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Michel Schooyans O ABOKTO: ASPECTOS POLITICOS BGSH-BMAG KorroRA UCL-H 2311 MARQUES SARAIVA Os cristâos nâo têm o monopôlio da defesa da vida humana. Liberalizar o aborto é fazer obstâ- culo à regra de ouro da moral universal:"Nâo faça ao outre o que nâo quiser que Ihe façam". Desrespeitando este principio, uma lei que liberaiiza o aborto abala o œnsenso caracten'stico de toda so- ciedade democrâtica.Com efeito,a democracia nâo se define pela cega aplicaçâo da regra da maioria, mas pela vontade de rejeitar qualquer privilégio e qualquer discriminaçâo em nome da igual dignidade de todos os homens. Um Estado democrâtico que toma a decisâo de eliminar certes seres humanos, começa desde entâo a derivar para o totalitarismo. Hoje como outrora, ideologias pretendem "legitimar" essa dériva, com a cumplicidade de politicos, juristas, demôgrafos e sobretudo de médicos. Umas dessas ideologias preconiza uma moral da espécie,onde o indivfduo nâo conta mais; a outra desenvolve uma moral do egoismo individual, onde a sociedade nâo tem mais importância. Na verdade, essas ideologias se cruzaram: elas deram ongem à ideologia da segurança demogrâfica.De inspiraçâo nitidamente cientificista, essa ideologia estâ a serviço de um propôsito impérial sem precedentes.Esse propôsito visa planejar rigorosamente a produçâo qualitativa e quantitativa dos homens segundo critérios de interesse, de conveniência ou de utilidade. O autor analisa os fundamentos desse novo impérialisme e desmonta seus mecanismos.Mostra também que hâ meios de fazer obstâculo a isso, por uma açâo em favor da promoçao da mulher, da criança e da famflia. Essa açao requer o concurso tanto dos Estados quanto das Igrejas. Tôdos devem conjugar seus esforços para vencer a violência estrutural que aclimata a idéia de que o aborto é uma necessidade. Assim,jâ que todos estâo de acordo em reconhecer que o aborto é um fracasse, é preciso mostrar que ele é evitâvel e agir para que nenhuma mulher seja tentada por essa soluçâo de desespero. Pois nem aqui, no Terceiro Mundo,se résolve os problemas dedesamparo propondo àsmulheres que suprimam seu filho. Em resumo,a prevençâo do aborto passa por uma educaçâo que ensine a acolher. Ela passa pelo compartilhar generoso do ter, do saber, dô saberfazer. Passa também pelo compartilhar das razôes que se oferecem ao homem de viver com esperança e alegria. O Aborto; Aspectos Politicos Obras do mesmo autor: O comunismo e ofuturo da Igreja no Brasil, Ed. Herder, Sâo Paulo, 1963. O desafio da secularizaçâo, Ed. Herder, Sâo Paulo, 1968. Chrétienté en contestation: l'Amérique Latine, Éd. du Cerf, Paris, 1969. Destin du Brésil. La technocratie militaire et son idéologie, Éd. Duculot, Gembloux, 1973. La provocation chinoise, Éd. du Cerf, Paris, 1973.(Traduction italienne.) Demain, le Brésil?, Éd. du Cerf, Paris, 1977.(Traduction espagnole.) L'avortement Approche politique. Université catholique de Louvain, 1981.(Traduction italienne et anglaise.) Droits de l'homme et technocratie, Éd. C.L.D., Chambray-lès-Tours, 1982. Démocratie et libération chrétienne. Principes pour l'action politique, Éd. Lethielleux, Paris, 1986. Maîtrise de la vie, domination des hommes. Éd. Lethielleux, Paris, 1986.(Traduction brésilienne en préparation.) Théolo^e et libération. Questions disputées. Ed. du Préambule, Longueuil, Québec, 1987. Enjeuxpolitiques de l'avortement, 2.°^ édition, l! ^1 Ed. de rOEil,Paris, 1991.(Traductions espagnole et italienne; traductions polonaise et brésilienne en préparation.) De "Rerum novarum"à Centesimus annus, Éd. du Conseil Pontifical Justice et Paix, Cité du Vaticain, 1991. (Avec R. Aubert.) La dérivé totalitaire du libéralisme. Éd. Universitaires, Paris, 1991. A sair: L'avortement en questions, Éd. de POeil,Paris. oa-H iî-i-i Michel Schooyans Professor da Universidade Catôlica de Louvain O ABORTO: ASPECTOS FOLITICOS EDJTORA MARQUES SARAIVA O efeito das mâs leis é talque outras ainda piores sâo necessârias para sustar os infortûnios dasprimeiras. Montesquieu, Dossier l'Esprit des Lois Sumârio Prôlogo 11 1. A inocência dificil 13 Ultrapassar o casuismo As manipulaçôes A hipôtese forte Dos rigores da penûria às misérias da abundância . . .... n.o retorno do Leviatâ 13 15 16 22 25 A importância do que estâ em jogo A instauraçâo histôrica da justiça 25 27 A reflexâo fîlosôfica 28 Direitos humanos e legislaçâo positiva A separaçâo dos poderes O Estado hipostasiado 30 32 34 Descriminalizar? Liberalizar? Rumo à "servidâo voluntâria" m.A honra da medicina 35 . 36 39 Novos mercenârios? Um médico de luxo 39 41 O dedo preso na engrenagem 43 IV,Em nome de que lei? 45 A lei e suas ambigûidades A ficçâo e a realidade 45 49 Um direito hibrido O fato e o direito 52 52 O legislador preso na armadilha? V. Vazio juridico? Vazio judiciârio? Para novos costumes, novas leis? Do vazio judiciârio ...ao vazio juridico A criança e a mulher: desprotegidas Rumo a uma legislaçâo retrôgrada? O direito a serviço do assassinato 54 57 57 58 58 59 60 61 VI. Moral "à la carte" 65 Moralistas favor nâo se apresentar 65 O filho desejado Humano-humanizado Poeira nos olhos 66 67 69 VIL Como é usada a teologia? Do lado dos vitoriosos Uma querela va VIIL Aborto e desinformaçâo 71 71 74 79 A adulteraçâo das informaçôes Da manipulaçâo à amâlgama 80 82 Da ocultaçâo à censura 84 IX. O retorno dos soUstas 89 Justiça e legalidade 89 O homem, medida de todas as coisas? 90 Enunciados subordinados a interesses particulares 93 A razâo mutilada 94 O valor em suspenso Alienaçâo e liberdade X. Uma perversâo do socialisitio e do liberalismo 96 . 98 101 O socialismo e a subordinaçâo à espécie 101 O liberalismo e o triunfo do individuo 103 Nem indesejados, nem indesejâveis 104 XI. A cauçâo de cristâos ao holocauste pré-natal 107 A honra do parlamento Uma manipulaçâo perversa do Evangelho 107 110 XII. O "mal mener" e o naufrâgio do essencial Assegurar o respeito à vida Uma questâo de credibilidade XIII. As mulheres e a sujeiçâo consentida O 6pio do século Revoluçâo inacabada Libertaçâo e objetivaçâo 113 114 114 117 117 120 122 XIV. Rumo ao genocidio intra-uterino A colonizaçâo ideolôgica Malthus e o império 125 126 Clarividência hitlerista? 129 Superpovoados/?or^w^ subdesenvolvidos O papel dos laboratôrios e das fundaçôes A origem dos recursos O aborto: um método de limitaçâo dos nascimentos 130 134 137 138 XV.A smdrome de Panurgo Da imitaçâo à alienaçâo Uma variâvel privilegiada? XVI. A segurança demogrâfîca,etapa totalitâria do 143 144 149 impérialisme 153 Pan-americanismo 153 O mandarinato internacional 159 Rumo ao globalismo Miliardârios de todos os paises, uni-vos! 1' / 125 155 157 Do Estado ao Império totalitârios A ideologia da segurança demogrâfîca 161 164 Uma nova religiâo civil 167 Que humanidade nova? 0 pan-imperialismo totalitârio ...e "metapolitico" 165 169 1^0 XVII. O aborto: perguntas e respostas 173 Bibliografia 1^^ 1 Generalidades II Documentes da Igreja Catôlica 1^5 211 Indice de nomes prôprios 215 Indice temâtico ^23 Prôlogo O présenté livro é mais uma "nova ediçâo revista e corrigida" de L'avoHementy Approche politique, que teve très ediçôes (1974, 1980 e 1981) e foi traduzido em inglês e italiano. Primeiro operamos um remanejamento substancial do estudo precedente; foi podado e atualizado. Sobretudo, acrescentamos numerosos desenvolvimentos, necessârios devido as proporçôes que assumiram as disenssôes sobre o problema e às liçôes que se desprendem da experiència. Note-se que, embora dispostos num encadeamento logico, os diferentes capitulos constituem todos relativamente autônomos. Cada um é dedicado a uma faceta do problema e pode ser iido independentemente do conjunto. Com esta maneira de procéder, quisemos frisar o cunhoprâtico do livro. Na verdade, fizemos questâo de conservar seu carâter de argumentaçào, na quai poderâo inspirar-se os defensores da vida. E com este espirito que nosso ùltimo capitulo retoma, sob forma de perguntas e respostas, os principais eixos do corpo do livro. Toda a nossa atençâo concentra-se nos aspectos politicos da liberalizaçâo do aborto. Esta, na verdade, nâo é senâo parte visivel do iceberg, remetendo a problemas tâo diversos como a eutanâsia, a esterilizaçâo em massa, certas manipulaçôes genéticas, etc. Hoje testemunhamos uma aliança original, mas cujos antécé dentes sâo conhecidos,entre o poder politico e o poder médico. Ora, além dessa aliança, o que esta em questâo é uma determinada concepçâo do homem e da sociedade. Nossa finalidade é examinar esses aspectos complexos e sensi- bilizar a opiniâo pûblica para uma pergunta dupla: Que tipo de homem queremosformar? Que tipo de sociedade queremospromover? Louvain-la-Neuve,Janeiro de 1990. 11 I A inocência difîcil Tanto o estudo comparado das civilizaçôes como a histôria do Ocidente atestam que a prâtica do aborto esta estreitamente ligada ao contexto econômico e social. Apelar para as fazedoras de anjos muitas vezes foi o ùltimo recurso do casai pobre, angustiado com a perspectiva de mais uma boca a alimentar. Esta motivaçâo esta longe de ter desaparecido hoje,mas nâo ocupa um lugar central nos debates atuais. Nestes, as atençôes se concentram em torno de duas categorias de fatos. Primeiro, a evoluçâo das técnicas obstétricas deu margem a muita discussâo a respeito do aborto terapêutico. A seguir, como os métodos contraceptivos fizeram progressos râpidos e espetaculares, o problema do aborto em gérai nâo tardou em se colocar: séria este um método de emergência para prévenir os nascimentos? Ultrapassar o casuismo As duas categorias de fatos mencionadas inserem-se num con texto global particular, e esta convergência é, a nosso ver, détermi nante na problemâtica atual. Para entender sua originalidade, é elementar levar em conta o ethos gérai em que surge, para nos, este dossiê. Da mesma maneira, gostariamos de mostrar que o problema do aborto inscreve-se no quadro gérai da atual sociedade mundial, onde convivem e interagem miséria e riqueza,indigência e desperdicio, dependência e dominaçâo. Assim se precisam de imediato os limites de nosso projeto: abordar o problema do aborto do ângulo politico. Negativamente, isto significa que é preciso ir além de uma problemâtica basicamente centrada na afirmaçâo e exaltaçâo do individuo adulto. O aborto sem 13 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS dûvida diz respeito a individuos e pessoas. Contudo, por seu alcance, o problema vai além do âmbito particular. O aborto nâo pode ser reduzido a uma questâo de consciência pessoal e, se fosse assim, os debates atuais interessariam talvez o moralista, nâo o politico. Pretendemos justamente explicar em que o aborto diz respeito à comunidade polftica como tal. E por comunidade politica entendemos nâo apenas a naçâo ou a regiâo; também temos em mente o conjunto da sociedade humana na medida em que aspira a uma maior integraçâo, a uma melhor organizaçâo, a uma nova ordem internacional. O que implica a liberalizaçâo do aborto no que se référé à concepçâo que temos das relaçôes entre os homens dentro de uma mesma comunidade polftica? E no que diz respeito às relaçôes entre naçôes? Sera que essa liberalizaçâo acarretaria mudanças radicais na definiçâo das funçôes no seio da sociedade? Sera que o debate nâo questiona a concepçâo e o papel da polftica, do direito, da medicina e da moral em suas respectivas relaçôes com os homens? Uma abordagem sintética — que muitos temem ou mesmo recusam — é tanto mais oportuna pelo fato de que uma impressâo se desprende das discussôes: estamos presos no atoleiro de um casufsmo superado do permitido e do proibido, que deixa o moralista mfope. O aborto exige enfoques multiplos; seu estudo mobiliza especialistas de diversas disciplinas. No entanto, o que se vê no mais das vezes? A atençâo esta tâo voltada para o ponto de vista da mâe que sâo esquecidos, ou quase, o papel do pai, o ponto de vista da criança e o da sociedade. Cada uma das disciplinas tem pretensôes ao imperialismo cientffico, como se seu método nos permitisse esgotar a complexidade do problema. Num tema assim nâo é soberano o ponto de vista do médico, do jurista, do sociologo, nem mesmo o do moralista. Acima do especialista, é o homem que é chamado a se pronunciar. Nâo sendo respeitadas essas regras de método, hâ pouca esperança de desbioquear a discussâo.^ A bibliografia gérai sobre a liberalizaçâo do aborto é considerâvel. Além da documentaçâo citada nas notas, reunimos uma seleçâo bibliogrâfica inclufda no final do livro. Para a França, citemos desde jâ o dossiê editado por P. LADRIÈRE em numéro especial da Revue Française de Sociologie (Paris), t. 23, publicado com o ti'tulo de "La libéralisation de l'avortement", 1982. Daqui em diante citaremos esta publicaçâo como "La libéralisation de l'avortement". it AINOCENCIA DIFICIL As manipulaçôes Ora, esse homem, seja ele quai for, esta sempfe situado. É particularmente importante recordar de imediato que o cientista esta exposto a todo tipo de manipulaçôes,seja quai for sua disciplina. Esta tese poderia ser ilustrada evocando-se sumariamente diversos exemplos. Tomemos o dos filosofos. Nâo é raro ver filôsofos que se gabam de viver numa torre de marfim,de estar a salvo dos condicionamentos externos. Entretanto, os procedimentos dos filôsofos muitas vezes sâo desviados pelas influências do meio. Assim, às vezes se transformam em legitimadores, ou mesmo ideôlogos, de um determinado régime politico,ou Ihe abrem caminho. Nâo é politicamente"inocente" um Hegel,de eu]a obra o comunismo,o nazismo, o fascisme e os imperialismos contemporâneos tiraram alguns de seus fundamentos. E Gentile, filôsofo italiano, nâo se transformou em teôrico do movi- mento fascista? O que dizer de Lukâcs e Heidegger? Ora, o que se observa na filosofia constata-se igualmente em outras âreas. Sera que, em caso de "revoluçâo" ou de "golpe de estado",é tâo raro assim ver juristas se transformarem em defensores dos régimes totalitârios? Basta um homem ou um grupo se imporem pela força ou pela astucia para que juristas complacentes ponham mâos à obra e produzam um projeto de constituiçâo adaptado às conveniências dos novos senhores. Eles fornecem ao novo régime "fundamentos","justificaçôes" de tipo "juridico"e "constitucional". Karl Binding(1841-1920) preparou os fundamentos do direito nazista ao confeccionar um direito que legalizava a eliminaçâo dos seres cuja vida nâo fosse digna de ser vivida.^ Os exemples acima nâo têm nada de excepcional, e, se pres- tarmos atençâo ao que ocorre na seara dos sociôlogos, economistas, engenheiros, fisicos ou qufmicos, chegaremos às mesmas (2) BINDING foi professer nas Universidades de Basiléia, Estrasburgo, Friburgo-em-BrivSgau e, sobretudo, Leipzig. Junte com o psiquiatra Alfred HOCHE, publicou Die Freigabe der Verniehtiing lebensunwerten Leben, Leipzig, 1920. Ver Robert Jay LIFTON, The Nazi Doctors. A Stiidy in tlie Fsychology of Evil, Londres-Nova lorque, Macmillan (Papermac), 1987, pp. 46-48; foi publicada uma traduçâo francesa em Paris, Laffont, 1989. 15 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS conclusôes.^ Observa-se, inclusive, que, quanto mais tecnificada é uma disciplina, mais a especializaçâo torna-se fma e mais aquele que a exerce corre o risco de ser raanipulado, de ser "recuperado" de maneira pré-critica por agentes influentes sobre os quais nâo tem contrôle. Como o estudo sobre o aborto recorre a disciplinas muito diversas, que o enfoque polftico tem justamente de se esforçar em sintetizar, nâo tardaremos a perceber o alcance e a vastidâo destas simples observaçôes. A hipotese forte Para que apareçam os aspectos politicos do problema que nos ocupa, nos o abordaremos em sua formulaçâo mais aguda, que se résumé a uma pergunta: "Pode-se liberalizar o aborto?"; ou ainda: "Pode-se deslanchar um processo que sem sombra de dûvida conduz ao aborto por encomenda?". Hâ alguns anos que muitos se fazem essas perguntas no Ocidente. A Inglaterra, os EU A,os paises escandinavos, a Holanda, a AJemanha, a França, a Itâlia e a Espanha — para citar apenas alguns — adotaram legislaçôes que autorizam,com menor ou maior facilidade, o aborto."^ Nem por isso os debates estao encerrados; partidârios e adversârios continuam a se enfrentar, e ainda o farao por muito tempo. Os elementos sao tao abundantes que, as vezes, parecemos estar sob uma verdadeira saraivada de intbrmaçôes. Questôes judiciais muitas vezes dolorosas ainda complicam os dados do problema. O debate esta sempre aberto;é sempre (3) Gérard FOUREZ dedicou a La Science partisane o Essai sur les significations des démarches scientifiques, Gembloux (Bélgica), Duculot, 1974.Sobre a fi'sica, ver nosso Maîtrise de la vie, domination des hommes, Paris, Lethlelleux, 1986, pp. 9-11. (4) Os processos polfticos e legais que levam à liberalizaçâo do aborto sâo expostos por especialistas no assunto em Joni LOVENDUSKJ e Joyce OUTSHOORN, The New Politics ofAbortion, Londres,Sage Publications, 1986. O livro é uma boa fonte de informaçôes sobre os mécanismes prô-aborto implementados nos seguintes pafses: Holanda,Grâ-Bretanha,EU A,Irlanda,França,Itâlia, Bélgica, Noruega e outros. Bérengère MARQUES FEREIRA, que colaborou nessa obra coletiva, publicou mais L'avortement en Belgique, Bruxelas, Instituto de Sociologia, Universidade Livre de Bruxelas, 1989. AINOCENCIADIFICIL arrebatado/ A mesma pessoa que fazia campanha contra a guerra e a pena de morte milita com idêntico entusiasmo a favor do aborto livre e gratuito/'Os espiritos luncionam a quente e desejam soluçôes rapidas, por vezes radicais. Consideraremos, portante, a hipôtese "forte", quer dizer, a de uma liberalizaçâo intégral. Alias, o exemple dos pafses ocidentais mostra que, na verdadc, de uma legislaçâo permissiva passa-se depressa a uma liberalizaçâo praticamente intégral. E fato notôrio, por exemple, que na França é virtualmente impossivel controlar de maneira eficaz a aplicaçâo da lei Veil, que regulamenta o aborto. Hâ inclusive razôes para se pensar que a liberalizaçâo do aborto leva à realizaçâo de um maior numéro deles,sem que por isso desapareçam os abortos ilegais e clandestines. Em Le Monde de 23 de Janeiro de 1985, o Planejamento Familiar acusa-se de ter praticado abortos ilegais. "Mais de dez mil muIheres da França abortaram ilegalmente em 1985, em territôrio nacional como no exterior (Grâ-Bretanha e Holanda)", assinala o relatorio da Confcderaçâo Nacional do Movimento Francês pelo Planejamento Familiar (MFPF). Os proprios dirigentes do MFPF acusam-se de ter praticado abortos ilegais ou feito com que outres os praticassem, assim como os membros da Associaçâo Nacional dos Centres de IVG (Interrupçâo Voluntâria da Gravidez)e de Contracepçâo (ANCIC). Em Le Monde de 11 de fevereiro de 1985, a ANCIC deseja que sejam introduzidas duas modificaçôes na legisla çâo atual. Em primeiro lugar, reclama a eliminaçâo do artigo 317 do (5) Nâo 6 inûtil inclicar aqui algumas publicaçôes muilo acessivcis, cie grande impacto, bem documentadas e cientificamente consistentes. Esses trabalhos serâo particularmentc preciosos para os que participam dos debaies sobre o aborto. Primeiro, hâ o dossiê elaborado por uma comissâo de jurisias, médicos, polfticos e intelecluais sobre Le permis légal de nier ou l'avoriement devant le Parlement, Paris, SID EF,s. d.[1971 ]; depois, Dr. e Sra.J.C:. WILLKE,Le livre rouge de Pavortement, Paris, France-Empire, 1974. Esta obra é uma traduçâo do célébré Handbook ofAbortion, publicado pela primeira vez em 1971, que teve mais de vinte ediçôes e foi iraduzido em cerca de dez idiomas. Consultaremos o livro que o sucede,dos mesmos autores,oujo tilulô éAbortion. Questions andAnswers, Cincinnati(Ohio), Hayes Publishing Co., 1988. (6) Graças à lei de dezembro de 1982, promulgada sob o régime socialista, a IVG é reembolsada pela seguridade social. Esse dossiê foi reaberto em 1986; cf.Le Monde de 23 de novembro,4 e 9 de dezembro de 1986. 17 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS codigo pénal, que faz da inlerrupçâo de gravidez o ùnico ato médico inclufdo no codigo pénal, o que, portante, singulariza-o ''indevidamente". Os médicos da ANCIC desejam também que o prazo de 8 dias para pensar, previsto pela le! atual, seja eliminado, pois atrasa a realizaçâo de uma intervençâo que quanto mais précoce for mais benigna sera. Em suma, pode-se perguntar se a liberalizaçâo do aborto nâo faz alastrar-se o mal que prétende controlar, em vez de remediâ-lo.^ E muito mais: por incnvel que pareça, o Relatorio do INED sobre o contrôle da natalidade na França (1966),^ que serviu de base à lei Neuwirth sobre a contracepçâo(1967)e à lei Veil sobre o aborto (1974), esta eivado de sérias falhas metodologicas apontadas por R. Bel.^^ Evsse especialista provou que, em decorrência de erros cuja origem deve ser motivo de preocupaçâo, as estimativas sobre os abortos provocados na França antes da lei Veil haviam sido curiosamente intladas. Ora,é sabido que o impacto dos dados que dâo conta do grande numéro de abortos provocados e clandestinos c détermi nante na votaçâo de todas as leis que liberalizam o aborto. O''mea culpa'' do Doutor Nathanson é a prova desse estado de coisas. Esse homem que tantos abortos fez, e hoje é um de seus mais ativos adversarios, ibrnece-nos iniormacôes extremamente interes' o santés sobre os métodos utilizados para enganar a opiniâo publica e (7) Sobre todos esses problemas, c indispcnsâvel consuliar a obra capital do professer .1. M. SOUTOUL, Conséquences d'une loi. Apres 600 jours d'avortements légaux, Paris, 1977. O professer Souioul preparou esse livre de reierência com a colaboraçâo de varies professores de ginecologia e obstetncia, bem como com a participaçâo de varies membres do corpe mcdico. Prefâcie da Dra. Lagroua Weill-Mallé. (8) Cf. "Rapport de l'Institut national d'Études démographiques à Monsieur le Ministre des Affaires sociales sur la régulation des naissances en France'', in Population, n." 4 (julho-agosto de 1966), pp. 64.S-661 (.sobre os abortos na França,cf. pp.651-661 ); ver também(i. CAI-OT,"Le nombre des avortements provoqués", in Population et sociétés, n." 69(maie de 1974)(em separala). (9) Un rapport niai fait! Recherches critiques sur le Rapport [traïa-se do relatôrio citado na nota precedente], 56p, mimeografado, s.l. (1976). Para completar, Emérentienne de LAGRANGE, Marguerite-Marie de LAGRANGli e René BEL, Un complot contre la vie. L'avortement, prefacio do professer P. -P. Gra.ssé, Paris, 1979 — foi feita uma atualizaçâo: a Mise à jour de dezembro de 1980. 18 A INOCENCIA DIFICIL l'aze-la pendcr a fovor do aborto, "suavizado" com o eufemismo de "intcrrupçâo voluntaria da gravidez"(IVG)J^ Em suas numerosas conrerências, B. Nathanson frisou repetidas vezes que os partidarios da liberalizaçâo do aborlo haviam dilundido inl'ormaçôes falsas sobre o numéro dessas operaçôes clandestinas. Segundo informa, os parti darios do aborto às vezes multiplicaram por dez a citra para impressionar a opiniâo pùblica! Da mesma maneira,como o numéro real de falecimentos decorrentes de abortos clandestines era reduzido de- mais para chocar o pùblico, os partidarios às vezes anunciaram uma cifra cinqùenta vezes mais elevada! O Dr. Nathanson afirma, em substância, que,se aplicada com constância, ta! tâtica — a mentira — pode fazer com que contraverdades énormes sejam aceitas como indubitàveis. Na Espanha, por exemplo, uma lei de novembre de 19cS3, que visava a descriminar o aborlo em très cases, sob a pressâo dos partidarios do aborto, levava em conta as citras manifestamente exageradas de 300.000 abortos clandestines no pafs. Ora, apenas 200 cases foram rcgistrados na Espanha inteira durante os seis primeiros meses subseqiientes à liberalizaçâo parcial do aborto. Embora às vezes sejam pouce confiàveis, talvez expostos a adulteraçâo, os dados estatisticos proporcionam, no entante, ordens de grandeza. Segundo o Dr. Soutoul, "apôs 18 meses de aplicaçâo incoerente da lei, entre 45 e 60.000 abortos foram declarados nos Centres Oficiais em 1975, depois 135.000 em 1976 e cerca de 150.000 em 1977'\'' Desde entâo, veritïca-se uma elevaçâo constante dessas cifras, pois em 1983 o INED registra 182.862 abortos, ou seja, 24,4 abortos (10) Ver p. 43,(S2 ss. e us rerercncias. (11) Conséquences d'une loi en vigueur en France depuis trois ans. Analyse actualisée en mai 197S et propositions d'avenir (pro manuscripto), s.l., s.cl.(Tours, 1978). Esse lexlo rcssulta diverses clados publicados no livro Conséquences d'une loi, do mesmo aulor. Chanial 13LAYO examinou com detalhes o procedimenlo a ser seguido na França para o regisiro do aborlo provocado em "L'enregistrement de j| l'avoricment provoqué en France",in Popidation, ns.." 4-5(1977), pp.977-985. O trabalho faz uma anâlise dos dados disponiveis para 1976, e um mapa dos abortos prtwocados na França em 1976. Ver tambcm, no exame da "Situation démographique de la France", a rubrica dcdicada às IVG: "Interruptions v(.)loniaires de grossesses", em Fopidation, n.*-' 2(1978), pp.295-297. 19 59= O ABORTO; ASPECTOS POLÎTICOS para cada 100 nascimentos vivos. Infelizmente, esta dira fica aquém da realidade, pois, ao acusar-se de praticar abortos ilegais, o Plane- jamento Familiar faz o nivel subir para 220.000 abortos em 1983.'^ Por sua vez, o INED colocaria o nivel um pouco aciina,jâ que avalia em 35 o numéro delVGs para cada 100 nascimentos, num total de 250.000 casos por ano.^^ Eis alguns dados oficiais do Eurostat 1989 para os paises das comunidades européias:^"^ Pais Numéro Numéro de Estâtisticas de abortos em % dos nascimentos legais nascimentos vivos RFA (1987) França (1986)* Itâlia (1987)* Holanda (1985) Inglaterra (1987)* Dinamarca (1987) 642.010 88.540 778.468 166.348 552.329 187.618 178.136 17.300 775.600 165.800** 13,8 21,4 34.0 9,7 24,6 20.830 37.1 56.221 * Resultaclos provisôrios. ** Total para resiclenies. Éintéressante analisar com mais detalhes a situaçâo na Inglaterra e no Pais de Gales,onde o aborto foi legalizado em 1967. Em 11 anos foram registrados 1.325.146 abortos legais. Eis os dados para o (12) Le Monde, i 1 de fevereiro de 1985. (13) Le Monde, 11 de fevereiro de 1985. (14) Fonte:EURO^TKï:,Démographie statistics. Statistiques démographiques19isy, Luxemburgo-Bruxeias, 1989. Para os dados referentes a cada pais, convém consultar as tabelas 5 c 6. A Grâ-Bretanha distingue os abortos legais de residentes(165.800)e nâo-residentes(18.100);os 24,6 abortos legais para cada 100 nascimentos vivos sô valem para a Grâ-Bretanha, pois a lei de 1967 sobre o aborto nâo é aplicâvel à Irlanda do Norte. (15) TLT LEWIS,"Légal abortion in England and Wales 1968-1)78 , m witisn MedicalJournal,2 de fevereiro de 1980, pp. 295 ss. 20 li A INOCENCIA DIFICIL période entre 1968 e 1978, por exemple. Para 1968: 20.947 abortes para residentes; 1.309 para nâe-residentes; total: 22.257. Para 1973, ternes 110.568, 56.581 e 167.149, respectivamente. Para 1978: 111.851, 29.707 e 141.558. Em 1968,44% das mulheres que abortaram eram casadas; 56%, solteiras, viûvas, diverciadas eu separadas; 2,3% tinham menos de 16 anes. Para 1973, temos 43%,57% e 2,2% respectivamente. Para 1978: 35%, 65% e 2,6%. O cementârio de auter précisa:"É tipice que e DHSS (administraçâe da saûde pûbli- ca) recenheça e enerme volume de trabalhe adicienal résultante de Atede 1967..." E particularmente impressienante a porcentagem majeritâria de mulheres sezinhas(até 65%)que recorrem ae aberto. O fenômene nâe é préprie à Inglaterra; também ocerre na França. Portante, a Dra. Laure Brisbeis tem motives para escrever: '*Uma lei que permitisse e aberte séria faverâvel aes irresponsâveis sexuais, pois 55% das mulheres que abortam sâo solteiras, e 14% concubinas, ou seja, um total de 69%".^^ A verdade é que a experiência da liberalizaçâe de aborte, realizada em varies paises, preveca tanta discussâo, se nâe mais, quanto es debates que precederam e precesso de legalizaçâe de aberte. Mais que nunca,e problema suscita graves questôes e muita preecupaçâe. Nâe se trata prepriamente de acrescentar um neve elemente a um dessiê jâ bastante complexe, e ainda menos de retomar a totali- dade de debate. É prefenvel tomar alguma distância em relaçâe as discussôes em curse ne intuite de relativizâ-las, quer dizer, de salientar que sâe relativas a um determinade estade da seciedade. (16) Laure BRISBOIS,"Un choix responsable",in Marie-Claire,setembro de 1987, p. B 194. (17) Sobre as experiências inglesa e norte-americana, ver G. FRANCOME, "Abortion policy in Britain and the United States", in Sociology ofWork and Occupations, t. 25,1980, pp. 5-9; Philippe DURANT,"Avortement: les leçons de l'histoire", in La Libre Belgique (Bruxelas), 5 de Janeiro de 1990. Sobre a experiência italiana, cf. G. PERICO,"A sette anni dall'entrata in vigore délia legge sull'aborto, in Aggiornamento sociali, t. 36, 1985, pp. 571-586. 21 O ABORTO: ASPECTOS POLÎTICOS Dos rigores da penùria às misérias da abundância Nossa sociedadeé baseada na aliança estreita entre descobertas cientfficas, produtividade e produçâo, pubiicidade, consumo e desperdfcio. Marcuse e McLuhan, entre outros, analisaram bem os mecanismos que condicionam nosso assentimento. Livre dos rigores da penuria, o homem do mundo desenvolvido torna a ser afligido pelas misérias da abundância. Ei-io que se submete à ciência e à técnica, nas quais via o instrumente de uma libertaçâo. Assim, o dommio da técnica rcvela-se ambiguo: ou bem propicia o florescimento da criatividade responsâvel,ou bem o fascmio prometéico que ela exerce acaba absoi"vendo a liberdade.^^ Neste contexte, a margem de escolha pessoal diminui dia a dia. A "massagem" publicitâria oferece racionaiizaçôes confortâveis ao exercicio da agressividade: a dominaçâo dos outros séria a concorrência; a dominaçâo da natureza séria o progresse cienliTico. Desta maneira sâo eliminados os mecanismos racionais destinados a con- troiar a agressividade. Assim, os homens dos paises dites desenvolvi- dos corrern o risco de se tornarem um ^'povo de carneiros",seguidores de cegos.^*^ Estâo tâo obnubilados pela lùria consumista que introjetarâo alegremente as ideologias que virâo legitimar o sistema do quai se aproveitam. Ora, essas ideologias baseiam-se no postulado do hédo nisme maxime:fica combinado que cada um tem o direito de procurar incondicionalmente o maior prazer subjetivo possfvel. A criança anunciada e, assim, rebaixada ao nfvel de um bem de consumo. É como uma lelevisâo ou um carre: adquire-seou nâo. Nâo a querendo, aborta-se. A vontade de liberalizar o aborto s6 pode ser entendida quando relacionada com o clima gérai em que estâmes mergulhados, no quai corremos o risco de sermos enfeitiçados pelo fascmio do consumo e da técnica. Por um lado,o imperativo do consumo postula a limitaçâo (18) Ver, da Dra. Lagroua WEILL-HALLÉ,L'avonement de papa. Essai cntic/ue poiu une vraie réforme^ Paris, Fayard, 1971. Nesse pequeno livrn — nâo estamos de acordo com lodas as suas conclusôe.s —, a sra. Wcill-FIalIé frisa as responsabilidades envolvidas na decisâo de abortar. (19) Cf. nosso C'ap. W:A smdrome de Panurgo. A INOCENCIA DIFICIL do numéro dos que participam dos bens dispomveis; é preciso salvaguardar prioritariamente os que agora desfrutam desses bens. Por outre lado, ébrio com seu dommio cientifico e lécnico, o homem debca que se embote seu senso de responsabilidade. Rsse duplo dominio tende a promover a idéia de que a força faz o direito. Da ao homem a impressâo de ser seu proprio senhor — e por isto senhor do outro. 23 II O retorno do Leviatâ Todo projeto ou proposta de lei visando a liberalizar o aborto comporta uma cilada que é importante desmascarar sem complacência. As discussôes a respeito dessa liberalizaçâo poderiam levar a crer que o objeto do debate esta cabalmente circunscrito: séria a modificaçâo ou a revogaçâo de uma lei de carâter pénal. A complexidade dessa lei é, sem duvida, maior ou menor, mas seu alcance parece limitar-se estritamente a um problema preciso: o aborto. Séria possivel imaginar que se trata exclusivamente da "interrupçâo da gravidez". A importância do que esta em jogo Na verdade nâo é assim, e o que na verdade esta em jogo, em ûltima anâlise, é da maior importância. Nâo hâ como dissociar o debate sobre o aborto de uma discussâo que abarque nâo apenas o Direito Constitucional e seus fundamentos, como também a Teoria Gérai do Estado."Uma pequena modificaçâo nas leis civis, observa Montesquieu, muitas vezes desâgua numa modificaçâo da Constitui- çâo. Parece pequena e tem efeitos imensos."^ O exame de qualquer projeto ou proposta de lei visando a liberalizar o aborto acarreta inevitavelmente um questionamento das instituiçôes democrâticas e da identidade de nossas sociedades politicas. Eis porque, neste terreno, as meias-medidas e os compromissos jâ constituem capitulaçôes com conseqùências irreversiveis. For oca(1) MONTESQUIEU, Matériaux pour "L'Esprit des Lois" exti'aits de "Mes pensées", Paris, Gallimard (coi. La Pléiade), 1951, t. II, n.®414, p. 1112. 25 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS siâo de um debate sobre o aborto, o legislador nâo pode eludir o questionamenlo de nossa sociedade polftica. É sobre ela, sobre sua nalureza, que tem inevitavelmente de se pronunciar. Nos nos propomos a demonstra-lo examinando de maneira sucinta as relaçôes entre direito e lei, a separaçâo entre Icgislativo e judiciârio, a concepçâo do Estado. Admitimos espontaneamente que leis positivas possam scr injustas c que, portanto, a ordem légal nâo esgota as exigências da justiça. Obra dos homens, a lei é perrectivel.^ Num contexto historico dado, ela tenta garantir condiçôes indispensâveis para que os homens possam existir juntos enquanto sujeitos de direitos. Esses direitos humanos se traduzem com maior ou menor acerto na lei positiva, mas sâo anteriores a toda codificaçâo e independentes de sua ratificaçâo pelo legislador. Sâo revelados, proclamados, reconhecidos; nâo sâo atribuidos, outorgados nem concedidos; sâo inalienâveis e imprescritiveis.*^ Todos os grandes movimentos sociais lïzeram valer direitos reais mas nâo reconhecidos pelas autoridades do momento; todos os grandes movimentos revolucionârios da historia foram fëitos contra instituiçôes polfticas que impediam sua afirmaçâo. Basta lembrar, por exemple, a Magna Carta, de 1215, a Pétition ofRights, de 162(S,o Bill ofRights,de 1689,ou a Declaraçâo de Independencia dos Estados Unidos, de 1776.'^ Foi em nome desses direitos que loi Feita a Revoluçâo Francesa e que os burgueses denunciaram a denegaçâo de justiça do Antigo Régime. Foi em nome desses mesmos princfpios realistas que a maioria dos movimentos socialistas lutou pela libertaçâo do proletariado.^ (2) îluminado pcio lema heicleggcriano cla hisioricidaclc, o problema dos direitos humanos inspirou varios trabalhos importantes, entre os quais temos: W. MAIHOFER, Recht und Sein. Prolegomenn zii einer Recfitsontologie, Frankfurt-sobre-Main, 1954; A. KAUFMANN, Natwrechî und Geschichtlichkelt, Tiibingen, 1956; Lco STRAUSS, Droit naturel et histoire, Paris, Pion, 1954. Ver também .1. LADRIÈRE, "Les droits de l'homme et l'historicité", in Vie sociale et destinée, Gembloux, Duculot, 1973, pp. 116-138. (3) Este problema é amplamentc tratado no estudo documentado de A. VERDOODT, Naissance et signification universelle des droits de l'homme, Louvain-Paris, Nauwelaerts, 1964. (4) Textes reunidos por M. DUVERGER cm Constitutions et Documents politiques, Paris, PIJF, 1964, pp. 289, 309, 311 e 314. respcctivamente. (5) Assim, a identiUcaçâo abusiva entre o homem burguês e o homem em gérai é estigmatizada por K. MARX em "La Question .luivc", in Pages de Karl Marx 26 O RETORNO DO LEVIATÀ Mais perto de nos, esses mesmos principios animaram as lutas pela independência nos paises colonizados. A instauraçâo historica da justiça Esses direitos nâo resultam apenas da reflexâo dos fiiôsofos ou da perspicâcia dos jurislas; sâo objeto de uma progrcssiva lomada de consciência ao longo dos séculos. Alias, numa mesma época, essa consciôncia pode ser muito desigual conforme os ambientes sôcioculturais. O lato de reconhecer em todo ser humano um sujeilo de liberdade corresponde a uma experiência historica bem determinada que, de certo modo, dâ a tal reconhecimento um fundamento expé rimental. Na historia fazem-se experiências que tornam os homens sensiveis a comportamentos e a instiluiçôes aos quais nâo estavam abertos antes. Descobriu-se progressivamente tudo que havia de anormal, de imoral ou injusto na inslituiçâo da cscravidâo. S6 pouco a pouco se percebeu a malfcia do colonialismo, ou de uma certa sujeiçâo da mulher, ou mesmo o mero lato de que os homens sâo sujeitos de direitos inalienâveis e imprescritiveis. Descobriu-se a imoralidade da tortura com o passar dos séculos, e essa descoberta ainda nâo esta terminada.'' Assim também hoje acontece em relaçâo ao racismo e às mais diversas discriminaçôes. Pouco a pouco é descoberto o direito à participaçâo e suas diierentes implicaçôes. Trata-se de descobertas historicas sempre frâgeis, que mostram a existencia de uma instituiçâo historica da justiça na sociedade dos homens. A justiça nâo sai pronta e acabada do espirito dos tilôsotos, moralistas e juristas. Ela se instaura nas culturas e na historia humanas, historia feita de retomadas criticas cujo objeto sâo comportapour une Éthique socialiste, Paris, Payot, 1970, pp. 281-283. (6) Como é proveitoso distinguir os problemas,deixamos deliberadamente de lado o debate sobre a pena de morte. Limitamo-nos a regislrar que o principio invocado a favor do criminoso peios que sâo contra a pena de morte é o mesmo advogado a favor da criança inocente nâo-nascida: o respeito incondicionai ao outro. 27 O ABORTO; ASPECTOS POLl'TICOS mentos dos quais é denunciada a injustiça porque homens sofreram por sua causa. A reflexâo filosofica E verdade que o trabalho do [ilosolo também tem primordial importância. Mas neste, como em todos os outres terrenos que investiga, o [ilosolo nao constitui o objeto de sua propria retlexâo. Em relaçao aos direitos humanos,seu trabalho é segundo;ele reflete sobre um dado. Interroga-se sobre os fundamentos desses direitos humanos. Tematiza sua experiência, quer dizer, esibrça-se em mos- trar/;o/Y/£/e o homem é sujeilo de direitos e/;o/'(7££e tais direitos devem ser reconhecidos e promovidos. Portanlo, a retlexâo tilosotica alimenta-se da experiência queo homem tem da liberdade e da opressâo, nas diferentes culturas e em diversas etapas da historia. A rellexâo ilumina a experiência segundo os critérios de uma determinada concepçao de homem; mas, por sua vez, a experiência suscita e provoca a reflexâo. Em suma,entre a retlexâo e a experiência hâ uma relaçao dialética: uma remete à outra.^ Mas a retlexâo filosoiica nao é neutra. Ela é engajamento, tomada de posiçâo,escolha de lado.Sempre apresenta uma dimensâo poiêmica; é sempre um combate a favor ou contra o homem. A favor ou contra uma determinada concepçâo de homem.E dessa leitura do homem depende,evidentemente, a interpretaçâo que o fiiôsotb dâ à experiência historica. Assim, a historia da filosofia mostra que todos os tllosotos nâo perceberam da mesma maneira seu proprio engajamen to no mundo dos homens. Uns abriram caminho para aventuras imperiais, justiticaram a tirania da sociedade, aprovaram os excessos do individualismo mais desentreado. Outros, em contato estreito com as realidades polfticas, contribuiram para a eciosâo da mentalidade democrâtica no sentido contemporâneo do termo. Ficaram atentos à emergência dos sinais que anunciavam uma sociedade aberta a todos os homens, uma sociedade onde cada um séria percebido como portador do novo para o grande bem da comunidade humana aberta a todos. (7) Cf. sobre o assunto É. N Philosophie politique, Paris, Vrin, 1956, p. 39. O RETORNO DO LEVIATA No concrète das situaçôes, essas duas correntes sempre coexistiram e as tensôes entre elas sempre foram muito vivas. Hoje sâo mais vivas do que nunca e, se nada mudar, serâo ainda mais intensas. A maré de l'undo que percorre o mundo e quer o triunlb da liberalizaçâo do aborto atesta a persistência e a força da primeira corrente que mencionamos. As grandes declaraçôes de direito, que sâo como que os farois da sociedade democrâtica ocidental, atestam o vigor prâtico — juridico, politico — da segunda corrente. Pois é desta, e nâo da primeira, que procédé o impulse décisive — e que acreditavam até ser irresistivel — que leva os homens a sobrepujar a tirania do Rstado, da espécie ou do individuo.^ Os esforços convergentes dos polfticos,juristas e filosofos preocupados em substiluir as relaçôes de opressâo por estruturas de acolhida resultaram numa obra cultural especifica. De lato, ao longe dos séculos, os homens eslbrçaram-se em elaborar declaraçôes de direitos humanos — acabamos de recordar as principais — que nos fazem captar a importância da distinçâo entre direitos humanos e legislaçâo positiva. Uma determinada declaraçao contempla explicitamente os direitos da criança.*^ Nenhuma dessas declaraçôes se apresenta como lei positiva; nenhuma contere aos homens a qualidade de sujeitos de direitos. Tais declaraçôes explicitam apenas a tomada de consciencia de determinados direitos dos quais todo homem é sujeito antes de redigida qualquer declaraçao. Enunciam direitos "inalienâveis e imprescritiveis" que os Estados e legislaçôes positivas deverâo levar em conta, respeitar, lazer respeitar, promover. (8) Vollaremos ao prohiema no Eap. IV. (9) Cf. R.SAUNIER,L'enfant et ses droits, Paris, 1970. Le-se noiadamenle nessa Declaraçao: "Bm vinudc de sua ialia de maturidade iïsica e inielccluai, a criança précisa de proteçâo e cuidados espcciais, noladamente de uma proicçâo jurfdica apropriada,tanto anies como depois de seu nascimenlo.'" O Preâmbulo do projeto de Convençâo aprovado peio Grupo de Irabalho [...) sobre a questâo relaliva aos direitos da criança reloma este lexlo. Cf. ONU, Conselho J Econômico e Social, Comissâo de Direitos Humanos,(Genebra), 45."sessâo, 26 de novembro-9 de dezembro de 1968, documenio EIC N4I1969I29, de 30 de dezembro de 1988; GE 89-1067916762n, ver p. 4. Cilando esta Declaraçao, o Preâmbulo da C^onvençât) aprovada pela ONU por unanimidade em 20 de novemliro de 1989 prescrvou a mesma idcia da neccssidade da proteçâojurfdica e nâo jurfdica à criança antes e depois do nascimento. C4. p. 50ss. 29 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS De lato, nesla pcrspectiva supôe-se que o Estado reconheça a cxistência de sujeitos de direitos anleriores a sua propria instauraçâo (do Estado). Portanto, o Estado nâo é a ultima instancia do polftico. Sô ha fundamento, ou antcs, Icgitimidade, na medida em que ele reune um conscnso livre, emanando justamente das vontades livres dos membros do corpo poh'tico. Precisamente,esses membros estâo em sociedade poiïtica porquc, acima de suas divergências, talvez de seus contlitos,existe entre eles um consenso fundamental em torno decertas normas de vida — como a que proibe o assassinato, ou a que reconhece em cada homem um sujeito de direitos.Se tal consenso for prejudicado, a qualidade mesma do régime estara sendo questionada.^'^ Na verdade, a invocaçâo da "soberania polftica" ou da "regra da maioria" para justilicar a liberalizaçâo do aborto nâo deve iludir ninguem. A partir do momento em que se admite que o ser concebido c humano desde sua origem, a liberalizaçâo do aborto comporta inelutavelmente o questionamento radical de um dos principios maiores para cuja defesa os homens passaram a viver em sociedade poiïtica. Assim sendo, hâ motivos para dizer que existe ohjelivamente subversao da ordem polftica e jurfdica. Desencadeia-se um processo suicida da democracia. Doravante d' desohediência civil esta justificada e a resistência torna-sc um dever. Direitos humanos e legislaçâo positiva A preocupaçâo central do Estado democrâtico é o respeito à dilerença entre os homens, à alteridade; é a coexistôncia de liberda- des.^^ Eis por que a democracia nâo é possivel sem certas formas de (10) A sra. ^Simone VBIL locou cm diverses aspcctos do probicma que examinâmes aqui no Expose que fez peranle e C'engresso de Mexico em 1977 (citaremos este texte ceme Exposé).()texte complété da inlervençâo figura no 4.^^ volume das Atas do Cengrcsse, publicadas cem e titule dcAlexico 1077. International Population Confefence — Congrès International de la Population. Proceedings, Liège, Paperback publicade pela Uniâe Inicrnacienal para o Estudo CientiTico da Pepulaçâe (lUSSP), 1978, pp. 591-602. A traduçâe inglesa deste texte, de David B. Dety, foi publicada cm Population and Development Review, vol. 4, n." 2(junhe de 1978), pp. 313-321. (11) "Cempreende-se, perlante, que a humanidade se icnha chegade à democracia 30 O RETORNO DO LEVIATA connito: tâo logo se Iratc de singularidade rcspeitada, necessariamente — ao mcnos virtualmcntc — ha conllito.'^ Contudo, na sociedade de tradicâo democratica ocidental às vezes c adotada, nesse senlido, uma alitude muilo diferenle da que vigora nos paises totalilarios. Estes esl'orçam-se em reduzir o "outro" ao "mesmo". Ao dissidente, ao oposilor, cabe apenas ou hem submeter-se a recicla- gcm, reprogramaçâo, marginalizaçâo, carcere etc., ou bcm aceilar a morte, Lïsica ou psicologica nos hospitais psiquiâtricos. Teremos entâo,conforme a expressâo de Marcuse, uma sociedade de homens ''unidimensionalizados". É por estas razôes que os Estados totalitarios, sem exceçâo, é é % j eliminam a distinçâo entre direitos humanos e legislaçao positiva: ■ esta define a justiça e supostamente esgota suas exigências. À primeira vista, a liberalizaçâo do aborto causa um dano menor a ta! distinçâo. Esse dano é tolerado tanto mais laciimente quandc) podc lazer uso dos argumentos de autoridades medicas, psiquiâtricas, sociolbgicas, filosoLicas ou teolbgicas sobre o carater humano da criança antes do nascimento, st>bre os interesses da mulher, da lamfiia ou da sociedade. Apiadando-se da existôncia infortunada à quai se supôe estar destinado o novo ser, alguns chegam aie a preconizar o aborto no proprio interesse da criança! Em todos os casos considerados, nâo se trata de danos com conse- qiiências limitadas; estamos de lato diante de uma moditicaçao lUaiiva extremamente profunda de nossa concepçao do direito. Nos régimes democrâticos, nâo cabe de modo algum ao iegislador constituir os sujeitos de direito. At)liberalizar o aborto, contudo, Uirdiamcnie {pois roram falsas dcmocracias as cidadcs anligas, erigidas sobre uma base de cscravidâo, iniquidadc fundamcntal que as livrava dos majores e mais angustianies problcmas). De lodas as conccpçôes poliiicas, csla é de laio a mais disianie da naturc/a. a ùnica a transcender, ao menos na intençâo, as condic,-ôcs da soctcdade tcchada." 11. HEKCiSON,U^.v dmxsoiirces de la morale er de la reli^^ion. in Oeinres, l'aris, PUP, 1959, p. 1214. {12} Cf..leaivCiaude SACiNli, Confia, changement conversion. Vers une éthique de la réciprocifé. V'<\ni^. I.^d. du Cer! cl Dcscléc & C-ic, 1974. (13) Ver, por exempkpcomoHOBBI'Seonccbc a lihcrdade dos sujeitos, e a relaçâo entre Ici naiural e Ici civil, que "se conicm uma na outra c sâo de igual extensâo . Ver a II.'' pane, cap. 21 {cm parlicular pp. 224-227) e cap. 26 (sobrctudo pp. 283-286).I^emeicmos à iraduçâo franccsa de Lévmthan, Paris, Siray, 1971. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS o legislador arroga-se uma dupla prerrogativa exorbitante: constitidr o sujeito de direilo; définir integralmente os direitos desses sujeitos, inclusive, e em primeiro iugar, o direito fundamental à vida. Ora, na tradiçâo ocidentai, matar friamente um vizinho por uma futilidade séria crime mesmo se, por alguma inacreditâvel omissâo, o codigo pénal nâo o définisse como tal e nâo o sancionasse. E o legislador nâo pode decidir à vontade que matar deste modo nâo é um crime ou que roubar nâo é um delito; ao contrario, ele deve prévenir e reprimir crimes e delitos. Da mesma maneira, o Estado também nâo tem o direito de permitir o aborto; ao contrario, deve preveni-lo, proibi-lo e reprimi-lo. Contudo,os poderes fortes muitas vezes sonharam em usurpar tal prerrogativa, e a hisloria das liberdades politicas e juridicas no Ocidente, tanto cm nivel nacional como internacional, coincide com a incansâvel denuncia dessa pretensâo totalitâria. Socrates morreu por esse idéal que mal ou bem protegemos hâ séculos,submetendo-se lucidamente a uma injunçâo cuja legalidade reconhecia,sabendo sua imoralidade.*"^ A distinçâo entre os direitos humanos e a lei positiva, entre a pessoa e o cidadâo, e sem sombra de dûvida uma das conquistas maiores da historia c do pensamento politico do Ocidente.E também uma de suas conquistas mais constantemente ameaçadas. Consagrada na época moderna pelas constituiçôes, expressas nos codigos civis e penais, essa distinçâo é a garantia mais segura das liberdades publicas e individuais, o mais seguro motor do progresso social e poh'tico. Essa distinçâo informa todas as instituiçôes polfticas dos Estados democrâticos modernos, que nela vâo buscar o principio da separaçâo entre os poderes législative e judiciario, e o principio da limitaçâo do poder do Estado — leia-se do executive. A separaçâo dos poderes La onde os direitos humanos e a lei positiva coincidem,o poder (14) A distinçâo entre )ustiça c legalidade parece jâ ter sido afirmada por Hippias. Cr. XENOFON'IÊ,Mémorables. 11, 4, 12. 32 O RETORNO DO LEVIATÀ judiciario. ao menos no sentido em que o entendemos, nâo tem nada a fazer.Ojuiz constata o desvio entre a conduta individual e a norma légal, e sanciona a desobediência. Como a moralidade pessoal identifica-se à observância da lei, o juiz nâo deve preocupar-se em compreender, por dentro, as circunstâncias agravantes ou atenuantes, as motivaçôes subjetivas. A Funçâo judicativa é reduzida a uma tareta de constataçâo, anâloga à do policial que presencia uma intVaçâo ao côdigo de transite e emite a muita reterente à contravençâo. Em todos os casos, o poder judiciario esta,antes de mais nada,a.serviço da lei positiva, manifestando suas exigências e punindo as violacées objetivas. O judiciario tende, portanto, a ser um apêndice do législative e do executive. No direito ocidental, a distinçâo entre direitos humanos e lei positiva também permite que se limite o poder législative, evitando seu arbi'Lrio. O legislador esibrça-se em elaborar leis justas, quer dizer, rcspeitosas dos direitos inalienâveis do homem. Enuncia normas de conduta social, formula direitos e deveres, estipula as penas que sancionam a desobediência. A atividade de legiferar situa-se, portanto, num nivel de generalidade que confère carâter transpessoal â lei promulgada. A funçâo do legislador nâo é garantir a aplicaçâo da Ici: este papel c apanâgio do juiz. Cabe ao poder judiciario apreciar a responsabilidade subjetiva dos acusados de infraçôes objetivas â lei. O juiz nâo negarâ a realidade do crime, mas, na aplicaçâo da pena, levarâ em conta circunstâncias atenuantes ou agravantes. O legislador que lïzesse uma lei em funçâo de particulares — grupos ou individuos — estaria demonstrando parcialidade, iniqùidade, arbitrio. Mas o juizquese limitasse a aplicar a lei de forma mecânica e cega também chegaria ao arbitrio e à injustiça. Portanto, para que o legislador nâo amplie sua esfera de competência e para que o juiz nâo seja rebaixado ao nfvel de executor de determinaçôes mais ou menos arbitrârias do legislativo, é de capital importancia manier cuidadosamcnle a separaçâo dos poderes. Assim,nâo é porque o legislador deliniu e decidiu que "o aborto nâo é mais um crime ou um delito'' que o aborto deixarâ de ser um crime ou um delito.^^^ A atividade legislativa, assim como a judicativa (15) Apontam ncste seniido as propostas de M.FAVRE cm Un crime de moins, La Chaux-clc-Fonds, 1971. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS ou a executiva, as quais a primeira se articula, é destinada a defender e promover direitos humanos. Ela nâo define a justiça: précisa suas petiçôes concretas, instaura-a na histôria. B se o legislador capitular diante de ta! crime ou delito a ponto de negar-lhes, no piano légal, a qualidade de crime ou delito, concluiremos que estarâ abusando do poder que Ihe cabe e desnaturando ojudiciârio. Nâo apenas o projeto que ele aprovar sera anticonstitiicional, mas, além disso, o governo que o apresentar perderâ sua legitimidade. O Estado hipostasiado Assim somos levados a considerar uma ùltima implicaçâo cons- titucional e politica da liberalizaçâo do aborto. Ao deslanchar um processo que desemboca da contestaçâo da separaçao entre judiciâ rio e legislativo — em beneficio do legislativo —,inicia-se, na verdade, um processo que leva a contestar a separaçao entre legislativo e executivo — em beneiïcio do executivo. Em termos mais explicitos, isto significa que se lançam as bases de um Estado muito diferente do que conhecemos, de um Estado que transcende os cidadâos, de um Estado hipostasiado.^^ O consenso fundador fica, assim,rompido. Na verdade, a partir do instante em que renuncia a levar em conta sujeitos de direitos anteriores à lei positiva, em que se réserva a prerrogativa de, em ûltima instância, définir o crime, o legislativo faz de sua força a fonte do direito, da legitimidade e da moral. Foi o que viram perfeitamente diverses filosofos politicos, de Maquiavel a Hegel, passando por Hobbes — para citar sô esses clâssicos. O legislador deixa entâo de ser représentative dos cidadâos e répudia seu mandate; no momento em que solapa a si mesmo,instaura um e um sô sujeito de direito: o Leviatâ.^^ (16) Encontramos uma boa ilustraçâo de ludo islo em HOBBES.Cf. Léviathan, I." parte, cap. 14(sobre os Coniratos, especialmente pp. 130-135); 11.^ parte, cap. 17 (sobre a Repûblica, especialmente pp. 177ss) e cap. 18 (sobre o Soberano, pp. 179-191). (17) O Leviatâ é um monstro bibllco que aparece principalmente em Jb 40,25;3,8; Es 27, 1; Am 9,3; Ps 74, 14; 104,26. Hobbes atribui o nome desse monstro ao ^'deiis morîaV\ a quem devemos,sob oDcusimortal, nossa paze nossa proteçâo. Pois, em virtude da autoridade que recebeu de cada indivfduo da Repûblica, 34 O RETORNO DO LEVIATÀ Reunincio as prerrogativas dojudiciârio e do legislativo,excluindo qualquer divisâo, repartiçâo e equilibrio de poderes, esse Rstado disporâ de um poder de execuçâo e de coerçâo ilimitado e incontrolâvel mesmo se, bom principe, outorgar alguns direitos aos cidadâos. E o que explica que certos advogados latino-americanos às vezes tenham preferido invocar a legislaçâo protetora dos animais para defender acusados de delitos contra a "segurança do Estado"submetidos à tortura em paises de régime ditatorial...^^ Descriminalizar? Liberalizar? Aqui aparece a precariedade da distinçâo proposta por alguns entre descriminalizaçâo e liheralizaçâo do aborto. Descriminalizar significaria aqui que o aborto escapa à sançâo pénal, o que nâo significa necessariamente que seja permitido. Casos anâlogos, de ordem menor,é vcrdade,sâo bem conhecidos: nâo se aplica pena em caso de roubo de um pâo comctido por um miserâvel faminto.Porém, numa sociedade de tradiçâo democrâtica e libéral, descriminalizar o aborto significaria declarar que nâo é passivel de puniçâo, o que na prâtica equivaleria a autorizâ-lo, liberalizâ-lo, fazer dele um direito vinculado às liberdades individuais. Descriminalizar o aborto signifi ca aceitâ-lo, reconhecer seu direito de existir; é legalizo-lo, quer dizer, cobri-lo com a autoridade da lei; é privar a criança nâo-nascida de toda proteçâo légal a sua exislência mesma.^'^ Alguns vâo até mais longe: pedem ao Estado que desculpahilize o aborto. O proprio vocâbulo que empregam révéla que percebem confusamente que, se liberalizasse o aborto, o Estado, tal como é concebido em nossa civilizaçâo, estaria extrapolando os limites da é-llie confcricio o emprego de tal poder e la! força, que o horror que inspifam permiie-lhe moidar as voniades de lodos com vistas à paz interna e à ajuda mutua contra os inimigos externos"(Léviaihan, p. 178). Ver também p. 178, e o texto de S. Veil. (18) Os defensores da criança nâo-nascida em breve talvez tenham de lançar mâo da Declaraçôo Universal dos Direitos do Animal., solenemente proclamada na UNESt70 em 15 de outubro de 1978. Para a França, remetemos à lei Thome-Patenôtre (1976). (19) Retornaremos a este problema nos Caps. V e XIII, bem como nas pp. 182s. 35 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS missâo que Ihe cabe. Entâo, nâo hesitam cm pedir ao Estado uma intervençâo tal que implique nâo apenas uma ampiiaçâo de suas atribuiçôes,como também uma profunda mudança em sua propria natureza. S6 o Estado-Leviatâ — quer dizer, tendendo ao totalitarismo — pode aceder a seu desejo, e eles o inslituem no dia em que transferem para suas mâos uma de suas proprias rcsponsabilidades inaiienâveis. Rumo à "servidâo voluntâria" A instauraçâo — mesmo e sobretudo indolor — desse tipo de Estado transtorna de alto a baixo nossa concepçâo dévida politica e, cm particuiar, de democracia. E eliminada a tensâo ente Naçâo c Estado, pois o Estado identifica-se à Naçâo e se apresenta como porta-voz autêntico e exciusivo de seus interesses. Portante, a Naçâo nâo tem mais contrôle sobre as instituiçôes que o Estado conrisca em beneiïcio proprio. Do mesmo modo, a pessoa é identitlcada ao cidadâo e reduzida à condicâo de funcionârio. Assim também, o legftimo é identificado ao légal. For conseguinte, sera justo o que emanar de uma decisâo do Leviatâ;sera injuste o que ele définir como injuste. Vocês serâo bons ou maus cidadâos se o Estado e seu aparelho os considerarem bons ou maus cidadâos. A Razâo de Estado torna-se a referência absoluta e "inquestionâver', de tal forma que jâ nâo poderâ subsistir o Estado de Direito.^^ E o Estado-Leviatâ que détermina o que é certo ou errado; é ainda ele que define quem merece ser cidadâo ou quem, ao contrario, nâo merece. O indivfduo se torna sujeito de direito desde que satisfaça às nonnas estabelecidas pelo Estado, ao sabor do julgamento, da vontade e do arbftrio dos senhores do régime em questâo. De reçue em recuo, de abdicaçâo em abdicaçâo, os homens podem até nem sequer perceber que estâo numa escajada rumo à ''servidâo voluntâria".^' Jâ pedem ao Estado a segurança, o conforto e a felicidade.^^ Em breve Ihe perguntarâo o que é a felicidade para eles. (20) ex Cap. V. (21) Cf. Etienne de \^/\V>OÉT[^,Le discours de la sen'imde voloniaire, Paris, Payot, 1976. Ver, por exemplo, os textes surprecndenies das pp. 179ss. (22) A sra. Simone Veil rcfere-se a uma concepçâo audaciosa do Estado ao afirmar O RETORNO DO LEVIAT o que 6 a justiça. Em suma, o Estado é chamado, afinal de contas, a "humanizar",se quiser, os seus sûditos. Basta uma râpida olhada em nosso jornal habituai para recordar-nos que os régimes inspirados nesses principios nâo pertencem ao museu das instituiçôes politicas; hoje sâo muito mais numerosos que os de tradiçâo democrâtica e libérai. Nos paises onde o aborto foi liberalizado,sâo esses principios mesmos os invocados nas defesas ejulgamentos de casos de aborto.Perante os tribunais, os arrazoados cada vez mais colocam-se exclusivamente no piano do positivismo juridico, debcando de lado toda e qualquer refercncia a uma ordem metajuridica. O que o manifesta é que, em seus considerandos, os tribunais atribuem peso crescente às disposiçôes legais estritamente positivas, em detrimento da "clâusula de consciência" que visa a preservar a liberdade das profissôes médicas. Vamos resumir. Num primeiro momento, vimos que a liberalizaçâo do aborto recorria à subjetividade que constitui o eu. Num segundo momento,que examinâmes aqui, essa liberalizaçâo recorre à "subjetividade" que constitui o Estado. Portante, precisaremos analisar em detalhe as mûltiplas implicaçôes da liberalizaçâo do aborto. Também sera necessârio examinar o vinculo entre o papel constituinte do eu e dos poderes pùblicos, ou mesmo de grupos privados. Pois nâo poderemos eludir a pergunta: quem se esconde por trâs das estruturas ditas anônimas? que "O Estado é o responsdvel e a garontia da Naçâo tomada em todas as suas dimensôes, nâo apenas sociais, cullurais e regionais, mas também histôricas" (Expose, p. 593; grilb nosso). (23) Sobre este problema filosôfico, ver P. RICOEUR,"Science et idéologie", in Revue philosophique de Louvain, maio de 1974, pp.328-355,especialmente pp. 341SS.; e A.DR WAELHENS,"L'idéologie et le sujet",in E.CASTELLI(éd.), Démythisaîion et idéologie, Paris, Aubier-Montaigne, 1973, pp. 325-333. Asra. Simone Veil observa, com razâo, que,"ao se falar de polftica demogrâfica, sô se esta evocando um objelivo intermediârio, e nâo um fim em si. Dai uma primeira pergunta: sera legitimo que o Estado tenha preocupaçôes demogrâficas? Quais sâo as verdadciras finalidades que estâo por trâs de um conjunto de objetivos demogrâficos? A que outras finalidades sâo estas SLibordinadas?"(Exposé, pp.592ss.). Ver também p. 43,sobre as relaçôes entre medicina humana e medicina veterinâria. 37 III A honra da medicina Novos mercenârios? Por razôes obvias, o médico esta sempre na primeira linha quando se trata de iiberalizar o aborto.E como poderia ele, confrontado todos os dias com a fraqueza e a miséria humanas, permanecer insensivel a tal drama? Contudo, em nossa sociedade, o médico é submetido, como os demais, às "mensagens-massagens" da publicidade e da propaganda. Deixar-se induzir a preconizar a liberalizaçâo do aborto é uma tentaçâo tanto mais envolvente pelo fato de que parece justificada pela vontade de aliviar a afliçâo de alguém. No intuito de conquistar os médicos para sua causa, os partidârios do aborto recorrem a uma lisonja que nâo deixa de ser sutil. Quem ousaria pretender que, numa sociedade laicizada, os médicos nâo se deixem envolver pela idéia de que têm de assumir o lugar dos magos de outrora? Alias,jâ nâo desfrutam de um status privilegiado nesta sociedade? Nâo sâo, até certo ponto,seres "separados'' protegidos por uma aura de mistério? Por que séria abusivo da parte deles procéder a uma transferência de competência, se a qualificaçâo na ârea da moral encontra "justificaçâo" na qualificaçâo médica? O médico précisa de muita disciplina cientifica e moral para nâo ceder aos sortilégios de um cientificismo ultrapassado que associa abusivamente competência profissional e autoridade moral.^ No (1) Por que entre os psiquiatras uma proporçâo relativamente elevada de médicos que preconizam o aborto? A este respeito, leia-se as conclusôes cheias de humor propostas por um psiquiatra norle-americano, o Dr. Samuel A. NIGRO,que as apresenta em ''News Exchange"ofthe Workl Fédération ofDoctors Who Respect Human Life(Ostende,Bélgica),vol.6,4.° ano(março de 1978), p.51,com o tftulo "Docteur, vous êtes en détresse!". Texto tirado de Hwnanity, publicaçâo mensal neozelandesa pela vida, vol. 1, n.^ 2(dezembro de 1977). 39 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS entanLo, é em virtude desse cientificismo larvado que alguns querem dar ao médico direito de vida e morte, e que determinados médicos reivindicam ciosamente essa exorbitante prerrogativa.^ Sera que o cientista situa-se acima do bem e do mal peio tato de ser "homem de ciência"? Sera que jamais chega a impasses em sua pesquisa cientifica por razôes morais? Alguns vâo ainda mais longe nessa dériva: transferem ao médico a competência do juiz no ponto fundamental que é o direito de cada ser humano à vida. O juiz é destitufdo de sua funçâo primordial: fazer com que a vida seja respeitada, antes de fazer com que os bens sejam respeitados.-^ Por conseguinte, o médico deve ser alertado, ao menos tanto quanto quatquer outro cidadâo, contra as pressées da propaganda e os condicionamentos ideolôgicos, contra tudo o que se diz e répété no mundo a respeito do aborto.^ risco de manipulaçâo ao quai esta exposto deve ser medido: é tanto maior devido ao grande prestigio de que o médico desfruta em nossa sociedade. Ora, tal prestfgio sem duvida esta vinculado a sua ciência e a sua habilidade. Mas também é ligado a toda uma tradiçâo moral, centrada no respeito incondicional à vida humana.-'^ Devemos a M. -T. MEULDERS-KLEIN um bom estudo intitulado '"Considérations sur les problèmes juridiques de ravortement. Droits de THomme, Droit belge, Législations étrangères, Bilan des expériences étrangères", \' x\Annales de Droil (Louvain), n.° 4(1971), pp. 425-522. iodo o volume, que séria util reeditar, é dedicado ao aborto: L'Avoriement. Aspects médicaux, moraux et juridupies; sobre os direitos e deveres dos médicos, pp. 491-499. Assinalemos também J. FERIN, C. LECART, V. HEYLEN, M.-1. MEULDERS,Libéraliser l'avortemcnt?, Gembloux, Duculot, 1972, Ver, neste sentido, C. HORELLOU-LAFARGIi,"Une mutation dans les dispositifs de contrôle social: le cas de l'avortement", in La libération de l'avortement, pp. 397-416; leia-sc também a coniribuiçâo de M. FERRAND-PICARD, "Médicalisation et contrôle social de l'avortement. Derrière la loi, les enjeux", ibid., pp. 383-396. Os problemas que a liberalizaçâo do aborto colocam ao médico foram estudados numa pesquisa realizada nas regiôes do Rôdano e do Loire(França) peios Drs. Gérard VEDRINES e Marie-Françoise BORREL:La loi Veil ou la détj'esse des médecins, Lyon, 1976. Ver também professer Claude SUREAU, Le danger de naîUx, Paris, 1978. Ver Maurice TORELLI, Le médecin et les droits de l'homme, Paris, Berger-Levrault, 1983. A HONRA DA MEDICINA Assim também,ao apoiar um projeto de liberalizaçâo do aborto, e com mais razào quando ele provoca o aborto de conveniência, o médico renuncia ao carâter hipocrâtico de sua profissâo para exercê-la segundo os interesses dos mais fortes ou a utilidade da sociedade. O médico que consente em tal mutaçâo jâ nâo é senâo um mercenârio ou um burocrata com senso de responsabilidade singularmente perverso. Em determinados hospitais, inclusive universitârios,jâ esta excluida toda "clâusula de consciência" nesta ârea. Mesmo se sua consciência rejeita o aborto, ginecologistas e cirurgiôes sâo "moralmente coagidos" a praticâ-lo, sob pena de perder o emprego; estagiârios têm de agir da mesma forma,sob pena de nâo receberem seus diplomas.^ Além disto, a historia de uma certa medicina sob o régime nazi ou as prâticas vigentes em hospitais psiquiâtricos soviéticos confirmam que o corpo médico incorreria em erro se subestimasse as manipulaçôes às quais esta exposto.^ Portante, é indispensâvel que os médicos procedam de vez em quando a uma retlexâo critica sobre o sentido de sua atividade. A que condicionamentos estâo expostos ou submetidos? Todossabem que,a longo prazo,a ''politica do salaminho'' de fato lunciona. Tal tâtica consiste em levar o adversârio a concéder fatia por fatia o que recusaria em bloco. Assim, de concessâo em concessâo, degrau por degrau, os médicos podem correr um risco considerâvel de serem "manipulados". Ao termo da escalada, eles bem poderiam ser instrumentalizados pelos detentores do poder. Um médico de luxo Se é verdade que o médico é o guardiâo da vida humana por excelência, é preciso reconhecer que a sociedade dita desenvolvida (6) Assinalou-se recenlemenic que varias dezcnas de csiudanlcs de medicina, de nacionalidade espanhola, liaviam sido diplomadds sem passar pelos canais habituais,simplesmente por terem aceitado fazer estâgios de medicina abortiva na França. (7) Cf. os livres dos Drs. Y.TERNON e S. HELMAN,Histoire de la médecine SS: Le massacre des aliénés; Les médecins allemands et le National-Socialisme^ Tournai-Paris, C^sierman, 1971-1973. Ver tambcm o irabalho de R. J. LIFTON, Tlie Nazi Doctors. 41 O ABORTO: ASPECTOS POUTICOS esta à bcira de uma estranha revoluçâo. Formulam-se dûvidas sobre a oportunidade de recorrer sistematicamente,cm certes casos,a uma medicina carissima em termes de pesseal e equipamentes. Também ha queixas quanto ae sebrecensume que se constata na prâtica médica e farmacêutica de tedes os dias. Ainda sâo esperados estudos imparciais sobre os mercados mundiais de produtos farmacêuticos e equipamentes médicos. As pessoas gostariam de saber mais sobre os condicionamentos e instigaçôes de que os médicos sâo objeto no contexte desses mercados. Ao mesmo tempo em que assistimos a proezas espetaculares e que a medicina corrente cede lugar a um sebrecensume estigmatiza- do com excessiva timidez, continuam a existir problemas médicos elementares, aqui e no mundo inteiro. O critério decisivo ainda é o da solvência: ao nivel da infra-estrutura sanitâria, da higiene e da prolïlaxia, a medicina nâo é rentâvel. Neste contexte, a liberalizaçao do aborto aparece como uma forma adicional de medicina de iuxo, desviando pessoal e recursos de tarefas mais especificamente médicas,e privando ainda mais a massa da populaçâo de muitas medidas simples e eticazes, hoje negligencia das porque pouce lucrativas. O que era o lugubre apanâgio das l'azedoras de anjos é hoje reivindicado por alguns como direito exclusive dos médicos:o sebre censume médico chega a este ponte.Em ùltima instância,o problema se resumiria a saber quem pode exercer legalmente o que chamariamos, neste case por antifrase, de a "arte de curar . Apesar do tabu que cerca este tipo de problema, hâ motives para crer que determi- nados médicos nâo sâo insensiveis à isca que sâo os novos ganhos propiciados por um novo mercado.^ (8) Ver o surprecndcnle ariigo de M.S. GOLDSTLIN,"Creating and controlling a médical markct: Abortion in Los Angeles after liberalization , in Social Problems, Nova torque, l. 31, 1984, pp. 514-529. Le Monde, que no entanto jamais ocultou suas simpaiias pela liberalizaçao do aborto, publicou um dossiê inquiétante sobre a aplicaçâo da lei Veil de 17 de Janeiro de 1975.Esse estudo do problema, corajoso e lucido, é de autoria de Claire 13RISSET e seu titulo gérai é "Eavortement légal et sauvage". A pesquisa foi publicada nos dias 16, 17, 18 e 19 de novembro de 1977; a segunda parte, publicada no dia 17, tem precisamente por litu lo: Une source de profit. Consultar também o artigo sobre Les risques et les suites de l'avortement, em Le Monde de 29 de setembro de 42 A HONRA DA MEDICINA Hâ séculos, a medicina intervém para defender da açâo cega da Natureza os menos favorecidos por ela. O que os partidârios do aborto pedem é que ela reforce a açâo impiedosa da Natureza em detrimento dos mais fracos e em benetïcio dos mais fortes. Fazê-lo séria praticar uma eugenia digna de um veterinârio miope, pois o homem nâo vale em primeiro lugar por suas qualidades fisicas. Assim, a medicina esta num processo de dilaceraçôo profunda. Por um lado, empenha-se em fazer a morte recuar; por outro lado, torna-se seu artesâo. Aqui uma équipé trabalha para salvar prematuros; a alguns passos de distância, outra équipé manipula a cânula e o aspirador...'^ Em todo caso, gostarfamos que, nas sesvsôes de informaçâo e propaganda que organizam, os partidârios do aborto tivessem a coragem de mostrar ao grande pûblico alguns dos fetos mortificados ou algumas das peças anatâmicas antes de serem mofdos ou mandados para o incinerador. Se esses "documentos" cruelmente autênticos costumam ser censurados, é porque sâo ainda mais éloquentes que a massa quente e palpitante vomitada pelo aspirador Karman.^" A medicina-espetâculo nâo se Taz de rogada na hora de mostrar um transplante cardiaco ou um parto. Por que os partidârios do aborto nâo o mostram,em toda sua crueldade? Nâo hâ dûvida:o choque que tal visâo provocaria no grande publico — e nos legisladores — séria um rude golpe para a credibilidade dos militantes. O dedo preso na engrenagem Para o médico, a ûnica atitude coerente consiste em recusar qualquer envolvimento cm matéria de aborto.^ ^ Aexperiência de que 1976. Molly YARD,aiivista prô-aborto, lembra, neslc senliclo, que "Quando os abortos cram ilegais, existia nas cidades grandes uma vasia rede de dispensarios especializados organizados pela mafia (Molly YARD, "Aborto, quesiâo de consciência",in Isio éScnlior, Sâo Paulo,23 de agosto de 1989, p. 13). (9) Cf. Nicole MALINCONl,Hôpital silence, Paris, de Minuit,1985. (10) Ver, por exemplo, os filmes de Bernard NATHANSON,Le cri silencieux e L*éclipse de la raison. (11) Esta foi, afinal de contas,a recomendaçâo do Conselho Nacional da Ordem dos Médicos (da França), em seu comunicado de abril de 1973. Segundo o Conselho, os médicos nâo deveriam praticar abortos de conveniência, mesmo se a lei viesse a autorizâ-los. 43 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS dispomos mostra que, quando o médico vacila neste ponte,é sugado por uma espiral que, passando sobreludo pela eslerilizaçâo, conduz inevitavelmente à eutanâsia.^^ É tacil demais aplacar a propria consciência denunciando que, em oiUro lu^ar, médicos participam ativamente na repressâo, na manipulaçâo psicologica e mesmo em execuçôes capitais.^-^ A compiacência diante do aborto indica que uma parte apreciâvel do corpo médico jà tem o dedo preso na engrenagem.^"^ Eis por que o problema do aborto nâo diz respeito apenas aos ginecologistas e obstetras, mas ao corpo médico como tal. De fato,em nossa tradiçâo cultural, o corpo médico, em bloco, é por excelência guardiâo de um principio de vida. Por definiçâo, toda atividade do médico visa a protéger a existência alheia. Ninguém aqui podcria pretender que o assunto nâo Ihe diz respeito, sobretudo porque nos deixamos Faciimente comprometer, quanto mais nâo seja nos recusando a tomar posiçâo. O exemple de determinados médicos,como o de certes juristas, deveria alertar todo o corpo médico. Este précisa de uma vigilância redobrada, pois se juristas, demogratbs, sociologos, moralistas etc. podem discutir o aborto e outras intervençôes contestâveis, é aos médicos que um dia poderiam impor que o praticassem. Em suma, o exercicio da medicina nâo é nem neutre nem inocente. Subjaccnte a ele esta uma tomada de posiçâo por uma determinada concepçâo de homem: a mesma que inspira nossas instituiçôes jurfdicas e polfticas. (12) O Dr. Alan Ciulimacher, membre do (X^milê de Direçâo da Flanned Parenthood-World Population, também era membre do Secreiariado de Direçâo da Bulhanasia Society of America. Deixamos de lado aqui as questôes de contraccpçâo, procriaçâo artificial, transplantes etc. Sobre o conjunto delas, a revista Problèmes politiques et sociaux publicou em seu n." 520(1985), pp. 4-51, um dossic sobre"Les droits de la personne devant la vie et devant la mort". Ver também p. 118, n.^" 5. (13) Ver, por exemple, o surpreendenie artigo publicado na seçâo "Document" da revista Paris-Match de 31 de agosto de 1989 sob o ti'tulo "Ces médecins qui torturent les otages", pp. 3-7; o trabalho remete a (îordon THOMAS,Enquête sur les manipulations mentales^ Paris, Albin Michel, 1989. (14) Sabe-se que ^Anistia Internacional criou uma "C'omissâo Médica"em Paris em 1977. Graças a esta nova comissâo, aAnistia, tâo atenta a todos os aspectos do problema dos direitos humanos,poderia dar uma contribuiçâo eficaz para a luta pelo respeito à criança nâo-nascida. 44 IV Em nome de que lei? A liberalizaçâo do aborlo nâo pode ser praticada sem a cumplicidade ativa dos médicos. Exige também a mesma cumplicidade da parle dos legisladores e juristas.' Quai é a relaçâo entre a prâtica médica e a moral? Sera que o médico é um puro técnico a quem se pede que deixe de lado toda e qualquer consideraçâo ética? Estas perguntas, que vimos no capitulo precedente em relaçâo à medicina, também se colocam de maneira anâloga no que diz respeito ao direito. Sem dûvida, o direito positive nâo é o décalqué obrigatôrio de algum sistema de moral. Mas séria admissivel apresentar a lei como uma construçâo puramente convencional?^ No entante, é o que alguns empenham-se em apregoar no que tange à liberalizaçâo inté gral do aborto. A lei e suas ambigiiidades Na maioria dos debates, o enlbque juridico do aborto é apresentado de tal maneira que parece tratar-se apenas de uma questâo (1) Para o cstudo do aborlo do ponto de visia do direilo comparado, ver M. -1. MEULDERS-KLHIN, "Considérations...", e sobreiudo pp. 507-519. ConsLilie-se também La législation de Vavortement dans le monde. Aperçu des lois et règlements en vigueur, relatôrio publicado pela Organizaçâo Mundial de Saùde, Genebra, 1971. (2) Algumas indicaçôes sobre as relaçôes entre direilo e moral em M. -T. MEULDERS-KLEIN,"Considérations...", pp. 452-456. Lcia-se também D. C:ALLAHAN, Abortion: Law, Choice and Morality, Londres-Nova lorque, 1970; R. BOYER,"Légalité et moralité face à l'avortement",in Lumière et vie, n."^ 109 (agosto-outubro de 1972), pp. 45-56; C. ROBERT,"Le légal et le moral", in Documentation catholique, n.^^ 1662(20 de outubro de 1974), pp. 883-890. 45 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS de legislaçâo positiva. For legislaçâo positiva entende-se a que pro cédé exclusivamente das determinaçôes voluntârias do legislador. Este modo de conceber a lei também se chama positivismo jundico. Se nos ativéssemos a esta concepçâo de direito, se este fosse uma questâo de meras convençôes e s6 procedesse das vontades, séria possivel propor um numéro indefinido de soluçôes em matéria de aborto. Se se tratassc de um simples problema de técnica juridica e redaçâo de lei, todas as soluçôes seriam concebiveis a pnon. Limitando-nos a esta perspectiva,vencerâ, pura e simplesmente,a opiniâo que conseguir se impor nos falos. A lei é entâo considerada como mera questâo de convençâo, de maioria — ousemos a expressâo: de força. A justiça fica reduzida ao direito positivo, e é definida pela parte capaz de exercer uma pressâo decisiva sobre as outras. A justiça é definida pela vontade dos que têm Ibrça para impor sua concepçâo particular de justiça. Aqui nâo hâ mais lugar para a idéia de universalidcide, a idéia de uma justiça que se impôe a todos. E o que se quer dizer ao afirmar que "a lei deve refletir os costumes e traduzir sua evoluçâo". Se numa determinada sociedade um grupo particular adquirir força suficiente para se impor aos menos fortes, o grupo se esforçarâ cm dar a seu comportamento o peso de uma norma légal. Sua vontade particular sera sancionada pela autoridade da lei, que contérirâ as determinaçôes das vontades y res um alcance ^encralizado â comunidade politica. Assim, os mais fracos serâo esmagados cm nome da leL Esta concepçâo ruinosa do direito foi sistematizada por Karl Binding (ltS41-1920). Ao proporcionar a cobertura da lei à força dos mais fortes, Binding forneceu cxplicitamente as bases legais para a eliminaçâo daqueles "cuja vida nâo era digna de ser vivida"."^ Por conseguinte, é preciso estar atento à dériva engrenada. Começa-se deslizando da norma estatistica à norma légal. Logo se estima, de maneira mais ou menos simplista, que dos fatos é que vêm os principios do agir. Nesta ôtica, o direito acaba sendo absorvido pela sociologia — posiçâo pela quai Qmte tinha acentuada simpatia. Tal concepçâo do direito conduz, evidentemente, à destruiçâo do tecido social. Os que fazem a prc5pria vontade triunfar impôem-se (3) Cf. p. 15s. 46 EMNOME DE QUELEI? como sujeitos de força e s6 eslabclecem relaçôes com outres — notadamente por contratos — se estiverem interessados. E o oulro s6 sera intéressante se for util. Ali onde triunfa a idéia de que a força é o fundamento do direito, a idéia da universalidade dos direitos humanos esta arruinada,e com ela a democracia. Assim, a liberaliza- çâo do aborto solapa as bases da democracia dentro das naçôes. Além disso, na medida em que a liberalizaçâo se espalha e se banaliza, mina a esperança de maior justiça e de uma paz mais sôlida entre as naçôes. No entanto, mesmo na posiçâo positivista radical que acabamos de resumir, a legislaçâo sempre supôe necessariamente uma determinada concepçâo do homem e da politica. Acima da variedade das formulaçôes, o que esta cm jogo sâo as questôes fundamentais relativas à pessoa e à sociedadc. Sera que sou eu que constitue o outro em sua subjetividade? A existência do outro estara subordinada a meu consentimento e sera condicionada pelo reconhecimento que Ihe concedo ou nego? Poderei recusar-me a tomar conhecimento de sua existência? Impossivel evitar esse problcma de intersubjetividade. Ou bem coloco-me numa atitude que, desde o inicio, sera de reconhecimento incondicional, de acolhida, ou até de simpatia em relaçâo ao outro — mesmo se este ainda nâo c o termo de uma relaçâo plenamentc pessoal, mesmo se s6 é conhecido num certo anonimato; o reconhecimento do outro é entâo o ato supremo da liberdade humana a partir do quai pode ser fundada uma sociedade de liberdade, igualdade, fraternidade. Ou bem erijo minha subjetivi dade em instância soberana chamada a decidir quem sera amigo, quem sera inimigo, reservando-me tanto o direito de acolher como o de recusar. Bis entâo, em linhas gérais, duas maneiras diferentes de encarar as relaçôes entre os homens. É inevitâvel que dai decorram tipos radicalmcnte diferentes de Estado e de legislaçâo: de carâter democrâtico, no primeiro caso; de tendência totalitâria, no segundo. Ora, toda a tradiçâo jurfdica e politica do Ocidente retlete um eslbrço constante no intuito de fazer prevalecer uma atitude de acolhida, e nâo relaçôes de força, de que se instaure uma certa racionalidade nas relaçôes humanas, livrando-as do arbitrio e dos caprichos das subjetividadcs individuais. Excetuando-se o caso dos régimes ditatoriais, observaremos que é subjacente a essa tradiçâo jurfdica o respeito incondicional ao outro. Neste sentido, ela se 47 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS caracteriza por uma prcocupaçâo com a objetividndc que contrasta singularmente com a fantasia irrcsponsâvel de todos os despotismos. Logo, nesta perspectiva "objetiva", é de capital importância saber se a cnança concebida é um serhumano ou nào. As discussôes sobre este tema às vezes lembram certas disputas medievais. A sofisticaçâo das técnicas permite que se detecte cada vez mais cedo a presença de um ser concebido. Critérios vulgares como os baseados na percepçâo dos movimentos do feto pela mâe sâo de outra era; foram abandonados no século XIX. Assim como um cancer ou uma alecçâo do sangue sâo descobertos e tratados antes de o paciente ter consciência da doença, é normal que o ser concebido seja reconhecido e protegido assim que sua existência é descoberta graças às técnicas hoje disponiveis. O comportamento cm relaçâo a um ser humano nâo poderia ser condicionado nem por suas dimensôes nom pelo local onde "mora".Por conseguinte,é normal considerar as recentes conquistas das cicncias biologicas. Ora,estas ressaltam que, desde a concepçâo, o novo ser tem um codigo genético original, diferente do de seus pais; este ser é distinto da mâe.^Em suma,o problema nâo é mais a singularidade biologica do individuo humano-'' (4) As obras de referência sobre o tema sâo de autoria de Philippe CASPAJR: Uindividitaîion des êtres. Aristote, Leibniz et l'immunologie contemporaine, Paris, Lethielleux, 19tS5; bem como La saisie du zygote Immain par l'esprit, Paris, Lethielleux, 1987. Ver ïambém, em Thomas W. HILGERS (éd.), New Perspectives on Iluman Abortion, Frederick, Maryland, Aletheia Books, 1981, as contribuiçôes de Mark I. MUILIENBURG e Allen D. DVORAK(pp. 1-5), de E. BLECHSC:HMIDT (pp. 6-28), de sir A William LILEY (pp. 29-35). O ponto de visia filosôlïco é exposto por Ivan GOBRY e Hubert SAGEl em Un crime. L'avortement, Paris, Nouvelles Éditions latines, 1971, pp. 36-78; Italo VANDELLI,'l^'embrione umano, una vita nuova", in La Rivista del Clero italiano, l. 62, n.'' 4(abril de 1981), pp. 293-297. (5) Este tema foi dcsenvolvido e precisado pelo professer Jean DAUSSET em 28 de abril de 1978, quando de sua aula inaugural na Câtedra de Medicina expérimental do Collège de France. O tema da aula foi "A singularidade biolôgica do indivfduo"; noticia cm Le Monde de 30 deabril-2 dejunho de 1978. Mesmo se houvesse dùvida quanto ao carâter humano e singular do embriâo, a atitudc que se imporia cônsistiria em adotar a suposiçâo favorâvel ao ser concebido como,cm caso de avalanche ou desabamento,presume-se que possa haver sobreviventes. 48 EM NOME DE QUE LEl? A ficçâo e a reaiidade Por sua vez, a tradiçâo jundica e politica ocidental hâ muito decidiu maciçamente esta questâo reconhecendo o carâter humano da criança nâo-nascida.^Tal reconhecimento é ainda preclamado no artigo 1.° da Ici Veil, que citâmes mais adianteJ Como acabamos de recordar, a biologia e a medicina contemporâneas confirmam que tal posiçâo tem fundamentos solides. Da mesma maneira, a imensa maioria dos cientistas, seja quai for a sua posiçâo diante do aborto, nâo mais questiona o carâter humano da criança concebida:jâ nâo é em torno deste ponto précisé que gira o debate. Operou-se um curioso deslocamento: hoje, a consideraçâo da presença objetiva de um ser humano reconhecido como tal é ocultada pela referência unilatéral à mâe. Destaca-se sua "afIiçâo*\ os "riscos de mortalidade em caso de aborto clandestino", e oblitera-se totalmente o sacriiïcio dos embriôes e fetos. ''Coisa curiosa: a realidade da personalidade do ovo humano s6 começou realmente a se imper ao grande pûblico com a fëcundaçâo in vilro; como se a possibilidade de ver o desenvolvimento de algumas células numa proveta autenticasse a afirmaçâo da realidade de uma exislência pré-nataP'.^ O professor C.Sureau aponta a contradiçâo flagrante: nâo é,de fate, irrisorio entrar em minùcias para saber se sâo licitas as experiências com embriôes in vitro quando se pcrmite o aborto? Nâo séria para doxal que um embriâo estivesse mais seguro numa provetà que no ventre de sua mâe? Da mesma maneira,a Comissâo Juridica e de Direitos Humanos dedicou duas sessôes ao tema, em novembre de 1985 e março de 1986. Quanto à pergunta "Quando começa a vida humana?", eis a conclusâo da Comissâo:"Esta questâo, primordial para os parlamentares durante toda a sessâo, agora é secundâria. Hoje sabemos que o (6) Talvez fosse o caso de fazcr um paralelo entre esta tradiçâo e o costume, disseminado no Extremo-Orientc,segundo o quai a criança tem um ano no dia de seu nascimento. (7) Ver p. 52, n." 13, e p. 174. (8) Alocuçâo do professor C'. SUKEAU perante a Comissâo Jurfdica do Parlamento Huropeu sol:)re os problemas éticos e jun'dicos da genética humana, Bruxelas, 29 de novcmbro de 1985. 49 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS ser humano começa a partir do ovo fecundado." Esse ovo tecundado précisa de uma cerla proteçâo que deve ser objelo de uma decisâo poli'lica e jun'dica. Nâo havendo iegislaçâo nacional apropnada, nao é fâcil trabalhar em favor da proteçâo dos indivi'duos antes do nascimen- to. No entanto, convém citar a recomendaçâo 874 da Assembleia Parlamentar do Qinselho da Europa, relativa a uma carta dos direitos da criança. Esta recomendaçâo,datada de 1979,estipula que"o direito de cada criança à vida,desde o momento de sua concepçâo,deveria sei reconhecido, c os governos nacionais deveriam aceitar a obrigaçâo de tudo impiementar para permitir que fosse integralmente aplicado . A maioria dos codigos ocidentais, ou de inspiraçâo ocidenUil, traduz esse respeito pela criança concebida em disposiçôes de capital importância para nos.'^ Em circunstâncias que definem,eles tratam a criança que vai nascer como sujeito de direitos:ele pode receber uma doaçâo ou herdar. Esta disposiçâo remonta ao Direito romano: Infans conccplus pro nalo habetur, quoti.es de élus commodis agiiui. Observemos que se trata aqui nâo de simples direitos da criança nâo-nascida, mas de seus interesses. Da mesma lorma, decretos promulgados cm vârios paises, notadamentc na Austi âlia e na Alemanha, reconhecem à mesma criança nâo-nascida o direito de receber indenizaçâo por perdas e danos caso sotra prejui'zo decorrente de um acidente de que sua mâe for vitima durante a gravidez. A rigor, a disposiçâo do direito romano sô privilégia a criança PA A esie respeito, ver 1'. -E. TROUSSE,"U proposition de loi n.° 280", in Annales de Droit, n.° 4(1971), pp. 412-417. A liberalizaçâo do aborto acarreia uma estranha contradi(;ao no direito. Por um lado, a criança nao-nascida pode receber bénéficies, indenizaçties. pode herdar. Por outro lado,é pa.ssive e ser eliminada. Este cstado do direito dâ lugar a situaçOes surrealistas. Uma eriança que na,sceu corn uma deficiência ocasionada por uma tentativa de aborto obteve,eom sua mac,uma importante indenizaçâo. O julgamento do Conse ro de F^stado (da Erança) baseava-se num "erro grave" cometido pelo medico. Assim, este foi condenado, bem como o hospital envoivido. C.f. La Libre Belmque, Bruxelas,5 de outubro de 1989. (10) "A criança concebida é considerada como nascida cada vez que se tralar e.c . interesses."- Clf., por exemplo, GAIUS,Insiiaaes, 3.° Comentarw,4, Pans, Belles-Lelires, 1965; ULPIANO, Commentaire sur ILdit, D, 37, Y 'GAUDEMET,Le droit privé romain,Paris, 1974, p. 301. Ver tambem ^ D 1 5 7. Sobre o problema abordado aqui. ver, na Bibhograjia, os irabainos de C. HENNAIJ-HIJBLET,R. LABOU,L.SÉBAG e D.VIGNEAU. 50 !l'-! u u EM NOME DE QUE LEI? '*por intermédio de uma tlcçâo", nâo ha dûvida. Porém, temos de concordar quando, ao comentar o Préambule da Convençâo sobre os Direitos da Criança, A. Rostenne diz que "a evoluçâo mesma do direito em todas as âreas evidencia de maneira convergente o carâter arcaico, insuficiente e arbitrârio das ficçôes atuais". Com o mesmo autor, pode-se perguntar se "nâo (...) chegou a hora de ir até o fim na proteçâo da criança, nâo mais protegendo seus interesses por intermédio de uma flcçâo juridica, mas tomando conhecimento da realidade e reconhecendo a criança, tanto antes como depois de seu nascimento, como sujeito de direito no sentido pleno das palavras". E o jurista acrescenta:"Um novo enfoque deveria portante consistir numa afirmaçâo mais clara, nâo-equivoca, do conceito juridico de *pcssoa\ precisando que a criança que vai nascer é, desde a concepçâo, uma realidade em si, um sujeito de direito, e que sua existência nâo esta mais submetida à realizaçâo de uma condiçâo suspensiva".^^ Foi a partir de premissas idênticas àquelas em que se baseia esta argumentaçâo que se desenvolveu a luta por liberdade, igualdade, participaçâo de todos na vida polftica, econômica, cultural etc. Eliminando este fundamento constante, ou apenas o colocando entre parênteses,a tradiçâo jurfdica do Ocidente perde pura esimplesmente todo seu sentido, e o direito promulgado, sua razâo de ser. Assim,de certo modo,o direito positivo transcende os membros da comunidade politica existente. E o que permite à lei ter um papel importante ao nivel do,peda^ogia politica vLs-à-vis os cidadâos vivos. Mas a "transcendôncia" do direito nâo para af: ele contribui amplamente para garantir a continuidade da comunidade politica. Desta maneira, legislar é elaborar um projeto e reconhecer, mesmo no caso dos cidadâos do futuro, que sâo plenamente sujeitos de direitos e deveres.^^Em suma, por ser obra de razâo, a lei tem uma funçâo educativa insubstituivel e visa, entre outros objetivos, a pro téger os fracos contra os poderosos. (11) Cf. A. ROSTENNE,"L'enfant à naître, sujet de droits", in La Libre Belgique (Bruxelas),21 de dezembro de 1989. A respeito da Convençâo sobre os direitos da criança, ver p. 29 s. (12) E. LEVINAS de.senvolve este tema repetidas vezes. Cf. notadamente En découvrant l'existence avec Husserlet Heidegger,Paris, 1967,p. 191;Humanisme de l'autre homme, Montpellier, Fata Morgana (Es.sais), 1972, pp. 40-44. 51 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS Um direito hibrido Vê-se entâo quai é a relevâncla e quais sao os limites do estudo comparado das legislaçôcs em matéria de aborto. As comparaçoes muitas vezes nâo insistem o sut'iciente no lato de que ospnncipios c o direito podem variar consideravelmente conforme os codigos, paises e régimes. ConLudo,o exame desses principios é de particuiar impor- tância para o estudo comparado da legisiaçâo sobre o aborto. Na verdade,o que importa nâo é tanto que o aborto seja permitido entre 4 e 10semanas num caso,entre 5 e 15 em outro. O que conta é a atitude bâsica diante do ser concebido. Sem remontar a esses principios, chega-se apenas a paralelos superficiais que ocultam o sentido profundo das legislaçôes comparadas e se prestam às mais diversas conclusôes. Dai decorre que uma situaçâo hfbrida instaurou-se nos paises de tradiçâo democrâtica onde o aborto foi iegalizado Uma prolunda incoerência esta gravada no cerne das constituiçôes. ■ For um lado, estas se comprometem a respeitar e inclusive a protéger a criança nâo-nascida; por outro lado, restauram o direito de vida e morte do pater familias, progressivamente abolido. O alcance deste ultimo estende-se até a criança nâo-nascida. E vai muito alem; esse direito é concedido à inaterfamilias, ao médico, ao psicôlogo,^ao psiquiatra, ao demôgrafo e em breve,sem dûvida, ao tecnocrata. O fato e o direito Por conseguinte, o que esta em causa aqui é toda uma concep- çâo da lei e do direito. Sem dùvida, a lei sempre leva em conta em alguma medida, os costumes. Mas, caso se limitasse a registrar tatos (1 Ftsla incuerência aparccc aie aa célébré Ici Veil, n."7.S-17 de 17 de Janeiro de 197^ eu jo artigo 1." alirma, nâo sem einismo:"A lei garante o respe.to a todo ser humano clcsdc0comcço da vida. Este principiosô poderâ ser violado em caso de necessidade conlormc as condiçôes definidas pela présente lei." Cf. p.l2 .. (14) Sobre ,pa,ria po,estas, ver J. GAUDEMET,Le droapnre "c. wr«e nedsqtte conhcceu uma evoluçâo sensivel sob Adriano, Anlonino Consiantino. H-ste ûUimo puniu o infanticiclio. EM NOME DE QUE LEI? sociais e ratifica-los em sua lei, o legislador nâo se distinguiria em nada do sociôlogo.Em ûltima instância, a sociologia tornaria o direito supérfluo e sem objeto. Este equivoco entre o fato social e a norma juridica é tâo difundido que esta inclusive na boca das mais altas autoridades politicas. Pois, por fim, pretender que a legislaçâo sobre o aborto tornou-se "antiquada", "inadaptada", como provam "as numerosas infraçôes"que sofre,é ceder a uma abominâvel confusâo entre o fato e o direito. Poderiamos limitar-nos a estigmatizar, nesta confusâo alimentada, uma manobra demagôgica obvia demais para enganar alguém — é de fato o caso. Mas a confusâo dissimula sobretudo uma afronta contra os cidadâos. Na verdade,com a desculpa de outorgarIhes um (pseudo)-d\xd[io,os cidadâos sâo declarados definitivamente "irresponsâveis", quer dizer, incapazes de exercer seus deveres para com uma categoria legalmente delimitada de seus semelhantes. Se a inadaptaçâo de uma lei é demonstrada pelas infraçôes constatadas,isto prova efetivamente que a lei nâo é boa. Ela deve ser mais rigorosa e sobretudo ser complelada pormedidas sociais visando a acolher a criança, e nâo a destrui-la.^-'^ Sera que a multiplicaçâo dos assaltos,seqùestros e estupros nos levarâ a concluir que précisâmes de leis mais clementes? A prâtica muito disseminada da fraude fiscal deverâ incitar os fiscais à extrema indulgência? Poderiamos citar inûmeros exemples que mostram o carâter incoerente dos principios invocados ora num caso, ora em outre. 