetrada pelo racismo que verte como efeito da colonialidade na historiografia da Dança. Segundo Silva (2013, p. 99), A nova historiografia que emerge está interessada em mapear novos/outros ambientes e outras/novas práticas de artistas, além de tentar compreender como estas evoluções acontecem e de que forma elas estão inseridas em seus contextos, aprofundando e complexificando as narrativas. O objetivo é criar uma rede de informações que possa ser acessada por pesquisadores e estudantes da área, ampliando seus mecanismos de pesquisa e abordagem dos dados históricos. Entretanto, grande parte da produção acadêmica no campo da História da Dança ainda se mantém limitada ao conhecimento geograficamente localizado nos cânones europeus da Arte ou advindo de artistas que estão ligados a essa matriz estético-cultural de conhecimento. O conjunto de saberes não europeus é relegado à invisibilidade (MARTINS, 2003) ou mesmo à destruição, fenômeno que podemos classificar como “Epistemicídio” dos saberes locais, demarcando linhas abissais do conhecimento que se caracterizam pela impossibilidade da coexistência da diversidade (SANTOS, 2007). Todavia, saberes e epistemologias dos povos colonizados resistem se reinventando frente aos tensionamentos étnico-culturais, sociopolíticos e linguísticos modernos e contemporâneos. De acordo com o antropólogo Clifford Geertz, há uma incapacidade por parte dos estudiosos da arte em compreender a diversidade dos fazeres artísticos baseados em outras matrizes culturais. Para Geertz, É a incapacidade de compreender essa variedade que leva a muitos estudiosos da arte não ocidental, principalmente daquela que chamamos de “arte primitiva”, a expressar um tipo de comentário que ouvimos com frequência: que os povos dessas culturas não falam, ou falam pouco, sobre arte. O que esses comentários, na verdade, querem dizer, é que, a não ser de forma lacônica, ou críptica, como se tivessem muito pouca esperança de serem compreendidos, os povos que esses estudiosos observam não falam de arte como eles, estudiosos, falam, ou como gostariam que os objetos de seus estudos falassem: em termos de suas propriedades formais, de seu conteúdos simbólico, de seus valores afetivos, e de seus elementos estilísticos. (GEERTZ, 2014, p. 101) O intelectual e artista visual Marco Aurélio Luz, em seu livro “Agadá: Dinâmica da civilização Africano-brasileira”, apresenta pontos característicos da Cultura Negra Africano-Brasileira contemporânea que sobreviveram aos processos de aculturação e escravização da mão de obra negra em tempos coloniais (LUZ, 2013). Mesmo negligenciada pelo sistema cultural dominante, a Cultura Negra Africana-Brasileira se mantém estabelecendo contato com novas gerações de negras e negros através 85 de suas performances corporais, sonoras e rituais, o que movimenta um campo de princípios estéticos de matrizes africanas. A expressão “Performances Afro-Ameríndias” utilizada por Zeca Ligiéro sinaliza a presença de saberes teatrais tão bem elaborados quanto o Teatro Grego, gênero que tem sido a estratégia estética mantenedora de uma série de conhecimentos salvaguardados pela oralidade e corporeidade negra e indígena no Brasil (LIGIÉRO, 2011). A expressão “Performances Culturais Afro-Brasileiras”, atrelada ao conceito de Motrizes Culturais, é utilizada para [...] definir um conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas, e se refere à combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações do mundo afro-brasileiro (LIGIÉRO, 2011, p. 107). Há de se evidenciar que os processos de emancipação sociopolítica dos países colonizados não caminharam rumo à emancipação cultural e artística no período pós-colonial. No campo das Artes da Cena, o Brasil ainda segue princípios fundados no pensar/fazer artístico proposto pelo sistema cultural eurocêntrico ocidental. Segundo o bailarino Rui Moreira, No universo artístico brasileiro, identificamos uma tendência contemporânea de que as matrizes culturais brasileiras sejam visitadas mais fluidamente e sem os preconceitos de outras gerações. Isto vem proporcionando recolhimento de nuances culturais deste povo. A música, as artes plásticas e o cinema exploram esta diversidade há muito tempo, mas mesmo assim hoje mais do que em outras épocas eles atribuem de maneira mais efetiva algumas de suas qualidades às suas heranças africanas negras ou indígenas; já outras artes ainda preferem não assumir a existência deste legado e consequentemente buscam em seus processos de formação meios de aculturar seu fazer, através da negação do que lhes é próprio (MOREIRA, 2000, p.62) No sentido de ruptura com as lógicas perpetradas pela subalternização e folclorização da cultura e das corporeidades negras através de pesquisas em Dança (que podem ser também ambíguas, invisibilizadoras, veladamente racistas ), esta dissertação pretende romper com a “negação de si”.. Como discorre Rui Moreira (2010), assumir as heranças africanas também no modo de produzir memória através de fendas enunciativas a partir de outro lugar de fala, a partir do corpo, da performance, de gestos de resistência, gestos esses que tencionam o campo das Artes Cênicas para exercícios reflexivos norteados pelo saber/fazer presente em práticas artístico-pedagógicas como as de Mestra Iara. 86 IV - FOGO "Luiza Mahim Chefa de negros livres E a preta Zeferina Exemplo de Heroína Aqualtune de Palmares Soberana quilombola E Felipa do Pará Negra Ginga de Angola África liberta em tuas trincheiras Quantas anônimas guerreiras brasileiras" I Encontro Nacional de Mulheres Negras85 “Aganju, Xangô. Alapalá, Alapalá, Alapalá. Xangô, Aganju. O filho perguntou pro pai: Onde é que tá o meu avô. O meu avô, onde é que tá?. O pai perguntou pro avô: Onde é que tá meu bisavô. Meu bisavô, onde é que tá?. Avô perguntou ô bisavô: Onde é que tá tataravô. Tataravô, onde é que tá?. Tataravô, bisavô, avô. Pai Xangô, Aganju. Viva egum, babá Alapalá!” Gilberto Gil / interpretado por Zeze Mota86 I Encontro Nacional de Mulheres Negras 1988. Cultne Doc - Luiza Mahim – Guerreiras Brasileiras. Youtube, publicado por Cultne Acervo em 1 de abril de 2011. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=XqvqH_vaM2g. Acessado 27 de ago. 2018. 86 MOTTA, Zeze. Babá Alapalá. Youtube, publicado por LUBOR em 31 de outubro de 2015. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=cfSCtVxHEaQ. Acessado em 13 de setembro de 2018. 85 87 Figura 13. Bailarina: Maria da Graça Penha, Camila Camargo, Taila Souza -Espetáculo "O Feminino Sagrado - Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Marciel Goelzer. (GASMD, 2016) 88 VISIBILIDADE NEGRA NA DANÇA O protagonismo negro tal qual ouvimos falar atualmente sempre existiu como ato político em ações de pessoas negras resistentes a gestos autoritários, colonialistas e genocidas de interdição à existência das culturas negras. Dessa forma, a noção de Protagonismo Negro torna-se uma das interfaces dos Estudos Étnico-Raciais que se constroem na relação interdisciplinar entre memória e determinado campo da sociedade em que exista a participação de pessoas negras. O uso da palavra “Protagonismo” é carregado de sentidos que a estigmatizam como lugar de destaque na dramaturgia teatral. Sua ideia de valoração da persona atribui à palavra justamente a noção de visibilidade. No entanto, sabemos que a visibilidade de quem está em cena é carregada por forças de outros tantos profissionais invisíveis nela, anunciados no espaço teatral através dos elementos cênicos, do gesto, da condução da dramaturgia. Sendo assim, para esta pesquisa, a noção de visibilidade discutida por Boaventura de Sousa Santos (2002) e Nilma Lino Gomes (2017) tornam-se mais apropriadas ao entendimento desse fenômeno que é construído de forma, coletiva, cheia de outras mãos, de pessoas que se reconhecem como integrantes do processo de superação do racismo. A sociologia das ausências consiste numa investigação que visa demonstrar que aquilo que não existe é, na realidade, ativamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não credível ao que existe. O objetivo da sociologia das ausências é transformar as ausências em presenças. Mas como se dá a produção da não existência? De acordo com Santos (2004), não há uma única maneira de não existir, uma vez que são várias as lógicas e os processos por meio dos quais a razão metonímica (obsessão pela totalidade, lógica dicotômica) produz a não existência do que não cabe na sua totalidade e no seu tempo linear. Há produção de não existência sempre que determinada entidade é desqualificada e tornada invisível, inteligível ou descartável de modo irreversível. O que unifica as diferentes lógicas da produção da não existência é serem todas eles manifestações de uma monocultura racional (GOMES, 2017, p. 40-41) Esse entendimento, por mais pontual que seja, põe em voga um labor comunitário no sentido de visibilizar a presença negra nos espaços sociais, tornando a não existência em existência, em força motriz para resistência. A visibilidade negra, bem como a visibilidade da mulher, da comunidade LGBTQI+, de pessoas com deficiência física e/ou mental, bem como a visibilidade de outras comunidades que tem sua existência e contribuição social invisibilizadas, tem se tornado bandeira 89 política na luta de enfretamento político, no caso da luta antirracista Nogueira (2018, p. 3) afirma que: Na história do Brasil é preciso considerar que a “supressão” do cativeiro não foi uma ação advinda da assinatura da Lei Áurea; mas, um processo complexo protagonizado por levantes, insurreições, instalações de movimentos de contra-cultura e diversas formas de resistências e reivindicações, tais como os quilombos, as fugas em massa e queimas de casas-grande, além dos diversos movimentos abolicionistas, todos protagonizados por pretas e pretos durante os períodos colonial e imperial” Vale ressaltar que o processo de colonização e, posteriormente, a ideologia do embranquecimento auxiliam a (re)produção de uma imagem negativa referente a tudo que se relaciona com a palavra NEGRO (CUTI, 2010). São construídos Imaginários colonizados, catastróficos a ponto de distorcer a autoimagem do sujeito colonizado, criando crises de identidade que se refletem na negação de si e da sua ancestralidade. Nesse sentido, é preciso evidenciar esforços autônomos e coletivos propostos por negras/os que, numa perspectiva anticolonial, descolonial e/ou decolonial, vasculham a história com o intuito de visibilizar narrativas negras, questionando, tal qual pontua Asante: “Quem somos nós? O que fizemos? Para onde viajamos? Qual é o nosso papel no desenvolvimento da Geometria? Sendo um povo, como funcionamos nesta ou naquela situação contemporânea?” (2015, p. 106). Na perspectiva deste estudo surgem questões próprias que motivam a reflexões, são elas: que experiências e imaginários fundamentam o entendimento sobre África, Orixá, Religião de Matriz Africana, Educação em Dança? Que imaginários e ideologias fomentam a elaboração teórico-prática de propostas artístico-pedagógicas em Dança Afro? Qual o papel do professor de Dança Afro no desenvolvimento de uma educação comprometida com os grupos sociais e comunidades invisibilizadas? Qual é, especificamente, o nosso papel na elaboração de um campo teórico que trate do gesto, da memória, e da performance em Dança Afro?. Certamente nem todas essas perguntas são respondidas nessa dissertação, mas serviram como matriz geradora de movimento pra seguir uma escrita comprometida com uma educação pluricultural. 90 Na dramaturgia do monólogo “Sob a pele”87, a atriz negra Lenora Schimit (SCHIMIT, 2017) propõe uma reflexão crítica acerca do estereótipo que relaciona o corpo negro como “Forte”. A encenadora põe em questão o mito do Corpo Máquina, ou seja, uma visão sádica que narra o corpo negro como sendo resistente a tudo, até mesmo à dor. Atualmente tal crítica tem ecoado no Brasil principalmente através da voz de mulheres negras em diversos espaços sociais, são elas intelectuais, blogueiras, artistas, cabelereiras, escritoras, Iyalorixás, passistas, dentre outras pensadoras negras, responsáveis por propor uma crítica coesa na contemporaneidade, muitas inspiradas pela escrita e ação política da intelectual negra norte-americana bell hooks88. Tematizam na contemporaneidade a necessidade de se fazer forte, de se construir forte frente às agruras perpetradas pelo racismo. Trago, para fins de ilustração, um fragmento do texto da peça que fala sobre vida e morte, emitido logo após o fim da cena de parto, quando a atriz, já com o bebê no colo, enuncia: ela não chorou... também não falou e continuou sem abrir os olhinhos... nenhuma lágrima, ela foi forte não foi? Não foi? Esse aqui também não chorou, ele foi forte, não foi? Sílvia, sem foto nos jornais. Cor? Preta. Criado nas ruas, sem pai, sem mãe. Ninguém queria adotar. Levou um tiro ‘Um drogado fudido!’ justificaram, ‘tava até demorando pra morrer!’. Foi achado com ele a foto daquela que seria a sua mãe. Ele foi forte não foi? Marielle Franco, Deputada Estadual do Estado do Rio de Janeiro. Cor? Preta. Assassinada! Ela não chorou!. Ela foi forte não foi? Todos foram, não foram? Dandara! Zumbi dos Palmares! Não porque quisessem, ou porque eram, mas sim porque precisaram ser. Não tiveram outra escolha. As estatísticas tem cor, a justiça tem cor, o privilégio ao atendimento público de saúde tem cor, o motivo das mortes tem cor. O monólogo “Sob a pele”, criado e encenado pela atriz negra Lenora Consales Schimit (2017), traz como narrativa a situação de negligência ao atendimento hospitalar a uma mulher negra, gestante, com fortes contrações pré-parto na fila de emergência do Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de um olhar crítico sobre a Violência Obstétrica para gestante negras, um espetáculo no qual atuei como Produtor Executivo. SCHIMIT, Lenora Consales. Texto do programa. SOB A PELA. Direção e atuação Lenora Consales Schimit. Santa Maria 2017. 1 folder. Programa do espetáculo, apresentado no Theatro Municipal Treze de Maio. 88 Gloria Jean Watkins (Hopkinsville, 25 de setembro de 1952), mais conhecida pelo pseudônimo bell hooks (escrito em minúsculas), é uma autora, teórica feminista, artista e ativista social estadunidense. Sua obra incide principalmente sobre a interseccionalidade de raça, capitalismo e gênero, e aquilo que hooks descreve como a capacidade destes para produzir e perpetuar sistemas de opressão e dominação de classe. Numa perspectiva pós-moderna, e influenciada pela pedagogia crítica de Paulo Freire, o trabalho de hooks aborda raça, classe e gênero na educação, arte, história, sexualidade, mídia de massa, etc. 87 91 Provavelmente, as pessoas negras que se fizeram fortes sem almejar medalhas de honra ao mérito, reconhecimento em vida ou morte, nomes de rua resistiram pela necessidade de sobrevivência, tanto do corpo negro quanto dos traços referentes à cultura africana. Seria o Protagonismo Negro apenas uma ação de sobrevivência? Em linhas gerais, a noção de Visibilidade Negra na Dança desenvolvida nesta investigação, tem relação com um movimento crítico traçado no campo da história/memória dessa arte. Movimento esse que atua numa dimensão simbólica propondo ao corpo dançante, de maneira teórico-prática, a tomada de consciência e, posteriormente, a produção discursiva – performática e/ou pedagógica – pautada na pluriculturalidade, baseada em gestuais diversos, na escuta e/ou escrita de narrativas não hegemônicas na Dança, seja de maneira individual e/ou coletivas. As memórias acerca da Dança Afro-Brasileira e Americana têm sido escritas a partir do protagonismo de mulheres negras que, inseridas no sistema de produção e distribuição da Arte, buscaram na sua pertença étnico-racial referências estéticas e poéticas para criação em Dança. Muitas dessas mulheres, tais como Mercedes Baptista (1921-2014) e a americana Katherine Dunham, criaram seus próprios sistemas de ensino. Algo que as assemelha é a encruzilhada interseccional entre Raça, Gênero e Classe. Elas são Mulheres Negras, Artistas da Dança, que – subvertendo as expectativas em torno do imaginário colonizado nesse contexto – alçam seus espaços de protagonismo no campo profissional encarando sexismo, machismo e racismo. No Brasil, Mercedes Baptista, estudante da Escola de Dança do Teatro Municipal do Rio de Janeiro na década de 1940, sofreu diversos processos de discriminação racial na tentativa de ingressar nesse corpo de baile. No entanto, em 1947, consagrou-se como primeira bailarina negra (MELGAÇO, 2007). No mesmo período, aproxima-se do dramaturgo Abdias do Nascimento (1914-2011), militante do movimento social negro, atuante nas discussões e na elaboração de políticas públicas das Políticas Culturais de equidade nos racial. processos de Ele entendia reestruturação a do importância povo negro afrodescendente no território brasileiro e era, também, conhecedor do princípio africano que reafirma a importância da Arte como elemento fundamental na elaboração de conhecimento. 92 Na década de 1950, a coreógrafa negra norte-americana Katherine Dunham89 fez turnê pelo Brasil junto a sua companhia de Dança. Ficou famosa pela grandiosidade das suas pesquisas acadêmicas e pelo trabalho coreográfico desenvolvido nos Estados Unidos, tanto na Katherine Dunham Company quanto em espetáculos na Broadway e em Hollywood. A artista sofreu racismo ao ser impedida de hospedar-se no Hotel Esplanada em São Paulo, sendo apoiada por uma elite intelectual que questionava em parte as estruturas racistas erigidas na constituição brasileira. O ocorrido problematizou e popularizou a discussão sobre racismo no Brasil, culminando na aprovação da Lei Afonso Arinos (MARTINS, 2013). Além disso, outro fato simbólico marcou a vinda de Katherine Dunham ao Brasil: a concessão de uma bolsa de estudos a Mercedes Baptista, para estudar na Katherine Dunham Company, o que possibilitou à bailarina aprofundar seus estudos, incentivando-a alçar suas próprias pesquisas e criações, o que veio a torna-la conhecida como percursora da Dança Afro-brasileira. Essas memórias relacionadas à historiografia da Dança Afro evidenciam a prática de dinâmicas de solidariedade entre corpos negros. Não se trata apenas de Dança, trata-se de Gestos de solidariedade contrários ao individualismo. Segundo Zenícola (2011, p. 86), [...] o ato de trabalhar em grupo de uma maneira geral contempla esse aspecto da inclusão: seja no grupo que reúne para ensaiar, pesquisar ou dançar. A certeza que “ninguém é um ser isolado” guarda ainda o aspecto da necessidade de coletivo para a ação de construir o indivíduo. Os grupos das danças afro brasileiras, populares e urbanos continuam mantendo seus próprios espaços de reconhecimento e interação. Dessa forma, a prática do grupo vai ser estabelecer como uma comunidade específica, vinda de diversos pontos da cidade e de classes sociais distintas. O bailarino se reúne e agrega para praticar sua dança, criando núcleos eventuais e/ou duradouras de afinidade [...] Por esses motivos, acredito que os saberes a transbordar desses encontros, gestos, dessas narrativas, práticas e memórias acionam o sentimento de pertença o qual estimula uma identidade positiva acerca da corporeidade negra, cotidianamente tão marginalizada e exotificada no ocidente, muitas vezes reconhecida apenas como corpo-objeto. Afinal, o processo de reconhecimentos dos pares faz com que essa temática, outrora escrita por pesquisadoras/es não negras(os), passe a ser Katherine Dunham (1909-2006) é norte-americana, bailarina e antropóloga; considerada percussora da Dança Negra no EUA. 89 93 encampada como movimento estético/político articulador de luta. Segundo Luz (1979, p. 183), [...] é chegada uma nova fase, uma nova forma de percepção, de elaboração e produção cientifica em relação aos estudos negros. Não mais sobre o negro, o negro não mais como objeto de ciência, mas como produtor de ciência, isto é, identificado com seu processo civilizatório, reproduzindo o seu patrimônio cultural, procurando restaurar a sua consciência histórica, e produzindo ciência de acordo às suas necessidades de conhecimento e de adaptação-resistência e integração na sociedade global. Isso não se trata de uma questão moral, mas ética. Não questiono a legitimidade de produções teóricas de intelectuais não negros/as, questiono a branquitude que não reconhece os privilégios arquitetados sistemicamente para o seu próprio êxito, branquitude essa que cria expectativas de insucesso direcionadas a pessoas e causas negras. No caso do “protagonismo negro”, desconsiderar o gênero, a raça, classe e/ou performatividade invisibiliza do horizonte da(o) leitor(a) características que fundamentam o lugar social da/o pesquisador(a). Nessa perspectiva, a intelectual negra Djamila Ribeiro, em seu livro “Lugar de Fala”, nos alerta a refletir sobre o fato de que “o lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas” (RIBEIRO, 2017, p.69). Esse entendimento tem possibilitado a muitos pesquisadores não negros interessados em temáticas negras questionarem seu lugar, diluindo o regime de autorização discursiva que historicamente favorece a objetificação de corpos e culturas negras (RIBEIRO, 2017). A ruptura com o paradoxo racista implementado pela academia por meio da manutenção do lugar de privilégio conferido a pessoas brancas, possibilitando a elas um espaço de reflexões sob a égide de sua perspectiva filosófica e cultural, tem colocado em alto e bom som a resposta para a pergunta necessária “pode o subalterno falar?”90. Ainda em investigação e envolvidas em torno de Gestos de Resistência, mobilizo as noções de Agência e Localização encontradas na perspectiva Pode o subalterno falar é título do livro lançado em 1985 pela teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak. 90 94 Afrocêntrica para pensar o compromisso com vozes/corpos negros presentes da/na Dança Afro-Gaúcha. Segundo Molefi Asante91: a Afrocentricidade procura descobrir agência africana em toda situação. Quem somos nós? O que fizemos? Para onde viajamos? Qual é a nosso papel no desenvolvimento da Geometria? Sendo um povo, como funcionamos nesta ou naquela situação contemporânea? Porém, os afrocentristas não estabelecem a particularidade africana como universal. Esta é a diferença essencial para com a Eurocentricidade, que predomina nos Estados Unidos e em outros lugares, tomando as experiências particulares dos europeus como universais. Esta imposição é etnocêntrica e frequentemente racista. A Afrocentricidade estabelece uma perspectiva de que é possível a existência de um pluralismo de culturas sem hierarquia, mas isto exige igualdade cultural e respeito (ASANTE, 2015, p. 1906). Para o sucesso de uma perspectiva ‘universal’, diversos discursos e práticas hegemônicos foram respaldados pela “Historiografia Oficial”, muitos desses discursos invisibilizaram as informações acerca do protagonismo de pessoas e comunidades negras em diversas áreas com o intuito de manter corpos/mentes Colonizados. A “História Oficial” tem atuado como estratégia de poder no campo simbólico, silenciando, romantizando, folclorizando e distorcendo as narrativas dos povos colonizados, perpetuando a produção de imaginários coniventes à lógica do colonizador. Concomitantemente, esses discursos enfatizam narrativas negras na tentativa de legitimar trajetórias que ainda são desconhecidas ou invisíveis para o arcabouço de saberes acadêmicos. Pesquisadoras(es) negras(os) têm buscado criticar o Racismo encarnado/incorporado nas narrativas hegemônicas da História, no epstemicídio dos saberes afro-brasileiros e no modo de operar das instituições. Ao mesmo tempo que subvertem metodologias positivistas (lineares e evolucionistas), tais pesquisadores buscam trazer para o hall da história outras narrativas, referências e outros modos de grafia, tal qual a linguagem audiovisual e a performance artística. Isso fortalece a crítica ao sistema arbitrário de produção de discursos hegemônicos que pautam a Visibilidade Negra e/ou a Pertença Etnico-Racial (negra, africana ou afrodiaspóricas) sem o entendimento das noções de Localização e Agência africana para mediação da produção do discurso legítimo sobre si. Molefi Kete Asante é um professor afro-americano. Ele é uma figura de liderança nos campos de estudos afro-americanos, estudos africanos e estudos de comunicação. Atualmente, é professor do Departamento de Africologia da Temple University, onde fundou o programa de Doutorado em Estudos Afro-Americanos. 