1 s j Se uma lei é violada, é por ser severa demais, inadaptada; se outra nâo é respeitada,é por ser indulgente demais. Entâo é melhor reconhecer de uma vez que se escolhem os principios que convêm ao sabor das teses a defender e do eleitorado a afagar. Assim, o argumente segundo o quai "a lei acompanha os costu mes" é fraco demais para fornecer uma premissa à liberalizaçâo do aborto. o le ! Sera porque a escravidâo era aceita em Roma que nâo devia ser J contestada? Ao contrario, de reste, é précisé notar que a lei induz 1 (15) Estudamos mais de perto este problema no Cap. V: Vazio jundico? Vazio le e Jiidicial? 53 O ABORTO: ASPECTOS POUTICOS tipos de comportamentos: assim, a proporçâo de divôrcios difere segundo as variaçôes da legislaçâo na matéria. Uma lei que liberaliza o aborto induz necessariamente comportamentos que desembocam no aborto efetivo.^^ É uma das razôes por que merecem pouco crédito os que, por um lado, proclamam sua repuisa ao aborto e, por outro lado, preconizam sua liberalizaçâo. O legislador preso na armadilha? Todo o problema aqui é saber se o legislador toléra deixar-se prender numa armadilha e dedicar-se inteiramente a um certo am- biente dominante,e se consente em ceder as pressées de que é alvo. Nessa circunstância pode provar sua pusilanimidade ou mostrar sua coragem.O legislador aqui enfrenta um verdadeiro desalio: deixar-se condicionar ou acreditar que a lei deve fazer prevalecer uma certa racionalidade sobre as paixôes e os instintos,quer dizer, positivamente, définir um raio de açâo para a liberdade. Que no primeiro caso, contudo, o legislador esteja alerta para o precedenteque abre:esta renunciando à funçâo pedagôgica insubstituivel da lei. Esta avalizando com sua autoridade o direito que alguns querem arrogar-se de dispor de uma vida humana em seu começo. Sobretudo, ao dar-lhes a ilusâo falaciosa, de uma liberdade intégral, esta aumentando o poder dos condicionamentos dos quais os cidadâos jâ sâo vitimas. Torna-os mais vulnerâveis as ideologias totalitârias —:nazis,fascistas e outras que s6 estâo esperando a morte da liberdade para deixar cair a mascara. Assim também, a lei nâo tem como ûnicas tunçôes reprimir e educar. Tem também uma funçâo preventiva.^^ A sociedade tem (16) Cf. J. H.SOUTOUL,Conséquences d'une loi, p. 46 e pp. 214ss.; R. BEL, Un rcipport fncilfciit, pcissi/n. Para a Inglaterra,cf. Covortetnent devant leparletneni, p.5,e sobretudo R.BEL,Quelques éléments de la simation enAngletene depuis la libéralisation de l'avortement(1967)(estudo mimeografado), 10p.,s.l.(1976). Ver também as palavras da sra. Simone Veil citadas na p. 178. (17) Ver, neste sentido, André BESSON e Marc ANCEZ, La prévention des infractions contre la vie humaine et l'intégrité de la personne,Paris(Publications du Centre d'études de défense sociale,Institut de Droit comparé de l'Université de Paris), Paris, Cujas, 1956. 54 EM NOME DE QUE LEI? indubitavelmente o direito e até o dever de se protéger contra tudo o que pode introduzir em seu seio fatores de dissoluçâo,contra tudo o que a faz correr o risco de ser levada a um descontrole da agressividade.^'^ Ela nâo deve,de modo algum, esperar que ocorram abusos que a forcera a intervençôes repressivas. A curto prazo, intervençôes preventivas e regularaentaçôes restritivas podera dar a irapressâo de reduzir o ârabito das liberdades individuais. A raédio e longo prazo, entretanto, tais raedidas revelara-se altaraente benéOcas tanto para os individuos corao para a sociedade, pois previnera dérivas perversas. Foi o caso, por exeraplo, da célébré lei Vandervelde que regularaentou estritaraente a venda de bebidas alcoolicas na Bélgica. A lei prevenia abusos cujas vitiraas erara os operàrios e sobretudo suas farailias. Colocava certos obstaculos à "liberdade" dos consuraidores e vendedores de alcool. Mas protegia as faraflias e a sociedade contra o flagelo do alcoolisrao; alertava os consuraidores e vendedores contra abusos que a atraosfera social sozinha nâo podia conter. E era virtude dos raesraos principios que os psicopatas sâo internados, que a velocidade é liraitada nas estradas,que o coraércio de armas de fogo é regularaentado... (18) É o objeto habituai das"leis de defesa social". Cf. M.-T. MEULDERS-KLEIN, "Considération...", pp. 439-441 e pp. 489ss. 55 V Vazio juridico? Vazio judicial? No capitule anterior, mencionamos rapidamente um dos argumentos invocados com mais freqûência para modificar as legislaçôes no que se référé ao aborto. Para novos costumes, novas leis? Este argumente costuma dar grande destaque ao fato de que as leis existentes nâo sâo respeitadas. Como os costumes mudaram, afirmam, as leis devem adaptar-se a sua evoluçâo. Ora, essas leis punem os autores de abortos. Assim, a evoluçâo dos costumes pede a descriminaçâo do abor to.^ De reste, essa evoluçâo as vezes é corroborada pelos magistrados. De fato, alguns deles hesitam ou mesmo renunciam a examinar dossiês sobre esse "doloroso problema". Alguns cedem a obscuras pressôes da opiniâo pûblica,da midia,do homem da rua,ou inclusive de seus superiores hierârquicos. Conclui-se, portante, que hâ "vazio jundico'\ o que quer dizer "insegurança" ou "incerteza"juridicas. A lei nâo é aplicada, nem aplicâvel. É melhor dizer logo que esta revogada; de qualquer maneira,é précisé mudâ-la.^ (1) Cf. p. 33. (2) A mecânica desse procedimento é exposta no dossiê publicado pela Associaçâo "Choisir" ("Escolher"), Avortement: une loi en procès. L'affaire de Bobigny (1972), Paris, Gallimard. Consultar sobretudo o dossiê La loi de 1920 et l'avortement. Stratégie de la presse et du droit au procès de Bobigny, Presses Universitaires de Lyon (Médecine et société), 1979. Ver também Bernard PINGAUD, L'avortement, Histoire d'un débat, Paris, Rammarion, 1975; cf., igualmente, E. SERBEVIN, "De l'avortement à l'interruption volontaire de grossesse. L'histoire d'une requalification sociale", in Déviance et société. (Genebra), t. 4(1980), pp. 1-17. 57 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS Observemos, de passagem, o estranho procedimento: para obter a revogaçâo de uma lei, é précise começar violando-a ao mâximo e de publiée), se necessârio por intermédio de uma ou outra cumplicidade no aparelho do Estado. Assim, a ab-rogaçâo sera conseguida, pela mera razâo de que a lei nâo era mais aplicada... Do vazio judicial... No entanto,nâo devemos cair na armadilha das palavras:o vazio que se constata nâo éjundico, éjudiciâno. A lei nâo foi revogada; o que acontece é que, por razôes alheias ao direito, os magistrados hesitam em aplicâ-la. Esse "vazio judiciârio'' — alias relative — é malsâo por diverses motives. Ele pode alterar a imagem de uma magistratura sempre ciosa, e com razâo, tante de sua independência como de sua integridade. Na verdade,esse "vazio judiciârio"e revelador: mostra o quanto os magistrados sâo sensiveis as pressées e como estâo expostos aos ucasses que às vezes Ihes sâo destilados sob forma de conselho. Sabe-.ie o resultado disto. Na hora de nomear para funçôes impor tantes, o executive faz a distinçâo entre os candidates "confiâveis" e os que nâo aceitam uma "independência limitada". Entâo, a absten- çâo dojudiciâno é invocada para pressionar o legislador. Este tende a substituir o juiz na apreciaçâo das circunstâncias particulares; alias, diante dos obstâculos que surgem na prôpria Assembléia Nacional, acontece dedeterminados legislodores nâo hesitarem em solicitar que o executivo sugira aos magistrados que suspendam as diligências. Em suma,se nâo fosse tipicamente triangular, a figura séria chamada de circule vicioso! Esse vazio pretensamente juridico, mas na verdade judiciârio, acaba revelando como é precâria, mesmo nos paises de tradiçâo democrâtica, a separaçâo entre os poderes. ... ao vazio juridico O que é mais incoerente ainda é que o remédie que se propôe para o "vazio judiciârio" é um vaziojundico autêntico. De fato, a lei 58 VAZIO JURfDICO? VAZIO JUDICIAL? em vigor primeiro é exposta à execraçâo pûblica devido a seu carâter pénal: é précise descriminar o aborto para poder liberaiizâ-lo.^ Entâo, a argumentaçâo descnvolve-seda seguinte maneira:o aborto nao apenas faz parte dos costumes, como jâ foi apontado; além disto, foi promovido, na prâtica, à condiçâo de direito que é preciso reconhecer à mulher. A lei belga, por exemple,deve ser rejeitada por duas razôes. Ela se récusa a reconhecer à mulher um direito que sô a ela pertence; condena as mulheres que exercem ta! direito sobre seu corpo, bem como os que a ajudam a exercê-lo. Essa argumentaçâo ignora totalmente um dado essencial do pxohX^m'd. Audiatur et altéra pars: é preciso levar em conta o direito da outra parte, o da criança nâo-nascida. As leis tradicionais que punem o aborto procedem de premissas que levam em conta o direito das duas partes envoividas."^ Sem contestar, de modo algum,o direito e os direitos da mulher, essas leis destacam o direito à vida da criança concebida. Os que redigiram as leis hoje atacadas jâ sabiam o que hoje algunsi^e recusatn a levar em conta: o fato de que se trata de um ser humano. Essas leis simplesmente aplicam o princi'pio gérai caracteristico de toda sociedade democrâtica: a igualdade de direito de todos os seres humanos em relaçâo à vida. Assim sendo, o carâter pénal da lei nâo é senâo a consequência de um direito anterior, inalienâvel, da criança nâo-nascida; e é a violaçâo desse direito que suscita e justifica uma sançâo pénal. A criança e a mulher: desprotegidas Sob o pretexto de promover um "novo direito" da mulher, os que propôem a descriminaçâo do aborto ameaçam o principio fundamental segundo o quai todos os seres humanos sâo iguais perante a vida. Os autores de tais propostas, ou projetos, querem ver triunfar (3) Cf. p. 182. (4) Na Bélgica, por exemplo,os arligos do Côdigo Pénal que punem o aborto datam de 1867. Num artigo intitulado "L'avortemeni, un problème social", publicado no jornal La Libre Belgique de 20 de maio de 1987, Rudolf REZSOHAZY recorda que aqueles artigos foram "aprovados no governo libéral iiomogêneo Rogier/Frère-Orban, pois os catôiicos estavam na oposiçâo". O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS outro pnncipio, segundo o quai, em relaçâo à criança que traz no ventre, a liberdade individual da mulher é total, ilimitada. Como as mulheres podem dispor de seu corpo, é preciso "justificar" seu "direito" de dispor do corpo do ser humano que abrigam. Cabe ao médico ajudâ-las a exercer esse "direito". Portante, descriminar o aborto nâo significa simplesmente eliminar a sançâo pénal vinculada ao aborto. Significa sobretudo desprotéger a criança, privâ-la de proteçâo, relegâ-la ao limbo da sociedade politica e juridica, expô-la ao poder discricionârio de ter- ceiros. Mas significa também desproteger as mulheres diante da impunidade corriqueira dos homens e diante de todos os que têm interesse em incitâ-las a abortar.^' O vazio jurfdico a que leva uma liberalizaçâo do aborto tem a mesma gravidade jâ nâo sob o ângulo do direito pénal, mas do sistema juridico como um todo. De fato, outros ramos do direito — como o direito civil e o direito social — reconhecem a criança que vai nascer outorgando-lhe direitos e uma certa capacidade. Estâmes pensando notadamente no direito que a criança tem de herdar,receber legados, doaçôes ou indenizaçôes.^' Ao legalizar o aborto, quer dizer, ao eliminar a proteçâo pénal da criança que vai nascer,o legislador cria, por conseguinte, um perigoso vazio jurfdico, ao quai vem somar-se uma incoerência. Alias, o pretenso "vazio jurfdico" é substitufdo nâo apenas por um vazio jurfdico autêntico, mas também por um novo vaziojiidiclâtio — este, verdadeiro, pois as disposiçôes penais que acompanham as legislaçôes que liberalizam o aborto praticamente nâo sâo aplicadas. A experiência dos outros pafses atesta-o claramente. Rumo a uma legislaçâd rétrograda? Assim, vê-se que uma lei que legaliza e liberaliza o aborto necessariamente vai além do objetivo que pretende atingir. Na ver(5) A situaçâo de desproteçâo da mâe é bem evocada no pungente livre de Nicole MALINCONI, Hôpital silence. Ver também o testemunho de Marie-Odile Journal d'une avortée., Montréal, La Presse, 1974. (6) Cf. p. 50s. 60 VAZIO JURI'DICO? VAZIO JUDICIAL? dade, instaura o principio e a pratica de uma discriminaçâo entre diferentes categorias de seres humanos. Assim, uma proposta neste sentido volta as costas à dinâmica democrâtica que perpassa a histôria do Ocidente e deve, portante, ser considerada reacionâna. De fato, estâmes diante de uma situaçâo paradoxal. Por um lado, todas as declaraçôes de direitos proccdcm de uma reaçâo à usurpaçâo do poder pelo principe.^ Por outre lado,os partidârios da descriminaçâo tendem a implementar um movimento em sentido oposto: levam o Estado cxreduziro alcance dessas mesmas declaraçôes. . Ora,como se nega a articulaçâo entre direitos e deveres, também nega-se que uma declaraçâo do direito à vida possa ser universal. Essas propostas e projetés constituem retralaçôes em relaçao à dinamica democratica que se expressa nas grandes declaraçôes:sâo literalmente reirôff'adas. Instituiçôes criadas com vistas à instauraçao da justiça e do bem comum sâo desviadas e postas a serviço de uma obra de morte. O direito a serviço do assassinato Apesar da irritaçâo de alguns ao ouvirem tais mençôes, a des criminaçâo do aborto introduz, assim, um principio de discriminaçao anâlogo ao instaurado pelo nazisme. A acusaçâo que pesava contra os réus de Nuremberg era menos a de ter-se declarado nazistas que a de 1er implementado esse principio discriminatôrio.^ Nao é dite- rente a censura Tundamental hoje dirigida contra os partidârios do régime sul-atricano dt^ apartheid^ Assim,uma vezmais,vê-seque,isolado de toda relerência ética, o positivisme jundico pode chegar a mobilizar o direito contra os direitos humanos pois o direito pode dar sua cauçao à tirania e (7) Cf. p. 24s. (8) A fonte cssencial a este rcspeilo é Nuremberg médicalcase, N uremberg Military lYibunals, United Staies ofAmerica vs. Karl Brandi [médico pessoal de Hitler], CL al., 2 vol., National Archives, Washington, 1947. (9) Aborclamos este probiema em "De raparlheicl au dialogue. La position de l'Église catholique", in Nouvelle Revue théologique, t. 109, n." .S (seiembro-outubro de 1987), pp.691-711. (10) Ao positivismo jurfdico estâo ligados, por exemple, os nomes de Léon DUGUITe llans lŒLSEN. 61 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS legalizar o de^spotismo. Numa sociedade democratica, o Estado de direito nâo se caracteriza apenas pela existência da lei e o respeito a ela.^^ Caracteriza-se pela pvomoq^o,por lodos, da justiçap^ïra todos, quer dizer, da vida para lodos, da liberdadepara lodos, da igualdade para todos. O Estado democrâtico em que o aborto é legalizado é um Estado que consente em deixar-se extraviar; de fato, ele inicia um processo perverso que altéra sua natureza democratica e induz-lhe uma mutaçâo totalitâria. É o processo que precipitam aqueles que, de emenda em emenda, fingem protéger a criança nâo-nascida, enquanto querem liberalizar o aborto. Na verdadc, o cstudo dos totalitarismes contemporâneos mos- tra que estes sâo provenientes da omissâo, da irresponsabilidade ou do cinismo de minorias intelectuais de uma arrogância que nada conseguia dobrar. O nazismo, por exemple, que teve seus médicos, também teve seus juristas, e foram ideologos dementes que levaram o povo a endeusar Hitler. Os juristas que lançam mâo de todos os recursos de uma técnica abstrata para csmerar-se em suas "disposiçôes legais" regulamentando o aborto estâo destinados a dar à luz um monstro. O direito cometera suicidio se homologar o crime. Esses juristas nao sao alheios a uma lugubre tradiçâo intelectual, senâo politica, na quai bebeu Karl Binding.^^ (11) Ver a eslc respcilo Xavier DIJON,"L'État de droit contre l'avortement", in Journal des Procès, n.'-' cSa (27 de junlio de 1986), pp. 18-21. Sobre o Estado de direito, pode-,se consultar "Primeiras Jornadas IBrasileiras de Direito Natural", CLijas atas foram reunidas num volume por José Pedro GALVÂO DE SOUZA e abordam O Estado de Direito, Sâo Paulo, Revista dos Iribunais, 1980. O mesmo célébréjurista brasileiro publicou em 1977, pela mesma editora:D/m7o natural, Direito positivo e Estado de Direito. Outro représentante da Escola PaulLsta de Direito também dedicou um estudo valioso à mesma questâo; trata-se de Aloysio FERRAZ PEREIRA,Estado de Direito naperspectiva da libertaçào.(Uma cn'tica segundo Martin Heidegger), na mesma editora, 1980. (12) Sobre Binding,cf. p. 15, n.^'2.Séria intéressante traçar um paralelo entre a obra jun'dica de Binding e a obra politica de (^.arl Sehmitl(1888-1985). Abandonando a referência ao Estado de direito, Schmitt — retomando uma tradiçâo que remonta a Fichte, Hobbes e Maquiavel — chega ao decisionismo: o direito se enraiza na deeisâo politica. Cf. Cari SCHMITl du partisan, Paris, Calmann-Levy, 1972. 62 notion de politique. Théorie VAZIO JURÎDICO? VAZIO JUDICIAL? Esquecem que um debate sobre a liberalizaçâo do aborto nâo é uma polêmica; é uma gneira. Uma guerra de mâo ûnica onde o agressor, decididamente sem coragem, nem précisa medir-se com sua vftima. Uma guerra em que os mais fortes, ocultos atras da mascara, reivindicam a piion o aval do Estado para acuar impunemente o inocente. Pois o aborto é, sem tirar nem pôr, uma guerra onde rolam sangue e lagrimas. Uma verdadeira guerra, com verdadeiros feridos e verdadeiros mortos. VI Moral "à la carte" Em matéria de aborto, vai-se de assombro em assombro. Se jâ nos surpreende a inconseqùência dedeterminados médicos, politicos ou juristas, ainda mais nos espanta a atitude de um certo numéro de moralistas. Diante dos projetos que visam a liberalizar o aborto,estes assumem duas atitudes principais: a omissâo ou a "justificaçâo". Ambas, contudo, desâguam em posiçôes fundamentalmente semeIhantes. Moralistas favor nâo se apresentar Em vez de mostrarem que o campo da liberdade se amplia com os progressos cientificos e técnicos, os defensores da primeira posiçâo recorrem cada vez mais à psicopatologia, ou mesmo à sociologia, para mostrar que o homem é presa de determinismos sobre os quais nâo tem contrôle algum. Entâo,sô nos resta uma conclusâo: a moral jâ nâo tem objeto proprio, e o moralista ficou decididamente incom pétente. É,de fato, o que se afirma ao proclamar que "é preciso nâo julgar", ou,como freqùentemente se diz,"respeitar a opiniâo de cada um". Assim, nâo é surpreendente a leviandade com que sâo tratadas a sexualidade humana e os problemas de intersubjetividade. A sexualidade é reduzida a uma necessidade do ego. Nâo é mais encarada como uma dimensâo da pessoa que deseja encontre, partilha, inter- câmbio, entrega. Volta-se a Wilhelm Reich e a sua concepçâo da sexualidade como pura necessidade.^ Assim sendo, e embora nâo (1) W. REICH,La révolution sexuelle, Paris, Union Générale d'Édition (10/18), 1968, pp. 481-482. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS faite segurança aos métodos anticoncepcionais, é précisé pensar nos imprevistos. Entâo, por que nâo pensar num aborto como repescagem? Entretanto, tal amoralismo esta longe de ser partiihado por todos os defensores da iiberalizaçâo do aborto. Determinados moralistas, partidârios dasegunda atitude, acrescentam-lhe "justificaçôes" vinculadas a dois temas. Algumas giram em torno da idéia do "filho desejado", outras, ao redor da distinçâo "humano-humanizado".^ O fîlho desejado No primeiro caso, em que se trata àofilho desejado, a sorte da criança depende de saber se ela é ou nâo desejada.^ Por mais que ela exista e esteja numa determinada etapa de desenvolvimento, seu direito de continuar a existir e a ser humana,quer dizer, de crescer e tornar-se, é-Ihe concedido por sua mae, por seu pai, pelo outro. A criança pode continuar a existir,desde que seja reconhecida como um valor para outro. Este outro pode prevalecer-se de sua condiçao de adulto e de sua posiçao de força para lançar unilateralmente um veredicto de recpnhecimento ou de nao-reconhecimento,e até mais: de vida ou de morte. Logo, é por referência a outro que a criança é ou nâo autorizada a continuar a ser. O outro-que-nâo-eu pode continuar a ser se eu o institue como valor-para-mim. O principio axiologico aqui invocado ultrapassa, assim, qualquer consideraçâo sobre a etapa do devir ou sobre a fase atual da sua existência. É o outro em gérai que é autorizado a ser, desde que eu consinta em seu ser. Em caso negativo,se eu puder ou se me derem os meios, terei poder sobre eie. Por mais que eie exista ou, como dizem aiguns filôsofos, que "esteja présente, em sua facticidade", se eu nâo o constituo como vaior-para-mim, eie é forçosamente rejeitado à categoria antagônica e, em ùitima instância, tenho direito de eiiminâ-io. Fica-se, portante, preso à aiternativa amigo-inimigo,exciuindo (2) Cf. André LÉONARD,"L'enfant à naître est-il déjà humain? Le point devue du philosophe", in La Libre Belgique de 5 de Janeiro de 1979. (3) Cf. p. 183s. 66 MORAL À LA CARTE qualquer outra saida. Eis que tornamos a encontrar o funeste Homo homini lupus ("O homem é o lobo do homem"). Hobbes colocava este aforismo como principio de seu pensamento polftico, e fez escola."^ E ao mesmo principio que voltamos aqui, mas depois de ter extrapolado seu alcance. O homem s6 pode afirmar se dispuser do direito de negar, e todas as relaçôes humanas sâo governadas pelas categorias reguladores do amigo e do inimigo. A radicalizaçâo deste antagonisme é levada a um ponto tâo extremo que o homem torna-se um lobo para seu prôprio filho — coisa de que nem os prôprios animais dâo exemplos. A questâo do filho desejado é, assim, uma das expressôes de um mal-estar caracteristico de nossa época. Como negar que,em princfpio,o filho desejado é prefenvel ao filho nâo-desejado? Mas também é assim em todas as relaçôes humanas. Cada um de nos sonha em s6 tratar com pessoas afâveis, simpâticas, encantadoras. Podemos imaginar um mundo sem Negros(ou sem Brancos),sem Germânicos(ou sem Latines) etc, conforme o case. Mas, ao cabo dessa reduçâo do outre ao mesmo, chegarfamos a uma relaçâo especular conosco mesmos. De fato, assim que surge no campe da minha consciência, o outre torna-se obstâculo, interpela-me,força-me a tomar partido.De maneira ainda mais profunda, nos vivemos um tempo em que, para alguns, o louco é o outro. Entâo, cada um define o seu sistema de "racionalidade" e, portante, de loucura. A era da "grande exclusâo" caminha de par com a era do "grande fechamento".^ Humano-humanizado A segunda "justificaçâo", baseada na distinçâo entre ser humano e ser humanizado,é portadora do ranço de uma velha antropolo(4) Cf. C^p. IL (5) Ver a este respeito Michel FOUCAULT,Histoire de lo folie à l'âge classique, Paris, Gallimard, 1976, e Surveiller et punir; Naissance de la prison, Paris, Gallimard, 1975; Thomas S. SZASZ (éd.), L'âge de la folie. L'histoire de L'hospitalisation psychiati'iqiie involontaire à travers un choix de textes, Paris, Perspectives Critiques, 1978. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS gia dualista. Aqui,o principio do reconhecimento e da reciprocidade é deixado em sursis. Sem dûvida, é dificil contestar o fato de que a relaçâo com o outre e o reconhecimento que dele advém sejam decisivos na cons- tituiçâo da personalidade: o processo de humanizaçâo é conUnuo. Mas a "justificaçâo" aqui examinada apresenta a distinçâo humano-humanizado de maneira tâo radical e abrupta que insinua que, em seu devir, a existência humana é marcada por uma divisâo essencial. Ora, essa passagem sub-repticia de uma distinçâo em nivel de razâo a uma distinçâo real é pura e simplesmente indevida.Se um ser concebido se humaniza, é porque,/^ de inicio,jâ é humano; porque a condiçâo humana é vivida na duraçào; porque,jâ de inicio, ele é capaz de ter relaçôes humanas. Isto merece uma breve explicaçâo. Antonio e Bernardo sâo realmente seres distintos: a distinçâo entre eles é real\ ela é fisica e independente de minha mente. Mas posso considerar determinadas caracteristicas de Bernardo:ele foi estudan- te e depois soldado;tornou-se agricultor, pai de famflia,contribuinte; por uma intervençâo de minha razâo, distingo — lôgica ou conceitualmente — diferentes traços caracteristicos de Bernardo. A dis tinçâo que opero por intermédio de minha razâo tem, sem dûvida, um fundamento na reaiidade concreta de Bernardo; mas nâo existe, em Bernardo, distinçâo fisica entre a criança, o agricultor, o contri buinte etc. É a esta ûltima ordem — lôgica conceitual — que pertence a distinçâo entre o ser humano e o ser humanizado. Tal distinçâo résulta da anâlise, pela razâo, de um processo ûnico, integrado, durâvel. Mas a distinqâofisica que se quer fazer corresponder a essa distinçâo lôgica é desprovida de fundamentos biolôgicos e antropolôgicos. A humanizaçâo é um processo ûnico, integrado, continuo, que dura do imcio ao fim da existência. De qualquer maneira,o alvo do aborto é o embriâo ou o feto no quai é lesado, hoje,o homem cujo devir nâo é interrompido, mas cortado. Em suma,essa argumentaçâo repousa numa ambigùidade astu- ciosa: o deslizamento da distinçâo à divisâo. Na realidade concreta, nâo hâ patamar nem limiar algum que marque a passagem de um modo de ser humano a um modo de ser humanizado. A disjunçâo 68 MORAL A LA CARTE desses dois tipos de afirmaçâo desembocaria na justaposiçâo de duas proposiçôes que afinal nâo têm sentido.^ Poeira nos olhos ✓ E notâvel que as premissas das quais procedem essas duas atitudes e essas duas argumentaçôes sâo nâo apenas muito diferentes como rigorosamente inconciliâveis. Na primeira argumentaçâo,relativa ao filho desejado,éo adulto que se coloca como parâmetro de valor, como ponto de referência ûnico e exclusive. Assim, a importância das consideraçôes sobre o desenvolvimento fisico ou psicologico da criança nâo-nascida é s6 secundâria,senâo negligenciâvel. A qualidade da existência da crian ça nâo é questionada, mas a oportunidade de deixâ-la prosseguir é entregue à apreciaçâo de um sujeito ou instância diferentes da criança. Asegunda justificaçâo,onde se explora a distinçâo humano-humanizado, questiona a qualidade da existência da criança, motivo pelo quai o adulto sente-se autorizado a intervir. Baseia-se no desen volvimento "imperfeito", inacabado, do ser humano em devir. Apiimeira justificaçâo esta na linha das conveniências do mais forte. Assim, a criança pode eventualmente ser reconhecida,e cabe ao adulto consentir em que a criança continue a ser. No segundo caso, a criança é reduzida à condiçâo de ser pré-pessoal,visto que é incapaz de reciprocidade e reconhecimento. Nâo é passivel de ser verdadeiramente reconhecida antes de ter chegado à "humanizaçâo". Em suma,estamos diante de duas argumentaçôes: a primeira é subjetiva; a segunda, objetiva. A primeira justificaçâo concédé ao adulto uma liberdade de decisâo total e incondicional que a segunda contesta e limita, considerando-se a etapa atual do desenvolvimento da criança. Mas a segunda justificaçâo nâo aceita que a criança em formaçâo tenha um status que a primeira em principio Ihe reconhece. Se os partidârios da primeira justificaçâo atribuissem ao adulto o (6) Ver E.POUSSET,"Être humain déjà",in Études,n.°333(novembre de 1970), pp. 502-519. 69 O ABORTO: ASPECTOS POUTICOS papel que Ihe é imputado pelos defensores da segunda,nâo poderiam logicamente pensar na liberalizaçâo do aborto. Mas os partidârios da segunda justificaçâo também nâo poderiam cogitar, se adotassem a concepçâo dos defensores da primeira em relaçâo à criança. Quando se esperava que essas duas justificaçôes se corroborassem mutuamente,elas,em ûltima instância, mostram fundamentar-se em premissas incoerentes, inconciliâveis; estâo uma de costas para a outra. Seu ùnico ponto de convergência é uma tese que é preciso demonstrar a todo custo. As premissas sâo forjadas para as necessidades da causa. Pouco importa se têm fundamento; pouco importa se se harmonizam, desde que atirem poeira nos olhos e levem à conclusâo desejada. 70 VII Como é usada a teologia? Acabamos de ver como um determinado uso da moral naturai podia confortar a causa dos partidârios do aborto.Por mais surpreendente que pareça,esse uso perverso da moral repercute e se prolonga nos circulos teolôgicos. Do lado dos vitoriosos Esse tipo de fenômeno nâo é novo na histôria da teologia. Mais de uma vez aconteceu de teologos moralistas ficarem do lado dos vitoriosos.^ Lisonjear os principes foi, outrora como nos ûltimos tempos, a preocupaçâo de mais de um deles. Sem remontar à época colonial, fica-se pasmo diante das bondades de dignitârios eclesiâsticos para com o régime nazista.^ Poucos cristaos estâo informados desse lugubre precedente. Como entâo tirar dai liçôes para os dias de hoje? Ignorando a histôria, corremos o risco de repetir seus erros. Os tempos mudaram um pouco, mas a tentaçâo de degradar a (1) A cegueira de que sâo capazes certos teologos e/ou eclesiâsticos (e certos fiiôsofos) aparece no estudo de Louis SALAMOLINS,Le Code Noir ou le calvaire de Canaan, Paris, PUF, 1987, passim e especialmente pp. 35-41 e 92-105. É indispensâvel completar a visâo desse autor com o estudo de Henri WALLON, publicado em 1847 com o titulo de Histoire de l'esclavage dans l'Antiquité. Esse célébré livro foi reeditado em 1988 em Paris, Laffont, Wallon estudava a escravidâo na Antigiiidade mas tinha em vista "a escravidâo nas colônias" francesas de seu tempo. Ver a importante Introduction, do prôprio Wallon, pp. 7-84; Jean-Christian Dumont,que reeditou o texto, foi muito feliz ao acrescentar-lhe uma importante bibliografia, pp. 1009-1018. (2) Consultât Xavier de MONTCLOS, Les chrétiens face au nazisme et au stalinisme. L'épreuve totalitaire. 1939-1945,Paris, Pion, 1983. 71 O ABORTO; ASPECTOS POLÎTICOS démarche teoidgica, transformando-a em ideologia legitimadora, continua igualmente sedutora; o prôprio Cristo, no deserto, conheceu essa tentaçâo.^ O fato da degradaçâo ser feita para proveito de um principe, dos burgueses da sociedade bem-pensante, de consumidores de fato ou no desejo,ou mesmo de alguma potência impérial, nâo muda nada na questâo. Sem dûvida, é preciso felicitar o teôlogo atento às perguntas que a sociedade contemporânea se faz.'' Mas esta atençâo nâo o autoriza nem a renunciar à sua démarche propria nem a deixar-se vergar de modo pré-critico. Como resultado de uma abdicaçâo assim, o JEvangelho, com toda sua intransigência, ficaria estéril. O que distingue o teologo moralista do mero moralista é precisamente o enfoque particular que o primeiro deve dar aos problemas morais de seu tempo. Cada época e cada cultura insta o moralista a reativar o Evangelho, quer dizer, a reapresentâ-lo a quem quiser ouvir seu dinamismo provocador, contes'tador e profético. Mas essa reativaçâo deve obedecer a certos critérios. Sob a alegaçâo de que eia nâo adapta sua moral ao comportamento real de determinados cristâos, a Igreja é regularmente taxada de hipocrita e desumana.^ Ora, a Igreja nâo tem poder de impedir os homens de transgredirem as regras da moral natural ou a lei divina. Mas ela deve dizer que eles as transgridem,e os homens têm o direito de saber que as transgridem. Da mesma maneira, o que restaria da moral evangélica se fosse induzida a partir da conduta dos cristâos? Na verdade, (3) Cf. Mt. 4, 1-11. (4) Um dos estudos mais notâveis é o de C. ROBERT, "L'interruption de grossesse , in Supplément à Fsychiatj'ie et Vie chrétienne^ Rennes, n."^ 12, s.d. (final de 1971?). Boa documentaçâo pp. 31-35. Ver também R. HECIGBL, Avortement. L heure de vérité", in Cahiers de Vactiialité religieuse et sociale^ n. 61 (1-15 dejulhode 1973). Jean-Louis BRUGUÈS toca diversas vezes no problema do aborto em seu iivro sobre Lafécondation artificielle au crible de l'éthique chrétienne, Paris, Fayard, (Communio), 1989. Ver também Jean-Maria HENNAUX,Le droit à la vie. La déclaration des évêques belges au sujet de l'avortement (juin 1989), Bruxelas, Institut d'Études Théoloeiques 1989. (5) As principais tomadas de posiçâo recentes do magistério eclesiastico sâo evocados no final do livre, na Bibliografia II,. COMO E USADA A TEOLOGIA? nâo se trata de salvar principios pelo mero prazer de fazê-los valer. Os principios nâo sâo um fim em si mesmos.Nâo sâo deforma alguma "abstratos", como alguns apregoam: implicam a vida de seres huma- nos.^ Assim sendo, haveria hipocrisia e ma fé se os cristâos — em particular os moralistas — mudassém os principios que orientam sua conduta para acomodâ-los a um comportamento que se quer justifîcar. Da mesma forma, assim como o Estado nâo pode mudar a definiçâo do crime ou do delito a seu bel-prazer, a Igreja nâo pode mudar a definiçâo de pecado ao sabor do magistério ou dos moralis tas.Se ela tivesse a pretensâo de erigir-se em arbitra soberana do bem e do mal, deixaria de ser testemunho e presença continua do DeUs Salvador. Ficaria reduzida a uma realidade intramundana, puramente histôrica; sua moral se tornaria uma moral positiva imppsta por uma instância secular entre outras. A funçâo da Igreja nâo é decidir o que é ou nâo pecado; ela nâo é autora da criaçâo nemfonte ûltima de perdâo e salvaçâo. Se agisse assim, cairia no sacrilégio e no perjûrio; atrairia para si o justo desprezo dos homens se, usurpando um poder que nâo tem, ela usasse sua autoridade para "desculpabilizar" — mesmo levemente — o que alguns reclamam em altos brados.^ A distinçâo entre législative e judiciârio é, assim, sugestiva até para a Igreja.^ Recorda, em primeiro lugar, o quanto é necessârio salvaguardar a distinçâo entre moral cristâ e sociologia,em particular religiosa. Também deve instigar os cristâos a distinguirem cuidadosamente o papel do teôlogo moralista, que desvenda as exigências do apelo evangélico à conversâo, e o do confesser ou conselheiro espiritual, que particulariza essas exigências e leva o perdâo. Os teôlogos estariam cedendo a um cléricalisme bastante inso lite se solicitassem a autoridade da Igreja no intuito de caucionar posiçôes que esta mesma Igreja nâo poderia apoiar sem comprometer (6) Por este motive, no intuito de marcar claramente o respeito que tem pela vida humana em seu começo,a Igreja manteve a excomunhâo latae sententiae para os que causam um aborto,se o efeito é alcançado. Cf. o novo Côdigo de direito canônico, Cânon 1398. (7) Cf. L. CICCONE,Non uccidere. Questioni di morale delta vita fisica, Milâo, Ares(Ragione & Fede), 1984. (8) Cf. p. 22s. 73 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS sua identidade. A mensagem crista e o compromisso correspondente a ela nâo sâo artigos de liquidaçâo que se pode profanar camuflando suas exigências. A sociedade que liberaliza o aborto tem seus ideôlo- gos.Tem também seus teôlogos, mais rétrogrades do que se imagina.^ Numa época cm que tanto se fala sobre o respeito aos pobres, é constrangedor o espetâculo oferecido por certes teologos quese deixam cooptar por ideologias cujo quilate nâo avaliaram, e que manipulam o Evangelho a seu serviço. E o profetismo de cabeça para baixo! Uma querela va Nâo obstante, a dériva que estigmatizamos esta longe de ser generalizada na Igreja. Para percebê-Io basta lembrar que,nas discussôes sobre a liberalizaçâo do aborto, nâo é rare que os cristâos, catôlicos em particular, sejam acusados de querer imper a todos os homens seus pontes de vista sobre a questâo. As vezes insinua-se até que os cristâos estâo agindo de ma fé e que dissimulam suas verda- deiras motivaçôes na luta contra o aborto.^^ Em ultima instância, a Igreja apareceria como o ûnico obstâculo de peso à liberalizaçâo de tal prâtica; uma vez mais, ela estaria sendo obscurantista.^^ (9) Ver Alfred HAUSSLER, The Betrayal of the Theologions (folheto traduzido do alemâo par Human Life International,418 CStreet, N.E., Washington D.C. 20002). (10) Cf. p. 177. (11) Séria difici! afirmar que certos autores evitam amalgamar os defensores da vida (notadamente cristâos) ao espi'rito "conservador", "reacionârio", "integrista", "antifeminista", "antiprogressista" etc. Ver, a ti'tulo de iiustraçâo: W. RAU, "Konservativer Widerstand und soziale Bewegung. Problemverstândnis und Weltauslegungvon LQbensrechtsgrupp&n",in EuropàisclieHochschiiIschriften, Reihe XXII, Sozioiogie 111, Frankfurt-sobre-Main, Lang, 1985; J.-J. RAY, "Attitude to abortion. Attitude lo life and conservatism in Australia", in Sociology and Social Research, Los Angeles, t. 68, 1984, pp. 236-246; C.H. DEITCH, "Ideology and opposition to abortion. Trends in public opinion, 1972-1980", in Alternative Lifestyle. A Journal of Changing Patterns, Nova lorque, t. 6,1983, pp.6-26; R.POLLOCK-PETCHEVSKY,"L'antiféminisme et la montée de la Nouvelle Droite aux États-Unis", in Nouvelles questions féministes, n.° 67(1984), pp. 55-104; M. H. BENIN,"Déterminant of opposition to abortion. An analysis of the hard and soft scales", in Sociological Perspectives, Beverly Hills(Ca.), t. 28, 1985, pp.199-216. Ver também p. 164, nP 13. COMO E USADA A TEOLOGIA? Essas acusaçôes merecem ser examinadas, ainda mais por nâo serem destituidas de fundamento. De fato, muitos movimentos de inspiraçâo abertamente cristâ fustigam a liberalizaçâo do aborto em nome,sobretudo, de principios religiosos. Séria dificil contestar-lhes o direito de procéder assim, mas com essa argumentaçâo correm o risco de s6 ter eficâcia "interna", prôpria ao mundo cristâo, na medida em que pressupôe, para merecer crédite, que a pessoa tenha aderido a determinadas verdades reveladas, que pertença à Igreja, respeite seu magistério etc. Sem dûvida, a Igreja tem algo a dizer sobre o aborto,e diz.^^ Entretanto, nâo se pode esperar que o nâo-cristâo dê a tais declaraçôes o assentimento que deve vir do cristâo. Em vez de pôr em dûvida a honestidade dos cristâos, é preciso desejar que tenham maior clareza quanto ao método usado para abordar a questâo. De fato, a liberalizaçâo do aborto nâo pode ser considerada um problema em pmneiro lugar religioso. Como vimos, trata-se, antes de mais nada, de um problema filosôfico, biolôgico, politico, juridico, moral. É em torno destes aspectos do problema que giram as discussôes, antes e independentemente de qualquer referência religiosa. Neste sentido, fica patente que, como apontamos, as posiçôes divergentes, a favor ou contra, nâo sâo paralelas à divisâo das pessoas em nâo-cristâos e cristâos. As posiçôes dos cris tâos nesta matéria caracterizam-se por um certo pluralismo cujas raizes,como vimos,sâo pré-religiosas; nâo é diferente,evidentemen- te, o caso das posiçôes dos nâo-cristâos.^"^ Dito isto,é preciso reconhecer aos cristâos o direito de perceber no aborto uma dimensâo que o torna também um problema religioso. (12) Muito boa exposiçâo a este respeito de autoria de Mgr L. A. VAN PETEGHEM,in Respect pour l'enfant à naître, s.l., s.d.,(Gand, 1973). Sobre a posiçâo da Igreja catôlica em matéria de procriaçâo em gérai, ver o estado da questâo segundo G. MATHON, artigo "Procréation", in Catholicisme, hier, aujourd'hui, demain, t. 2, Paris, Letouzey & Ané, 1988, col. 1117-1214. Sobre o aborto, cf. col. 1129-1137, esse estudo baseia-se numa bibliografia principalmente de Imgua francesa. (13) Cf. Caps. II, m,IX. (14) Cabe até perguntar-se se alguns nâo caem no cisma, de tâo divergente que é sua posiçâo nesta matéria em relaçâo ao ensino constante da Igreja. Ver, por exemplo,o dossiê de H.LOTSTRA,Abortion. The Catholic Debate inAmerica, Nova lorque, Irvington Publishers, 1985. 75 O ABORTO:ASPECTOS POLÎTICOS Os cristâos fazem muito bem em ressaltar a especificidade de seu enfoque,baseado na antropologia cristâ: o reconhecimento do outre se fundamenta, afinal de contas, no fato de que ele e eu recebemos gratuitamente a existência que partilhamos. Todos nosfomos criados à imagem do Deus trinitârio, e por esta razâo mesma somos capazes de entrar em relaçâo corn Deus e com os homens;somos chamados à vida eterna. Ao proclamar essas verdades,os cristâos dâo testemunho desua fé no homem. Estariam sendo incoerentes, e talvez algo mais, se se refugiassem numa teoria da dupla verdade em funçâo da quai seriam contra o aborto como cristâos, enquanto se declarariam dispostos a admiti-lo enquanto homens com um compromisse poiitico. Pode-se imaginar o clamer que tal ambigùidade e acrobacia casuistica susci- tariam se, "enquanto cristâos", se declarassem contra a exploraçâo do homem ou contra a tortura, mas"enquanto autoridades politicas" estivessem dispostos a permiti-las!^^ Dite isto, très coisas devem ficar muito claras.Primeiro,que nâo é indispensâvel, de forma alguma, concordar com a antropologia cristâ para se opor à liberalizaçâo do aborto. A seguir, que é perfeitamente légitimé, e a nosso ver até indispensâvel, contestar a libera lizaçâo do aborto lançando mâo dos recursos das ciências humanas, antes de apresentar argumentes de ordem teolôgica. Por fim, que os argumentes prôprios aos cristâos, longe de procéder de uma atitude arbitrâria ou obscurantista, contêm tal valor intrmseco que merecem ser razoâvel e atentamente considerados pelos nâo-cristâos. Acrescentamos que, por sua vez, os cristâos também têm razâo ao fazer certas perguntas aos que nâo compartilham da visâo "cristâ" das coisas. Por exemple: Com que direito — superior? — poderiam eles imper aos outres uma concepçâo que, com base em sua consciência, cristâos e nâo-cristâos estimam ser nociva para todos? Por que nâo se veria também nessa atitude uma imposiçâo abusiva àos outres de sua propria opiniâo? (15) Analisamos este problema em Démocratie et libération chrétienne. Principes pour l'action politique, Paris, Lethielleux (Le Sycomore), 1985; ver especialmente pp. 141-201. (16) Ver P.LADRIÈRE,"Religion, morale et politique: le débat sur l'avortement", in La libéralisation de l'avortement, pp. 417-454. 76 COMO É USADA A TEOLOGIA? Em suma,levando em conta esses problemas de método,evitarse-â a confusâo dos problemas. De fato, nâo é possivel colocarem pé de igualdade, nem submeter à mesma abordagem, problemas tâo diferentes como o aborto e a contracepçâo, sejam quais forem as relaçôes entre eles.^^ Respeitando-se essas regras elementares de método, as discussôes sobre a liberalizaçâo do aborto nâo degenerarào em conflito entre a Igreja e o Estado que alguns, sem dûvida alguma, desejam ardentemente.^® Também sera possivel reconhecer aos cristâos — nem mais nem menos que aos judeus,franco-maçons ou membros do Partido — o direito de pronunciar-se sobre um problema complexo, sem usar a ocasiâo como pretexto para criticar-Ihes as intençôes ou buscar uma querela va. (17) Cf. pp. 81, 102, 127 e 133s. (18) Cf. C^p.XI. VIII Aborto e desinformaçâo A desinformaçâo sempre foi utilizada como arma estratégica.^ O papel que tem desempenhado manifesta, de forma particular, a cumplicidade entre a violência e a mentira. A histôria contemporânea proporciona um caso exemplar de desinformaçâo. Trata-se de uma determinada leitura da Conferência de Yalta (1945),segundo a quai a divisâo do mundo em "zonas de influência" ou "esferas de interesses" teria sido decidida e corroborada naquela instância. Ora, embora jâ tivesse sido esboçado pelo Pacto germano-soviético de 1939, esse "bibloquismo" sô foi sistematizado em 1948, por Jdanov em particular. A retroleitura "bibloquista" dos acontecimentos anteriores a 1948 era evidentemente intéressante para a URSS.Permitia que esta consagrasse um fato consumado:o dommio da Uniâo Soviética sobre os paises da Europa Oriental,graças a governos de coalizâo apoiados pelo Exército Vermelho...^ (1) A importância da desinformaçâo na guerra jâ fora observada por Sun Tzé, célébré estrategista chinés, no século VI a.C. Diversos estudos sobre a questâo foram publicados recentemente; referem-se, em sua maioria, à URSS. Contudo, os mecanismos desvendados nesses estudos estâo présentés em outras situaçôes de desinformaçâo sobre as quais autores e editores sâo menos loquazes, como o caso que analisamos aqui. Ver Alexandre DOROZYNSKI (ed.),Lfl manipulation des esprits... et comments'enprotéger, Paris,G.Le Prat, 1981; R. JACQUARD,La guerre du mensonge. Histoire secrète de la désinformation, Paris, Pion, 1986; Vladimir VOLKOFF,Lfl désinfonnation, arme deguen-e, Paris, Julliard, 1986. Nâo esquecer o "clâssico" de Serge TCHAKHOTINE,Le viol des foules parlapropagande politique, Paris, Gallimard, 1939. (2) Cf. Daniel YERGIN,La paix saccagée. Les origines de la guerre froide et la divison de l'Europe, Paris, Balland-France Adel, 1980; Jean LALOY, Yalta, hier, aujourd'hui, demain, Paris, Laffont, 1988. Em Le Monde de 1.° de agosto de 1989, p. 5, Michel TATU publicou um dossiê sobre "Le pacte germano-soviétique et ses protocoles secrets". 79 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS A adulteraçâo das informaçôes Em suas formas conteraporâneas, a desinformaçâo às vezes se baseia em dados "cientîficos",sem hesitar em adulterar alguns deles, às vezes até fabricando-os inteiramente. . . . O aborto, assim como todos os problemas relatives a transmis Sâo da vida humana, dâ margem a muita desinformaçao. Conforme as teses para as quais se busca aceitaçâo, sac mculcadas a opima pûblica as "informaçôes" mais aberrantes, e, as vezes, as Sitôrias-^ A Dra.Patricia Sandersfez um trabalho p.oneiro dedicando sua tese de doutorado em medicina a esse problema dificil p '^^^'T^amos alguns exemples. Alguns levam a ousadia ao ponto de afirmar que o aborto nâo tem qualquer incidenc.a natalidade. Quando do debate de 26 de novembre de 1974 na sembléia Nacional, a Sra. Simone Veil declarava: ^ «bse^açoes demogrâficas nâo permitem demonstrar a existencia de uma cor relaçâo entre uma modificaçâo da legislaçâo sobre o aborto e a evoLâo das taxas de natalidade, e sobretudo de Entretanto, outros apresentam o aborto como um meio de hm.taçao (3) À lista de problemas sobre os quais reirra desinformaçâo o -.s.e.„os— Sludi pmese ii Seœuologia. r;NGs":'S <d, <5, —r. pSr» Iniitdiado D. Sm». Apropti.da par.""'f»*^ ,,89 L 15-18, 1^™ matière de reproduction humain , revisâo de nosso texto. oripTnnrsCFrança') Aeradecemos ABORTO E DESINFORMAÇÂO de natalidade e/ou como complemento da contracepçâo. ^ O Dr. Lagroua Weill-Hallé explica a este respeito, a importância do congresso realizado em Dacca de 28 de Janeiro a 5 de fevereiro de 1969: ''Pela pnmeira vez num congresso da Fédération Internationale de la Parenté Planifiée (IPPF),o aborto é oficialmente apresentado como um meio contraceptivo[...]como um método de contrôle da natali dade" E, adiante: "Foi o fracasso maciço da contracepçâo imposta {sic) às populaçôes nâo motivadas do Terceiro Mundo que fez com que o aborto fosse adotado(...) pelo PlanningFamiliallntemational como meio de emergência para enfrentar o excesso de populaçâo".^ Citamos mais adiante a reflexâo enunciada pelo professor Soutoul a respeito da correlaçâo entre aborto e natalidade.^ Outro exemple. É perfeitamente comum ouvir dizer que a divulgaçâo da contracepçâo hormonal é o melhor meio para prévenir o aborto.Outros,contudo,apresentam a legalizaçâo da contracepçâo hormonal como primeira etapa do caminho que leva ao aborto.^ Marx e Engels foram radicalmente contra o malthusianisme; nâo se pode dizer o mesmo de todos os que, hoje, reivindicam sua herança.^^ Os comunistas chineses afirmaram alternadamente ou que nâo havia superpopulaçâo em relaçâo aos recursos disponiveis na China, ou o contrario. O mesmo ocorre em escala mundial. Agronomes célébrés anun- ciam que estâmes rumando para a fome,^^ ao passe que outros garantem que é possivel alimentar tranqùilamente o dobro da populaçâo mundial atual.^^ (6) Cf. p. 134. (7) Lagroua WEILL-HALLÉ,L'avortement de papa,ver respectivamente pp. 21, 23 el3(sublinhado no texto). (8) J.H. SOUTOUL,Conséquences d'une loi, cf. adiante, p. 133, n. 18. (9) É o que explica, por exemplo, Pierre SIMON em De la vie avant toute chose, Paris, Mazarine, 1979, pp. 96ss. Ver também L. WEILL-HALLÉ, L'avortement de papa, pp. 119-122. (10) Cf. as referências p. 103, n. 3. (11) Cf., por exemplo, René DUMONT,Nous allons à la fainine, Paris, Éd. du Seuil, 1966;tL'utopie etla tnoti,Paris,Éd.du Seuil, 1973;Mescombats,Paris,Pion, 1989. Também é bom recordar William WOGT,Lafabn du monde,Paris,Hachette,1950. (12) Cf., por exemplo,Joseph KLATZMANN,Nourrir dixmiUiards d'hommes, Paris, PLFF, 1983; Ester BOSERUP,Popidation and technology. Oxford, Blackwell, 1981. 81 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS Da manipulaçâo à amâlgama A desinformaçâo aparece sobretudo quando se trata dos meios utilizados no irituito de chegar à liberalizaçâo do abortô. As observaçôes do Dr. Bernard Nathanson a respeito dos EUA concordam com as de René Bel sobre a França.^^ Nos EUA,recorreu-se a uma prâtica habituai que consiste em aumentar as cifras correspondentes aos abortos (pseudoclandestinos, bem como dos acidentes fatais por eles ocasionados). AJém disto, as cifras das sondagens foram manipuladas. Falava-se de 60% de americanos a favor do aborto, no momento em que 99,5% dos americanos eram, ao que tudo indicava, contra! É intéressante ver também como os partidârios do aborto recor- reràm à assimilaçâo para desacreditar a hierarquia catolica.^^ B. Nathanson observa que "foi feita a amâlgama entre os catôlicos contrarios ao aborto e os conservadofes favorâveis à guerra do Viétnâ"; assim, os primeiros podiam ser qualificados de reacionârios. Além disto, à imprensa falou muito de certos grupos catôlicos "progressistas" — leia-se favorâveis ao aborto.y4 intençào era quebrar por éssa via a imagem de unidade do mundo catôlico. Paralelamente, foram mantidas sob silêncio as tomadas de posiçâo das outras reli- giôes contra ô aborto. Por meio desses procedimentos,era criado um condicionaménto pela associaçâo entre oposiçâo ao aborto e catolicismo cônsêrvador. Para completar, pretendia-se que a Igreja catôlica estava imiscuindo-se em politica, que era preciso respeitar a separaçâo entre Igreja e Estado. Nao chegavam a acrescentar que a democracia impunha à Igreja que se calasse sobre todos os problemas "delicados''. Na França, durante os anos que precederam a votaçâo da lei Veil(1975), a opiniâo pùblica e os parlamentares foram habilmente "trabalhados" para que o projeto de lei introduzido em 6 de junho de 1963 pudesse"por fim ser aprovado"—o que de fato aconteceu.^^ (13) Cf. Bernard NATHANSON,"Abortus: de lezing van een man die weet waar hij over spreekt", in Katholieke Stemmen^ 14.° ano, n.° 2(fevereiro de 1985), pp. 76-85 (obras de René BEL sâo citadas na p. 18, n.°9, e na p. 83, n. 18). (14) O livro de S. D. MUMFORD é um modelo do gênero; cf. p. 164, n. 13. (15) Cf. A. M.DEVREUX e M. FERRAND-PICARD,"La loi sur l'avortement. 82 ABORTO E DESINFORMAÇÀO O que hâ de novo é que, por terem a sensaçâo de que se tornam cada vez mais fortes e influentes, os partidârios do aborto revelam cada vez mais sua tâtica. Vârios livros explicam como eles agiram,ou como é preciso agir, para capturar a opiniâo pûblica.^^ Sabe-se hoje que todos os argumentos e processos habituais foram requisitados: men tira, omissôes, processo e Bobigny, pressôes, manifestaçôes, declara- çôes etc.^^ O mais grave é que as proprias estatisticas oficiais foram "ajeitadas: é o que nos diz um estudo de René Bel, baseado em pesquisas aprofundadas. Esse matemâtico nào teve dificuldade alguma em mostrar que o numéro alegado de abortos clandestines era da ordem da mais alta fantasia — para utilizar um eufemismo. Para obter a aprovaçâo da lei, foi preciso crer que na França eram provocados 250.000, 360.000 ou até mesmo 1 milhâo de abortos por ano! René Bel demonstrou com toda facilidade as manipulaçôes, às vezes grosseiras, que ajudaram a fazer com que tais misti- ficaçôes fossem aceitas.^® Mas o argumente de autoridades sempre dâ resultado, e o que dizem os gurus da demografia oficial é tido como liquide e certo. Chronologie des événements et des prises de position", in La.libéralisation de l'avortement, pp. 503-518. Ver também N. J. DAVIS, "Abortion and légal policy", in Contemporaiy Crises, Amsterdâ, t. 10,1986, pp.873-897; este artigo nos mostra o encadeamento entre diversas etapas: criminaçâo, descriminaçâo, liberalizaçâo, legalizaçâo, medicalizaçâo. Consultar também o livro de j. LOVENDUSKI e J. OUTSHOORN,citado nas pp. 16s., n. 4; ver também p. 132, n. 13. (16) Ver, por exemplo, as obras citadas na p. 40, n. 3,e na p. 57, n. 2. (17) Sobre o processo de Bobigny, cf. ibid. (18) Ver Éméreptienne de LAGRANGE, Marguerite-Marie de LAGRANGE et René BEL, Un complot contre la vie. L'avortement, Paris, SPL(em particular pp.47-64).Essas pâginas analisam o relatôrio do INED,solicitado em 1965 pelo Ministro da Saude, Raymond Marcellin. Nas palavras do ministro, tratava-se de saber quai poderia ser o "efeito sobre a natalidade da adoçâo de uma poU'tica mais libéral em matéria de regulaçâo dos nascimentos". Além das pâginas às quais remetemos aqui, René BEL preparou um estudo aprofundado sobre o mesmo dossiê com o titulo de Un rapport malfait! Recherches critiques concernant le rapport de l'INED sur la régulation des naissances', este estudo é mimeografado e pode ser obtido por intermédio das Éditions SPL.Ver também o artigo do demôgrafo J. LEGRAND,"Avortement.Impossible dialogue", in La France catholique. Le temps de lafoi, 1.° de dezembro de 1989, p. 35. 83 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS Da ocultaçâo à censura Ainda na França, o proprio Centro Nacional da Pesquisa Cientifica forneceu a prova da desinformaçâo em matéria de contracep- çâo e aborto.^^ É o que se deduz da anâlise de seis jornais franceses publicados de 1965 a 1975. A sondagem révéla, primeiro, que os principais "locutores"sâo,em ordem decrescente,os partidos politicos (32,5%), os jornalistas (17,8%), os eclesiâsticos (14,9%), os movimentos especializados a favor ou contra o aborto(10,1%)e sô em ùltimo lugar os médicos (10%). Os jornalistas consideram que, nesse campo,os principais atores sâo, primeiro, o legislador, depois, a mulher e o casai, a seguir as autoridades morais e em ûltimo lugar os médicos. Compreende-se assim por que os temas abordados nos debates sobre a contracepçâo e o aborto durante a época "quente", de 1965 a 1975,eram antes de mais nada de natureza politica(32,5%),depois moral(26,8%), a seguir social(20,5%)e s6 entâo técnica e cientifica (14,7%)e demogrâfica(2,4%).Sempresegundo a mesma sondagem, o aspecto cientifico,jâ pouco discutido quando se trata de contracep çâo, quase nâo é mencionado quando se trata de aborto. As "interrupçôes voluntârias de gravidez" sâo encaradas sobretudo do ponto de vista politico e social. Assim sendo, sera que a frustraçâo dos médicos, e mais em particular dos especialistas em ginecologia e obstetricia, é motivo de surpresa? Eles praticamente nâo foram consultados pela midia. No entanto,é um problema sobre o quai sua competência é indiscutivel; além disto, é a eles que cabe aplicar os novos textos legais.^^ Quai é a margem de liberdade de consciência de que ainda dispôem? Uma sondagem feita em 1985 entre especialistas em reprodu- çâo humana révéla o mal-estar que reina entre eles.^^ Esses especia listas desejam externar suas idéias e reivindicam a liberdade de expressâo. Um deles résumé bem o pensamento gérai dizendo:"Hâ (19) Cf. Contraception et avortement. Dix ans de débats dans la presse, Paris, Éd. du CNRS, 1979. (20) Ver M. FERRAND,"Les médecins face à l'avortement", in Sociologie du Travail, t. 30, Paris, 1988, pp. 367-380. (21) Cf. Dra. P.SANDEKS,Information médicale, pp. 188-193. 84 ABORTO E DESINFORMAÇÂO determinadas coisas sobre as quais nâo se tem o direito de falar, nâo se tem o direito de escrever:o aborto é uma delas." De fato, hâ alguns anos, na França, a maioria das mensagens contra o aborto era censurada pela midia. Como exemple, pode-se citar os prôprios termes do Dr. Escoffier-Lambiotte.^^ A jornalista de Le Monde qualificava os médicos de "conservadores, ignorantes e dramâticos ao extremo" quando eles exprimiam sua preocupaçâo em relaçâo ao aborto. Sob esse ângulo, a situaçâo atual nâo melhorou; ao contrario, até piorou. Todos os que externam sua preocupaçâo a respeito do aborto e de suas conseqùências ffsicas e/ou psicolôgicas sâo etiquetados de "passadistas", "reacionârios", ou inclusive "integristas".^^ De reste, o mesmo ocorre no que se référé as doenças sexualmente transmissiveis.Seja como for, os que manifestam essas preocupaçôes tornam-se suspeitos ou sâo acusados de atentar contra a liberdade dos individuos. Neste case, por que séria necessârio procurar a opiniâo dos médicos? Assim também, é forçoso reconhecer que, a partir de 1975, a desinformaçâo estendeu-se a todas as grandes questôes atuais relativas aos aspectos técnicos, éticos dos problemas relatives à reproduçâo humana. Além do case do aborto, os especialistas nâo podem expressar-se livremente, nem sequer quando consideram necessârio, sobre inseminaçâo com doador ou fecundaçâopost mortem, transfe- rência de ovo congelado ou manipulaçôes genéticas, fecundaçâo in vitro ou contracepçâo em gérai, Essa censura dissimulada estende-se a outres assuntos preocupantes, como as infecçôes genitais por doenças sexualmente transmissiveis, a prevençâo dessas doenças, as conseqùências infecciosas do aborto provocado. Sâo todos temas sobre os quais os ginecologistas-obstetras e outres especialistas sâo igualmente pouco solicitados e escutados. Eis o comentârio de um deles, registrado pela Dra. Patricia Sanders: "Atualmente, se explicâssemos a um jornalista que a inseminaçâo com doador é uma cumplicidade com o adultério, que é problema do casai e que o médico nâo deve imiscuir-se, a matéria séria por ele redigida em tom (22) Ver "L'avortement. 1975-1985: dix ans pour appliquer une loi", in Le Monde de 11 de fevereiro de 1985. (23) Cf. pp. 81s.; 164 n. 13. 85 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS irônico, o que deformaria œmpletamente o pensamento do médico; a inseminaçâo com doador é, na ôtica modema,o prescrite maxime que uma famflia feliz por ter filhos pode dar a uma famflia que nâo os tem."^"^ Alega-se a incompetência dos médicos.Tudo acontece como se dissessem sobre eles:"E inûtil perder tempo para saber o que eles dizem; de qualquer maneira, nâo intéressa/' Esses médicos sâo vitimas de uma"nova censura".Como nâo os escutam quando eles falam sobre aborto, por que Ihes dariarn atençâo quando denunciam as novas técnicas de reproduçâo? Um deles,e nâo o menos qualificado, constata o seguinte:"O que intéressa aos laboratôrios de citogenética nâo é a fecundaçâo in \ntro nem a transferência de embriâo,que nâo Ihes importa, e com razâo, e sim o material que representam os ovôcitos manipulâveis e os embriôes que podem modelar à vontade. O jornalista fica aterrorizado, mas esta impedido de escrever, sob pena de ser demitido. Pode, no mâximo, fazer alusâo à ética e à grande potência da engenharia genética cujas perspectivas sâo imen- sas: vira imediatamente de cabeça para baixo o que Ihe dizem."^^ Censurados e ridicularizados por determinados jornalistas mili tantes, os médicos sentem-se impotentes diante desses novos costu mes que atropelam a lei, a moral e a ética. Neste sentido, a sondagem que acompanhamos nos informa que uma nitida maioria de médicos de hospitais, universitârios e outros, bem como os clmicos particulares, nâo sâo membros de um comité de ética. Um deles déclara: "Sempre me recusarei a fazer parte de um comité de ética, pois como os juristas hoje admitem que as leis devem acompanhar os costumes, os membros dos comités de ética adaptam sua ética aos costumes. Ora, a lei e a moral estâo acima dos homens por definiçâo; sâo feitas para fixar os limites,sejam quais forem os costumes.Isto nâo impede as pessoas de ultrapassâ-los, mas devem saber que estâo ultrapassando. Acompanhar a opiniâo pûblica e os costumes s6 pode levar a uma escalada continua."^^ (24) Cf. P.SANDERS,Information médicale, ibid. (25) Professer Yves MALINAS, ginecologista e obstetra: "Dans pression, il y a presse", in La Pratique médicale quotidienne (publicaçâo da quai ele é redator-chefe), de 17 de outubro de 1986. (26) Em P.SANDERS,Information médicale, p. 206. Ver também aqui pp. 32-234; 175. 86 ABORTO E DESINFORMAÇÀO Se nos lembrarmos que os jornais sâo empresas que visam o lucro, sera fâcil entender que muitos médicos se sintam impotentes para corrigir o rumo das opiniôes divulgadas pela midia. A preocupaçâo dos jornais é dar a informaçâo que Ihes parecer ao mesmo tempo a mais exata possivel e a mais atraente para o pûblico. Assim, os redatores-chefes tendem a selecionar as informaçôes conforme o interesse que podem despertar junto ao pûblico. A expectativa do pûblico somam-se as pressôes do poder politico. Essas pressôes sâo totalmente diretas, pois a publicidade esta nas mâos de firmas, que estâo nas mâos do Estado; umas porque sâo nacionalizadas, outras porque precisam ou poderiam precisar do apoio do Estado. Hâ jornais que desaparecem porque os publicitârios sabem que nâo Ihes convém apoiar este ou aquele titulo.^^ (27) Yves MALINAS,"Dans pression, il y a presse". 87 IX O retorno dos sofistas As reflexôes expostas nos capitules precedentes convergem para uma ùnica e mesma conclusâo. Seja quai for a via pela quai a abordamos — medicina ou direito, biologia ou politica, moral ou teologia — a discussâo sobre o aborto remete inevitavelmente a problemas filosoficos fundamentais.^ E o que jâ sugeria o capitule precedente,dedicado à desinformaçâo. Cada um desses enfoques nos leva de volta ao centre de um debate sempre présente na histôria do pensamento humano e que se apresenta como perpétue desafio. Justiça e legalidade As tradiçôes platônica e aristotélica caracterizam-se desde o inicio por um réalisme radical que moldou toda a civilizaçâo ocidental. Esta submissâo à realidade é encontrada em todas as atividades culturais e possibilitou a eclosâo das ciências da natureza; ela é o ponte de partida de nosso direito. Traduz-se em duas formas especiais de respeito: a busca da justiça, a preocupaçâo com a precisâo. Assim, para Platâo, as idéias sâo as realidades por excelência. Quer o homem as contemple ou nâo,elas sào,Platâo nâo se limitava, de modo algum, a denunciar a cupidez dos sofistas, as técnicas de sucesso com as quais faziam comércio,sua demagogia sordida.^ Con- (1) Para aprofundar a abordagem filosôfica do problema do aborto, consultar 1. GOBRY e H. SAGET, Un crime. L'avortement, Paris, 1971. O Dr. Saget examina sobretudo o problema sob o ângulo médico. Os caps. I e IV,que nos interessam mais diretamente e sâo notâveis,sâo de autoria do Professor Gobry. (2) Essas técnicas do sucesso foram modernizadas e hoje se apresentam com a étiqueta de técnicas de persuasâo. Ver pp. 143 s:, n. 1. 89 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS tra eles e seus excessos, ele proclama que nem tudo é relative ao homem. Ao contrario, este deve submeter-se a realidades que nâo inventa, nâo constitui, mas reconhece e pode contemplar: as idéias. Encontramos a mesma atitude fundamental cm Aristoteles diante das tendências unilateralmente empiristas. A existência da natureza nâo é subordinada à percepçâo que o homem tem delà. Nâo hâ conhecimento que nâo passe por essa submissâo ao real percebido. Sôcrates, é bem verdade, abrira caminho para ambos. Para ele, o homem nâo é nem o reflexo efêmero de uma natureza sempre mutâvel, nem a medida de todas as coisas.^'^ ironia aliâs Ihe révéla a opacidade do mundo e a finitude daquele que se interroga. Conhecer-se a si mesmo! Procurar o bem nâo nas coisas exteriores — poder, dinheiro, força — mas em si mesmo! Ser sincero: procurar conhecer o bem e adequar seu prôprio comportamento a ele.. Fazer prevalecer os direitos inalienâveis da pessoa proclamando, com Antigona, que nâo hâ necessariamente harmonia perfeita entre as leis humanas e a moral, entre a legalidade e a justiça, e que as leis nâo escritas aplicam-se tanto aos magistrados como aos cidadâos..."^ Sera que é preciso acrescentar que a Bfblia e a tradiçâo cristâ, mesmo consideradas como meros produtos culturais, vieram reforçar consideravelmente esse reallsmo de principio com as doutrinas da criaçâo e da salvaçâo? O homem, medida de todas as coisas? Ora, conforme se pense ou nâo que o homem é a medida de todas as coisas, chega-se a concepçôes muito diferentes da sociedade e da civilizaçâo. Se eu sou a medida de todas as coisas, isto pode significar que erijo minha subjetividade em principio e critério absoluto de todo valor. Com os sofistas Gôrgias, Câlicles e Trasimaco,eu (3) Sobre a célébré expressâo de Protégeras, ver, por exemplo,PLATÂO,Cràiilo, 386a^&Teeteto, 152a; ARlSTÔTELES,Metafi'sica,A, 1,1053a35esobretudo K,6, 1062 b 12-15. (4) Recordemos aqui SÔFOCLES,AnUgona, v. 446ss., Édipo Rei, v. 863ss., e, é c\aro,Apologia de Sôcmtes, de PLATÂO. É,avant la lettre, a idéia de Estado que começa a nascer. O RETORNO DOS SOFISTAS poderia canonizar a força; corn Protâgoras, o prazer.^ Séculos mais tarde,mas na mesma linha,Bentham canonizarâ a utilidade; A.Smith, o lucre; W.James, a eficâcia; Comte, a ciência e a técnica. Até me sera possivei decretar a superioridade de um grupo,définir uma elite, privilegiar uma raça, atribuir um pape! messiânico a uma determinada naçâo.^ Eu poderia, com Nietzsche, proclamar a morte de Deus e o nascimento de um super-homem jâ de inicio colocado além do bem e do mal. Por fim, eu talvez descobrisse, com Sartre, que sou meu prôprio criador e que me promovo a mim mesmo por meio do engajamento, talvez da aniquilaçâo. Pois, medida do ser, o homem também é medida do nada. Esta antropologia prometéica dâ, naturalmente, uma coloraçâo muito particular as relaçôes entre os homens. Primeiro, por seu pessimisme radical,ela faz do medo a caracteristica fatal e dominante na relaçâo com o outre. Assim, Maquiavel e Hobbes sâo obcecados com a segurança. Sua obra politica é baseada no trinômio pes simisme, medo,autoridade.Dai a relaçâo,no pensamento desses dois autores, entre a moral e o direito, a força e a lei. O medo, por sua vez, géra o temor ao exercicio da liberdade, induz o desejo de um governo autoritârio. E muito mais: como sou a medida do outre,eu mesmo institue o terme da relaçâo amorosa.Eu objetivo o outre: eu o construo segundo minha conveniência. Ele agora nâo passa da imagem que eu projeté de mim mesmo. Recons titue o outre à minha imagem para me apropriar dele, para encontrar (5) Ver PLATÂO,A Repiiblica, I, 332, a e d; Simonide; ibidem, 338 c e 339 a: Thrasimaque; Gôrgias,483 b -484 c: Callicles; Protâgoras: e 353 c, (6) Assim,apôs o egoismo intégral de M.STIRNER,vimos em R.von JHERING, um jurista para quem o Direito reduz-se à expressâo, pelo Estado, do egoismo coietivo de um povo. Este autor publicou DerKampfwns Recht, Viena, 1872. (7) De MAQUIAVEL, ver notadamente Le Prince, caps. 17, 18; Capitolo "de l'Ambition"A Luigi Guicciardini. Textos em Oeuvres complètes, E. Barincou (ed), Paris, Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1952, pp. 338-343 e 91-95. De HOBBES, cf. Léviathan, I, 13; II, 27. Ver também E. FROMM,Escape from Freedom, Nova lorque, 1941; traduçâo francesa com o ti'tulo de La peur de la liberté, Paris, Buchet-Chastel, 1963. Os debates sobre o aborto,o"medo demogrâfico"e a "poluiçâo humana"agora dispôem de um enfoque histôrico que Ihe é sugerido pelo estudo de Jean DELUMEAU sobre La peur en Occidente du XIV^ au XVIIf siècle. Une cité assiégée, Paris, Fayard, 1978. 91 O ABORTO: ASPECTOS POUTICOS a mim mesmo no fim de um desvio narcfsico. Pois o outro me ameaça; a alteridade ameaça a minha identidade; o outro me questiona.® Ele me révéla minha finitude humilhante. Ele é colocado como limite ao demiurgo que eu quero ser. Entâo, por nâo poder acolhê-lo pelo que ele é, quero negâ-lo, ffsica ou mentalmente. Seja ele quem for, ele sempre significa para mim questionamento, perigo, ameaça, provocaçâo,desafio. Assim,jâ que o outro é um fator de insegurança pessoal, eu preciso ou eliminâ-lo, ou reduzi-lo ao que eu sou. Essa depravaçâo essencial da relaçâo amorosa — essesadismOj para chamâ-lo por seu nome — encontra na liberalizaçâo intégral do aborto uma de suas mais frias e cmicas expressôes.^ A criança concebida nâo é sô uma nova doença; ela é também um novo inimigo: eis onde desemboca essa involuçào conservadora, essa regressâo ao instinto. Esse sadismo manifesta-se no direito que se arrogam os defensores do aborto de apropriar-se de um ser humano, ou melhor, de aniquilâ-lo, na etapa mais ténue de sua existência. Estranha vontade de poder que se exerce sem correr o risco de ser contestada! "A tirania nâo lisonjeia o orgulho de maneira bastante mais viva que a beneficência? Aquele que se impôe,em suma,nâo é senhor de modo muito mais seguro que aquele que partilha?" A pergunta era feita explicitamente no século XVIII, pelo Marqués de Sade.^^ (8) Esses temas sâo abundantemente desenvolvidos por J. -F,SARTRE L'être etle néant. Essai d'ontologiephénoménologique,Paris,Gallimard, 1955. Cf., por exemplo, pp. 127-139, 313-320, 431-503 ("A essência das relaçôes entre consciências nâo é o Mitsein, é o conflito", p. 502); pp. 508-561 ("[...] Se a aniquilaçâo é precisamente o ser da liberdade, como recusar a autonomia às paixôes e concedê-la à vontade?", p. 519); pp. 711-722 ("A ontologia e a psicanâlise existencial [...] devem revelar ao agente moral que ele é o ser por meio de quem os valores existem", p. 722). Ver também L'existentialisme est un humanisme,Paris, 1954. Cf. igualmente, adiante, pp. 103 e 123. (9) Cf.L.BEIRNAERT,"Irréductible violence",in À la recherche d'une théologie de la violence, Paris, Éd. du Cerf, 1968, pp. 53-70. Ver adiante, p. 169s. Consultar,igualmente, Erich FROMM,La passion de détruire. Anatomie de la destructivité humaine, Paris, 1976. (10) Justine ou les malheurs de la vertu (1791), Paris, Union Générale d'Édition (10/18), 1973, p. 170. 92 O RETORNO DOS SOFISTAS Enunciados subordinados a interesses particulares O impeto atual a favor da liberalizaçâo do aborto nos leva a pressentir um retorno da soffstica com toda força. De fato, como se deduz de nossas anâlises precedentes, é legftimo perguntar-se se a iinguagem dos chefes dos partidârios do aborto ainda esta a serviço da verdade ou se nâo estarâ antes a serviço do interesse subjetivo, da eficâcia ou da força. Porque dissimulam a si mesmos as motivaçôes particulares que os instigam, ou até porque fazem das tripas coraçâo para ocultar seu subjetivismo, de si mesmos e/ou dos outros,todos os juizos de realidade enunciados pelos partidârios do aborto sâo hipotéticos no sentido lato da palavra: suas asserçôes sâo subordinadas a suas motivaçôes subjetivas. Todos esses juizos sâo relatives àqueles que os enunciam e que,ao enunciâ-los,esperam a adesâo dos outros. Nesta démarche,apaga-se com um ûnico mowim&nio tante a natureza hipotética dos juizos anunciados, ceme o subjetivismo daqueles a quem esses juizos sâo relativos. Espera-se que esse duplo apagamento subtraia os enunciados à pertinência de qualquer reflexâo critica, e alimenta a ilusâo de um discurso impessoal totalmente objetivo.Em suma, desse duplo apagamento procédé um novo cientificismo que géra inevitavelmente uma ideologia totalitâria.^^ Vê-se imediatamente quais sâo as conseqùências morais dessa concepçâo do conhecimento.Fora do sujeito particular,ojuizo moral nâo tem mais base em que possa fundamentar-se. Nâo pode enraizar-se em nada que seja exterior ao sujeito, em nada que seja diferente do sujeito, em nada que transcenda o sujeito, em nada que se imponha ao sujeito, a tede sujeito. Em suma,se o juizo é hipotético no piano da démarche cognitiva, é fatal que também o seja no piano moral:se hâ juizes merais hipetétices eprevisôries. Por sua propria virulência, essa tradiçâo soffstica é a mais perniciosa fornecedora dos totalitarismos contemporâneos. O totalitarismo começa onde um sujeito enuncia um juizo hipotético, reflexo de seus intéresses, apresentando-o como "sistema de co nhecimento" do mundo e da historia. Ora, o que é ocultado é a (11) Donde a importância que assumiram as técnicas de persuasâo; ver pp. 79, n. 1 e 143s., n. 1. 93 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS réserva critica severa que esse juizo mesmo chama em virtude de sua relatividade, intrmseca às subjetividades. É precisamente aqui que aparece o arbitrio anunciador de totalitarismo. Este começa a edificar-se a partir do momento em que norma do agir moral passa a basear-se apenas na adesâo de todos aojuizo estritamente hipotético de um sujeito que dissimula sua propria particularidade. A forma mais perfeita dessa alienaçâo do espirito e da vontade encontra sua manifestaçâo nos abusos contra o imperativo categôrico de Kant, esquematizado no adagio:"Cumpre o teu dever/' Cumprir o dever porque é o dever, como se o conteudo do dever nâo tivesse importância... Ao invocar,em defesa propria,o fato de ter cumprido estritamente ordens de seus superiores, os criminosos nazistas comprometiam-se com essa logica totalitâria da quai eram ao mesmo tempo vitimas e cûmplices. A razâo mutilada O drama, nessa tradiçâo sotïstica, é que a prôpria razâo é mutilada em suas capacidades; pedem-lhe menos do que pode dar. Embora ofereça ao homem a faculdade de descobrir relaçôes necessânas, notadamente de causalidade,relaçôes de analogia,proporçôes, eis que a razâo é reduzida à faculdade de medir e comparar. Nâo estando mais aberta à leitura do sentido das coisas, ela é votada a tornar-se puramente instnimenial e a inventar sentido referindo-se apenas a si mesma. Alias, nesse exercicio, a razâo farâ maravilhas. A eficâcia da razâo explode nas descobertas da fisica moderna e em suas aplicaçôes. Mas, uma vez transposta às ciências humanas, a reduçâo da razâo à faculdade de relacionar medidas entre si sera desastrosa para o homem. Maquiavel, por exemplo, encara, antes de Hobbes, o campo do politico à maneira de um campo fisico, onde tudo é relaçâo de força e preocupaçâo com a eficâcia pura. A razâo identificada ao eu vai produzir (para si) verdade como produz(para si) bens materiais. Amoralismo de principio: como tomar o poder, pela astûcia ou pela força, e, uma vez o poder conquistado, como conservâ-lo? Althusius, Hobbes e outros depois deles explicitarâo as conseqûências dessa fisica social, dessa politica da eficâcia pura, pois 94 O RETORNO DOS SOFISTAS doravante nâo hâ mais lugar para um fundamento nâo hipotético da vida na sociedade politica. Esse fundamento hipotético terâ como expressâo concreta o contrato social, base ùnica da vida politica. Este bloqueia,em seu principio mesmo,toda possibilidade de referir a vida em sociedade a um fundamento que nâo seja subjetivo. Tudo é negociâvel,parque tudo é convençâo. Logo,o contrato encerra a vida politica na estrita imanência. A verdade politica, cujo carâter hipo tético seoa//^^,édefinida pelo contrato. A lei,referida a essa verdade de convençâo, é o fundamento hipotético do agir. Ela adquire uma santidade civil que faz da vontade dos mais fortes ou dos mais numerosos o ùnico Pôrtico de todo totalitarisme présente, passade e future. De fato, o totalitarisme é essencialmente a récusa da idéia deuniversalidade; traduz-se na negaçâo de viabilidade à possibilidade mesma de uma comunidade: hâ apenas coisas singulares, individuais; os homens sâo apenas individuos que reduzem as capacidades de sua propria razâo e fazem delà o instrumente de seus interesses e praze- res, a muralha fria contra tudo o que possa surgir como um obstâculo devido a alguma diferença reconhecida. Efetivamente,quando todas as afirmaçôes sâo classificadas como hipotéticas, o terme natureza nâo pode mais remeter a nada,como tampouco os outres termes que a exprimem ou detalham: objeto, ser, existente, homem, horizonte, mistério, valor etc. A incidência ética dessas posiçôes é considerâvel. Se for rejeitada a idéia de natureza ou qualquer outra idéia que corresponda a ela — e em particular a de natureza humana —,onde se enraizarâ a universalidade dos direitos humanos? A sofistica moderna,com seu ceticismo tradicional, colocou-se, entâo, na situaçâo de impossibilidade de pensar afirmaçôes que exigiriam o assentimento de todos os homens em virtude exatamente de uma ordem objetiva que nâo fosse produto apenas de vontades subjetivas. Essa sofistica apaga no homem a capacidade de conhecer a verdade e agir segundo o bem reconhecido. Ela colocou-se na situaçâo de impossibilidade de pensar qualquer relaçâo; com a idéia de universalidade, expulsou de seu horizonte a idéia mesma de responsabilidade. Ora, como nâo hâ mais relaçâo, e como toda afirmaçâo é hipotética, nâo hâ mais transgressâo. Subsiste apenas uma moral na primeira pessoa do singular, egocêntnca: o ùnico fundamento da moral é a minha vontade, e esta séria heteronômica 95 O ABORTO:ASPECTOS POLITICOS se se referisse a algo fora de si mesma. Como nâo tenho nada a esperar de outre e como deve ser excluida a possibilidade de uma relaçâo com o transcendente, é a morte, e sô a morte, que dâ um "sentido" a minha vida, mas esse "sentido" é absurdo. Em suma, assistimos à volta do niilismo com toda força. Atualmente, essa concepçâo atrofiada de razâo exprime-se com vigor na tradiçâo sofistica. E ela que esta subjacente a todas as tentativas de "justificaçâo"do aborto.E nâo hârazÂo alguma para que um uso tâo irracional da razâo humana nâo produza outros frutos podres, cujos nomes — além de aborto — sâo eutanâsia^^ e genocidio.^^. A lôgica sofistica esta votada a desembocar no absurdo: é "razoâvel" ser desmedido, pois o real, a natureza, o objeto, o outro etc., nâo contam para valer. O valor em suspenso :h O antropocentrismo dos sofistas e de sua numerosa descendência comporta riscos que nâo se deve perder de vista. Tal antropocen trismo torna-se tâo invasor que desacredita nâo apenas toda moral filosôfica como qualquer disciplina intelectual e cientifica. Conféré primazia absoluta à experiência subjetiva e singular; desacredita a razâo e esvazia a historia de sua duraçâo. Desemboca numa teoria da linguagem em que,convencionalmente,o bem e o malsâo definidos conforme as conveniências dominantes.^"^ Mais perto de nos, essa tendência tem uma de suas mais altas expressôes no "Circulo de Viena".^^ (12) Cf. pp. 113 e l<S8s. (13) Cf.C^p.XIV (14) Aqui aparece o vinculo estreilo entre o sentido do outro, o da historia e a linguagem.Sobre o poder de destruiçâo da palavra, ver PLATÂO,Gôr^as^ 466 a - 467 b. Para um estudo aprofundado dos problemas que abordamos aqui, consultar J. LARGEAULT, Enquête sur le nominalisme, Louvain, Nauwelaerts, 1971; ver também o estudo de A.S. McGRADE, The Political Thought of William ofOckham.Personal and Institutional Principles, Londres, Cambridge University Press, 1974. Sobre a utilizaçâo da palavra nas democracias populares contemporâneas, ver Czeslaw MILOSZ, La pensée captive. Essai sur les logocraties populaires^ Paris, Gallimard, 1953. (15) Aqui hd vasto terreno para pesquisas instigantes, notadamente em matéria de filosofia moral e filosofia politica. Recordemos primeiro um pioneiro: G.E. MOORE, Principia Ethica^ Cambridge, 1903. A seguir, convém citar M. 96 O RETORNO DOS SOFISTAS O ûnico critério que governa meu comportamento é o dos valores que eu institue e com os quais me comprometo — sempre condicionalmente,sempre hipoteticamente, quer dizer, numa "fideli- dade" sempre em sursis. Logo, se institue em valor para mim a satisfaçâo de meu instinto, o dinheiro, a força, a técnica, o conforte, o consume, a militarizaçâo ou qualquer coisa que me aprouver valorizar neste momento, eu poderei, sem ter de prestar contas a ninguém, equiparar seres humanos a coisas. A criança, o velho, o doente, o estrangeiro, o "meteco" ou simplesmente o outre: Seu reconhecimento é hipotético; seu valor esta em suspenso. Pois nada me obriga, demiurgo que sou, a reconhecer o outre pelo que ele é, nem a consentir em sua existência. Portante, se usufruir das coisas me satisfaz mais que conviver com os homens, eu poderei dominar ou mesmo eliminar os homens para possuir as coisas. O homem? Uma mercadoria entre outras. Como o valor é essencialmente funçâo de uma decisâo do sujeito, a esfera do nâo-eu é indiferenciada até que eu constitua o que é vdXoipara mim. Num mundo assim nâo hâ mais amer:sô hâ apropriaçâo, dominaçao, aniquilaçâo.^^ Salta aos oihos que tal antropologia, onde o orgulho e a feroci- dade disputam o primeiro lugar, détermina uma concepçâo igualmente impiedosa da medicina, da economia, da politica, da moral e da teologia. Tal antropologia fornece a cada uma dessas diversas disciplinas SCHLICK,Fragen cierEthik, Viena, 1930(traduçâo inglesa de S. Rynln com o titulo ùeProbletns ofEthics, Nova lorque, 1939); W.KOHLER,The Place of Value in the World ofFacts,Nova lorque, 1938; C.L.STEVENSON,Ethics and language, New Haven, 1944; C.I. LEWIS, An Analysis of Knowledge and Valuation, La Salle, 1946. Consultar também A. HÀGERSTRÔM,Inquiries in the Nature ofLaw and Moral(trad. inglesa de C.D. BROAD),Estocolmo, 1953, e V. GIORGIANNI,Neopositivismo e scienza del Dirittô, Roma, 1956. O \ïvro La philosophie du siècle. Essai et textes, de Jean LACOSTE,Paris, Hatier, 1988, constitui uma boa introduçâo a essa problemâtica, (16) Desenvolvemos esse tema em La dérive totalitaire du libéralisme,especialmente no cap. X. (17) Para o esludo das consequências polfticas dessas posiçôes prôximas do sadismo, sempre sera util reportar-se a duas obras antigas e discutidas: E.F.M.DURBIN e J. BOWLEY, Personal Aggressiveness and War, Londres, 1933; T.R. GLOVER, War, Sadism and Pacifism, Londres, 1933. Completar com A. STRACHEY,The Unconscious Motives ofWar, Londres, 1957. 97 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS os principios subjacentcs sobre os quais se baseiam; sâo principios que querem que o direilo seja identiricado à força; o bem,ao prazer; o bom,ao ûlil. Cada uma dessas disciplinas é passfvel de tornar-se um instnunenlo mais ou menos cego submetido a uma vontade de poder, a um idéal hedonista ou oporlunista. O médico, em particular, senle-se autorizado, ou até convidado, a eliminar o importuno. A atividade econômica obedece a impiedosas leis da selva: a da concorrência, a do lucro. Sob o pretexto de zelar pelos interesses da naçâo, o politico faz prevalecer os interesses dos partidos, e os seus prôprios. Para aplacar a consciência de todo mundo, o moralista propôe racionalizaçôes mais ou menos convincentes que teologos obsequiosos avalizam com candura... Alienaçâo e liberdade Ja obsei"vamos como era diferente a base de nossas insliluiçôes ■I ^ juridicas. O réalisme) que as caracteriza 6 tanto a trama de nossas instituiçôes poifticas como a de nossas estruturas econômicas e sociais. Sem ele, adeus igualdade jurfdica e polfllcal As tensoes e conflitos, mesmo os mais agudos, de que nossas organizaçôes politicas sâo palco supôem o reconhecimento prévio e incondicional do outra como diferente. Eis por que, no debate que nos ocupa, c imperioso deixar de lado o eleitoralismo sordido e mfope. O que esta em jogo é, nem mais nem menos,o conjunto de principios nos quais se baseiam nossos régimes democrâticos, bem como os ideais que buscam ■ zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA — mesmo por caminhos diferentes. Nâo é diferente na vida econômica. Também neste terreno, o idéal que guia todas as reformas c baseado na reciprocidade dos serviços e na igual participaçâo nos bens disponiveis. Os bens materiais sâo, em principio, patrimônio comum da humanidade. O homem os transfigura com seu trabalho e pode, assim, ser reconhecido pelo outro.^^ Quando esses bens se tornam instrumentes de poder, tal situaçâo é percebida como imoral e contraria à destinaçao das coisas. (18) A este rcspcilo, puclc-sc consuliar a lamosa clialclica do mcsirc c do escravo de Hegel, CLija versâo mais cclcbre enconira-se na Phcnomênologie de VEspriî, 13, IV, A, Pans, Montaigne-Au hier, 1^/39; ver 1. 1, pp. 161-166. 98 O RETORNO DOS SOFISTAS A exigência de reciprocidade entre os homens é primeira, é ela que dâ à praxis sentido e intençâo. E ainda dentro do mesmo espirito que Kant recomenda que jamais o homem seja rebaixado à condiçâo de ✓ puro meio.^'^ De maneira gérai, o que esperamos das instituiçôes e da cultura é que elas aproximem os homens, que favoreçam a solidariedadc entre eles. Nâo concebemos a felicidade sem alguma harmonia social. Repugna-nos qualquer formalisme que crie ou alimente tensôes; récusâmes toda mediaçâo que se feche em si mesma e comprometa o encontre dos homens. Poderiamos dizer que um dos principais traços da civilizaçâo ocidental résidé no eslbrço constantemente renovado para fazér prevalecer um idéal de reconhecimento e de reciprocidade sobre a eterna tentaçâo da dominaçâo e da aniquilaçâo. Ha ai um olimlsmo de princfpio tante vis-chvis o outre como em relaçâo ao mundo natural; ha af uma récusa de ver a priori no outre uma ameaça contra mim. Por fim, todas as nossas instituiçôes e todas as nossas atividades culturais tendem ao favorecimento desse reconhecimento e dessa reciprocidade. Como negar que sempre ha em todas elas uma dose mais ou menos consideravel de ambigùidade? que as pessoas e os grupos sempre sejam tentados a vSe fecharem em si mesmos? que ha defasagens mais ou menos acentuadas entre os desejos e as situaçôes, Qs projetés e sua execuçâo? Como negar a histôria em seu perpétue devir? Isto significa que as conquistas morais do Ocidente têm algo de cultural e, por conseguinte, de prccârio. De tante denunciar uma determinada injustiça, as pessoas tornam-se forçosamente sensiveis a outras injustiças que p)assaram despercebidas por muito tempo. Mas nenhum progresse c définitive no sentido de garantido para sempre; nâo hâ conquistas irreversiveis. Isto a histôria também mostra. Mos(19) Ver KANT, Fondements de la Métaphysique des moeiws, II." seçâo; uma iracluçâo cic.sle icxlo, de Vielor Dclbo.s, loi publicacla pela Librairie Delagrave, Paris, 1959. Nessaediçfio,ver especialmenle pp. 147-l.b:"O imperativopralico sera, porianlo, este:/lgt' de tal modo que sempre trates a humanidade, tanto em tua pessoa como na de qualquer outro, ao mesmo tempo, como um fim, e jamais apenas como um meio"(pp. 150ss.; grilado no original). 99 ri: )Tr O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS tra igualmente,sem precisar remontar a Hitler, que ali onde é questionado um direito descoberto com muita dificuldade e reconhecido depois de grandes esforços, o processo de regressâo e de derrocada jâ começou.Sera surpreendente a prâtica do arbitrio, da repressâo e da tortura em paises onde pouco foi feito para a promoçâo de todos os homens,sem distinçâo? E,inversamente,sera surpreendente que, onde o arbitrio triunfa, haja muito pouco empenho em promover todos os homens? Liberalizar integralmente o aborto? Ou bem a medida de todas as coisas esta em mim, em meu grupo de pressâo, em meu partido, no Estado. Ou bem acolho o outro pelo que ele é e deixo-me interpelar pelo que sua existência significa para mim.Cabe a mim,ao grupo, ao partido, ao Estado respeitâ-lo em sua existência e seus direitos. Nâo hâ terceira via. É uma alternativa, um juizo disjuntivo. Se prevalecesse a primeira eventualidade, isto significaria que o Ocidente consente na perda de sua identidade e concorda com o naufrâgio de sua autenticidade. E como duvidar que alguns desejam que seja assim? Apenas a segunda possibilidade corresponde ao reto desenrolar de nossa historia. (' 1 , ! ; .i 100 X Uma perversâo do socialismo e do liberalismo Em quase todo o mundo, politicos vinculados tante à tradiçâo libéral como à tradiçâo socialista defendem projetés ou propostas de lei que visam a liberalizar o aborto. Contudo,o debate sobre o tema evidencia diferenças de sensibilidade politica entre essas duas gran des famflias politicas tradicionais. De reste, essas diferenças de sen sibilidade repercutem nos meios politicos cristâos. Assim,em bénéficié da clareza do debate,é intéressante analisar a diferença entre os contextes doutrinârios nos quais surge a vontade de liberalizar o aborto. De fato, o contexte varia muitissimo conforme seja herdeiro da tradiçâo socialista ou da tradiçâo libéral. Aqui enfocamos um aspecto fundamental desse contexte. O socialismo e a subordinaçâo à espécie Uma tradiçâo socialista — que deve muito à influência de um dos mestres de Marx,o materialista Feuerbach(1804-1872)— poderia estar hoje em vias de reativaçâo. Essa tradiçâo tende a fazer prevalecer uma moral da humanidade genérica, quer dizer, da espé cie. O individuo humano é considerado aqui como um membro, no sentido proprio do terme,de um organisme social. Assim sendo,cabe à sociedade fazer uma triagem e discernir se tal ou quai membre é util ou nocive ao corpo social. Às vezes até é atribuido novo sentido à expressâo "segurança social", que passa a significar a necessidade de que a segurança da sociedade prevaleça sobre a dos individuos. Os médicos poderâo intervir para praticar uma medicina do corpo social,seja a pedido da sociedade,seja oferecendo-lhe 101 ABORTO: ASPECTOS POLI'TICOS seus serviços, seja ainda sendo diretamente associados ao exercicio do poder. Esta maneira de ver é bem explicada por Pierre Simon.^ A histôria conlemporânea mostra que esse veio da tradiçâo socialista leva direlo a uma dériva totalitâria que se chama nacionalsocialismo? • i- Com a cooperaçâo aliva de médicos, o nacional-socialismo dedicou-se a entronizar o Ûbennensch e a eliminar os"inùteis'.Tudo "para o bem da sociedade": queslâo de saneamento. Essa dériva é uma peiversâo pura e simples do espi'nto do socialismo original. Este, de fato, queria precisamente reagir con tra os despotismos. Em suas expressoes e manifestaçoes mais notâveis, esse socialismo dedicou-se à defesa dos mais fracos — os proletarios — contra os extremos dos mais fortes. Sem duvida, cabe perguntar-se sobre delerminados métodos que as vezes empregados ou recomendados. No entanto, nao se pode duvidar da vontade profunda de perriianecer fiel ao objetivo constantêmente buscado. , . ru . r À luz dessa perversâo da tradiçâo socialista original, a liberali- zaçâo do aborto aparece como um dos piores avatares da luta de classes, onde os mais fortes e mais saudâveis atacam sem piedade os mais fracos.^ rn et Pierre SIMON,De la vie avant toute chose, 1079. Remelemos aqui a tilulo Se ilusRair,a algunias pa.ssagens .signir.calivas des.se livre. Sobre a vida como "material a ser gerido": pp. 16, 84ss., 219. 232; sobre a iranscendêne. < sociedade- np 87,233,240;sobre a sociedade como organismo vivo. p.84,sol a medicina do corpo social: pp. 35,53,85;sobre o papel poimco do medico: pp . 16 53 85 222.256;sobreamoral:pp.49,53,186ss.ODr.S.monexpoencssa obra por que e eomo a liberalizaçSo do aborto foi aprovada na França,as razoes P.Ï;; pmover prnii»-«omras-em.sc.l.mundi.l,P,S™" » Lplica o papel das lojas maçônicas na elaboraçao e na d.fusao desse pensamento na linha do iivre-pensamento e dos programas que O papel da franco-maçonaria nessas questôes tambem e explicado ■ de Claude WEILL sobre "O poder dos franco-maçons m Le Noind ■ . Obseivatetir de 30 dejaneiro ti 5 de fevereiro de 1987, pp.64-71;ver em especu pp. 65ss. Nofevereiro mesmo sentido, o dossiê sobre "Les franes-raaçons , m Le^ de 1981,ver espccialmente pp. 48ss. (2) Reiomamos este problema no Cap. XVI,sobreludo pp. i65s. P) Ver os textos de Karl MARX e Friedrich ENGELS r^un^os sob o Critique de Malthus, Paris, Petite Collection Maspero, 1978. > UMA PERVERSÀO DO SOCIALISMO E DO LIBERALISMO O Hberalismo e o triunfo do individuo Uma tradiçâo libéral — que deve muito à influência de Adam Smith e de Bentham (século XVIII)— tende a iazer prcvalecer uma moral do individuo, de sua utilidade, de seus interesses. O individuo humano é totalmente senhor de sua existência: nâo depende de ninguém, nâo é responsâvel por ninguém e détermina sozinho o que é o bem e o que é o mal. Transforma sua propria conduta em norma moral; sua moral é senhorial. Esse clima de liberalismo absoluto ainda foi reativado em nossos dias por certas teses de Sartre:"Minha liberdade [...] nâo é [...] uma propriedadc de minha natureza; ela é muito exatamente o tecido de meu ser [...]. Nâo séria possivel encontrar outro limite a minha liberdade alem delà mcsma"."^". Essa hipertrofia do liberalismo também esta nas versôes exacer- badas ^oneoUhemlismo contemporâneo.Ela leva em linha reta a uma dériva totalitâria que se chama anarquismo. A sociedade anarquista é aquela em que a autoridade govcrnante é contestada até em sua existência. Nessa sociedade, todo mundo fala e ninguém escuta; todo mundo qucr comandar c ninguém esta disposto a obedecer. Babel — G consagraçâo da vitoria do mais forte. Aqui jâ nâo se trata mais de luta de classes, mas de deixar correr, de livre concorrência,solvência, mercado. De um mercado onde a existência humana acabe sendo equiparada a outros bens. Todas as relaçôes entre os individuos sâo reguladas ao sabor da utilidade — que se reflete em contratos — e segundo correlaçôes de força, das quais a moeda é o signo.-'' (4) Cf. Jean-Paul SARTRE, L'êlre et le néant. Essai d'ontologie phénoménologique, Paris, Gallimard, 1955, p. 514. (5) Estudamos esses problemas em detalhe cm La dérive iotalitaire du libérolLvm. Numa entrevista que citamos na p. 41, n. 8, Molly YARD, passionaria do movimento prô-aborto, déclara sem rodeios:"Vamos ser prâticos. Se o objelivo é economizar verbas publiais, é melhor pagar um aborto do que subvencionar a criaçâo de um bebê, sua eduaiçâo e sua formaçâo prollssional. Pelos preços americanos atuais, um aborto custa 200 dôlares. Os cuidados pré e pôs-natais, o • parto, a criaçâo e a educaçâo de uma criança custam ao menas 100 vezes mais." Sobre este problema, pode-se consultar R. RENARD, Le coût de l'enfant. Approches théotique, méthodologique, etnpitique, Bruxelas, Ministério da Qimunidade Francesa (Direction des Affaires sociales. Service d'études et de documentation), 1986. 