91 95 Essas noções rompem com a lógica sujeito versus objeto e as categorias marginalizadas, fetichizadas, romantizadas e, nesse caso específico, racializadas, caracterizadas pelos termos “outro”, “étnico”, “exótico”, “folclórico”. No artigo “Introdução à Afrocentricidade”, Renato Nogueira discute com profundidade o conceito cunhado por Molefi Asante por volta da década de 1980, atribuindo aos conceitos de Localização e Agência o que chama de “recheios caríssimos à afrocentricidade”. Quanto à Localização, o autor explica que: localização no sentido afrocêntrico, refere-se ao lugar psicológico, cultural, histórico ou individual ocupado por uma pessoa em dado momento da história. O que significa que é necessário precisar em que lugar uma pessoa está posicionada em relação à sua cultura. Porque é indispensável entender e demarcar a maneira como uma pessoa está em relação à sua ancestralidade, suas referências históricas e culturais, avaliando se essa pessoa está em um lugar central ou marginal em relação à sua cultura. Conforme Asante, uma pessoa está deslocada ou descentrada sempre que se posicionar a partir de experiências que não fazem parte de sua história, sempre que operar centrada nas experiências de outrem.” (NOGUEIRA, 2018, p. 1) Quanto à Agência: Em linhas gerais, agência é a capacidade de dispor de recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana, agência chama as pessoas para protagonizarem suas trajetórias históricas e sua ancestralidade africana. Para Asante as pessoas africanas/afrodiaspóricas devem se tornar agentes em termos econômicos, culturais, políticos e sociais. Um tipo de reorientação e recentralização que abandona as situações de vítimas e dependentes que foram impingidas aos povos africanos/afro-diaspóricos. Portanto, qualquer evento histórico sob o prisma da agência precisa considerar que estes povos são agentes [...] Sem dúvida, agência é uma oposição ao racismo que ultrapassa a denúncia, porque constrói, reinventa e resgata possibilidades de implementação de análises e de práticas em bases africanas/afro-diaspóricas. (NOGUEIRA 2018, p. 3) Fica implícito que há diferenças entre o conceito de localização, agência (ASANTE apud NOGUEIRA, 2018) e lugar de fala (RIBEIRO, 2017), entretanto suas proximidades são mais evidentes que suas dissonâncias. O polo oposto está no conhecido colonialismo discursivo a que Mendes se refere (2016, p. 2) O sujeito da enunciação é o sujeito do poder: é ele quem tem o controle de sua vida. O uso de seu discurso, a apropriação desse discurso por ele mesmo, a tomada da narrativa de sua própria vida, são as chaves da transformação de sua condição. Em seu texto intitulado “Histórias Negras, Narrativas Brancas” (MENDES, 2016, p. 3), a autora discorre sobre três fatos que envolvem a mídia e a visibilidade negra narrada por pessoas brancas: É curioso e mesmo impressionante como não há possibilidades ínfimas de que as histórias negras sejam transformadoras e catárticas quando as 96 narrativas são brancas. Nesse sentido, ainda que em circunstancias diferentes (que ocorram em ambientes diferentes e falem de personagens distintos), o que une as três histórias é o mesmo bom e velho olhar do colonizador, para quem os negros são sempre coadjuvantes, personagens secundários de sua própria história, aqueles por quem se deve falar, aqueles que não podem ocupar o primeiro lugar quando um branco está em segundo. Nas três histórias, à revelia do ato ou lugar heróico que ocupa cada um desses negros – sejam os históricos campeões olímpicos, sejam os poucos e festejados negros que viraram doutor a partir de sacrifícios de vida de muitos, sejam as pretas periféricas que lutam diariamente para sobreviver – eles são apenas coadjuvantes cuja vitória, superação e destaque se deveram a ação de um… branco! O que está em jogo são transformações paradigmáticas relacionadas à consciência – de povos negros, africanos e afro-diaspóricos, colonizados - acerca dos dispositivos de poder operantes no campo simbólico na produção de Narrativas, Imaginários, Subjetividades e Identidades colonizadas a partir de discursos e práticas pautados no Corpo Negro. Portanto, para que haja coerência na noção de Visibilidade Negra é preciso que este se articule primeiramente com os estudos raciais, e que operam em consonância com a noção de Agência Africana (ASANTE, 2009) na produção de discursos e coleta de dados (ex.: Estatísticas sobre o Protagonismo Negro em determinado saber/fazer; Protagonismo Negro na historiografia de determinada área). A ideia de visibilidade negra também é interseccionada por questões que funcionam semelhantes ao conceito de Localização (ASANTE, 2015), sendo elas: Territorialidade - funcionando como localização (ex.: Visibilidade Negra na Dança; Visibilidade Negra em Porto Alegre); Classe (ex.: Visibilidade Negra na Medicina; Visibilidade Negra na Dança; Visibilidade Negra na Pesca); Identidade sexual e/ou de gênero (ex.: Visibilidade Negra Feminina; Visibilidade Negra Transsexual). Assim, é crucial considerar a localização social (Locus social) e suas intersecções na formulação e emissão de discursos críticos, ou mesmo na organização das narrativas. Conferir experiência e textura em carne, osso, classe, epiderme, gênero, identidade(s), performatividade(s), através da produção científica, deveria ser algo caro a pesquisas de um campo em que o fazer/saber do corpo é compreendido como corpus máximo na produção do conhecimento. 97 AÇÕES ARTÍSTICO-PEDAGÓGICAS EM DANÇA NEGRA NO RS “Quantas terras semeou e semeará? O herói africano Quantas Guerras enfrentou e enfrentará? O herói africano O trabalho sim, foi o seu destino Mesmo que todos chamassem de vadio Até hoje falam a mesma bobagem Mas o herói está por todas as cidades Quantas beleza produziu e produzirá?” Nina Fola (2019)92 Desde que cheguei no Rio Grande do Sul, em meados de 2013, impressionava-me ao conhecer as estratégias de resistências arquitetadas por artistas e produtores negras(os) gaúchas(os). Cada vez que me encontrava com Nei D’Ogum os meus olhos brilhavam ao ouvir as memórias acerca dos grupos de Dança que surgiram no período da comemoração ao centenário da abolição. Nei, recorrentemente relatava que o gestual utilizado na Dança Afro produzida no final da década de 80 narrava muito o sofrimento, o trabalho forçado, a representação de um negro ainda com ânsia de liberdade. Segundo aqueles relatos, poucas eram as propostas coreográficas que pensavam o corpo negro a partir de uma ótica emancipada. O gesto remetia sempre a superação. Braços erguidos movimentavam-se simbolizando a quebra das correntes, mãos livres desenhavam o espaço criando curvas sinuosas, enquanto os pés seguem a marcação rítmica do ijexá. Havia grande preconceito com performances das Danças dos Orixás, um dos tabus era o bailarino representar em performance artística o Orixá pai de sua cabeça, já que no Batuque do Sul um dos tabus é não poder saber sobre estar em transe. Inúmeras dificuldades e preconceitos convergiam para que a produção artística se enunciasse de forma tímida, porém consciente de sua importante formativa num contexto violentamente racista. Nesse contexto, marcado pelo acirramento das relações raciais, pela falta de políticas públicas e pelo genocídio da juventude negra, os grupos de Dança Afro assumiam numa perspectiva do cuidado com a vida, com as relações sociais e educação, a formação política de jovens FOLA, Nina. Herói Africano. Youtube, publicado em 2 de fevereiro de 2016 por AfroEntes. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AF0U72lNS2M> Acessado dia 30 de janeiro de 2019. 92 98 através da Arte. Empoderando a juventude negra para os embates sociais fora do grupo. Muitas(os) ativistas negras(os), militantes no movimento social contemporâneo, iniciaram sua formação política dentro de grupos de dança. Em alas de escolas de samba, em grupos de Dança Afro, ou em grupos de Capoeira. Como exemplo cito: Nei D’Ogum (in memória) da cidade de Santa Maria-RS, a professora Cátia Cilele Morais, de Caçapava do Sul-RS, a artista negra Nina Fola, de Porto Alegre-RS, a Iyalorixá Carmem do Bará, de Santana do Livramento-RS, as produtoras culturais Marta Nunes e Cíntia Luz, de Santa Cruz do Sul-RS, a professora Maritza Freitas, de Pelotas-RS, entre outras(os) que seguem discutindo o racismo e a Colonialidade no campo da arte, da política, da cultura e da educação. Por mais simbólica que pareça ser, essas e outras pessoas são referências em seus territórios de atuação no interior desse Estado. A sociedade e o Estado deviam reconhecer publicamente a importância dessas pessoas, pois a atuação desses atores em prol dos direitos da população negra visibilizada através da Dança Negra alavanca questões em proveito da garantia dos direitos humanos. Em 2014, com o advento da abertura do edital Prêmio Funarte Klauss Vianna93, que previa fomento em âmbito nacional a projetos que visavam o desenvolvimento da dança, escrevi, juntamente com a artistas Juliana Coelho94 o projeto intitulado “Danças de Matrizes Africanas e Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul” que previa a criação de um circuito estadual de seminários e oficinas nas cidades de Pelotas, Santa Maria, Santa Cruz e Caxias do Sul, com culminância em um festival de Dança Afro na cidade de Santa Maria-RS. O projeto foi habilitado na primeira fase, no entanto não foi contemplado com o prêmio em dinheiro para a execução. No entanto, com o objetivo de fomentar espaços de debate, sistematização e divulgação de memórias sobre a Dança Afro no Estado, em 2016, junto a artista Rita Rosa Lendé95 organizei o primeiro 93 Ver <http://www.funarte.gov.br/acessoainformacao/codanca-premio-de-danca-klauss-vianna/> acessado em 26 de dezembro de 2018 94 Juliana Coelho é graduada em Educação Física e Dança pela UFPel, bailarina da Cia de Dança Afro Daniel Amaro e colaboradora do Grupo Odara (Pelotas-RS). Atualmente é mestranda em Artes Visuais na UFPel, onde pesquisa Dança Afro na sua formação enquanto docente. 95 Gabriela Souza da Rosa é artista da dança, graduanda em Dança pela UERGS, atualmente pesquisadora em Dança Afro-Brasileira. 99 Seminário de Dança Afro-Brasileira do Rio Grande do Sul96, tendo como tema as “Memórias da Dança Afro/Afro-brasileira no e do Rio Grande do Sul”. Figura 14. Folder de divulgação do 1º Seminário de Dança Afro do Rio Grande do Sul (Arte de Alexon Messias) O evento aconteceu na cidade de Porto Alegre-RS nos dias 10 e 11 de dezembro de 2016, tendo como sede a Escola de Capoeira Angola e Ponto de Cultura Africanamente e o Ponto de Cultura Afro-Sul Odomodê. Contou com a presença de Mestra Iara, do Contramestre Guto (Porto Alegre-RS), das Professoras Maritza Freitas e Raquel Silveira (Pelotas-RS), do artista pelotense radicado na Bélgica, Mano Amaro, proponentes de vivências teórico-práticas, tendo como discursão central a memória acerca das práticas artístico-pedagógicas em Danças Afro-Brasileiras. Logo quando entramos em contato com Mestra Iara, ela nos contou sobre 1º Encontro Afro-Sul de Dança Afro, promovido pelo Instituto Sociocultural AfroSul/Odomodê em 200997. O evento tinha como objetivo proporcionar trocas de Ver <https://www.facebook.com/events/1706375599690509/?active_tab=about> Acessado em 26 de dezembro de 2018. 97 Ver <http://wp.clicrbs.com.br/choracavaco/2009/11/06/primeiro-encontro-afro-sul-de-dancaafro/?topo=52,1,1,,186,77> Acessado dia 26 de dezembro de 2018 96 100 experiências entre grupos e pessoas interessadas na cultura e na Dança Afro. Eu e Rita, reconhecemos naquela ação a gênese do nosso desejo, AQUILOMBAR! Figura 15. Folder de divulgação do 1º Encontro Afro-Sul de Dança Afro (2001) Durante o primeiro Seminário de Dança Afro do RS, em 2016, Mestra Iara explicitou para a organização a alegria de ver novas gerações discutindo e fazendo Dança Afro. Compartilhou conosco que, naquele momento, a sensação de solidão causada pela distância física, pela invisibilidade e pela falta de diálogo entra grupos de Dança Afro do estado, havia se diluído. Ainda no final de 2016, recebi o convite por parte das produtoras culturais Isadora Bispo (Santa Maria-RS) e Cátia Cilene Morais (Caçapava do Sul-RS) para compor como Diretor Artístico e Pesquisador o projeto ‘Xirê-Dun: a Dança celebra a história dos Negros no Pampa’98. O projeto visava atuar na formação de grupos de artistas da região do pampa gaúcho que tivesse como foco a pesquisa e difusão da cultura negra. A tradução livre do termo yoruba Xirê-Dun seria Festa Negra. O projeto foi contemplado via Edital SEDAC nº 03/2016 Pró Cultura-RS, na categoria Fundo de Apoio à Cultura (FAC) regional. Ver <http://www.xiredun.com.br/> Acessado dia 26 de outubro de 2018. 98 101 Ao longo de nove meses foram realizadas atividades (oficinas, workshops e seminários com temática relacionadas às Danças Negras no contexto tradicional e contemporâneo) nas cidades de Bagé-RS, Santana do Livramento-RS, Caçapava do Sul-RS e Lavras do Sul-RS. Ao final, todos os grupos participantes do projeto reuniram-se na cidade de Santana do Livramento-RS para um festival de Dança Afro, protagonizado por jovens negras e negros do Pampa gaúcho. Pampa” Figura 16. Folders de divulgação do projeto “Xirê-Dun: a Dança celebra a história do Negro no Nesse circuito fui aprendiz, compartilhei um pouco do que a Dança Afro me ensinou e tem me ensinado, vi corporeidades das danças urbanas, do jazz, da Dança-educativa, feita no ambiente escolar, vivenciei Dança Afro! Vi traços de negruras, de negritudes! Potências insubmissas, potências transgressoras que contaminam com sua beleza, com seus cabelos crespos, trançados, lisos, vi negras e negros de vários os tons de peles. Fui também um pouco diretor artístico chamando atenção para os objetivos do projeto, mas me possibilitando encantar com as realidades, com as Africanidades que encontrei, com as estratégias de resistência que me impressionaram e me emocionaram. Diversos grupos do Pampa gaúcho onde o protagonista é o corpo negro em movimento, seria isso movimento negro? Não sei. Sei que são negros em 102 movimento, também protagonizando sua história no fazer/pensar arte! Num fazer pensar Odara!99 Essas andanças me possibilitaram conhecer jovens bailarinas/os negros de todas as idades, coreógrafas/os negras/os de diversos estilos, interessado em debater as relações étnico-raciais no ensino da Dança e a Cultura Negra em suas obras. Grupos que formam bailarinos, grupos escolares, coletivos de Dança que movimentam o cenário cultural local com suas obras e suas corporeidades negras. Entre eles cito a presença marcante dos grupos: Grupo de Dança Afro Clara Nunes100 (Caçapava do Sul-RS), Grupo Vem Dançar101 (Lavras do Sul-RS) e o Projeto RodArte (Bagé-RS). Oriundos da cidade de Pelotas-RS, podemos citar dois grupos que protagonizam na cena artística local desde os anos 2000. São eles a Cia. de Dança Afro Daniel Amaro e o Grupo Odara. O Grupo Odara surge em meio ao convite feito pelo artista Giba Giba à Professora de Dança Maritza Freitas (Colégio Municipal Pelotense). Giba Giba a convidou para participar como coreógrafa da orquestra de tambores que se formara em detrimento do projeto CABOBU102. Várias dessas histórias são rememoradas por vários desses artistas sempre que nos encontramos. Cada história emana em si uma complexidade, pois sempre articula mais de um campo, em sua maioria articulam Educação-Arte-Cultura, Educação-Arte-Política e/ou Arte-Identidade. Gerando demanda para novas pesquisas que verticalizem a discursão sobre Dança Negra e suas diversas interfaces. Acredito que essas caminhadas produziram diversas reflexões e conhecimentos que me fortaleceram para o encontro com Mestra Iara. Ver <https://www.youtube.com/channel/UCkRXxwJmzbphLPjuPEzoRZA/videos> Acessado em 26 de dezembro de 2018. 100 O Grupo Clara Nunes foi fundado em 04 de agosto de 1988, em Caçapava do Sul. Seu principal objetivo é passar, através da dança, a cultura da raça negra, sua força, coragem, religiosidade, folclore e suas tradições. Recebeu o nome de Clara Nunes em homenagem à artista que sempre cantou e contou a história, o lamento, as crenças e a beleza dos negros. Ver: <https://www.facebook.com/grupoclaranunes.dedancaafrobrasileiro?lst=100002719887077%3A10000 3650560478%3A1545865082> Acessado em 26 de dezembro de 2018. 101 O grupo vem Dançar foi fundado em 2005 pela arte-educadora Ane Rose Lopes da Silva, promotora do Festival OuroDança a 8 anos. Ver <http://projetofosfato.com.br/gente-de-lavras-anerose/> Acessado em 26 de dezembro de 2018. 102 O projeto CABOBU foi uma ação encampada por Giba Giba para revitalização do Tambor do Sopapo. O movimento foi documentado por Maia (2008) 99 103 PARTE 2 AO ENCONTRO COM MESTRA IARA 104 V- AO ENCONTRO COM MESTRA IARA Figura 17. Mestra Iara em cena interpretando o mito de Nanã e Xapanã, no espetáculo “O Sagrado Feminino – Um olhar descendente da mitologia africana” Fotografia de Marciel Goelzer. (Acervo ISASO, 2017) 105 SAUDANDO MESTRA IARA “A volta do mundo é grande Pra quem nem bem começou Agente faz o caminho Que o velho já caminhou Quem tem ajuda do velho já vira caminhar Que mais de vez virou mundo Que mais de vez já virou!” Glória Bonfim (2019)103 Início saudando as águas, em especial à água do mar, as águas salgadas, a calunga. Um espaço preenchido pelo baile das ondas, que dançam. É nesse baile que a vida me possibilitou conhecer Iara Maria dos Santos Deodoro, ou como a reconhecemos, Mestra Iara. Dona de uma identidade negra feminina multifacetada, filha, mãe, bailarina, coreógrafa, assistente social, gestora, empreendedora [...], sobretudo dona de uma genialidade corporal que diz em muito sobre negritude, Maria Iara Santos Deodoro nasceu em meados de 1955, filha de Dona Verônica da Silva Santos, popularmente conhecida como Tia Lili e do Sr. Vilson Santos. Iara nasceu e cresceu no bairro Petrópolis, na capital gaúcha, Porto Alegre - RS. Foi criada entre duas irmãs biológicas e um irmão adotivo, aos quatro anos de idade Mestra Iara ficou órfã de pai. Sua mãe assume as responsabilidades de maternidade solo. Tia Lili (Verônica dos Santos) era afamada cozinheira da burguesia judia porto-alegrense, ao ficar viúva começa a buscar a possibilidades de bolsa de estudos em colégios particulares da cidade, na esperança de garantir uma educação de qualidade para suas/seus filhas/os. Ela (Tia Lili) criou um sistema de proteção pra gente, principalmente pra mim que era a mais nova, então a minha irmã do meio, com quatro anos, eu tinha quatro ela tinha oito, ela responsável por mim. Então ela que tinha que dar conta das minhas demandas. Minha mãe saia cedo de casa e só voltava de tarde, porque ela trabalhava em casa de família e depois em restaurante, e aí a noite ela vinha cheia de coisa, cheia de comida, e a nossa casa ficou sendo uma casa só de mulheres, éramos quatro mulheres!” (DEODORO, 2018) Configurando uma casa gestada num sistema matriarcal negro, tal qual muitas comunidades de terreiro são, ainda hoje, a maternidade solo exigiu de Tia Lili dedicação quase que exclusiva ao trabalho. Nesta época Mestra Iara foi BONFIM, Glória. O mais velho. YouTube. Publicado em 29 de agosto de 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sCAAPD1-3Xc> Acessado em 30 de janeiro de 2019. 103 106 contemplada com uma bolsa de estudos no Colégio Santa Inês, uma escola confessional católica, mantida pela Congregação das Irmãs Escolares de Santa Inês, no bairro Petrópolis em Porto Alegre. Gomes (2017) ressalta que pós-abolição da escravatura a comunidade negra afro-brasileira começa a visualizar a educação como meio de subverter os estereótipos criados acerca da pessoa negra, encampando a bandeira do acesso à educação como possibilidade de ascensão financeira e intelectual. Aos oito anos de idade, por volta dos anos 1963 e1964, Mestra Iara teve seus primeiros contatos com a Dança na Escola Santa Inês onde era bolsista. Iniciando as práticas corporais na Ginástica Artística, que na época era chamada de “Ginástica Educacional Feminina Moderna”, ministrada pela Professora de Educação Física e Dança, a Sra. Nilva Therezinha Dutra Pinto, importante precursora da Dança no ambiente escolar na cidade de Porto Alegre durante as décadas de 1960 e 1970. Nilva Pinto foi a primeira e única professora de Mestra Iara, sendo a responsável por seus primeiros passos nos estudos em Dança. Ainda adolescente Mestra Iara praticou Ginástica Olímpica no SOGIPA (Sociedade de Ginástica de Porto Alegre). Inserida num contexto escolar majoritariamente composto por pessoas brancas, Mestra Iara pontua que não sentia preconceito na infância e atesta que: “se tinha, e provavelmente deveria ter, eu não percebia, hoje em dia o racismo é bem mais agressivo” (DEODORO, 2018). Acerca da educação no Brasil, especificamente no período referente a segunda metade do séc. XX, o país é marcado por uma corrente teórica que intenta difundir a ideia de que o país vive uma Democracia Racial, o sistema educacional brasileiro adere e difunde esse discurso acerca da igualdade racial, mascarando o racismo em enunciados ambíguos, se recusando a discutir as condições de subalternidade e exclusão social que era legada a população negra (GOMES, 2018). O grupo coordenado por Nilva Pinto no Colégio Santa Inês caracterizava-se pela investigação em diversas culturas, segundo Deodoro (2018) a potência do grupo estava na reinterpretação das danças folclóricas do Brasil. O grupo era fortemente influenciado tanto pelo tradicionalismo gaúcho quanto pela cultura midiática da época. As músicas que estavam em evidência nas rádios locais, além de serem usadas para aquecimento e preparação corporal, serviam de tema para as 107 criações de Nilva Pinto. As performances de telenovelas e do cinema e a Ginástica Artística também influenciavam o trabalho do grupo. Dentre as coreografias inspiradas na cultura afro-brasileira destacam-se: Cavaleiro de Aruanda, Dundun e Navio Negreiro. Recorrendo a memória corporal impressa na gestualidade, em algumas entrevistas Mestra Iara relembra detalhes da primeira coreografia de inspiração afro que dançou. Intitulada ‘Cavaleiro de Aruanda’, a coreografia tinha como trilha a música ‘Cavaleiro de Aruanda’ de Tony Osanah, interpretada pelo cantor Ronnie Von104. Ela fez uma dança que era um arremedo de uma sessão de Umbanda, a gente tinha umas roupas brancas com um pano amarrado, eu a única negra no meio, mas uma coreografia bem-feita, era um arremedo de coisas que ela percebia do ritual (DEODORO, 2018) Em 1974, a professora Nilva Pinto também ministrava aulas de dança no Colégio Anchieta de Porto Alegre, as turmas se conheciam e o diferencial do grupo de Dança do Colégio Anchieta era dançar com música ao vivo, produzida pelo coral da escola. Na banda do coral havia um único jovem negro chamava-se Marco Aurélio Faria, o Maestro. O grupo do Colégio Anchieta dançava com o coral. O coral cantava. Tinha coral e banda. E na banda, tinha um menino. Ele era o único negro lá. Eu, a única negra aqui. Não deu outra né, se juntamos, né! Juntar as forças, né, instintivamente! E aí, o Marco, junto com os amigos, que é onde tinha o Paulinho, começaram a fazer essa coisa que é o AfroSul. Mas era só música. Os guris começaram a pesquisar a música negra. Naquela época, tinha uma banda africana muito conhecida, Osibisa. Eles escutavam aquele som e achavam aquele som muito familiar ao som deles. E aí eles foram participar de um festival no colégio Rosário, um festival estudantil. (DEODORO, 2008) Interessado em investigar estéticas musicais africanas e afro-diaspóricas o jovem Marco Faria reúne alguns amigos e propõe compor uma música-protesto para participarem de um festival estudantil de música que aconteceria no anfiteatro Colégio Marista do Rosário. Com o intuito de melhorar a performance para a apresentação os músicos resolveram convidar a bailarina Iara Deodoro e outros 4 bailarinos para comporem o grupo. Os versos da música “Pergunta” dizia: VON, Ronnie. Cavaleiro de Aruanda. Youtube, publicado por Vangodias em 23 de abril de 2011. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5rinxjd7o2A. Acessado em 01 de outubro de 2018. 104 108 “Quero uma resposta inteligente para acalmar o meu eu O que meu avô fez de errado para isso dar no que deu? Ás vezes passo na rua cheia e não és capaz de me olhar Nunca tentaste me ouvir ou me entender Por que tu achas que és mais? Vou esfriar a cabeça como os meus ancestrais Vou te propor um acordo onde todos seremos iguais Por que... Depois da vida tem mais e tu não sabes Depois da vida tem mais.” (Marco Farias - 1974) Iara Deodoro passa a integrar o grupo, que posteriormente recebe o nome de “Afro-Sul”. O grupo está em funcionamento ininterrupto desde novembro 1974, ano em que a jovem bailarina dá início a sua investigação artística em Dança AfroGaúcha, visibilizando corporalidades negras insubmissas, fomentando através de práticas artístico-educativas estratégias de emancipação social de pessoas negras. Mestra Iara é a percussora a produzir um aporte estético-corporal de cunho político antirracista e de(s)colonial no campo das Artes Cênicas, especificamente na Dança, na capital gaúcha. 109 AFRO-SUL ODOMODÊ – UM PEDAÇO DA ÁFRICA NO SUL “Afro-Sul semente da mesma raiz! A força da natureza em nossa fé, nossa falange!” Banda Afro-Sul105 No dia 16 de julho de 2016 eu e a bailarina Karen Tolentino conhecemos o espaço físico do Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê. Nos dirigimos juntos a Avenida Ipiranga, número 3850. Fomos sem marcar visita, impulsionados pela intuição e a vontade de conhecer pessoalmente Mestra Iara. Ao chegarmos fomos recebidos atenciosamente por Mestra Iara que vestia um avental106, parecido com os aventais usados por professores. A Mestra acabara de cuidar da copa, do pátio e dos banheiros para a festa que aconteceria no instituto naquela noite. Acompanhou-nos até o salão, contou sobre a rotina do GASMD, um pouco sobre o histórico da ISASO e nos apresentou a casa, explicitando a felicidade em nos receber. O chão do Odomodê, como é conhecida a sede do ISASO, vibra constantemente em resposta ao som dos tambores. Energia que me capturou pela sua intensidade. A alegria e vitalidade de Mestra Iara me impressionaram desde o primeiro momento. Uma Mestra da Dança Afro, tão conhecida em todo estado, cuidando o espaço de construção política e artística coletiva, tal qual cuidasse a sua casa. A arquitetura do espaço remete a um grande barracão que em noites de apresentação do Maracatu Trovão, fica lotada se assemelhando a uma quadra de ensaio de escolas de Samba. Em tardes de feijoada agrega todo mundo, o núcleo fixo do grupo de Dança auxilia na estrutura das atividades. Muitas dessas ações servem para captar os recursos necessários para manter o espaço aberto. Em véspera de espetáculo o salão se parece com um grande ateliê de carnaval, todos dedicam seu tempo aos ofícios manuais dos arremates e detalhes dos figurinos. BANDA AFRO-SUL. Mãe Preta (1988). YouTube. Publicado em 6 de abril de 2018 por Brazil in Sound. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YyEjubzb3EQ> Acessado em 30 de janeiro de 2018. 106 Certa vez questionei Mestra Iara sobre esse avental, que é adereço recorrente em sua vestimenta cotidiana no ISASO, a Mestra comentou que o mesmo modelo de avental além de ser eficiente por conta dos bolsos e do conforto, era usado por sua mãe, Tia Lili, cotidianamente na lida do trabalho doméstico. 105 110 O salão principal foi construído por volta da década de 1980. Fazia parte da infraestrutura cedida pela prefeitura municipal de Porto Alegre para a Sociedade Cultural Beneficente Escola de Samba Garotos da Orgia107. A escola foi fundada em 1983 na cidade de Porto Alegre, por um coletivo de amigos, alguns membros do GASMD. Essa agremiação é o passo inicial para a institucionalização das ações formativas já desenvolvidos pelo GASMD. Figura 18. Paulo Romeo e amigos no período de reconstrução do espaço da Escola de Samba Garotos da Orgia, atual sede do ISASO - Década de 1990 (Acervo ISASO) A Sociedade Cultural Beneficente Escola de Samba Garotos da Orgia foi criada na década de 1980 por um coletivo do qual alguns membros do GASMD faziam parte. Estando envolvida com a escola, Mestra Iara atuou como Porta-Bandeira, coreografou Alas e Comissão de Frente, e desenvolveu trabalho como diretora da SCB Escola de Samba Garotos da Orgia. 107 111 Figura 19. Apresentação de grupo musical Amigos Leais no período de reconstrução da atual sede do ISASO – Década de 90 (Acervo ISASO) Figura 20. Bailarinos ensaiando no pátio do ISASO (Acervo ISASO) 112 Figura 21. Mestra Iara fazendo as honras num evento festivo no ISASO - Década de 90 (Acervo ISASO) A Sociedade Cultural Beneficente Escola de Samba Garotos da Orgia foi criada por volta do ano de 1983, com o intuito de trabalhar temáticas relacionadas a Negritude, África e Ancestralidade Negra. A partir desse período diversas ações passam a ser viabilizadas via Pessoa Jurídica responsável pelo espaço. A organização jurídica viabilizou dentre tantas outras coisas, a construção da sede (imagens acima). As atividades da Sociedade Cultural Beneficente Escola de Samba Garotos da Orgia encerraram por volta do ano de 1998, o espaço permaneceu se fortalecendo quase que como um Quilombo Urbano, uma terreira. Segundo a noção de terreiro Muniz Sodré afirma: 113 A perspectiva africana do terreiro, ao contrário, não surgiu para excluir os parceiros do jogo (brancos, mestiços, etc.) nem para rejeitar a paisagem local, mas para permitir a prática de uma cosmovisão exilada. A cultura não se fazia aí como efeito de demonstração, mas uma reconstrução vitalista para ensejar uma continuidade geradora de identidade (SODRÉ, 1988, p. 54) Desde a década de 1980 ações de cunho artístico e cultural vem sendo desenvolvidas nesse espaço. Posso citar desde aulas de percussão - com professores e mestres de Porto Alegre e da África; aulas regulares de Dança AfroGaúcha com Mestra Iara; Domingo Cultural; Feijoadas beneficentes; dentre outras ações que conferem ao espaço um status de Incubadora Cultural108, lançada como projeto institucional pela ISASO em 2012. Figura 22. Folder de divulgação do Núcleo de Vivência em Percussão e Cultura Popular 108 Ver <https://incubadoraculturalodomode.wordpress.com/> acessado em 11 de janeiro de 2018 114 Figura 23. Ensaio do Maracatu Trovão no pátio do ISASO Um quilombo na encruzilhada entre África e Rio Grande do Sul. Um território que emana cores, sons e gestos de resistência em meio a geografia urbana. Saber mais sobre aquele espaço demandava uma consciência sobre o histórico de lutas travadas desde a década de 1970 por negras e negros em movimento que sonharam e criaram através da Arte um movimento social de luta por igualdade e justiça social. É válido contextualizar que a década de 1970 e 1980, período em que surgiu o GASMD, é marcada por lutas contra o regime político da ditadura civil militar. Trago de maneira resumida algumas referências pra contextualizar o momento histórico do movimento social negro e as movimentações artísticas negras que exerceram importante influência no cenário nacional e local na segunda metade do século XX. Na década de 1970 surge o Movimento Negro Moderno, fruto do aprendizado e das movimentações políticas vividas na primeira metade do séc. XX. Dentre elas se destacam ações urbanas marcadas por questões recorrentes do pós-abolição do Brasil. O tema educação também já era discutido no sentido de reparação frente ao longo período de escravização, entretanto o Estado permanecia insensível frente à situação da população negra brasileira. Já em 1929 era divulgado o primeiro Congresso da Mocidade Negra, que não aconteceu, entretanto, uma das pautas 115 relevante do evento era o acesso da população negra ao sistema público de educação (PEREIRA, 2011). Faz-se necessário citar a Frente Negra Brasileira (FNB), sediada em São Paulo, organizada por volta de 1930, participante ativa no debate que tensionava a construção de políticas públicas que salvaguardassem o direito de ingresso da população negra na Guarda Civil de São Paulo, consequentemente abrindo precedente para o ingresso de afrodescendentes em outros espaços do mundo do trabalho (PEREIRA, 2011). E o histórico de lutas segue, alguns grupos de agitação política através da Arte merecem ser lembrados por suas contribuições para o movimento negro num âmbito nacional. O Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944 por Abdias do Nascimento na cidade do Rio de Janeiro-RJ, inaugurou uma proposta estética e política na área das Artes da Cena ao se colocar como instancia de militância dentro e fora dos palcos, encampando propostas políticas nos campos da Educação e Cultura, fomentando uma imagem positiva acerca da Cultura Negra Afro-Brasileira (GOMES, 2017). Os clubes sociais negros, criados em várias cidades do Rio Grande do Sul durante o final do século XIX e início do século XX, foram espaços de resistência, luta e articulação negra frente as peripécias do racismo (NUNES, 2017). Um exemplo é centenário Museu Comunitário Treze de Maio, da cidade de Santa MariaRS, fundado por uma comunidade negra de funcionários da estação ferroviária da cidade. Um espaço centenário que diz muito sobre a trajetória da população negra na região central do estado do Rio Grande do Sul. Atualmente fechado por medidas preventivas da prefeitura, em decorrência da insalubridade da estrutura física. O Museu Treze, como é carinhosamente chamado, é negligenciado e marginalizado frente a agenda de políticas públicas da cidade. Por volta dos anos 1970 surge o movimento negro moderno, que se caracteriza pela afirmação de uma identidade negra como forma de negociar a integração da sociedade brasileira. Irrompe com princípios pautados por movimentos anteriores a esta década. Grupos como a Frente Negra, União dos Homens de Cor, entre outros espaços negros assumiram uma “ideologia nacionalista de integração e assimilação, deixando de fora desta mobilização a defesa das formas culturais africanas” (GUIMARÃES, 1999 apud CAMPOS, 2006). 116 Diante de toda recessão vivida no período conhecido como Ditadura Militar (1964-1988), o Ato Institucional 5 (AI-5), emitido pelo presidente Arthur da Costa e Silva no dia 13 de dezembro de 1968, marca a trajetória dessa geração, pois além de suprimir o poder legislativo, resultando na perda do mandato de parlamentares contrários a ditadura militar, o AI-5 legitimou medidas de controle a produção artística e cultural do país através de ações perpetradas pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). As características que marcavam o movimento negro durante os períodos republicano, estado novo e o início da ditadura civil militar, foram às reivindicações acerca da inclusão dos negros na sociedade de direitos por meio do acesso à educação e ao mercado de trabalho (PEREIRA, 2011), já que nessa época poucas(os) negras(os) conseguiam se alfabetizar, frequentar cursos de formação e/ou cargos de trabalho com remuneração equivalente à de uma pessoa branca na mesma função. O mercado de trabalho ainda restringia a presença negra por conta da ideologia racista que impregnava a sociedade da época. Em 1971, na cidade de Porto Alegre (RS), surge o Grupo Palmares, criado por jovens universitários na época, que propunham uma revisão da historiografia brasileira, com o intuito de desvelar a “tradição de resistência” nas inúmeras comunidades negras, a fim de recuperar a autoestima negra através do entendimento real acerca dos fatos históricos protagonizados pela comunidade negra. Fatos velados por tamanha atrocidade que remetiam. Um dos integrantes desse grupo foi grande amigo de Mestra Iara, o poeta negro e gaúcho, Oliveira Silveira (1941-2009)109. O grupo foi um dos “precursores do chamado Movimento Negro Moderno, que se caracterizou pela construção de uma nova identidade negra, referenciada em aspectos locais e globais” (GOMES, 2017, p. 108), além de ser reconhecido nacionalmente por ter encampado a proposta que promove o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra em memória a data da morte de Zumbi, líder do Quilombo de Palmares (CAMPOS, 2006). Decididos a buscar alternativas ao 13 de maio, Oliveira Silveira, Antônio Carlos Cortes, Ilmo Silva e Vilmar Nunes realizam algumas discussões na Andradas sobre a falta de outros referenciais para o negro na História Oliveira Silveira nasceu dia 16 de agosto de 1941, em Touro Passo, um distrito da cidade de Rosário do Sul-RS, estudou Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi professor da rede estadual de ensino, autor de diversos livros de poema e romance. 109 117 oficial. A partir dessa constatação, decidiram pesquisar datas que pudessem ser representativas para o povo negro. Uma revista da coleção Grandes Personagens da História, da Editora Abril, abordando a figura de Zumbi dos Palmares, chamou atenção do grupo. Seria esse um referencial forte por tratar-se de um personagem libertário e não libertado. Ao mesmo tempo, a história de resistência de Palmares era reconhecida, ainda não oficialmente, como um marco da presença negra no Brasil (CAMPOS, 2006, p. 51) Através da militância do Poeta Oliveira Silveira o Brasil passa a saber que há uma população negra no Estado com o maior número de colônias europeias do Brasil, fazendo com que a cidade de Porto Alegre - RS questione sua negritude. O ISASO é uma das referências em termos de movimento social, bem como o GASMD é um grupo percursor na pesquisa em Arte e Cultura Africana e AfroBrasileira no Dança em Porto Alegre - RS. O território promove encontros reais entre pessoas interessadas em (alguma medida) dialogar sobre as questões raciais que assolam a população negra brasileira. Encontros que, acompanhados de Dança executada em gestos Fortes-Leves cadenciados pelas contrações, presentes na técnica desenvolvida por Mestra Iara, assumem caráter político-estético. Numa definição sobre território Sodré (1989) diz: O território e suas articulações socioculturais aparecem como uma categoria dinâmica própria, e irredutível às representações que a convertem em puro receptáculo de formas e significações. Essa dimensão ínsita à produção de um pensamento que busque discernir os movimentos de circulação e contato entre grupos e em que os espaços surja não como um dado autônomo, estritamente determinante, mas como um vetor de efeitos próprios, capaz de afetar as condições para a eficácia de algumas ações humanas. Portanto aquele Território, que atualmente é uma das referências em espaço cultural negro, tem na sua atuação artística, seja nas aulas de percussão ou de dança, nos shows ou nas imersões artísticas, canal de comunicação para dialogar sobre as relações étnico-raciais e o racismo vivido diariamente pela comunidade negra do Brasil. Os diálogos acerca das questões raciais são recorrentes, ora lançados em programações institucionais, ora dentro da cozinha numa proza de horas que pode tematizar desde técnicas de preparo de uma boa feijoada à situação atual da política nacional. A prática artística de forma panfletária-poética opera na dimensão política através do gesto, seja em música ou dança, tal qual o fez o GASMAD em sua estreia no festival de música em 1974! 118 TIA LILI: MULHER NEGRA NA GESTÃO EM DANÇA “Respeita quem amassou o barro antes pra você passar!” Mestra Iara (DEODORO, 2018b) Verônica dos Santos, conhecida como Tia Lili, uma mulher negra de pele escura, mãe de Mestra Iara, foi uma famosa cozinheira na cidade de Porto Alegre, reconhecida pelos jornais locais. No entanto uma das histórias que poucos sabem sobre Tia Lili é da sua participação no Grupo Afro-Sul como produtora e incentivadora dos jovens artistas. Segundo Mestra Iara, Tia Lili foi uma apoiadora fundamental durante os primeiros anos do grupo, atuando como uma espécie de produtora-empresária. Quando os jovens músicos eram convidados a se apresentar era Tia Lili, a adulta responsável, que agenciava como empresária a contratação, acertos financeiros e espaços para ensaio do grupo. Quando ficou viúva, familiares mais distantes e a vizinhança questionavam como iria conseguir sustentar as três filhas ainda crianças. Para dar conta dessa demanda, Tia Lili negociou com a vizinha, Dona Dili, a possibilidade de cuidar de sua filha menor enquanto as outras estivessem na escola. Para manter a estrutura familiar monoparental, Tia Lili trabalhava uma média de 12 horas por dia. A necessidade de trabalhar para cumprir com as obrigações financeiras do mês sobrecarregavam Tia Lili, que necessitava de uma escola em turno integral para as filhas. Não existindo esta opção e num gesto de cuidado, Tia Lili incentivava que as filhas se envolvessem em atividades no turno inverso às aulas regulares. Convido o leitor para refletir sobre uma das dificuldades enfrentadas pela maternidade solo de uma mulher negra, trabalhadora doméstica, mãe de três meninas na década de 1960. A forma que ela teve de nos proteger, porque ela trabalhava 24 horas por dia. Você não tem noção do tanto que essa mulher trabalhava. Minha mãe era cozinheira, faxineira, empregada doméstica, trabalhou em restaurantes. Antes do meu pai falecer ela trabalhou numa firma. Ela trabalhava de faxina nessa firma. Ela sofreu um acidente, bateu com as costas e teve tuberculose. Eu tinha um ano e minha mãe ficou um ano internada num sanatório, porque naquela época as pessoas com tuberculosa morriam, nós ficamos com as tias, avós, todo mundo nos cuidava. Tinha uma vizinha que era mãe de uma garota deficiente. Ela me levava pra casa e me cuidava, tanto que por muito tempo eu chamava ela de Mãe, Mãe Dílis, porque criamos uma relação fortíssima [...] minha mãe biológica era conhecida como Tia Lili, de empregada doméstica ela chegou a ser conhecida como Quituteira cinco estrelas de Porto Alegre, requisitada pela burguesia pra 119 fazer os doces, e tudo isso ela aprendeu assim, sozinha, trabalhando na casa dos outros. Das famílias judaicas ela sabia todas as tradições. (DEODORO, 2018b) Foi doméstica, lavadeira, entre outros ofícios da lida urbana, chegando a trabalhar na casa de influentes políticos da capital gaúcha e reconhecida pelos seus dotes culinários. Era disputada entra as famílias judias instaladas no bairro do Bom Fim (antigo reduto da população negra da capital) por ser conhecedora da culinária desta cultura. Sua capacidade de negociação auxiliou o grupo a agenciar um espaço físico para apresentações e ensaios. Os jovens artistas do Grupo Afro-Sul, durante um período entre os anos de 1974 e 1978, utilizaram o Clube de Cultura localizado especificamente na Rua Ramiro Barcelos, no bairro Bom Fim em Porto Alegre. Em entrevista, a neta Edjana enfatizou A minha Avó foi uma figura! Ela tinha uma inteligência emocional absurda. Ela entendia... por exemplo, eu tenho uma tia que é médica, ela entendeu a necessidade daquela tia de trabalhar, de ajudar, porque sempre quando dava aperto era ela que ajudava nas coisas financeiras. Então ela dava apoio pra isso, pra ela trabalha e estudar. Mas ao mesmo tempo ela entendia a importância do trabalho cultural da mãe (Mestra Iara). Se minha mãe precisasse parar de trabalhar e minha avó tivesse que sustentar ela, porque isso é um ideal, ela faria! Ela vendia rifa, convidava as pessoas pras apresentações. Porque ela nunca colocou mais importância ou menos desse trabalho cultural com a medicina que minha tia fazia, ou com as aulas que minha mãe dava [...] a minha outra tia, trabalhou quando criança em casa de família, sabe? E a minha avó fazia isso, dava suporte a minha tia no consultório médico, a outra tinha que dar suporte porque ela tava no trabalho braçal. E pra minha mãe ela apoiava porque sabia que era importante pra sociedade. E nenhuma era menos ou mais importante que a outra. (SANTOS DEODORO, 2018) Atualmente Mestra Iara além de coreógrafa e bailarina também atua como gestora cultural do ISASO, fortalecendo parcerias e desenvolvendo projetos. Em 2018 a convite do Centro Municipal de Dança de Porto Alegre-RS o ISASO assumiu a parceria na gestão da EPD (Escolas Preparatória de Dança) como OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) responsável pelas contratações e pagamento de professores e coordenadores envolvidos nas EPDs. Dona Lili é uma das grandes gestoras em Dança que a história oficial desconhece. Gratidão pelo protagonismo Tia Lili! 120 Figura 24. Dona Verônica Santos (Tia Lili), homenageada em matéria do jornal Zero Hora. (Acervo ISASO) 121 ENTRE O CORPO E O TAMBOR “Mandaram o tambor se calar Povo Negro não pode deixar festa acabar! No centro qualquer canto da cidade Nosso canto forte invade Tocando Ijexá!” Três Marias110 A relação entre Corpo e Tambor é exaltada nas Danças de expressão e estética Negra, seja no ritual ou na criação artística. A polirritmia111 presente na linguagem dos toques é corporificada e traduzida em Dança. Na experiência formativa de Mestra Iara, enquanto bailarina de Dança Afro, a linguagem do tambor foi elemento fulcral. No Brasil a experiência formativa da(o) dançarina(o) de Dança Afro passa por conhecer minimamente as estruturas rítmicas básicas do tambor. Por exemplo, em cada canto do Brasil encontraremos peculiaridades tanto no formato do tambor, quanto aos toques utilizados em rituais específicos. No Maranhão, o Tambor de Crioula é uma das Danças que demarca um sotaque local, na Bahia rufam os tambores dos Blocos Afro, em Minas Gerais as Congadas e o Jongo nas regiões centro e centro-oeste do Brasil. Cada uma com sua peculiaridade no modo como se toca e no modo como se dança. Diversas metodologias de ensino das Danças Afro-Brasileiras propõe um olhar atencioso ao tambor e as suas peculiaridades. No início do trabalho de investigação e criação musical do GASMD, referências musicais tais como a Banda Osibisa, Novos Baianos, o Samba da velha guarda Porto-alegrense e o Rock que se enraizava na cultura juvenil gaúcha desde a década de 1960, auxiliaram o grupo a criar sua identidade. Mestra Iara logo após o surgimento do GASMD inicia um relacionamento amoroso com o percussionista Paulo Romeo. Será esse casamento que dará continuidade ao projeto de pesquisa e criação pelos mais de 40 anos que se segue. O casal além de encontrar afinidade ideal para o trabalho criativo, construiu um legado tanto dancístico quanto musical nesse estado. Mestre Paulo Romeu é uma TRÊS MARIAS. Não se Cala. YouTube. Publicado em 10 de fevereiro de 2017 por Vapor Sessions. Disponível em 3’41 <https://www.youtube.com/watch?v=OAWoAW-a5TE> Acessado em 30 de janeiro de 2019. 111 Uso simultâneo de duas ou mais estruturas rítmicas diferentes. 