103 ABORTO: ASPECTOS POUTICOS Essa dériva é uma perversào pura e simples do espirito do liberalismo o/iginal. Este também visava, precisamente, a reagir con tra o despotismo. Locke (1632-1704), por exemple, mostrou muito bem que s6 havia autoridade soberana em virtude do consentimento do povo.Tratava-se de conter os excessos do poder monârquico.Ora, mesmo tendo cometido abusos, a burguesia evidentemente abriu caminho para a idéia da igual dignidade de todos os homens. A luz dessa perversào da tradiçâo libéral original,a liberalizaçâo do aborto aparece como um dos piores avatares da livre concorrência. Minha força, que dâ a medida de minha liberdade, também da a medida de meu direito; a censura jâ foi formulada por Marx. Assim sendo, se sou mais forte que outro ser humano, sou livre para dele dispoir conforme minha utilidade. Ele faz parte do meu dommio: tenho direito de vida e morte sobre ele. Os médicos serâo convidados a colocar sua pericia a serviço dos interesses individuais dos mais fortes. Nem indesejados, nem indesejâveis O que conféré às sociedades ocidentais sua dimensâo democrâtica é sua moderaçào. Ao longo de sua histôria, essas sociedades provaram que podiani ceder a perversôes radicais, tanto oriundas do liberalismo como do socialismo; portanto, nâo estâo protegidas con tra as duas grandes dérivas totalitârias evocadas. Ora a sociedade sobrepuja os individuos, ora a sociedade nâo tem importância. Entretanto, para além das derrapagens sangrentas da histôria, essas sociedades mostraram constantemente que dispunham de recursos éticos suficientes para se recuperarem sozinhas, com paciência sempre renovada. Propor a liberalizaçâo do aborto significa reanimar imprudentemente os velhos demônios que levam às dérivas totalitârias, das quais, alias, essas propostas constituem as premissas. Os cristàos engajados na politica estâo vinculados, segundo modalidades diversas e no contexto de compromisses multiformes, a essas duas tradiçôes que sâo falsas gêmeas e distin^em o mundo ocidental. Os cristàos sâo chamados a defender valores universais que 104 UMA PERVERSÀO DO SOCIALISMO E DO LIBERALISMO âflorâm nas duas grandes tradiçôes politicas da humanidade:valores da comunidade, por um lado; valores dapessoa, por outre lado. A fé que os cristâos reivindicam nâo os imuniza contra as toxinas totalitârias; pode até,infelizmente, potencializar seus efeitos perver ses. Contudo,o novo mandamento(Jn 13,34; Mt 25,45)convida-os a tomar a iniciativa de reconhecer o proximo la onde ele ainda nâo foi reconhecido (Le 10, 29-37). A exigência de eficâcia inerente à caridade (cf. Ga 5, 6) insta-os, ademais, a traduzir esse reco- nhecimento nâo apenas na prâtica social, mas também na prâtica politica. Tante em relaçâo ao aborto como no que se référé ao respeito à vida humana em gérai, o corpo politico pode esperar que esses cristâos engajados na politica participem, segundo vias diferentes e complementares, da construçâo de uma comunidade humana sem indesejados(como desejaria a perversâo do libéralisme)e sem indesejâveis(como desejaria a perversâo do socialisme). Como os cristâos poderiam contribuir melhor para fazer crescer o desejo de justiça ao quai as familias socialista e libéral dedicam o melhor de si mesmas? 105 XI A cauçâo de cristâos ao hoiocausto pré-natal Nâo é raro que politicos cristâos se declarem a favor da liberalizaçâo do aborto, o que pode ocorrer em dois contextos principais: ou num partido de tipo democrata-cristâo, ou em outro partido no quai militem. No segundo caso, trata-se quase sempre de um partido de inspiraçâo socialista ou de um partido de inspiraçâo libéral. Rsses sâo os tipos de contexto em que esses polfticos cristâos desenvolvem uma posiçâo que,no mais das vezes,articula-se ao redor de dois pontos: 1. "Vivemos num mundo irremediavelmente pluralista. Sem dûvida,sou contra o aborto, pois é um mal e um fracasso. Mas o fato de que vivemos numa sociedade democrâtica,onde todo mundo deve ter liberdade para fazer o que quer, também é uma realidade incontornâvel e um principio inviolâvel.Portanto,os que quiserem praticar o aborto devem poder ter liberdade para tanto." 2."Assim sendo, mediante algumas emendas,votarei a favor de uma determinada proposta liberalizante, nâo apesar de ser cristâo, mas porque sou cristâo. A posiçâo aqui resumida deve ser denunciada como dupla mistificaçâo. A honra do parlamento Para dar-nos conta dessa dupla mistificaçâo, basta substituir, no primeiro ponto,o aborto por qualquer outra prâtica social de mesmo tipo. Exemples:"Sou contra a eutanâsia. Mas o fato de que vivemos numa sociedade pluralista, onde todos devem ter liberdade de fazer 107 O ABORTO: ASPECTOS POUTICOS o que quiserem, é ao mesmo tempo uma realidade e um principio. Por conseguinte, os que quiserem praticar a eutanâsia devem poder fazê-Io iivremente.""Sou contra a droga. Mas o fato de que vivemos numa sociedade pluralista, onde todos devem ter liberdade de fazer o que quiserem, é ao mesmo tempo uma realidade e um principio. Por conseguinte, os que quiserem drogar-se, ou fornecer droga aos dependentes,devem poder fazê-lo livremente.""Sou contra o apart heid. Mas o fato de que vivemos numa sociedade pluralista, onde todos devem ter liberdade de fazer o que quiserem, é ao mesmo tempo uma realidade e um princfpio. Por conseguinte, os que quise rem praticar o apartheid devem poder fazê-lo livremente." Exercicio: complété os "raciocmios" que começam corn: "Sou contra o terrorismo", "Sou contra Auschwitz, ou contra o Gulag", "Sou contra a esterilizaçao dos marginais","Sou contra a pedofilia", "Sou contra a tortura" etc. Nâo é preciso ser um gênio para perceber que todos esses raciocmios nâo passam de mistificaçâo. É o que os filôsofos chamam propriamente de "sofismas".^ Mais precisamente, o vicio bâsico dessas argumentaçôes résidé na idéia falsa segundo a quai, numa sociedade pluralista e democrâtica, todo grupo de cidadâos com uma certa importância — ou talvez cada cidadâo — tem o direito de fazer qualquer coisa. Ora,esta idéia é a negaçâo mesma de uma sociedade realmente livre e democrâtica. De fato, o racioclnio que denunciamos pressupôe que a sociedade democrâtica seja definida como aquela onde deve ser permitido que cada um faça o que bem entender. Ora, uma sociedade deste tipo é uma sociedade anârquica, é a selva, onde impera a lei do mais forte: a lei da selva, Assim, a democracia verdadeira é impossfvel sem um consenso em torno de determinados principios fundamentais. Uma das expressôes maiores desses principios encontra-se na Declaraçào Universal dos Direitos Humanos de 1948. Mas quantos parlamentares conhecem esse texto? No entanto, a Declaraçào tira as liçôes da Segunda Guerra Mundial: o nazismo e o fascismo desprezaram o direito de cada homem à existência, à integridade fisica (1) Sofisma: "Racioci'nio euja correçâo lôgica é apenas aparente,apresentado para enganar os outres,ou para enganar a si mesmo."(P.FOVLQUIÉ,Dictionnaire de la langue philosophique, Paris, PUF, 1962, verbete ''sophisme''). A CAUÇÀO DE CRISTÀOS AO HOLOCAUSTO PRÉ-NATAL e à liberdade. Esses direitos inalienâveis sâo proclamados na Declaraçâo de 1948,que vê em sua promoçâo o mais seguro penhor de uma sociedade de justiça e paz. De resto, a historia confirma: sempre que os direitos humanos sâo desprezados,sempre que é vedado a seres humanos gozar desses direitos, a democracia infalivelmente desaparece.Basta abrir ojornal para constatai E, por fim, importa pouco que essa exclusào seja decidida por uma minoria que reina pelo terror ou por uma maioria numérica, pois nâo se pode acreditar, e ainda menos fazer com que outros acreditem, nem fingir acreditar que a democracia define-se essencialmente pela aplicaçâo mecânica e cega da regra da mâioria. De fato, hâ algo mais, anterior ao uso dessa regra: é que a democracia se define primeiro por um consenso fundamental de todo o corpo social quanto ao direito de todo homem a uma vida digna. Este é o direito que deve serpromovido eprotegido. Por conseguinte, é a necessidade desta proteçâo que justifica a atitude do legislador no sentido de reprimir as açôes dos individuos que se arrogam o "direito" de dispor da vida, da liberdade ou dos bens alheios. Sem dùvida, a historia, inclusive a contemporânea, mostra que tal consenso pode ser abalado ou mesmo destruido. Mas entâo jâ nâo hâ democracia verdadeira. A honra do parlamento résidé em ser, antes de mais nada, guardiâo vigilante da qualidade democrâtica de nossas sociedâdes. Mesmo se, num pais democrâtico, uma maioria de cidadâos votasse pela exterminaçâo dos judeus, nem por isto a medida ganharia legitimidade democrâtica. Aliâs,esta foi uma das principais acusaçôes que as democracias ocidentais dirigiram contra os criminosos nazistas no processo de Nuremberg. No entanto, mesmo homens que foram vitimas desse cancer do espirito e do coraçâo esquecem as liçôes da historia e estâo dispostos a repetir seus erros.^ E ocioso dizer que, entre esses direitos humanos,o primeiro é incontestavelmente o direito à vida. Respeitar a vida do outro,sejam quais forem sua idade, sexo, raça, cultura ou religiâo, é o mais fundamental de todos os direitos. É o que muitas vezes é chamado de ''regra de ouro'\ que reveste expressôes diferentes em todas as grandes civilizaçôes do mundo."Nâo matarâs": nenhuma sociedade (2) Cf. p. 61s. 109 O ABORTO: ASPECTOS POLÎTICOS nolitica por mais pluralista e democratica que se prelenda, pode dcsprezar esla regra de ouro sem mcrgulhar, mais cedo ou mais tarde, na barbarie. Uma manipulaçao perversa do Evangelho À luz dessas observaeôes, percebe-se como c inadmissivel a referência ao eristianismo resumida no ponlo dois De bito, o aborto, que é em pnme.ro iugar um proWerya de moral humana natural-como acabamos de ver -,tambem atmg , por molivos parliculares, a consciencia cnsla. Ora, essa referência ao eristianismo e ai invocada de man ner%'ersa- é um caso exemplar de manipulaçao. Registremos primeiro que aqueles que afirmain contra aborto mas ao mesmo tempo trabalham por sua ''heraU^ajao se expôem à acusacâo de duplicidack'. A teoria da dupla verdade, ca^a a certos ambientes, nâo tem vez na Igreja. Em Bernanos disse quase tudo a esse respeito. Como nos d.z.a um sabio, "a Tgreia perdoa os pecados, mas nem por isto os autoriza . "•cliio, h.l ai;., ma» pave.P.» c um referência ao eristianismo para fornecer um aval aos que a^acam » Jfda Xs inocentes.' É um escândalo invoear o Evangelho para iustificar que filhos e filhas sejam saerifieados, hoje eomo ontem, aos Idolos sLl'tos do sangue dos justos.^ E blasfematôr.o reeorrer Deus para cobrir o ùnico pecado para o quai nao ha perdao.o peeac eontr.^0 Esp^rito fundamentalmente em jogo no debate sobre .Tibriizaefui do aborto é. por um lado, a ciuakdadedcm>cra- de nos'a soci^dade e, por outro, a credihUuladc dos pcdit.os que se dizem ligados à tradiçâo eristf.. Sera que, diante da narlament<rr ou um partido que ostenta a marca crista ousara ser desprovido de coragem politiea a ponto de tornar-secumphee de urna mnçS è de um novo Llocausto. pré-natal7 Sera que va. dar sua (3) cr.Sl'M,21;.t7..32;Mt2, 16-l.S. (4) Cf. SI 106,36-42. (5) Cf. Mt 12, 31s. A CAUÇÀO DE CRISTÀOS AO HOLOCAUSTO PRÉ-NATAL cauçâo às dérivas démentes de um socialismo que sacrilïca o homem à sociedade, ou de um neoliberalismo individualista, onde a vida dos mais fracos 6 sacrificada à libcrdade irresponsâvel dos mais fortes? Foi um "teologo da libertaçâo"queo disse. Quem? Lacordaire:"Que saibam, portante, os que o ignoram, que saibam os inimigos de Deus e do gênero humano, seja quai for seu nome, que entre o forte e o fraco,entre o rico e o pobre,entre o mestre e o servidor,e a liberdade que oprime e a lei que liberta!"^' (6) I^ACORDAIRH,Sermon à Notre-Dame de Paris, 1(S48. 111 XII O "mal menor" e o naufrâgio do essencial Em 30 de setembro de 1938, Daladier e Chamberlain assinaram os acordos de Munique com Hitler, concedendo à Alemanha a anexaçâo dos territôrios dos Sudetos. Os protagonistas franceses e britânicos desses acordos alegavam o mal menor; sem dùvida, sacri- ficava-se a Tchecoslovâquia, mas os outros paises europeus eram salvos da guerra. Ora, naquele momento, a realidade do régime hitlerista era conhecida; sabia-se da existência dos campos de concentraçâo; o Anschluss da Austria ocorrera em 13 de março ûltimo;era necessârio, porém suficiente, examinar a ideologia nazista para compreender que seu objetivo era dominar o mundo inteiro. O que realmente estava em jogo nos acordos de Munique nâo era a recomposiçâo territorial da Alemanha, mas a liberdade dos homens e dos povos, suas razôes de viver e os ideais que as determinam. A assinatura daqueles acordos apenas confirmou a convicçâo de Hitler de que as democracias assistiriam a seus golpes de força passivas e estupefatas. O que de fato fizeram. Deram sinal verde à escalada, e esta prosseguiu: na Boêmia, na Moravia, na Polônia. As democracias ociden- tais estavam preocupadas, antes de mais nada, com seus problemas particulares, sobretudo econômicos; estavam dispostas a evitar um conflito a qualquer preço. Tinham ficado cegas de tanto querer protéger interesses setoriais. E cederam no essencial.Sabemos o que veio depois. As democracias que se empenham em liberalizar o aborto correm o risco de encontrar-se numa situaçâo semelhante à de 1938. 113 '''Tï O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS Assegurar o respeito à vida De fato, nâo é raro ver politicos empenhados em discussôes juridico-bizantinas sobre as mudanças profundas ou emendas que, "considerando-se a evoluçâo dos costumes", seriam necessârias a legislaçôes tradicionais na matéria. De fato, a dimensâo repressiva dessas legislaçôes tradicionais nâo sâo senâo a conseqùência logica do objetivo, eminentemente positivo, que o legislador visava: o respeito a todo ser humano, inclusive antes do nascimento.De maneira mais gérai, a preocupaçâo em promover esse mesmo principio é subjacente a outros artigos do côdigo pénal. A legislaçâo tradicional em matéria de aborto assegura esse principio fundamental. Neste sentido, apenas implementa o principio fundador de toda democracia,segundo o quai todos os seres humanos sâo iguais e merecem a proteçâo da lei. Na verdade, tal principio s6 tem sentido se seu alcance for universai Quando, nos fatos ou na teoria, constatamos que a abrangência universai desse principio é reduzida, denunciamos as injustiças decorrentes. Revoltamo-nos, com razâo, contra o apartheid na Africa do Sul, contra os renascimentos do racismo, contra as perseguiçôes politicas e/ou reli- giosas, porque estamos convencidos de que, afinal, o direito à vida, e à vida com liberdade, nâo é privilégio de reis, da nobreza, da burguesia, nem de alguma raça de senhores ou membros de um partido — é direito inato e inalienâvel de todo ser humano.^ .1' s Dominados por uma cegueira menos desculpâvel que a dos negociadores de Munique, determinados politicos contemporâneos entram em discussôes sobre qualquer assunto, menos sobre o essencial. Seriam jogos bem inocentes se esses politicos nâo caissem na prôpria armadilha. Uma questâo de credibiiidade Nossa geraçâo também tem seus Chamberlain e seus Daladier. Seus epigonos nâo querem ver,ou fingem nâo ver que,sob o pretexto (1) Cf. Cap. II. 114 O "MAL MENOR"E O NAUFRAGIO DO ESSENCIAL de "atualizar" a legislaçâo existante, chegam a questionar o espirito da lei, a ûnica razâo de ser desta lei: fazer corn que todo ser humano seja respeitado. Nâo vêm que esta em questâo o alcance universal deste principio. Assim, consentem em iniciar uma escalada cujo contrôle Ihes escapa desde o inicio. Dessa njaneira, ao mergulhar no pântano de uma casuistica do assassinato, perde-se de vista o essencial. A discussâo versa sobre minûcias, preteriçôes e ambigûidades; os debatedores se mostram "tolérantes","abertos","de mente ampla",''pluvalisVàs''e tutti quan ti. Paralelamente, deixam-se capturar pelo joguinho do "toma-la-dâcâ" e do compromisso.Mas, ao mesmo tempo, perde-se de vista o que é essencial. E a escalada,que começou tâo bem, poderâ continuar: elimina- çâo dos recém-nascidos com alguma malformaçao, dos déficientes,^ eutanâsia dos velhos e doentes incurâveis,^ enquanto se espera a eliminaçâo, à la carte, das meninas(ou dos meninos: depende).^ Numa democracia, um grupo politico que esta disposto a liquidar o respeito incondicional devido a todo ser humano merece ser renegado porseus eleitores.Se nâo merece credibilidade no que toca à vida humana, como o mereceria em matéria social, econômica, fiscal, sanitâria, escolar etc.? Se, nesses aspectos particulares, os eleitores geralmente pensam que serâo enganados por seus mandatârios, por que nâo renegar os que transigem sobre o essencial? Na democracia,o respeito devido a todo ser humano nâo é negociâvel. Os que esquecem esta verdade elementar s6 colherâo o desprezo de seus adversârios. (2) Cf. F.A. ISAMBERT, "Éthique et génétique. De l'utopie eugénique au contrôle des malformations congénitales", in Revue française de sociologie, Paris, t. 21, 1980, pp. 331-354. Sobre esses problemas, ver G. PERICO,"La diagnosi prénatale. Aspetti technici, etici e pastorali", in Aggiornamenti sociali, Milâo, t. 38, 1987, pp.667-682. (3) Cf. François-Régis CERRUTI,L'euthanasie. Approche médicale et juridique, Toulouse, Privât, 1987. (4) Sobre esta pratica na India, ver A. MUTHIAH(e colaboradores),"Comments on The mania of sons: An analysis of social values in South Asia' by A. Ramanamma and U. Bambawale", in Social science and medecine. Oxford, t. 16, 1982, pp.879-885. 115 XIII As mulheres e a sujeiçâo consentida Sera que a mutaçâo de valores nos pianos politico e juridico, que a liberalizaçâo do aborto pressupôe, nâo é o preço a ser pago para promover a libertaçâo da mulher? Sera que, na historia da emancipaçâo da mulher, nâo nos defrontariamos corn um obstâculo que confirmaria a necessidade de liberalizar o aborto? Sâo as questôes que ainda devemos examinar. O ôpio do século Segundo as publicaçôes dos movimentos feministas favorâveis ao aborto, tudo acontece como se fosse possivel liberalizar o aborto tendo em vista, primeiro e antes de mais nada, a emancipaçâo da mulher.^ Tais movimentos nâo sâo alheios às preocupaçôes eugêni- cas,demogrâficas e socio-econômicas, mas estas nâo constituem seus primeiros argumentos. A propaganda desses movimentos muitas vezes é acompanhada pela descriçâo tranqùilizadora das técnicas abortivas modernas.^ Sua simplicidade é elogiada; insiste-se — nâo sem grande exagero—no carâter indolor da intervençâo, na ausência (1) A literatura sobre a questâo é abundante. Citernes apenas H. BONNET, "Liberté de l'avortement et libération des femmes",in Lumière et Vie, n ® 109 (agosto-outubro de 1972), pp. 35-43; D. SCHULDER E F. KENNEDY, Avortement, droit desfemmes, Paris, Maspero, 1972. (2) Mencionemos Jean CHOEN, Bernard ACHARD, ABC des techniques de planification familiale. Contraception, stérilisation, intemiption volontaire de gi'ossesse, Paris, Masson, 1978. Nem é précisé dizer que, desde entâo, "as técnicas evoluiram"... 117 o ABORTO; ASPECTOS POUTICOS de riscos, de seqùelas etc. Esquemas,fotos e prospectes sao uns mais persuasives que os outres, com vistas a convencer a mulher de que agora ela pode facilmente, segundo a célébréventre". e propositalmente vukar expressâo, ser "senhora de seu proprio _ ^ Tirar um ôrgâo doente é uma coisa; extrair um embnao e outra bem diferente. O embriâo nâo é "um orgâo como qualquer outre . Ele jâ é diferente; hâ outro présente. De^resto, e este o ponte problemâtico: estanamos doentes do outro? Ora, se esta estabelecido que a criança concebida tem uma existêncià distinta da de sua mâe, por que motivo esta e o Estado seriam dispensados do dever de reconhecer o ser que traz no ventre e de protegê-lo, respectivamente? É honra suprema da mulher ser aquela que, no mun o, ^ nhece em sua carne a presença ténue de um novo ser humano;e sua honra ser a primeira a poder acolhê-lo livremente; e sua honra apresentâ-lo ao reconhecimento dos outres, ao do pai, para comeSe a crianca concebida é sujeito de direito para o jurjta e para G poh'tico, com mais razâo o sera para sua mae: o fato de alguem depender de mim nâo me autoriza a exercer domimo sobre ele. E nâo se poderia usar a diferença de desenvolvimento corporal como pretexto para fundamentar uma desigualdade de direitos tao ra ^ que outorgasse à mâe um poder discricionario sobre o filho. Su Sberdade-e com mais razâo a do casai-é,portante,hmitada pelos direitos inerentes ao sujeito que traz no ventre, e as ^utoridades devem fazer com que estes sejam respeitados, como os de qualquer mesmas razôes, a criança concebida nâo poderia ser as- (P) a. Nltrie HENDRICKX. "Quelle mission pour la femme?", m Lowain, fSf Prr'ffiTœS bodies of persons", in Social Theory and Practice, Tallahassee (Fia), t. 10, 1984, pp. 25-38. /'in/unto/rfe, Paris Payot l98L (7) Sobre os direitos da mulner, ci. "Considérations...", pp- 472-482. ^ MEULDERS-KLEIN, AS MULHERES E A SUJEIÇÀO CONSENTIDA similada a um "agressor" contra o quai fosse possivel invocar a légitima defesa. O homem e a mulher que têm relaçôes sexuais estâo a par do risco que estas comportam: o surgimento de um novo ser humano. O conhecimento de causa acarreta uma responsabilidade à quai eles nâo podem subtrair-se eliminando o ser eventualmente concebido. A E verdade que a maioria dos movimentos feministas partidârios do aborto nâo insiste nesses enfoques objetivos. A cegueira seletiva que com freqûência os caracteriza às vezes os torna cûmplices obje tivos de um imperialismo de estilo novo. Como sua principal preocupaçâo é a emancipaçâo de mulher na sociedade, é por esta via que abordam os problemas da maternidade e do aborto. Também sera por este canal politico que procederemos. Hâ muitos anos, um grande semanârio parisiense publicou uma lista de mulheres famosas,quase todas ricas, que haviam recorrido ao aborto.^ Uma râpida olhada à lista confirma de sobra a estreita ligaçâo entre o aborto provocado e a sociedade de consumo — abusivamente identificada à sociedade desenvolvida —,da quai essas mulheres sâo, de certo modo, expressôes paradigmâticas. Todo o problema aqui résidé em saber se é pelo comportamento dessa vanguarda que nossas comunidades politicas devem regular a legislaçâo. Uma vez mais, vemos a necessidade de ultrapassar a problemâtica estreitamente "privada" do aborto. Uma sociedade que faz do consumo seu projeto principal sufoca o senso da responsabilidade social de seus membres.A maximizaçâo do conforte torna-se a norma absoluta da produçâo e do comportamento em gérai. Produzir, consumir, desperdiçar: eis o trinômio inculcado através da publicidade maciça. O cidadào é antes de mais nada uma combinaçâo de desejos e necessidades, sempre reestimulados no momento em que estâo prestes a serem satisfeitos. Em suma: o consumo é o ôpio do século. É precisamente neste ponte que o principio do prazer, mobili- (8) Ver "Le manifeste des 343", in Le Nouvel Obseivateiir,5 de abrii de 1971. Cf. também Le livre blanc de l'avortement, Club de l'Observateur,caderno 2,Paris, 1971. Sobre o aborto no exterior, ver, por exemplo, P. Van PRAAG, "Poliklinisch abortering van Belgische vrouwen in Nederland",in Bevolking en Gezin^ n.*^ 2(1978), pp. 273-282. 119 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS zado pelo consumo, encontra-se com o principio da força, ao quai nos referimos em relaçâo aos régimes totalitârios. O encontre do hedonismo com a violência, de Câlicles e Gôrgias com Protâgoras, nâo é mero acaso.^ Revoluçâo inacabada Em todos os tempos,os ricos desfrutaram de privilégies injustes; sempre violaram a lei com toda impunidade; muitas vezes até sonharam em fazer do direito positive um reflexo e escudo de seus interesses. Apesar das lutas travadas e das vitorias conquistadas, os ricos ainda hoje podem consumir droga, desperdiçar ou poiuir além da conta e recorrer, quando é o case, a médicos-aborteiros tâo complacentes quanto gananciosos: um século depois de Marx, todos esses abuses continuam a ser a vergonha da sociedade capitalista.^^ Mas a revoluçâo que a liberalizaçâo do aborto acarreta é singularmente diferente das do passade. Estas queriam extirpar a injustiça em nome de um determinado idéal de justiça. A dos partidârios do aborto consiste em querer declarar que é légal e mesmo juste — "desculpabiiizar" — um ato em total dissonância com nossa tradiçâo moral e juridica.^^ Para tante, alegam que uma minoria abastada tem meios para recorrer ao aborto com toda impunidade. Uma conclusâo tâo absurda é um verdadeiro desafio ao mais elementar bom senso. Se alguns enriquecem através da corrupçâo, do suborne, do trâfico de drogas etc., é précisé aperfeiçoar a legislaçâo, aumentar o contrôle, reforçar as sançôes. O mesmo vale para o aborto provocado. E surpreendente o fato de a mulher nâo se rebelar mais contra as ambigûidades que pesam sobre uma certa concepçâo de sua libertaçâo. Por que nâo reagir mais contra tudo o que a confina em seu status de objeto, predispondo-a a ser a primeira vftima do aborto banalizado? E précisé acrescentar, com mais razâo, que todas as ✓ (9) Cf. p. 90. ÙO) Cf. C. REVON,"La loi et ses injustices", in Échange, n.° 104(Janeiro de 1972), l ïi ' pp. 28-30. (11) Cf. pp. 36 e 182. 120 AS MULHERES E A SUJEIÇÀO CONSENTIDA dificuldades das mulheres em situaçâo penosa nâo sâo resolvidas ao se Ihe oferecer a eliminaçâo do filho que trazem no ventre. Assim sendo, para libertar a mulher é necessârio questionar o que, em nossa sociedade, incita-a a recorrer ao aborto. É preciso afirmar corn força que uma sociedade que se dâ ao luxo de manter exércitos carissimos e enviar homens ao espaço pode nâo apenas cuidar com carinho de seus velhos e protéger vseus doentes, mas também ajudar eficazmente as mâes solteiras, educar as crianças lançadas à existência por imprevidência ou surpresa^^ e facilitar sua eventual adoçâo. Voltamos entâo aqui ao imperativo de uma socializaçâo respeitosa em relaçâo às pessoas. Em vez de pensar na liberalizaçâo do aborto, é urgente atacar as causas desesperadas que levam a considerar essa soluçâo. De fato, sem uma certa ma fé nâo séria possivel preconizar a liberalizaçâo do aborto sem primeiro implementar uma reforma fiscal visando a corrigir injustiças às vezes esmagadoras,sem reforma judiciâria para pôr termo à justiça de classe, sem uma regulamentaçâo muito estrita do crédito e da publicidade,sem questionar uma politica habitacional e urbanfstica baseada em primeiro lugar no lucro,sem a denùncia veemente de tudo o que — sobretudo na midia — nâo passa de forma descarada de exploraçâo e humilhaçâo da mulher,sem uma politica salarial e familiar que nâo obrigue a mulher — se ela nâo quiser — a trabalhar Ibra. Pretender liberalizar o aborto nâo passarâ de uma farsa enquan- to, num casai mistificado por uma publicidade irresponsâvel,a mulher tiver que se esgotar para fazer o salarie durar até o fim do mês, além de produzir para merecer seu lugar na sociedade de consumo, enquanto, em nome de uma pudicicia anacrônica, nâo houver uma educaçâo para a paternidade responsâvel ou enquanto a educaçâo para o amor se reduzir, em nome de imperativos malthusianos, à iniciaçâo à contracepçâo, enquanto uma certa hipocrisia burguesa continuar a punir as mâes solteiras e a mantê-las à margem da (12) Sobre as mâes solteiras, consullar Charlotte LE MILLOUR, La maternité singulière. Récits de vie de mère célibataire, Paris, Laffont, 1982; ver também Josiane C'ARON,Des mères célibataires: entre la soumission et la subversion, Paris, Haray, 1982. 121 O ABORTO: ASPECTOS POUTICOS sociedade, enquanto a paternidade nos for apresentada como um acidente, a gravidez como uma doença e a criança como um parasita... Libertaçâo e objetivaçâo O mais surpreendente neste debate é que determinadas inspi- radoras dos movimentos feministas favorâveis ao aborto ter interiorizado o ponto de vista machista sobre a mulher. - Elas se vêem com um olhar masculino, objetivante, aniquilador, sadico: e bem verdade que, num determinado momento do processo dialetico, o idéal do escravo que quer libertar-se é imitar o mestre e ver a si mesmo com o olhar do mestre.t"^fragilidade do psiquismo humano é tal que ele consegue "desmaternalizar a mulher. Entretanto, a liberalizaçâo do aborto s6 faz aumentar a opressâo de que as mulheres se queixam. De fato, o sadismo que atinge a criança também ataca aquela que é chamada a leva-lo em seu ventre, conduz direto à maior dominaçâo dos homens: o que sempre se escamoteia é que os primeiros e maiores beneficianos do aborto à vontade sâo os homens, cujo imperio se amplia Afinal "Sera que eu nâo séria uma tola se tivesse piedade do frango que matam para o meu jantar?... Ora, as relaçoes da esposa com o marido nâo têm conseqiiência maior que as do frango comigo; ambos sâo animais domésticos destinados a servir, animais (13) Sobre a questao, ver D. DHAVERNAS, Droit des femmes, pouvoir des (14) ÎdëXamTe aqui alguns temas sartrianos, lambém desenvolvidos na,007obravprde Simone de Beauvoir. Ver também p. 98, n. 18. (15) Cf. Élisabeth BADINTER, L'amour en plus Fans, l também o livre de Yvonne KNIBIBHLER e Catherine FOUQUCT,Histoue HOUEL e B. LHOMOND."Avortement et morale maternelle. 1968-U78 , in La libéralisation de Vavortement, pp. 487-502zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA a responsabilidade do hometn ^ao sempr t(■ 161'' É o motivo pelo quai o pape! •^ -, eA^ çt-to^sTAK "Men cind abortion. threc apagados; ver, a este respeito, A.B. SHOSIAR. neglected ethical aspects", in Hutnanity and Society, t. 7, Oxlord (Ohio), pp. 66-85. AS MULHERES E A SUJEIÇÀO CONSENTIDA que devem ser usados conforme indica a natureza,sem diferenciâ-los em coisa alguma". Afinal de contas, se nâo vivenciam no amor nem o reco- nhecimento nem a reciprocidade, como poderiam as mulheres estar dispostas a reconhecer e acolher aquele que é, no entanto, seu proprio filho.^® Jâ subjugadas por uma sociedade cujas opçôes fun- damentais nâo sâo criticadas, et pour cause, unidimensionalizadas, "igualizadas" ao homem, reduzidas ao modelo padrâo de consumidoras-produtoras, serâo ainda mais submetidas aos caprichos impetuosos dos machos possessivos. De sujeitos de consumo, elas se tornarâo, por sua vez, objeto de consumo de tipo particular porém anônimo e, na solidâo de desamor, serâo as primeiras a suportar as conseqùências de sua sujeiçâo consentida. (17) Sade expôe sua concepçâo de "amor" humano, notadamente em Justine et les malheurs de la vertu, pp. 170-176 e 214-218. É util referir-se às asperas criticas de J.-P. SARTRE ao Marques de Sade na Critique de la raison dialectique, 1.1: Questions de Méthode, Paris, Gallimard, 1960, especialmente pp. 75ss. Sartre afirma, entre outras coisas, a respeito do "divino marques": "Seu famoso sadismo é uma tentativa cega de reafirmar seus direitos de guerreiro na violência, baseando-os na qualidade subjetiva de sua pessoa. Ora, esta tentativa ja estd impregnada de subjetivismo burguês; os titulos de nobreza sâo substitufdos por uma superioridade incontrolâvel do Ego. Seu l'mpeto de violência é desviado desde o imcio. Mas quando ele quer ir mais longe, vê-se diante da idéia capital: a idéia de Natureza. Ele quer mostrar que a lei da Natureza é a lei do mais forte, que os massacres e as torturas nâo fazem mais que reproduzir as destruiçôes naturais etc. Mas a idéia contém um sentido embaraçoso para ele: para todo homem de 1789,nobre ou burguês,a Natureza é boa. Com isto, todo o sistema vai se desviar: se o assassinato e a tortura nâo fazem senâo imitar a Natureza,é que as piores perversidades sâo boas e as mais bêlas virtudes, malvadas. [...] Desta ideologia aberrante resultarâ: a ûnica relaçâo de pessoa para pessoa é a que liga o carrasco à vi'tima." Ver porém,no mesmo livro, pp.92 e 105, outras palavras de Sartre. (18) G. FESSARD examina a relaçâo homem-mulher à luz da dialética hegeliana do mestre e do escravo em De l'actualité historique, t. I: la recherche d'une méthode, Paris, Desclée de Brouwer, 1960, pp. 163-175. 123 XIV Rumo ao genocidio intra-uterino Sera que o fato de a liberalizaçâo do aborto criar condiçôes propicias para uma transformaçâo profunda da natureza do Estado acarreta necessariamente a restauraçâo de algum régime totalitârio, de tipo nazista, por exemplo? Esta é uma das conseqùências possiveis dessa liberalizaçâo, mas nâo é a ûnica. De fato, é perfeitamente concebivel que as leis positivas aceitem uma certa incoerência nos principios que as inspiram. Assim, diante do ser humano que acaba de ser concebido, a lei positiva pode considerar que o poder do Estado é ilimitado; diante do cidadâo nascido, pode considerar que ele é "discreto", quer dizer, limitado. Dois pesos, duas medidas — duas visôes inconciliâveis do papel e da natureza do Estado. Entretanto, sera possivel pretender,em nome de uma situaçâo de fato, que é preciso aceitar uma amalgama tâo hibrida? Nâo pensamos assim, de modo algum, e para demonstrâ-lo devemos ultrapassar a perspectiva adotada até este ponto: a do Estado constitucional. Tal atitude exige-nos assumir tudo o que dissemos até agora numa perspectiva mais ampla. A colonizaçâo ideolôgica O Estado nacional, na forma, muitas vezes ngida, como o concebem as constituiçôes modernas. debcou de ser de fato uma instância soberana de poder,senhor ùnico e ùltimo de suas decisôes, aquele que faz e desfaz alianças para conjurar as pretensôes hegemônicas dos mais fortes. Os tempos mudaram: os imperialismos contempo125 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS râneos recorrem a métodos novos, tanto mais eficazes por serem discretos, que afetam profundamente as relaçôes entre as naçôes. A ambiçâo das potências imperiais é limitai nâo apenas a soberania dos paises do Terceiro Mundo, mas a de todas as naçôes. Esse objetivo pode ser atingido por diversas vias. Pode-se, por exemplo, apoiar um régime fortalecendo a mâquina estatal e/ou recorrendo aos militares. Cômodos no Terceiro Mun do, esses métodos atualmente sâo pouco recomendâveis na Europa ocidental, onde a dominaçâo impérial lança mâo de novas ferramentas. Por um lado, as disciplinas cientiTicas tornam-se instrumentos de combate; estâmes pensando, por exemplo, nas ciências biomédicas, na demografia, na economia.Por outre lado, recorre-se à colonizaçâo ideolôgica, por meio da quai as sociedades dominâveis ou dominadas tornam-se heterônomas, interiorizando os projetés que as sociedades dominantes traçam para elas. A sociedade dominante que mais nos intéressa aqui é a norteamericana. Contudo, séria injuste cair num unilateralismo facil. Por um lado, politicamente falando,os EU A sâo de fato herdeiros diretos de uma longa tradiçâo anglo-saxônica e inclusive européia. Por outre lado, se movimentos militantes contra a vida humana têm solidas raizes nos EUA, também é neste pais que se afirmam com maior clareza, e vigor inquebrantâvel, organizaçôes eficazes, determinadas a obter o respeito intégral à vida humana, da concepçâo à morte.^4 açâo desta ûltimafraçâo da opiniâopûblica noHe-americana justifica gf-andissimos esperanças em escala mundiaiS}^ açâo certamente nâo é alheia à sentença ditada em 3 de julho de 1989 pela Corte Suprema dos EUA, autorizando os Estados da Federaçâo a limitai as possibilidades de recorrer ao aborto. Mesmo assim, contudo, os circules norte-americanos que se preocupam com a segurança demogrâfica da métropole e estào convencidos da necessidade de permitir o aborto nâo podem dispen sai o concurso da Europa ocidental. Malthus e o império Ha cerca de um século as potências anglo-saxônicas preocu- pam-se em élaborai programas de contrôle ou limitaçâo da natalida- RUMO AO GENOCIDIO INTRA-UTERINO de.^ Os primeiros movimentos malthusianos de alguma importância sâo organizados na Inglaterra no final do século XIX. Suas teses sâo divulgadas e testadas cm diversas regiôes do Império britânico, na India entre outras.^ Sem duvida, em suas expressôes extremas, essas teses malthusianas por muito tempo foram consideradas assunto tabu. Quem, hâ cinqùenta anos, ousaria preconizar abertamente a liberalizaçâo do aborto, quando jâ era malvisto falar de contracepçâo? Mesmo se seu objetivo declarado era o bem-estar familiar, comunitârio e internacional, mesmo se eram da ordem da eugenia, seus defensores expunham-se a serem taxados de racistas. Ora, nâo é casual que um dos precursores do racismo contem- porâneo seja um inglês, Houston Stewart Chamberlain(1835-1926).^ (1) Os partidarios da liberalizaçâo do aborto dispôem de uma espécie de vade-mecwn editado por M. POTTS e C. WOOD: New Concepts in Contraception. A Guide to Developments in Family Planning, Oxford e Lancaster, 1972.0 Dr.Potts era entâo diretor médico do International Pianned Parenthood Fédération, organizaçâo à quai nos referiremos mais adiante. Sobre a histôria, as motivaçôes e os métodos dos movimentos de planejamento familiar, ver a introduçâo de M. POTTS:"Problems and Strategy", pp. 1-15. Sobre a mesma questâo, consuliar igualmente, no mesmo volume, B. SUITTERS,"The 'International Family Planning Movement'; Aspects of its Growth and Development (1881-1971)", pp. 17-55. Nesse livro aparece claramente a ligaçâo entre coniracepçâo e aborto. (2) Sobre as questôes de poli'tica demogrâfica, consuliar nâo apenas as publicaçôes do Population Référencé Bureau (Washington), mas também a revista bimestral Bibliogjaphy of Family Planning and Population, Cambridge, D. LINZELL (éd.). Ver, sobretudo, Jacques VERRIÈRE, Les politicjues de population, Paris, PUF, 1978. Bibliografia bâsica em H. GÉRARD e G. WUNSCH,Comprendre la démographie, Verviers (Bélgica), Marabout, 1973, pp. 174-178. (3) Os aspectos atuais dos problemas que abordamos aqui sâo aprofundados num dossiê impressionante: "Morituri". Ceux qui doivent mourir. La délivrance par la mort, l'humanisme biologique, et le "racisme scientifique"(mimeografado), B.P.202, F92205 Neuilly-sur-Seine Cédex, 1974. Para completa-lo, Bernard SCHREIBER, The Man, Behind Hitler. A German Warning to the World. "Geheime Reichssache", F78139 Les Mureaux, Publications La Haye-Mureaux, s.d. Os abortomanfacos nâo parecem nada constrangidos por se encontrarem na companhia de Hitler, que preconizou e.implementou teses fundamentalmente semelhantes às deles. Ver, por exemplo, em Mein Kampf, Paris, Nouvelles Éditions Latines,s.d., pp. 133-138. Todos esses problemas sâo estudados por Georges NAUGHTON, in Le choc du passé! Avortement, néo-nazisme, nouvelle morale, F 78170 La Celle Saint-Cloud, Garah, 1974. O ABORTO: ASPECTOS POLÎTICOS Suas teses, talvez ainda mais que as de Gobineau,exerceram influência considerâvel em dois mundos menos estranhos um ao outro do que parecem à primeira vista. No mundo anglo-saxônico — primeiro inglês e, depois, cada vez mais, norte-americano —,por um lado, as teses de Chamberlain reforçaram as teses malthusianas clâssicas e sugeriram novos campos de aplicaçâo. Alias, com seu racismo "teutônico",o mesmo H.S. Chamberlain, que se tornou cidadâo alemâo, contribuiu fortemente para reavivar o nacionalismo alemâo que remonta a muito antes de Fichte, para reativar a idéia hegeliana de missâo impérial da quai o Reich séria herdeiro, para consolidar a fé no "homem superior"cantado por Nietzsche e do quai o ariano puro séria a expressâo exemplar, e por sinal ùnica. Da mesma maneira, Hitler teve o mérito — por assim dizer — de perceber a ligaçâo necessâria entre o malthusianisme e o racismo, por um lado, e a concepçâo do Estado, por outro. O artesâo da historia do mundo, segundo ele, é o Estado racista, que deve zelar pela seleçâo de seus membres:"O Eslado racista distribui seus habi tantes em très classes: cidadâos, sùditos do Estado (ou natos) e estrangeiros. Em princîpio,o nascimento conféré apenas a qualidade de nato [...] O tUulo de cidadâo, com os direitos que conféré, sera concedido da maneira mais solene ao jovem de boa saûde e boa reputaçâo, depois de prestado o serviço militar Além disto, graças às concepçôes racistas, cabe ao Estado dar à j| 1| iuz uma era melhor. Entâo, os homens "procurarâo melhorar a raça humana; [...] uns, tende reconhecido a verdade,saberâo abnegar-se Oïl 1 i i • i I o ol ^ o i o o ^^ 5 i em silêncio; oso outres,farâo o dom jubiloso de si mesmos".^Coerente consigo mesmo, Hitler preconiza até uma "autorizaçâo para pro- criar",^' ou inclusive a esterilizaçâo: "O Estado deve intervir como quem tem a obrigaçâo de zelar pelo future de milhares de anos,diante (4) HITLER,Mein Kampf, p. 439.(grifado no original). (5) Ibidem, p. 404. (6) Comparar com as opiniôes de R. DUMONT em L'utopie ou la mort, Paris, Seuil, 1973, pp. 47-51 epassitn:"Medidasautoritarias limitalivas da natalidade far-se-âo cada vez mais necessârias, mas sô serâo aceitâveis^e começarempelos pafses ricos e pela educaçâo dos demais"(pp. 49ss. O grifo é de Dumont). A idéia de "auiorizaçâo para procriar" foi aceita por numerosos autores; est^ institucionalizada na CMiina, no Vietnâ, em Cingapura e em outros paises. 128 RUMO AO GENOCIDIO INTRA-UTERINO dos quais os desejos e o egofsmo do individuo sâo considerados nada...; ele deve utilizar os mais avançados recursos da medicina para esclarecer sua religiâo; deve declarar que nenhum individuo notoriamente doente ou afetado por taras hereditârias... tem o direito de reproduzir-se, e deve privâ-lo materialmente dessa faculdade".^ Sabe-se que entre as "taras hereditarias" definidas pelo Estado racista figurava notadamente o fato de pertencer à raça judaica. Sabe-se também que o régime nazista levou ao extremo sua lôgica infernal. Começou organizando esterilizaçôes, depois promoveu a eutanâsia; entâo podia chegar ao genocfdio, que surge ao cabo de um processo sistematicamente programado. Nâo bastava esterilizar os "importu nes" de todo tipo; era preciso eliminâ-Ios. Tais prâticas e o régime que as inspira foram contestados em nome dos princfpios que norteiam a tradiçâo democrâtica.E o direito dos judeus à singularidade foi reivindicado notadamente porque hâ primazia da pessoa sobre o cidadâo, da Naçâo sobre o Estado. Clarividência hitlerista? Por mais que custe afirma-lo, é preciso dizer que certes circules norte-americanos hoje surgem como herdeiros diretos da Ingiaterra malthusiana, tante por seu racisme — do quai o grande publico sô conhece as manifestaçôes dentro do prôprio pais — como por seu antinatalismo. Tampouco séria possivel duvidar do cruzamento que ocorreu nos EUA entre a tradiçâo malthusiana e as teses racistas que inspirariam o modelo nazista. O mestre do III Reich nâo se enganara. Antes de tirar as liçôes de sua reflexâo para a Alemanha nazista, ele as explicita sobre o "modelo" norte-americano e observa, elogiando, que "em nossa época hâ um pais onde se pode ver ao menos tfmidas tentativas inspiradas por uma concepçâo melhor do papel do Estado [em matéria de eugenia]. Nâo é, naturalmente, nossa repùblica alemâ modelo; sâo os Estados Unidos da América que se esforçam em obedecer, ao menos em parte, os conselhos da razâo. Ao recusar o acesso a seu territôrio aos imigrantes cuja saûde é ruim e excluir do (7) HITLER,Mein Kampf, p. 404. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS direito à naturalizaçâo os représentantes de certas raças, aproximam- se um pouco da concepçâo racista do papel do Estado".® Este texto foi escrito numa época em que ainda nâo havia soado o alerta à "bomba P(opulaçâo)'\.nem haviam gritado "Basta de crescimento!", quer dizer, quando o malthusianismo econômico ain da nâo fora recomendado/^ Ora, se o temor de uma "explosâo demogrâfica"jâ se manifestava na Inglaterra vitoriana, e se ta! temor se cruzaria com o racismo da AJemanha antes mesmo da subida de Hitler ao poder, nâo hâ motivo para assombro ao constatar a vitalidade dessa dupla preocupaçâo na sociedade norte-americana de hoje. A naçâo que substituiu a impérial Albion em escala mundial esta enfeitiçada pelo racismo desde a época colonial;^^^ também percebeu, sobretudo apos 1945, a importância politica e econômica dos problemas demogrâficos. Entretanto, tais preocupaçôes nâo sâo apanâgio dos EUA, motivo pelo quai têm tanta repercussâo nos paises da Europa ocidental, de onde se originam, historicamente falando. Os motivos da atitude dos EUA sâo mùltiplos, e nâo cabe aqui retomâ-los em detalhe. Alguns deles, no entanto,têm interesse direto para nosso proposito. Superpovoados parque subdesenvolvidos Sem dûvida, pouco se chama a atençâo para o lato de que,salvo exceçâo, os paises do Terceiro Mundo hoje sâo subpovoados:s6 sâo supeipovoados em relaçclo a seu .st//?desenvolvimento. A densidade (8) MITLER, Mein Kamp]\ p. 439. (9) Aluclimos aqui aos lilulos de um iivro cclebre de P. EMRLICH,Paris, 1972, e da pcsquisa do Ciubc de Roma, 1972. Numerosas publicaçôes alimeniaram os debaies sobre os "limites do crescimento", sem, alias, esclarecê-lo. Limitcmo-nos a recordar algumas obras nâo-conformislas: M. COLE, G. FREEMAN, M..lAHODA c K.'PAVIIT, UAnii-Malthus. Une critique de "Halte à la croissance'\ Pans, Éd.^u Seuil, 1974; Jacques A7TALI c Marc GUILLAUME, L'anti-économique, Paris, PUF, 1974, Alfred SAUVY, L'économie du diable, Paris, Le livre de poche, 1978. Ver tambcm os trabalhos de E. BOSERUP,J.-L. SIMON e J.M. CASAS TORRES. (10) Cf. Élise MARIENSTRAS, Les mythes fondateurs de la nation américaine, Paris, Maspero, 1977. 130 RUMO AO GENOCIDIO INTRA-UTERINO demografica desses pafses geralmente é baixa, mesmo se contam com elevada proporçâo de jovens, e corn alla taxa bruta de natalidade. De resto, nâo é ocioso recordar aqui alguns dados recentes (1986). Para alguns paises, vamos dar a densidade por km^, depois indicaremos a taxa bruta de natalidade, quer dizer, o numéro anual de nascimentos vivos por mil habitantes. Pafses relativaraente pouco industrializados: —86,7 habitantes por km^ e sua taxa bruta de natalidade é de 28 por mil; China — 110,2 e 19 respectivamente; India — 237,6 e 32; Zaïre ■ zyxwvutsrqponmlkjihgfedcba — 13,6 e 45; Peni — 15,4 e 32; Brasil — 16,3 e 29; Venezuela — 19,5 e 30. Pafses industrializados: Fronça — 101,3 e 14; Reino-Unido — 231,4 e 13; Alemanha Fédéral — 244,6 e 10; Bélgico — 319,4 e 12; Holando — 356,1 e \3\Canadâ—2,6e \5\Japâo—326,6e \2\EUA — 25,8 e 16; 12,5 e 19.^^ Assim sendo, atlrma-se: o crescimento demogrâfico dessas populaçôes pobres, superior ao da maioria dos pafses ricos, faz pairar a ameaça da "bomba P" sobre o planeta inteiro. Dessa "bomba" resuk tariam pressées e violências diversas as quais os pafses ricos s6 poderiam fazer trente renunciando ao padrâo de vida de que atualmente deslrutam.^^ Até hoje, os programas que visam a prévenir esse "cataclisma" demogrâtïco têm sido baseados nos diverses métodos de prevençâo (11) Seguncio o Rapport.sur le développement dans le monde 19SS, Washington D.C., Banco Munclial, 1988; verasiabelas I, pp. 256ss. e 28, pp. 310ss. Oscladossâo rclalivos a 1986. (12) Recorciemos o cstudo de P. PRADERVAND, "Les pays nantis et la limitation des naissances dans le Tiers-Monde", in Développement et Civilisations^ n.° 39-40 (março-junho de 1970), pp. 4-40 (bibliografia importante). Acrescentar, do mesmo aulor: Une Afrique en marche. La révolution silencieuse des paysans africains, Paris, Pion, 19cS9. O pape! do IPPF nesse campo é anaiisado por Colvillc OEVERELL, "The International Planned Parenthood Fédération. Its rôle in developing counlries", in Demop-apliy, n." 2 ( 1968), pp. 574-577. A Dra. WEILL-FIATLÉ fornecc algumas precisôes sobre a inspiraçao norte-americana e anglo-saxônica do "planejamcnto familiar' cmL^avortement de Papa, em especial nas pp. 21-53; résumé noiadamenie as extravagantes propostas do Dr. Berelson para limitar a natalidade no (terceiro) mundo, pp. 31-41. O ABORTO: ASPECTOS POLÏTICOS dos nascimentos e na esterilizaçâo.^-^ Ora, na opiniâo de seus promotores, essas campanhas estâo longe de ter dado os resultados prévistos; a experiência, mesmo a chinesa, mostra, ademais, como sâo aieatôrias todas as politicas demograficas.^"^ Por conseguinte, é pre- ciso sensibiiizar a opiniâo pûblica mundial, induzir nela o "medo demogrâfico".^^ No Terceiro Mundo,sera expiicado que uma elevada taxa de crescimento demogrâfico é um obstâculo decisivo à decolagem econômica.^^' O economista norte-americano Julian L. Simon dedicou um l (13) Population Reports publicou principalmente, a partir de 1981, um dossiê dedicado a "La stérilisation volontaire: tendances et problèmes juridiques". Apôs o exame da "situaçâo atual"(E 6), séio abordadas as "modalidades da reforma do direito"(E 16) e as "questôes jun'dicas"(E 17). Trata-se de uma publicaçâo bilingue do Population Information Program da Johns Hopkins University, Baltimore(ed.em inglês: março-abril de 1981; ed.em francês: maio de 1982; série E, n.° 6). Este dossiê explica bem por que e como procéder para modificar as legislaçôes. Cf. também,aqui, p. 83s. ; i -i ; (14) Balanço e perspectivas em J. VERRIÈRE, Les politiques de population. Consultar,igualmente,K.Y.LARRY(éd.),The Population C.risis. Implications and Plans for Action, Bloomington, Indiana University . Press, 1970; E.D. DRIVER, World Population Policies: an Annotated Bibliography, Lexington Books, 1972 (instrumento de trabalho indispensavel). Estaclo da questcio de autoria de B. BERELSON (éd.). Population Policy in Developed Countries, Nova lorque,A Population Council Book, 1974.Panorama da situaçâo mundial elaborado por Dorothy NORTMAN e Ellen HOFSTATTER,"Population and family planning programs. A Factbook", n.° 2, in Reports on PopulationfFamily ^:î il Planning, Nova lorque. Population Council, oulubro de 1976. (15) A limitaçâo da natalidade, enfocada em suas relaçôes com as politicas de desenvolvimento, é estudada por P. PRADERVAND, "La peur démographique", in Économie et Humanisme, n.*^ 215 (janeiro-fevereiro de 1974), pp. 61-71. Este estudo, bem documentado, suscita o desejo de ver atualizada e publicada na intégra a tese de doutorado do autor: Les politiques de popidation en Afi'iqiiefrancophone de l'Ouest: obstacles et possibilités,2vol., Université de Paris (École Pratique des Hautes Études), 1972-73. Sobre a Âfrica, mas em outro espirito, ver S.H. OMINDE et al,L'accroissement de la population et l'avenir économique de l'Afrique — estudos patrocinados pelo Population Council(Nova lorque),Paris, 1974. Ainda sobre a frica,ver o artigo de Jacques VALLIN,"Démographie. Maîtriser la croissance",\n Jeune Afrique, n.'^ 1457(7 de dezembro de 1988), p. 571. (16) J.BOURGEOIS-PICHAT e S.A.TALÈB,"Un taux d'accroissement nul pour les pays en voie de développement en l'an 2000. Rêve ou réalité?"\nPopulation, n.° 5(1970), pp. 957-974. 132 RUMO AO GENOCIDIO ÏNTRA-UTERINO livro para provar o contrârio.^^ Em lugar de utilizar a taxa de crescimento global da populaçâo de um pais, esta antes interessado nas cifras de densidade demografica do pais. Demonstra, assim, que os paises corn elevada densidade demografica muitas vezes têm taxas de crescimento econômico elevadas. Hong-Kong é um notâvel exemple de superpopulaçâo benéfica à expansâo econômica. Aos paises ricos tenta-se explicar que, se quiserem manter e melhorar seu nivel de vida, devem estabilizar voluntariamente sua populaçâo,dando assim o exemple aos paises pobres. Contudo, nâo basta uma campanha de informaçâo. Como os métodos empregados até agora nâo levaram abs objetivos desejados, é précisé obter a aceitaçâo de métodos aos quais, até hâ pouco tempo, tinha-se aversâo. Entre eles, o aborto ocupa o primeiro lugar. De fato, parece que "nenhum pais desenvolvido reduziu sua taxa de natalidade sem recorrer em grande medida ao aborto,seja légal, seja ilegal; e que nenhum pais nâo desenvolvido atingirâ o objetivo visado em matéria de contrôle da fertilidade sem recorrer maciçamente ao aborto — seja légal, seja ilegal".^^ (17) Cf. Julian L. SIMON, The Ulfimate Ressource, Oxford, Martin Robertson, 1981. Citaremos a traduçâo francesa: L'homme, noti'e dernière chanceCroissance démographique, ressources naturelles et niveau de vie, Paris, PUF, 1985. (18) M. POTTS, "Problems and strategy", in M. POTTS e C. WOOD, New concepts..., pp. llss. Determinados autores, é benn verdade, atenuam a importância da relaçâo entre aborto e queda da taxa de fecundidade. Entretanto,a citaçâo do Dr. Potts mostra bem que o aborto ocupa um lugar de destaque (por assim dizer) entre as praticas preconizadas pelos movimentos antinatalistas, o que implica o reconhecimento de uma relaçâo direta entre aborto e queda da taxa de fecundidade. Esse vfnculo, observado pelo Dr.Potts, é afirmado com clareza pela maioria dos especialistas. Cf., por exempto, Emily CAMPBELL MOORE-CAVAR, International inventory..., p. 640: "Conceptually, abortion and contraception must be considered as complementary elements employed in a total system of birth planning and fertility control". E ela précisa:"Abortion is often described as the most widely practiced form of birth control and possibly also the means by which the greatest numbers of births have been averted... Induced abortion played a prominent rôle in the déclinés in fertility experienced in the developed world. Changes in abortion laws (...) have been followed in some cases by dramatic déclinés in fertility" (p. 641). Por sua vez, o professer SOUTOUL pergunta: "Em que patamar é situado o mvel de inteligência do francês média para ousar O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS A idéia apresentada em Dacca em 1969,segundo a quai o aborto é um meio de contracepçâo,^^ é precisadaem Nova Déli em 1972 no Congresso do Planning International. Desde entâo, a idéia foi divulgada no mundo inteiro. A apresentaçâo do aborto como meio de contracepçâo permite até que se popularize o seguinte paralogismo: "Como vocês têm direito à contracepçâo, têm direito ao aborto, que portante deve ser liberalizado, pois é um meio contraceptivo." Assim, a legislaçâo que liberaliza o aborto comporta uma notâvel homenagem à ignorância cientffica, uma vez que nâo évita a concepçâo, mas élimina seu produto. Logo, sejam quais forem os problemas marais relatives à con.tracepçâo, é preciso reconhecer que, numa época que dispôe de meios eficazes para praticar a paternidade/maternidade responsâvel, apresentar o aborto como meio de controlar a natalidade é demonstrar espirito rétrogradé. O papel dos laboratôrios e das fundaçôes No entender dos paises ricos — nâo s6 dos HUA,mas também, por exemple, da França —,é considerâvel o que esta em jogo, em nivel internacional, dos pontes de vista econômico e politico, ao ser aplicada uma polftica malthusiana sustentada. Tal posiçâo é confir- mada,em primeiro lugar, pelo esforço sem precedentes realizado por grandes empresas farmacêuticas em prol das pesquisas sobre a con tracepçâo e o aborto.^^ A propaganda malthusiana acena com polpudos lucres, aos quais certes laboràtôrios nâo sâo insensiveis. Assim, para a elaboraçao do que é eufemisticamente chamade de "contra cepçâo pos-ovariana" (^zc), "restauraçâo das regras" ou "extraçao menstrual" {resic) — leia-se aborto^' —,os laboratôrios Upjohn^^ garantir-lhe, com uma certeza que faz temer a inconsciência ou a ma fé, que centenas de milhares de embriôes atirados aos incineradores dos hospitais ou das cîfnicas nâo podem fazer falta à manutençâo da taxa de natalidade?", in Conséquences d'une loi, p. 215 (toda esta passagem é grifada pelo autor); ver também pp. 214-229. (19) L.'WEÏLL-HALLÉ,L'ovorlemeni de papa, pp. 21-25; cf., aqui, p. 81. (20) Entre os laboratôrios que desenvolveram ampiamente esse tipo de produto estâo: Searle, Ortho(Johnson & Johnson), Parke-Davis, Syntex, Wyeth. (21) A literatura prô-aborto é rica em eufemismos, pen'frases, metâforas e outras RUMO AO GENOCIDIO INTRA-UTERINO fizeram, ha muitos anos ja, investimentos que s6 se comparam aos efetuados, com apoio dos governôs da França e da Alemanha, para a criaçâo do funesto RU 486 pelas tirmas Roussel-Uclaf-Hoechst.^^ Um avanço decisivo na pesquisa garantiu-lhes uma pronta amortizaçâo do capital, além de lucros substanciais. Mas as legislaçôes permissivas ainda precisam se generalizar. Porém, o interesse que despertam as pesquisas e campanhas antinatalistas vai muito além dos laboratôrios com fins comerciais: importantes grupos financeiros dos EUA dâodhes apoio direto ou indireto. A Fundaçâo Ford, a Fundaçâo Rockefeller, para citar sô estas duas, apôiam generosamente organismes que se dedicam a divulgar a contracepçâo em todas as suas formas.^"^ Naturalmente, é impossivel enumerar todos os organismes que financiam as campanhas antinatalistas no mundo.^^ Contudo, Jac-, antffrases. A primeira citacla é do Dr. Karman. Também se fala de "intcrcepçao", "induçâo das regras", "mini-sucçâo", "inierrupçâo de um projeto de vida", etc. (22) A firma Upjohn leve o cuidado de justificar seu programa de pesquisas sobre 0 assunto num panfleto destinado a seus empregados. O tftulo do panfleto era: Médical Abortion: Upjohn Présents View ta Employers. Abortion Stand Aired. Scientific Raie Makes Upjohn Non-Politicai Lê-se, notadamente, no panfleto: 'The Upjohn Company hopes that timely use of prostaglandins — before a technically-defined pregnancy lias occiifred —will virtually eliminate and need to consider an abortion"(grito no.sso). Em suma, enquanto a gravidez nâo for diagnosticada, nâo se poderia falar de aborto, que se torna supértluo com o uso, a tempo,das prostaglandinas vendidas pela firma! (23) Jâ foram publicados numerosos artigos sobre o RU 486. Ver, por exemplo, o do Dr. Jean-Yves NAU,"Avorter à domicile", in Le Monde, 21 de junho de 1989. A confusâo moral, e talvez os compromisses politico-econômicos de determinados circulos cientiTicos, aparecem na concessâo, em 27 de setembro de 1989, do prêmio Albert Lasker ao inventor do RU 486. Cf. Le Monde de 28 de setembro de 1989. (24) Apontamos a influência desses grupos in tempore non suspecta em nosso estudo L'avortemenf,problème politique, Universidade de Louvain (Departamento de Ciência Politica), duas tiragens, 1974 e 1975. A pesquisa foi realizada pelo Dr. Emmanuel TREMBLAY,em "L'affaire Rockefeller". L'Europe occidentale en danger, s.!., s.d. (Rueil-Malmaison, 1978), estudo publicado em 1977. Recentemente, tomamos conhecimento do folheto de Randy ENGEL, A Pro-Life Reporton Population Growth and theAmerican Future,s.!.,s.d.,(1972); fornece grande numéro de informaçôes que confirmam e ilustram nossas palavras. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS queline Kasun esta cm condiçôes de mencionar alguns deles: The Alan Guttmacher Institute; The American Association for the Advancement ofScience;The American Home Economies Association; The American Humanist Association; The American Public Health Association; The Association for Voluntary Sterilization; Carolina Population Center; Center for Development and Population Activities (Great Britain); Center for Population and Family Health; The Center for Population Options; Church World Service; Family Health International; Family Planning International Assistance; Ford Foundation;International Fédération for Family Health;Inter national Projects Assistance Services; John Hopkins Program for International Education in Gynecology and Obstetrics; National Abortion Rights Action League; National Academy of Sciences; National Alliance for Optional Parenthood; National Family Plan ning and Reproductive Health Association; The Pathfinder Fund; Planned Parenthood; Planned Parenthood Fédération of America; International Planned Parenthood Fédération (IPPF); The Popula :i:! ! tion Council; Population Crisis Committee and Draper Fund;Popu lation Information Program; The Population Institute/Population Action Council; Population Reference Bureau; Population Resour ce Center; Population Service International; Rocketeller Founda tion; The Sierra Club; Trilatéral Commission; Worldwatch Institute; Zéro Population Growth.^^ (25) O Population Crisis Committee [Washington] publicou em seu boletim Population, n ° 16(dezembro de 1985), uma lista de Privale Organizations in the Population Field, onde diz que "population organizations worldwide now number literaly in the hundreds". Evidentemente, essas organizaçôes diferenciam-se umas das outras por motivaçôes, meios e fins que nâo sâo idênticos. _ ^ ^ (26) Segundo Jacqueline KASUN,La guerra contra lapoblaciôn,(versâo traduzida e condensada do livro The War Against Population^, Vida Humana Internacional, 105 SW 8 St., suite 210, Miami(Fia 33144), p. 24. (27) A respeito do IPPF,ver M.POTTS e C. WOOD,New concepts..., onde serao encontradas diversas informaçôes que dispensam çomentârios. O IPPF reûne organizaçôes oriundas de cerca de 100 paises. Vârios movimentos mencionados aqui sâo analisados pelo Dr.e Sra. WILLKE em Le livre rouge..., p. 183; outras indicaçôes a respeito sâo dadas pelo Dr. e Sra. J.C. \^YL\JŒ, Abortion. Questions and Answers, especialmente nas pp. 291-300. Ainda é preciso acrescentar: Asia Foundation, Christian Aid, Commonwealth Fund, Josiah 136 RUMO AO GENOCIDIO INTRA-UTERINO Entre estes organismes, destacamos o Population Council,fundado por John D.Rockefeller III em 1952,e conhecido por sua açâo em grande numéro de paises.^ A origeiti dos recursos A origem dos recursos destinados ao contrôle da populaçâo foi estudada por Julian L.Simon.Pincemos alguns exemples que cobrem cerca de lOanos,de 1965 a 1976.^^ As fontes primârias que alimentam os fundos internacionais de assistência à populaçâo apresentavam-se da seguinte maneira,em milhares de dolares: Bélgica: 2.388; Canada: 33.846; Alemanha Fédéral: 23.512; Holanda: 33.390; Suécia: 134.491; Reine Unido:25.172; EUA:867.534. A ajuda governamental total elevava-se a 1.249.598; a Fundaçâo Ford participava com 177.757; a Rockefeller Foundation, com 68.667. Somando-se ajuda governamental e privada chegava-se a US$1.496.022.000. Durante o période considerado, as verbas alocadas a organis mes privados elevavam-se,sempre em milhares de dolares, a 78.958 para o IPPF; 31.628 para o Population Council. As universidades haviam recebido 111.941; o Fundo das Naçôes Unidas para as Ativi- dades Populacionais, 117.040."^^ Financeira,cientifica e politicamente, bem como em matéria de Macy Foundation (segundo P.PRADERVAND,Les pays nantis...^ p. 33). (28) O Population Council dispôe de tantos meios para a pesquisa e a açâo que ocupa, de fato, em nivel mundial, um lugar excepcionai no estudo dos problemas populacionais. A instituiçâo esta em condiçôes de intimidar nâo apenas os centros de pesquisas demogrâficas, mas também os governos e organizaçôes internacionais. Sobre seu fundador,ver Frank W.NOTESTEIN, "In memoriam John D. Rockefeller 3rd: A personal appréciation", in Population and Development Review^ n.° 3-4(setembro de 1978), pp. 501-508. O prôprio John D. ROCKEFELLER expôs suas idéias centrais com muita limpidez em conferência pronunciada em agosto de 1974 em Bucareste, a convite da International Union for the Scientific Study of Population. O texto dessa conferência foi publicado em Population and Development Review^ n.° 3-4, pp.509-516,com o titulo de "Population growth: the rôle of the developed World". (29) Cf. Julian L.SIMON,L'homme, notre dernière chance, tabela 21-1, p. 317. (30) Cf. J.L. SIMON,L'homme, notre dernière chance, tabela 21-2, p. 321. 137 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS mfdia, essas instituiçôes rccebem um apoio muito importante dos EUA. É o caso notadamente do IPPF, ao quai sao associados a Fédération belge pour le planning familial e o Mouvement français de planning familial. Apoiadas por fundaçôes privadas, essas instituiçôes muitas vezes também recebem apoio de organismes governamentais, como o National Institute of Health dos EUA ou a USAJD (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional).^^ Os dadôs mais recentes, coletados por Harry Cross, que nos foram comunicados por Julian L. Simon, nâo sâo menos surpreen- dentes. A Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) dispos, para seu programa de politica populacional, no periodo 1984-1988, das verbas que discriminâmes a seguir, expressas em milhares de dolares. Total:55.264(quer dizer, 11.053 por ano), o que équivale a 100%. A distribuiçâo foi feita da seguinte maneira: coleta de dados: 20.509 (4.102), ou seja, 37%; pesquisa sobre a fertilidade: 9.399 (1.880), ou seja, 17%; apoio à politica: 25.356 (5.071), ou seja, 46%?^ Assim como decidiram, com razâo, abrir inquéritos para apurar casos estrondosos de suborne, as autoridades de determinados pafses talvez também fizessem muito bem em per- guntar-se quai é a origem do dinheiro de que dispôem as organizaçôes antinatalistas favorâveis ao aborto. O aborto: um método de limitaçâo dos nascimentos S6 a heterogeneidade das motivaçôes invocadas pelas as(31) Segundo P. PRADERVAND {Lea pays naniis..., p. 33), de todas essas organizaçôes,"a AID norte-americana [...| fica com a parte do leâo e gasta com a limitaçâo dos nascimentos tanto quanto todas as outras organizaçôes juntas (75 milliôes de dolares no ano contâbil de 1969-70)". Segundo J.-L. SIMON,a USAID gastOLi 867 milhôes de dolares em 10 anos (1965-1976). Alocou, por exemplo, 12 milhôes de dolares ao IPPF em 1974, e cerca de 79 milhôes de dolares em 10 anos(1965-1976);ao Pathfinder Found,destinou ao redor de 31 milhôes de dolares no mesmo periodo. CS.L'homme, notre dernière chance, pp. 315-328(ver também a figura 21-2, p. 323, bem como a tabeia 21-1, p. 317). (32) Grifo nosso. O Sr. Harry Cross é membre da Policy Development Division, Office of Population, USAID. RUMO AO GENOCIDIO INTRA-UTERINO sociaçôes antinatalistas e pro-aborto ja é inquiétante e reveladora. Tais motivaçôes variam conforme os pûblicos e, em funçâo das circunstâncias de tempo e lugar, sâo apresentadas de forma seja erudita, seja popular. Ora invocam-se consideraçôes de eugenia; ora alega-se a libertaçâo da mulher; ora levantam-se argumentes econômicos e sociais. É obvio que nos paises ricos o primeiro e principal argumente a ser convocado, por motivos taticos, foi o tema neomalthusiano classico da libertaçâo da mulher com seus corolârios: hedonismo individualista, maternidade-carga etc. Mas, a partir dos anos 60, as organizaçôes antinatalistas desenvolvem fortemente argumentes econômicos e sociais. Ao fazê-lo, chamam a atençâo dos orgaos governamentais ou internacionais, que passam a ouvi-las, preocupados com a "explosâo demogrâfica mundial". Nota-se aqui a inHuência persistente das idéias do proprio Malthus, particularmente visiveis nas agências da ONU:^^ a Comissâo de Populaçâo, o Conselho Econômico e Social, a Organizaçâo Internacional do Trabalho, a UNESCO, o Banco Internacional para a Reconstruçâo e o Desenvolvimento, o UNICEF, bem como a Organizaçâo Mundial da Saùde.^^ Por sua vez, o Relaiôno do Banco Mundial sobre o desenvolvi- mento no mundo (1984) expôe claramente a atividade antinatalista desse organisme no Terceiro Mundo.-^'' Esse Rdalôrio acena com o (33) Cf. B. SUITTERS,"The International family planning movement...", in M. POTTS e G. New concepts..., pp. 31ss. Ver também R.SYMONDS e M. CARDER, The Unifed Nations and the Population Question, Londres, Sussex University Press, 1973. (34) Sobre o UNICEF, ver, por exemplo, o que dizia em 19S4 seu Diretor Gérai, James P. GRANT em La situation des enfants dans le monde. 19S4, Nova lorque e Genebra, ONU, 1984; esse relatôrio também foi publicado, com alguns complementos, por Aubier-Montaigne, Paris, 1984. (35) Le onzième rapport annuel (11.'^ Relatôrio Anual) da OMS expôe detalhadamente o Programme spécial de recherche, de développement et de formation à la recherche en Reproduction humaine. Foi publicado em Genebra em 1982. (36) Esse Rapport foi publicado pelo Banco Mundial, Washington D.C., 1984. Cf. Claire BRISSET, La santé dans le tiers monde, Paris, La découverte et le Monde, 1984:"No transcurso dos ùllimos dois anos, o Banco Mundial decidiu notadamente participar de açôes de .saude comunitaria — inclusive no campo O ABORTO: ASPECTOS POLÏTICOS espectro de uma sutil chantagem financeira para com os pafses em desenvolvimento,obrigados a implementar politicas antinatalistas. O Relatôfio explica como as crianças sâo um peso "inadmissivel" para a sociedade e como é preciso reduzir a fecundidade por todos os meios. Estes meios sâo expostos nas paginas 122-146 do Relotôiio e estâo ao alcance do Estado, das familias e da mulher para frear o aumento populacional. Entre os fatores que determinam a reduçào da fecundidade, a contracepçâo figura, evidentemente, em lugar de destaque, mas a ela é associada uma grande proporçâo de abortos, agora mais fréquentes (p. 130). A partir dai o aborto é classificado entre os métodos de limita- çâo da fecundidade."^^ A esterilizaçâo é incentivada e subvencionada; nâo esquecem de incilar as pessoas a atrasar a idade do casamento. "Os governos que quiserem reduzir a fecundidade podem completar os programas de planejamento familiar e os programas sociais com medidas de incitaçâo e dissuasâo, pecuniârias e outras, que incentivem os pais a terem menos filhos", diz o Relatôno (p. 140). Esses sistemas de incitaçâo e dissuasâo existiriam em mais de 30 paises do Terceiro Mundo — cifra certamente muito inferior à realidade.Tudo tende a desencorajar a procriaçâo: penalidades incorporadas ao régime dos beneficios sociais ou ao sistema fiscal, eliminaçâo da licença-maternidade na terceira gravidez, com aumento das tarifas para o parto, prioridade para os filhos de famflia pouco numerosa no acesso à escola, atribuiçâo de habitaçâo para tamflias de babca renda independentemente do numéro de filhos, para citar apenas alguns exemplos. A China respondeu muito bem a essa politica antinatalista preconizada pelos grandes.O pais recebeu até uma medalha da OMS durante a Conferência Mundial da Populaçâo, em 1984, por sua do planejamento familiar — nos dois lêmes, no Paquistâo, na Indonésia, nas Comores, no Malawi, no Sénégal e no Peru"(p. 177). (37) Ver pp. 81 e 127. O United Nations Fund for Population Activities publicou em Nova lorque, em 1979,o esiudo Stin^ey oflaws onfertility control, dividido em duas partes: uma dedicada à esterilizaçâo(pp. IXss.)e outra à "termination of pregnancy". O FNUAP de fato considéra o aborto um método de contrôle do crescimento demogrâfico. RUMO AO GENOCI'DIO INTRA-UTERINO eficâcia em matéria de reduçâo dos nascimentos! A publicaçâo L'Express fez uma reportagem hâ pouco tempo sobre a Sra. Chen Muha, membro suplente do Comité Polftico de Pequim,-^^ onde essa senhora reconhece que, desde 1980, é desenvolvida na China uma campanha antinatalista autoritaria. Ela précisa que a "poUtica de um filhopor casol é incentivada pelo Ocidente"(grito nosso). Em 1948, o présidente Reagan cortaria todas as verbas alocadas pelo USAID ao IPPF e ao Pathfinder Fund, a nâo ser que estas organizaçôes deixassem por completo de promover o aborto em outros pafses."Em 1985, o Congresso dos EUA, nas mesmas condiçôes, cortava igualmente as verbas destinadas ao Fundo das Naçôes Unidas para as Atividades Popuiacionais (UNFPA),em virtude do apoio dado por essa agência da ONU ao programa de abortos e de genocidio na China. Sofrendo pressées do exterior, mas também agindo por vontade propria, os dirigentes de Pequim querem atingir o crescimento demografico zéro no ano 2.000 — ou seja, uma populaçâo de 1,2 bilhâo nessa data. Equivale.a dizer que o aborto é praticado em série, pondo termo a 80% das gestaçôes em determinadas regiôes, como em Cantâo, onde a intervençâo é realizada, em um terço dos casos, depois do sexto mes. A eugenia também é um aspecto importante do planejamento dos nascimentos, pois a debilidade mental laz a Naçâo perder tempo!"^^ (38) Ver L'Express de 10 de agosto de 1984. Para o Vietnâ, o quadro também é sombrio. Ver LAN-THANH-LIEM,"La planification familiale au Viêtnam", in Population, n.*^ 2(março-abril de 1987), pp. 321-336. (39) C7f. Dr. e J.C. WLKE,Abortion. Questions andAnswers, pp. 299ss. (40) Sobre o caso da China, ver a obra de referência de I Chuan WII-BEYENS, PoUtics in tfie People's Republic of China. The Case of Fertility ControL 1949-1986, tese de doutorado em Ciências Polilicas, 764 p., Universidade Catôlica de Louvain, Louvain-la-Neuve, 1987; a mesma especialista publicou "Socioeconomic discrepancies and fertility conlrol in People's Republic of China", in Revue des Pays de VEst, Bruxelas, t. 2, 1987, p. 1-51. Ver também Lucien BIANCO e Hua CHANG-MING,"La population chinoise face à la « règle de l'enfant unique", \r\ Actes de la recherche en sciences sociales, n.° 78 Qunho de 1989), pp. 31-40. XV A smdrome de Panurgo Pobres carneiros! Pobres vendedores de carneiros! Rabelais explica-nos por que no oitavo capitule do seu livro quarto doPantagiTiei Para que Dindenault precisava vender um carneiro ao patife do Panurgo,capaz de tudo,e principalmente de atirar"em pleno mar seu carneiro que gritava e balia"? Ora, eis o que aconteceu:"Todos os outros carneiros, gritando e balindo na mesma entonaçâo, começaram a se jogar e pular ao mar em fila. A multidâo disputava para ver quem era o primeiro a saltar atrâs do companheiro. Impossivel detê-los,como sabeis que é natural no carneiro,sempre seguir,aonde quer que va, aquele que esta em primeiro." Alguns dos mais sagazes psicôlogos contemporâneos estudaram esse comportamento gregârio no homem e o chamaram de"smdrome de Panurgo", Esta expressâo désigna aqui um conjunto de atitudes e comportamentos em que as pessoas gritam e balem,como o primeiro que baliu, ao quai seguem sempre, aonde quer que va... Uma das manifestaçôes mais comovedoras da smdrome de Panurgo é a precipitaçâo com que os carneiros hoje estâo colados aos calcanhares dos Sacripantas de sempre. Vamos estudar essa famosa smdrome examinando, para nos surpreender,a pressa com que setores inteiros da sociedade européia colaram-se aos calcanhares dos promotores das campanhas interna- cionais pela liberalizaçâo do aborto.^ (1) Muitas vezes estudaclas do ponto de visia ùo marketing,as lécnicas de persuasâo sâo igualmente analisadas na perspectiva polfiica. Ver, além das indicaçôes citadas na p. 79, n. 1, James A.C. BROWN,Techniques ofPersuasion. From Fropaganda ta Brainwashing, Londres, Penguin Books, 1963, Jean-Noël KAPFERER,Les chemins de la persuasion. Le mode d'influence des médias et de la publicité sur les comportements, Paris, IJunod, 1984; e Rumeurs. Le plus 143 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS Da imitaçâo à alienaçâo No capitule precedente, vimos que a liberaiizaçâo do aborto era mais que um problema interpessoal, mais que um probiema nacional. É um problema politico, econômico e social de envergadura mundial. No piano das relaçôes entre o Ocidente e o Terceiro Mundo, as conseqùências da liberaiizaçâo do aborto sao incalculâveis. Seja na Âfrica Central, no Oriente Médio, na Amazônia ou no Sudeste Asiâtico, a histôria recente forneceu-nos demasiados exemples célé brés de etnocidio, genocidio e exterminios de todo tipo para que seja possivel aplacar a nossa consciência fingindo ignorâ-los. Gostarfamos que o homem se tivesse tornade incapaz de humilhar, explorar, dominar e matar seu semelhante. Mas os fatos nos impôem a modés;S tia e réalisme.^ «! i! Un } 1 iï Iï:i 1 No auge do poder, e apesar do vigor de sua tradiçâo democrâtica e libéral, os HUA sâo trabalhados por potentes forças âvidas de posse e dominaçâo, aterrorizadas com a idéia de ter de partilhar. Essas forças querem reger o mundo. Entretanto, s6 podem caminhar em direçâo a seu objetivo conquistando a adesao de cûmplices eficazes para suas teses malthusianas e neomalthusianas na Europa ocidental. Alias, com toda facilidade. Assim, a Europa ocidental tornou-se uma peça-chave no tabuleiro de xadrez mundial, conforme é concebido pelas forças inspira- l'izyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA ■ 1t; il n ; ij|i doras da politica mundial norte-americana, que apostam no binômio medo e segiirança demogrâfica, fazendo com que a Europa partilhe essa dupla preocupaçâo. Afinal de contas, a politica antinatalista desenvolvida no piano internacional obedece aos interesses dos mais fortes. ...A partir do momento em que e a força que faz o direito, o efeito troca vieux média du monde, Paris, Éd. du Seuil, 1987; Pierre LENAIN, Lci manipulation politique, Fans, Economica, 1985; Serge MOSCOVICI e Gabriel MUGNY, Fsy'chologie de la conversion. Études sur l'influence inconsciente. Gousset (Friburgo S.), Delval, 1987. ^ xm a ■ (2) A relaçâo entre violência e dominaçâo é investigada em F. WERTHAM,y4 sign for Cain. An Exploration ofHuman Violence, Nova lorque, Warner Paperback Library, 1973 (ver, em particular, o cap. VI: "Thé Malthus Myth", pp. 99-113). 144 yt A SINDROME DE PANURGO de lugar com a causa; qualquer força que suplante a primeira sucede a seu direito. A partir do momento cm que se pode desobedecer impunementc, podc-se desobedecer legitimamente, e como o mais forte sempre lem razâo, trata-se apenas de conseguir ser o mais forte. Logo, séria constrangedor se a Europa ocidental persistisse na cooperaçâo com a maior hécatombe demografica de todos os tempos, Eraprécisa que os EUA autorizassem o aborto para ter credibilidade no exterior. Era précisa que a Inglaterra fosse pioneira em matéria de liberalizaçâo do aborto (lei de 1967) para que seu "exemple"fosse mais faciimente seguido em seu antigo Império, notadamente na India (lei de 1971), Era précisa que a França a seguisse de perto para convencer, a longo prazo, as populaçôes da Africa francofona, ou mesmo da América Latina ou do Oriente Médio, a seguir seu exem ple. Era précisa que quase todos os outres paises da Comunidade Européia, dominados pela sindrome de Panurgo, mergulhassem no abismo da liberalizaçâo do infanticfdio antecipado. Deste ponte de vista, a liberalizaçâo do aborto c o prcço que os paises desenvolvidos pagam, dando um exemple monstruoso, para conter o crescimento populacional do Terceiro Mundo. Deve-se, portante, csperar que, a exemple do que acontece nos Estados Unidos, a Europa nâo tarde cm reconsiderar sua legislaçâo em materia de aborto.^ Para ela é uma questâo de justiça para com as crianças nâo-nascidas; uma questâo de credibilidade diante do Terceiro Mundo. Da mesma maneira, e apesar das pressées que sofrem, muitos paises do Terceiro Mundo percebem claramente as razôcs profundas pelas quais Ihes é "recomendado" o contrôle dos nascimentos.'^ ROUSSEAU, Le Confrai social, Ll, cap. 3, l'aris, Aubicr-Moniaigne, 1943, p. 67. Esta ciUn;ao csclarcce a ciislinçâo enirc ciescriminar c Uberalizar, que cxaminamos na p. 35 Esia reconsideraçao foi csboçada muiio cedo. Ver B. IIAYLliiR. "Abortion", in vS7^'?7.v. Journal ofWomcn in Culture and Society, l. 5, Nova torque, 1979, pp. Tais rclicencias apareccm notadamenlc em M.V. de ASSIS PACTIEC.O, Neocolonialismo e contrôle da natalidade, Rio de Janeiro, 1968; J.I. HÛBNER GALTT),El mito de la explosion demogrâjica, La autoregulacicm naiural de las pohlaciones, Buenos Aires, i9(i8. UvOnsuliar lambém os irabaihos de P. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS A titulo de exemple, citernes um especialista brasileiro: "O Cengresso [Mundial da Pepulaçâe, Bucareste, agosto de 1974] é viste nâo sem apreensâe por muitos paises membres. Estes temem que ele seja utilizade ceme mais um meio para a limitaçâo da natalidade.Para e geverne brasiieire e para muitas eutras correntes nacienais que refletem a epiniâe pùblica — inclusive correntes oriundas da opesiçâe —,e ritme atual de crescimento da pepulaçâe, em vez de nocive, é bénéfice para e desenvolvimente e deve ser analisade junte com outras censideraçêes paralelas. Em termes geepeliticos, se a mera existência de uma pepulaçâe de 200 milhôes de habitantes (que o Brasil deverâ atingir no limiar do século XXI)nâo transferma um pais numa grande potência, nâo existe, em cempensaçâe, grande potência sem pepulaçâe numerosa."^ Uma razâo particular deveria impelir a Eurepa a recensiderar sua posiçâo sobre essas questôes. O envelhecimento da Eurepa ocidental é, de fato, favorâvel aes investimentos a longe praze que leram feitos pelos EU A; nada melher que tratar com um devedor senil e fâcil de manipular.^ ^îljl Mi O proprio passade da Eurepa leva a pensar que,se es preblemas demegrâfices atuais fessem celecados numa perspcctiva histerica, a visâo de future de Terceire Munde séria etimista. Ne decerrer da ii ' î' PRADERVAND,Le.vy?m'.vA2^'//i//.s... c La peur démogi'apltique. Um 1971,a Dra. Man SUYIN, célèbre espccialisia em C'hina, escrevia: "The exploilecl in ihe worlcl are very conscious olihe genocidal policies of racism.Thaï is why in Alrica many of ihe populations are hostile to family planning. They know ihat the population explosion iheory is a racist inventecl myth. They know that they are uncler — not over — populated and thaï their poverty is not becausc of too : i j|| l;^ many people, but that lo be a minoriiy is to be weak"('"Race relations and the ThircI Word",in Race,n." 13(1971),p.9.ciladocm Robert UHNI-WICK,R.N. BURKI,Bhiku PAJ^UKH (eds.),Knowledge and Beliefin PoUtics, l'Iie Problent ofIdeolopy, Londres,(leorge Allen ^ Unwin, 197^, p. 24). (6) J. C\ BRANDI ALl.^lXO,/!politica demografica do Brasil.('onsideraçôessobre sua natiu-eza. implicaçôes e conseqiiências, Brasilia, Fundaçfio Universidade de Brasilia, 1973, p. 30. Submetida a fortes pressôes externas, a politica demografica brasileira tornou-se antinatalista a partir de 1973. Abordamos este problema em Dérive loialifaire du libéralisme. (7) Nem todos os demografos oeidentais têm a lucidez e a independência de cspi'rito de Alfred SAUVY ao abordar esses problemas. Ver notadamentc CoCa et valeur de la vie humaine, ou o artigo contundente sobre "I.e seul ennemi: la vieillesse", in Nouvel Observateiw, n.'' 592( L5-21 de março de 1976), p. 35. 146 primeira mctade do scculo XVIII, a França era o pai's mais povoado da Europa. Determinados historiadores vêem ai uma das principais causas do Ilorescimento da agricultura, das manufaturas e da economia, que levaria as relbrmas iniciadas em 1789; sua tese loi contlrmada e precisada pelos trabalhos de Simon Kuznets. Esse economista provou que ao contrario do que afirmava Malthus, o crescimenlo demogratico acarreta aumento de riquezas.^ Da mesma maneira, Julian L. Simon, economista norte-ameri- cano ja citado,^ explica por que as teses de Malthus s6 podiam ser talsas e mostra, ao contrario, os efeilos bénéfices a longo prazo do crescimento demogratico sobre nossos recursos e nosso modo de vida, tanto nos paises desenvolvidos como nos chamados em vias de desenvolvimcnto. "A situaçâo alimenlar por habitante mclhorou durante as très décadas subséquentes à Segunda Guerra Mundial, ûnico penbdo para o quai dispomos de dados confiaveis. Também sabemos que a treqùência das épocas de fome diminuiu progressivamentc, ac:) menos durante o ûltimo século"(p. 11). Também nâo se deve ter medo de que o estoque de terras agricoias se esgote,como temia Malthus:"Ao contrario, a superficie agrfcola aumentou consideravelmentc, continua aumentando, e tudo leva a crer que assim prosseguira se [or necessario"(p. 12). Do mesmo modo,"os recursos naturais tornar-se-âo cada vez menos raros, menos caros, e representarâo uma proporçâo mais reduzida de nossas despesas no futuro" (p. 12). Além disto, exclama o autor,"quanto maisgente houver, mais mentes havera para descobrir novas jazidas e aumentar a produtiviVcr, entre scus numerosos trabalhos, "Population, revenu cl capital", in Bulletin international des Sciences sociales, 1954, pp. 181-188; "UnclerclevelopecI Counirics anci the Pre-industrial Phases in the AdvancecI C'OLinirics. An Attempt at Comparison (1954)", cm A. AGA1"<WALA e F. SINGH, "l'he Economies of Underdevelopment, Londres, Oxford University Prcss, 1958, pp. 153 ss.; cf. Simon KUZNEl'S,FV<9Aïr)/77/f Growth of Nations, I-Iarvard University Prcss, C'ambridge (Mass.), 1971; Croissance et structures économiques, Paris, Qilmann-Lévy, 1972. Consultar também P. SINGER, Dinâmica popu/acional e Desenvoivunento. O pape! do crescimento populacional no desenvolvimento econômico SâoPaulo, C'EBRAP, 1971: ver igLialmente um dossiê de divulgaçâo Garlo M. GÎPOLL.A, L'explosion démographique, Paris, Larfont, 1975. Cf. J.-L. SIMON.L'homme, notre dernière chance. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS dade!"(p. 242). Assim também,''as crianças adicionais aluam sobre a economia dos pafses menos descnvolvidos Icvando as pessoas a trabalharem e investirem mais, provocando a melhoria da inlra-cstrutura social, notadamente das estradas e da rcde de comunicaçâo" (p. 310). For fim,"uma forte densidade populacional nâo prejudica a saûde nem o bem-eslar psicologico e social"(p. 271), e "o crescimento demografico nâo é responsâvel pela variaçâo do nfvel de poluiçâo"(p. 12). Alias, "a esperança de vida, melhor indice global da poluiçâo, aumentou sensivelmente à medida que a populaçâo mondial cresceu" (p. 13). Uma labela apresentada por Julian L. Simon moslra ainda que a superlTcie média das terras agrfcolas por pessoa ativa no setor rural aumentou em todos os pafses industriali- zados de 1950 a i960.'' Seu livro também apresenta numerosas curvas muito persuasivas sobre as matérias-primas, sem esquecer as fontes de energia. Jâ em 1969, Ester Boserup escrevia no final de seu.estudo:"Uma sociedade primitiva tem mais chances de deslanchar um processo de desenvolvimento econômico se sua populaçâo se encontrar em expansâo demogrâfica do que se estiver estagnada, iiJ|||i il! sp, desde que, é claro, sejam feitos os investimentos necessârios na agricultura. Pode acontecer que esta condiçâo nâo seja satisfeita nas sociedades com populaçâo densa,se a taxa de crescimento Ibr elevaA Sra. Boserup corrobora, lançando mâo da geografia e da vis •' il!! etnografia, as crfticas de F. Wertham as teses de Malthus.''' Da rellexâo desses autores, aos quais poderiamos acrescentar J. Klatzmann'-'' e J.M. Casas Torrcs,'^'entre outros, deduz-se que o crescimento demografico nâo é fatalmente um obstâculo por excelência ao desenvolvimento,e que, portante,os métodos drâsticos que (10) Ibidem , p. 13<S (11) Ibidem, p. 247 (12) Ver, por cxemplo, as figuras do livro de J.L. SIMON,L'homme, noire dernière chance, pp. 43, tS6, 107( O' figura), 109 (1.*' figura) e i 11 (13) Cf. Ester BOSERUP, Évolution agraire et pression démogi-aphic/ue, Paris, Flammarion, 1970, p. 213. Apds esse irabalho, a mesma especialisla punlicou Population and 'J'echnolog}\ 19tSl (14) Cf. p. 144, n. 2.) (15) Cf. p. 84, n.12 (16) Cf. J.M. CA^ASTO\UUii^J\d)laciân y calidad de vida. Madri, RIALP, 1982 148 A SINDROME DE PANURGO se quer impor para conlê-lo devem ser revisLos de maneira radical. Decorre também que o homem tem uma possibilidade, subutilizada, de intemr na natureza — por meio da agronemia, entre outras — e na. sociedade: é o pape! da politica. Por ocasiâo da estada de M. Gorbachev cm Paris, no verâo de 19cS9, um de scus conselheiros, Nikolai Shmelev, rcssaltou dois fatos que dispensam comentarios: na URSS ha 3 milhôes de i'uncionarios que trabalham corn a agricuitura; nos EUA, ha dois milhôcs de agricultores! Uma gestâo melhor da natureza c da sociedade pouparia as massas pobres as medidas desastrosas que Ihes sâo impostas pelos ricos e nâo resolvem nenhum problema de fundo.^^ Arinai de contas, a atual campanha mundial pela liberalizaçâo do aborto coioca-nos diante de uma gigantesca mistificaçâo. De fato, os bencTiciarios de uma campanha deste lipo — se fosse bem-sucedida — seriam, a médio prazo,os ricos de nossaépoca,e nâo asnaçôes do Terceiro Mundo. Entretanto, a Europa ocidental se estaria iludindo se pensasse que vai tirar algum bcnelïcio, a longo prazo, do concLirso preslado à campanha. As recomendaçôes antinatalistas dirigidas aos povos do Terceiro Mundo as vezes têm inclusive algo de cômico, pois estes, cm relaçâo aos pafses ricos, muitas vezes sao subpovoados, consomem menos, desperdiçam menos, poluem menos, comem menos e seus cidadâos têm menor espcrança dévida. O humor aie fica amargo quando se sabe que as subvençôes para o que é chamado — [Veqùentcmente por euiemismo — de planejamento familiar muitissimas vezes saem do orçamento da ajuda sanitâria, mcdica, alimentar, educaliva. Bela hipocrisia essa de ser mesquinho com a ajuda médica, alimentar, educativa etc., enquanto se financia esLerilizaçâo e abortos! Uma variàvel privilegiada? Um debate exaustivo sobre o aborto nao pode tratar esses aspectos do problema por simples preteriçâo. Sem duvida, nâo é possfvel questionar a priori a boa Té, a honestidade de intençôes nem (17) Discutimos csic problema cm La dérive loialiiaire du libéralisme. IWO. O ABORTO; ASPECTOS POLITICOS o respeito pelo sofrimento humano que animam determinados partidarios da liberalizaçao do aborto. Mas nao é menos verdade que causa estremecimento a idéia de que poderiam cair, sem estar clara- mente conscientes, na cilada temiVel da colonizaçâo ideologica das superpotências. Sera que eles avaliam as implicaçôes,o preço e as consequências politicas de suas reivindicaçôes? Sera que tiram todas as liçôes das experiências realizadas ha alguns anos por diversas naçôes, entre as quais a China? Sera que retletiram sobre os motivos que levam os Estados Unidos a reconsiderarem a atitude decidida em 1973 pela Corte Suprema?^^ De qualquer maneira, impôe-se uma tarefa urgente: nos debates sobre o crescimento e o desenvolvimento, é preciso parar de privilegiar a variavel demogralica.''^ Alguns a privilegiam a ponto de oterecer uma explicaçâo monocausal: a ûnica verdadeira causa do subdesenvolvimento séria a taxa de natalidade elevada do Terceiro Mundo! Ora, a variavel demogralica deve ser situada num contexto cuja complexidade séria desonesto ocultar. Séria necessario notada- mente realirmar, com Gaitung, que se existe uma vioicncia da nalu- feza^ existe também uma violência das cslfuturas,e que o homem tem poder sobre ambas.^'l Resta, portante, saber se, cm lugar de instar os demais a nâo procriarem, os ricos deste mundo estariam dispostos a consumir menos, a desperdiçar menos e a partilhar mais. Assim, o problema do aborto evidencia a necessidade de uma socializaçâo bem entendida. Nao a que hipostasia o Estado; tampouco a que restitui a um partido, uma classe ou uma raça privilégies ultrapassados. Mas a que atribui aos poderes pûblicos direitos e dcveres novos, tanto (18) Cf. p. 145, n. 4 (19) É o que faz P. PRAJ9ERVAND, apns Gunnar Myrdal, em La peur démogi-aphique, p. 66. Ver também F. BÉZY, Démographie er sous-développcmcnt. Os zcladores do "medo demogrâfico" fingem ignorar os progresses espetacuiares que podcm ser razoavelmenLe esperados cm matéria de produçâo alimentar (sobreludo de cereais) c de energia (notadamente nuclear) num futuropréximo. Assim,eximem-se umavez mais de pensarnuma açâo positiva em nfvel das decisôes poli'iicas — salvo, é claro, a que consiste em promover seus interesses. (20) Analisamos este problema em La dérive totalitaire du libéralisme, 1990. A SINDROME DE PANURGO cm termes de p^rcvcnçâo como de intei-vençâo, decorrentes, por um lado, da siluaçâo de pcnuria relativa, e, por outre, de desigualdades aberrantes. Liberalizar e aberte sem questienar, ne piano da comunidade humana, es habites de consume, c sem uma pelftica fiscal menes preocupada cem os super-rices e mais atenta aes direitos e necessidadcs de tedes, significa tratar as consequcncias do mal, e nâo suas causas; ccmfundir e respensfivel cem a vftima. E consentir covarde- mente em que scrcs humanes scjam vitimas inocentes de uma socie- dade que se prétende refermar. É rctreceder, em suma, aos piores dcsmandos do cgofsmo libéral. Mais particLilarmente. a situaçâe mundial incita a Europa a praticar uma autocntlca, a dar mestras de mais sinceridade censigo mesma e cem e Terceire Mundo. Na maioria des pai'ses pebres, uma mineria nacienal adett)u es habites de consume e estentaçao do Ocidente. Para manter seu status, essas minc)rias nccessariamente têm de explorai' e reste da populaçae local, muitas vezes com o assentimente de grupos estrangeires."' Entretante, com Ircquencia, é cômede acusar essas minorias e censura-las com aspereza. Ja que etetivamente o estilo de vida curepeu exerce sobre elas uma grande seduçâe, a Europa ocidental incitaria essas minorias a rcpcnsar seus habites se redelinisse seus objetivos fundamentais e se préparasse para acolher o século XXI. Dentro de pouce tempo tais minorias poderiam entao comparar dois modèles de desenvolvimento: um que impele ao hiperconsumo, o outre — mais convincente — que aceita uma certa austeridade (21) Nem uni cscrilor mexicano de rcpuiaçâo mundial como Oclavio PAZ esta imunizado contra a tcntaçâo de cntbcar os problcmas demograficos de seu pais .soti uma ética emprestada clas naçôes dominantes, b o que se perccbe ao 1er ^'Thcmatosy sus trompas''(3 notas sobre demografia}". in El opro fitanirôpico. Historia y Pohdca. J97EJ97S, Mexico. Biblioleca Breve, 1979, pp. 168-180. C:iaire BRISSET, em seu livro La sanlc dans le liers monde, mostrou bem o risco de que o nialtiiusianismo norie-americano scja reiomado por vâriospai'ses do Tercciro Mundo. Apos a Conferência de Bucareste (1974), determinados pai'ses adotaram a nova lese segundo a quai "'o contrôle do crescimento demografico tornou-se uma ferramenta para o desenvolvimento econôniico (p. 59). O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS porque esta aberto à partilha. Em suma,as discussôes sobre o aborto recordam à Europa ocidental duas taretas urgentes e indissociâveis: salvaguardar sua identidade; restaurar sua credibilidade no Terceiro Mundo. XVI A segurança demogrâfica, etapa totalitâria do impérialisme Para entender o que, cm ûltima inslância, esta cm jogo na questâo da liberalizaçâo do aborto, devemos, antes de concluir, esclarecer o debate à luz da evoluçâo mais recente do imperialismo. Nâo se trata. de forma alguma, de criticar as intençôes de quem quer que seja. A logica que vamos analisar pode nâo estar clara na consciência dos que militam pela liberalizaçâo do aborto. Nem por isto é uma logica menos pcrversa, que expôe os que a ela aderem a se tornarem aliados objetivos de uma causa que, em outras circunstâncias, talvez combatam. Assim,vamos mostrar que a vontade de dominar a vida humana, da concepçâo à morte, é a expressâo maior do imperialismo iniegj'al como tloresce hoje. Como veremos,esse imperialismo é;?7e/^7/;(9//7ico, uma vez que procède de uma concepçâo particular do homem. As expressôes polfticas e outras desse imperialismo sao apenas as consequências perceptiveis dessa antropologia. Mais precisamente, seremos levados a discernir a dimensâo totalilâna desse imperialismo. do quai ainda nâo se desdobraram todos os efeitos. Vamos partir da ideologia da segurança nacional para desmon- tar a gênese desse imperialismo que esta nascendo diante de nossos olhos. Pan-americanismo Sabe-se da importância da ideologia da segurança nacional nos ll f O ABORTO; ASPECTOS POLITICOS régimes militarcs latino-americanos.' Essa ideologia articula-se em lorno de uma radicalizaçâo do antagonismo Lesle-Oeste. Entre os dois blocos, a guerra é total. O inimigo esta fora, mas também dentro do bloco ocidcntal, na figura da subversâo. O confronto mobiliza todas as forças das naçôcs:forças militarcs se for précise, mas também lorças poifticas, econômicas, "psicossociais" — quer dizer, todas as lorças ligadas aos meios de comùnicaçâo de massa, ao ensino, à pesquisa. Essa ideoiogia émana de uma ''dite" minoritaria que se arroga a exclusividade de delinir o que é ou nâo compativel com o imperativo da sej^irança da naçâo no contexto dugiienri lotai Tais régimes buscam, portante, uma aparcncia de le^itimidade numa estranha contradiçâti: a "dite" minoritaria no poder definequc a naçao encontra-se em estado de guerra total; mas é nesta dcfiniçâo que se baseia a missao de salvaçâo nacit)nal que ela mesma se arroga. Assim sendo, essa "dite" nâo vacila em identificar Estado e Naçâo, cidadao c pessoa, estratégia e politica, e subordina o desenvolvimento à segLirança. Dessa doutrina decorre também que todos os pafses do mundo ocidental devem formar uma ûnica frente para protéger seus "valores comuns". Esta vertente da doutrina dcve muito aos teoricos da guerra fria; é desenvolvida pelos teoricos latino-americanos, mas pedia uma versâo homologa que dévia emanar da potência-lfder do mundo ocidental. Tal explicitaçâo foi fornecida jâ em 1969 no célébré torlo sobre as Awéricas, de Nelson Rockefdlcr.