110 122 das grandes referências da Música Negra desse estado, tem em seu currículo diversas parcerias com artistas locais e nacionais, tais como o ex-ministro da cultura Gilberto Gil, além de ser um dos grandes expoentes de salvaguarda das memórias do tambor de SOPAPO. O Sopapo é considerado um instrumento percussivo Afro-Gaúcho, um tambor de grandes dimensões112, de som grave, com sonoridade e presença marcante na bateria de escolas de samba de todo estado, conhecido como o ‘Surdão Pelotense’. Segundo Maia (2008), a presença do Sopapo no carnaval gaúcho remonta a década de 1940. Permaneceu ativo até a década de 1970 quando o carnaval gaúcho passa a ser influenciado pelas referências cariocas. A “batida, a “pegada” que o Sopapo proporcionava, dava ao samba local uma característica diferente da atual. As transformações ocorridas no carnaval em todo país, principalmente movidas a partir da espetacularização do evento no Rio de Janeiro, promoveram substituição quase total do Sopapo pelo Surdo, nas escolas de Rio Grande e Pelotas, assim como nas de Porto Alegre. Consequentemente o Samba também mudou. Mas o tempo também promoveu migrações do instrumento para outros contextos. Artistas e grupos musicais se apropriaram do instrumento no final da década de 1990, ressemantizando sua sonoridade e conferindo status diferenciado ao Sopapo, como elemento identitário e ideológico. (MAIA, 2008, p. 14) Na virada do século, entre os anos 1999 - 2001, o artista negro Giba Giba, da cidade de Pelotas - RS, idealizou um festival de música chamado CABOBU, nome utilizado para batizar um ritmo (re)invetado no evento, em homenagem a três saudosos músicos negros da cidade com os quais o artista conviveu durante a infância. Foram eles: CAcaio, BOto e BUcha (MAIA, 2008). O projeto CABOBU além de promover oficinas de construção do instrumento e grandiosas performances musicais, foi disparador para o fortalecimento do Grupo Odara, um grupo de Dança Afro que surge a partir das bases da escola pública, a partir do Grupo de Dança do Colégio Municipal Pelotense. Giba Giba ao convidar a Profª. Maritza Freitas para coreografar as apresentações públicas do projeto, faz com que Maritza inicie uma caminhada que ainda hoje segue firme na cidade de Pelotas -RS, atualmente desenvolvida por suas alunas. As medidas do Sopapo são variáveis. Entretanto, há uma medida padrão que confere 50 cm para a boca superior e 30 cm para a boca inferior, cerca de um metro de altura e forma cilíndrica (MAIA, 2008). 112 123 Quando estava em Porto Alegre, o ISASO era um dos espaços de fortalecimento e criação em arte ocupado pelo artista Giba Giba, tendo o artista trabalhado em parceria com Paulo Romeo em diversos projetos. Figura 25. Sopapo, o grande tambor Afro-Gaúcho Vale ressaltar que no contexto do Batuque do Sul, expressão religiosa negra afro-gaúcha, os tambores utilizados no ritual recebem o nome de Océ e Inhã (CORRÊA, 2006), segundo o autor: A técnica de execução e construção do tambor é idêntica em todos os casos, tem corpo de lata (antigamente de tonoaria) com cerca de 60 cm de comprimento por 30 de boca, no caso dos cilíndricos; e I m, com bocas de 40 e 30 cm, na Inhã. Um couro de cabrito fecha cada extremidade. Entre os dois couros, um complicado sistema de cordas, disposto verticalmente e horizontalmente, dá-lhes tensão. A Inhã normalmente tem guizos de metal externos e internos (CORRÊA, 2006, p. 112) Sabe-se que a orquestra dos rituais do Batuque do Sul é composta, além tambores (geralmente tocados a mão, com exceção de Nações específicas que utilizam aguidavi - varetas), por agês (que consiste em uma cabaça/porongo envolvida por uma larga rede entretecida de contas, normalmente conhecidas pelo nome de “lágrimas de nossa senhora”, ambos de origem vegetal) e agogôs (campana metálica). Essa orquestra tem algumas especificidades em suas estruturas rítmicas que as diferenciam do Xangô do Pernambuco, do Candomblé e 124 da Casa da Mina do Maranhão (CORRÊA, 2006). Ritmos tais como Aguerê tocado para Odé (Orixá ligado as atividades da caça), o Boifã tocado para Oxalá (Orixás ligado a criação) e o Alujá tocado para Xangô (Orixás ligado à justiça), além dos ritmos Até, Alambá, Agueredê, Grefê, e o Olocori expressam uma identidade musical singular ao Batuque do Sul. Figura 26. Tambores e Agês do Batuque do Sul. As influências rítmicas da corporeidade desenhada pela rítmica do Batuque do Sul influenciam bastante a Dança produzida por Mestra Iara. Os bailarinos vêm de diversos contextos socioculturais e religiosos, a maioria negras(os), no entanto a Mestra diz que, mesmo em diálogo com todos esses saberes, reconhece a importância da religiosidade africana como polo irradiador da cultura negra africana no Brasil. Entretanto, conecta sua produção artística-pedagógica a ideia de espiritualidade, que segundo ela não depende da religião e sim da Fé. Segundo a Mestra, seu trabalho é marcado por uma forte inspiração nas Danças do Batuque do Sul, mas reforça: “Não uso a Dança dos Orixás, eu Danço para o homenagear os Orixás!”. 125 CORPO ABERTO AO ENCONTRO “Êêê que foi a fonte “Êêê que foi a fonte Senhora me disse que foi a fontes Senhora me disse que foi a fonte Com dois barris” Canto X113 Partindo da premissa que “a pesquisa em dança não deve afastar o pesquisador da experiência da dança” (DANTAS, 2007), o tempo dedicado a esta pesquisa contou com longas horas de leituras auxiliares no processo de revisão bibliográfica, mas contou também como momentos de muita aprendizagem ao lado da Mestra. Foram aulas de Dança Afro-Gaúcha regulares, palestras, montagem e estreia do espetáculo “Reminiscência: memórias do nosso carnaval” (2019), rodas de debate entre outros tantos eventos que acompanhei, e neles produzi reflexões pontuais sobre os aprendizados compartilhados nos encontros com Mestra Iara. No entanto, como afirmei inicialmente, escrever sobre Dança preserva em sua métrica uma complexidade que demanda um engajamento corporal e inventividade, característica de uma área que a pouco tempo vem se emancipando de outras áreas do conhecimento a fim de gerar e/ou identificar conceitos seminais, “orgânicos” da área. O Gesto mesmo ocupando zonas interdisciplinares é um desses conceitos “orgânicos” da área das Artes Cênicas. Algumas anotações sobre os encontros impulsionaram reflexões que seguem abaixo. Apresento um pouco do que vi, ouvi, dancei, estabelecendo relação entre as memórias compartilhadas e as práticas que vivenciei nos encontros cheios de aprendizado com Mestra Iara. TRÊS MARIAS. Canto X. YouTube. Publicado em 10 de fevereiro de 2017 por Vapor Sessions. Disponível em 3’41 <https://www.youtube.com/watch?v=OAWoAW-a5TE> Acessado em 30 de janeiro de 2019. 113 126 Escutar – Ver No dia 11 de dezembro de 2016, durante o I Seminário de Dança AfroBrasileira do Rio Grande do Sul, Mestra Iara ministrou uma oficina de Dança AfroGaúcha. Nessa oportunidade tive acesso às memórias e a abordagem de ensino da Dança de Mestra pela primeira vez. Sentados em um círculo, ouvi atento aquela história que tanto dizia sobre ela e que, ao mesmo tempo, tanto dizia de mim e de outras(os) dançarinas(os) negras(os) de Danças Afro-Brasileiras. Suas memórias enfatizavam a influência exercida pela Escola na escolha de uma carreira profissional nas Artes e pelo cinema na criação de sua técnica. Desde o início da fala da Mestra entendi que haviam camadas daquela história que devido ao tempo não haviam sido compartilhadas e que talvez nunca sejam. A vontade de ouvir mais aquelas memórias instigou a curiosidade acerca dos Gestos de Resistência, desenvolvidos por Mestra Iara para seguir criando e distribuindo arte, tornar-se motivo de pesquisa. Era minha segunda vez no ISASO e uma imagem que visualizei no salão, ao fundo da parede da copa/bar, remeteu a um território reconhecido da minha infância na residência de minha avó Madalena em Remanso – BA, o Caramanchão de Seu Boiadeiro, imagem de Zé Pilintra, entidade cultuada em diversas religiões de Matriz Africanas do Brasil. A imagem daquele homem negro, vestido de terno branco, símbolo da identidade mítica do malandro carioca, havia sido uma das imagens enigmáticas da minha infância frente ao desconhecido que se enunciava em Dança e Canto no Caramanchão de Seu Boiadeiro114. Sempre questionei minha avó (Madalena) porquê da bebida servida em uma cuia aos pés daquela imagem, pacientemente Yayá115 Madá me respondia: “ele bem servido tudo se encaminha”. 114 115 Terreiro de Umbanda de minha avó Maria Madalena. Yáyá: Avó 127 Considerado um ancestral africano, herdeiro dos catimbozeiros do sertão, Zé Pilintra tornou-se primeiramente conhecido no nordeste como um sábio curandeiro que usava o poder das folhas para cuidar os males do corpo e da alma e veio a tornar-se famoso malandro na zona boêmio do Rio de Janeiro. Nas três primeiras décadas do séc. XX onde virou personagem e mito. Mas é na umbanda, nos rituais para “povo de rua”, que ele encontrou seu ambiente e onde vem beber, fumar e compartilhar da vida terrena com os irmãos de fé, aconselhando-os, curando-os de doenças do corpo e da alma (LIGIÉRO, 2011, p. 123) Ao reencontrá-lo “bem servido” num pequeno altar ao fundo da copa/bar do ISASO, entendi que não só a relação de empatia política construía a minha relação com Mestra Iara e com o aquele espaço, haviam índices que indicavam o reconhecimento daquele espaço como um território de pertença negra, um quilombo negro, onde reafirmava-se além da gestualidade uma espiritualidade negra encarnada nas práticas dançantes, recriada em gestos e ritmos, rememorado ritos performáticos com Dança. Certa vez Mestra Iara reafirmou em entrevista sua relação com a espiritualidade negra, como princípio da sua prática. Eu acredito muito nessa conexão com essa espiritualidade, com esse sagrado. Eu acho que o entendimento que eu tenho com o sagrado me ajudou muito. E me ajuda, obviamente, até hoje. No início, essa coisa da natureza, de entender que esse sagrado tá ligado à natureza. E que essa natureza tá ligada a todos nós (DEODORO, 2018c). A oficina foi acompanhada pelos percussionistas Mestre Paulo Romeu (Marido de Mestra Iara) e Loua Oula Djembé (percussionista e dançarino da Costa do Marfim, residente atual de Porto Alegre - RS). A prática aconteceu em roda, contou com a participação de todos os inscritos no I Seminário de Dança Afro-Brasileira do RS e da artista negra Camila Camargo, bailarina a mais de dez anos do GASMD. Como o evento tematizava as memorias da Dança Afro-Brasileira do Rio Grande Sul, Mestra Iara compartilhou um pouco da sua história na Arte, enfatizando que a Dança Afro no Rio Grande do Sul tem se desenvolvido com um “sotaque peculiar”, um “sotaque Gaúcho”, marcado pela escrita da cultura e do contexto no corpo que Dança e pela presença de elementos estéticos - como é o caso da contração e da qualidade forte-leve - e poéticos – buscando referenciais negros próprios na história/memória do Rio Grande do Sul - (DEODORO, 2016). Entretanto, a imagem habilitada para representar a cultura gaúcha é a figura de um homem branco, geralmente montado a cavalo e pilchado. É através dessa imagem vinculada ao homem gaúcho que as mídias têm, historicamente e de maneira sutil, invisibilizado a presença da população negra. Um dos fatores que agravam essa 128 invisibilidade está vinculado a representação do negro estar sempre vinculada a escravização, sem possibilidade de narrar a sua história, reforçando o mito do “escravo submisso”. Mestra Iara reforçava que a representação da pessoa negra em seu trabalho nunca está ligada nem a ideia de submissão, nem ao coitadismo, e sim ao enfrentamento (DEODORO, 2016). Segundo Mestra Iara (2016), a influência da corporeidade que emerge na Dança Afro desse estado está ligada a influências rítmicas da musicalidade Ameríndia, assimilada pela corporeidade negra nas zonas de fronteira com países de colonização hispânica. Além de estar na fronteira com diversos países da América Latina, o Rio Grande do Sul é um estado acometido por longas jornadas de frio durante o ano, geralmente durando de quatro a cinco meses sob temperaturas abaixo de 15º C, o que acrescenta ao corpo gaúcho certa rigidez. Cabe-nos ressaltar que nas artes cênicas brasileiras, um dos estudo sobre a corporeidade gaúcha é de responsabilidade da professora-artista Inês Marocco (1997), que numa investigação sobre a corporeidade Gaúcha, especificamente do gaúcho da região oeste do Estado, acentua em sua gestualidade cotidiana às marcas forjadas pela lida no campo, tendo a criação de certas profissões como fator de forte influência. Um exemplo é o trabalho de condução do gado (Boiadeiro/Vaqueiro). Por ser um estado com extenso território rural, onde há intensa atividade na área da pecuária, gestos marcantes reconhecidos como índices desse Estado estão ligados a essa realidade. Segundo Marocco (1999, p. 90): Nestas atividades, todos os gestos são executados de maneira predominante ao nível dos membros superiores, o que contribui para o desenvolvimento do peito. Este traço físico, que os gaúchos e a literatura designam pelo tempo “peitudo”, é visto também como um signo de coragem e de masculinidade [...] encontramos, essa atitude referida, na literatura gauchesca. Esta postura dá uma dimensão espetacular suplementar ao corpo gaúcho. Marocco (1999) nos apresenta através de suas pesquisas uma riqueza de detalhes sobre essa corporeidade gaúcha, que coexiste no imaginário coletivo sobre a representação da figura do Laçador, definido em 1992 como símbolo oficial da cidade de Porto Alegre - RS e esculpido pelo artista pelotense Antônio Caringi (1905-1981), que na busca pela imagem do “gaúcho autêntico” convidou o folclorista 129 Paixão Cortes (1927-2018) como modelo para a estatua, por representar fisicamente a “autêntica” identidade do ser gaúcho. Aqui as corporeidades e referências negras foram invisibilizadas no processo de construção da imagem habilitada como referência oficial do povo gaúcho. Um estado fundado sobre o signo da escravização. Esse processo restringiu os descendentes da população negra escravizada de uma auto-imagem positiva acerca das(os) seus ancestrais. Na aula de Dança Afro-Gaúcha ministrada por Mestra Iara, a narrativa do gestual enunciava em primeiro plano uma altivez e expressividade da corporeidade negra, que em relação com os quatro elementos da natureza faz do pensamento-docorpo Dança! O gestual da Dança dos Orixás do Batuque do Sul mesclava-se a gestos que remetiam a atividades como nadar e caçar. O modo como a contração (expansão) era executado exigia da bacia/pélvis uma ampla mobilidade no pêndulo anteroposterior. Este gestual reverberava na coluna uma movimentação ondulada, serpenteada e leve que subvertia as qualidades do corpo gaúcho descritos por Marocco (1999, p. 91), para a autora: a imobilidade, o equilíbrio, o corpo centrado e o peito aberto são marcador da identidade corporal do gaúcho, pois participam juntas da postura do cavaleiro, que a autora elege como sendo uma das posturas “produto de um corpo treinado e transformado a partir de uma prática cotidiana que se constitui num treinamento. Segundo a autora (MAROCCO, 1999) elas compõem um corpo não só elegante, mas que se mostra, se faz vez, reforçando o lado teatral, exibicionista que faz parte também da identidade do gaúcho. A identidade do gaúcho tradicional, branco e altivo, difundida para todo o Brasil, contrasta com a imagem e retórica de Mestra Iara ao discorrer sobre a sua noção de gaúcho e da(o) negra(o) gaúcha(o) no RS. Além disso, escutar-ver a Mestra com o acompanhamento dos tambores e seus respectivos músicos “fala” por si só! Vi uma gaúcha negra que fez/faz história, que abriu caminhos e certamente resistiu a muitos enfrentamentos. Sua dança de quadris pendular, enraizamento ao tocar o chão com os pés e espiralidade demonstram que há mais África na dança e no Estado do Rio Grande do Sul do que se pode e quer imaginar! 130 Saber/Fazer As aulas (regulares) de Dança Afro-Gaúcha ministradas por Mestra Iara e ofertadas pelo/no ISASO contam com uma estrutura similar. Em todas elas a aprendizagem da Dança não se desvincula da ideia de criação. Os exercícios utilizados para assimilação dos Gestos são desenvolvidos simultaneamente como coreografia. No auge dos seus 64 anos de idade, Mestra Iara segue ativamente ministrando aulas e conduzindo o processo criativo dentro do GASMD. Na sua abordagem metodológica o corpo é entendido de forma integral, holística, e isso fica evidente quando Mestra Iara convoca, em um círculo no final da aula, que cada um se conecte com sua espiritualidade, com a ancestralidade que a(o) acompanha, pedindo sempre por caminhos aberto pra o restante da semana. A prática nas aulas regulares é direcionada tanto para iniciantes, quanto para bailarinas(os) experientes em Dança Afro, o que demonstra a atualidade da abordagem pedagógica em termos de inclusão, sendo coerente com sua proposta no sentido de integrar a comunidade como um todo. A aula é construída por estudos detalhados do gesto e sua relação com a rítmica, desvelando peculiaridades relativas ao Pré-Movimento. Segundo Godard (2003) o pré-movimento é uma atitude existente antes mesmo de qualquer movimento, organiza a musculatura antigravitacional e posiciona os hábitos de quem irá executar o movimento diante do saber encarnado no gesto, esse posicionar do sujeito, do corpo dançante é treinado, desabilitando o imaginário colonial a partir do gesto, do corpo, bem como desabilita ações preconceituosas frente a simbologia dos gestos, desnaturaliza certos estigmas. Segundo Dantas (1999, p. 112) “o prémovimento antecipa cada gesto e anuncia suas qualidades. E traz já um projeto, uma tomada de posição, uma postura em relação ao mundo”. Em relação aos estigmas perpetrados pelo racismo, um deles é eleger a Dança Afro como sendo uma dança composta de gestos espontâneos e/ou expressivos de todo corpo negro. Uma pergunta reproduzida a seguir, elaborada pela artistadocente-pesquisadora negra, Nadir Nóbrega Oliveira, demonstra a necessidade de questionar esses estigmas: “Será, então, que qualquer dançarino negro atuando no 131 palco em espetáculos coreográficos sem sapatilha está executando Dança Afro?” (OLIVEIRA, 1991, p. 29). Na prática artística-pedagógica de Mestra Iara entendemos que nada é espontâneo! Que há um longo preparo corporal, seja na vida ou na dança de outros aquilombamentos urbanos e rurais, como é o caso do ensino do Samba dentro das entidades e Escolas de Samba, segundo Ligiéro (2011): [...] a tradição da dança africana é tão importante e sofisticada quanto a do balé clássico e, quando desenvolvida profissionalmente, requer do dançarino as mesmas horas de treinamento. Nas comunidades negras esse treinamento é geralmente informal, acontecendo metodicamente durante os rituais e festas em que os conhecimentos e segredos são repassados de geração a geração (LIGIÉRO, 2011, p. 146) Tomando a Ginga como exemplo, Ligiéro (2011) afirma que, mesmo ela sendo uma idiossincrasia do corpo, é aprendida na relação de encontro com os velhos mestres. O aprendizado da ginga não ocorre apenas de forma mimética, ele precisa ser assimilado para que o corpo possa realmente entrar na sintonia fina do jogo, ser capaz de perceber o vocabulário de movimentos que está sendo articulado em conformidade com a música, o canto, a dança e o fraseado do parceiro que está no jogo com ele. Aqui, não se preocupa em preservar nenhuma linguagem, mas em atualizar um léxico aprendido dos mestres mais antigos com as possibilidades do ser e não ser simultaneamente. A inversão do peso do corpo em muitos movimentos contraria a gravidade humana para criar um jogo de dinâmicas impensadas e inusitadas (LIGIÉRO, 2011, p. 127) A formação de um bailarino de Dança Afro-Gaúcha demanda do corpo o entendimento de uma complexidade de gestos, tanto em sua execução quanto na sua utilização para a elaboração de um discurso coreográfico coeso, tanto no encontro com o ritmo e a musicalidade, quanto no encontro com o mito. O Espetáculo “O Sagrado Feminino: um olhar descendente da mitologia africana” (GASMD, 2016) tem sua dramaturgia baseada em diversos mitos sobre as Iyabás, a pesquisa do grupo percorreu desde os saberes orais até livros que transcrevem a mitologia africana e afro-brasileira. A partir da pesquisa, organizou em blocos as coreografias que dramatizavam em cena os Itãns (mitos). Em aula, Mestra Iara se dedica a explicar o gestual e a sua dinâmica rítmica na música, tornando a aula interessante tanto para iniciantes quanto para artistas experientes em Danças Afro-Brasileiras. No decorrer da prática, o princípio de IMITAÇÃO articula através da visão as referências para a organização do corpo. Dependendo do gestual, tal referência acionará simultaneamente mais de um centro 132 articular do corpo; cada centro com gestos específicos, expressos simultaneamente pelo corpo como camadas, tomadas como estruturas menores amalgamadas para a completude de uma estrutura dinâmica: o Gesto. Segundo Martins (2008, p. 122): Em geral, os povo africanos tem a natureza como a mais importante fonte de inspiração para a criação em suas artes plásticas, da dança, da música, de seus instrumentos musicais; enfim, das suas expressões artísticas, modernas e tradicionais, usando a imitação como meio habitual para transmitir sensações – seu intuito maior – seguidas intimamente da estética, produzindo, assim, criatividade. O ruído do passar do vento estre as folhas da copa das árvores, a luminosidade e o brilho do Sol e da Lua, as cores do céu, os ritmos das águas, todo se torna fonte de inspiração para os africanos criarem a própria dança, a música, em suma, sua produção artística. Para os povos africanos, o orgulho e a satisfação brotam da harmonia com a Natureza, com as pessoas e as divindades, na identificação das formas, texturas, luzes, cores e linhas, sem embaraçamento ou destruição, respeitando, sobretudo, o corpo, o conteúdo e os ditames cósmicos. Isso pode parecer surreal em outras culturas, mas para os povos africanos é um modo de interpretar a vida e a arte. Numa dessas inspirações para a criação em dança, uma das grandes referências da Dança Afro-Gaúcha é o gestual de Ogùn na Dança do Atã, também chamada de Aforiba. Segundo Corrêa (2006), a Dança do Atã é uma dança/mito protagonizado por Ogum e Oyá, nela conta-se “um episódio da história mítica mais famosa, em que Iansã embebeda Ogum para fugir com Xangô” (CORRÊA, 2006, p. 271). A Dança é performada no Xirê do Batuque do Sul. Este mito é inspirador no trabalho gestual de diversas(os) coreógrafas(os) negras(os) de Dança Afro-Gaúcha. Nessa dança/mito, Ogum luta com Oyá usando espadas, tal qual esgrima. Este ato representa a briga física do casal mítico (Ogum e Oyá). A movimentação de Ogum é composta por uma simultaneidade de gestos que acontecem em centros articulares diferentes e autônomos, no entanto a conexão entre elas gera uma unidade. Os pés executam uma dinâmica ternária, a troca de pés é contínua, similar ao sapateado do samba-de-roda. O pé erguido é lançado para trás no contratempo, mesmo com a troca de pés os joelhos se mantem levemente flexionados, o peso do corpo é distribuído de maneira equilibrada entre calcanhar e dedos do pé, como se fizessem carinho ao chão. Essa complexa movimentação dos membros inferiores reverbera na bacia/pélvis um pêndulo anteroposterior que marca um tempo binário contínuo. O quadril levemente flexionado projeta o tronco para frente. As mãos alternando-se simbolizam espadas, o gestual representa uma luta de esgrima. A dinâmica dos pés 133 é responsável por uma vibração do corpo e, numa relação de aterramento, gera reverberações na coluna, que de maneira disponível e flexível, ondula-se rompendo a unidade do torso. Esse conjunto de dinâmicas caracteriza o POLICENTRISMO (gestos executados simultaneamente em centros diferentes do corpo), sua HARMONIA é preservada por conta da flexibilidade assumida como característica do corpo, especialmente da coluna que produz a ação de ondulação materializada pelo ciclo contração-expansão como resposta ao impacto, vibração gerada no encontro entre chão e o pé. O ritmo é composto por diversos gestos autônomos. Organizados harmonicamente em camadas, orientam as articulações gerando a demanda de autonomia entre elas. Enquanto nos membros inferiores o gesto executado segue uma dinâmica ternária, no esqueleto axial, especialmente estimulados pela bacia/pélvis, o ritmo é binário, assim como nos braços e mãos (membros superiores). Executada de forma harmônica, esta Dança empreende no corpo a POLIRRITMIA. A HARMONIA no movimento se expressa pelo respeito aos limites do corpo, estimulando uma flexibilidade na utilização do mesmo. A Harmonia também se expressa através da consciência do corpo, utilizando a referência de gestos cotidianos como caminhar, pegar, empurrar, saltar, entre outros citados por vezes como “orgânicos”. Cabe reconhecer que o termo “orgânico” no contexto desse estudo é assumidamente composto pela artificialidade impressa no corpo através da cultura. De maneira didática, a abordagem metodológica desenvolvida por Mestra Iara no GASMD desenvolve os sete princípios básicos presente em Danças Africanas. São eles: Polirritmia, Policentrismo, Círcularidade, Dimensionalidade, Sentido Holístico, Repetição e Imitação (MARTINS, 1998; PAIXÃO, 2009). A técnica em dança desenvolvida nesse caso fomenta a formação expressiva e pressupõe uma preparação corporal/mental para o trabalho. Segundo Edjana Deodoro (DEODORO, 2018), os exercícios desenvolvidos pela técnica de Mestra Iara, além de atuarem na preparação corporal com foco na flexibilidade e fortalecimento muscular, auxiliam tanto na prevenção de lesões quanto no ganho de potência cardiovascular. Estamos falando de uma Dança que prepara o bailarino para o espetáculo no palco italiano e para atuar repetindo longas coreografias (executadas em deslocamento) no desfile de escolas de samba. 