^ Trata-se da atualizaçao e do desenvolvimento da doutrina Monroe, formulada em 1823, c que desde entâo rege as relaçôes entre os EU A e a América Latina. Ora, para N. Rockcfeller, o desenvolvimento do continente americano deve scr Inlegrado: as economias devem ser complementares; os eslorços politicos, consertados; a inlbrmaçâo deve circulai' Dedicamos varies irahalhos a este prehiema. Ver sobreiucio Desiin du Brésil. La lecfmocrcuic miluaire et son idéologie, Gcmbloux (Hêlgica), Duculot, 1973; Demain, le Brésil?, Paris, I*cl. du C:crf, 1977; "Militarisme et sécurité nationale, l^crspectives brésiliennes et sud-américaines", in Annuaire du liers-Monde. 1978, Paris, 1979, pp. 90-101. Hssas publicaçôes desenvolvem os pontos abordados aqui e contem bibliogralla abundanic es. The Rockcfeller Report on ihe Americas, C'hicago, Quadrangle Books, 1969. A SEGURANÇA DEMOGRÂFICA melhor a todos os mveis; os programas de dcfcsa militar devem ser coordenados. No contexto de uma guerra tolal, a colaboraçâosera total: todos os paises dependentes serâo transformados em satélitcs. Entretanto, os relativamente mais desenvolvidos serâo promovidos à condiçâo de "satélite privilegiado". De qualquer maneira, a coiaboraçâo terâ lugar dentro da dependência. Rumo ao globalismo Desde o [im da guerra de 1939-45, a diplomacia norte-americana tem sido amplamente dominada pelo tema dos "dois blocos", que é anterior à conferência de Yalta. Com os deslocamentos de cnt'ase, esse tema fundamental recebe o rotulo de guerra fria, conlVonto Leste-Oeste, zonas de inllucneia, coexistência paciTica, degelo, distensâo etc. Ora, por ocasiao da crise do petroleo de 1973, certos circulos norte-americanos começam a perceber a importância de outra clivagem: a divisâo Norte-Sul. Bandoeng, em 1955, jâ tinha o aspecto de um manifesto. Pouco a pouco, porém, os CNUCED e as reuniôes de cupula dos nâo-alinhados impôem-se à atençao dos paises industrializados: de Genebra (1964) a Belgrade (1989) loi percorrido um caminho apreciâvel. Durante todo esse tempo, o diâlogo Norte-Sul se organiza, institucionaliza-se; os pai'ses do Terceiro Mundo reivindicam uma Nova Ordem internaclonal. Em livro publicado em 1970, M.Zbigniev Brzezinski jâ chamara a atençâo para o problema.'^ A crise do petroleo de 1973 teve o papel de catalisadora: se os pai'ses produtores de petroleo podem organizar-se e ameaçar os fundamentos mesmos da economia dos paises industrializados, o que acontecerâ se os pafses pobres, porém produ tores de matérias-primas, decidirem coordenar suas açôes e impor condiçëes aos paises ricos? Para conjurar tal perigo, David Rockeleller — tirando, de reste. (3) TraUi-se de Beîween Ages. A/nericn's Rôle in the Tcchnetronic Ero, Harmondsworth, Penguin Books. 1978. Na exposiçân que tâzemos das idéias de M. Brzezinski, acompanhamos muito de pcrlo este livro. Sohre os "dois blocos", cf. aqui pp. 79s O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS partido das teses de M. Brzezinski — Iranspôe para a clivagem Nortc-Sul as recomendaçôcs que seu irmâo antcs aplicava à clivagem Leste-Oeste. Além disso, e sobretudo, ele generaliza ao mundo em seu conjunto uma visâo cujo alcance era provisoriamente limilado, em 1969, ao continente americano como um todo. ✓ E com esse espfrito que, seguindo uma sugestâo explicita de Brzezinski, David Rockefeiier organiza a "Comissâo Trilatéral": EU A, Europa ocidental e Japâo devem entender-se melhor diante do Terceiro Mundo. Este, de fato,, gostaria de organizar-se, e dele dependem os pafses industrializados no que se référé a matérias-pri- mas, energia e mercados."^ Ora, o Terceiro Mundo esta em plena expansâo demogrâjlca. Assim, voltamos a encontrar aqui, adotada pelo mundo da "trilatéral", a idéia de segiirança. Mas a ameaça que paira sobre a segurança é apresentada como podendo provir dos pafses pobres. Também esta présente a idéia de integraçâo: as economias se tornaram interdependentes. Os pafses ricos nâo podem devorar-se uns aos outros; devem reforçar-se; devem presei*var e mesmo acentuar as suas vantagens. As empresas nuillinacionais aparecem aqui como engrenagem essencial do sistema global desujeiçâo, pois garantem uma industrializaçâo que elas mesmas podem limitar. Graças a seus centros metro- politanos de decisâo, possibilitam o contrôle dos custos de mâo-de-obra. Alimentam a chantagem por meio do deslocamento de fabricas a outros pafses, caso considerem exorbitantes as reivindicaçôes dos trabalhadores locais. Organizam a concorrôncia, mas ao mesmo tempo a controlam. De fato, as relaçôes concorrenciais ficam confinadas ao mundo dos trabalhadores, entre os quais a desigualda- !) ! I de de remuneraçâo constitui, em nfvel mundial, um fator de divisâo que é preciso manter para reinar. Em suma, as multinacionais zelam por seus mercados: protegem, quando é o caso, seus oligopolios; I !i ir (4) Em Iranccs, a "Trilalcrar' (bi aprcscnlada notaclamenlc em Le Monde diplomatique. Ver, entre outros, Diana .ICHNSTONE,. "Les puissances économiques qui soutiennent C'arter", n."272(novcmbro de 1976), pp.M, 13vSS.: Jean-Pierre COT,"Un grand dessein conservateur pour l'Amérique", n.*^' 282 (setembro de 1977), pp. 2-3; IMcrre DOMMBRGUES, "L'essor du conservatisme américain", n." 290(maio de 1978), pp. 6-9. 156 A SEGURANÇA DEMOGRÀFICA vigiam e poclem IVcar o descnvolvimcnU") cconômicci das naçôes-satélites. A pesqiùsa cienlifica, ptir sua vcz, dcvera scr intensiL'icada c conscrlada para garantir a manutcnçâo de um avanç^o constante c dccisivo. A tccnologia de ponta s6 sera cxportada com parcimônia, para que os paiscs ja adiantados no proccsso de industrializaçâo nâo possam concorrer.com a produçâo sofisticada, da quai os paises da era pos-industriai pretendem preservar ciosamcnte o oligopolio também nos setorcs de ponta. Miliardarios de todos os paises, uni-vos! Obsei'va-se aqui que o pan-americanismo de Nelson Rockeleller e dilatado, extrapolado, totalizado, e cede lugar ati que M. Brzezinski chama de ''^lobaiismo". Ha pouco temi:)0, o lermo se referia a uma ntwa sociedade pan-americana. Doravante trata-se de construir uma nova ordem mundiai de tipo corponiùvisla, que se lornou urgente — assegurain — devidc) à interdependência das naçôes. Porém, o que ja C)corria em escala pan-americana agora acontece cm escala mundial: passa-se rapidamente da inlcrdependência à dependênda. De lato, os paises nâo sâo todos igualmente desenvolvidos. Por sua prcsença e seus compromiss(~)S no mundo inteiro, por seu potencial eccinômico, polftico c cientiTico, os HUA pensam que tem motivos para arrogar-se a missâo de assumir a liderança mundial. Ora, a esta missâo devem ser associadas 'ds naçôes ricas e as classes ricas do mundo inteiro. Estas e aquelas devem ser ievadas a reconhecer que existe uma semeihança de intéressés entre todos os ricos do mundo inteiro. A segurança, sua segurança, deve ser a preocupaçâo comum e j^iredominante dos ricos. Tal precjcupa- çâo justiilca a criaçâo de uma Trente comum mundial, uma uniâo sagrada,sequiserem conservarseus privilegios. Diante do imperativo da segurança comum, ttuios os Taiores de divergência entre os ricos tôm importância meramente relativa ou mesmo secundâria. Entretanto, essa [rente comum mundial sd poderâ articular-se a partir dos EUA e sob sua liderança. Em virlude de seu desenvolvimento e de sua riqueza, a Europa ocidental c o Japcio serao associados, a ti'tulo de aliados privilegiados, à preocupaçao com a O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS segurança comum.Todo o bloco composto pelas naçôes ricas devera empenhar-se em controlar o descnvolvimenlo no mundo cm gérai. A austeridade nâo é mais uma virtude; é um dever. Tornar o cresci- mcnto mais lento, frear a produlividade, pralicar o malthusianismo cconômico sâo tanlo mais necessarios, dirâo, pelo fato de que é preciso protéger o meio ambiente ameaçado pela poluiçâo. Da mesma maneira, a justificaçao teorica do *'crescimento zéro" surgiu em 1972 no Relniorio Meadows, e foi divulgada pelo Clube de Roma,empreendimentos generosamente financiados pelo grupo Rockefeller.-'^ Os penses comunislas nâo deveriam ficar de fora desse projeto global de segurança, e a propria China merece uma consideraçâo excepcional, Assim, esta demonstrado — como vimos^^ — que a impiedosa politica demogrâfica implementada na China popular i\)i ap)oiada e mesmo inccntivada por ci'rculos norte-americanos e ocidentais preocupados com o ascenso de um novo "perigo amarelo". Portante, os paises do Terceiro Mundo deverâo aderir a um programa "integrado". Como os paises ricos necessitam dos recursos dos paises em desenvolvimento, estes nâo poderâo ser irritados ou revoltados pela manutençâo de velhos métodos de exploraçâo. E preciso accitar que se desenvolvam, mas sob contrôle: se for o caso, serâo elogiadas as virtudes da convivência. Sera possivel,entre outras coisas, transferir-lhes industrias poluentes, declaradas indesejâveis pelos paises desenvolvidos. Seja como for, sera preciso evitar que se organizem escapando à vigilância das naçôes poderosas. Eventualmente, poderâo ser-lhes feitas concessôes no campo dos direitos humanos,se esta medida for capaz de dar a imprcvssâo de uma certa democratizaçâo. Mas,de qualquer maneira, assim como hâ limites ao crescimento cconômico, hâ limites ao crescimento politico. Era o que frisava Samuel P. Huntington num Rapport pour Commission trilatérale sur la gouvernahilité des démocraties:"Hoje reconhecemos que hâ limites potencialmente desejâveis para o crescimento econômico. Também A (5) C'f. Halte à la croissance. (6) (Xp. 141. 158 Il A SEGURANÇA DEMOGRÀFICA ha limites pcUencialmcntc descjavcis para a cxtcnsao indelmida da democracia polRica."^ Assim, estâmes diante de uma versâo mundializada do velho messianismo norte-americano. Enlretanto, é indispensavel observar o que a tbrmulaçâo tem de substanciaimente novo e original. Esse messianismo de lato pretende associai" a sua ac^âo nâo apenas o concurso das naçôes mais ricas, como também o das classes ricas das sociedades pobres. Aos ricos do mundo inteiro, acenam com que os pobres constituem uma ameaça poiencia! ou inclusive alual a sua sci^irança. Sem duvida, o que esta cm questâo em primeiro lugar é a seguranc^a dos EUA, ou mais exatamente dos ricos dos EUA. Mas nât) esta menc")S em questâo a segurança dos ricos de todos os paises. Os ricos do mundo inteiro sâo convidados a constituir,sob a lideranca dos Estados Unidcxs, uma uniâo sagrada cuja razâo de ser e objetivo é conter a expansâo da populaçâo pobre: "Miliardârios de tcKlos os paises, uni-vos!" Reinterpretada, a dcmlrina do containment, da contençâo, da "retençâc)'\ ressurge como a Fênix renasce das cinzas. Sâo suas teses tundamentais que inspiram o projeto mundialista atual dos EUA. A Europa ocidenlal e o Japâo sâo mais estreitamente associados a tal projeto como cûmplices e alvos ao mesmo tempo. O mandarinato internacional Na reinlerpretaçâo que N. Rockeiellcr dava ao pan-americanismo,a preocupaçâo com a segurança jâ aparecia num contexte globalizante. Essa globalizaçâo é extrapolada pelos conselheiros de David Rockerdler. A segurança, cujo campe detalhava-se em diverses terrenos, agora é apreendida como uma totalidade: a se^irança é em primeiro lugar clemoi^'âflca. Essa nova doutrina pede a implementaçâo de instrumentes ericazes de açâo. Sâo instrumentes de natureza poh'tica, educativa, cientHica, econômica e tecnologica. As universidades e centres de (7) Cr. Michel GROZIFR, Sanuiel V. IIUNTINCri'ON,.loji WATANUKI.Ihe Omv ofDemocracy, New York Universily Prcss, 1975. p. 1 15. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS |)csc|uisas tcrâo sua libcrdadc de inicialiva oricntada, ou mcsmo amordaçada, e sua lunçao critica corroida. Suas subvcnt^ôcs scrao condicionadas pela complaccncia corn a quai accilarcm submctci-sc a proiiramas de pesquisas deiinidos pela minoria dominanle.' Sera dada grande imptM'lancia ao cstudo dos problemas ecolo- gicos pois por esta via c possi'vel convencer os saLclites a ct)nscntiiem na austcridadeou na pobrczc\:''Sm(dlLslK'auli.ful Amesma minoria t'inanciara as pesquisas sobre a reproduçao, a lecundidade e a demo- grafia para tentar dcsarmar a "bomba P". As universidades-interme- diarias c a midia se encarregarao de dilundir no mundo inteiio, dramalizandoas, as teses malthusianas que ocultam os intéresses das classes ricas.^'^ O discurso-programa de açâo sera conciso. Sera destacada a raridadedas materias-primase a l'ragilidade do meio ambien- te. Tais dados serâo apresentados como necessidades dcurminaclas pela Natureza. A populaçâo deve neccssariamenle ser calibrada em proporçâo a esses dados — concluirao. Assim estâo reunidas as condiçoes lundamentais que caiacteri- zam objctivamenle um régime de tipo lascista. Para Juan Bosch, o pentagonismt^ era a exploraçao do povo norle-americano poi uma minoria norte-americana." Hoje apenla^onLsmo esta mundlalizado e a nnnoiw dominante, iniernadonalizada. Esta minoria sera composta por "pessoas de posses , que se (8) Cr lienvi^cn 7 vw/Ii(c-.v, pp. 9-12, 2()lss. Cumcniando asidéiasclc M. Hrzc/inski a csic rcspcilo, Anlhuny ARi-ii.ASTl.-R cscivvc: "Il is cicprcssing cnuugh lhal iniclIcciLials shoulcl he willing U)acccpi thc rôles which l^r/czinski lorcsees lor tiicm — specialisis [..-l involvecl (...j in governmcni underlakings and house idéologues for ihose in power Rul the subordinaiion ot iniclleciuals lo ihe sialc and ils requiremenls dues no oceur only al Ihe individuai levei. I hcrc is a sirengihening tendcnc>' for ihe insliiulions wiihin whieh |...| mosi iniellceUials now work, alsii lo bc shaped according lo ihe particular polilieal priorilies ol" pariieular govcrnmenls" (Ideolo^-- mu! huellcciuah.. coninbuiçao a HPNI'.WK'K c al., Knowledge (ind Iklicf in Fohncs^ pp. 1 eilado esta na p. 123s.). o irccho . (9) Idaraliai-sc .qui.ulusm,.l'.r. SC.IlUMACllH.li. SmaU is lieauuM. Economies as if Peoplc Maiicred, Nova torque, Perennial labrary, 1975. (10) ///c/97/r'.v, cr. Daniel Nova HIO lorque-Londres, Thc End ofUkolopy. On thc Exhcuistion of Political Idens m Free Press Paperback. i9{i5. (M) Ver Juan HOSCl IJd penia^onismo,snslitulo dclimpcriahsmo, Madn,(-ronica de un Siglo, 1968, especialmenie pp. 18-21. A SEGURANÇA DEMOGRÂFICA sentirâo lisonjeadas por serem cooptadas pelos grupos "informais" mais ou menos conhecidos(como o grupo de Bilderberg, a Trilatéral ou o Clube de Roma) ou menos facilmente identificâveis. Uma minoria que se arroga a missâo de reger o mundo usarâ como vassalo, com este fim, um mandarinato internacional, ou cùmplice ou recu- perado, mas de qualquer maneira com pouca visâo. Nâo é necessârio, de modo algum, sobrecarregar-se com instituiçôes complexas, lutar por um cargo eletivo ou ocupar uma funçâo executiva. Uma vez tendo interiorizado a ideologia da segurança demogrâfica, esses novos mandarins apressam-se em recorrer à tatica indigente do entrismo e da infiltraçâo. Um projeto tâo global e tao totalizante necessariamente exige dispositivos juridica e politicamente apropriados.Sob este ângulo,os precedentes latino-americanos sâo sugestivos. Merecem a atençâo dos europeus,japoneses e habitantes do Terceiro Mundo, uma vez que podem ser aperteiçoados e generalizados. A partir do momento em que uma "elite" minoritaria consente em sua prôpria "colonizaçâo ideologica", esta mesma "elite" se sépara do povo e esta pronta para todas as abdicaçôes. Esta disponivel para desempenhar o papel de intennediârio de um centro de poder de tipo toialmente novo, que evocaremos para terminar. Do Estado ao Império totalitarios O império que se esta construindo é, de fato, sem precedentes na historia. O fascisme, o nazismo e mesmo o comunismo soviético proporcionam exemples perfeitos de totalitarismes. Nos très cases, o Estado transcende os cidadâos; faz a guerra contra o eu em todas as suas dimensôes; ffsica, psicologica, espiritual.^^ Exige dos individuos uma submissâo sem talha; exige que,se bem Ihe aprouver,a vida Ihe seja sacrificada. Esse Estado submete o casamento, a procriaçâo, (12) Sobre o totalitarisme, ver Jean-Jacques WALTER,Les machines totaliîaires, Paris, Denoël, 1982; Igor CHAFAREVITCH,Lc phénomène socialiste, Paris, Éd. du Seuil, 1977; Hannah ARENDT, The, Origins of Totalitarism, Nova lorque, Meridian Books, 1959. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS a famflia e a educaçâo a um contrôle muilo estrito. Mais explicitamente, a famflia é submetida a uma vigilância particular, pois é ali que se formam as bases da personalidade da criança. O Estado totalitârio que conhecemos pela histôria contemporânea, do quai a Romênia forneceu um exemplo notâvel, empenha-se em subtrair a criança à influência familiar e proporciona-lhe educaçâo intégral. Esse Estado inibe a capacidade pessoal de juizo e decisâo; instaura uma policia das idéias; culpabiliza e doutrina, desprograma e repro- grama.Impôe uma nova ideologia; organiza o culto do chefe; institui uma nova religiâo civil. Entretanto, observa-se que em cada um dos très exemplos lembrados, a experiência totalitâria tem como sede inicial um Eslado pardcular que é colocado como trampolim de um projeto impérial. A missâo cesârea desse Estado particular sera delinida e "legitimada a partir da ideologia totalitâria, que,supôe-se,"justificarâ" o Estado impérial e seu duce, pois, nos très exemplos, o cheie que era objeto de culto é nâo apenas conhecido mas investido do poder soberano. Por fim, em cada um de nossos très exemplos, uma ideologia decla- rada cientifica relega às trevas do obscurantismo todos os que nâo estiverem convencidos a ponto de aderir a ela. O projeto impérial e totalitârio que estâ tomando corpo diante de nossos olhos incrédulos apresenta particularidades surpreendentes quando comparado às caracteristicas que marcaram os sonhos imperiais de Mussolini,Stâlin e Hitler.O Império que estâ emergindo apresenta o traço insôlito de nâo procéder mais essencialmente das ambiçôes hegemônicas de um Estado particular. Também nâo émana de uma coalizâo de Estados. Ao contrârio, como vimos, as desigual- dades ou mesmo divisées entre naçôes nâo o incomodam; alé conse- gue tirar proveito delas. O império que estâ sendo construido é um império de classe e émana do consenso que reune, além das fronteiras, a internacional da riqueza. Mas se nâo hâ um Estado com contornos visiveis, como séria possivel discernir umdiicel No contexto deste imperialismo de classe, ninguém sabe quem décidé nem quem é responsâvel. A linguagem parece ser totalmente desvinculada do sujeito que a produz; tudo acontece no anonimato,de maneira impessoal e sécréta. O produlor do discurso ideologico permanece velado: "falam". Portante nâo ii; lui 162 A SEGURANÇA DEMOGRÂFICA cabe, estima-se, submeler o discurso ao crivo do juizo pessoal: ele esta pronto para ser consumido: frio, objetivo,impenoso. Embora permaneçam ocultos,existem, evidentemente,sujeitos que produzem esse discurso destinado a outros sujeitos que devem consumi-lo. Mas se violasse o segredo que o esquiva, o sujeito produtor de ideologia nâo poderia mais reivindicar a impessoalidade e a objetividade pura. A dimensâo subjetiva, utilitaria, interessada,hipotética deseu discurso ficaria imediatamente obvia. O alcance pretensamente universal de seu discurso, bem como a pretensâo "cientifica" da quai é revestido, também se mostrariam como sâo; uma mistificaçâo. Logo, o produtor de ideologia deve guardar o segredo: ele é onipresente porém imperceptivel. Assim, o proprio segredo instala uma mentira do cerne do discurso. Nâo hâ diâlogo entre pessoas que trocam livremente idéias sobre seus juizos e projetos em prol da clareza. Um dos interlocutores quer permanecer à sombra e quer que o destinatârio de seu discurso ignore sua identidade e intençôes. Portante,sobre todo discurso pesa a vontade de iludir a respeito daquele que p emite. A linguagem, que deveria ser o prototipo da mediaçâo entre as pessoas, torna-se o meio por excelência de possuir o outro. Como o sujeito produtor de discurso jamais diz realmente quem é, sobre tudo o que ele diz recai uma densidade de dissimulaçâo e mentira. Seus dizeres sâo, assim, transformados em instrumentes que agridem a inteligência e a vontade daqueles a quem esses mesmos dizeres sâo dirigidos. De falo, seu discurso exerce violência contra outros sujei tos, que sâo reduzidos à condiçâo de receptâculos passives de uma verdade que vem de outro lugar, de depositârios de um saber alienado e aliénante, até mesmo esotérico. De um saber pretensamente cien- tiTico, cuja revelaçâo imaginam ter sido l'eita aos iniciados pela ciência; de um saber que dâ a esses iniciados a idéia de que têm razôes para desempenhar um papel messiânico para que, por t'im, a sociedade humana conheça o caminho da felicidade... Que territorios ainda restam a serem conquistados pelo homem? As novas fronteiras do impérialisme nâo sâo mais tisicas, mas coincidem com as da humanidade. Dizer que é précisé alienar o homem,ou possuir todas as dimensôes de seu ser, é muito pouco. O que é précisé Fazer surgir é um homem novo, totalmente purgado de suas crenças passadas, de sua moral sexual, tamiliar, social, de sua IfTT O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS crença no valor pessoal de cada homem, de sua crença em Deus, sobretudo num Deus que se révéla na histôria no intuito de associar o homem a seu designio de criaçâo, salvaçâo e amor. Assim tornamos a encontrar, em relaçâo com o novo imperialismo,a terceira caracteristica do totalitarismo. O novo imperialismo, como vimos em primeiro lugar, nâo émana de um Estado particular; provém da classe internacional dos ricos e poderosos. Em compensaçâo, tivemos de constatar, num segundo momento, que esse novo imperialismo nâo tinha o seu duce: as proprias pessoas que o promovem têm cuidado em nâo se descobrir. Quanto ao terceiro ponto, contudo, a nova classe impérial reata com a tradiçâo totalitâria clâssica: divulga uma ideologia onde se encontra, garante ela, o fundamento de sua "legitimidade". A ideologia da segurança demografica In 5 '! ;]!! 1. 11 ,1. i- I il; il: A ideologia em questâo é a da segurança demografica. Como explicou Marx, a ideologia sempre oferece uma imagem invertida da realidade e sempre procédé de uma consciência falsa. A ideologia sempre mascara os interesses dos que a produzem. Pode-se recordar um exemplo. Influenciado pela Declaraçclo de 1789, o direito das sociedades libérais burguesas do século XIX proclamava a liberdade e a igualdade entre os cidadâos. Evsse direito apresentava-se como extensivo à totalidade dos cidadâos. Marx denuncia que esse direito positivo é uma superestrutura que tem como objetivo mascarar a îNil: 11 ii il t. i!' infra-estrutura,esta real,de natureza econômica,com suas injustiças, cujas causas se quer dissimular. A construçâo juridica Ibrmal proporcionada pelos juristas burgueses é ideologica, pois sua finalidade é ocultar relaçôes de opressâo e desigualdade. Essa construçâo procédé da talsa consciência da (13) Por sua posiçâo em maléria de demografia, a Igreja consiitui uma ameaça à segurança nacional dos EU A. Esta é a lese exposia com sanha por um auior que nâo poderia ser acusado de grande defensor de idéias progressisias. Stephen D. MUMFORD,Americon Democracy ihe Vatican. Population Growtfi (Si National Security, Nova lorque, Humanist Press, 1984. Compleiar com Stephen D. MUMFORD e Elton KESSEL,"Rôle of abortion in conirol of global population growth", in Clinics in Obstetrics and Gynaecology. t. 13 (março de 1986), pp. 19-31; sobre Kessel, ver L. WEILL-HALLE, L'avortement de papa, p. 53. 164 A SEGURANÇA DEMOGRÂFICA burguesia, que cai cm sua prôpria ciJada; de ma fé, apontarâ Sartre. No século XVIII teriam dito que ela cedia a seus proprios precon- ceitos. Os juizos que emite, e que constituem a textura da ideologia, sâo, portanto, hipotéticos, inclusive em dois sentidos: têm de corresponder a uma dupla condiçâo, correspondendo a uma dupla funçâo que se espera da ideologia. Por um lado, ela deve dissimular diante dos produtores de ideologia as razôes profundas pelas quais eles produzem seu proprio discurso. Aqui, a ideologia esta a serviço da ma fé. Concretamente, a ideologia da segurança demogrâfica é uma intelectualizaçâo que dissimula diante da propria classe impérial as verdadeiras razôes que motivam seu comportamento e inspiram seu ûi^icuvso.Por OLiiro lado,essa ideologia tem como funçâo ludibriar os que sâo convidados, ou mesmo forçados, a introjetâ-la. As muIheres submetidas ao aborto, os pobres que sâo esterilizados, sâo reprogramados de modo a interiorizarem o ponto de vista que sobre eles têm os que estâo interessados em alienâ-los. Assim, a ideologia da segurança demogrâfica inicia uma dupla perversâo. Do lado dos que a produzem, ela géra ma fé; eles sâo as primeiras vitimas da ractonalizaçâo que confeccionam. E como adornam sua construçâo ideologica corn o rôtulo da cientificidade, proibem a si mesmos de procurar fora de sua prôpria construçâo a luz que poderia libertâ-los da prisâo do espirito que fabricam para outros, mas na quai eles caem. Do lado dos que a consomem, a ideologia da segurança demogrâfica géra o consentimento com sua prôpria servidâo e o confirma em sua alienaçâo. Até hoje nâo se conhecia exemple algum de ideologia impérial que fosse ao mesmo tempo tâo totalitâria e tâo reacionâria. Que humanidade nova? Mas nâo é sô isso. A pei-versâo essencial dessa ideologia, da quai sâo vitimas tanto os que a produzem como os que a consomem,é que ela procédé por antifrase: o mal é chamado de bem. A transgressâo da lei moral é negada. À consciência individual sô resta referir-se a si mesma,ou mais exatamente aos que,intérpretes qualificados da trans- cendência social, dizem-lhe o que ela pode desejar ou deve querer. Tal ideologia é subjacente a instituiçôes politicas e juridicas que se situam na descendência direta da obra de Binding, que jâ mencionamos.^'^ O direito, por exemplo, que por definiçao deveria empe- O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS nhar-se em inslaurar a justiça para todos, é objeto de manipulaçâo ideolôgica em beneficio da minoria dominante, constitui'da pela internacional da riqueza. - • a - Embora em sua particularidade os membres da minoria demi- nante de maneira gérai sejam imperceptiveis,é,contudo, possivel ter uma idéia bastante précisa do espi'rito dessa minoria. De fato, essa nova classe impérial tem uma identidade que se pode decifrar remon- tando a partir da ideologia que ela produze dos destinatârios visados por essa propria ideologia. i • • Quanto ao teor,o discurso ideolôgico da nova classe impérial e bastante tosco. No principio é afirmâdo o evento libertador que constitui a morte de Deus.Este principio é"libertador" porque Deus, dizem, é um obstâculo à autonomia do homem e a' sua fehcidade. Portanto,é preciso que ele morra,e mesmo que o ajudem a morrer, para que o homem possa viver e, por fim, tomar o prôprio destino nas ! •' 1 rii mâos. Desde que Deus esteja morto, a humanidade nova pode nascer, e é neste partô que devem empenhar-se os que receberam a luz. Nessa produçâo,o papel de médicos esclarecidos sera détermi nante e, no entanto, contraditorio. É a eles que cabera denunciar as "crenças passadas", "pré-cientificas", bem como os "tabus que as acompanham.Sao eles que definirâo essa tarefa, mas é na atirmaçao desses postulados que basearâo sua missâo.'- Eles precisam de uma ideologia para "legitimar" seu papel, mas sâo eles mesmos que definem o conteûdo da ideologia. Assim como os militares que teorizavam sobre a segurança nacional, os tecnocratas medicos que regem o novo império também nâo sâo sufocados com tais petiçoes de principio. Eles dizem que o objetivo a perseguir a qualquer custo é a segurança demogrâfica; mas é o imperativo da segurança demogrâfica que deve constituir a base da "legitimidade" da tecnocraciti. Corajosamente ajudados por demôgrafos,os tecnocratas estao dispostos a serem os parteiros que ajudarâo a humanidade a dar a luz !: o sentido gerado por sua evoluçâo.Sâo chamados a exercer uma nova medicina: uma medicina do corpo social, ainda mais que uma me i- cina dos individuos.'^ Uma medicina que consiste em gerir a vida (14) Cf. p. 15s. (15) Cf. p. 155. 166 A SEGURANÇA DEMOGRÂFICA como se adminislra um material,em elaborar uma nova moral basea- da no novo significado da vida, em entrât na politica para fazer com que nasça uma sociedade nova,em derrubar a concepçâo tradicional de famflia dissociando com total ebcacia a dimensâo amorosa e a dimensâo procriadora na sexualidade humana,em Iransferir à socie dade a gestâo da vida humana, da concepçâo à morte, procedendo, assim, a uma seleçâo rigorosa dos que serâo autorizados a transmitir a vida: sâo todos temas dolorosamente atestados na historia, me.smo recente, mas aqui estrepitosamente reativados e inlegf'cidos num lugubre painel dedicado à morte. Ora, a esses temas com dominante neomalthusiana somam-se temas malthusianos clâssicos. A fclicidade da sociedade humana — argumentam — exige nao apenas uma seleçâo qualiiativa\ requer também um recniiamenlo quantitativo."Sabemos, nos sabemos" que os recursos dispomveis sâo limitados, e que um planejamento realmente eficaz da populaçao mundial é condiçâo para a sobrevivência da humanidade."Sabemos, nos sabemos" que esse dever é particu- larmente urgente no Terceiro Mundo, onde se observa uma trâgica disparidade entre os recursos vitais e o crescimento populacional. Uma nova religiâo civil A ideologia impérial quer, portante, ser uma ideologia da oclusâo a toda transcendência que nâo Ibr social. O discurso no quai se expressa éestritamente///po/c/zco, no sentido jâ explicado:é o retlexo da vontade dos que o exprimem.^^ Tem a funçâo de ser eticaz, mas nâo tem valor de verdade. É util aos que o produzem e apresenta-se como linguagem universal; mas é a expressâo invertida dos interesses particulares dos ricos e dos poderosos. Nâo tem valor de verdade algum porque, em seu principio, tranca-se no grande lechamento: o pensamento é elaborado a portas fechadas, em sentido lato e figura- do. Esse discurso é a mais recente expressâo da antiga tradiçâo do cientismo, numa formulaçâo aqui elaborada em bénéficié das ciências biomédicas. Apenas os métodos dessas ciências nos podem fornecer (16) Cf. p. 102. (17) Cf. p. 92-98. fPT"^' O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS — asseguram-nos — conhecimentos verdadeiros; e, sobretudo, sô essas ciências podem dar ao homem a resposta a suas interrogaçôes ultimas. O discurso do cientismo afirma que é improcedente toda pro cura filosofica — e,com mais razâo, teolôgica — da verdade sobre o homem, a sociedade, o mundo. Em particular, todo discurso sobre um ser transcendente nâo intramundano é proibido. A propria idéia de uma referência criadora comum a todos os homens é a priori declarada sem sentido; é inûtil considerar a questâo. Tendo sido constatada a morte do Pai, a fraternidade deixa de ser possivel e nâo hâ mais participaçâo na existência recebida de um mesmo criador. Resta apenas o puro voluntârio. A sociedade é declarada transcen dente: nasceu uma nova religiâo civil, um novo ateismo politico, um novo reino cujas divindades pagas têm como nome poder, eficâcia, riqueza, ter, saber. Através de seu triunfo sobre os fracos, os que dispÔem de riqueza,saber e poder atestam ser justo que exerçam um pape! messiânico. De fato, eles sâo a medida de si mesmos e do outro ao mesmo tempo. Dessa ideologia que, como a moral senhorial inerente a ela, é messiânica e hermeticamente leiga, decorre a necessidade, para os que a produzem,d^reprogramaro^ outros.É preciso reprogramâ-los fisica e psicologicamente; é preciso planejar sua produçao e sua educaçâo. Sera preciso ir buscar no fundo o hedonismo sempre latente, apostar na procura do prazer—ainda mais porque a tradiçâo .^ ï i: i i: î'' I jli feuerbachiana é também sensualista. Mas, ao mesmo tempo, sera preciso alienar os casais despossuindo-os de toda responsabilidade em seu comportamento sexual. Em suma, os tecnocratas médicos, peças-chaves do tabuleiro de xadrez impérial, deverâo exercer um contrôle total sobre a qualidade e a quantidade de seres humanos. Esse discurso ideolôgico, jâ desresponsabilizante e desmobili- zante ao nivel dos homens,também o é no piano das sociedades.Para o Terceiro Mundo,em particular, esse discurso é totalmente reacionârio e desastroso. Consiste em fazer com que as pessoas acreditem que a pobreza é natiiral^ que é uma tatalidade estritamente vinculada a um excesso de crescimento demogrâfico. Ao lado dessa considera- ip. çâo quantitativa, insinuarâo, no espirito de Galton (1822-1911), que a pobreza dos pobres é a melhor prova de sua mediocridade natural. Portanto, eles nâo devem atravancar o planeta. É do interesse deles. 168 A SEGURANÇA DEMOGRAFICA também é do interesse gérai; logo, ambos os intéressés recomendam que G numéro de pobres seja definido pela utilidade que estes tiverem.^*'^ Pois, segundo a ideologia que examinâmes, a utilidade é o critério unico que deve ser levado em conta para aceitar que um ser humano tenha acesso à existência. Ele produz? Consome? Rende? Da prazer? Caso negativo, ele é nocivo; é inimigo. E como nada garante que sempre sera util, o ser humano cônstitui uma ameaça permanente para a segurança de seu semelhante. O pan-imperialismo totalitârio For fim, com toda logica, a ideologia da segurança demogrâfica tem como fundamento e termo o honzonte da morte. A execuçâo da criança nâo-nascida camufla a violência de nossa propria sociedade, ainda mais pelo fato de que, em sua materialidade, essa execuçâo é feita furtivamente. A criança abortada é o bode expiatôrio ao quai é transferida a violência de nossa sociedade. Ele é meu concorrente, meu rival; é um obstâculo aos meus interesses, ao meu prazer, a minha vida; ele é a causa da pobreza, obstâculo ao desenvolvimento. Ele vai desejar o que eu desejo, na ordem do ter, e depois na ordem do ser. Ele vai surgir como meu duplo: um homem que sera demais. Portanto, é preciso eliminâ-lo. Mas nâo se trata aqui de uma "pequena violência", ou mesmo de uma violência simbôlica, como as atestadas pela historia das civilizaçôes e pelas mitologias, A criança que é morta no ventre da mâe nâo é saaificada: ela nâo se torna sagrada para assegurar a coesâo da comunidade humana.^^ Ela é execuiada sem que a violência seja expulsa da sociedade humana. Pois a sociedade totalmente laicizada deve dessacralizar tudo, inclusive a vida; desmistiticar tudo, inclusive o bode expiatôrio. De fato, o sofrimento e a morte sâo o (18) Cf. pp. 145 e 156-159. (19) Quanto menos a vi'tima é percebida pelo carrasco, menos este domina sua agressividade contra ela. Cf. Slanley MILGRAM,Soumission à l autorité. Un point de vue expérimental, Paris, Calmann-Lévy, 1984 (20) Cf. René GIRARD,La violence et le sacré, Paris, Grasset, 1972. 'ITl' O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS non-sense absoluto,justificam a révolta contra o Pai. Assim sendo, a criança destruida significa a destruiçâo do Pai. Sua execuçâo nâo conjura a violência; anuncia, ao contrario, seu desencadeamento. Saivo uma força maior, nada mais pode nem deve ser obstâculo a minha força. E ainda mais grave: entre as funçôes da ideologia figura a de dissimular essa violência ilimitada e subtraf-la ao dommio da razâo. Assim,a liberalizaçâo do aborto assinala a iminência do retorno galopante de um delirio irracional, dissimulado sob a camuflagem mentirosa de uma ideologia da segurança. Portanto, a ideologia neo-imperial da segurança demogrâfica esta bem proxima da ideologia nazista, da quai constitui inclusive,sob mais de um aspecto, uma extrapolaçâo. Enquanto o nazismo apresentava-se como um naclonol-socialismo, agindo no interesse da naçâo alemâ, ou, antes, da raça ariana, a ideologia neo-imperial âge no interesse da classe rica espalhada em escala mundial. Os principios que inspiram essas duas ideologias estâo, no essencial,em Feuerbach; mas do nacionol-socialismo ao neo-imperialismo atual os métodos se sofisticaram. Nâo se trata mais de um imperialismo predominantemente militar, como no caso dos romanos, ou econômico, como no il!l i'il da Inglaterra vitoriana. Trata-se de um imperialismo com nitida natureza totalitâria. Os manipuladores fizeram um esforço real para melhor se dissimular. O papel da ideologia tornou-se mais importan te: a conquista e o contrôle dos corpos agora passa pelo dommio das inteligências e das vontades, e vice-versa. Estamos diante de um fenômeno novo: opon-impciicdismo, no quai a engenharia das aimas torna-se tâo importante quanto a dos corpos. ... e "metapolitico" Por fim, diretamente inspirado da forma mais recente de cien- tismo, CvSse pan-imperialismo tem Gssèncvà metapolitica: empenha-se em fazer triunfar uma nova concepçao da vida humana e em colocâ-la sob o signo da transcendência social. De fato. o pan-imperialismo caracteriza-se antes de mais nada por uma concepçao particular do homem,que esta achna do politico. É em nome dessa antropologia que o novo imperialismo ataca os aparelhos que nécessita para agir. ii i 170 A SEGURANÇA DEMOGRÂFICA polfticos, cientiTicos, econômicos, da midia, jun'dicos, militarcs, religiosos etc. Todos esses aparelhos funcionam como intermediarios do poder impérial e o transmitem, como por hipostases, até os confins do mundo. Assim,esse lipo de império imperceptivel é um prolongamento do Leviatâ que mencionamos no inicio do livro, embora haja diferenças notorias. Por mais que o Estado totalitârio clâssico exerça a onipotência dentro de suas fronteiras, seu poder nâo deixa de ser limitado pelo dos outros Estados. Ele se encarna num principe (ou num governo) identificâvel, visivel, portanto atingivel, exposto, por tante destrutivel.y^^wi a revoluçâo parece impossfvel, pois o principe deste mundo tem o cuidado de nâo revelar o proprio rosto-(Cf. Jo 6, 44). O império metapoiftico visa a uma supremacia incondicio- nal e incondicionada; nâo quer conhecer ou reconhecer iguais nem rivais. Alias, a mfdia, que tem a funçâo de informar, também tem, no contexte desse projeté totalizante, uma funçâo de ocultaçâo indispensâvel. Tolera-se os vaticinios de Cassandra, desde que se tenha a certeza de que nâo serâo levados a série. A informaçâo deve ser tratada conforme os interesses daqueles que a produzem e segundo o gosto dos que a consomem. A colonizaçâo da opiniâo publica deve ter efeitos securizantes para os primeiros e angustiantes para os ultimes. A unica coisa que realmente importa é a segurança dos abastados; os fracos nâo têm valor algum: logo, os ricos podem dispor deles e confinâ-los à orla da humanidade. Assim, os projetés de liberalizaçào do aborto nâo passam da parte visivel de um iceberg que encerra muitos perigos. XVII O aborto: perguntas e respostas A liberolizaçào do oborto é apresentada coma ûnica soluçâo satisfatôna numa séne de casas dramâticos. Entretanto, sua liberalizaçào suscita problemas mais numerosos e complexes que os que preiende resolver. Jâ os discutimos nas paginas precedentes. Para resumir, e com vistas a oferecer a nossos leiiores um conjunto de argumentos,* va mes examinai' algumas das "razôes" invocadas com mais freqiiência na discussâo a favor de iima revisào das leis que atuolmenie reprimem o aboiio. 1) Os cristâos nào estâo querendo impor sua moral aos outras? Os cristâos nâo têm o monopôlio da defesa da vida humana. O respeito a toda vida humana é um preceito de moral universal proclamado em todas as grandes civilizaçôes, e é o tecido de toda sociedade democrâtica.^ Se o direito à vida nâo tor respeitado e protegido, todos os outros direitos estarâo ameac^ados. Na Bélgica, por exemplo, a lei de 1867 que reprimia o aborto foi aprovada sob um governo libéral homogêneo; naquele momento os cristâos esta- vam na oposiçâo.^ 2)A criança nâo-nascida é um ser humano? Até as leis que liberalizam o aborto começam proclamando o carâter humano do ser que, no entanto, autorizam a matar em certos casos. O artigo 1 da lei Veil-Pelletier na França é de uma incoerência tipica neste sentido: "A lei garante o respeito a todo ser humano (1) A respeito da democracia e da "regra de ouro". ver pp.99s., n. 19; 110; 192 eo cap. IV (2) Cf. p. 59, n. 4. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS desde o começo da vida. Kste principio sô poderâ ser violado em caso de necessidade conforme as condiçôes definidas pela présente lei."^* Éjustamenteporque a criança concebida é um ser humano que o seu nascimento nâo é desejado. Sabe-se que o ser que se anuncia em breve sera um bebê, depois um adolescente e mais tarde um adulto. Éporque esta destinado a ser um bebê, um adolescente e um adulto que o eliminam. 3)A mulher nào é dona de seu corpo? Salvo nas regiôes onde ainda existe a escravidâo, nenhum ser humano pode ioxï\'AX-?>Q>propriedade de outro. Ora,a criança nâo-nascida nâo é um orgâo de sua mâe; é um ser ûnico, distinto, com sua individualidade genética prôpria. Esse ser ûnico seguirâ uma evolu- çâo original,sem soluçâo de continuidade. A mulher x\âo pode dispor da existência desse ser como, numa determinada época, o patér familicis romano dispunha de seus filhos.^ Donde decorre um aspecto que deve ser previamente esclarecido: é preciso saber rumo a que sociedade queremos caminhar, que sociedade queremos promover. Queremos uma sociedade que acolha todo ser humano,assim que sua presença puder ser discernida, ou uma sociedade que restaure o privilégie dos mestres e até sua prerrogativa de dispor da vida do outro? Este ûltimo tipo de sociedade teria bases muito diferentes das que inspiram as sociedades democrâticas, pois admitiria que todos os seres humanos nâo sâo igualmente respeitâveis. 4) À lei que pune o ahorto é odiosa para a mulher e ignora seus direitos, j: a) As leis que reprimem o aborto nâo contestam, de modo algum, os direitos da mulher, mas ressaltam o direito da criança concebida à vida, direito hoje escamoteado.O que essas leis afirmam é que ninguém pode dispor da vida de um inocente. Essas leis simplesmente aplicam o principio gérai caracteristico de toda socie dade democrâtica: igualdade de direitos de todos os seres humanos quanto à vida. Assim sendo,o carâter pénal dessas leis nao é senao a (3) Cf. pp. 48; 53. (4) Cf. p. 52. 1^' n'. Éi II 174 O ABORTO:PERGUNTAS E RESPOSTAS consegùência de um direito anterior,inalienâvel, da criança nâo-nascida. E a violaçâo desse direito que suscita e justifica uma sançâo pénal. b)Em toda sociedade, as pessoas precisam saber o que favorece e o que obstaculiza a convivência. A desonestidade é um obstâculo à vida social positiva: também é o caso do estupro. O mesmo deve ser dito do assassinato,sobretudo quando a vitima nâo pode se defender. A lei nâo consegue impedir a transgressâo; ela a sanciona. Numa sociedade democrâtica, pode haver circunstâncias atenuantes do assassinato ou do estupro, mas ninguém tem o direito de estuprar, nem de matar um inocente. O aborto nâo pode ser considerado um direito da mulher. Nâo é porque a lei diz que o estupro e o assassinato sâo crimes ou delitos que essas açôes odiosas se tomam crimes ou delitos. É porque essas açôes sâo odiosas que a lei as pune.^ 5)A liberalizaçâo do aborto nâo deve ser considerada uma etapa importante na longa caminhada das mulheres rumo a sua libertaçào? a) Junto com as crianças nâo-nascidas, as grandes vftimas do aborto sâo as mulheres, machucadas no corpo e na aima; os grandes beneficiârios dos abortos sâo os homens e os que tiram proveito financeiro ou outro dessas operaçôes.^ A reivindicaçâo do aborto liberalizado, ou mesmo simplesmente livre, evidencia de maneira dramâtica as tendências falocrâticas de nossa sociedade. b) Essa reivindicaçâo mostra, uma vez mais, que algumas mu lheres podem tornar-se cûmplices objetivas dos homens que usam de todas as manhas para as explorar. De fato, é por um espantoso paradoxo que algumas mulheres se associam a essa reivindicaçâo, pois a pretensa vantagem de seu sexo é apresentada por homens zelosos em manter insidiosamente sua prôpria e despreocupada dominaçâo nas relaçôes sexuais. c) A liberalizaçâo do aborto assinala, portanto. uma regressâo grave na paciente procura das mulheres pelo reconhecimento de sua dignidade. (5) Cf. pp. 34ss; 45s.; 86. (6) Cf. p. 42, n. 8. 175 O ABORTO: ASPECTOS FOLÎTICOS Graças a essa liberalizaçâo; ^...^in.ipr - os homens criam condiçôes que Ihes permitem dispor de qualqu mulher conforme sua conveniência e quando bem aprouver - des se livram, desde o princfpio, de qualquer responsabilidade em _ pCTvIr .emor.™ a aUuaçao -î Z'he;rtÔmrmïe°objetos explorâveis aos quais, às vezas, a esterilizaçâo é oferecida — ou imposta — como premio. - exacerba-se nelas um conflito, amplamente atiçado pela midi , entre trabalho, consumo, lazer e maternidade _ estraeosque a d^ AexDeriência francesa mostra, em particular, os estragos que aborto faz entre as adolescentes, entregues sem defesa desde a aurora de sua vida de mulheres, a todas as expie Slt degSacôes e humilhaçôes.^ Em 1978 2,6% das mulheres que abortaram na Inglaterra tinham menos de 16 «nos _ Assim, a reflexâo sobre a liberalizaçao do «'l'orto révéla anenas a extrema vidnerabilidade da criança, mas, alem desta a «r/r^a vuter^bilidade da mulher na sociedade. For œnseguin^ surge a necessidade imperiosa de nâo desvincular promoçâo inteffvl da mulher da proteçâo a criança que vai nascer. 6) O aborto nâo proporciona, apesar de tudo, um alivio ao sofri mctito dcis mulheres? Deixando de lado o caso aterrorizante de lii «u"mhos. pcanio, nâo é cl Wn.ndo «ma «rmnça que se modit.ca ^ i: ;1 i il t; Ë'i ; zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA ^ !:■ (7) Cf. p. 20 e Cap. XIII. !iii 176 ^ Apesquisa O ABORTO:PERGUNTAS E RESPOSTAS suportarâ sozinha a dilaceraçâo de seu corpo e de sua aima; voltarâ à solidâo ainda mais machucada. Pois, de certo modo, existe o sofri- mento "curto" e o sofrimento "longo", para nâo falar do remorso... Dai decorre que hâ medidas a serem tomadas,antes de qualquer outra consideraçâo, corn vistas a ajudar as mulheres em dificuldade e a garantir-lhes um ''acompanhamento" discreto, eficaz e caloroso durante a gravidez, Assim poderâo levar a gestaçâo a termo nas melhores condiçôes possiveis, com a perspectiva de confiar o filho a pais adotivos, se assim desejarem. 7) Sera que o aborto nâo pode ser considerado um mal mener quando as dificuldades sào extremas? a) A moral comum e o bom senso têm como mâxima que entre dois maies inevitâiveis deve-se escolher o mal menor, mas que o fim nâo justifica os meios, quer dizer, que nâo se pode/flzc/* um mal para que dele resuite um bem. E um raciocinio simples que certamente se aplica ao caso. Nâo se pode matar uma criança na esperança de que isto melhore a situaçâo de sua mâe. b) O argumente segundo o quai haveria conflilo de valores também nâo se aplica. De tato, a vida é o primeiro dos bens, o primeiro dos valores que condiciona o acesso a todos os outros. O direito da criança à vida vem antes de todos os direitos que sua mâe tem em relaçâo aos outros valores. ^ 8) O quefazer quando é précisa escolher entre a vida da mâe e a dofilho? Trata-se de um problema que, na prâtica, tornou-se rarfssimo. Em nenhum caso sacrifica-se deliberadamente um ser humano para salvar outro, mas pode acontecer que, tentando salvar alguém, faça-se uma vitima. O que se quer fazer é primeiro salvar tudo o que puder ser salvo. Quando se pratica um ato comduplo efeito, um positive eoutro negativo, nunca se quer o efeito negativo: ele é tolerado. (8) Cf. Caps. II e IV. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS 9) Portanto, promover a mulher na sociedade implica prévenir o aborto? É a mulher a primeira a reconhecer cm sua carne a presença de um novo ser humano. É a primeira a ser chamada a acolhê-lo livre- mente. É a primeira a propor que outros também o acolham.^ Logo, promover a dignidade da mulher também é revalorizar o papel insubstituivel da mâe na sociedade. Em vez de culpabilizar as que têm filhos, ou perder-se em discussôes bizantinas sobre a exis- tência ou nâo do instinto materno,é preciso criar condiçôes nas quais as mulheres tenham realmenle a possibilidade de serem mâes,mesmo se nâo quiserem ou nâo puderem renunciar a suas protissôes. 10)A lel reflete os costumes; ora, o aborto passoti a fazer parte dos costumes; logo, o aborto deve ser legalizado. Nesse campo, o que é verdade sobretudo é que os costumes seguem a lei: "Modificando-a, atirma Simone Veil, vocês podem modificar todo o padrâo (pattern) do comportamento humano" {TimcSy 3 de março de 1975). Os melhores observadores concordam em que,na França,muitas das mulheres que recorreram ao aborto teriam encontrado outra soluçâo se nâo existisse a lei que o liberalizou. Um Estado democrâtico reconhece o direito de seus membres à vida, à liberdade, à segurança de seus bens. Ele nâo se arroga a prerrogativa de declarar quem,entre os inocentes, tem o direito de viver ou pode ser morto.Também nâo se arroga a autorizaçâo de définir quem teria o direito de roubar, estuprar ou matar. O Estado que agisse assim perderia sua qualidade democrâtica, pois integrar ao enunciado da lei as infraçôes toleradas s6 poderia favorecer sua multiplicaçâo. Mas a fragilidade da democracia é tal que esta até pode dar-se leis pelas quais coloca sua propria existência em perigo.^*^ For esse caminho pode-se ir muito longe, pois se for admitida a eliminaçâo das crianças nâo-nascidas,logo sera aceita jâ se admite — a dos recém-nascidos declarados anormals,dos doentes incurâveis, dos velhos: "todos os que estâo a cargo da sociedade. (9) Cf.p. 118,n.4. (10) Cf. pp. 30ss.; 35s. O ABORTO:PERGUNTAS E RESPOSTAS 11)Na democracia,éa maioria que décidé;portanto,o parlamento pode mudar a lei. Nâo é exato que a democracia seja definida essencialmente pela aplicaçâo uiecânica e cega da regra da maioria.De fato, hâ outra coisa ontenor ao use dessa regra; é que a democracia define-se primeiro por um conselho fundamental de todo o corpo social a respeito do direlto de todo homem a viver corn dignidade. E este o direito que tem de ser promovido e protegido. Por conseguinte, é a necessidade de protegê-Io que justifica a repressâo por parte do legislador das açôes dos indivfduos que se arrogam o "direito" de dispor da vida, da liberdade ou dos bens de outro. 12)A lei nàoémais aplicada. OEstado de direito nâofica aviltado? Para que haja Estado de direito num pais, nâo basta que exista uma iegislaçâoqualquereque elaseja aplicada. Acontecedeo direito dar sua cauçâo à tirania e legalizar o despotismo. O fato de que a China e a Albânia tenham suas leis, e de que estas sejam aplicadas, nâo significa que os chineses ou albaneses vivam num Estado de direito. Hâ Estado de direito quando a lei esta a serviço da justiça para iodos, e nâo s6 para o grupo mais forte ou mais numeroso. Se espero que a lei proteja a minha vida e a minha liberdade, ela também deve protéger a vida e a liberdade dos outros, especialmente dos fracos. 13) Denuncia-se a existência de um ^'vaziojuridico"em determinados puises. Esse vazio nâo é inadmissivel? Nos lugares onde ainda existe uma lei que reprime o aborto, determinados magistrados hesitam em aplicâ-la, as vezes por causa de pressées, Hâ, portante, vazio judicial, e nâo juridico. Esse vazio judicial acarreta duas conseqùências. Por um làdo, priva a criança nâo-nascida da proteçâo légal à quai tem direito. Por outro lado, desproiege as mulheres contra a impunidade habituai dos homens e contra todos os que estâo interessados em incitâ-la a abortar.'^ (11) Cf. pp. 25ss.; 30; 107. (12) (X pp. 27s. (13) Cf.C.apV. O ABORTO: ASPECTOS POUTICOS 14) Jâ que os abortos existent, nâo séria melhor legaliza-los, transformando'os em ato médico, para que sejamfeitos "em boas condiçôes'^? Um ato médico nâo se deline pelo uso de instrumentos, medi- camentos, instalaçôes hospitalares, nem pela aplicaçâo de conhecimentos ou técnicas, nem sequer necessariamente pelo diploma universitârio daquele que o realiza. O ato médico define-se por uma finalidade: salvar a vida, melhorar a saùde. O transeunte que taz respiraçâo artificial num afogado realiza um ato médico. O médico que colabora com a tortura nâo exécuta um ato médico. O fato do carrasco ser substituido pelo médico nâo basta para dar a um suplicio a qualidade de ato médico. Da mesma maneira, o lato de o aborto ser realizado por um médico,e com técnicas aperfeiçoadas, nâo basta para fazer do aborto um ato médico.^'^Da maça à bomba de nêutrons, os homens Lïzeram "progressos" continuos na arte de matar os semelhantes em boas condiçôes". Em 1941,os médicos SS de Auschwitz felicitavam-se por ter "humanizado" o extermmio em seus campos de concentraçao: haviam substituido o monôxido de carbono por um gâs à base de !l:| - ! «< ■ i :! cianeto. Os estupros e assassinatos sâo sempre feitos em mas condiçôes (ao menos para as vitimas). Acaso serâo organizados centres onde estupros e assassinatos possam ser praticados em boas condiçôes (para seus autores), sob supervisao médica.^ 15) O fato é que existent abortos clandestinos, Entâo nâo serâ melhor legalizar o aborto para reduzir seu numéro? a) É indubitâvel que o numéro de abortos clandestines toi aumentado para suscitar o medo e conseguir a mudança da lei. Como sabemos? - Por declaraçôes de médicos que praticaram abortos. B. Nathanson, por exemple, estima que o numéro de abortos clandestines nos EU A foi multiplicado por 10! ii ■ (14) Cf. E.TREMBLAY,"Nature et définition de l'acte médical", in Loisscz-ks vivre, Paris, l.ethielleux, 1975, pp. 333-336. (15) Observaçâo sugerida pelo Dr..1.C. WILLKJÀ. r ■ 180 O ABORTO:PERGUNTAS E RESPOSTAS - Pela constataçâo do efeito da ici sobre as taxas de natalidade, que cafram apos a legalizaçâo. b) A experiência francesa — ao lado da dos outros paises onde o aborto foi liberalizado — mostra que a lei Veii-Pelietier nâo pôs termo aos abortos pudicamente chamados de "nâo-recenseados". Segundo algumas estimativas, estes seriam inclusive aproximadamente tâo numerosos quanto os abortos computados. Quer dizer, o numéro nâo diminuiu. A instalaçâo de uma mentalidade abortiva incita inevitavelmente as mulheres a recorrerem ao aborto por motivos e em momentos nâo previstos pela lei. Portante, clandestina- mente e "em mas condiçôes".^^ 16) Mas o que dizem os partidârios do aborto a respeito das conseqûências demogrâficas dessa prâtica? Fazem dois discursos contraditorios: a)Antes da legalizaçâo do aborto, dizem que este é necessârio "para controlar a explosâo demogrâfica", pois — acrescentam — a contracepçâo é insuficiente. b)Apôs a legalizaçâo, dizem que esta nâo tem efeito demogrâfico notâvel, e que nâo se sabe a que atribuir a queda da natalidade. 17) Serâ que os juizes nào terâo poder para fazer com que seja respeitada uma lei que liberalize o aborto? Como a experiência mostra, a aplicaçâo de lei é praticomenle incontrolâvel'}^ donde a necessidade de manter uma legislaçâo preventiva, dissuasiva e mesmo repressiva. - PrevenlivOy pois é preciso prévenir uma agressâo irreparâvel contra uma vida humana exposta a ser eliminada pelos mais fortes. - Dissuasiva^ pois é preciso dissuadir a mâe de tomar a decisâo de abortar,e oferecer-lhe soluçôes alternativas, eficazes e calorosas. -Repressiva, pois, numa sociedadedemocratica,tudo que atente contra a liberdade do outro, e com mais razâo contra sua vida, deve ser coibido, levando em conta, eventualmente, circunstâncias a tenu an tes. (16) ex pp. 17s. (17) Ibidem. 181 O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS 18) Nào hâ uma diferença entre descriminar o aborto, quer dizer, tirâ-lo do côdigo pénal, e liheralizâ-lo, ou seja, tornâ-lo mais livre, maisfâcil? a)Entre a descriminaçâo e a liberalizaçào do aborto, a distinçâo é muito precaria.'® Descriminar significaria que o aborto escapa à sançâo pénal, o que nâo significa necessariamente que seja permiti- do.Sao conhecidos casos analogos,de ordem menor,é bem verdade: nâo se pune o roubo de um pâo cometido por um miserâvel faminto; no entante,o ato nâo é declarado permitido. Porém, numa sociedade democrâtica, onde, por assim dizer, tudo que nâo é proibido é permitido, descriminar o aborto significaria declarar que nâo pode ser punido, o que equivaleria, na prâtica, a autorizâ-lo, liberalizâdo, quer dizer, tornâ-lo um direito vinculado as liberdades individuais. Descriminar o aborto significa aceitâ-lo, reconhecer que tem direito de existir; é legalizado, cobri-lo com autoridade da lei. Portante, é privar a criança nâo-nascida de qualquer proteçâo légal a sua existência mesma — proteçâo da quai a penalizaçào nâo é senâo a consequência logica. Vê-se: o objetivo visado é a liberalizaçào: facilitar o acesso ao aborto. O meio empregado é a descriminaçâo: promulgar uma lei autorizando o aborto. b) Sabe-se que alguns vâo ainda mais longe: pedem ao Estado que desculpabilize o aborto. A prôpria palavra que usam révéla que percebem confusamente que o Estado, tai como é concebido em nossa civilizaçâo, estaria ultrapassando a missâo que Ihe cabe caso liberalizasse o aborto. Entâo, nâo hesitam em pedir a esse mesmo Estado uma intervençâo tal que implica nâo apenas uma ampliaçâo de suas atribuiçôes, como também uma mudança profunda em sua propria natureza. O Estado a quem se pede que diga o que esta certo ou errado, que diga quem pode viver e quem pode ser eliminado, é um Estado empurrado por seus proprios cidadâos a uma dériva totalitâria.^^ Em suma,jâ que, numa democracia, proibir sem prever sançâo nâo tem sentido, uma descriminaçâo contribuiria inevitavelmente (18) Cf. pp. 35; 58; 145 (19) Cf. pp. 35; 120. O ABORTO:PERGUNTAS E RESPOSTAS para criar uma mentalidade abortiva que multiplicaria o numéro de abortos legais e clandestinos. 19) Nào sejustifica iim ahorto em caso de estupro? Remedia-se uma injustiça grave cometendo outra mais grave ainda? Os casos de estupro seguidos de gravidez sâo, telizmente, bastante raros. A mulher estuprada deve ser melhor defendida pelo poder judiciârio, que deve dissuadir os estupradores em potencial. For outro lado, o aborto induz um comportamento pouco respeitoso em relaçâo à mulher, conduzindo, assim, à banalizaçào do estupro. 20) O ahorto nào sejustifica quando a criança que se anuncia nào é desejada? a) Nâo dispomos de critério algum para dizer se uma criança desejada sera teliz ou se uma criança nao-desejada sera mal amada ou infcliz. Nâo faltam crianças imprevistas bem amadas; nâo faltam crianças desejadas infelizes. Os que maltratam as crianças desejam ter filhos. Além disto,é preciso observar que, mesmo tendo sido desejada, a criança que vcmsempre suscita um risco, e mesmo inûmeros riscos, para seus pais e para a sociedade. Também nâo se poderia esquecer que uma criança desejada antes do nascimento pode ser percebida como indesejâvel depois de nascida, seja por causa de sua evoluçâo (delinqùência, por exemplo),seja por causa da evoluçâo de seus pais (desentendimento, por exemplo). Portante, impôe-se a implementaçâo de uma educaçâo para o acolhimento. b)Acresceniemos que,em alguns meses de gestaçâo, a psicologia da mâe passa quase sempre da contrariedade à aceitaçâo, e da aceitaçâo ao amor. O desejo em relaçâo ao filho nâo para no inicio da gravidez; ele progride, amadurece.Provavelmente, nem todos nos fomos desejados; mas temos a certeza de que tbmos acolhidos. Por fim, a estrutura natural de acolhimento da criança é o casai, onde dois seres humanos constituem uma famllia, quer dizer, formam um projeto que implica duraçâo, fidelidade e confiança para fazer trente,juntos, ao imprevisto. Todo um senso do acolhimento deve ser O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS desenvolvido na sociedade que,com demasiada freqùência, dissuade os casais de projetar e procriar, ou que culpabiliza os que têm filhos. c)A ûnica paternidade/maternidade digna do homem é a paternidade/maternidade responsâvel. Ninguém contesta esta verdade. Assim, um certo planejamento dos nascimentos impôe-se a todos os casais. Mas o que significa esse planejamento? Trata-se de dominar totalmente a fecundidade, por todos os meios — contracepçâo radical, aborto de repescagem, esterilizaçâo, eutanâsia das crianças déficientes?... Na verdade,se for admitido que se pode eliminar todos os indesejados,a sociedade humana se destruirâ. Se nâo for admitida a presença dos outros,com suas diferenças, a vida em sociedade se tornarâ infernal, segundo a definiçâo de Sartre:"O inferno sâo os outros. 21)Tornamo-nos sensiveis à qualidade da vida» Muitas crianças concebidas serâo infelizcs e nâo terâo uma vida de qualidade» O aborto previne e résolve este problema? a) Pode-se ter algumas razôes para pensar que o contexto no quai uma determinada criança que vai nascer nâo sera lavorâvel a sua felicidade. Diante desta interrogaçâo, é possivel perguntar-se quai é a soluçâo mais humona:e\\minà-\'à ou estorçar-se para criar melhores condiçôes de existência para ela? b) A proposiçâo examinada parte do seguinte pressuposto: a vida sô vale a pena ser vivida a partir de um deteiminado limiar de iHi qualidade. É évidente que estamos aqui em pleno campo do subjetivo.^^ O que é essa qualidade de vida, e onde se situa esse limiar? Concordaremos em que a felicidade de uns nâo é feita das mesmas j coisas que a de outros, e que Pedro chega a sorrir ali onde Paulo pensa em suicidio. c)Se é legitimo matar um ser humano porque ele corre o risco de ser tâo pobre que sua vida nâo valeria a pena ser vivida, também é legitimo matar todos os que, neste exato momento,jâ estâo mor- rendo de fome.É évidente que ninguém defenderia esta conseqûência, contudo rigorosamente lôgica. O vicio do raciocmio aparece. (20) Huis clos. (21) Cf. Cap. IX. JP iîî';:i! I II ti:, 184 O ABORTO:PERGUNTAS E RESPOSTAS assim, à luz do dia: a soluçclo para a pohreza ndo é eliminar o pohre, mas partilhar com ele. d) Nossa sociedade nunca Foi tâo rica. Bastaria uma poiftica de apoio à maternidade que Fosse bem pensada, bem aplicada e bem controlada para que toda criança ao nascer dispusesse do minimo material indispensavel que Ihe garantisse uma existência digna. 22) Em nome do direito à qualidade de vida, nào se deve recusar a vida a um ser destinado ao sofrimento ou a uma defîciência? Nâo se deve identiFicar a vida humana e a qualidade da vida humana. Essas duas noçôes nâo estâo no mesmo piano, um pouco como nâo se encontram no mesmo piano a democracia e as qualidades (ou deFeitos) da democracia. O régime é democrâtico ou, por exemplo, totalitârio. O Fato de estar em régime democrâtico nâo irapede que este comporte defëitos. É preciso combater os deteitos, mas o pior meio de combatê-los séria destruir a democracia. Volta- mos aqui à questâo examinada no n.° 7. Da mesma maneira, uma criança deFiciente ou um velho entrevado vivem, mesmo assim, uma existência humana.Sua enlermidade nâo introduz modiFicaçâo intrmseca alguma nesse dado bâsico. Isto signiFica que os direitos humanos sâo inerentes ao ser humano parque ele vive uma existência humana. Esse carâter humano esta nitidamente inscrite em seu corpo: a existência hu mana comporta uma dimensâo corporal que Ihe é essencial. Falar das qualidades Fisicas ou psi'quicas do homem s6 tem sentido relativamente a essa existência. Relativamente a signiFica que s6 se Fala de qualidades em relaçdo a uma existência real, na dependência desta. 23) Qiiando a criança esperada éportadora de uma malformaçào, nào sera melhor recorrer ao aborto para poupar-lhe uma vida indigna do homem? a) Esta pergunta é convergente com uma anlerior (n.° 21). Diante de um deFiciente, quai é a soluçâo mais humana: eliminâ-lo ou ajudâ-lo a levar a melhor existência possivel levando em conta sua capacidade? Sera que, se a mae e/ou a Famflia nao se sentem com força suFiciente para assumir essa situaçâo, a sociedade deve acuâ-las O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS a uma soluçâo dese.sperada, tazendo-as carregar sozinhas o peso,ou, ao contrario, deve procurar ajuda-Ias?^^ b)O que é tragico é que, em determinados ambientes,a criança é rebaixada à condiçâo de objelo de consumo: querem um filho para ter prazer. E como um videocassete ou um carro: se "aquilo" agrada, compra-se; se nâo, aborta-se. No entanto, a criança portadora de malformaçâo é membro pleno da espécie humana; merece viver como qualquer ser humano. Se For eliminado por causa de sua malformaçâo,serâo também eliminados os que nâo têm a cor de pele ou o sexo esperados. Em suma, nâo é a criança déficiente que nâo é desejada: é a sua deficiência. c) Tomemos o exemplo dos mongoloïdes. Com que direito alguém vai decidir que serâo infelizes? Se perguntâssemos aos pais, a esmagadora maioria deles diria que seus filhos sâo crianças felizes; passam ao largo do que constitui um problema para as pessoas "normais"! E mais: a maioria desses pais se diz t^liz com esse tilho, do quai quase sempre os irmâos e irmâs cuidam. Hâ inclusive casos em que esse filho reaproximou casais abalados. d) Esta questâo também é convergente com as anteriores, pois coloca a seguinte pergunta: o que torna uma existência digna do homem'l Sem diivida, hâ casos trâgicose vidas cujosignificado éditicil de discernir, do ponto de vista humano. Mas nâo é muito presunçoso declarar que, pelo fato de nâo o vermos, esse significado é inexistente? Nâo se trataria de uma opçâo inlelectual e moral que nâo pode justificar-se racionalmente até o fim? Além disto, onde sera situado o limiar a partir do quai uma existência é indigna do homem? Na França, uma mulher foi aconselhada a abortar porque a criança que tinha no ventre corria o risco de ser estéril!^^ 24) Ao nienos um quinto dos homens vive mima situaçâo de pobreza absoluta^ em condiçôes infra-hiimanas, indignas do ho mem. Nâo séria melhor impedir essas pessoas de terem fdhos, em seii prôprio interesse e no de suasfamilias? (22) Vero belo livro de Jérôme LEîEUNEe Geneviève POULLO'I ^Maîernitésans fi-onlières, Paris, Éd. V.A.L., 1986. (23) Ver outre exemplo pp. 50s., n. 9. O ABORTO:PERGUNTAS E RESPOSTAS a)Os malthusianos allrmam que ha disparidade entre a progressâo geoméinca da populaçâo e a progressâo antmética dos recursos alimentares. Os neomalihusianos combinam esta lese com a do direiio ao prazersexual sem risco de procriaçâo. Ambas as leses sâo difundidas no mundo inteiro pelos interessados nelas, ou seja, os ricos. b) A pobreza nâo é uma fatalidade, a fome tampouco. Os excedentes alimentares, por exemple, nunca tbram tâo volumosos, mas sâo mal distribuidos, como mal distribuidos sâo, por exemple, os conhecimentos relatives à agricultura, à saûde, à higiene, à regulaçâo natural dos nascimentos etc.^"^ O que os pobres esperam é ajuda para sair da miséria, e nâo a possibilidade de permanecer nela, acompanhada do "oferecimento" de abortos e esterilizaçôes. c) Os ricos possuem uma misteriosa engenhoca chamada eudemôjnetro, aparelho que mediria a felicidade; esta apreciaçâo é, na verdade, baseada nas estatisticas relativas a renda.^-^ A partir dai, os ricos estimam que a vida dos pobres nâo tem sentido, pois têm babca renda; portante, é précisé impedir os pobres de terem filhos. A vida dos pobres valeria a pena se estes tivessem acesso ao prazer. Assim, sâo-lhes recomendados o aborto e a esterilizaçâo, sob o pretexto de que seriam menos pobres e teriam acesso ao prazer. 25) Serâ que nâo paira uma ternvel ameaça sobre a humanidade — a explosào demogrâfica do Terceiro Mundo? A pessoas nâo sâo pobres por serem numerosas demais; sâo numerosas demais porque sâo pobres. Conter energicamente a natalidade no intuito de pôr terme à pobreza é aborlar o problema ao contrario. A pobreza sempre é avaliada a partir da capacidade que tem o homem de tazer trente a seu ambiente: uma naçâo é pobre porque nâo consegue alimentar sua populaçâo. Neste sentido, é a pobreza que é causa de superpopulaçâo, e nâo o inverso; a superpo- pulaçâo é sempre relaiiva a uma situaçâo dada.^'' Ora, esta situaçâo (24) Cf., por exemple, os trabalhos de BOSERUP, BILLINGS etc. (25) Sharon L. CAMP nâo hesitou em editar wmfoldev que expôe o The Human Suffering Index, publicado em Washington pelo Population Crisis Commiltee, 1987. (26) Cf.Cap.XÏV. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS pode ser modificada pela intervençâo do homem, desde que haja vontade moral e politica. Isto nâo signitica que os problemas demogrâficos sejam inexistentes: aqui hâ declmio, la hà crescimento. As autoridades devem, portanto, preocupar-se com o problema, mas sua intervençâo tem de respeitar os direitos fundamentais do homem, nâo podendo ser feita por qualquer meio nem a qualquer preço. 26) O autor afirma que se passa com facilidade do aborto à eutanâsia. Mas, apesar de tudo, nâo se trata de problemas muito diferentes? a) E preciso constatar um fato: nos paises em que o aborto foi legalizado, rapidamente surgem projetos ou propostas de lei visando a autorizar a eutanâsia. AJém disto, entre os que militam a favor da eutanâsia encontram-se pessoas que militaram pelo aborto.^^ b) Sabe-se também que, para legalizar o aborto, quase sempre se começa violando a lei e desatïando os jufzes no inluito de mudar a lei. Esta tâtica do fato consumado se répété no caso da eutanâsia: primeiro é prâticada para depois ser legalizada. O processo de légalizaçâo segue um esquema testado. Primeiro timidamente expressas, combatidas, perdidas de vista, essas propostas depois voltam à super ficie com implacâvel insistência. Acabam domesticando a opiniâo pûblica na esperança de vencer as reticências do legislador.^ m II (ïili fl;; c) A historia contemporânea também nos mostra que os partidârios da eutanâsia as vezes utilizaram outro percurso para atingir seus objetivos. A Alemanha nazista, por exemplo, regulamentara o aborto; ela o facilitava para as raças ditas impuras e o dificultava para a raça ariana. O que preparou os espiritos para admitir a eutanâsia foi sobretudo a esterilizaçâo em grande escala. i 27) Mesmo tendo de reconhecer que a legalizaçâo do aborto abre caminho para a da eutanâsia^ nâo se trata, apesar de tudo, de problemas muito diferentes? A concepçâo da vida humana na quai se inspiram os defensores (27) Cf. pp. 43;%; 169. (28) Cf. pp. 16s.; 57; Cap. VIII. 188 O ABORTO:PERGUNTAS E RESPOSTAS da eutanasia é rundamentalmente a mesma que a dos partidarios do aborto. Ambos consideram que minha vida e a dos outros s6 têm senLido no prazer. Se o outro constitui um obstaculo a meu gozo, se ele me é inutil, posso elimina-lo; se o outro nâo pode viver uma vida de prazer, sua vida pode ser eliminada. Esta ùltima observaçâo mostra que ha uma ligaçâo reai entre a eugenia — hoje chamada de oHogenismo — e a eutanâsia: quer se trate de uma criança ou de um doente, sua existência so é admissfvel se der prazer. Vê-se, assim, que uma sociedadc hedonista, quer dizer, que maximiza a procura do prazer, fatalmente dégénéra numa sociedade de violência e morte. 28)Aprâtica do ahorto nâo vai modifïcar a imagem da medicina? A legalizaçâo e a "medicalizaçrio" do aborto dâo infcio a uma mudança radical na concepçâo do médico e da medicina. O médico que dériva para a liberalizaçâo do aborto pode ter a impressTio de estar sei*vindo a sua paciente. No entanto, cabe interrogar-nos sobre sua atitudc. -Sera que esse médico ainda esta incondicionalmente a serviço da vida desde sua origem? Nâo estarâ exercendo sua arte a serviço das conveniôncias dos mais fortes? Nâo estarâ sacribcando a tais interesses a existência do mais fraco? - O médico nâo corre o risco de exercer sua arte ao sabor das conveniências do Estado ou de grupos dominantes? Nâo se torna um mercenârlo preocupado nâo em protéger a vida e a saude, mas em seiA/ir a um patrâo, nâo a um doente?-^^ -Sabe-se que hoje existem médicos que praticam a eslerilizaçâo, o aborto, a tortura e a eutanasia ativa. Nâo estaremos assistindo a uma mudança qualUativa essencial na relaçâo médico-pacientel^^ - Muito mais, estudos publicados recentemente mostram que determinados médicos têm o projeto de associar-sc ao poder, participar dele e inclusive assegurar uma "gestâo estatizada da vida". Quem (29) Cf. Cap. m. (30) Cf. p. 42. (31) Cf.pp.39ss. (32) Cf. p. 41. O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS pagarâ essa tecnocracia méciica? As naçôes dilas desenvolvidas? O Terceiro Mundo? Os pobres? Donde é necessario que cada médico de a conhecer sem ambi- gùidade sua posiçâo diante do respeito à vida e sua posiçâo diante do poder politico. E é necessario que os médicos servidores incondicionais da vida se organizem em nivel internacional. 29)A prâtica do aborto nào vai modificar a imagem da magistratura? A legalizaçâo e a "medicalizaçâo" do aborto anunciam uma mudança radical na concepçâo que se tem da magistratura e do juiz. - A experiência mostra que, nos paises onde o aborto foi liberalizado, | os juizes pralicamente nâo têm a possibilidade de fazer com que a lei seja respeitada. | - O que é ainda mais grave é que a maioria das legislaçôes que | liberalizaram o aborto transferem ao médico a competência do juiz. | Assim, o juiz é privado de sua funçâo primordial: fazer com que a | vida humana seja respeitada, antes de fazer com que os bens sejam S respeitados. - Dai decorre que doravante os juizes estarâo melhor aparelhados | para impor o respeito à propriedade do que à vida de determinadas | categorias de seres humanos.Se Ihes for retirada a competência de | fazer com que a criança nâo-nascida seja respeitada, ficarao igualmente desamparados quando se tratar de impor o respeito à vida dos velhos, dos doentes incurâveis, dos "incômodos" etc. 30) Nâo hâ ao menos um ponto com o quai partidârios e adversârios do aborto concordam? Todos concordam em dizer que o aborto sempre é nvafracassa. Diante de um ato que, sabe-se de antemâo, sera um fracasso, deli- | neiam-se duas atitudes. For um lado, é possivel resignar-se com o fracasso,e mesmo regulamentâ-lo. For outro lado, pode-se estimular | a açâo convergente dos homens de boa vontade para prévenir o | fracasso. Este, de fato, nada tem de fatal: ele é evitâvei 31) A adoçâo oferece uma "alternativa^^ao aborto? a)Se uma mâe nâo se sente capaz de amar o filho e fazê-lo feliz, (33) Cf. Cap. XIV. 190 O ABORTO:PERGUNTAS E RESPOSTAS hâ tantos e tantos casais que choram para adotar um filho, amâ-lo e fazê-lo feliz... b) Multos casais lamentam nâo poder ter filhos e desejam adotar. Além disto, muitas mulheres desistiriam do aborto se estives- sem melhor informadas sobre as possibilidades de entregar o filho, logo apos o nascimento, a uma famflia que o reconhecesse e amasse como seu prôprio. Facilitar as formalidades para adotar e dar em adoçâo contribuiria, avssim, para prévenir o aborto, como também contribuiria a criaçâo de uma mentalidade acolhedora em relaçâo a todas as crianças abandonadas, quer sejam dos paises europeus ou do Terceiro Mundo. 32) Entâo a descriminaçâo do aborto e a liheralk,açâo que é sua conseqiïência prâtica acarretam ameaçassériaspara nossa sociedade? Simone Weil escrevia a Bernanos: ''Quando as autoridades temporais e espirituais colocam uma categoria deseres humanos fora do grupo cuja vida tem valor, nada mais naturai para o homem que matar. Quando se sabe que é possivel matar sem correr o risco de castigo nem censura, mata-se; ou ao menos os que matam sâo rodeados de sorrisos encorajadores. Quem por acaso sentir de inicio um pouco de nojo, cala-se e o suToca, por medo de ser pouco viril. 33)A Igreja catôlica deveria levar em conta a evoluçào dos costu mes e adaptar a ela sua concepçâo do pecado, A Igreja perdoa os pecados, mas nem por isto os autoriza. Cristo delegou o poder de perdoar os pecadores arrependidos, nfio de negar a existência do pecado. Sempre houve pecadores que reconhecem seu pecado. O elemento novo que o debate sobre o aborto suscitou foi que hoje o pecado é negado; nega-se a transgressâo da lei da moral naturai, em primeiro lugar, e da lei divina; ao declarar bem o que é mal, o homem usurpa o lugar de Deus e substitui-se a ele.^*^ Nâo (34) Citado, com vârios outros textes igualmenie intéressantes, por Jacques VERHAEGEN na rica coletânea organizada por cle Licéitc en droit positif et références légales aux valeurs, Bruxelas, Bruylant. 1982. Os excerpta estâo nas pp. 158-167; nossa citaçâo é da p. 166. (35) Cf. pp. 34; 63; 90. 191 r O ABORTO: ASPECTOS POLITICOS apenas se récusa a ver e reconhecer o mal que taz, como déclara que o mai é bem para ele. O perdâo que Deus oterece ao homem fica, assim,sem objeto. Deste modo,cegando a si mesmo sobre seu erro, o homem se iecha à salvaçâo que Deus Ihe oterece. Talvez seja isto o pecado contra o Espirilo. Por sua violência, as campanhas pelo aborto e a eutanâsia visam e atingem o homem, mas visam igualmente Deus. 34) Além dus razôes que acabam de ser enunciadas, hâ motivas particulares que levam os cristâos a se oporem ao aborto? A moral crislâ adere sem réservas a regra de ouro da moral universal:'*Nâo faz aos outros o que nâo queres que te façam." Além disto, o cristâo nâo se pergunta quem é digno de ser seu proximo; pergunta-se como ele mesmo pode tornar-se o ptôxifno de outro (cf. Le 10, 25-37). Por fim, o cristâo crê que as torças do mal estao agindo no mundo,e que foi para delas salvar todos os homens que Jésus veio à terra. Essas forças, importantes para destruir Deus, querem destruir o homem, que é Sua imagem viva do começo ao fim da vida. Para o cristâo, todos os homens receberam a existência do mesmo Deus, e h- é por isto que sâo irmâos. Por conseguinte,todo homem deve ser nâo apenas respeitado como também amado, porque exprime algo da bondade e da beleza de Deus,e porque esta destinado à vida eterna. i 192 Bibliografia I Generalidades A presenie bibliografia relativa ao aborto rétama e compléta a citada ao longo do livra. Abello, L,Les trois menaces à la société contemporaine, Hull (Quebéc),Ed.Mouvement Vivere, 1986(sobre o aborto,cf. pp. 35-62). Bel, R. Quelques éléments de la situation en Angleterre depuis la libéralisation de Vavortement (1967),(estudo mimeografado), 10 p., s. 1.,[1976]. *4 . . Berger,H. Rapportd'informationfait au nom de la Commission des Affaires culturelles, familiales et sociales, sur le problème de V interruption volontaire de la grossesse. Document n° 930 de l'As semblée Nationale, Annexe au procès-verbal de la séance du 25 janvier 1974, Paris, 1974. Besson, a.e Ancez, M.La prévention des infractions contre la vie humaine et l'intégrité de /û (Publicaçôes do Centro de Estudos de Defesa Social, Instituto de Direito Comparado da Universidade de Paris), Paris, Ed. Cujas, 1956. Chachuat, m., Le mouvement de «Birth Control» dans les pays anglo-saxons, tese de doutoramento em direito, Lyon, Université de Lyon,Faculté de droit. Éd.Bosc et Riou, 1934. Haussler, a. The Betrayal of the Theologians, folheto traduzido do alemâo por Human Life International (Washington D.C.), 1982. 193 tlll t ' BIBLIOGRAFIA O que é o aborto, folheto publicado pela «Frente de mulheres femi- nistas», Sâo Paulo Éd. Cortez, 1980. Lepermis légalde tuer ou Vavortementdevant de Parlement^ publicado por uma comissâo de juristas, médicos, vereadores e profissionais libérais, Paris, Éd. CLC(collection «SIDEF»),[1971?] Sanders,p.Information médicale continue dugrandpublic en matière de reproduction humaine, tese mimeografada, defendida em 3 de novembro de 1986 na Faculdade de Medicina de Tours. ScHOOYANS,M., «État de détresse? "Etat de nécessité?», m La Libre Belgique de 24 de novembro de 1989. Seifert,I.Abortion and Euthanasia as Légaland MoralIssues:Some Philosophical Reflections on the Dignity of Man, on Life and (Brain) death, texto mimeografado de 87 p. de uma conferência proferida em Melbourne, em 13 de maio de 1987, durante a «Bioethics update conférence»,Principado de Lichtenstein, Academia Internacional de Filosofia, 1987. Vedrines, g. e Borrel, M.-F. La loi Veil ou la détresse des médecins. Bilan de Vapplication de la loi dans da région Rhône- Alpes et dans la Loire, Lyon, teses da Faculdade de Medicina, 1976. Veil, S., Exposé no Congresso do México em 1977. Texto que figura no 4° volume das Atas desse Congresso, publicadas com o titulo de Mexico 1977. 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DCrefere-se a Documentation Catholique,Paris.Asprincipais declaraçôes anteriores a 1980 podem ser encontradas graças aos Indices gérais 1972-1980 da DC,nûmero especiaî de abril de 1981, 63° ano, t. 78, na rubrica mborto»,p.8e ss. A)Documentos pontificîos de Joâo Paulo II Allocution aux médecins italiens, dans DC, n° 1756 du 21 janvier 1979,pp.51-53; Angélus du 10 mai 7957,dans DC,n° 1809 du 7juin 1981, pp. 527 et ss.; Exhortation apostolique «Familiaris consortio» du 22 novembre 1981, dans DC,n° 1821 du 3 janvier 1982, pp. 1-37, spécialement-les 30 et ss.; Discours au Congrès mondial des médecins catholiques,dans DC,n° 1840 du 21 novem bre 1982, pp. 1029-1032; Allocutions à la Conférence épiscopale canadienne, dans DC, n° 1882 du 21 octobre 1984, pp. 983-985; Allocution aux représentants des paroisses à Utrecht, dm^ DG,n° 1893 du 16 juin 1985, pp. 631-633; Discours au VF Symposium du Conseil des Conférences épiscopales d'Europe, dans DC,n° 1906 du 17 novembre 1985, pp. 1083-1087; Encyclique «Sollicitudo rei socialis» du 30 décembre 1987, dans DC,n° 1957 du 6 mars 1988, pp. 233-256; Discours devant le Conseil de l'Europe, dans DC,n° 1971 du 30 octobre 1988, pp. 1001 et ss. BIBLIOGRAFIA B)Documentos da Santa Sé Déclaration de la Congrégation pour la doctrine de lafoi sur ravortementprovoqué^ dans DC,n° 1666 du 15 décembre 1974,pp. 1068-1073; Cardinal Roger Etchegarray, Appel contre Vavorte ment, dans DC,n° 1861 du 6 novembre 1983, p. 1006; Mgr Jan P. ScHOTTE,Intervention à la Conférence internationale sur la Popu lation à Mexico,8 août 1987,dans DC,n° 1883 du 4novembre 1984, pp. \0\3-\0l7;Instruction «Dqnum vitae>>, dans DC,n° 1937 du 5 avril 1987, pp. 349-361; Cardinal Joseph Ratzinger, Aspects an thropologiques de «Donum vitae», dans DC, n° 1937 du 5 avril 1987, pp. 362 et ss.; Communication de l'Église catholique à la XXI? Conférence du CIOMS:Pour une claire éthique de la plani ficationfamiliale, dans DC,n° 1968,4-8 septembre 1988, pp. 870877. ■ t ' . C)Documentos Episcôpais Episcopado alemào: DC,n° 1933 du 1"février 1987, pp. 175-178; DC,n° 1914 du 16 mars 1986,pp.325-328;DC,n° du 15 décembre 1985,pp. 11621164. ' ' Episœpado da Inglaterra e do Paîs de Gales: DC,n° 1654 du 19 mai 1974», pp. 483-486. Episcopado belga: Déclaration de l'épiscopat belge sur l avortement, du 2 avril 1973,LICAP, Bruxelles, 1973; DC,n° 1723 du 3juillet 1977, pp. 64^et ss.; DC,n° 1989 du 6-20 août 1989, pp. 760 et ss. Episcopado brasileiro: Mgr Luciano Mendes de Almeida,Intervention à la V Assem blée du Synode des Évêques, dans DC, n° 1796 du 23 novembre i 1980, p. 1064. ' li! iii l'i i ' 198 BIBLIOGRAFIA Episcopado canadense: DC, n° 1962 du 15 mai 1988, pp. 524-526; Z)C, n° 1969 du 2 octobre 1988, p. 942. Episcopado do Congo (Brazza): «Lettre des évêques du Congo sur Tavortement», in ZaïreAfrique (Kinshasa), n° 174 (avril 1983), pp. 211-219. Episcopado da Costa do Marfim: Le respect de Tenfant à naitre,declaraçâo de8 de março de 1989 em Yamoussoukro, publicada pelo Secretârio Gérai da Conferência Episcopal, BP 1287, Abidjâ. Episcopado espanhol: DC, n° 1666 du 15 décembre 1974, pp. 1074-1077; DC. n"^ 1848 du 20 mars 1983, pp. 320-322; DC,n° 1859 du 2octobre 1983. pp. 912 et ss.; DC, n° 1908 du 15 décembre 1985, pp. 1165-1169. Episcopado dos Estados Unidos: DC, n° 1646 du 20 janvier 1974, pp. 70-72; DC, n° 1919 du juin 1986, pp. 569-572; DC, n° 1955 du 7 février 1988, p. 168. Episcopadofrancês: Note doctrinale de la Commission épiscopale de lafamille sur L'avortement, Paris, mars 1971; DC, n° 1932 du 18 janvier 1987. pp. 88-91. Episcopado grego: DC,n° 1923 du 10-24 août 1986, pp. 779. Episcopado italiano: DC,n° 1627 du 4 mars 1973,p. 245;DC,n° 1714 du 20 février 1977,pp. 194 et ss.; DC,n° 1721 du 5 juin 1977, pp. 523 et ss.; DC, BIBLIOGRAFIA n° 1745 du 2juillet 1978,p.632;£)C,n° 1807 du 3 mai 1981,pp.495 et ss. Episcopado português: DC. n° 1876 du 17 juin 1984, pp. 644-646; DC,n° 1809 du 7 juin 1981, pp. 554-559. Episcopado suiço: DC,n° 1725 du 7-21 août 1977, pp.737 et ss.; DC,n° 1728 du 16 octobre 1977, pp. 891-893. X Indice de nomes proprios ABELLO,L., 193. ACHARD,B., 117. AGARWALA,A., 147,193. ALTHUSIUS,94. ANCEZ,M.,54, 195. ANTlGONA,90. ARBLASTER,A, 160. ARENDT,H., 161, 193. BILLINGS,J. J., 80,187, 195. BINDING,K., 15, 46,62, 166. BLANCHET,B., 196. BLAYO,C, 19, 195. BLECHSCHMIDT,E., 48. BONNET,H., 117, 195. BONOMI,G.,80, 195. ARISTÔTELES,90. BORREL, M.-F., 40, 208. BOSCH,J., 160. ASSIS PACHECO, M. V. de, 145, BOSERUP,E., 81, 130,148, 187, 193. ATTALI, J., 130. 195. BOURCIER de CARBON, P., 195. BADINTER,É, 122, 194. BEAUVOIR,S. de, 122. BEIRNAERT,L., 92, 194. BEL,R., 18,54,82,83, 194, 201. BELL, D., 160. BENEWICK,R., 146, 160, 194. BENIN, M. H., 74, 194. BENTHAM,!., 103. BERELSON,B., 131 .s., 194. BERGER,H., 194. BERGSON,H., 31. BERKI,R. N., 146, 194. BERNANOS,G., 110, 191. BESSON,A.,54,195. BÉZY,F., 150. BIANCO,L., 141, 195. BILLINGS,E., 80, 187, 175. BOURGEOIS-PICHAT, J., 132, 195. BOWLEY,J., 97. BOYER,R., 45,195. BRANDI ALEIXO,J.C., 146,195. BRANDT, K.,61. BRISBOIS, L.,21,195. BRISSET, C,42, 139, 151, 195. BROAD,C. D., 97. BRUGUÈS,J.-L, 72, 195. BRZEZINSKI, Z., 155-157, 160, 196. BURUIANA,M., 196. CALLAHAN,D., 45, 196. CALLICLÈS,90, 120. CALOT,G., 18, 196. INDICE DE NOMES PROPRIOS CAMPBELLMOORE-CAVAR,E., 133, 196. CARDER,M., 139,207. CARLONI,G., 118,196. CARON,J., 121, 196. CARTER,J., 156, 200. CASAS TORRES,J. M., 130,148. CASPAR,P., 48,196. CASTELLI,E., 37,197. CERRUTI,F.-R., 115,196. CHACHUAT,M., 196. CHAFAREVITCH,I., 161, 196. CHAMBERLAIN,A. N., 113 s. CHAMBERLAIN,H. S., 127 s. CHANG-MING,H.,141,195. CHAPELLE,A., 199. CHAUNU,P., 196. CHENMUHA,141. CICCONE,L., 73,196. CIPOLLA,C. M., 147. DEITCH,C. H., 74, 197. DELAYE,J., 200. DELUMEAU,J.,91. DEVERELL,C,131, 197. DEVREUX,A. M.,82, 197. DE WAELHENS,A., 37,197. DHAVERNAS,D., 122,198.. DICKENS,B. M., 197. DIJON,X.,62,198. DOMMERGUES,P., 156,198. DOROZYNSKI,A., 79, 198. DRIVER,E.D., 132,198. DUCHÈNE,G., 198. DUGUIT,L., 62. DUMONT,G.-F, 198. DUMONT,R.,81,128, 198. DURANT,P., 21. DURBIN,E. F. M., 97. DUVERGER,M.,26. DVORAK,A,D., 48. ÇLARK,C., 197. COHEN,J., 117, 197. COIRIER,C,80, 197. COLE,H., 130, 197. COMTE,A., 46,91. COOK,R.J., 197. COT.J.-P., 156, 197. CRÂTILO,90. CROSS,H., 138. CROZIER,M., 159, 197. DALADIER,E., 113 s. DANNUS-LONGOUR, M., 80, 197. DAUSSET,J., 48, 197. DAVIS, N. J., 83,197. DAWSON,D. A., 207. DEFOIS,G.. 198. 202 EHRLICH,P., 130. ENGEUR.,135,198. ENGELS,F., 81,102. ESCOFFIER-LAMBIOTTE, Dr., 85. FAVRE,M.,33, 198. FERIN,J.,40,198. FERRAND-PICARD, M., 40, 82,84,197 s. FERRAZ PEREIRA,A., 62. FESSARD,G., 123. FEUERBACH,L., 101, 168,170. FICHTE,J. G.,62, 128. FOUCAULT,M.,67. FOUGEROUX,F., 198. FOULQUIÉ,P., 108. INDICE DE NOMES PRÔPRIOS FOUQUET,C, 122, 200. FOUREZ,G., 16. FRANCOME,G., 21, 198. FREEMAN,G., 130, 197. FROMM,E., 92,199. HEYLEN, V., 40, 198. HILGERS,T. W., 48, 199. HIPPIAS, 32. HITLER,A,62,99,113,128-130, 162. HOBBES, T., 31, 34, 62, 67, 91, GAIUS,50. GALTON,F., 169. GALTUNG,J., 150. GALVO de SOUZA,J. P., 62. 94. HOCHE,A,16. HOFSTATTER,E., 132, 203. HORAN,D. J., 198 s. GAUDEMET,J., 50, 52. GENTILE,G., 15. HORELLOU-LAFARGE, C,40, GÉRARD,H., 127, 199. HOUEL,A, 122, 200. HOUGUE,A. de la, 200. HUNTINGTON,S. P., 159, 197. HUSSERL,E., 51. HUBNER GALLO, J. 1., 145, GIORGIANNl, V., 96. GIRARD,R., 170, 199. GLOVER,T.R., 97. GOBINEAU,A. de, 128. GOBRY,I., 48, 89, 199. GOLDSTEIN, M. S., 42, 199. GORBACHEV,M., 149. . 200. 200. ISAMBERT,F. A,115, 200. GÔRGIAS,91, 96, 120. GRANT,J.P., 139, 199. GRASSÉ,P.-P., 18, 201. JACOBS, V., 200. JACQUARD,R., 79. GUILLAUME, M., 130. GUTTMACHER,A,44. JACQUINOT, C., 200. JAHODA, M., 1-30, 197. HÀGERSTRÔM,A,97. HALL, R.E., 193. HAUSMAN,N., 199. . HAUSSLER,A,74, 199. HAYLER,B., 145, 199. HECKEL,R.,72, 199. HEGEL,G. W. F., 15, 34, 98. HEIDEGGER,M., 15, 26,51,62. HELMAN,S.,41, 207. HENDRICKX, M., 118, 199. HENNAU-HUBLET,C,50, 199. HENNAUX,J. M., 72, 199. JAMES, W., 91. JHERING,R. von, 91. JOHNSTONE,D., 156,200. KANT,E., 94, 99. KARMAN,43, 135. KASTLER,A, 136. KASUN,J. 136, 200. KAUFMANN,A,26. KELSEN, H., 62. KENNEDY,F., 117, 206. KESSEL, E., 164, 203. KETCHUM,S. A,118, 200. Indice de nomes prôprios KLATZMANN,J., 81, 148, 200. KNIBIEHLER,Y., 122,200. KOHLER,W.,96. KUZNETS.S., 147,200. LA BOÉTIE,É. de,.16,201. MAQUIAVEL N.,34,62,91,94. MAIHOFER,W.,26. MALINAS,Y., 202. MALINCONI,N., 43,60,202. MALL,D., 200,202. MALTHUS,T.,126 s., 129s., 139, LABOU,R., 50. LACORDAIRE,H., 111. LACOSTE,J., 96. 147 s., 158,187. MARCELLIN,R.,83. MARCUSE,H.,22,31. LADRIÈRE,P., 14,76,201. LADRIÈRE,J., 26. MARIENTRAS,É., 130,202. LAGRANGE, E. de, 18, 83, 201. LAGRANGE, M.-M. de, 18, 83, 201. 1'; LALOU,R., 201. LALOY,J., 79. LAMATER,J. D. de, 205. LAM-THANH-LIEM, 141,201. LARGEAULT,J., 96. LARRY,K. Y., 132,201. LECART,JC.,40, 198. LEGRAND,J., 83, 196. LEJEUNE,J., 186. LE MILLOUR,C, 121,201. LÉONARD.A.,66, 201. LERIDON,H., 201. LEVINAS,E.,51. LEWIS,CI.,96. LEWIS,TLT,20, 201. MARQUES-PEREIRA, B., 16, 202. MARX,K., 26,81, 101, 120. MATHON,G., 75, 202. MATTHEUWS,A., 202. McGRADE,A.S., 96. McLUHAN,M.,22. MÉMETEAU,G., 202. MEULDERS-KLEIN, M.-T.. 40, 45,55, 118,198,202. MILANESl, M.L,202. MILGRAM,S., 169,202. MILOSZ,C,96, 202. MONROE,J., 154. MONTCLOS,X. de, 71, 202. MONTESQUIEU,5, 25. MOORE,G. E., 96. MORGENTALER,H., 196. MOSER,A., 203. MUILENBURG,M. I., 48. LHOMOND,B., 122, 200. MUMFORD,S. D.,82, 164, 203. LIFTON, R.J., 15,41.201. MUNOZ-PEREZ,F., 203 MUSSOLINI,B., 166. LILEY,A. W.,48. LINZELL,D., 127,201. LOCKE,J., 104. LOTSTRA,H.,75, 201. LOVENDUSKI,J., 16,82, 201. LUKÂCS, 15. 204 MUTHIAH,A., 115,203. MYRDAL,J.G., 150. NATHANSON,B.,18,43,82,203. NAU,J.-Y, 135.203. INDICE DE NOMES PRÔPRIOS NAUGHTON.G., 127,203. NEUW1RTH.L., 18. NIETZSCHE,F.,91,128. NlGRO,S.A.,39,203. NOBILI,D., 118,196. NORTMAN,D., 132,203. NOTESTEIN, W., 137,203. SADE(Marqués de), 92,123. PLATÀO,90,91,96. POLLOK-PETCHEVSKY,R., 74, 204. POTTS, M., 127, 133, 136, 139, 204. POULLOT,G., 186,204. POUSSET,E.,69,210. PRADERVAND, P., 131 s., 136, 138,150,204 s. PROTÂGORAS,91, 120. % % h' ROCKEPELLER,J. D., 137, 203. ROCKEPELLER, N., 154, 157, OUTSHOORN,J., 16,82.201. PINGAUD,B.,57,204. "? 205. ROSTENNE,A,51,205. PIERRE,P., 210. I I ROBERT,C., 45,72,205. ROCKEPELLER, D., 156, 159, OCKHAM,G.d',96. OMINDE,S. H., 132,204. ONORlO,J.-B,d',204. PAREKH,B., 145,194. PAUL,50. PAVllT,K., 130,197. PAZ,G., 156. PERICO,G., 21,115,204. I REZSOHAZY,R.,59,205. RICŒUR,P.,37,205. ROBB1NS,J.M.,205. RABELAIS,P., 143. RAU,W., 74, 205. RAY,J.-J.,205. REAGAN,R., 144. REICH, W.,65 .s., 205. RENARD,R., 103,205. REVON,G., 120, 205. 159. SAGET,H., 48,89,199. SAGNE,J.-C.,31. SALA-MOLINS,L., 71. SANDERS,P., 80,84,206. SARTRE,J.-P., 92, 103, 1Z3,165, 184. SAUNIER,R., 29. 206. SAUVY,A, 130, 146, 206. SCHEPENS,P., 206. SCHLICK, M.,96. SCHMITT,C,62 s., 206. SCHRE1BER,B., 127,206. SCHULDER,D., 117, 206. SCHUMACHER,E.P., 160,206. SÉBAG,L, 150, 206. SEIPERT,J., 206. SENY,Y.de, 206. SERBEVIN,E., 57, 206. SHMELEV,N., 149. SHOSTAK,A. B., 122. SILVA SOARES,J. A,207. SIMON,J. L., 130, 132, 137,147, 207. SIMON,P.. 81.102, 207. SINGER,P., 147, 207. SINGH,P., 147, 193. 205 INDICE DE NOMES PRÔPRIOS SMITH.A.,91, 103. VAN PETEGHEM,L. A.,75,208. SÔCRATES,32,90. VAN PRAAG,P., 119,208. VAN STRAELEN,H., 208. VEDRINES,G., 40,208. VEIL, JS., 17 s., 30, 34, 37, 40, SÔFOCLES,90. SOUTOUL, J. H., 18, 19, 54, 81, 133,204, 207. STÂLIN, 162. STANFORD,S., 207. STEVENSON,C. L., 96. STIRNER, M.,91. STRACHEY,A.,97. STRAUSS,L., 36. SUITTERS,B., 127, 139. SUN-TZÉ,79. i SUREAU,C,40, 49,207. SUYIN,H., 145. SYMONDS,R., 139,207. SZASZ,T. S., 67. TALEE,S. A., 132,195. TATU,M.,79. TCHAKHOTINE,S., 79. TERLINDEN,M., 207. TERNON,Y., 41,207. THOMAS,G., 44, 207. TRASIMACO,90. 42, 49, 52, 54, 80, 82, 178, 181,208. VERDOODT,A., 26. VERHAEGEN,J., 141,208. VERRIÈRE,J., 127, 132, 208. VERSELE,S.C., 209. VÉZINA,M.-O.,60,209. VIGNEAU,D., 50, 209. VOGT,JW.,81,209. VOLKOFF,V., 79,209. VRANCKX,A., 209. WALLON,H., 71. WALTER,J.-J., 161,209. WATANUKI,J., 159,197. WATTS, W.F., 202. WEIL,É.,28 WE1L,S., 191. WEILL,C, 102. WEILL-HALLÉ, L, 18, 22, 81, TIETZE,C,207. TORELLI, M.,40, 207.TREMBLAY,E., 135,180,207. TROISFONTAINES,R., 207. TROMBLAY,S., 208. TROUSSE,P.-E., 50,208. TRUFFER,E.,208. 131,134,164,209. WERTHAM,F., 144,148, 209. ULPIEN,50. WUNSCH,G., 127, 199. WESTMORE,A.,80,195. WILLKE,J.CeSra., 17,136,141, 180,2;09. WOOD,C,127,133,136,204. WU-BEYENS,IC, 141,209. XENOFONTE,32. VALLIN,J., 132,208. VANDELLI,48. YARD,M.,42,103,209. VANDERVELDE,É., 51. YERGIN,D., 79. 206 A Indice temâtico Adoçâo, 121,177,190 s. Adolescentes, 21,176. Ato médico, 180. Discriminaçâo, 43, 61 s., 114 s., 182, 191. Dupla verdade, 76 s., 110. Duplo efeito, 177 s. Boas condiçôes, 180. Cientismo, 39 s., 93,168. Ciandestinidade, 17 s., 49, 180 s. Conflito de valores, 46 s., 58 s., 96 ss., 103 s., 118,177,185. Consumo,22 s., 121 s., 150 ss. Contracepçâo, 76 s., 80 s., 102, 126 s., 133 s., 140., Ecologia, 160. Estado de direito, 36,62, 179. Esterilizaçâo, 44,132,189, 207. Estupro, 175, 180,183. Eugenismo, 117, 127-129, 139 ss., 189. Eutanâsia, 44, 46 s., 188 s. Exagero, 17 ss., 82 ss. Costumes,(Moeurs,)53,57 s.,86 s., 107,178, Cristâos, 71-77, 82, 105. Declaraçôes, 26-30, 108 s., 165. Déficientes, 185 s. Demiurgo, 34, 90-92, 153, 165 s. Descrirainaçâo, 35, 61. Desculpabilizar, 35, 73, 120, Fome,82,147 ss., 186 s. Homens, 122 s., 175. Humano,48-51,67 ss., 173 s. Ideologia, 89-100, 153-171. Igreja, 71-77, 82, 110, 164, 191. 182. Desejado,66 s., 183 s. Dificuldade, 49, 177, 206. Direito,32 s.,49 ss.,61 ss., 95,98, 108 s., 174 s. Direito à vida,31-34,58 s., 108 s., 114. Juizes, 33,36,58, 188, 190. Justiça, 27,45 s., 89. Legalizar, 35,53, 182. Legislador, 31 ss., 58, 109, 115, 179,188. Indice temàtico Lei,26,32,52,89, 114,125,166, Qualidade de vida, 184. 174 s., 178 s. Liberalizaçâo, 35, 47, 54, 134, Regra de ouro,98 s., 109, 192. 182, 191. Regulaçâo natural,80. Maioria, 109, 179. Segredo,37,163 s. Segurança,91,145, 153-171. Mal menor, 113-115. Medicina, 39-44, 98, 101 s., 166 Separaçâo dos podercs, 32 s., s., 180,189 .s. 118. Mongôlicos, 185 s. Solvência, 42, 97, 103 s. Moral cristâ,71-77,107-111,173, Sujeito de direitos, 26 ss., 32, 49 192. Moral natural, 27.40,45,65,75, 86,98 s., 110,192. Morte, 91, 96, 104,169 ss., 188 Mulher, 47, 59 s., 117-123, 165 174-178. Populaçâo, 127-141, 145-152, 167 s., 181, 187 s. Positivismo jun'dico, 34,46. ss., 118. Terceiro Mundo, 130-134, 144, 155 ss., 187. Transgressâo, 72, 95, 175,191. Universalidade,29,62,95 s., 105, 114 s., 173 s. Vaziojudicial, 57-63, 179. Prevençao,53 s., 121,175 s., 178, Vazio jun'dico, 57-63, 179. 181,190. Velhos, 97,121,178. Proteçâo, 50 s., 53,59 s. Iversité catholique de Louvain 10.363.416 Impres&âo e Encademaçâo ' 'MARQUES'SARAJVA' ' GRÂFICOS E EDITORES S.A. Tels.:(021)273-9498 -273-944: Michel SCHOOYANS nasceu em 1930. Foi ordenado padre em 1955. De 1959 a 1969, foi professor na Universidade Catôlica de Sâo Paulo. Ao mesmo tempo, exerceu o ministério paroquial na periferia da cidade e foi capelâo da JOC.Profes sor na Universidade Catôlica de Louvain, desde 1964, af ensina Filosofia Polftica, Ideologias Contemporâneas, Moral Social. As ilustraçôes sâo de dois artistas brasileiros: Cicero Dias (capa)e Calasans Neto (vinheta). Il- ■ s'j' • .;îr,f=- :-V,. .-1. • » * • V*^ ' !w •-, f(;.av';^)i^w iS Université catholique de Louvain 10.363.416