134 A aula regular de Dança Afro-Gaúcha ministrada por Mestra Iara era composta por três partes: 1) CHEGANDO NO ESPAÇO - Aquecimento - Sequências coreografadas com a contrações preparam a coluna; - Joelhos flexionados, enquanto passos dinâmicos são executados pelos pés em contato com o chão, reforçam e caracterizam o Enraizamento; - Alongamentos Básicos são desenvolvidos. 2) ESTUDO DO GESTO Estudo do corpo/gesto – nessa fase Mestra Iara propõe o estudo sob os gestos específicos das Danças Afro-Brasileiras. Selecionados os gestos, o tema de estudo é investigado pela imitação e repetição; - Decupar o gesto; - Repetição para fins de assimilação; - Estudo a partir de composição coreográfica ou de sequencias para estudo (individual ou coletivo); 3) ESPIRITUALIDADE - Círculo de notícias finais, espiritualização e despedida. A terceira parte da prática pedagógica de Mestra Iara é agenciada como rito de final da aula. Neste momento a Mestra se expressa de modo afetivo ao reverenciar os “nossos guias espirituais” (DEODORO, 2018B). A técnica desenvolvida pela Mestra rompe com o princípio da modernidade que distancia a Arte da Espiritualidade. O rito busca de maneira singela acessar tais dimensões de maneira integrativas. Através da prática, Mestra Iara reafirma as relações entre Arte e Vida, entre Arte e Espiritualidade, entre o Artista e a própria Arte. 135 DA INVESTIGAÇÃO A CRIAÇÃO DA DANÇA AFRO-GAÚCHA A vida é composta de aprendizados, desde que se nasce o corpo é educado de acordo com a cultura local. Mestra Iara ainda criança teve contato com sua Avó materna, Dona Constância, Iyalorixá na Umbanda. A Mestra lembra de forma saudosa da época em que sua avó, por motivos de saúde, passou a residir em sua casa. Na convivência, a Mestra aprendeu sobre as ervas medicinais utilizadas nos rituais, sobre os mitos e preceitos da Umbanda (DEODORO, 2018). Seu pai, Vilson dos Santos, era um grande apreciador do carnaval Porto Alegrense. Mesmo tendo falecido quando Mestra Iara tinha apenas quatro anos de idade, a Mestra recorda-se que com ele aprendeu a amar o Carnaval e todas as linguagens que se interconectam naquele espaço festivo. A vivência em Dança iniciou na Escola, por volta dos oito anos de idade. Sempre estudando com a mesma professora, Nilva Therezinha Dultra Pinto, responsável pelo ensino de Educação Física e Dança no Colégio Santa Inês, onde Mestra Iara estudou todo ensino fundamental e médio como bolsista. Nilva Pinto, como era conhecida, foi uma das professoras responsáveis por implementar o ensino da Dança na Escola entre as décadas de 1950 – 1960, formando gerações de professores de Dança. Dentre eles destaca-se Mestra Iara (GASMD) e Lúcia Brunelli (Docente do Curso de Dança na ULBRA - Canoas). Duas artistas-pesquisadoras que tem dedicado atenção especial as Dança de matrizes culturais distintas. A Mestra se destaca na pesquisa e criação em Dança Afro-Gaúcha, enquanto sua amiga e contemporânea, Lúcia Brunelli, destaca-se na pesquisa e criação em Danças Tradicionais Gaúchas, marcadas por traços estéticos oriundos da Cultura Europeia, conhecida no tradicionalismo gaúcho como grande referência na criação coreográfica de entradas e saídas apresentadas em eventos e festivais tradicionalistas gaúcho 116. No Estado do Rio Grande do Sul a Dança tem ocupado um espaço de importância ímpar na manutenção das referências culturais. O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), enquanto entidade dívida, sem fins lucrativos, tem se dedicado à preservação, resgate e desenvolvimento da Cultura Gaúcha. Para isso o MTG tem enfatizado através de ações tais como congressos, concursos e produção bibliográfica o Orgulho Gaúcho. Infelizmente, as matrizes enfatizadas pelo MTG na formação da população gaúcha são majoritariamente europeias. Rejeitando ou minimizando de certa as contribuições simbólicas em termos de dança, música e história da população negra afro-gaúcha. 116 136 No período de formação com Nilva Pinto, Mestra Iara atuou como bailarina do Grupo, além de auxiliar na produção de figurinos. Segundo a Mestra, o bom gosto e o zelo por um bom acabamento no figurino veio através das lições de sua professora. Mestra Iara nos conta que, enquanto aluna bolsista integrante de um grupo de Dança numa escola particular, frequentada pela elite porto-alegrense, uma das dificuldades enfrentadas era a falta de recursos para custear os figurinos. A solução encontrada foi indicar uma costureira que residia próximo a sua casa, a Sra. Ana Térssia. Nesse momento a porca torcia o rabo, já tinha essa dificuldade. Tinha uma costureira que era ali da minha zona, que eu indiquei pra fazer as roupas pra todo mundo, daí todo mundo fazia roupa com a Ana Térssia. E aí o que a Ana Térssia fazia? As gurias levavam o tecido, era um metro, um metro e meio, se vai usar um metro, meio metro é da Iara. Entendeu? A minha roupa saía e eu trabalhava pra ela. Eu pregava botão, eu fazia bainha. Porque daí quando ela fazia figurino pra nós, eu ia pra lá ajudava ela e a minha parte ela não cobrava. Além de aprender eu não ficava diferente de ninguém. Porque lá era assim, a roupa é assim, o modelo desenhado é tal, vai fazer onde? Na costureira tal, todo mundo, não interessa se tem dinheiro ou não, todo mundo ia naquela costureira. (DEODORO, 2018c) Essas redes de solidariedade que iam se formado, propiciaram à Mestra Iara conhecimentos que dão ao seu trabalho artístico um acabamento minucioso. No momento em que Mestra Iara finalizou o ensino médio e iniciou sua caminhada no GASMD, em busca de referências estéticas nas Danças Negras Gaúcha da época e traços culturais para pensar/fazer um Pé de Dança Afro-Gaúcho, sua professora, Nilva Pinto, a acompanhou de perto, reforçando para Iarinha (como carinhosamente sua professora lhe chama) que é necessário “ler e transformar algo em coreografia”. Nilva também foi uma das mediadoras da aproximação entre a jovem Iara e o músico Marcos Farias, o único aluno negro que atuava no coral do Colégio Anchieta, onde Nilva lecionava. A aproximação e amizade entre a jovem bailarina e Marcos fomentou o surgimento de uma história que segue a mais de 40 anos. Segundo Mestra Iara, num primeiro momento, ela, Marco Farias e os outros jovens negros começaram a refletir sobre quão difícil era entender e transmitir a cultura negra. Na realidade, a gente estava preocupado em entender, em se conhecer. Porque a gente teve toda uma infância e uma adolescência vivida no meio branco e a gente não conhecia a nossa cultura. A gente queria fazer alguma coisa em relação a nossa cultura. Então ele montou uma banda (DEODORO, 2016). Uma série de fatos produtores de conhecimento mobilizou sua Consciência acerca da sua posição enquanto mulher, negra, inserida numa sociedade racista, 137 machista e classicista. Nesse sentido a Arte foi tomada como estratégia política de luta! Desde a adolescência Mestra Iara costumava assistir os filmes do Tarzan, apresentados à tarde em canais de televisão aberta. Esperava ansiosamente por aparições das tribos africanas, representadas sempre em meio a rituais, onde a Dança e a musicalidade estavam presentes. A movimentação era reproduzida pela Mestra. Serviam de motivo para a Dança. A Imitação era um dos recursos utilizados naquele momento. Posteriormente, a Mestra identifica tais danças como referências corporais hollywoodianas, no entanto, aquele era o momento em que se visualizava um grupo formado exclusivamente por corpos negros inspirados numa africanidade. O sentimento de representatividade motivava-a querer saber mais sobre aquele modo de se movimentar. Os gestos que Mestra Iara visualizava nos filmes serviram de matéria prima para o estudo inicial. As movimentações eram assimiladas e adaptadas num processo de assimilação-transformação processados no fazer do corpo da Mestra. A imitação, utilizada como ferramenta nesse processo, fomentou a investigação pessoal da Mestra acerca da corporeidade negra africana da diáspora, já que falamos de um filme produzido e gravado nos Estados Unidos da América, provavelmente encenado por artistas negros afrodescendentes (global), e da sua própria corporeidade (local) em relação com tudo isso. Os processos de criação proporcionam o surgimento ou o incremento de uma disponibilidade corporal. No processo de criação coreográfica há acréscimo, soma, sobreposição e desdobramento. Como sugere Pareyson o artista deve estudar amorosamente a matéria, perscrutá-la até o fundo, observar-lhe o comportamento e as reações. O artista precisa interrogar a matéria prima para poder comandá-la, interpretá-la para poder domá-la, escava-la para que ela mesma sugira novas e inéditas possibilidades a tentar, segui-la para que seus desenvolvimentos naturais possam coincidir com as exigências da obra projetada (DANTAS, 1999, p. 104). Num processo inventivo de si, Mestra Iara articulou criativamente e de forma perspicaz elementos da mitologia Yorubá, alguns gestuais da Dança dos Orixás do Batuque do Sul, noções de Dança Moderna úteis a preparação corporal, noções acerca de criação coreográfica em dança - aprendidas com sua professora Nilva Pinto , princípios de movimentos reinventados em seu corpo a partir da referência dos filmes do Tarzan e a experiência vivenciada enquanto mulher negra. Nasce uma proposição artístico-pedagógica que culminou na criação de diversas coreografias e no processo de ensino em Dança Afro-Gaúcha desde 1974. 138 Segundo uma reflexão teórica proposta por Ferraz (2013) acerca do sentido do termo “Dança Negra” no Brasil, o autor aponta que essa linguagem em dança incorpora como motivo principal de sua criação a experiência da negritude. Segundo o autor: [...] o termo dança negra no Brasil parece indicar dimensões estéticas dilatadas, compondo um conceito mais elástico e caleidoscópio que avalia sua consistência a cada nova expressão associada. Desta forma, podemos conceber a dança negra como resultado de uma linguagem artística que se articula, congregando diversos estilos de dança. Essa linguagem incorpora como motivo principal de sua criação a experiencia da negritude, seja porque atualiza entre seus intérpretes os sentidos de pertencimento comunitário e suas experiencias e vivências como afrodescendentes, mas também porque encontra um impulso expressivo, simbólico ou imaginário, nas práticas corporais, saberes filosóficos e poéticas identificadas ao continente africano, as imagens construídas sobre ele, sua história e seus descendentes. As chamadas danças afro, por sua vez, estão conectadas a uma tradição e linhagem coreográfica historicamente determinada no Brasil, marcada pelas trajetórias de artistas como Mercedes Baptista, Domingos Campos, Raimundo Bispo dos Santos, entre outros (FERRAZ, 2013, p. 7-8). Dentre os fundamentos utilizados para o ensino e criação em Dança AfroGaúcha por Mestra Iara e as(os) jovens coreógrafas(os) que dão continuidade a seu trabalho de criação coreográfica no GASMD, cito a Lógica-Ecológica117. Nesta lógica explicitamente econômica, todo empreendimento criativo feito pela(o) artista pode ser requisitado e/ou atualizado, pela necessidade de integrar com coerência a dramaturgia de uma nova coreografia. Segundo a filha e bailarina-coreógrafa Edjana Deodoro: A mãe disse “não existe roubar passos”, a gente sempre ouviu isso dela (Mestra Iara). A pessoal pode imitar, ou tentar reproduzir uma sequência. Daí você pode dizer, aquela sequência ou coreografia é tua, mas o passo não é teu, até porque você também tirou de algum lugar, de alguma inspiração, e a gente costuma estudar. Mas tem passos que são desde a fundação do grupo (GASMD) da primeira coreografia que a gente ainda usa. [...] a gente dança junto a muito tempo, as vezes termina um passo e se olha e diz “encaixa aquele!”. [...] tem passos que são a nossa cara! (SANTOS DEODORO, 2018). Termo utilizado pela Profª. Dra. Luciana Palludo para referir-se a movimentações utilizadas recorrentemente de forma ecológica no trabalho coreográfico do mesmo coreógrafo. 117 139 MEMÓRIAS NA VOZ DA MESTRA “Mudei de passo, já esqueci o que eu dei. Alguém tem que lembrar. Lembrem que eu vou esquecer!” Mestra Iara (2018) Sob o signo da escuta apreensiva, que se desdobra em consciência e conhecimento, trago algumas histórias pontuais compartilhadas pela Mestra durante os encontros. Através da escuta, a abordagem metodológica deste trabalho (FalarFazendo Dança Afro) reafirmou a importância do corpo vivido, a força da trajetória pessoal no processo de criação e fortalecimento do corpo para novas caminhadas. O que esperar do treinamento corporal de uma Dança que também elenca como aquecimento um ritual onde a Mestra compartilha o aroma de perfumes como aquecimento do corpo e do espiritual. Portanto, algumas histórias que remontam essa trajetória serão rememoradas e descritas a partir da voz da protagonista desta investigação, hora precedidas por uma pequena introdução descritiva do autor, balizadas por esse instrumento de fomento do Axé: a VOZ! 140 • As descendentes de Tia Lili! O grupo é de 74. Em 76 eu já tive filha (Paola Deodoro). Continuei dançando. Da minha última, a Cacá, eu dancei num sábado e no outro sábado ganhei ela. A Didi também! [...] dancei em dezembro ela nasceu em janeiro. Mas a Paola e a Cacá só não nasceram no palco porque não deu (risos). (DEODORO, 2018D) O casamento entre Mestra Iara e o Mestre de percussão Paulo Romeu dura mais de 40 anos. O casal gerou Paola Deodoro, Edjana Deodoro e Khadija Deodoro. Todas foram bailarinas no GASMD. Atualmente Edjana Deodoro, fisioterapeuta, atua como assistente de direção, professora de Dança Afro-Gaúcha e coreógrafa do GASMD. Paola Deodoro é jornalista de moda em São Paulo - SP, onde reside a mais de 10 anos. khadija Deodoro, a filha caçula, atua como médica na cidade de Pelotas – RS, todas cresceram em meio ao cuidado das tias Isabel Santos e Verônicas Santos. Figura 27. Da esquerda pra a direita (acima) Mestra Iara, Paola Deodoro, Verônica Santos, Edjana Deodoro, (abaixo) Mikaela Santos, Khadija Deodoro e Isabel Santos (acervo familiar) . 141 • Dança pra o mundo ficar Odara! Os guris começaram a pesquisar a música negra. Naquela época tinha uma banda africana muito conhecida, Osibisa o nome da banda. Eles escutavam aquele som e achavam aquele som muito familiar ao som deles. E aí eles foram participar de um festival, um festival estudantil. E aí foram com uma letra de protesto, sabendo que não iam ganhar nada, né. Foram só pra incomodar, pra protestar. E aí disseram, “mas a gente precisa levar alguma coisa visual”. Aí foi que o Marco me chamou pra montar um grupinho pra se apresentar nesse festival. Fui eu e mais três, não... Quatro. Éramos cinco. Aí bolei a coreografia, fiz o figurino. Então desde sempre eu fui antenada nessa coisa de figurino. E a música deles era bastante de protesto, não ganhou absolutamente nada, né! Mas chamou bastante a atenção em função da letra da música e mais o show que rolou junto. (DEODORO, 2018A) Na dança éramos todos negros, sempre fomos todos negros. Mas aquilo ali era só pra aquela apresentação, mas nunca mais parou. E teve épocas, inclusive, que aí as pessoas... Pra mim, a dança já fazia parte da minha vida. Pra eles foi um momento, né, uma brincadeira. Daí saíram e eu fiquei sozinha. E eu dançava sozinha. [...] a parte da dança que se separou toda, aí ficou só eu e a banda continuou. Eu dançava quando eles iam tocar. Aí passou chamar Afro-Sul Música e Dança, que é o nome que tem até hoje. Porque no princípio, era Banda Afro-Sul. Era para aquela apresentação, mas daí, deu tão certo. (DEODORO, 2018c) De maneira intervalada os músicos do GASMD se reúnem, compõem, produzem e gravam músicas juntos. Mestre Paulo Romeu constantemente reúne amigos e produz shows e intervenções musicais no “Domingo Cultural”118, que geralmente ocorre aos domingos no ISASO. Figura 28. Mestre Paulo Romeu e Mestre Paraquedas (Eugênio Silva de Alencar)- Capa do CD da GASMD – Ancestralidade e Gerações. 118 Show organizado pelo ISASO 142 • “Filha de Yemonjá! Que seja a última vez que você Dança só!” (19791988) O Afro (GASMD) foi chamado pra se apresentar. Veio uma exposição de Salvador (BA), do Pierre Verger119 e do Carybé120, no Instituto de Artes (IAUFRGS). E aí nos convidaram pra fazer uma apresentação. Eu tava sozinha, não tinha ninguém pra dançar. Aí os guris falaram “a gente vai tocar lá e tal, e aí? com vai ser a dança?”. Eu falei “Vamo lá! Vou sozinha” e até tinha o Moa do Katendê121, de Salvador (BA), que tava aqui por Porto Alegre e tal. E também dançava. Dançava Dança dos Orixás, dançava com aquelas coisas de fogo. Era lindo. Eu achava maravilhoso, não sabia nem por onde começar, mas achava maravilhoso! E eu tava... “bora lá, eu danço sozinha”. Um dos guris, não sei se foi o Paulinho ou o Marco sugeriu pra ele dançar comigo, e ele não quis dançar comigo. Por... acredito eu, pela minha inexperiência, ou sei lá! Então pra mim ok né?! Nem me encanei, fui lá e fiz o meu sozinha. Quando termino de dançar, entra no palco, nada mais e nada menos que Pierre Verger. E se para na minha frente. Nunca tinha visto aquele homem, nem pintando nem despintado. Ele me pega pelos ombros e diz assim: “Odoya, minha mãe!” Eu sou filha de Yemanjá, como que ele sabia que eu era filha de Yemanjá?. E ele disse: “A sua benção! Que hoje seja a primeira e a última vez que a senhora dance sozinha. Vida longa para o Afro-Sul!” Era Pierre Verger, 43 anos, e isso aí que ele me disse foi e é a minha fortaleza. A minha fortaleza sempre foram as palavras de Pierre Verger. Não tem muito o que explicar! (DEODORO, 2018a) Figura 29. Mestra Iara dançando solo (Acervo ISASO). 119 Pierre Edouard Leopold Verger, ou Pierre Fatumbi Verger, (1902 – 1996) foi um fotógrafo e etnógrafo autodidata franco-brasileiro. 120 Hector Julio Páride (1911 – 1997), conhecido pelo apelido Carybé foi um pintor e jornalista argentino residente no Brasil desde 1949 até a sua morte. 121 Romualdo Rosário da Costa (1954 – 2018), conhecido como Mestre Moa do Katendê, foi um importante capoeirista e artista brasileira, ativista militante do Movimento Negro através das Artes. 143 • “Meu partner, meu companheiro, meu irmão Osmar!” Deve ter sido perto de 80 por aí, pouco antes. Porque 80 ele já tava em formação. E aí ele, num salão, coloca uma cadeira, toca uma música. Acho que era um James Brown, alguma coisa assim. Aí entra aquele negro charmoso com um casaco. Umas peles no casaco e eu olhei pra aquele guri e pensei: nossa que potencial! Daí terminou e tal. Tava lá no meio da festa e ele veio falar comigo. Perguntou se eu tinha gostado, eu disse: “ah legal! Isso tu vai amadurecendo!” E dali ele começou a me procurar. E foi assim. Nossa! Um amor da minha vida, sabe! Uma relação. Nossa Senhora! Apesar de eu ser bem mais velha do que ele, ele foi um grande parceiro! Tudo que ele falava era gritando. Gritando e se batendo. Ele me chamava de Deodoro. [...] esse guri começou a deslanchar de uma maneira, que nossa senhora. Ele foi estudar. Ele foi pra Tony122, tudo que era curso que surgia, ele fazia! [...] Ali por 84, eu era porta-bandeira da Escola de samba Garotos da Orgia, daí eu trouxe o Osmar pra sair comigo. Então assim, foi meu companheirasso de avenida e de palco. Meu parceiro de palco e de vida. [...] Desfilamos vários anos. Premiados. A gente fez loucura. E até era muito gozado. Ele era um guri e eu acompanhava as loucuras dele. Teve um ano que saímos os dois de cabeça raspada. Foi desde ali que eu nunca mais deixei o cabelo crescer. Agora só que eu tenho cabelo. Até então eu só usava o cabelo rapado, bem baixinho. E aí nesse ano, a gente saiu de cabeça raspada. Todo mundo duvidava que eu ia raspar a cabeça. Aí quando eu cheguei na avenida foi aquele “ohhh”! [...] Ele foi pra Bahia. E ele trabalhava num hotel. Nessa parte de entretenimento. E ele teve um aneurisma. Ele morreu lá. Eu fiquei sabendo da morte dele eu tava na avenida pra entrar. Quer dizer, nem me disseram. Me disseram quando eu saí. Quando eu saí da avenida que me disseram. Foi uma luta pra trazer o corpo. Figura 30. Mestra Iara (Porta-Bandeira) e seu parte Osmar (Mestre Sala) (Acervo ISASO) Tony Seitza Petzhold foi uma importante artista da Dança no cenário artístico da cidade de Porto Alegre no séc. XX. 122 144 Acompanhada por um lamento dedilhado no violão por Mestre Paulo Romeu, Mestra Iara homenageou seu partner Osmar, no espetáculo “Reminiscência: Memórias do nosso carnaval!” (2018). Osmar foi bailarino do GASMD por volta nas décadas de 1970 e 1980, auxiliando a Mestra nos processos artísticos desenvolvidos nesse período pelo grupo. A participação da Mestra como Porta-Bandeira na Escola de Samba Garotos da Orgia, de Porto Alegre - RS, nos possibilita pensar a importância do carnaval na formação do coreógrafo de Dança Afro-Brasileira. Mais uma interface dessa artista. O GASMD participa do carnaval de Porto Alegre - RS desde a década de 1980, quando Mestra Iara e Mestra Paulo Romeu, junto a outros amigos fundam a Escola de Samba Garotos da Orgia. Nessa agremiação carnavalesca a Mestra desenvolveu várias funções, desde Porta-Bandeira a Diretora. Sua inserção no carnaval é marcada pela “Ala Afro-Sul” que desfilava em várias escolas no mesmo ano. O número de convites sempre aumentava no ano subsequente. Desde meados de 1999 o grupo tem organizado o Bloco Afro Odomodê, que desfila tradicionalmente no dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra). Em 2016 o bloco foi impedido de desfilar após não ter o pedido de alvará liberado, em virtude de reclamações de perturbação do sossego público, acarretando o indeferimento do pedido feito a EPTC (Empresa Pública de Transporte e Circulação) de Porto Alegre. Esse fato explicita a dinâmica racista que ainda impera no poder público em relação as manifestações de Matrizes Negras. Uma das estratégias foi ocupar a rua, com DANÇA!123 Em 2018 o espetáculo “Reminiscência: Memórias do nosso carnaval!” foi produzido, inspirado na trajetória do grupo dentro do carnaval Porto-alegrense. Diversas coreografias foram remontadas, outras criadas especialmente para sambas enredos que o GASMD dançou na avenida. Uma coreografia que segundo Mestra Iara é um Espetáculo-Protesto! Vale considerar que, diante das inúmeras possibilidades de aprendizagem artística dentro de uma Escola de Samba, aquele espaço configura-se como um complexo espaço educativo na formação de artistas da Dança Negra Brasil afora. Ver: GRUPO AFRO-SUL DE MÚSICA E DANÇA. Intervenção Afro Sul 2016. YouTube. Publicado por Luis Flavio Tattoo em 19 de dezembro de 2016. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=Rzp9J7gwjv0> Acessado em 20 de janeiro de 2019. 123 145 ETNOGRAFIA DA PEDAGOGIA DA BAGUNÇA Segundo Gomes (2017), o movimento negro tem fomentado diversas práticas/saberes construídas nas lutas, nas ações, que vão desde as tranças do cabelo crespo à disputa por currículos pluriculturas na escolarização básica. A educação tem sido uma das armas que o GASMD tem utilizado, especificamente a Educação Corporal através do Ensino em Dança Afro-Gaúcha. Durante o período da pesquisa pude acompanhar práticas pedagógicas e as metodologias usadas por Mestra Iara no ensino da dança, na criação artística e nos demais assuntos relativos ao GASMD e ao ISASO. Para Marques (2003, p. 144): O conceito de Educação na área de dança também gera as bases para uma escolha ou prática metodológica. O que o professor pretende ensinar ao ensinar dança? A educação pode ser vista como sinônimo de adestramento ou treino, de experimentação pura e simples, ou de autodescoberta. Pode, ainda, estar voltada para a construção do conhecimento, ou para a articulação entre o conhecimento universal e o pessoal. Dependendo do que acreditamos em relação ao ensino da Dança, nossa prática metodologia é determinada – e determinante. Acompanhei, também, algumas reuniões e ensaios do GASMD antes da estreia do espetáculo “Reminiscências: memórias dos nossos carnavais” (GASMD, 2018). Identifiquei que o número de integrantes do grupo varia de acordo com o fluxo de ensaios. Atualmente no GASMD há de 15 a 25 integrantes no elenco fixo e uma rede imensa de colaboradores que atuam desde a costura do figurino à criação de alegorias quando necessário. O grupo de dançarinas(os) é composto majoritariamente por mulheres negras de todos os tons de pele, a maioria mãe, com idade entre 18 e 40 anos. Há também a presença de mulheres brancas e homens negros. Cabe ressaltar que atualmente a dinâmica de trabalho do grupo acontece aos sábados à tarde, podendo estender-se ao domingo ou a dias da semana, dependendo da demanda de ensaio. O chimarrão, bebida que representa a cultura gaúcha, sempre esteve presente nas dinâmicas coletivas do grupo. Em meio às reuniões, a dramaturgia, o figurino, os horários, a alimentação, as crianças, as aulas, a preparação corporal e outros temas são discutidos. Todas(os) as(os) bailarinas(os) participam de maneira ativa, são potencializadas(os) como propositoras(es) e criadoras(es). Esses processos configuram-se como grandes aulas, onde o tema é debatido, às vezes, até exaustão. 146 As rodas de conversa transcendem a dramaturgia e o acerto dos horários para ensaios extras. Há espaço para comunicados importantes. As crianças, geralmente filhas(os) das bailarinas do grupo, são integradas(os) ao grupo e ao espaço de maneira acolhedora, desfilam toda animação e alegria pelo salão, pela cozinha, pela sala. As(os) dançarinas(os) compartilham do sentimento de cuidado com as(os) filhas(os) das(os) companheiras(os) de dança, havendo relações de amadrinhamentos. É uma irmandade, e as crianças vieram, no meio desse bolo e foram ficando, foram ficando. Aí é lanche coletivo que tem que trazer, daí eu tenho que lembrar fulano não gosta de suco de limão, eu tenho que levar outro. Porque são 11 crianças que nós temos aqui. Então... o filho da outra eu amamentei, porque quando ele nasceu ele não conseguia pegar o mamá (leite) e eu tava amamentando o Caio, daí eu que introduzi a amamentação dele, então acaba sendo vínculos muito fortes! (SANTOS DEODORO, 2018) Uma das práticas do GASMD é a de ofertar aulas regulares de Dança AfroGaúcha para as crianças, ministrada por alguma(um) das(os) dançarinas(os) mais experientes do grupo. Essa ação desestabilizadora desde a infância propõe a ruptura com a geopolítica do conhecimento124. No grupo adulto pude constatar que os saberes construídos nas práticas formulam uma proposta metodológica particular do grupo, sendo o trabalho pedagógico do GASMD desenvolvido sob as bases do que as(os) bailarinas(os) do grupo nominam de Pedagogia da Bagunça. [...] Eu tenho meninas que hoje estão com vinte e poucos anos, que estão desde os quatro anos no grupo. Então elas dizem assim: “A nossa pedagogia é a pedagogia da bagunça”. Porque como eu não tive formação, na minha época não existia uma faculdade de Dança... Eu não conseguia uma coreografa quieta. Sozinha. Então eu monto normalmente as coreografias em aula. E, nessa montagem, de vez em quando, uma diz uma coisa, outra diz outra. E eu vou excluindo o que eu não quero, vou aproveitando o que dá pra aproveitar, mas existe todo um cronograma que se segue. De início de aula, de alongamento, de exercícios de fortalecimento muscular. A Dança Afro exige muito do nosso corpo, das pernas. (DEODORO, 2016) Segundo Sodré (2012, p. 112), a pedagogia “é doutrina de fundamentos e orientação das práticas educacionais – uma ‘teoria mista’, portanto. Alguém pode educar-se de forma heterodoxa, imitando, fazendo, criando a partir de modelos diversos”. A “Pedagogia da Bagunça” vem sendo desenvolvida de forma sistemática, Segundo Oliveira e Candau (2010, p 23) “entende-se geopolítica do conhecimento como a estratégia da modernidade europeia que afirmou suas teorias, seus conhecimentos e seus paradigmas como verdades universais e invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem conhecimentos ‘outros’”. 124 147 no entanto não-ortodoxa, na prática artística-pedagógica, na preparação do corpo e criação coreográfica do GASMD. Leva em consideração a diversidade de corpos e as identidades somáticas múltiplas, fazendo com que todas(os) participem do processo de maneira colaborativa. Para Sodré: Uma forma pedagógica realmente nova visaria de fato à recomposição da experiência comunitária em face da fragmentação social provocada pela divisão do trabalho, pela especialização das funções e pela abstração crescente do discurso científico. Além disso, se poderia esperar que essa reinvenção contribuísse para superar, por meio das tecnologias da comunicação, a separação entre o trabalho manual e o intelectual, em larga parte responsável pela dominação de classe social reproduzida pela instituição pedagógica. (SODRÉ, 2012, p. 15) Atualmente as dançarinas Taila Silva, Thaís Silva, Edjana Deodoro e o dançarino Leonardo Oliveira atuam na criação coreográfica, sempre dirigidos pela Mestra. A concepção dos espetáculos também parte de definições coletivas. Tal abordagem pedagógica tem como especificidade a relação entre Criação Artística e Ensino da Dança. As dimensões (ensino e criação), que foram dissociadas por um imaginário habilitado a entender o ensino da arte de maneira fragmentada, são subvertidas no GASMD por uma prática colaborativa democrática. A(o) dançarina(o) participar ativamente das decisões sobre o produto artístico do grupo, auxiliar no processo de criação coreográfica, ou mesmo poder se expressar enquanto sujeito criativo nas dinâmicas coletivas, é entendido como característico de abordagens emancipatórias no tocante do ensino da Dança. A Pedagogia da Bagunça tem um forte viés feminista, dialogando com a noção de Poder presente na Pedagogia Feminista para Dança desenvolvida por Suzan Stinson. Segundo a visão pedagógica de Stinson (1995, p. 84) a “autoridade está localizada em cada indivíduo, o poder deve ser compartilhado, somos todos parte de uma ‘rede de relações’, o carinho e o bem-querer são importantes” Em oposição a Colonialidade impressa no ensino e na criação em dança, o GASMD não fragmenta o trabalho da(o) dançarina(o), subvertendo a dicotomia que fragmenta a formação em dança entre dois polos, um criativo (o coreógrafo) e outro reprodutor (a bailarina). Essa noção polarizada e generificadora, naturaliza hierarquias de gênero bem como de raça e classe. Habilitando a imagem do coreógrafo como polo ativo, e a imagem da bailarina como sujeito passivo no sentido da criação. Um exemplo é o reconhecimento e ênfase dada ao nome dos coreógrafos dos balés românticos, a maioria homem. 148 Quando falo em Colonialidade no ensino e criação em Dança, lembro que o termo Colonialidade também faz alusão à invasão do imaginário dos povos colonizados, a inserção de discursos do colonizador, destruindo o imaginário do outro (QUINJANO, 2005) (OLIVEIRA; CANDAU, 2010). No caso da Dança, um imaginário que tolhe a possibilidade e a capacidade do aluno enquanto criador, chega a ser o oposto da concepção de artista enquanto sujeito empenhado no trabalho com a criação artística. Nesse sentido, a Pedagógica da Bagunça está intimamente ligada ao estímulo a identidades negras críticas, reflexivas e criativas na Dança, além de fomentar um senso democrático. Na contramão da Pedagogia da Bagunça, podemos citar as Pedagogias Autoritárias. Para Suzan W. Stinson (1995, p. 79), a Pedagogia autoritária introduz desde cedo, em meninas que iniciam aulas de dança ainda na infância (entre 3 e 8 anos), um “treinamento que as ensina a silenciar e a fazer aquilo que lhes é mandado, reforçando as expectativas culturais para ambas, crianças e mulheres”. O caos presente na bagunça estabelecida como dinâmica do GASMD borra as fronteiras entre Arte, Educação e Política, empreendendo um processo emancipatório do sujeito na/através da Dança, tornando-o um “Corpo Disponível” para a Dança. Segundo Dantas (1999, p. 108): O corpo disponível para a dança é um corpo que pode aprender, deglutindo, digerindo, absorvendo, acumulando sabedoria corporal, pois é o corpo que compreende o movimento. Compreender o movimento não é esquematizar um dado sensível numa ideia, mas realizar uma intenção, corporifica-la. Compreender o movimento é também adquirir hábitos motores. O hábito é um saber que está no corpo, que só se liberta com esforço corporal e que não pode ser traduzido por meio de uma designação objetiva. VI- GESTOS 149 Figura 31. Espetáculo "O feminino sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Douglas Freitas(GASMD, 2016) Objeto de estudo em diversas pesquisas na Arte, Educação e Antropologia, o Gesto tem ultrapassado convenções que o delimitavam a uma perspectiva funcional ou semiológica do movimento. Tanto nas práticas corporais organizadas didaticamente para o treinamento da(o) performer com fins expressivos (seja no currículo de um curso de Graduação em Dança ou na prática artística de determinado coletivo) quanto no estudo promovido no corpo em situações cotidianas 150 e funcionais da vida, é o gesto que media no corpo o saber/fazer. Nesse ponto, cabe ressaltar que há diferença entre a noção de Gesto e de Movimento segundo Hubert Godard: Movimento é aqui compreendido como um fenômeno que descreve os deslocamentos estritos dos diferentes segmentos do corpo no espaço, do mesmo modo que uma máquina produz movimento. Já gesto se inscreve na distância entre esse movimento e a tela de fundo tônico-gravitacional do indivíduo, isto é, o pré-movimento em todas as suas dimensões afetivas e projetivas. É exatamente aí que reside a expressividade do gesto humano, expressividade que a máquina não possui (GODARD, 2013, p. 17) Partindo, pois, da noção de Gesto proposta por Godard, chego ao entendimento de que ele é responsável pela produção do conhecimento que se inscreve no espaço produzido pelo corpo, pois desvela no fazer o dizer desse corpo. Tal espacialidade produzida pelo gesto expressivo do corpo dançante promove descentramentos de acordo com Sodré (1989, p. 123): [...] a dança é um jogo de descentramento, uma reelaboração simbólica do espaço. Considere-se a dança do escravo. Movimentando-se, no espaço do senhor, ele deixa momentaneamente de se perceber como puro escravo e refaz o espaço circundante nos termos de uma outra orientação, que tem a ver com um sistema simbólico diferente do manejado pelo senhor e que rompe limites fixados pela territorialização dominante. Esse movimento de descentramento também é promovido pelo Gesto, é através dele que o corpo produz e é produzido culturalmente, sendo recorrentemente usado justamente como ferramenta de escrita da cultura, portanto do saber, como instrumento de poder na (trans)formação do corpo. Em performances ritualísticas das diversas expressões religiosas de matriz africana (Umbanda, Batuque do Sul, Candomblé, Catimbó, Tambor de Mina, entre outros), são os Gestos organizados coreograficamente que desempenham o papel crucial na salvaguarda da memória. Isso porque é através da oralidade articuladora do Gesto e da Voz que os arquivos corporais negros, africanos e afro-brasileiros resistiram/resistem aos processos perpetrados pela Colonialidade que também se imprime na Dança. Segundo Sodré (1989), o cerceamento da liberdade utilizado como dispositivo de dominação jamais conseguiu acabar por inteiro com as transversalidades ou com as peculiares das dinâmicas culturais africanas. Um dos exemplos dessa realidade se dá Dança. 151 A dança gera espaço próprio, abolindo provisoriamente as diferenças com o tempo, porque não é algo especializado, mas espacializante, ou seja, ávido e aberto à apropriação do mundo, ampliador da presença humana, desestruturador do espaço/tempo necessariamente instituídos pelo grupo como contenção do livre movimento das forças (SODRÉ, 1989, p. 123) No contexto da Cultura Gaúcha, composta por uma população pluriétnica, há uma projeção pública, apenas artefatos culturais e imagens que relacionam o Rio Grande do Sul aos patrimônios euro-descendentes eleitos como símbolos oficiais (TRIUMPHO, 1991), dentre eles a exaltação às danças cuja gestualidade é marcada por interferências éticas, morais e estéticas das culturas de origem europeia. À Dança Afro-Gaúcha, que desde o seu surgimento tem como objetivo visibilizar a presença negra no Estado (DEODORO, 2018), resta a estratégia de resistência, (re)inventando seu modo de ser/fazer Dança Negra. Os gestos que se evidenciam na prática pedagógica e criativa de Mestra Iara rememoram, em suas diferentes nuances, as influências dos quatro elementos da natureza e das mitologias dos Orixás, apontando a Dança como instrumento potente no processo de reconhecimento da pertença étnico-racial e de luta antirracista. A (re)elaboração do gestual presente no culto aos Orixás para o espaço cênico leva dos saberes das terreiras de batuque diversas visualidades (simbologias, roupas, inúmeros aromas, turbantes, adereços, mitos, o Axé - como força de realização (SODRÉ, 1989) e outros elementos de matriz africana que passam a instituir o arsenal de referências estéticas e poéticas na produção em Dança do GASMD. Mestra Iara conta que recorrentemente é confundida como Iyalorixá125 quando imersa no processo de produção dos figurinos do grupo, pois na composição desses figurinos sempre há a necessidade de acessar lojas de artigos religiosos (DEODORO, 2018). Mesmo conhecendo a simbologia deles, Mestra Iara faz apenas da Dança sua Oração, não ritualizando nenhum dos artigos que vão à cena. 125 Líder espiritual feminina responsável pelo Axé do terreiro. 152 Terreiro é terreiro e palco é palco. Eu acho que, por isso, eu sempre me dei bem com essas danças para os orixás. Porque eu não digo que é dança dos orixás, é para os orixás. E sempre fazendo com que quem dança comigo entenda o que tá dançando e o respeito que tem que ter por aquilo ali. “Eu não posso dançar eles, eu posso dançar para eles”. E aí, nesse dançar para eles, eu posso, sim, trazer trejeitos, trazer uma vestimenta deles, mas para homenagear, não pra dizer que eu sou, que, no caso, eu sou eles. Tu entendeu? Porque o sagrado, a partir do momento que saiu do terreiro, ele já deixou de ser sagrado (DEODORO, 2018c) Em uma das primeiras publicações sobre Dança Afro no/do Brasil, no livro “Dança Afro – Sincretismo de movimento”, a autora Prof. Dra. Nadir Nóbrega Oliveira constatava que muito do que se produzia com rótulo de Dança Afro em Salvador-BA, nas décadas de 80 e 90, sempre tinha como pano de fundo as Danças dos Orixás. Ela questionava: Diante do grande contingente de pessoas trazidas da África para cá, portadoras de uma vasta riqueza cultural, só veio junto a Dança religiosa? Por que só se dão aulas ou só se montam espetáculos baseados nas Danças de Orixá? (OLIVEIRA, 1991, p. 56) Certamente, o patrimônio gestual de matriz africana que influencia a Dança Afro-Brasileira em sua dimensão artístico-pedagógica não se limita à repetição do gestual da Dança dos Orixás. Segundo Mestra Iara (2018), é necessário ter conhecimento acerca da mitologia e da dramaturgia do movimento, para que haja coesão no processo de criação coreográfica. Num olhar atento aos gestos recorrentes no trabalho artístico-pedagógico desenvolvido por Mestra Iara, torna-se importante reconhecer que, além da inspiração no Jongo, no Samba, na expressividade da Axé-Music e na Dança dos Orixás, tal produção em Dança caracteriza-se como uma produção de si, ou seja, dela mesma como ser dançante no mundo, produtora de um modo particular de fazer/saber Dança. Zenicola (2011) discorre sobre a importância do “Estilo Próprio” do artista da Dança Afro ou do grupo, entendendo-o como especificidade constitutiva do que é próprio e construído no corpo do indivíduo ou do coletivo. Se ampliadas as possibilidades de interpretação da expressão, o “Estilo Próprio” passa a ser de fato uma das características dos grupos de Dança Afro-Brasileira dado a diversidade nos modos de saber-fazer Dança Afro-Brasileira. Para a autora: 153 [...] a relação grupo/indivíduo é permeada por níveis hierárquicos de prestígio, baseada na performance da dança. A qualidade da sua performance é a moeda corrente do dançarino no grupo, daí a importância de apresentar um estilo que o identifique e o alavanque no espaço social. Ao assumir os conhecimentos ensinados, o bailarino vai progressivamente estabelecendo uma série de adaptações desta nova técnica ao seu corpo, às suas habilidades e preferências e, gradativamente, estabelece uma seleção do que será o seu estilo, sua interpretação pessoal do aprendido – o resto virá da prática. O somatório da seleção destas qualidades corporais fundamenta a construção do chamado ‘estilo’ do ato de dançar. Entendemos estilo como uma especificidade do que é próprio, onde o que é construído no corpo não é facilmente transferido para outro corpo, é a marca daquele indivíduo no grupo (ZENICOLA, 2011, p. 87). Em entrevista, Mestra Iara mencionou que foram os filmes do Tarzan uma das grandes referências que marcaram o início de sua pesquisa artística sobre as Danças Africanas. Tais filmes eram exibidos recorrentemente na televisão aberta quando ela ainda era adolescente. Mestra Iara relata que “sempre tinha uma tribo africana que aparecia nos filmes do Tarzan, e eles sempre dançavam. Bom, era a minha escola... Era de onde eu tirava esses movimentos” (DEODORO, 2016, p. 52). Na busca por formas africanas de pensar/fazer Arte Negra no Rio Grande do Sul, Mestra Iara criou, a partir das nuances das músicas, dos filmes, dos poemas do poeta e amigo Oliveira Silveira (1941-2009), influenciada pela supervisão de sua Professora Nilva Pinto, uma Dança que imprimia seu “Estilo Próprio”. Uma Dança Negra, fundada sob uma teatralidade diferenciada das ações desenvolvidas por grupos que pensavam/faziam Dança Afro na década de 70 em Porto Alegre-RS. Dentre eles, o Grupo Palmares, coordenado por Oliveira Silvera, e o Grupo de Dança Afro, coordenado pelo saudoso alabê126 gaúcho Mestre Borel127. O GASMD, assim, imprimia como sua marca a possibilidade criativa, que desenvolvia um entendimento particular de criação coreográfica. O diálogo intuitivo com os ritmos conduzidos pelo som do tambor foi um dos procedimentos criativos recorrentes no início da trajetória de Mestra Iara como coreógrafa do GASMD, quando utilizou saberes coreográficos adquiridos no período em que atuou como bailarina no Colégio Santa Inês. Ela relatou que nos últimos Alabê: cargo masculino em religiões de matriz africana ligadas à cultura yorubana. Dentro do ritual são os alabês os responsáveis pelo toque dos tambores e pela entonação dos canticos em louvor aos Orixás. 127 Walter Calixto Ferreira (1924-2011), alabê do Batuque do Sul, fluente na língua Yorubá, também conhecido como mestre Borel, tornou-se uma das grandes personalidades do Batuque do Sul, sendo homenageado em diversos filmes e livros. Mais informações ver: < https://projetobercodobatuquers.wordpress.com/pesquisa/sobre-borel/> acessado em 23 de janeiro de 2018. 126 154 anos tinha iniciado processos criativos em Dança , inspirando-se nas cenas políticas do cotidiano, tal como as que refletem as diversas interfaces da mulher negra apresentadas no espetáculo “O Feminino Sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana” (2016). Nele, a mestra recorre à mitologia yorubana da Iyabás (mulheres) para (re)criar diversas situações míticas na cena. Segundo a coreógrafa, sempre há companhia durante o processo de criação. Em uma brincadeira interna do grupo, diz-se que “Chico” é o companheiro de Mestra Iara nas criações, pois os trabalhos dela contam com uma perspicácia no que diz respeito à intuição em momentos inusitados. Chico é o Chico Xavier. Quando eu tenho que montar algo e as gurias: “e aí, já tem alguma coisa?”. Eu digo: “não, o Chico não veio. Não chegou”. Quando o Chico vem é quando me concentrar, me centrar. E aí a música me traz. Ou, às vezes, não. Às vezes, eu tenho a coisa e procuro a música. Por muito tempo a gente trabalhou com música ao vivo. Com isso, destaco que o pensar coreográfico de mestra Iara é traduzido através de metáforas em longas escritas que merecem ser analisadas mais profundamente em outro momento, pois esses registros marcam os modos de organização pessoal da artista no processo criativo. A poética das coreografias do GASMD sempre esteve relacionada à história e cultura da população negra afrobrasileira, às suas questões políticas, artísticas, mito-poéticas. Dessa forma, o grupo sempre se propôs a romper, através do Gesto, com as dramaturgias que estigmatizavam o corpo negro como submisso, tal qual é reproduzido pelo mito da democracia racial. Tais dramaturgias, desenvolvidas e performadas pelo GASMD, alinhavam-se com a estratégia política do movimento negro da época (1970), movimento esse que rompia com a “ideologia nacionalista de integração e assimilação” encampada pelo Movimento negro desde o estado novo (GUIMARÃES, 1999 apud CAMPOS, 2006). Como todo trabalho novo, o trabalho artístico de Mestra Iara também recebeu críticas. Foi tachado como “diferente” de uma maneira pejorativa, não sendo absorvido pela cena artística local, infelizmente, ainda muito marcada pelas referências europeias nos modos de pensar/fazer arte. Durante muito tempo o espaço de apresentação do trabalho artístico foi construído na relação com 155 parceiros de militância, a exemplo da centenária Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora128 e com Escolas de Samba da capital e região metropolitana. Mestra Iara despontou como uma das primeiras artistas a produzir um aporte estético-corporal de cunho político, antirracista e decolonial no campo das Artes Cênicas no contexto gaúcho, especificamente na Dança. Sua produção intelectual no saber/fazer estético-corpóreo, portanto performativo, imprime no GASMD uma identidade enunciada no acento somático de sua Dança, ou seja, mesmo inspirada na Dança dos Orixás do Batuque do Sul a Mestra não se limita aos gestuais do rito, acrescentando à estética do GASMD características de sua identidade artística. Durante os processos de criação, a Mestra não invisibiliza os artistas envolvidos (bailarinas(os), figurinistas(os), percursionistas, entre outros), possibilitando a diversidade do pensar/fazer na dança, através das marcas identitárias e gestuais desses artistas. Num relato sobre o processo de criação do figurino, para uma performance da bailarina Maria da Graça, Mestra Iara relatou que em diálogo com um ex-dançarino e atual figurinista do grupo, foi preciso pontuar as características da identidade da bailarina para que chegassem a um quociente comum acerca dos adereços. Por exemplo, nos Orixás, a Oxum. Ele pensou numa Oxum. Meu deus, era divina, maravilhosa. Mas daí eu disse pra ele: “não te esquece que a Oxum é a Gracinha. E a Gracinha é toda menos, sabe”. Aí ele mudou o desenho e deixou a cara dela. (DEODORO, 2018a) A importância de refletir sobre o acento somático que funda uma identidade na Dança, totalmente balizada por movimentos cíclicos de imersão e emersão nos arquivos gestuais da Cultura Negra, como é o caso de Mestra Iara, sinaliza que a materialidade potente para o trabalho criativo em Dança também está no corpo do intérprete, já que o gesto será produzido e produtor daquele corpo. Nesse caso, torna-se necessário que se revezem os saberes da tradição e da inventividade própria da criação artística no sentido de potencializar o corpo dançante. 128 Centenário clube negro da cidade de Porto Alegre-RS 156 Quando eu faço alguma coisa, normalmente é no coletivo né, a gente trabalha nesse coletivo, então é uma coisa que não tem uma figura. A não ser com essa questão da mitologia, dos orixás e tudo mais, que aí tem uma figura central. Mas eu sempre vejo na dança, a dança me diz quem tu é, o teu movimento me diz pra que lado eu posso te pensar, entendeu? A briga dos orixás, tipo “ai eu quero ser Iansã” não adianta (DEODORO, 2018) No artigo “A Dança segundo a perspectiva antropológica”, a autora Adrienne L. Kaeppler (2013, p. 98) reafirma que, a partir do ponto de vista da Nova Etnografia, uma descrição justa de uma cultura deveria dar atenção igualitária à Dança. Certamente, em diversas sociedades a Dança tem grande importância como expressão comunicativa acerca da cultura local. Em concordância com a análise da autora, discorro sobre movimentos que anunciam traços específicos enfatizados na Dança produzida por Mestra Iara, tendo como referência, para descrição e reflexão, a prática pedagógica nas aulas de Dança Afro ministradas por ela no curso regular que aconteceu durante o ano de 2018 no ISASO. Sigo também algumas pistas encontradas no modo de pensar/fazer dança a partir das corporeidades encontradas nas criações coreográficas e nos exercícios de aula de Mestra Iara. Sinalizo a Contração-Expansão do esqueleto axial com ênfase na bacia/quadril e a característica Forte-Leve presente no gestual dos membros superiores como bases estruturantes da Técnica em Dança Afro-Gaúcha desenvolvida pela Mestra desde 1974. 157 O que eu já tinha dançado me servia de base pra Dança. Agora moldar esse corpo. Porque eu tinha feito duas coreografias ditas “Afro”, eu acho que não me satisfazia aquilo ali. O meu corpo não se satisfez, por isso que eu falo dessa ancestralidade que te posiciona. Porque são informações que vieram, que não eram informações erradas, mas não me satisfizeram. Elas não me convenceram como Afro, mas eu acho que vinha muito da minha consciência como negra. Que antes eu não tinha, eu tinha consciência que eu era negra, mas não tinha consciência do que significava isso, eu ser Negra! E na Dança muito menos! Então nesse período que eu não tinha consciência da importância dessa Dança Negra ok! Eu fiz. Eu era um corpo que fazia o que mandava. Quando eu passo pra o outro lado, eu começo analisar aquilo que eu fiz, e aí eu vi que me faltavam coisas. Até porque eu estava na época da inquietação, aí eu já estava começando a buscar essa minha identidade. Dentro dessa minha inquietação tudo que eu já tinha feito até ali em termos de Dança Afro não tava correspondendo, não me satisfazia. Aí então eu comecei a mergulhar, mas assim um mergulho raso, não tinha território pra isso, eu não tinha material, eu não tinha nada pra realmente buscar. Aí então realmente o que aconteceu? O Tarzar! Uma coisa que eu assistia a horas, a anos! E nunca tinha me chamado atenção, então de repente num estalo eu comecei a enxergar uma coisa que eu já via que eu comecei a enchegar, e nesse enchegar eu comecei a ver movimento, e esse movimento começava a fazer sentido. Aí eu comecei a reproduzir esse movimento. Na busca pra pegar esse movimento eu começo a modificar eles, eu trago uma outra forma, e não foi de forma consciente. Meu corpo começou a trazer aquele movimento que eu enxergava e reproduzia automaticamente o meu corpo também modificava esse movimento pra uma forma que aí eu chamo de nosso sotaque do sul. Meu corpo ficava confortável fazendo aquele movimento de um outro jeito. Eu comecei a criar! O movimento começou a ficar mais confortável pra mim a no momento que eu fui adaptando ele, adaptando, adaptando... Vemos no depoimento de Mestra Iara o quanto as mídias, para ela um filme americano como Tarzan (1966-1968), no guarda-chuva do mainstream de Hollywood, e a cultura pop são capazes de influenciar os artistas de modo paradoxal. Algo aparentemente banalizado, em segundo plano, que são as “comunidades negras africanas” (na verdade americanas), que dançam no filme do herói branco Tarzan foram capazes de possibilitar algumas inspirações e reflexões para a Mestra. O que poderia parecer nos dias de hoje ingênuo, sem mérito, Mestra Iara conta com humor. Analisando que nos anos 1960, durante a juventude de Mestra Iara, tanto a televisão quanto os filmes (em sua maior parte americanos) eram grandes novidades de seu tempo, podemos perceber o quanto a Mestra, uma artista atenta ao seu tempo e a sua geração, influenciada pelas mídias, soube captar as sutilezas que estavam em “segundo plano”, onde a Mestra Iara se identificava como artista. No Brasil pouco se sabe, mas Mercedes Baptista além de ser a primeira artista a coreografar para Escolas de Samba, também coreografou em uma das novelas mais populares e internacionalmente difundida, intitulada Escrava Isaura 158 (SANTOS, 2014), além de importantes filmes, dentre eles Pacto de Sangue e Chica da Silva. Alguns sem estar na ficha técnica, pois na época à apresentação corporal na dramaturgia da televisão e cinema brasileiros era novidade. Nesse sentido, o fato da bailarina Iara Deodoro ter dançado em eventos, durante a década de 1970 na cidade de Porto Alegre - RS, que contavam com a presença de artistas da importância do antropólogo e fotógrafo Pierre Verger, do Mestre de capoeira Moa do Katende (in memoriam) e do artista Carybé, confirma o prestígio de Iara Deodoro no nicho de reconhecidos artistas dentro da Cultura Negra, ainda que naquela época ,e mesmo hoje, ela teve/tenha poucas oportunidades de ocupar espaços renomados de Arte como o Teatro São Pedro, por onde boa parte dos coreógrafos gaúchos de sua geração já passaram. Entretanto, pesquisadores e gestores estão atentos a produção qualificada e de resistência que Mestra Iara vem desenvolvendo nesses mais de 40 anos. No ano de 2003 a Mestra recebeu como reconhecimento público pelo conjunto da obra, o Prêmio Açorianos de Dança, por iniciativa do gestor cultural Airton Tomazzoni, e em 2015 foi homenageada como “personalidade do ano” pelas ações de preservação da cultura afro-brasileira. Na primeira edição do livro Escritos da Dança (2016), editado em Porto Alegre - RS, a pesquisadora-professora-bailarina Mônica Dantas (UFRGS) transcreveu uma longa entrevista com Mestra Iara. Esses exemplos pontuais também demonstram o prestígio da Mestra como figura reconhecida entre os artistas/pesquisadores/gestores, ou seja, “artista” entre os artistas. Contudo, ainda há muitos espaços para conquistar e resistir. Essa dissertação busca contribuir com isso. Que cada vez mais no Brasil possamos pesquisar Mestras como Iara Deodoro, minimizando assim o foco de produção acadêmica sobre coreógrafos do hemisfério Norte que, ainda que tenham muita importância e qualidade, inflacionam os bancos de dados das pesquisas acadêmicas brasileiras. 159 CONTRAÇÃO Aqui em Porto alegre eu sou conhecida como a da “Contração”, porque pra mim a Contração é fundamental pra dançar. Que me parece que... não é tão importante pra outras(danças). Eu acredito, talvez eu não consiga explicar melhor esse movimento porque não tenho formação, mas quando eu olho uma pessoa dançando. (DEODORO, 2018) A Contração é tomada como fundamento marcante na estética do GASMD e na prática pedagógica de Mestra Iara. Para ela, a contração é um princípio inerente às Danças de Matrizes Africanas e difere da contração presente na Dança Moderna Americana de Martha Graham129 e Merce Cunnhigham130 ou mesmo da Dança AfroBaiana. A Contração que encontrei na Dança Afro-Gaúcha, mesmo sendo gerada no centro do corpo e reverberando na flexão e extensão do tronco, mobilizando a coluna vertebral desde a primeira vértebra Atlas (responsável pelo encaixe com o forame magno do occiptal) até o Cóccix, põe de fato em ênfase a movimentação pélvica, tão retalhada e ausente das Danças da “Tradição Gaúcha”, demarcando aí um traço estético que difere tais corporeidades. Martha Graham (1894-1991) foi uma dançarina e coreógrafa estadunidense que revolucionou a história da dança moderna. 130 Mercier Philip Cunningham (1919-2009), mais conhecido como Merce Cunningham, foi um bailarino e coreógrafo norte-americano. Possuía como características marcantes de sua dança, o caráter experimental e estilo vanguardista. 129 160 Figura 32 – Bailarinas: Edjana Deodoro, Leciane ferreira, Gisela Mendonça, Carla Souza. Na imagem, bailarinas(os) do GASMD ensaiando sob a direção de Mestra Iara (Arquivo ISASO). Na tradução do latim, a palavra Pélvis significa bacia, concha, tigela. Provavelmente, o termo foi assimilado para referir-se a essa região do corpo por conta do formato elíptico, tal qual uma Bacia. Esta região é formada por uma fusão ossos (Ílio, Ísquio e Púbis), conhecidos como Ossos do Quadril, que, junto ao sacro e ao cóccix, estruturam a região chamada Cintura Pélvica. Os ossos do quadril articulam-se ao Esqueleto Axial por via da juntura sacrilíaca, que conectada o sacro (penúltima vertebra da Coluna) a porção posterior do íleo. A Cintura Pélvica é composta por uma grande cadeia muscular, que arquiteta de modo profundo forças necessárias para manter o corpo equilibrado na vertical, na posição bípede. Nessa região estão situados os órgãos genitais, reprodutores, digestivos e excretores. Configura-se o que ousaria chamar de campo irradiador de potência de vida. Para Luz (2008, p. 71): Na dinâmica do ciclo vital, o já era combinasse com o porvir, o passado com o presente-futuro, o poente com o nascente, o por de trás e o pela frente. No mistério da fecundação e da gestação, estão inclusos os processos de ressarcimento e restituições De forma ambígua, essa região é protagonista em letras e gestos de músicas que embalam desde práticas corporais afro-brasileira, consideradas “tradicionais”, como o Samba de Roda do recôncavo baiano, a expressões dancísticas contemporâneas, como é o caso do Funk carioca. Tais expressões caracterizam através de seus gestuais um ethos negro, redimensionando peculiaridades relacionadas à identidade cultural africana, brasileira e afro-brasileira. Na África, é pela dança que os antigos ensinam muito cedo às moças como jogar a bacia para a frente, independente das coxas e do abdômen, e como também não ter uma bacia rígida, dura, recuada, retraída. Sabe-se que o bloqueio da bacia traz péssimas consequências para os casais, situações que cria frustrações e complexos de todas as ordens (TIEROU, apud SODRÉ, 1989, p. 125) Durante a década de 1990, muitos compositores dedicaram-se a citar a pélvis de forma subliminar, criando sentido ambíguo, às vezes apelativo, pois a música recorria a uma movimentação pélvica como meio de entreter os espectadores, ajudando, com isso, a emplacar a venda de CD’s, DVD’s e Show’s. Grande parte dos Brasileiros com faixa etária entre 25 e 30 anos lembra de referências nesse sentido, como a Globeleza Valeria Valenssa, a bailarina Carla Peres e a artista Gretchen. Canções do pagode baiano (uma expressão musical e 161 dancística que se desdobra a partir da rítmica do Samba de Roda do recôncavo baiano) como o “A dança do Bumbum”131, “Boquinha da Garrafa”132 e o hit “Requebra”133, da Banda Olodum, - uma das grandes referências musicais baianas no ritmo SambaReggae134 - marcaram gerações por meio de um gestual que enfatizava o quadril. Certas obras musicais, além de objetificarem o corpo das bailarinas, tornando-o produto e marca registrada do grupo musical, monetizavam o gestual marcado pela sensualidade nele presente. Sob a lente das câmeras e maquiada por uma edição coorporativa que visava lucro-audiência com o corpo feminino, a movimentação ganhava uma conotação hipersexualizada a partir do jogo criado entre o que havia de subliminar na letra das músicas, o gestual e a filmagem. Num discurso crítico frente ao racismo e ao sexismo que coisifica o corpo da mulher negra no contexto brasileiro, a escritora negra Lélia Gonzalez135 (1984) apresenta com detalhes o fatídico mito da democracia racial impresso na performance carnavalesca da Passista da Escola de Samba. Segundo a autora: As escolas vão desfilar suas cores duplas ou triplas [...]. Espetáculo feérico, dizem os locutores; plumas, paetês, muito luxo e riqueza. Imperadores, uiaras, bandeirantes e pioneiros, princesas, orixás, bichos, bichas, machos, fêmeas, salomões e rainhas de sabá, marajá, escravos, soldados, sóis e luas, baianas, ciganas, havaianas. Todos sob o comando do ritmo das baterias e do rebolado das mulatas que, dizem alguns, não estão no mapa. “olha aquele grupo do carro alegórico, ali. Que coxas, rapaz”, “Veja aquela passista que vem vindo; que bunda, meu Deus! Olha como ela mexe a barriguinha. Vai ser gostosa assim lá em casa, tesão”, “Elas me deixam louco, bicho”. E lá vão elas, rebolantes e sorridentes rainhas, distribuindo beijos como se fossem bênçãos para seus ávidos súditos nesse feérico espetáculo (GONZALEZ, 1984, p. 227). É através da análise desse (performance) rito que Lélia Gonzalez põe em pauta a sua crítica acerca do mito da democracia racial, investigando os estereótipos É O TCHAN. A Dança do Bumbum 1996 – Xuxa Hits. Youtube, publicado por Fita Velha em 13 de dezembro de 2012. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=a9ygJ48IxPY> Acessado em 16 de janeiro de 2019. 132 CIA DO PAGODE. Na boquinha da garrafa. Youtube, publicado por Francisco Firmino Firmino em 26 de março de 2017. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=8bn4_pzYuls> Acessado em 15 de janeiro de 2019. 133 OLODUM. Requebra. Youtube, publicado por Músicas Antigas em 16 de março de 2013. Disponível em < https://www.youtube.com/results?search_query=requebra+olodum> Acessado em 16 de janeiro de 2018. 134 O samba-reggae é um ritmo musical que funde bases musicais do Reggae jamaicano, do Cabula (Toque ritualístico do Candomblé Congo-Angola. Compõe a base rítmica do Samba de Roda e algumas variações dos toques de Candomblé Ketu, tais como o Quebra-Brato de Yiá. 135 Lélia d'Almeida Gonzalez (1935-1994) foi uma intelectual negra, atuou nos campos da política, educação e filosofia, ficando conhecida como importante professora e antropóloga brasileira. 131 162 negativos que recaem sobre a performance carnavalesca da mulher negra a fim de visibilizar o impacto da violência dessas representações negativas na sociedade brasileira, entendendo-as como tributárias da articulação entre racismo e sexismo. Sobre o rito ela diz: É nesse momento instante que a “mulata deusa do meu samba”, “que passa com graça/fazendo pirraça/fingindo inocente/tirando o sossego da gente”. É no desfile das escolas de primeiro grupo que a vemos em sua máxima exaltação. Ali, ela perde seu anonimato e se transfigura na Cinderela do asfalto, adorada, desejada, devorada pelo olhar dos príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para vê-la. Este, por sua vez, tentam fixar sua imagem, estranhamente sedutora, em todos os detalhes anatômicos. E ela dá o que tem, pois sabe que amanhã estará nas páginas das revistas nacionais e internacional, vista e admirada pelo mundo inteiro [...] E lá vai ela feericamente luminosa e iluminada, no feérico espetáculo. Toda jovem negra, que desfila no mais humilde bloco do mais longínquo subúrbio, sonha com a passarela da Marquês de Sapucaí. Sonha com este sonho dourado. (GONZALEZ, 1984, p. 228) Entretanto, segundo Lélia Gonzalez, todo mito oculta algo para além daquilo que mostra. Constata inicialmente a violência simbólica acometida contra a mulher negra, “pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfiguração na empregada doméstica” (GONZALEZ, 1984, p. 228). No trabalho pedagógico de Mestra Iara é perceptível uma economia fálica, pois a ênfase no quadril, seguido de uma pesquisa gestual composta em maior quantidade pela busca do gestual das Yabás, pressupõe o fortalecimento dessas identidades femininas múltiplas presentes de forma mitopoéticas na Dança Afro-gaúcha. Marco Aurélio Luz136 (2013, p. 72) pontua que “a relação metonímia da imagem das ‘cadeiras’ com a fertilidade (feminina) aponta para elaboração do existir que se aprofunda em direção à angústia existencial”. Certamente, o jogo do quadril presente em Danças Africanas é uma das características peculiares que vitaminam o pensamento-do-corpo em diversas Danças Afro-Brasileiras. Segundo Zenicola (2011, p. 89), Na dança afro-brasileira, a liberdade de movimentos de quadril e ombros cria um eixo marcado em sintonia e cinestesia. Cria-se uma infinidade de linhas em movimentos sinuosos que expressam controle e domínio do corpo. Um eixo sobretudo estético e sensual e que, partindo do quadril, vai realinhando em curvas e sinuosas movimentações do corpo. Num período marcado pelo retrocesso político, que ameaça a garantia do direito à vida ao cercear o direito à diversidade religiosa, sexual e cultural através de Marco Aurélio Luz é um cientista social brasileiro, doutor em comunicação e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia. 136 163 iniciativas como “Escola Sem Partido”, o quadril continua sendo elemento na escrita do corpo através de gestos dançantes nos bailes Funk (quadradinhos e requebrados), no Jongo (Umbigadas), nas festas de Batekoo (Twerk), bem como na Dança Afro-Gaúcha e em outras expressões dancísticas de motriz137 africana. Isso remonta em sua prática não só no ato da circularidade instaurada pela posição dos sujeitos em roda, mas pela execução de gestos que culminam voluntariamente a partir do ritmo sincopado da percussão (LUZ, 2008). O quadril, portanto, configurase como produtor/produto estético do corpo, criado na relação entre Corpo e Tambor, mas também no gestual compartilhado que se atualiza à medida que sofre a ação de alguns dos princípios da Danças Africanas. Aquarela “Cena Fandango Negro, Campo St. Anna, Rio de Janeiro" - Pintado por Augustus Earle (1793-1838)138 Dentre os sete princípios descritos pela pesquisadora americana Kariamu Welsh Asante139, destaco a Repetição, a Polirritmia e a Imitação (ASANTE, apud O conceito de Motriz Cultural está relacionado a um conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos. Segundo Ligiéro (2011, p. 107) “a este conjunto chamamos de práticas performativas, e se refere à combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações do mundo afro-brasileiro”. 138 Aquarela "Cena Fandango Negro, Campo St. Anna, Rio de Janeiro" de Augustus Earle. Na imagem, o artista retrata uma comunidade negra dançando embalada ao som do tambor. Ao centro da imagem, um casal movimenta-se com gesto similar à “Umbigada” presente no Jongo e no Samba de Roda. O homem aparece com as mãos para cima e a mulher com as mãos na cintura/nas cadeiras. Augustus Earle, pintor Inglês, morou no Rio de Janeiro entre os anos de 1820-1824. 137 164 MARTINS, 1998) como elementos utilizados na abordagem de ensino de Mestra Iara, geradores de transformação da movimentação pélvica. Esses três princípios são citados como os responsáveis pelo processo de ressignificação do gesto durante uma aula de Dança Afro ministrada por ela. Nesse contexto, o gestual do Carimbó140 tomado como tema de estudo fez emergir no (eu)corpo a necessidade de entender a movimentação da Bacia/Pélvis como perspectiva peculiar da abordagem pedagógica da Mestra. Na prática, tal gesto demanda: - Aterramento dos pés em posição paralela, estático/fixo ou dinâmico/deslocando-se; - Joelhos semi-flexionados; - Quadril relaxado executando um pêndulo anteroposterior com a bacia/pélvis. O gesto do carimbó é marcador do pulso rítmico instituído pela musicalidade. Analisado a partir do contexto gaúcho no qual a corporeidade das Danças Tradicionais primam pelas referências europocêntricas, a verticalidade e a negação do quadril são extremamente importantes. A contração da Dança Afro-Gaúcha explicita de forma contundente que existe outros modos de pensar/fazer Dança no Rio Grande do Sul, uma maneira contra-hegemônica que reconhece a potência funcional e criativa da Bacia/Pélvis na Dança. A “bunda” condensa em sua imagem as perspectivas mobilizantes do receber e do devolver, do recriar, do restituir, do nascer e do morrer. Diante do medo do enfrentamento do mistério do desconhecido, duas reações deslocadas do contexto civilizatório, dos topus lugares que nos localizamos acontecem. De um lado a exploração descontextualizada da imagem apenas erótica e exótica da bunda, nas artes, pintura, escultura, na literatura, na indústria cultural,na produção musical, dança, show business, envolvidos pela exploração comercial cujo ícone mais trágico disso tudo é o episódio da cahama “Vênus Hottentot”141 (LUZ, 2013, p. 72) Kariamu Welsh Asante é uma coreógrafa e estudiosa de dança contemporânea cujos prêmios incluem uma Fundação Nacional para as Artes e uma Bolsa Guggenheim. Ela é professora na Escola de Música e Dança Boyer da Temple University, mãe do autor, cineasta e artista de hip-hop M. K. Asante. 140 Reunindo em si elementos das culturas indígenas, ibéricas e africanas, o carimbó – manifestação cultural tradicional presente no Estado do Pará – expressa em sua música, letras, instrumentos e dança certas características do modo de vida das populações tradicionais ribeirinhas e rurais da região, assim como a relação dessas populações com o ambiente que as envolve (FUSCALDO, 2015, p. 1) 141 Sarah Baartman (1789-1815) foi a mais famosa de, ao menos, duas mulheres negras do povo khoisan que foram exibidas como aberrações em eventos na Europa do século XIX sob o nome de "Vênus Hotentote". 139 165 Entendo, dessa forma, a contração na Dança Afro-Gaúcha como expressão de resistência, Gesto de Resistência frente ao conservadorismo político latente no nosso tempo. Isso porque o imaginário colonizado reduz as inúmeras possibilidades funcionais e criativas da bacia/pélvis a formas estereotipadas, folclorizadas, hipersexualizadas, sem viés crítico-discursivo sobre a opressão. Assim, a abordagem pedagógica de mestra Iara gerou reflexões que dizem respeito à Dança como fundadora de um pensamento-do-corpo anti-hierárquico, holístico, consciente de suas potencialidades em performance, rompendo com a expectativa erotizada e hipersexualizada do quadril causada por anos de midiatização das representações da bacia/pélvis e do corpo feminino como objeto. “Se o tambor começa, tua saia gira O mundo inteiro para pra te ver menina! [...] Ai menina, vem, pra roda, vem! Ai, menina, aqui tem Carimbó Todo mundo balança no teu bailado Curimbó segue a ginga do teu rodar” (Lia Sophia, 2024)142 LIA SOPHIA. Ai menina (Áudio Oficial + Letra). YouTube. Publicado em 21 de janeiro de 2014 por Lia Sophia. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=egEN9aIIivo> Acessado em 30 de janeiro de 2019. 142 166 FORTE-LEVE “Na maioria das vezes são movimentos fortes, mas tem que manter uma suavidade, então, para tu controlares isso, tu precisa ter o domínio real do teu corpo!” (DEODORO, 2016) O termo Forte-Leve, como é usado recorrentemente no vocabulário das práticas artístico-pedagógicas de Mestra Iara, traz em sua carga semântica a ideia de “Consciência Corporal”. Também é utilizado para referir-se ao controle dos variados níveis de tensão muscular usados no trabalho corporal do GASMD, ajustando o tônus a fim de obter eficiência na representação. Na pesquisa percebi que a nomenclatura Forte-Leve carregava com vigor o desejo de integrar polos às vezes distintos em termos de qualidade do movimento. Trabalhar com as oposições de maneira complementar, pluricultural, efetivando na prática artística um Pensamento de Fronteira. Para Oliveira e Candau (2010, p. 25) O pensamento de fronteira significa tornar visíveis outras lógicas e formas de pensar, diferentes da lógica eurocêntrica dominante, mantendo-o como referência [...] mas sujeitando-o ao constante questionamento e introduzindo nele outras histórias e modos de pensar. Identifico pistas desse modo específico de pensar/fazer no termo Forte-Leve, usado para nominar a qualidade do gestual criador da identidade somática do GASMD, pois é através de Gestos de Resistência na Dança e na Música que o grupo efetiva seus questionamentos sobre as narrativas hegemônicas que invisibilizam a população negra e suas narrativas históricas no RS. Noções descritivas e metafóricas acerca das qualidades que compõem o gesto é algo proposto por diversos Teóricos da Dança, entre eles se destaca o alemão Rudouf Laban (1879-1958), mas é na prática pedagógica e artística que as palavras são de fato traduzidas corporalmente. Isso preserva a independência metafórica de cada educador, de cada artista, de cada grupo. No gestual da Dança Afro-Gaúcha, a característica Forte-Leve, aqui vinculada à noção de Pensamento de Fronteira, subjaz em sua materialidade uma posição crítica em relação ao “não dito” enunciado no gestual das danças de matriz europeia. O gesto enquanto pensamento-do-corpo se propõe de maneira crítica a questionar as relações de gênero, onde o (gesto) feminino é descrito pelos adjetivos 167 “leve”, “suave”, “delicado” e o gestual masculino sob os adjetivos “forte”, “firme”, “vigoroso”. A crítica à dicotomia entre Feminino versus Masculino é denunciada no gesto, através de uma posição crítica acerca dos aspectos relacionados ao machismo, que, assim como a branquitude, é naturalizado e pouco questionado na perspectiva das danças clássicas e tradicionais de matrizes europeias143. Um exemplo da concepção antagônica entre o gesto feminino e masculino está na dramaturgia dos gestos altamente generificados nos Balés de repertório. Tomando como matéria pra análise de aspetos específicos a coreografia Batuque144 (GASMD, 2016), um dos exemplos de questionamento e ruptura com essa concepção antagônica está no gestual da Dança de Oyá, performada pela bailarina Edjana Deodoro. Na performance a bailarina encarna tanto o vigor na forma como empunha a espada, utilizando-a com destreza na coreografia a bailarina executa uma ação culturalmente identificada como masculina. No entanto, o modo como se desloca pelo espaço, como se estivesse flutuando leve e fluida pelo, remete a outro signo de Oyá, a borboleta voando. Figura 33. Bailarinas Edjana Deodoro e Taila Santos - Espetáculo "O feminino sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Douglas Freitas(GASMD, 2016) Refiro-me especificamente às Danças Tradicionais Gaúchas e ao Balé Clássico. GRUPO AFRO-SUL DE MÚSICA E DANÇA. Batuque com Audiodescrição. YouTube. Publicado por Mil palavras em 31 de janeiro de 2019. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=wlB7SGrqlUE&feature=youtu.be> Acessado em 01 de fevereiro de 2019. 143 144 168 A borboleta é um animal cuja ação culturalmente é associada ao feminino. Portanto, a fluidez do gesto entre polos culturalmente identificados como antagônicos, opostos, expressa-se pelo termo Forte-Leve numa perspectiva que as entende como complementares. Segundo Lody e Sabino (2011, p. 142): Nas danças de Iansã há o vigor masculino que se reflete na massa e no volume de um búfalo, e também na identificação com a fluidez e leveza de uma borboleta voando, mantendo-se, assim, o seu caráter de orixá das transformações, de grande plasticidade do corpo, que exige habilidades especiais por parte de quem dança. [...] Vigora também um forte sentimento feminino nas danças de Iansã, inclusive o da sensualidade, da mulher guerreira, fazendo com que suas coreografias mostrem diferentes aspectos sociais dos múltiplos papeis exercidos pela mulher. Essas qualidades enunciadas no gesto de uma mulher que performa a ida para a guerra desde o modo como empunha a espada, e na performance de dançarinos que se miram no espelho (signo de Oxum) e dançam com soltura na bacia/pélvis, auxiliam processos educativos que desabilitam o imaginário colonial acerca das funções e papeis de gênero. No que diz respeito a Dança, esse imaginário age tolhendo e hierarquizando o gesto, generificando-o e invisibilizando-o do horizonte nas diversas possibilidades de existir. O imaginário atualizado pelo corpo e pela cultura é profundamente influenciado pela Colonialidade. Uma das suas funções é assimilar para comparar, sendo assim, atrela a palavra FORTE a noções relacionadas a masculinidade, recorrendo ao excesso de força e a resistência física como meio de expressão. Já a palavra LEVE vincula-se a noção de feminino, atrelando a noção de delicadeza e leveza. Na prática do GASMD o termo Forte-Leve carrega em si a dualidade, a ambiguidade, composta por combinações complexas de qualidades de movimento e graus de tensão corporal, sempre atreladas a ideia de Consciência Corporal, por meio e através do próprio gesto. 169 Figura 34. Coreografia Batuque - Espetáculo "O feminino sagrado: Um olhar descendente da mitologia africana" Fotografia de Douglas Freitas(GASMD, 2016) Como já citado, a narrativa presente no gesto da Dança Afro-Gaúcha recorre a simbologias dos gestos das Danças dos Orixás, estudando-as e adaptando-as à múltiplas possibilidades expressivas. Cada Orixá traz no gestual de sua dança narrativas acerca de seus Itãns (mitos), exigindo tônus específico e flexibilidade do corpo para a execução, além de Consciência Corporal para determinada interpretação. Segundo dados levantados através de apreciação e entrevistas, Norton (2006) descreve o gestual dos Orixás no Batuque do Sul. Segundo o autor: Bará – Gira longitudinalmente a mão direita, polegar e indicador juntos, como se ortasse uma chave: é o Bará “abrindo os caminhos Ogum – São movimentos de um esgrimista, pois Ogum é o “dono da espada”. Mão esquerda às costas, a direita como se portasse sua arma. Giros, zig-zags, pequenos saltos e recuos, a cabeça voltando-se para os lados, como atacando e defendendo-se dos golpes de um inimigo imaginário. Iansã – Dança girando (corpo) e sacudindo e girando violentamente os braços. Representa os raios e a tempestade, fenômenos atmosféricos que pertencem pra ela. Xangô – Na Dança do Alujá, violenta e rápida, os braços movem-se como se arremessassem objetos para baixo, enquanto o corpo salta sobre a perna direita, ficando a outra erguida para trás. Para uns é o Orixá dançando com machados, sua arma. Em outra coreografia levanta e baixa alternadamente as mãos espalmadas para cima: é a dança do Aganjú, dono da balança e da justiça. Odé – braços levantados à frente, engancha e solta bruscamente os dedos indicadores ou mínimos, como se esticasse a corda de um arco, faz zig- 170 zags laterais, virando os olhos e a cabeça, voltada para cima, para um lado e para o outro. Em outra dança ginga também; e alternadamente fecha um olho e suspende o braço, dedo indicador esticado na posição de uma carabina, enquanto emite ruído de tiros: são os movimentos do caçador, principal característica do Orixá, localizando, fechando ou atirando nos pássaros. Obá – Dança tocando na orelha, diz respeito a história em que perde uma delas por causa de sua paixão a Xangô. Ossanha – Dança equilibrando-se numa só perna, pois cerrou a outra por distração. Xapanã – Corpo semi-curvado para a frente, joelhos flexionados, mãos quase fechadas. Abaixa-se e levanta-se em movimentos pesados, às vezes jogando-se para trás: “é o Xapanã esmagando os feitiços dele no pilão”. Oxum – Alisa os cabeçlos, mostra as vezes, olha-se num espelho imaginário, mãos espalmadas ao lado, queixo levantado com ar de triunfo, mostra o explendor do seu ouro para o povo. [...] em outra coreografia mostra com as duas mãos o ventre grávido pois é mãe [...] noutra dança move as mãos como se batesse um bolo. Iemanjá – Move as mãos conjuntas e alternadamente para os lados, como se tivesse um remo de pá. Diz respeito a característica principal da Iemanjá, deusa das águas, protetora dos pescadores. Oxalá – Move-se muito vagarosamente, de cócoras, já que pouco caminha devido à sua estrema velhice. (CORRÊA, 2006, p. 231) Na prática pedagógica, Mestra Iara expressa didaticamente o conhecimento acumulado acerca dos diversos fazeres/saberes corporais da Dança/Mitos dos Orixás do Batuque do Sul. Na coreografia Batuque145, além do gestual mimético baseado na Dança dos Orixás, executados com maestria pelas(os) bailarinas(os) do GASMD, anunciam-se diversas especificidades gestuais, corporais e coreográficas próprias do trabalhos artístico-pedagógico da Mestra, ressalto entre tais especificidades o Enraizamento e a Assimetria. ENRAIZAMENTO: Característica que se assenta sobre à relação do corpo com o chão, tendo como princípio o jogo com a gravidade presente na rítmica adotada na troca de peso entre os pés. Na relação com o chão, seja de maneira dinâmica ou estática, os pés dos bailarinos tocam o chão criando uma relação de troca de peso. Os joelhos, bem como molas, flexionam-se de maneira voluntária possibilitando a fluidez do trabalho rítmico executado pelos pés. Essa característica também incide sobre a movimentação da coluna, pois o impacto causado pela troca de peso com o chão reverbera desde a bacia/pélvis sob o signo da Contração, finalizando na primeira vértebra da cervical (Atlas) que se liga ao osso occipital da caixa craniana. Esse jogo assume a forma de “ginga”, materializando-se através das Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=wlB7SGrqlUE&feature=youtu.be> Acessado às 08 de março de 2019. 145 171 ondulações, estimuladas pela dinâmica cíclica entre os gestos de contrações e expansão que se pronunciam na coluna. Cabe ressaltar a flexibilidade e o engajamento corporal para que a dinâmica não acarrete lesões graves principalmente na coluna cervical. Segundo a bailarina Edjana Deodoro, o movimento cervical aparece como acabamento em todo movimento (SANTOS DEODORO, 2018). Quando questionada sobre o risco de lesões da coluna relacionadas a execução do gesto ondulatório da coluna, que visualmente também lembra a movimentação de um chicote, a bailarina e fisioterapeuta Edjana afirma que: Hoje a gente (GASMD) faz antes dos exercícios (de dança) um treinamento de condicionamento físico. E aí a gente elege os exercícios que a gente quer trabalhar, a gente já tem essa consciência. Ao longo do tempo a gente e até não viu muita lesão [...] mas o nosso grau de instrução (acadêmica) foi nos instruindo, mas a nossa dança não foi influenciada por isso. ASSIMETRIA: O jogo entre vetores corporais opostos acarreta uma assimetria peculiar na plasticidade do gesto, há uma busca pelo equilíbrio que acontece em gesto no nível baixo e no nível alto. Como exemplo cito pequeno saltos executados a partir da caminhada, relacionando a ação de impulso e elevação entre perna e braço oposto, como na ginga da capoeira. Há uma busca pelo equilíbrio que demandam do corpo uma relação de oposição entre a direita e a esquerda, que atuando de forma integrada garante a expressividade, estética e o acabamento do gesto. Em entrevista, a bailarina Edjana Deodoro (2018) afirma que o gestual do GASMD reivindica uma organicidade do corpo. Reconheço a artificialidade impressa nesse entendimento de organicidade, pois o que entendemos como orgânico também é culturalmente informado, ao passo que habilita o imaginário. Segundo a bailarina, durante sua formação em outros tipos de Dança, enfrentou dificuldades para encarnar o princípio da simetria, reivindicado como premissa do balé, por exemplo. Durante minha formação em Dança, eu tinha dificuldade com as danças mais clássicas porque exigiam do corpo uma simetria que as vezes a gente não tem. Por exemplo, a gente utiliza muitos movimentos assimétricos, e quem vem de outras vertentes da dança fica confuso com isso! A gente usa uma perna pra lá e o braço pra cá, contralateral. Só que se tu perceber a tua caminhada o teu equilíbrio, ela é assimétrica, a gente precisa dessa assimetria. (SANTOS DEODORO, 2018) 172 Na prática artístico-pedagógica de Mestra Iara, as possibilidades gestuais mesmo atravessadas pelo entendimento e posicionamento crítico acerca do masculino e do feminino, são atualizadas pelo tempo-espaço podendo existir em harmonia, ou seja, a possibilidade de ser Leve não exclui a possibilidade de ser Forte. Pense no vento, pode ser leve e suave como uma brisa e também devastador como um furacão, demandando do corpo equilíbrio. O termo Forte-Leve é instituído a partir do desejo de encontrar a plasticidade específica para o gesto, carrega em si os opostos como possibilidades, e é interpretado aqui como Pensamento de Fronteira, pois torna visível outras lógicas presentes tanto nas narrativas do gesto, quanto na qualidade do movimento; reafirmando um princípio de Exú, que é a interação entre os dualismos, entre o feminino e o masculino, entre direita e esquerda, entre o Forte-Leve. 173 VII - DEPOIS DO BANHO, AINDA HÁ MUITA ÁGUA PRA SE BANHAR... “Roda gira gira Roda gira girou Memória de preta velha Maré não levou” Pâmela Amaro Encontros são feitos de gestos que se dirigem a um sentido comum, um ponto convergente. Nem sempre sabemos como chegamos ao encontro, nem sempre os sentidos captam tudo que o encontro possibilita em termos de referência. Há coisas que ficam no domínio do indizível. Há gestos que grafam com afeto mais que palavras, grafam memorias afetivas, sentimentos e emoções. O Encontro nunca foi a temática dessa investigação, mas devido ao ponto de convergência criado por gestos afetivos e de resistência direcionados a um sentido comum, a Dança Negra, este substantivo ganhou importância. Num dos encontros (FalarFazendo Dança Afro) com Mestra Iara, perguntei a Mestra como os integrantes da banda haviam se conhecido, e a resposta veio em coro pela Mestra e seu companheiro Mestre Paulo Romeu: “a Ancestralidade nos posicionou”. Naquele momento não entendi muito bem o sentido daquela frase, pois já havia sido informado da ligação entre o Maestro Marco Aurélio Faria e Mestra Iara, contemporâneos em um contexto escolar próximo. Ao fim da pesquisa me propus a refletir sobre, não com intuito de traduzir o(s) significado(s) da frase da Mestra, mas na perspectiva empírica de buscar saber mais sobre a noção de Encontro, tendo a Ancestralidade como mediadora. O termo Ancestralidade tem sido usado recorrentemente no contexto de pesquisas em Dança Negra no Brasil. Muitas se referem ao termo tendo como base a experiência artístico-pedagógica da Profª. Dra. Inaycira Falcão dos Santos, descrita em sua tese de doutorado e publicada no livro “Corpo e Ancrestralidade: Uma proposta pluricultural de Dança-Arte-Educação” (2006). Recorro a noção de Ancestralidade expressa em Gestos na Dança como elemento espacializante (SODRÉ, 1988). A medida que a ideia de Ancestralidade vincula a noção de hereditariedade, a estado ou particularidade do que é ancestral, é também geradora de Identidade(s), vinculando sujeitos à determinados grupos culturais e/ou cosmovisão. 174 A Posição possibilita a Identificação, que, por sua vez, pode gerar o Encontro, fazendo com que sujeitos e identidades diferentes que compartilham de características e desejos comuns se unam, se atraiam, desejando estar juntas. A noção de Posicionalidade, que se refere a posição, local ou situação de algo ou alguém, caracteriza o grande segredo do Encontro, do Caminho, do movimento convergente, da Encruzilhada. O GASMD caracteriza-se como sendo um ponto de Encontro onde a identificação com a Ancestralidade Africana do outro (artista) possibilitou a eclosão no gesto de musicistas e bailarinas(os), onde múltiplos signos indizíveis da cultura foram resgatados e compartilhados, preenchendo o espaço de sentido e gerando um novo espaço. Na perspectiva do gestual presente na Dança Afro-Gaúcha, a dança é geradora de espaço próprio, por não ser algo especializado, mas espacializante, ávida e aberta à apropriação do mundo, ampliadora da presença humana e estando subjugada a um contexto colonizado, se configura como desestruturadora do espaço/tempo hegemônico. Esses Gestos de Resistência ampliadores da Presença Humana dão sentido à vida, a existência, pois é através deles que o invisível se torna visível, que o processo de Identificação (reconhecimento) produz Identidade. Nesse sentido, concluo que a identidade somática do GASMD, em desenvolvimento a mais de 40 anos sob o signo de uma estética própria no campo artístico, caracteriza-se como fundadora do que se nomeia como Dança Afro-Gaúcha. Difere da Dança AfroBrasileira encontrada no Rio de Janeiro, a partir dos desdobramentos da proposta artístico-pedagógica de Mercedes Baptista e das proposições estéticas oriundas da Dança Afro-Brasileira encontrada na Bahia, derivadas da pesquisa de Mestre King (Raimundo Bispo dos Santos) na Dança dos Orixás do Candomblé. Na prática artístico-pedagógica de Mestra Iara, a Dança desabilita imaginários colonizados pelo Gesto, que se expressa na dimensão do indizível, pelo prémovimento, que no jogo com a gravidade e com as tensões produzidas no espaço social se faz resistência frente ao racismo. Numa sociedade marcada pela Colonialidade que hierarquiza saberes, reforçando o machismo, a misoginia, o racismo e LGBTfobia, na luta das mulheres, da população negra, da classe trabalhadora e das(os) LGBTQI+ pela garantia de direitos iguais, pela liberdade de expressão e pela vida, o gesto também se torna arma de ruptura e enfrentamento. 175 Num tempo em que diversas(os) Mestras(es) da cultura negra padecem sem reconhecimento à sua atuação política no campo da luta pelos Direitos Humanos, esta dissertação se torna um manifesto de agradecimento a Mestra Iara e ao GASMD pela atuação na luta por visibilidade à cultura negra afro-brasileira e afrogaúcha dentro do cenário artístico do Rio Grande do Sul. Mestra Iara se inscreveu na história desse Estado como uma das grandes referências femininas, cujo legado é de tamanha importância para a população negra, tal qual as gaúchas Luiza Bairros (in memoriam), Professora Petronilha Beatriz Gonçalves, Dona Verônica do Santos e tantas outras mulheres negras gaúchas. Encontrei na Dança Afro-Gaúcha saberes/fazeres que reforçam traços de uma memória coletiva que diz sobre a pertença étnico-racial da população negra, representante de uma cultura que tem sido preservada no corpo, como afirma Muniz Sodré: Numa cultura que não separe o real cósmico do humano – como é o caso dos hindus, dos chineses e dos africano -, a diátese filosófica é média (e não ativa), isto é, o processo verbal de pensamento perfaz-se no interior da pessoa, entendida em sua unidade com a comunidade, o que solicita o corpo, tanto individual quanto comunitário (a corporeidade) como âncora fundamental. Na realidade, pensamento nenhum emerge exclusivamente das palavras (que devem ser, antes, vistas como meio de expressão) e sim principalmente da espacialidade instaurada pelo corpo em sua vinculação ao entorno ético e existencial, portanto na relação concreta entre homens e natureza.[...] Trata-se da recusa de separação absoluta entre dentro (o corpo) e o fora (o mundo), que leva a uma dimensão transbordante quanto às estruturas da representação restrita a palavras. Nesse transbordamento, o sentido é fortemente metonímico, isto é, perfaz-se por contato, por contiguidade, o que remete à abordagem peirceana das isotopias, entendidas como redes de signos ou interpretantes que se traduzem e se desenvolvem uns aos outros. (2017, p. 81) É no toque do tambor, no gesto, na performance, que se perpetua um contínuum cultural de matriz africana. Assistimos atualmente desde Balés de Repertório, criados a mais de cem anos atrás, à Dança Contemporânea e a Performance-Art buscando suas identidades que compõem um grande esquema de citações na Dança. Com relação as Danças Negras, especialmente o que convencionou-se chamar de Afro-Gaúcho, visualizo uma caminhada que floresce na relação com a tradição, com a ancestralidade negra sem excluir as informações contemporâneas que atravessam os corpos, sem negar a Cultura Corporal, o espaço e o tempo, e as diversas variantes que contaminam o ato criativo. 176 É nesse movimento pendular entre a tradição e a criação que o jogo entre a tríada: Repetição, Intuição e Inspiração, possibilita uma bricolagem coerente na criação do que vem a ser a Dança Afro-Gaúcha criada por Mestra Iara. Mesmo em movimentos de tensão com a Colonialidade, é inegável as nuances que constituem as especificidades do gestual da Dança Afro-Gaúcha, caracterizadas pela influência do pré-movimento e da rítmica proveniente de danças de países negros da África subsaariana, que são caracterizadas pela forma que acionam no gesto a manutenção de saberes ancestrais que teatralizam e representam o retorno às origens, ao ethos africano, ou mesmo o culto aos ancestrais e as forças da natureza (SOUZA, 2005). O gesto na Dança do GASMD, configura-se como Pensamento de Fronteira, estratégico na luta antirracista, pois torna visível outras lógicas na forma de pensar/fazer Arte a partir de um referencial não-eurocêntrico. A prática artísticopedagógica da Mestra contesta o referencial hegemônico ao apresentar dramaturgias que pontuam: há negras(os) no Rio Grande do Sul! Depois de um banho nesse mar de conhecimento, fica ainda mais perceptível o quanto falta para conhecer, para aprender. Dificilmente mais de 40 anos caberiam numa dissertação, em palavras, em descrições. Mas esse esforço em direção aos saberes negros no campo das Artes seguirá, seja na prática docente, na pesquisa ou nas práticas artísticas, se lançando ao mar em busca do sentimento África que existe em cada corpo negro afro-brasileiro. Conhecer Mestra Iara foi entrar numa água forte pra me banhar. Uma cachoeira de saber que desagua no fazer. Uma artista negra que conjuga o rio e o mar. Aprendi que é preciso ser gota de rio que corre pro mar. Que precisa correr pro mar, se atirando no infinito azul com desejo de África. De Áfricas. Sem medos, pois a ancestralidade que nos posicionou, nos posiciona e nos posicionará! 177 REFERÊNCIAS ACOGNY, Patrick. As Danças Negras ou as Veleidades para uma Redefinição das Práticas das Danças da África. Rebento, São Paulo. n 6. 2017. p. 131-156. ALBUQUERQUE, Carlos Vinicius Frota. A Eugenia e o Mito da Superioridade Racial Branca: racismo no Brasil moderno. 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